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UNESCO

UNESCO

Quando cheguei em Paris, eu tinha o sonho de trabalhar numa organização internacional. Esses lugares eram, para mim míticos, porque me permitiriam muitas viagens, em que teria contato com pessoas do mundo todo.

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A Unesco era, para mim, um lugar especial, por sua missão educativa e cultural. Depois de várias entrevistas, comecei a fazer um estágio remunerado, que durou dois anos. Fui contratada para indexar documentos e era paga pela minha produtividade. Meu salário representava cerca de um décimo do que recebiam meus colegas, funcionários permanentes da organização, mas, para meus padrões, era muito bom. Além disso, eu esperava, com essa experiência, concorrer a um cargo definitivo naquela agência.

Comecei a trabalhar em pleno inverno. Comprei duas calças de veludo e algumas blusas para me apresentar melhor. Mas meu único casaco não era muito “elegante”. Assim que eu entrava na sede da Unesco, tirava o capote e o virava do avesso, para que as pessoas não o vissem.

Todos os dias às dezoito horas, eu saía da Unesco com Madame Forestier, minha chefe. Nessa época, o metrô tinha duas classes. No momento em que nos despedíamos, ela entrava no vagão da primeira classe, enquanto eu ia para a segunda. Em agosto de 1991, esse sistema de classes foi abolido

Aprendi muito na Unesco. Tinha que me comunicar em três línguas: francês, inglês e espanhol, o que era um bom exercício. Além disso, gostei muito de analisar os documentos e indexá-los. Meu trabalho era feito diretamente no computador, o que era uma novidade para mim e, ao mesmo tempo, me fascinava.

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Escrevi para o meu avô contando que estava trabalhando na Unesco e que meu trabalho era feito no computador. Ele, curioso como sempre, me fez mil perguntas. Depois, passou a dizer para todo o mundo que eu “era chefe dos computadores da Unesco”.

Conheci muitas pessoas de várias nacionalidades. Tinha acesso a uma ótima livraria com documentos editados pela Unesco a preços subsidiados. Podia fazer compras em um pequeno mercado com produtos de vários países a preços especiais. Lembro das deliciosas geleias, das bolachas amanteigadas inglesas e dos pães suecos. Além disso, a programação cultural da agência era muito variada. Assisti a peças de teatro, espetáculos de balé e concertos.

Quando eu almoçava com alguém num dos restaurantes da organização, tinha que escolher os pratos que cabiam no meu orçamento.

Nos dois anos em que lá trabalhei, quase todos os dias, verificava as ofertas de emprego da Unesco. A maioria delas exigia uma experiência que eu não tinha.

Apesar dos meus esforços, dos currículos enviados e do meu trabalho ter sido bem avaliado, não consegui um lugar definitivo na Unesco. Uma amiga chilena bibliotecária, que estava trabalhando em Moçambique nessa época, me pediu para lhe enviar um currículo, porque o governo moçambicano estava precisando de bibliotecários. Ofereceram-me um contrato de dois anos. Fui para lá em julho de 1981.

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Estocolmo, 1976 – distenso verão, Carmen

A primavera ainda era fria. Mochilas. Na estrada, cedo, rumo à Suécia, sem pressa. Recebi dois cheques do Brasil. Somos ricos por um mês. Depois, a mãe Suécia garante.

Podemos nos permitir quinze dias vagabundos na estrada. O dia começa bem: uma carona Paris-Amsterdam. Chegamos à noite, famintos. Fomos para um hostel. No dia seguinte, sol e frio. Descobrimos a cidade-brinquedo, a cidade-sonho, os canais e as putas nas vitrines.

Andamos pelos parques, vimos os museus de Van Gogh e de Rembrandt. No dia seguinte, cedo, fomos para a estrada. Um holandês ruivo, cinquentão, para o carro. Entramos. Depois de 30 quilômetros, ele nos deixa em pleno campo, no meio de moinhos de vento. Rio e olho a paisagem plana desse país de bonecas. Verde, castanheiras. Caminhamos um pouco para esquentar.

Pegamos carona num Citroën de um velho magro com cara de intelectual. Ele fala inglês e faz as perguntas de praxe: o que fazem? De onde vem? Para onde vão? Ao meio-dia, para num albergue da estrada e nos oferece almoço, nos avisando que ficará ali. Indica um posto de gasolina, alguns metros adiante, onde podemos pedir carona. Não temos pressa, a primavera começa. A grama é tentadora. Nos enrolamos numa sesta gostosa, tendo as mochilas como travesseiro.

Na próxima etapa, Bremen, outra cidade-boneca. Vamos à estação de trem. Impossível conseguir um albergue. Dormimos sentados no bar da estação em meio a vagabundos, depois de assistir a um filme pornô no cinema da gare. No café da manhã, um dos bêbados nos faz companhia tomando cerveja.

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As estações de trem são tristes e alegres ao mesmo tempo. Esperas, malas, personagens estranhos. Às oito da manhã vamos para a estrada. Faz um frio de rachar. Eu, enrolada no sleeping bag, desisto da aventura. Morro de sono, quero conforto, choro. Te convenço a subir num trem. Relutas em aceitar. É muito caro, dizes. Retruquei dizendo que podemos tentar não pagar, como fizeram o Iuli e a Crica.

Mas, cinco minutos depois de instalados no trem, chega o cobrador. Compramos bilhetes até a próxima cidade, mas conseguimos driblar o resto do trajeto e viajamos de graça até Copenhagen. Lá, em casa da Marisa e do Sérgio, calor, conforto, uma cama enorme e passeios de bicicleta. Te apaixonas perdidamente pela sereiazinha à beira-mar.

Andamos à toa, risonhos. Temos tempo, o mundo gira, é enorme. As aventuras estão na estrada. Às vezes, minhas manias de menina de família contradizem com o meu ar aventureiro e despachado.

Chegando em Estocolmo, repartimos um quarto com Iuli, em Freskati, na cidade universitária. O quarto é barato. Estamos habituados a viver em pequenos espaços. Saímos para ver a cidade e procurar trabalho.

Vagabundeamos, telefonando para hotéis, restaurantes e hospitais. Quando a fome batia, comprávamos sorvete e Coca e nos deitávamos num parque. Consegui um emprego de camareira num hotel de bêbados para arrumar doze quartos por dia. No primeiro dia, cansada, subi com dificuldade as escadas de Merborgarplatsen, onde me esperavas à entrada do metrô com sorvete e Coca-Cola. Festejamos às 5 horas no parque.

Lembro da chegada a Estocolmo em outro verão. Eram duas da manhã, junho, e o dia amanhecia à minha frente. A

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cidade velha – Gamla Stan, azul e dourada. Eu chegava de Copenhagen com Fernando num velho caminhão barulhento. Fiquei absolutamente deslumbrada com aquela beleza, a cidade no meio da água e do verde, com torres ocres, vermelhas e douradas.

Quando a rotina já se instalava em nossas vidas, nos encontrávamos na estação central para olhar o movimento, comer um cachorro-quente, comprar um disco, ouvir os músicos ambulantes e fazer compras para o jantar. Na cozinha comum do andar onde estávamos, Ulla, Gunther, Wagner e Maria. Iam surgindo histórias de trabalho, de refugiados, fofocas de corredor. Às 10 horas, íamos dormir porque o dia começava cedo para nós.

Nos nossos muitos verões de trabalho em Estocolmo, conhecemos muitos refugiados brasileiros, chilenos, uruguaios e argentinos, que a social democracia sueca acolheu nos anos 70. Guerrilheiros, dirigentes de partidos clandestinos e seus companheiros ou companheiras. Figuras maravilhosas. Fomos entrando, pouco a pouco, nesse universo dos refugiados, feito de precariedade, com poucas perspectivas, de nostalgia, de festas e de saudades. Muitos, como Carmen, traziam, dentro de si, amarguras de uma vida interrompida, de uma luta sem fim, de filhos, de famílias que deixaram para trás. Outros, como Vagner e Maria, levavam a vida tranquilamente na sua rotina diária.

As crianças, filhas desses guerrilheiros, trazidas da América Latina ou nascidas em Estocolmo, levavam uma vida cheia de amanhãs, de possibilidades de volta, sem entender direito o que estavam fazendo naquela realidade estranha. Aprenderam desde cedo que aquela vida que levavam era

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provisória, que a verdadeira vida iria recomeçar na América Latina, no reencontro com a família, com uma cultura e com paisagens que não conheciam.

Alguns não falavam do que tinha ficado, mas faziam planos de volta, quando a situação mudasse. Outros tratavam de refazer a vida com parceiros suecos, sempre com um fundo de nostalgia. Houve quem escrevesse memórias, como Gabeira. Alguns descobriram a meditação, ou uma seita qualquer. Outros pintavam. Para muitos refugiados brasileiros, como Carmem e Gabeira, a Suécia era o segundo país onde tinham buscado refúgio. Isso contribuía para aumentar a sensação de estranhamento.

Alguns ex-líderes sindicais, como Pedro, não se enquadravam nas conversas intelectuais da maioria dos guerrilheiros. Tinham dificuldade de falar de outro assunto além dos planos para uma guerrilha permanente. Outros entraram na universidade, tentando terminar um curso que tinham abandonado na terrinha.

Um casal que conhecemos de perto como Os Castores (talvez um codinome de guerrilha) levava a vida com leveza, entre música, artesanato, viagens de ácido e muito fumo. Tinham assumido uma filosofia hippie feita de sonhos.

Para desanuviar o ambiente, todo o fim de semana, aconteciam festas memoráveis, onde se bebia e se dançava muito.

No verão de 1979, estávamos em Estocolmo mais uma vez para o indefectível trabalho de verão na cozinha do Hospital Stureby, com um certo prazer em deixar Paris por um tempo. Marcius e Iuli por necessidade, eu para mudar de ambiente, acompanhar os amigos de sempre, desapertar o cinto, juntar dinheiro para mais uma viagem.

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A cozinha do Stureby era um melting pot. Trabalhávamos com suecos, finlandeses, iugoslavos, turcos, nigerianos, marroquinos, entre outros.

Naquele verão, repartimos um apartamento com Cuchito, um chileno terno, infantil e meio pirado. E com Hugo, também chileno, 40 anos e túnicas brancas. Cuchito a gente via duas, três vezes por semana. Sumia nas noites de sexta, sorridente e misterioso no seu coletinho bordado, nos seus cabelos enormes, depois de um charo conosco e algum papo em espanhol, of course. Voltava, às vezes, na terça ou na quarta, para mudar de roupa, buscar dinheiro e perguntar como a vida corria para nós.

Cuchito e Hugo tinham vindo do Chile junto com a leva de refugiados considerados “perigosos” pelos outros países.

Hugo era o permanente, aliás, o único. Inevitavelmente, 24 horas por dia, com algum desconto para o banco e o correio, lá estava ele na cozinha fazendo arroz integral e verduras cozidas, cereais com temperos orientais. Ou na sala, meditando com música oriental ao fundo e incenso. Ou ao telefone, em papos intermináveis e transcendentais com Luís.

Hugo passa correndo, quase transparente na sua túnica e na sua meditação. Velocidade mil, abertura nenhuma, pouco foco. Máquina trêmula (o dia brinca de amanhecer em Estocolmo).

Quantas vezes, entre um mate e outro, Carmen nos falou de Hugo em Paris? Seus projetos? Juntar dinheiro, ir para a Suíça estudar meditação numa universidade criada por um Mahavishnu qualquer. E tornar-se iogue, desses de canudo e tudo.

Difícil relacionar-se em Estocolmo com uma cabeça dessas. Marcius, com sua eterna curiosidade pelas pessoas e pelo

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mundo, ficava horas na cozinha, ouvindo, pedindo explicações sobre meditação e tentando entender o mundo de Hugo. Eu desistia antes de começar. Acho que Iuli nem pensava no assunto. Estava em outra sintonia, simplesmente.

Impossível esquecer Carmen, figura forte, quebrada em mil pedaços, giros e vidas pelo mundo. Buenos Aires, Rio, São Paulo, Santiago, Estocolmo, Paris, sul da França e a morte estúpida em um acidente de carro. Carmen, que pensávamos que um dia iria se suicidar, abrindo as veias ou o gás, morrer assim, bêtement.

Carmen, choro no metrô de Paris. Carmen, num café de Trocadéro, numa tarde qualquer de inverno, em frente a mim pedindo ajuda e força. Ajuda e força que eu não soube dar. No fundo, Carmen, eu tinha medo dos teus 37 anos de mulher sozinha – lúcida na solidão. Carmen – o chimarrão passando de mão em mão junto com um charo num dos nossos quartinhos de Paris, tão cheios de nós, tão cheios de sonhos.

Nesse verão, levamos a vida aos pontapés com Hugo e com nós mesmos. Em toda a casa, pairava o cheiro da Carmen, a presença forte da Carmen nos panos de batik rosados, nas luminárias de pano, nas almofadas. Carmen, nessa época, vivia em Paris, repartia, por um tempo, um quartinho com Iuli, rue Remy Dumoncel. Mas sua presença seguia no apartamento de Estocolmo-Saltsjöbaden, inevitável.

Carmen, histórias de mil revoluções abortadas, de mil amantes, de mil ácidos, de solidões. Carmen, buscando saídas na meditação, nos budas e em suas estátuas de manteiga. Buscando pessoas nas ruas, nos bares, levantando as saias enormes de índia latino-americana. Carmen, ao telefone, pedindo socorro.

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Pedindo casa. Soltando risadas abertas e debochadas para o mundo. Carmen, rindo e chorando das revoluções latino-americanas. Das serras do Brasil, dos esconderijos das serras do Brasil. Carmen que muitas vezes deixei passar à côté, de medo talvez. Medo de tanta força e loucura. Ela passou um tempo naquele e em muitos outros apartamentos em Estocolmo. Tempo de crises, de carinhos e violências. Que levaram a mais uma das muitas separações (que quebram todos nós, todo dia um pouco).

Assim, ela desembarcou em Paris. Na Gare du Nord a esperá-la, Ilton, Reinaldo, Dina, Iuli, Marcius e eu. Esperávamos alguma coisa daquela figura de saias enormes, ponchos, cachecóis e lenços que desceu do trem? Esperava ela alguma coisa de nós?

Carmen apostou demais em Paris – quando já não encontrava saída para o seu mundo. E daí para a crise, que ela trazia, devagar, de Estocolmo, do Chile, de Buenos Aires, foi simples. Um entrar mais fundo cada dia.

Às vezes, Carmen se punha silenciosa. De repente, lágrimas nos olhos, lembrava a filha que tinha deixado pequena ao sair correndo do Brasil. Filha que ela via um pouquinho, de vez em quando, nos últimos tempos de refúgio no Brasil. Que não viu crescer.

Levamos mais aquele verão brigando com os horários dos transportes suecos, absurdamente infalíveis, com raiva daquela roupa branca do hospital, daquela língua nórdica rude, daquela gente loira que se bronzeava no parque enquanto corríamos de um metrô para o outro para não perder a correspondência.

Para descontar aquela raiva toda, na volta do trabalho, assávamos no forno folhas daquelas plantinhas mágicas do Cuchito, fazíamos um imenso charo, virávamos, pela enésima vez, a

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cassete do Pink Floyd ou da Billie, conforme o humor, e fazíamos planos... comprar um barco, trabalhar um ano na Suécia para juntar dinheiro (nunca nos perguntamos se aguentaríamos um ano sueco), virar o mundo pelo mar, que duraria enquanto durasse o dinheiro (Álvaro, mais tarde, materializou o sonho do barco por nós).

Em jantares chez Iuli, ouvíamos embevecidos detalhes do avanço da construção. A aventura e o sonho embalavam nossos dias.

Às vezes, também para descontar, nos fins de semana, pegávamos o barco para Åland.

Quatro horas de mar, uma hora de terra naquela pequena ilha finlandesa. Uma coca e uma caminhada. Quatro horas de mar novamente. De volta a Estocolmo, àquela bela cidade velha Gamla Stan. Atordoados, mareados, tínhamos queimado mais um dia de verão.

Ou então fazíamos planos para remar em Bredang. Ou para uma festa numa residência universitária qualquer (charos nos cantos, vinho, reggae e, pela janela, o entardecer interminavelmente vermelho-azulado da cidade nórdica.)

Ou comprar um Liebfraumilch e fazer um estrogonofe de camarão. Experimentar a Pentax novinha em folha, dinheiro das primeiras semanas de trabalho. Aos domingos quando não estávamos trabalhando, a piscina e a inevitável sauna. Depois, flanar pelo centro.

Rever o museu do Carl Larson com suas estátuas barrigudinhas.

Estocolmo no final da tarde-noite. O trenzinho de Saltsjöbaden azul e verde. O belo campo de Gardet. Bergman. Os suecos chutando latas.

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O verão sueco terminava, enfim. Tu e Iuli seguiriam para a colheita de uvas no sul da França. Eu iria para a Grécia, buscar outras emoções.

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