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A descoberta de Paris, 1974

A descoberta de Paris, 1974

Cheguei em Paris, em abril de 74, com um pouco de dinheiro e alguns endereços. Trazia comigo o sonho dos meus pais e uma enorme curiosidade pela vida. Planejei essa viagem com a Estela em muitos encontros. Na sua casa, no Rio, abríamos o mapa da Europa e ficávamos viajando.

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Pedi dinheiro para meu avô e para a tia Liliza para a passagem. Comprei um bilhete de ida, que incluía paradas em Londres, Amsterdam, Copenhagen e Roma, em aberto (como era possível fazer naquela época), que me permitiria fazer essas viagens quando eu quisesse. Paguei só a primeira prestação.

Chegando em Orly, peguei um táxi até o quarto da prima da Estela, que iria me receber por uns dias. A Estela, que já estava lá, foi minha primeira guia na cidade. Eu estava deslumbrada com o que via. Queria conhecer tudo, olhar tudo, desfrutar de tudo.

Fui um dia até a casa da Caty e do Beto, que me acolheram de braços abertos. Morei na sala daquele estúdio por alguns dias.

A casa deles, na rue St Jacques, em pleno Quartier Latin, era um lugar de encontro de brasileiros, franceses e latino-americanos. Lembro que, nos primeiros dias, à noite, quando o papo corria solto em francês, eu tinha que prestar muita atenção para entender alguma coisa.

A sala daquele estúdio era uma surpresa: quando acordávamos, sempre tinha um novo agregado. Uma manhã, quando o entregador de gás chegou, oito pessoas dormiam ali. Ele olhou aquela confusão e saiu rindo.

Eu andava sem parar pela cidade, deslumbrada com as cores da primavera chegando, com as caras das pessoas, as

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muitas línguas que eu ouvia nos cafés, nos metrôs, nos mercados: inglês, espanhol, tcheco, romeno, chinês, árabe e muitas outras que eu não distinguia. Sentia-me solta no mundo. A vida se abria, enorme.

Fiquei fascinada com o colorido das roupas africanas, os turbantes. As túnicas dos árabes, os cheiros da cidade, as cores. A lista de filmes em cartaz, que me possibilitava escolhas infinitas. A primavera chegava, devagar.

As muitas livrarias, os parques, as árvores começando a renascer depois do inverno. Livros aos borbotões. Os clochards com suas garrafas de rouge e seus olhares risonhos ou perdidos nas brumas do álcool.

Foi uma época viva, com alegrias em cada esquina, com as descobertas dos cafés, onde a gente podia ficar a tarde inteira lendo.

Olhava embevecida para tudo. Me emocionava, como me emociono, até hoje, cada vez que atravessava as muitas pontes do Sena, olhando aquela paisagem que eu tinha visto tantas vezes no cinema. Descia devagar as escadas para caminhar à beira do rio, olhando as pessoas que passavam, as peniches que navegavam devagar.

Como o dinheiro que eu tinha não era muito, assim que meu parco francês permitiu, comecei a cuidar de crianças, buscá-las na escola e levá-las aos parques.

Lembro que, quando as mães me confiavam seus filhos, davam algumas instruções sobre o que as crianças poderiam comer e o que fazer. Eu entendia a metade.

Uma delas me perguntou se eu sabia fazer des oeufs à la coque (ovos quentes). Eu não tinha a mínima ideia do que se tratava e dei ovos cozidos ao bebê.

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Aos poucos, com as conversas, a leitura do Le Monde, o jornal da TV e os primeiros filmes, comecei a entender cada vez melhor a língua. Meu maior aprendizado foi a rua, com papos improvisados à beira do Sena, nos jardins e nos cafés.

Eu fazia novos amigos todos os dias. Naquela época, os refugiados da ditadura brasileira eram mais de cinco mil em Paris. Uma vez por mês, a Mutualité fazia uma discussão sobre um tema específico, com convidados franceses e brasileiros. A sala, sempre lotada, era um ponto de encontro de pessoas, muitas dos quais recém-chegadas. As discussões eram intensas.

A Caty me apresentou a Lígia Clark, que abria as portas de sua casa aos brasileiros aos sábados. Entre queijos e vinhos, trazidos por todos, e muita conversa, Lígia nos convidava para participar de uma de suas muitas experiências corporais.

Outro lugar que eu frequentava era a Casa do Brasil, na Cidade Universitária, um lugar nostálgico onde se projetavam filmes ou se apresentavam peças de teatro, seguidas de discussões e de muito vinho.

Depois de muito andar pela cidade, comecei a assistir a um seminário sobre História e Cinema do Marc Ferro aos sábados de manhã, na École des Hautes Études, na rue Tournon. A escolha de cursos na universidade era enorme. Frequentei seminários de cinema e de documentação. Participei da filmagem de alguns vídeos em Vincennes.

Paris fazia seus efeitos em mim. Montes de informação, músicas, filmes em profusão, concertos de rock, de música chilena, de jazz, de blues. Museus, aulas, gentes, viagens. Uma aventura sem fim e eu, no meio de tudo, seguindo o fluxo, querendo ver, sentir estar com tudo e todos ao mesmo tempo

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em noites que podiam acabar num café em St. Michel, na beira do Sena, ou numa chambre de bonne, gelada, ao som de Dylan.

Meus horizontes se abriam todos os dias. Lembro de passar uma tarde lendo a biografia da Isadora Duncan num café de St.Germain, da visita ao Procope, o restaurante mais antigo de Paris, frequentado por Voltaire, Marat e Danton, entre outros. Naquela época, eu não tinha dinheiro para comer lá, mas entrei algumas vezes para sentir o ambiente, imaginando as muitas revoluções vividas ali.

Quando nossas finanças se estabilizaram, alugamos, eu, a Estela e o Oscar, um pequeno apartamento na rue Thiboumery, no 15ème. Um dia, recebi a visita do Iuli, também recém-chegado em Paris. Ele, direto como sempre, me perguntou se eu tinha maconha.

Fui apresentada ao Marcius, à Dina e ao Joãozinho no dia seguinte na casa do Gael. De repente, começamos a ir juntos à Cinemateca, ao Restaurante Universitário, à Vincennes. Fizemos passeios no velho carro do Carlinhos, nosso amigo português. Fomos a Fontainebleau, a Vallée de la Loire, a Versailles. Paris foi, aos poucos, se tornando a nossa casa, o nosso porto seguro.

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