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Os baús azuis

Os baús azuis

Sonhei, esta noite, com três baús azuis que me seguiram por algum tempo. Na minha viagem de navio, voltando de Paris, trouxe parte das minhas coisas nesses baús. Quando eu estava me preparando para voltar para o Brasil, lembro quando os arrumei, minuciosamente, para que todos os meus livros, discos e objetos coubessem naquele espaço, cuidando para que nada fosse quebrado. Lembro que o Iuli, com seu jeito especial, me ajudou muito.

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Os baús me acompanharam por muito tempo. Nas minhas primeiras casas brasileiras, serviram de armário, de mesa ou de sofá. Eram o testemunho de parte da minha história.

Cada objeto que eu trouxe nos baús representava um momento de minha vida: as estátuas de ébano e sândalo lembram minha casa em Maputo, as feiras e as visitas aos artesãos, onde eu descobri cada uma delas. Algumas foram compradas na Ilha de Moçambique, no momento da festa da associação de amigos da ilha. Lembro que, em Paris e Estocolmo, eu não podia passar por uma loja de discos sem vasculhar toda a coleção de jazz. Eles foram o pano de fundo de muitos instantes de vida, festas, jantares, risadas e histórias.

Discos do Traffic e da Roberta Flack me levam ao apartamento da Conselheiro Lafayette, no Rio, onde eu morei com a Helena e o Sérgio. Lembro que, quando saíamos para trabalhar, deixávamos sempre, na vitrola algum disco para o primeiro de nós que voltasse.

Ouvindo o disco branco do Keith Jarrett, o Köln Concert, volto à Gentilly e chego a sentir o cheiro do pano que forrava a parede do nosso quarto. Ouvindo Lilás, do Djavan, me vejo dançando em uma das festas de Maputo. Não sei por que Bob

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Dylan me lembra o quartinho da Rue Desnouettes, na Porte de Versailles. Lembra também o concerto do Dylan, que vimos nos anos 70 em uma das banlieues do norte de Paris.

Rão Kyao me evoca o apartamento do Manuel em Lisboa. O primeiro disco dos Tribalistas é a cara da casa do Iuli, na rue Stendhal. O apartamento da rue de Javel, em Paris, surge quando ouço algumas músicas do Jobim. Os primeiros discos comprados por mim eram aqueles “bolachões” de vinil, que foram substituídos aos poucos pelos CDs.

Pequenos objetos, trazidos de Creta, Cabo Verde, Paleohora, Praga, Cairo, Budapeste e Dar-es-Salaam, trazem pedaços do meu caminho. Livros comprados em Londres, Paris, Lisboa, Maputo e Estocolmo, me seguem até hoje. A primeira página da maioria deles traz a data, o local e, muitas vezes, uma frase que lembra algum momento de minha vida, nos meus muitos ensaios para me tornar escritora.

Na minha lembrança, ficou o momento em que li o primeiro livro de André Brink, um escritor sul-africano que gosto muito. Foi-me emprestado pela Mariela. Seu título era An instant in the wind. Foi um daqueles livros que a gente não consegue largar, que nos pegam pelo pé. Nesse tipo de livro, eu entro na história e vou seguindo, maravilhada, os personagens até a última página.

Lembro da biografia da Isadora Duncan, que comprei chegando em Paris. Fiquei tão encantada com o livro, que me sentei num café durante horas, acompanhando o magnetismo daquela mulher.

Nas minhas estantes, as páginas amarelecidas dos livros voltam a ser abertas e relidas de tempos em tempos. Outros ficaram esquecidos. Às vezes, são emprestados a alguém.

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Alguns não voltam mais. Os muitos quadros, as esculturas de madeira e alguns cartazes seguem espalhados pela casa.

Não lembro exatamente quando me desfiz dos baús azuis. Deve ter sido em São Paulo ou em Florianópolis. Tenho a impressão de que eu os dei para alguém. Eles foram testemunho de uma época maravilhosa, cheia de aventuras da minha vida cigana.

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