Renata Florentino de Faria Santos
Indo para o jogo Mobilidade urbana na Copa do Mundo
Indo para o jogo
Renata Florentino de Faria Santos
Indo para o jogo
Mobilidade urbana na Copa do Mundo
Florianรณpolis
2019
Insular Livros
Indo para o jogo Renata Florentino de Faria Santos conselho editorial Dilvo Ristoff, Eduardo Meditsch, Jali Meirinho, Jéferson Silveira Dantas, Nilson Cesar Fraga, Pablo Ornelas Rosa e Salvador Cabral Arrechea (ARG). EDITOR Nelson Rolim de Moura
PROJETO GRÁFICO Eduardo Cazon
REVISÃO Carlos Neto
S237i
Santos, Renata Florentino de Faria Indo para o jogo − Mobilidade urbana na Copa do Mundo / Renata Florentino de Faria Santos– Florianópolis: Insular Livros, 2019. 216 p. : il. ISBN 978-85-66500-13-4 1. Ciências sociais. 2. Mobilidade urbana. 3. Copa do Mundo. I. Título. CDD 300
EDITORA INSULAR (48) 3232-9591 editora@insular.com.br facebook.com/EditoraInsular twitter.com/EditoraInsular www.insular.com.br
INSULAR LIVROS (48) 3334-2729 Rua Antonio Carlos Ferreira, 537 Bairro Agronômica Florianópolis/SC – CEP 88025-210 insularlivros@gmail.com
Agradecimentos
As pesquisas sobre os megaeventos exigiram de seus atuais pesquisadores uma entrega e atenção maior do que exigirão dos futuros pesquisadores que buscarem entender o que se passou no Brasil em seus preparativos para receber a Copa do Mundo de 2014, e decifrar o que de fato é o legado da mobilização política pela qual o País passou em 2013, especialmente em junho. A falta da possibilidade de qualquer distanciamento objetivo tornou ainda mais necessário o compartilhamento de visões e interpretações entre analistas, em busca de entendimentos razoáveis que fossem o menos incompletos possíveis. Nesse contexto, pesquisar tornou-se um processo e ato ainda mais coletivo do que o habitual. Agradeço às pessoas que participaram dessas longas, prazerosas, polêmicas e intensas conversas nos últimos anos, inclusive aos anônimos encontrados em seminários, lançamentos de livros e nas ruas. Às pessoas queridas que me hospedaram em suas casas durante as atividades de pesquisa e me propiciaram bons momentos de reflexões, conversas e alimento para o corpo e alma nesses mais de quatro anos de imersão no tema da mobilidade urbana: Angélica Rocha, Gabi Juns, Káritas Ribas, Magali Lopes, Marcela Moraes, Rui Mesquita, Márcia Philippe, Marcelo Marquesine, Vitor Massao. Às pessoas com quem tive o prazer e honra de conviver no aprendizado prático que este doutoramento me trouxe: Beth Davison, Carlos Henrique Ribeiro, Chico Carneiro, Cleo Manhas, Prof. David Duarte Lima, Dito Barbosa, Evelyn Araipe, Jonas Bertucci, Josi Paz, Thiago Benicchio, JP Amaral, Juliana Russar, Leila Saraiva, Mara Marcchetti, Nazareno Affonso, Paula Collet, Pérsio Davison, Raul Cardoso, Prof. Paulo César, Rodrigo Rocha, Renato Zerbinato, Victor Pavarino, Vitor Leal, Yuriê Baptista,
coletivamente o Comitê Popular da Copa SP, o Comitê Popular da Copa DF, a Bicicletada DF, a Associação Civil Rodas da Paz, os Urbanistas por Brasília, Rede Nossa São Paulo, Movimento Nossa Brasília, a 21ª turma de formação da SBDG, a turma da Escola de Diálogo, o núcleo de São Paulo do Observatório das Metrópoles, muito bem coordenado por Clarissa Glariardi e Mônica Carvalho, e as pessoas nas bordas e núcleo da Escola de Ativismo. Aos bons amigos de sempre que me aguentam nas aventuras da vida: Carla Hirata, Carol Mendes, Carlos Augusto Machado, Danusa Marques, Erika Costa, Lucas Couto, Henrique Santana, Luísa Molina, Marcelo Xaud, Nathália Campos e Pablo Vogel. A todos que acompanharam o twitter @mobilidadeurb, o finado blog na plataforma posterous e nas outras mídias sociais feitas para ajudar na digestão das informações e contrainformações produzidas nesse período. À Unicamp, por ser a universidade que é, por ter aceitado uma proposta de doutoramento tão interdisciplinar e por ter me proporcionado anos de estudo numa biblioteca de ótimo acervo, palestras frequentes com pesquisadores interessantes vindos das grandes universidades do mundo, aulas com excelentes professores e ementas sedutoras. Aos membros da banca de qualificação e defesa, que criticaram e contribuíram para a maturidade da pesquisa e do texto: os professores Gustavo Coelho, Valeriano Mendes, Paulo César Marques, Nicolau Neto, Orlando Silva Júnior e minha orientadora, professora Arlete Moysés. Ao amigo visionário, parceiro de ideias e realizações, que se foi numa colisão automobilística em meio a essa pesquisa: Alessandro Deleon. Ao Observatório das Metrópoles, que aproveitei menos do que deveria, mas que ainda assim me proporcionou aprendizados
e conversas extremamente proveitosos para a pesquisa, sempre reafirmando o compromisso da pesquisa acadêmica com a transformação social. Às eternas papeleiras, que artesanalmente fizeram o caderno especialíssimo que me acompanhou nesses anos: Suzana Guerra e Tereza Pires. À minha família, que não teve escolha a não ser me aguentar tirando fotos de ruas, calçadas, semáforos e meios fios em nossas viagens, além de me aguentar constantemente iniciar uma frase com “Você sabia que...” e então divulgar sem demanda algo relacionado às políticas de mobilidade, Luzinete Florentino (in memorian), Emília Dulce, João Vianney, Julie Philippe, Nahari Terena, Jade Philippe, Taily Terena, tios e primos. A Jonas de Oliveira Bertucci, pela paciência quase inesgotável e pelo generoso companheirismo na reta final e pós final do doutoramento.
Lista de abreviaturas e siglas Abifer AEAMESP
Associação Brasileira da Indústria Ferroviária Associação dos Engenheiros e Arquitetos do Metrô de São Paulo ANTP Associação Nacional de Transporte Público ANTT Agência Nacional de Transportes Terrestres BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social BRT Bus Rapid Transit CBTU Companhia Brasileira de Trens Urbanos CET Companhia de Engenharia de Tráfego CIDE Contribuições sobre Intervenção no Domínio Econômico CMP Central de Movimentos Populares CNC Confederação Nacional Do Comércio De Bens, Serviços e Turismo CNTT CUT Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transporte COI Comitê Olímpico Internacional ConCidades Conselho Nacional de Cidades CREA Conselho Regional de Engenharia e Agronomia Creci Conselho Regional de Corretores de Imóveis CTMU Comitê de Trânsito, Transporte e Mobilidade Urbana DATASUS Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde Denatran Departamento Nacional de Trânsito DERSA Departamento de Estradas de Rodagem SA DETRAN Departamento de Trânsito
DFTRANS DPVAT DRU EBTU FATEC FDTU FHC FIFA FINEP FNDU FNRU GDF GEE GT IBGE IBOPE IDH IEMA INPC IPCA IPCC IPEA IPI IPPUR ITDP JK LOC MCidades
Transporte Urbano do Distrito Federal Seguro de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres Desvinculação de Receitas da União Empresa Brasileira de Transportes Urbanos Faculdade de Tecnologia Integrada Fundo de Desenvolvimento dos Transportes Urbanos Fernando Henrique Cardoso Fédération Internationale de Football Association Financiadora de Estudos e Projetos Fundo Nacional de Apoio ao Desenvolvimento Urbano Fórum Nacional da Reforma Urbana Governo do Distrito Federal Gases de Efeito Estufa Grupo de Trabalho Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística Índice de Desenvolvimento Humano Instituto de Energia e Meio Ambiente Índice Nacional de Preços ao Consumidor Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo Intergovernmental Panel on Climate Change Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada Imposto sobre Produtos Industrializados Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional The Institute for Transportation & Development Policy Juscelino Kubitschek Local Organising Committee Leadership Ministério das Cidades
MDT
Movimento Nacional pelo Direito ao Transporte Público de Qualidade para Todos MPF Ministério Público Federal MPL Movimento Passe Livre MTST Movimento dos Trabalhadores Sem Teto NTU Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos OCDE Organisation for Economic Co-operation and Development OMS Organização Mundial de Saúde PAC Programa de Aceleração do Crescimento PDTM Plano Diretor de Transporte e Mobilidade PDTU Plano Diretor de Transporte Urbano e Mobilidade PEC Proposta de Emenda Constitucional PL Projeto de Lei PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro PNAD Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios PNDU Plano Nacional de Desenvolvimento Urbano PNMU Política Nacional de Mobilidade Urbana PNT Plano Nacional de Turismo PP Partido Progressista PSB Partido Socialista Brasileiro PSDB Partido da Social Democracia Brasileira PT Partido dos Trabalhadores RDC Regime Diferenciado de Contratação SECOVI-SP Sindicato da Habitação de São Paulo SeMob Secretaria Nacional de Mobilidade Urbana Simefre Sindicato Interestadual da Indústria de Materiais e Equipamentos Ferroviários e Rodoviários Sinaenco Sindicato da Arquitetura e as Engenharia
SM STF TC TCU TERRACAP TI Trensurb UFRJ UNE USP VIPLAN VLT ZEIS
Salário Mínimo Supremo Tribunal Federal Transporte Coletivo Tribunal de Contas da União Agência de Desenvolvimento do Distrito Federal Transporte Individual Empresa de Trens Urbanos de Porto Alegre Universidade Federal do Rio de Janeiro União Nacional dos Estudantes Universidade de São Paulo Viação Planalto Veículo Leve sobre Trilhos Zonas Especiais de Interesse Social
Sumário
Capítulo 1 Apresentação 17 Capítulo 2 Introdução: mobilidade e megaeventos Desenvolvimento da investigação 35 Problematização do tema 46
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Capítulo 3 Avanços e desafios recentes na promoção da mobilidade urbana no Brasil 61 Política Nacional de Mobilidade Urbana: Marco legal 61 Mercantilização do transporte e direito à cidade 80 Como transformar o direito à mobilidade em indicadores de políticas públicas? 108 Modelo de transporte: modelo de desenvolvimento 112 Exigências da FIFA relacionadas a transporte 122 Capítulo 4 Cidades estudadas 127 Brasília 130 São Paulo 140 Itens a serem observados nas políticas de mobilidade urbana 148
Processo de Formulação/ Ciclo de gestão Diversificação e integração modal 158 Conforto para o usuário de Transporte Público 164 Inclusão social 169 Qualidade ambiental 172 Integração com política de uso e ocupação do solo 178 Segurança como valor principal da política de mobilidade (e não fluidez) 182
Capítulo 5 Considerações finais 189 Bibliografia 205
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CAPÍTULO 1 Apresentação
As imagens de canteiros de obras vistas ainda em junho de 2014, véspera da Copa do Mundo, e os registros das manifestações um ano antes, em junho de 2013, são o primeiro plano do cenário de construções e disputas que ocorreram nas grandes cidades brasileiras nos anos recentes. A Copa do Mundo de 2014 ocorreu no período de 12 de junho a 13 de julho. O prometido legado da Copa do Mundo, somado à política econômica de estímulo ao consumo de veículos, explicitou as contradições do modelo de urbanização contemporâneo, acelerada não só pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), mas também pelo processo catalizador dos megaeventos e seus preparativos. Em 2007 o Brasil foi anunciado como país-sede da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016. Desde esse anúncio até a definição das cidades que receberiam as partidas, um jogo foi muito bem articulado. As grandes empreiteiras estavam incluídas no núcleo de uma estratégia de crescimento econômico que discursivamente era direcionada à inclusão das classes mais populares. Depois do período 2004-2008, considerado o “quinquênio virtuoso” (Diniz, 2012, p. 24), e sua pauta de consumo, entrou na agenda governamental também o discurso do “legado da 17
mobilidade”. Essa foi uma das ideias-força presentes na Esplanada dos Ministérios em Brasília no primeiro mandato da presidente Dilma Roussef (2011-2014). Em que pese a constância do déficit habitacional, as futuras consequências ambientais do foco em indústrias eletrointensivas, as altas taxas de mortes no trânsito em razão do aumento do uso de motocicletas e os crescentes congestionamentos e doenças respiratórias em função da poluição do ar, o conjunto de políticas públicas prioritárias foi definido para aumentar a motorização da população, num cenário de enfraquecimento dos mecanismos de participação popular e controle social. O elevadíssimo número de mortes no trânsito, o tempo desmesurado de deslocamento diário dos trabalhadores, o total de internações hospitalares causadas pela poluição do ar e o déficit habitacional1 são problemas que demandam uma mudança urgente de rumo nas políticas urbanas brasileiras. Essa reorientação deve ter como horizonte a garantia do direito à cidade, contraposta ao processo de acúmulo de capital intensificado nas terras urbanizadas no período recente. A aceleração da expansão das periferias, seja pelos lotes do programa Minha Casa Minha Vida, seja pelo aumento dos preços dos aluguéis nas periferias recém urbanizadas e incorporadas ao processo de acumulação, materializa a reprodução da desigualdade social. Não por acaso, o desenho viário reflete os contornos da pirâmide social. As orientações do Estatuto das Cidades, do PAC Mobilidade e da Política Nacional de Mobilidade Urbana não se refletiram 1. Ou, em uma percepção mais completa, déficit de cidade, como afirmou a urbanista Raquel Rolnik em entrevista ao jornal Brasil de Fato em 22/10/2012.
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na Matriz de Responsabilidades, documento que continha os principais investimentos acordados entre governos federal, estaduais e municipais para as doze cidades-sede. Se o discurso da mobilidade voltada para a promoção do transporte coletivo esteve mais em pauta do que nunca, as contradições também tiveram sua evidenciação máxima nos anos de preparação para 2014. Obras rodoviárias que anunciavam a preferência à fluidez dos ônibus, por BRTs ou Corredores Exclusivos, serviram não para retirar faixas dos automóveis, mas para duplicar e ampliar o espaço a eles destinado, removendo famílias do caminho da especulação imobiliária. As obras ainda não concluídas que constavam na primeira versão da Matriz de Responsabilidade colocam em questão, em via pública, a pertinência dos investimentos iniciados e seu impacto nas cidades que não estão mais no contexto dos jogos da Copa do Mundo. Pistas concentradas ao redor de portos, aeroportos e estádios mostram o tipo de empreendimento feito em nome dos megaeventos na recuperação do capitalismo após a crise financeira e imobiliária de 2008. Ainda que os discursos dos gestores estivessem alinhados em mencionar a mudança de paradigma, de se promover o deslocamento de pessoas e não de veículos, a fluidez motorizada e a circulação das mercadorias da indústria automotiva continuam sendo a tônica dos investimentos prioritários por parte dos governos. Tem-se como foco da investigação, como o poder público enfrenta o dilema entre a cultura do automóvel que ele mesmo fomentou, que está incrustada na própria forma pela qual esse poder público age – e organizando as expectativas de boa parte do eleitorado ao qual ele deveria prestar contas e aos grupos 19
econômicos que o sustentam – e a consciência crescente de que esse modelo torna a vida urbana inviável. À medida que as cidades foram tornando-se grandes centros urbanos, com populações que superam as centenas de milhares, chegando a passar da casa dos milhões, e sua extensão territorial foi expandindo ao ponto que cada vez mais raramente é possível realizar trajetos a pé de casa para o centro da cidade, o transporte passou a ser assunto cotidiano. Do transporte em carruagens ao automóvel, as cidades foram mudando, e com elas os hábitos cotidianos de suas populações. Do Vale Transporte à Tarifa Zero, o transporte coletivo é cada vez mais uma bandeira presente na agenda dos movimentos sociais urbanos, ainda que o tema da moradia prevaleça. Quando os longos tempos gastos no deslocamento diário deixaram de ser exclusividade dos moradores da periferia, e o congestionamento foi contabilizado como prejuízo econômico, a mobilidade ganhou peso na agenda das políticas urbanas. Algumas cidades no mundo conseguem de fato oferecer mais condições de acessibilidade espacial para seus habitantes em geral, enquanto noutras a política de transporte reflete a política da segregação espacial. Por serem diferentes as escolhas e as políticas de cada cidade – considerando que o direito à mobilidade deveria ser igualmente examinado – torna-se pertinente pesquisar os caminhos feitos para se construírem as políticas urbanas, para evidenciar como os modelos de transporte de cada cidade refletem e ilustram concretamente seus modelos de desenvolvimento socioeconômico. A intenção inicial deste projeto era pesquisar um caso emblemático de planejamento urbano prejudicial à mobilidade sustentável: a cidade de Brasília (DF). Como cidadã brasiliense, a autora 20
deste projeto cresceu ouvindo “verdades inquestionáveis” sobre a cidade: “o transporte é ruim porque a cidade adotou o modelo rodoviário de desenho urbano”; “ser capital naturalmente leva à concentração de serviços no centro”, “há preferência pelo transporte individual motorizado pela alta renda per capita da população”; ou “não há nada que possa ser feito para alterar o quadro da cidade”. Por um acaso da vida, houve a oportunidade de realizar algumas viagens de trabalho para Washington (EUA): cidade-capital também planejada, no país do automóvel, com população do centro igualmente com alta renda per capita e periferia pobre tal qual Brasília (apesar dos subúrbios de classe média), mas com uma das menores taxas de motorização daquele país e um sistema de transporte coletivo de alto padrão- metrô com boa cobertura da cidade, frota de ônibus bem cuidada, sem catraca, com informações claras sobre itinerários e horários. Este choque abalou as “verdades inquestionáveis” sobre o sistema de transporte de Brasília. Haveria, então, esperança?2 A partir daí, surgiu a perspectiva de realizar um estudo comparativo entre as duas cidades-capitais, Brasília e Washington. O intuito seria analisar o curso das políticas urbanas de cada uma e perceber as brechas que permitiriam a uma cidade – ainda que tendo todas as condições que indicavam um cenário desfavorável para as políticas de transporte – escapar de seu “destino natural” e oferecer alternativas de mobilidade à sua população. Ao se desenhar o projeto inicial de pesquisa, no entanto, viu-se que, apesar de diversas semelhanças, havia raízes contextuais muito diferentes entre as duas cidades, o que acabaria por forçar 2. Paralelos entre as duas cidades foram bem desenvolvidos por Chico Sant’Anna em seu blog: https://bit.ly/2YrZgWQ
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um estudo comparativo sem bases comparáveis. O planejamento do metrô de Washington começou a ser feito na épocada inauguração de Brasília (1961). E, enquanto os EUA estavam em pleno vigor econômico, incomparável a qualquer outro país no mesmo período, a própria construção de Brasília já era um gasto excepcional para o Brasil à época, aliada ao desafio de “desbravar” uma área de baixa densidade populacional, sem região metropolitana a época que justificasse grandes investimentos em estrutura de transporte coletivo. Além desses fatores, vale ressaltar o modelo de desenvolvimento escolhido pelos governos brasileiros naquele período: o papel do Estado seria o de responder às demandas de infraestrutura, energia e logística para atender a interesses do capital privado nacional e transnacional (em especial estadunidense). Isso no contexto em que grandes indústrias automobilísticas se instalavam no país, o que favoreceu, entre outros fatores, a preferência pelo transporte de cargas via rodovia em detrimento do investimento em ferrovias. Para não incorrer numa confrontação inadequada entre cidades que tiveram percursos históricos diferentes, acesso diferenciado a recursos e cujos países vivenciaram o mesmo contexto econômico internacional em papéis quase que opostos, se abandonou a ideia inicial de comparar a política de mobilidade urbana de Brasília e Washington. Ao mesmo tempo, contudo, continuava a perspectiva de debater as “verdades inquestionáveis” que serviam de justificativa e naturalização para a má qualidade do transporte público brasiliense. No momento dessa reflexão, o Brasil fora selecionado como país-sede da Copa do Mundo de 2014 (30 de outubro de 2007).
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Antes mesmo da confirmação de quais seriam as 12 cidades3 escolhidas para sediar os jogos dentre as 18 candidatas, o próprio Ministério do Turismo4 anunciou um pacote de investimentos5 destinado a prepará-las para receber os turistas adequadamente na área de mobilidade. Além do volume total dos recursos anunciado (próximo ao estabelecido na Matriz de Responsabilidades da Copa do Mundo, de R$18 bilhões6), algumas coisas chamam a atenção, como a inclusão do trem-bala entre Rio de Janeiro e São Paulo entre as obras a serem feitas até 2014 e a inclusão de quilômetros de metrô a serem construídos, propostas que posteriormente foram desvinculadas da realização da Copa devido aos prazos de construção7 (ver quadro 1). Além da base quase incomparável do custo das obras8 entre as cidades, chama a atenção a presença prioritária de obras 3. Além das cidades selecionadas, Campo Grande (MS), Belém (PA), Goiânia (GO), Maceió (AL) e Rio Branco (AC) também estavam na disputa. 4. Na época a titular da pasta era Marta Suplicy (PT/SP), ex-prefeita de São Paulo cuja gestão municipal foi marcada pela atenção ao sistema de transporte, tanto por embates com as empresas concessionárias das linhas de ônibus quanto pela implementação do Bilhete Único (integração tarifária). 5. O Plano de Mobilidade Urbana para a Copa foi anunciado em 19 de maio de 2008. 6. Valor retirado da Portaria 65, de 21 de fevereiro de 2011 do Ministério das Cidades. 7. O polêmico projeto do Trem de Alta Velocidade teve seu leilão adiado em 2011 por falta de empresas interessadas. Como estratégia para viabilizar o projeto, o governo federal criou a Empresa de Planejamento e Logística (EPL) por meio da Medida Provisória 576. O leilão ainda não havia ocorrido até a redação dessa tese. 8. Não há parâmetro para custo de cada quilômetro de corredor de ônibus, o de Belo Horizonte é espantosamente mais caro que os demais e o de Niterói mais barato.
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referentes a metrôs e corredores de ônibus, sendo mencionada uma obra de Veículo Leve sobre Trilhos (VLT). Esse é o quadro que deu início ao processo decisório das obras a serem feitas em nome da Copa nas 12 cidades-sede, com o objetivo anunciado de melhorar as condições de mobilidade urbana nessas cidades até 2014. Quadro 1: Investimento total previsto no plano de mobilidade urbana anunciado pelo Ministério do Turismo em 2008
Fonte: Matéria da Folha de São Paulo de maio de 2008.
Surgiu então a possibilidade de analisar o processo em curso de definição das políticas e obras de mobilidade urbana que, conforme anunciado, poderiam mudar o cenário da crise de 24
mobilidade na qual se encontram boa parte das grandes cidades brasileiras. Ainda que com pontos de partida diferenciados, todas as 12 cidades possuiriam o mesmo prazo e acesso facilitado a grandes volumes de recursos com as mesmas autorizações de gasto no período, facilitando a comparação entre as escolhas de cada uma. Caberia analisar, num cenário de grandes investimentos, as políticas públicas implementadas e o legado de fato da Copa para as cidades-sede. Num contexto econômico favorável ao país, que conseguiu por um bom período se manter relativamente imune aos efeitos da crise internacional causada pela bolha imobiliária americana, o governo federal firmou o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) como estratégia de desenvolvimento nacional9. Isso tornou mais factível a cobrança social por políticas de mobilidade urbana que conseguissem oferecer o usufruto das cidades para seus habitantes, sem que a tradicional falta de recursos fosse usada discursivamente para a negativa de reivindicações de movimentos sociais urbanos. O escopo desta pesquisa foi, desse modo, a identificação de promessas e projetos de mobilidade desenhados pelo governo federal e governos locais na preparação da Copa, assim como a definição de princípios de avaliação para essas obras. Registrou-se o volume de recursos investidos e suas fontes, identificando a população atingida e beneficiada por eles. Até 2016, se constatou, 9. Esta estratégia coloca o Estado exercendo dois papéis em especial: Estado Financiador, aquele que impulsiona a constituição de fortes grupos econômicos, ou ainda, a formação de grandes multinacionais brasileiras com capacidade competitiva no mercado internacional (principalmente via BNDEs); e Estado Investidor, o que coloca em marcha a construção de megaobras, destinadas sobretudo a atender as demandas exigidas pelo grande capital (via PAC).
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pela maneira como as obras de mobilidade foram conduzidas no país, que a pauta da mobilidade foi associada a um processo de remoções e higienização urbana, expulsando de áreas bem localizadas segmentos pobres da população, ao invés de incluí-los no usufruto do espaço urbano. Se um grupo atingido por uma obra de mobilidade passou a residir numa área mais afastada de seus postos de trabalho ou com menor acesso a serviços, como ocorreu em Fortaleza e no Rio de Janeiro, e se seu deslocamento passa a levar mais tempo e a custar mais, tem-se aí uma promessa não cumprida do legado da Copa do Mundo que merece destaque. A tese exposta neste livro constitui-se das seguintes partes, além desta nota introdutória de apresentação: uma introdução propriamente dita, onde o tema da mobilidade é relacionado à temática dos megaeventos, que se tornou a janela de oportunidade para investimentos volumosos na área, com a contextualização do tema da mobilidade dentro das ciências sociais. Nessa parte, é feita a problematização do tema num contexto acadêmico, apresenta-se o escopo da pesquisa e são apontados os objetivos que se pretende alcançar. A seguir, no capítulo 3, é apresentada a estratégia de desenvolvimento da pesquisa, onde são apontadas as fontes de documentos, os critérios para a escolha dos objetos de análise dentro de cada cidade e o recorte metodológico escolhido. No capítulo 4, busca-se contextualizar a Lei da Política Nacional da Mobilidade Urbana, aprovada e sancionada durante esta pesquisa. Foram realizadas entrevistas em 2010 com atores-chaves para sua aprovação, entre eles, a então deputada federal e relatora Angela Amin (PP-SC), o então gestor da Secretaria Nacional de Mobilidade do Ministério das Cidades, Alexandre Gomide, e o urbanista Nazareno Affonso, que trabalhou pela aprovação da Lei tanto 26
enquanto membro do Conselho das Cidades como externamente, realizando articulação política via as entidades MDT (Movimento Nacional pelo Direito ao Transporte Público de Qualidade para Todos) e ANTP (Associação Nacional de Transporte Público). No capítulo 5, analisa-se como o poder público enfrenta o dilema entre a cultura do automóvel fomentada pelos próprios governos e a consciência crescente de que esse modelo torna a vida urbana inviável. Mais à frente, no capítulo 6, empreende-se análise de princípios pesquisados em diversos campos para materializar as concepções de política de mobilidade apresentadas ao longo deste trabalho, num esforço de identificar quais os princípios normativos que legitimam as atuais políticas de mobilidade. Nessa parte, apresentam-se, também, as exigências da FIFA relacionadas a transporte para a realização dos jogos, mostrando tanto sua incompatibilidade com os documentos de autoria do governo e da sociedade civil, como a visualização explícita de uma situação de exceção sendo ambicionada para as cidades-sede. Por essas referências, concluiu-se que não foram as obras do PAC que viabilizaram a ida aos jogos (e sim operações especiais de trânsito), tendo sido estas apenas a justificativa pública para a execução das políticas relacionadas à Copa. Avalia-se aqui a relação entre os megaprojetos e as políticas de mobilidade para analisar o pacote de obras de mobilidade prometido para a Copa. Estando ou não ligado aos megaeventos, esse modelo de megaprojeto (Flyvbjerg et alii, 2006) já traz em si toda uma estratégia própria de execução, na qual a lógica dos megaeventos torna-se complementar e harmônica. No capítulo 7 é traçada uma linha do tempo com os principais marcos do período de preparação para a Copa do Mundo. Nessa parte, as duas cidades escolhidas para análise, Brasília e São 27
Paulo, são brevemente descritas e os empreendimentos analisados em cada uma delas são apresentados. Em seguida, no capítulo 8, esses princípios normativos são concretizados em itens observados na análise dos projetos de mobilidade, categorizados por área e com indicação de dados consultados como base de análise. Ao final, é feita a conclusão da tese, com as principais observações sobre o que aconteceu nas cidades-sede e o que isso representou em termos de políticas de mobilidade no Brasil.
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CAPÍTULO 2 Introdução: Mobilidade e megaeventos
A tentativa de realizar uma dobradinha “megaeventos-legado de mobilidade urbana” em função da Copa do Mundo de 2014, para avaliar em que medida as políticas de mobilidade avançariam em função dos megaeventos, se considerada como uma meta real de políticas públicas, foi uma tentativa não alcançada, por diversos critérios de avaliação de gestão. Se considerada como apenas uma construção de cenário e narrativa midiáticos, para legitimar e justificar a instauração dos megaeventos, funcionou de maneira relativamente eficiente nos primeiros anos do processo de preparação das obras relacionadas à Copa. Entretanto, sua aceitação diminuiu nas cidades-sede, em especial pelos movimentos sociais urbanos, à medida que a data de início do campeonato se aproximava e as obras explicitamente mantinham-se longe de sua conclusão. Para aprofundar essas questões, foram observados alguns dos fatores definidores dos modelos de mobilidade urbana em cada uma das cidades em questão. Entre esses, estão as escolhas de quais meios de locomoção priorizar, as rubricas definidas para gasto dos recursos, em que regiões de cada cidade, as possibilidades de integração modal, as concessões feitas e a acessibilidade de tarifas, dentre outros. 29
Além de procurar perceber o que esteve por trás de cada uma das opções feitas nos municípios, que são reflexo não apenas de estudos técnicos, mas, fundamentalmente, de escolhas políticas, se observou também o processo de definição dessas opções pelos atores sociais envolvidos com a questão. Buscou-se assim compreender como essas cidades aproveitaram (ou não) a oportunidade de captar recursos e efetivar intervenções em sua infraestrutura, especificamente no tocante aos seus sistemas de mobilidade urbana10. O objetivo geral dessa pesquisa foi o de analisar a relação entre o processo recente de urbanização capitalista relacionada aos megaeventos e a garantia do direito à cidade em relação à mobilidade. Permitiu identificar as circunstâncias que possibilitam a uma cidade priorizar a política de mobilidade urbana na perspectiva do direito à cidade e construir itens de avaliação para acompanhamento das políticas de mobilidade urbana das cidades pesquisadas, analisando ainda quais posições foram prevalecentes na definição das políticas implementadas em cada uma das cidades. Para atingir estes objetivos foi observada a vinculação das diferentes estratégias de gestão municipal com as seguintes variáveis: população residente, área da extensão geográfica, localização, orçamento público federal, orçamento público municipal, orçamento público estadual, relação com governos 10. Não farão parte desse estudo a análise sobre as opções de investimento referentes à rede hoteleira, estádios, estrutura aeroportuária e serviços de turismo, embora também sejam grandes receptores de recursos na preparação de uma Copa do Mundo. Quando esses investimentos forem citados, serão sempre para contextualizar o perfil da política de financiamento dos preparativos para a Copa do Mundo.
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de outros entes federados, recursos de origem privada e diretrizes do Plano Diretor Municipal e do Plano Diretor de Transporte Urbano Integrado. O foco de estudo foram duas cidades-sede escolhidas para receber os jogos da Copa de 2014 no Brasil: Brasília (DF) e São Paulo (SP) e seus investimentos realizados em políticas de mobilidade urbana. Em ambas as cidades, foi possível encontrar detalhes sobre a ineficiência da Matriz de Responsabilidades enquanto diretriz de planejamento. Para fugir do risco de realizar apenas uma análise operacional sobre metas descumpridas e as razões de seu descumprimento, se problematizou a questão politicamente: considerando o que foi previsto e o que foi efetivamente realizado, o que fica de legado para as cidades? É interessante perceber ainda quais obras feitas com recursos estaduais ou municipais poderiam também ser impactantes ao se identificar os projetos de cidades refletidos nessas políticas públicas. Entre esses investimentos estaduais estão obras viárias, estrutura cicloviária, campanhas educativas de trânsito, obras de alteração de fluxo de carros, política de transporte relacionada à frota de táxis e serviços similares, uso de áreas públicas como estacionamento de automóveis, rodízio de veículos, alteração de velocidade de vias, calçamento, modernização e instalação de semáforos etc. Embora esta pesquisa tenha relação explícita com a realização da Copa do Mundo no país, é importante ressaltar que seu foco é, verdadeiramente, a política de mobilidade urbana de cada uma das cidades em questão. O fator catalisador “Copa” foi escolhido para análise, pois foi discursivamente a janela de oportunidade para investimentos de maior porte a serem realizados nos municípios escolhidos. A justificativa pública da realização dos jogos 31
foi que as obras viabilizariam a execução de reformas estruturais em cada um dos sistemas de transporte público, acrescidos da imposição de um prazo improrrogável para entrega das melhorias, o que é uma dificuldade constante em diversos empreendimentos públicos, em especial no setor de transportes (Gold & Gold, 2008). Outra dimensão importante e também estrutural desse recorte foi a percepção do impacto perverso que o curto prazo pode ter na política pública. A obrigação das cidades de se adequar ao termo de compromisso assinado com a FIFA e com o governo federal influenciou sobremaneira o modelo de gestão das políticas, inclusive com flexibilizações de exigências, como, por exemplo, o licenciamento ambiental das obras e o regime de contratação. Carlos Vainer, pesquisador do IPPUR (Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ), vem debatendo o conceito de cidade de exceção, inspirado por Giorgio Agamben. Afirma que megaeventos facilitam que as cidades se transformem em territórios de exceção (Vainer, 2014), com flexibilização de leis para a atuação das empresas. Esse é um ponto importante para perceber o déficit democrático na governança desses projetos de mobilidade, onde a supressão de instâncias decisórias com participação popular se torna a regra. Isso faz com que população fique sem canais de intermediação política para tentar incidir sobre as políticas públicas executadas durante a preparação para a Copa, assim como no período imediatamente seguinte. Com a experiência da realização dos Jogos Pan-americanos no Rio de Janeiro, em 2007, vários grupos interessados já estavam com suas pautas pré-definidas para a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016, como associações esportivas, empreiteiras (nacionais e estrangeiras), políticos, grupos de comunicação, 32
entidades voltadas para o controle social dos gastos públicos, movimentos de moradia e todo o setor de turismo. Cada um desses grupos, ao seu modo, iniciou articulações que buscaram efetivar suas demandas para os megaeventos a serem realizados nos anos seguintes no Brasil. As volumosas doações das empreiteiras para campanhas eleitorais mostraram bem o investimento feito nos projetos futuros, ainda que não focadas exclusivamente nas obras da Copa do Mundo (Campos, 2014)11. Quadro 2: Doações de campanha nas eleições municipais de 2012 por partido
Quadro 3: Doações de campanha nas eleições por ano e empreiteira
Diversos estudos trabalham com os legados, simbólicos e materiais, deixados nos países que sediam grandes campeonatos esportivos, sejam as Olimpíadas (Alberts, 2009; Baade e Matheson, 2004), as Copas do Mundo (Mclauchlan, 2001; 11. Levantamento feito pela Transparência Brasil: https://bit.ly/1JgwNJj
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AfricaResearchBulletin, 2007; Maenning e Plessis, 2007; Cornelissen e Swart, 2006; Pillay, Tomlinson e Bass, 2009) ou até mesmo Campeonatos de Rugby (Jones, 2001). O caso de Barcelona (Espanha), sede das Olimpíadas de 1992, foi reverenciado por urbanistas mundo afora como exemplo bem sucedido de momento adequado para o projeto necessário de redesenho urbano de cidade (seu planejamento teve início ainda em 1985), enquanto que Montreal (Canadá – 1976), Sydney (Austrália – 2000)12 e Atenas (Grécia – 2004) ficaram famosas pelas estruturas grandiosas erguidas para seus jogos olímpicos e nunca mais utilizadas13, deixando grandes débitos que demoraram anos para serem sanados pelos seus governos. Esta pesquisa buscou apoio na literatura internacional e nacional sobre os impactos de sediar megaeventos e sobre modelos de políticas de mobilidade urbana, para realizar uma categorização mínima entre as opções de investimentos das cidades-sede. A busca de dados sobre os projetos de engenharia e execuções orçamentárias foi feita nos órgãos governamentais responsáveis, 12. Todavia se reconhece que os projetos de engenharia de Sydney tiveram o mérito de inserir a questão das construções sustentáveis nas Olimpíadas (Chalkley and Essex, 1999a). 13. Há casos curiosos também, como o fato da cidade de Berlim (ALE) ter iniciado as construções de grandes equipamentos esportivos justamente para fortalecer sua candidatura a cidade-sede das Olimpíadas de 2000, expectativa depois frustrada (Sydney venceu). Algumas obras de equipamentos esportivos foram interrompidas e só retomadas posteriormente com a oportunidade de sediar outras competições internacionais, enquanto que obras de redesenho urbano de maneira geral, para consolidar a unificação da cidade pós-muro de Berlim, foram concluídas de forma independente (Alberts, 2009, p. 503; 512; 513). A possibilidade de sediar um megaevento, no caso, foi a provocação necessária para se iniciar um processo que provavelmente demoraria muito mais tempo para ser implementado.
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também se recorrendo à Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527), enquanto o mapeamento de atores estratégicos foi a base para a realização de entrevistas.
Desenvolvimento da investigação
Para alcançar os objetivos propostos, esse projeto teve sua execução dividida em etapas de pesquisa que ora se sucederam, ora ocorreram paralelamente, dado que até a véspera da Copa de 2014 ainda surgiam novos atores no processo, momento no qual a identificação das políticas a serem executadas já estava avançada. Uma intenção nessa proposta foi comparar políticas e estruturas de transporte público em diferentes cidades, e o acontecimento da escolha do país como sede dos jogos da Copa de 2014 possibilitou uma pesquisa de espectro maior. Por mais que a pauta do transporte tenha sido municipalizada em 1988, o papel do governo federal vem sendo decisivo na questão, tanto em termos de orientação da política com fontes de financiamento como com as políticas econômicas de incentivo à indústria automobilística. O cenário de preparação nacional do país para a Copa do Mundo colaborou para organizar leituras e interpretações sobre os processos urbanos ocorridos simultaneamente em diferentes cidades. Inicialmente, das duas cidades selecionadas (Brasília e São Paulo), foram escolhidos projetos que constam na Matriz de Responsabilidades assinada com o governo federal e também obras feitas com recursos das mesmas. Ter como referência a Matriz de Responsabilidades foi uma forma de pesquisar a gestão das políticas de mobilidade urbana em mais de uma cidade ao mesmo tempo, pois todas tiveram o mesmo prazo para atender aos mesmos critérios, ainda que tivessem pontos de partida diferenciados. Ao analisar obras feitas com recursos 35
locais, teve-se a dimensão das escolhas políticas características de cada gestão. Entretanto, a análise pontual da execução dos projetos não permitiu se explicar o cenário maior, onde o planejamento dessas obras esteve e continua inserido. Estudar cada obra isoladamente seria insuficiente para perceber as dinâmicas locais de reorganização ou reprodução da especulação imobiliária e o contexto social e econômico do país no momento de preparação dos megaeventos. Estudar as duas cidades ao mesmo tempo com o cenário nacional de fundo não significou, de modo algum, tratá-las como iguais. São Paulo apresenta dimensões de megalópole, o que colaborou para a promoção de uma nova subcentralidade urbana em Itaquera. Por outro lado, o conjunto arquitetônico e urbanístico de Brasília acrescentou uma variável particular, com a escala monumental do Estádio Nacional Mané Garrincha e no processo de licitação do VLT. Buscou-se analisar os processos camuflados por detrás dos produtos visíveis dos megaeventos, entendendo que a cidade é o espaço onde as contradições emergem de maneira congestionada, removida, ocupada. O discurso de que “Os jogos olímpicos são capazes de impulsionar grandes transformações, só cabe aos seus planejadores saber abraçar a oportunidade e transformá-la em uma grande conquista para a cidade” (Paiva, 2013, p. 153) não se sustentou, nem mesmo para o público leigo. O governador sucessor no Distrital Federal, que assumiu o governo em janeiro de 2015, Rodrigo Rollemberg, por exemplo, cancelou o recebimento de dois megaeventos firmados pelo governo Agnelo Queiroz em função da crise fiscal na qual o DF se encontrou depois da construção do bilionário Estádio Nacional Mané Garrincha. Foi cancelado o recebimento da Fórmula Indy e da Universíade (Jogos 36
Universitários Mundiais), sem nenhum prejuízo para a imagem pública do governador recém eleito naquele momento. Além disso, posteriormente não foram poucas as críticas que o governo Rollemberg sofreu na ocasião da passagem da tocha olímpica em Brasília e seus gastos decorrentes, em 2016, dada a permanência da crise fiscal e a suspensão temporária de diversos serviços públicos. Ou seja, a promessa de “enorme retorno econômico, social e de imagem global” (Madruga, 2008, p. 61) não se confirmou, o que exige uma visão crítica do processo de recebimento dos megaeventos. Para construir a estratégia de análise da formulação e implementação das políticas de mobilidade destas cidades, foi feita revisão bibliográfica interdisciplinar, consultando artigos dos campos da Geografia, Arquitetura e Urbanismo, Engenharia Civil e Ambiental, Ciência Política e Sociologia. Um eixo de trabalho essencial nesse projeto foi a análise documental. Foram consultados ao longo da pesquisa documentos oficiais de governos, seus órgãos de controle e relatórios de caráter relativamente técnico, sobre planejamento urbano e a gestão do transporte nas cidades-sede. Cabe ressaltar que a análise aqui empreendida não se restringiu à viabilidade ou eficácia dos empreendimentos em questão. O mais importante, no caso, foi o estudo sobre a construção e definição dessas propostas de intervenção nas políticas de mobilidade urbana e seus impactos sociais. Há algumas redes e associações que se debruçam sobre o tema da mobilidade urbana, que se torna cada vez mais um problema comum às grandes cidades do mundo, na medida em que a urbanização e o poder aquisitivo das populações aumentam, favorecendo o transporte individual motorizado. Entre essas redes, destacam-se a ANTP (Associação Nacional de 37
Transporte Público) e o ITDP (The Institute for Transportation & Development Policy). Documentos orientadores de políticas dessas duas associações foram consultados. Alguns documentos importantes identificados como base para o estudo aqui pretendido foram o Plano Nacional de Turismo (PNT) de 2007-2010, o Plano de Mobilidade Urbana para a Copa 2014, apresentado também pelo Ministério do Turismo, o Manual for the countries bidding for the World Cup (FIFA), Planos Diretores das duas cidades, Planos Diretores de Transporte Urbano Integrado e os projetos dos empreendimentos previstos para o período, em especial os do PAC da Mobilidade e PAC Copa. Buscou-se observar nos projetos os itens que costumam ser considerados para se indicar a qualidade do transporte público a ser oferecido no modal metroviário e rodoviário (Sampaio, Neto, & Sampaio, 2006): 1. Acessibilidade ao sistema, determinada pela redução da distância que os usuários devem percorrer desde sua origem até o ponto de embarque e do ponto de desembarque até seu destino final; 2. Tempo de viagem, determinado pela velocidade dos veículos e geometria das linhas; 3. Confiabilidade, determinada pelo grau de incerteza que os usuários têm sobre os horários de saída e de chegada dos veículos; 4. Frequência de atendimento, determinada pelo intervalo de tempo entre passagens consecutivas de veículos pelos pontos de parada; 5. Lotação, determinada pela relação entre o número de passageiros no interior do veículo nos horários de pico, momento de lotação máxima, e sua capacidade; 6. Características dos veículos, como seu estado de conservação e sua tecnologia, que afetam o conforto dos passageiros durante as viagens;
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7. Facilidade de utilização, parâmetro envolvendo aspectos como a sinalização dos pontos de parada, existência de abrigo nos locais de maior demanda, divulgação de horários e distribuição de mapas simplificados dos itinerários das linhas com localização dos terminais, disponibilização de informações por telefone etc.
Outro tipo de documento, menos técnico e politicamente mais relevante, são os relatórios ou dossiês feitos por entidades da área que apontam as diretrizes consideradas estratégicas para essas intervenções urbanas. Esses relatórios são o registro público das preferências de alguns pelos modelos de política em debate. Um exemplo importante é o relatório Vitrine ou Vidraça: desafios do Brasil para a Copa 2014, elaborado pelo Sindicato da Arquitetura e da Engenharia com apoio de empresas privadas (Votorantim, Holcim, Usiminas, Instituto do PVC, entre outras). O relatório Vitrine ou Vidraça14 oferece um panorama geral das maiores deficiências e vantagens, identificadas por associados da entidade, de cada cidade candidata a sediar os jogos, dividido nos seguintes tópicos: estádios de futebol, visibilidade para o turismo, infraestrutura hoteleira, mobilidade e acessibilidade, infraestrutura aeroportuária e, ao fim, o anexo com os participantes dos eventos de apresentação desse diagnóstico – geralmente políticos e representantes de entidades ligadas à construção civil e a clubes de futebol –, mencionando os patrocinadores específicos de cada encontro. Para algumas cidades15, há menção a problemas específicos como segurança, desigualdade etc. 14. https://bit.ly/30RlaEo 15. Há menção ao fato de os representantes do poder público da cidade de Rio Branco (AC) terem se recusado a receber a comitiva do sindicato.
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Além desse documento, destaca-se ao Dossiê Megaeventos e Violações de Direitos, elaborado pela Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa16, que denuncia o perigoso processo de desrespeito às comunidades atingidas diretamente pelas obras da Copa, revelando a dimensão de limpeza urbana presente no pacote de obras que promete a mobilidade urbana como legado. Em meio a um processo de ocultação de informações e de exclusão de mecanismos de controle social dos empreendimentos da Copa, o levantamento feito pelos próprios Comitês Populares em parceria com grupos de pesquisa de universidades estimou que o número de pessoas que sofreram com processo de remoção e despejo em nome da Copa estivesse entre 150 e 170 mil. Na medida em que um projeto de mobilidade remove famílias de lugares próximos de seus locais de trabalho e de outros serviços urbanos, para depois oferecer moradias cada vez mais afastadas ou nem isso, cabe questionar qual foi de fato o impacto da Copa do Mundo para a mobilidade urbana. Outros documentos fundamentais para a análise pretendida foram os produzidos pelo Tribunal de Contas da União (TCU), tribunais estaduais e municipais, Controladoria Geral da União e Ministério Público Federal (MPF), que assumiram compromisso oficializado em público com o Ministério do Turismo de elaborar portais para publicização do controle de gastos relacionados à Copa de 2014. Verificar as rubricas investidas em cada uma das modalidades de transporte também contribuiu para a construção de indicadores de avaliação dos projetos de cada cidade, especialmente tendo em vista que nacionalmente se investe 12 vezes mais em 16. http://rio.portalpopulardacopa.org.br/
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estímulos ao transporte individual que em transporte coletivo, conforme divulgado pelo IPEA em 2012. Um indicador interessante (e preocupante) de se observar é o percentual destinado às reformas urbanas em relação ao total geral investido para os preparativos da Copa (incluindo capacitações, rede hoteleira, aeroportuária, estádios etc.). No caso de Barcelona, esta relação passou de 80%, enquanto no Brasil ficou em 33,6% (8,6 bilhões de reais)17. A prioridade dada para cada um desses elementos, de maneira geral e também por subitens dentro de cada categoria, facilita a visualização dos grupos de interesse que conseguiram colocar suas pautas de maneira mais definitiva no jogo político. Também foi dada atenção às mudanças nos valores de cada empreendimento e às alterações nos modais previstos. Se considerou desde as sinalizações por parte do governo federal de montantes a serem investidos – como o anúncio feito pelo Ministério das Cidades sobre as obras aprovadas pelo PAC da Mobilidade – ao que foi desembolsado de fato para as obras. Além do quadro de investimentos divulgado pelo Ministério do Turismo, também se considerou o quadro 4 como um dos marcos iniciais do processo decisório que culminou nas obras entregues em 2014, ainda que parcialmente.
17. Dados oficiais: https://bit.ly/1jEDYL3
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Quadro 4: Projetos de mobilidade urbana com investimentos do PAC
Fonte: Ministério das Cidades, 2009
Esse quadro, diagramado pelo Sinaenco (Sindicato da Arquitetura e da Engenharia), passou por diversas atualizações. Aquelas alterações referentes às cidades de Brasília e São Paulo serão analisadas mais detalhadamente nessa pesquisa. Em conjunto com a análise documental, foi realizado também 42
o mapeamento de atores sociais estratégicos no debate, para se observar seu comportamento e posicionamentos em público, além de entrevistas semidiretivas com um grupo de representantes desses atores. Vários desses atores já estavam publicamente engajados nos preparos para as reformas estruturais necessárias para o ano de 2014 desde o anúncio do Brasil como país-sede. Um dos casos que mais chamaram a atenção foi o já mencionado Sinaenco (por ter promovido caravanas que percorreram 16 cidades-candidatas entre 2008 e 2009, realizando seminários e reuniões com gestores públicos, parceiros privados e outros atores). Tanto no relatório como em entrevistas concedidas à mídia por seus dirigentes, estes fizeram críticas à gestão dos jogos Pan-americanos de 2007 e apontaram encaminhamentos para as então futuras obras: Como preconiza o Sinaenco, “antes de uma boa obra, existe sempre um bom projeto”. E, para se ter um bom projeto, é imperativo respeitar o tempo para a sua elaboração, enfim respeitar a engenharia (SINAENCO, 2009, p. 5).
Se, por um lado, é difícil estudar programas governamentais em fase de planejamento e implementação, por não ser viável oferecer conclusões permanentes sobre seu alcance, tem-se a vantagem de se desenvolver na pesquisa um olhar exatamente sobre seu processo de formulação, de maneira a se construir um registro histórico sociologicamente analisado acerca dos anos que antecederam a Copa de 2014 e de como as cidades estavam se preparando para receber os jogos. Para operacionalizar esta pesquisa, foram levantados dados sobre as políticas de mobilidade urbana como um todo 43
de cada uma das duas cidades. Parte deste estudo foi desenvolvida dentro do projeto de pesquisa do Observatório das Metrópoles “Metropolização e Megaeventos: impactos dos Jogos Olímpicos/2016 e Copa do Mundo/2014’, que contou com financiamento da FINEP, Financiadora de Estudos e Projetos18 (Observatório das Metrópoles, 2011-2013). Um indicador importante sobre o impacto dos investimentos19 realizados para os moradores das cidades é a relação entre as áreas de concentração das ações, a densidade populacional e indicadores como renda per capita ou IDH nas microrregiões de uma mesma cidade. Esta análise pode sinalizar como ocorreu a distribuição dos investimentos. As duas cidades escolhidas fazem parte do grupo de cinco cidades brasileiras que já em 2009 possuíam mais de um milhão de veículos nas ruas (somam-se a elas Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Curitiba) e contavam com IDH na mesma faixa (entre 0,8 e 0,9). Dentro da classificação do PAC 2 Grandes Cidades Mobilidade, as duas cidades estão classificadas também no mesmo grupo: MOB 1 – Municípios-sede de Regiões Metropolitanas com mais de 3 milhões de habitantes, com limite de R$ 2,4 bilhões no valor total das propostas, que poderiam chegar até R$ 4 bilhões. O PAC Mobilidade, numa tentativa de incentivar o cumprimento do Estatuto das Cidades na exigência de Plano Diretor de Transporte Urbano para municípios acima de 500 mil habitantes, colocou a apresentação do plano como critério de elegibilidade para recebimento de investimentos. Todas as cidades-sede 18. Empresa Pública Financiadora de Estudos e Projetos. 19. Dentro dos investimentos serão considerados os subsídios para o transporte coletivo.
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estavam com seus planos diretores de transporte urbano em vigor, sendo o documento de Belo Horizonte elogiado internacionalmente por especialistas20, tendo se antecipado à aprovação da Política Nacional de Mobilidade Urbana. O Plano Diretor de São Paulo, que estava em vigor desde 2002 (lei nº 13.430 de 13 de setembro de 2002), foi revisado conforme previsto em 2014 (lei nº 16.050 de 31 de julho de 2014). O Plano Diretor vigente em 2016 foi reconhecido como inovador e foi elogiado por grupos diversos, considerando inclusive a participação social21. Já o Plano Diretor de Transporte Urbano do Distrito Federal contou com um cenário de instabilidade política em sua elaboração, tendo tido sua formulação prejudicada e sua aprovação adiada em função da crise política local que resultou, em 2010, na prisão do governador José Roberto Arruda, na renúncia do vice-governador, Paulo Octávio, e num mandato tampão pelo então deputado distrital Rogério Rosso. O Plano Diretor só teve sua aprovação no governo seguinte, de Agnelo Queiroz, de forma quase protocolar, para atender à exigência de financiamento do PAC Mobilidade. É importante considerar que, desde 2003 o processo de financeirização da economia se expande a nível mundial (Harvey, 2014) e nacional, ao mesmo tempo em que do ponto de vista institucional se reconhece a importância da questão urbana – com a criação do Ministério das Cidades, do Conselho das Cidades, da realização das Conferências das Cidades (2003, 2005, 2007, 2010 e 2013) e a elaboração do Plano Nacional de Desenvolvimento Urbano (na 1ª Conferência em 2003). Isso faz com que as premissas constantes 20. https://bit.ly/1yAtOnH 21. https://bit.ly/2Gso8HB
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na PNDU enfrentem enormes dificuldades para se concretizar, pois estas colocam em pauta questões como o acesso universal à moradia, ao saneamento ambiental e ao transporte público e a participação popular no planejamento urbano, num período histórico em que os excedentes de capitais tentam cada vez mais se viabilizar no espaço urbano. O que se observa, portanto, é a contradição entre as premissas de acesso universal e as premissas dos grandes projetos de interesse dos capitais nacionais e internacionais. O contraditório é percebido no fortalecimento histórico-institucional da questão urbana (Mcidades, PNMU, Planos Diretores) paradoxal e simultaneamente a um movimento de crescente financeirização urbana, e materializado no escopo de programas como o Minha Casa Minha Vida e outros empreendimentos de produção de espaço urbano entregues ao setor privado. O tanto que se avançou em termos normativos e discursivos traz como desafio a expectativa de avanço em termos de força política para transformar os marcos institucionais em investimentos orçamentários, transformando o desenho urbano e os padrões de deslocamento nas cidades.
Problematização do tema
Uma das contribuições que este estudo pode trazer consiste na compreensão do processo de recepção dos megaeventos, de sua relação com um outro processo, da dinâmica do mercado imobiliário, e de seu impacto nas políticas locais. A atenção aos casos de cidades que passam por processos de intervenções urbanísticas para se adequarem às exigências de recepção de megaeventos se deu com enfoque na mobilidade urbana. Além de se trabalhar
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com a ideia de Direito à Cidade22, se percebeu a lógica internacional de negócios na qual as cidades estão inseridas hoje, sendo a Copa um evento catalisador desses processos econômicos. Em estudos de sociologia contemporâneos, a falta de urbanização é percebida como uma das causas para a desordem pública nas cidades e em seus espaços públicos, sendo a urbanização entendida enquanto garantia de espaço estruturado para o convívio coletivo público nessas abordagens (Sampson, 2009); (Sennet, 2009). Numa leitura sobre essa perspectiva, Richard Sennet escreveu curta apresentação sobre onde busca alocar sua obra no debate: Quando escrevi The Uses of Disorder, eu tinha usado como critério de ordem / desordem o contraste entre a definição e a ambiguidade na percepção do urbano. O que eu não tinha entendido, então, é que o distúrbio também pode ser definido em termos de percepção de decadência, degradação. Uma fase da vida com viagens para cidades não ocidentais me levou a pensar que este critério alternativo é igualmente importante – o que significa dizer que as janelas quebradas, sanitários quebrados, calçadas sujas de lugares que tenham sido abandonados são, talvez, mais importantes visual e fisicamente como medidas de caos urbano que a definição do policial de desordem 22. Direito à Cidade foi um conceito elaborado por Henri Lefebvre, e recentemente retomada com novo fôlego por David Harvey, que o definiu como “muito mais que a liberdade individual de ter acesso aos recursos urbanos: é um direito de mudar a nós mesmos, mudando a cidade. Além disso, é um direito coletivo, e não individual, já que essa transformação depende do exercício de um poder coletivo para remodelar os processos de urbanização. A liberdade de fazer e refazer as nossas cidades, e a nós mesmos, é, a meu ver, um dos nossos direitos humanos mais preciosos e ao mesmo tempo mais negligenciados.” Entrevista: https://bit.ly/2Lb2JE3
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puramente em termos de criminalidade. Os pobres são condenados à esfera sensível da decadência, em consequência de terem sido deixados para trás, esquecidos (Sennet, 2009).23
Esse olhar, que descriminaliza a pobreza e percebe dimensões mais profundas para os conflitos urbanos, é uma referência que nos acompanhou ao longo do projeto, para evitar que se caísse em justificativas fáceis para processos de limpeza urbana disfarçados de modernização. Com essa abordagem, chega-se ao contexto da pesquisa aqui realizada: a preocupação com a mobilidade urbana nas grandes cidades brasileiras se dá na medida em que é um indicador não só da qualidade da urbanização desses espaços, mas do investimento feito para assegurar condições de qualidade de vida para sua população. Para que as cidades mantenham suas características de centros urbanos vivos, o direito de seus moradores de se locomover e de se integrar à cidade é essencial. A utopia de que as novas tecnologias de comunicação reduziriam a demanda por mobilidade (Mokhtarian, 1996) mostrou efeito, mas ainda não como o anunciado. Para além das restrições 23. Nota: As citações da literatura internacional foram traduzidas pela autora. Original em inglês: When I wrote The Uses of Disorder, I had used one yardstick of order/ disorder: a contrast between definition and ambiguity in urbanites’ perceptions. What I had not understood then is that disorder can also be defined in terms of perceptions of decay. A life-time of travel in non-Western cities has led me to think this alternate yardstick is equally important – which is to say that the broken windows, broken plumbing, dirty sidewalks of places which have been abandoned are perhaps more important visual and physical measures of urban chaos than the police officer’s definition of disorder purely in terms of crime. The poor are condemned to the sensate realm of decay, a consequence of being left behind, of being forgotten.
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sociais sobre o uso das tecnologias, compras realizadas pela internet são um serviço cômodo para se efetuar aquisições quando não se está com tempo de ir às ruas, mas não substituem a possibilidade de uma pessoa transitar por uma rua comercial apenas pelo prazer de observar as vitrines. Neste projeto, foram pesquisadas a construção e ampliação de linhas de metrô, monotrilhos, BRTs, VLTs, meio de transporte não motorizados (pedestres e ciclistas) e sua integração modal não por pretensões de advogar a favor de um ou outro meio de transporte, menos ainda pela crença de que a solução para a mobilidade é tecnológica. Esta ênfase foi dada pela percepção de que tais investimentos são passo importante do processo nunca acabado de modernização das estruturas sociais que facilitam ou dificultam o convívio coletivo, num contexto em que problemas relacionados ao crescimento urbano acelerado, à desarticulação entre forma urbana e sistema de mobilidade, concentração de atividades em zonas centrais e segregação espacial são características em comum à grande parte das 12 cidades-sede dos jogos da Copa de 201424. Dado o quadro de produção acadêmica na área, os estudos sobre mobilidade urbana ainda se concentram nos ramos de engenharia, geografia e urbanismo, sendo raras e mais recentes as abordagens nas ciências humanas preocupadas com a questão, onde o tema da habitação (refletida pelos fortes movimentos sociais atuantes na área) é predominante dentre aqueles tratados pela sociologia urbana. Ao se tratar de mobilidade urbana, é importante referir-se à capacidade de locomoção e integração de indivíduos dentro 24. Para além dos impactos do transporte sobre a renda familiar, as oportunidades de trabalho e as decisões de moradia das populações de baixa renda.
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de certo perímetro urbano. Deve-se observar que o “transporte público” é apenas uma parte integrante da mobilidade, relacionada a ferramentas que a viabilizam. O conceito de mobilidade urbana abre espaço para as especificidades relacionadas à acessibilidade, integração entre regiões, perfis de usuários, restrições ao uso do automóvel, atenção aos pedestres e ciclistas e condições sociais de uso do transporte público de maneira mais ampla, que assegurem o direito de usufruto do espaço urbano aos seus cidadãos. Em abril de 2012 entrou em vigor a Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei 12.587/12), sancionada pela então presidenta Dilma Roussef em 2011. Esta lei foi elaborada no âmbito da Secretaria de Mobilidade Urbana do Ministério das Cidades, tendo passado por longo processo de consulta pública via audiências organizadas tanto pelo Conselho das Cidades como no âmbito legislativo, quando tramitava na Câmara dos Deputados. Contou ainda com apoio formal da Frente Nacional dos Prefeitos para ser aprovada. Dado seu histórico de tramitação (foi apensada a outro projeto, de 1995), considera-se este documento como uma referência do processo de alinhamento discursivo da área de mobilidade no Brasil. Um de seus marcos é justamente a mudança de uso da terminologia “transporte público” para “mobilidade urbana”. Apesar de pauta histórica já, com mobilizações presentes na história brasileira há mais de século, a agenda da mobilidade ganhou outro peso na agenda pública mais recentemente. Em 2013, a revista Estudos Avançados da USP dedicou sua edição número 79 para tratar do tema, mencionando as jornadas de junho em seu editorial. Em busca na plataforma de divulgação científica Scielo, por exemplo, a ordenação cronológica dos artigos 50
que tratam de mobilidade e transporte (desde o primeiro registro até 2015) mostram o pico recente na produção: Gráfico 1: Quantidade de artigos publicados por ano com assunto “mobilidade” e “transporte” na base Scielo (2001-2015)
Fonte: Elaboração própria, a partir da base Scielo
A construção da pauta da mobilidade urbana pode ser entendida também como um princípio articulatório para outras pautas. Dentro desse debate encontram-se a possibilidade de regularização de transportes clandestinos, o uso de bicicletas, o barateamento de tarifas para usuários, parcerias entre entes federados para viabilização de sistemas de transporte, a poluição atmosférica, a dependência dos combustíveis fósseis, condições de trabalho para trabalhadores de empresas da área e acessibilidade para deficientes, dentre outras demandas de grupos diversos que encontram seu espaço sob a bandeira da mobilidade urbana. Um ponto fortemente observado nessa pesquisa foi o processo de disputa e construção política sobre os modelos de política de mobilidade urbana adotados pelas cidades, 51
percebendo-se que o estágio de definição, formulação e tomada de decisões sobre essas políticas é fundamental para a análise das políticas públicas. A frequência de adoção das mesmas soluções de políticas de mobilidade no formato “pacote” por várias cidades simultaneamente, indica não apenas uma escolha técnica, mas um acontecimento política e economicamente circunscrito. O BRT (Bus Rapid Transit) foi adotado como solução em pelo menos seis das 12 cidades-sede (Belo Horizonte, Curitiba, Fortaleza, Porto Alegre, Recife e Rio de Janeiro), e corredores de ônibus simples foram adotados em sete (Belo Horizonte, Cuiabá, Curitiba, Fortaleza, Natal, Porto Alegre e Recife)25. Ao mesmo tempo, os lugares que procuraram fugir do pacote, por outras escolhas igualmente políticas e econômicas, tiveram diferenças de custos (de tempo, de justificativa, de financiamento) que devem ser observadas. Este foi o caso das cidades que tentaram aplicar as verbas do PAC II, da Copa ou da Mobilidade, em metrôs (Belo Horizonte, Porto Alegre, Salvador e Recife). Os metrôs foram sendo excluídos da relação de obras a serem financiadas até o prazo da Copa dada sua usual demora desde a elaboração de projeto a sua inauguração. Manaus e São Paulo fizeram a opção de construir Monotrilhos – que não foram executados. Ao início do planejamento, apenas Brasília tinha projeto de VLT (cuja licitação foi anulada em 2012 por irregularidades). Em meio a suspeitas de lobby de empresa, Cuiabá escondeu estudo técnico que recomendava a adoção de BRT e tentou emplacar também uma obra de VLT, denunciada pelo Ministério Público Federal em 2011 por suspeitas de superfaturamento no valor da obra e no processo 25. Ministério do Esporte, site acessado em 5 de agosto de 2011.
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de licitação, e ainda inconclusa em 2016, mesmo tendo superado estimativa de gastos26. Uma perspectiva relacionada a compreensão da atuação do Estado encontra-se na obra do sociólogo Claus Offe, para quem o Estado não é o espaço de poder exclusivo da classe dominante. Para o autor, ainda que tenha como interesse fundamental permitir a acumulação de capital, por questões de sobrevivência e arrecadação de impostos, o Estado pode também se submeter a concessões de acordo com o poder de organização e pressão social (Offe, 1984). Esse debate contribui com a pesquisa, na medida em que as decisões finais sobre os projetos a serem executados serão tomadas em âmbito estatal. A seletividade dos projetos em debate, por parte do Estado, pode ser compreendida dentro da obra de Offe, pois ali se entende por seletividade o desempenho das instituições políticas no processo decisório de políticas públicas, como um sistema de filtros, de modo a incluir ou a excluir de suas agendas atos concretos (Offe, 1984, p. 151). Entretanto, a narrativa governamental e mercadológica da Copa do Mundo como possibilidade de integração nacional foi colocada em cheque pelos Comitês Populares da Copa constituídos nas cidades-sede, que explicitavam os conflitos urbanos aguçados pelo processo do megaevento. O padrão de legitimação da “participação universal” na vontade política e das chances de utilização dos resultados de sua ação e incorporação é básico para a estabilidade dos sistemas socioeconômicos do capitalismo tardio (Offe, 1980, p. 115). Essa forma de legitimação foi contestada pelos Comitês, através da desconstrução da narrativa sobre o que seriam os resultados de sediar os megaeventos. 26. https://bit.ly/2LJZTJl
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A visão que apostava no cenário de integração e estabilização política nacional por meio dos resultados positivos que os megaeventos mostrariam deu margem a políticas de eliminação e repressão de articulações de necessidades que oferecessem risco de abalarem o sistema (Offe, 1980, p. 112), com picos de criminalização destes movimentos contestatórios ao longo de sua atuação. A premissa de que, por maior que seja a pressão feita por grupos empresariais, a seletividade das ações se dá no âmbito estatal, não no das empreiteiras, abriu a possibilidade para a pressão popular colocar reivindicações no processo de preparação da Copa. Por outro lado, o Estado (alegadamente neutro), ao mesmo tempo em que viabiliza a opção por beneficiar grupos ligados às empreiteiras, setores imobiliário e automotivo, rende concessões pontuais, porém interessantes a outros grupos impactados pelos megaeventos. Entre as conquistas dos Comitês Populares da Copa, pode-se registrar o caso das baianas do acarajé em Salvador (Araújo, 2015), além das remoções evitadas em Natal (Comitês Populares da Copa, 2014). Em 2010, no começo dos preparativos para os investimentos em mobilidade, ainda não era possível perceber quais seriam os ganhadores ou perdedores na concepção dos projetos executados, até porque, por questões de capacidade de administração, um governo poderia não ter a habilidade necessária para viabilizar uma obra, ainda que fosse de seu interesse. À medida que a Matriz de Responsabilidades foi sendo atualizada nos anos seguintes, já se conseguia perceber um cenário mais consolidado sobre o modelo de desenvolvimento urbano para transportes, de continuidade da opção rodoviarista, expressada pelos corredores exclusivos de ônibus e sistemas de BRTs. Outro tópico importante analisado foi a identificação, por meio de pesquisas sobre despesas habituais da população com transporte 54
urbano, estratificadas por classe social pelo próprio IBGE, dos grupos que se beneficiaram mais amplamente com as medidas adotadas, percebendo as ações voltadas para cada um dos itens de despesa. Conforme pesquisa do IPEA, ainda que haja uma piora generalizada no tempo gasto com deslocamento em todas as classes, são os mais pobres que continuam tendo seu tempo livre cada vez mais limitado em função de congestionamentos (IPEA, 2013). Vale ressaltar que todas as escolhas por tipos modais, em maior ou menor grau, possuem limitações. As limitações mais conhecidas do fenômeno da urbanização são as relacionadas com o transporte individual motorizado (Cruz, 2006), mas os outros modelos também não estão imunes a avaliações negativas. O olhar desse trabalho estará embasado na possibilidade de integração entre os diferentes tipos modais de transporte e de compartilhamento de vias, partindo da premissa de que o espaço urbano não pode ser dominado por um único modelo (Vasconcellos, 2000). Há que se ressaltar que muitas vezes os ônus do transporte motorizado individual são vistos como um preço a se pagar pela modernização e enriquecimento de uma localidade, como se não pudessem ser evitados. Sabe-se que, até certo ponto, a medida que a renda per capita cresce, o volume de deslocamentos motorizados também cresce (Balassiano & D’Agosto, 2001, p. 22); (Schafer & Victor, 1997). Assim, a opção pelo transporte coletivo, para um país em desenvolvimento, pode parecer, para alguns, um passo atrás, ideia reforçada pela usual má qualidade do serviço público prestado. Sem políticas públicas de mobilidade urbana à altura do crescimento econômico, o mais comum em situações como essa é a simples substituição do transporte não motorizado e do motorizado coletivo pelo motorizado individual, para satisfazer o 55
aumento da demanda por maior possibilidade de locomoção, contribuindo para cultivar, assim, a chamada “cultura do automóvel” (Lourenço, 2008, p. 5). No Brasil, esse fenômeno contou ainda com o explícito apoio governamental dado via a política de IPI zero para veículos populares, que contribuiu para o aumento da taxa de motorização da população, ao mesmo tempo em que foram liberados os recursos do PAC Mobilidade para projetos de transporte coletivo (IPEA, 2013). Como disse o antropólogo Roberto DaMatta, em publicação sobre o assunto: O encontro deflagrado pelo processo de acumulação de um estilo (e uma lógica) de vida hierárquico e aristocrático com um tipo de transporte movido à gasolina, imposto pelo individualismo moderno, conduziu a uma notável indecisão relativa a políticas públicas e ao planejamento urbano de massa de viés horizontal ou igualitário. Esta indecisão está na raiz de uma patética falta de espaço para a circulação de veículos motorizados – que ocupam uma área significativa enquanto transportam apenas um cidadão, ou, no caso, supercidadão neles encastelados – e de uma frota de ônibus cujos proprietários têm um poder político desmedido. Tal processo causa problemas no fluxo de veículos, acentuando a superioridade social relativa dos usuários de automóveis, que preferem o transporte individual e personalizado ao coletivo (e impessoal), pelo qual têm aversão (DaMatta, 2010, p. 22).
A opção preferencial pelo meio de transporte motorizado individual reflete-se no volume de gastos empreendido para este modal, como fruto de uma aliança entre classes médias e governos para o processo de modernização/urbanização 56
das cidades brasileiras nos últimos anos (Vasconcellos, 2001). Para ilustrar, segue dado compilado pela ANTP (Associação Nacional de Transporte Público) referente ao custo medido no ano de 2014 entre os modais de transporte individual (TI) e transporte coletivo (TC). Quadro 5: Custos da Mobilidade por tipo (bilhões de reais por ano), 2014 Tipo
Valor (bi R$\ano)
Participação%
Transporte Coletivo – Custo Individual27
39,8
18%
Transporte Coletivo – Custo Social28
2,7
1%
Transporte Coletivo – Total
42,5
20%
Transporte Individual – Custo Individual29
164,1
76%
Transporte Individual – Custo Público30
9,3
4%
Transporte Individual – Total
173,5
80%
Total
216,0
100%
Fonte: ANTP, 2014
27. Custo Individual do Transporte Coletivo: recursos utilizados pelos usuários para utilizar o transporte coletivo 28. Custo Social do Transporte Coletivo: recursos gastos pelo poder público para o funcionamento do sistema de transporte coletivo (envolve percentual do valor da estrutura viária) 29. Custo Individual do Transporte Individual: recursos gastos pelos usuários do transporte individual. 30. Custo Público do Transporte Individual: recursos gastos pelo poder público para o funcionamento do sistema de transporte individual (porcentagem do valor da infraestrutura viária)
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Um risco evitado nessa pesquisa é o apego excessivo ao discurso comum de redução de impacto ambiental promovido pela melhoria da eficiência dos veículos motorizados e pela mudança de sua fonte energética. De fato, vários estudos indicam que esse impacto deve ser reduzido, como o conhecido relatório do Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC) (2013). Mas aqui se entende que a preocupação deve ser direcionada, num primeiro momento, aos tipos de modais em si. Um carro elétrico pode poluir menos durante seu funcionamento31, mas continua sendo um problema de mobilidade enquanto possuir apenas uma pessoa em seu interior, contribuindo para engarrafar as vias, mantendo a circulação dos ônibus ineficiente e degradando espaços públicos usados como estacionamento. Esse cuidado se dará também pelo seguinte fato: uma situação ótima do ponto de vista da redução do impacto ambiental é o não deslocamento motorizado, apenas o deslocamento pedestre ou ciclístico, que é praticamente nulo do ponto de vista de consumo energético (Balassiano & D’Agosto, 2001, p. 28, 32), mas que limita as distâncias percorridas. Essa visão pode acabar fortalecendo políticas de redução de deslocamentos, como, por exemplo, metrôs que funcionam apenas em dias úteis em horários comerciais, política que tem justificativa do ponto de vista energético, especialmente num cenário de crise hídrica e de aumento da utilização de termelétricas, mas não do ponto de vista social da mobilidade urbana enquanto direito das pessoas. Um dos pressupostos dessa pesquisa (da 31. A produção da bateria de um carro elétrico é um processo de extração mineral de alto impacto, e após sua utilização, seu material torna-se entulho sem armazenamento adequado possível. Além disso, precisa de geração de energia elétrica que também impacta a relação sociedade/natureza.
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luta pelo direito à cidade calcado na função social da cidade ) é a ideia da promoção do encurtamento das distâncias percorridas, como um aspecto do planejamento urbano para bairros e da associação da mobilidade à política de uso e ocupação do solo, sem ignorar soluções de transporte coletivo que viabilizem deslocamentos longos por ônibus ou trilhos. Um dos interesses em empreender essa pesquisa foi perceber como se constrói a reputação de um local em relação à sua mobilidade urbana, o que resulta, em um extremo, em cidades conhecidas por permitirem aos seus habitantes usufruírem de seu espaço sem a necessidade de utilizarem transporte individual motorizado (como Nova Iorque, Barcelona, Amsterdã, Paris, Curitiba e Porto Alegre) e, em outro extremo, em cidades onde, sem carro, torna-se muito difícil acessar grande parte de seus atrativos (Brasília, Los Angeles, Riverside e Milton Keynes, entre outras cidades “rodoviárias”32). Uma expectativa dessa pesquisa era que, ao realizar investimentos significativos na área de transportes, as prefeituras se utilizassem disso nas suas propagandas institucionais para receber os jogos, com a conhecida estratégia de city marketing, bem apregoada por Curitiba, Santiago e Bogotá na América do Sul. No centro da pesquisa estão os debates conceituais em torno das concepções de mobilidade urbana e, de maneira secundária, de sustentabilidade. Vale retomar brevemente o debate feito pelo geógrafo brasileiro Milton Santos, ao mencionar a existência de lugares dedicados exclusivamente à circulação dentro dos espaços urbanos. Para o autor, esse uso estaria relacionado à hierarquia de usos 32. Cidade rodoviária é uma expressão adotada por urbanistas para se referirem ao modelo de cidade norte-americano entrelaçado por free-ways (Kay, 1998).
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que se constrói no dia a dia de um local, refletindo o uso seletivo do espaço, definido pelos seus ocupantes e transeuntes (Santos M. , 1992, pp. 62-3). Essa relação das pessoas com espaços públicos, para Santos, é a base para se construir a distinção entre “espaço”, que é dotado de significados, vida e funções, e “paisagem”, referente apenas às formas de um local (Santos M. , 2008). A paisagem está sempre posta, enquanto que um espaço se constrói à medida que a paisagem é ocupada e significada. Aqui, vale a relação de que um sistema de baixa mobilidade aproxima setores da cidade do conceito de paisagem, ao passo que um sistema que propicie alta mobilidade para seus usuários ajuda a construir espaços. Como afirma Marshall Berman, a Times Square jamais teria sua importância e reconhecimento se não estivesse em local de fácil acesso na cidade de Nova Iorque (Berman, 2005)33. Um conceito mais específico trabalhado adiante é a integração entre diferentes tipos modais de transporte, dando prioridade à articulação entre redes e equipamentos de transportes já existentes ao invés dos gastos com a simples ampliação destes (Balassiano, Araujo, & Pereira, 2003, p. 163). Essa expressão será trabalhada de maneira geral, sem enfoque no seu detalhe operacional, que pode ocorrer na forma de bilhete único, corredores exclusivos para ônibus, bicicletários em estações de metrô etc.
33. E é interessante registrar que a famosa Times Square foi recentemente fechada para circulação de carros e agora grande parte de sua área para usufruto exclusivo de pedestres e ciclistas.
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CAPÍTULO 3
Avanços e desafios recentes na promoção da mobilidade urbana no Brasil
Política Nacional de Mobilidade Urbana: Marco legal Com a crise do petróleo de 1973 e as mobilizações populares características do final do regime militar, o governo federal percebeu a importância do transporte coletivo (Gomide & Galindo, 2013, p. 28). Na década de 80, ocorreu a criação do Fundo de Desenvolvimento dos Transportes Urbanos (FDTU), vinculado ao Fundo Nacional de Apoio ao Desenvolvimento Urbano (FNDU), e da Empresa Brasileira de Transportes Urbanos (EBTU). Nos neoliberais anos 90, a máquina pública sofreu com um desmonte generalizado, em busca do ideal do “Estado-mínimo” e das soluções via mercado (Vasconcellos, 2001). Na segunda década dos anos 2000 o próprio esgotamento das ineficientes políticas de transporte coletivo associado aos impactos negativos do intenso uso do automóvel levou a sociedade a colocar a mobilidade na agenda política do país novamente. 61
A capacidade de planejamento do Estado foi estruturalmente afetada no período neoliberal (1980-1990), o que se reflete na estagnação dos quilômetros de metrô e corredores de ônibus construídos nessas décadas, corroborando a tese de que as soluções via mercado para a questão urbana se revelam cada vez mais predatórias com a financeirização do solo urbanizado. Dada a falta de investimento em projetos urbanos, alguns urbanistas consideram que foi nesse período que ocorreu grande inovação sobre políticas urbanas de baixo custo, como a urbanização de favelas, mutirões de construção de moradias e outros exemplos que chegaram a ser considerados referências sobre o que seria um modelo popular de política urbana (Rolnik, 2015). Enquanto a origem do “modo petista” de governar foi marcada pela inovação na gestão democrático popular em prefeituras municipais, em especial nos anos 1990, o primeiro governo Dilma Roussef (2011-14) não dialogou como esperado com as demandas colocadas nas grandes mobilizações sociais, mesmo coberto por uma legislação que busca promover a cidade enquanto direito de seus habitantes. A grande agenda urbana foi formada distante dos movimentos sociais que construíram em conjunto o histórico da gestão democrático popular e agora se encontravam na situação de beneficiários de pequenas concessões do Estado em seus investimentos. Vale registrar que dentro dos movimentos sociais preocupados com questões urbanas o tema da moradia é sem dúvida o de mais destaque, seja pela importância básica desse direito, seja pela quantidade e organização de associações e movimentos dedicados à temática (Silva, 2002). A pauta da mobilidade urbana demorou até mesmo a ganhar corpo dentro do próprio Fórum Nacional pela Reforma Urbana (Santos Júnior, 2009), espaço resultado 62
de processo organizado com a intenção de influir no processo de elaboração da Constituição de 1988, e que acabou por incluir nos artigos 182 e 183 a função social da propriedade e da cidade. A assimilação da mobilidade como parte da agenda política das entidades é atribuída ao aumento de tarifas em diversas cidades brasileiras em 2003 e 2004 (conhecidas como a Revolta do Buzú), acompanhado de manifestações de resistência estudantil, em especial do Movimento Passe Livre, além da própria pauta criada com o surgimento da SeMob (Secretaria Nacional de Mobilidade Urbana) dentro do Ministério das Cidades. Ainda no ano de 2003 foi criado o MDT – Movimento Nacional pelo Direito ao Transporte Público de Qualidade para Todos. Ao longo do processo de debate sobre o tema e incorporação dessa bandeira pelos movimentos sociais urbanos, ocorreu a tramitação do PL que hoje é a Política Nacional de Mobilidade Urbana, a Lei 12.587, debatida no Conselho das Cidades. Sobre a elaboração e tramitação do PL foi possível entrevistar a deputada federal e sua relatora Angela Amin (PP/SC), Nazareno Affonso, coordenador nacional do MDT e Alexandre Gomide, hoje técnico de planejamento e pesquisa do IPEA na área de mobilidade urbana, e na época diretor da Secretaria Nacional de Mobilidade Urbana do Ministério das Cidades, responsável pela elaboração do PL 1687/2007. O Projeto de Lei 0694/1995, de autoria do deputado Alberto Goldman, foi apresentado no primeiro ano de mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso. Pela exposição de motivos e conteúdo do PL percebe-se a intenção de se elaborar um Código Nacional de Transporte Coletivo como contraposição e complemento à proposta do Código Nacional de Trânsito. Apresentado em 1995, o projeto teve pouco êxito em sua tramitação e o próprio 63
governo Fernando Henrique, ao seu final, instituiu grupo executivo vinculado à Secretaria Especial de Desenvolvimento Urbano da Presidência da República, que debateu e elaborou novo anteprojeto de lei para buscar regular o transporte coletivo urbano. Este anteprojeto chegou a ser enviado para a Casa Civil, mas nunca foi enviado à Câmara dos Deputados para dar início a sua tramitação. No final do governo Fernando Henrique tinha sido criada uma comissão de assuntos urbanos, tratava de tudo. A gente atuava lá. O problema foi quando estava tudo para esse novo PL do Fernando Henrique, pactuado, foi uma pessoa lá, era Secretária da ANTP, foi e mudou tudo. Aí já era (Nazareno Affonso, Coordenador Nacional do MDT e integrante do Conselho das Cidades).34
O PL 1687/2007 tem origem anterior a esse cenário e com vários criadores, fazendo parte do contexto de criação do Ministério das Cidades e do Conselho das Cidades em 2003. O surgimento do ministério das cidades foi sem dúvida um marco, mas vale mencionar que o seu diferencial não foi a pauta, mas a visão de integração entre seus subtemas. O MCidades foi resultado da integração de estruturas existentes e da criação de novas, buscando dar o caráter de desenvolvimento urbano a temas que antes eram tratados fracionadamente em outros ministérios, conforme proposta elaborada no âmbito do Instituto Cidadania em 2000 (Gomide, 2008, p. 10). Entre suas secretarias nacionais estavam: habitação, saneamento, programas urbanos e mobilidade 34. Todas as falas mencionadas nesse capítulo foram retiradas de entrevistas feitas em trabalho de campo realizado entre agosto e setembro de 2010.
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urbana (SeMob). Foram transferidos para o Ministério das Cidades o Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), que pertencia ao Ministério da Justiça, a Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU) e a Empresa de Trens Urbanos de Porto Alegre (Trensurb), vinculadas anteriormente ao Ministério dos Transportes. No Conselho Nacional de Cidades, o ConCidades, foram criados comitês específicos de cada temática, dentre os quais de Trânsito, Transporte e Mobilidade Urbana (CTMU). Embora pareça que a passagem de “transporte coletivo” para “mobilidade urbana” possa ser questão de nomenclatura, ela foi fruto de um processo de intenso debate político entre atores envolvidos na temática da reforma urbana. Como disseram os entrevistados: Pode parecer que é pouca coisa a mudança dos termos, mas é uma visão diferente que queríamos emplacar. Queríamos tirar essa questão do debate setorial, do Ministério dos Transportes. Transporte Coletivo é atribuição somente do município. Queríamos que o governo federal, com o Ministério das Cidades, ajudasse a implementar o Estatuto das Cidades. Transporte Coletivo diz respeito a uma forma de locomoção. Nós tínhamos uma visão de integração, de sistema, de acesso à cidade. Isso significa transporte coletivo, individual, como são feitas as locomoções. Conseguimos colocar como mobilidade urbana a visão integrada da cidade, resultado da interação entre pessoas e bens com a cidade (Alexandre Gomide, um dos redatores do PL 1687/2007). O Projeto do Goldman estava parado. O Goldman sempre foi parceiro nosso, mas o projeto dele ficou parado. Estava desatualizado, ainda se falava em transporte naquela época (Nazareno Affonso).
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Um ponto interessante sobre a trajetória dessas duas pessoas em particular é que, antes de conviverem, um como diretor da SeMob, e outro como conselheiro integrante do Comitê de Trânsito, Transporte e Mobilidade Urbana (CTMU), os mesmos já haviam trabalhado juntos em secretarias de transportes de administrações petistas em âmbito local: Porto Alegre e Distrito Federal, dentre outras. Alexandre Gomide trabalhou como assessor na SeMob durante a gestão de Olívio Dutra (PT/RS) (2003-2005) e, pouco depois da troca de ministro e consequente nomeação de Márcio Fortes (PP/ RJ) (2005-2010), assumiu posto concursado de técnico em pesquisa e planejamento no IPEA, tendo produzido notas técnicas acerca da implementação da Política Nacional de Mobilidade Urbana. O MDT, coordenado por Nazareno Affonso, foi fundado em 2003, também como fruto de um momento específico quando os espaços de debate sobre a questão urbana estavam se constituindo, intrassociedade, intragoverno e na mediação destes. O MDT é composto por entidades ligadas à pauta, de composições diversas, como a Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), a Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), a Associação Brasileira da Indústria Ferroviária (Abifer), a Associação dos Engenheiros e Arquitetos do Metrô de São Paulo (AEAMESP), a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes (CNTT-CUT), o Fórum Nacional dos Secretários de Transporte Urbano e Trânsito, o Fórum Nacional da Reforma Urbana (FNRU), o Sindicato Interestadual da Indústria de Materiais e Equipamentos Ferroviários e Rodoviários (Simefre), e a Companhia do Metropolitano de São Paulo (Metrô SP). Sobre o início do processo de elaboração da Lei 12.587, segundo foi colhido em fontes diversas, o respectivo Comitê 66
do ConCidades pautou a necessidade de um marco regulatório e diretrizes nacionais mais contemporâneas sobre mobilidade urbana no país, atendendo ainda à determinação constitucional da União legislar sobre diretrizes para o transporte urbano. Detectada a necessidade, esboçou-se a estratégia para saná-la: “A gente aprendeu com o pessoal do saneamento. Eles falaram: não montem Grupo Interministerial, porque vocês vão fazer um grande debate e depois a Casa Civil vai cortar tudo dizendo que não pode porque as leis não batem. Então fizemos assim, de cara fomos pactuando ponto a ponto com a Casa Civil, Ministério da Fazenda e Sociedade Civil [...]. Fizemos seminários regionais em mais de 10 cidades, no formato de audiência pública, para debater qual devia ser o conteúdo do projeto. Eram encontros abertos, e sempre tentávamos chamar os Secretários de Transportes. O tempo de elaboração foi longo, demorou de 2 a 3 anos isso”. A.G
Se por um lado essa estratégia pode ter evitado problemas com relação à Casa Civil, as propostas dos Seminários descentralizados pelo Brasil trouxeram possibilidades de outros entraves à elaboração da Lei: Eles fizeram uma opção política que foi errada. Eles saíram fazendo audiência pública pelo país inteiro [...]. Quando você faz essas coisas você tem que ter um processo de retorno. O equivocado é você ouvir e não devolver. Você [o MCidades] não disse: de isso tudo que vocês disseram aproveitamos isso, isso e isso. Depois fizeram o PL da cabeça deles. O PL já apareceu pronto depois, todo negociado com o Ministério da Fazenda. Tem que dar retorno. Eles eram os mentores. Tanto que quase dançaram
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nesse projeto porque esqueceram do principal órgão de negociação, o ConCidades. Apresentaram quando ele já estava pronto, já passado pelo governo. Não trouxeram o relatório dessas reuniões, trouxeram o PL pronto, já discutido na Fazenda. Daí fizemos uma reunião e dissemos: ‘Legal, vocês mandam o projeto. Sem a aprovação do ConCidades’. E essa turma, eu posso falar assim, isso foi motivo de briguinha entre a gente. Nós somos todos do mesmo grupo político de mobilidade urbana. Não temos divergência de conteúdo, mas de forma de fazer política [...] A minha crítica foi essa. [...] Ele não saiu como um projeto que todos queriam (Nazareno Affonso).
Na visão de Alexandre Gomide, então assessor da SeMob no ministério, a divergência era sobre um ponto específico: O pessoal do MDT tem uma pauta: o barateamento de tarifas. Estávamos na época do Palocci, não da Dilma. Tinha a visão de que a questão fiscal ia salvar o país. Éramos pobres, não tinha esse dinheiro todo do PAC que tem agora. Então a ideia era baratear tarifa racionalizando rede, fazer licitação por menor tarifa. Isenção Fiscal [proposta do MDT] não ia sair. O apoio da Fazenda era para essa proposta (Alexandre Gomide).
Segundo Nazareno Affonso: A gente decidiu não confrontar para fazer a disputa na Câmara. Quem mais queria esse projeto era a ANTP e a ANTT. Aí a gente conseguiu que o Fórum adotasse como bandeira também (Nazareno Affonso).
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Sobre outro ponto relacionado à concepção do projeto, vale registrar o grau de debate envolvido na proposta, relacionado a sua própria conjuntura de elaboração: Sabe aquela divisão de que existem quatro tipos de política: constitutiva, regulatória, distributiva e redistributiva? Essa política de diretrizes é constitutiva e regulatória. Mexe com interesses, mas é mais de política institucional do que de rua [...]. Inicialmente, a gente queria chamar de Estatuto da Mobilidade Urbana, para dar essa ideia de marco regulatório mesmo. Mas aí a [Raquel] Rolnik e a [Ermínia] Maricato que insistiram: “Estatuto é um só, o das Cidades”. Elas insistiram para não ficar como se mobilidade não dependesse das cidades também, como se fosse uma política desconexa (Alexandre Gomide).
O projeto foi enviado à Casa Civil no final de 2004. Em julho de 2005 saiu da direção do Ministério das Cidades Olívio Dutra (PT/RS), para entrar Márcio Fortes (PP/RJ), indicação do então presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti (PP/ PE). Boa parte da equipe original da SeMob já havia sido exonerada ou solicitado exoneração, e os que restavam se sentiam sem poder de decisão. Para a nova gestão do MCidades, a pauta não era prioridade, conforme relato a seguir: Não tínhamos mais agenda com o Ministro, com o Secretário. Estávamos lá, mas era como se não estivéssemos [...]. Tem até uma história, que não dá para saber se é fofoca ou verdade. O pessoal do [Eliseu] Padilha, que na época, era Ministro dos Transportes, estava apoiando o projeto. Aí ele mesmo perguntou um dia para o Lula porque o projeto estava parado na Casa Civil, e o Lula disse: “Mas o Márcio [Fortes] nunca me falou desse projeto, e eu ando com ele
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para cima e para baixo” [...]. Na verdade, a sorte do projeto foi uma contingência política. A Frente Nacional dos Prefeitos estava com uma lista de demandas, e políticas de barateamento de tarifas estavam na pauta. O projeto já estava pronto, daí ele foi apresentado como resposta. Essa foi a sorte (Alexandre Gomide).
O Projeto ficou na Casa Civil até 2007 antes de ser enviado à Câmara dos Deputados após a articulação com a Frente Nacional de Prefeitos. Dentro da Câmara, ficou parado até 2009. Após decisão do Colégio de Líderes da Câmara, se deu início efetivo à tramitação do PL. Nesse ponto, com a designação da relatora Angela Amin (PP/SC), se percebeu um momento ímpar de articulação, conforme o seguinte depoimento: Nós temos que considerar que esse PL [1687] não começou agora. Começou desde o projeto do Goldman, um debate anterior. O PL 1687 demorou muito para ser elaborado, porque ficaram articulando sem ser com quem tinha que articular. A quem eu dou crédito, a Angela Amim. Correu atrás do Presidente Michel Temer. Por causa da história da vida dela, que ela se deu muito mal com os transportes na gestão dela [em Florianópolis], ela marcou que queria fazer algo bacana. Ela foi muito importante nesse processo [...]. Ela fez um projeto de integração em Florianópolis que foi bombardeado, deu muito problema, porque realmente tinha muitos problemas, contratou pessoa errada, aumentou tarifa. Mas ela falava de coração para gente: eu quero fazer esse PL da área de transportes. E começou a fazer um monte de audiência, mas sem chamar a gente. Ia a ANTP, a Frente Parlamentar [...]. Eram esvaziadas. O pulo do gato é o seguinte: fizemos um petit comitê do ConCidades, pegamos o projeto todo, vimos onde estavam os problemas. Chamava Grupo
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de Consenso, tinha empresariado, ANTP, ANTT, Frente Parlamentar, Frente de Prefeitos, fomos limpando as divergências. Levamos uma redação que tínhamos feito e levamos para o Comitê de Trânsito e Transporte do ConCidades, porque chegou um momento em que nós não tínhamos legitimidade para dizer que aquela era a posição do Conselho. Chegamos a um consenso, essa proposta passou pelo pleno do Conselho. Estava muito redondo (Nazareno Affonso). Quis relatar para que os gestores municipais tenham um instrumento com uma nova visão de transporte. Desde que cheguei na Câmara fiz toda uma movimentação no Partido, nas lideranças da Câmara, para pegar esse projeto, pela importância que ele tem (Dep. Angela Amin PP/SC).
Com esse novo processo de debate do Projeto de Lei, os grupos envolvidos anteriormente na elaboração se reativaram. Foi feita grande mobilização pelas entidades com assento no ConCidades para que se influísse na elaboração do relatório de Angela Amin e do parecer da Comissão, como se pode averiguar nos informativos das entidades. A sugestão do petit comitê do ConCidades foi divulgada largamente, inclusive com o formato didático de se expor ponto a ponto como era o PL original e quais complementos se procurava incorporar35. Quando chegou o momento da relatora Angela Amin apresentar seu relatório, os atores envolvidos celebraram o resultado: Em 19 de maio de 2010, foram aprovados pela Comissão Especial do Transporte Coletivo Urbano, da Câmara Federal, o relatório e 35. Disponível em www.antp.net/biblioteca/PrjtLei1687_2007.pdf.
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o substitutivo da deputada Angela Amin ao Projeto de Lei 694/95, que institui a política nacional de mobilidade urbana. O texto do substitutivo cria diretrizes para uma política nacional de mobilidade urbana e para a regulação dos serviços de transporte público coletivo. E também define atribuições da União, dos Estados e dos Municípios quanto à matéria e estabelece direitos dos usuários (Movimento Nacional pelo Direito ao Transporte Público de qualidade para todos, 2010 (maio)). A Angela pegou nossa proposta, ignorou as audiências públicas que ela mesma tinha feito e ficou com nossa versão do PL. Só dois artigos ela não usou. O da preferência pela população de baixa renda – não entendi porque ela não pegou esse – e o artigo sobre os condicionantes de investimento nas cidades, que era o nosso jeito de amarrar o projeto (Nazareno Affonso). Nós fizemos diversas audiências públicas, com todos os setores envolvidos, os prefeitos, os sindicatos, as empresas de transporte, aproveitamos todo o movimento que orientou o Ministério das Cidades para a elaboração do Projeto de Lei. Eles tiveram também sua participação nas audiências. [...] O Fórum deve ter participado de todas as audiências da Comissão, foram os mais presentes. [...]. Agregamos muitos pontos, outros não por questão única e exclusiva jurídica, a constitucionalidade. O diálogo foi um diálogo bastante maduro e de entendimento das limitações em agregar aquilo que o Fórum defendia (Angela Amin).
A proposta feita no âmbito do ConCidades estabelecia mudanças em 12 dos 30 artigos constantes do projeto encaminhado pelo Executivo ao Congresso em agosto de 2007, e também sugeriu a 72
inclusão de quatro novos artigos. Essa proposta foi validada pelo plenário do Conselho e publicada no Diário Oficial da União sob o formato de resolução36. O artigo 1º desta resolução aprova as propostas de aperfeiçoamento do projeto de lei sugeridas pelo CMTU e o artigo 2º recomenda ao Ministério das Cidades “que gestione junto à Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República a aprovação do projeto de lei com as alterações contidas no anexo desta resolução”. Poucos pontos não foram contemplados. Entre eles, a proposta de fundo para mobilidade urbana, o uso da CIDE37 para reinvestimento e o de políticas para acesso da população de baixa renda. Talvez o mais substantivo fosse o artigo que condicionava que novos investimentos em municípios e estados deveriam ter políticas de mobilidade urbana em consonância com as diretrizes da Lei para receberem verba federal. Porque tirar os condicionantes: porque é o perfil do Partido Progressista, da orientação do Ministério agora. O forte são as emendas parlamentares, é a política da distribuição, é a política distributiva [risos]. Condicionar repasse e investimento vai na lógica contrária (Angela Amin).
Ao final de sua tramitação no Senado, foi feita articulação para não se promover emendas de conteúdo, apenas de redação, para se evitar que o PL tivesse que voltar à Câmara dos Deputados e ter sua aprovação atrasada. A versão sancionada pela presidente Dilma teve cinco artigos vetados, sendo o mais importante 36. Disponível em https://bit.ly/2LIHjB4 37. Contribuição sobre Intervenção no Domínio Econômico.
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relacionado à fonte de financiamento das tarifas (artigo 8º). Os artigos da lei são analisados mais adiante nesse trabalho. Por articulação do Ministério da Fazenda, vetou-se o dispositivo que garantia financiamento para as isenções. Da maneira que a lei foi sancionada, as gratuidades de alguns usuários são pagas pelos demais usuários do transporte coletivo, como se pode perceber pelo texto original relacionado à política tarifária: Art. 8º O regime econômico e financeiro da concessão ou permissão do serviço de transporte público coletivo será estabelecido no respectivo contrato, com tarifas de remuneração fixadas no serviço pelo preço. § 1º Entende-se por serviço pelo preço o regime econômico e financeiro mediante o qual as tarifas iniciais de remuneração ao operador pelos serviços prestados são fixadas no contrato de concessão ou permissão resultante de licitação pública e reajustadas em ato específico do poder público que autorize a aplicação de novos valores, nas condições do respectivo edital e contrato. § 2º Os reajustes tarifários observarão a periodicidade mínima anual, baseados na variação de índices de preços ao consumidor pré-estabelecidos em contrato, e incluirão a transferência de parcela dos ganhos de eficiência e produtividade das empresas aos usuários. § 3º As revisões tarifárias ordinárias terão periodicidade mínima de quatro anos e deverão: I – Incorporar parcela das receitas alternativas em favor da modicidade tarifária; II – Incorporar índice de transferência de parcela dos ganhos de eficiência e produtividade das empresas aos usuários; e III – Aferir o equilíbrio econômico e financeiro da concessão ou permissão, conforme parâmetro ou indicador definido em contrato.
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§ 4º O Poder Público poderá, em caráter excepcional e desde que observado o interesse público, proceder à revisão extraordinária das tarifas, por ato de ofício ou mediante provocação da empresa, caso em que esta deverá demonstrar sua cabal necessidade, instruindo o requerimento com todos os elementos indispensáveis e suficientes para subsidiar a decisão dando publicidade ao ato. § 5º O operador do serviço, por sua conta e risco e sob anuência do Poder Público, poderá realizar descontos tarifários, inclusive de caráter sazonal, sem que isso possa gerar qualquer direito à solicitação de revisão tarifária.
Vale reforçar a ótica escolhida para narrar o processo de construção dessa Lei. A partir de uma demanda pautada dentro do ConCidades, a equipe da SeMob (que possuía trajetória de engajamento político comum com vários integrantes do Conselho) iniciou processo próprio para elaborar o PL. Voltou ao Conselho das Cidades para mostrar o resultado deste processo de elaboração (que não foi interno ao Ministério, incluiu audiências públicas em mais de 10 cidades). Mudou-se o Ministro e o perfil da equipe passou a ser de “operadores da política”, conforme relatado em entrevista. O anteprojeto estava parado na Casa Civil e por uma “contingência política”, o projeto foi então enviado à Câmara, como resposta a uma demanda da Frente Nacional de Prefeitos. Foi designada como relatora a deputada Angela Amin, que era do mesmo partido que o ministro Márcio Fortes. Naquele momento, o ConCidades aproveitou para se constituir como o interlocutor em defesa da aprovação do projeto e de sua melhoria, com razoável sucesso. Cabe destacar que em 2015, após a mobilização da sociedade civil em defesa de transporte público, se aprovou a proposta de 75
emenda à Constituição de autoria da deputada Luiza Erundina (PSOL-SP) e ex-prefeita de São Paulo, que incluiu a questão do transporte no rol de direitos garantidos no artigo 6º da Constituição Federal. Essa movimentação política pode ser uma ilustração tanto da ideia de sociedade civil em Gramsci, que é ativa e interage nas estruturas do Estado, como da ideia de Estado Ampliado, ao se perceber o círculo envolvido na elaboração do PL. A prática se colocou além do olhar dicotômico entre Sociedade/Estado. A sociedade civil se colocou, nesse caso, como a articuladora de consensos. Não atuou nem tão autonomamente em relação ao Estado, como poderiam sugerir alguns liberais, e nem tão subordinadamente, conforme a preferência de alguns analistas que privilegiam as estruturas partidárias em relação aos movimentos sociais. O caso analisado se torna ainda mais interessante ao se perceber momentos de trajetórias partilhadas e trajetórias diferentes entre SeMob e Concidades, e seus impactos na maneira de se construir projetos políticos. Mesmo em outras pautas, que não a mobilidade urbana, se percebeu que a primeira gestão do Ministério das Cidades fugiu à lógica dicotômica da relação Sociedade/Estado: De qualquer forma, a análise desenvolvida ao longo desse artigo indica a inegável capacidade de incidência do FNRU na esfera política, interferindo no desenho e na gestão das políticas urbanas nacionais. Comparando-se as propostas presentes nas plataformas apresentadas pelo FNRU aos órgãos governamentais com as políticas efetivamente implementadas pelo governo federal, através do Ministério das Cidades, percebe-se como estas últimas incorporaram as propostas
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reformistas. Além disso, é preciso considerar que a correlação de forças no interior da coalização partidária que sustenta o governo federal possibilitou uma composição de pessoas no interior do Ministério das Cidades comprometida com a agenda da reforma urbana, o que, por diversas vezes, gerou iniciativas que não faziam parte das plataformas da reforma urbana elaboradas pelo Fórum, mas que estavam em absoluta sintonia com seu ideário. Daí a dificuldade, em diversas situações, de separar as iniciativas do Fórum Nacional de Reforma Urbana das do governo federal, tendo em vista que nesses casos seria mais adequado falar de iniciativas compartilhadas (Santos Júnior, 2009, p. 18).
Pelo aqui exposto, é altamente crível que se tenha assistido a um processo não só de mera disputa por concepções de política, mas a uma movimentação dinâmica de incorporação de uma bandeira que era tanto do grupo original que desenhou o Ministério das Cidades (que já tinha trajetória de espaços públicos alternativos anteriormente) como daqueles que se mantiveram fora do governo, mas representados no Conselho das Cidades. O período de divergência entre SeMob e ConCidades em relação a apenas um ponto programático (isenção fiscal) e outros menores do PL 1687/2007 pode ser visto não como movimento de oposição ou descrédito/deslegitimação entre eles, mas como processo de negociação política que poderia ter ocorrido igualmente quando todos estavam trabalhando em seus espaços anteriores. Um ponto programático que estava acordado entre SeMob e ConCidades – a questão dos condicionantes de investimentos para municípios que estivessem de acordo com a Lei – teve que ser abandonado, para que se aproveitasse o momento propício 77
à tramitação do PL. Como afirma Alexandre Gomide, em seu empreendimento teórico de autorreflexão: Para um problema entrar na agenda é determinante o processo político – e este tem uma dinâmica própria. Uma conjuntura política favorável para um problema entrar na agenda pode vir tanto de uma mudança de governo, que traz novos atores ao poder, como da atuação das forças organizadas da sociedade, que têm sucesso em levar suas demandas ao governo, como ainda das mudanças no “clima nacional” (national mood), ou seja, de uma situação onde as pessoas, por um determinado período de tempo, compartilham das mesmas questões. Assim, não é a existência de uma solução que faz com que um problema seja inserido na agenda, transformando-se numa política: é necessário um contexto favorável no qual o problema seja reconhecido. Também não é apenas o contexto favorável que resulta na decisão de uma política: é preciso que o problema seja reconhecido e que existam soluções viáveis e aceitáveis. Portanto, é a conjunção dos três fluxos (problems, policies, and politics) que abre uma “janela de oportunidade” (policy window) para que uma questão vá para a agenda de decisão – do mesmo modo, uma “janela” se fecha quando um dos fluxos se desconjunta dos demais (Gomide, 2008, pp. 8-9).
Para complementar a análise de Gomide, vale apontar que diversos são os fatores que determinam a “aceitação” de uma solução. É nesse processo de construção política da aceitação de soluções que se percebem mais claramente as disputas que ocorrem entre forças que se pretendem hegemônicas e os processos de concessão e incorporação entre pontos de propostas políticas. Como apontou uma das entrevistas:
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Ela [Angela Amin] é do PP. O Márcio é do PP. Ela ganhou apoio político do Conselho. Ela foi inteligente. Na gestão PT no MCidades se entrava em confronto com o Conselho. Eles [do PP], não. Ela incorporou38. Hoje o PL é uma bandeira. Quem critica ele? Ninguém crítica mais ele hoje. Ele é um marco. Ele deslegitima a preferência pelo automóvel. Ele está dizendo que pode fazer pedágio urbano, está dizendo que bicicleta é prioridade, ônibus é prioridade, pedestre é prioridade. Ele é amplo (Nazareno Affonso).
Não se pretende aqui fazer nenhuma leitura negativa desse processo de incorporação (Williams, 1979). Pelo contrário. Após um período de muitas agendas da SeMob, atores diversos dentro e fora do ConCidades envolvidos na elaboração, desentendimentos e disputas por alguns pontos do PL, ao mesmo momento em que o recém-criado MCidades se estruturava, o cenário por algum tempo deu a entender que todo o esforço empreendido parecia ter sido em vão para os participantes do processo. Após a chamada “inflexão conservadora” (Santos Júnior, 2009, p. 16) do Ministério das Cidades com a entrada de quadros do PP, que não possuíam a trajetória comum que era partilhada antes entre SeMob e integrantes do ConCidades, houve um período de “não disputa”39 dentro do tema porque mobilidade urbana sequer era prioridade na agenda do novo Ministério. No âmbito da tramitação legislativa, o resgate da 38. Grifo da autora. 39. Uma das falas apresentadas aqui colhida em entrevista com Nazareno Affonso afirma que a gestão do PT entrava em confronto com o Conselho das Cidades. É rico perceber como, de fato, por algum tempo, se conseguiu institucionalizar a disputa por políticas públicas sem que ela fosse negociada como uma agenda oculta de alguns setores.
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pauta se deu justamente por uma parlamentar que pertencia ao mesmo partido do ministro Márcio Fortes, com saldo positivo na visão de integrantes do ConCidades. É verdade que por diversas vezes parlamentares dos partidos da “situação” possuem maior facilidade de aprovação de suas proposições em função, principalmente, de trocas de apoio (sejam votos, recursos, cargos ou outros recursos facilmente mensuráveis). E é também verdade que outras vezes, como no caso aqui estudado, é necessário agregar instâncias externas ao Congresso para aumentar a compreensão desses sistemas de produção legislativa, sob pena de se caricaturar ricos processos de elaboração de políticas.
Mercantilização do transporte e direito à cidade A cidade é usada como arma para sua própria retomada: sabendo que o bloqueio de um mero cruzamento compromete toda a circulação, a população lança contra a si mesma o sistema de transporte caótico das metrópoles, que prioriza o transporte individual e as deixa à beira de um colapso. Nesse processo, as pessoas assumem coletivamente as rédeas da organização de seu próprio cotidiano. Movimento Passe Livre, SP, 2013 O processo que levou à proposição e execução de algumas obras de mobilidade nos anos prévios à Copa do Mundo, ainda que não tenha significado a resolução dos problemas que seriam supostamente o alvo dos investimentos, conforme anunciado 80
pelo próprio governo federal, colocou a questão da mobilidade com maior intensidade na agenda política do país. As expectativas geradas de maneira geral na sociedade, ampliada pelos governantes locais, somaram-se ao desconforto diário da população em seus deslocamentos. No Brasil, de acordo com o Censo 2010, 11,4% dos trabalhadores levavam mais de uma hora para chegar ao trabalho naquele ano. No ano em que foram anunciadas as 12 cidades-sede, 2009, a pesquisa de percepção encomendada pela Rede Nossa São Paulo e feita pelo IBOPE apontou que o transporte na cidade recebia nota de 3,3, numa escala de 1 a 10 em termos de satisfação, mostrando a grande insatisfação da população com a qualidade de seus deslocamentos diários. O fato da lista de empreendimentos divulgada na Matriz de Responsabilidade parecer desconexo de uma visão mais integrada de cidade e políticas urbanas de inclusão suscitou diversos debates entre movimentos sociais e entre urbanistas. No período que antecedeu a Copa, o país estava num momento conhecido como quinquênio virtuoso, em que a economia e a renda cresceram. Nesse cenário, é esperado que o consumo de bens ditos “superiores”40 acompanhe o crescimento da renda, sem a necessidade de maiores incentivos. Conforme o gráfico 2, nota-se que, a partir do alcance de determinada faixa de renda, os gastos com aquisição de veículo privado (bem superior) disparam. Ou seja, tão logo as pessoas encontram condições de sair do transporte público, elas migram para o carro. 40. Um bem é considerado superior quando um crescimento na renda do consumidor gera um efeito de aumento mais que proporcional na sua demanda. Por exemplo, o aumento de 1% na renda do consumidor gera aumento de 3% na sua demanda. Isso significa que a demanda desse bem é altamente elástica à renda, com elasticidade superior à 1.
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Gráfico 2: Gastos per capita com transporte coletivo e veículo privado de acordo com faixas de renda
Fonte: (Carvalho, 2014)
Entretanto, o que se viu, foi que o governo brasileiro atuou e investiu de diversas formas para incentivar a aquisição de automóveis, sob o pretexto de manter os empregos da indústria automobilística local num contexto de crise econômica global. Não se deve subestimar, além da decisão de executar uma política econômica anticíclica, o fato de que, o próprio presidente Lula, de origem metalúrgica, via e apresentava com orgulho o fato de muitas famílias poderem finalmente ter seu carro na garagem. Segundo especialistas, essa medida não era necessária no período, visto que já existia uma tendência de aumento acelerado do consumo de automóveis, dado o crescimento da renda no país no período e o automóvel sendo um bem com alta elasticidade renda41. Por exemplo, conforme se conclui pelos resultados do estudo de Carlos Henrique Carvalho, do IPEA, outro 41. Há uma crítica ainda de os incentivos fiscais terem sido absorvidos e convertidos pelas montadoras em remessas de lucros para o exterior.
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efeito negativo dessa política foi o forte desincentivo ao uso do transporte público: Ao mesmo tempo, pode-se verificar que somente as famílias de mais baixa renda aumentam seus gastos com transporte coletivo quando há elevação de seus rendimentos, já que, nas famílias de maior poder aquisitivo, a elasticidade-renda dos gastos per capita com transporte coletivo passa a ser negativa, indicando uma fuga por parte destas pessoas da modalidade de transporte público (Carvalho, 2014).
O gráfico 3 mostra em maior detalhe a curva do transporte coletivo, anteriormente apresentada em conjunto com a do veículo individual. Nota-se que a partir de determinada faixa de renda, os gastos com transporte coletivo se estabilizam, para num momento seguinte caírem, pois este passa a ser trocado por carros e motos. Além disso, o gasto das famílias geral com transporte em geral se amplia enormemente devido à aquisição de veículos particulares. Gráfico 3: Gastos per capita com transporte coletivo de acordo com faixas de renda
Fonte: (Carvalho, 2014)
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É importante perceber que há uma dimensão da não mobilidade ocasionada pela pobreza nos grupos de classe de renda mais baixa, que têm gasto pequeno com transporte coletivo, provavelmente por não terem renda suficiente para arcar com mais viagens. Até certo ponto, o aumento da renda implica no aumento do uso do transporte coletivo, o que indica que as famílias de baixa renda realizam um número menor de deslocamentos do que o desejado e o que permitiria atender parte de suas necessidades. Isso mostra a importância da subvenção social ao transporte público. O acesso do trabalhador à riqueza do espaço urbano, que é produto de seu próprio trabalho, está invariavelmente condicionado ao uso do transporte coletivo. As catracas do transporte são uma barreira física que discrimina, segundo o critério da concentração de renda, aqueles que podem circular pela cidade daqueles condenados à exclusão urbana. Para a maior parte da população explorada nos ônibus, o dinheiro para a condução não é suficiente para pagar mais do que as viagens entre a casa, na periferia, e o trabalho, no centro: a circulação do trabalhador é limitada, portanto, à sua condição de mercadoria, de força de trabalho (MPL-SP, 2013, p. 15).
Nessa linha, o aumento da renda dos grupos mais pobres da sociedade trouxe mais passageiros para o transporte público, como explica Carlos Henrique Carvalho: O fato de a elasticidade-renda dos gastos com transporte coletivo apresentar sinal positivo e valor modular maior nos estratos mais baixos é um fator importante para explicar a inversão da tendência de queda do volume de passageiros transportados pelos sistemas de
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ônibus urbano desde 2003 (NTU, 2012). Observou-se que a renda das famílias dos estratos mais baixos teve uma variação real superior à dos estratos mais altos de renda, principalmente nos 10% de famílias mais pobres, que tiveram uma taxa de crescimento de renda cerca de cinco vezes maior que a observada para os 10% mais ricos (Ipea, 2012) na última década. Isto significa que as pessoas, nesse segmento menos favorecido, passam a utilizar muito mais os sistemas de transporte público sem que haja migração de uso para o transporte individual, impactando positivamente a demanda final destes serviços (Carvalho, 2014, p. 17).
Pelo que se observa, os usuários do transporte público costumam ser prejudicados em termos inflacionários em maior grau que o público que adquire veículos motorizados próprios para se locomover. O gráfico 4 mostra que de 1999 a 2012, o aumento das tarifas de ônibus urbano foi bem acima da inflação e superior ao crescimento dos preços de todos os demais meios de transporte motorizados. Além disso, na medida em que as tarifas de ônibus crescem mais que a inflação (sem melhorias equivalentes), o número total de passageiros decai (gráfico 5). Isso coloca o país em um ciclo vicioso, já que a redução do número de passageiros contribui para o encarecimento da tarifa, com o aumento dos custos por passageiros, dado que parte significativa dos custos de manutenção são fixos (como a aquisição dos veículos e operação humana). Nesse cenário, deixar de cobrar taxas como a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE) se torna uma injustiça tributária. É uma contradição o governo federal anunciar a mobilidade urbana como uma grande bandeira e, ao mesmo tempo, renunciar à arrecadação da CIDE para baratear o acesso 85
à gasolina e se recusar, no momento em que volta a arrecadar essa contribuição, a utilizá-la para baratear o transporte público (conforme a proposta da Frente Nacional dos Prefeitos de municipalizar a contribuição). Ao se tratar da questão da inclusão social no acesso ao transporte, a questão da CIDE será abordada com mais detalhes mais adiante. Gráfico 4: Evolução dos preços dos principais insumos de transporte privado, tarifas de transporte público e índice geral do IPCA (1999-2012)
Fonte: IBGE, Elaboração: (Carvalho, 2014)
Gráfico 5: Evolução real das tarifas de ônibus urbano, da inflação (INPC) e do volume de passageiros pagantes nos sistemas de ônibus urbano 1 – Brasil metropolitano, 1995-2008. (Taxa acumulada, em setembro de 1995 = 1)
Fonte: Carvalho; Pereira (2011, p. 17)
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Como resultado da política macroeconômica que buscou proteger o país da grande crise de 2008, o incentivo ao consumo de veículos motorizados, carros e motos, resultou efetivamente no aumento da taxa de motorização no Brasil. O governo deixou de recolher desde 2008 mais de R$ 26 bilhões em função da desoneração dos automóveis. Como se pode ver no Gráfico 6, esse aumento se deu a taxas crescentes, com uma inclinação da curva perceptivelmente maior no final da primeira década dos anos 2000. Isso se deu, vale ressaltar, de modo mais bem-sucedido que em programas similares realizados pelo governo FHC, que tentaram, sem sucesso, deslanchar a produção da indústria automobilística no país. Somente nos últimos dez anos, o número de automóveis no país cresceu 138,6%, enquanto a população brasileira teve expansão de apenas 12,2% no mesmo período. Gráfico 6: Evolução da frota de automóveis no Brasil – 2001 a 2014
Fonte: Observatório das Metrópoles, elaboração a partir de dados do DENATRAN
É importante observar que a taxa de motorização brasileira, comparada com a de outros países, ainda é relativamente baixa. 87
Contudo, nos países desenvolvidos, em geral, a posse do veículo motorizado não significa que este seja o principal meio de transporte das famílias. Ao contrário, no Brasil, a necessidade da posse vem atender a necessidade de deslocamentos que não são realizadas satisfatoriamente via transporte público coletivo, como foi mostrado acima. Assim, o crescimento das taxas de motorização implica quase sempre, no Brasil, o crescimento do uso diário do carro ou da moto como principal meio de transporte (Gráfico 7). Essas medidas tiveram impacto enorme na dinâmica interna das cidades brasileiras. Os dados do gráfico 7 ajudam a contextualizar o ponto de partida das cidades antes do boom da indústria automobilística (2009-2012). Percebe-se que em quase todas as capitais onde a taxa de motorização era inferior a 20 autos por 100 habitantes, esse índice mais que dobrou em 13 anos. E nas capitais onde esse índice era mais elevado, ainda sim houve grande crescimento. A motorização sem política urbana de trânsito e sem tratamento adequado das rodovias agravou um antigo problema de saúde pública, principalmente relacionado ao aumento do uso da moto. A partir de 2010, o Brasil alcançou números muito elevados relacionados às mortes no trânsito (Gráfico 9). No acumulado entre 2000 e 2013 houve um aumento de 50%, segundo dados do DATASUS (caso se tomasse como base os dados do DPVAT, esse número seria ainda maior). Esse é mais um dado que mostra a insustentabilidade da adoção desse modelo de transporte. Ainda que se considere o dado de forma relativa ao tamanho da população, os resultados da violência no trânsito ainda são extremamente elevados, como se observa no Gráfico 10, onde a grande oscilação negativa deveu-se a aprovação do Código de Trânsito em 1997. 88
Gráfico 7: Taxa de motorização por automóveis no Brasil – 2001 a 2014 (nº de auto/100 hab.)
Fonte: Observatório das Metrópoles, elaboração a partir de dados do DENATRAN
Gráfico 8: Taxa de motorização por automóveis nas regiões metropolitanas – 2001 e 2014
Fonte: Observatório das Metrópoles, elaboração a partir de dados do DENATRAN
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Gráfico 9: Mortes no trânsito entre 2000 e 2013
Fonte: DATASUS
Gráfico 10: Taxa de óbitos em acidentes de trânsito por 100 mil habitantes. Brasil 1980-2011
No Brasil, no ano de 2011, 66,6% – dois terços – das vítimas no trânsito foram pedestres, ciclistas e/ou motociclistas, mas as tendências nacionais da última década estão apontando uma evolução marcadamente diferencial do resto do mundo, de acordo com o Relatório Mapa da Violência 2013 (Waiselfisz J. J., 2013): 90
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Quedas significativas na mortalidade de pedestres; Leve aumento da mortalidade de ocupantes de automóveis e Pesados aumentos na letalidade de motociclistas.
Entre 1996 e 2010, o número de mortes no trânsito cairia de 33,9 mil para 27,5 mil caso as mortes de motociclistas fossem retiradas do cálculo, mostrando o fator de risco que esse modal vem envolvendo. Isso significaria uma diminuição de 18,7% no período, ao invés do aumento de 22,6%. As taxas cairiam mais ainda: de 21,6 óbitos para por 100 mil habitantes em 1996, para 14,4 em 2011; uma queda bastante significativa: de 33%, ao invés de permanecer estagnada acima de 20 óbitos por 100 mil habitantes (Waiselfisz, 2013, p. 25). O fato das mortes de motociclistas crescerem num ritmo ainda mais acelerado que o grande crescimento da frota de motos no país mostra o risco envolvido em se comemorar o aumento da aquisição de motos pela população, como se significasse uma melhoria na qualidade de vida das pessoas que adquirem esse bem, muitas vezes se endividando apenas para viabilizar uma alternativa a um transporte público ineficiente. É crucial entender a morte como episódio extremo de violência, visto que nem toda violência resulta em morte. A banalização das mortes no trânsito passa inclusive pela conceituação popular desse tipo de evento, chamados de “acidentes”, mesmo se tratando de mortes que poderiam ser facilmente evitadas, com políticas de redução dos limites de velocidade, sinalização e educação. Como apontou o organizador do estudo “Mapa da Violência”, divulgado pelo Instituto Sou da Paz: As taxas de mortalidade no trânsito nos indicam algo além do número de mortes. Apontam os modos de sociabilidade nas vias
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públicas, a eficiência dos mecanismos de gestão do trânsito, os níveis de segurança dos veículos, das ruas, os mecanismos de fiscalização, as respostas aos acidentados etc (Waiselfisz J. J., 2012, p. 30).
Dentro do debate sobre a mortalidade no trânsito, vem ganhando espaço, em especial entre os países membros da OCDE, o conceito de “Visão Zero”, inspirado na política de trânsito sueca, que tem como pressuposto que nunca pode ser eticamente aceitável que alguém morra ou fique gravemente ferido enquanto se desloca pelo sistema rodoviário de transporte. Dentro dessa ótica, zero não é um número a ser alcançado em uma data específica, mas uma visão da segurança do sistema que ajuda na construção de estratégias e no estabelecimento de metas (Waiselfisz J. J., 2013, p. 10).
O aumento do consumo de veículos motorizados, além do pacote de incentivos fiscais à indústria automobilística, se deveu também a ampliação da oferta de crédito as famílias, em particular no segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2007-10) e no primeiro mandato da presidenta Dilma Roussef (2011-14). Ou seja, a ampliação das taxas de motorização foi feita às custas do endividamento das pessoas e em detrimento do investimento no transporte público. Dados da Confederação Nacional do Comércio, sobre endividamento das famílias, mostram que o financiamento de veículos está entre os três principais tipos de dívida (tabela 1), tanto entre as famílias com renda de até 10 salários mínimos como de forma mais forte nas de renda superior, sendo a principal diferença entre essas famílias o que se gasta com carnês (18,1% no 92
grupo de até 10 SM) e o que se gasta com o financiamento da casa própria (15,7% no grupo acima de 10 SM). Tabela 1: Tipo de dívida das famílias (% de famílias)
Fonte: CNC, 2014
Os dados sobre o tipo de dívida observados desde 2010 indicam também o aumento constante do endividamento com o financiamento de veículos, facilitado pela redução nos preços e pelo aumento da oferta de crédito para esse tipo de consumo (Tabela 2).
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Tabela 2: Tipo de dívida das famílias (2010-2014)
É interessante resgatar a frase da então presidente da Petrobras, Graça Foster, que numa ocasião afirmou “Acho lindo congestionamento, pois o meu negócio é vender combustível”42, mostrando a importância econômica do consumo de um bem complementar atrelado com consumo de automóveis, que compõe o gasto familiar com transporte. Para além da conhecida exploração do trabalho dentro das jornadas de trabalho regulares, o crescimento dos congestionamentos aprofunda a mercantilização do tempo que poderia vir a se constituir como tempo livre para os trabalhadores, dado que o gasto crescente, seja com tarifa de transporte coletivo, seja com a manutenção dos automóveis privados, torna-se cada vez mais rentável para alguns grupos ligados à indústria automotiva. Conforme afirmam Gomide & Galindo, o maior acesso a bens de consumo não se reflete necessariamente em maior qualidade de vida para a população: 42. Entrevista publicada pelo jornal Zero Hora em 14 de abril de 2013.
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As perspectivas ao final da primeira década do novo milênio mostraram-se, todavia, preocupantes, dado o descompasso entre o ritmo das iniciativas ante os problemas crescentes nas grandes cidades (aumento dos tempos de viagem, poluição do ar e acidentes de trânsito). Isso contribuiu para degradar as condições da vida urbana independentemente da melhoria de renda do trabalho e do maior acesso aos bens duráveis pela parcela mais pobre da população (Gomide & Galindo, 2013, p. 79).
Se observa ainda que, mesmo para os entusiastas do aumento do uso do carro, a falta de sustentabilidade desse modelo não se caracteriza apenas pela questão financeira, mas também pela falta de capacidade das cidades para acomodar grandes frotas de carros em circulação, sem que isso signifique abrir mão do espaço urbano, para transformá-lo em espaço viário ou estacionamento. Como afirma, o engenheiro de trânsito, Roberto Scaringella: Os defensores do modelo clássico não conseguiram ver que em primeiro lugar não existiriam recursos financeiros e, mesmo que existissem, não haveria tempo (a frota dobra a cada dez anos). Caso houvesse tempo e dinheiro, não existiria espaço para ampliar o complexo viário segundo as projeções. Tudo isso frustrou muita gente que insistiu na sangria dos cofres públicos para privilegiar obras em relação aos serviços, resultando em uma cidade ainda desequilibrada sob vários aspectos (Scaringella, 2001, pp. 56-7).
A história da mobilidade urbana no Brasil é marcada pelas pressões do setor automobilístico e cessões são feitas pelo governo federal ao setor desde a era Juscelino Kubitscheck (1955-60). Se há algo que pode se chamar de política de Estado e não de governo, 95
o incentivo ao uso do carro é uma dessas políticas, que se mantém há mais de meio século. Nesse período, de grande aliança do poder público, montadoras e classe média motorizada, foi-se construindo um senso comum, alimentado por políticos “obreiros”, em que o repertório de “soluções” para o transporte cotidiano seria mais e mais ampliações na oferta de espaço viário para o uso do carro: Como poderia desejar um mundo alternativo possível, ou mesmo imaginar seus contornos, seus enigmas e charmes, quando estou profundamente imerso na experiência que já existe? Como posso viver em Los Angeles sem me tornar um motorista de tal maneira frustrado que voto sempre pela construção de mais e mais super-rodovias? (Harvey, 2013, p. 32).
A leitura crítica dessas soluções urbanas só mais recentemente foi apropriada por movimentos urbanos, chegando a finalmente disputar o imaginário e contrapor o senso comum de maneira crítica a essas proposições, como se observa em pesquisa de opinião encomendada pela Rede Nossa São Paulo e feita pelo IBOPE em 2010 (quadro 5). O pacote de incentivos à indústria automobilística coabita esse cenário com uma instância de participação popular, que é o Conselho das Cidades, que contradiz o discurso do PAC Mobilidade, perpassa a relação entre poder público e empreiteiras, dialoga com a reação da classe média motorizada à implantação de faixas de ônibus e recebe as críticas nas ruas através de movimento popular, o Movimento Passe Livre. Os próximos resultados dessa política dependerão da intermediação de conflitos cada vez mais explícitos. 96
Quadro 5: Pesquisa de opinião sobre transportes, 2010
Fonte: IBOPE
A dicotomia entre soluções públicas (de interesse coletivo) e soluções privadas (de interesse individual) é relativa, não havendo necessariamente um conflito entre as duas. Se o ambiente urbano oferece melhores condições de uso do transporte público ou do transporte ativo (pedestres e ciclistas), a melhor escolha, também do ponto de vista individual pode ser aquela que tem os melhores efeitos do ponto de vista coletivo. O transporte, seja coletivo ou privado, é realmente ao mesmo tempo – como todas as mercadorias – valor de uso e valor de troca. Porém, a alocação dos recursos na dinâmica do capital é orientada fundamentalmente pelos valores de mercado, 97
desconsiderando se o valor de uso de um bem servirá para o conjunto da população ou apenas para um nicho particular. Ou seja, prevalece o interesse do capital, já que o sistema é capitalista. A própria PNMU define o transporte coletivo como serviço remunerado por passageiro transportado, definição que se dá a partir da forma de remuneração e não da utilidade do serviço. Assim, embora o transporte coletivo possa ter um valor de uso superior para um grupo maior da população, ele só receberá investimentos comparáveis ao do automóvel se estes se refletirem em um maior valor de troca ou se houver algum tipo de intervenção ou regulamentação consciente sobre os agentes do mercado. Karl Marx já explicitava essa dinâmica, trabalhada posteriormente por Henri Lefebvre em relação à questão urbana e, mais recentemente, por David Harvey, que analisa a relação do capitalismo financeiro com a política urbana. É salutar perceber que o direito a cidade não deve ser concebido como direito individual, só sendo efetivamente conquistado através de lutas coletivas, que podem permitir minimamente a prevalência do valor de uso em detrimento do valor de troca. Nesse sentido, as manifestações com a pauta de transportes de 2013 tiveram seu papel para algumas conquistas, ainda que temporárias, como a manutenção do preço de tarifas de ônibus em cerca de 100 cidades e a suspensão de um processo bilionário de licitação da concessão para empresas de ônibus em São Paulo. Em junho de 2013, o então prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, alegou que um processo dessa magnitude, estimado em 46 bilhões de reais, só poderia ser feito mediante participação popular. Para isso, instituiu o Conselho Municipal de Transportes, possibilitando que o sistema de ônibus passasse por auditoria para auferir seus custos operacionais. O papel das manifestações 98
populares em relação ao transporte é antigo e desde a redemocratização essas ações vêm ganhando cada vez mais corpo e se articulando dentro dos movimentos sociais. Em livro que comentava as manifestações de junho de 2013, analistas afirmam: A evolução da luta pela meia passagem dos anos 1980 para a luta pelo passe livre estudantil dos anos 1990 e dessa para a luta contra o aumento da passagem dos anos 2000 revela uma lógica de luta voltada para a ampliação de direitos que, devidamente desdobrada, remete à tarifa zero e à desmercantilização do transporte para todos. (Judensaider, Lima, Pomar, & Ortellado, 2013, p. 236)
Se o paradigma da gestão democrático popular estava em cheque, uma outra proposta de gestão popular estava sendo demandada na agenda política pela população, evidenciando as limitações e crescente descrença nos mecanismos de participação popular institucionais (Souza, 2008). É assim, na ação direta da população sobre sua vida – e não a portas fechadas, nos conselhos municipais engenhosamente instituídos pelas prefeituras ou em qualquer uma das outras artimanhas institucionais –, que se dá a verdadeira gestão popular (MPL-SP, 2013, p. 16).
Ainda que tais movimentos de rua não encaminhem suas bandeiras de forma articulada e contínua, eles expressam insatisfações e expectativas sentidas pela população. A disputa pelo espaço viário urbano foi a grande tônica dos acontecimentos aqui analisados. Numa atuação que poderia parecer produzir ações contraditórias, o governo federal estimulou o consumo e uso do automóvel, tanto pelos estímulos à indústria automotiva como 99
pelo subsídio ao preço da gasolina, ao mesmo tempo em que anunciava o PAC Mobilidade e promulgava a Política Nacional de Mobilidade Urbana. Na quase total invisibilidade do prometido “legado” da Copa do Mundo, o governo assumiu o papel de reprimir as manifestações e desqualificar a bandeira da Tarifa Zero, levantada pelo Movimento Passe Livre. Em reunião com membros do movimento, realizada em 24 de junho de 2013, em vez da habitual postura de se construir grupos de trabalhos para estudar a viabilidade da proposta, ainda que este encaminhamento não resulte em resultados práticos, a proposta da Tarifa Zero foi apenas descartada de imediato. Dialogando com esse ensejo por um outro modelo de gestão da cidade, Harvey afirma: A criação de novos espaços urbanos comuns [commons], de uma esfera pública de participação democrática, exige desfazer a enorme onda privatizante que tem servido de mantra ao neoliberalismo destrutivo dos últimos anos. Temos que imaginar uma cidade mais inclusiva, mesmo se continuadamente fracionada, baseada não apenas em uma ordenação diferente de direitos, mas em práticas político-econômicas (Harvey, A liberdade da cidade, 2013, p. 33).
Ao mesmo tempo em que essas questões eram colocadas na prática das ruas e de forma pouco coordenada, a contagem regressiva para os preparativos à Copa do Mundo exigia dos governantes celeridade na tomada e implementação das decisões. Os grandes investimentos na segurança pública nos estados que receberam jogos aprofundaram a criminalização de movimentos de contestação, enquanto o espaço público passava a ser cada vez mais militarizado. Isso revela como o poder público enfrentou 100
o dilema entre a cultura do automóvel (que ele mesmo fomentou), as expectativas de boa parte do eleitorado ao qual ele devia prestar contas, os grupos econômicos que o sustentam e a consciência crescente de que esse modelo torna a vida urbana inviável.
Brigada militar fazendo a segurança do mascote da Copa, Fuleco, em Porto Alegre.
Outro aspecto da coalização urbana e dos estímulos a segmentos da economia deu-se no setor imobiliário e das empreiteiras. A implosão de antigos estádios, para dar espaço aos “estádios padrão FIFA”, se tornou um ícone de modernização, tal como analisado por Mike Davis em seu livro Cidades Mortas, de 2007. A necessidade de destruição e reconstrução do ambiente urbano pautou processos violentos de criminalização dos movimentos sociais (centenas de pessoas foram cercadas e detidas de modo arbitrário, algumas com base em leis de combate ao crime organizado) e a remoção de famílias em quase todas as cidades-sede dos jogos do campeonato. 101
O que a frase no cartaz ao exigir “educação padrão FIFA” não explicava era que o padrão FIFA constituía-se de maneira essencialmente privatista e excludente, num alegado padrão de qualidade que atende a finalidade da exclusão, higienização urbana e elitização dos espaços, acompanhado de ostensivo efetivo de segurança para manter suas características inabaláveis, ocasionando despejos de família, perseguição a ambulantes e criminalização das manifestações contrárias a essa lógica de ocupação do espaço urbano. Brasília foi uma das exceções onde a remoção de famílias não foi necessária, pois as obras não atingiam áreas residenciais. Entretanto, vale ressaltar que o dinheiro necessário para a construção do Estádio Nacional Mané Garrincha foi obtido através da venda de terras públicas por parte da Agência de Desenvolvimento do Distrito Federal (Terracap), cuja principal missão, segundo a própria instituição, é “Assegurar a gestão das terras públicas e a oferta de empreendimentos imobiliários sustentáveis, promovendo o desenvolvimento econômico-social e a qualidade de vida da população do DF e entorno”. O processo de especulação imobiliária promovido pela própria Terracap na venda de terrenos, ainda que não tenha causado remoções, revela muito sobre o contexto em que ocorre a política habitacional da capital. Vale aqui explicar o histórico, funcionamento e papel da TERRACAP na dinâmica imobiliária em Brasília. Durante a construção da nova capital, a Terracap era um departamento imobiliário da Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil (Novacap). Uma particularidade é que com a criação do Distrito Federal os terrenos foram tornados de propriedade da União, tendo esse monopólio da propriedade da terra, em tese, o papel de regulador do loteamento e crescimento urbano local. Com a 102
consolidação da gestão urbana do DF, houve a necessidade de desmembramento das atividades imobiliárias, dos serviços de urbanização e dos serviços de parcelamento e venda do solo. Institucionalizada com a lei nº 5.861, de 1972, a Companhia Imobiliária de Brasília (Terracap), empresa pública, teria como finalidade gerir o patrimônio imobiliário do Distrito Federal. Do seu capital social, 51% pertencem ao DF e 49% à União. A Empresa, atualmente, está vinculada à Governadoria do Distrito Federal. Em 2011, foi dado papel de Agência de Desenvolvimento por meio da lei distrital nº 4.586, de 2011, dando à Terracap maior legitimidade para executar as políticas de desenvolvimento econômico e social no distrito federal. Na sua competência, estão simultaneamente dois papéis, dentre outros, que aqui destacamos, retirados do site da empresa: Função social da terra: a Terracap cede ao GDF áreas para implantação de programas sociais de habitação destinados à população de baixa renda; Financiamento de grandes obras: a Terracap repassa ao GDF os recursos financeiros que arrecada com a venda de lotes. Esses recursos são aplicados em diversas obras de infraestrutura, inclusive em grandes projetos que contemplam todo o DF como: Ponte JK, Metrô, Estádio Nacional de Brasília, Feira da Torre, Nova Rodoviária, Torre Digital, Centro de Convenções Ulysses Guimarães.43
É evidente que esses dois papeis correm em disputa entre si, pois para o ente público torna mais interessante a venda de terrenos para capitalizar recursos para suas obras do que a destinação 43. Disponível em https://bit.ly/2JTC7IG (acessado em 14/3/16)
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dos mesmos para programas sociais de habitação. A especulação imobiliária na destinação dos terrenos, nesse caso, torna-se algo a ser promovido pelo próprio poder público, em vez de regulada e combatida. Ao ter se tornado a principal financiadora de obras de infraestrutura do Governo do Distrito Federal, a Terracap tem na venda de lotes sua atividade de maior relevância. O governador José Roberto Arruda, ao tomar a decisão de não aceitar recursos federais para a construção do Estádio Nacional Mané Garrincha (e com isso a obra deixaria de ser fiscalizada pelo Tribunal de Contas da União) fez com a venda de lotes para empreendimentos imobiliários fosse uma necessidade ainda maior para a Terracap, dado o volume de recursos gastos com o estádio, que se tornou o mais caro do país e segundo mais caro do mundo na época de sua inauguração. A governança urbana dos anos 2000 foi um campo de atuação conjunta da elite política, dos incorporadores imobiliários e dos proprietários fundiários, buscando garantir o máximo de intervenções na cidade, como forma de ampliar a valorização imobiliária de determinados locais. Assim, a necessidade de valorização do território e de sua inserção num “mercado global”, num processo de mudança dos valores de uso e de troca, levou a processos de especulação imobiliária intensos nos locais afetados pelas obras da Copa do Mundo. O desenvolvimento urbano no Brasil desnuda as características mais cruéis de uma sociedade marcada estruturalmente pela desigualdade. As cidades, esses tesouros monstruosos que concentram as grandes conquistas científicas e tecnológicas da humanidade, crescem de acordo com os interesses das grandes corporações financeiras e são o polo de atração de camadas expressivas da população migrante
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em busca de melhores oportunidades. Vivemos o tempo das grandes cidades, das grandes densidades demográficas. As cidades crescem e se tornam espraiadas, entremeadas de espaços vazios, subproduto do capital especulativo imobiliário que expulsa a pobreza cada vez mais para a periferia (Pomar, 2013, p. 15).
Em meio a isso, o processo de urbanização no Brasil passou a contar com alguns elementos, mais fortemente nas cidades-sede, mas também presentes em outras cidades grandes e médias do país. Esse kit modernidade da urbanização brasileira é caracterizado por componentes como: •
• • • •
Pontes suntuosas que não oferecem acesso a pedestres e ciclistas, nem preveem prioridade à circulação de transporte público, muitas vezes superfaturadas; BRTs que já nascem saturados na capacidade, como no Rio de Janeiro e em Brasília; Ciclovias desconexas, sem a preocupação de oferta de uma rede de transporte integrada; Estádios bilionários que se tornaram “Arenas Multiuso”, vulgos elefantes brancos; Expansão contínua das novas periferias, com o suporte de programas habitacionais populares como o Minha Casa Minha Vida44;
44. De acordo com estudo do IPEA, a partir de dados da PNAD, mesmo com 7 milhões de domicílios a mais, no período de 2007 a 2012 a redução no déficit habitacional foi de 350 mil unidades. Embora aquém do necessário, ao menos o déficit parou de crescer. Ao mesmo tempo, a faixa de renda que menos se beneficiou da redução do déficit habitacional foi a das famílias que recebem até três salários mínimos, justamente o público-alvo do Minha Casa Minha Vida. (IPEA, 2013)
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Surgimento de shoppings voltados para a Classe C, demarcando territórios, como o caso do Shopping JK (Taguatinga, DF); Apropriação do discurso ambiental como estratégia publicitária de lançamento de novos empreendimentos (greenwashing);
Nesse contexto, a urbanização de regiões periféricas “depende do clientelismo político, votos em troca de pavimentação, iluminação púbica, linha de ônibus, posto de saúde etc.” (Maricato, 2013, p. 21). Além disso, “Sem tradição de controle sobre o uso do solo, as prefeituras viram a multiplicação de torres e veículos privados como progresso e desenvolvimento” (Maricato, 2013, p. 23). Esse processo foi ainda catalisado pela celeridade exigida pelos preparativos para a Copa do Mundo. Consequentemente, o padrão FIFA de intervenção urbana tornou-se bastante prejudicial a uma perspectiva de direito à cidade, representando a imposição das regras do capital internacional, acima dos direitos conquistados localmente. Como apontam Etnam (1989) e Gitlin (1980), há uma aceleração dos processos globais, com a percepção cada vez mais forte de que o mundo é menor e as distâncias mais curtas, que os eventos em um determinado lugar têm um impacto imediato sobre pessoas e lugares situados a uma grande distância. A Copa traz essa mensagem consigo ao se fazer conhecida como “o maior espetáculo da Terra”, dada a quantidade de transmissões ao vivo dos jogos por todo o globo. A tendência da cobertura midiática corporativa, aliada aos interesses dos grandes grupos econômicos, é de tornar o que é desejável sob sua ótica algo inevitável para seus telespectadores, por meio da cobrança intensa de prazos para a execução dos mega empreendimentos. O que parece ser uma cobertura crítica da preparação dos jogos, na verdade, 106
configura-se como uma exigência para que tudo ocorra dentro do script. A questão, mais até do que de construção de uma nova agenda, é de framing da agenda existente: a questão não é se o evento deve acontecer, mas como o evento ocorrerá. A narrativa midiática predominante pressupôs então essa inevitabilidade, partindo dela como premissa e com isso bloqueando outras abordagens críticas sobre a pertinência ou não da realização dos megaeventos. Foi feito enquadramento que bloqueia abordagens que sejam críticas não quanto à implementação da Copa, mas quanto à realização do evento em si. Figura 1: Chamada de matéria do jornal Valor Econômico
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Como transformar o direito à mobilidade em indicadores de políticas públicas? Neste capítulo, trabalhou-se na definição das dimensões de análise de políticas públicas de mobilidade. Isso se torna importante, sobretudo no momento de realização da tese que resultou neste livro, quando intervenções urbanas ocorreram de maneira intensificada nas grandes cidades brasileiras. Além dessas dimensões, procurou-se avançar na identificação dos novos atores, nacionais e internacionais, que definiram e financiaram essas intervenções urbanas. No contexto de recepção da Copa do Mundo de 201445 e dos Jogos Olímpicos de 201646, o Brasil teve o maior volume de recursos de sua história a ser investido em políticas de mobilidade urbana. Para isso, linhas de financiamentos específicas foram autorizadas, o limite de endividamento estabelecido pela Lei de Responsabilidade Fiscal foi suspenso, bancos multilaterais voltaram a aumentar seus negócios no país e o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) também entrou em ação para cobrar e financiar projetos de mobilidade das cidades-sede. Em meio aos meganegócios e megaprojetos, as populações atingidas estiveram (e ainda estão no caso do Rio de Janeiro com as Olimpíadas) envoltas no cenário de cidade de exceção, sem apoio jurídico ao qual pudessem recorrer. Para avaliar os impactos desses projetos, tentou-se estabelecer aqui critérios que fogem das propostas 45. As cidades selecionadas para sediar os jogos da Copa do Mundo foram: Belo Horizonte (MG), Brasília (DF), Cuiabá (MT), Curitiba (PR), Fortaleza (CE), Manaus (AM), Natal (RN), Porto Alegre (RS), Recife (PE), Rio de Janeiro (RJ), Salvador (BA) e São Paulo (SP). 46. Realizados na cidade do Rio de Janeiro (RJ).
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de city marketing presentes no cenário de então, buscando apoio no debate sobre direito à cidade. Uma diferenciação importante do modelo de gestão que vem orientando a aplicação desses recursos está relacionada aos prazos colocados pela agenda do campeonato da FIFA. De acordo com a literatura internacional sobre os megaeventos, um dos impactos iniciais é o modelo de megaprojetos implementado para adequar a infraestrutura local aos jogos, que diz respeito aos aeroportos, vias, rede hoteleira e, principalmente, aos estádios. Obras de proporções maiores que as de rotina passam a acontecer em ritmo mais acelerado que o habitual, dificultando a realização de estudos adequados de impacto socioambiental, provocando despejos de famílias e abrindo mão dos critérios técnicos de fiscalização dos projetos (como o aumento do limite de empréstimo dado pelo governo federal para cidades-sedes, contrariando a Lei de Responsabilidade Fiscal). Este seria o estado de exceção das políticas urbanas, exatamente no sentido proposto por Giorgio Agamben, “na situação paradoxal de medidas jurídicas que não podem ser compreendidas no plano do direito” (Agamben, 2004, p. 12). O conceito vem sendo trabalhado no Brasil como a cidade de exceção (Vainer, 2011), no contexto das adequações jurídicas e urbanísticas feitas aos megaeventos. Juntamente com as obras dos estádios e aeroportos, as obras de mobilidade urbana da Copa explicitam a lógica capitalista relacionada aos megaeventos e megaprojetos. Nos locais onde ocorrem, aceleram as gestões locais para dar conta da ansiedade dos prazos estabelecidos, alteram legislações existentes para facilitar sua execução e, como estratégia de convencimento público, tais obras têm seus benefícios superestimados e seus custos subestimados (Flyvbjerg, Bruzelius, & Rothengatter, 2006). 109
Entre os exemplos de casos famosos de megaprojetos com custos que superaram estimativas iniciais são citados: Sydney Opera House (15x), avião supersônico Concorde (12x), canal de Suez e o canal do Panamá (Flyvbjerg, Bruzelius, & Rothengatter, 2006, p. 19). O chamado Eurotúnel, que liga a Inglaterra à França, teve seu preço reajustado para 80% a mais do que o previsto, enquanto que seis anos após aberto (1994), seu movimento era menos da metade do previsto para o primeiro ano de funcionamento (Idem, 2006, p. 22). Como parte dos procedimentos comuns encontrados na execução dos megaprojetos, é percebido que os instrumentos usuais são suplantados dos ciclos de gestão, em quaisquer das fases possíveis, conforme ciclo ideal de accountability (Figura 2): Figura 2: Ciclo ideal de accountability
(Flyvbjerg, Bruzelius, & Rothengatter, 2006, p. 113)
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Talvez o exemplo mais claro desse déficit democrático trazido pelos megaprojetos, como chamado por Flyvbjerg, seja o pleito de alteração da lei das licitações, a 8.666/93. O Regime Diferenciado de Contratação (RDC), que substituiu a lei de licitações para as obras relacionadas à Copa, às Olimpíadas e ao PAC47, promoveu alterações que reduzem a possibilidade de controle público sobre as obras e aceleração/supressão de etapas habituais do procedimento de contratação. Entre as alterações feitas, estão: licitar obra sem necessidade de projeto básico, aumento do valor (aditivo) torna-se ilimitado para que projetos se adequem a pedidos de organismos internacionais (FIFA e COI) e a licitação pode indicar uma marca específica para aquisição de um produto. Faz-se necessário cuidado com a gestão de megaprojetos, cujas falhas são mais atribuídas ao atropelo do modelo de gestão sem accountability do que a tecnologias ou metodologias falhas para seu planejamento (Flyvbjerg, Mette, & Soren, 2002)48. Dado o grande volume de recursos, há chances de investimentos serem feitos, mas sem melhorias efetivas na mobilidade das cidades, o que pode levar a um elevado custo com o endividamento dos governos municipais e estaduais. Ou seja, os possíveis erros cometidos com esses projetos podem levar décadas para serem reparados. Como grande volume de dinheiro investido não significa necessariamente a solução de um problema, corre-se ainda o 47. Inicialmente, o RDC estava previsto apenas para funcionar nas obras relacionadas à Copa e às Olimpíadas, mas foi expandido também para obras do PAC, como no caso do PAC Mobilidade Cidades Médias. 48. Em especial pelo padrão dos custos serem subestimados em obras por mais de 80 anos, sem que nenhum aprendizado tenha sido feito, acredita-se que essa subestimação dos custos seja estratégia de convencimento da viabilidade da obra.
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risco de se ter uma piora da situação após os eventos, a se confirmar nos anos seguintes, apesar deste ter sido o maior volume de recursos gasto na história do país na área de mobilidade urbana. Flyvbjerg chama essa situação de o “paradoxo dos megaprojetos”. Ao analisar mais de 200 megaprojetos, em especial na área de transportes, o autor propõe a seguinte questão sobre situações similares à vivenciada pelo PAC (na modalidade de Estado financiador dos megaprojetos): Pode o governo agir eficazmente tanto como promotor de megaprojetos e ao mesmo tempo como o guardião dos interesses públicos como proteção ambiental, segurança e bom uso do dinheiro público? (Flyvbjerg, Bruzelius, & Rothengatter, 2006, p. 138)
Modelo de transporte: modelo de desenvolvimento
A erosão das cidades pelos automóveis começa com um tipo de mordida. Pequenas mordidelas no início e eventualmente, grandes mordidas. Uma rua é alargada aqui, outras endireitadas acolá, uma larga avenida é convertida em via de fluxo de sentido único, e mais terra é transformada em estacionamento. Nenhuma etapa do processo é crucial, senão cumulativa, e o efeito é enorme. Jane Jacobs
Tem-se como premissa neste projeto que a mobilidade é uma dimensão crucial do direito à cidade, permitindo a integração entre pessoas e espaços. Essa relação das pessoas com espaços públicos, para Milton Santos, é a base para se construir a distinção 112
entre “espaço”, que é dotado de significados, vida e funções, e “paisagem”, referente apenas às formas de um local (Santos, 2008). Ao mesmo tempo, há uma preocupação de fundo que é a de evitar a privatização dos espaços públicos para assegurar espaços para automóveis. Como apontou Henri Lefebvre: O Automóvel é o Objeto-Rei, a Coisa-Piloto. Nunca é demais repetir. Este Objeto por excelência rege múltiplos comportamentos em muitos domínios, da economia ao discurso. O trânsito entra no meio das funções sociais e se classifica em primeiro lugar, o que resulta na prioridade dos estacionamentos, das vias de acesso, do sistema viário adequado. Diante desse “sistema” a cidade se defende mal. No lugar em que ela existiu, ela sobrevive, as pessoas (os tecnocratas) estão prestes a demoli-la. Alguns especialistas chegam a designar por um termo que tem ressonâncias racionais – o urbanismo – as consequências do trânsito generalizado, levado ao absoluto. Concebe-se o espaço de acordo com as pressões do automóvel. O Circular substitui o Habitar, e isso na pretensa racionalidade técnica. É verdade que, para muitas pessoas, o carro é um pedaço de sua “moradia”, até mesmo o fragmento essencial. Talvez fosse bom insistir em alguns fatos curiosos. No trânsito automobilístico, as pessoas e as coisas se acumulam, se misturam sem se encontrar. É um caso surpreendente de simultaneidade sem troca, ficando cada elemento na sua caixa, cada um bem fechado na sua carapaça. Isso contribui também para deteriorar a vida urbana e para criar a “psicologia”, ou melhor, a psicose do motorista. Por outro lado, o perigo real mais fraco e calculado por antecipação impede que somente poucas pessoas “enfrentem os riscos”. O automóvel, com seus mortos e feridos, com as estradas sangrentas, é um resto de aventura no cotidiano, um pouco de prazer sensível, um pouco de jogo. Interessante
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notar o lugar do carro no único sistema global que descobrimos: a estrutura dos álibis. Álibi para o erotismo, álibi para a aventura, álibi para o “habitar” e para a sociabilidade urbana, o Automóvel é uma peça desse “sistema” que cai em pedaços assim que o descobrimos (Lefebvre, 1991, pp. 110-2).
No contexto das obras da Copa, o Ministério das Cidades estabeleceu restrições para apoiar obras que eram exclusivas de expansão viária – opção que contempla automóveis, mas não o trânsito urbano como um todo. O então Ministro do Esporte, Orlando Silva Júnior, afirmou publicamente em 2011 que a prioridade nas cidades-sede era a eficiência do transporte e não o fluxo de automóveis. Ainda assim, essas tentativas de priorização ocorreram dentro de um contexto em que o modelo de desenvolvimento (por vezes chamado neodesenvolvimentismo49) adotado pelo governo federal de fato priorizou o uso individual de automóvel e estimulou o consumo deste bem. O processo de urbanização esteve até meados do século XX diretamente relacionado com o fenômeno da industrialização . Porém, desde o final do mesmo século, a urbanização moderna passa a induzir a industrialização, representando as alianças entre o capital financeiro e o capital imobiliário. De forma semelhante, na análise de Harvey (2011), o solo urbano da cidade se torna um dos grandes atrativos da economia capitalista contemporânea. 49. Modelo neodesenvolvimentista de Lula caracteriza-se por duas vertentes. Por um lado, tem-se o Estado financiador que, utilizando o seu banco estatal, o BNDES, exerce o papel de indutor do crescimento econômico fortalecendo grupos privados em setores estratégicos. Por outro, tem-se o Estado investidor, responsável pelo investimento em megaobras de infraestrutura que se manifesta no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
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Nesta sociedade onde a coisa tem mais importância que o homem, há um objeto rei, um objeto-piloto: o automóvel. Nossa sociedade, dita industrial, ou técnica, possui esse símbolo, coisa dotada de prestígio e poder. [...] o carro é um instrumento incomparável e talvez irremediável, nos países neocapitalistas, de desculturalização, de destruição por dentro do mundo civilizado (Henri Lefebvre, Contre lês technocrates, 1967).
A estrada de ferro e o motor a vapor, símbolos do começo do capitalismo no século XVIII, foram seguidos da descoberta do motor a explosão, que se coloca em destaque com o transporte individual por meio dos automóveis. A promessa da liberdade através da velocidade foi sendo desfeita com o tempo. A urbanização feita para acomodar o automóvel começou a mostrar as suas limitações no momento em que seu uso foi crescendo. O automóvel, visto como meio de transporte, não dá conta de gerar benefícios para a maior parte da população se adotado em grande escala, se caracterizando como uma solução que é otimizada para uso de poucas pessoas, não podendo se configurar como uma solução prioritária de transporte para uma cidade. O consumo de automóveis e motos nos últimos anos aumentou significativamente, ainda que a nossa taxa de motorização seja baixa comparada a países europeus. Entretanto, possuir veículo motorizado na Europa não significa que esse seja seu meio de transporte principal no dia a dia, enquanto que a posse desses meios de transporte individuais aqui significa quase que necessariamente seu uso diário. Ademais, a má qualidade do transporte público coletivo vem contribuindo para que este não recupere os usuários que perdeu nas últimas décadas, conforme se vê no gráfico 11: 115
Gráfico 11: Evolução da quantidade de passageiros transportados por mês no sistema de ônibus urbano – 1995 – 2014
Fonte: NTU, Anuário Estatístico 2014-2015
As transformações do capitalismo mundial, com a questão da reprodução do espaço urbano, sinalizam a passagem do capital industrial ao capital financeiro com consequências grandes para a mercantilização do espaço público. Estes são pensamentos relacionados à atuação das grandes empreiteiras imobiliárias internacionais, mostrando a migração de alguns setores da economia, o que é representado inclusive nos mecanismos de financiamento e endividamento relacionados à moradia e aquisição de veículos automotores. O espaço urbano, incorporado ao conjunto da riqueza, assume a condição de mercadoria, matéria-prima de valorização do capital, seja através da valorização das terras urbanas por meio de especulação de empreendimentos, das operações de concessão de 116
uso de áreas públicas para a iniciativa privada, das remoções brancas causadas pela gentrificação, do potencial de verticalização de bairros consolidados e inclusive através do uso de sua paisagem para fins publicitários (Rodrigues, 2013). Tal condição se amplia e se aprofunda por meio da atuação das imobiliárias empreiteiras e do setor automotivo, que formam uma aliança decisiva devido à sua influência política e econômica no meio urbano. Se o Estado capitalista é, desde os seus primórdios, o indutor de políticas que orientam e definem a valorização e a desvalorização de determinado espaço, os megaeventos se tornam um catalisador importante que aceleram e aprofundam esses processos de valorização e desvalorização já em curso. Foi elencado aqui um conjunto de critérios de avaliação das políticas de mobilidade urbana implementadas ou não pelos municípios brasileiros que sediaram os jogos da Copa de 2014. Para tal, foram consultados documentos elaborados pela FIFA, pelo Ministério do Esporte, pelo Ministério das Cidades e pelo centro de pesquisa ITDP (Institute for Transportation and Development Policy). O ITDP, que atuou no Brasil, em especial no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte, elencou internacionalmente oito princípios para a Mobilidade Sustentável, cada um acompanhado de alguns subitens: 1. ANDAR A PÉ: desenvolver ambiência urbana que estimule o caminhar • Diminuir a largura das ruas a atravessar; • Enfatizar a segurança e o conforto do pedestre; • Incentivar atividades rentes ao chão e criar espaços públicos adequados à convivência e ao relaxamento.
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2. USAR A BICICLETA: priorizar redes de ciclovias e ciclofaixas • Desenhar ruas que propiciem conveniência e segurança para o ciclista; • Providenciar estacionamento seguro para as bicicletas públicas e privadas. 3. CONECTAR: criar sistemas compactos de ruas e caminhos • Criar redes densas de ruas e travessas com alta permeabilidade para pedestres e bicicletas; • Criar vias de alta capacidade para carros assim como passagens e áreas verdes para estimular o transporte não motorizado. 4. TRANSPORTAR: Prover transporte coletivo de alta qualidade • Garantir um serviço de transporte frequente, rápido e direto; • Estabelecer, no mínimo, um corredor de alta capacidade com linhas exclusivas para o transporte público que estejam a uma distância alcançável a pé para 80% da população; • Localizar estações de transporte, locais de moradia, trabalho e serviços que estejam a uma distância que possa ser percorrida a pé entre eles. 5. MISTURAR: Planejar o uso misto do espaço urbano • Harmonizar moradia, comércio e serviços; • Oferecer parques e atividades de lazer em espaços públicos ao ar livre. 6. DENSIFICAR: estabelecer correspondência entre densidade urbana e capacidade do sistema de transporte • Adaptar a densidade à capacidade do sistema de transporte; • Maximizar a capacidade do sistema de transportes.
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7. COMPACTAR: Criar regiões compactas, coesas e bem conectadas • Reduzir o espraiamento, focando o desenvolvimento em áreas já ocupadas ou a elas adjacentes; • Fazer coexistir no mesmo espaço, trabalho e moradia para evitar deslocamentos desnecessários. 8. PROMOVER MUDANÇAS: Aumentar a mobilidade regulando o estacionamento e o uso das vias • Reduzir o número de estacionamentos para desestimular o uso de automóveis particulares nos horários de pico do trânsito; • Ajustar a cobrança de taxas pelo uso do automóvel segundo hora do dia e destino.
Outro documento considerado foi o então Projeto de Lei, já aprovado e em vigor, que trata da Política Nacional de Mobilidade Urbana (sancionado como Lei 12.587/11), cujas diretrizes estão em sintonia com materiais do PAC da Mobilidade e também do ITDP. São diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana: I – Integração com a política de desenvolvimento urbano e respectivas políticas setoriais de habitação, saneamento básico, planejamento e gestão do uso do solo no âmbito dos entes federativos; II- Prioridade dos modos de transportes não motorizados sobre os modos motorizados e dos serviços de transporte público sobre o transporte individual motorizado; III – Integração entre os modos e serviços de transporte urbano; IV – Mitigação dos custos ambientais, sociais e econômicos dos deslocamentos das pessoas e cargas nas cidades; V – Incentivo ao desenvolvimento científico–tecnológico e ao
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uso de energias renováveis e menos poluentes; VI – Priorização de projetos de transporte público coletivo estruturadores do território e indutores do desenvolvimento urbano integrado; e VII – Integração com as cidades gêmeas localizadas na faixa de fronteira com outros países sobre a linha divisória internacional.
A Política Nacional de Mobilidade Urbana foi aprovada com poucos vetos, relacionados mais à parte do sistema de financiamento da política do que ao seu marco conceitual de diretrizes, conforme histórico da aprovação da lei, tratado no Capítulo 4 deste livro. Entretanto, a parte de financiamento da lei, da forma que foi sancionada, revela uma visão da mobilidade como um serviço de mercado e não como direito da população. Um dos vetos presidenciais foi feito aos parágrafos 1º e 3º do artigo 8º, que proibiam a concessão de gratuidades nos serviços de transporte público às custas dos usuários pagantes, devendo as gratuidades terem fontes de financiamento previstas em leis específicas. Esse veto significa que os usuários do sistema de transporte coletivo, notadamente representantes de grupos sociais de baixa renda, são responsáveis por financiar o acesso ao transporte de todos que têm direito à gratuidade, incluindo aqueles que são ainda mais pobres, idosos, estudantes e pessoas com deficiência. Esse mecanismo de financiamento e cobrança é utilizado como argumentação conservadora para se negar a cessão de gratuidades aos grupos mais desfavorecidos da sociedade, dando ao problema do acesso ao transporte uma caricatura de “conflito de pobres”, sem que aqueles que se beneficiam de fato da circulação dessas pessoas na cidade participem do financiamento desse sistema. Outro veto foi ao artigo 16, que listava as atribuições da União, 120
e ao artigo 18, que tratava das atribuições dos municípios. Os artigos vetados falavam respectivamente de “adotar incentivos financeiros e fiscais para a implementação dos princípios e diretrizes desta Lei” e “implantar incentivos financeiros e fiscais para a efetivação dos princípios e diretrizes desta Lei”. Os artigos da lei serão tratados mais adiante. O veto a esses artigos, simultâneo às ofertas de incentivos fiscais à indústria automobilística no país, explicitou a quem o Estado estava servindo de fato, na preferência manifestada economicamente. O prazo que a lei define para os municípios se adaptarem à Lei, de três anos, mostrou-se insuficiente dada a baixa capacidade de planejamento dos municípios brasileiros. Levantamento do Ministério das Cidades, em 2015, indicava que, de 1.317 municípios que responderam à pesquisa de controle (equivalente a 38% dos 3.325 mil municípios acima de 50 mil habitantes), apenas 61 (5%) possuíam o plano de mobilidade urbana. O número total de municípios que não tinham o plano era de 1.256 (95%), dos quais apenas 361 (29%) estão em processo de elaboração (Revista NTU Urbano, 2015). Como apontado, desde a divulgação da escolha do Brasil para sediar a Copa do Mundo, o governo federal anunciou pacotes de investimentos em mobilidade urbana de maneira a expressar publicamente que o país e sua população sairiam ganhando com a Copa, ainda que algumas obras apresentadas fossem apenas cumprimento de exigências da FIFA (como os transportes de média e alta capacidade que fizessem a conexão dos aeroportos com os hotéis). Com essas premissas, enunciadas pelo próprio governo em sua Política Nacional de Mobilidade Urbana, se avaliou como esse anúncio se materializou de fato.
121
Exigências da FIFA relacionadas a transporte
Para receberem o Mundial, as 12 cidades-sede assinaram termo de compromisso que garantia o cumprimento de todas as exigências da FIFA. Este pacto assinado entre Cidade-Sede/LOC/FIFA tem o nome de “Host City Agreement”. Atrelado a este documento e impactando na mobilidade do evento ainda existem os guias: “Stadium Book 2010”, “Event Logistics Guide 2010” e “Safety Regulations”. Há que se fazer a ressalva da “retórica da expertise internacional” ao analisar esses documentos, que, no caso da FIFA, remetem ao superdimensionamento dos empreendimentos. Assim, corre-se o risco de endividar municípios que, após os jogos, devem arcar com a manutenção de elefantes brancos, embora encantados com o “canto da sereia” dos retornos via turismo e do reconhecimento internacional. Antes da leitura, em especial dos grifos, é interessante resgatar Agamben que, ao falar sobre o estado de exceção, o define como: “a forma legal daquilo que não pode ter forma legal” (Agamben, 2004, p. 12). Seguem os documentos da FIFA assinados pelas cidades-sede: “As cidades-sede concordam50: 22.1 – Gestão de Transportes: A cidade-sede deve cooperar plenamente com as autoridades competentes para desenvolver e implementar um plano de gestão de transportes durante a competição. A cidade-sede se responsabiliza a adotar todas as medidas, inclusive transpondo procedimentos municipais e leis, para a plena execução do plano de gestão operacional de transportes, e oferecendo toda 50. Traduções feitas pelo engenheiro Gustavo Baileiro, reproduzidas em seu site (http://transportenacopa.blogspot.com/) e em paper apresentado no 18º Congresso de Transporte e Trânsito da ANTP em outubro de 2011.
122
assistência quando requerida à FIFA, ao LOC ou às Autoridades Brasileiras. Isto pode incluir a previsão de acesso restrito ao tráfego em vias chaves para o LOC, os representantes FIFA, os times participantes e oficiais vinculados ao evento (Grifos da autora). 22.2 – Fechamento de vias: A cidade-sede deve, mediante pedido razoável da FIFA e / ou LOC, a qualquer momento durante o período da competição, fechar o acesso público a todas as vias no perímetro urbano da cidade-sede. 22.3 – Ônibus e Trens – A cidade-sede deve, na medida em que está habilitada para fazê-lo, garantir que os ônibus locais e nacionais e serviços férreos dentro do seu perímetro metropolitano vão: a) estar totalmente operacionais em cada dia de jogo, e b) continuar a operar por um período de pelo menos quatro (4) horas após o término de cada jogo na cidade anfitriã. 22.6 – Acordo Ingresso / Transporte: A cidade anfitriã deve, em nome e sobre o respaldo do LOC, celebrar um acordo com a entidade local de transporte público que permita que qualquer portador de ingresso ou detentor de credenciamento possa utilizar o transporte público em dias de jogo livre de cobrança51. O conteúdo deste acordo, incluindo a alocação dos respectivos custos para os bilhetes individuais, será determinado entre a entidade de transporte público responsável, a Cidade-Sede e o LOC. 26 – FIFA Fan Park Official 26.1 – Localização: A cidade anfitriã fornecerá à FIFA, de forma gratuita e em conformidade com as exigências, em um local adequado ou perto do centro da cidade-sede, facilmente acessível por 51. Vale ressaltar que nem mesmo em feriados nacionais ou em dia de eleição há previsão de transporte gratuito para a população brasileira, ainda que diversos projetos de lei tenham sido apresentados sobre o assunto, e todos arquivados no começo de sua tramitação parlamentar.
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transportes públicos, para o estabelecimento e operação da FIFA, ou por um terceiro nomeado por esta, um Fan Park oficial da Copa do Mundo para o período que se inicia, pelo menos, seis (6) dias antes do primeiro jogo da competição e terminando 3 (três) dias após a última partida da competição.
Dos Guias “Stadium Book 2010”, “Event Logistics Guide 2010” e “Safety Regulations” ainda se destacam: 1. As cláusulas a respeito do credenciamento e deslocamento dos fornecedores e serviços de emergência ao estádio; 2. A determinação da capacidade máxima permitida e o tempo máximo permitido para a saída. A capacidade de segurança deve basear-se no que for menor, a capacidade do espectador de alojamento ou o número de espectadores que podem usar com segurança as entradas, saídas ou saídas de emergência dentro do período estabelecido, que varia de acordo com o projeto e a estrutura do estádio. A experiência tem mostrado que todos os espectadores deveriam ser capazes de evacuar em sistema de saída de fluxo livre, no prazo máximo de oito minutos. A capacidade será reduzida se uma condição física do estádio ou a gestão da segurança for insuficiente; 3. Estádios com capacidade de 60 mil espectadores devem conter estacionamento para 10 mil veículos e 500 ônibus, as áreas para cada um deles devem ser separadas. Onde é impossível prover tal estrutura no estádio deverá ser garantido estacionamentos a não mais que 1500 metros deste; 4. Acesso ao estádio deve ser provido por uma eficiente rede de rotas para transporte privado e, se possível, ligações de transporte público na vizinhança;
124
5. Deve haver sinalização indicando todas as direções, localidades e entradas em toda mediação e vizinhança do estádio; 6. Uma cerca, muro ou tela deve cobrir a área em volta do estádio. Ela deve ter pelo menos 2,5 metros de altura e não deve ser fácil sua remoção, penetração ou depredação; 7. Rotas de evacuação, uma dentro e outra fora do estádio, devem ser aprovadas pelas autoridades locais (segurança, serviços de emergência e departamento de transporte e trânsito). Rotas externas ao estádio devem ter duas faixas de tráfego e que possam ser utilizadas por automóveis; 8. Áreas adequadas são necessárias ao redor do estádio para permitir a acomodação dos espectadores após uma evacuação sem superlotação. Estas precisam ser identificadas e sistemas aos espectadores devem estar preparados para direcioná-los e orientá-los se necessário. O tamanho e a localização de tais áreas deverão permitir o livre acesso dos bombeiros, polícia, ambulância e demais serviços de emergência;
Estes acordos foram assinados pelos municípios brasileiros, constituindo um exemplo claro de cidade de exceção, onde acordos firmados com a FIFA conseguem normatizar o que deveria ser considerado uma violação de direitos da população local de acordo com a legislação em vigor. Percebeu-se, ao fim, a concessão de espaços exclusivos de circulação para o grupo de pessoas envolvidas com o Mundial, restringindo muitas vezes o direito à mobilidade da própria população residente nas cidades onde ocorreram os jogos. Por essas referências, conclui-se que a mobilidade durante a Copa não ocorreu com base nas obras do PAC, e sim por meio de Operações Especiais de Trânsito com plano de circulação de 125
ônibus turísticos fretados52. Logo, não era necessário que as obras previstas fossem base das operações especiais durante os jogos, mas a noção de legado envolve o que seria utilizado pela população posteriormente aos jogos. Por essas limitações dos documentos orientadores da FIFA, optou-se então por trabalhar com as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana, dado que o objetivo desta pesquisa foi construir um instrumento que permitisse avaliar quais intervenções urbanas feitas em nome da Copa se reverteriam em melhorias na mobilidade para a população, independentemente do curto período de realização dos jogos do campeonato da FIFA.
52. Por isso não se deve estranhar a declaração de Jérôme Valcke, secretário-geral da FIFA, dada em maio de 2012, ao afirmar que nem todas as obras da Copa são essenciais para a competição: https://bit.ly/2Ys2IRi. Declaração similar deu o prefeito do Rio de Janeiro em 8 de março de 2016, Eduardo Paes, ao afirmar que é possível fazer Olimpíada sem metrô: https://bit.ly/2K5g2Wj
126
CAPÍTULO 4 Cidades estudadas
As cidades-sede foram anunciadas em 2009, perfazendo um total de 12, número superior ao sugerido pela FIFA (8 a 10) por iniciativa do próprio governo brasileiro. Isso demonstrou o empenho dos próprios gestores e lideranças políticas no poder, e não por imposição da FIFA, em envolver mais capitais no modelo de cidade-negócio relacionado à recepção dos megaeventos, atendendo a um projeto do próprio país que construía sua imagem de potência econômica após um ciclo de bons indicadores econômicos e sociais (Damo & Oliven, 2013). Ao longo dos anos, houve mudanças significativas na narrativa de sediar os jogos. Os anúncios iniciais de que a Copa seria feita com recursos privados e que os estádios não seriam a única prioridade foram sendo desnudados à medida que os interesses dos dirigentes esportivos e empreiteiras iam sendo formalizados, como ocorreu na desclassificação do estádio Morumbi para dar lugar à construção a partir “do zero” do Itaquerão. A velocidade do andamento das obras dos estádios, muito superior às de mobilidade, e o seu crescente custo, foram diminuindo o impacto eufórico do anúncio inicial do Brasil como país-sede. A narrativa das oportunidades comerciais perdurou até o final da Copa do Mundo, só sendo desmistificada após os resultados econômicos de 2014. 127
Figura 3: Linha do tempo da Copa do Mundo de 2014
Fonte: elaboração própria
Por recorte de pesquisa, se optou por trabalhar com duas cidades e suas políticas de mobilidade no período de preparação para a recepção da Copa do Mundo, São Paulo e Brasília, por terem sido as cidades onde a autora conseguiu realizar seus trabalhos de campo. Havia a intenção inicial de incluir Belo Horizonte, mas ao longo da pesquisa a cidade foi descartada. Belo Horizonte era vista como uma das cidades que teve maiores condições de cumprir as metas estabelecidas na Matriz de Responsabilidades, tendo tido seu estádio Mineirão como o primeiro a ser entregue, o que estava dentro do discurso promovido pelo então governo estadual para tornar o estado um modelo de gestão com cumprimento do cronograma, e nisso seria interessante fazer o contraponto com outras duas cidades com obras canceladas. Com o passar da pesquisa, essa narrativa se desconstruiu, tanto pela retirada de algumas obras propostas como pelo desabamento de um viaduto de acesso ao estádio, na região da Pampulha, em 2014, que 128
fez com que Belo Horizonte perdesse o atributo “case de gestão” que a tornava interessante para comparar com as outras cidades. As duas cidades escolhidas por fim, Brasília e São Paulo, localizam-se no centro-sul do país e possuem taxa de motorização e IDH similares53. Brasília está entre as capitais que mais aumentaram suas taxas de motorização nos últimos dez anos, em função do aumento desproporcional de frota de veículos em relação ao crescimento da população. No caso de São Paulo, ainda que sua frota não tenha crescido de maneira tão desproporcional à sua população (já num indicativo de estagnação), a cidade se mantém entre os municípios brasileiros com maior frota. O quadro 7 evidencia que a discussão merece dar mais atenção ao uso do carro do que à sua propriedade, conforme já percebido nas cidades europeias, onde as taxas de motorização passam de 80% e ainda assim se consegue ter bons sistemas de transporte, menos acidentes e congestionamentos. Quadro 7: População e frota das capitais (2010) Município
População 2010
Frota 2010
Habitante /Veículo
Curitiba (PR)
1.746.896
1.247.998
1,4
Goiânia (GO)
1.301.892
870.900
1,5
São Paulo (SP)
11.244.369
6.390.082
1,8
Belo Horizonte (MG) 2.375.444
1.340.071
1,8
Porto Alegre (RS)
701.263
2
1.409.939
53. As cidades não trabalhadas dessa macrorregião foram o Rio de Janeiro, que foi cidade-sede dos Jogos Pan Americanos em 2007 e é dos Jogos Olímpicos de 2016, o que a torna um caso bem particular; Porto Alegre e Curitiba, cidades conhecidas por bons sistemas de transporte público, ainda que com altas taxas de motorização.
129
Brasília (DF)
2.570.160
1.245.521
2
Campo Grande (MS) 787.204
392.147
2
Cuiabá (MT)
551.098
268.085
2
Teresina (PI)
814.439
282.220
2,9
Natal (RN)
803.811
279.301
2,9
Rio de Janeiro (RJ)
6.323.037
2.063.521
3,1
Recife (PE)
1.536.934
495.268
3,1
Fortaleza (CE)
2.447.409
712.996
3,4
Manaus (AM)
1.802.525
452.300
4
Salvador (BA)
2.676.606
648.321
4,1
São Luís (MA)
1.011.943
247.997
4,1
Belém (PA)
1.392.031
291.799
4,8
Fonte: IBGE e DENATRAN
Brasília
Brasília contou com dois empreendimentos polêmicos para receber a Copa do Mundo: um Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) e um conjunto de Ciclovias. O projeto do VLT, iniciado em 2008, na gestão do governador José Roberto Arruda, foi retirado em 2012 da Matriz de Responsabilidades. Desde uma justificativa pouco aceita por urbanistas para sua execução54 até um canteiro de obras abandonado que atrapalhou o trânsito por anos (até ser convertido em um viaduto em 2014), muito se passou em relação ao empreendimento, que teve seu processo licitatório questionado pelo Ministério Público do Distrito Federal diversas vezes, até ser cancelado. 54. O principal argumento para a obra do VLT apresentado pelo então Secretário de Transportes, Alberto Fraga, era retirar o suposto excesso de ônibus que circulava pela avenida W3, e não o excesso de carros.
130
Tabela 3: Informações demográficas e viárias do DF, 2010 e 2014 Indicador
2010
2014
População
2.570.160
2.852.372
Território
5.787,784 km2
5.787,784 km2
Densidade Populacional
444,07
444,66
Frota total
1.245.521
1.586.169
Motorização
1 veículo a cada 2,06 hab.
1 veículo a cada 1,8 hab.
Automóveis
924.103
1.146.312
Microônibus
4.591
5.189
Ônibus
8.663
11.787
Motocicletas e motonetas
135.691
178.805
Bonde
0
0
Estrutura cicloviária
128 km
411 km
BRT
0 km
43 km
Faixa Exclusiva
0 km
55 km
Metrô
42,4 km – 150 mil passag/dia
42,4 km – 165 mil passag/dia
Plano Diretor de Transporte Urbano Integrado
Em vigor
Em vigor, começando processo de revisão
Este projeto, que teve direito à visita do então presidente francês Nicolas Sarkozy a um dos vagões expostos no centro da cidade55, se tornou o símbolo do legado zero para a mobilidade. Na cidade que ergueu o estádio de futebol mais caro dentre as 12 sedes, a principal obra de mobilidade foi descartada e como compensação a ampliação de uma via já existente 55. Cedido pela empresa francesa Alston.
131
foi promovida como obra de destaque (DF-047). Conforme matéria veiculada pela Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo – Pública: ...a Secretaria de Comunicação do Governo do Distrito Federal (SECOM-DF) divulgou nota dizendo que “a retirada do VLT da Matriz de Responsabilidade será compensada pela readequação da DF 047, que liga a estação de passageiros do Aeroporto Internacional Juscelino Kubitschek até a parte central da capital, com a implantação de uma via exclusiva dedicada a ônibus de passageiros, turistas e delegações.” E afirmou: a distância do estádio Mané Garrincha até o centro de Brasília é de 3 km, “o que facilita e incentiva o acesso a pé”.56
Após diversas dificuldades de gestão, apenas o Trecho 1 do VLT (Aeroporto/Asa Sul, 6 km) foi considerado factível de ser entregue para a Copa do Mundo em 2014 (Figura 4). A licitação, entretanto, feita em 2009, foi alvo de ações na justiça, o que resultou na suspensão da obra em abril de 2011. O trecho que percorreria a avenida W3 Sul, alvo de ações de associações de moradores, foi paralisado pela justiça em setembro de 2010. O consórcio vencedor para o Trecho 1 era formado pelas empresas Daclon, Altran/TCBR e Via Engenharia. Em agosto de 2012, o projeto foi publicamente descartado para Copa do Mundo, com o Governo do Distrito Federal (GDF) reconhecendo que a obra não ficaria pronta a tempo. No acordo entre GDF e Ministério das Cidades, foi assinado convênio para viabilizar a ligação do Aeroporto com a Asa Sul via corredor de ônibus, numa rodovia (DF-047) já constante na Matriz de 56. Ver matéria completa em: https://bit.ly/2SOUtNC
132
Responsabilidade, como viário a receber obra de arte especial estimada em R$ 98 milhões. Figura 4: Mapa inicial do Projeto do VLT
Fonte: Governo do Distrito Federal, divulgação
É importante ressaltar que embora a grande obra de mobilidade prevista na Matriz não tenha saído do papel, o GDF escolheu focar no processo licitatório das novas empresas concessionárias das linhas de ônibus como sua grande realização no campo dos transportes. Prevista para acontecer duas gestões antes da então gestão Agnelo e afirmando um modelo de transporte já considerado ultrapassado57, ainda assim esta licitação ganhou destaque positivo na agenda da cidade. Dois dos principais operadores da cidade, Grupo Amaral e Canhedo, não conseguiram se habilitar para participar da licitação e entraram com sucessivas liminares tentando bloquear o processo na justiça, sem sucesso. A 57. Os ônibus não são de piso baixo, não possuem câmbio automático e a integração tarifária se dará por meio de terminais físicos, sendo a bilhetagem eletrônica a última fase do período de concessão (20 anos).
133
renovação das empresas operadoras na cidade foi divulgada como um avanço na modernização do sistema de transporte de ônibus em Brasília. Em retaliação, o Grupo Amaral começou a retirar seus ônibus de circulação, contribuindo para piorar o já inadequado sistema de transporte do DF. Dos 350 ônibus previstos para rodar diariamente, apenas 186 ônibus estavam nas ruas. Em operação especial e inédita, o poder executivo local ocupou a empresa escoltado pela Polícia Civil e Militar e passou a gerenciar os funcionários e equipamentos, procurando assegurar o serviço58. O governo Agnelo Queiroz, que em 2011 era a gestão mais mal avaliada do país59, passou a ganhar popularidade após essas medidas. A intervenção nas empresas Amaral e VIPLAN no processo de licitação e renovação da frota de Brasília foi uma ação dentro do alinhamento de neoliberalização das cidades brasileiras, não chegando a representar uma ruptura, mas sim uma transição regulatória para um novo ciclo de acumulação do setor. Constituiu, assim, uma saída de um capitalismo informal para um capitalismo neoliberal mais moderno. É importante ressaltar que Brasília se destaca de outras capitais em sua divisão modal pelo uso mais regular do automóvel, sendo de fato a migração dessas pessoas para o transporte coletivo ou algum modal ativo (a pé ou de bicicleta) uma meta no horizonte da cidade há alguns anos. Como referência, enquanto que em Brasília o percentual de viagens diárias feitas de automóvel chega aos 40%, em Belo Horizonte se é 25%, São Paulo 30% e Rio de Janeiro 17%. Brasília é das poucas capitais onde o uso do 58. Veja o comunicado oficial do governo: https://bit.ly/2SNAaQV 59. https://bit.ly/32YYgN9
134
automóvel passa o uso do transporte coletivo e onde é significativamente grande a diferença do individual motorizado para o não motorizado, de acordo com as pesquisas de origem e destino das respectivas cidades. Gráfico 12: Participação modal no total de viagens realizadas no DF, 2009.
Fonte: PDTU DF, 2009
Uma obra de menor valor, mas que poderia ser estruturante do ponto de vista da priorização dos modos não motorizados, são as ciclovias. Com a meta local de construir a maior malha cicloviária da América Latina (600 km) até a Copa desde a Gestão Arruda (2006-2010), a construção de ciclovias ganhou destaque na agenda do Governo do Distrito Federal também na Gestão 135
Agnelo (2011-2014). Sem realizar estudos de demanda e dos trajetos mais adequados de acordo com o uso diário e desvinculadas de ações estruturais, como redução de limites de velocidades e campanhas educativas, as obras foram feitas em ritmo acelerado, sendo frequentemente questionadas. Figura 5: Questionamento de grupos cicloativistas em relação ao projeto cicloviário em audiência pública suspensa na Administração Regional do Plano Piloto.
Fonte: Acervo pessoal (27 abril de 2013)
Este empreendimento despertou questionamentos entre grupos de ciclistas sobre a adequação e continuidade dos trajetos, o material utilizado, a falta de sinalização e segurança nas travessias, além da questão da priorização da localização das ciclovias em áreas nobres e com baixos índices de ocorrências com ciclistas. Esse projeto foi o único nas três cidades que contou com uma instância colegiada governamental com participação da sociedade civil para debatê-lo, o Comitê de Mobilidade Sustentável por Bicicleta, ligado à Casa Civil 136
do Governo do Distrito Federal. Não serviu, contudo, para definir as diretrizes da política, nem para corrigir os problemas dos projetos cicloviários. Essa particularidade aponta, num contexto de cidade de exceção, o déficit democrático que costuma ser encontrado na conjuntura de obras e megaeventos60. A incorporação da bicicleta como elemento de city marketing Figura 6: Peça de publicidade governamental. Jornal Alô Brasília. Destaque para a comparação entre as ciclovias de Brasília e Amsterdã.
Fonte: Acervo pessoal (18 de julho de 2013)
60. Existem alguns exemplos de espaços de participação criados, supostamente, para auxiliar a implementação de políticas públicas, mas que não conseguem obter resultados concretos. Um deles foi o grupo de trabalho constituído em 2011 pelo DFTRANS para estudar a viabilidade da implantação da Tarifa Zero em 2011, que não resultou sequer num plano de integração tarifária na cidade.
137
Quando o governador Agnelo Queiroz assumiu o Governo do DF em 2011, havia pouco mais de 40 km de ciclovias. Ao final de 2014, cerca de 400 km foram adicionados à malha cicloviária do DF. No Plano Diretor de Transporte Urbano de 2011, é informado que 2,3% das viagens diárias são feitas por bicicleta, sendo a economia de recursos financeiros o principal motivo da escolha da bicicleta como meio de transporte. Dessas viagens de bicicleta, 96,2% ocorrem para fins de mobilidade (trabalho e estudo). Dados do DETRAN-DF apontam que a chance de fatalidade de um acidente envolvendo ciclistas em rodovias é maior do que em acidentes em vias urbanas. No entanto, dos cerca de 440 km de ciclovias construídas, grande parte se concentra no Plano Piloto, em vias de baixa velocidade e com baixos índices de acidentes. Por decisão do governo, não se priorizou implantação de estrutura cicloviária nas rodovias de alta velocidade, com elevados índices de fatalidade e com maior tráfego de ciclistas, que fazem conexão entre as cidades satélites e destas com o Plano Piloto, região que concentra 47,7% dos empregos do DF e onde mora apenas 8% da população. Verifica-se que esta região central, onde ocorreram 4% das mortes no DF entre 2003 e 2013, foi contemplada com mais de 40% das ciclovias construídas ou projetadas (Gráfico 13) (Rodas da Paz, 2014). De acordo com o mapa rodoviário do DF, disponibilizado pelo Departamento de Estradas de Rodagem, o DF possui mais de 11 mil km de malha viária, de modo que a quilometragem de ciclovias representa cerca de 3,6% deste total. Isso significa que o ciclista, para se deslocar pela cidade, precisará, em grande parte do tempo, continuar utilizando as ruas, o que requer políticas educativas intensas, além de medidas de moderação de tráfico, redução de limites de velocidade e fiscalização. 138
Gráfico 13: Relação quilometragem de ciclovias e fatalidades envolvendo ciclistas por cidades do DF, 2003-2013.
Fonte: (Rodas da Paz, 2014), com base nos dados públicos do DETRAN-DF.
Através de levantamento feito via Lei de Acesso a Informação, se descobriu que entre 2011 e 2013 o DETRAN empenhou apenas 11,8% do orçamento autorizado para ser gasto com campanhas educativas. As poucas peças que tratavam da presença na bicicleta no trânsito não enfatizavam o direito do ciclista de utilizar a rua, nem explicitavam a responsabilidade do maior veículo pela segurança do menor, como garante o Código de Trânsito, dando a entender que os ciclistas deveriam utilizar apenas as ciclovias. Em 2010, foram 35 mortes envolvendo ciclistas no DF e em 2013 foram registrados 27 óbitos (DETRAN, 2013). Desde 2005, as mortes de ciclistas vêm seguindo tendência de queda, embora 139
lentamente. Para que as fatalidades no trânsito envolvendo ciclistas fossem reduzidas em 50%, levou-se seis anos (2006-2012). Para efeito de comparação, as mortes envolvendo pedestres foram reduzidas em 50% na metade no tempo, três anos (1995-1998), fruto de campanhas educativas de massa feitas à época em relação a uso da faixa de pedestre. O investimento adequado de estrutura cicloviária nas vias de maior velocidade e com mais registros de fatalidade, aliado ao emprego de recursos na promoção de campanhas educativas, permitiria a redução planejada de mortes no trânsito como resultado efetivo de uma política pública.
São Paulo Tabela 4: Informações demográficas e viárias de SP, 2010 e 2014 Indicador
2010
2014
População
11.253.503
11.967.825
Território
1.521,101
1.521,101
Densidade Populacional
7.387,69
7.398,26
Frota total
6.390.092
7.323.775
Motorização
1 veículo a cada 1,8 hab.
1 veículo a cada 2 hab.
Automóveis
4.617.635
5.160.727
Microônibus
31.192
35.870
Ônibus
39.397
42.917
Motocicletas e motonetas
797.405
961.480
Faixa Exclusiva
367,5 km
Corredor de ônibus
82 km
110 km
Bonde
10
8
140
Estrutura cicloviária
36,8 km de ciclovia
197,7 km
BRT
8,2 km (Expresso Tiradentes)
8,2 km (Expresso Tiradentes)
Metrô
70,6 km – 4 milhões de passag/dia
77,4 km – 4,7 milhões de passg/dia
Trem
260,8 km – 2,6 milhões 2,8 milhões de passag/ de passag./dia dia
Plano Diretor
em processo de revisão Aprovado em 2015
O empreendimento escolhido pelo governo estadual e municipal de São Paulo para incluir na Matriz de Responsabilidades foi o projeto do Monotrilho, Linha 17-Ouro. A época em que se fez essa escolha, o estádio de futebol cotado para sediar os jogos era o Morumbi, que seria beneficiado pelo trajeto do Monotrilho. Por diversas razões61, foi decidido posteriormente que o estádio a sediar os jogos seria o Itaquerão, que pertence ao time Corinthians. Mesmo assim, o governo de São Paulo havia optado por manter a obra do monotrilho como prioridade por entender que seria um projeto estruturante para a cidade. Essa decisão foi revista em 2012, quando os governos, pressionados pelas críticas de não cumprimento dos prazos, reviram a Matriz e diversas obras foram dali retiradas, inclusive o Monotrilho de São Paulo. Uma das interpretações possíveis para isso é a descontinuidade de políticas após a mudança de gestão, o que ocorreu inclusive na transição do governo José Serra (2007-10) para o governo Geraldo Alckmin (2011-14), mesmo os dois sendo do mesmo partido. O governo Geraldo Alckmin abandonou alguns 61. Não se trabalhou nessa pesquisa com os fatores que levaram à alteração do estádio no município de São Paulo, mas para saber mais sobre a decisão, ler O Brasil no horizonte dos megaeventos esportivos de 2014 e 2016: sua cara, seus sócios e seus negócios. Horizontes Antropológicos (Damo & Oliven, 2013)
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dos projetos anunciados durante a gestão Serra, o que ocorreu também com outras obras divulgadas como certas pela gestão anterior, mas que logo pararam de ser exibidas inclusive em materiais de divulgação. São Paulo continua sendo uma cidade com desenho viário voltado ao uso do automóvel, mas nos anos 2010 muitos investimentos foram sido feitos para priorizar o transporte público, principalmente na esfera municipal. Essas transformações já se traduzem em ganhos de tempo para o usuário do transporte público, e uma leve migração das classes de alta renda que moram no centro para o transporte coletivo. Isso pode ser um indicativo de uma mudança de cultura para aquelas pessoas que contam com uma boa rede de transporte público para realizar seus deslocamentos (Gráficos 14 e 15). Gráfico 14: % de viagens/dia por faixas de renda e meios de transporte (2007 e 2012)
Fonte: Pesquisa de Mobilidade, Metrô SP (2012)
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Gráfico 15: % de viagens segundo meios de transporte (1967 a 2012)
Figuras 7A e 7B: Zona Leste, Itaquera, pátio final do metrô, local de instalação do Polo Institucional.
Fonte: Secretaria de Transportes de São Paulo, divulgação
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Fonte: Secretaria de Transportes de São Paulo, divulgação
Por outro lado, para quem mora distante de seus postos de trabalho, o transporte público, continua sendo pouco atrativo. Esse é o caso da Zona Leste, região servida há várias décadas pelo metrô, porém, com uma das linhas de metrô mais lotada do mundo (pareando com o metrô da Cidade do Cairo no primeiro lugar), o que é medido pelo número de pessoas por metro quadrado (linha vermelha)62. Isso indica que a solução para regiões como essa não é a busca por melhores meios de transporte público apenas, maiores e mais velozes, mas sim a implementação de um outro modelo de urbanização, que ofereça de forma mais distribuída postos de trabalho e vagas no sistema de ensino para reduzir a necessidade de seus moradores de se deslocarem até o centro. 62. Ver https://bit.ly/2OsJF9J
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O legado da expansão viária se repetiu em São Paulo com o Programa de Desenvolvimento Viário Zona Leste, que associou o investimento de R$ 345,9 milhões do governo estadual e 132,3 milhões da prefeitura municipal. Assim como Brasília não pôde contar com seu projeto de trilho para a Copa do Mundo, São Paulo teve uma situação semelhante: em vez do Monotrilho da Linha 17 – Ouro, que ligaria o bairro do Morumbi ao Aeroporto de Congonhas, com orçamento previsto de R$ 1,881 bilhão, a cidade ganhou intervenções viárias no entorno do estádio do Corinthians. A Zona Leste de São Paulo é uma região que possui 35% da população e 16% dos postos de trabalho da cidade (pesquisa OD 2007), o que demonstra um desequilíbrio espacial em relação à oferta de empregos na região. O novo plano diretor de SP, feito na gestão Fernando Haddad (2013-16), ampliou o pacote de incentivos fiscais para a instalação de empreendimentos na região, com isenção total por 20 anos. Iniciativas similares de desenvolvimento local foram feitas na de Marta Suplicy (200104, interrompidos na de José Serra, 2005-06) e na de Gilberto Kassab (2006-08 e 09-12), mas sem sucesso do ponto de vista do número de empreendimentos cadastrados para receber os incentivos fiscais. Por outro lado, serviços básicos, como água e energia elétrica foram instalados somente em 2014, após mais de 20 anos do surgimento da favela. Até o início de 2016, as transferências ainda não haviam ocorrido. Se o Monotrilho não contou com a agilidade esperada para sua implantação, na Zona Leste as iniciativas começaram a sair do papel. A instalação da FATEC (Faculdade de Tecnologia Integrada) pelo governo estadual de São Paulo se concretizou. A aposta da prefeitura é que com o pacote de incentivos sejam 145
gerados cerca de 50 mil postos de trabalho, em especial no setor de telemarketing. A Favela da Paz, contudo, previa a possibilidade de ser transferida após a Copa do Mundo para unidades habitacionais de Itaquera, Jardim São Pedro e São Sebastião, mesmo tendo entregue em mãos para o prefeito Fernando Haddad um plano alternativo para urbanização da comunidade, feito com o apoio do Comitê Popular da Copa de SP, o Instituto Pólis e a ONG Peabiru Trabalhos Comunitários. A distância dos conjuntos habitacionais da atual localização da favela é de 3,5 km, e a prefeitura considera ter feito o processo chamado “chave a chave” com a comunidade, reforçando inclusive que a transferência não seria motivada pela Copa do Mundo. Um caso interessante do processo de desenvolvimento desse programa de incentivos para a Zona Leste envolve a Itaquera Desenvolvimento Imobiliário, proprietária de 200 mil metros quadrados na região. Após aprovação do projeto viário da Zona Leste pela Câmara de Vereadores de SP, a empresa propôs para a prefeitura a doação de um terreno de 13.400 metros quadrados, onde seriam construídas duas avenidas, parte do programa viário. A doação foi condicionada, contudo, ao pagamento por parte da prefeitura de R$ 1,8 milhões pela desapropriação de um de seus imóveis, de 6 mil metros quadrados, utilizado no Polo Institucional de Itaquera. O pagamento pela desapropriação foi questionado, visto que o proprietário dos terrenos seria um dos grandes beneficiários das obras, pela valorização dos seus imóveis. A partir do momento em que a empresa fez a exigência de pagamento para a prefeitura, vereadores ameaçaram revogar a aprovação do projeto e cancelar as obras. Após o deslinde da contenda, a prefeitura repassou o terreno doado para o governo 146
do Estado, responsável pelas obras viárias através da DERSA, e fez o pagamento de R$ 1,8 milhões para a empresa Itaquera Desenvolvimento Imobiliário. De acordo com o SECOVI-SP, a valorização imobiliária na região foi de 100% entre 2011 e 2014, com picos em 2012 e 2013. Segundo o Conselho Regional de Corretores de Imóveis de São Paulo (Creci-SP), no primeiro semestre de 2012, o valor do m² residencial na região passou de R$ 2.272,66 para R$ 3.508,06, um aumento de 54%. Figura 8: Variação do preço do m2 na região de Itaquera, São Paulo, 2011-2016
Fonte: FipeZap e Creci-SP
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Em uma publicação voltada para corretores de imóveis, é possível perceber a dinâmica imobiliária que aconteceu na região: “Eduardo Zylberstajn, coordenador do Índice FipeZap comenta que “Nos últimos meses os preços na região têm caído mais do que no restante da cidade. Sem dúvida, essa volatilidade prejudica o mercado e dificulta as decisões das famílias. Porém, Itaquera tem uma valorização acumulada desde 2012, superior à da média da cidade. Isso não é um fenômeno exclusivo do bairro, já que muitas outras regiões, especialmente na periferia, experimentaram algo semelhante.” Porém, a Copa do Mundo no Brasil deixou um legado de certa forma, e para Eduardo, isso mostra que a dinâmica urbana pode favorecer áreas menos valorizadas e que recebem investimentos em infraestrutura.” [Revista Zap Imóveis, abril 2016]
Itens a serem observados nas políticas de mobilidade urbana A disputa entre modelos de projetos de mobilidade pode ser visualizada de acordo com o enquadramento analítico denominado Nirvana Assumption, conforme quadro 7 (Rothstein, 1998). O quadro permite visualizar e comparar as soluções de mercado e as soluções de Estado, considerando um entendimento de ambos em suas concepções normativas mais comuns, respectivamente de atendimento do bem comum e de garantia da iniciativa individual. Originalmente, o quadro não é aplicado a nenhuma política setorial, contudo, nesse estudo o enquadramento foi utilizado para analisar a relação dos valores de Mercado e de Estado relacionado à mobilidade urbana.
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Quadro 7: Nirvana Assumption Mercado
Estado
Valor geral
Expressão na política de mobilidade
Expressão na política de mobilidade
Valor geral
Eficiência
Fluidez de tráfego (highways, freeways, passarelas elevadas para travessia de pedestre)
Segurança dos usuários (redução da velocidade de vias, semaforização, faixas de pedestre)
Justiça
Transporte público coletivo com integração modal
Democracia
Espaço viário destinado a ao transporte coletivo e a pedestres, restringindo áreas ocupadas por carros
Tratamento Equânime
Liberdade de Modal individual Escolha motorizado
Criatividade
Produção de carros elétricos, carros menores (para 2 pessoas), bicicletas motorizadas
Adaptado (Rothstein, 1998, p. 201)
Analisando a dinâmica do Estado brasileiro no contexto dos valores que orientam esses modelos normativos, percebemos que na prática política, embora o marco legal tenda para os valores gerais do Estado Democrático, a aplicação de recurso prioriza fortemente o atendimento aos valores de mercado. Em outros termos, as soluções não são implantadas com base em seu valor de uso para a população, mas sim com base no valor de troca que as políticas podem oferecer aos agentes do mercado. É por isso que, apesar do transporte coletivo ter um valor de uso superior para a população, ele não recebe um nível de investimento comparável ao do automóvel, que, apesar de ter um valor de uso menor para a coletividade, possui maior valor de troca, beneficiando determinados agentes da economia. 149
O veículo automóvel não se reduz a um objeto material dotado de certa tecnicidade, meio e lugar socioeconômico, portador de exigências e de pressões. O Automóvel dá lugar às hierarquias: a hierarquia perceptível e sensível (tamanho, potência, preço) e se desdobra numa hierarquia mais complexa e sutil, a das performances (Lefebvre, 1991, pp. 110-4). Essa dinâmica reflete a atuação do Estado em uma sociedade capitalista e explicita um aparente paradoxo. Ao mesmo tempo em que o poder público elabora um marco jurídico que trata a mobilidade como valor de uso (justiça, tratamento equânime, democracia), age induzindo um modelo de desenvolvimento que se fundamenta no valor de troca, em favor da indústria automotiva. Nesse contexto, é possível identificar linhas de financiamento do PAC da Mobilidade para a preparação das cidades-sede da Copa de 2014 que passaram pelos extremos de cada lado. Ao mesmo tempo em que buscavam dar prioridade ao transporte público, o fizeram por meio de megaprojetos, desqualificando os Planos Diretores em vigor em cada cidade, e não por meio de um planejamento urbano que desse conta de diversificar os usos do solo para encurtar as distâncias de deslocamento pendular, por exemplo. Megaeventos demandam megainvestimentos, que precisam de megajustificativas para serem executados, em especial quando o público é chamado a pagar seu preço. Como parte da estratégia para atrair cidades a postular candidaturas para sediar os Jogos Olímpicos, o Comitê Olímpico Internacional passou a adotar o discurso dos legados possíveis para uma cidade a partir da década de 1990, tendo Barcelona como cidade modelo de um legado urbano desejado (Mascarenhas, 2010). Logo, essa estratégia passou a ser adotada por megaeventos em geral, não apenas esportivos. 150
Quando o Brasil foi escolhido para sediar a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos, passou a fazer parte do discurso do governo a janela de oportunidades que se abrira para o país: valorização da marca Brasil, atração de turistas, geração de empregos e, com ênfase frequente, investimentos públicos para qualificar os espaços urbanos. No modelo de gestão adotado no Brasil nos anos 2010, com grande retomada do papel do Estado como financiador e investidor (em especial por meio do BNDEs e dos PACs), pacotes de intervenções urbanas na área de infraestrutura passaram a fazer parte do legado possível da Copa, em especial aeroportos e obras de mobilidade urbana. Ao final dos preparativos para a recepção dos jogos da Copa de 2014, as 12 cidades-sede brasileiras contariam então com mais equipamentos urbanos, capazes de sanar, ao menos em parte, os problemas relacionados à mobilidade vivenciados pelas populações: congestionamento, poluição do ar e sonora, frequente má qualidade do transporte coletivo público, acidentes de trânsito, altas tarifas e falta de acessibilidade. Sem dúvida, são problemas relacionados à qualidade de vida das populações. Observando que dentro dos movimentos sociais urbanos a pauta de moradia é consideravelmente mais forte que a da mobilidade, a conquista de tantos recursos para a área de fato constituiu uma oportunidade inédita. Entretanto, para se evitar a ilusão de que mais dinheiro gasto é sinônimo de política pública bem executada e de problema resolvido, é preciso qualificar como essa “oportunidade” foi de fato aproveitada, e que tipo de política foi implementada nos anos correntes em função da Copa do Mundo. Com base tanto nos documentos orientadores do PAC da Mobilidade Urbana, documentos do ITDP, da ANTP e na Lei 151
da Política Nacional de Mobilidade Urbana, foram criados sete blocos temáticos considerados estruturantes para uma política urbana que trate a mobilidade como um direito de sua população:
1. 2. 3. 4. 5. 6. 7.
Blocos temáticos estruturantes para a política urbana de mobilidade Processo de Formulação/ Ciclo de gestão Diversificação e integração modal Conforto para usuário de transporte público Inclusão social Qualidade ambiental Integração com política de uso e ocupação do solo Segurança como valor principal da política de mobilidade (e não fluidez)
Vale observar que, ainda que a melhoria da Mobilidade Urbana fosse o legado prometido para o período pós-Copa, seus impactos posteriores foram estimados, mas não avaliados de forma conclusiva, dado o período em que essa pesquisa se realizou. Por exemplo, não é possível calcular o consumo de energia por viagem que será feito em 2020, mas que certamente depende das políticas executadas anos antes. A análise do percentual das frotas de veículos do transporte coletivo que dispensem o uso de combustíveis fósseis já permitiria inferir se o consumo energético irá aumentar ou diminuir, mas tampouco esse dado será disponibilizado a tempo para ser interpretado. A tendência relacionada ao número de mortos no trânsito, por sua vez, entrou na pesquisa, assim como a redução da velocidade de vias, dados que ajudam a analisar se o fator segurança está sendo incorporado pela política da cidade. Para cada um destes blocos, foram listados itens concretos a serem avaliados, apresentados a seguir. 152
Processo de Formulação/ Ciclo de gestão 1. Processo de Formulação/ Ciclo de gestão
Dado
Fonte
a) Alteração de marcos legais que regulem o Leis e Decretos tema b) Projetos que foram sugeridos/passaram por instâncias decisórias com mecanismos de participação social ou accountability
Realização de audiências públicas, instalação de conselhos, GTs ou comitês e eventos abertos organizados pelo poder público
Diário Oficial e sites institucionais Sites institucionais das Prefeituras, GDF, Ministério Público e Associações da Sociedade Civil
Em 2005, o termo utilizado para qualificar o Plano Diretor de Transporte Urbano, exigência do Estatuto das Cidades para cidades acima de 500 mil habitantes, incorpora a palavra mobilidade por meio da Resolução nº 34 do Conselho das Cidades (Conselho das Cidades, 2005) devendo o mesmo estar integrado ao plano diretor municipal. Esta resolução definiu o escopo mínimo de um plano diretor de transporte e mobilidade – PDTM. A inexistência de um PDTU era uma ameaça ao recebimento de recursos federais para política urbana. A penalidade de repasse de recursos federais é válida para grandes centros urbanos, embora a maior parte dos pequenos municípios brasileiros não faça investimentos de grande porte com esse apoio. O conteúdo dos planos diretores de transporte foi sendo amadurecido com o tempo, com o estabelecimento de conteúdos mínimos na Resolução 34 do Conselho das Cidades e depois com a elaboração da Política Nacional de Mobilidade Urbana. Embora o Ministério das Cidades não faça julgamento de mérito 153
sobre o conteúdo dos Planos e considere apenas sua existência ou não como critério para recebimento de recursos, em especial do PAC, o estabelecimento de conteúdos mínimos ajuda a qualificar o debate na fase de formulação dos planos no âmbito municipal.
Fonte: Brasil, 2005; Brasil, 2012, apud (Lima Neto & Galindo, 2013, p. 9)
A alteração em curso de marco legal de maior alcance nos preparativos da Copa do Mundo referiu-se ao Regime Diferenciado de Contratação (RDC). Para além deste, ainda no plano nacional, a Lei 12.348 excluiu das vedações ao refinanciamento de dívidas dos municípios as operações de crédito relacionadas à Copa e às Olimpíadas, autorizadas pelo Conselho Monetário Nacional, o que na prática significou permissão para o aumento do endividamento dos entes públicos. Essa oferta de 154
novos limites para o endividamento foi recebida como uma notícia que ajudaria a viabilizar os investimentos necessários. Como estava a serviço de um modelo de cidade-negócio, mesmo os segmentos costumeiramente defensores do rigor fiscal não criticaram a medida publicamente.
Fonte: (Santos Júnior, 2014, p. 17)
Em Brasília, foi publicado o Decreto 33.346 de 18 de novembro de 2011, instituindo regime de tramitação prioritário para os processos administrativos relacionados ao Plano Estratégico das Ações do Governo Brasileiro para a realização da Copa. Além desse marco relacionado às formas de contratação, o Distrito Federal contou com seu Plano Diretor de Transporte Urbano entrando em vigor em 2011, inicialmente previsto para entrar em vigor em 2009. Em meio a um período de instabilidade política que resultou na prisão do então governador, José Roberto Arruda, e renúncia de seu vice, o empresário do ramo imobiliário Paulo Octávio, a elaboração do PDTU foi alvo de diversas críticas da sociedade civil, tendo uma aprovação protocolar na Câmara Legislativa do Distrito Federal, para o GDF acessar recursos do PAC. 155
Já em São Paulo, a luta pelo conteúdo do Plano Diretor de 2015 contou com o protagonismo de vários movimentos sociais urbanos, em especial com a expectativa de adensamento das áreas residenciais próximas a sistemas de transporte de alta capacidade, de limitação do número de vagas de garagem para empreendimentos localizados também no entorno de sistemas de transporte público, e de delimitação de Zonas Especiais de Interesse Social em áreas infraestruturadas. O Plano Diretor de São Paulo foi sancionado em 2015, assim como o decreto que institui o Plano de Mobilidade. Um dos destaques apontados por diversos urbanistas em relação aos marcos urbanísticos de São Paulo foi o aumento em 117% das áreas voltadas para moradia popular com criação de Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) para famílias que ganham até dez salários mínimos, a destinação de 30% do Fundo de Desenvolvimento Urbano para obras de mobilidade, a regulação do crescimento vertical máximo nos centros dos bairros e a extinção do mínimo de vagas de estacionamento para novos empreendimentos. No campo nacional, houve duas iniciativas de articulação pela sociedade civil voltadas para a incidência política: a articulação nacional dos Comitês Populares da Copa e o projeto Jogos Limpos, articulado pelo Instituto Ethos. Enquanto o projeto Jogos Limpos teve como pautas principais a questão da transparência no acesso aos dados referentes aos preparativos da Copa do Mundo e a questão do acompanhamento do gasto público, os Comitês Populares tiveram como principal pauta as violações de direitos cometidas em função dos megaeventos, principalmente no campo da moradia e das liberdades de manifestação. Uma conquista dos movimentos sociais articulados em torno do impacto da Copa foi a criação do Grupo de Trabalho sobre 156
megaeventos e direitos à moradia63, pela Secretaria Especial de Direitos Humanos64 no governo federal em 2013, como resposta às manifestações feitas na Copa das Confederações. Nos planos locais, a supressão das instâncias de participação popular foi a regra na condução das obras e dos processos de remoção de famílias. As remoções, causadas principalmente em função de obras viárias da Copa do Mundo deram a tônica das manifestações puxadas pelos Comitês Populares desde 2010, assim como também foram denunciados os gastos relacionados com obras consideradas superdimensionadas, como os monumentais estádios em cidades onde não havia demanda para equipamentos desse porte. A articulação dos Comitês Populares ocorreu como uma frente de movimentos sociais urbanos, envolvendo o Movimento Passe Livre, a Central de Movimentos Populares (CMP), o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), movimentos de democratização da comunicação, associações de torcedores, ambulantes, movimentos de mulheres, advogados populares, movimentos de mobilidade, associações de moradores, organizações de direitos humanos de maneira geral e pesquisadores acadêmicos. Na maioria das cidades-sede foram montados Comitês Populares da Copa, sendo que o de Belo Horizonte65 optou por 63. Cujo relatório final pode ser acessado aqui: http://www.sdh.gov.br/sobre/ participacao-social/cddph/relatorios/relatorio-g.t-moradia-adequada 64. Resolução 9, de 6 de outubro de 2011. 65. Chama a atenção, na perspectiva da cidade de exceção, que em meio a esses investimentos o município, através de seu prefeito Márcio Lacerda, recorreu ao STF para alterar excepcionalmente dispositivo de sua Lei Orgânica que obriga percentual mínimo de 30% do orçamento municipal em educação. A lei orgânica do município data de 1990 e a ação cautelar, com pedido de liminar, apresentada pelo prefeito, alega que essa exigência prejudica os investimentos para a Copa do Mundo de 2014, e sugere investir 25% do orçamento em educação,
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se intitular Comitê dos Atingidos pela Copa, reforçando que a composição do Comitê deveria ser pautada pelas violações concretas, e o protagonismo da luta deveria ser de lideranças populares envolvidas com a questão, evitando que os porta-vozes fossem pessoas apenas solidárias às violações de direitos.
Diversificação e integração modal 2. Diversificação e integração modal
Dados / Informações
a. Implantação de novos modais (monotrilho, VLT, metrô, BRT)
Lista de empreendimentos em planejamento/licitação (expansão das redes e instalação de novos modais)
b. Integração tarifária
Regras de utilização de Bilhete Único
c. Criação de rotas de pedestre (calçamento e travessia adequada)
Km de calçamento e localização
d. Criação de rotas de bicicleta (ciclovia, ciclofaixa e faixa compartilhada)66
Km e localização
e. Implantação de bicicletários em terminais de ônibus ou metrô (serviços de empréstimo gratuito ou locação também serão considerados)
Capacidade e localização
f. Aumento da frota de táxi
Taxis/mil habitantes
conforme exigido pela Constituição Brasileira. Pela lei orçamentária de 2013, esse desvio representaria algo em torno de R$ 500 milhões que foram deslocados da educação para as obras da Copa. 66. A ciclofaixa não é segregada do asfalto, e pleiteia o uso compartilhado das ruas com os carros e demais veículos com medidas de moderação de tráfego. Já a ciclovia possui obstáculos (guia, elevação, tachões) para impedir o acesso de carros à via exclusiva para bicicletas.
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Tanto em São Paulo como em Brasília a implantação de novos modais em função da Copa do Mundo foi uma expectativa não alcançada. Na Matriz de Responsabilidades apresentada como compromisso do poder público com o “legado” da Copa do Mundo constava a implantação do VLT no Distrito Federal e do Monotrilho Linha Ouro em São Paulo. Contudo, a licitação do VLT no Distrito Federal foi cancelada por decisão da justiça, com base em irregularidades encontradas e a obra do Monotrilho em São Paulo sofreu sucessivos atrasos, também em meio a denúncias de corrupção envolvendo as empresas de transporte sobre trilhos e o governo estadual. Empreendimentos de mobilidade previstos para o Distrito Federal na Matriz de Responsabilidade da Copa do Mundo
O projeto do VLT de Brasília foi idealizado ainda no governo de José Roberto Arruda, que chegou a instalar um vagão modelo no Setor Comercial Sul, região central de Brasília, aberto à visitação para que a população conhecesse o modal. Em abril de 2011 o Tribunal de Justiça do Distrito Federal confirmou que houve fraude na licitação e suspendeu a obra 159
anulando seu contrato, pois a concorrência havia sido direcionada para beneficiar empresários ligados ao então presidente do Metrô do Distrito Federal, José Gaspar de Souza. Vencedor da licitação, o consórcio formado pelas empresas Daclon, Altran/ TCBR e Veja Engenharia entrou com recurso contra a suspensão, sem sucesso. Em setembro de 2012, foi publicada no Diário Oficial da União a resolução que oficializou a retirada da obra do VLT de Brasília da Matriz de Responsabilidades da Copa do Mundo, embora o Governo do Distrito Federal continuasse manifestando o interesse em realizar a obra para a Copa do Mundo, devido às facilidades de financiamento que esta teria. Com o histórico polêmico, o projeto acabou sendo abandonado pela gestão sucessora. Figura 10: Vagão modelo em exposição pública sobre o VLT – foto de divulgação GDF
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Empreendimentos de mobilidade previstos para São Paulo na Matriz de Responsabilidade da Copa do Mundo
O projeto do Monotrilho de São Paulo foi concebido na gestão José Serra, com custos e prazos subestimados. Se inicialmente a previsão de gastos era de 3,9 bilhões de reais e a previsão de entrega o colocava como pronto para ser utilizado na Copa do Mundo de 2014, o monotrilho seguiu 2015 sem ter nenhum dos seus 17,6 km inaugurado e com gastos já tendo ultrapassado 5,5 bilhões de reais. Houve ainda o rompimento de contrato entre o Metrô de São Paulo e as empreiteiras Andrade Gutierrez e CR Almeida num trecho da obra, complicando ainda mais a execução do projeto. Em 2016, a previsão era de que a obra estivesse pronta em 2018. A suspensão das obras foi publicada no Diário Oficial da União e se aplicava justamente aos trechos que fariam a conexão do Monotrilho com o Aeroporto de Congonhas e com o metrô. Dos 38,6 km previstos para 2014, nem mesmo 10 quilômetros estavam concluídos em 2015. 161
Em comum aos dois projetos polêmicos está a presença da empresa Alstom, envolvida no escândalo conhecido como “trensalão”, que consistiu em uma série de irregularidades cometidas por empresas como a Siemens, CAF do Brasil, Bombardier e Alstom, em contratos de manutenção de 88 trens da CPTM, entre 2007 e 2012, nos governos de José Serra e Geraldo Alckmin. A integração tarifária em São Paulo (implantada desde a gestão Marta Suplicy, 2000-2004) contou com aperfeiçoamentos e o lançamento de cartões específicos como o Bilhete Único Mensal, Semanal e Diário, oferecendo mais opções de economia em viagens realizadas, embora a tarifa tenha sido aumentada no período. Ao completar uma década de funcionamento em 2014, o sistema de integração tarifária de São Paulo pode ser considerado dos mais organizados do país. A integração tarifária em Brasília foi prevista em 2006, mas só parcialmente implantada após muitas postergações em seguida à licitação de 2012 para renovação da frota e entrada de novas empresas de ônibus. Ainda não teve o alcance previsto, sendo pouco divulgada inclusive pelo próprio governo, pois, devido a uma falha cometida na licitação, o alto custo do subsídio necessário para a integração tarifária torna a operação financeiramente pouco interessante para o governo. Da maneira como foi prevista, o custo da segunda viagem feita pelo usuário do transporte coletivo é cobrado na sua integralidade do poder público67 (sendo que não é possível para o usuário fazer mais de duas viagens com integração tarifária). Em relação ao incentivo ao modal cicloviário, Brasília realizou inicialmente investimentos maiores que São Paulo. Quando 67. Análise em: https://glo.bo/2SRw9Lc
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o governador Agnelo Queiroz assumiu o Governo do DF em 2011, havia pouco mais de 40 km de ciclovias. Ao final de 2014, cerca de 400 km foram adicionados à malha cicloviária do DF, ainda que sua qualidade fosse questionada de maneira incisiva pelos movimentos cicloativistas do DF68 e por especialistas. Já no município de São Paulo, o então prefeito, Gilberto Kassab, também não foi poupado de críticas, tendo feito investimentos ainda menores no uso da bicicleta e com uma concepção explícita mais voltada para o lazer do que para mobilidade. Foi divulgada a época pela prefeitura a construção de 76 km de vias para ciclistas, mas foi apurado que a conta incluía ciclofaixas que funcionam apenas aos fins de semana. Posteriormente, a gestão Fernando Haddad investiu em infraestruturas cicloviárias permanentes, tendo alcançado a marca de 328 km de ciclovias implementadas no município de São Paulo até o início de 2016. Não houve expedição de novos alvarás de funcionamento de táxis no Distrito Federal ou em São Paulo. O Distrito Federal conta com frota de táxis de 3.400 veículos e São Paulo de 33.843. Ambas as cidades, após a Copa do Mundo, passaram a contar com serviços de trasnporte individual por aplicativo, sendo o Uber o mais conhecido, concorrentes do serviço tradicional de táxi, que passam por um processo delicado de regulamentação nas duas cidades.
68. Ver https://bit.ly/2Kf4xfe
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Conforto para o usuário de Transporte Público 3. Conforto para o usuário de Transporte Público
Dado
a) Expansão da cobertura espacial dos modais existentes
Número de destinos/comprimento de rotas/oferta de assentos por hora
b) Modernização de terminais
Pagamento antecipado/ instalação de banheiros e bebedouros/ postos de informação/ proteção para chuva
c) Redução de tempo de viagem69
Pesquisa Origem Destino / Pesquisa Nossa São Paulo / Velocidade média do tempo de viagem
d) Informação gratuita e facilmente Site e informativos com itinerário e acessível sobre linhas, horários e horários das linhas itinerários e) Priorização de investimento em áreas de congestionamento
Área de localização dos Km engarrafados e orçamento executado
f) Projetos de novos viários com previsão de corredor de ônibus
Presença de corredor de ônibus em obras viárias
69. Onde a pesquisa origem-destino não está disponível, pode-se estimar seus dados em função da área média de captação dos pontos de transporte público e da velocidade média de caminhada. O tempo de espera pode ser estimado em função da frequência média de viagens das linhas de transporte que servem o local (inclui headway para usuários de trem/metrô) (Vasconcellos, 2001, pp. 141-2). Outro ganho para a mensuração desse item refere-se à incorporação que o CENSO 2010 fez em seu questionário, perguntando agora sobre o tempo de deslocamento das pessoas.
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g) Acessibilidade para deficientes com autonomia
Relação frota de ônibus e táxi adaptada/mil habitantes e quilômetros de calçadas adaptadas
h) Aquisição de ônibus de piso baixo / Elevação dos pontos de ônibus
Assentos em ônibus de piso baixo / reforma de terminais de corredores
A experiência do DF com corredores de ônibus é incipiente e não muito bem-sucedida. A primeira tentativa de trabalhar com corredores de ônibus em Brasília foi a linha verde, na EPTG, do governo Arruda, que não funcionou devido ao fato de que não se criou a obrigação para que as empresas adquirissem ônibus com portas do lado esquerdo. Esse erro abismal de planejamento, levou à inoperância desse corredor, que possui 13 km de extensão, e passados mais de 7 anos de sua obra, continua sem funcionamento. A segunda experiência foi o chamado Expresso DF, corredor Sul, que liga as cidades do Gama e Santa Maria ao Plano Piloto. O Expresso DF foi inaugurado pelo governador Agnelo Queiroz (2011-14) e com a presença da presidenta Dilma Roussef em 13 de junho de 2014, com ônibus de portas dos dois lados e piso baixo. Essa obra não constava na Matriz de Responsabilidades do DF, e nem mesmo se localizava próximo ao estádio onde foram realizadas as partidas, mas foi apresentada pelo então governo Agnelo como legado da Copa do Mundo para a mobilidade no DF, depois que o projeto do VLT foi definitivamente cancelado. O projeto custou cerca de R$ 800 milhões de reais. O projeto do Expresso DF teve em seu consórcio a presença das empreiteiras Andrade Gutierrez, Via Engenharia e OAS. Em meio às investigações da operação Lava Jato da Polícia Federal, o 165
ex presidente da empresa OAS teve conversas telefônicas interceptadas, nas quais se indicou que o ex-ministro da Previdência Social Carlos Gabas intermediou negócios da empreiteira com o Governo do Distrito Federal entre 2012 e 2014, época em que era comandado por Agnelo Queiroz (PT) e tinha como vice o peemedebista Tadeu Filippelli. A pretensa expansão do Metrô para ter sua primeira estação na Asa Norte ficou como apenas mais um anúncio de intenção do governo Agnelo. O metrô permaneceu com sua extensão de 43 km nessa gestão, e que alcançou a marca de 55 km de faixas exclusivas para ônibus e 43 km de BRT. O impacto da implantação do BRT foi a redução do tempo de viagem de Santa Maria para o Plano Piloto de 1h30 para 40 minutos a contar do trajeto do Terminal Santa Maria para a Rodoviária do Plano Piloto, ainda que o deslocamento dos polos de origem até o terminal tenha grande variação no tempo, devido à extinção de diversas linhas alimentadoras. A cidade de São Paulo teve mais experiências com faixas exclusivas e corredores, inclusive o projeto “Fura Fila”, atual expresso Tiradentes, que teve início em 1998 na gestão Celso Pitta e só chegou a funcionar de fato em 2007 na de Gilberto Kassab, após ter consumido mais de R$ 800 milhões para seus quase 10 km de extensão. A implantação de faixas e corredores de ônibus em São Paulo entrou na agenda da cidade de maneira mais estruturada na gestão Marta Suplicy e Fernando Haddad, que enfrentando grande resistência de associações de moradores de bairros de alta renda e dos meios de comunicação. Entretanto, mesmo com resistências na implantação, a política de transporte recente mostrou resultados positivos na cidade, como a redução do tempo de viagem dos 166
passageiros de ônibus e a redução de mortes no trânsito, explicados na sequência deste texto. Um levantamento divulgado pela Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) em 2014 mostra que a velocidade média nos 59,3 km de faixas exclusivas de ônibus implantadas aumentou 68,7% naquele ano. A variação, segundo o órgão, foi de 12,4 km/h para 20,8 km/h. Entretanto, a velocidade média do sistema de ônibus municipal como um todo ainda não alcançou a meta de 25 km/h, tendo permanecido em 17 km/h. A meta inicial de implantar 150 quilômetros faixas foi bastante superada, tendo alcançado a marca de 500 km de faixas exclusivas, muitas nos locais onde a previsão de se construir 150 km de corredor de ônibus não pôde ser cumprida (em razão de dificuldades financeiras e com o Tribunal de Contas municipal). A execução maior das obras de transporte relacionadas ao modal rodoviário nas duas cidades reflete o que acontecia no restante do país, onde o orçamento disponível para mobilidade era aplicado especialmente em BRTs. Ainda que o sistema metroviário tenha recebido investimentos nos governos Lula e Dilma, há ainda um passivo de anos de investimentos congelados para ser reposto, que ainda não foi feito nesse período de preparação de recebimento dos megaeventos, conforme se vê nas figuras a seguir:
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Figura 11: Histórico dos investimentos em intervenções operacionalizadas (2009-2016)
Fonte: Anuário NTU 2015/2016
Figura 12: Histórico de infraestrutura operacionalizada (2009-2016)
Fonte: Anuário NTU 2015/2016
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Inclusão social 4. Inclusão social
Dado
a) Acessibilidade da tarifa (% em relação ao Salário Mínimo)
Tarifa e Salário Mínimo
b) Expansão de grupos isentos de pagamento de tarifa
Grupos isentos e % em relação aos usuários / financiamento da isenção
c) Expansão dos horários e dias de funcionamento dos modais aos finais de semana.
Horário de funcionamento
d) Comparação sociodemográfica IDH-M dividido pelos distritos das entre população beneficiada pela intervenção e população que recebe cidades as externalidades da intervenção.
Se uma política de mobilidade se propõe a estimular o uso do transporte coletivo, como foi apresentado nas políticas do legado da Copa, a acessibilidade econômica é um fator fundamental a ser levado em consideração. Quando analisamos as variações dos preços das tarifas de ônibus, da gasolina, do carro e da inflação no Brasil desde os anos 2000, percebe-se facilmente que este foi um período em que o acesso ao transporte individual foi priorizado, em termos econômicos, em relação aos demais modais, sendo que, particularmente a partir de 2006, os preços dos veículos no mercado praticamente param de crescer, como se observa no gráfico 16. Isso significa que o transporte público coletivo passa a ser sistematicamente mais caro e o transporte individual motorizado mais barato (seja via redução de IPI ou via renúncia de arrecadação da CIDE). A Fundação Getúlio Vargas chegou a fazer 169
estudo em 2013 simulando o impacto da municipalização da CIDE (Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico) no barateamento da tarifa, chegando à conclusão de que o aumento de R$ 0,50 no preço do litro de gasolina, com a destinação da verba arrecadada exclusivamente para subsídio do transporte coletivo, possibilitaria redução de R$ 1,20 no valor da tarifa de ônibus, a época em R$ 3. O estudo conclui ainda que o impacto é deflacionário, visto que a tarifa pesa mais no índice da inflação do que o preço da gasolina. Gráfico 16: Variação dos preços das tarifas de ônibus, da gasolina, do carro e inflação no Brasil (2000 a 2012)
Fonte: IPEA com base em IPCA (IBGE). Nota: Regiões Metropolitanas de Belém, Fortaleza, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba, Porto Alegre, Brasília e Goiânia.
A Proposta de Emenda Constitucional 307 propõe a municipalização de 70% dos recursos da CIDE, com divisão de 20% do 170
restante da arrecadação para os estados e o Distrito Federal e 10% para a União. A CIDE havia sido zerada em 2012 e, em janeiro de 2015, o governo federal anunciou a volta da cobrança sobre a gasolina e o diesel, com a estimativa de voltar a arrecadar cerca de 4 bilhões de reais e ter auxílio para colocar suas contas macroeconômicas em dia, conforme anunciado na data pelo então ministro Ricardo Levy. A atual distribuição dos recursos arrecadados com a CIDE prevê que 20% dos recursos sejam desvinculados, de acordo com o instrumento Desvinculação de Receitas da União (DRU), 29% sejam destinados aos estados e municípios e 51% são investidos em infraestrutura de transportes. Gráfico 17: Evolução da alíquota da Cide – Combustíveis de 2002 a 2015
Fonte: Confederação Nacional dos Transportes
Mesmo com a aprovação da Política Nacional de Mobilidade Urbana, em 2012, e, em 2015, com a inserção do transporte coletivo como direito social (artigo 6º), não parece haver indícios de uma mudança efetiva nos subsídios dados pelos governos federal, estaduais e municipais no sentido de baratear as tarifas do transporte coletivo. Em 2013, as manifestações populares seguraram por algum 171
tempo o aumento da tarifa dos ônibus em cerca de 100 municípios brasileiros, inclusive em São Paulo, mas passadas as eleições presidenciais de 2014 houve aumento nas tarifas de forma generalizada em diversas capitais, inclusive em Brasília, onde a tarifa estava congelada desde 2008, após um reajuste muito acima da inflação.
Qualidade ambiental 5. Qualidade ambiental
Dado
a) Mudança na matriz de combustível (redução da dependência de combustíveis fósseis)70
Assentos/hora por modais: trilhos, trólebus, Eco Frota e outras fontes de combustível
Nesta dimensão, foi utilizado como referência um estudo sobre o impacto ambiental da implantação de faixas exclusivas de ônibus em São Paulo. No caso de Brasília, vale dizer, não há tanta produção de dados nessa perspectiva, e os dados existentes ou são de baixa confiabilidade ou de difícil acesso. Por meio de um pedido de acesso à informação ao GDF, foi descoberto que o DF realizou um inventário de emissão de gás carbono em 2012. No entanto, esse estudo não foi disponibilizado por nenhum órgão consultado (a Secretaria de Mobilidade informou que os dados estariam com a Secretaria de Meio Ambiente, e a mesma que estaria com a Secretaria de Agricultura, que voltou a afirmar que o estudo estaria com a Secretaria de Meio Ambiente). 70. A emissão de poluentes é estimada pela ANTP considerando dois tipos de emissões: poluentes locais (Monóxido de Carbono (CO), Hidrocarbonetos (HC), Óxidos de Nitrogênio (NOx), Óxidos de Enxofre (SO2) e Material Particulado (MP)) e poluente de efeito estufa (Dióxido de Carbono (CO2)). As emissões totais representam a soma das emissões destes dois tipos.
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Em São Paulo, o estudo de faixas exclusivas de ônibus foi conduzido pelo Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA), organização sem fins lucrativos, independente e de interesse público, que se dedica ao estudo de problemas ambientais urbanos. O estudo (IEMA, 2014) constatou pequeno ganho de velocidade e consequente redução de poluentes e de gases que provocam efeito estufa. A análise da eficácia das faixas exclusivas de ônibus tomou por base os trechos do Corredor Norte-Sul e das avenidas Radial Leste e Brigadeiro Luís Antônio. O ganho de velocidade não foi maior devido a questões como a grande ocorrência de conversões e cruzamentos ou a falta de pontos de ultrapassagem entre os ônibus. As mesmas questões que reduzem a eficiência em termos de velocidade dos ônibus impactam também a eficiência energética no consumo de combustível, freios e pneus, dado o desgaste de uso a cada parada desnecessária. Além da diferença de ganhos de velocidade entre as faixas, há também diferenças entre as linhas que operam numa mesma faixa de ônibus, conforme os motivos listados abaixo pelo IEMA: Existe uma grande variação no desempenho das faixas e das linhas (ganhos de velocidade), em função das especificidades quanto a: • Condições das vias: declividade, número de interseções, tempos de semáforo, número de faixas por sentido, volume de tráfego; • Características das linhas que por elas circulam: trajeto, pontos de parada, sobe e desce, tempo de embarque e desembarque (linhas que circulam pela mesma faixa exclusiva demonstram comportamentos variados) (IEMA, 2014, p. 60)
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Como referência, das três faixas de ônibus analisadas, utilizamos o resultado da avaliação da faixa da Radial Leste, que trata do fluxo da população da Zona Leste, região onde se localiza o estádio do Itaquerão, ao Centro. Na figura 13, se observam as velocidades médias (km/h) das linhas de ônibus nos trechos de faixa exclusiva e nas horas pico: Figura 13: Faixa Exclusiva Trecho Radial: Velocidades médias das linhas de ônibus nos trechos de faixa exclusiva e nas horas pico (km/h)
Ainda que seja visível uma melhora no tempo de trajeto das linhas, é visível também a ineficiência geral do sistema de transporte coletivo, dado que, mesmo com a implementação das faixas exclusivas, a velocidade média da linha mais bem colocada na avaliação não chega a 20 km/h. De acordo com o estudo do IEMA, é a partir dessa velocidade (20 km/h) que a eficiência do ônibus se torna mais adequada em termos ambientais, reduzindo a emissão de poluentes. Em termos relativos, vale dizer que a redução do tempo gasto no percurso teve maior impacto para a população (e mais perceptível) que o ganho ambiental, chegando a quase 30%, como se observa na figura 14. De maneira geral, isso reforça o conhecimento de que o desincentivo aos transportes individuais motorizados é benéfico para a sociedade como um todo, dado que carro e moto são os meios 174
que geram as maiores externalidades ambientais negativas. Assim, medidas que incentivem tanto o transporte coletivo, como os modos ativos de transporte (a pé e bicicleta) geram maiores benefícios ambientais para a sociedade. Dentro do uso do transporte coletivo rodoviário há ainda muitas melhorias que podem ser feitas tanto em relação à sua eficiência de tempo quanto aos próprios combustíveis utilizados por estes meios. Figura 14: Faixa Exclusiva Trecho Radial: Variação do tempo de percurso das linhas avaliadas nos trechos de faixa exclusiva nas horas pico (%)
Aqui se entende que a preocupação ambiental deve ser direcionada, num primeiro momento, para os tipos de modais, e, posteriormente, para seus combustíveis. Um ônibus elétrico com tarifa alta e sem horários claros pode poluir menos, mas continua sendo um problema de mobilidade. Na tabela 5, verifica-se a emissão de gases poluentes, calculada por passageiro transportado, para cada tipo de modal. O problema da emissão de gases poluentes e do consumo energético tem sido cada vez mais tema de estudos em todo o mundo, dada a preocupação com a questão das mudanças climáticas. Observa-se abaixo, a partir do levantamento do Observatório do Clima, que o setor de transportes, pelo menos desde a década de 70, é o principal responsável pelas emissões 175
de gases de efeito estufa no Brasil. Além disso, da década de 1970 até 2014, as emissões relacionadas ao setor de transportes cresceram mais de 5 vezes. Tabela 5: Emissão de gases poluentes por diferentes modais por passageiro
Fonte: Rodas da Paz, Relatório Desafio Intermodal 2014, com base nos dados do PROCONVE – Programa de controle da poluição do ar por veículos automotores (Ministério do Meio Ambiente)
Tabela 6: Emissões brutas de GEE no Setor de Energia (kt CO2e)
Fonte: Observatório do Clima (2015)
É importante alertar para o fato de que a adesão a discursos ambientalmente corretos, muitas vezes esconde ações, na verdade, de greenwashing, que apelam para a preocupação ambiental da população para justificar empreendimentos com benefícios duvidosos do ponto de vista social. Esse foi o caso 176
do Estádio Nacional Mané Garrincha, financiado às custas da especulação imobiliária promovida pelo próprio poder público, mas que se propagandeava como o estádio mais sustentável da Copa, pelo fato de economizar luz e água. Outro caso comum é o uso desse discurso por governos locais para remoção de famílias dentro de políticas de gentrification, sob pretexto de criação de parques urbanos. Foi descartada a análise sobre emissão de ruídos, pois nem todas as cidades possuíam esse dado. A parte da redução da dependência de combustíveis fósseis foi visivelmente prejudicada, dado que as obras enunciadas na Matriz de Responsabilidade, VLT no caso de Brasília e Monotrilho no caso de São Paulo, não foram realizadas no período, mantendo e reproduzindo a dependência do transporte rodoviário, sem investimento a altura para o sistema de transporte sobre trilho, de maior capacidade e menor uso de combustível fóssil. O Distrito Federal contou com lei aprovada em 6 de março de 2012 (lei 4.797/2012) tratando de mudanças climáticas e o artigo que tratava de transporte (7º) foi na época vetado integralmente pelo governador Agnelo Queiroz no momento de sanção da lei. Em abril de 2015, a Câmara Legislativa derrubou o veto, mas o período da elaboração e execução da licitação de renovação da frota de ônibus já havia passado e não foi feita na perspectiva de redução do uso de combustível fóssil. O artigo estabelece que as políticas de mobilidade urbana deverão incorporar medidas para a mitigação dos gases de efeito estufa e de outros poluentes e ruídos, visando a redistribuição da demanda pelo espaço viário. Após a derrubada do veto, a lei ainda aguarda regulamentação nessa temática.
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Integração com política de uso e ocupação do solo ...a primeira é a escala da “origem” das variáveis envolvidas na produção do evento; a segunda é a escala do seu impacto, de sua realização Santos, 1996, p.99. 6. Integração com política de uso e ocupação do solo
Dado
a) Políticas de descentralização de empregos e serviços
Plano Diretor, política de incentivos
b) Remoções de famílias atingidas pelas obras feitas adequadamente71
Ofertas de casas, localização destas e oferta de “cheque despejo”
c) Redução de áreas para estacionamento
Operações de multa e sinalização / desativação de estacionamentos públicos ou privados nos centros
A análise sobre a integração da mobilidade com o uso e ocupação do solo é das mais estruturais e reveladoras do modelo de urbanização feito. É onde ficam as cicatrizes visíveis da política urbana e de seus empreendimentos prioritários. Ainda que não tenha sido possível analisar as alterações da distribuição espacial de moradias e postos de trabalho nas duas cidades em questão no período da pesquisa, essas são informações que devem ser 71. O termo “adequadamente” se refere a um conjunto de elementos como: prazo com que moradores são avisados de sua remoção, se a casa será trocada por outra ou por um “cheque despejo”, e a distância do local original para o local onde a população será instalada. Outro ponto, mais complexo, é a avaliação de se a remoção é de fato necessária (se obra poderia ser feita em outro local), ou se a remoção atende à escolha de “limpeza social”.
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analisadas numa pesquisa posterior, para se perceber a dinâmica econômica das cidades. De acordo com os dados do IBGE de 2010, do total de 86 milhões de pessoas de 10 anos ou mais de idade ocupadas, 87,1% trabalhavam no próprio município de residência, sendo que 20 milhões (26,6% destes) trabalhavam no próprio domicílio e 55 milhões (73,4%) fora. Já os que trabalhavam em outro município atingiram 11,8% da população ocupada (10,1 milhões). O deslocamento para o trabalho em outro município no estado de São Paulo envolvia três milhões de ocupados (29,6% daqueles que se deslocavam para outro município). O Distrito Federal, de acordo com a mesma pesquisa, recebe diariamente mais de 200 mil pessoas do seu entorno para trabalhar (municípios de Goiás e Minas Gerais). Das 59,6 milhões de pessoas que frequentavam escola ou creche em 2010 no país, 8,3% o faziam em outro município. No Sudeste, o deslocamento para estudar foi de 2,0 milhões (8,5%) de estudantes, a maioria em São Paulo; 1,1 milhão de pessoas (57,0% do total do Sudeste) se deslocavam para outro município para estudar. Esses dados revelam a dimensão metropolitana dos deslocamentos. Percebe-se que, para lidar com a questão da mobilidade de forma estrutural, é necessário implementar ações que alterem a relação moradia-trabalho. Em Brasília, o processo da Copa do Mundo acabou por reforçar a centralidade já existente do bairro do Plano Piloto. Em São Paulo, se explorou uma nova centralidade na Zona Leste, bairro que recebeu o estádio e investimentos viários, ainda tendo a previsão de instalação de um polo tecnológico, com a perspectiva de geração de postos de trabalho. Localizada em Itaquera, bairro da região leste de SP, a Favela da Paz é uma ocupação instalada em um terreno público pertencente 179
à Companhia de Habitação de São Paulo – COHAB-SP há pelo menos 20 anos. Segundo levantamento da Prefeitura de São Paulo, realizado em 2013, na comunidade vivem cerca de 370 famílias em moradias precárias. A Favela da Paz fica a apenas 1 km do metrô Itaquera e do estádio Itaquerão (arena Corinthians), que sediou os jogos da Copa em São Paulo. Nos últimos anos, o poder público ofereceu incentivos fiscais para atrair empresas para a região, resultando na implantação de diversos projetos, dentre os quais, o Polo Institucional no entorno do metrô e do estádio, um parque linear e a Operação Urbana Jacu-Pêssego. A construção do estádio também contou com incentivos fiscais (somando cerca de meio bilhão de reais), derivados do pacote de incentivos para construções realizadas para a Copa do Mundo. A região se tornou um novo atrativo imobiliário, com investimentos em equipamentos comerciais como shoppings, hipermercados e grandes redes de magazine. Esse movimento, contudo, resultou não na integração da população de baixa renda, mas na sua expulsão pelo mercado, num processo conhecido como “remoção branca”, sem necessariamente recorrer a ações violentas de despejo ou desapropriação. Junto a isso, cresceram as ameaças de remoção das favelas da região, sobretudo, a Favela da Paz, tida como uma “espécie de empecilho para o desenvolvimento”, pois “enfeiam” a paisagem, “desvalorizam a região e prejudicam o sucesso dos futuros empreendimentos”. (Comitês Populares da Copa, 2014). Apesar do discurso de que estes investimentos trariam desenvolvimento da zona leste, o que se viu foi um intenso processo de valorização imobiliária que inviabiliza a permanência das famílias mais pobres na região e as obriga a migrar para regiões “mais baratas”, ou
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seja, mais distantes, desprovidos de infraestrutura, equipamentos e serviços públicos e privados em geral (Comitês Populares da Copa, 2014, p. 29).
Rolnik, na função de relatora especial da ONU para o direito à moradia, explica como os processos de sediar megaeventos nas cidades estão intrinsicamente ligados à prática da remoção de pessoas no mundo todo. Esses processos se configuram, na prática, em uma mudança do perfil dos moradores de determinadas regiões em função, ou sob a justificativa, dos megaeventos: Muchas otras personas se ven obligadas a desplazarse a causa de un proyecto de desarrollo. Según una estimación, en el decenio del 2000 los proyectos de desarrollo afectaron a 15 millones de personas al año. Los preparativos de megaeventos también dan lugar a inseguridad y desalojos forzosos (Rolnik R. , A/HRC/22/46, 2014) (Rolnik R. , 2009)
Em resposta à afirmação do governo federal de que “apenas” 35.653 famílias foram removidas de suas casas em virtude das obras da Copa do Mundo, a Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa (ANCOP) divulgou o seu Dossiê sobre violações de direitos feitas em nome da Copa do Mundo e Olimpíadas. Nas cidades-sede brasileiras, as violações ao direito à moradia foram frequentes na preparação para a Copa do Mundo. Muitas vezes, as famílias que teriam suas casas demolidas tomavam conhecimento do fato a partir dos meios de comunicação, ao desconfiar dos canteiros de obras nos arredores, ou abordadas informalmente por agentes da prefeitura (Comitês Populares da Copa, 2014, p. 21). O Dossiê organizado pela Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa reuniu ainda dados e denúncias relacionados 181
principalmente à questão da moradia e remoções, mas também à questão do trabalho, mobilidade, esporte, meio ambiente, gastos públicos, acesso à informação e segurança pública. Sua construção passou pela colaboração de pesquisadores acadêmicos com movimentos populares e as comunidades atingidas.
Segurança como valor principal da política de mobilidade (e não fluidez) Quantos vendedores de carros falam sobre seu trabalho? Quantos vendedores de cigarros? E os produtos dos dois matam mais gente todo dia que o meu [armamento]. Ao menos o meu vem com dispositivo de segurança. Se esses caras podem deixar o trabalho deles no escritório, eu também posso. Diálogo do filme “Senhor das Armas” (EUA, 2005), que tem como pano de fundo a questão do desarmamento. 7. Segurança como valor principal da política de mobilidade (e não Dado fluidez) a) Redução da velocidade de vias
Mudança na sinalização
b) Implantação de semáforos veiculares em vez de construção de passare- Lista de empreendimentos las de pedestres c) Aumento de instalação de semáforos e de faixas de pedestres inclusive com marcador de tempo para pedestre
Semáforos/mil habitantes
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O agravamento da violência no trânsito em todo o mundo levou as Nações Unidas a proclamar a Década de Ação pela Segurança no Trânsito 2011/2020, procurando estabilizar e, posteriormente, reduzir as cifras de vítimas previstas, mediante a formulação e implementação de planos nacionais, regionais e mundial. No Brasil: no ano de 2010, exatos 2/3 – 66,6% – das vítimas do trânsito foram pedestres, ciclistas e/ou motociclistas. Mas as tendências nacionais da última década estão marcando uma evolução extremamente diferencial: significativas quedas na mortalidade de pedestres; manutenção das taxas de ocupantes de automóveis; leves incrementos nas mortes de ciclistas e violentos aumentos na letalidade de motociclistas (Waiselfisz J. J., 2012, p. 3).
O crescimento da frota de automóveis tem tido como um dos efeitos nas cidades brasileiras o aumento do congestionamento e a redução das velocidades médias nos horários de pico, o que contribui para a redução das fatalidades no trânsito, reduzindo a letalidade das ocorrências que venham a acontecer. Conforme a OMS, o limite de velocidade adequado para as vias urbanas seria de até 50 km/h, política que vem sendo seguida pela Prefeitura de São Paulo. O excesso de carros nas vias por si só já possui um efeito antifluidez, mostrando como o carro, propagado por alguns setores como solução de transporte, perde sua eficiência a partir de determinada escala de uso. Balanço da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), divulgado em maio de 2014, mostrou que durante o horário de pico da tarde – que vai das 17h às 20h –, a redução da velocidade média dos veículos foi de 9,7 km/h para 6,9 km/h de 2012 para 2013. Esse monitoramento da CET, chamado Avaliação 183
da Operação Horário de Pico, é feito desde 1997, e os dados de 2013 foram os mais baixos no horário de pico da tarde desde o início da série histórica, mostrando a saturação do uso do automóvel na cidade de São Paulo. Na avaliação de 2014, houve ganho positivo na redução da extensão dos congestionamentos, resultado atribuído em especial à redução dos limites de velocidade das vias expressas, que contribuiu para o aumento das velocidades médias e consequente melhoria da fluidez nessas vias. São Paulo, conhecida como “a cidade que não pode parar”, vem reduzindo os limites de velocidade das vias e aumentando as velocidades médias reais dos veículos. Ainda na gestão Gilberto Kassab, a Avenida Paulista teve sua velocidade reduzida de 70 km/h para 60 km/h em junho de 2011, e já na gestão Fernando Haddad o limite de velocidade da Avenida Paulista foi reduzido de 60 km/h para 50 km/h em outubro de 2013, juntamente com outras vias da cidade, inclusive as marginais. As faixas locais das marginais tiveram as velocidades reduzidas de 70 km/h para 50 km/h, as pistas centrais de 70 km/h para 60 km/h e as expressas de 90 km/h para 70 km/h. Diversas avenidas da cidade também tiveram as velocidades reduzidas para 50 km/h, como a Faria Lima, Pedroso de Morais, Jacu Pêssego na Zona Leste. Dentro desse mesmo pacote de medidas, chamado “Programa de Proteção à Vida“, foram revitalizados 4.537 semáforos em cruzamentos na cidade. Os resultados do pacote de medidas podem ser conferidos nos Gráficos 18 e 19, que mostram a queda em número absolutos e o alcance da marca de menos de 10 mortos por 100 mil habitantes, enquanto a média no Brasil no mesmo período foi de 23,4, e a média global de 17,5.
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Gráfico 18: Mortes no trânsito em São Paulo, números absolutos 2005-2015
Fonte: CET, Elaboração: FSP
Gráfico 19: Mortes no trânsito por 100 mil habitantes em São Paulo, dez/2014 a nov/2015
Fonte: CET
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Embora Brasília tenha sido uma cidade pioneira no emprego de radares de fiscalização e redução dos limites de velocidade das vias durante a administração Cristovam Buarque (1995-1998), posteriormente a cidade não adotou novas medidas de moderação de tráfego, tendo na verdade aderido ao repertório rodoviarista de obras, com ampliações viárias e elaboração de projetos de túneis e viadutos, especialmente nas gestões Roriz (1999-2006) e Arruda (2007-2010). Estes últimos dois governadores em seus primeiros anos de mandato sempre tiveram a ocorrência da implantação de medidas de aumento nos limites de velocidade de algumas vias. Ainda assim, a cidade continua reduzindo de maneira quase constante seu número de vítimas fatais no trânsito, como se percebe tanto em números absolutos como a cada 100 mil habitantes (Gráficos 17 e 18)72. Gráfico 20: Vítimas fatais em ocorrências de trânsito, Distrito Federal, 1995-2014
72. Não foram encontrados dados públicos sobre as velocidades médias no DF.
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Gráfico 21: Índice de mortos por 100 mil habitantes, Distrito Federal, 1995-2014
Vale esclarecer porque não foram contempladas as passarelas nesta listagem sobre segurança viária: seu foco é manter a fluidez dos carros, ao custo de penalizar o pedestre, aumentando seu trajeto de travessia, obrigando-o a despender mais energia em um plano inclinado e aumentando seu tempo de deslocamento.
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CAPÍTULO 5 Considerações finais “Se o mundo urbano foi imaginado e feito, então ele pode ser reimaginado e refeito” Harvey, em A liberdade da cidade Um debate que não se esgotou com a realização da Copa do Mundo e que ainda está em andamento é o da definição do que seria, afinal, uma “obra da Copa”, uma vez que canteiros de obras incompletas permaneciam em diversas cidades-sede após os jogos, similarmente obras concluídas, mas sem relação direta com os jogos, foram anunciadas por governos como obras da Copa. Há critérios à disposição, como a inclusão oficial do empreendimento na Matriz de Responsabilidades assinada em 2010, a adoção do Regime Diferenciado de Contratação até 2011 e, menos oficial, obras incorporadas em peças publicitárias estatais como sendo vinculadas à realização da Copa, com antecipação da data prevista de entrega para mesmo prazo das obras incluídas nos critérios oficiais anteriores73 (mesmo que já constassem em planejamentos anteriores à candidatura da cidade para sediar os jogos). 73. Esse “aproveitamento” já consta como estratégia na propaganda de diversos governos, visto que obras já em andamento mesmo antes do pleito à recepção da Copa vinham sendo mostradas em apresentações sobre como as gestões estavam se empenhando para receber adequadamente os jogos.
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A problemática dessa variação de lista de empreendimentos que estão ou não vinculados à Copa gera ainda mais incerteza sobre o quanto esse campeonato e seu “legado” custaram precisamente ao país. Durante os jogos PanAmericanos Rio 2007, a expressão “legado” vulgarizou-se pela generalização de seu emprego. Naquele momento, talvez um dos mais importantes do esporte brasileiro, “legado” passou a abranger qualquer bem material ou imaterial deixado para uso posterior. Esta compreensão progrediu de modo a ampliar o significado de “herança” até alcançar um nexo de “legitimação”, como se viu nos discursos de dirigentes e políticos. Ou seja: o usufruto proposto de legados dos Jogos legitimou gastos sem atentar para efetivação de retornos e respectiva sustentabilidade. Como consequência, legados tornaram-se meras listas classificatórias de equipamentos, instalações, audiências dos jogos, turistas etc (DaCosta, 2008, p. 239).
Em A Natureza do Espaço (1996), especialmente no capítulo 6 (“O tempo (os eventos) e o espaço”) o geógrafo Milton Santos trata dos eventos e de sua relação com o espaço social e o espaço geográfico. Desta análise dos eventos e de sua importância para a produção do espaço retiramos algumas lições para entender o alcance e o significado mais amplo dos megaeventos, especialmente os esportivos, que foram e são objeto de nossa análise ao longo destes últimos anos. Aponta Milton Santos (1996) que “um evento é o resultado de um feixe de vetores, conduzido por um processo, levando uma nova função ao meio preexistente. Mas o evento só é identificável quando ele é percebido, isto é, quando se perfaz e se completa” (p. 61). Em outras palavras:
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Os eventos não se dão isoladamente, mas em conjuntos sistêmicos – verdadeiras “situações” – que são cada vez mais objeto de organização: na sua instalação, no seu funcionamento e no respectivo controle e regulação. Dessa organização vão depender, ao mesmo tempo, a duração e a amplitude do evento. Do nível da organização depende a escala de sua regulação e a incidência sobre a área de ocorrência do evento (p. 97).
A questão da escala não é aplicável somente no lugar onde acontecem as ações, mas elas têm alterações sobre o espaço urbano em sua totalidade, embora a percepção dos eventos seja imediata no lugar onde ocorre. Um caso exemplar é o do estado de São Paulo, onde o secretário de Transportes chegou a afirmar que “não há obra para a Copa, há o plano de expansão dos transportes da cidade e pronto”74 e onde a obra de mobilidade prevista na Matriz (Monotrilho) não seria realizada na área de fato escolhida para sediar os jogos, a Zona Leste. Em 27 de agosto de 2012 o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, anunciou em seu perfil de mídia social duas obras que fariam parte do legado da Copa na Zona Leste, parte das novas obras do Complexo Viário do Polo Itaquera75: Mesmo com particularidades, esse caso serve para ilustrar tanto como a Matriz foi falha enquanto ferramenta de planejamento para a Copa do Mundo, como também o quanto os governos locais se aproveitaram da “marca Copa” para divulgar obras que muitas vezes já estavam previstas em seus planos diretores. 74. Declaração dada em evento no CREA-SP em 2010. Declaração similar também foi dada pelo responsável pela BHTrans. 75. A postagem remete a esta notícia: http://saopaulo.sp.gov.br/spnoticias/ lenoticia.php?id=221926
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Circunstancialmente, essas obras previstas foram beneficiadas para saírem do papel no período de preparação das cidades-sede. Outro caso de obra que não tinha relação direta com a Copa, mas foi anunciada como legado, foi o do BRT Expresso DF, apresentado como Veículo Leve sobre Pneus (VLP), em referência ao prometido VLT que não saiu do papel. O empreendimento foi mostrado diversas vezes nos programas de campanha eleitoral do então candidato a reeleição, Agnelo Queiroz, como “legado da Copa”.
Fonte: Twitter (27 de agosto de 2012)
Posteriormente, tanto o Estádio Nacional Mané Garrincha como o BRT Expresso DF foram citados nas delações premiadas da Operação Lava Jato. O ex-presidente da Andrade Gutierrez, Otávio Azevedo, afirmou em delação à Polícia Federal ter pago propina (tanto ao ex-governador Arruda como ao então governador Agnelo) relacionada à obra do Estádio. Já em relação ao 192
Expresso DF, há investigação em curso sobre tráfico de influência para a OAS empreender o projeto, que contou com consórcio composto pela OAS, Andrade Gutierrez e Via Engenharia em sua realização. São exemplos da permeabilidade das relações entre o capital privado e o poder público, interferindo no curso da alocação de recursos e realização de investimentos. Essa permeabilidade do poder público com as empreiteiras foi pesquisada por Eduardo Marques, do departamento de Ciência Política da USP, que analisou o resultado de licitações realizadas pelas prefeituras de São Paulo, comparando as administrações consideradas de esquerda e as de direita. Em seu estudo, que faz um extenso levantamento de informações primárias do período entre 1978 e 1998, Marques conclui que o perfil das empreiteiras vencedores das licitações no governo de esquerda era de empresas de porte menor do que as vencedoras das licitações das administrações consideradas de direita. Além disso, o valor médio das obras também variava entre os governos. Nos de direita, os valores eram muito superiores, sendo consideradas gestões de perfil “obreiro”, que pretendiam deixar grandes obras como resultado de seu mandato (Marques E. , 2003); (Marques & Bichir, 2002). Nesta análise de rede, as relações tornam-se as unidades de análise e não os atributos dos indivíduos ou entidades. Trata-se de uma perspectiva dinâmica, onde as diferenças de composição e história dos partidos e dos prefeitos não são o alvo da análise, e sim a dinâmica relacional destes com as empreiteiras. Nesse sentido, buscam-se as regularidades nos processos de interação, os padrões recorrentes de relações – a rede é, portanto, a configuração dessa regularidade de padrões de relações, que podem ser de diversos tipos. Essa perspectiva permite o estudo 193
das complexas relações entre Estado e sociedade sem delimitação prévia de suas fronteiras. Se a relação entre o poder público e as empreiteiras com o capital imobiliário era diferente entre uma administração considerada de esquerda e uma de direita nas décadas de 1980 e 1990, essa afirmação já não parece ser mais verdadeira, sobretudo quando se analisa a política imobiliária durante a Copa do Mundo. Agora, as grandes empreiteiras conseguiram penetrar na política urbana e promover a especulação imobiliária com forte apoio do poder público, tanto em estados governados pelo PT como nos governados pelo PSDB, como é o caso de Brasília e São Paulo. A permissividade desses tipos de relação entre o poder público e as empreiteiras vem se tornando ainda mais evidente com a publicização de diversos escândalos. Em São Paulo, tem destaque o escândalo do trensalão relacionado à formação de cartel na expansão do Metrô e, em Brasília, a operação Lava Jato, envolvendo tanto a obra do Estádio Nacional Mané Garrincha, como a obra do Expresso DF (corredor de ônibus conhecido como BRT Sul), uma obra que, apesar de secundária, foi também anunciada como legado da Copa do Mundo pelo governador Agnelo, contanto com a participação da então presidente Dilma Roussef em sua inauguração. A incorporação e a apropriação de empreendimentos ao “pacote Copa” mostra que esse processo não estava apenas relacionado às exigências da FIFA para receber o Mundial, e sim à catalisação e o aprofundamento de processos econômicos e imobiliários já em curso das cidades, onde atores aproveitaram a “oportunidade” para realizar seus negócios. Para os Comitês Populares da Copa, perceber essa relação para além da Matriz de Responsabilidades foi importante em sua estratégia de denúncia 194
sobre os processos de higienização e remoção que ocorreram nas cidades-sede, como explicam: Diversas foram as alterações nas obras consideradas na “Matriz de Responsabilidade da Copa”. Todavia, existiram obras inicialmente pensadas para servir à Copa do Mundo, e que de fato atenderam ao modelo de cidade fortalecida pelo megaevento, que produziram processo de remoções forçadas. Em nosso levantamento, consideramos todas as obras que direta ou indiretamente foram em algum momento vinculadas à Copa do Mundo para que, sob a desculpa dos jogos, forçasse a remoção das pessoas (Comitês Populares da Copa, 2014, p. 21).
A identificação desses processos urbanos locais e dos fatores que os potencializam, como foi o caso dos megaeventos, é importante tanto para a compreensão do funcionamento do Estado brasileiro e de sua relação com grupos da elites econômica ligados à questão urbana, como dos potenciais de interrupção momentânea desses processos de especulação na emergência da atuação dos movimentos sociais urbanos. Espera-se que o desenvolvimento dessa pesquisa possa contribuir para despertar o debate sobre as “cidades atingidas pela Copa” e o melhor entendimento desse processo, oferecendo, talvez, instrumentos para subsidiar a população e organizações da sociedade civil no acompanhamento das obras referentes à mobilidade urbana. Os itens de observação aqui listados podem ser convertidos numa matriz de análise importante para se avaliar se, de fato, o prometido legado dos megaeventos se concretizou: 1) Processo de Formulação/ Ciclo de gestão, 2) Diversificação e integração modal, 3) Conforto para usuário de transporte público, 4) 195
Inclusão social, 5) Qualidade ambiental, 6) Integração com política de uso e ocupação do solo e 7) Segurança como valor principal da política de mobilidade (e não fluidez). Vale ressaltar, ainda, que estes itens são apenas o ponto de partida para um debate que deve acontecer na sociedade brasileira nos próximos anos. É importante perceber que os projetos direcionados à Copa do Mundo não estão subordinando a dinâmica urbana da cidade a eles, ao contrário, as obras da Copa vêm sendo subordinadas ao modelo de crescimento econômico materializado pelos megaprojetos, especialmente no meio urbano, mas de modo algum restrito a ele. O recorte dos megaeventos é importante, mas talvez haja mais em comum entre os megaprojetos, estádios, BRTs e usinas hidrelétricas do que pareceria num primeiro momento. Ao fazer a análise de fundo pretendida, esta pesquisa indicou que a financeirização do espaço urbano se mostrou determinante para a análise das políticas públicas que vêm sendo implementadas, ao mesmo tempo em que se discute de que maneira a expectativa de políticas de mobilidade que atendam de fato a população se localiza nesse cenário. Não se trata de defender se a cidade ganhou ou se a cidade perdeu. Há ganhos e há perdas, sempre. Talvez o ideal fosse avaliar que segmentos sociais e econômicos ganharam e quais perderam. Em vez de aumentar e qualificar o acesso da população ao seu território, construindo e democratizando espaços públicos, o real legado deixado pelos megaeventos foi o da privatização e militarização do espaço público. Os Comitês Populares da Copa, preocupados com a zona de exclusão que se teria ao redor dos estádios em dias de jogos, que proibia o comércio popular, sentiram na verdade a experiência da zona de exclusão antes dos jogos e espalhada pela cidade. 196
O que se anunciava como repetição do que aconteceu em Barcelona, exemplo de urbanização considerado bem-sucedido, ocorreu mais como um urbanismo encenado e consumido nas intervenções vinculadas aos megaeventos. Como resultado concreto após os jogos, o que ficou para as cidades foram os estádios monumentais e a ação da especulação imobiliária. O Brasil, conhecido no mundo todo como país do futebol, teve sua festa popular transformada em festa mercadoria, como uma representação (Debord, 1992). A qualidade de vida urbana tornou-se uma mercadoria para aqueles com dinheiro, assim como para a própria cidade, num mundo onde o turismo, o consumismo, o marketing de nicho, as indústrias culturais e de conhecimento, e também a perpétua dependência em relação à economia política do espetáculo, tornaram-se os principais aspectos da economia política do desenvolvimento urbano (Harvey, 2011, p. 143). Uma das medidas tomadas pelo poder público, além da expulsão violenta de comerciantes de rua, foi a ocupação militar de diversas áreas urbanas, como apontado pela Anistia Internacional: Em abril, antes da Copa do Mundo, soldados do Exército e da Marinha foram enviados ao complexo de favelas da Maré no Rio de Janeiro. Inicialmente, afirmou-se que eles permaneceriam no local até o fim de julho. Mais tarde, porém, as autoridades declararam que as tropas ficariam naquela área por tempo indefinido (Internacional, 2015, p. 72).
Ao ter a grande justificativa pública para o recebimento dos megaeventos desnudada, quando a população compreendeu que o transporte não melhoraria conforme anunciado, o governo 197
percebeu que a tentativa de domínio pela estratégia de persuasão havia fracassado, e a força foi colocada em cena durante a Copa das Confederações. Como enunciou Marx, entre direitos iguais, quem decide é a força (O Capital, apud Harvey). O uso das ruas se tornou a tônica da agenda recente, tanto pela disputa social do seu uso político e cidadão como espaço público maior de articulação, debate e expressão, quanto pela pauta histórica do transporte. O espaço público se caracteriza pela expectativa de usos diversos possíveis, sem que se preveja quais. O seu valor de uso se caracteriza justamente pela sua utilização cotidiana e banal (Serpa, 2013, pp. 65-6). No espaço público político há a expectativa de ser visto e ouvido por todos. Em particular, a pauta do transporte tem sido atiçada ainda mais nos últimos anos pelo pesado e vigoroso colapso das metrópoles e pela promessa do “legado da mobilidade” que os megaeventos trariam. O ex-ministro do Esporte, Orlando Silva, também ex-presidente da UNE entre 1995-1997, passou a condenar as manifestações populares em relação à Copa do Mundo, no discurso governista de qualificação de manifestantes como criminosos ou vândalos: Não é protesto, não é reivindicação, não é manifestação atacar e destruir o patrimônio público. Não é razoável que você impeça de maneira arbitrária a circulação em determinados lugares da cidade que têm impacto sobre a vida das pessoas. (Orlando Silva Jr, em pronunciamento na Câmara de Vereadores de São Paulo, em 11 de junho de 2013).
Entre as repressões, detenções e espionagens arbitrárias, se destacou o caso de Rafael Braga, morador de rua do Rio de 198
Janeiro, que se tornou o único preso condenado por crimes relacionados às manifestações de 2013. Ele levava consigo duas garrafas de produtos de limpeza – água sanitária e desinfetante Pinho Sol – consideradas “artefato explosivo ou incendiário” pela polícia e pelo juiz responsável pelo caso, na época em que manifestantes portando vinagre (usado supostamente para mitigar efeitos de gás de pimenta e lacrimogêneo) eram identificados como suspeitos de perturbadores da ordem (Internacional, 2015). A disputa pelo uso da rua sempre ocorreu de forma violenta, seja pela repressão policial característica de um país com vivência democrática breve e frágil, seja pelas fartas mortes no trânsito, estimuladas pelo desenho viário e urbano que privilegia a fluidez motorizada individual. Nesse contexto, o que se viu no projeto do “legado” prometido, que teve o potencial de reorganizar a agenda de transporte, foi justamente o avanço nas condições sociais que originam esse cenário de violência contra a população e que condenam ao sofrimento as pessoas que estão no espaço público, especialmente o usuário do transporte coletivo. O momento de preparação da Copa do Mundo tornou propícia uma reorganização de forças nas políticas de mobilidade. No entanto, isso não se deu por uma janela de oportunidade aberta pela ocasião de sediar um megaevento esportivo, como propagandeado pelo governo de 2007 a 2010. Na verdade, a chance de se organizar as condições sociais para uma transformação estrutural do modelo de política de mobilidade surgiu justamente com a mobilização popular originada da percepção da ausência de um legado possível e desejável. Já não é novidade que houve uma grande redução dos investimentos em mobilidade inicialmente anunciados na Matriz de Responsabilidades. Da lista inicial, as obras de mobilidade 199
foram reduzidas de 51 para 42 e seu orçamento de 11,6 bilhões de reais para 8,6 bilhões. Ou seja, o prometido legado não passou de uma moeda de negociação pública para convencimento de que os megaeventos seriam um bom “negócio” para a população. Também não é novidade que as obras executadas o foram de maneira autoritária, a serviço de um projeto elitista de cidade, criando novas periferias, removendo famílias e consolidando a aliança entre capital imobiliário, empreiteiros e lobby automotivo, no processo de financeirização do solo urbano. A chamada “Revolução nos Transportes” propagandeada pelo poder público no contexto dos megaeventos mostra-se, portanto, limitada como resposta à crise da mobilidade nas cidades brasileiras. No contexto das intervenções no sistema de mobilidade para a Copa de 2014 e Jogos Olímpicos de 2016 não há conhecimento sobre a existência de nenhum plano integrado que considere suas dimensões metropolitanas. Assim, a oportunidade de superar o desafio de planejar e financiar infraestruturas na escala metropolitana pode estar sendo desperdiçada em razão da concentração territorial das intervenções e da insistência no modelo rodoviário, reproduzindo, mais uma vez, práticas políticas concentradoras e antidistributivas, que tendem a acentuar as disparidades intrametropolitanas tão prejudiciais para o direito à cidade (Comitês Populares da Copa, 2014, p. 69).
O que interessa agora é perceber como os movimentos sociais urbanos voltados para a questão da moradia se apropriaram do tema do transporte como eixo importante de atuação76. Assim 76. Ver análises do Fórum Nacional da Reforma Urbana em: https://bit. ly/2SWKsOD e https://bit.ly/2K5V4Yw
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como a construção de moradias não dá conta de diminuir o déficit habitacional do país (caso do Minha Casa Minha Vida), a oferta de corredores rodoviários para ônibus por si só (que seria o tão propagado legado da Copa) também não resolve a questão da mobilidade. De fato, uma mudança estrutural no sistema de transportes não depende apenas da implantação e melhoria de um modal, mas sim de um conjunto de medidas de reorganização do espaço urbano, que vise à redução das distâncias percorridas, essencialmente nos deslocamentos casa-trabalho. No rescaldo das obras prometidas para a Copa do Mundo e das próximas obras que virão, o avanço do debate da sociedade na pauta da mobilidade exigirá esforços de enfrentamento constantes, justamente para se sair da seara de “obras”, e se entrar na esfera dos direitos. O direito à cidade emerge aqui como princípio articulatório de diversas demandas contemporâneas na esfera pública orientada para a participação democrática, não apenas buscando uma ordenação diferente de direitos, mas outras práticas político-econômicas. O debate sobre a acessibilidade econômica do transporte público, em especial na bandeira da Tarifa Zero é a que pauta mais diretamente a desmercantilização do transporte. Ainda assim, tem seus limites, já que as pessoas precisam mais do que um “custo zero” para usufruir do espaço urbano. Desse modo, torna-se necessário ainda pontuar outros desafios que se colocam para a autonomia da circulação das pessoas nos espaços públicos, como as restrições não oficiais de horários e lugares, as restrições a roupas e demonstrações de afeto. Isto só será superado quando se sair da discussão sobre obras e tratarmos da expansão de direitos em nossas cidades, o que requer outro modo de pensar e fazer política. Essa é a agenda pós-legado que se deve construir dentro dos movimentos sociais, que não passa pela questão de 201
investimentos em empreendimentos stricto senso, mas pela construção diária da experiência que é viver em uma cidade. A questão do tipo de cidades que desejamos é inseparável da questão do tipo de pessoa que desejamos nos tornar. A liberdade de fazer e refazer a nós mesmos e as nossas cidades dessa maneira é, sustento, um dos mais preciosos de todos os direitos humanos (Harvey, 2013, p. 28).
No cenário atual pós-Copa, em que ao mesmo tempo coexistem uma crise econômica, uma crise fiscal e uma crise política, pode se ter um momento propício para se pressionar os governos por políticas urbanas que dependam menos de investimentos em megaobras e que possam tratar do espaço urbano em outra perspectiva (Rolnik, 2016). Contudo, o processo de mercantilização da cidade passa estruturalmente pela mobilidade, construindo um difícil cenário para a implementação de medidas alternativas, mesmo após a aprovação da emenda constitucional (PEC 307) em 2015, que incluiu na Constituição Federal a mobilidade enquanto direito. Ou seja, mesmo com um marco legal favorável à garantia de direitos, os interesses econômicos prevalecem, em detrimento das condições de vida da população em geral. Como, alerta Polanyi: A nossa condição pode ser descrita nos seguintes termos: a civilização industrial ainda poderá aniquilar o homem. Mas embora a aventura de um meio ambiente progressivamente artificial não possa, não deixe de ser e, evidentemente, não deva ser voluntariamente afastada, a tarefa de adaptar a vida num tal contexto aos requisitos da existência humana precisa de ser resolvida se o homem quiser continuar a viver sobre a terra. Ninguém pode profetizar se um tal ajustamento
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é possível, ou se o homem deverá morrer nessa tentativa. Daí a tonalidade sombria da questão (Polanyi, 1978, p. 3).
O Brasil pós-Copa parte de outro patamar agora para as políticas urbanas. O país vivenciou uma época de investimentos generosos por meio do PAC e reforçou o peso das soluções rodoviaristas nas políticas de transporte urbano, enquanto os projetos que trabalhavam com trilhos (sem entrar no mérito da adequabilidade) ainda não conseguiram se viabilizar, dado que necessitam de prazos e orçamentos maiores. O avanço da construção civil e do setor imobiliário nos anos recentes deixou marcas concretas no desenho urbano e na questão da habitação nas cidades brasileiras. Numa perspectiva mais crítica, se entende que a urbanização é uma forma de absorver o excedente de capital (Harvey, 2011, p. 75). O cenário em que o senso comum avançou para entender que somente soluções voltadas para o transporte individual motorizado não dão conta de melhorar a qualidade dos deslocamentos foi o mesmo em que as taxas de motorização cresceram a passos largos. Isso resultou no aumento da despesa das famílias com transporte, ainda sem aumentar a qualidade do deslocamento. A pauta do custo do transporte coletivo e seus subsídios ganhou novamente grande escala com os debates sobre a municipalização da CIDE e as manifestações contra reajustes de tarifa, ainda que nessa questão os ganhos efetivos tenham sido poucos. Num cenário de crise econômica e fiscal, a generosidade para financiar grandes obras deve se tornar cada vez mais escassa, o que deve abrir espaço para proposições e soluções de outras vertentes além da obreira para se realizar política urbana. O quanto o modelo da cidade-negócio irá prosperar nesse cenário 203
é incerto, e pode ser que após tantos atropelos haja espaço para novas experiências locais de gestão urbana (Rolnik, 2015), desde que o modelo de formulação e execução de políticas diminua o papel das grandes empreiteiras nessa relação, o que depende também da atuação futura do Ministério das Cidades. Essa transformação na atuação do Ministério das Cidades é incerta, mas possível no cenário, especialmente caso se confirme a negação do financiamento privado de campanhas, conforme decisão recente do Supremo Tribunal Federal. Caso contrário, a possibilidade de aprofundamento dos efeitos perversos dessa relação se manterá influenciando as políticas urbanas e cabendo apenas à resistência popular enfrentá-los.
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Sobre a autora
Renata Florentino, nascida em Brasília, fez seu mestrado em sociologia pela Universidade de Brasília, trabalhou com desenvolvimento social, fez seu doutorado em ciências sociais na Unicamp e então aprendeu a andar de bicicleta.
Este livro foi publicado pela Insular Livros em agosto de 2019