Grupo de Pesquisa em História da Comunicação da Fabico / UFRGS (Org.)
Trajetórias profissionais no Rio Grande do Sul
PERFIS DA COMUNICAÇÃO
PERFIS DA COMUNICAÇÃO
PERFIS DA COMUNICAÇÃO Trajetórias profissionais no Rio Grande do Sul
organização
Grupo de Pesquisa em História da Comunicação da Fabico / UFRGS Aline Strelow Ana Gruszynski Andréa Brächer André Iribure Rodrigues Cida Golin Flávio Antônio Porcello Flávia Ataide Pithan Karla M. Müller Luiz Artur Ferraretto Maria Berenice da Costa Machado Mariângela Machado Toaldo Sandra Maria Lúcia Pereira Gonçalves
Florianópolis
2018
Editora Insular
Perfis da comunicação © Grupo de Pesquisa em História da Comunicação / UFRGS Conselho editorial Dilvo Ristoff, Eduardo Meditsch, Jali Meirinho, Jéferson Silveira Dantas, Nilson Cesar Fraga, Pablo Ornelas Rosa e Salvador Cabral Arrechea (ARG) Editor Nelson Rolim de Moura
Revisão Carlos Neto
Editoração eletrônica e capa Eduardo Cazon
Ilustrações Créditos e fontes localizadas
Perfis da comunicação – trajetórias profissionais no Rio Grande do Sul / Grupo de Pesquisa em História da Comunicação da Fabico / UFRGS. Florianópolis : Insular, 2018. 298 p. : il. ISBN 978-85-524-0082-0 1. História da comunicação. 2. Profissionais da comunicação e mídia. 3. Rio Grande do Sul. I. Título. CDD 070.9
EDITORA INSULAR (48) 3232-9591 editora@insular.com.br twitter.com/EditoraInsular www.insular.com.br facebook.com/EditoraInsular
INSULAR LIVROS Rua Antonio Carlos Ferreira, 537 Bairro Agronômica Florianópolis/SC – CEP 88025-210 Fone: (48) 3334-2729 insularlivros@gmail.com
Ă€ memĂłria da professora Luciana Mielniczuk.
Com o tempo, os detalhes estragam qualquer biografia. Luis Fernando Verissimo
Sumário 13 Prefácio 13 Comunicação Social e percursos profissionais no RS – Inovação e originalidade Claudia Wasserman
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Apresentação
21 Uma professora no jornal – A trajetória de Maria de Lourdes Sá Britto no Correio Infantil Cida Golin e Luciano Alfonso
47 Jornalista, publicitário e cronista – A trajetória de Luis Fernando Verissimo na Comunicação Aline Strelow, Ana Gruszynski e Laís Webber
81 Santiago – Um autodidata à serviço da comunicação bem-humorada Flávia Ataide Pithan e Liana Haygert Pithan
111 Flávio Alcaraz Gomes – O homem que definiu o segmento de jornalismo no rádio do Rio Grande do Sul Luiz Artur Ferraretto 141 A conquista da mulher por espaço no mercado de trabalho – A trajetória da Relações Públicas Martha Geralda Alves D’Azevedo Karla M. Müller, Camila C. Barths e Diego P. da Maia
167 Antônio Mafuz – Um sobrenome para a publicidade gaúcha e brasileira
André Iribure Rodrigues e Mariângela Machado Toaldo
191 Marcello Casado D’Azevedo – Precursor no ensino e na pesquisa em Comunicação, Fabico/ UFRGS Maria Berenice da Costa Machado
209 Lauro Quadros – “É isso aí e mais meio quilo de farofa”
Carlos Gustavo Soeiro Guimarães e Luiz Artur Ferraretto
231 Ricardo Chaves – A trajetória de um fotojornalista Andréa Brächer e Sandra Maria Lúcia Pereira Gonçalves
255 Ivette Brandalise – A trajetória da atuação crítica feminina nos meios de comunicação do RS Flavio Antonio Porcello e Laira Ferreira de Campos
277 Sandra Pecis – Os primeiros passos do jornalismo na era da internet Luciana Mielniczuk, Marlise Brenol e Priscila Daniel
289 Sobre autoras e autores
Prefácio Comunicação Social e percursos profissionais no RS Inovação e originalidade Claudia Wasserman
O livro Perfis da Comunicação: trajetórias profissionais no Rio Grande do Sul trata da trajetória de profissionais da comunicação do Rio Grande do Sul no século XX e foi elaborado a partir dos debates desenvolvidos por pesquisadores da ciência da comunicação. Os autores dos capítulos são professores da Universidade e pesquisadores em Comunicação Social, vinculados ao Grupo de Pesquisa em História da Comunicação da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Andréa Brächer, Sandra Maria Lúcia Pereira Gonçalves, Flávio Antonio Porcello, Laira Ferreira de Campos, Flávia Ataide Pithan, Liana Haygert Pithan, Karla M. Müller, Camila C. Barths, Diego P. da Maia, Cida Golin, Luciano Alfonso, Maria Berenice da Costa Machado, Aline Strelow, Ana Gruszynski, Laís Webber, Carlos Gustavo Soeiro Guimarães, Luiz Artur Ferraretto, André Iribure Rodrigues, Mariângela Machado Toaldo, Luciana Mielniczuk, Marlise Brenol e Priscila Daniel elaboraram textos
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sobre personalidades da comunicação no Rio Grande do Sul a partir de entrevistas e de pesquisa documental e bibliográfica. O resultado são dez artigos com viés biográfico. Pierre Bourdieu (1986, p.69-72) chamou atenção para as histórias de vida ou biografias, sublinhando que os sujeitos que se propõem a traçar relatos auto-biográficos terminam por estabelecer um discurso lógico, simultaneamente, retrospectivo e prospectivo de suas vidas. A “ilusão biográfica”, sugerida por Bourdieu, pode aludir à pretensão de atribuir à própria carreira consistência e linearidade de fato inexistentes no decorrer de uma trajetória profissional, por exemplo. Como se todos os passos da vida de uma pessoa estivessem destinados a gerar a finalidades pré-estabelecidas. De acordo com Contardo Calligaris (1998, p. 50), O sujeito que fala ou escreve sobre si, não é o objeto (re)presentado por seu discurso reflexivo, mas tampouco é o efeito, por assim dizer, gramatical de seu discurso. Falando e escrevendo, literalmente, ele se produz. Narrar-se não é diferente de inventar-se uma vida. Ou debruçar-se sobre sua intimidade não é diferente de inventar-se uma intimidade.
Contudo, longe de cair na armadilha dos encantos do auto-relato dos biografados ou na “ilusão da verdade” (Gomes, 2004, p. 6), os autores dos artigos procuraram checar as informações contidas nas entrevistas com fontes documentais e bibliográficas diversas. Neste caso, o auto-relato, que serve de fio condutor da narrativa, é geralmente cronológico, o que permite também ao leitor perceber não apenas a trajetória profissional de um sujeito, mas o percurso de toda uma geração de profissionais da área da comunicação no estado do Rio Grande do Sul, com resgate particular de figuras-chave para a área. Ressalta o papel de produtores, editores, empresários da comunicação, tais como, Lauro Schirmer, Breno Caldas, Assis
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Hoffman, Augusto Nunes. Recupera a importância e presença de veículos da comunicação que fizeram história no desenvolvimento do estado, que foram testemunha do processo de massificação da comunicação social e sofreram a crise das empresas jornalísticas, tais como as rádios Farroupilha, Guaíba e Difusora e os jornais Coojornal, Folha da Tarde Esportiva, Folha da Manhã, Folha da Tarde, Correio Infantil, Correio do Povo. Assim, não se trata apenas de uma obra sobre a trajetória profissional de pessoas, mas da história de toda uma geração, explicitando os eventos histórico-sociais e políticos que afetaram a sociedade brasileira como um todo e a sul rio-grandense em particular. A ditadura civil-militar que se estabeleceu a partir de 1964 no Brasil é um desses processos que marcou a geração de comunicadores presentes nesse volume. Todos e todas foram, em alguma medida, afetados pela censura aos meios de comunicação, ou tiveram suas vidas profissionais modificadas pelo autoritarismo. Enquanto Ivette Brandalise foi chamada para depor no Palácio da Polícia durante os governos militares, o chargista Santiago sofreu censura durante a redemocratização por suas charges de humor a respeito do então presidente Collor de Melo. Pediu demissão do jornal Estado de São Paulo e do Jornal do Comércio após ter charges repetidamente censuradas pelas empresas. Assim, a censura não ficou restrita ao autoritarismo estatal, mas emanou das próprias empresas, nem ficou restrita ao período militar, mas ocorreu inclusive na democracia. A autocensura revelada no capítulo sobre Luis Fernando Verissimo e os “dribles” nos assuntos proibidos também foram abordadas no volume. Outro tema que perpassou a história de vida dessas personagens foi a abertura de espaço para as mulheres em um campo que era predominantemente masculino. Foi os casos de Martha Geralda Alves D’Azevedo, Ivette Brandalise e Maria de Lourdes Sá Britto. O ensino e a pesquisa na área de comunicação social não ficaram de fora do volume, representado pela trajetória de Marcello Casado D’Azevedo. O chargismo como gênero do jornalismo foi
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abordado no capítulo sobre Santiago. O jornalismo esportivo, representado pelo percurso de Lauro Quadros mereceu destaque em outro capítulo dessa coletânea. O fotojornalismo está presente no capítulo sobre Ricardo Chaves, o Cadão. A publicidade foi contemplada pelo capítulo sobre a vida profissional de Antonio Mafuz. A trajetória de Flávio Alcaraz Gomes descrita em capítulo aborda a comunicação através do rádio e suas transformações ao longo do século XX. A crônica do cotidiano foi objeto do capítulo sobre a vida e a obra de Luis Fernando Verrissimo. Assim, os autores dos capítulos percorrem vários gêneros da Comunicação Social: entrevistas, talk shows, fotografia, reportagem, crônica, publicidade, jornalismo esportivo, charge, pesquisa e ensino nos mais variados veículos, televisão, rádio, jornal impresso. Todos têm em comum a inovação como marca de suas histórias profissionais. São predominantemente de uma geração que assistiu as mudanças tecnológicas na área e acompanharam e ajudaram a criar mecanismos de adaptação a essas mudanças. Essas personalidades foram igualmente vetores da inovação e originalidade na abordagem da comunicação social, merecendo lugar nessa coletânea de personalidades da Comunicação Social no estado do Rio Grande do Sul. Por tudo isso, vale a pena percorrer as páginas da coletânea e descobrir junto com os autores (professores e pesquisadores ligados à UFRGS) os caminhos abertos pelos nossos comunicadores.
Referências
GOMES, Ângela de Castro. Escrita de Si, escrita da história. Rio de Janeiro, FGV, 2004. CALLIGARIS, Contardo. Verdades de Autobiografias e Diários Íntimos. Revista Estudos Históricos, 1998, número 21, volume 11, p. 43-58. BOURDIEU, Pierre. L’ iIIusion biogmphique. Acles de la Recherche en Scíellces Socíales (62/ 63):69-72, juin 1986.
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Apresentação A história da Comunicação é composta por uma teia em que se enredam processos, meios, pessoas. Para compreendê-la, é preciso desvendar sua tecitura, encontrar seus nós, tatear suas amarrações. Lançando olhares diversos, é ao que temos nos proposto no Grupo de Pesquisa em História da Comunicação da Fabico/UFRGS desde que iniciamos nosso trabalho, há seis anos. Neste livro, que é nossa segunda obra coletiva1, nos dedicamos a investigar as trajetórias de vida de personagens que fizeram parte da história recente da Comunicação e da Mídia no Rio Grande do Sul, com foco na segunda metade do século XX. Tendo como eixo o método biográfico, buscamos iluminar as histórias selecionadas, através de suas atuações na área. O recorte temporal se justifica pelas mudanças profundas que aconteceram nesse período, como o aparecimento e fortalecimento de grandes conglomerados midiáticos, a profissionalização do Jornalismo, da Publicidade e Propaganda e das Relações Públicas, a institucionalização do ensino universitário nesse campo e a consolidação dos padrões industriais de produção no mercado de trabalho – nos últimos anos do século XX, a implantação de sistemas digitais de comunicação nas empresas da área representa o início de uma nova revolução. Além de mapear o percurso de carreira seguido por cada um dos biografados, nosso intuito foi analisar a atuação institucional dos diferentes meios de comunicação e das empresas do setor no período estudado, articulando sua história com o respectivo contexto político, econômico, social e cultural. Através dessas análises, tornou-se possível observar o desenvolvimento e as mudanças ocorridas na formação e no campo profissional da Comunicação, nas atividades jornalísticas, publicitárias e de Relações Públicas. 1
Nota do editor. A Editora Insular publicou em 2014 o livro Comunicação e Redemocratização no Rio Grande do Sul – Uma abordagem histórica.
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As histórias de vida dos personagens analisados nesse livro, assim como as de tantas outras personalidades que ajudaram a construir esse campo de atuação acadêmica e profissional, compõem parte relevante da história da Comunicação no Rio Grande do Sul. A escolha pela investigação dessas trajetórias está relacionada à valorização de importantes registros que estavam restritos, muitos deles, à memória das mulheres e homens que atuaram (e atuam) como protagonistas dessa história. Nos dois anos em que nos dedicamos a essa pesquisa, seguimos os passos e vestígios de Antônio Mafuz, Flávio Alcaraz Gomes, Ivette Brandalise de Mattos, Lauro Quadros, Luis Fernando Verissimo, Marcello Casado D’Azevedo, Maria de Lourdes Sá Britto, Martha Geralda Alves D’Azevedo, Ricardo Chaves, Sandra Pecis e Santiago. É um conjunto plural e diversificado, com contribuições marcantes e com caminhos que, por vezes, se cruzam. Como se trata de um estudo coletivo, encontramos no método biográfico um eixo comum que, por sua pluralidade de técnicas, proporcionou o diálogo ao mesmo tempo em que nos garantiu liberdade para adequarmos a abordagem metodológica ao objeto de pesquisa, aos materiais disponíveis e às oportunidades de investigação. Os capítulos a seguir trazem, assim, combinações de técnicas diversas, como a história oral, a pesquisa documental e a pesquisa bibliográfica. Merece destaque o uso da entrevista para a composição da história oral, recurso utilizado em todos os capítulos, seja com o personagem estudado ou com seus familiares e colegas de trabalho. A entrevista possibilita ao pesquisador fazer conexões dos e com os materiais/dados coletados. É um modo de fazê-los falar, de dar nexo aos achados, possibilitando que se estabeleçam relações e seja possível, assim, (re)contar a história. Como já disseram Andrea Fontana e James H. Frey, em Interviewing – The Art of Science, perguntar e obter respostas é uma tarefa muito mais difícil do que parece – trata-se de uma das mais comuns e, ao mesmo
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tempo, poderosas maneiras que utilizamos para tentar compreender nossa condição humana. Técnica clássica desde os anos 1930 nas ciências sociais para a obtenção de informações, a entrevista adquire orientações metodológicas próprias a partir da Segunda Guerra Mundial, como sublinha Jorge Duarte em Métodos e técnicas de pesquisa em Comunicação. Em nossa investigação científica, que resultou na presente obra, é recorrente a entrevista individual em profundidade, procedimento que possibilita aos pesquisadores captarem respostas, percepções e a experiência subjetiva dos seus informantes em relação aos personagens retratados e aos temas que lhes circundam. Toda essa “matéria-prima”, processada e analisada, é oferecida de forma estruturada aos leitores nas páginas que seguem. Autoras e autores
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Uma professora no jornal A trajetória de Maria de Lourdes Sá Britto no Correio Infantil1 Cida Golin e Luciano Alfonso
Quando cheguei na redação, me disseram: — Têm fadas lá no salão, esperando pela senhora. — Oba! – exclamei. Agora vou realizar todos os meus desejos. As Fadas já estão me visitando! Vou logo ao encontro delas. E, realmente, lá estavam elas, lindas de morrer! Quatro encantadoras fadinhas. Não tinham varinha de condão. Usavam uma gravatinha amarela e um chapeuzinho azul. Não eram FADAS dos livros de histórias, eram FADINHASCRIANÇAS que queriam conversar comigo.2
A cena das meninas escoteiras na redação do Correio do Povo, jornal da Companhia Caldas Júnior, empresa hegemônica no sul do Brasil e um dos principais jornais brasileiros no século XX3, 1
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Uma versão reduzida deste trabalho foi inscrita no 15º Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo, realizado em novembro de 2017 na Universidade de São Paulo. Outro desdobramento da pesquisa resultou no texto “Era uma vez um Correio Infantil: o protagonismo do leitor na página das crianças do Correio do Povo (Porto Alegre, RS, 1958-1984)”. SÁ BRITTO, Maria de Lourdes. Fadas na redação, Correio do Povo, Correio Infantil, Porto Alegre, 23 de maio de 1971, s/p. Acervo pessoal. O jornal Correio do Povo foi fundado por Francisco Caldas Júnior em 1º de outubro de 1895. Desde o início, optou pela ênfase na informação em detrimento do vínculo partidário e opinativo. Junto com outras publicações, contribuiu para consolidar um regime jornalístico no Rio Grande do Sul. Em 1910, montou a primeira impressora rotativa no estado, reformou as oficinas, aumentou a produtividade e equiparou a publicação aos padrões gráficos mais modernos do país. A partir de 1920, conquistou a liderança do mercado e se tornou o principal jornal do Rio Grande do Sul. No final dos anos 1960, a empresa Caldas
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não seria algo assim tão inusitado naquele maio de 1971 em Porto Alegre. Era o registro de mais um grupo de jovens leitores conhecendo os bastidores de uma instituição até então referencial, tanto quanto a escola, para descobrir e compreender o mundo que o cercava. Entre agosto de 1958 e junho de 1984, a página Correio Infantil dialogou com pelo menos duas gerações de leitores, construindo entre eles e o diário impresso um forte laço de acolhimento, afeto e estímulo à leitura. Por trás da sua produção, trabalhou durante 26 anos Maria de Lourdes Sá Britto (1925–2008), professora, especialista em crianças com necessidades especiais, uma das primeiras jornalistas no Rio Grande do Sul a se vincular a uma redação majoritariamente masculina. Pelas memórias da redação, o Correio Infantil era visto como uma espécie de “licença poética”. No percurso em torno desta possível licença poética nas rotinas de um jornal, estão vestígios da lenta tecedura do contrato de fidelidade que uniu jovens leitores a um jornal, aproximando a instituição do jornalismo das possibilidades de educação não formal. O recurso narrativo de construir um vínculo de afeto e proximidade, interpelando diretamente o leitor com a marca da oralidade, foi gestado pela página desde o início. O Correio Infantil fazia de si personagem, convidava crianças e jovens a se tornarem protagonistas das histórias, autores de textos, e se articulava em torno da referência da escola, do treinamento da leitura e da escrita e da promoção do livro. Como evoca a própria metáfora do título do jornal espelhada na seção infantil, a mediação dos Correios e particularmente da carta – entendida como estrutura comunicativa com sua lógica de saudação, interlocução e que prevê o tempo da escrita e da espera Júnior era a sétima maior do ramo jornalístico no país; em 1979, o Correio do Povo ainda se mantinha em nono lugar no ranking dos principais jornais nacionais, já em plena crise financeira e estrutural que o levaria ao fechamento em junho de 1984. (RUDIGER, 2003; FONSECA, 2008) Em 1986, o prestígio e o capital do nome Correio do Povo foi adquirido por nova empresa que o faz voltar ao mercado em formato tabloide, com outra proposta informativa e estratégia de distribuição. Atualmente o jornal pertence à Rede Record.
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nas entrelinhas –, estabeleceu uma espécie de pacto epistolar entre a equipe editorial e seu público. Mais de uma centena de cartas aportava, semanalmente, na editoria, muitas deixadas pelas mãos dos pais na portaria do Correio, geralmente na segunda-feira. Maria de Lourdes Sá Britto teve a tarefa de responder a estas cartas e levou o enredo do Correio Infantil da primeira à última página em junho de 1984. Propomos aqui lançar luz à trajetória de vida da redatora e editora entremeada narrativamente na história da página. Este percurso4 é resultante da organização dos documentos recebidos da família de Maria de Lourdes5, catalogação de recortes de jornal e excertos do Correio Infantil, cartas de leitores da página e de alunos, documentos pessoais, entre outros materiais diversos; da realização de cinco entrevistas, seguindo preceitos da História Oral temática (Alberti, 2013), com familiares da jornalista e colegas de redação6; e, por fim, da análise flutuante de uma amostra composta das décadas de 1950, 1960, 1970 e 1980, obtida a partir de pesquisa no arquivo do jornal Correio do Povo, em Porto Alegre, a fim de detectar as principais alternâncias temáticas da página e suas especificidades narrativas.
4 Este mapeamento foi produzido na disciplina Laboratório de Pesquisa do Curso de Comunicação da FABICO-UFRGS, nos anos de 2015 e 2016, e desenvolvido dentro das atividades do Laboratório de Edição, Cultura e Design (LEAD). Nos dois semestres, a disciplina foi coordenada pelos professores Cida Golin e Luciano Alfonso. Os alunos que participaram em 2016 foram: Amanda Gomes da Silva, Brenda Cruz, Douglas Freitas, Gabriel Brum, Mayuri Winckiewicz e Yamini Benites. Em 2015: Ana Carolina Giollo, Bruna Andrade, Julia Corrêa da Rocha, Laura Becker da Luz e Pedro Veloso. 5 Este material foi cedido para a pesquisa pela jornalista e professora da Universidade de São Paulo, Claudia Lago. Encontra-se, no momento, sob a guarda do Laboratório de Edição, Cultura e Design (LEAD – CNPq). 6 Em 2016, os alunos pesquisaram nomes possíveis para realizar entrevistas procurando esboçar um perfil de Maria de Lourdes Sá Britto e, ao mesmo tempo, registrar memórias de leitura da página infantil. Vários contatos foram feitos e, desse esforço, conseguimos entrevistar em 2016 os colegas de redação e contemporâneos de Maria de Lourdes Sá Britto, jornalistas Antônio Hohlfeldt, Carla Irigarai e Ney Gastal. Para traçar um perfil da editora a partir do depoimento da família, convidamos as sobrinhas Mara Lago e Mônica Sá Britto Gonzales Fonseca.
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Sobre o arbítrio de demarcar uma trajetória de vida Antes de começar a organizar o percurso, partimos do pressuposto da ilusão retórica de uma trajetória de vida, do arbítrio de selecionar determinados acontecimentos-chave visando estabelecer uma espécie de continuidade e coerência na apresentação de uma existência (Bourdieu, 1990; Pollack, 1989). Seguimos com Henri-Pierre Jeudy (1990), para quem o desejo de produzir uma “história de vida” é também vontade de jogar com a interpretação, cujo prazer não surge da restituição integral e verídica de algo perdido, mas da irrupção de imagens sempre novas produzidas pela reiteração (1990). Propomos escandir certas datas, talvez certos ritmos (Ferrarotti, 1990), por meio da seleção de excertos narrativos nas páginas do Correio Infantil e de fragmentos de textos e documentos encontrados no arquivo da jornalista Maria de Lourdes, arquivo organizado por ela própria provavelmente durante seu processo de aposentadoria e que, como conjunto, constitui uma espécie de autobiografia profissional. Junta-se a eles outra camada de memória produzida pelos depoimentos de colegas de profissão e familiares, iluminados também por determinado contexto editorial que emoldura esta experiência, conforme veremos a seguir. Interessa-nos particularmente as narrativas em que a redatora fala em primeira pessoa, ora sobre sua página, ora sobre si, posicionando o narrador em distintas perspectivas na interação com seu interlocutor infantojuvenil.
A personalização da página no contexto das publicações infantis
Em 9 de agosto de 1959, quando o Correio Infantil completou seu primeiro aniversário após 52 edições dominicais, já ocupava, no corpo do jornal, o lugar prestigiado de uma contracapa de caderno. Ao deslocar-se no espaço gráfico, demarca o sucesso que angariou desde sua primeira aparição em apenas meia página
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do Correio do Povo. Por meio do recurso da personalização, fazendo do jornal personagem, típica estratégia narrativa utilizada pela página ao longo dos anos, escreve “Bilhete aos meus pequenos leitores”, que transcrevemos em parte: [...] A redatora, encarregada de meu conteúdo, procura encontrar histórias interessantes; lendas da nossa terra e de outros povos; aspectos das nossas capitais e de outros países; adivinhações; e o “Quem é que sabe?”, 10 perguntas que são um teste para verificar o aproveitamento escolar de meus amiguinhos. Ela lê todas as cartas que vocês me escrevem. Procura responder e agradecer as perguntas, as colaborações e as palavras de carinho que vocês me enviam. Depois disso pronto, ela me entrega ao paginador. Este, então, “rompe a cabeça”, para organizar toda a matéria dentro de uma página do Correio do Povo. [...] O mais engraçado é que às vezes os três discutem por minha causa. Assim se hoje estou mais bonito por uma coisa nova que tenho (não vou dizer o que é para ver se vocês são bons observadores; sortearei um livro entre os que a descobrirem) devo ao desenhista, que vinha lutando há muito tempo com o paginador para me tornar mais atraente ainda. [...] Outra coisa: geralmente eu sou paginado [feito] nos sábados à noite, e assim a redatora e o desenhista, como vocês também, me esperam com ansiedade no domingo, para ver como eu saí. É que nem sempre o paginador utiliza toda a matéria dada, pois às vezes, na hora de paginar, falta ou sobra espaço, e ele tem de tirar ou pôr alguma coisa, por conta própria. 7
Ao longo de 26 anos, a página infantil alternou a materialidade de seu perfil gráfico. Pela amostra, verificamos que o logotipo foi trocado pelo menos seis vezes. Em linhas gerais, 7
Recorte do arquivo pessoal de Maria de Lourdes. BRITTO, Maria de Lourdes, Correio do Povo, Correio Infantil, Porto Alegre, s/p., 9 de agosto de 1959. A ortografia foi atualizada ao longo dos excertos utilizados do jornal.
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de uma construção abarrotada de palavras e de poucas ilustrações nos primeiros anos, passou a ganhar, especialmente na fase final, arejamento maior, amplitude de imagens e legibilidade, seguindo as reformulações gráficas do próprio jornal. O slogan “Histórias, passatempos e diversões educativas”, presente na década de 1960, sintetiza seu perfil inicial marcadamente escolar e lúdico, constituindo uma espécie de miscelânea dirigida a uma faixa de público de quatro anos até a adolescência. Percebe-se um matiz pedagógico na escolha dos temas e no constante exercício cíclico de retomada das efemérides (festas religiosas como Natal, Páscoa, São João, comemorações cívicas etc.), nos conselhos e orientações sobre modos de comportar-se, ou nas sistemáticas matérias de serviço (circulação pedestre na cidade, sinalização de trânsito, campanhas de vacinação), passando pelas possibilidades de aproveitar o tempo largo das férias em qualquer espaço físico ou imaginário: em ambos os casos, sem prescindir da companhia de um bom livro. Boa parte das características gerais da página está alinhada às matrizes típicas das publicações para crianças que circularam no Brasil desde a primeira metade do século XIX. Segundo o estudo pioneiro de Arroyo (2011), estes impressos foram decisivos para a formação e o desenvolvimento da literatura infantil em uma época em que predominava a literatura oral como experiência de escuta lúdica e “instrutiva” dos pequenos leitores. Os modelos para a incipiente imprensa infantil residiam, pelo menos cinquenta anos antes, na Europa8 em geral refletindo o lado do adulto, do preceptor e do professor, ou seja, constituía-se em um ramo forte e explícito da pedagogia. Tanto que a proliferação de jornais produzidos em escolas será uma tônica do século XIX e das primeiras décadas do século XX, buscando desenvolver o gosto pela 8
Arroyo (2011) destaca o Le Magazin d’Education et Récréation que circulava em Paris com textos de Julio Verne e Madame de Staël, entre outros escritores, e The Lilliputian Magazine (1751-1752), provavelmente a primeira manifestação da imprensa infantil em Londres e na Europa.
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Reprodução
As diferentes fases: à esquerda, página em 06.10.1968. À direita, última edição em 10.06.1984. Fonte: Correio do Povo
leitura, pela literatura, recorrendo temporalmente à marcação das efemérides e de datas cívicas – esta insuflação da memória coletiva e institucional que, escreve J.M. Goulemot (2001), envolve como um tecido comum o nosso ato de ler. No final dos anos 1950, quando surge o Correio Infantil, a publicação de páginas para crianças constituía um nicho em expansão no Brasil. O Suplemento infantil (depois Suplemento juvenil) configura uma publicação emblemática do gênero lançada pelo jornal A Nação, em 1934, na área dos quadrinhos de heróis; o Globinho, vinculado ao jornal O Globo, começou a circular em 1938; a Folhinha da Folha de São Paulo, em 1963, e a revista Recreio em 1969. Um ano depois da entrada do Correio Infantil em circulação, Maurício de Sousa lança a tira Bidu, que evoluiria até o aparecimento da revista Mônica em 1970 (Hohlfeldt, 2010; Furtado, 2013).
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Justamente nesta fase de expansão, a revista Tico-Tico, pioneira na divulgação de quadrinhos e paradigma do gênero infantil desde 1905, encontrava-se em declínio, sem conseguir cumprir sua periodicidade semanal desde 1957. No Rio Grande do Sul, havia desde 1954 a revista Cacique, editada por professores da Secretaria de Educação do Estado, que dirigia-se ao alunato e ao magistério do primário com o intuito de difundir valores canônicos da educação oficial e a figura da criança modelar (Bastos, s/d). Outro periódico infantil, também referência no período, chamava-se Sesinho e circulou, na primeira fase, até 1960, vinculado ao SESI.
A chegada de uma professora na redação Considerando boa parte da tradição pedagógica do gênero, encontramos no percurso da redatora do Correio Infantil indícios que confirmam a aposta no vínculo entre a escola e o jornal, duas instituições que se aliam para a sua promoção, ainda que este acordo, no caso do Correio Infantil, não estivesse selado por uma instância formal. Filha de pai jornalista e inserida na tradição de uma família de professoras, Maria de Lourdes Sá Britto (1925-2008) encontrou guarida no Correio do Povo para sua sensibilidade em lidar e interagir com crianças, especialmente aquelas com necessidades especiais. Concluiu o Curso de Formação de Professores Primários em 1948 no reputado Instituto de Educação Flores da Cunha, em Porto Alegre, onde foi colega da jornalista de cultura e colunista social Lígia Nunes, sua melhor amiga e, provavelmente, quem a introduziu no ambiente jornalístico da Caldas Júnior. Entre os documentos guardados no arquivo, destaca-se um conjunto de reportagens assinadas por Maria de Lourdes, divulgando e problematizando a realidade das crianças com Síndrome de Down por meio dos debates que a recém-fundada APAE – Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais de Porto Alegre promovera na
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Reprodução
época. Participou da fundação da entidade desde 1962, integrou seu Conselho Deliberativo entre 1964 e 1966 e, ao longo dos 25 anos de magistério público e estadual, especializou-se na área por meio de formação continuada, desde cursos de inspeção de cegos, epilepsias, teatro e problemas de fala ou eventos de neuropsiquiatria e psicopedagogia infantil. Neste universo, os cartões manuscritos dos alunos com necessidades especiais da Escola Especial Experimental situada no bairro Cidade Baixa, onde Maria de Lourdes atuava, junto às cartas dos pais e alunos encontradas no acervo, são vestígios singulares de uma relação de afeto e dedicação que levou a professora-jornalista ao reconhecimento público. Em 1983, quando o Correio Infantil fez 25 anos, ela recebeu o título de Cidadã Emérita de Porto Alegre pela Câmara dos Vereadores, iniciativa do então vereador Antonio Hohlfeldt, costumaz leitor e colaborador da seção desde seus primórdios.
Carteira de jornalista com matrícula sindical. Fonte: Acervo pessoal
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Apesar de a página ter iniciado em 1958, e inserir-se diretamente nas promoções infantojuvenis do Departamento de Promoções e Relações Públicas da empresa, documentos pessoais da jornalista apontam que ela foi efetivada como repórter da Caldas Júnior em 1º de janeiro de 1961, recebendo um salário de 12 mil cruzeiros mensais. Na redação, onde chegava geralmente no meio da tarde, seus colegas a chamavam de “Baixinha”. Recordam sua voz ruidosa de professora, o temperamento extrovertido e congregador, a ponto de responsabilizar-se pelas festas de final de ano na redação, do consumo obsessivo de cigarros, do gosto pela vida social e cultural, por certo espírito boêmio e do apreço pelo jogo. Sentava-se junto ao editor de Cultura, Paulo Fontoura Gastal, responsável pelo conjunto de páginas e cadernos, e quem teve a iniciativa de produzir uma página infantil.9 O jornalista Antonio Hohlfeldt começou seu longo vínculo com a Caldas Júnior justamente pelas frequentes colaborações no Correio Infantil. Quando passou a integrar o corpo da redação, partilhava da mesma editoria de Maria de Lourdes: Muitas vezes eu vi crianças indo até a redação do jornal para receberem seus prêmios. E eu ficava na mesa de trás, então Maria de Lourdes sempre me apontava e dizia; ‘este começou aqui na página!’. Ela tinha orgulho muito grande disso10
O poeta Mario Quintana ficava ao lado e era comum que também interagisse com a criançada que invadia a redação.11 Carla Irigarai, que foi efetivada na Caldas Júnior como repórter no início dos anos 1970 e que chegou a trabalhar junto à página 9
Segundo informações de Nei Gastal, em entrevista concedida a Douglas Freitas e Brenda Cruz em 11 de maio de 2016. 10 Entrevista concedida por Antonio Hohlfeldt em 29 de abril de 2016 a Amanda Gomes. 11 Segundo informações de Nei Gastal, em entrevista concedia a Douglas Freitas e Brenda Cruz em 11 de maio de 2016.
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infantil, também fez parte desta geração de precursoras no Correio do Povo, percebendo o quanto estavam mobilizadas em torno de conteúdos até então naturalizados e adequados para mulheres de sua geração: a cultura, a música, a arte, a sociabilidade, a lida com as crianças, a educação. Carla lembra que, no início, estas mulheres atuavam como colaboradoras na redação, com horários flexíveis e sem bater ponto. “Quando estavam na redação, elas eram as figuras diferentes, era preciso conter a bandalheira, mas elas entravam na brincadeira. A redação era uma festa!”, rememora Hohlfeldt. Irigarai supõe que havia uma espécie de proteção e solidariedade dos colegas homens em relação às atividades das colegas e não esquece o dia em que foi conversar com o Doutor Breno, diretor do jornal, sobre a necessidade de instalar um banheiro feminino na redação, já que restava atravessar um longo corredor de uma ponta a outra do prédio e se deslocar até o segundo andar, onde ficavam as instalações físicas da rádio Guaíba12. Detalhe curioso, aparentemente insignificante, mas que denota a hegemonia masculina de um campo profissional, cuja espacialidade restou enfatizada na memória de todos os contemporâneos de Maria de Lourdes.
Maria de Lourdes e as crianças na redação do Correio do Povo. Fonte: Acervo pessoal 12 Entrevista concedida por Carla Irigarai a Amanda Gomes em 09 de junho de 2016.
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A promoção da escola e do jornal Chama a atenção na página, desde o início, a proximidade do Correio Infantil com o mercado editorial de lançamentos. Os concursos e a sabatina semanal dirigida às crianças,13 ao aferir o grau de apreensão dos textos, pressupunha a relação escolar da leitura como algo de que sempre se tem que prestar contas (Moraes, 2017). O livro configurava o prêmio máximo. Na maioria das vezes, este prêmio de leitura incluía a experiência de conhecer pessoalmente a redação e as oficinas da Caldas Júnior, o que implicava também no espelhamento do leitor na própria página, seja pelas suas palavras reescritas pelos “redatores” ou pela sua fotografia impressa ali, como vimos na figura anterior. A literatura foi uma temática recorrente desde o primeiro número, que abriu com fábulas de Esopo. Colegas de redação14 lembram a proximidade das casas editoriais com a página, especialmente a Melhoramentos, que divulgava capítulos e até histórias completas de seus lançamentos, como ocorreu com a série Aventuras na fazenda de Taquarapoca, segundo Hohlfeldt (2016)15. No retrospecto realizado em janeiro de 1970, Maria de Lourdes agradece o estímulo dos livreiros da cidade, especialmente a Livraria do Globo, a Sulina, entre outras.16 Irigarai e Ney Gastal17 lembram o quanto sua colega era criteriosa em receber uma quantidade grande de livros infantis, guardar e distribuir para os premiados e crianças que visitassem a redação. É importante situar que, entre as décadas de 1960 e 1980, assiste-se a uma expansão da literatura infantojuvenil no Brasil por meio 13 A mais sistemática delas foi o concurso “Quem é que sabe?”, 10 perguntas dirigidas ao leitor sobre temas tratados na página. 14 Antonio Hohlfeldt (2016), Carla Irigarai (2016) e Ney Gastal (2016) referiram esses dados nos seus depoimentos. 15 Entrevista concedida por Antonio Hohlfeldt a Amanda Gomes em 29 de abril de 2016. 16 Como colaboradores são listados as escritoras Maria Dinorah e Tia Lenita, Maria Tecacenco, Fernando Sampaio, Avancini, Mauro Côrte Real e outros. BRITTO, Maria de Lourdes. Dez anos: muitos amigos, muita alegria. Correio do Povo, Correio Infantil, s/p., 4 de janeiro de 1970. Acervo pessoal 17 Entrevista concedida por Carla Irigarai a Amanda Gomes em 09 de junho de 2016. Entrevista concedida por Nei Gastal a Douglas Freitas e Brenda Cruz em 11 de maio de 2016.
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do estímulo neste filão cada vez mais valorizado no âmbito escolar. Se até então Monteiro Lobato era o primeiro grande autor brasileiro no gênero, acompanhado por outros escritores consagrados que dedicaram algum título a este público, a partir dos anos 1970 vive-se uma espécie de boom editorial da literatura infantil, combinando livros e espetáculos, diversidade de autores e narrativas. O desenvolvimento de alguns atributos, que até então eram mais esparsos e tateantes, acabaram se tornando hegemônicos no segmento: o aproveitamento escolar; a introdução de forma irreversível do universo da cidade nos enredos; uma busca pela crítica social por meio do realismo e o exercício sistemático do ponto de vista da criança, rompendo a onisciência de um narrador adulto e contornando a assimetria característica do gênero. (Zilberman; Lajolo, 1986; Hohlfeldt, 2010).
Maria de Lourdes entrevista o aluno Fernando André do Grupo Escolar Benjamin Constant. Fonte: Recorte de acervo pessoal
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Como universo narrativo, a página responde a boa parte dessas características e, mesmo no viés pedagógico ou no dever-ser da educação, constrói a figura da criança participativa, que tem a escola como referência e sonha com o futuro. No ritmo cíclico da edição, o mês de março era dedicado à volta às aulas. O Correio acompanhava seus leitores nessa passagem, e não foram poucas as vezes em que entrou nas escolas captando flagrantes dos colégios públicos e, nesse sentido, registrando o prestígio do sistema público de educação, os tradicionais colégios particulares e as impressões dos alunos sobre a experiência escolar. A redatora Maria de Lourdes interessa-se em conhecer empiricamente seu jovem interlocutor, em entrevistá-lo, buscando acompanhar seu crescimento e, sobretudo, registrar suas singularidades. Evidencia-se, especialmente, a articulação do ponto de vista infantil pelo uso eventual da primeira pessoa e dos diálogos. Nos múltiplos registros, a página oferece um mosaico de percepções infantis, compondo em fragmentos representações do que era ser criança em determinado período histórico. Como exemplo, evocamos a longa entrevista publicada em 21 de outubro de 1962 com o menino Fernando André, de 8 anos, estudante do Grupo Escolar Benjamin Constant, que conta à redatora seus planos de se transformar em um grande inventor e de criar espelhos falantes que orientem quem olha para si mesmo.18 Ou a matéria central que ganhou, em junho de 1971, a menina Delaine Oliveira, 11 anos, do quinto ano do Instituto de Educação, após contar à página sua ambição de ser astronauta e comandar uma nave especial, ecoando o impacto recente da chegada do homem à lua. Ela mandou uma carta para a N.A.S.A. na qual perguntava o que era preciso para ser astronauta, se era divertido ir e voltar da lua. Recebeu a resposta em inglês do departamento americano, e toda essa façanha foi publicada no Correio Infatil com o comentário prudente da menina: 18 BRITTO, Maria de Lourdes Sá. Um futuro inventor. Correio do Povo, Correio Infantil, Porto Alegre, s/p., domingo, 21 de outubro de 1962. Acervo pessoal.
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Tenho só onze anos. Daqui a alguns anos, quando eu começar a comandar uma nave espacial, muita coisa já foi aperfeiçoada e descoberta, mesmo assim, acho que as viagens ao espaço não serão muito comuns.19
Entre o acionamento do ponto de vista infantil, ora na profusão de imagens lúdicas das crianças, ora sublinhando a dimensão de seus conflitos, vale destacar o posicionamento de defesa dos leitores assumido pela equipe editorial e enfatizado nas matérias assinadas pela redatora. Um episódio emblemático deste gesto editorial encontra-se na página de 1º de dezembro de 1968, quando o Correio Infantil, publicamente, coloca-se à frente dos alunos no episódio do rito de admissão em 1968. Pela perspectiva dos alunos, muitas das provas mimeografadas entregues no exame daquele ano apresentavam perguntas ilegíveis, alguns examinandos deixaram respostas em branco, outros tentaram sem sucesso a ajuda dos professores para entender questões mal impressas no papel. Na matéria assinada por Maria de Lourdes, cujo narrador adulto toma posição em relação ao episódio ocorrido, o Correio Infatil sai em defesa de seus jovens leitores.20 Neste movimento de mediação da página, infere-se o quanto o jornalismo vai ganhando envergadura como instituição referencial no cotidiano de seu público. Se a escola recebe determinada perspectiva nas narrativas jornalísticas – majoritariamente a partir do modelo da cidade capital –, o inverso também ocorre. Vejamos a seguir uma carta enviada em agosto de 1966 de uma aluna do quinto ano de um grupo escolar de Carazinho, interior do Rio Grande do Sul, que tinha o Correio Infantil como modelo para o jornal escolar. Os aniversários do Correio do Povo, festejados na primeira semana de outubro, com frequência convocavam os alunos para escrever sobre o jornal. É o caso das quadrinhas criadas pelos 19 BRITTO, Maria de Lourdes Sá. Delaine quer ser astronauta. Correio do Povo, Correio Infantil, Porto Alegre, s/p., domingo, 20 de junho de 1971. Acervo pessoal. 20 Recorte do arquivo pessoal. BRITTO, Maria de Lourdes Sá. Exame de admissão, Correio do Povo, Correio Infantil, Porto Alegre, s/p. 1º de dezembro de 1968.
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alunos do segundo ano do Ginásio Estadual Euclides da Cunha, publicadas na edição do dia 6 de outubro de 1968:
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Eu acho o CORREIO DO POVO muito honesto/ Ele é o melhor jornal do Estado/ O CORREIO DO POVO traz tudo o que gente quer/ ele tem esporte, tem o nome dos filmes, o programa de televisão e também o CORREIO INFANTIL, a página das crianças.
Carta manuscritas de leitores de escolas. Fonte: Acervo pessoal
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Edição comemorativa dos 80 anos do Correio do Povo em 05 de outubro de 1975. Fonte: Acervo pessoal
Em 1975, o jornal festeja 80 anos, já começando a enfrentar a crise financeira que o levaria à perda da hegemonia no mercado sulino e ao fechamento em junho de 1984. Nesta ocasião, conforme exemplificamos na figura acima, o CI apresenta em forma de homenagens, visibilizando uma demonstração muito particular de prestígio e capital simbólico expressa na tradicional visita das crianças ao prédio da rua Caldas Júnior. Ao percorrer as datas redondas que pontuam a trajetória do Correio do Povo, notamos que era recorrente o jornal falar de si por meio da fidelidade dos seus leitores, especialmente os notáveis que, não raro, acorriam ao prédio físico para demonstrar seu apreço. No mesmo ritmo comemorativo da apreensão da história
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coletiva e escolar, o aniversário era o momento de inscrever o jornal na história cultural da cidade e do estado, de enfatizar o passado acolhendo o vínculo futuro, de falar de si por meio do interesse e do afeto de leitores em formação.
A mediação das cartas e o acionamento das memórias da infância
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Além dos alunos das escolas do interior e da capital, a equipe editorial interagia, especialmente, com os filhos dos assinantes, como se pode perceber pela carta abaixo, que descreve a espera de um menino pelo percurso de um jornal atravessando os quase 200 quilômetros que separam Bagé de Livramento, na fronteira do Rio Grande do Sul.
Carta ao Correio Infantil. Correio do Povo, 13 de janeiro de 1963, p.36. Fonte: Acervo Correio do Povo
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Este fragmento é emblemático da condição de espera implícita no pacto de leitura proposto pela equipe editorial a seu público. Pela espera, esse pacto ancora-se na mediação da carta, tanto sob o ponto de vista do redator adulto como do leitor. Na medida em que convida semanalmente jovens a enviarem cartas, criando a expectativa de que poderão se ver publicados no jornal, o Correio Infantil se configura tanto como espaço de manifestação pública como possibilidade de acolhimento da intimidade, condição esta fundamental para a construção do vínculo de afeto encenado na troca epistolar. Durante os anos 1960, a seção de endereços “Amigos de Longe” disponibilizava endereços de leitores das mais diversas cidades para que pudessem trocar cartas entre si, resultando em amizades e até casamentos, como o jornal viria a festejar posteriormente. Foi o caso da matéria comemorativa ao dia das mães, em 14 de maio de 1972,21 ao relatar o nascimento de um “neto” do Correio Infantil, cujos pais se conheceram por meio de correspondência e, assim, inscreviam o nome da criança numa linhagem amarrada pelas próprias cartas e palavras dos leitores. A redatora Maria de Lourdes imprimia uma tonalidade afetuosa no texto fazendo da materialidade do jornal a personificação de uma família capaz de acolhimento. O narrador adulto configurado nos gestos da equipe editorial, que busca fazer a mediação com o universo infantojuvenil, ganha contorno autobiográfico quando a redatora evoca suas memórias da infância como recurso para aproximar-se de seus leitores, sejam eles ideais ou representados por crianças próximas da redação, seus sobrinhos ou filhos de amigos e colegas que pontuavam 21 [...] Aos 26 de dezembro de 1970, comunicávamos prazerosos ao Correio Infantil o nosso enlace matrimonial, pois foi através destas páginas amigas que chegamos ao conhecimento um do outro. Agora nossa felicidade é maior ainda, pois nossa primogênita nasceu, trazendo continuidade ao nosso lar. Chama-se ESTELA. Tem cabelos pretos. É bonita. Veio nos fazer companhia aos 25 dias de março. BRITTO, Maria de Lourdes Sá. A mamãe do Correio Infantil. Correio do Povo, Correio Infantil, Porto Alegre, s/p., domingo, 14 de maio de 1972. Recorte de acervo.
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aquele universo dominical. Na seleção de matérias encontradas no arquivo da jornalista, percebemos uma escrita autorreferencial tecida na interpelação com os leitores. As vivências da infância na cidade de Passo Fundo, Rio Grande do Sul, a lembrança do pai jornalista, o tempo vivido na casa dos tios – essas memórias são acionadas em boa parte nas narrativas em primeira pessoa assinadas pela jornalista. Espécie de autobiografia em fragmentos, é possível entrever uma construção sobre si expressa nas matérias publicadas ao longo das mais de duas décadas da página, como no texto “O armário mágico” de 1961: [...] mas o que mais me agradava dentro daquela casa era um armário e, neste, eu nunca mexi. Era um armário de tábuas rústicas que ocupava uma parede e que ia quase até o teto. Cheio de prateleiras de alto a baixo. Servia ele como uma espécie de despensa, onde tia Chinita guardava tudo o que de bom fazia ou comprava: caixetas de pessegada, goiabada, marmelada, biscoitos, doces em calda, latas de bala, rapadurinhas de leite, corações de mel, barrinhas de chocolate, broinhas, enfim uma infinidade de coisas gostosas. No alto do armário havia uma sinetinha. Quando este era aberto, a sinetinha tocava (eis a razão por que nunca pude mexer nele...). Cada vez que ouvia a sinetinha do armário soar, corria até a peça onde ele estava para ver o que tia Chininha ia tirar de dentro dele. Naturalmente, sempre ganhava alguma coisa. 22
Caçula de quatro irmãs, três delas professoras, o magistério foi uma vocação estimulada desde cedo pela mãe que perdeu precocemente o marido, precisando trabalhar fora. A docência era um caminho seguro para as mulheres conquistarem autonomia financeira naquele tempo. Os poucos anos de convivência com o pai foi preenchido pelo cultivo de uma memória familiar que ancorou 22 SÁ BRITTO, Maria de Lourdes. O Armário Mágico, Correio do Povo. Correio Infantil, Porto Alegre, s/p, domingo, 8 de janeiro de 1961. Acervo pessoal.
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boa parte dos textos dirigidos às crianças, evocando cenas lúdicas como a dos Natais, no excerto a seguir: [...]Quero contar do presente que São Nicolau me deu e que não ficou comigo. Era um bebê, na época de hoje dos bebês lindos de borracha, de matéria plástica ou de louça, esse bebê não teria grande valor. Era um bebê de papelão de massa, como dizíamos. Mamãe, antes de São Nicolau entregar-me aquela boneca, fez uma roupa nova e uma touquinha de crochê, cor de rosa. Não sei dizer se era bonito; só sei que era um bebê grande, quase do meu tamanho e que eu, naquela época com cinco anos, considerei como vocês consideram os brinquedos que ontem ganharam, o maior, o mais bonito, o melhor.23
Referência familiar e inspiração para sobrinhos e sobrinhos-netos, que volta e meia surgiam em forma de personagens ou colaboradores do Correio Infantil, Maria de Lourdes estimulou neles o gosto pela leitura, em outros o interesse pelo ensino. “Ela me fez amar livros. Me deu a coleção de Monteiro Lobato e me fez conhecer e me apaixonar por Simone de Beauvoir”, sintetiza a sobrinha Mônica Fonseca24, que morou durante anos com Maria de Lourdes e costumava acompanhá-la até a redação da Caldas Júnior. Numa época de limites comportamentais rígidos para as mulheres, cujo horizonte mais confortável seria o casamento, as sobrinhas encontravam na independência da tia professora-jornalista um exercício de singular liberdade. Maria de Lourdes teve seus namorados, uma paixão, não casou e viveu intensamente. Ao longo dos anos, foi acompanhada pela secretária Creusa, que cuidava de sua casa e de quem adotou a filha Patrícia. Após uma série de internações hospitalares em decorrência da diabete, 23 SÁ BRITTO, Maria de Lourdes. O Melhor Presente, Correio do Povo, Correio Infantil, Porto Alegre, s/p, domingo, 25 de dezembro de 1960. Acervo pessoal. 24 Entrevista concedida por Mônica Sá Britto Gonzales Fonseca a Yamini Benites em maio de 2016.
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enfizema pulmonar e problemas de coluna, faleceu em 2008. Nas lembranças de quem ficou, a figura de Maria de Lourdes reside na sua energia, na espirituosidade e no jeito particular de encantar crianças. “Ela se envolvia emocionalmente com todas as crianças, especialmente aquelas com dificuldades. Era tocante vê-la assim envolvida.”
Considerações finais Após percorrer algumas pistas da vida profissional e pessoal de Maria de Lourdes Sá Britto, pistas abertas pelos documentos de seu arquivo, pelas memórias de colegas e familiares e, principalmente, pela página infantil que conduziu durante 26 anos, encontramos vestígios do protagonismo social do professor primário e de sua dimensão pública. Uma dimensão que, na história aqui iluminada, alcança a esfera do jornalismo, particularmente o jornal impresso como instituição orientadora na compreensão do mundo. Escola e jornal, dois lugares privilegiados de leitura no século XX. Encontramos também indícios de uma história ainda recente da chegada de mulheres trabalhadoras nos periódicos sulinos, geração esta marcada pela condição histórica de serem mulheres formadas na primeira metade do século XX e, portanto, estarem propensas a cuidar de determinadas temáticas supostamente mais leves ou, então, de cunho formativo e pedagógico. Em um universo de publicações marcadas pelo dever-ser da boa e estudiosa criança, a redatora do Correio Infantil e sua equipe enfrentou o desafio de aproximar-se deste outro infantojuvenil. Ao combinar o desenho de múltiplas crianças representadas, desenho esboçado pelo adulto que se rememora pequeno ou pelo jovem leitor que escreve sobre si, a página articulou distintas possibilidades de fazer o leitor infantojuvenil passar de objeto a protagonista. Apoiada no pacto da correspondência, engajou seus leitores com senhas para a leitura e para a escrita, para a valorização do livro
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e do jornal, sintonizando os jovens à temporalidade da espera, a espera paciente por uma resposta. Maria de Lourdes levou esta aposta com espirituosidade até o final do ciclo em 10 de junho de 1984. Com sensibilidade, alternou narrativamente o ponto de vista hegemônico do adulto orientador ao ceder lugar para captar singularidades da experiência do leitor empírico, abrindo a ele os mistérios de um jornal e, junto dele, construindo o fascínio de se ver espelhado no mundo impresso ali.
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Jornalista, publicitário e cronista A trajetória de Luis Fernando Verissimo na Comunicação1 Aline Strelow Ana Gruszynski Laís Webber
O sujeito que escreveu dezenas de livros e é lido em vários países foi também um filho sonhado por um pai. Um filho que, aos 30 anos, ainda era fonte de preocupação para o pai, Erico Verissimo, por sua indefinição profissional. No ano de 1966, Luis Fernando retornava para Porto Alegre depois de uma temporada no Rio de Janeiro, onde, além de trabalhar com um gângster americano,2 conheceu a mulher Lúcia Helena Massa, casou-se com ela e teve a primeira filha, Fernanda.3 “Tinha 30 anos e não sabia fazer nada. Nem, pelo menos que se soubesse, escrever. Como lia quase que exclusivamente em inglês, havia uma secreta desconfiança na família de que eu era analfabeto em português”, conta (Oitenta, 1982, p. 2). Apesar disso, o diretor de Zero Hora Paulo Amorim convidou-o para fazer um teste como copidesque4 na redação do jornal. Iniciava, revisando 1 2 3 4
Este trabalho contou com o apoio da estudante de Jornalismo Débora Smith Sander, que colaborou voluntariamente com a pesquisa, levantando imagens, documentos e bibliografia. Luis Fernando morou no RJ de 1963 a 1966; trabalhava com um americano fazendo traduções e interpretações, quase como um secretário. Mas, conforme afirmou em entrevista (VERISSIMO, 2016a), seu salário não era pago; vivia do dinheiro enviado pelo pai. Mais dois filhos vieram nos anos seguintes, Mariana (1967) e Pedro (1970). É avô de Lucinda e Davi. O copidesque é responsável pela revisão, correção e adaptação de textos a serem publicados.
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textos escritos por outros, uma trajetória profissional singular na Comunicação, que se mantém em paralelo a sua produção literária até os dias de hoje. Neste capítulo, lançaremos nosso olhar sobre esse percurso, com enfoque na atuação de Luis Fernando Verissimo no Rio Grande do Sul na segunda metade do século XX.
Luis Fernando Verissimo na redação do jornal Zero Hora em 1969. Fonte: Fotografia de Luchini/Agência RBS5.
Primeiras experiências Deve-se lembrar, no entanto, que antes da entrada em Zero Hora Verissimo havia sido inclusive “dono de jornal”. O Patentino era o título da folha familiar que fazia, aos 16 anos, com a irmã Clarissa Verissimo e com o primo Carlos Eduardo Martins. Produzido à máquina de escrever, tinha como objetivo garantir a leitura de banheiro (o jornal era colado na parede) e anarquizar a família: “Foi minha primeira experiência jornalística”, lembra (Verissimo, 5 Fotografia publicada em reportagem especial em homenagem aos 80 anos de Luis Fernando Verissimo. 23/09/2016. Disponível em <https://tinyurl.com/jvmwzfm>. Acesso em 28/04/2017.
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2016a). Na edição de 13 de julho de 1951 de O Patentino, o trio registrava as andanças de familiares e reivindicava o retorno do senso de humor da família Verissimo. Luis Fernando, como informa o “expediente”, era o diretor do jornal. A folha contava com anúncio colorido da Coca-Cola com texto em inglês, recortado e colado de uma revista norte-americana. Em 1956, com 20 anos e decidido a não dar continuidade aos estudos (“era um péssimo aluno”), foi trabalhar na Livraria e Editora Globo,6 uma das principais editoras do Brasil à época e responsável pelos livros de Erico Verissimo. Lá, fez o planejamento gráfico de capas e miolos de livros – definindo a tipografia, criando ilustrações e outros elementos que eram dispostos nos layouts – revelando que já tinha então “jeito para o desenho” (Verissimo, 2016a). Entre as capas que produziu nesse período está a de O retrato, segundo volume da obra O tempo e o vento, de seu pai, e do livro Do salmo ao jazz, de Gilbert Chase, reproduzidas a seguir. Começou atuando no departamento de arte e depois passou para a secretaria da editora, onde trabalhou também com revisões. Ainda na Editora Globo, foi o tradutor da revista Mistério Magazine de Ellery Queen,7 que publicava literatura policial – atividade a que Erico Verissimo também se dedicou no início de sua carreira, o primeiro livro que traduziu foi a novela policial The Riger, de Edgar Wallace (Verissimo, 1994, p. 247). “Essas traduções foram as primeiras coisas que escrevi, não tinha nenhuma ideia de ser escritor, e muito menos de ser jornalista”, recorda Luis Fernando (Verissimo, 2016a). Ou seja, não é exatamente sem saber fazer nada que chega a Zero Hora em 1967 – a modéstia e uma certa autodepreciação cômica são algumas das marcas pessoais do escritor. 6
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Foi fundada em 1883, uma das editoras mais antigas do país, sendo, desde 1986, parte das Organizações Globo. Publicou traduções, dicionários, enciclopédias, materiais didáticos e revistas. Parte do trabalho gráfico realizado na empresa na primeira metade do século XX pode ser conferido em: RAMOS, Paula. A Modernidade Impressa: artistas Ilustradores da Livraria do Globo - Porto Alegre. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2016. A revista chegou ao Brasil em 1949 e reproduzia, em português, os textos publicados em inglês na Ellery Queen’s Mistery Magazine, revista norte-americana.
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Jornal O Patentino (13/07/1951). Fonte: Acervo pessoal de Luis Fernando Verissimo.
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Capas dos livros O retrato e Do salmo ao jazz (1957).
De faz-tudo à colunista em Zero Hora No periódico, ele fez de tudo um pouco durante três anos. Embrenhou-se na “cozinha” do jornal – de copidesque, passou a editor de variedades, editor internacional, depois editor nacional. Nesse período, chegou a fazer inclusive o horóscopo: “Até que descobriram que eu fazia sempre as mesmas previsões, para poupar tempo, só variando o signo”, diverte-se (Oitenta, 1982, p. 3) – foi o fim de sua carreira de astrólogo. Uma de suas atividades nesse período era a edição da coluna Programinha, uma página de variedades, que trazia a programação cultural de Porto Alegre e dicas de bares e restaurantes. As notas permeadas de humor logo caíram no gosto do público e dos empresários do setor – alguns queriam, inclusive, pagar para ter seus estabelecimentos citados na página, o que Verissimo
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Coluna Programinha (10/05/1968), jornal Zero Hora. Fonte: Acervo do Museu de Comunicação Hipólito José da Costa.
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nunca aceitou. Nos textos supostamente informativos, não tinha o menor pudor de inserir lugares e pessoas inventados, como um CTG erótico de nome Ai Bota Aqui e figuras como o grã-fino Aldo Gabarito (Laitano, 2011, online). “O jornal tinha uma existência precária, a gente nunca sabia quando é que ia receber ou se ia receber, tinha que fazer de tudo dentro do jornal”, explica (Verissimo, 2016a). Por conta disso, outra tarefa a que volta e meia se dedicava era a redação de artigos para a editoria de opinião – quando faltava texto, Luis Fernando era chamado a colaborar e o fazia usando pseudônimos. “Tinha o Fernando Volpe e o Luiz Lopes.8 Às vezes, esses articulistas fantasmas se contradiziam, faziam polêmica entre eles.” (Verissimo, 2016a) A prática remonta, de algum modo, à experiência de Erico Verissimo na redação da Revista do Globo na década de 1930, onde também desdobrava-se em diferentes tarefas: Tudo na redação tinha de ser feito às pressas. Às vezes, folheando revistas americanas, eu descobria nelas ilustrações que me agradavam. Mandava então transformá-las em clichês.9 Prontos estes, invertendo o processo habitual, eu improvisava um conto que se adaptasse às estampas e firmava-o com um nome suposto (Verissimo, 1994, p. 252).
Foi nesses primeiros anos em Zero Hora que Luis Fernando Verissimo teve sua primeira – e única – experiência como repórter. O ano era 1968 e o sul-africano Christian Barnard, que meses antes fizera o primeiro transplante de coração da história, participaria de um congresso em Buenos Aires. Como falava inglês, foi o escolhido para entrevistar o médico, como recorda na crônica Eu, repórter (2009): 8 9
Os nomes eram uma mistura do seu próprio nome com os sobrenomes dos pais. A mãe de Luis Fernando se chamava Mafalda Volpe Verissimo e, o pai, Erico Lopes Verissimo. Placa metálica em que eram gravadas imagens ou textos em relevo para, depois, serem reproduzidas no papel por meio de prensa tipográfica.
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[...] Me botaram num avião para Buenos Aires. Junto com um cinegrafista, o Leca, porque a matéria que eu conseguisse também seria para a TV. O dr. Barnard se tornara uma celebridade mundial com seu feito. Havia uma multidão querendo entrevistá-lo em Buenos Aires. Ele atenderia a imprensa de uma vez só, numa coletiva, e depois responderia a perguntas individuais – mas só uma pergunta por repórter. Entrei na fila. O Leca ficaria perto do doutor e ligaria a câmera quando eu chegasse lá. Fiquei pensando no que perguntar ao Barnard. O argentino atrás de mim me cutucava com seu microfone à altura dos rins. Ouvi uma altercação vindo do começo da fila. Um repórter desobedecera às ordens, tentara fazer uma segunda pergunta ao cirurgião e ouvia protestos dos colegas. Eu não conseguia pensar na pergunta que faria ao Barnard. Tinha que ser uma única pergunta. Uma pergunta definitiva. — O que o senhor está achando de Buenos Aires? Não! Algo mais científico. Como está passando o paciente que recebeu o coração transplantado? Não! O paciente poderia já ter morrido, a pergunta seria vista como provocação. Falar do apartheid na África do Sul? Não, nada a ver. Perguntar o quê? Eu chegava cada vez mais perto do começo da fila. O Leca me fazia sinal de positivo, estava a postos. A ansiedade do argentino atrás de mim aumentava e as cutucadas também. Perguntar o quê? Finalmente cheguei na frente do dr. Barnard e... Sabe que eu não me lembro o que perguntei? Tenho a vaga lembrança de alguma coisa como “O senhor espera operar num brasileiro, um dia?”, mas prefiro estar enganado. Minha única vontade era estar de volta na Redação da Zero Hora, inventando frases para o conde Fanfani ou o Aldo Gabarito, em vez de para mim. Desde então, só aumentou a minha admiração por repórteres.
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Em 1969, quando Sérgio Jockymann10 saiu da Zero Hora e foi para a Caldas Júnior, Verissimo foi convidado para assumir sua coluna. Foi o primeiro espaço assinado com seu nome, onde ele se descobriria como cronista. “Um pouco tardiamente, eu descobri que minha vocação era fazer crônicas, até então eu não tinha a menor ideia de que sabia escrever”(Verissimo, 2016a). O assunto da crônica inaugural foi inspirado em uma de suas paixões declaradas: o Sport Club Internacional. Seu primeiro texto assinado teve como tema o primeiro Grenal11 realizado no estádio Beira-Rio.
A publicidade como escola O emprego no jornal era conciliado com as atividades publicitárias na MPM Propaganda,12 onde ingressou também em 1967. Na agência, ele cumpria horário e se dedicava ao trabalho durante o dia – depois de deixar as crianças no colégio. “Ter essa responsabilidade era uma maneira de garantir que não iria se atrasar”, conta a esposa Lucia (Verissimo, 2016). Encerrado o expediente, dirigia-se à redação do jornal para escrever a coluna. Foram 15 anos de atuação como redator publicitário na MPM, então a principal agência do Rio Grande do Sul e uma das maiores do Brasil. Lá, integrava a redação – a área de criação da agência era dividida em redação e departamento de arte,13 o que proporcionava 10 Poeta, escritor, dramaturgo, jornalista e cronista. Sérgio Jockymann escreveu para jornais como Zero Hora, Folha da Tarde e Correio do Povo; foi, ainda, deputado estadual do Rio Grande do Sul. 11 Tradicional disputa entre os dois maiores clubes de futebol do Rio Grande do Sul – Grêmio e Internacional. O Grenal a que o texto se refere aconteceu em 20 de abril de 1969, pelo Campeonato Gaúcho. O clima era hostil e o jogo foi violento, uma das razões foi o desejo de revanche, já que, quinze anos antes, o Internacional venceu por 6 a 2 o primeiro Grenal realizado no Estádio Olímpico. 12 Importante agência de publicidade brasileira. Começou seus trabalhos em 1957 em Porto Alegre; a partir dos anos 60, expandiu-se para outras regiões, sendo a primeira do ranking, com cerca de mil colaboradores, nas duas décadas seguintes. Ver em IRIBURE, André; JACKS, N. A. . MPM. Agência dos anos de ouro da publicidade brasileira. 1. ed. Florianópolis: Insular, 2015. v. 1. 13 Diferente da maioria das empresas da área, em que o trabalho de criação é organizado por duplas, um profissional responsável pelo texto e outro pela arte.
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a interação com diferentes profissionais, como Hiron Goidanich,14 Jéferson Barros,15 Gilmar Fraga,16 e Joaquim da Fonseca.17 Os trabalhos eram voltados aos diferentes meios de comunicação da época – além dos anúncios para jornais e revistas, Verissimo destaca os comerciais televisivos, que não eram feitos em filmes, mas em slides 18 (Verissimo, 2016a).
Primeira crônica assinada de Luis Fernando Verissimo como colunista do jornal Zero Hora, em abril de 196919. 14 Conhecido como Goida, Hiron Goidanich é jornalista, publicitário, pesquisador e crítico de cinema. 15 Jornalista e crítico de cinema e de teatro. Tem cinco livros publicados, passando por poemas, novelas e críticas de televisão. 16 Ilustrador e cartunista. Desde 1996, trabalha como ilustrador editorial para o jornal Zero Hora. 17 Artista plástico, designer gráfico e professor universitário. É autor, co-autor e tradutor de mais de vinte livros. 18 Antes do surgimento do videotape, os programas televisivos eram realizados ao vivo e os comerciais produzidos em slides. Para que houvesse áudio, enquanto a sequência de imagens passava na televisão, a locução era transmitida ao vivo. 19 Imagem publicada em reportagem especial em homenagem aos 80 anos de Luis Fernando Verissimo. 23 set. 2016. Disponível em <https://tinyurl.com/jvmwzfm>. Acesso em 28 abr. 2017.
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Um das produções desse período que ficaram na memória de Verissimo está, assim como a primeira crônica, relacionado à inauguração do Beira-Rio. O anúncio da joalheria e óptica Masson tinha como mote o novo relógio do estádio que, segundo o redator, logo seria odiado pelos torcedores:
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1x0 para o seu time. Jogo quase no fim. O adversário ataca em massa. Você olha aflito para o placar eletrônico do Gigante e explode: ‘Este relógio não anda!’ Ou então, 1x0 para eles. Três minutos para o final. Dois minutos. Um minuto. ‘Como corre esse danado’. Controle-se. Esse danado é um Eterna-Matic. Incrivelmente certo. Irritantemente suíço. E – acredite – neutro.
Anúncio para a joalheria e óptica Masson publicado em suplemento especial do jornal Zero Hora sobre a inauguração do estádio Beira-Rio. Fonte: Acervo do Museu de Comunicação Hipólito José da Costa.
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A MPM não foi, no entanto, sua primeira experiência em publicidade. Antes disso, Verissimo teve uma passagem relâmpago pela agência Mercur,20 também por influência do diretor de Zero Hora Paulo Amorim. “Mas o diretor da Mercur achou que eu não dava para a coisa, que não tinha talento para publicidade. Depois fui para a MPM e fiquei 15 anos”, lembra (Verissimo, 2016a). E a “coisa” para a qual Verissimo não levaria jeito seria justamente a atividade de redação. Por seu trabalho na MPM, foi premiado em 1970 no 1º Salão Gaúcho de Arte Publicitária. Em 2013, Verissimo escreveu a crônica Slogans – em parte do texto, relembra a experiência na empresa e a campanha desenvolvida para o cliente Riocell: Durante quinze anos trabalhei como redator na MPM Propaganda. No fim dos quinze anos sabia tanto sobre como funciona ou deixa de funcionar a publicidade quanto no meu primeiro dia. Amiúde (sempre quis usar a palavra “amiúde”!) me surpreendia com o resultado de uma campanha publicitária ou de marquetchim. Não entendia como, muitas vezes, boas campanhas não davam resultado enquanto outras, medíocres, tinham efeito imediato. Mas mesmo sem, literalmente, saber o que eu estava fazendo durante os quinze anos, foram quinze anos, e alguma coisa eu aprendi. Aprendi, por exemplo, que o bom slogan publicitário é o que com poucas palavras tem mais de um sentido. Quando eu estava lá a MPM ganhou a conta da Riocel, uma empresa de celulose que, do outro lado do Guaíba, o rio que não é rio, mandava maus odores sobre Porto Alegre, revoltava a população e provocava críticas ferozes da imprensa. Dependendo da direção do vento, o cheiro de ovo podre era mesmo insuportável. Para se defender, a Riocel começou a instalar um sistema antifedor — filtros, ou coisa parecida — e contratou a MPM. Para melhorar a sua imagem. Bolamos uma campanha convidando 20 Agência de publicidade criada em 1957 pelos irmãos Maurício e Jayme Sirotsky, Edgar Siegmen e Hugo Hoffmann.
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os porto-alegrenses a visitarem a fábrica e descobrirem o que estava sendo feito para acabar com o mau cheiro e ouvir as explicações dos seus técnicos. O slogan da campanha era “Conheça o outro lado”. O outro lado do Guaíba e os argumentos contra os ataques que a Riocel sofria, o outro lado da questão. Hein? Hein? Está bem, não era genial. Mas funcionou (Verissimo, 2013).
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Interessante é observar que, em seu trabalho na imprensa, Verissimo reforçava a crítica feroz a Riocell. A empresa, que até 1975 se chamava Borregaard, é alvo de cartum publicado em junho de 1973, quando já trabalhava na Folha da Manhã e antes, então, da circulação da campanha da MPM. O jornal era uma publicação da Caldas Júnior, dirigida, à época, por Breno Caldas – “Quando o cheiro da Borregaard ia para o lado da casa do Breno Caldas, ele botava no jornal”, brinca Verissimo (Verissimo, 2016a).
Cartum publicado em 8/6/1973, no jornal Folha da Manhã. Fonte: Acervo pessoal de Luis Fernando Verissimo.
A publicidade foi, de certo modo, uma escola de redação. “O texto publicitário é extremamente utilitário. Ao mesmo tempo, deve ser muito criativo. Ele tem que ser direto, conciso, claro e precisa ter algo diferente para chamar a atenção, para criar resposta da parte do leitor”, reflete o autor em entrevista (Golin, 1993, p. 107), comparando a tarefa ao desafio do cronista, que seria abordar o assunto de maneira diferente daquela apresentada pelo jornal quando noticiou o fato.
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Um cronista nos anos de chumbo A atividade como colunista teve início nos chamados “anos de chumbo” da ditadura militar brasileira,21 após a assinatura do AI-5,22 que dava amplos poderes ao Presidente da República e suspendia uma série de garantias constitucionais. Foi um período de forte censura aos meios de comunicação e aos profissionais da área. “A gente tinha uma ideia muito clara do que podia e do que não podia ser dito, e tentava dizer o proibido de uma maneira indireta, mais ou menos criativa, mas sempre conhecendo e testando os limites”, destaca Verissimo (Golin, 1993, p. 106). Um ano após assumir a coluna em Zero Hora, o jornal mudou de dono,23 Paulo Amorim saiu e Verissimo, solidário com o amigo, saiu também. “Aí o dr. Breno pediu para falar comigo. Trocamos um cordial silêncio e eu comecei na Folha da Manhã, com o capitão Erasmo”24, conta (Oitenta, 1982, p. 3). Conforme Kucinski (1992, p. 55), a Folha da Manhã foi um dos poucos jornais brasileiros a não perder o senso crítico e acomodar-se diante da escalada da crise governamental. “Foi interessante porque não tinha nada a ver com a 21 O Brasil viveu um período de ditadura, instaurado pelos militares, entre 1964 e 1985. Após o golpe, sucederam-se cinco governos militares de caráter autoritário e nacionalista. Houve centenas de mortos e de desaparecidos, muitos não encontrados até hoje. 22 O Ato Institucional nº 5, baixado durante o governo de Costa e Silva, marcou o início do período mais duro da ditadura militar, em 1968. Com o AI-5, os poderes de repressão do regime aumentavam: foi permitido o fechamento do Congresso Nacional, a cassação de mandatos eletivos, a suspensão dos direitos políticos de qualquer cidadão por dez anos, a intervenção em Estados e municípios, o confisco de bens por enriquecimento ilícito e a suspensão do direito de habeas corpus para crimes políticos. 23 O jornal Zero Hora foi fundado em 1964, por Ary de Carvalho. Em 1967, Maurício Sirotsky Sobrinho comprou 50% das ações do periódico. Três anos depois, em 1970, junto com o irmão Jaime Sirotsky, adquiriu os outros 50% e incorporou o jornal ao que hoje conhecemos como Grupo RBS, conglomerado que reúne diferentes veículos de comunicação - jornais, emissoras de rádio e tv, além de canais digitais de notícias e entretenimento. (FONSECA, 2005, p. 149) 24 José Erasmo Nascentes, jornalista e capitão de reserva do Exército. Além da Folha da Manhã, atuou na Folha Esportiva, na Folha da Tarde e na Rádio Guaíba, veículos da Empresa Jornalística Caldas Júnior. Foi um dos fundadores da TV Piratini. No Rio de Janeiro, trabalhou no Diário da Noite. Ver: Capitão Erasmo consolida o rigorismo da Guaíba. Correio do Povo, 30 de abril de 2007, Especial Rádio Guaíba - 50 anos. Disponível em: <http://tinyurl.com/n62byg4>. Acesso em: 25 abr. 2017.
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Caldas Júnior, que era mais conservadora, com o Correio do Povo, o Correião, como se dizia. A Folha da Manhã pretendeu ser uma coisa mais jovem, era quase um corpo estranho da Caldas Júnior, foi uma experiência boa”, avalia (Verissimo, 2016a). Em uma de suas primeiras colunas no jornal, com o título Credenciais, Verissimo traz uma de suas marcas: a combinação entre crônica e desenho – neste caso, uma charge. Os personagens, que já eram conhecidos pelos leitores na Zero Hora, passavam a ocupar as páginas da Folha – embora com uma proposta mais arejada, era ainda um jornal da sisuda Caldas Júnior, principal empresa de comunicação do Rio Grande do Sul à época. “— Quem diria, hein? Nós na Caldas Júnior... —Ainda bem que ele sempre nos desenha de gravata!”, dizem na charge. A crônica era diária e o trabalho na Caldas Júnior concomitante à atividade como redator publicitário na MPM. “Inclusive aos domingos, que tinha futebol, eu assistia com os amigos e na volta tinha que passar na redação para fazer um desenho, alguma coisa sobre o jogo”, recorda (Verissimo, 2016a). Mesmo usando artifícios de linguagem para deixar suas críticas à ditadura nas entrelinhas dos textos, o trabalho de Luis Fernando na Folha da Manhã chamava a atenção. “Lembro-me da vez em que foram até a redação para alertar que ‘esse Luis Carlos’ estava se excedendo. Fiquei tranquilo, em caso de prisão levariam meu primo” (Verissimo, 2016c, p. 19). O controle fazia com que o autor, assim como seus colegas, trabalhasse sempre com uma crônica de reserva, sobre o “sexo dos anjos”: “Era muito comum, muitas vezes a gente já escrevia sabendo que não ia sair, então já tinha a outra” (Verissimo, 2016a). Entre os nomes proibidos, estavam o de Leonel Brizola25 e Dom Hélder Câmara26. Tratava-se 25 Foi governador do Rio Grande do Sul, eleito em 1958, e deputado federal pelo antigo Estado da Guanabara, em 1962. Participou da Campanha da Legalidade, em 1961, lutando contra um possível golpe. Exilou-se no Uruguai durante a ditadura militar, voltando em 1979 com a Lei da Anistia. 26 Fundou a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Toda sua trajetória foi marcada pelas atividades sociais e religiosas contra a exploração e a favor dos pobres. Foi acusado de demagogo pelo governo militar e proibido de manifestar-se publicamente.
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Uma das primeiras colunas no jornal Folha da Manhã, em 1970.Fonte: Acervo pessoal de Luis Fernando Verissimo.
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Capa do Pato Macho nº 2 (21/04/1971), com história em quadrinhos de Luis Fernando Verissimo.
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de um processo de autocensura por parte dos próprios veículos de comunicação – a direção dos jornais, no caso de sua experiência, da Zero Hora e da Folha da Manhã, exercia diretamente esse controle, pois sabia o que não poderia ser dito e “evitava mexer no abelheiro” (Verissimo, 2016a). Em 1971, com o objetivo de falar sobre temas que não ganhavam espaço na grande imprensa, o cronista uniu-se a Claudio Ferlauto e Coi Lopes de Almeida, entre outros, e criou o jornal alternativo Pato Macho. A publicação era semanal e teve apenas 15 edições, mas marcou a história da imprensa no Rio Grande do Sul com seus textos críticos e humorísticos, com suas inovações gráficas e com os talentos que ajudou a lançar, como jornalistas, cronistas, cartunistas e chargistas. Como informa o expediente da primeira edição do Pato, Luis Fernando era o editor-chefe. As reuniões de pauta do jornal aconteciam muitas vezes na casa da família Verissimo ou nas mesas do bar Encouraçado Butikin, na região central de Porto Alegre. As críticas do alternativo voltavam-se com força contra o marasmo cultural da capital gaúcha à época – para a patota, a cidade estava atrasada 50 anos em relação a São Paulo, e era preciso resgatar esse tempo. O objetivo era sacudir a cidade para nela permanecer (Strelow, 2016). Censurado desde a terceira edição, no entanto, o Pato acabou depressa. “Durou poucas gloriosas semanas”, avalia Verissimo (2016b, p. 13). Para José Antônio Pinheiro Machado, editor do periódico em sua fase final, foi na Folha Manhã, onde Verissimo trabalhava naquele início dos anos 1970, que os remanescentes do Pato Macho conseguiram retomar temas não contemplados no alternativo (Strelow, 2003).
Primeiro livro Após seis anos atuando em jornais e em agência de publicidade, Verissimo lançou, em 1973, seu primeiro livro, O Popular (Editora José Olympio). A crônica que dá título ao livro é inspirada em uma cobertura jornalística. O texto inicia assim:
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Um número recente da Veja trazia fotografias sensacionais das (como diria um inglês) “incomodações” na Irlanda do Norte. Todas eram de ganhar prêmio, mas uma me impressionou especialmente. Nela aparecia a versão irlandesa do Popular.
O Popular, segundo o autor, é uma figura tipicamente urbana, sem domicílio certo, que tem como habitat natural a margem dos acontecimentos, devidamente noticiados pela imprensa. A publicação dessa antologia de crônicas foi, de acordo com Maria da Glória Bordini, fundamental para que o pai Erico Verissimo visse que o filho era também um escritor e não devia a ele sua possível trajetória profissional. “Ele foi começando a se projetar como cronista aos poucos. A carreira do Luis Fernando não se fez de repente. É uma carreira quase que de formiguinha”, reflete Bordini (2016). Conforme a pesquisadora, que é especialista na obra de Erico, uma das preocupações do romancista era saber qual seria o rumo do filho, já que desde cedo ele pareceu um pouco perdido. Ruy Carlos Ostermann (2016), amigo de Luis Fernando, lembra de uma ocasião em que esteve na casa do cronista e, privadamente, foi indagado por Erico sobre o filho: Fala do Luis, ele disse. Ele queria que um amigo falasse aquilo que ele não saberia perguntar, ou colocar como questão, ou se informar a respeito. Respondi: Erico, tu és a nossa grande referência. Tu és o romancista dessas gerações todas. Tu és o sujeito que escreveu o melhor que se poderia escrever a partir do Rio Grande. Agora, o Luis Fernando é diferente de ti. Ele não vai fazer um romance ou algo desse tipo. Ele vai fazer livros menores. Mas observa o talento, a graça e a genialidade dele. É esse o trabalho que ele vai desenvolver.
O Popular seria o primeiro livro de uma obra que reúne crônicas, romances, quadrinhos e, mais recentemente, literatura
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infantil.27 É interessante observar que, mesmo traçando uma trajetória independente em relação ao pai já consagrado, algumas experiências de Erico ecoam, como é o caso da inspiração para a crônica O Popular. A sensibilidade para as diferentes dimensões de uma notícia, por menor que seja, é uma das características compartilhadas por pai e filho – ambos com trajetórias importantes no jornalismo. De uma fotografia, nasceu o primeiro livro de Luis Fernando. De uma fotografia, surgiu Incidente em Antares, de Erico Verissimo: Por mais incrível que pareça, a ideia me foi inspirada por uma foto que vi numa revista estrangeira: um cemitério, tendo à frente uns dez ou doze caixões enfileirados, por ocasião de uma greve de coveiros. Pensei assim: ‘E se esses mortos resolvessem erguer-se e fazer greve contra os vivos?’ (Silva, 2000, p. 64).
Retorno a Zero Hora e jornais nacionais Em 1975, após cinco anos na Folha da Manhã, Luis Fernando voltou para Zero Hora. Sua saída da Caldas Júnior se deu em solidariedade a Ruy Carlos Ostermann, que dirigia o jornal e, por conta de desentendimentos na empresa, estava indo embora. Nessa época, Verissimo já enviava duas crônicas por semana para o Jornal do Brasil. “Também já tinha começado a publicar coisas na Status e na Playboy” (Oitenta, 1982, p. 3). Era o início de uma série de colaborações com jornais e revistas de circulação nacional que permanece até hoje. Atualmente, suas crônicas são publicadas nos jornais Zero Hora28, O Globo e O Estado de S. Paulo – além disso, a Agência Globo distribui os textos para 27 Em 2016, foi lançado As gêmeas de Moscou, inspirado no convívio de Luis Fernando Verissimo com a neta Lucinda. 28 Em setembro de 2017, Luis Fernando Verissimo foi demitido de Zero Hora, mas suas crônicas continuam a ser publicadas no jornal - o material é negociado com a Agência Globo. Sobre a demissão, ver https://goo.gl/UmjsbN.
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jornais de todo o país. Participou também de iniciativas como a revista Bundas29 (1999-2001) e o jornal Pasquim 2130 (20022004), periódicos de humor e crítica, que tiveram vida curta em função de dificuldades de manutenção financeira. Foi no ano de 1986, então cronista com obra já consolidada, que cobriu, pela primeira vez, uma Copa do Mundo de futebol. Era a Copa do México e Luis Fernando viajou a convite da revista Playboy – “um humorista a solta nos bastidores da Copa”, anunciou a revista na edição de julho daquele ano. Com um texto que se situa na zona de intersecção entre o jornalismo e a literatura, Verissimo exercitou, nessa cobertura e na de tantas outras Copas que cobriu, sua faceta de repórter, aquela que teria sido deixada para trás na entrevista inaugural com o Dr. Barnard. “Era trabalho de correspondente. Eu ia aos jogos, levantava a matéria”, conta (Verissimo, 2016a). Depois do campeonato do México, cobriu in loco todas as Copas do Mundo que se seguiram (Itália, 1990); Estados Unidos da América, 1994; França, 1998; Japão e Coreia do Sul, 2002; Alemanha, 2006; África do Sul, 2010) para a Zero Hora. Nesse período, trabalhou com diferentes tecnologias para enviar os textos diários dos campeonatos – do telex utilizado na Copa do México, em 1986, passou ao fax em 1990, nos jogos de Roma, e finalmente, ao computador conectado à Internet, em 1998, na França. “Ironicamente, a única das Copas que não fui foi a do Brasil, em 2014, que acompanhei só pela televisão”, lamenta (Verissimo, 2016a).31 29 Projeto idealizado pelo cartunista e escritor Ziraldo e publicado pela editora Pererê, de periodicidade semanal e formato tabloide. Seu slogan era “a revista que é cara do Brasil”, fazendo uma referência à revista Caras, dedicada a famosos e celebridades. LFV atuou como editorialista da publicação que teve 80 edições e contou com colaboradores como Nani, Millôr, Luís Pimentel, Arthur Xexéo, Tutty Vasques, Chico Caruso, Paulo Caruso, Miguel Paiva. 30 Projeto idealizado pelo cartunista e escritor Ziraldo e financiado por seu irmão, Zélio Alves, que contou com alguns colaboradores do jornal O Pasquim (1968-1982), ao qual faz referência direta. Teve 117 edições em formato standard e com usos de cores, tendo circulado no período da eleição de Luiz Inácio Lula da Silva e de seus primeiros dois anos como presidente. 31 Luis Fernando Verissimo teve um problema de saúde em 2014 que o impossibilitou de fazer a cobertura in loco da Copa do Mundo no Brasil, com exceção da disputa final, que cobriu para o jornal O Globo.
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Crônica sobre a Copa do Mundo de 1990 (Itália) para o jornal Zero Hora (04/06/1990). Fonte: Acervo do Museu de Comunicação Hipólito José da Costa.
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Textos visuais O jeito para o desenho se fez presente na imprensa primeiramente através de As Cobras. Segundo Verissimo (2016a), “quando não tinha tempo ou assunto para texto, fazia desenho, as cobrinhas e tal.” Eram fáceis de desenhar, “só o pescoço”, com uma caneta preta sobre o papel branco. Nascidas ainda no tempo da Folha da Manhã, com elas o trabalho como cartunista ganhou regularidade; as tiras foram publicadas em Zero Hora por quase 25 anos, quando as cobras foram mortas pelo seu criador, no final da década de 1990. As personagens, que nasceram durante a ditadura militar, lançavam seu veneno e ironia sobre as crises econômicas e políticas, a corrupção, as eleições, entre outros temas, driblando a censura junto de figuras como Dudu (o alarmista), Queromeu, Zé do Cinto, Mark Eting, Tia Jiboia, o chef Rienamangê, entre outros. Em 2010, foi publicada As Cobras, antologia definitiva (Editora Objetiva), uma edição que trouxe uma seleção de 470 tiras (Rónai, 2010). Se As Cobras parecem ter surgido como uma alternativa de produção para uma rotina intensa cotidiana, evidenciam elementos do repertório cultural do menino que desde pequeno gostava muito de histórias em quadrinho: “Então comecei a desenhar história em quadrinho, imitar os super-heróis”, lembra. (Verissimo, 2016a) Isso tem relação também com o fato de ter sido alfabetizado em escola nos Estados Unidos, o que foi determinante para seu interesse pelo universo das HQs (Golin, 1993, p. 102). A Família Brasil nasce nos anos 1980, por estratégia similar a d’As Cobras: em vez de coluna de texto a ser produzida para o jornal, fazia desenhos. “A família Brasil foi nascendo meio por acaso. Minha intenção não era fazer uma série com personagens fixos mas, quando vi, a família estava formada e as histórias passaram a ter uma certa sequência” (Verissimo, 2005, p. 5). É uma família de classe média brasileira: o pai – de profissão ignorada – tenta administrar o salário do mês; a mãe é uma dona de casa; a filha mais velha tem como companheiro Boca, o único personagem
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As Cobras - Antologia Definitiva (Editora Objetiva, 2010, p.63).
Aventuras da Família Brasil (Editora Objetiva, 2015, p. 9)
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com nome; o filho é adolescente; o neto é curioso e tem sempre colocações desconcertantes; a neta é de colo. Os personagens foram para a tela em 2009, em oito episódios de 15 minutos (duas temporadas) na série As aventuras da família Brasil produzida pela Casa de Cinema de Porto Alegre para a RBS TV. Charges e outros desenhos de Verissimo realizados ao longo de sua trajetória estão presentes na obra Ver!ssimas (Editora Objetiva), lançada em 2016. Ela traz uma coletânea de frases do autor organizadas em verbetes de A a Z, em uma proposta feita à editora por Marcelo Dunlop, jornalista e publicitário, que em 1989 começou a colecionar escritos publicados em revistas e jornais. Apresentando “Veríssimo em miúdos”, para a edição foram apuradas e checadas também frases que circulam na Internet como sendo suas, assegurando assim que o que consta no livro é mesmo de sua autoria. As imagens da edição foram selecionadas por Fernanda, filha mais velha de Verissimo, e Gilmar Fraga, amigo de longa data, a partir do acervo do autor. Pensando em Verissimo por imagens, há parcerias que merecem registro. O Analista de Bagé é um personagem que nasce em crônicas e que ganha uma identidade gráfica no traço de Edgar Vasques.32 Verissimo (2016a) conta que o analista nasceu a partir de um quadro que escreveu para um programa do Jô Soares, que tinha um garçom. Era um garçom gaúchão num restaurante francês, mas o restaurante francês era no Brasil, não era em Paris. Então a ideia era essa: a discrepância entre o personagem e seu meio. O garçom num restaurante francês tem que ser sofisticado e tal, e aí esse gauchão não era nada sofisticado, queria impor a comida gaúcha em vez da francesa. E o Jô fez esse personagem algumas vezes, mas depois deixou de fazer e 32 Cartunista, desenhou para as publicações Folha da Manhã, Diário do Sul, O Pasquim, revista Versus, Playboy, e Coojornal. Nos anos 70, criou o personagem Rango, anti-herói símbolo das suas charges em resistência à ditadura militar. Vasques é autor de diversos livros de humor, história em quadrinhos e caricaturas.
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eu tinha gostado de fazer, passei a usar o personagem, mantinha a mesma ideia da discrepância entre personagem e seu meio, sua profissão. A psicanálise também precisa de certa sensibilidade, tratando com o cérebro dos outros, mas era a mesma ideia, só que em vez de garçom era psicanalista.
Nas histórias, o analista – freudiano e fronteiriço – recebe os pacientes em um divã onde repousa um pelego e, vestido de bombacha, os trata com base no “joelhaço”, técnica que deixa as frescuras de lado. Os quadrinhos foram publicados em álbuns pela editora L&PM e na revista Playboy. As narrativas compuseram também espetáculo de teatro de sucesso. Já o personagem Ed Mort, detetive sempre sem dinheiro e metido em trapalhadas – que trabalha em um cubículo em Copacabana que é habitado também por baratas e um rato albino –, nasce em livro publicado em 1979 e ganha outras histórias em títulos posteriores. No traço de Miguel Paiva, Ed Mort encenou tiras e álbuns de quadrinhos. Virou personagem de cinema interpretado por Paulo Betti (1997), apareceu na televisão interpretado por Luiz Fernando Guimarães (1993 e 1994) e por Fernando Caruso em série do Multishow (2011). E foi aos palcos interpretado por Nizo Neto. Outros personagens de Verissimo surgidos nas colunas de periódicos, contudo, ficaram desenhados apenas na imaginação do público, como a Velhinha de Taubaté,33 a última pessoa que acreditava no governo e que acompanhou o general João Batista Figueiredo na presidência (1979-1985) e Dora Avante, integrante do grupo de pressão política e carteado Socialaites Socialistas, que chegou a ser candidata à presidente.34 E algumas cidades também se tornaram, de algum modo, personagens do autor 33 Sua morte foi anunciada em: VERISSIMO, Luis Fernando. Velhinha de Taubaté (19152005). O Globo. 25 ago. 2005. Disponível em: <http://tinyurl.com/kksv5my> Acesso em 04 abr. 2017. 34 Sua candidatura é explicada em: VERISSIMO, Luis Fernando. Outra carta de Dorinha. O Globo. 07 set. 2014. Disponível em: <http://tinyurl.com/ksbevh6> Acesso em 04 abr. 2017.
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através de crônicas acompanhadas de ilustrações de Joaquim da Fonseca35, na série de livros iniciada com Traçando New York (Editora Artes&Ofícios) e que passou por Madrid, Paris, Japão e ... Porto Alegre. Podemos supor que o percurso de Verissimo ligado à comunicação contribuiu para que esses trânsitos se dessem com sucesso, seja por sua capacidade de desenhar com palavras – certeiras e sintéticas –, o que favoreceu a circulação de suas histórias em outros meios; seja pelo desapego ao seu próprio texto, que pode ganhar novos contornos na imaginação e traços de outros. Seu vínculo com a produção televisiva vai no mesmo sentido: “Comecei na televisão escrevendo para o Sítio do Pica-Pau Amarelo, em seguida passei para os humorísticos, para o Jô Soares, para o Agildo Ribeiro” (Verissimo, 2016a). Em seu currículo, há roteiros feitos para programas como Planeta dos Homens, Faça Humor, Satiricom, Humor Livre, Tv Pirata e Programa Legal (Rede Globo). Nesses programas humorísticos eu mandava esquetes, ideias para esquetes e eles aproveitavam ou não. E o processo de criação era assim, vários atores, cada um mandando seu esquete, que às vezes era adaptado, às vezes não era, dependia muito da interpretação, às vezes o próprio ator não entendia bem o texto ou então modificava por completo a intenção do texto (Verissimo, 2016a).
Na televisão, destaca-se ainda Comédias da vida privada, produção inspirada em suas crônicas e que, em alguns episódios, chegou a ter sua participação na autoria junto de Jorge Furtado, Guel Arraes, Cláudio Paiva, entre outros. Percorrendo as experiências e contribuições de Luis Fernando Verissimo no campo da Comunicação, percebemos o caráter multifacetado de sua atuação na área, seus talentos diversos e nos deparamos com uma produção tão rica quanto volumosa. Em mais de 50 anos de atividade profissional, 35 Ver nota 18.
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colaborou com diferentes veículos e plataformas. Seus textos, desenhos e personagens percorrem o Brasil e dezenas de outros países, em um trânsito que se tornou muito mais veloz e intenso com a Internet. Para este capítulo, focamos nossa lente em um período de sua trajetória – a segunda metade do século XX, ou seja, as três primeiras décadas de sua carreira – e em um lugar o estado do Rio Grande do Sul.
Considerações finais Quando sugerido que os ganhos com suas obras literárias já seriam suficientes para que vivesse de seus livros, Verissimo afirmou: “É, mas eu não viveria só de direitos autorais. O uísque das crianças depende ainda do jornal (risos)” (Moreira, 2014) .Como resgatou-se aqui, seu vínculo com veículos jornalísticos – e com a área da comunicação, tendo em vista que atuou também na publicidade e na produção de roteiros audiovisuais – assinalam uma trajetória profissional tecida em uma trama singular, em que as referências familiares costuram atravessamentos fundamentais. Entre as experiências de viagens e estadas no exterior com seus pais e a vida cotidiana na casa, que era também um ponto de encontro para os amigos da família, Verissimo pode constituir um repertório único, encontrar espaço e incentivo para ir traçando seus caminhos. Falando de sua primeira “atividade jornalística”, conta: A gente criticava muito os mais velhos, mas tinha também poesia, tinha de tudo no Patentino. Teve um amigo do pai que nos visitou e ficou tão encantado com O Patentino que mandou fazer um clichê, uma espécie de carimbo para o cabeçalho do jornal (Verissimo, 2016a).
Nos bastidores da pesquisa por informações e fontes para a redação deste capítulo, observamos que entrevistas e depoimentos concedidos por Verissimo, além de mencionarem que
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era um homem de poucas palavras, traziam em geral os mesmos casos e fatos, com algumas variações. Cogitamos que com seu perfil reservado, ao ver-se em constante demanda para falar em público e conceder entrevistas, já tinha um repertório garantido para enfrentar a timidez. Elaboramos, então, um roteiro de perguntas com base em uma cronologia estabelecida em documentos consultados, que traziam dados nem sempre convergentes. O agendamento foi mediado por Lúcia; o local: a casa no bairro Petrópolis em Porto Alegre construída pelo pai em 1946, onde Luis Fernando cresceu, para onde retornou recém casado, onde os filhos também cresceram e que hoje recebe a visita dos netos. A ansiedade do encontro estava identificada com o receio de respostas como “é”, ou uma ou duas frases e assunto encerrado. A acolhida de Lúcia na chegada, acompanhada da filha Fernanda e da neta Lucinda36 – que esteve junto em parte da entrevista e em alguns momentos ajudou o avô a confirmar informações – ajudaram a dissipar a tensão. Se, de fato, Verissimo é muito sintético em sua fala; foi também generoso em percorrer a linha do tempo desenhada no roteiro, o que rendeu um encontro de uma hora e cinquenta e três minutos, com muitas perguntas para ir se desenhando os relatos. Seja no que temos em seu depoimento, seja no que percebemos no entorno em que habita – ao final, uma visita guiada por Lúcia a um espaço situado nos fundos da residência, deu acesso a outros documentos que registram a trajetória de Verissimo, passando por alguns objetos de Erico e Mafalda –, entendemos que os afetos, os vínculos e a presença da família são eixo central na constituição desse sujeito empático, tímido e de uma capacidade exemplar de falar da trivialidade e complexidade do mundo com precisão, síntese e bom humor: 36 “Lucinda tem esse nome em memória da tia Lucinda que era uma pessoa extraordinária. Eu morei alguns anos no Rio de Janeiro com a tia Lucinda, até o casamento. E nossa vizinha ali era Clarice Lispector, que era amiga nossa da lá de Washington e ficou amiga da minha tia”. (VERISSIMO, 2016a)
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Reprodução
Às vezes me perguntam se a Lúcia é meu braço direito e eu digo que é meu braço direito, esquerdo, as duas pernas. E nós tivemos filhos extraordinários, Fernanda, Mariana e Pedro, cada um à sua maneira, são pessoas fantásticas. E nós temos muito esse negócio de família, talvez por ter viajado muito com eles, vai formando um tipo de união. Enfim, ter essa família, conviver com essa família, apesar de dois estarem morando fora hoje, tem sido extraordinário.
Registro recente da família Verissimo reunida (Foto de Eneida Serrano). Da esquerda para a direita: a irmã Clarissa, o filho Pedro, a esposa Lúcia, Luis Fernando Verissimo, as filhas Fernanda e Mariana, o genro Andrew com a neta Lucinda, o genro Ricardo com o neto Davi.
O jornalismo deu a Verissimo não apenas parte de seu sustento financeiro, como também uma certa disciplina para o trabalho. “Tenho o vício do jornalista, de produzir sempre na véspera. Sou muito desorganizado, são os prazos das matérias que
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estabelecem uma certa rotina” (Golin, 1993, p.110). Comentando sobre o que o inspira, afirma que para quem escreve com regularidade, qualquer assunto é assunto: “Eu sempre digo que a minha musa inspiradora é o prazo de entrega. E a crônica, sendo um gênero indefinido, comporta essa variedade de assuntos e de estilos” (Barboza, 2013, online). Ao observar textos seus mais antigos, surpreende-se com sua extensão: Vendo o que escrevia antigamente, alguns anos atrás, me surpreendo com o tamanho do que escrevia, com a quantidade de coisas que escrevia. Acho que a gente vai ficando não sei se mais preguiçoso ou mais conciso, mas acho que me acostumei a escrever menos e tentando, comunicando mais coisas dentro desses limites de tamanho. Mas sempre me surpreende quando vejo alguma coisa escrita em jornal ou onde quer que seja com tamanho, com volume do texto. Supondo essa experiência toda [tinha sido questionado sobre a atuação como redator publicitário], foi que fiquei mais conciso ou mais preguiçoso (Verissimo, 2016a).
Tendo completado 80 anos em 2016, Verissimo já não tem mais a demanda diária de contribuições aos jornais, que hoje são realizadas em colunas de texto e tiras da Família Brasil, encaminhadas três vezes por semana. Mas o ritmo “mais lento” do ano resultou nos livros Ver!ssimas, As Gêmeas de Moscou (Editora Companhia das Letras), e no trabalho de preparação de mais um livro de crônicas, ainda sem data fechada de lançamento. Os textos são “dedografados”. Se ficava impressionado com a rapidez com que o pai datilografava à máquina de escrever, sua prática é de “um dedo só, dois dedos” (Verissimo, 2016a). Quando Zero Hora passou pelo processo de informatização, fez um curso oferecido pela empresa para aprender a mexer no computador: “As redações dos jornais eram lugares barulhentos, todo mundo gritava, o barulho das máquinas; depois o silêncio, não tem mais aquele barulho” (Verissimo 2016a).
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No início, o computador era acessível apenas no trabalho, até que comprou um para si. “Uso o computador como uma máquina de escrever com memória, uso bastante o Google, que fornece erudição instantânea, e não poderia mais viver sem o e-mail. Mas não frequento muito a internet. E participaria de qualquer passeata contra o telefone celular”, afirma em entrevista (Barboza, 2013, online). A reforma ortográfica foi acompanhada pelo computador, que sabe tudo a respeito e não o deixa errar: “Eu só não entendi ainda por que “três” continua de chapeuzinho” (Barboza, 2013, online). Questionado sobre as coisas que gosta de fazer atualmente, disse que seu programa perfeito é ver uma sessão das seis no cinema e depois ir jantar com Lúcia, às vezes na companhia de amigos. “Fora isso eu gosto de viver, tô um pouco preocupado com esses 80 anos, com a possibilidade da morte, mas fora isso tudo bem” (Verissimo, 2016a). Das frases de Ver!ssimas (2016b, p.153), uma ilustra bem o momento: “Hoje o superpoder que mais admiro ao ler quadrinhos é o de não envelhecer nunca, mas isso as crianças ainda não entendem”.
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Referências
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Santiago Um autodidata à serviço da comunicação bem-humorada
Neltair Rebés Abreu, o Santiago. (Foto de Flávio Wild)
Tarefa paradoxal escrever na sisudez intrínseca ao texto acadêmico, seguindo regras e normas rígidas que recaem sobre esse tipo de escrita, a respeito de um humorista gráfico. Desenhista autodidata, avesso a formalidades e íntimo do bom humor, Neltair Rebés
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Foto: Flávio Wild
Flávia Ataide Pithan Liana Haygert Pithan
Abreu, o Santiago, é o objeto deste artigo. Perdoe-nos, portanto, se não seguirmos à risca tudo que impõe um texto acadêmico. Nosso personagem merece, o quanto este meio permitir e as autoras forem capazes de alcançar, um artigo que faça jus à sua personalidade. A primeira pessoa aqui usada, longe de almejar o pretensioso plural majestático, nos afasta, também em linguagem, da tradição positivista do sujeito pesquisador “neutro”. Porque neutralidade, nos explica Santiago, está fora de cogitação para um chargista. Se “escrevo para que tu que lês aceites aquilo que te proponho” (Eco, 2007, P. 170), para ser aceita, esta escrita sobre um artista gráfico precisava abrir espaço a imagens e trilhar caminhos (e desvios) similares aos do entrevistado. Seu personagem mais célebre é um gaúcho avesso à vida da cidade, o Macanudo Taurino, mas o traço de Santiago tem alcance universal. Com projeção nacional e internacional, ganhou inúmeros prêmios, como o da agência búlgara Sofia Press (1988); do Salão Internacional de Cartuns de Montreal (Canadá, 1987); do concurso internacional de cartuns de Istambul (Turquia, 1988) e do concurso de cartum antirracista de Duisburg (Alemanha, 1989). Acumula cinco vitórias no Salão de Humor de Piracicaba, cinco no concurso do jornal japonês Yomiuri e 20 no prêmio da Associação Riograndense de Imprensa (ARI) de Jornalismo1. Tem ainda trabalho no Museu de Caricatura (Basiléia, Suíça) e foi premiado na Bulgária (1987). “Esse reconhecimento, infelizmente, não tem garantido espaço, na imprensa local e regional, para o necessário diálogo entre o artista e a sociedade”, segundo Susana Gastal (2011, p. 9). E para propor um diálogo entre humor, trajetória profissional e interesse acadêmico, trazemos esta versão para “os caminhos do Santiago”, entrecruzando a narrativa do cartunista – em entrevista concedida em sua residência em Porto Alegre, em 30 de março de 2016 – com referências bibliográficas disponíveis (sobre ele, sobre a temática em foco e sobre seu trabalho). 1 http://www.caminhosdosantiago.com.br/
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Santiago / Arquivo do artista
Museu Invertido2, 1989, nanquim e aquarela, 35 x 55
Começamos tratando conceitos relevantes sobre desenho de humor em paralelo às suas trajetória e carreira. Em seguida, apresentamos o percurso de Neltair até se tornar o Santiago, atingindo a consagração e o amadurecimento profissional – com alguns possíveis descaminhos pelo trajeto.
O desenho de humor O objetivo do desenho de humor, da caricatura, da charge, da sátira “é despertar o riso pela representação do cômico, realizando-se no explodir da risada, que é a consagração do humor, fazendo ambos parte de um mesmo ato de linguagem” (Pesavento, 1993, p. 14). A caricatura é um desenho que acentua ou revela certos aspectos ridículos de uma pessoa ou um fato, explica Fonseca (1999). Mas não é apenas o uso da deformação como metáfora, limitada ao exagero das características, a única manifestação da caricatura. Existe também a caricatura de situação, onde situações reais ou imaginárias dão relevo a costumes e comportamentos humanos: 2
Grand Prix no Concurso de Cartuns do Jornal Yomiuri, Tóquio / Japão
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Santiago / Arquivo do artista
Nessa acepção geral da caricatura, podemos entender como formas dela a charge, o cartum, o desenho de humor, a tira cômica, a história em quadrinhos de humor, o desenho animado e a caricatura propriamente dita, isto é, a caricatura pessoal (Fonseca, 1999, p. 17).
Água3, 2003, nanquim e aquarela, 21 x 55 cm
Como forma de comunicação social, a caricatura deve atingir o maior público possível e, por isso, desenvolveu uma linguagem própria, com um sistema de elementos que a compõem. O casamento entre texto e imagem parece ser a melhor fórmula para a empregar como linguagem: No desenho para imprensa, os domínios do visual e do escrito partem do mesmo criador e, nesse caso, o texto não é a legenda da 3
Premiado no Salão de Humor de Cataratas, Foz do Iguaçu / Paraná
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imagem, tampouco a imagem é a sua ilustração. Aliás, mesmo a presença do texto pode ser dispensada, dependendo do valor de comunicabilidade estabelecido pelo desenhista. Nos férteis liames com o texto, o desenho para imprensa explora características descritivas e, sobretudo, narrativas (Ramos, 2011, p. 28).
Sonho4, 1981, nanquim, 42 x 30 cm 4
Premiado no concurso de Cartuns do jornal Yomiuri, Tóquio/Japão.
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Santiago / Arquivo do artista
Em entrevista a Susana Gastal e Paula Ramos, em 2011, Santiago demonstra essa preocupação. Segundo disse naquela ocasião, um desenho bom é o que dá conta da função narrativa, na qual a história tem que fluir. O artista plástico tem compromisso com a expressão de seu íntimo e o chargista tem compromisso com a narrativa, com a comunicação. “A gente tem que dominar minimamente a ferramenta que vai usar” (Abreu apud Gastal, 2011, p. 61).
Intestino, 2006, nanquim e aquarela, 20 x 30 cm
Questionado sobre a linguagem da charge, deixa evidente que é a função de relais (definida em Barthes,1990) o alvo a ser mirado. De acordo com Santiago, o truque, o desafio, a “ciência da coisa” é não usar palavras. “Tudo o que eu puder colocar de informação visual eu vou colocar em informação visual. É por isso que eu tenho que dominar o desenho”, afirma. E exemplifica: “se
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existe um revólver na cena, a arma precisa estar muito bem representada, sob pena de arruinar a intenção se for confundida com outro objeto; se a cena tem um personagem que é muito magro ou está de chapéu, essas informações devem ser inequívocas no desenho”. Ele coloca todas as informações no traço e só então se pergunta se possui algo impossível de desenhar. Se isso acontecer, entra no “balão”, em forma de conversa. “Quando esgotar todas as possibilidades da comunicação visual, entra a comunicação verbal para dar o toque final. Se a gente conseguir fazer tudo sem ter que usar uma palavra, ótimo5.” Barthes (1990), ao discutir quais as funções da mensagem linguística em relação à mensagem icônica, cita a fotografia jornalística e a publicidade. São comunicações, afirma, em que a mensagem linguística tem por função a fixação, nesse caso a linguagem é elucidativa. O texto é realmente a possibilidade do criador de exercer um controle sobre a imagem: a fixação é um controle, detém uma responsabilidade sobre o uso da mensagem, frente ao poder de projeção das ilustrações; o texto tem um valor repressivo em relação à liberdade dos significados da imagem (Barthes, 1990, p. 33, grifo do autor).
Já a função de relais, segundo o autor, “é mais rara” e a encontramos em charges e histórias em quadrinhos. “Aqui a palavra (na maioria das vezes um trecho de diálogo) e a imagem têm uma relação de complementaridade; as palavras são, então, fragmentos de um sintagma mais geral” (Barthes, 1990, p.33–34). Fonseca (1999) diferencia todas as manifestações da caricatura. A charge, afirma, é uma sátira de um fato específico e temporal, que trata do fato do dia. Pode ser uma ideia, um acontecimento, uma situação ou uma pessoa, em geral de caráter político 5
Em entrevista às autoras, dia 30 de março de 2016, em sua casa no bairro Cidade Baixa, em Porto Alegre.
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e conhecimento público. Por outro lado, o cartum é atemporal e universal, e “não se prende necessariamente aos acontecimentos do momento” (Fonseca, 1999, p. 26).
Tarzan, 1978, nanquim, aquarela e lápis de cor, 30 x 40 cm
Já a tira cômica e a história em quadrinhos de humor, segundo Fonseca (1999), se caracterizam pela forma de narrativa, por meio de sequência de figuras desenhadas, com personagens, diálogo, legendas ou outros tipos de textos. Seja qual for o tipo de desenho de humor, é comum a todos revelar um olhar crítico e picante sobre a realidade e provocar o riso – o ato “satânico, e portanto, profundamente humano” (Baudelaire, 2008, p. 42). Conforme o autor, o riso é um sintoma ou “a expressão de um sentimento duplo, ou contraditório”, pois, ao mesmo tempo é sinal de “grandeza infinita” e de “miséria infinita” (p. 45). Quando rimos com uma charge, rimos da desventura, do insólito, do tragicômico daquela cena, somos superiores
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naquele momento, mas ao mesmo tempo aquela desventura faz parte da nossa vida. Assim, o objeto da graça, “o cômico, a potência do riso” está naquele que ri e “não no objeto do riso”, afirma Baudelaire (2008, p. 42). Portanto, o humor consumado, para acontecer, depende tanto do criador quando do “ridente”.
Titanic, sem data, nanquim e aquarela
A arte de rir é inquietante porque se opõe à vida “normal”, sendo esta caricaturizada, representada abstratamente e desprovida de realidade afirma Pesavento (1993). Mas o conteúdo
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referencial da caricatura é a própria realidade “e, como toda imagem, mede sua força pelos efeitos mobilizadores que produz, e não pela sua veracidade” (Pesavento, 1993, p. 12).
Nas obras criadas por “profundas individualidades”, Baudelaire (2008) identifica algo semelhante a sonhos insólitos que temos repetida e periodicamente. “É isso que marca o verdadeiro artista, sempre durável e vivaz, inclusive nessas obras fugazes, por assim dizer, suspensas nos acontecimentos, denominadas caricaturas” (Baudelaire, 2008, p. 64). As caricaturas nem sempre representam personagens reais e atores sociais, mas constroem tipos estereotipados. Ela pode, inclusive, prescindir da estereotipização. Todavia, a sua inserção social, política ou de gênero, raça e credo deve ser sempre, senão evidente, pelo menos insinuada, para que o humor seja captado. Relatando cenas cômicas, tais charges podem, a nosso ver, ser enquadradas no espírito do registro caricatural de
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imagem visual, uma vez que sempre identificam traços e comportamentos por certos parâmetros de senso comum, que são o cerne da crítica e da legibilidade (Pesavento, 1993, p. 17).
Carreira e trajetória Considerando que “carreira, subjetivamente, é a perspectiva em movimento pela qual a pessoa vê sua vida como um todo e interpreta o significado de seus vários atributos, ações e o que lhe acontece” (Hughes, 1937, p. 410), não existe uma perspectiva fixa quanto a pontos de vista, direção ou destino. Objetivamente, carreira é a série de status (categorias sociais já aceitas) e cargos claramente definidos, afirma o autor. “A carreira é, portanto, a combinação processual entre aspectos objetivos e subjetivos pelos quais a pessoa passa e dos quais interpreta e concebe a própria identidade” (Deluca; Rocha-de-Oliveira, 2015, P.3). Evidencia-se, desta forma, que a carreira de um indivíduo não é independente, ela se inter-relaciona com colegas que os antecederam, com contemporâneos, com suas projeções de futuro, com o mundo que habita. A formação de uma ocupação pode ser compreendida, assim, como a carreira de uma coletividade, explicam DeLuca, Rochade-Oliveira e Chiesa (2016). Segundo os autores, é preciso entender que as trajetórias são construídas em um contexto onde se articulam eixos como espaço, tempo, sociedade, cultura, trabalho e origem. “Carreira é singular, é individual, mas é também social” (Deluca; Rocha-de-Oliveira; Chiesa, 2016, P.3). Esse raciocínio nos leva ao contexto laboral e à coletividade dos profissionais das indústrias criativa, cultural e de mídia, que foram tremendamente afetados pela tecnologia nas últimas décadas. O avanço tecnológico impacta dois aspectos fundamentais: a ferramenta de produção e o meio de divulgação facilitado, universalizado e desregulado via internet (Turri; Junior, 2015). Entre as consequências sociais da economia digital está o crescimento
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e a naturalização do trabalho não pago. Na lógica da economia contemporânea de produtos e serviços culturais, espera-se que o trabalhador aceite como pagamento “o puro prazer imediato de ser criativo” (Fast; Ornebring; Karlsson, 2016, p.3). É pela interpretação e concepção do entrevistado, combinada a aspectos objetivos do meio, como os já citados, que se constrói a narrativa de percurso deste artigo.
O Neltair Neltair Rebés Abreu, nascido em 1950 na cidade gaúcha de Santiago, sempre teve vocação para o desenho. E adoração. Desenhava nas calçadas, em pedaços de papel, onde quer que fosse e já provocava o riso nos conterrâneos. Algumas referências gráficas, como as charges de Sampaulo, chegavam para ele pelo correio, por meio do irmão mais velho, Odilon, que já morava em Porto Alegre e recortava algumas tiras de jornal para lhe enviar (Gastal, 2011). Ramos (2011) associa o sobrenome Rebés com a palavra “revés” e traça um paralelo com a ascendência de Neltair: pai português e mãe descendente de uma basca com um catalão. Famílias marcadas por um tipo de luta ou estado de alerta. “E como laranja não cai longe do pé, Santiago, definitivamente, não poderia ser um cidadão pacato e ordeiro”. O viés militante está ainda no ato de “assumir como alcunha o nome da cidade natal” (Ramos, 2011, p. 25). Segundo Ramos, ao contrário de muitos que se afastam do interior e o abandonam, Santiago carrega os valores do pampa consigo, carrega os causos, o imaginário regional de sua infância. Quietamente, veio para capital sem ninguém suspeitar que, em vez de carência, trazia uma querência interna, imensa. E dessa riqueza toda fez o seu potreiro, de onde passou a domar o mais indomável dos bichos urbanos – o mau humor (Fraga, 2011, p. 16).
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Mudou-se para Porto Alegre em 1970, onde vive no bairro Cidade Baixa, com a esposa Olga, até hoje. A infância no interior, como nota Fraga (2011), ainda é material de inspiração.
O Santiago Neltair virou Santiago após emigrar para Porto Alegre. Nos anos 1970, quando estudava Arquitetura na UFRGS, foi o apelido que o salvou. Na ocasião, um professor pegou um exemplar do jornal Construção, que os estudantes faziam, e levou até o DOPS6 para denunciar os universitários, devido ao conteúdo de protesto da publicação contra o regime militar. “Deu quebra-quebra por lá, teve gente se escondendo... Eu me escondi. Eu era o Santiago, mas não sabiam quem era o Santiago, por isso eu me escapei dessa7.” Em 1972, antes da Arquitetura, ingressou no Instituto de Belas Artes da universidade, mas não se identificou. “Eu não queria aquilo. Ficar pintando no cavalete, com o pincel e a paleta...”, afirmou na entrevista. Passou a cursar Arquitetura em 1973. Na época, já havia deixado o antigo emprego de desenhista de letreiros e logotipos de luminosos de acrílico, na Casa Genta, e trabalhava desenhando “móveis coloniais antigos” na empresa Artesanato Guarisse. O emprego seguinte foi na gráfica do Centro Acadêmico da Engenharia, onde ocorreu a “batida” do DOPS. Ele fazia as capas dos polígrafos e sonhava em ser designer gráfico. Não tinha muito recurso lá, quando muito tinha umas folhas de letraset para gente montar. Eu fazia ilustração geralmente para as capas. (...) Eu me diverti também porque tinha reunião-dançante e eu fazia os cartazes, colocava umas moças de calça de boca-de-sino8. 6 7 8
Departamento de Ordem Política e Social, órgão responsável por censurar e reprimir movimentos políticos e sociais contrários ao regime no poder, em funcionamento de 1924 a 1983. Entrevista com Santiago, ver nota 3. Entrevista com Santiago, ver nota 3.
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Ainda nos anos 1970 teve seu primeiro trabalho publicado na Folha da Tarde, jornal do grupo Caldas Júnior, também responsável por Correio do Povo e Folha da Manhã. Por influência do cartunista Edgar Vasques, usou o apelido Santiago como assinatura provisória. Vasques achava o nome sonoro e “hispânico” e o lembrava do grito de guerreiros medievais ao atacar: “Por Deus e por San Tiago!”, revelou Neltair para Gastal e Ramos (Gastal, 2011, p. 57). O nome provisório virou permanente. E Santiago se sentiu na obrigação de ser combativo. Foi no momento “de exultação” dos seus cartuns por Vasques e José Guaraci Fraga (colunista de humor e coordenador do suplemento da Folhinha, como chamavam a Folha da Manhã) que decidiu tornar-se cartunista profissional, “desse o que desse!” (Abreu, 2013, p. 19). A Arquitetura deu lugar ao Jornalismo, por meio de uma transferência interna na UFRGS, mas Neltair largou
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o curso depois de dois semestres. “Jornalismo eu deveria ter feito. Mas aí eu comecei a ter trabalho e sobrava pouco tempo”, avaliou em entrevista às autoras.
Referências dos cursos
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Apesar de inconclusos, os cursos pelos quais Santiago passou foram importantes para a formação e o desenvolvimento profissional. Em Belas Artes e Arquitetura, foi aluno do professor Armindo Trevisan, responsável por aproximá-lo da História da Arte. Obras emblemáticas e paródias artísticas aparecem em suas charges e ele não esconde a admiração por grandes referências como o arquiteto Antoni Gaudí (1852-1926), o pintor surrealista Pieter Brueghel (1525-1569) e o pintor e gravador Hieronymus Bosch (1450-1516) (Ramos, 2011). Referências a artistas consagrados ou a trabalhos desses artistas resultam em um profícuo diálogo com a arte.
Gaudí Menino, 2005, nanquim e aquarela, 40 x 30 cm
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Na volumosa produção de Santiago, fica evidente a permanente busca pela excelência. Segundo ele, uma regra na sua classe profissional é o entusiasmo pelo desenho e o esforço em aprender sozinho. Ele afirma que todos são autodidatas e nunca soube de um colega que tenha aprendido o ofício em curso formal. “Quase todos nós aprendemos copiando de desenhistas dos quadrinhos que gostava, de histórias em quadrinhos, das realistas, das humorísticas9”.
Las locas de mayo, 1980, nanquim, 21 x 16 cm
Como aluno, além da contribuição dos professores, Santiago teve contato com materiais de referência como a publicação suíça Graphis, “magazine especializado em ilustração e artes gráficas, em cujas páginas constatou que o desenho de humor não precisava ser comedido e simplório, mas que poderia, pelo contrário, pautar-se pelo requinte” (Ramos, 2011, p. 27). A Faculdade de Arquitetura assinava a revista. “E aqui em Porto Alegre, em toda 9
Entrevista com Santiago, ver nota 3.
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parte, os caras copiavam descaradamente as coisas que saiam na Graphis”, afirmou em entrevista às autoras.
Colegas e cúmplices Santiago não é econômico em respeito e elogios a colegas, mas duas referências aparecem recorrentemente em sua fala: Paulo Sampaio, o Sampaulo, e Edgar Vasques. Sampaulo, afirma, teve enorme influência sobre seus colegas. Na década de 1950, ele se estabeleceu no jornal Diário de Notícias dizendo que iria desenhar profissionalmente e esse trabalho deveria ser assalariado. Era uma ousadia na época, quando os chefes chamavam pessoas que “tinham jeito para desenhar” e impunham a condição e valor de pagamento – quando havia. A Folha da Tarde “comprou o passe dele”, relembra, e, quando a Zero Hora tentou levá-lo, o então proprietário da Caldas Júnior, Breno Caldas, cobriu a oferta salarial. “O cara estabeleceu uma condição de salário boa”, afirma Neltair, para quem Sampaulo foi precursor tanto artisticamente quanto por estabelecer uma condição profissional que beneficiou toda a área. O pioneirismo de Sampaulo torna perceptível o processo de profissionalização de uma ocupação, em que “a profissão influencia e é influenciada pelas pessoas, em uma relação recíproca entre ação social e estrutura social” (Deluca; Rocha-de-Oliveira, 2015, p. 2). Vasques, a quem Santiago conheceu na faculdade, teve grande influência na sua decisão de se profissionalizar. Além de tê-lo colocado em contato com a Folha da Tarde e incentivado a adoção do nome profissional, tornou-se grande amigo. Como apontam Mayrhofer, Meyer e Steyrer (2012), networking e a mentoria são relações sociais que atraem atenção nas pesquisas sobre carreiras e confirmam seu argumento de que “carreiras são sempre carreiras em um contexto” (p. 27). Networking, explicam, consiste em relações cooperativas que proveem oportunidades e mentoria, apoio profissional e psicológico de um colega mais “sênior”.
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Ao analisar a trajetória de Vasques, que ousamos a comparar com a daqueles que vivem da arte, Carvalho (2013) afirma que desenhar e viver do desenho indica uma opção de vida, com sonhos, esperanças, planos, tropeços. Para os artistas, porém, a possibilidade de afirmar que “vivem de sua arte” tem conotações mais complexas do que imaginaria o leitor desavisado. Por um lado, não poderiam viver – no sentido pleno do que entendemos por vida – sem o exercício praticamente cotidiano de sua arte. Não é apenas um trabalho e raramente pode ser um emprego (Carvalho, 2013, p. 26).
Vasques, por seu lado, indica Santiago ao tentar responder como alguém consegue se tornar um dos maiores cartunistas do mundo. Segundo ele, a receita “simples” é ter boas ideias, originais e capazes de surpreender, e também cômicas, ridículas ou sarcásticas, para fazer rir. E que sejam universais, para arrancar riso de todo o mundo. Quanto ao desenho, afirma que não basta apenas representar graficamente as ideias, mas deve fazê-lo na dose exata, sem riscar muito nem pouco. Nesse processo, surge um estilo pessoal reconhecível mesmo se o desenho não for assinado. Claro, por trás das ideias originais e do desenho maduro, existe uma visão própria do mundo e uma habilidade inata cuidadosamente mescladas e desenvolvidas na charge, na ilustração e nos quadrinhos. Ou seja, a resposta mais curta para a pergunta lá de cima pode ser: faça como Neltair Abreu, o Santiago (Vasques, 2011, p. 14).
Imprensa diária e censura Foi quando trabalhava na Folha da Tarde que Neltair decidiu que viveria do desenho. Os anos 1980 viriam a ser difíceis para quem trabalhava na grande imprensa e que viu fechar, já no
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início da década, a Folha da Manhã, seguida do encerramento da Folha da Tarde e o Correio do Povo. Também foi entre os anos 1970 e 1980 que a Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre, que, inicialmente dedicada a boletins empresariais, publicou seu periódico, o Coojornal entre 1975 e 1983 (Strelow, 2005), até sucumbir à crise econômica e à pressão do regime militar.
Liberdade de Imprensa, 1990c., técnica mista, 40 x 30 cm
Segundo Santiago, foi uma experiência maravilhosa participar da cooperativa, “que organizou um esquema para remunerar todo mundo”. Foi quando decidiu o que queria da vida: mesmo ganhando pouco, fazer o que gostava. Em seguida, passou a
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contribuir também para o semanário nacional Pasquim, que circulou de 1969 a 1991. A liberdade criativa era ponto comum aos dois veículos alternativos. Enquanto a Folha da Tarde o cortava “barbaramente”, em parte compreendido por ele devido à grande circulação em um período de exceção política, o Coojornal e o Pasquim nunca interferiram em seus trabalhos. A censura em suas charges esteve relacionada a dois desligamentos. O paulistano Estado de São Paulo, o Estadão, decidiu contratar sete chargistas para se revezar no espaço diário. Santiago contribuiu por cerca de 10 meses, até que os cortes a seus desenhos de conteúdo crítico ao então presidente da República Fernando Collor se tornaram insustentáveis. Censurava violentamente, assim, 30% do que eu mandei não saiu lá. (...) Era uma proteção em cima do Collor. Aí, de um dia pro outro, eles começaram a achar que o Collor, ao invés de Deus, era bandido. Eu já não estava mais lá e nem queria.
Anos (e mandatos presidenciais) mais tarde, permaneceu cinco anos no Jornal do Comércio de Porto Alegre, até que a interferência no trabalho dele e de outros dois chargistas pesou muito e todos decidiram sair. “Charge é de esquerda, charge é não conformista, charge é dizer não”, afirma. Seu último desenho censurado, porém, não mirava o universo político e sim o sistema financeiro. “Era um elefante enorme assim e uma formiguinha pequena e o elefante dizendo ‘Eu sou o lucro dos bancos’ e a formiguinha ‘Eu sou o rendimento da poupança10.” Se humor não coexiste com censura, também não suporta a neutralidade. Na opinião de Santiago, quem não tem opinião não consegue produzir. “Humor sempre tem lado, em geral, eu vejo que é o lado mais fraco”, afirma. Enquanto Baudelaire (2008) cita o riso satânico causado pelo humor, Neltair classifica o humor de “maligno”, 10 Entrevista com Santiago, ver nota 3.
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pois emerge do que é negativo, e “anarquista”, pois não tem limites. “Se as coisas são positivas e dão certo, não tem humor. Não existe humor a favor. Humor é contra alguma coisa”, diz. Porém, existem limites morais e a maldade humorística não pode virar bullying. “Não vou bater em quem já está caído”, assegura. “Se tenho uma pedra grande na mão vou atirar nos poderosos, não nos pequenos.”
Corte e Pague, 2007, nanquim e aquarela, 40 x 30 cm
As garras afiadas de seus personagens antológicos são para criticar a política, a sociedade e os costumes. Santiago afirma que o Macanudo Taurino é a “sua Mafalda11”. Segundo Ramos (2011), 11 Personagem combativa, preocupada com a humanidade e a paz, desenhada pelo cartunista argentino Quino.
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Taurino surgiu em 1976, nos tempos da Folha da Tarde, como uma síntese do gaúcho interiorano, pilchado dos pés à cabeça e sempre acompanhado de seu fiel “guaipeca”
Vídeo Locadora, 2006, naquim e photoshop, 24 x 20 cm
Taurino conta causos e vantagens, dá nó na cabeça de qualquer vivente e enfrenta os dilemas contemporâneos com invejável pachorra, não se deixando abalar nem mesmo pelos entreveros do mundo do computador (Ramos, 2011, p. 32).
É por “resguardos da personalidade”, não por ver limites na expressão, que não faz humor com sexo explícito, por exemplo. Neltair não vê proibição em nenhum tema. “Não pode ter coisas sagradas, sagrado é a minha mãe, meus filhos, minha mulher. O resto não. Igreja, justiça, parlamento, essas coisas não podem ser sagradas”, compara. Porém, pondera que o princípio da
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preservação da vida – e não a religião – é motivo para controlar a verve. “A própria postura do Charlie é de dessacralizar o mundo”, ao se referir ao periódico satírico francês Charlie Hebdo12.
Imprensa dirigida, livros e dilemas do mundo digital
Depois que saiu do Jornal do Comércio, Neltair voltou-se para jornais de empresa e entidades. Na década de 1990, relembra, criava personagens específicos para o segmento do periódico que o contratasse. “Para o jornal da indústria Bettanin13, inventei uma bruxa que andava numa vassoura”14, diverte-se. Trabalhou por quase 20 anos para o jornal O Interior, o semanário agrícola que era feito pela Fecotrigo15. Segundo ele, não cabia fazer humor crítico nesse segmento, pois era seu ganha-pão. Diferentemente do jornal do Sinpro16, que considera um meio e um público com perfil adequado aos seus desenhos com críticas políticas contundentes. Seu primeiro livro foi publicado cedo, no seu segundo ano de Folha da Tarde, reunindo trabalhos não aproveitados pelo jornal e com temas não muito perecíveis. Em 1994, bem antes do país viver a febre dos livros de colorir, publicou o Povaréu, obra de dimensões grandes que retrata uma cena pitoresca e repleta de personagens em cada página. A capa recomenda: “pintar, bordar e colorir”, embora não fosse a colorização do leitor a principal razão da obra. Outro livro que explora formatos diferentes da charge é o Causos do Santiago, de 2013, que usa a linguagem de histórias em quadrinhos, narrando de forma anedótica lembranças da infância e da juventude. 12 Em janeiro de 2015, dois terroristas atacaram a redação do Charlie Hebdo, em Paris, matando doze pessoas. 13 Indústria que fabrica equipamentos para a limpeza doméstica 14 Entrevista com Santiago, ver nota 3. 15 Federação das Cooperativas Tritícolas do Rio Grande do Sul. 16 Sindicato dos Professores do Ensino Privado do RS
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Velรณrio da Tia Jovita, 2013, nanquim e aquarela
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A publicação em livro, vista como mais uma alternativa de trabalho entre os anos 1970 a 1990, ganhou importância diante de um mercado profissional retraído depois da virada do século, afirma o autor. Frente à redução de alternativas, a carreira de Neltair foi conduzida em seus campos de possibilidades, negociadas entre o que é dado objetivamente e o que é interpretado subjetivamente. Segundo DeLucca, Rocha-de-Oliveira e Chiesa (2016, p 6), o campo de possibilidades é “o rol de alternativas que se apresenta a um indivíduo a partir de processos sócio-históricos”, é algo dado, mas passa também “por ressignificações em diferentes contextos”. Tanto contexto quanto alternativas para profissionais ligados à arte, historicamente, não são fáceis. Segundo Carvalho (2013), a lógica do capitalismo resiste em ver a arte como trabalho, pois ela não se reduz ao modelo convencional do consumo, nem tem sentido utilitário evidente. “Para o senso comum, ser artista é não ter profissão” (Carvalho, 2013, p. 25).
Bordel Eletrônico, 1997, técnica mista, 30 x 40 cm
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A era digital, se, por um lado, trouxe ferramentas poderosas de divulgação e distribuição para artistas e comunicadores, por outro, permite acesso e cópia de obras e naturaliza a obtenção de produtos culturais sem remunerar os autores, conforme Fast, Ornebring e Karlsson, (2016). Eles elaboraram uma tipologia dos sete papéis do trabalhador “gratuito”, dois deles particularmente visíveis na narrativa do chargista: 1) O Prospector é uma figura estabelecida na indústria de mídia que assume o risco de trabalhar na expectativa de potenciais retornos. 2) O Patsy produz gratuitamente conteúdo que gera valor para redes sociais, mecanismos de buscas e outros serviços digitais. Santiago, ao contrário de muitos usuários inocentes das redes citados pelos teóricos, mostra-se ciente das contradições do meio: Quando eu comecei a trabalhar, na década de 70, tinha uma certa profusão de revistas, jornais e coisas impressas e todas pagavam. Agora nós estamos em uma época de uma regressão profissional terrível. Eu, por exemplo, depois de velho estou trabalhando de graça na internet17.
Mesmo tendo milhares de seguidores em uma rede social, quando ele coloca um original à venda não aparece comprador. “Ninguém quer comprar, porque é muito bacana gostar e pegar de graça, curtir ali. Mas na hora que tiver que pagar pelo trabalho, ninguém quer.” A crítica, entretanto, não é à internet, segundo ele, um veículo maravilhoso, sem censura e sem pressão. Precisa apenas descobrir como ganhar dinheiro. “A internet veio pra ficar. Mas a gente tem que tirar leite dessa pedra. (...) Estou com 65 anos e não vi nenhum caso”, afirma.
17 Entrevista com Santiago, ver nota 3.
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Considerações finais Ao contrário do que cursos inconclusos possam levar a concepção acadêmica a presumir, a entrevista com Santiago nos mostrou uma trajetória de sólida coerência. No princípio, já havia o desenho. “No meu caso, eu comecei com três anos. A minha trajetória começa lá e nunca mais parou.” Mesmo a forma de pensar dependia do traço e Neltair criou um método visual para entender matemática no colégio (não entendemos, devíamos ter pedido para ele desenhar...): Eu estabelecia cinco pontinhos e quando tinha que somar 1, 2, 3, 4, 5..., no quatro eu estabelecia quatro pontinhos e era visual. Eu enxergava o nome do 4 e eu fazia conta com número 4. Eu não tinha o abstrato na minha cabeça, eu tinha visualmente o desenho18.
Enquanto outras crianças param de desenhar por volta dos 8 ou 9 anos, segundo Santiago, ou por acharem que não é importante ou por não considerar importante para os adultos, ele cresceu vendo o pai e dois tios bons de traço. “Os Abreus têm uma coisa para o desenho, tchê.” Ao analisar a profissionalização de atividades que começaram como passatempo, Filion (1999) afirma que “hobbystas” dedicam muito tempo e energia em busca de autorrealização, são extremamente focados, exigentes e vinculados emocionalmente com o trabalho. As faculdades, assim, surgem na vida de Neltair como possíveis áreas para destinar seu ofício, que começou a construir aos 3 anos. O tempo trouxe apuro técnico, ampliou as referências, garantiu reconhecimento e premiações. Mas nunca houve desvio do desenho e das convicções. As mudanças de rota, não de percurso, foram impostas pelas transformações do mercado, a censura e a coação e, atualmente, as contradições do mundo digital, que facilita, mas também toma. 18 Entrevista com Santiago, ver nota 3.
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Outro aspecto do percurso profissional de Santiago que ficou claro na entrevista: paixão. A paixão pode ser teorizada como um híbrido motivacional envolvendo uma experiência afetiva positiva e uma tendência comportamental intensa do indivíduo para se envolver, manter e se identificar com uma dada atividade (Campos, 2016, p. 459).
Cumprido o dever acadêmico de evocar a teoria, eis nossa impressão sobre a trajetória do chargista: fez escolhas por amor, confiou no talento, não desiste, não avilta suas convicções, valoriza sua história de vida, ama o que faz e o que tem e é feliz. “Simples”, como diria Edgar Vasques sobre a receita para quem quiser ser um dos maiores cartunistas do mundo.
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Referências
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Flávio Alcaraz Gomes O homem que definiu o segmento de jornalismo no rádio do Rio Grande do Sul Luiz Artur Ferraretto
Cultura e jornalismo imbricam-se na trajetória profissional de Flávio Alcaraz Gomes, principal responsável pela consolidação do segmento de jornalismo no rádio do Rio Grande do Sul. É este profissional que lidera os processos de definição das programações de duas emissoras, cada uma a seu tempo fundamental para o reposicionamento do rádio como meio em Porto Alegre, com óbvias repercussões pela abrangência, faturamento e número de ouvintes destas no país. Na Guaíba, embora seu cargo seja o de diretor comercial, são dele, da segunda metade dos anos 1950 até meados da década de 1970, as ideias sobre as principais atrações e a cobertura de eventos de porte, fazendo a transição gradativa de uma programação que combina músicas orquestradas, programas de perguntas e respostas, radioteatro, conteúdos infantojuvenis, noticiários e coberturas esportivas para – sempre com foco nas classes A e B – o formato1 conhecido como música-esporte-notícia. Na Gaúcha da primeira metade da década de 1980, é ele o escolhido para encerrar os sucessivos ciclos de aposta no jornalismo seguida de uma retração hesitante, acertando as arestas para que a emissora firme-se no talk and news. Antes de analisar diretamente estes dois processos, faz-se necessária uma breve digressão a respeito do personagem em si 1
Aqui, diferencia-se segmento – a parcela de mercado ao qual a emissora volta-se – de formato – a maneira como a programação é pensada para abordar a audiência e os anunciantes (FERRARETTO, 2014, p. 39-78).
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e do quadro conceitual no qual, aqui, se pretende enquadrar o seu trabalho. Tal medida vai auxiliar na compreensão do papel de Flávio Alcaraz Gomes, obviamente não o único protagonista no processo de definição do segmento de jornalismo no rádio do Rio Grande do Sul, mas seu principal pioneiro e impulsionador. Cabe lembrar uma pequena lista destes profissionais, a qual apenas destaca ainda mais a importância deste jornalista e radialista: Jorge Alberto Mendes Ribeiro, Amir Domingues, Pedro Carneiro Pereira e Armindo Antônio Ranzolin, na Guaíba, e Ary dos Santos, João Aveline, Cândido Norberto Santos, Luiz Figueredo e Ruy Carlos Ostermann, na Gaúcha.2
Formação cultural e primeiras experiências profissionais
Flávio Alcaraz Gomes nasceu em 25 de maio de 1927 e faleceu em 5 de abril de 2011. A infância e parte da juventude passou no bairro Bom Fim, “uma Liga das Nações, com a predominância ao sul, dos judeus” (Gomes, 17 dez. 2009), de onde, portanto, talvez tenha vindo certo ar cosmopolita que o jornalista e radialista carregaria pela vida afora. O meu pequeno grande mundo da rua general João Telles estava dividido em dois, com uma zona amortecedora no meio. A alta João Telles (da avenida Independência até a Vasco da Gama) era de forte predominância alemã. Da Vasco da Gama até a Henrique Dias era zona de pelos-duros3. E da Henrique Dias até a Oswaldo Aranha. território israelita (Gomes, 3 dez. 2008).
A formação intelectual de Flávio Alcaraz Gomes vai se dar, de início, em duas das mais tradicionais instituições escolares 2 Maior detalhamento a respeito aparece em Rádio e capitalismo no Rio Grande do Sul: as emissoras comerciais e suas estratégias de programação na segunda metade do século 20 (FERRARETTO, 2007). 3 Expressão gaúcha que, na origem, indicava o cavalo produto da cruza de diversas raças (OLIVEIRA, 2005). Por extensão, seu uso estendeu-se a toda pessoa de origem mestiça.
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do Rio Grande do Sul: o Colégio Rosário (1934-1943), mantido pelos Irmãos Maristas, e o Instituto Júlio de Castilhos (1944), escola pública do governo estadual. Aos professores do primeiro, o futuro profissional de comunicação atribuiria, em uma de suas colunas, grande parte de sua bagagem cultural (Gomes, 15 out. 2010). Do segundo, recordaria o “ensino liberal” (Gomes, 4 set. 2009), uma característica da escola, popularmente conhecida como Julinho e por onde passaram diversas personalidades gaúchas. Em meados da década de 1930, “a gurizada do Bom Fim descobria o rádio”, fabricando receptores de galena4 (Gomes, 1º nov. 2007). Com dez anos, em 1937, no seu primeiro contato com o meio, Flávio Alcaraz Gomes participa da Hora Infantil, da Rádio Sociedade Gaúcha: O estúdio era separado da mesa do operador por um vidro no qual a figura de uma mulher com o dedo na boca ordenava “silêncio” quando a rádio entrava no ar. O programa era comandado por um guri do Colégio Militar, o Octavio Mariot Focques. [...] Eu tinha 10 anos e era produtor do programa, no qual apresentava tópicos retirados da revista O Tico-tico5. Foi a minha primeira experiência em rádio, do qual não mais me desliguei (Gomes, 9 mar. 2005).
Na Porto Alegre movida a bondes, a cidade convergia para o Abrigo da Praça 15 de Novembro, a estação central do transporte coletivo. No prédio, funcionava uma voz do poste, um sistema de alto-falantes, onde, em 1934, o já adolescente Flávio Alcaraz Gomes faria um teste para locutor, sendo reprovado. No ano seguinte, tentaria, também sem sucesso, uma vaga na Rádio Difusora Porto-alegrense. 4 5
Galena é a denominação do sulfeto de chumbo em estado natural. Por extensão, o termo identifica um tipo de receptor de rádio fabricado, em geral, de forma caseira e dependente de uma escuta com fones de ouvido. Emblemática revista infantil brasileira que circulou de 1905 a 1962.
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Reprodução
Primeira reportagem de Flávio Alcaraz Gomes (1944)
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Em 1945, ingressa na Faculdade de Direito da então Universidade de Porto Alegre6, formando-se quatro anos depois: Saí doutor em 1949, não sem antes ter-me apaixonado menos pelos códigos e seus comentaristas do que pelos clássicos como Voltaire, Shakespeare, Maupassant, Flaubert, Zola e os nossos Jorge Amado e Erico [Verissimo], mas Machado não, que sempre o achei um chato água-com-açúcar. Amei sobretudo o grande Eça [de Queirós]. E tirei meu curso como o cardeal espanhol de Julio Dantas: lendo pouco Platão, lendo muito Cervantes7 (Gomes, 1995, p, 27).
Algo comum à época, em paralelo à faculdade e à airada vida estudantil, evocada anos depois em suas memórias pela referência a Julio Dantas, Flávio Alcaraz Gomes começa a trabalhar, em setembro de 1945, como revisor no vespertino Folha da Tarde, da então Caldas Júnior & Cia. Ltda., também responsável pela publicação do matutino Correio do Povo (Gomes, 2004, p. 13). Sobrinho, pelo lado materno, de Dolores Alcaraz, segunda esposa do fundador Francisco Antonio Vieira Caldas Junior, era, assim, primo de Breno Alcaraz Caldas que dirige a empresa. Portanto, antes da contratação, já frequentava a redação dos jornais da família, tendo publicado sua primeira reportagem, no Correio do Povo, em 1944, intitulada Pedem armas 1.200 revolucionários constituídos em “batalhão suicida”, sobre um grupo de gaúchos, entre 35 e 50 anos, que pretendia ir lutar ao lado dos Aliados na Segunda Guerra Mundial. “Ilustrando a matéria, a foto de um jovem repórter (eu, com 17 anos) com caneta-tinteiro na mão direita, anotando as declarações do líder do batalhão [...]” (Gomes, 6 jan. 2009). Em 1947, já trabalha como repórter, atuando junto ao plantão policial:
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Atual Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Uma das falas de um dos personagens, o cardeal Rufo, da peça A ceia dos cardeais, um clássico do teatro português.
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A princípio, simplesmente copiava o que constava no Livro de Plantão [...]. Logo, fui me aperfeiçoando, descobrindo o molho, o nariz-de-cera, a maior ou menor valorização de um assunto, louvando-me sobretudo no trabalho do maior mestre da reportagem policial que o Rio Grande do Sul teve: Sadi Rafael Saadi, hoje nome de rua no [bairro] Menino Deus, e verdadeiro ás do jornalismo (Gomes, 1995, p, 32).
É importante, ainda, acrescentar outro detalhe da vida pessoal de Flávio Alcaraz Gomes, que, no futuro, irá servir de base para o trabalho realizado por ele. Até se formar no ano de 1949 na já renomeada Universidade do Rio Grande do Sul, participa de duas viagens – uma ao Nordeste e outra à Europa – organizadas pela Associação de Intercâmbio Cultural dos Acadêmicos de Direito. Embora já tivesse experiência em cobertura no exterior – acompanhara, pela Folha da Tarde, a comitiva do governador Walter Jobim ao Uruguai –, é na segunda destas viagens que começa a se gestar o processo que fará dele o mais conhecido correspondente internacional do rádio e da imprensa do estado nos anos 1960 e 1970. Nesta linha de raciocínio, já formado em Direito, mas sem o mínimo desejo de exercer a profissão, Flávio Alcaraz Gomes radica-se em Paris de setembro de 1950 a junho de 1952, de onde envia material jornalístico para os dois diários da Caldas Júnior. Durante meus dois anos de Paris, firmei-me como jornalista. Estabeleci-me num apartamento junto à Sorbonne com o propósito de, pelo menos por osmose, haurir seu multissecular saber. Eventualmente, frequentava suas aulas, enquanto mantinha uma rotina profissional de trabalho. Mandava em média quatro matérias por semana para os jornais da Caldas Júnior e a cada dois meses viajava pelo continente (Gomes, 1995, p, 57).
Ao voltar para Porto Alegre, retoma sua rotina na redação da Folha da Tarde:
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É um baque na minha fantasia e no meu bolso de repórter de província. sem o favorecimento do câmbio oficial e sem a mesada do papai, caio na realidade do jornalismo brasileiro, tradicionalmente muito mal remunerado. Para melhorar as finanças, passei a trabalhar de noite no Correio do Povo, como redator de plantão uma vez por semana (Gomes, 1995, p. 73).
Na mesma época, Flávio Alcaraz Gomes conhece o radialista Jesuíno Antônio D’Ávila, um pernambucano que assumira, no primeiro semestre de 1952, a direção da Rádio Farroupilha, depois de uma bem-sucedida estada na direção artística da Tupi, de São Paulo. É ele que, em seis meses, transforma a estação dos Diários e Emissoras Associados no segundo destino das verbas publicitárias do país (Abert, mar. 1986, p. 27). [...] J. Antônio D’Ávila, ao longo dos quase dois anos em que permanece na direção artística da Farroupilha, promove uma revolução no rádio do Rio Grande do Sul, até aquele momento fortemente influenciado pelas transmissões das emissoras de Buenos Aires, de fácil captação em Porto Alegre. A compartimentalização dos programas das estações portenhas de matriz europeia dá lugar, assim, ao ecletismo, que já faz sucesso em São Paulo e no Rio de Janeiro, baseado, por sua vez, em modelos radiofônicos dos Estados Unidos. D’Ávila, fugindo ao hermetismo, mistura, em alguns horários, apresentações musicais, humor, dramatizações e o que for necessário para chamar a atenção do público (Ferraretto, 2007, p. 40).
A passagem deste profissional pela capital gaúcha marca o rádio do Rio Grande do Sul. Por sua vez, a proximidade com J. Antônio D’Ávila começa a despertar o profissional de rádio até então adormecido em Flávio Alcaraz Gomes (Gomes, 20 ago. 1999). Por esta época também, entra na história outro amigo, Cândido Norberto dos Santos, da Gaúcha:
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Eu voltei da Europa em 1952. Sempre fui muito amigo do Cândido. Achava o rádio uma coisa admirável. Com a vinda do J. Antônio D’Ávila, eu fiquei muito amigo dele, mas nunca incursionava pelo microfone. Acompanhava os programas apenas. O Cândido radiofonizou, então, umas crônicas que eu escrevi sobre touradas. Foi um sucesso extraordinário. Aí, eu vi a força do rádio. O que eu havia escrito no Correio do Povo ou na Folha da Tarde não tinha tido, até então, a mesma repercussão que aquelas crônicas radiofonizadas. Aí, eu comecei a gostar do rádio. (Gomes, 8 dez. 2005).
Fechando a descrição das experiências de vida de Flávio Alcaraz Gomes anteriores ao trabalho realizado por ele nas rádios Guaíba (1956-1978) e Gaúcha (1982-1988), mas essenciais à compreensão do seu papel na história da segmentação em jornalismo no Rio Grande do Sul, cabe lembrar a relação deste profissional com a área de publicidade8. Após o retorno da França e antes de ingressar no projeto da Guaíba, vende também anúncios, percorrendo empresas e agências de publicidade. Relacionando imprensa, rádio e publicidade, idealiza algumas promoções marcantes no mercado da época, em geral comprando espaços em jornais e emissoras: o circuito automobilístico do Parque Farroupilha (1952), o lançamento do Dia dos Pais (1955), o concurso da Mais Bela Gaúcha (1955) e a festa da chegada do Papai Noel (1955) (Gomes, 1995, p. 78-84). 8 Por coincidência, no cenário porto-alegrense, também outros dos principais protagonistas deste processo têm este tipo de vinculação. Entre os pioneiros do rádio popular, Lorenzo Gabellini, da Itaí (1965-1983), havia trabalhado como corretor de anúncios, chegando a montar uma agência, a Real Publicidade (1954), mais tarde, transformada na Pro-Marketing (1961), voltada também à consultoria mercadológica; e Otávio Dumit Gadret, da Caiçara (1970-atualidade), dividira-se, na adolescência, entre a locução comercial em emissoras de médio porte e a venda de publicidade. No rádio jovem, Fernando Westphalen, da Continental (1971-1977), trabalhara antes na MPM Propaganda, uma das principais agências de publicidade do país. Não se trata de mera coincidência, ao trabalharem o mercado publicitário, todos eles tinham mais clara do que seus contemporâneos a necessidade de fechar o foco em determinados públicos após o momento histórico da introdução da TV no mercado comunicacional.
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Um rádio em transição Conceitualmente, é importante demarcar a alteração que ocorre no mercado de rádio em geral, paralelamente às passagens de Flávio Alcaraz Gomes pela Guaíba e pela Gaúcha. Da década de 1950 até o início dos anos 1990, consolida-se o processo que leva a estratégia mercadológica de segmentação a se tornar dominante, substituindo a tendência anterior marcada pelo predomínio da difusão. A respeito, teoriza um dos idealizadores da Escola de Administração de Empresas de São Paulo (Easp) da Fundação Getúlio Vargas, Raimar Richers: Ao desenvolver a sua estratégia de marketing, a empresa tem duas opções fundamentalmente distintas para se dirigir ao mercado. A uma delas chamarei de difusão, porque consiste em espalhar os produtos pelo mercado afora, sem se preocupar com quaisquer diferenças que possam existir entre os compradores em potencial. São os produtos em si, em particular a maneira como eles se diferenciam de outras ofertas semelhantes, que devem se impor ao mercado e assegurar o sucesso da empresa. A segmentação, por sua vez, parte da premissa inversa: a demanda não é uniforme, mas sim heterogênea, o que justifica uma concentração dos esforços de marketing em determinadas fatias específicas do mercado (Richers, 1991, p. 15)
Até então, o carro-chefe da programação era o espetáculo ao vivo dos humorísticos, novelas e programas de auditório, com a música gravada, noticiários e, em alguns casos, a cobertura de eventos esportivos preenchendo o restante das irradiações, mas sem estes três últimos gerarem o mesmo impacto em termos de audiência e, portanto, de verbas publicitárias. A introdução de três inovações tecnológicas vai alterar este panorama, fazendo, inclusive, que o prime time das estações altere-se, migrando, na maioria dos casos, do turno da noite para o da manhã. A (1) televisão chega
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ao Rio Grande do Sul na virada da década de 1950 para a de 1960 com a TV Piratini (1959) e a TV Gaúcha (1962), consolidando-se até 1970, quando já está no ar também a TV Difusora (1969), e fazendo com que o espetáculo, acrescido de imagem, ao migrar para o novo meio, leve junto público e anunciantes. Mais ou menos por esta época, graças à (2) transistorização, começam a se popularizar, acompanhando os ouvintes, rádios portáteis, a maioria contrabandeada do Japão para o Brasil, de onde vêm os da marca Spica, produzidos pela Sanritsu Electrical & Machinery Company e durante algum tempo sinônimo deste novo objeto de desejo e de consumo. Nos anos 1970, a (3) frequência modulada vai, gradativamente, se popularizar com o surgimento de dezenas de estações, grande parte delas ligada a empresas que já possuem outros empreendimentos no setor. Fora isto, há que considerar três fatores relacionados à economia de modo geral. Verifica-se o início do processo de constituição, mesmo que do ponto de vista simbólico por se basear no crédito pessoal, de uma (1) sociedade de consumo. Como pano de fundo, dá-se a passagem do capitalismo competitivo ou liberal para o (2) monopólico, onde predomina um pequeno número de grandes firmas a disputar a preferência do consumidor mediante diferenciação dos produtos, prestígio da marca e publicidade. Do ponto de vista gerencial, usando a categorização apresentada por Fernando Henrique Cardoso (1972), (3) os capitães de indústria, dirigentes que se pautam por decisões instintivas e pela obtenção de favores governamentais para a manutenção de seus negócios, cedem espaço aos homens de empresa, cujas ações baseiam-se na metodização da produção e na constante modernização da base tecnológica de suas empresas. Como consequência destes fatores associados a acertos de uns e erros estratégicos de outros, as décadas de 1970 e 1980 vão ser marcadas por forte alteração no quadro da indústria comunicacional do estado. Entram em crise os Diários e Emissoras Associados, de Francisco de Assis Chateaubriand, proprietários da
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mais importante rádio das décadas anteriores, a Farroupilha, e o conglomerado representado pela Companhia Jornalística Caldas Júnior, Rádio Guaíba S.A. e Televisão Guaíba Ltda., de Breno Alcaraz Caldas, o de maior relevância na imprensa do estado desde a década de 1930. Ao contrário, de uma pequena participação acionária na aquisição da Gaúcha em 1957, Maurício Sirotsky Sobrinho, até então um bem-sucedido apresentador de programas de auditório com passagens pelo mercado publicitário, transforma-se no principal empresário do setor de comunicação do Rio Grande do Sul, capitaneando empreendimentos em jornais, emissoras de rádio e estações de TV, constituindo, em 1969, a Rede Brasil Sul de Comunicações S.A., atual Grupo RBS.
Definindo a programação da Guaíba No final de 1956, Arlindo Pasqualini, a quem o projeto da Rádio Guaíba havia sido delegado por Breno Caldas, convida Flávio Alcaraz Gomes para assumir a direção comercial da emissora e Jorge Alberto Mendes Ribeiro para se responsabilizar pela direção de broadcasting. Embora pela lógica da época a este último coubesse o planejamento da programação, os três profissionais, até então colegas na Folha da Tarde, iriam acabar organizando-se entre si de forma diferenciada: A partir dali, não paramos de traçar planos. Ficou decidido fundamentalmente que transmitiríamos sempre duas músicas com locução ao vivo e ênfase especial na cultura, notícias e esporte. Foi então, louvado no que tinha ouvido nas emissoras europeias e aprendido com J. Antônio D’Ávila, que esbocei o arcabouço da programação que caracterizou a rádio durante mais de trinta anos (Gomes, 1995, p. 87).
Enquanto as demais emissoras seguem fiéis à estratégia de difusão buscando um público o mais amplo possível, a Guaíba vai focar
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a sua programação nas classes A e B, sem abandonar certo grau de ecletismo em termos de conteúdo. Não é à toa, portanto, que a transmissão inaugural seja marcada para o Theatro São Pedro, o mais sofisticado da cidade, e inclua música erudita. A Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, sob a regência do maestro Pablo Komlos, apresenta a abertura de O Guarani, de Carlos Gomes; a Sinfonia n. 8, em si menor, a Inacabada, de Franz Schubert; a suíte n. 1 da ópera Carmen, de Georges Bizet; e a valsa Danúbio azul, de Johann Strauss. A pianista Yara Bernette, uma das mais importantes do país em todos os tempos, interpreta trechos de obras de Wolfgang Amadeus Mozart, Johann Sebastian Bach, Ferruccio Busoni, Camargo Guarnieri, Claude Debussy, Franz Liszt e Frédéric Chopin. Encerrando a “noitada de arte”, como define o Correio do Povo (1º maio 1957. p. 30) no dia seguinte, o Coro Orfeônico Júlio Kunz, da Sociedade Aliança de Novo Hamburgo, faz a vocalização do Boi barroso9, trilha que passa a ser usada como assinatura musical da emissora. A pompa e a solenidade remetem à própria programação da Guaíba, algo sóbria e, por vezes, sisuda, tradicionais marcas também do Correio do Povo, carro-chefe da empresa até então. A estratégia adotada confere, ainda que por uma relação quase gregária, uma boa dose de credibilidade ao novo empreendimento de Breno Caldas. Neste sentido, o discurso inaugural de Arlindo Pasqualini (apud Correio do Povo, 1º maio 1957, p. 30) vai servir como uma espécie de carta de intenções: Senhoras e senhores. A Rádio Guaíba, de Porto Alegre, que ora se inaugura aqui no Theatro São Pedro, com a presença para nós tão grata e tão honrosa de todos vós, constitui um empreendimento novo, mas que, embora novo, nasce sob o signo de uma tradição. É que sua vinculação a dois grandes jornais, o Correio do Povo e a Folha da Tarde, lhe traça implicitamente os rumos e a orientação. Tal orientação, como sabeis, é de absoluta independência, a qual tem para nós seus limites naturais e intransponíveis nos princípios da moral e nos imperativos 9
Melodia das trovas tradicionais do cancioneiro folclórico gaúcho.
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do bem comum. Acerca de nossa programação normal, que deverá ter início amanhã, o que vos posso adiantar, em poucas palavras, é que ela não terá o luxo das grandes montagens. Mas, mesmo quando singela, jamais cairá na vulgaridade.
O discurso de Pasqualini sintetiza o que o público do Rio Grande do Sul vai identificar nas décadas seguintes como uma forma particular da fazer rádio: [...] a estação da família Caldas tem a sua personalidade definida com cuidado, gerando o chamado estilo Guaíba. Tudo consequência de um trabalho em que interferem diversos profissionais. O diretor técnico, Homero Carlos Simon, garante uma qualidade de som cristalino que, já nas transmissões iniciais, diferencia a emissora das demais. Esta particularidade é ressaltada pelo padrão de voz, algo impostado, mas de extrema correção e clareza na pronúncia, definido por Jorge Alberto Mendes Ribeiro, o responsável pela área artística da rádio. O assistente da direção de broadcasting, Osmar Meletti, junto com o seu auxiliar Fernando Veronezi, aproveita também esta vantagem competitiva na programação musical, baseada em comedidas orquestrações, bem ao gosto de Breno Caldas. Um outro fator, ainda, serve para reforçar a sobriedade das irradiações: todos os comerciais são lidos ao vivo, com a Guaíba negando-se a aceitar spots e jingles (Ferraretto, 2007, p. 87).
É neste contexto que a bagagem pessoal e profissional de Flávio Alcaraz Gomes vai criar programas diferenciados mesmo quando estes pendem para o espetáculo ainda reinante no rádio do final dos anos 195010. Dois exemplos do tipo de entretenimento oferecido pela Guaíba com foco mais nas classes socioeconômicas A e 10 Maior detalhamento a respeito de outras atrações desta fase inicial da Guaíba, incluindo radioteatro e programas infantis, com e sem a participação direta de Flávio Alcaraz Gomes em sua gesta, aparece em Rádio e capitalismo no Rio Grande do Sul: as emissoras comerciais e suas estratégias de programação na segunda metade do século 20 (FERRARETTO, 2007).
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B e influenciado um pouco pelo rádio estadunidense e muito pelo francês, este último que Flávio Alcaraz Gomes conhecera como ouvinte em sua estada na Europa no início da década: (1) Trabalhando com música, inspirado no Travaillant en musique, da Radiodifusion Française; e (2) Dê asas à sua inteligência, um quiz show réplica do The $64,000 question, atração televisiva da Columbia Broadcasting System, dos Estados Unidos11. Até o início da década seguinte, na construção do modelo de programação da Guaíba, que, logo, abandona o espetáculo ao vivo, interferem, ainda, o jornalismo e a cobertura esportiva como fatores de destaque. Desde 21 de abril de 1957 – portanto, estreando durante as transmissões experimentais da Guaíba iniciadas na véspera –, a emissora coloca no ar o Correspondente Renner12, uma síntese noticiosa que Flávio Alcaraz Gomes tem o cuidado de posicionar sempre iniciando cinco minutos antes da edição porto-alegrense do Repórter Esso, transmitido pela Rádio Farroupilha e até então o noticiário mais importante do Rio Grande do Sul (Gomes, 1995, p. 90). Há ainda, neste sentido, a cobertura das eleições para o governo estadual de 1958, ineditamente realizadas com uma contagem de votos paralela à da justiça eleitoral e organizada por Amir Domingues, cujo sucesso embasa trabalho semelhante no pleito presidencial de 1960, uma parceria com a Nacional, do Rio de Janeiro, na qual destaca-se o know-how adquirido pela Guaíba dois anos antes. O microfone da emissora vai estar ainda em Brasília na inauguração da nova capital federal, em 21 de abril de 1960, e na posse de Jânio Quadros na presidência no dia 31 de janeiro do ano seguinte (Ferraretto, 2007, p. 427-431). É, no entanto, com as coberturas internacionais protagonizadas por Flávio Alcaraz Gomes que a emissora vai adquirir uma 11 Por sua vez, baseada no Take it or leave it, programa de rádio dos anos 1940 que oferecia uma “$64 question”, alusão à popular expressão idiomática em língua inglesa “That is the $64,000 question”, algo como “Esta é a grande questão” (MITTEL, 2004, p. 1.150). 12 O “Renner” da denominação do noticiário refere-se ao grupo empresarial de propriedade de Antônio Jacob Renner, idealizador e primeiro presidente do Centro da Indústria Fabril do Rio Grande do Sul, atual Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul (Fiergs).
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estatura ainda mais diferenciada na radiofonia do Sul do país. Este profissional, como já descrito (Ferraretto, 2012), protagoniza o processo que permite, pela primeira vez no rádio do país, ao estúdio falar com o estádio e vice-versa, na Copa do Mundo de 1958. Em uma época quando completar uma ligação telefônica entre Porto Alegre e São Paulo poderia demorar horas e na qual as emissoras dependem de precários circuitos unidirecionais de ondas curtas para irradiações de longa distância, a Guaíba transmite os jogos da Seleção Brasileira desde os estádios da Suécia com a inovadora
Correio do Povo noticia discurso de Arlindo Pasqualini na inauguração da Guaíba (1957)
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tecnologia de single side-band13 (SSB), contando com a estrutura da Postes Télégraphes et Téléphones, de Berna, na Suíça. Graças ao sistema contratado por Flávio Alcaraz Gomes e que permite uma transmissão bidirecional, os profissionais da emissora na Suécia podem trabalhar com retorno de áudio do estúdio, acompanhando e trocando impressões com seus colegas de Porto Alegre. O SSB vai ser usado também nas já citadas coberturas realizadas em Brasília nos anos de 1960 e 1961. O sucesso na Copa de 1958 garante também para Flávio Alcaraz Gomes a coordenação das irradiações da emissora nos certames de 1962, 1966 e 1970. De 1967 a 1975, o diretor comercial da Guaíba converte-se no mais marcante enviado especial da história do rádio do Rio Grande do Sul. Pela primeira vez, um jornalista gaúcho movimenta-se com a desenvoltura de repórter nos cenários de acontecimentos que catalisam as atenções em nível mundial. Algumas destas coberturas14 merecem destaque: (1) a das guerras dos Seis Dias, no Oriente Médio, e do Vietnã, na Indochina (1967); (2) a dos protestos estudantis, na França (1968); (3) a das missões Apollo 8 (1968) e Apollo 11 (1969), esta última, cabe lembrar, a da chegada do ser humano à Lua; (4) a da Guerra do Yom Kippur, novamente no Oriente Médio (1973); e (5) a da China (1975), quando se transforma no primeiro jornalista brasileiro a falar ao vivo do outro lado da chamada Cortina de Bambu15. Em paralelo, Flávio Alcaraz Gomes consolida a transição da programação inicial da emissora para o formato música-esporte-notícia. Ao longo dos anos 1960, começa também a atuar como apresentador, alternando, nas atrações que comanda, o roteiro elaborado previamente, combinação de leitura e recursos de 13 O método de transmissão em single side-band (banda lateral única) seleciona a banda lateral com menor interferência entre as ondas eletromagnéticas no ponto de irradiação, suprimindo as demais e gerando, desta maneira, um sinal de melhor qualidade. 14 Algumas das quais transformam-se em livros-reportagem: Morrer por Israel (1967), A rebelião dos jovens – Paris, 1968 (1968) e Um repórter na China (1976). 15 A linha imaginária que separava os países comunistas do leste asiático, tendo a China maoista como centro, das nações capitalistas.
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sonoplastia, com a veiculação de comentários e eventuais entrevistas. Gradativamente, a expressão que identifica estes espaços – “um programa de Flávio Alcaraz Gomes” – ganha vida própria, suplantando nomes-fantasia utilizados como título. Do mesmo modo, o improviso da fala começa a substituir o texto. Este processo é particularmente identificável em três criações deste profissional no período de 1967 a 1975.
Folha da Tarde noticia a cobertura da Guaíba na Copa da Suécia (1958)
O piloto do primeiro destes programas, a radiorrevista Província, vai ao ar em 6 de março de 1967. Claramente, transita de roteiros – nos quais o texto ganha relevo com base na sonoplastia em uma aproximação com o documentário – a comentários sobre ciência, música e cinema, passando pelo noticiário internacional embasado nos serviços em português de emissoras estrangeiras em ondas curtas (Rádio Guaíba, 6 mar. 1967). Na sequência, aproveita
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o sucesso do filme 2001: uma odisseia no espaço (2001: a space odissey), dirigido por Stanley Kubrick e lançado em 1968, para dar ao 2001, um quase documentário de teor didático, explorando os recursos radiofônicos e, por vezes, recorrendo à entrevista como único instrumento (Ferraretto, 2007, p. 202-3). Finalizando este processo, em 14 de julho de 1975, estreia o programa Agora, no qual a notícia ganha espaço diário na voz dos seus protagonistas e na de uma série de correspondentes, falando dos mais diversos pontos do país e do mundo. Deste modo, em sua primeira edição, [...] o Agora põe o ouvinte da Guaíba em contato com os Estados Unidos, o seu panorama político, as chuvas que assolam o país e preparação da acoplagem das naves Apollo 18, norte-americana, e Soyuz 19, soviética; a Argentina, onde o até então todo-poderoso ministro do Bem-estar Social, José López Rega, havia sido destituído dias antes do cargo; a França, que comemora o aniversário da queda da Bastilha e a revolução de 1789; e com as principais capitais brasileiras. Os dados existentes indicam que, a partir deste novo programa, torna-se habitual no radiojornalismo do Rio Grande do Sul a utilização da chave híbrida, equipamento responsável pela conexão da linha externa à mesa de áudio, permitindo a quem está falando com a emissora escutar o som do estúdio no auricular do seu aparelho telefônico (Ferraretto, 2007, p. 460).
Bem ao sabor da época, a consolidação do formato música-esporte-notícia na Guaíba ocorre de modo intuitivo, não raro esbarrando na aversão de Breno Alcaraz Caldas, o proprietário da emissora e, na época, dos jornais Correio do Povo, Folha da Tarde e Folha da Manhã, a mudanças. Para se ter uma ideia, conforme Flávio Alcaraz Gomes (1995, p. 218), do conceito à estreia do Agora, passaram-se dois anos de hesitações do empresário. Outro aspecto ilustra esta renitência: somente 20 anos após a inauguração da Guaíba, exceção feita ao esporte, a emissora vai
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se liberar da dependência da reportagem dos diários da Caldas Júnior16, constituindo uma equipe própria para o acompanhamento dos fatos locais.
Adroaldo Streck e Flávio Alcaraz Gomes no comando do Agora (1975)
Cabe observar que Flávio Alcaraz Gomes, ao longo de sua passagem pela Guaíba, além da criação do conteúdo, preocupa-se, até devido à função de diretor comercial da emissora, com a viabilidade publicitária dos programas. Um exemplo desta mediação com anunciantes aparece na gênese do Província. De 1º de janeiro a 28 de fevereiro de 1968, a emissora da Caldas Júnior veicula de segunda a sexta-feira, às 13h10, o Província nas Praias, que transmite, em tempos de dificuldade de acesso ao litoral norte do Rio Grande do Sul, recados entre veranistas e seus amigos e familiares de Porto Alegre. Ao final da temporada de praias, o patrocinador, o Banco Província, solicita “um programa novo, diferente e interessante” (Rádio Guaíba, 6 mar. 1967). A solução proposta por Flávio Alcaraz Gomes é criar uma atração associando novamente 16 Isto só acontece quando o coordenador de Jornalismo, Antônio Britto Filho lança, em 1977, o radiojornal Linha Aberta, apresentado de segunda a sexta-feira, das 13h15 às 14h (FERRARETTO, 2007, p. 421).
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o nome do anunciante com o conteúdo, neste caso mais focado em assuntos relacionados ao estado.
Redefinindo a programação da Gaúcha No decênio que antecede a chegada de Flávio Alcaraz Gomes à gestão da emissora, a Rádio Gaúcha, em termos de segmentação em jornalismo, parece reproduzir com perfeição a expressão popular “dois passos para frente e um para trás”. De fato, há certa oposição entre o entusiasmo de Nelson Sirotsky, um dos filhos de Maurício Sirotsky Sobrinho, e o ceticismo de seu pai, inclinado a uma programação mais eclética, o que leva a estação do atual Grupo RBS a várias recaídas popularescas ao longo deste período. Pode-se aventar que, além da nova realidade de mercado do início dos anos 1980 e da própria competência demonstrada por Flávio Alcaraz Gomes na Guaíba, também a antiga proximidade de Maurício com este profissional tenha facilitado na sua escolha para liderar o processo de consolidação da Gaúcha como líder em jornalismo, um segmento, na época, ainda não totalmente indefinido no cenário da radiodifusão sonora no país. Em 1983, quando Flávio Alcaraz Gomes passa de comentarista a gestor, a Gaúcha já havia encetado duas tentativas significativas de segmentação descontinuadas na sequência pela direção da então Rede Brasil Sul de Comunicação: uma tendo como marco a Copa do Mundo de 1974, na Alemanha, e outra a de 1978, na Argentina. De fato, a guinada em direção ao popular verificada desde 1980 apenas repetia situação vivenciada em meados da década anterior. Os Sirotsky pareciam ter por objetivo a segmentação em jornalismo, mas, temerosos das incertezas de sucesso deste tipo de empreendimento em que a audiência tende a ser considerada mais qualitativamente, acabavam pendendo para a antiga estratégia de voltar a emissora ao público quantitativamente o mais amplo possível.
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O processo, no entanto, começa um pouco antes, em junho de 1971, com a estreia do Sala de Redação, criação de Cândido Norberto Santos e primeiro sucesso de audiência da emissora em termos de jornalismo. Inicialmente transmitido das 11 às 14h a partir das instalações do jornal Zero Hora, o programa altera o quadro de audiência em Porto Alegre: até dezembro daquele ano, conforme os levantamentos do Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (jun.-dez. 1971), a Gaúcha vai ocupar, por vezes, na média, a segunda colocação entre as estações pesquisadas, chegando, no horário do Sala de Redação, a registrar um público até três vezes superior ao seu índice geral e garantindo, com isto, a sintonia de até um quarto dos receptores ligados. Em meados de 1972, Nelson Pacheco Sirotsky participa de um encontro promovido pelo Radio Advertising Bureau, em Las Vegas, nos Estados Unidos, onde toma contato com a ideia de que o rádio deveria se voltar a nichos específicos de mercado. É com esta convicção que vai convencer Maurício Sirotsky Sobrinho a investir na cobertura da Copa do Mundo de 1974. Pelos dados do Ibope (jun.-jul. 1974), nos meses de junho e julho daquele ano, a audiência da emissora cresce, chegando a se aproximar de sua principal concorrente, a Guaíba. A despeito do sucesso destas iniciativas, o incerto futuro para o jornalismo em um país sob ditadura militar talvez explique a contratação de Jair Britto para a gerência de programação da Gaúcha. Vindo da Bandeirantes, de São Paulo, emissora na qual ocupava função semelhante, este profissional opta por uma programação mais eclética, em que predominam o entretenimento popular e as promoções com prêmios, buscando, assim, concorrer com as três estações mais ouvidas em Porto Alegre: Difusora, Farroupilha e Itaí. Não é diferente o que ocorre em torno da Copa do Mundo de 1978. A Rede Brasil Sul investe em equipamentos e amplia a potência da Gaúcha para 100 kW, contratando, ainda, Ruy Carlos Ostermann, um dos principais comentaristas esportivos da
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Guaíba e da Companhia Jornalística Caldas Júnior, que coordena a cobertura na Argentina. O passo atrás vem na sequência de uma paralisação dos funcionários da emissora: [...] em 1979, Ruy Carlos Ostermann assume a direção geral da rádio, implantando um esquema que aproveita a abertura política para se dedicar quase com exclusividade ao jornalismo, restringindo a veiculação de músicas às madrugadas e a um ou outro momento ao longo do dia. Com repórteres desde as primeiras horas da manhã e uma equipe de 40 profissionais, a Gaúcha apresenta uma programação rigorosamente pautada, apostando na qualidade da informação e não mais apenas no carisma dos apresentadores. O custo cresce e, em meio aos boatos de infiltração esquerdista na redação, a Rede Brasil Sul decide demitir 15 jornalistas, alegando redução de despesas e levando a uma greve nos dias 25 e 26 de setembro de 1980, que paralisa o Departamento de Notícias. Ostermann sai fragilizado, ao final do episódio, deixando, em seguida, a direção, mas se mantendo como o principal comentarista esportivo da RBS (Ferraretto, 2007, p. 236).
A debilitação do jornalismo da Gaúcha, da qual apenas a equipe de esportes escapa relativamente ilesa, faz com que a programação penda, de novo, em 1981, para o popular. O futuro da emissora torna-se mais indefinido ainda quando, no ano de 1983, a Rádio Farroupilha, adquirida no ano anterior pela RBS, contrata Sergio Zambiasi, consolidando-se como uma emissora para o segmento popular, mercado pelo qual a Gaúcha transita naquele momento. Em paralelo, no centro do país, a Rádio Jornal do Brasil AM, do Rio de Janeiro, busca, desde 1980, firmar-se ao se focar na informação de cunho noticioso, perspectiva que, no entanto, será abandonada em 1986, devido às dificuldades do grupo da família Nascimento Britto do qual a emissora faz parte. No quadro das possibilidades de mercado, o caminho da Gaúcha volta a ser o do
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jornalismo para ocupar a posição da Guaíba, às voltas com os problemas financeiros vividos pelo grupo de Breno Caldas. Deve-se considerar, ainda, que a Rede Brasil Sul estava, na época, consolidando sua liderança na mídia impressa e repetindo, assim, o ocorrido na década anterior, quando fizera, com sua vinculação à Rede Globo, o mesmo no mercado de televisão.
Maurício Sirostky Sobrinho e Flávio Alcaraz Gomes (1983)
Em julho de 1983, Flávio Alcaraz Gomes assume a gerência-executiva da Gaúcha, reposicionando a rádio no segmento de jornalismo. Mais tarde, procurando recuperar o papel de Nelson Sirotsky na origem deste processo, a Rede Brasil Sul vai definir o novo formato da programação como talk and news, a usual denominação no mercado dos Estados Unidos para a combinação de noticiários, comentários, debates e entrevistas ao longo das 24 horas diárias de irradiação de uma emissora. Trata-se de vinculação sempre rechaçada por Flávio Alcaraz Gomes (20 ago. 1999), que considerava sua passagem pelo grupo da família Sirotsky como uma espécie de continuação lógica do trabalho realizado por ele na Guaíba.
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Assim, uma série de mudanças ocorre, já nos meses seguintes. Em outubro de 1983, estreia o Gaúcha Repórter, apresentado por José Antônio Daudt, de segunda a sexta-feira, inicialmente das 14 às 17h. Com base no programa, Flávio Alcaraz Gomes vai desenvolver uma das estratégias usuais nas décadas seguintes no jornalismo praticado pela emissora: a cobertura intensiva preferencialmente direto do palco de ação dos fatos, durante a qual a programação do dia a dia dá lugar à abordagem noticiosa do acontecimento em todas as suas facetas possíveis. Fiel à sua denominação, o Gaúcha Repórter deixa, não raro, o estúdio da rádio. Por exemplo, em um de seus primeiros programas, José Antônio Daudt vai ao Juizado de Pequenas Causas de Porto Alegre, então uma novidade (Ferraretto, 2007, p. 238). Tal processo tenta se intensificar ao longo de 1984, quando a emissora acompanha, para citar uma de suas coberturas, em 13 de abril, o comício das Diretas-Já, que reúne entre 100 mil e 200 mil pessoas no largo da Prefeitura de Porto Alegre (Ferraretto, 2007, p. 240). Esbarra, obviamente, no regime de exceção ainda vivido pelo país como no quase silêncio imposto pela decretação do estado de emergência durante a votação, em 25 de abril de 1984, da Emenda Dante de Oliveira, que pretendia a retomada das eleições diretas para a Presidência da República (Jornal da tarde, 26 abr. 1984, p. 11). Já com a ditadura militar em seus últimos momentos, a Gaúcha acompanha a reunião do Colégio Eleitoral, em Brasília, no dia 15 de janeiro de 1985, quando Tancredo Neves é escolhido indiretamente para presidir o país. De modo semelhante, a rádio cobre, em março e abril, os 38 dias em que o Brasil acompanha o quadro de saúde do presidente eleito, agravado após a cirurgia intestinal de urgência realizada às vésperas da posse. Da morte de Tancredo, em 21 de abril, até o enterro, três dias depois, a Gaúcha, falando de vários pontos do país, relata, então, as repercussões e as homenagens póstumas ao político mineiro.
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Zero Hora anuncia a estreia do programa Flávio Alcaraz Gomes Repórter (1985)
Em paralelo, objetivando fechar a programação de segunda a sexta-feira, Flávio Alcaraz Gomes, com as tardes parcialmente preenchidas pelo Gaúcha Repórter, volta sua atenção para os demais espaços não ocupados por conteúdos relacionados à cobertura esportiva. No dia 4 de fevereiro, da meia-noite às três da manhã, Jayme Copstein passa a apresentar o Gaúcha na Madrugada (Zero Hora, 2 fev. 1985, p. 25). No dia 25 de março, estreiam duas novas atrações: Flávio Alcaraz Gomes Repórter, das 7h30 às 8h e das 9h30 às 10h30, apresentado pelo próprio gerente-executivo da emissora, e Debates Rádio Gaúcha, das 10h30 às 11h30, comandado por Enio Melo e contando com a participação de Jussara Gauto, Paulo Sant’Ana e Pedro Américo Leal (Zero Hora, 24 mar. 1985, p. 58).
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Das fases anteriores, são mantidos os programas Sala de Redação, já então reduzido ao debate esportivo na faixa das 13 às 14h, e Show dos Esportes, base das irradiações noturnas quando da ausência de transmissões de jogos de futebol. Pela manhã, Jorge Alberto Mendes Ribeiro e o seu Atualidade haviam sobrevivido à guinada popularesca de 1981. Já o Gaúcha Hoje, das 6 às 8h, apresentado por Cláudio Monteiro, é mantido, mas ganha contornos mais jornalísticos com maior participação de repórteres e de comentaristas (Zero Hora, 26 mar. 1985, p. 10). A música fica restrita, assim, a poucos períodos ao longo da programação, em que, cada vez mais, repete-se o slogan criado por Flávio Alcaraz Gomes e a Símbolo Propaganda: “Gaúcha – A fonte da informação”. Tudo isto, é claro, acompanhado por uma intensa divulgação na RBS TV e, em especial, no jornal Zero Hora. (Ferraretto, 2007, p. 240-1).
É esta a contribuição de Flávio Alcaraz Gomes ao processo de reposicionamento da Gaúcha de julho de 1983 até pouco depois do falecimento de Maurício Sirotsky Sobrinho, em 24 de março de 1986, quando José Pedro Pacheco Sirotsky deixa a direção geral das rádios da Rede Brasil Sul, passando a ocupar uma das vice-presidências do grupo. Para o seu lugar, é escolhido Ricardo Ferro Gentilini, com Claiton Selistre assumindo a gerência executiva da Gaúcha e Flávio Alcaraz Gomes uma diretoria adjunta, que será extinta em março de 1987. Em termos efetivos, há uma perda de poder. Descontente, o profissional responsável por lançar as bases do sucesso da Gaúcha vai deixar a emissora no ano seguinte.
Considerações finais Embora Flávio Alcaraz Gomes não seja o único responsável pela estruturação das programações, a seu tempo inovadoras, em termos de jornalismo, da Guaíba e da Gaúcha, os dados
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existentes indicam também que sem ele a consolidação do formato música-esporte-notícia na primeira e do talk and news na segunda não teria ocorrido ou, pelo menos, demoraria bem mais a se concretizar. A atuação deste profissional ocorre dentro do contexto de desenvolvimento à época do rádio brasileiro, mas, com o jornalista e radialista utilizando sua bagagem cultural e sua experiência de vida para dar passos inovadores em cenários nos quais ou já se manifestava certo grau de incerteza a respeito do futuro do meio – caso do verificado ao longo dos anos 1960 – ou não havia se tomado ainda as medidas, em termos de gestão, necessárias à superação das hesitações reinantes em torno do jornalismo como segmento viável – como se constata em relação à primeira metade da década de 1980. Deste modo, na Guaíba, o ecletismo – inspirado em J. Antônio D’Ávila – associado às experiências de vida de uma estada de dois anos na Europa e ao tino publicitário embasado na realização de promoções comerciais anteriores ajuda a explicar as opções por um rádio que, sem negar o espetáculo, procura, em um primeiro momento, diferenciar-se do realizado então. Na sequência, destas mesmas fontes, Flávio Alcaraz Gomes tira a viabilização das coberturas internacionais que protagoniza ou dos programas que cria, aproximando, nestes últimos, cultura de jornalismo. Trata-se de um esforço, como observado, que se nutre, em grande medida, da sóbria abordagem da realidade presente nas páginas do Correio do Povo a conferir credibilidade ao empreendimento radiofônico da família Caldas Júnior e as iniciativas do diretor comercial da Guaíba. Mesmo prejudicada por divergências posteriores à morte de Maurício Sirotsky Sobrinho que o afastam da gestão do processo, a passagem de Flávio Alcaraz Gomes garante à Gaúcha algumas características presentes na programação da rádio três décadas após a saída deste profissional da então Rede Brasil Sul de Comunicações. A principal delas, sem dúvida, é a cobertura
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intensiva de um fato, quando a emissora, deixando de lado a grade habitual, passa a acompanhar apenas o desenrolar do mais pungente dos acontecimentos. Do ponto de vista de imagem da Gaúcha, é dele o empenho em desenvolver como marca a ideia da “fonte da informação”, presente ainda na forma como a emissora posiciona-se junto à audiência. Pode-se dizer, portanto, que Flávio Alcaraz Gomes, ao falecer em 2011, deixou, além de programas e coberturas significativas, um legado como um dos principais definidores do segmento de jornalismo no rádio comercial do Rio Grande do Sul. Dada a influência de emissoras como a Guaíba e a Gaúcha no cenário brasileiro, já referida em outras oportunidades (Ferraretto, 2000, p. 1404/ 172-6), aventa-se que este papel, de fato, extrapola as fronteiras do estado e ganha, mesmo, uma abrangência nacional.
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Referências
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A conquista da mulher por espaço no mercado de trabalho A trajetória da Relações Públicas Martha Geralda Alves D’Azevedo Karla M. Müller Camila C. Barths Diego P. da Maia
Este trabalho tem o objetivo de traçar um ensaio biobibliográfico, analisando a trajetória pessoal, profissional e acadêmica de Martha Geralda Alves D’Azevedo, primeira doutora em Comunicação do Rio Grande do Sul. Jornalista e Relações Públicas, esta última profissão chamou a atenção dessa estudiosa, deixando sua marca como uma precursora tanto no exercício da profissão quanto em suas pesquisas nas Ciências da Comunicação, o que a torna uma referência até hoje, principalmente nos estudos sobre a América Latina. Ingressar no mercado de trabalho não era comum para mulheres na década de 60 e 70, e menos ainda na área profissional de comunicação. Para compreender como ocorreu essa inserção, entrevistamos Martha D’Azevedo, que relatou quais foram suas motivações, desafios e conquistas em meio ao contexto da época, onde a sociedade e família controlavam as atividades das mulheres. A escolha por relatar a trajetória de Martha se justifica pelos avanços que proporcionou para a área da comunicação gaúcha, profissional e academicamente, e principalmente para as Relações
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Públicas. Apesar de todas as dificuldades, Martha tornou-se não só exemplo em sua família, mas referência nos estudos, na criação e na construção curricular do curso de Comunicação e Relações Públicas em três grandes universidades: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS), Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O capítulo está dividido em cinco partes, que refazem o caminho da protagonista, iniciando com os relatos antes de ingressar na universidade, sua inserção no mercado de trabalho e o desenvolvimento de atividades como Relações Públicas, a vida acadêmica como docente e, por fim, o legado deixado para seus sucessores. Consideramos que as informações reunidas neste texto, publicam o reconhecimento à Martha e a todas as mulheres que de alguma forma não desistiram de seus sonhos para transformar a realidade.
Quebrando as primeiras barreiras Martha Geralda Alves D’Azevedo nasceu em Porto Alegre, em 11 de fevereiro de 1929. Neste período, as mulheres não tinham direitos iguais aos homens e por isso precisavam lutar muito para que, aos poucos, houvesse reformas não só na constituição, mas que a sociedade também aceitasse essas mudanças. Neta de Protásio Alves, terceira filha entre sete irmãos, seus pais eram católicos praticantes e pertenciam a famílias tradicionais e conservadoras da comunidade porto-alegrense. Ainda jovem, Martha se destacou, participando da criação do Grêmio Estudantil do Colégio Bom Jesus Sévigné, escola tradicional de Porto Alegre, na qual estudou. A preparação das meninas era para que tivessem formação adequada, serem boas esposas, mães e donas de casa. E, como ela relata, era inadmissível uma filha mulher trabalhar, a não ser se dedicar aos afazeres domésticos. Os direitos igualitários para as mulheres foram surgindo lentamente em nossa constituição. Até algumas décadas atrás, não era
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permitido estudar ou trabalhar sem a permissão do marido, entre outras negativas vindas de nossa sociedade altamente patriarcal e machista. Em 1962, o Estatuto da Mulher Casada1, garantiu, entre alguns direitos, que a mulher não precisaria mais pedir autorização ao marido para poder trabalhar, receber herança e, no caso de separação, poderia solicitar a guarda dos filhos. Contudo, grande parte das restrições às mulheres permanecia no Código Civil, o que só foi mudar de fato na Constituição de 1988. Mesmo com a mudança nas leis, Miranda (2013) reforça que existe também o código social, onde o preconceito com a mulher ainda é grande e permanece até os dias atuais. Contudo, o maior mérito deste estatuto era banir a incapacidade feminina em suas escolhas como estudar e trabalhar: Assim foi consagrado princípio do livre exercício de profissão da mulher casada, permitindo a ela que ingressasse livremente no mercado de trabalho tornando-se ativamente produtiva, ampliando sua importância como mulher nas relações de decisão e no convívio familiar (Miranda, 2013, p. 14).
Contudo, mesmo tendo alguns direitos iguais – na teoria –, na prática a sociedade ainda demorou em aceitar essas mudanças, “essa foi liberada para o trabalho, mas não do autoritarismo dos homens” (Miranda, 2013, p. 14). Diante do contexto da época, Martha não desistiu de estudar e mesmo em meio a resistências da família (e sem eles terem ciência), ingressou no curso de Serviço Social na Pontifícia Universidade Católica – PUCRS. Após algum tempo, ela relata que o esposo ficou ao seu lado nesta decisão. Durante o curso, Martha já tinha seus sete filhos, crianças ainda, mas mesmo assim permaneceu firme no seu propósito. Martha conta um pouco do árduo processo de aceitação do marido, no início de sua vida acadêmica, como estudante: 1
Estatuto da Mulher Casada – Lei 6.121, de 27 de agosto de 1962.
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Tanto que eu fiz vestibular para letras porque a gente, desde pequena, ela [minha mãe] chamava professores. Tinha professor de francês – a gente começava a falar e já tinha professor de francês. Eu ia fazer letras e me inscrevi na PUC para fazer letras. Eu namorava o Marcello, ele pegou a inscrição e rasgou. Eu conheci o pessoal da PUC e fui fazer, então eu fiz um ano de Serviço Social (D’Azevedo, 2016).
A professora conta que sua mãe permitiu que ela estudasse desde que fosse um idioma, como o francês. O curso de Serviço Social foi realizado às escondidas da família, o que mais tarde tornaria Martha uma precursora, sendo a primeira e única entre suas irmãs a estudar e trabalhar. As mulheres aos poucos foram superando a limitação que a sociedade impunha a elas. Miranda (2013) descreve algumas das ações que eram permitidas na época, como a de trabalhos voluntários: Uma vez que o sistema jurídico não proporcionava direitos iguais ao dos homens, as mulheres aos poucos saiam de suas casas mesmo que para realizar trabalhos voluntários e com pouco ou nenhuma representatividade social, no entanto isso já era um começo (Miranda, 2013, p. 14).
Confirmando esta assertiva, Martha relata que seu primeiro trabalho foi realizado como professora de encadernação artística: dava aula e não recebia por isso, como era comum a outras mulheres. Casou-se aos 20 anos, com Marcello Casado D’Azevedo, e continuou com seu trabalho voluntário, até que certa vez foi remunerada por um de seus serviços, o que causou desconforto por parte de seu marido, ela conta: “a primeira vez que Marcello viu que eu recebi um salário, ele queria que eu fosse lá devolver e eu disse não, que não iria devolver. Eu trabalhei!”. O casal teve ao todo sete filhos, e ao lado do desejo de cuidar da família, existia em Martha também a vontade de voltar a
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estudar e a trabalhar. Mas para isso, foi necessário um acordo com seu marido: ambos teriam que estudar juntos e fazer o mesmo curso. Em 1966, ambos foram aprovados no curso de Jornalismo, quando este era vinculado à Faculdade de Filosofia da UFRGS. Os dois frequentavam a universidade juntos e “viraram matéria” do jornal Correio do Povo, logo após o ingresso:
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Saiu uma página inteira do Correio do Povo. Eu já conhecia todo mundo e de repente eu resolvi fazer vestibular na faculdade e me formar, então o Correio do Povo tirou essa fotografia e publicou uma página inteira fazendo uma matéria sobre o ingresso (D’Azevedo, 2016).
Marcello e Martha na época no Curso de Jornalismo. Fonte: Acervo pessoal de Martha D’Azevedo
Martha conta que seu marido, engenheiro de formação, já tinha algumas entradas na área da comunicação, pois escrevia
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para uma coluna no Diário de Notícia, além de ser professor na UFRGS no curso de Arquitetura, ministrando aulas de Cibernética. Além disso, os dois eram membros da União Cristã Brasileira de Comunicação – UCBC, o que aproximava o casal da área, pois participavam de congressos e fizeram parte da diretoria da entidade. Com sua formação na universidade em andamento, Martha relata que tinha uma vida atribulada, pois cuidava da família, administrava a casa e estudava. E foi nesta época, que surgiu uma segunda paixão, além da família e do Jornalismo: a atividade de Relações Públicas.
A descoberta da comunicação para as organizações
O curso de Jornalismo, na época, era de três anos, e na faculdade Martha percebeu que o que gostava mesmo era da atividade de Relações Públicas, que ainda era incipiente no Brasil. Infelizmente não existia este curso em nível superior – o curso seria criado somente alguns anos mais tarde. Seu primeiro grande contato foi num congresso, no Rio de Janeiro, o qual relata: Eu estava fazendo o curso de Jornalismo e aconteceu o Congresso Mundial de Relações Públicas. O presidente nacional era o Ney Peixoto do Valle e eu escrevi uma carta para ele dizendo que eu estudava Jornalismo, mas queria ser Relações Públicas e, por isso, queria assistir o Congresso. Ele me mandou um telegrama: venha que eu dou um jeito. E eu assisti o Congresso. Depois disso eu me transformei em Relações Públicas de corpo e alma (D’Azevedo, 2016).
O congresso que aconteceu em Petrópolis/RJ encantou os estudantes pelos depoimentos dos profissionais da área. Martha relata que conheceu os maiores Relações Públicas do mundo, muitos deles não tinham a formação, mas exerciam a atividade:
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O Presidente dos EUA era o Kennedy e o Assessor dele era um Padre Jesuíta. Era um padre brilhante. O Assessor de Relações Públicas do Governo de Israel era um advogado que também deu um discurso belíssimo (D’Azevedo, 2016).
Os primeiros congressos na área eram de cunho profissional, pois o estudo e a pesquisa em Relações Públicas, em nível nacional, estavam no seu início. Os convidados e palestrantes eram profissionais que atuavam na comunicação de grandes empresas. O primeiro congresso universitário de Relações Públicas ocorreu em 1973, na Universidade Católica de Recife. Na época, a universidade de Recife não tinha curso de Jornalismo, nem de Relações Públicas. Com o curso de Jornalismo já concluído, Martha e o esposo ajudaram a criar o curso novo: E nos convidaram. Eu e o Marcello iríamos nas férias de julho para dar curso aos professores para implantarem o curso lá. Então era muito divertido porque a gente dava as aulas de dia e de noite íamos à praia (D’Azevedo, 2016).
Depois de formar-se em Jornalismo, ela decidiu que iria trabalhar. Seu sogro foi até sua casa para perguntar quanto ela queria de “mesada” para não fazer isso. Sua resposta foi firme: Disse que não tinha dinheiro que me comprasse, eu iria trabalhar para qualquer empresa que me aceitasse. Mas ele perguntou quanto eu queria de mesada: “Parece que teu marido não pode te sustentar” [disse o sogro]. Eu disse: “pode sustentar, mas eu quero me sustentar”. Foi bom porque quando o meu marido adoeceu, eu já trabalhava, eu já estava na faculdade, eu já tinha quebrado barreiras (D’Azevedo, 2016).
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Martha fala sobre Relações Públicas com muita paixão em seus depoimentos. Seu orgulho por vencer as diversidades na família e em uma sociedade machista e poder ter enfrentado o preconceito e aconselhado o mesmo para suas irmãs, mesmo que não tenha tido sucesso nesta última questão. Uma das irmãs mais velha era formada em Direito, mas nunca exerceu a profissão. Martha conta: Ela nunca trabalhou (...) o marido era advogado, então ela assessorava ele, mas em casa porque ela não trabalhava fora. Eu dizia: ‘vai fazer alguma coisa por ti!’ Tinha feito Michigan. ‘Vai ser tradutora, vai ser outra coisa’ (D’Azevedo, 2016).
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Martha, diferente das outras mulheres da família, não parou após se formar. Ingressou no mercado de trabalho para exercer a atividade que mais gostava: Relações Públicas.
1º Congresso Brasileiro de Relações Públicas, em Petrópolis (RJ), 1972. Fonte: Acervo pessoal de Martha D’Azevedo
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Abrindo caminhos na prática Após a formatura, Martha iniciou sua atuação profissional na área de Relações Públicas, que demandava relacionamento tanto com a direção da empresa, quanto com os funcionários. Ela relembra da sua primeira experiência profissional no Banco da Província, banco da família do marido. Seu sogro tinha sido diretor e o primo dele, na época, era o presidente do banco: Um dos diretores (...) me convidou pra fazer a revista dos funcionários do banco. Mas aí eu tive que quebrar uns tabus lá dentro porque os diretores tinham um elevador só para eles. O tio Vítor, que era presidente, chamou um contínuo, o Vicente, e disse: acompanha esta senhora, logo que ela entrar aqui no banco tu irás acompanhá-la. E eu disse: Vicente, quanto tu queres para me esquecer? Me esquece! (sic) E eu não conto nada. Ele ficou muito meu amigo. Aí eu fiquei amiga dos funcionários, ia às reuniões deles, nas festas deles e queria fazer mais do que a revista. A revista foi para poder entrar e depois eu a transformei num jornal (D’Azevedo, 2016).
Martha era a única mulher entre os diretores e a presidência do banco. Aos poucos foi ganhando confiança e pode desenvolver mais que um jornal ou revista para a empresa, criou o setor de Relações Públicas: Eu fiquei junto de um desses diretores, mas eu fazia a revista. Ocorreu um congresso em Caracas; pedi uma licença para ir ao congresso. E ele disse: “Congresso de quê a senhora quer ir?” E eu respondi: “Congresso de Relações Públicas, eu sou Relações Públicas”. Aí ele disse: “Tudo bem, vá ao congresso”. Quando eu cheguei do Congresso e fui falar com ele, ele disse: “a senhora organize o Departamento de Relações Públicas e me diga o que precisa para isso”. Porque quando eu disse para ele, ele foi pesquisar o que era e me mandou organizar o departamento (D’Azevedo, 2016).
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No banco Martha não tinha tanto acesso aos assuntos sigilosos da instituição, mas relata algumas recordações de como fazia para se informar de tudo o que acontecia: Lá no banco, eu me dava com os coronéis do Montepio [da Família Militar]. Tem umas coisas muito engraçadas. Claro que eles faziam tudo sigiloso. Mas o banco ficava ali na esquina e do lado ficava o prédio do Montepio da Família Militar e eles mandaram abrir uma passagem por dentro por onde a diretoria tinha acesso, então as reuniões eram feitas no Montepio. As reuniões eram fechadíssimas. Só que quem servia o cafezinho para eles era o Vicente. Então, quando acabava a reunião, ele vinha me contar tudo o que falavam. Eu sabia tudo o que tinha acontecido. E claro que o banco tinha problemas, mas os diretores, cada um deles tinha um assessor. E eu não era assessora de ninguém, eu era do departamento de Relações Públicas. Mas eu via aquelas coisas acontecendo e dizia para os assessores: vocês têm que avisar, vocês têm que comunicar. E eles diziam: “Ah, não! É só para criar caso. Não vou me incomodar”. Eu insistia: Vocês estão vendo as coisas, vocês têm que fazer isso... E eles: “Deixa assim”. Um dia eu me irritei, tinha um dos coronéis que era muito meu amigo, o Coronel Tupinambá. Eu resolvi escrever; peguei um bloco de papel e escrevi tudo, tudo que estava acontecendo. Escrevi por fora: confidencial e dei para o Coronel Tupinambá e falei: olha, eu estou lhe passando isso aqui, o senhor me faça o favor de ler e depois eu posso ir embora, aqui não tem mais..., mas eu acho importante que o senhor saiba o que está acontecendo. No outro dia eu cheguei no banco e o Vicente disse: “estão te chamando na diretoria, a diretoria está toda reunida lá no quarto andar”. Entrei no banco, na sala da diretoria e eles estavam todos sentados ao redor da mesa. E aí o Coronel Tupinambá disse que me chamou porque eu tinha feito uma comunicação, e aí ficaram todos em silêncio. O diretor mais velho se levantou, o Senhor Reis, e disse: “tem toda a razão. Nós todos sabemos disso, mas ninguém
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estava querendo assumir”. Aí me deu um alívio, digo, enfrentei todo o banco numa solenidade e ele, o Senhor Reis, levantou e disse: temos que ter coragem para enfrentar. Tanto que o Daniel Monteiro, que era do Montepio também (era poderosíssimo) veio me cumprimentar por eu ter dito tudo o que nenhum deles queria assumir, foi importante eu ter dito e criado caso para eles assumirem (D’Azevedo, 2016).
Após a criação do Departamento de Relações Públicas do Banco da Província, o presidente das tintas Renner a chamou para uma entrevista. Assim, terminada a criação do Departamento de Relações Públicas de um banco, Martha foi trabalhar como Assessora da Presidência das Organizações Renner, composta na época por 16 empresas, todas com contratos internacionais. Na ocasião, ela viveu experiências junto à alta administração: Tinha a Porcelanas Renner com contrato com um grupo alemão; Feltros Renner era com uma empresa dinamarquesa. Mas para chegar lá, a gente tinha que ter um nível alto, participava das reuniões da diretoria, então para eu estar lá dentro e participar... para mim RP não é chacrinha de festinha, só fazer evento... tem que ser muito bem preparada porque senão, não chega lá (D’Azevedo, 2016).
Martha relata os diversos trabalhos de assessoria de imprensa e media training que realizou para o presidente do Grupo Renner, como ter uma boa foto para possível divulgação e como ele deveria aparecer mais como porta-voz de sua empresa, seu modo de falar etc. Ela relata algumas situações pelo qual passou quando atuou como estrategista de comunicação, assessorando a direção da empresa:
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Eu conversava muito com o presidente e quando eu cheguei lá não tinha fotografia dele, uma foto boa para divulgação. Chamei o jornalista que era fotógrafo também e disse: “ah não, o senhor preside o maior grupo empresarial do Rio Grande do Sul, o senhor tem que ter uma boa foto”. E disse para ele: “quero fotos, mas não precisa ser foto de frente, pode tirar foto a vontade”. Prometi que ele iria escolher as fotos que poderiam ser liberadas. E aí ele tirou umas fotografias lindas. O Renner ficou encantado com elas e liberou as que podiam ser publicadas. Eu insistia muito sobre ele não gostar de aparecer, prejudicava a imagem da empresa porque era o presidente das organizações e tinha outro diretor que era que aparecia muito e isso não era bom. Nessa época comemorou-se o centenário da colonização alemã (...). Tinha um estande grande, acho que o estande maior era da Renner e ocorreu um jantar no Palácio do Governador, mas o convite não foi endereçado para o Senhor Renner, foi para o outro diretor, e aí ele caiu em si, entendeu e viu porque eu insistia na participação dele na divulgação da organização (D’Azevedo, 2016).
Além de trabalhar, ela iniciou o mestrado nesta época e cita as reações do presidente da empresa: O Senhor Renner falou assim: “por que a senhora quer fazer mestrado?” E eu disse: “vou fazer mestrado. Senhor Renner, eu não vou ficar aqui. Eu vim para ter uma experiência, a minha vida é na universidade. Estou aqui de passagem”. Por isso que eu acho que RP tem que ter visão... porque quando fui trabalhar no banco, não conhecia nada do sistema financeiro, a não ser o dia a dia... aí me dei conta que precisava entrar de cabeça e aprender, então comecei a fazer vários cursos (D’Azevedo, 2016).
Martha relata que sempre foi pró-ativa em querer aprender sobre a natureza das empresas onde trabalhou, pois mesmo sendo de outra área, precisava assessorar a diretoria nas questões
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específicas da empresa: “Então eu acho que isso é de RP, a gente tem que meter a cara e fazer tudo o que der, para estar a par das questões, poder opinar e assessorar” (D’Azevedo, 2016). Na sequência, atuando como profissional de comunicação, Martha trabalhou na Assessoria de Comunicação da UFRGS, durante a gestão do ex-reitor Homero Jobim: Ele era muito amigo do meu pai. Eu sabia dos problemas da faculdade e eu ia lá e reclamava, insistindo que queria que a universidade, que já tinha o jornal, avançasse na comunicação. Considerava um absurdo que os alunos do Curso de Comunicação não tivessem acesso à produção do jornal. O Dr. Romero até tentou, mas o Pró-reitor fechava a questão, achava que a faculdade era subversiva, que iam pegar o jornal para fazer subversão e eu não conseguia mudar isso de jeito nenhum. Nós já tínhamos criado o jornal lá na faculdade, o 3X4. Eu fui lá conversar com o Dr. Romero e eu disse: nós vamos fazer um jornal lá na faculdade e ele disse: tu sabes dos problemas e eu disse: sei, mas vamos fazer. Então para me proteger, ele pediu que quando tivéssemos todas as matérias do jornal, eu levasse na Reitoria. Então eu levava num envelope para eles colocarem “de acordo” e assinava para respaldar e não ter nenhum problema. E era a forma de nos proteger (D’Azevedo, 2016).
Carreira acadêmica: a formação do curso de Relações Públicas
Martha iniciou sua carreira como professora universitária na PUCRS, em 1971, a convite do professor Roberto Porto Simões. Naquela época começou a escrever o livro Relações Públicas: teoria e processo (D’Azevedo, 1971). Existia pouca bibliografia sobre Relações Públicas, por isso, foi uma das pioneiras como escritora da área.
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Logo depois saiu para dar aulas na Unisinos e em 1973, após concurso público, entrou no corpo docente da UFRGS, sendo professora das duas universidades por um período, mas logo em seguida, precisou abandonar a Unisinos para fazer seu curso de doutorado. Anos mais tarde, depois de aposentada da UFRGS, retornou a Unisinos em 1997 durante um curto período, mas avaliou que o deslocamento até São Leopoldo era difícil, pois teria que ministrar também aulas à noite. Assim, encerrou definitivamente seu percurso de docente parando de dar aulas. No início da carreira como professora, desenvolveu projetos e assumiu cargos importantes no período em que esteve vinculada à Unisinos: Eu morava em Porto Alegre, na Rua Duque de Caxias, esquina com a Espírito Santo, ao lado da Catedral. Então eu ia, naquela época, à Unisinos que era bem menor, no Campus Central, em São Leopoldo. Eles tinham um ônibus que saia da frente do Theatro São Pedro. O ônibus tinha um letreiro: “Gaiola dos Sapos” e levava os professores para a Universidade, mas na volta a gente tinha que voltar por conta própria. Ônibus, lotação... mas aí nesse ônibus da Unisinos, eu conheci o Pró-reitor de Planejamento da UFRGS, professor Marco Aurélio. Então a gente criou uma amizade (D’Azevedo, 2016).
Questionada como conseguia dar aulas em duas universidades, ela relata que: “Eu tinha atividades na Unisinos duas vezes por semana e fui Chefe de Departamento. Só não fiquei mais porque não aguentei a estrada” (D’Azevedo, 2016). Sobre como foi a experiência de fazer o livro sobre Relações Públicas, ela conta: Fui terminando textos e depois comecei a reorganizá-los como livro. Tinha escrito algumas coisas sobre RP. Eu me lembro de algo que me impressionou muito, uma propaganda que a AMPM fez na copa
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do mundo com o Cristo Redentor. Muito bonita! Lembro da folha, com uma página inteira, dizendo que alguém torcia em silêncio. Eu achei aquela frase tão sugestiva. Considerei que era muito adaptada às Relações Públicas, porque a maioria das vezes a gente está torcendo em silêncio. Trabalhando e torcendo em silêncio (D’Azevedo, 2016).
Em suas aulas Martha apresentava sua obra Relações Públicas, teoria e processo e outras de alguns colegas. Pode criar diversas disciplinas específicas para o curso de Relações Públicas (que na época era junto com o curso de Publicidade e Propaganda) e que estava sendo desenvolvido aos poucos: Quando eu comecei a lecionar na UFRGS, iniciei dando aula de Introdução às Relações Públicas. Tinha esta disciplina, Introdução à Publicidade e Introdução ao Jornalismo. Só tinham essas três. E aí eu comecei a forçar para introduzir outras disciplinas de Relações Públicas, e foi se ampliando o currículo (D’Azevedo, 2016).
Aos poucos, Martha foi auxiliando no incremento de disciplinas de Relações Públicas, que inicialmente era junto com os demais cursos de Comunicação. Desta maneira, o curso começou a ser formado. Seu livro foi utilizado pelas entidades da área e outras universidades, além de ser debatido em congressos. Martha viajou a diversos países e estados brasileiros para participar de eventos na área de Relações Públicas, entre eles destaca o primeiro Congresso Centro-Sul de Relações Públicas, que foi organizado pelo professor Roberto Porto Simões, da PUCRS, em Porto Alegre, em 1972; o de Caracas; o de Quitandinha – primeiro Congresso Brasileiro Universitário de Relações Púbicas –; e um congresso em Recife, para abrir os cursos de Jornalismo e Relações Públicas. Nesta época, seu marido trabalhava com Cibernética e foi junto para ministrar alguns cursos.
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Eram as primeiras ações para discutir a atividade profissional e o desenvolvimento da área no país. Pode-se dizer que as iniciativas eram pioneiras, abrindo mais espaço para a profissão em nível nacional com o apoio e respaldo de professores de instituições de ensino superior, eventos promovidos por entidades de classe como a Associação Brasileira de Relações Públicas.
1º Congresso Centro-Sul de Relações Públicas. Fonte: Acervo pessoal de Martha D’Azevedo
Esses congressos, segundo Martha, eram destinados a profissionais de Relações Públicas, com foco no mercado profissional e não na pesquisa científica. Nestas ocasiões conheceu ícones da profissão, como Vera Giangrande, a primeira Ombudsman2 do Grupo Pão de Açúcar, uma referência na área. No Brasil, nem todas as organizações tinham o conhecimento sobre o papel dos profissionais de Relações Públicas. Esses conceitos foram surgindo aos poucos e segundo D’Azevedo (1971), recortes de diversos anúncios de emprego das décadas 2
Palavra sueca que significa representante do cidadão. Na imprensa, o termo é utilizado para o representante dos leitores dentro de um jornal. Os ombudsmen tratam da transparência e harmonização das informações, prevenindo, gerenciando e solucionando conflitos nas relações organizações e seus públicos (TERRA, 2013).
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de 70 destinavam-se – erroneamente – para Relações Públicas. Muitos solicitavam por moças “de fino trato”, boa aparência, sem exigência de ensino superior, para cargos semelhantes ao de secretária, vendedoras ou até mesmo acompanhantes de executivos. Com o tempo, o Conselho da profissão – Conselho Regional de Profissionais de Relações Públicas (CONRERP) – passou a fiscalizar, intervindo junto às empresas responsáveis por esses anúncios, solucionando aos poucos o problema.
Congresso Brasileiro Universitário de Relações Públicas. Fonte: Acervo pessoal de Martha D’Azevedo
Muitos são os autores que ajudaram a construir definições para as Relações Públicas e D’Azevedo foi uma delas. Para a professora, Relações Públicas é o gestor que deve entender todos os processos da organização, um profissional que deve estar qualificado para entender as políticas internas e externas e estar em diálogo e presente em todo o organograma empresarial. Em sintonia com as palavras de Martha, podemos destacar o que Grunig (2009) constata ao longo de suas pesquisas, há mais de quarenta anos, que as Relações Públicas estão se tornando uma profissão embasada em conhecimentos científicos: “As Relações Públicas
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estão assumindo uma função gerencial em lugar de se constituírem apenas numa função técnica de comunicação” (Grunig, 2009, p. 17). O autor ainda destaca a grande participação das mulheres na profissão, além da crescente diversidade étnica e racial. Para ele, quase toda a prática de Relações Públicas “é global e não está confinada às fronteiras de um só país” (Grunig, 2009, p. 18).
Martha D’Azevedo e Vera Giangrande. Fonte: Acervo pessoal de Martha D’Azevedo
As Relações Públicas não se restringem ao atendimento a clientes. São administradoras/gerenciadoras das políticas de comunicação corporativas como um todo, devendo se preocupar com mais esse público da organização. O profissional de Relações Públicas exerce também a atividade de auditoria social, ou seja, avaliando as reações da Opinião Pública e traçando as estratégias de comunicação. As Relações Públicas articulam todo o processo comunicacional das organizações. Para Kunsch (1997), as Relações Públicas são o verdadeiro link entre a empresa e seus públicos, fazendo com que sua atuação dependa da identidade corporativa e institucional da empresa.
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Martha não chegou a trabalhar na mídia convencional, apenas colaborava em editoriais ligados à igreja católica, escrevendo em colunas semanais, para a qual permanece escrevendo até hoje. Chegando perto de sua aposentadoria, Martha pensou em continuar só na pós-graduação. Porém, para permanecer teria que dar aulas na graduação também, o que já era desgastante para ela. Então continuou sua atuação de forma voluntária na Associação Riograndense de Imprensa (ARI), desenvolvendo um projeto de comunicação e liberdade de imprensa com a universidade, por meio do Instituto Alberto André (IAA), tendo uma visão abrangente de comunicação para a América Latina: Aquele projeto foi uma beleza. Até hoje não sabiam de onde a gente tirava dinheiro. Eu fazia os projetos, conseguia aprovação e recebíamos recursos de algumas organizações como a AES-SUL, e contava com o apoio da diretoria do Instituto e da ARI (D’Azevedo, 2016).
Martha recorda que o projeto recebeu patrocínios e com isso conseguiu organizar congressos e dar andamento a projetos de pesquisa. Por meio dessa iniciativa, pesquisadoras como Maria Helena Martins e Karla Maria Müller deram continuidade a projetos criados naquela época, para desenvolverem suas investigações nas fronteiras do Rio Grande do Sul com os países vizinhos, considerando a mídia e as relações com a população e instituições, especialmente as uruguaias. Por muito tempo, Martha participou de ações e eventos realizados a partir desses projetos. Questionada sobre sua atuação na ARI, Martha cita que conhecia os dirigentes através de seu marido que sempre foi muito atuante nas entidades. Ela destaca que ocupou o cargo de diretora e conselheira por muitos anos, colaborando com a Associação. Em termos de participação em entidades de classe, como Relações Públicas também ocupou lugar de destaque e liderança à frente do CONRERP/ 4ª Região.
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Martha também foi vice-presidente da Associação dos Exalunos da UFRGS, mas relata que nunca conseguiu desenvolver as ações comunicacionais e de relacionamento nesta entidade como gostaria. Assim como na UFRGS, não houve abertura para manter contato e promover eventos com os ex-alunos, que na sua maioria estão bem colocados no mercado de trabalho: Eu disse que queria fazer na universidade o que tem nos livros de RP, que os americanos fazem muito, a universidade chama os seus ex-alunos que são empresários para dar depoimentos e sugestões, mas não consegui. Eu disse: olha, mas eu visitei Oxford e a universidade tem projetos como este, por isso, depois da Rainha da Inglaterra, quem tem mais recursos é a universidade. Todo ex-aluno contribui com a universidade. Ela tem as paredes todas com mármore branco com o nome dos ex-alunos. Isso me chamava a atenção porque eu tenho uma filha que mora em Brasília e no tempo em que fui presidente do Conselho [CONREPR 4ª. Região] cheguei em um dos Ministérios e ouvi uma voz: Oi, professora! Verifiquei que tinha ex-alunos da UFRGS nos Ministérios em Brasília e a gente não tem o menor contato com eles, o que seria muito fácil fazer. Mas infelizmente, creio que a UFRGS não acredita nisso... nessa força que podem dar à Universidade por terem passado por ela (D’Azevedo, 2016).
Martha sempre teve este espírito de liderança, por isso continuou a exercer suas atividades, nem que fosse para a comunidade onde vivia. Alguns de seus filhos seguiram os passos da mãe, na docência, na liderança.
O legado que permanece Apesar de estar aposentada, Martha continua atuando na comunicação de outras formas. Ela acompanhou os canais de comunicação na internet e tem desde 2014 um blog – Política na América Latina, onde publica suas atividades, viagens e opiniões,
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principalmente sobre os acontecimentos políticos na América Latina. Uma das últimas viagens internacionais de Martha foi para Colômbia, destas incursões Martha tira inspiração para abastecer os mais recentes conteúdos de seu blog3, como disse no momento da entrevista: No blog agora estou centrada na Colômbia. Quando tem algumas coisas que me chamam atenção, eu... claro que eu já sabia a história anterior das FARC... mas agora, quando estava na Colômbia eu assisti a CNN na televisão do quarto do hotel. Creio que umas três vezes a CNN mostrou um filme sobre as FARC. Mas um filme lindo! As FARC com tendas muito bonitas, eles todos muito bem paramentados e eu sabia que não era assim. Eu sei que eles moram na selva em situações críticas. E eu disse: por que os americanos filmaram isso? Das FARC como se fosse assim, o suprassumo. E agora com essa coisa aí, porque o presidente anterior, o Ouribe, faz campanha contra a paz, é ligado com os americanos! (D’Azevedo, 2016).
As experiências e vivências de Martha nos trazem ensinamentos, que mesmo que a realidade hoje seja outra, muitos fatos da área de comunicação são ainda atuais. Embora alguns profissionais tenham quebrado barreiras e contribuído para o avanço das Ciências da Comunicação, podemos nos espelhar para continuar avançando na forma de fazer comunicação. Além de ter enfrentado as dificuldades na atuação como profissional no mercado de trabalho, Martha também merece destaque por ter buscado aprofundar sua formação acadêmica, realizando doutorado na Universidade de São Paulo (USP), já que na época não existia esta opção em comunicação no Rio Grande do Sul. Dirigir-se semanalmente àquela cidade exigiu muita dedicação e força de vontade. Desta forma, a professora 3
http://politicanaamericalatina.blogspot.com.br/
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abriu mais uma porta para valorização da Comunicação como Ciência a ser respeitada e estimulou tantas outras colegas a fazerem o mesmo. Com suas pesquisas, dedicadas a compreender o que é veiculado pela mídia sobre o que ocorre na América Latina – a forma de abordagem, os métodos e técnicas de operação adotados pelos profissionais das empresas midiáticas – D’Azevedo contribuiu para ampliar os horizontes sobre os estudos na área, destacando a importância das relações do Brasil com seus vizinhos latino-americanos e, em especial, o que isto representa nas trocas estabelecidas entre governos, populações e instituições destes países. Por meio de profissionais como Martha, engajada e atuante, a área da Comunicação e das Relações Públicas teve muitos avanços no Rio Grande do Sul e Brasil. As memórias desta brilhante profissional, demonstram que o caminho foi árduo, mas muitas conquistas vieram dessas lutas travadas em uma sociedade machista e repressora.
Profª. Martha e Profª. Karla Müller (Foto de Diego da Maia)
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A vontade em estudar e investigar levou Martha a escrever um pequeno livro sobre sua infância, A Chácara da Cascata e a Casa da Rua Duque (D’Azevedo, 1998) –, logo após sua aposentadoria na Universidade. Mais adiante, em parceria com uma sobrinha, dedicou-se a contar a história de seu avô, Protásio Alves e o seu tempo, 1859-1933 (Campos; D’Azevedo, 2006).
Considerações finais
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Enfrentar as dificuldades de ser mulher, esposa, mãe, fazer parte de família tradicional de Porto Alegre, não viver no centro do país, cursar uma universidade – especialmente um curso que não era adequado para uma senhora, na época –, todos estes elementos fazem da Professora Martha D’Azevedo uma referência, exemplo a ser seguido. Em nenhum momento percebe-se cansaço ou tom de reclamação por tudo que precisou enfrentar para chegar aonde chegou.
Martha D’Azevedo (Foto de Diego da Maia)
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Martha é a prova de que é possível – mas não fácil – desempenhar importantes papéis na vida privada e ainda conquistar lugar de destaque no campo profissional. Mais que isto, ela serve de estímulo aos jovens que precisam enfrentar obstáculos para alcançar objetivos pessoais que tragam efeitos positivos para a sociedade e para as instituições. Graças a sua dedicação, novos espaços foram abertos e ocupados por profissionais de comunicação nas organizações e também o reconhecimento da capacidade das mulheres em realizar tarefas que ainda nos dias de hoje são reservadas a homens. Outra importante lição deixada por esta mulher é que devemos estar sempre dispostos a abrir novas possibilidades de discussão e estarmos atentos às inovações tecnológicas para podermos acompanhar os acontecimentos, opinar e avaliar o papel do comunicador dentro da sociedade.
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Referências
CAMPOS, Maria do Carmo; D’Azevedo, Martha G. Alves. Protásio Alves e o seu tempo, 1859-1933. Porto Alegre: Já Editores, 2006. D’AZEVEDO, Martha Alves. Entrevista em 13 de outubro de 2016. Porto Alegre4. D’AZEVEDO, Martha Alves. A Chácara da Cascata e a Casa da Rua Duque. Porto Alegre: Mapa Múndi, 1998. D’AZEVEDO, Martha Alves. Relações Públicas: teoria e processo. Porto Alegre: Sulina, 1971. DIAS, Maria Berenice. A mulher no código civil. 2010. Disponível em: http://www.mariaberenice.com.br/uploads/18_-_a_mulher_no_c%F3digo_ civil.pdf. Último acesso em: 25 de março de 2017. GRUNIG, James E. Relações Públicas: teoria, contexto e relacionamentos. São Caetano do Sul, SP: Difusão Editora, 2009. KUNSCH, Margarida M. K. Relações Públicas e Modernidade: novos paradigmas da Comunicação organizacional. São Paulo: Summus, 1997. MIRANDA, Maria da Graça Gonçalves Paz. O Estatuto da Mulher Casada de 1962. Porto Alegre: UFRGS, 2013. Disponível em: http://www.lume. ufrgs.br/handle/10183/90299. Último acesso em: 25 de março de 2017. TERRA, Carolina Frazon. O ombudsman como uma das atribuições de relações públicas. Revista Contexto. Disponível em: http://www.comtexto. com.br/2convicomrpcomombudsmanCarolinaTerra.htm Último acesso em: 20/03/2016.
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Colaborou na decupagem da gravação a bolsista de Iniciação Científica e graduada de Relações Públicas, Ariadne Dias Oliveira.
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Antônio Mafuz Um sobrenome para a publicidade gaúcha e brasileira André Iribure Rodrigues Mariângela MachadoToaldo
Para falar sobre os precursores da publicidade gaúcha é preciso resgatar sua história com o intuito de visualizar nela personalidades que ajudaram a estruturar a atividade profissional e a desenvolver o mercado. O olhar para o passado, logo nos traz à mente um dos maiores e mais significativos ícones da publicidade gaúcha – a agência intitulada MPM Propaganda – a qual obteve a mesma dimensão nacionalmente. Ela nos remete a seus fundadores, a quem se atribuem os méritos que, reconhecidamente, a empresa obteve ao longo de seus anos de existência. A partir da aspiração de Antônio Mafuz de criar uma agência de publicidade e do fato de Luiz Macedo e Petrônio Corrêa terem aceito o desafio, estes expoentes da publicidade nacional construíram juntos a agência que levava no nome as suas próprias iniciais e que foi um marco na história gaúcha e brasileira. Com a expansão, os sócios dividiram-se na gestão da MPM, tendo cada um assumido uma de suas unidades, ainda que a agência continuasse em uma única estrutura: Luiz Macedo foi para o Rio de Janeiro; Petrônio Correa, para São Paulo; e Antônio Mafuz continuou em Porto Alegre. Tratam-se de quatro histórias interessantíssimas – a da MPM e de cada um de seus fundadores. Optamos por dedicar esse capítulo a Antônio Mafuz por ter sido o sócio que geriu a
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parte gaúcha da agência, tendo participação singular na empresa como um todo. A intenção do capítulo é apresentar quem foi Antônio Mafuz e sua importância no desenvolvimento da atividade publicitária, do mercado profissional gaúcho e da agência MPM. As peculiaridades da trajetória de Mafuz permitem identificar-se como a atividade publicitária se delineou a partir da segunda metade do século XX, como este personagem se destaca e torna-se expoente a merecer a produção deste texto. Embora a trajetória de Mafuz preceda o surgimento da MPM, destaca-se a criação da agência e de sua projeção nacional como momento relevante da presença deste personagem e de sua contribuição na publicidade brasileira. O limite desta história demarca-se no ano em que a MPM é comprada pela Lintas: Worldwide1. Através deste recorte na história procura-se, também, ambientar o contexto da trajetória de Mafuz que precede a MPM, em 1957, perpassado pelas diversas alterações mercadológicas detectadas, assim como pelas principais tendências apresentadas por este publicitário que se criou e desenvolveu nas práticas de um mercado local e depois nacional. O resgate da história de Mafuz partiu de pesquisas bibliográfica e documental.A viabilidade desse estudo decorre da posse de um acervo constituído pelo material2 produzido pela MPM Propaganda São Paulo S/A, em seus últimos trinta anos, que foi doado por um dos ex-sócios fundadores da agência, Petrônio Corrêa, para a Coordenação do Núcleo de Pesquisa em Mídia/ 1
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Ao ser comprada pela Lintas em 1991, troca de nome de MPM para MPM: Lintas, extinguindo-se a sigla definitivamente quando a Lintas foi comprada pela AmiratiPuris em 1996, passando a denominar-se AmiratiPurisLintas. Contudo, a forma administrativa e o capital seriam da multinacional Lintas, desde a negociação em 1991 (LINTAS compra MPM e DPZ passa a ser maior agência de capital brasileiro. Revista About. Ano IV, n. 176, nov./1991, p. 01-03). Faz parte deste conteúdo os seguintes itens: filmes em 32 mm com comerciais produzidos para televisão pela MPM; peças gráficas produzidas pela agência; material promocional em alusão a datas comemorativas como livros e discos em vinil; comerciais estrangeiros, de diversos produtos, em fitas formato U-matic, utilizados como material de arquivo da empresa.
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FABICO-UFRGS3. No acervo doado, está incluído todo o material coletado para a elaboração de um livro sobre os trinta anos da agência, que não chegou a ser publicado4. Deve-se destacar que, além do acesso ao material doado, a reconstituição histórica da trajetória de Mafuz demandou levantamento de dados, incluindo pesquisas em periódicos especializados como as revistas About, Advertising, Marketing, Meio & Mensagem e Propaganda. Foram realizadas, ainda, várias entrevistas, principalmente, com os sócios-fundadores Antônio Mafuz, Petrônio Corrêa, e Luiz Macedo, tendo sido este último entrevistado no Rio de Janeiro. Este material foi utilizado no livro MPM Propaganda: a agência dos anos de ouro da publicidade, também servindo de fonte para este trabalho. Por fim, neste ano de 2017, foram coletados depoimentos concedidos por três publicitários que são referência no mercado publicitário gaúcho e que atuaram na MPM Propaganda na origem de suas carreiras, tendo, assim, a oportunidade de conviverem com Mafuz, como chefe e como amigo, sendo eles: Alfredo Fedrizzi, Marcos Paim e João Satt.
Antônio Mafuz. Fonte: imagem do acervo da Fabico/UFRGS 3 4
Coordenado pela pesquisadora Profª. Drª. Nilda Jacks. Esse livro ficou conhecido entre as pessoas que estavam ligadas ao projeto de elaboração como Livro Verde.
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A Gênese 1: uma Trajetória de Sucesso Nascido em Porto Alegre ao dia 12 de junho de 1922, Antônio Mafuz foi um dos diretores da maior agência de publicidade do Brasil, a MPM Propaganda. Sua trajetória na comunicação começou cedo e por um acaso. Morava próximo à Rádio Farroupilha, tinha relações de parentesco com Martin Aranha, responsável pela crônica de turfe da Farroupilha, e era conhecido do diretor da Rádio, Frederico Arnaldo Ballvé, um grande amigo de sua família.Mafuz iniciou na rádio para fazer locuções comerciais. Logo após, quando se formou em Direito, e foi exercer sua profissão, Martin Aranha indicou Mafuz para trabalhar em seu lugar. Após um teste, foi admitido, sendo por muito tempo locutor de turfe – a corrida de cavalos era uma de suas grandes paixões. Quando convocado pelo exército para compor o quadro militar do CPOR (Centro de Preparação de Oficiais da Reserva), em 1942, afastou-se da comunicação por dez meses. Em seu retorno, em visita à Rádio Farroupilha, percebeu uma mudança na empresa que tinha sido comprada por Assis Chateaubriand, proprietário do Diários e Emissoras Associados. Mafuz relata sua impressão: “fui me apresentar na Farroupilha e não gostei do ambiente” (Mafuz, 2000). Em visita ao amigo Ballvé5, que já trabalhava na Rádio Gaúcha, Mafuz aceita o convite para trocar de emissora, pois estava descontente com a recepção que teve na Farroupilha. Mafuz começou na Gaúcha como redator speaker6 (de textos publicitários), pois era comum os anunciantes contratarem a veiculação através de agenciadores, os quais contavam com a redação e a produção dos anúncios pelas rádios, além da veiculação. 5 6
Ballvé afastou-se da Farroupilha, quando a emissora foi comprada por Chateaubriand, sendo contratado, ainda em 1943, pela Rádio Gaúcha (Mafuz, 2000). O cargo de Mafuz na Gaúcha era a extinta função de redator speaker (quem redigia os textos publicitários para locução), no tempo em que a Rádio ainda não era da família Sirotsky, pois, somente em 1957, Maurício Sirotsky tornou-se acionista da Rádio Gaúcha.
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Segundo Mafuz relata, “[...] fui fazer uma visita, coisa mais normal fazer uma visita para um amigo, seu Ballvé. Ele disse ‘larga deles, eu preciso de ti, vem trabalhar conosco’. E eu, então pensei, já conheço o pessoal é muito mais fácil” (Mafuz, 2000). Reiniciou suas atividades na Radio Gaúcha como redator speaker7 de textos publicitários. Já nesse início de carreira, na área da comunicação, evidenciava sua caraterística empreendedora. Logo passou a comprar espaços na rádio e a vender seus comerciais, como relata: Todos nós fazíamos algum comercial, um era ligado ao esporte, outro à indústria etc. E essa parte era terrível de receber. Com o tempo cheguei à conclusão de que era melhor eu comprar o espaço da rádio. Eu vendia e recebia, porque as empresas pagavam (Mafuz,2000).
Em 1944, desliga-seda Rádio Farroupilha e se aventura nos jornais Correio do Povo e Folha da Tarde, na seção de turfe. Como trabalhava à noite, pôde ter um segundo emprego como securitário, tendo permanecido nos jornais por dois anos. Voltou às rádios em 1947, trabalhando nos jornais simultaneamente. Fez grande fama como locutor esportivo, o que lhe rendeu notoriedade entre os anunciantes e uma nova fase em sua vida profissional: tornou-se um agenciador de fato, uma exceção entre os locutores, porque a venda dos espaços era atribuição das “[...] rádios através dos corretores que eram praticamente funcionários das rádios”, relata Mafuz. Os anúncios impressos, por exemplo, em sua maioria, eram feitos pelo próprio veículo [...] que trabalhava precariamente, era praticamente all type8, dificilmente tinha uma ilustração. E alguns clientes entregavam meio 7 8
Speaker era uma expressão utilizada para nomear o locutor no início do rádio no Brasil. Todo o anúncio é composto por letras, ou lettering, como se identifica as fontes utilizadas nessas peças.
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pronto o negócio, porque vinha, ou eram representantes, ou trabalhavam como pessoal de São Paulo que mandava um tipo de anúncio. (Mafuz, 2000)
Ele tinha vínculo com alguns clientes da indústria e comércio, porém o fato de não ser oficialmente corretor, às vezes, dificultava receber o valor cobrado pelo agenciamento. Foi, então, que começou a exercer a função de intermediário entre os anunciantes e os programas esportivos.
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Eu narrei futebol e tive algum sucesso com todo grupo esportivo, e comprei o espaço da rádio e vendi para quatro anunciantes. Um era dono da ‘hora certa9’, outro era dono do ‘score10’, e os dois faziam a parte de texto durante o jogo. E aí eu resolvi o problema porque chegava no dia primeiro eu recebia o meu dinheiro dos anunciantes, ia lá e pagava a rádio (Mafuz, 2000).
Antônio Mafuz em set de programa da Gaúcha, à esquerda, tendo à direita Maurício Sirotsty, personagem central não identificado. Fonte: Acervo Fabico/UFRGS 9 Formato de veiculação da hora, seguida da informação do anunciante. 10 A locução do placar do jogo era seguida por chamada de um anunciante.
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Em 1950, como locutor de esporte, narrou a Copa de 1950, por seu trabalho como jornalista e por conhecer muitas pessoas. Neste mesmo ano, foi chamado por João Goulart, Jango11, seu amigo, para trabalhar na campanha de Getúlio Vargas (Mafuz, 2000). Mafuz ficou, então, responsável por gerenciar as campanhas nas rádios no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Mafuz foi uma indicação estratégica em função da rede de contatos que possuía e da experiência de locutor da Farroupilha12. Sua função foi a de gerenciamento das mensagens da campanha de Getúlio Vargas13 transmitidas pelo rádio. Mafuz registra os seus desdobramentos profissionais com a vitória de Getúlio: O Ernesto Dorneles ganhou para Governador do Estado, o Jango se tornou Secretário de Interior e Justiça, e veio para Secretaria, que então era Agricultura, Indústria e Comércio [...] o Maneco (Manuel Antônio Vargas, filho de Getúlio Vargas) [...] conhecia pouca gente e ele precisava de alguém perto dele que conhecesse pessoas, fosse de confiança e o Jango me pediu para que eu ficasse com o Maneco na Secretaria.
Como Mafuz estava em um ótimo momento em sua carreira e por ter feito uma rede expressiva de amigos, ficou na Secretaria, administrada pelo filho de Vargas, como Chefe de Gabinete, cargo que lhe rendeu novas amizades, principalmente no mundo político. Para dar conta dos compromissos junto à Secretaria, era necessário que se afastasse do rádio mais uma vez, contudo o salário que recebia nessa nova função era muito 11 Ao longo de sua trajetória como locutor esportivo, Mafuz fez uma rede de amizades, que seria muito importantes para sua trajetória futura, incluindo João Goulart. 12 A Farroupilha (Diários e Emissoras Associados) era a emissora que tinha a maior potência nosul, sendo importante para a veiculação da campanha de Getúlio Vargas à Presidência da República. 13 Em 03 de outubro de 1950, depois de cinco anos de exílio em São Borja, Getúlio Vargas retorna à cena política, elegendo-se Presidente da República.
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baixo. Para superar esta dificuldade, após um pedido de Jango à Chateaubriand – proprietário da Rádio –, Mafuz continuou recebendo seu salário da Farroupilha. A trajetória de Mafuz evidencia um momento dos profissionais de comunicação carente de reconhecimento. Naquela época, muitos jornalistas e publicitários formaram-se através da prática do mercado14, algumas vezes acumulando as duas funções. Durante o tempo que passou na Secretaria, Mafuz começa a pensar em investir no ramo da publicidade. Em seu trabalho como narrador de futebol, fez muitas viagens a São Paulo onde acabou conhecendo duas agências de publicidade estrangeiras, o que aguçou sua curiosidade pelo ramo: O gerente geral da Thompson era o Antônio Nogueira, que era meu amigo, então quando comecei a formar na cabeça a ideia de agência, eu falei para eles, e eles me abriram a Thompson para eu conhecer como é que era (Mafuz, 2000).
O mercado do Rio Grande do Sul tinha agências inexpressivas nesta área à época. Em meados do século XX, os poucos clientes não eram regulares e a produção perdia muito em relação ao centro do país. Após amadurecer a ideia, aceitou o convite do seu amigo, Paulo da Costa Gerhardt, ex-sócio da extinta agência Clarin, em 1953, para juntar-se a ele, como relata: Fizemos uma agência, que foi a primeira agência feita dentro do ‘padrão’ do que era uma agência de bons serviços. A Sotel se tornou 14 O reconhecimento profissional com o surgimento dos primeiros cursos superiores de Comunicação acabou atraindo profissionais já em atividade no mercado. Em 1951, quando nasceu o embrião da Faculdade dos Meios de Comunicação Social da PUCRS (FAMECOS), o curso de Jornalismo, que oferecia uma disciplina de Publicidade, tinha alguns funcionários da Sotel na primeira turma de formandos. Sobre histórico da FAMECOS ver em http://www. pucrs.br/famecos/historico.htm (site acessado em 29/04/2002).
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logo um destaque no panorama, porque ninguém tinha o que nós tínhamos (Mafuz, 2000).
Era uma agência com fundamento focado na publicidade e estruturada por departamentos, fazendo o mercado gaúcho seguir os parâmetros do que já era feito no Rio de Janeiro e em São Paulo. Neste mesmo período, em 1951, nasceu a Famecos, a atual Faculdade dos Meios de Comunicação Social, e praticamente 90% dos funcionários da Sotel eram formandos da primeira turma do curso da Faculdade de Propaganda e Comunicação da PUCRS, imprimindo na agência profissionalismo e padrões com base de cunho acadêmico. A Sotel é considerada uma das responsáveis pelos avanços da publicidade no solo gaúcho e teve como grande cliente a Companhia de Petróleo Ipiranga. Quem conquistou a conta da Ipiranga para a agência foi Mafuz em consequência de sua amizade com Francisco Bastos (acionista responsável pela Ipiranga no RS), os dois se conheceram quando Mafuz assessorava o filho de Getúlio Vargas. Com um pensamento ousado e inovador, Mafuz liderou um grupo de publicitários para fundar a Associação Riograndense de Propaganda (ARP), em 1956, sendo seu primeiro presidente. Mesmo no começo da publicidade no RS, já percebia a necessidade de defender os interesses das agências, dos veículos de comunicação e de se planejar o desenvolvimento do mercado como um todo. Nessa época, as experiências de Mafuz e de outros dois profissionais, que viriam a fundar a MPM, também se entrelaçavam no âmbito pessoal.Macedo tinha vínculo profissional e pessoal com Petrônio, na agência Grant, e com Mafuz, casado com a sua prima-irmã. Outro aspecto relevante é a posição ocupada por Mafuz e Petrônio na publicidade gaúcha, já que o primeiro era o dono de uma agência local, a Sotel, que tinha um certo reconhecimento por atender a conta da Ipiranga, e o segundo era o gerente da multinacional Grant Advertising.
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O catalisador da união dos três viria a ser a venda da agência de maior representatividade no cenário gaúcho, a Sotel, em 1956, para a McCann-Erickson, que estava ampliando sua atuação no mercado gaúcho. Mafuz, no acordo com a multinacional, seria incorporado como um executivo, mas por desentendimentos internos, acabou ficando sem agência. Por sua vez, a Ipiranga não pôde ser atendida pela McCann, que detinha a conta da concorrente Esso, contratando diretamente Mafuz para dar continuidade a alguns trabalhos que estavam em andamento, quando a Sotel15 foi vendida.
A Gênese 2: Mafuz, Petrônio e Macedo – a MPM Propaganda
Esses acontecimentos fizeram Mafuz retomar seu ideal de formação de uma agência regional, como fizera com a Sotel. Contudo, o mercado já tinha multinacionais como a Grant e a McCann e seria necessário um somatório de forças para que uma agência local prosperasse. Para Mafuz, era o momento de investir, mais uma vez, em uma agência regional, mesmo reconhecendo que seria difícil implantá-las em que viesse a ser absorvida por essas grandes empresas. A idéia o desafiou a prospectar nomes que pudessem encarar essa nova etapa com ele, foi quando pensou em Luiz Macedo que trabalhava na Grant e tinha a conta da A.J Renner. Em uma conversa, quando Mafuz lhe propôs a ideia, Macedo sugeriu seu colega Petrônio, que também trabalhava na Grant. Em 1957, surgiu, assim, a MPM, uma sociedade entre Mafuz,Macedo e Petrônio, gerando a que veio a ser umas das maiores agências de publicidade do país, e que permaneceria por 15 anos consecutivos como a agência líder de publicidade do Brasil, chegando a ser 32º no ranking mundial (Iribure; Jacks, 2015).A empresa teve grandes clientes como a Ipiranga, o grupo Renner 15 A venda da Sotel pode parecer precipitada, mas é preciso considerar a sedução que as agências multinacionais exerciam no mercado local.
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- nesta época indústria e lojas - e foi responsável pela inserção e ascensão da Fiat no Brasil. A MPM era uma agência consolidada no mercado gaúcho, abriu outras agências pelo Brasil para suportar a demanda. Os sócios dividiram-se para gerir a agência nacional: Luiz Macedo foi para o Rio de Janeiro e Petrônio Corrêa para São Paulo. Mafuz ficou no Rio Grande do Sul, o que demonstra que o mercado gaúcho era forte e promissor para o contexto nacional.
Alicerces da MPM, na foto, Luiz Macedo, Petrônio Corrêa e Antônio Mafuz (à direita). Fonte: Acervo Fabico/UFRGS
Segundo Fedrizzi, Mafuz faz parte daquela safra de empresários lá atrás que era muito arrojada, então as famílias todas aí, aí entra Gerdau, aí entra Renner, aí essas famílias precursoras aqui que foram muito arrojadas pro seu tempo (...) tanto é que construíram grandes empresas que conquistaram o Brasil (Fedrizzi, 2017).
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O publicitário considera que a própria ideia da divisão da gestão da MPM é um exemplo do que significava ser arrojado para aquele tempo: O Mafuz junto com os dois sócios, o Petrônio e o Macedo, não só criaram uma grande agência aqui como tiveram essa ideia pra época bastante arrojada de cada um dos sócios se desdobrar e abrir um escritório. Eles cresceram junto com seus clientes, quer dizer, no momento que Ipiranga precisou crescer e ir pra outros lugares e alguns outros clientes que eles tinham, Samrig e assim por diante (Fedrizzi, 2017).
Salienta-se, a partir dessa afirmação, a perspicácia de Mafuz e de seus sócios em acompanhar os movimentos do mercado, preparando-se para atender seus clientes onde precisassem. Foi essa forma de empreender que, segundo Fedrizzi (2017), possibilitou que tornassem a MPM uma agência brasileira, tendo atingido “um share16 na ordem de 8% dos espaços de comercialização da Rede Globo”(Satt, 2017). Outra percepção apurada nesse sentido e ao mesmo tempo inspirada no trabalho anterior de Mafuz com a política, foi estender sua carteira de clientes às instituições governamentais. Entre muitos exemplos, o Banco do Brasil teve a MPM Propaganda como sua primeira agência, quando a administração do banco foi convencida de que um banco, mesmo sendo de economia mista, com parte do Estado, deveria anunciar (Macedo, 2000). Fedrizzi (2017) comenta que a MPM Foi uma agência muito envolvida com contas públicas. Eles tinham praticamente todas as contas públicas daqui – Rio Grande do Sul – e do Brasil. Aqui tinha o Banrisul, tinha o Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, BNDES e assim por diante. 16 Expressão que significa participação nos espaços de comercialização de um veículo de comunicação.
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Para João Satt (2017), foi a partir dessa visão empreendedora de Mafuz e de seus sócios que “a sede MPM, em Porto Alegre, no topo do morro Santa Tereza, foi tanto palco de grandes decisões empresariais quanto do mundo político. Lembro que Al Ries17 foi contratado por um cliente da agência”.
Na foto o presidente João Figueiredo, recebendo na Biblioteca do Palácio da Alvorada, os diretores da MPM, Mafuz, Petrônio e Macedo. Fonte: Acervo Fabico/UFRGS
O compromisso com o crescimento, tanto da agência quanto das empresas que atendia, fazia com que Mafuz estendesse os benefícios de seus relacionamentos cultivados ao longo da carreira a seus clientes também. Na transmissão da Copa de 1958, que ocorreu na Suécia, Mafuz e Macedo tiveram grande influência, pois graças aos seus contatos entre os profissionais do rádio da época conseguiram que o sinal chegasse até Porto Alegre, através de um ponto de escuta de uma rádio na Suíça. Dessa forma, foi possível a transmissão da Copa de 1958 pela Rádio Guaíba, com 17 Profissional e teórico da área do Marketing, cunhou o termo Posicionamento de marcas.
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transmissão e locução de Jorge Alberto Mendes Ribeiro e Flávio Alcaraz Gomes (Ferraretto, 2017). Por esta conquista, fizeram a exigência para a administração da Rádio de quea Ipiranga fosse o único anunciante patrocinador das transmissões. Este feito impulsionou para que a companhia fosse conhecida em todo o território nacional e que a MPM fosse vista mais uma vez como inovadora no ramo da publicidade.
Anúncio da Rádio Guaíba (junho de 1958). Fonte: Ferraretto (2017) – Folha da Tarde, Porto Alegre, 28 jun. 1958. p.15
A presença de Mafuz sempre se mostrou relevante em situações que geraram oportunidades ou mesmo auxiliaram a enfrentar desafios como no caso da expansão da agência no mercado carioca. Um exemplo significativo, nesse sentido, foi, em 1960, quando a agência expandiu seus negócios com a abertura de um escritório no Rio de Janeiro. A agência precisava conquistar um cliente importante para garantir a sua permanência em território ainda desconhecido. Mafuz consegue a conta da Gastal, uma grande
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revendedora de automóveis da marca Willys no Brasil. Essa parceria se dá pelo bom relacionamento que Mafuz tinha com Osvaldo Aranha e boa parte da sua família, incluindo Gastal, um dos filhos de Osvaldo Aranha – o alegretense, que tinha sido Ministro da Fazenda no segundo governo de Getúlio Vargas. É relevante registrar que, neste período, a MPM estava, na então capital do Brasil, acompanhando a conta da Ipiranga que se expandia nacionalmente. Luis Macedo foi à frente da agência carioca, porque na época o presidente que estava no poder, João Goulart, era seu tio, e a relação se mostrava proveitosa. Em 1962, Mafuz concilia, por um período, sua atuação na MPM com a direção da Rádio e TV Gaúcha. Neste momento, Maurício Sirotsky Sobrinho, dono da empresa, havia se afastado devido a contratempos. Alfredo Fedrizzi recorda que o Sr. Mafuz “era muito próximo do Maurício Sirotsky, [...], era muito próximo da RBS”, o que o permitia que se relacionasse muito bem com os sócios e clientes da empresa (Fedrizzi, 2017). Seu grande conhecimento em rádio e seu espírito empreendedor eram reconhecidos por muitos pares. Em 1970, Fernando Westphalen, que trabalhava na MPM à época, e ex-radialista e colega de Mafuz na rádio Gaúcha, é convidado pelo Sistema Globo de Rádio para tentar incrementar a audiência da rádio Continental. Westphalen propõe a Mafuz parceria no negócio, ao ver o potencial da rádio para o público jovem já que na capital gaúcha não havia nenhuma emissora voltada para esse nicho. Mafuz, mesmo com insistência do amigo, recusa participar da compra. Ainda pela sua grande amizade com Maurício Sirotsky e por seu cargo na Rádio Gaúcha, em 1971, Mafuz trabalha na intermediação de uma das mais ousadas transações no mundo da comunicação do Rio Grande do Sul. A negociação entre Breno Caldas, proprietário da Companhia Jornalística Caldas Júnior, e a Rádio Gaúcha, de Maurício Sirotsky, em virtude do interesse da venda do jornal Zero Hora. Se essa transação tivesse sido realizada, deixaria a
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empresa de Breno Caldas quase com a exclusividade da imprensa estadual, deixando pouco espaço para as concorrentes.
Mafuz: um perfil de atendimento Percebe-se que a capacidade empreendedora e a visão estratégica de Mafuz, que o faziam conduzir tão bem seus negócios, estiveram sempre aliadas à outra importante característica – seu carisma para tratar com as pessoas e desenvolver relações. João Satt (2017) o descreve nesse sentido: Ele era uma figura pública muito querida e respeitada por todos: do porteiro ao presidente. Era uma pessoa muito especial, grande coração, extremamente sedutor, bom de conversa, e tinha uma capacidade incrível para escutar. Extremamente hábil, conseguia resolver os problemas sem levantar jamais a voz. A postura profissional era permeada pela sua humanidade: “Com ele, aprendi a agradecer. Nas festas de final de ano, ele pegava o microfone e sempre repetia três vezes: obrigado, obrigado, obrigado. Bonito de ver, emocionante”, relembra João Satt (2017). Marcos Paim (2017)corrobora essa percepção ao lembrar de momentos em que Mafuz demonstrava sua afabilidade: “Ele era um ser humano muito autêntico, muito verdadeiro, muito humano no contato, é o típico sujeito que gostava de gente, independente do cargo, da posição”. Paim lembra de fatos que demonstravam esse perfil de Mafuz: Ele reunia pessoas na cabana do turcão, era uma churrasqueira no fundo de uma casa lá – sede da MPM em Porto Alegre, na rua Santo Antônio –, um espaço com a cara do Mafuz. Todo despojado, à vontade, tinha uns mesões assim, [...] ele acolhia as pessoas. Ali frequentaram de presidente da república, [...] governador, passava por ali tudo.
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Seu modo de agir impactava no ambiente da MPM, especialmente por seu entrosamento com as mais variadas pessoas, como aponta Paim (2017): Então ele era irradiador do valor, dos valores, do caldo de cultura [...] inclusive circulava nos corredores que ele era muito fluente, isso impregnava muito a agência por essa simplicidade, dessa autenticidade, […] ele era muito, muito, muito autêntico, muito direto e muito simples. Mafuz era uma figura muito carismática, muito agradável, muito envolvente. Então, já era uma pessoa querida no meio, já tinha sido publicitário do ano, já tinha […] já era uma figura bem [...] que eu a distância já conhecia e o mercado todo reconhecia e admirava ele, era famoso, o ‘M’ local da MPM. Então, era uma figura [...] e no contato pessoal ele surpreendeu, justamente, pela simplicidade, pelo lado humano, muito afável, muito simples, muito acessível, muito simpático, muito agradável e muito autêntico também.
Saber ouvir é uma de suas habilidades destacadas por profissionais que trabalharam com Mafuz e, talvez, uma das mais importantes na construção de sua capacidade relacional. Fedrizzi (2017) recorda que Mafuz “[...] era aquele lorde assim, um cara que ouvia bastante e só depois se posicionava”. O publicitário conta que havia uma “lenda” sobre a forma com que Mafuz conduzia as reuniões: Ele dizia que era o último a falar, quer dizer, ele deixava todo mundo se expressar e depois entrava com a palavra dele quase como uma síntese daquilo que ele tinha ouvido ou do que era uma corrente que precisava ser apoiada né, então era esta grande figura.
Exemplos como esse, demonstram como se posicionava estrategicamente. Satt (2017) confirma sua forma de agir nesse sentido:
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Pensava muito antes de dizer qualquer coisa, e muito mais antes de fazer qualquer coisa. Era extremamente cauteloso e estratégico. Tinha um timing perfeito, sabia chegar, conversar e vender. Sim, adorava a venda. E a MPM era uma agência criativa, mas com uma batida comercial muito presente.
Além da capacidade de ouvir os outros, Fedrizzi (2017) aponta que ele conquistou o espaço para ser ouvido, escreveu seu nome entre “as grandes lideranças empresariais” à época. “O Mafuz era um cara que o setor ouvia, parava pra ouvir” (Fedrizzi, 2017). O reconhecimento dos talentos de Mafuz, de sua atuação significativa e indispensável ao mercado publicitário gaúcho concedeu-lhe o título de Publicitário do Ano pela Agência Riograndense de Propaganda (ARP) em 1971. Nos anos de 1987 e 1989, a constatação dos pares por seus méritos demonstrou-se pela sua eleição para presidente da Abap, Associação Brasileira das Agências de Publicidade, na época Associação Brasileira das Agências de Propaganda. Em 1978, Mafuz demonstra o quanto acredita no potencial e diferencial de sua agência e no seu atendimento. A MPM não tinha conta de nenhuma indústria de calçados e nem conhecimento deste setor. Quando soube que a empresa de calçados Azaléia tinha aberto concorrência para escolher quem cuidaria de sua comunicação, já que estavam se desligando da agência que até o momento cuidava disso, marcou uma visita à empresa. Ao ser recebido por um dos donos – encarregado pela parte administrativa da empresa que cuidava da sua comunicação – foi estranhada a forma com que Mafuz apareceu na empresa, gerando o seguinte diálogo entre os dois: O senhor veio só? Eu vim, por quê? Não, é que o senhor não está trazendo nada nas mãos. Não, eu não estou trazendo nada nas mãos, eu vim aqui dizer que a MPM tem interesse em trabalhar com os
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senhores, e eu nem preciso dizer para o senhor quem é a MPM, eu tenho certeza que o senhor conhece a MPM (Mafuz, 2000).
A Azaléia tinha acabado de ser convidada para uma ação de merchandising junto à Rede Globo na novela Dancing Days. Era uma sexta-feira e teriam que ocorrer mudanças no layout das peças para enviá-las à emissora, a novela estrearia na segunda-feira. Mafuz escutou toda a conversa entre os empresários da Azaléia e o escritório de Publicidade de São Paulo, o qual argumentava ser impossível entregar tamanho volume de trabalhos em pouco tempo. Mafuz percebeu a situação como uma oportunidade para mostrar a eficiência da MPM. Por meio de uma ligação telefônica, consegue resolver o problema, deixando os proprietários da Azaléia estarrecidos com a agilidade com que solucionou um problema de quem ainda nem era seu cliente. “É muita coisa, o senhor entra aqui não traz nada, a não ser o seu nome, e a sua empresa, eu tenho um problema em São Paulo que não sei como resolver, o senhor resolve com um telefonema, é o que eu quero”. E começamos a trabalhar, trabalhamos muito bem com eles (Mafuz, 2000).
Isso demonstra o quanto Mafuz era confiante em sua estratégia e sabia o quanto a MPM era forte no mercado publicitário. Esta trajetória ascendente de sucesso, quase vertical, contada nos limites destas páginas, tendo muito material que não pode ser aqui abordado, no entanto, começa a mudar de ventos. Várias razões, entre as principais a falta de sucessão e a grande estrutura da agência, num novo cenário de agências enxutas e de crise inflacionária, levaram a uma situação inesperada. Uma notícia estarrecedora seria anunciada ao mercado publicitário brasileiro, ironicamente, por muitos veículos que vinham contando o sucesso da MPM nos últimos anos.
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Em 1991, a MPM foi vendida para o grupo Lintas e ficou com o nome de MPM/Lintas. Na negociação, os sócios preferiram deixar o nome da MPM na frente por causa do seu reconhecimento. Contudo, já nos primeiros meses da nova agência, o atendimento não seria como os clientes estavam acostumados, gerando grande descontentamento. Tanto Mafuz como os outros sócios teriam que ficar como conselheiros da agência por dois anos, mas permaneceram apenas por dez meses devido aos problemas com os clientes. Quando a MPM foi adquirida pela Lintas, Mafuz desligou-se totalmente da atividade, Macedo dedicou-se a sua grande paixão: os cavalos, e Petrônio Corrêa tornou-se presidente da Diretoria Executiva do Conselho Executivo de Normas Padrão (CENP)18, atuando politicamente no que diz respeito às normas e à ética da atividade publicitária brasileira. Em agosto de 2005, o radialista, jornalista, agenciador e publicitário Antônio Mafuz veio a falecer aos 83 anos em Porto Alegre. A sua trajetória deixa um legado imensurável para a publicidade e a comunicação em geral. Em poucas palavras, os publicitários que com ele trabalharam apontam aspectos desse legado. Para João Satt (2017), O maior legado que o Mafuz deixou foi a valorização e o respeito à publicidade, aos publicitários, enfim, ao setor. Soube transformar agência em empresa organizada, séria e extremamente eficaz para o sucesso dos negócios dos seus clientes.
Fedrizzi (2017), por sua vez, ressalta seu papel precursor na história da publicidade: Ele é um precursor não tenho dúvida nenhuma. Até pela longevidade da agência, pelos filhotes que deu, os legítimos e ilegítimos, né. 18 O CENP é responsável pela aplicação e administração das Norma-padrão da atividade publicitária. (Conselho Executivo das Normas Padrão. Disponível na internet http://www. cenp.com.br, 01 maio 2002).
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E por ter se tornado uma agência saída do Rio Grande do Sul, ter se tornado a primeira agência brasileira, certamente que deixou seu nome na história gaúcha e nacional. Que legado ele deixa? Pra nós aqui do Sul, é esse desbravar de fronteiras.
Considerações finais Nesse fechamento, de um texto que tentou contar partes da história de Antônio Mafuz, sem a pretensão de esgotar a riqueza de suas vivências, cabe ressaltar aspectos essenciais do exemplo que fica a partir de sua atuação em nosso estado e país. Talvez, o legado de Mafuz à atividade e ao mercado publicitários no estado Rio Grande do Sul e no Brasil seja o mesmo de sua própria vida. Seu exemplo revelou a importância do carisma pessoal; da valorização das pessoas; da capacidade relacional; da perspicácia para perceber problemas e transformá-los em oportunidades; do talento conciliador, agregador, da coragem de empreender, mesmo no papel de precursor; da autenticidade no fazer diário e nos grandes ideias. Soube fazer relacionamentos, que geraram grandes clientes, que ajudaram nessa construção, de uma imagem profissional da publicidade brasileira, reforçando a importância do publicitário, além de prestador de serviços, como um dos responsáveis pelo sucesso mercadológico de seus clientes. Essa parceria com seus anunciantes apresentada por Mafuz, na Sotel, e depois com os sócios-fundadores da MPM, demarcou o seu principal diferencial, a sua preocupação com o Atendimento dos clientes. Destaca-se, também,sua visão que o levou a acreditar no potencial nacional, ao lançar a MPM no Brasil, quando, de fato, o gaúcho Mafuz atinge o auge de sua atuação como publicitário. Mafuz foi um astro que teve em sua órbita grandes expoentes, tendo feito história na história da publicidade regional e, adiante, nacional. Elencar estes expoentes seria árdua e injusta tarefa, mas, com certeza, o trio MPM fez e manteve um equilíbrio
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que potencializou o que Mafuz trazia de empreendedorismo, ao ver a publicidade como um negócio estratégico no desenvolvimento de um país, já que muito se envolveu com a política sem ter sido um político de fato. Ao finalizar, deve-se mensurar o papel dos parceiros anunciantes do início da trajetória de Mafuz, e que são a empresa de Petróleos Ipiranga e as Confecções Renner, por terem apostado no seu potencial publicitário, acreditando que o estado do Rio Grande do Sul poderia ser um “celeiro” de bem sucedidos homens de negócios da publicidade que se projetariam nacionalmente. Esse olhar sobre a história de Antonio Mafuz, mesmo sem esgotá-la, deixa, aqui, o registro de um legado, uma memória inspiradora nos insinuantes e belos caminhos construídos em sua história.
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Referências
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Marcello Casado D’Azevedo Precursor no ensino e na pesquisa em Comunicação, Fabico/UFRGS
Reprodução
Maria Berenice da Costa Machado
A história do campo acadêmico da Comunicação no Rio Grande do Sul ainda carece de muitos capítulos que esclareçam fatos, contem sobre personagens e instituições emblemáticos. Preenchemos uma dessas lacunas aqui com o perfil bio-bibliográfico do professor Marcello Casado D’Azevedo. Formado engenheiro, ele foi se envolvendo com o campo da Comunicação a ponto de cursar uma segunda graduação, Jornalismo, na antiga Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do
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Sul (UFRGS), entre os anos 1966-1969, junto com a esposa Martha Alves D’Azevedo. Marcello lecionou “Teoria da Informação – Comunicação – Cultura de Massas” no curso de Arquitetura da mesma universidade e, a partir dessa disciplina, iniciou com os alunos ou individualmente a produção e a sistematização de conhecimentos sobre Comunicação, material que teve imediata acolhida pelas editoras locais. Durante a década de 1970, o professor foi integrado ao corpo docente da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação (Fabico), com “aulas que desafiavam os jovens estudantes”. Provavelmente, foi um dos responsáveis por fazê-los descobrir poder “acreditar, no mínimo, na Universidade como a história da ciência bem ensinava” (Weber; Silva, 1994, p. 18). Este capítulo recolhe e registra fragmentos da trajetória docente e a produção científica de Marcello Casado d’Azevedo, mais especificamente os seis livros sobre Comunicação e Informação publicados na década de 1970. Desejamos contribuir com a história do primeiro ciclo do ensino de Comunicação na UFRGS, tempo também de pesquisa, embora esta ainda sem o caráter institucional que adquiriu após a instalação dos programas de pós-graduação. O estudo segue o método histórico, com técnicas de coleta de materiais que incluem entrevistas, a partir de roteiro semi-estruturado, buscas documentais e bibliográficas. A tarefa inicial foi identificar sujeitos envolvidos com o ensino e a pesquisa de Comunicação no começo do curso. Sobre os docentes, pouquíssimas informações. Recorremos a alguns dos antigos alunos, atuais professores da universidade, montamos pequena lista e com ela fomos aos currículos Lattes. Apesar de a Plataforma trazer somente dados da atual geração de acadêmicos (período de graduação e pós, projetos de pesquisa, publicações, vínculos institucionais e com agências de fomento à pesquisa), estes foram úteis para delimitar os entrevistados seguindo critério de formação no curso da UFRGS, especialmente entre os anos 1952-1980.
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Prosseguimos com sondagens presenciais e por e-mail. Há unanimidade em relação à contribuição do professor Azevedo: diretamente na formação de uma geração de profissionais e acadêmicos da Comunicação, ou através da obra original que produziu e legou ao campo. Buscamos esse material bibliográfico e decidimos focar este capítulo na sua carreira e no que escreveu, pois são raros e esparsos os materiais sobre o engenheiro/comunicador, razão pela qual, em algumas passagens, nos apoiaremos em manifestações dos editores e colegas, impressas nas próprias capas e orelhas dos seus livros.
Traços biográficos de Marcello Casado D’Azevedo Formado em Engenharia Civil pela UFRGS, Marcello foi empresário no ramo até 1968. Após a segunda graduação, concluída em 1969, o bacharel em Comunicação dedicou-se totalmente à docência como Professor Titular da mesma universidade (Azevedo, 1972, contracapa). Sobre o conteúdo das aulas, naquele agitado início dos anos 1970, Maria Helena Weber e Ricardo Schneiders da Silva observam que o mestre os “provocava com a cibernética e a era pela qual seríamos responsáveis. Parecia ficção” (Weber; Silva, 1994, p. 18). Paralelamente à docência, Marcello foi um produtor de conhecimento, portanto pesquisador. Mas a esposa Martha (2011), doutora em Comunicação, destaca que “ele não se interessava por pesquisa empírica como a que ela fazia”. Um dos diletos alunos considera Marcello um “pensador, um teórico e estudioso, que dialogava com muitas ciências, entre elas a Semiótica de Peirce” (Silva, 2011). Outra presença nas aulas do então curso de Jornalismo foi a Física, como observa Ilza Girardi, aluna nota A nas suas disciplinas: “foi com ele que aprendi o conceito de entropia, emprestado da física” (Girardi, 2012). Atento à função, ao desenvolvimento e ao futuro da Comunicação, o professor promoveu o intercâmbio com cientistas
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do centro do país. Silva (2011) recorda que “Marcello trouxe a Porto Alegre o semioticista Décio Pignatari, professor da Universidade de São Paulo (USP), e José Marques de Melo, recém-doutor e bastante envolvido com pesquisa e publicações na área”. Mestre inovador na didática e na condução da reflexão, Marcello trouxe leituras que eram “devoradas” pelos alunos: O Despertar dos Mágicos (Louis Pauwels e Jacques Bergier), O Jogo das Contas de Vidro (Herman Hesse), O Jogo da Amarelinha (Júlio Cortazar), O Admiráver Mundo Novo (Aldous Huxley) (...) (Weber; Silva, 1994, p. 17-18).
Opinião semelhante tem Ilza: “Marcello foi um grande professor, um teórico entusiasmado”. Ela gostava muito das disciplinas e lia tudo que o professor indicava Ele fazia uma coisa que me encantava: lia os livros em sala de aula, sentado à mesa, e os comentava e falava dos autores. Certamente nem todos os alunos tinham capacidade ou sensibilidade para entendê-lo. Ele era um teórico da comunicação. Era amável, amigo e ficava conversando com a gente depois da aula (Girardi, 2012).
Ciclo inicial do ensino de Comunicação na UFRGS O curso de Jornalismo da UFRGS, um dos precursores no ensino da Comunicação no estado e no Brasil, tem como registro oficial a data 1/3/19521, foi um dos 14 abrigados pela antiga faculdade de Filosofia. Com a Reforma Universitária de 1968, a estrutura da universidade foi redesenhada, foram criados institutos, departamentos e nova ordenação para os cursos. O de Jornalismo passou, então, a se chamar Comunicação Social, unido à Escola de 1
MEC, disponível: https://bit.ly/2ILxwZf. Acesso 15 ago. 2011.
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Biblioteconomia e Documentação2, resultando na atual Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação (Fabico). Na publicação que registra os 30 anos da Fabico, as autoras observam a “escassez de fontes documentais, principalmente do Curso de Jornalismo” (Santos; Silveira, 2000, p. 276 e 280). Um exemplo é a informação sobre a formatura da primeira turma de jornalistas; elas tiveram de consultar a Ata de Colação de Grau para encontrar a data 11 de dezembro de 1954, a relação de bacharéis e os nomes do orador e do paraninfo (Santos; Silveira, 2000, p. 281). Em relação aos anos que antecederam à reforma curricular de 1970, antes do curso passar a se chamar Comunicação, com 2.700 horas e quatro anos de duração, pouco se tem registro. Segundo Ricardo Schneiders da Silva, ex-diretor da Fabico, “o curso de Jornalismo, nos primeiros anos da década de 50, está ligado à implantação da Rádio da Universidade – com professores e alunos estagiários”, situação idêntica a do “antigo Gabinete de Imprensa”, que nas décadas seguintes serviu de campo de atuação para os estudantes do mesmo curso (Jornal da Universidade, 2010). Outras informações sobre o início do ensino de Jornalismo na UFRGS vêm do Jornal Escola, cujo primeiro número foi publicado em outubro de 1961. O editorial, assinado pelo diretor, manifesta a vocação para o ensino e a pesquisa em Comunicação. Jornal Escola representa um arco-íris para o Curso de Jornalismo da Faculdade de Filosofia da Universidade do Rio Grande do Sul. Simboliza a aliança entre teoria e prática (...) será a força disciplinadora de um presente de estudo e pesquisa que nos levará a um futuro útil e dinâmico de trabalho na imprensa (Oliveira apud Santos; Silveira, 2000, p. 281).
Em 1968, junto às preocupações e discussões sobre a Reforma Universitária e a nova estrutura do ensino superior, 2
Portaria nº 714 de 1º de setembro de 1970.
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Santos e Silveira encontram no mesmo jornal laboratório as antevisões do professor Azevedo sobre o Jornalismo no ano 2000.
Reprodução
Assim é que podemos imaginar, com bases suficientes, um leitor do ano 2000, acordando, espreguiçando-se (nada indica que tal hábito tenha desaparecido ainda) (...) e, sem a mínima preocupação com a montagem técnica de uma fantasmagórica engrenagem informativa, comece a ver o seu jornal, teletransmitido desde 1990, pela eliminação dos déficits de canais de imagens e mensagens, graças aos novos meios de propagação (apud Santos; Silveira, 2000, p. 282).
Capa dos livros de Marcello Cassado D’Azevedo. Fonte: Biblioteca Fabico/ UFRGS
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Publicações de Marcello Casado D’Azevedo Conforme referências listadas ao final deste capítulo, o Sistema de Bibliotecas da UFRGS (Sabi) registra seis obras de Marcello Casado d’ Azevedo. Três delas, inclusive a primeira datada de 1970, pertencem à Série Cadernos Universitários, este editada pela Editora da UFRGS, sob a coordenação do professor Azevedo. O número 1, Comunicação Linguagem Automação traz na apresentação a indicação de que a Comissão Central de Publicações (CCP) pretendia “oferecer trabalhos e estudos elaborados por integrantes do Corpo Discente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul sob a orientação de seus mestres”. Os editores destacam uma das finalidades da CCP “estímulo à pesquisa e divulgação científica e literária (...)” e os objetivos: um, de colocar ao alcance do estudante o livro-texto, adequado aos currículos e programas adotados nas diversas unidades; outro, de estimular a pesquisa literária, tanto entre alunos como entre professores e funcionários (...) o aluno pode, muitas vezes, ser chamado a colaborar. A pesquisa do estudante traz, frequentemente, colorações novas, aspectos de originalidade e valiosa contribuição à cultura (Azevedo,1970, p.5-6).
Sobre o marco inicial dos Cadernos, segue a mesma Comissão: Começamos com alguns trabalhos sobre comunicação e informação, assunto de palpitante atualidade. Os temas foram desenvolvidos, em 1969, no programa da disciplina de Comunicação, na Faculdade de Arquitetura, sob a orientação do Prof. Marcello Casado d”Azevedo, docente, por igual, no Departamento de Comunicação da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação (Azevedo,1970, p.5-6).
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Na Introdução, Marcello aponta o nome da disciplina que originou a publicação “Teoria da Informação – Comunicação – Cultura de Massas” (Azevedo,1970, p. 7). Com 105 páginas, o volume 1 está dividido em cinco capítulos, que tratam aspectos da comunicação como processo social básico, como forma de linguagem e percepção, como unidade de informação, como processo de automação e desenvolvimento social. A série traz ainda outros volumes: o número 3, Pensamento Código Informação (Azevedo, 1972) e o quarto volume, Atenção Signos Graus de informação (Azevedo, 1973), que assim como o anterior, é fruto de trabalhos de alunos e grupos destes, na mesma disciplina e faculdade. O coordenador manifesta no início “ (...) a impressão de que aqueles que excursionam pela comunicação em nossos dias já têm certa experiência com linguagem menos lineares e de significado acentuadamente aberto, ambíguo e mesmo incompleto (...)” e nomeia alguns dos autores dos campos da Comunicação, Semiologia, Linguagem e Estruturalismo que são referenciados nos textos e, certamente, em suas aulas: Marshall McLuhan, Fiore, Décio Pignatari, Chaim Katz etc. (Azevedo,1972, p. 8). Observando as listas bibliográficas ao final de cada capítulo, nos três volumes, encontramos ainda David Berlo, Umberto Eco, Shannon & Weaver, Wilbur Schramm, Charles Peirce, dentre outros. Além da coordenação dos Cadernos Universitários, Marcello é autor de outras três publicações. Em Teoria da Informação (Azevedo, 1971) editado pela Vozes, o autor traz dimensão científica à área da comunicação, informação e tecnologia. A obra é considerada pelos editores como “primeiro manual universitário brasileiro sobre TI (Teoria da Informação)”. No texto, eles defendem uma nova conotação para as palavras manual “deixa de ser repositório de conhecimentos pretensiosamente acabados, para se transformar num conjunto estruturado de informações básicas capaz de estimular a pesquisa e a criatividade”; e universitário
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não é mais o monólogo solene dos velhos catedráticos, e sim o diálogo amistoso, onde o tom intimista predomina como característica de estilo, dando-lhe a feição de autêntica obra aberta” (Azevedo,1971, orelhas do livro 1 e 2).
Azevedo busca nesta edição fundamentos biológicos, físicos e matemáticos da TI; “rejeita fazer uma obra meramente especializada” e prefere “a globalidade na perspectiva e nas considerações”. O autor traça uma visão pragmática da TI e faz relação desta com “os fenômenos da cultura de massas” (Azevedo,1971, orelhas do livro 1 e 2). Importa destacar o conteúdo do capítulo introdutório; sob o título Generalidades o autor defende um estudo “global, genérico, mesmo quando busque aprofundamento dos temas” e em “linguagem acessível, com as devidas traduções, quando o jargão especializado for inevitável”. Segue indicando que irá referir, exemplificar e articular com “outras áreas do próprio assunto, ou mesmo de assuntos estranhos ao próprio trabalho”. Encerra informando que o principal desejo é que ao concluir a leitura o “amigo leitor” tenha “vontade de ler outros livros da mesma área de conhecimento” (Azevedo,1971, p. 10). A Realidade Científica é considerada em dois aspectos por Marcello (deixa as demais possibilidades a critério dos leitores): inicialmente, o binômio matéria-energia, que deu origem à atual realidade tecnológica, e que agrupa ciências como a física, química, mecânica, termodinâmica, resistência dos materiais e eletrônica. O autor “não cogita essa área científica daquilo que denominaríamos de aspectos interno de quaisquer dos elementos, inertes, vivos e nem mesmo humanos”. No segundo ponto ele agrega as demais áreas científicas não incluídas no campo energético que “buscam entender, formular, compatibilizar o Homem, e manter sob seu comando e controle as áreas de conhecimentos tecnológicos”. Como campo de estudo este tem dupla função: informa ao
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homem sobre a realidade tecnológica e, por outro lado, busca controlar a mesma área através de procedimentos eficazes e adequados para que o mesmo homem possa modificá-la e desenvolvê-la segundo suas necessidades e desejos. Este aspecto da realidade científica, processo entre homem e mundo tecnológico, o professor chama de comunicacional (Azevedo,1971, p. 12-13). Introduzindo sua Posição da Pesquisa, o professor destaca a pesquisa em comunicação como “chave de compatibilização entre as áreas científicas em desenvolvimento vertiginoso em nossos dias”. Atribui a ela papel de feedback, ou seja, para realimentar, autocorrigir ambas as realidades: somente a pesquisa devidamente estruturada, tratada, cultivada, permitirá uma interpretação adequada das atividades humanas nos campos energético e comunicacional, permitindo ao homem um integral cumprimento de sua evolução individual e como espécie (Azevedo,1971, p. 15).
O autor segue defendendo a pesquisa A possibilidade sempre maior de estudos, através de linguagens sempre mais adequadas e eficazes das realidades observadas, faz do campo da pesquisa uma vasta área ainda pouquíssimo explorada e valorizada apenas nos seus aspectos técnicos e utilitários.
Compara a valorização da pesquisa na área energética e os resultados que produziu e afirma (...) o processo é idêntico no que se refere à área comunicacional: carente de maiores recursos materiais e humanos em tal campo de trabalho, corre o risco de não recuperar o avanço que o campo tecnológico obteve (...).
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Marcello destaca a Cibernética, setor limítrofe entre as duas áreas, “onde a eficácia da informação como objeto está exigindo um trabalho maciço de pesquisa, com propagação necessária e imediata a outros campos da comunicação” (Azevedo,1971, p. 15). Oportuno acrescentar que Cibernética foi tema de outros dois livros de Azevedo, como veremos adiante. Ao defender o aprofundamento da pesquisa em comunicação, um “campo muito vasto, importante e complexo”, Azevedo cita o professor Marques de Melo, que identifica o tipo de pesquisa, com marca utilitária, que até então vinha sendo desenvolvido em nosso país “(...) pesquisa quantitativa, de circulação ou audiência, referida sempre à atividade de algum veículo de comunicação de massa”. O pesquisador gaúcho apoia-se nas palavras de Marques de Melo para indicar o que entende por pesquisa em comunicação: o estudo científico dos elementos que integram o processo comunicativo, a análise de todos os fenômenos relacionados ou gerados pela transmissão de informações, seja entre pessoas, grupos, ou públicos vastos... (Melo apud Azevedo, 1971, p. 16).
Marcello esclarece que a pesquisa em comunicação deve ser elemento integrador, que permitirá o desenvolvimento e a evolução adequada não somente da área de conhecimento específica para a qual eventualmente se dirija, mas em conjunto, na soma de todas as atividades de pesquisa dos diversos campos científicos.
E conclui “é a área que permitirá a devida interpretação e a correta visão do avanço possível do conhecimento humano” (Azevedo, 1971, p. 16). Para ratificar a sua posição sobre a pesquisa, o professor da Fabico refuta a especialização, como a da tecnologia em seu campo restrito, e afirma que
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muitos mais frutos e resultados poderão ser obtidos se, nos procedimentos científicos de qualquer área, a articulação permanente com as áreas correlatas for uma preocupação de primeiro plano em qualquer campo de conhecimento. E essa articulação, cientificamente construída, é o alvo principal da ciência da comunicação, responsável pelo estabelecimento dos processos de articulação entre os diversos campos de conhecimento, além de seu próprio campo de estudos (Azevedo, 1971, p. 17).
A parte final da Introdução do livro Teoria da Informação recebe o nome de Estudos prospectivos, nela o professor compara a função da comunicação (e implicitamente a pesquisa neste campo) com a dos faróis potentes de um carro que anda à noite na velocidade máxima. Defende o equilíbrio entre a área energética e as demais, para avaliar a “aceleração crescente das transformações que o mundo tecnológico obtém”, a área comunicacional pode oferecer “certa margem de visão em relação ao futuro, em relação às consequências que tal complexo pode e deve desencadear”. O autor inclui a comunicação e a cibernética como ciências prospectivas com capacidade para “predizer condições em detalhe razoável e avaliar de que modo os resultados dependerão das atuais escolhas (...)”. Ele encerra defendendo o feedback permanente das ciências prospectivas como útil à “autocorreção de toda a evolução científica, num procedimento dinâmico de aproximação e correções sucessivas, profundamente estimulantes e criativas” (Azevedo, 1971, p. 19-20). A obra Cibernética e Vida totaliza 146 páginas, publicada pela editora Vozes em 1972 e é, de acordo com o autor, o “primeiro texto brasileiro, especificamente, dedicado ao campo da ciência conhecida como Cibernética, sob uma visão global e com suas implicações sócio-culturais” (Azevedo, 1972, contracapa). Na Introdução o professor esclarece o objetivo do trabalho
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tentar um esboço das transformações culturais (pelo menos algumas delas) que a Cibernética estimulou ou acelerou, buscando uma visão, mais compatível com a realidade, do panorama cultural dos nossos dias, frente ao de alguns anos atrás.
Ele dedica o livro “aos que possuem inquietudes intelectuais em qualquer área do conhecimento humano” e pretende que cada leitor, assimilando o que escreveu, “reelabore em termos próprios o que tentamos transmitir, alterando consciente ou inconscientemente o processo que vive em seu próprio mundo” (Azevedo, 1972, p. 7-8). Azevedo faz, na parte inicial deste livro, retrospectiva a partir de Platão para quem cibernética “era a arte da pilotagem”; passa por Norbert Wiener (1948) “a teoria do controle e do comando, tanto no animal como na máquina”; chega a Pierre Latil (1968) “estudo das máquinas automáticas e dos seres vivos, naquilo que elas possuem de ‘sistemas autogovernados’, introduzindo assim o conceito de realimentação, autocorreção, feedback”; dá a visão de Louis Couffignal (1966) “que considera como área pertencente à cibernética a que estuda a arte de assegurar a eficiência da ação”. O autor finaliza conceituando: cibernética se configura como a ciência ou a arte do comando e do controle de um processo organizado, com capacidade de autocorreção e realimentação próprias, que lhe imprimem o máximo de eficiência (Azevedo, 1972, 10-12).
O tema cibernética, e sua articulação com a cultura, encerra a obra de Marcello D’Azevedo em Cibernética e Cultura. Na apresentação do livro, o professor Marques de Melo indica que o autor “demonstra a maturidade adquirida nestes anos de análise sistemática das relações entre Cibernética, Cultura e Comunicação”. Para ele, Azevedo rejeita “aquela posição de
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deslumbramento diante da tecnologia que ainda caracteriza muitos dos nossos pesquisadores”, completa observando que neste volume o pesquisador “proclama com absoluta convicção ‘a cibernética não é isolável da técnica, mas é grandemente conduzida pela ideologia’”. Melo recomenda o livro às novas gerações de profissionais de Comunicação Social como roteiro seguro para evitar uma compreensão distorcida da função daqueles instrumentos capazes de processar conteúdos dirigidos às grandes massas (Azevedo, 1978, orelha do livro).
Repercussão da obra de Marcello D’Azevedo Seria difícil medir o impacto da ação docente e do conhecimento produzido pelo professor Azevedo. Destacaremos dois aspectos apenas: inicialmente, em relação a uma das editoras que publicou seus estudos. A relevância da obra Teoria da Informação foi observada por Marcelo Fereira de Andrades em sua dissertação de Mestrado, orientada por Sérgio Capparelli, na Fabico, em 2001. No texto, Andrades revela uma das estratégias editorais da Vozes no período 1964-86: foi o “casamento da Editora com a produção universitária brasileira” concretizado com esse livro do professor Marcello Casado D’ Azevedo, coedição da Vozes com o Departamento Editorial da UFRGS, “(...) nasceu na experiência em salas de aula e agora, impresso, retorna à sala de aula. Ao mesmo tempo em que é pleno instrumento de trabalho, é veículo, é semente de cultura” (Neotti apud Andrades, 2001, p.84). Outra manifestação importante a respeito de Marcello Casado d’Azevedo foi escrita por Marques de Melo na apresentação de Cibernética e Cultura (Azevedo, 1978): “(...) uma dessas vocações singulares para o estudo da comunicação. Apesar da formação básica em área acadêmica diversa, despontou no panorama universitário brasileiro, conquistando imediatamente lugar
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de destaque”. Para o titular da Cátedra Unesco de Comunicação para o Desenvolvimento Regional, o ensino de comunicação no país beneficiou-se enormemente dessa “metamorfose intelectual” do professor Azevedo; Melo observa ainda que “no fim da década de 60, quando aqui se criaram as Escolas de Comunicação, ele foi rapidamente absorvido por esse novíssimo setor do sistema universitário brasileiro” (Azevedo, 1978, orelha do livro). Analisando as contribuições do professor gaúcho, Marques de Melo aponta o “resultado mais significativo dessa sua dedicação à análise cibernética dos fenômenos sociais da comunicação foi o livro Teoria da Informação” (Azevedo, 1978, orelha do livro). O atual decano da Comunicação no Brasil considera o autor um humanista, “suas preocupações intelectuais ganharam novo rumo concentrando-se na Cibernética” e destaca o entusiasmo que mantinha pelas relações entre a tecnologia e a vida social: (...) ganharam tal dimensão que alunos de diferentes setores, principalmente de Ciências Humanas, começaram a inscreverem-se nos seus cursos de Cibernética e Teoria da Informação, antes programados especificamente para engenheiros e arquitetos” (Azevedo, 1978, orelha do livro).
Considerações finais O professor Marcello Casado D’Azevedo, visionário e ao mesmo tempo desbravador, foi também pesquisador e cientista, perseguiu saber mais para satisfazer as suas necessidades intelectuais, para enriquecer as suas aulas e motivar os estudantes. Ele inaugurou, na Universidade Federal do Rio Grande do Rio Grande do Sul, processo de reflexão teórica sobre Comunicação, concomitantemente às práticas de ensino-aprendizagem: produziu conhecimento, publicou e disseminou ideias; fez muito para o campo da Comunicação quando este começava a adquirir corpo. O
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professor, falecido no início da década 1980, deixou seis volumes publicados e uma geração de comunicadores formados, muitos deles seguindo o ciclo virtuoso da educação-academia. Embora não tenha chegado a formalizar nem a institucionalizar projetos de pesquisa, Azevedo seguiu os trâmites possíveis ao estágio da área naquele tempo, cumpriu a missão da universidade, promoveu a articulação e a integração das ciências e, principalmente, do ensino com a pesquisa, e vice-versa.
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Lauro Quadros “É isso aí e mais meio quilo de farofa”1 Carlos Gustavo Soeiro Guimarães Luiz Artur Ferraretto
O narrador Armindo Antônio Ranzolin descreve com precisão o lance que dá origem ao gol marcado por Baltazar Maria de Morais na decisão do Campeonato Brasileiro de Futebol de 1981, quando o Grêmio Football Porto-Alegrense derrota por um a zero o São Paulo Futebol Clube. Na sequência do relato, o repórter João Carlos Belmonte reproduz os detalhes da jogada com semelhante minúcia. O plantão de estúdio Antônio Augusto disseca os pormenores do acontecimento e transmite o significado daquele gol e suas consequências para o título que chegará minutos depois. O último a participar do relato é Lauro Quadros, comentarista da Rádio Guaíba, neste ano de 1981. À parte da emoção de Ranzolin, da precisão técnica de João Carlos Belmonte e da interpretação fria e matemática de Antônio Augusto, o comentarista traduz o momento com sua habitual picardia: “O São Paulo agora vai ficar doido, maluco, atucanado” (Rádio Guaíba AM , 1981). Os termos utilizados fazem parte, evidentemente, de uma linguagem figurada, não literal. O próprio uso da palavra “atucanado” – “amolado, aborrecido, apoquentado” (Ferreira, 1981, p. 159) – não é habitual na ainda sisuda Rádio Guaíba. A expressão é utilizada, especialmente no Rio Grande do Sul, para explicar um estado de espírito 1
Trabalho apresentado no GT de História da Mídia Sonora, integrante do 11º Encontro Nacional de História da Mídia.
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nervoso, desequilibrado ou atordoado. É, portanto, um termo da linguagem coloquial, quase uma gíria. Desde os anos 1960, a utilização de vocábulos similares a este marca um estilo de falar ao microfone introduzido e consagrado por Lauro José de Quadros. Possivelmente, se fosse seguir a trajetória dos comentaristas esportivos da década anterior, a de 1950, o termo “atucanado” jamais apareceria no momento do gol, o mais importante de uma jornada esportiva2. Os primeiros profissionais a exercerem esta função adotavam uma linguagem que se aproximava da crônica, apropriando-se do estilo formal empregado em jornais e revistas (Guimarães; Ferraretto, 2016, f. 6). Com a chegada de Ruy Carlos Ostermann à Guaíba, em 1962, partiu-se para o chamado rádio retórico, “com um palavreado bonito, usando expressões cheias, redondas, que davam um colorido especial à frase” (Ostermann apud Dalpiaz, 2002, p. 103). Contrariando o predominante à época no rádio de Porto Alegre, Lauro Quadros introduz a linguagem coloquial no comentário esportivo: Repórter descontraído, comentarista descontraído [...] E aí surgiram os bordões até hoje lembrados. “Esse cara conhece o rengo sentado e o cego dormindo.” Nesta onda do politicamente correto, quem aceitaria expressões como estas? De qualquer forma, foram frases que marcaram. Outras: “Fulano sabe a cabeça que tem piolho.” “Esse conhece o caminho da roça.” “É isso aí e mais meio quilo de farofa.” “Esse tem farinha no saco.” (Quadros, 2015. p. 36).
Reduzir a importância de Lauro Quadros à introdução de uma linguagem pendente para o popular no radiojornalismo esportivo de então é minimizar em demasia a importância deste profissional, um dos principais comunicadores de rádio da capital gaúcha durante quase seis décadas. Autodidata por definição (Quadros, 27 mar. 2017), o jornalista e radialista começou como 2
A transmissão ao vivo de um evento esportivo, em geral de jogos de futebol.
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locutor comercial e plantão esportivo. Posteriormente, passou pela reportagem de campo e pelos comentários na cabine, além de atuar em outros meios, como jornal e televisão. Homem de rádio que redefiniu o texto do comentário esportivo, Lauro Quadros também tem importância ao incentivar a participação do ouvinte na programação, uma das bases do fazer radiofônico na atual fase de convergência3.
Dos alto-falantes do Colégio Rosário à Copa de 1962
Lauro José de Quadros nasceu em 19 de setembro de 1939, em Porto Alegre. Na época, seus pais residiam no Litoral Norte do Rio Grande do Sul, às margens de uma lagoa que leva o sobrenome da família, a Lagoa dos Quadros, a aproximadamente 110 km da capital, onde viveu até 1945. Ainda na infância, a morte do pai, José Medeiros de Quadros, seria decisiva em sua trajetória: Perdi meu pai aos quatro anos de idade. Minha vida poderia ter sido completamente diferente, já que certamente ficaria por lá cuidando dos campos, talvez estudando Direito, que era o usual. Com cinco anos, viemos – eu, minha mãe Inês e meu irmão Odone – para Porto Alegre. Nós fomos morar no bairro Petrópolis, onde as coisas começaram a acontecer (Quadros, 27 mar. 2017).
Uma vez estabelecido na Zona Leste de Porto Alegre, Lauro Quadros ingressou no Colégio Santa Inês, localizado próximo de 3
“A gradativa consolidação da telefonia celular, introduzida no país em 1990, e da internet, cujo acesso comercial é liberado aos brasileiros no ano de 1995, vai fazer com que se conforme uma nova fase histórica em termos de rádio, na qual influenciam também novos modos de acesso à informação e de relacionamento derivados destas duas tecnologias. Sem excluir a ideia de focar o conteúdo em parcelas da audiência, as emissoras, em realidade, ultrapassam este tipo de posicionamento: em um processo que começa a ganhar força no final da primeira década do século 21, passam a buscar não apenas o segmento específico, mas se conscientizam da necessidade de estarem com sinal disponível a esta parcela da audiência independentemente do suporte técnico utilizado.” (Ferraretto, maio-ago. 2012, p. 17-18).
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onde morava. Na escola, a comunicação e a eloquência já eram características acentuadas em sua personalidade por “fatores genéticos e ambientais” (Quadros, 27 mar. 2017). Na época, fortemente influenciado pela mãe, que o ensinou a declamar diversos poemas, Lauro já recitava de memória. Em 1949, com dez anos, a pedido das freiras do colégio, faria um discurso em homenagem ao então novo arcebispo de Porto Alegre, Dom Vicente Scherer. Já no Colégio Rosário, em 1950, Lauro Quadros conhece Milton Ferretti Jung, que posteriormente seria seu colega na Rádio Guaíba: O Milton e eu fomos fazer um teste na Rádio Metrópole4. Eu tinha 15 anos e não fui aprovado em função da idade. Na época, nós já fazíamos o serviço de alto-falantes do Rosário. Apesar da idade, eu declamava poesias de Castro Alves no sistema. O Milton era um dos locutores. Havia alto-falantes nas salas de aula e emissão de mensagens. Então, eu era responsável por declamar, pela parte da oratória (Quadros, 27 mar. 2017).
Na primeira metade da década de 1950, Porto Alegre contava com duas grandes emissoras de rádio, a Farroupilha e a Gaúcha, disputando a preferência dos ouvintes com uma programação baseada no espetáculo das novelas, humorísticos e programas de auditório; uma de médio porte, a Difusora, de conteúdo mais musical, mas, por vezes, abrindo maiores espaços para o esporte; e duas pequenas, a Itaí e a Metrópole, ambas tentando sobreviver à base de músicas, dedicatórias e um ou outro programa a emular o oferecido pelas estações maiores (Ferraretto, 2007). Na época, conforme a periodização aqui adotada como referência, vivia-se a fase de difusão, cuja programação voltava-se, majoritariamente, para o espetáculo – dramaturgia, atrações ao vivo no auditório etc. –, com espaços reduzidos destinados à 4
Emissora de menor porte cujos estúdios ficavam na Zona Norte de Porto Alegre.
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cobertura esportiva, à música gravada e aos noticiários. Tratado sem considerar especificidades de gosto, o público era, assim, “tomado como um todo ao qual se destina a programação, uma série de conteúdos trabalhados segundo uma média de gosto” (Ferraretto, maio-ago. 2012, p. 13). Lauro Quadros, obviamente, foi influenciado pelo conteúdo das emissoras locais e também pelo de estações mais distantes e facilmente sintonizadas na Porto Alegre dos anos 1940 e 1950, como a Rádio Belgrano, de Buenos Aires, ou a Rádio Nacional, do Rio de Janeiro. Não seria insensível também aos fatos do esporte. É o caso da Copa do Mundo de 1950, que teve jogos realizados na capital gaúcha e transmissão da final por emissoras do Rio Grande do Sul. Com o Maracanaço – a surpreendente vitória da Seleção Uruguaia sobre a Brasileira por 2 a 1 –, houve uma intensificação das transmissões esportivas. Entre os fatores a se considerar neste processo, destacam-se: (1) a introdução da televisão no Brasil e o primeiro jogo transmitido ao vivo pelo novo meio, entre Palmeiras e Santos, no Estádio do Pacaembu, em 15 de outubro de 1950 (Ribeiro, 2007, p.135); (2) a popularização dos receptores transistorizados de rádio, que passam a ser comuns a partir do início da década seguinte, ganhando presença mais forte ainda com a realização da Copa do Mundo de 1962, no Chile (Ferraretto, maio-ago. 2012, p. 14); (3) o advento das cabines de transmissão nos estádios; e (4) a formação de um departamento específico de jornalismo esportivo dentro das emissoras. A respeito deste último, deve-se recordar que o rádio do final dos anos 1950 é marcado pela existência de equipes esportivas nas rádios Gaúcha e Guaíba, antecedente mais remoto de uma concorrência, apesar de alguns hiatos, forte nas décadas seguintes. É neste contexto que Lauro Quadros começa sua trajetória no rádio do Rio Grande do Sul, em agosto de 1959, na Gaúcha, dividindo-se entre o jornalismo esportivo e a locução comercial. No futebol, integra a equipe montada por Ary dos Santos, ocupando, de
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início, a função de plantão de estúdio5. Em 1960, transfere-se para a Rádio Difusora, onde encontra colegas que seriam marcantes em sua trajetória, como o narrador Armindo Antônio Ranzolin. Na emissora então recém-adquirida pela Ordem dos Frades Menores Capuchinhos, torna-se narrador, “um narrador diferente, com voz de tenor, ao contrário de outros da época, que eram barítonos” (Quadros, 27 mar.2017). Além de comandar a jornada esportiva, Lauro Quadros apresentava o programa Escolha e Peça, atração matutina que consistia em pedidos musicais dos ouvintes. Como narrador, retornou, seis meses depois, à Gaúcha, acompanhando pela emissora o Campeonato Gaúcho de Futebol de 1961, competição na qual o Sport Club Internacional quebraria a hegemonia do Grêmio Football Porto-Alegrense, que até então havia conquistado cinco títulos consecutivos. Também ficaria pouco tempo na rádio. Em 9 de janeiro de 1962, Lauro Quadros assinou contrato com a Guaíba, para ser repórter de campo, embora, de início, ainda atuasse, por vezes, como narrador. Seis meses após sua estreia, viaja para a cobertura da Copa do Mundo do Chile: Eu fui sorteado para ir à Copa do Chile pela Associação dos Cronistas Esportivos de Porto Alegre6. Ganhei com o número 14. O sorteio era entre os associados da entidade. Imediatamente, a Rádio Guaíba providenciou uma diária para mim, quase uma ajuda de custo. Fiz a cobertura com a Rádio Guaíba em 1962, como repórter. Eu também era o quinto narrador, mas era, de fato, repórter, o primeiro repórter. [...] A partir de então, passei a participar de grandes coberturas, como a decisão do Mundial Interclubes de 1963, entre Santos e Milan. (Quadros, 27 mar. 2017). 5
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Profissional responsável por fornecer informações adicionais a respeito do que acontece durante uma transmissão esportiva, situando o ouvinte com detalhes a respeito da campanha de uma agremiação ou de um atleta, além de noticiar resultados paralelos ao evento narrado. Entidade que, posteriormente, deu lugar à Associação dos Cronistas Esportivos Gaúchos (Aceg).
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No Chile, a Guaíba voltou a usar o sistema single side-band (SSB), ou banda lateral única, que seleciona a faixa lateral com menor interferência no ponto de irradiação, suprimindo as demais e gerando, desta maneira, um sinal de melhor qualidade. A tecnologia havia sido usada de forma inédita em 1958, permitindo que a emissora conseguisse conexão em dois sentidos entre o estúdio de Porto Alegre e os estádios durante a Copa da Suécia (Ferraretto, 2012). A partir de sua participação na cobertura dos jogos da Seleção Brasileira no Chile, Lauro Quadros começa a se consolidar como um repórter de estilo descontraído, marcado tanto por um padrão de fala mais coloquial, quanto, em alguns momentos, até pelo modo de se vestir, fugindo ao terno e gravata de então.
Lauro Quadros, como repórter em um grenal (1968). O jornalista e radialista entrevista o volante Élton, do Sport Club Internacional. Fonte: Acervo pessoal de Lauro Quadros.
A popularidade obtida como repórter da Rádio Guaíba permite que postule uma vaga na Câmara de Vereadores nas eleições de 1963. Concorrendo pela União Democrática Nacional (UDN),
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fica como suplente, assumindo, três anos depois, já pela legenda da Aliança Renovadora Nacional (Arena), fato lembrado com certa ironia pelo comunicador, taxado por alguns, em tempos mais recentes, como de esquerda:
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Com essa febre dicotômica de petismo e antipetismo, os que ouvem só levam em conta quando se pisa nos seus calos. Normal. Sou de esquerda? Tá bom. Mas, em 1966, fui vereador de Porto Alegre pela Arena. Claro, concorri pela UDN, que virou Arena depois da Redentora. Durma-se com um barulho desses. (Quadros, 2015, p. 56-57).
Ruy Carlos Ostermann e Lauro Quadros (fevereiro de 1962). Estreia de Ruy Carlos Ostermann como comentarista da Guaíba em jogo narrado por Lauro Quadros. Fonte: Acervo pessoal de Lauro Quadros.
Um pouco antes de Lauro Quadros tentar esta breve aventura política, ingressa na equipe da Guaíba o comentarista Ruy Carlos Ostermann, da Folha da Tarde Esportiva, jornal que, como a rádio, pertencia ao empresário Breno Caldas. Até o início da década de 1970, o estilo sóbrio e quase acadêmico deste último – de fato, professor de Filosofia – vai acentuar o contraste com a
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descontração de Lauro Quadros, profissional que já tinha ascendido então ao posto de comentarista.
A liderança da Guaíba e o estilo de Lauro Quadros Lauro Quadros afirma que o comentário esportivo divide-se em “antes e depois de Ruy Carlos Ostermann” (Quadros, 27 mar. 2017). A chegada de Ostermann à Guaíba, de fato, modifica a função. Em proposta de periodização em relação ao desenvolvimento do comentário esportivo no Rio Grande do Sul apresentada anteriormente (Guimarães; Ferraretto, 2016, f. 4), identificam-se três fases: (1) da crônica esportiva, do início da década de 1950 até o início dos anos 1970, na qual não existe o rigor formal do texto jornalístico mais contemporâneo; (2) do jornalismo esportivo, de meados dos anos 1960 até o início do século 21, em que a informação jornalística norteia a opinião; e (3) do jornalismo esportivo convergente, da segunda metade da década de 1990 até a atualidade, quando são inseridos elementos de análise tática e de desempenho a basear o posicionamento do profissional. A fase do jornalismo esportivo começa a despontar na Copa de 1966: É na Inglaterra [...] que Ruy Carlos Ostermann, ponderando prós e contras, sem deixar de reconhecer os méritos dos adversários, consolida-se [...], apresentando explicações para a péssima campanha da Seleção Brasileira – uma vitória por 2 a 0 na estreia contra a Bulgária e duas derrotas, frente à Hungria e a Portugal, pelo mesmo marcador de 3 a 1. No trabalho que realiza desde então, embasa seus argumentos, analisando a partida pelo número de arremates a gol, de chutes – fracos, com certa pretensão a exigir a intervenção do goleiro, ou muito fortes e bem-colocados, a obrigar grandes defesas –, de jogadas bem ou mal finalizadas, de escanteios cobrados ou cedidos, de faltas etc. Enfim, uma série de detalhes cuidadosamente planilhados que podem ser resumidos em uma única palavra: informação.
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Bacharel em Filosofia, leva bagagem cultural ao ambiente esportivo, sem deixar de conferir caráter jornalístico a suas opiniões [...] (Ferraretto, 2007, p. 492).
A planilha revolucionou os comentários esportivos nos anos 1960 e foi incorporada à prática dos analistas da época. Já sob a vigência desta nova metodologia, Lauro Quadros torna-se comentarista em 1969 na Guaíba, quando Ostermann se transfere para a Gaúcha, em um curto período antes da Copa de 1970. De fato, era para ter trocado também de emissora, mas justamente a possibilidade de deixar a reportagem faz com que permaneça na rádio de Breno Caldas. Alçado a comentarista, começa a definir um estilo mais descontraído marcado pelos bordões citados anteriormente: Até hoje o pessoal passa por mim e me reconhece pelos bordões. Mas eu tomei cuidado para que eu não fosse refém dos bordões. Quando comecei como comentarista, houve uma certa reação. O Pedro Carneiro Pereira [chefe de Esportes da emissora e principal narrador esportivo daquele momento no Rio Grande do Sul] pedia para que eu desse uma controlada. De fora para dentro, havia uma repercussão muito positiva, porque as pessoas começaram a repetir meus bordões. Então, entendi que meu estilo começou a pegar entre os ouvintes, que gostavam do que eu fazia (Quadros, 27 mar. 2017).
Quando, após as eliminatórias da Copa de 1970, o professor retorna para a Guaíba, cria-se, no imaginário do ouvinte, uma rivalidade entre os dois profissionais de estilos opostos: de um lado, o correto e quase acadêmico Ruy Carlos Ostermann e, de outro, o popular e descontraído Lauro Quadros. Se Ruy atacava com um vocabulário refinado, Lauro contra-atacava com o idioma do povo. Se Ruy queria servir um prato rebuscado de escargot, Lauro apresentava um arroz com feijão bem
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temperadinho, parecido com almoço de avó, cheio de amor, carinho e sabor. O que Lauro propôs ao grande público era simples, mas não era básico ou chulo, era algo muito mais próximo do que é o comentário esportivo nos dias de hoje. [...] Era simples, direto e objetivo, passava uma mensagem clara, com boa dose de humor ou fantasia, capaz de cativar qualquer fã de futebol, não por acaso (Grabauska; Maicá, 2016, p.148-149).
Nos anos 1970, a Guaíba intensificou a sua cobertura esportiva, apesar de ter enfrentado a morte trágica do chefe do seu Departamento de Esportes. Além de narrador, Pedro Carneiro Pereira era um entusiasta do automobilismo, competindo em diversas provas da classe Turismo. No dia 21 de outubro de 1973, correndo com um Opala, número 22, sofreu um acidente fatal. No mesmo momento, a Guaíba transmitia jogos do Campeonato Brasileiro. Após irradiar 15 minutos de Internacional e São Paulo, Armindo Antônio Ranzolin interrompeu a transmissão, anunciando o falecimento de Pedro Carneiro Pereira. A reação do público presente, aplaudindo durante alguns minutos, atesta a impressionante audiência da Guaíba naquele momento (Rádio Guaíba AM , 21 out. 1973). O incidente não barrou o processo de aprimoramento jornalístico da cobertura esportiva já em curso na emissora: Em outubro de 1973, ao assumir a direção do Departamento de Esportes, Armindo Antônio Ranzolin coloca na coordenação do setor Antônio Britto Filho, que, dando continuidade a um processo iniciado ainda com Pedro Carneiro Pereira, introduz a pauta e organiza o trabalho diário dos setoristas. Como preparação às jornadas esportivas, passam a ocorrer reuniões, planejando as atividades de cada integrante da equipe (Ferraretto, 2007, p. 497).
Em paralelo, desde o início da década de 1970, Lauro Quadros integra a equipe da TV Difusora, emissora ligada aos
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frades capuchinhos, e participa de programas como o telejornal noturno Câmera 10, o noticiário esportivo Camisa 10, a mesa-redonda Jogo Aberto e o programa de variedades Portovisão. Fora isto, assina uma coluna diária no jornal Folha da Manhã, transferida posteriormente, com o término da publicação, para a Folha da Tarde. A Gaúcha havia retomado a cobertura esportiva na Copa de 1974 na Alemanha Ocidental, depois de três anos sem irradiações de jogos de futebol. Os bons resultados obtidos encorajavam novos investimentos. Assim, em 1976, houve uma nova tentativa de contratar Lauro Quadros, visto como a parceria ideal para o narrador Haroldo de Souza, de estilo bem mais descontraído do que o de Armindo Antônio Ranzolin e despontando como uma das atrações da emissora. Pressionado a deixar também a TV Difusora, o bom contrato com os capuchinhos pesaria na decisão, fazendo com que o jornalista e radialista permanecesse na Guaíba. Em 1978, a Gaúcha voltou à carga sobre os profissionais da concorrente, contratando Ruy Carlos Ostermann. A saída de um dos dois principais comentaristas da Guaíba coincide com o início do processo de agravamento da crise financeira dos empreendimentos de Breno Caldas na área de comunicação. Embora chegue a colocar no ar a TV2 Guaíba (1979) e a Rádio Guaíba FM (1980), deixam de circular, nos anos seguintes, os seus jornais – primeiro a Folha da Manhã (1980) e, depois, juntos, o Correio do Povo e a Folha da Tarde (1984). A Guaíba AM não sai ilesa da crise que levará ao repasse, em 1986, de todos estes negócios ao empresário Renato Ribeiro. No segundo semestre de 1984, há o desmonte da equipe da emissora. Para a Gaúcha, saem, entre outros, Armindo Antônio Ranzolin, e para a Pampa, que passa a investir em jornalismo, transfere-se um contingente significativo de profissionais, entre os quais está Lauro Quadros. Até 1985, quando é contratado pela então Rede Brasil Sul de
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Comunicação7, controladora da Rádio Gaúcha, trabalha também na TV Pampa e no Jornal do Comércio.
Lauro Quadros (1979). Na época, o jornalista e radialista aparecia como o primeiro comentarista da Rádio Guaíba no material gráfico do disco comemorativo aos 10 anos de inauguração do estádio do Sport Club Internacional. Fonte: Rádio Guaíba. 1969-1979 – 10º aniversário do Estádio Beira-Rio, Porto Alegre, 1979. LP.
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Atual Grupo RBS.
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Lauro Quadros fora do esporte e em tempos de convergência
Em meados dos anos 1980, o cenário radiofônico de Porto Alegre mudara muito em relação ao da década anterior. Se durante a Copa do Mundo de 1978, na Argentina, a Guaíba ainda mantinha 43,5% de ouvintes a mais do que a Gaúcha, quatro anos depois, na Espanha, ambas as emissoras apareciam praticamente empatadas, embora na rádio de Breno Caldas ainda estivessem profissionais como Armindo Antônio Ranzolin e Lauro Quadros. (Ferraretto, 2007, p. 237). O ano de 1986 ofereceria as oportunidades para que a Gaúcha se consolidasse como a líder do segmento de jornalismo, aproveitando as coberturas da Copa do Mundo, no México, e das eleições para os governos estaduais, assembleias legislativas e Congresso Nacional. Deste modo, nos meses de junho e novembro, o Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística registrou que a emissora havia obtido aproximadamente o dobro da audiência de sua principal concorrente (Ferraretto, 2007, p. 244). Um pouco antes, em agosto de 1985, a convite de Flávio Alcaraz Gomes, que havia assumido a gerência-executiva da Gaúcha, Lauro Quadros transferiu-se para a rádio da RBS. Na emissora, aproveita a experiência anterior na Pampa, onde apresentara a radiorrevista8 Misto Quente. Assim, passa a conduzir, de segunda a sexta-feira, das 9h30 às 12h9, o Programa Lauro Quadros, com convidados, debates e assuntos variados. Passa também a escrever no jornal Zero Hora e apresentar comentários na RBS TV. Como analista de futebol, o comunicador ainda cobriria três Copas do Mundo: em 1986, no México: em 1990, na Itália; e em 1994, nos Estados Unidos. Nesta última, despediu-se dos microfones das jornadas esportivas com a conquista do tetracampeonato mundial pela Seleção Brasileira: 8
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Tipo de conteúdo também conhecido como programa de variedades, caracterizando-se por incluir espaços fixos dedicados à cultura e ao lazer, intercalados com orientações nas áreas de Medicina ou de Direito, sem desconsiderar, por vezes, a abordagem dos fatos mais importantes do dia. Mais tarde, o término seria antecipado para 11h.
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Era uma convicção minha. Foram 34 anos sem finais de semana. Algumas pessoas tentaram me convencer do contrário, mas eu já tinha decidido. Coincidiu com um grande título do Brasil e achei que era o momento (Quadros, 27 mar. 2017).
Ao longo deste período, Lauro Quadros (27 mar. 2017) explica que não esteve presente em apenas duas Copas do Mundo. Na da Inglaterra, em 1966, uma parceria da Guaíba com a estatal alemã Deutsche Welle limitou o número de credenciais para os profissionais da rádio. Também se ausentou na de 1970, no México, quando houve a sugestão de que cobrisse o campeonato como repórter em função do retorno de Ruy Carlos Ostermann à emissora. Deixando as jornadas esportivas, Lauro Quadros foi convidado para apresentar um talk-show na TVCOM, emissora em UHF da RBS, que operou de 1995 a 2015. O Estúdio 36 seguia a mesma linha do programa da rádio, apenas abrindo mais espaço para atrações musicais, algo que o formato da atração da Gaúcha não comportava. Em 1999, o Programa Lauro Quadros deu lugar ao Polêmica, uma mesa-redonda com três ou quatro convidados, incluindo uma novidade para a época: a disponibilização de números de telefone que permitiam ao ouvinte votar respondendo a uma questão do tipo sim ou não, ponto e contraponto. Os dados eram computados por meio de um software específico, permitindo ao apresentador e aos seus convidados trocarem também impressões sobre as opiniões do público. Mais tarde, este mecanismo seria associado a mensagens de texto tipo SMS, de correio eletrônico ou das redes sociais. A pergunta do dia e os resultados da chamada Interativa do Polêmica também eram publicado no jornal Zero Hora. Tomando como base o que afirma Jenkins (2009, p.30), pode-se dizer que o programa estava sintonizado com a cultura da convergência, na qual produtores e consumidores de mídia
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interagem de acordo com um novo conjunto de regras. De fato, no Polêmica, a audiência era determinante para uma espécie de resultado final sobre o tema que era proposto.
Anúncio do programa Polêmica (agosto de 2003). Fonte: Zero Hora, Porto Alegre, 10 ago. 2003. p. 23.
A respeito de seu período como apresentador de programas matutinos, Lauro Quadros recorda alguns momentos marcantes. Por exemplo, a interrupção do Polêmica para que a Gaúcha passasse
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a acompanhar – em um primeiro momento, com ele de âncora – o desenrolar dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001: Neste dia, uma das convidadas era a então deputada estadual Maria do Rosário e eu tive que interrompê-la na sua segunda frase. Estranhei a cena e, logo, o Nelson Sirotsky [presidente da RBS na época] entrou de Nova Iorque. Ele estava por lá. Foi uma cobertura marcante, com uma grande repercussão. (Quadros, 27 mar. 2017).
Nada seria, no entanto, tão impactante quanto o episódio de 19 de setembro de 1986, quando Luis Carlos Rodrigues Abdo, arma em punho, invade outra emissora, a Rádio Capital, afirmando que pretendia revelar o terceiro segredo de Nossa Senhora de Fátima e, para isto, exigia falar justamente com Lauro Quadros, naquele momento no estúdio da Gaúcha. Durante quase três horas, o comunicador permaneceria em contato telefônico com o invasor até que este se rendesse à Polícia Militar (Rádio Gaúcha, 25 set. 2016). Outra atração da Rádio Gaúcha na qual o jornalista e radialista teve intensa participação foi o Sala de Redação, programa esportivo que, desde 1971, inicia as tardes da emissora. Lauro Quadros integrou a equipe de 1985 a 2014, muitas vezes como substituto de Ruy Carlos Ostermann, no comando da mesa-redonda. Em todas estas atividades, o jornalista e radialista buscou sempre o que considera uma atitude profissionalmente neutra: Considero-me obsessivo-compulsivo em matéria de imparcialidade, isenção. No programa Polêmica, por exemplo, essa preocupação era notória. Dois debatedores de um lado com uma opinião e, do outro, dois debatedores com ponto de vista contrário. O contraditório, o equilíbrio (Quadros, 2015, p. 56).
Em 2014, Lauro Quadros anunciou a sua aposentadoria, deixando o microfone, decisão considerada pelo próprio como
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definitiva (Quadros, 27 mar.2017). Tão definitiva quanto a neutralidade ainda conservada por este jornalista e radialista após quase seis décadas do primeiro contrato com uma emissora. O público segue sem saber, afinal, para qual time o comunicador dos bordões criativos torce.
Considerações finais É curioso como uma das tiradas mais conhecidas pelos ouvintes do Sul do país nos anos 1970 pode ser aplicada ao seu criador. Qual afinal, então, o “mais meio quilo de farofa” de Lauro Quadros? Basta lembrar que este jornalista e radialista nunca se limitou a apenas uma área do fazer radiofônico. Passou por todas as funções de uma jornada esportiva: narrador, comentarista, plantão esportivo e repórter. Levou para mesas-redondas e radiorrevistas as características destas funções, mantendo a descrição dos fatos, a análise e a contextualização destes e o tino para a pergunta precisa. Entender o significado deste profissional para o rádio e para a comunicação do Rio Grande do Sul é também refletir sobre seu próprio legado e admitir que o modo de falar no jornalismo esportivo hertziano divide-se em um antes e um depois de Lauro Quadros. Nos anos 1960, época de vocabulário técnico, formal, sisudo e essencialmente engessado, começou, como repórter de campo, a adotar expressões mais coloquiais. Na contemporaneidade, se há a predominância de um texto conversado e menos formal, existe um tanto de contribuição deste comunicador. Sua importância, no entanto, não se restringe à forma de falar. O incentivo à participação dos ouvintes demonstra a sintonia de Lauro Quadros com a convergência bem antes das redes sociais. Ao longo de sua carreira, também foi um profissional de características multimidiáticas, conciliando espaços no rádio, na televisão e em jornal, não apenas na cobertura esportiva, mas abordando vasto repertório de assuntos.
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Procurou-se, portanto, estabelecer o necessário reconhecimento a respeito do legado de Lauro Quadros para o segmento de jornalismo, uma vez que, pelo seu profissionalismo e por suas capacidades, ajudou a redefinir a estrutura, a forma e o conteúdo do rádio comercial de Porto Alegre. Levando em consideração as transformações culturais, econômicas, políticas, sociais e tecnológicas pelas quais o meio rádio passou na segunda metade do século 20, este comunicador influenciou programas, modos de produção, radialistas e jornalistas que vieram posteriormente. Diante desta relevância, salienta-se que Lauro Quadros foi essencial para a atual configuração do rádio de Porto Alegre.
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Referências
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Ricardo Chaves A trajetória de um fotojornalista Andréa Brächer Sandra Maria Lúcia Pereira Gonçalves
Introdução O presente artigo tem como objetivo principal traçar, historiando, a carreira do fotógrafo e editor de fotografia gaúcho Ricardo de Leoni Chaves (Ricardo Chaves), conhecido carinhosamente no meio jornalístico como Kadão. Marco no fotojornalismo praticado no Rio Grande do Sul, por vinte anos editor de fotografia do jornal Zero Hora, Ricardo Chaves tem acompanhado os principais momentos do Estado, do país e do mundo, cobrindo acontecimentos dos mais variados matizes, seja a serviço dos jornais Zero Hora, Estado de S. Paulo ou nas revistas semanais de informação Veja e Istoé, entre outras publicações jornalísticas de grande porte no Brasil. Em seguida, se aborda o fazer fotojornalístico praticado por Ricardo Chaves, seja produzindo ou editando fotografia. Acredita-se que a fotografia praticada por Ricardo Chaves, seja na captura de imagens ou edição das mesmas, é indicativa de uma fotografia dita Menor (Gonçalves, 2006). Menor aqui se refere a uma fotografia com potência reflexiva, que retira o leitor de sua zona de conforto, levando-o a ser um caçador do sentido, como o fotógrafo. Tal modo de fazer fotojornalístico, principalmente no fotojornalismo diário, se coloca como uma prática de vanguarda, saindo do mainstream.
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Dentro da vasta e extensa produção fotojornalística de Ricardo Chaves, escolheu-se comentar com maior profundidade as reportagens apontadas por ele em entrevistas dadas às autoras desse artigo (2015a, 2015b) e detalhadas em seu livro A Força do Tempo (2016). Quanto às fotografias comentadas na segunda parte deste artigo, a escolha foi feita a partir da potência que apresentam no seu aspecto de Fotografia Menor, ao mesmo tempo em cada uma delas representa um período de trabalho de Ricardo Chaves. O referencial para a construção do artigo tem origem em entrevistas com o fotógrafo, bem como de publicações sobre o mesmo (jornais, revistas) e documentos e materiais fornecidos pelo profissional. Para tratar de questões propriamente fotojornalísticas se utiliza Sousa (2004). Gonçalves (2009) auxilia na construção do conceito de Fotografia Menor e Rouillé (2009) na definição do que seja a Fotografia Expressão.
Histórias da Fotografia de Ricardo Chaves Início de carreira Ricardo Chaves nasceu em Porto Alegre, em julho de 1951. Filho do meio de uma família de classe média, passou a infância em sua cidade natal. Seu pai era jornalista e sua mãe, professora de música. O pai formou-se em jornalismo na primeira turma da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RS) e a mãe formou-se no Instituto de Belas Artes (hoje Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Kadão, como é conhecido, declarou seu interesse por mecânica desde cedo e durante o ensino médio fez o “Curso de Técnico em Máquinas e Motores” na Escola Técnica Parobé. Após experimentar fotografar com a câmera fotográfica do tio, inscreve-se em uma palestra sobre fotojornalismo promovida pela Associação Rio-grandense de Imprensa (ARI). Seu interesse cresceu pelo assunto e ele então passou a fotografar de modo mais consciente e focado.
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Seu primeiro rolo de filme completo foi utilizado para capturar imagens de corridas de carros, que aconteciam na Zona Sul de Porto Alegre. Para revelar seu filme de estreia foi à procura do fotógrafo Léo Guerreiro. Foi ele que lhe indicou Assis Hoffmann, chefe da fotografia no jornal Zero Hora, para buscar uma oportunidade na área. O ano era 1969. Após se apresentar, demonstrar seu interesse em aprender, não recebeu uma oferta de emprego, mas a possibilidade de frequentar o jornal a fim de conhecer as rotinas do setor de fotografia. Kadão passou a frequentar a redação todos os dias, após às aulas da escola e do almoço em casa. Costumeiramente ficava até umas oito horas da noite. Esse período durou alguns meses, até ser contratado como auxiliar de laboratório. [...] Comecei a aprender a fazer as coisas mais elementares dentro da fotografia, e comecei a me sentir um pouco participante daquele processo todo de botar o jornal na rua, que é realmente fascinante. Até hoje eu me emociono ao ver uma rotativa imprimindo o jornal. Acho uma coisa fantástica. Mesmo quando eu fazia uma coisa mais simples, que era carimbar uma cópia fotográfica nas costas, com o nome do autor da foto, data e assunto, e levar na redação e entregar na editoria certa, o fato daquela foto ter passado pelas minhas mãos e depois vê-la publicada no jornal já me enchia de satisfação em ter participado daquele processo [...] (Chaves, 2015a).
Rapidamente, em menos de um ano, Ricardo Chaves já estava contratado e fotografando para a Zero Hora. Iniciou fazendo polícia e turfe, e passou para outras pautas ao longo do tempo. Convidado por Hoffmann (que já havia saído de Zero Hora) passou a trabalhar na Agência Focontexto, cujos sócios eram Assis Hoffmann, Léo Guerreiro e Pedro Flores. Segundo Kadão, “Lá, faziam de tudo um pouco: painéis fotográficos, fotos de publicidade, audiovisuais, fotos de estúdio, e também atendiam às sucursais dos
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grandes jornais brasileiros que mantinham escritórios estruturados em Porto Alegre” (Chaves, 2016: 39). Sua carreira então recém iniciada com muito interesse, aprendizado e dedicação, iria atingir novos horizontes nos anos seguintes. Na Agência Focontexto, no ano de 1971, teve o convite para participar de sua primeira cobertura internacional: o pleito presidencial no Uruguai. Segundo Kadão: Aquela eleição assumia muita importância para a América Latina, porque o país vizinho oscilava entre a ditadura direitista de Médici no Brasil e o socialismo de Salvador Allende no Chile, e ainda se encontrava sacudido pela forte atuação dos guerrilheiros Tupamaros (Chaves, 2016: 41).
As fotografias (figuras 3 e 4 – apresentadas na segunda parte do artigo) ilustram as imagens capturadas por ele no Uruguai. As fotos da reportagem ganharam visibilidade nacional e foram publicadas na revista Veja e no jornal O Estado de S. Paulo. Registra-se o fato de que o fotógrafo, à época, era menor de 21 anos, e precisou de autorização do pai com firma reconhecida em cartório para poder viajar ao exterior desacompanhado – uma exigência da Polícia Federal naqueles anos (Chaves, 2016: 42).
Carreira em ascensão, projeção nacional e internacional Um pouco mais de um ano trabalhando na Focontexto, novo convite surgiu na carreira de Ricardo Chaves, e este passou a trabalhar na sucursal do Jornal do Brasil no sul. Após um período no JB, com 23 anos, decidiu ser freelancer. Neste período fez fotografias para Editora Abril e teve imagens publicadas nas revistas Veja, Placar, Quatro Rodas, Playboy, Abril Tech (Chaves, 2015a). Ao completar, em 1974, os 10 anos de cassação dos direitos políticos promovida pelo golpe de 1964, a revista Veja decidiu
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mandar enviados especiais ao encontro do ex-presidente João Goulart e do ex-governador do Rio Grande do Sul e ex-deputado federal pelo Rio de Janeiro, Leonel Brizola. Junto ao repórter Luiz Cláudio Cunha, foram para Soca, um lugar a menos de cem quilômetros de Montevidéu, onde se encontrava o exilado brasileiro Leonel Brizola, transformado em pequeno fazendeiro. Com a chegada da equipe, surpreso, Brizola em um primeiro momento declarou que não daria entrevista nem posaria para fotografias (Chaves, 2016: 132). Mas ao longo do dia, com a anuência de Brizola, a equipe foi testemunhando seu cotidiano e adquirindo confiança para, afinal, registrar um filme inteiro. Leonel Brizola ofereceu carona de volta a Montevidéu à dupla, em sua Kombi, e lá chegando, decidiu que poderiam atribuir a ele duas frases: “A primeira: “Fui derrotado militarmente, e não politicamente”. A segunda: “Vou Voltar!”(Chaves, 2016: 133).
Leonel Brizola no exílio - Uruguai, fotografia de Ricardo Chaves, 1974. Fonte: Arquivo pessoal do fotógrafo.
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Sobre o episódio, Ricardo Chaves declarou em seu livro: Do alto da minha ignorância de jovem e testemunha constante das atrocidades patrocinados pelos militares brasileiros, imaginei que o “Velho Engenheiro” estava profundamente equivocado com a possibilidade de retornar. Fiquei com pena dele. O tempo mostrou que o equivocado era eu (Chaves, 2016: 133).
Paralelo a isso, Kadão foi um dos fundadores do Coojornal – Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre, onde passou a atuar após a saída da Editora Abril, por alguns meses, voltando novamente para a Editora Abril – desta vez contratado como fotógrafo da revista Veja em Porto Alegre (1976). Durante este período o chamaram para fazer uma reportagem na Amazônia, relativa às pesquisas de ouro que estavam realizando na Serra das Andorinhas, no sul do Pará. Apesar do empenho de Kadão para fotografar na selva, a reportagem não saiu em Veja. Oportunamente, a revista Newsweek realizou também uma reportagem sobre a Amazônia e achou as fotografias de Chaves no arquivo. Eis que as imagens dele foram para Nova Iorque e uma delas foi capa da revista americana. Em 1981 foi convidado a trabalhar na Veja, no Rio de Janeiro. Desta época destaca-se a reportagem sobre o atentando ao Riocentro, aqui representada pela fotografia da capa. Após menos de trinta dias morando no Rio de Janeiro, Kadão foi escalado para cobrir o show no Riocentro, em comemoração ao Dia do Trabalho, 1º de maio. Ricardo Chaves descreveu em detalhes como foi a pauta em seu livro A força do tempo, desde o momento em que foi designado para tal, até a hora da chegada ao local (Chaves, 2016: 63). Trespassado por vários sentimentos e pensamentos, como o de que não teria o que fotografar na cena ao chegar, o que se mostrou equivocado, e a falta de informações sobre o que teria ocorrido, além da intuição de
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que ocorrera algo realmente importante “pois achava tudo muito esquisito, muito estranho” (Chaves, 2016: 64). Dada a importância que deu ao episódio, retirou o tradicional filme preto-e-branco da câmera e colocou um colorido de fazer slides - pensando numa possível capa.
Capa Revista Veja, 6 maio de 1981, edição 661. Fotografia de Ricardo Chaves. Fonte: Arquivo pessoal do fotógrafo.
Sobre o episódio, Kadão testemunhou: [...] circulei fotografando em torno do carro destruído, sobre o qual os peritos, depois de fazerem seu trabalho, haviam jogado tudo o que fora arremessado a distância pela explosão, como sapatos e pedaços
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da carroceria, além de um jornal ensanguentado que tinha usado para agarrar um dos pulsos do morto na hora da remoção. Eu estava certo. Do dia seguinte em diante se falaria muito daquele episódio, e até mesmo nos dias de hoje. O caso ficou conhecido como o Atentado do Riocentro. Uma desastrada ação da direita, inconformada com a abertura política que o governo militar pouco a pouco concedia no país. O fato acabou, entre outras consequências, sendo uma capa histórica da Veja que leva meu crédito na foto (Chaves, 2016: 64).
Após alguns anos na Veja Rio de Janeiro, em 1984 foi convidado para ser editor assistente de fotografia da Revista Isto É, São Paulo, e de 1986 a 1988 passou a ser o editor de fotografia da revista. Em 1988 começou a trabalhar em Brasília na sucursal do O Estado de S. Paulo (Estadão), época de reformulação do jornal e da Agência Estado. Após algum tempo em Brasília foi convidado por Hélio Campos Mello para retornar a São Paulo com um dos editores de fotografia da Agência Estado. Uma das grandes reportagens desta época foi a cobertura da segunda visita oficial do Papa João Paulo II ao Brasil, entre 12 e 21 de outubro de 1991. Em 10 dias houve a visita a 10 capitais de estados brasileiros (Natal, Brasília, Florianópolis, São Luís, Goiânia, Cuiabá, Campo Grande, Vitória, Maceió e Salvador). Kadão foi o único enviado da Agência Estado para integrar o “pool” de jornalistas que voaria em um Boeing com a comitiva papal (Chaves, 2016: 96-97). A foto do menino de rua, analisada na segunda parte do artigo, ilustra esta grande reportagem.
A volta à Porto Alegre Após a vinda de Augusto Nunes para ser o diretor de redação do jornal ZH, Kadão e a esposa Loraine foram convidados a deixarem a capital paulista e a Agência Estado e rumarem de volta ao sul. Em 1992, Ricardo Chaves entrava em uma redação novamente, desta vez como editor de fotografia.
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Em companhia do jornalista Marcelo Rech, recorda desta nova fase importantes matérias realizadas. Estiveram juntos na Rússia, incluindo Sibéria e Antártica em pleno inverno, Cuba e Moçambique. Também enfatiza outras coberturas importantes feitas com outros repórteres: a final do Mundial Interclubes de futebol que levou o Grêmio ao Japão (1995) e a Olimpíada de Sydney (2000), na Austrália (Chaves, 2016: 105). Outra viagem, que marcaria reportagens em países distantes, e, que se desdobrou em exposição, foi ao Vietnam. Após a cobertura feita no Japão, ele e o jornalista e, à época, editor de esportes de ZH Eliziário Goulart Rocha dirigiram-se ao país, em missão que rendeu a publicação de “uma série de reportagens de impacto nas páginas da Zero Hora” (Chaves, 2016: 113). As fotografias 6 e 7 exemplificam a reportagem. De 2010 a 2014 assumiu também a escrita e editou a coluna Reflexo, sobre fotografia, publicada mensalmente no extinto caderno Cultura, do jornal Zero Hora. Atualmente, edita a página diária Almanaque Gaúcho, sobre história e memória regional (Chaves, 2016: 179). Fazendo uma reflexão sobre os 40 anos de atividade como fotojornalista, afirmou que testemunhou todas as transformações por que passou o fotojornalismo neste período. Em determinados momentos: “fui até encarregado de operar as mudanças” (Chaves, 2016: 118). Nesta travessia, passei pela evolução das fotos exclusivamente preto-e-branco para a cor e pela revolução da chegada fotografia digital [...] Também aí se revela a força do tempo. Se a maturidade nos impede de subir numa árvore (em busca de um melhor ângulo para uma fotografia) com a agilidade que tivemos no passado, a experiência nos oferece a possibilidade de sermos mais críticos e menos manipuláveis (Chaves, 2016:118/119).
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Ricardo Chaves e o fazer fotojornalístico Como se pôde observar até o momento, Ricardo Chaves teve uma trajetória rica e inovadora. De seu início informal no fotojornalismo em Zero Hora em 1969, até o retorno a esse jornal como editor de fotografia em 1992, onde permaneceu na função por 20 anos, Ricardo Chaves passou pelos mais diferentes órgãos da imprensa nacional, seja como fotógrafo, seja como editor de fotografia. Tais funções foram desempenhadas com mestria por Kadão, um apaixonado pelo ofício fotojornalístico. Como fotógrafo, foi um exímio interpretante das pautas que lhe foram propostas, sabia expandi-las com planejamento certeiro; aliava a informação à beleza plástica da composição fotográfica, potencializando a imagem fotojornalística. Como fotógrafo, Ricardo Chaves já pensava como editor. Ao fotografar já imaginava os possíveis aproveitamentos posteriores da imagem captada. Nas palavras de Marcelo Rech, jornalista e vice-presidente Editorial do Grupo RBS, As qualidades de Kadão não se resumem a identificar o ângulo e o instante exatos ao premir um botão. Isso muitos fotógrafos também o fazem com maestria. O que Kadão incorporou, [...] foi o instinto de atuar simultaneamente nas três frentes do processo jornalístico: o planejamento, a captação e a edição [...] Três em um o tempo todo (Rech in Chaves, 2016: 173).
Considera-se importante indicar o domínio de Ricardo Chaves tanto do fotojornalismo de revista quanto do fotojornalismo diário. Sabia ou intuía que as imagens são portas de entrada para os leitores das revistas e dos jornais. Na urgência do fotojornalismo diário sabia imprimir à imagem noticiosa a centelha reflexiva que permite ao leitor transformar a imagem em um texto expandido. O mesmo se passava nas revistas de informação onde trabalhou, seja como fotógrafo ou editor de fotografia. Como poucos fotógrafos, Ricardo Chaves soube aliar técnica, estética e informação.
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Arrisca-se dizer que Ricardo Chaves praticava já nos anos 1970 uma fotografia expressiva, período esse que também viu surgir com maior ênfase a valorização da imagem fotográfica como informação nos veículos diários. Rompia-se também à época a máxima de que as fotografias mais caprichadas e com maior qualidade técnica eram destinadas, no jornalismo, às revistas. Até então, o que se valorizava no fotojornalismo diário era o instantâneo, o flagrante noticioso. Ricardo Chaves percebeu a mudança e soube aproveitar o novo momento e, com o olhar de um repórter, valorizar o espaço da fotografia no jornal, equiparando seu poder comunicativo às imagens publicadas nas revistas de informação.
Um fotógrafo expressivo Dando continuidade à questão da expressão na fotografia de Ricardo Chaves, utiliza-se o pesquisador e professor francês André Rouillé (2009), para qualificá-la conceitualmente. De acordo com Rouillé (2009), a chamada Fotografia Expressão, aquela que admite a presença de uma subjetividade por trás do visor da câmera fotográfica e que considera valores como objetividade e neutralidade quimeras da Era Moderna, surgiu como um movimento coletivo, quando o documento fotográfico entrou em crise, na segunda metade do século XX. Nesse período a fotografia passou a ser tendencialmente superada por imagens com tecnologias mais sofisticadas e mais afeitas à velocidade de veiculação exigida no mundo contemporâneo. Abriu-se então, um novo campo, o da expressão, para o exercício fotográfico. A Fotografia Expressão, pensada no fotojornalismo, abre espaço para a imagem, a forma (a escrita fotográfica) para o autor (conteúdo) e para o outro (dialogismo). Ao assinalar a presença do autor, sua singularidade, sua soberania frente ao que vê (em oposição à soberania do referente da fotografia documento), trazem para dentro do quadro fotográfico os imateriais, referentes incorporais que vão além dos detalhes técnicos da
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tomada de imagem e incluem a vivência do fotógrafo, suas percepções, sentimentos, desejos. Trata-se de imagens nas quais o sentido não determinado pelo autor se completa ou se dá nas possíveis visadas de seu leitor/observador (Gonçalves, 2012: 81).
Percebe-se então que entre a imagem e a realidade inúmeros são os processos subjetivos envolvidos, mas isso não inviabiliza o caráter de documento que essas imagens possuem. Ressaltase também o caráter dialógico desse tipo de imagem que perfazem sentidos múltiplos de acordo com a imersão de seus leitores. Entende-se que a fotografia produzida por Ricardo Chaves possui as características anunciadas acima. Comprometido com a informação, mas não ingênuo na crença de uma verdade única, Ricardo Chaves utiliza a fotografia como uma expansão da informação. Ele não abandona a referência fotográfica, mas a relativiza, criando outras possibilidades de leitura das imagens fotográficas. Ricardo Chaves, a seu modo, referenda o que aqui se constata a partir de seu trabalho como fotógrafo e editor de fotografia: [...] Assim como se usam as palavras para lavrar certidões, elas também podem ser empregadas para fazer poesia. Igualmente, as fotos podem ser “úteis” como certidões ou boletins de ocorrência (visuais), ou “inúteis” (como se fossem apenas poesia). O fotojornalismo pode até viver, principalmente das fotografias “úteis”, mas observo que funciona muito melhor quando se aproxima da subjetividade das fotos “inúteis” [...] Os melhores fotógrafos são mestres nas fotos “inúteis” [...] meu desafio passou a ser transformar fotos “inúteis” em “úteis”, publicando-as (Chaves, 2016: 160-162).
Marque-se que, como editor, Ricardo Chaves possibilitou a expressão de diversos talentos contemporâneos no fotojornalismo gaúcho e nacional. Entre eles se podem citar Daniel Marenco e Mauro Vieira, com fotos memoráveis publicadas no jornal Zero Hora.
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A Fotografia Menor
Para complementar e caracterizar a produção de Ricardo Chaves traz-se o conceito de Fotografia Menor (Gonçalves, 2009). Portanto, antes de expandir considerações sobre imagens produzidas ou editadas por Ricardo Chaves, se faz necessário explicitar o conceito de Fotografia Menor, caracterizador/propiciador de certa opacidade das imagens fotográficas, por oposição à mera transparência do documento. Tal conceito, que vem complementar o de fotografia expressão, busca expor que o grau de aderência das imagens à referência é variável, havendo cargas diferentes de subjetividade ou objetividade de acordo com as relações estabelecidas dessas mesmas imagens com o tempo e com o espaço. Então, o termo “menor” aqui utilizado alude e se inspira em Deleuze e Guattari (2002), quando estes se referem à literatura produzida por Kafka: Uma literatura menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior. No entanto, a primeira característica é, de qualquer modo, que a língua aí é modificada por um forte coeficiente de desterritorialização. [...] A segunda característica das literaturas menores é que nelas tudo é político. Nas “grandes” literaturas, ao contrário, o caso individual (familiar, conjugal etc.) tende a ir ao encontro de outros casos não menos individuais, servindo o meio social como ambiente e fundo [...]. A literatura menor é totalmente diferente: seu espaço exíguo faz com que cada caso individual seja imediatamente ligado à política. O caso individual se torna então mais necessário, indispensável, aumentado ao microscópio, na medida em que uma outra história se agita nele. [...] A terceira característica é de que tudo adquire um valor coletivo (Deleuze e Guattari, 1977: 25-27).
Acredita-se ser possível trazer este conceito “menor” à fotografia, para toda aquela imagem que germina, subverte, descentra, incomoda, com o propósito de provocar pensamento,
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reflexão. Esta fotografia não carrega consigo, necessariamente, o fato informativo puro, a notícia, mas suas consequências, anterioridades (leva o leitor a pensar/refletir sobre elas); mesmo quando vinculadas a um fato noticioso específico nele não se esgotam. São imagens abertas a diferentes e divergentes leituras. Polissêmicas são imagens com alto grau de suplemento; a singularidade é sua marca. Possui já a partida, no ato da tomada, um caráter político que se completa quando de sua leitura pelo observador interessado. Está presente nela um movimento forte de desterritorialização de sua origem informativa. Esta imagem demanda trabalho de seu leitor, convida-o na reconstrução do fato/acontecimento para além de sua razão de ser objetiva. Esse modo de ser da imagem admite que a tomada é sempre subjetiva, como também sua posterior leitura. Nas duas imagens a seguir é possível perceber a presença dessa Fotografia Menor dentro do trabalho do fotógrafo. Realizadas por Ricardo Chaves em uma de suas primeiras pautas internacionais para o jornal Zero Hora em 1973, no Uruguai, quando esse país da América do Sul encontrava-se em um período de regime de exceção, governado por uma ditadura militar. No período referido acima, o Congresso foi fechado, pessoas foram presas, iniciou-se a tortura e o medo generalizado de expor opiniões livres – no período indicado, o mesmo se passava no Brasil. Nesse contexto, Ricardo Chaves realizou as imagens aqui apresentadas. Percebem-se, nas duas fotos, as características de uma Fotografia Menor. Belas, essas imagens não se revelam de imediato ao observador, exigem desse um engajamento que, quando realizado, pode levar a uma reflexão da problemática da vida contemporânea. Todavia, em ambas as imagens percebe-se um forte caráter atemporal na temática abordada – violência – e as fotografias mostram-se plenamente atualizadas com as questões postas na atualidade, entre elas as ondas nacionalistas e de extrema-direita que assolam o planeta. Possuidoras de múltiplos
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sentidos, oferecem-se como um convite à reflexão e ao pensamento e se colocam como alternativa às leituras fáceis e simplistas da atualidade imagética.
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Fotografia de Ricardo Chaves, Uruguai, 1973. Fonte: Arquivo pessoal do fotógrafo.
Fotografia de Ricardo Chaves, Uruguai, 1973. Fonte: Arquivo pessoal do fotógrafo.
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O mesmo se pode dizer da imagem abaixo, no que toca as questões colocadas pela Fotografia Expressão e Fotografia Menor dentro do trabalho fotográfico de Ricardo Chaves. A imagem foi realizada em Goiânia, para o jornal O Estado de São Paulo, quando da segunda visita oficial ao Brasil, do Papa João Paulo II em 1991. No livro A força do tempo (Chaves, 2016) o fotógrafo descreve a cena de modo emocionado:
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[...] vi um garoto de rua, sujo e maltrapilho, furar o esquema de segurança [...] foi acolhido pelo governador de Goiás, que, depois de poucas palavras, convidou-o a se manter na fila das autoridades para cumprimentar o pontífice. [...] Com uma pequena tele, enquadrei a cena. A sapatilha de lona, furada, o dedão saindo pelo buraco, as pernas finas e enlameadas contrastando com sapatos novos e lustrosos, meias de seda e sofisticados saltos altos femininos [...]. Fiz a foto. Aquilo me emocionou profundamente. [...] Esse encontro de duas realidades tão distantes me fez cair num choro convulsivo (Chaves, 2016:100).
O menino de rua Antônio Reduzini (12 anos) aguarda a oportunidade de abraçar o Papa João Paulo II em Goiânia em 1991. Fotografia de Ricardo Chaves. Fonte: Arquivo pessoal do fotógrafo.
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É dessa matéria fugidia que é feito um grande fotógrafo, dessa capacidade de conjugar a um só tempo a mais vívida emoção com a sabedoria certeira dada pela razão. Sem perder de vista aquilo que caracteriza uma imagem jornalística, a informação precisa dos fatos (Sousa, 2004), Ricardo Chaves leva o leitor interessado para além da documentação jornalística da visita do pontífice. A imagem captada obriga a um enfrentamento com as questões da atualidade. Pungente, fala de dor, de medos dos socialmente excluídos. Falam da impermanência, do anonimato daqueles considerados excedentes pelo sistema capitalista contemporâneo. Nessa imagem, o fotógrafo parece querer ir além do que, de concreto, se mostra à sua frente numa ânsia de revelar o interior, o latente, o imaterial – o medo, a solidão, o vazio, a falta de sentido de um mundo dividido em senhores e explorados. É licito dizer que a fotografia em questão cumpre sua função jornalística, a de informar, ligada às referências visíveis na imagem (a transparência do documento). Mas não é somente disso que ela trata. Como um cristal, ela é multifacetada, potente, exige do leitor uma desaceleração, um envolvimento para ascender a sua opacidade (os imateriais na imagem). O contexto, dado pela reportagem onde a fotografia aparece publicada, reforça a leitura aqui realizada. O que vemos é uma brecha que coloca em evidência a palavra e exemplo do Cristo, o maior dos socialistas. Ao se olhar para a imagem, a temática política/econômico-religiosa salta aos olhos e se é levado a pensar em uma sociedade dividida em classes, na qual a senha necessária para o bem viver é o dinheiro, o poder de compra e o consequente consumo de cada um. Sendo uma imagem “menor”, encaminha para a reflexão e o pensamento. As próximas imagens a serem comentadas foram obtidas em uma reportagem especial1 feita no Vietnam. Essa reportagem 1
Na reportagem especial o fotógrafo, diferentemente do que faz em sua rotina diária ao acompanhar os acontecimentos da atualidade jornalística, tem mais tempo para planear e desenvolver sua pauta. Geralmente, nesse tipo de reportagem, o fotógrafo tem tempo para construir uma narrativa coerente daquilo que vê. Não é o grande acontecimento o que importa, mas a compreensão, na maioria das vezes, de um cotidiano sem glória. A partir daí o que ocorre é a procura e depuração dessas imagens do cotidiano que, em conjunto, contam uma história (Sousa, 2004; Chaves, 2016).
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foi realizada por Ricardo Chaves quando se encontrava de volta à cidade de Porto Alegre (1992) como editor de fotografia do jornal Zero Hora, É na casa de origem, o jornal Zero Hora, que Ricardo Chaves realizaria importantes reportagens de sua carreira, dentre elas a reportagem especial desenvolvida no Vietnam em 1995. Chaves havia sido escalado para cobrir o jogo do Grêmio contra o Ajax na disputa do Mundial Interclubes em 1995, em Tóquio, junto com o jornalista e editor de esportes à época, Eliziário Goulart Rocha. Ao findar o trabalho pautado e, aproveitando o fato de já estarem do outro lado do mundo, Ricardo Chaves e Goulart aproveitaram para ir até o Vietnam. O trabalho produzido gerou uma série de reportagens em Zero Hora (Chaves, 2016). Tal reportagem também motivou uma mostra fotográfica intitulada Tempo de Viver. É importante ressaltar que o país em questão e toda a história de lutas que o envolve sempre fascinaram Chaves. Segundo o fotógrafo, ao entrar pela primeira vez em uma redação, quando contava com 18 anos de idade, o assunto do momento era a guerra no sudeste asiático. As fotos do conflito passavam pelas minhas mãos, eu secava as cópias das radiofotos e as entregava para a editoria internacional. Saigon, Hanói, Hue, Quang Tri e My Lai que nem pareciam tão longe, tal a intimidade que estabeleci por intermédio das notícias. Foi com grande emoção que pisei aqueles cenários míticos [...], 30 anos depois de terminada a guerra (Chaves, 2016: 110-114).
Emoção é a palavra correta para definir o trabalho de Ricardo Chaves, aliada a um forte senso crítico e político que marcaram e marcam a sua trajetória feita de imagens potentes como as apresentadas a seguir. Imagens ditas “Menores” por darem conta da trajetória dos esquecidos e oferecer deles outras leituras que os humanizam, em vez de os isolarem na figura da diferença a ser
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evitada e esquecida. Mostram também que a guerra deixou marcas visíveis na população, tais como a miséria, a pobreza e um legado de violência perceptível nas crianças que brincam/bailam à frente de um tanque abandonado em meio a detritos, numa demonstração do que parece ser uma luta marcial. Mas também a esperança, único bem a restar na caixa de Epimeteu aberta por Pandora, parece estar presente no sorriso dos meninos para a câmera do fotógrafo. Imagem suplementar, não se dá a ver de modo simplista; seu conteúdo e sentido escapam, dançam como os meninos em seu balé marcial.
Vietnam. Fotografia de Ricardo Chaves, 1995. Fonte: Chaves, 2016: p.112.
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Na próxima imagem, percebe-se mais uma vez uma desterritorialização do lugar meramente referencial que caracteriza boa parte da produção fotojornalística. Não fosse a legenda que informa o lugar onde a fotografia foi realizada, poder-se-ia imaginá-la como uma periferia pertencente a qualquer lugar do planeta - sabe-se que a miséria é uma das poucas coisas que se globaliza de modo praticamente igualitário. Para além da representação de dois rapazes que jogam Xiàngqi2 em uma linha de trem que corta um bairro periférico e pobre de Hanói, causa estranheza a paz que, a principio, parece transbordar da imagem. Ambos os rapazes estão absortos, envolvidos no jogo que os abstrai do lugar. O rapaz de branco, à direita de quem olha para a imagem, está sentado em um pequeno banco e atrás de si há uma motocicleta. O outro rapaz, de calça escura, à esquerda do quadro, está sentado sobre o trilho do trem; atrás dele observa-se uma bicicleta. A imagem à primeira vista inocente, começa a se revelar. É possível perceber uma pequena diferença social que os separa (seus tamanhos são ligeiramente diferentes, um está de sapatos e meias, o outro está de chinelos). Apesar do jogo que no momento os une, são antagônicos na vida, rivais. Repete-se aqui a eterna luta de classes. O jogo propõe um caminho, cria a ilusão de que as regras da vida poderão ser mudadas ou perpetuadas pelo vencedor. A leitura realizada acima sobre a imagem do Jogo de Xiàngqi é uma das inúmeras possíveis. Fotografias Menores, como as imagens apresentadas aqui, são como “cebolas”, possuem inúmeras camadas e não se revelam de imediato ao observador, exigem um mergulho em seus múltiplos níveis e seus sentidos são sempre provisórios. Ricardo Chaves, fotógrafo expressivo, com sua obstinação, sensibilidade apurada, instinto jornalístico e paixão pela fotografia foi capaz de premiar seus leitores com essas imagens “Menores”, revelando que por trás da referência fotográfica a vida pulsa. 2
Xadrez chinês. Os movimentos e posições iniciais das peças é um pouco diferente, em relação ao jogo de origem ocidental.
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Jogo de Xiàngqi na linha férrea em Hanói, Vietnam. Fotografia de Ricardo Chaves, 1995. Fonte: Chaves, 2016: p.114.
Considerações finais Traçou-se, historiando, a carreira do fotógrafo e editor de fotografia gaúcho Ricardo Chaves. Abordou-se também o fazer fotojornalístico praticado pelo fotógrafo, seja produzindo ou editando fotografia. Para abordar tais questões, partiu-se de entrevistas feitas com o fotógrafo, bem como de publicações sobre o mesmo (jornais e revistas) e documentos e materiais fornecidos pelo profissional, além de autores que sustentam a argumentação teórica apresentada. O que se pode afirmar é que Ricardo Chaves pode ser considerado um divisor de águas no fotojornalismo no Rio Grande do Sul. Inovador como fotógrafo e editor de fotografia, abriu caminho e fez escola, mesmo sem querer, para uma nova geração de fotojornalistas rio-grandenses. Seu estilo único, que alia determinação, emoção, senso crítico e político marcaram e marcam a sua trajetória
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feita de mais de 40 anos de fotojornalismo. Como poucos, Ricardo Chaves soube aliar técnica, estética e informação às fotografias. Seu trabalho é revolucionário e afirma seu engajamento com as causas de seu tempo. Ricardo Chaves enfrenta nas imagens fotográficas apresentadas o senso comum pequeno-burguês construído por valores derivados do modo de produção capitalista. Deriva daí uma produção multifacetada e desestabilizadora de verdades estabelecidas. A fotografia de Ricardo Chaves pensa.
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Referências
CHAVES, Ricardo. Ricardo Chaves: depoimento [23 set. 2015]. Entrevistadores: A. Brächer e S. Gonçalves. Porto Alegre: Residência do fotógrafo, 2015a. 1 arquivo digital. Entrevista concedida ao Projeto de Pesquisa Histórias de Vida na Comunicação – Trajetórias Profissionais no Rio Grande do Sul. CHAVES, Ricardo. Ricardo Chaves: depoimento [07 out. 2015]. Entrevistadores: A. Brächer e S. Gonçalves. Porto Alegre: Residência do fotógrafo, 2015b. Entrevista concedida ao Projeto de Pesquisa Histórias de Vida na Comunicação – Trajetórias Profissionais no Rio Grande do Sul. CHAVES, Ricardo. Ricardo Chaves: depoimento [11 nov. 2015]. Entrevistadora: V. Lemos. Porto Alegre: Residência do fotógrafo, 2015c. 1 arquivo digital. Entrevista concedida ao Projeto de Pesquisa Histórias de Vida na Comunicação – Trajetórias Profissionais no Rio Grande do Sul. CHAVES, Ricardo (2016). A força do tempo: histórias de um repórter fotográfico brasileiro. Porto Alegre: Libretos. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix (1977). Kafka: Por uma Literatura Menor. Rio de Janeiro: Imago. GONÇALVES, Sandra M L P. Fotojornalismo: entre a opacidade e a transparência. Discursos Fotográficos. Londrina, v.8, n.13, p.71-91, jul./dez. 2012. GONÇALVES, Sandra M L P. Por uma Fotografia Menor no Jornalismo Diário Contemporâneo. Disponível em: Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação | E-compós, Brasília, v.12, n.2, maio/ago. 2009. http://www.compos.org.br/seer/index.php/e-compos/article/view/393/364 PENA, Felipe (2004). Teoria da biografia sem fim. Rio de Janeiro: Mauad. ROUILLÉ, André (2009). A fotografia: entre documento e arte contemporânea. São Paulo: SENAC.
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Ivette Brandalise A trajetória da atuação crítica feminina nos meios de comunicação do RS Flavio Antonio Porcello Laira Ferreira de Campos
Introdução No decorrer dos séculos, muitas mulheres através de suas vivências e histórias contribuíram para a emancipação feminina. Uma trajetória que segue até hoje com conquistas já regulamentadas como o divórcio, o voto, a Lei Maria da Penha, e em outras temáticas que têm forte repercussão na vida social contemporânea. Na área do jornalismo a evolução não foi diferente. A atuação das mulheres era nula ou inexistente nos primórdios do jornalismo e assim seguiu por décadas e séculos. Mas, aos poucos e com a coragem das pioneiras, as resistências foram vencidas. Nos dias de hoje a predominância feminina em todas as esferas dos jornalismo em escala global é uma realidade, mas esse espaço foi conquistado com muita luta e perseverança pelas primeiras mulheres a encarar os desafios da profissão. No Rio Grande do sul, na década de 1960, uma mulher, natural de Videira (SC), abriu o caminho para a participação feminina com opinião na TV, rádio e jornal gaúchos: Ivette Tereza Brandalise Mattos. Com formação jornalística, habilidades teatrais e formação superior também em Psicologia, ela enfrentou os cenários da televisão e os estúdios de rádio, causando forte impacto na audiência por sua coragem e destemor. Ivette Brandalise representa força, competência, opinião em uma
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presença feminina que até então ficava restrita à publicidade, temáticas do lar, ou ficções de folhetim em novelas de rádio e TV. Nasce, assim, a mulher com participação crítica nos meios de comunicação do Rio Grande do Sul. No início dos anos 60, atuações marcantes no inovador telejornal “Show de Notícias”, TV Gaúcha, a tornaram conhecida do grande público. Depois, em pleno ritmo de ditadura militar o tão esperado “Cinco minutos com Ivette Brandalise”, na Guaíba, e o reconhecimento de suas crônicas no extinto jornal Folha da Tarde, transformaram-na em uma comentarista de grande credibilidade e carisma. Na década de 80, começou como entrevistadora na TV Educativa de Porto Alegre no programa “Primeira Pessoa” e na Rádio FM Cultura com o programa “Músicas que fizeram a sua cabeça”. O programa na TV ficou 22 anos ininterruptos em exibição na TVE gaúcha, um dos casos mais longevos da televisão brasileira, mas foi extinto no início de 2015.
De Videira à televisão Com uma formação conservadora, o lado destemido e ousado de Ivette Tereza Brandalise Mattos manifesta-se desde a adolescência. Natural de Videira, oeste de Santa Catarina, veio para Porto Alegre em 1953, para estudar no colégio Bom Conselho. Aos 14 anos, após desentendimento com a madre do internato vai para um pensionato vivendo, então, cercada de pessoas mais velhas. Querendo aparentar mais idade começa a fumar, apesar do mal estomacal estar causado. Ia ao cinema sozinha, via filmes adultos e usava muita maquiagem para parecer mais velha. Então teve um momento da minha vida, por incrível que pareça que eu tentei pular 7 anos de vida. Dos 14 eu queria ter 21 (..). Eu tinha que me firmar como mulher feita. E(...) mulher feita fumava, via filme impróprio, ia ao cinema sozinha(...) e estudava à noite.
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A idéia de cursar engenharia foi substituída pela carreira jornalística ao compartilhar o entusiasmo de uma colega com essa profissão. Aos 16 anos, Ivette começou a cursar simultaneamente Jornalismo na UFRGS, Ciências Sociais na PUCRS e o Curso de Artes Dramáticas, à noite. E tudo isso num tempo social em que não era comum mulher ir à faculdade. O teatro, então, era bastante incompreendido, relegado muitas vezes a uma colocação pejorativa de submundo. Ao graduar-se em jornalismo em 1959, permaneceu em Porto Alegre onde começou a trabalhar no Teatro de Equipe (primeira experiência de teatro profissional no RS). Nesta casa de espetáculos, além de atuar como atriz, era responsável pela produção, fotografia e divulgação das peças. Em 1964, em entrevista impressa, expressou seu descontentamento com a extinção do Teatro de Equipe em 1963. Uma preciosa informação extraída da edição 28 da revista TV Sul Programas1: O teatro de equipe não era nosso. Era de todos os porto-alegrenses com exceção, evidentemente das autoridades que nunca nos emprestaram seu apoio. A casa surgiu do esforço de algumas pessoas e deixou de existir como um protesto à falta de interesse, de subvenção que neste nosso estado é uma triste realidade. Hoje o Teatro de Equipe está mudo, mas nós permanecemos vivos. Alguns fazendo sucesso em São Paulo e Rio, provando que tínhamos talento de sobra. Outros, como eu, mudando de atividade, mas sem a mínima intenção de deixar de acusar aqueles que deveriam se preocupar um pouco mais com a educação e cultura de sua gente. (Brandalise, ed. 28, 1964, p.19-20) 1
Revista TV SUL PROGRAMAS é uma revista pioneira de programação de TV da década de 60 em Porto Alegre. Presente no acervo da PUCRS sob a coordenação do professor Antônio Hohlfeldt foi objeto de pesquisa do grupo Grupo de Pesquisa Televisão e Audiência com a coordenação dos professores Cristiane Finger (PUCRS) e Flávio Porcello (UFRGS).
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Com a falência do teatro em 1963, Ivette passou a trabalhar com jornalismo no Diário de Notícias. Era responsável pela “página feminina” que continha receitas, entrevistas com mulheres de destaque profissional e crônicas. Depois, foi para a TV com “Revista Social” de Célia Ribeiro, o programa “ Cartazes”, além de atuar como relações públicas da Standard Propaganda e em atividades publicitárias. Ao integrar o telejornal “Show de Notícias” tornou-se conhecida do grande público. Ivette também trabalhou no Jornal Ipiranga da TV Piratini, concorrente do “Show de Notícias”.
Uma mulher com opinião na TV Gaúcha “Tu não é a mulher que eu procuro, mas como não tem outra (...).” A jovem Ivette, de então 23 anos, não sabia, mas ao passar por difícil aprovação de Lauro Schirmer, então diretor do telejornal “ Show de Notícias”, TV Gaúcha, em 1964, assinava sua entrada definitiva no mundo do jornalismo e da mulher com participação crítica e opinativa no estado. Afinal, em meados dos anos 60, a figura feminina mantinha-se associada a programas de temáticas como moda, casa, cuidados com beleza, vendas e segmentos publicitários ou em papéis da ficção interpretando mocinhas e vilãs. O “Show de Notícias” foi um dos primeiros telejornais gaúchos e trazia algo incomum para a época: uma mulher em cena. Lançado em 1964, na TV Gaúcha, canal 12, o programa apresentava uma estrutura inovadora na forma como veiculava a notícia, lida em outras edições. A equipe era composta pelo diretor e assessor de telejornalismo da emissora Lauro Schirmer e também por participações de Fernando Ernesto Correa (esportes), Euclides Prado, Sergio Nunes, Rui Figueira, Carlos Bastos, Ibsen Pinheiro e, claro, com a exclusiva presença feminina de Ivette Brandalise. Em uma notícia de maio de 1964 intitulada “Eles fazem Show em Notícias”, uma matéria extraída da edição 19 da revista TV Sul Programas, onde aparecem os perfis dos integrantes, registra-se esta exclusividade:
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A única moça da assessoria de telejornalismo se chama Ivette Brandalise. Ela vem da escola de arte dramática da UFRGS e do Teatro de Equipe, de estúdio universitário. Durante um ano escreveu uma página feminina para o Diário de Notícias. Na TV estreou fazendo o “Pare, olhe, ganhe” para J. H. Santos, sendo depois convidada por Célia Ribeiro para a “Revista Social”. E agora Ivette se divide entre a Standard Propaganda, onde é relações públicas, e a TV Gaúcha, onde, além da “Revista”, faz o programa de cinema “Cartazes”e o “Show” (TV Sul Programas, ed. 19, 1964, p.17).
Brandalise atuava com participações curtas, críticas e sarcásticas durante todo o telejornal. Muitas vezes, com uma frase de impacto e bem pontuada, outras vezes, com crítica expressa através de uma forte expressão facial, um efeito de olhar. Inicialmente aparecia de óculos, para aparentar mais idade. Relata que realmente esta era uma idéia para envelhecê-la, afinal, na época, uma pessoa de 24 anos recém-feitos não teria autoridade para criticar ninguém. Em vista da grande facilidade de memorização, chegava muito cedo para interpretar e decorar o texto já na saída do mimeógrafo. Precisava registrar o que vinha antes, conhecer o assunto, o texto dos apresentadores, para então preparar suas frases que eram o grande momento do jornal. Era como dar voz a um pensamento. A receptividade e o impacto foram imediatos, como relata Ivette: Na televisão tem uma coisa engraçada. Quando eu comecei a fazer TV, esse diferencial de dar opinião... As pessoas me olhavam assim, sabe: De onde é que ela veio? De onde é que saiu essa mulher que fala, pensa e é inteligente? Então me olhavam assim (...) Era uma coisa muito festejada nesse sentido.
Fazendo bom uso de sua formação em teatro Ivette revela que o mérito maior era da atriz, mais que o da jornalista porque
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a frase era entregue pronta pelos redatores do programa. Assim, tinha que desempenhar o papel, dar àquela frase, que não era sua, a impressão de que era: “A minha frase era a cereja do bolo deles. Eles ficavam horas estudando o que falar. Então eu tinha frases maravilhosas, grandes achados deles”. O efeito do olhar também era um aspecto explorado. Em vista da inexistência de teleprompter2 e como tinha problemas de visão olhava profundamente para a câmera para que o público não percebesse. O empenho com a memorização era uma constante: “Eu queria usar a câmera, olhar para a câmera. O efeito de olhar. Então, eu ia mais cedo sempre, à medida que ia saindo o script eu ia pegando e copiando. Eu ficava ao lado do mimeógrafo, pegando as folhas, decorando.” O impacto por ter uma mulher opinando era evidente: “Primeiro uma mulher dando palpite, segundo dando palpite inteligente.” Para ela, o telejornal tinha uma audiência fantástica. Recebia créditos por fazer de forma diferente, além, é claro, da crítica presente o que não era comum para a época. O programa, que teve o mérito de lançar a notícia ilustrada de forma totalmente diversa do que se conhecia em matéria de telejornalismo: Já se tornou o noticioso oficial da cidade. Todos o assistem, todos o comentam, todos o elogiam. É o mais movimentado, o mais variado, o mais show. Por mais que se elogie a equipe da Gaúcha pouco se poderá dizer. Sim, pois elogiar a cada um com seu trabalho levaria muitas horas: 2
Chamado também de TP. Facilita a leitura do apresentador sem que este tire o direcionamento dos olhos da câmera. Em Maciel (1995) trata-se de um equipamento ótico acoplado à câmera que permite a passagem de um script diante da lente. (...) Além de televisão Ivette trabalha em publicidade. Atualmente é relações públicas da Standard Propaganda e representante do serviço internacional de relações públicas. Gosta do trabalho e gosta de saber que todas as horas do seu dia serão ocupados. Acha importante a realização profissional da mulher, uma forma de existir, como gente, como ser pensante e atuante! Mas parece que um casamento está próximo. Isso não modificará minha maneira de pensar. O trabalho segue porque o trabalho sou eu,é a minha chance de encontro comigo mesma. Mas o trabalho estafa, às vezes. Então, existe uma fuga que se chama Videira e está escondida no interior de Santa Catarina. (BRANDALISE, ed.28, 1964, p.19-20)
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para que cada frase dos apresentadores esteja bem, muita gente colabora, Toda uma equipe técnica e especializada que não mede esforços para que o canal 12 marque um tento em cada apresentação do “Show.” (TV Sul Programas, ed. 22, 1964, p.14)
Ivette Brandalise atuou como comentarista no “Show de Notícias” da TV Gaúcha na década de 1960. Fonte: Arquivo pessoal
Em pouco mais de um ano de profissão, a jornalista ficou famosa com o programa e em outro momento da entrevista à revista TV Sul Programas, em 1964, expressa a importância da realização profissional da mulher, além de sua ligação com a terra natal, trabalho e casamento.
Voz feminina e credibilidade no rádio e jornal Recentemente saída do ambiente televisivo, ela entra no universo radiofônico em 1968, a convite de Flávio Alcaraz Gomes
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a partir de suas atuações nos telejornais. Apesar do nervosismo diante da proposta, aceita fazer comentários na Rádio Guaíba de segunda a sexta, às 12 h e 30 min o que se transformou, ao longo de 18 anos, numa participação consolidada e precursora da presença feminina no rádio. Eram: “Cinco minutos com Ivette Brandalise”. Até os anos 1960, com excessiva dose de conservadorismo e uma idealização quase que bíblica, a mulher segue como rainha absoluta do lar, aquela que está ali para garantir a sagrada instituição da família. Nas emissoras de Porto Alegre, esta realidade começa a mudar quando o jornalista Flávio Alcaraz Gomes, no final da década, convida Ivette Brandalise para apresentar um comentário na Rádio Guaíba de segunda a sexta-feira na faixa do meio-dia. (Ferraretto, 2006, p.1)
No âmbito profissional da Guaíba não havia presença de mulheres ao microfone. É neste habitat que Brandalise vai refletir, opinar, criticar o cotidiano, consolidando este espaço com credibilidade e a comunicação com diversos segmentos sociais. “(...) No rádio, por exemplo, eu era única (...), durante muito tempo depois, entrou na redação, acho que entrou a Tania Faillace, mas, de um modo geral na Rádio eu estive muito sozinha como mulher (...)”. Sua presença no veículo demonstra a realidade feminina que, sem abdicar de sua condição, tem participação e crítica na sociedade (Ferraretto, 2005): Ao longo dos 18 anos em que permanece no ar, mulheres, passam a ocupar, crescentemente outras questões no jornalismo radiofônico. É o caso de comentaristas especializados como Yeda Crusius, ou em política como Ana Amélia Lemos. E, em especial dos repórteres que vão ganhando espaço junto com a informação no rádio do Rio Grande do Sul (Ferraretto, 2006, p.1).
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O programa movimentava ouvintes que podiam manifestar-se com cartas ou telefonemas diante do posicionamento da jornalista. Muitos foram se formando e não dispersaram, continuando mesmo com as trocas de horários da emissora. Ivette atribuiu o apelido de “perseguintes” aos seus ouvintes fiéis. Abria-se assim um espaço diário de reflexão do cotidiano impulsionado por uma mulher a dialogar com vários setores da sociedade, como ela conta: E as pessoas na rua comentavam, mandavam cartas concordando, discordando, complementando. Não concordo com isso, isso e isso. Eu acho que exagerastes aqui, aqui e aqui. Motoristas de táxi me atacavam na rua: “Tu tem que entender que não é bem assim!”.
Ivette, em seguida, passou a atuar paralelamente com crônicas na Folha da Manhã indo depois para a Folha da tarde, jornais pertencentes à Companhia Jornalística Caldas Júnior, do empresário Breno Caldas. Fazia duas crônicas diárias. Uma para jornal e outra para rádio. Escrevia tudo em casa. Sempre escrevi em casa. Eu tenho dificuldade em escrever com barulho... Eu acordava cedíssimo, fazia a minha crônica de rádio e ia gravar, voltava, vinha a de jornal, e voltava, voltava, levava(...). Tinha uma secretária só para levar a crônica de rádio porque eu tinha que estar lá de dia com essa crônica.
Diferentemente do nível de interpelação popular dos comentários, nas crônicas ela recebia mais pressões de autoridades. Até um prefeito de Porto Alegre mandou chamá-la em seu gabinete, em vista de uma crônica a respeito de fiscalização: “Aí mandaram me chamar e eu me lembro que eu fazia papel de antipática. Lembro que me arrumei bem. Coloquei um casaco de pele e fui assim pra mostrar confiança. Não tenho medo.”
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Nos anos 70, dando voz à sociedade, em um período de muita repressão, Ivette construía o espaço de sua crônica em um trajeto de muitas vias. “Porque quando tu escreve, quando tu está fazendo um papel crítico... Eu ouvia a crítica na rua e eu dava voz àquilo que eu ouvia. Não era crítica minha necessariamente, mas eram coisas que eu ouvia (...)”. A crítica que muitas vezes era dela e das ruas também recebia resposta dos envolvidos. Quando as autoridades queriam dar-lhe explicações dizia para não lhe explicarem, mas, ao público por cartas. “ Então explica amanhã por carta, eu publico (...)” O que também acabava resultando em material para a próxima crônica. (...) “Era uma coisa que era boa pra mim, boa pro cara que queria publicar.”
Comentários críticos na Rádio Guaíba e Folha da Tarde em plena ditadura. Fonte: Arquivo pessoal
Ao vivenciar um ambiente masculino de trabalho encontrou peculiaridades como redações desertas da presença feminina. Relata que quando estava no Diário de Notícias, em uma ocasião em que faltava alguém que fizesse reportagem externa, ofereceu-se para fazê-lo. Um dos coordenadores saltou: “Só o que faltava: (...) Uma
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mulher subindo e descendo de uma kombi!”. Ela cumpriu a pauta e fez a reportagem naquele dia, porém, não a deixaram fazer mais. Ao desdobrar-se em um panorama predominante de homens, considera uma vantagem ter sido mulher, embora tendo que lidar muitas vezes com o estereótipo pejorativo: frágil, instável, ou dotada de excentricidades. Para o público isso era um diferencial: Então para mim foi vantagem sabe... Quer dizer era surpreendente. Lá vem uma mulher fazer (...) que claro eu tinha o compromisso pesado de não falhar. Eu tinha que corresponder à expectativa. E por isso, às vezes, era mais atrevida ainda. Eu tinha que corresponder à expectativa. Eu não tinha que ter medo. E outra coisa, eu não tirava férias. Eu tinha aquela história, assim, que uma mulher fica doente, uma mulher não sei o que. Mulher quando menstrua não trabalha. Eu trabalhava sempre e me lembro assim que eu trabalhava com febre (...). Eu não me permitia adoecer. Não eu não adoecia, eu não tinha dores e não tinha problema de tempo (...). Veja era difícil eu tirar férias, sair do jornal durante um mês. Eu saia, assim, pro fim de semana, coisa e tal, e tava pronto (...). Eu tinha que provar que mulher era tão competente quanto o homem e até pretendia ser mais.
Em casos de censura, recorria diretamente ao patrão Breno Caldas, assim como também para a questão salarial: Quando eu fui pedir aumento pro Breno Caldas, por exemplo, eu descobri que mulher ganhava muito mal. Aí eu resolvi pedir aumento. Aí eu disse pra ele... Eu vim aqui discutir com o sr. o meu salário. E ele disse: Por quê? Quanto a senhora que ganhar? Eu disse eu quero ganhar o que todos ganham. Mas a sra. sabe quanto os homens ganham? Eu disse não sei mas e tão pouco o que eu ganho que não acredito que eles ganhem isso. O sr. me aumenta e depois aumenta os homens. E ele realmente dobrou o meu salário.
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Ivette Brandalise sofreu censura. Foi, várias vezes, convocada ao prédio da Polícia Federal. Diferente do que o regime militar queria, ela infringia a falsa moral do sistema vigente ao abordar com ousadia temas políticos e sociais do cotidiano, provocando irritação no governo. Por meio de sutilezas, figuras de linguagem e no grande uso de “entrelinhas”, ela desfila sua visão crítica dos acontecimentos do período militar: “Eu tinha tanta coisa nas entrelinhas que, às vezes, eu me perdia. Eu me perdia nas entrelinhas porque tinha que ser sutil, tinha que usar metáfora. E nem eles entendiam às vezes”, diz. Ao falar sobre um dos seus depoimentos no Prédio da Polícia Federal relembra um episódio: Mas e o seu olhar? E as pausas que a senhora faz? Mas o senhor ta lendo o meu silêncio? Coisas que têm na sua cabeça. Eu não disse nada(...) O senhor não pode me criticar por coisas que eu não disse. Mas o seu olhar? Mas o senhor que leu. Que tem meu olhar? O que é que o senhor leu?
Sem deixar de questionar até mesmo os seus interrogadores, chegou a perguntar a razão de suas crônicas da Folha da Tarde não gerarem tantas interpelações quanto sua atuação em rádio e TV. A resposta foi simples e direta: Quem lê jornal já tem opinião formada. No rádio e na TV não. Aí está se formando opinião. “Uma vez eu perguntei pra eles (...). Eu venho aqui toda hora. Fazia parte da minha rotina”. Eu disse: “Vem cá, quem sabe amanhã eu respondo? Eu tinha prova na faculdade. Hoje eu tenho prova!”, ironizou. Em 1987, depois de anos atuando em crônica, rádio e jornal e da queda das empresas Caldas Júnior, passou a trabalhar na recém inaugurada FM Cultura. Ali teve início o seu ingresso na TVE do Rio Grande do Sul. Dois programas de entrevista marcam a sua trajetória na emissora: “Primeira Pessoa” na TVE/RS durante 22
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anos, cancelado em 2015, e o “Músicas que fizeram a sua cabeça”, que apresenta na FM Cultura aos sábados.
O dia a dia da entrevistadora na TV Ivette chegou à TVE/RS em dia de maio de 2014 para a gravação de mais uma entrevista para o programa “Primeira Pessoa3”. Alegre, simpática, dinâmica cumprimenta a produção, convidada e demais presentes. Em seguida, dirige-se para o seu camarim. Já está arrumada dentro da discrição que preza na TV. O objetivo é então concentrar-se e passar os olhos na síntese de informações do entrevistado. Não tem perguntas estruturadas. Uma última olhada no espelho e já se direciona para o estúdio colocando microfones e posicionando-se no ambiente do “Primeira Pessoa” que é de grande simplicidade cenográfica: fundo escuro, mesa retangular, ausência de itens decorativos e interlocutores posicionados frente a frente. O objetivo do programa é revelar a personalidade do entrevistado que tenha algum destaque na sociedade, especialmente por sua atuação profissional. A apresentadora não usa ponto4, nem teleprompter. Conduz o tempo de cada bloco com a escritora de livros infantis Veralindá Menezes praticamente sem interrupções, considerando alguma ou outra ruptura no processo de gravação por razões técnicas. A produção intervém nos breves intervalos de 2 a 3 minutos entre um bloco e outro, quando necessário. A brevidade de cada um é mantida na preocupação com o fluxo da conversação. O programa é assim gravado praticamente na íntegra. Em meio a essa simplicidade, o verbal, o gestual, a conversa são os conteúdos projetados na composição geral do programa. A entrevistadora trata no decorrer dos blocos, do trabalho e obra de Veralindá (livro, CD, roteiro de um musical); da influência 3 4
Edição do Primeira Pessoa que fez parte do processo de observação durante pesquisa realizada na UFRGS com o apoio da CAPES, no primeiro semestre de 2014. Equipamento técnico colocado junto ao ouvido de onde o apresentador recebe informações da produção ou direção em programas televisivos.
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e participação dos filhos em seu trabalho e de outros aspectos pessoais da autora como troca de nome, religiosidade e trajetória na contabilidade. Faz com que o espectador na interação dessas temáticas conheça o sujeito por trás da entrevista. Em uma sequência de perguntas fechadas e no que a jornalista chama de aproveitamento das “deixas” do entrevistado, conduz a convidada a um momento de surpresa e autodescoberta: VERALINDA – Então eu acho que aprendi com a minha mãe isso. Isso sim eu acho que ela não decidiu ela me mostrou como é que se faz. Porque administrar oito filhos IVETTE – [Uhum] VERALINDA – Né que ela tinha oito filhos. Não é fácil. IVETTE – Oito? Qual é o teu número? VERALINDA – Eu sou a número dois ((risos)). Então eu aprendi com a mãe mesmo. IVETTE – Tu ajudastes a criar os outros? Se tu é a número dois? VERALINDA – Sim, sim, sim. IVETTE – E fosse exercitando este mando com eles? VERALINDA – Com certeza, acordava de madrugada pra dar mamadeira, trocar fralda, ajudar a dar remédio. Com certeza meus quatro irmãos menores eu praticamente criei, né? Contava estórias, cantava música. Ai gente é verdade! Tchê foi lá que eu comecei a contar estórias. Descobri isso agora, aqui, Ivette ((risos)) ((surpresa e autodescoberta)! ( Brandalise, 5/05/2014)
Brandalise considera sua formação como psicóloga influência direta no papel da entrevistadora. Durante sua caminhada profissional, em paralelo às atividades jornalísticas, cursou Psicologia em 1965, abrindo consultório em 1975: A psicologia, sim. A psicologia entra fundamentalmente na escuta. É, porque tu tem que saber o que o cara está dizendo pra poder dar
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continuidade ao assunto ou até pra mudar o assunto. Mas tu tem que ter essa preocupação da escuta, de saber o que o cara está dizendo.
Logo, a busca por uma atmosfera intimista para entrar na vida do entrevistado está presente na entrevista de Brandalise, que fui entre premissas jornalísticas e a flexibilidade das trocas de turnos do ambiente de conversa (Vogel, 2012). A entrevista, assim, vai gerando informação e reflexão na interpenetração informativa de seus interlocutores a construir significados. Longe de uma estruturação fixa, com questionários pré-formulados, a entrevista no Primeira Pessoa tem movimentos de diálogo, que contribuem para o aprofundamento de informações sobre o entrevistado, em maior incidência na compreensão da sua trajetória de vida, e ,portanto, próximo de um perfil humanizado. (Campos, 2015, P.96)
Em entrevista do “Primeira Pessoa” com o violonista brasileiro Yamandu Costa, em agosto de 2013, ela também realiza sequência de perguntas fechadas e comentário inserindo-se pouco a pouco na intimidade do músico, fazendo-o compartilhar com o público uma experiência de performance solo de violão em seu trabalho com orquestra: IVETTE – Tu tens te apresentado inclusive com orquestra fora do Brasil ((caneta que segurava cai da mão direita)). Em que orquestras tu tens tocado? YAMANDU – ((braços cruzados)) Depende muito do convite, por exemplo, agora, quando eu for a Paris eu vou tocar com a orquestra de Paris. IVETTE – Que não vai ser a primeira vez? YAMANDU – Não vai ser a primeira vez. É a segunda. Eu já toquei com a Orquestra de Paris no (Chateuleau). Toquei com a Orquestra Nacional da França, a Orquestra de Calgári. São experiências que
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me ensinam muito assim o ofício de fazer música dessa forma, que é muito diferente. IVETTE – Ahan, muito diferente. ((plano aberto nos dois)). YAMANDU – (...) Aí você começa a tocar um concerto. Normalmente no meio do do primeiro movimento tem uma cadência aonde você fica sozinho, tocando ((mãos na mesa apontado gesticulando)). Então, quando aquele bando de gente ((mãos no alto e palmas pra baixo)) pára de tocar você descobre o maior silêncio do mundo. ((abaixa mãos)) ((risos)). IVETTE – Ãhan . E o medo, hein? Existe? YAMANDU – É abismal. Quando aquele povo para de tocar parece que se abre um precipício assim (...).( Brandalise, 19/08/2013)
Em análise técnica5 do “Primeira Pessoa” percebe-se uma variedade de indicadores na postura da apresentadora a compor o processo de formação de significados da entrevista: A postura da apresentadora com amplo uso de aparatos linguísticos também contribui para o aprofundamento dos relatos. Pontuações e pausamentos verbais acompanhados de gestual assim como observação, retomada e interpretação das narrativas dos entrevistados, articulação e emprego de ênfases tonais em vista da voz como um grande marcador conversacional são recursos empregados para exploração da oralidade televisiva. Do mesmo modo, sua atuação e formação são evidências de uma trabalhada postura interventora: graduação em jornalismo, artes dramáticas e psicologia, além da vasta experiência em rádio, TV e impresso e atuação como cronista. Desse modo, técnicas como a percepção da linguagem não verbal, formas de perguntar e intervir contribuem para a condução temática e aprofundamento da entrevista (...) ( Campos, 2015, p.97). 5
Análise conclusiva contida na dissertação de mestrado da autora aprovada no PPGCOM/ UFRGS em 2015 com o título “Entrevista e construção de significados no Primeira Pessoa: narrativas, relatos de vida e diálogos na TV”.
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Variados formatos do gênero programa de entrevista ganham amplitude nos programas de TV, eventualmente mesclados com talk shows. Para Ivette, um fator preponderante para um boa entrevista deve ser o foco constante no entrevistado e não no entrevistador. O primeiro é quem deve revelar-se e não o último. Eu acho que a entrevista interessa apenas, aliás, a minha pergunta interessa na medida em que ela permite ao cara falar mais sobre ele. Ah e não contar a minha história. Não interessa quem eu sou. Eu acho assim, por exemplo, pra todo mundo eu posso estar tensa, mas, quando eu começo a conversar com alguém, eu descanso de mim. Sabe, eu desligo de mim porque o que interessa é o cara que está na minha frente. Então, sabe, se eu estou com problemas eu vou me lembrar depois. Porque eu desligo das coisas. São minhas férias de mim. Quando eu estou com um paciente ou quando eu estou com um entrevistado me interessa o que ele está me contando. E outra coisa, me interessa que ele se mostre pro ouvinte, pro telespectador(...) No fim da entrevista eu gostaria que o ouvinte dissesse : -Que cara interessante! Ou que cara chato, ou que cara pernóstico. Ele vai dizer! Não eu.
Outro fator é o contato imprescindível “olho no olho” com seu interlocutor. Certamente, nem todo mundo tem familiaridade com a câmera. Ivette diz não conseguir entrevistar pessoas que não a encaram. E em TV, muitas vezes, erroneamente, convidados acham que devem olhar pra câmera: Mas tu sabes que uma das coisas que eu sinto, que eu digo pro meu entrevistado é o seguinte: —Olha pra mim! Se tu olhares pra mim, tu vai esquecer esses caras chatos que tão aqui fazendo barulho. No momento em que o entrevistado olha pra mim, ele desliga. Por exemplo, eu acho dificílimo fazer entrevista com quem não te olha (...). E em televisão as pessoas têm mania de olhar pra câmera. Não, tem que
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olhar pra mim! A câmera que vá atrás dele. Ele tem que olhar pra mim, ele vai criar mais intimidade, menos defesas.
Ivette Brandalise realiza processo similar em “Músicas que fizeram a sua cabeça” no ar, na FM Cultura, aos sábados às 12 h. Em uma hora e meia, o programa apresenta personalidades que durante a conversa, expressam seus gostos musicais. O entrevistado, assim vai relatando sua história de vida através de músicas que são significativas em sua vida. No rádio, predomina uma atmosfera intimista ainda maior. Praticamente confessional devido à ausência de câmeras e a restrita preocupação com a imagem divulgada. Logo, visual e postura tornam-se secundários. Ivette que não esconde sua preferência pelo programa e pelo rádio conduz a entrevista numa conversa agradável onde, muitas vezes, as pessoas supõem ser ela até mesmo amiga de entrevistados, os quais conhece apenas na hora do programa. Até porque enquanto é uma conversa tu vai revelando coisas que talvez numa entrevista tu não revelasse (...). Eu acho que a gente tem que dar um grau de intimidade que permita ao cara revelar coisas que numa conversa, ou aliás numa entrevista ele não revelaria. Mas isso eu acho que é mérito da psicóloga.
O entrevistado para Ivette constitui-se em um sujeito a ser explorado. É exemplo a agregar conhecimento e também testemunho de reflexão social mais ampla. O perfil pessoal e profissional do convidado é desdobrado em interesse e relevância pública. A entrevista, em sua abordagem intimista e aprofundamento, ocorre de modo a revelar publicamente o que estava no âmbito do segredo (Franciscato, 2005), trazendo a público temas importantes para debates, até então desconhecidos do grande público.
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Ivette por Ivette Ivette por Ivette? Um questionamento para a mulher Ivette sobre ser a protagonista de seu tempo. Uma pausa reflexiva. Ela busca toda a sua caminhada profissional em uma resposta honesta, compatível. Casada há 52 anos, dois filhos, um neto, distribui a sua rotina na atualidade entre a família, a psicologia e o programa do rádio. Teve apenas um livro publicado em 1979, editora Garatuja, organizado por Antonio Hohlfeldt, intitulado: Posso falar com você? Considera que com seu jovem destemor correu riscos, aceitou desafios, sem saber se tinha competência ou capacidade para tal, mostrando através de sua trajetória que tinha. Percebe-se impressionada ao lembrar da rotina atribulada em que conseguia conciliar trabalho, família e a faculdade de psicologia, nos anos 70. A questão encontra resposta. Ivette por Ivette? Eu acho que eu fui destemida não corajosa. Aquela história do cavalo passou encilhado eu peguei e depois eu fui pensar se eu sabia ou não sabia usá-lo, né(...). A gente tinha que provar que sabia. Não podia cair do cavalo. Então, eu acho que tive sorte e destemor. Sorte, por exemplo, eu entrei pra televisão assim dizendo:Testa Ivette. Estando na televisão aí eu fui buscada lá na Gaúcha pelo Durval Garcia. Tinha um jornal na TV Piratini que chamava Jornal Ipiranga. Durval foi me buscar me pagando quase o dobro do que eu ganhava. Escrevia a minha parte no jornal como comentarista Flávio Alcaraz Gomes e Cândido Norberto. O Flávio, então, me convidou para fazer o Rádio. Eu fui sendo convidada, eu tive sorte (...) e depois tanto que eu aceitava.
Ao conciliar tarefas diversas que a tornaram um perfil de múltiplas capacidades: jornalista, publicitária, relações públicas, psicóloga, comentarista, cronista, entrevistadora, esposa, mãe, vó. Ivette não deixou o tempo passar. Ela passou pelo tempo e deixou história. Aproveitou oportunidades recebidas, desempenhou uma
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atuação crítica e competente nos meios de comunicação do Rio Grande do Sul, desdobrando-se em plena ditadura militar. Foi a primeira voz da Rádio Guaíba, abrindo espaço para muitas outras atuações femininas. Com participações marcantes e um carisma único adquiriu e consolidou uma credibilidade que a sustentou sempre, dialogando com muitos segmentos sociais. “Show de Notícias”, “Cinco Minutos com Ivette Brandalise”, “Primeira Pessoa” e “ Músicas que fizeram a sua cabeça” são alguns exemplos marcantes dessa bem-sucedida caminhada. Com sua formação humana e experiência, senta-se em frente a qualquer perfil desdobrando-o por mais de uma hora, captando seu universo pessoal e trazendo ao público o ser social nele inserido. Sem abdicar de suas convicções, enfrentando ambientes exclusivamente masculinos e um contexto restrito da atuação feminina, abriu caminho para muitas profissionais Tornou-se assim precursora da participação feminina com opinião na TV, rádio e jornais gaúchos. Ivette Brandalise foi pioneira e, com seu exemplo, conquistou espaços decisivos para a maior participação das mulheres no universo do jornalismo.
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Referências
BRANDALISE, I. Primeira Pessoa: entrevista [5 de maio de 2014]: Porto Alegre: TVE. Site. Entrevista com Veralindá Menezes. Disponível em: www.tve.com.br/programas/primeirapessoa/05.05.2014>Acesso em 01 de dezembro de 2013. BRANDALISE, I. Primeira Pessoa: entrevista [19 de agosto de 2013]: Porto Alegre: TVE. Site. Entrevista com Yamandu Costa. Disponível em: www.tve.com.br/programas/primeirapessoa/19.08.2013>Acesso em 01 de dezembro de 2013. BRANDALISE, I. Revista TV SUL PROGRAMAS: entrevista [1° quinzena, outubro, 1964] Porto Alegre, ano II, n° 28, p.19-20. Ivette diz o que pensa. Disponível em: www.eusoufamecos.uni5.net/acervo digital/>Acesso em 21 de abril de 2017. CAMPOS, Laira Ferreira. A entrevista e a construção de significados no Primeira Pessoa: Narrativas, relatos de vida e diálogos na TV. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Informação, Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação. Universidade Federal do RS –UFRGS, 2015 CARVALHO, Caroline Corso; HOHLFELDT, Antonio. Revista TV Sul - Uma programação televisiva. Acervo digital do Núcleo de Pesquisas em Ciências da Comunicação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS. Disponível no site http://eusoufamecos. uni5.net/nupecc. Acessado em 21 de abril de 2017. FERRARETTO, Luiz Artur. Ivette Brandalise e a mulher no rádio do Rio Grande do Sul, 2006. Disponível em: < http://www.radionors.jor.br>. Acesso em 7 de fevereiro de 2015. FRANCISCATO, Carlos Eduardo. A fabricação do presente: Como o jornalismo reformulou a experiência do tempo nas sociedades ocidentais. Aracaju: Ed. UFS, 2005. VOGEL, Daisi. A entrevista, um traçado aberto. In MAROCCO, Beatriz (org.). Entrevista na prática jornalística e na pesquisa. Porto Alegre: Libretos, 2012.
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Sandra Pecis Os primeiros passos do jornalismo na era da internet
Fonte: acervo pessoal
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Reprodução
Luciana Mielniczuk Marlise Brenol Priscila Daniel
No final de 1994, ali pelo dia 20 de dezembro, Sandra Pecis participou de uma entrevista coletiva no Maksoud Plaza em São Paulo. A menina nascida em 1962 e que sonhava ser astronauta ou cientista quando criança, não imaginava o tamanho da missão a que seria desafiada naquela entrevista coletiva. Ela era editora do ZH Info, o caderno de informática da Zero Hora na época. A internet estava para ser implementada no Brasil em 1995 e aquele seria um ano de transição, com subsídio do governo federal para as primeiras ações no país. A novidade foi divulgada nessa entrevista coletiva convocada pela Embratel – Empresa Brasileira de Telecomunicações –, ocasião em que também foi anunciado o incentivo para que as empresas jornalísticas usassem a internet para a produção e a disponibilização de conteúdo em português. Sandra chegou em Porto Alegre com a certeza de que faria todo o possível para o projeto funcionar no jornal em que trabalhava. Começava assim a história da chegada da internet ao Brasil e simultaneamente a história do jornalismo em ambiente digital. Devido ao empenho e ao entusiasmo de Sandra Pecis, a Zero Hora andaria pari passu com os jornais do centro do país. Para isso, ela precisou dominar questões técnicas que envolviam programação HTML – Hypertext Markup Language –, a linguagem de programação utilizada para construir os sites. Mas isso não chegava a ser um problema. Afinal, o interesse por fotografia, desde a infância, fazia dela uma pessoa interessada em assuntos técnicos.
Conhecimento para arejar as ideias Tudo começou na escolinha de artes da UFRGS, sediada no Instituto de Artes, e da qual participou durante cinco anos, entre os 7 e os 12 anos, em turma liderada pela professora Iara Rodrigues. O foco não era apenas artes plásticas, incluía aulas de fotografia, teatro. A parte final de cada aula era destinada a livres expressões dos alunos. Sandra, que ainda hoje mantém uma veia tímida, surpreendeu a mãe um dia em que ela foi buscar a filha e
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encontrou a menina cantando diante da turma, sentada em um banquinho. O laboratório fotográfico era o que mais a fascinava, interesse que ainda se percebe pelos livros de fotografia dispostos em sua casa. Perto dos 10 anos de idade começou a estudar inglês em uma escola chamada Lollypop. O projeto das professoras Judith Scliar e Renée Stein ensinava inglês de uma maneira peculiar para a época, investindo no ensino lúdico de idiomas, com atividades de teatro e acampamentos de verão. O esporte também teve lugar em sua formação, Sandra jogava tênis, competia e disputou campeonatos estaduais pelo clube Grêmio Náutico União. Os tempos eram de ditadura e o ensino formal ficava mais sério ainda naquele período. Na opinião de Sandra, as atividades na escolinha de artes da UFRGS, as aulas de inglês na Lollypop e o esporte ajudavam a arejar as ideias. Ela considera esses três elementos muito importantes na sua formação, junto com as aulas no colégio Israelita Brasileiro. Sempre foi muito dedicada no colégio e raramente deixava de tirar nota máxima. Sem que, para isso, precisasse de muito esforço. O destaque nas notas não era motivo para ser uma estudante isolada, pois participava também das atividades esportivas. O lado tímido não a impedia de ser popular e de exercer sua capacidade de liderança, o que a levava ter a função de líder de turma. Filha mais velha de três irmãs, Sandra lembra que em família eram muito estimuladas para a leitura. O mês de outubro era esperado com ansiedade devido à Feira do Livro na Praça da Alfândega. Era um sonho, pois voltavam para casa com sacolas cheias de livros. Leitora voraz, adorava o Almanaque Abril e sabia de cor curiosidades como o nome de todos os ganhadores do Oscar. Na hora de prestar vestibular, o jornalismo já era uma opção desejada, vinha lá da infância, com o desejo de ser astronauta ou cientista. “O Jornalismo foi mais ou menos perto disso”, explica. Ela queria fazer coisas diferentes, o futuro e a ficção despertavam
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muito interesse. Também queria viajar. Lembra do fechamento de reportagens televisivas de uma repórter bem conhecida “Sandra Passarinho, direto de Londres”. Aquilo mexia com Sandra Pecis.
Estudante de Jornalismo, também cursava História e tinha o olho no futuro
Na UFRGS cursou concomitantemente Jornalismo, vestibular em 1980, e História, com o vestibular em 1981. Sandra lembra do local do curso de Jornalismo como um lugar inóspito. O prédio ficava afastado de todos os outros, pois o curso havia sido separado do curso de Filosofia e mudado do Campus do Centro para o Campus da Saúde, uma estratégia do governo militar para isolar os estudantes de Comunicação. A nova Fabico – Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação – mudara-se para a esquina das avenidas Ramiro Barcelos com Ipiranga, em um prédio atrás do Planetário. Sandra lembra que não havia nada por ali, nem bar no prédio da faculdade. Para ela era muito importante estudar na UFRGS, acreditava que era o momento de mudar o Brasil que lutava para sair da ditadura. Era essencial estar em um ambiente em que se defendia a democracia. Preferia a parte teórica da grade curricular. Um dos trabalhos que mais gostou de fazer foi a análise das fotografias publicadas nos jornais sobre o atentado do Riocentro, uma tentativa de ataque com bomba ocorrido na véspera das comemorações pelo Dia do Trabalhador, em 1981, no Centro de Convenções do Riocentro, no Rio de Janeiro, comandado por militares que não concordavam com o processo de abertura política do país. No terceiro semestre da faculdade, candidatou-se a uma vaga de estágio na Rádio da Universidade para fazer clipping. Ela adorava o trabalho, pois lia os jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo. O diretor da Rádio na época era Carlos Urbim e a diretora de jornalismo era Iara Bendatti. Sandra logo assumiu uma vaga na produção do programa musical Clube da Esquina, com a
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trilha sonora de Milton Nascimento e dedicado à música popular brasileira. O programa ia ao ar de segunda a sexta-feira, das 16h às 17h. Quem apresentava era o jornalista Celestino Valenzuela, que depois de apresentar o programa Jornal do Almoço na televisão comercial, ia para a Rádio da Universidade. O que ela mais gostava nessa função era ir aos shows que ocorriam na cidade, com os convites recebidos, e participar das entrevistas com os artistas. O lado técnico nunca a assustou. Mesmo não sendo sua atribuição, ficava na mesa de som na hora de gravar ou de colocar o programa no ar. O Campus do Centro, ambiente onde estavam os bares da Arquitetura e da Filosofia, era muito mais agradável, na sua opinião, do que o ambiente afastado da Fabico, que não era convidativo ao convívio dos estudantes. Sandra também tinha a sua vida estudantil no Campus do Vale, onde estava instalado o curso de História. Ficou como estagiária na Rádio das Universidade até se formar em 1983, aos 21 anos. Então, como aluna de História, foi para o prédio da Engenharia, do outro lado da rua Sarmento Leite, fazer disciplinas extras na área de informática. As novas disciplinas cursadas vinham para ajudar Sandra a entender o que estava acontecendo com o surgimento dos computadores: Introdução à Computação, Linguagem de programação Algol, que operava com cartões perfurados. Também fez outros cursinhos fora da UFRGS. Ela tinha curiosidade em saber o que estava por vir, queria entender esse mundo. Achava que aqueles cursos a capacitariam para alguma coisa, mas não sabia exatamente para o quê. Também não achava que teria um oficio exatamente naquela área, mas queria conhecer como seria o futuro, por meio da computação. O curso de História não foi concluído. O objetivo não era o de buscar outra profissão, mas de obter mais conhecimentos. Porém, com a conclusão do curso de Jornalismo, os objetivos de vida ficaram mais pragmáticos. Após a formatura, veio a necessidade da independência financeira.
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No futuro, o trabalho do jornalista seria diferente O primeiro emprego foi no grupo Joaquim Oliveira, no antigo supermercado Kastelão, no bairro Menino Deus, em Porto Alegre, na equipe de um projeto de automação comercial. Como era antes da Constituição de 1988, a jornada de trabalho somava 44 horas semanais. O cartão-ponto era batido às 7h30min. Sandra foi contratada por ter noções de informática e, principalmente, ser fluente em inglês. O projeto, que tinha em sua maioria, pessoas ligadas à área da informática, consistia em criar um supermercado automatizado, com a extinção das antigas máquinas registradoras. Até então, ao passar no caixa do supermercado era registrado apenas o preço do produto, sem nenhuma identificação. O lojista sabia o valor da venda, mas não sabia qual o produto havia sido vendido. Por outro lado, o consumidor tinha uma nota sem a discriminação dos produtos adquiridos. O trabalho de Sandra consistia em fazer a ligação entre a equipe de desenvolvimento e o usuário final, ou seja, os funcionários do supermercado. Assim ela criava manuais “traduzindo” os aspectos técnicos e indicando como as pessoas deveriam realizar as suas tarefas nos novos equipamentos. Ali conheceu o processador de textos, em um computador PC XT. Foi a sua grande descoberta para o jornalismo, com o computador e a impressora, o trabalho do jornalista seria diferente. Em 1987, Sandra se desligou da empresa como funcionária, mas continuou prestando serviços para solucionar o problema da interface entre a equipe técnica e o usuário final. Ela descobriu ali um nicho de negócios. Abriu uma microempresa em sua própria casa, o que hoje seria chamada de start up, a DPI – Documentação e Publicações em Informática. Tinha um computador e uma impressora matricial que compunham o seu escritório. Sua cartela de clientes ampliou e entres eles estavam a empresa de automação Altus, que havia desenvolvido um sistema para a refinaria de Paulinia, da Petrobrás. Também trabalhou com a Digitel, uma empresa de fabricação de modems.
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A evolução dos softwares editores de textos e a impressão caseira a laser fizeram com que as parcerias ampliassem indo além das empresas de tecnologia. O escritor Marcelo Carneiro tinha uma escola de inglês para quem Sandra confeccionou folhetos. Outras pessoas, como o jornalista e editor Sérgio Lutdke, queriam aprender editoração e Sandra então realizava o treinamento. Ela estava satisfeita com a sua microempresa de prestação de serviços, porém, não se sentia mais desafiada ao realizar sempre as mesmas atividades. Em 1989, viu em um anúncio de jornal que a Zero Hora abriria um curso de jornalismo aplicado. Prestou a prova, passou em todas as etapas e integrou a primeira turma, formada por 30 pessoas. Vieram professores da Universidade de Navarra (Espanha) e do Instituto Poynter (Estados Unidos). Sandra encontrou sintonia com as ideias dos professores estrangeiros, ela já não pensava a atividade jornalística fragmentada em funções muito separadas “ou repórter ou fotógrafo ou editor”. Com a experiência anterior, ela já não conseguia dissociar a concepção de um todo. Dentre os professores brasileiros do curso ela lembra de Eunice Jacques e Clovis Malta. Na época, o diretor da Zero Hora era Carlos Fehlberg.
O trabalho na redação de Zero Hora Após a finalização do curso, Sandra foi selecionada para integrar os quadros da empresa. Na mesma leva estavam Cyro Silveira Martins, Alexandre Bach, Ricardo Bueno, Arisinha Affonso, Maria Lucia Badejo, Simone Donini, entre outras pessoas. Na entrevista de ingresso na empresa, Sandra escolheu ir para o Banco de Dados. O que a atraiu foi a possibilidade de conhecer todo o jornal, pois o setor produzia matérias de apoio a todas as editorias, além de ajudar na pesquisa das edições arquivadas. Brinca que foi conhecer as profundezas do jornal, literalmente, pois o setor ficava no subsolo. O trabalho era muito parecido com o da Rádio da Universidade, recortar os jornais do dia
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para arquivamento de assuntos que serviriam como material de pesquisa em apoio às pautas da redação. O setor era chefiado por Helen Rozados. A primeira matéria assinada foi também na mesma ocasião em que andou pela primeira vez em um carro da empresa. Victor Civita havia morrido e o Banco de Dados, na era pré-internet, não possuía material para fazer a pesquisa jornalística sobre o acontecimento. Como Sandra tinha muitas revistas guardadas, incluindo a primeira edição da revista Imprensa, assumiu o comando da produção. Um carro da Zero Hora a levou em casa para buscar o material. Ela pode escrever o texto e teve seu nome na assinatura da matéria. O ano de 1989 tinha sido o da queda do muro de Berlim e os regimes totalitários do Leste Europeu começavam a desmoronar no início da década de 1990. A aproximação com a editoria Mundo ocorreu naturalmente por conta desses acontecimentos. Nela trabalhavam Raul Rubenich e Arisinha Affonso. As matérias especiais do domingo demandavam material do Banco de Dados. Sandra também começou a editar e a propor soluções como mapas e ilustrações. Na primeira Guerra do Golfo, mesmo grávida, e por conta do inglês fluente, era ela quem fazia a escuta do canal CNN, inclusive em algumas madrugadas. Quando voltou da licença maternidade, em 1991, foi convidada a integrar a editoria de Economia. Lembra que sentava ao fundo da redação, junto a uma janela. Com uma visão panorâmica da redação, ela pensava “e eu ainda ganho para estar aqui!”, tamanho era o fascínio pela atividade que desenvolvia naquele ambiente de produção de notícias. Já na entrevista de admissão, anos atrás, ela havia manifestado a opinião de que o jornal poderia ter um caderno de informática. O assunto estava atrelado à editoria de Economia, porém a abordagem era voltada para o empresariado. Ainda não se vislumbrava um caderno de informática atendendo necessidades de
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usuários, no entanto, era o que Sandra estava propondo, pensar no “mundo do usuário”. Aos poucos conseguia aplicar suas ideias. Por exemplo, a partir do segundo semestre de 1991, nas terças-feiras, publicavam matérias no caderno de economia sobre informática tendo como referência o ponto de vista do usuário.
A internet é outra coisa... As matérias semanais viraram um caderno com a chegada do jornalista Augusto Nunes, vindo do Estado de S. Paulo, para assumir a direção da redação de Zero Hora. O caderno de informática, o ZH Info, surgiu em 1993 e Sandra assumiu o posto de editora e de repórter. A microempresa DPI ainda existia em paralelo a sua atuação no jornal, porém, devido à grande demanda de trabalho, precisava de apoio. Ainda em 1991, Sandra colocou um cartaz na Fabico, oferecendo vagas de estagiários: Caique Severo e Vitor Necchi foram os selecionados. Os requisitos eram apenas querer aprender e usar o computador como ferramenta para a editoração eletrônica. Caique apaixonou-se pelo trabalho e seguiu a parceria mais tarde também na Zero Hora. Sandra conheceu a internet em 1994. Junto com Caique foi acessar a web no Centro de Supercomputação (Cesup) da UFRGS. Lá viu uma espécie de jam session em que pessoas dali trocavam arquivos de arte digital com pessoas de São Francisco, nos Estados Unidos. Daí Sandra pensou: “isto é outra coisa”. Já havia tido um insight quando na empresa Joaquim Oliveira viu um PC com o texto saindo na impressora, pensou que assim como Gutenberg, agora as pessoas poderiam ter sua própria máquina de fazer as letras passarem para o papel. Percebeu que algo muito grande estava vindo. Mas quando conheceu a rede mundial de computadores, tinha certeza, a internet ia muito além de tudo o que conhecia até então. A essa altura, a microempresa já não existia mais, e Caique agora era parceiro no jornal. Na noite de 6 para 7 de junho de
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1995, ambos entraram madrugada adentro para oferecer pela primeira vez conteúdo da Zero Hora na internet. Inicialmente era uma atualização semanal que disponibilizava o conteúdo do caderno de informática do jornal. Com o tempo, passou a agregar notícias de outras editorias como esportes e os destaques das notícias do dia, e ainda serviços como a previsão do tempo e classificados de imóveis.
Primeiro anúncio publicitário sobre a presença da Zero Hora na internet.
A proposta desafiadora realizada em dezembro de 1994 na entrevista coletiva em que o governo anunciou a chegada da internet no Brasil estava vencida em dezembro de 1995. O jornal Zero Hora tinha um site e estava produzindo conteúdo em português para a internet. Sandra Pecis acredita que estar no lugar certo e na hora certa é importante, mas a realização não se trata de uma obra do acaso. Tão importante quanto estar no lugar certo e na hora certa é saber posicionar-se, saber colocar suas ideias, ter iniciativa para atuar.
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Depois de editar o ZH Online, Sandra participou, em 1996, da criação do ZAZ, o primeiro portal de entretenimento e notícias do Grupo RBS. Em 2000 foi co-fundadora do portal Terra, onde atuou como responsável por conteúdo e produto no Brasil e América Latina. Atuou ainda como executiva de grandes grupos empresariais no centro do país. Sobre perspectivas de mercado futuro, Sandra acredita que “para o país crescer mais é preciso ter mais empreendedores, ter mais negócios... e com o que eu puder contribuir para isso”, projeta com animação. Daquelas aulas na infância, no Instituto de Artes, Sandra carrega a afeição pela criação e o entusiasmo nas descobertas para o futuro do jornalismo.
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Referências
GRUPO RBS. Comunicação é a nossa vida. Porto Alegre: RBS Publicações, 2007. MIELNICZUK, L.; BACCIN, A. ; SOUSA., M. C. E. ; BRENOL, M. ; DANIEL, P. B. . Vinte anos de Zero Hora na internet (1995-2015). Revista Estudos de Jornalismo, v. 1, p. 53-66, 2015. PECIS, Sandra. Relatório sobre a Zero Hora On-Line, publicada na internet. Porto Alegre, 31 jan. 1996. Arquivo Pessoal. PECIS, Sandra. Sandra Pecis: depoimento [22 mar. 2015]. Entrevistadoras: Marlise Brenol e Priscila Berwaldt Daniel. Porto Alegre, 2015. PECIS, Sandra. Sandra Pecis: depoimento [10 ago. 2016]. Entrevistadoras: Marlise Brenol e Priscila Berwaldt Daniel. Porto Alegre, 2016.
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Sobre autoras e autores Aline Strelow – Professora Adjunta da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Realizou pós-doutorado em Comunicação pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Doutora e Mestre em Comunicação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Coordenadora do Grupo de Pesquisa em História da Comunicação da Fabico/UFRGS. Editora da Revista Brasileira de História da Mídia (RBHM), publicação científica da Associação Brasileira de Pesquisadores de História da Mídia (Alcar). Ana Gruszynski – Doutora em Comunicação. Professora do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGCOM-UFRGS). Pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Coordenadora do grupo de pesquisa Laboratório de Edição, Cultura e Design (LEAD). André Iribure Rodrigues – Professor Associado da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Graduado em Comunicação Social – Publicidade e Propaganda. Mestre em Comunicação e Informação e Doutor em Comunicação e Informação pela UFRGS, com Doutoradosanduíche na UFRJ. Secretário de Comunicação da UFRGS. Andréa Brächer – Professora Adjunta da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutora em Poéticas Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Instituto de Artes/ UFRGS, 2008). Estágio Sênior pela University of the Arts London (UAL/CAPES, 2016). Integrante do Grupo de Pesquisa em História da Comunicação da Fabico/UFRGS e do Grupo de Pesquisa em
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Processos Fotográficos Histórico Alternativos – Instituto de Artes/ UnB. Coordenadora do Projeto de Extensão Lumen em Processos Fotográficos Históricos e Alternativos. Camila C. Barths – Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), na linha de pesquisa Mediações e representações culturais e políticas. Possui graduação em Comunicação Social com habilitação em Relações Públicas pela Unisinos (2008). Relações Públicas no Hospital de Clínicas de Porto Alegre desde 2013. Tem experiência na área da comunicação em organizações de educação e saúde. Carlos Guimarães – Jornalista formado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Especializado em Jornalismo Esportivo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestrando do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Informação da UFRGS. Integrante do Núcleo de Estudos de Rádio, grupo de pesquisa vinculado à UFRGS. Coordenador de Esportes da Rádio Guaíba, de Porto Alegre. Comentarista esportivo da emissora. Jornalista esportivo com passagens pelas rádios Gaúcha e Bandeirantes, ambas de Porto Alegre. Cida Golin – Doutora em Letras, Professora dos Cursos de Jornalismo e Museologia da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FABICO | UFRGS). Professora do Programa de Pós-graduação em Informação e Comunicação (PPGCOM) dentro da linha de Jornalismo e Processos Editoriais. Atua no Laboratório de Edição, Cultura e Design e coordena o grupo de Jornalismo e Publicações Culturais (LEAD|CNPq), envolvendo uma rede de projetos articulados em torno do jornalismo e cultura. Atualmente pesquisa e orienta na área de jornalismo, cultura, cidade e memória. Pesquisadora do Conselho de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). 290
Claudia Wasserman – Doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora Titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista do CNPq. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Estudos Americanos (CNPq). Tem experiência na área de História latino-americana e brasileira, atuando nos seguintes temas: história contemporânea do Brasil e da América Latina, identidade nacional, historiografia latino-americana, questão nacional, história intelectual latino-americana e brasileira e movimentos sociais. Tem publicado artigos e capítulos de livros em periódicos internacionais e em coletâneas organizadas no exterior. Diego Pereira da Maia – Doutorando do Programa de PósGraduação em Comunicação e Informação (PPGCOM) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), na linha de pesquisa Mediações e representações culturais e políticas. Mestre em Comunicação e Informação pelo PPGCOM da UFRGS. Possui graduação em Comunicação Social com habilitação em Relações Públicas pela UFRGS (2012). Coordenador da Assessoria de Comunicação Social da Fundação Theatro São Pedro desde 2012. Tem experiência na gestão da comunicação nas áreas da educação e da cultura. Flávia Ataide Pithan – Graduada em Sistemas de Informação pelo Centro Universitário Franciscano (1999) e em Desenho Industrial – Programação Visual pela Universidade Federal de Santa Maria (2002). Tem mestrado em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2006) e doutorado pelo mesmo programa (2008). Foi professora substituta da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e da Univates no Curso de Design. Foi professora da Universidade Federal de Pelotas e atualmente é professora do nível Associado I da UFRGS.
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Flávio A. C. Porcello – Professor Associado Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde formou-se em Jornalismo em 1977. Formado também em Ciências Jurídicas e Sociais pela mesma universidade em 1976. Mestre e Doutor pelo PPGCOM em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professor de Telejornalismo nos cursos de graduação e pós-graduação da Fabico/UFRGS. Vicecoordenador da comissão de Ética do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul. Karla Maria Müller – Doutora em Ciências da Comunicação; Mestre em Comunicação; Relações Públicas, Jornalista e Publicitária. Professora pesquisadora do Programa de PósGraduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGCOM/UFRGS); Diretora da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação (Fabico/UFRGS). Coordenadora da pesquisa “Mídia e Fronteiras: cartografia dos estudos no Brasil”; Vice-coordenadora da Pesquisa “Unbral Fronteiras - Portal de Acesso Aberto das Universidades Brasileiras sobre Fronteiras e Limites”; Membro dos Grupo de Pesquisa no CNPq “Comunicação e práticas culturais”, “Mídia, tecnologia e cultura” e “História da Comunicação”; Coordenadora do Programa de Extensão Em dia com a pesquisa – PPGCOM/UFRGS e do Programa de Extensão Comunicação e Atendimento ao Cidadão – Procac/Fabico/UFRGS; Assessora Ad Hoc do CNPq e da CAPES. Laís Guimarães Webber – Comunicadora social com habilitação em jornalismo graduada pela Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Graduanda em Letras, licenciatura, pela mesma universidade. Sócia do Inverno Studio, estúdio dedicado à criação e à comunicação. Produz conteúdo em texto e vídeo, autorais ou não;
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edita, revisa, cria, planeja. Integrou, ainda, a Revista Bastião, veículo de jornalismo independente. Laira Ferreira de Campos – Mestre em Comunicação e Informação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) onde foi aprovada em 2015 com a dissertação “A entrevista e a construção de significados no Primeira Pessoa: narrativas, relatos de vida e diálogos na TV”. Jornalista diplomada pela Universidade Católica de Pelotas (UCPEL) em 2006 e graduação em Música – bacharel em Piano pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) em 2009. Atuou em atividades de pesquisa científica na área de Ética e Jornalismo em Pelotas (RS). Liana Haygert Pithan – Jornalista com passagem por jornal, TV e portal de internet. Criou a oficina de jornalismo para estudantes do Correio do Povo. Como chefe de reportagem do portal Terra, instalou a rede de correspondentes nacionais e internacionais, participou da cobertura das Olimpíadas de Pequim (2008), implantou duas sucursais e coordenou quatro coberturas de eleições. É mestranda do Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), na área de Gestão de Pessoas e Relações de Trabalho. Luciana Mielniczuk – Professora do Curso de Jornalismo e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação (PPGCOM) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Jornalista (1992) e mestre em Comunicação e Informação (1998) ambos pela UFRGS. Doutora em Comunicação e Cultura Contemporânea (2003) pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), com estágio doutoral (2001) na Universidade de Aveiro (Portugal). Realizou estágio Pós-Doutoral (2008) na Universidade de Santiago de Compostela (Espanha). Coordenadora do Grupo Jornalismo Digital (JorDi), CNPq/UFRGS, fundado em 2004. 293
Luciano Alfonso – Doutor em Comunicação e Informação pelo PPGCOM/UFRGS (2013). Mestre em Comunicação e Informação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2010) e graduado em Comunicação Social pela mesma Universidade. Desde janeiro de 2013, integra o núcleo Estudos em Jornalismo e Publicações Culturais do Laboratório de Edição Cultura e Design (LEAD Grupo de Pesquisa CNPq). É funcionário da Fundação Piratini, onde já exerceu diversas funções, sendo atualmente editor-chefe do programa Estação Cultura. Tem experiência na área de Comunicação e Assessoria de Imprensa, com ênfase em Cultura e Televisão. Luiz Artur Ferraretto – Professor do curso de Jornalismo e do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Informação da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre. Com a jornalista Elisa Kopplin, escreveu Técnica de redação radiofônica (1991) e Assessoria de imprensa, teoria e prática (6ª edição em 2009). São de sua autoria: Rádio – O veículo, a história e a técnica (3ª edição em 2007), Rádio no Rio Grande do Sul (anos 20, 30 e 40): dos pioneiros às emissoras comerciais (2002), Rádio e capitalismo no Rio Grande do Sul: as emissoras comerciais e suas estratégias de programação na segunda metade do século 20 (2007) e Rádio – Teoria e prática (2014). Coordena o Núcleo de Estudos de Rádio (NER) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, integrado por pesquisadores de diversas instituições de ensino. Jornalista com passagens pelas rádios Gaúcha e Bandeirantes, ambas de Porto Alegre. Maria Berenice da Costa Machado – Professora Associada da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutora em Comunicação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
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(PUCRS). Integrante do Grupo de Pesquisa em História da Comunicação da Fabico/UFRGS e diretora da Associação Brasileira de Pesquisadores de História da Mídia (Alcar) e da Associação Brasileira de Pesquisadores em Publicidade (ABP2). Mariângela Machado Toaldo - Possui graduação em Comunicação Social Publicidade e Propaganda pela Universidade Luterana do Brasil (1995), mestrado em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1998), doutorado em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002) e pós-doutorado pela Universidade de São Paulo (2016). É professora adjunta da Faculdade de Comunicação Social da UFRGS (FABICO). Desenvolve pesquisas nas áreas de Publicidade, Ética, História da Publicidade e Jovens. É autora dos livros Cenário Publicitário Brasileiro: anúncios e moralidade contemporânea (Sulina, 2005) e Publicitários + Anunciantes: a dinâmica de uma relação complexa (Entremeios, 2010). É membro do Conselho Nacional de Auto Regulamentação Publicitária (CONAR) desde 1998. Marlise Brenol – Professora do Curso de Jornalismo da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Atua como presidente executiva da Fundação Pe. Urbano Thiesen e dirige a rádio Unisinos. Mestre e doutoranda em Comunicação e Informação pela UFRGS e jornalista pela PUCRS. Integrante do Grupo de Pesquisa em Jornalismo Digital (JorDI), CNPQ/Ufrgs. Priscila Daniel – Jornalista e graduanda em Administração, ambos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atua na área de comunicação, marketing e produção de conteúdo. Sandra Maria Lúcia Pereira Gonçalves – Pesquisadora e professora Associada do Departamento de Comunicação Social da
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Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Artista Visual. Possui graduação em Comunicação Visual pela Escola de Belas-Artes (EBA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestrado e doutorado em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação (ECO) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), década de 1990. Publica regularmente artigos que refletem sobre o fotográfico. Coordenadora do projeto de extensão Fotovaral. É membro do Grupo de Estudos em Processos Fotográficos Históricos e Alternativos – Lumen liderado pela professora Andréa Brächer e do Grupo de Pesquisa em História da Comunicação, liderado pela professora Aline Strelow, ambos na Fabico/UFRGS.
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Este livro foi impresso para a Editora Insular em junho de 2018