A Aventura da Filosofia II: De Heidegger a Danto

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S umรกrio

a aventura da f ilosofia II de

H eidegger a D anto



a

aventura da filosofia II de

H eidegger a D anto

Pa u l o G h i ra l d el l i J r. D o u t o r e M e s t re e m F i l os o f i a p e l a u s P D o u t o r e M e s t r e e m F i l o s o f i a d a ed u c a ç ã o p e l a P u C - s P l i v r e - d o c e n t e e P ro f e s s o r t i t u l a r p e l a U N E S P Pó s - d o u t o r a d o e m M e d i c i n a s o c i a l p e l a U E R J D i r e t o r d o C e n t r o d e e s t u d o s e m F i l os o f i a a m e r i c a n a (C E F A )


Copyright © 2011 Editora Manole Ltda., por meio de contrato com o autor. Projeto gráfico e editoração eletrônica: Departamento Editorial da Editora Manole. Capa: Departamento de Arte da Editora Manole.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Ghiraldelli Jr., Paulo A aventura da filosofia II de Heidegger a Danto / Paulo Ghiraldelli Jr. – Barueri, SP : Manole, 2011. ISBN 978-85-204-3152-8 1. Filosofia I. Título. 11-01286

CDD-100 Índice para catálogo sistemático: 1. Filosofia 100

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida, por qualquer processo, sem a permissão expressa dos editores. É proibida a reprodução por xerox. A Editora Manole é filiada à ABDR – Associação Brasileira de Direitos Reprográficos. 1a edição – 2011 Direitos adquiridos pela: Editora Manole Ltda. Avenida Ceci, 672 – Tamboré 06460-120 – Barueri – SP – Brasil Tel.: (11) 4196-6000 Fax: (11) 4196-6021 www.manole.com.br info@manole.com.br Impresso no Brasil Printed in Brazil Este livro contempla as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009. São de responsabilidade do autor as informações contidas nesta obra.


N茫o fiz este livro s贸 para a Fran ler, eu fiz para ela usar com estudantes.

Para o Paulo Francisco Mar tins Ghiraldelli, agora na estrada para se tornar fil贸sofo.



S umário

Prefácio.. .................................................................................... xi Introdução.................................................................................. 1 O que é a filosofia contemporânea?......................................................... 1 Três novos saberes........................................................................................1 Darwin, Marx e Freud......................................................................................4 Nietzsche: “Deus está morto”.........................................................................8 Continentais e analíticos...............................................................................12

I – A filosofia continental.. ........................................................ 15 Para além da noção moderna de sujeito e verdade................................15 A crítica da vida inautêntica: Heidegger........................................................ 15 Repondo o Iluminismo no lugar: Adorno e Horkheimer................................... 21 O primado da liberdade: Jean-Paul Sartre..................................................... 29 O poder criativo: Foucault............................................................................ 32 Desconstruindo “o bom selvagem”: Derrida.................................................. 37 A hermenêutica como filosofia: Gadamer...................................................... 42


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II – A filosofia analítica.. ........................................................... 49 Da “virada linguística” à filosofia de Donald Davidson............................. 49 O neoplatonismo de Frege............................................................................ 49 Novidades de Russell e Wittgenstein............................................................. 53 O positivismo lógico – herdeiro de Wittgenstein?............................................57 Wittgenstein contra Wittgenstein.................................................................. 58 E a “linguagem privada, existe?”................................................................... 62 Quine e Davidson......................................................................................... 65

III – O pragmatismo.. ................................................................ 71 Viagem para além das dicotomias......................................................... 71 A filosofia da América.................................................................................. 71 Habermas e Rorty....................................................................................... 76

IV – Ética, moral e metaética................................................... 83 De volta às escolas de filosofia moral.................................................... 83

Ética e moral............................................................................................... 83 O que é metaética?...................................................................................... 84 Naturalismo................................................................................................. 84 Relativismo.................................................................................................. 85 Emotivismo................................................................................................. 87 Ética do dever e ética consequencialista....................................................... 88 Freud desafia a ética.....................................................................................91 Qual é o papel da ética, do Superego cultural?.............................................. 94

V – A filosofia política............................................................... 97 Fim das utopias?.................................................................................. 97 “Uma raça de demônios”.............................................................................. 97 Jusnaturalismo............................................................................................ 99 O modelo hegeliano................................................................................... 104 Distinções: utopia, teoria e filosofia ad hoc................................................. 106 Justiça social.............................................................................................114

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Sumário

VI – A filosofia da arte.. .......................................................... 117 A arte que foge do belo...................................................................... 117 Estética, belo & cia.....................................................................................117 “O que é arte?” – Essa pergunta deve ter resposta?.....................................118 Uma teoria circular.................................................................................... 120 Danto pega carona.................................................................................... 122 Experiência estética.................................................................................. 128 A experiência estética: Dewey e Danto....................................................... 133

Indicações de leitura .......................................................................139 Índice remissivo................................................................................ 141

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P refácio

Neste volume, a guerra de Platão contra Homero é (completamente?) substituída pela guerra de Nietzsche contra Platão. Não se trata mais de colocar a filosofia contra o mito, e sim de observar em que medida a filosofia, ela própria, fez-se ou não acriticamente de mito. Nietzsche queria nos despertar desse tipo de “sono dogmático”. O célebre “sono dogmático” foi aquele do qual Kant disse ter sido desperto por Hume à medida que também considerou importante o mundo empírico e não apenas o mundo construído pelo pensamento puro ou racional. Ora, Nietzsche alumiou os tempos contemporâneos, dizendo que esse tal sono nem era tão problemático. O problema mesmo já era outro: descobrir se toda e qualquer filosofia não seria outra coisa senão um subterfúgio para que a metafísica, tantas vezes expulsa pela porta, voltasse pela janela. Nietzsche inaugurou uma crítica à metafísica a partir da preocupação com estudos sobre a linguagem e sobre a moral. É claro que também houve – e falamos disso neste segundo volume – toda uma filosofia da linguagem, nascida de algo chamado linguistic turn, para colocar o pensamento contemporâneo na linha de estudos semânticos. Nietzsche, porém, não fez filosofia da linguagem pela filosofia da linguagem para salvar ou substituir estudos metafísicos. Nietzsche recorreu à linguagem para martelar a cabeça daqueles que, de algum modo, queriam fazer metafísica – principalmente dos que queriam agir de maneira, digamos, sutil. xi


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Há quem diga que Nietzsche, procedendo dessa forma, teria não só batido o martelo na cabeça de outros como também jogado o martelo para cima, para que ele caísse na sua própria cabeça. No entanto, é difícil fazer essa afirmação e deixá-la assim, em suspenso. De fato, é possível imaginar que Nietzsche não tenha feito filosofia como metafísica, e sim como uma nova cosmologia. Talvez fosse uma nova forma de ver a ética, ou mesmo a promessa de se livrar de tudo que é cultura, de modo a entrar em um mundo onde o que fosse humano poderia ser superado de vez. Este segundo volume gira em torno dessa nova guerra. E dessa incógnita sobre Nietzsche e o pensamento nietzschiano. Ou, melhor dizendo, trata-se de novas guerras: o quanto fizemos, ou não, uma revolução para além da negação da metafísica, ou seja, para além da disposição do positivismo. O presente volume é sobre o que fizemos para curtir a vida após termos, ao menos nós filósofos, posto a mão na cabeça por estarmos cientes de que, antes de nós, Deus apareceu morto. “Deus está morto”, eis a frase de Nietzsche lida por muitos como um slogan ateu. Mas, não é nada disso. Ou melhor, não é algo simples de com­ preen­der. Trata-se de uma frase que diz que, após o positivismo e todo o pensamento moderno, a questão não é a discussão das possibilidades do pensamento filosófico em dar de cara com o absoluto, mas nos perguntar se ainda há filosofia quando não acreditamos mais que exista pesquisa séria na busca do absoluto. Isso nada mais é que a vida filosófica do mundo contemporâneo. Essa é uma nova guerra, a guerra da filosofia, a qual vê que talvez seu maior inimigo seja ela mesma. Há uma certa autofagia latente em todo este livro. Ele conta que a aventura da filosofia, contemporaneamente, é de certa forma uma aventura de canibal, um canibal doente que, na falta de outros corpos, acaba se mordendo para extrair nacos da própria carne. Talvez a filosofia ande no século XXI como aquela personagem sem um pedaço da nádega, a figura mais cômica e, ao mesmo tempo, mais repugnante da história da filosofia, pintada por Voltaire em Cândido. P a u l o G h i r a l d e l l i J r. xii


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O que é a Filosofia Contemporânea? Três novos saberes Do início da guerra de Platão contra Homero até o romantismo de Hegel, ainda que com altos e baixos, a filosofia nunca deixou de gozar de prestígio no mundo intelectual Ocidental. Durante 25 séculos, a figura do filósofo jamais saiu da condição de sinônimo do grande pensador. Eis, então, que chegou o século XIX e, nessa época, a filosofia conheceu, pela primeira vez, um concorrente realmente à altura, a ciência moderna. O século XIX caracterizou-se como um tempo de euforia com a ciência e de desprezo pela filosofia. Ao seu final, alguns cientistas chegaram a pensar e, mais ousadamente, a dizer, em alto e bom som, que não havia nada mais a ser descoberto pela ciência. A própria confiança na ciência mostrava uma incompreensão de sua natureza como busca contínua de melhores modelos explicativos. Quando observado do alto, esse período pode ser visto como o tempo do positivismo, a doutrina que colocou a filosofia em posição de caudatária da ciên­cia. O positivismo foi uma criação francesa. Auguste Comte (1798-1857), seu idealizador, propôs uma filosofia da história em que a humanidade deveria ser vista percorrendo três grandes estágios: o teológico, 1


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Figura 1 Auguste Comte (1798-1857). Fonte: http://commons.wikimedia.org

o metafísico e o positivo. Nesse último estágio, tomado como melhor que os anteriores, a ciência daria os rumos ao modo de pensar e viver. Assim, o positivismo teria de se transformar naturalmente em um tipo de nova religião, a “religião da humanidade”. Seria o advento de uma religião sem teologia, a própria doutrina positivista cultuada em função da estabilidade e do funcionamento de uma sociedade que teria atingido suas melhores possibilidades. Em um tempo capaz de dar vazão e forte apoio a um pensamento como o positivismo, a filosofia não poderia deixar de passar por mudanças profundas. A principal delas talvez tenha sido o surgimento de grandes teo­rias, capazes de acolher elementos tanto da ciência quanto da filosofia, mas que quiseram se insinuar como ciências acima da ciência e, ao mesmo tempo, desafiadoras da filosofia. Entre esses projetos, três grandes teorias abriram 2


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suas asas em direção ao século XX: o darwinismo, o marxismo e o freudismo. Essas teorias revolucionaram o modo de compreender a filosofia contemporânea, ou seja, a filosofia do século XX e que adentra o século XXI, pondo em xeque o que era, até então, a “inocência dos modernos”, na descrição do “bípede sem penas”. Charles Robert Darwin (1809-1882), Karl Heinrich Marx (1818-1883) e Sigmund Freud (1856-1939) puseram de lado os velhos vocabulários e deram abertura para uma nova imagem de nós mesmos, homens e mulheres contemporâ­neos. Em termos de popularização, essa nova autoimagem agiu muito mais rápido que outras grandes concepções do passado, aproveitando-se do novo patamar de desenvolvimento cultural ao qual esteve articulada desde o início e modificando o senso comum dos mais educados. Na entrada do século XX, a escolarização alcançou quase a totalidade de algumas populações. Nessa época, o conjunto territorial formado por Alemanha e Áustria possuía menos que 0,03% de analfabetos. Assim, ao menos em alguns grandes centros urbanos europeus, as pessoas ficaram mais predispostas a aceitar novas redescrições do mundo e delas mesmas, em uma velocidade cada vez maior. Não foram poucas as pessoas que come-

Figura 2 Charles Darwin, Karl Marx e Sigmund Freud. Fonte: http://commons.wikimedia.org

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çaram a se ver no espelho matinal de um modo distinto daquele que seus rostos mostravam ao se deitarem. Aqueles que passaram por essa experiência ganharam a marca da época, foram contaminados pelo vírus terrível da redescrição de si mesmos, levada a cabo por livros evolucionistas, marxistas e de psicanálise. Assim, o século XX não tardou em abrigar muitas pessoas conhecedoras de aspectos da “teoria da evolução” e, de alguma maneira, perfeitamente concordantes com a tese de que, entre os humanos e os seres brutos, há fortes elos de parentesco, além do compartilhamento da superfície da Terra. Essas pessoas também vieram a acreditar na existência da força da ideologia de um modo até exagerado. Ficou até mais fácil acreditar que se estaria agindo sob uma “falsa consciência”, e não em função de uma visão razoável do mundo. Além disso, também se generalizou o uso da palavra “inconsciente” como um estado que não implica fim da vigília. Em outras palavras, os saberes de Darwin, Marx e Freud, no decorrer do século XX, modificaram o senso comum dos escolarizados do Ocidente. A filosofia sofreu o impacto dessas mudanças e passou a rearticular seu discurso segundo os novos parâmetros postos por essas alterações.

Darwin, Marx e Freud Darwin, Marx e Freud não fizeram o que fizeram sem resistência. Importunaram muito e de modo altamente irritante o mundo intelectual da transição do século XIX para o XX. As modificações que eles propuseram não foram de fácil aceitação, mesmo para aqueles que se achavam predispostos a tal, devendo-se considerar que, ainda assim, se tornaram bastante populares em tão pouco tempo (menos de um século). Todavia, esses autores assim fizeram porque havia certa demanda por propostas que viessem a solucionar os impasses da linguagem até então utilizada para a descrição das nossas atividades. A verdade de Darwin, ainda que tomada apenas genericamente, trouxe para os filósofos a possibilidade de considerar a religião, de uma vez por todas, como uma narrativa ad hoc. Isto é, do ponto de vista científico, os 4


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filósofos poderiam explicar a origem do homem na Terra a partir de mutações genéticas associadas à sorte adaptativa, sem entrar em confronto com a narrativa bíblica. Esta, por sua vez, poderia ser tomada como uma legítima alegoria em função de objetivos ético-morais, acoplável à teoria da evolução por uma relação não necessária, totalmente opcional. Assim, para alguns, nenhum drama de consciência deveria ocorrer. A Bíblia poderia ser lida como um conjunto de fábulas de ensinamento moral ou, em termos religiosos, como uma forma de entender o que Deus gostaria de nos ver realizando. No entanto, a Bíblia não precisaria, e nem poderia, com suas histórias de fundo moral, arcar com a descrição da origem do mundo e coisas desse tipo. Para outros, porém, a transformação da religião em uma narrativa ad hoc era pedir demais. Eles imaginavam que, se assim fosse, a maioria das pessoas iria simplesmente desacreditar a Bíblia. E por que haveria de se acreditar em uma alegoria? Seria exigir demais tomar as fábulas apenas como recados morais ou mesmo como o desejo de Deus em relação aos homens. Caso a Bíblia não fosse tomada como uma forma de descrição da gênese do mundo e do homem, no mínimo ficaria totalmente desacreditada e seria descartada. Com o tempo, nada mais temeríamos, nada mais obedeceríamos. Desse modo, ainda que o caos não fosse posto na vida “das pessoas de bem”, certamente viria a se instaurar “nas massas”, para quem a ética e a moral não poderiam ser levadas adiante senão pelo temor a Deus ou pela mão amiga de Jesus. Assim, de uma forma ou de outra, o saber darwiniano provocou incômodos, mudanças de mentalidade e, sem dúvida, profundas alterações filosóficas. Para aqueles que efetivamente o viram como uma nova e boa descrição da relação humana com os seres brutos, porém, ele abriu caminho para perguntas que até então não haviam sido feitas na filosofia. Como dizer o que se havia dito da consciência? Como tomá-la como um elemento do mundo natural, com a prerrogativa de insinuar-se como o que poderia se ligar a algo supranatural? Como entender esse fantástico aparato conhecido como “consciência” se os homens teriam se originado de um mundo de seres brutos vistos como desprovidos de traços de consciência? 5


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A verdade de Marx também poderia, em princípio, ser bem absorvida. Afinal, a ideia de que se é enganado pela própria consciência não era nada estranha aos intelectuais. Aliás, era uma ideia tipicamente filosófica. A “caverna”, de Platão, os “ídolos da tribo”, de Bacon, e as “ideias da razão”, de Kant, são uma série de elementos para a pré-história das noções de ideologia e “falsa consciência”. Todavia, a ideia de Marx de “falsa consciência” ou a noção de ideologia tinha um componente incômodo. Em seus textos, a ideologia não aparecia como algo que tinha de existir, mas como aquilo que poderia ser eliminado. E eliminado não para um ou dois, mas para todos os homens. A ideologia, concretamente a reificação e o fetichismo, não deveriam ser eternos. A inversão de papéis entre agente e objeto que Marx denunciou não foi apresentada como fruto de um necessário “limite da razão” humana finita, nem como uma opinião assumida acriticamente. Muito menos, foi mostrada como um erro dos sentidos. A “falsa consciência” seria o produto de um sistema de relações políticas e jurídicas da “economia de mercado”, onde o mercado é que estaria criando a maneira moderna dos comportamentos, em que os produtos do trabalho escapam do controle de seus produtores e se colocam diante deles como mandatários, possuindo vontades e, então, impondo voz de comando aos atos daqueles que foram seus produtores. Esse comportamento, no entanto, não seria natural, mas algo determinado pelas relações sociais históricas, sendo, por isso mesmo, transformável. Uma sociedade sem esse drama do mercado estaria livre da escravidão dessa inversão. É claro que essa ideia, assim tomada, implicava voltar-se contra as instituições de garantia da ordem. O marxismo, então, uma vez absorvido nesses termos, como filosofia, tinha uma implicação revolucionária. E, de fato, isso não era algo tão fácil de ser tolerado. E a verdade de Freud? Ideias sobre a “sexualidade infantil” eram difíceis de aceitar, mas ideias sobre o inconsciente já tinham alguma pré-história em Arthur Schopenhauer e Nietzsche. Por que, então, o freudismo e/ou a psicanálise poderiam incomodar? Ora, pelo simples fato de terem se trans-

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formado em um emblema da visão de cultura de Freud, estampado na frase “o ‘eu’ não é senhor em sua própria casa”. Até Freud, ninguém havia tripartido o “eu” em instâncias equivalentes ou, mais que isso, em instâncias que aparecem como agentes no controle do próprio “eu”. Além disso, a filosofia tinha optado pela ideia de que o “eu” conhece o mundo, mas não conhece a si mesmo a não ser como algo no mundo, como fenômeno. Freud inventou um procedimento que parecia romper com isso e criou nomes para as patologias do “eu”. Passou a investigar o “eu” virando-o do avesso e, enfim, tachou-o de irresponsável ou quase isso. O resultado foi um só: ele próprio, o “eu”, no interior da consciência, não mandava tanto quanto imaginava mandar. Tratar-se-ia do Ego, que nada seria senão um produto fenomênico daquilo que era ordenado ou instigado por partes do “eu” mais profundas e inconscientes, o Id e o Superego. O mais complicado disso tudo é que o Id seria o responsável por desejos pouco convenientes socialmente, enquanto o Superego seria controlador, às vezes exageradamente, a ponto de gerar patologias. Como lidar com tudo isso? O homem havia se tornado complexo demais! Como lidar com a tese de que alguém pode ser perfeitamente normal e, no entanto, movido por algo que não é mais possível denominar de “paixões”, no sentido que os escritores e romancistas gostavam de dizer, mas por algo que substitui o “eu” em vários momentos e situações? A vida real não seria mais um drama da “paixão” contra a “razão”, mas um conjunto complexo de atividades que, em grande parte, se dariam nas lutas do Ego em confronto com forças internas, o Superego e o Id. Não haveria mais a literatura para dizer coisas boas ou más a respeito dos dramas humanos, e sim um tipo de ciência, a nova ciência da psicanálise. O imperativo para os homens, então, seria ampliar o grau de autoconhecimento com essa ciência. Mas quem não ficaria incomodado ao ter de aceitar que aquilo que dizia de si mesmo, até para si mesmo, não seria a verdade de fato? Ideias como essas de Darwin, Marx e Freud atingiram três dogmas da filosofia moderna: a unidade da consciência, as relativas transparência e simplicidade do “eu” para si mesmo e a autonomia do sujeito. A noção moderna de subjetividade, aquela que diz que o sujeito é a instância “consciente 7


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de seus pensamentos e responsável por seus atos”, tornou-se uma séria candidata à peça de museu. E a noção de sujeito não era pouca coisa. Isso tudo determinou a ruptura entre a filosofia moderna e a filosofia contemporânea. Enquanto a primeira gastou as energias tentando construir o melhor modelo de sujeito, a segunda viu-se impelida a abandonar essa noção de uma vez por todas ou fazer da própria atividade de crítica do sujeito a tarefa da filosofia ou, ainda, a propor a tarefa de criação de noções que pudessem substituir as do sujeito moderno.

Nietzsche: “Deus está morto” Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) também participou da crítica à noção moderna de sujeito. Ele procurou atacar essa noção por todos os lados, especialmente como fundamento metafísico, posto pela tradição cartesiana. Nessa tarefa, usou de duas estratégias: investiu contra a noção de sujeito enquanto herdeira da noção de substância e, concomitantemente, buscou solapar a ideia de liberdade agregada à definição de sujeito moderno. Para colocar abaixo o sujeito moderno, Nietzsche afirmou que a substancialização e a posterior ontologização do sujeito vieram de uma hipóstase de elementos da linguagem. Uma vez que as expressões em sentenças geralmente se formam por sujeito e predicado, obedecendo à regra de que o sujeito é o autor da ação, não foi difícil dar atributos de autoria ao sujeito para além de sua posição na linguagem, tornando-o uma entidade ontológica. A hipóstase do sujeito estaria calçada na criação de uma ficção a respeito dessa entidade, sua capacidade de liberdade e, portanto, de consciência e responsabilidade. Para Nietzsche, a consciência associada à liberdade ficaria comprometida se uma pessoa dissesse, por exemplo, cartesianamente: “Eu penso”. Ela não deveria confiar nessa capacidade de afirmação. Afinal, o pensamento vem quando ele quer, segundo suas determinações, e não pela liberdade de decisão de um “eu”. Não haveria esse “eu” completamente consciente dos pensamentos, nem esse “eu” completamente responsável pelos seus atos. No limite, esse “eu” capaz de atuar como sujeito teria adentrado a filosofia como uma “ficção da linguagem”. 8


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Figura 3 Friedrich Wilhelm Nietzsche. Fonte: http://commons.wikimedia.org

Nietzsche não ficou somente nisso. Ele também atirou farpas contra a noção tradicional de verdade. Se a metáfora é a transposição de sentido da linguagem de uma situação para outra, e se a linguagem começa de um impulso nervoso para um conjunto de símbolos, eis que, desde essas atividades iniciais, o que ocorre já é uma metáfora. Seguindo esse caminho, do impulso nervoso ao cérebro e deste ao simbolismo da linguagem, nada temos senão uma estrada de transposição de sentidos, rigorosamente, metáforas. Desse modo, não há como negar a linguagem como um conjunto de expressões metafóricas. Todas as verdades nada seriam além de um “batalhão de metáforas” e outras figuras de linguagem. A linha entre o metafórico e o literal perderia sua função. Ao mesmo tempo, coerentemente com essa descoberta, haveria de se notar a inexistência de um texto capaz 9


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de ser verdadeiro em um sentido final, uma vez que todo e qualquer texto já seria, antes de tudo, interpretação. O que poderia escapar da condição de ser uma perspectiva a mais? Esse ataque de Nietzsche ao sujeito moderno e à verdade tradicional foi lançado em conjunto com a sua célebre frase “Deus está morto”. Mas o que Nietzsche quis dizer com essa expressão? Os homens fizeram muitas guerras em nome de seus deuses. Todavia, um dia essas guerras começaram a ficar estranhas, parecia não valer mais a pena lutar em nome de deuses. Não porque, como dissera Epicuro, os deuses pouco se importavam com os mortais, mas talvez porque, em meio a milhares de golpes de espadas e tantos tiros, os deuses tenham sido atingidos. Mas eles não eram imortais? E Deus, o deus judaico-cristão, não era só imortal, mas também o Criador. Sim, mas alguma bala de prata o atingiu e coube a Nietzsche falar dessa situação totalmente absurda. Nietzsche escreveu a frase “Deus está morto” (A Gaia Ciência) no fim do século XIX. Alguns de seus leitores imaginaram que ele estivesse fazendo uma tola profissão de fé no ateísmo. Como Deus estaria morto se as igrejas estavam cheias? Mas Nietzsche não estava fazendo um anúncio em favor de um partido ateu. Sua frase não era um eco dos filósofos tipicamente modernos (Ludwig Feuerbach à frente) que apontaram para a “alienação religiosa”, na qual o homem cria Deus e, depois, inverte sua relação com ele, fazendo dele sujeito e tornando-se o seu objeto. Muito menos, Nietzsche estava escrevendo sobre sociologia, com o intuito de avaliar a adesão ou não de grupos humanos às religiões. O que, afinal, ele quis dizer com “Deus está morto”? Uma volta ao aparecimento do positivismo explica muito. Diante das mudanças abruptas que marcaram a história do século XIX, no que se apegar? No “mundo verdadeiro” ou “suprassensível” do platonismo, que, na tradição ocidental, fora recortado como “Deus”? Ora, mas a ciência, a forte colaboradora e criadora de tantas mudanças, também aparecia como o elemento que jogava o homem para a investigação empírica, para a confiança “nos fatos” e não mais para a idolatria do “suprassensível”. Eis, então, a ideia de alguns pensadores: não seria interessante se agarrar exatamente naquilo 10


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que vinha trazendo a todos a ideia da mudança? Sim. A ciência poderia ser o novo guia, apontando para algo mais sólido em um conjunto de elementos voláteis. Essa foi a saída em torno do positivismo, mas ela foi válida? Quais foram suas consequências? Martin Heidegger (1889-1976), ao comentar a ideia de Nietzsche a respeito da expressão “Deus está morto”, lembrou que o significado de “Deus” nessa frase não era outro senão o de “mundo suprassensível”. Didaticamente, Heidegger explicou que Nietzsche estava apontando para a ideia de que o “mundo suprassensível”, que, na tradição platônico-cristã, fora tomado como o “mundo verdadeiro” em oposição ao “mundo aparente” (o “mundo sensível”), não fazia mais sucesso. O próprio Nietzsche, por sua vez, descreveu essa ideia por meio de um texto onde condensou toda a história da filosofia em uma só página, composto de seis aforismos. Significativamente, esse texto aparece com o título “Como o ‘mundo verdadeiro’ se tornou finalmente uma fábula”, em “O crepúsculo dos ídolos”. O subtítulo não é menos significativo: “História de um erro”. Cada aforismo desse texto contém dois parágrafos, em que o segundo fica entre parênteses. O primeiro parágrafo começa sempre com “o mundo verdadeiro”, qualificando-o diante de uma nova situação. O interior dos parênteses contém os comentários que seguem a filosofia da história de Nietzsche, sua interpretação da história do desenvolvimento do Ocidente. Nesse texto, a história da filosofia é tomada como a história da metafísica ou das vicissitudes do platonismo. A contraposição oferecida e celebrada pelo platonismo é a de “mundo verdadeiro” versus “mundo aparente”. Tal contraposição, no texto em questão, é absorvida por toda a filosofia até o positivismo, que dispensa essa dualidade, elegendo a positividade dos fatos, que toma como o “mundo verdadeiro”. Isto é, o suprassensível perde seu valor e é encostado. O sensível, fenomênico ou mundo aparente, é o mundo dos fatos e, enfim, a partir desse momento, o único mundo. Essa opção nada mais é que a colocação da bala de prata na agulha da arma para matar tudo aquilo que se coloca monstruosamente como divino. O suprassensível está na mira, podendo-se dizer: “Deus está morto”. 11


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No livro A Gaia Ciência, exatamente no aforismo intitulado “O louco”, Nietzsche expõe a figura do homem que diz às pessoas que elas mataram Deus. Esse homem vai às igrejas, as quais considera como túmulos de Deus, mas não é entendido pelas pessoas, sendo, portanto, o louco. Ele sabe que chegou cedo demais, que talvez não o entendam ao dizer que “Deus está morto”, mas sabe, também, que é isso que precisa ser dito quando se está prestes a presenciar o principal resultado do positivismo, que não é o culto à ciência, como o próprio positivismo se imagina fazendo, mas o passo seguinte, a impossibilidade de voltar a dar valor ao que era o valor máximo, o suprassensível. O que Nietzsche mostra é um tipo de filosofia da história do Ocidente, na qual o eixo é o niilismo, que se amplia a cada passo da cultura. Isto é, sua interpretação do desdobramento da metafísica o coloca na situação de afirmar o seguinte: na constante “busca do ser”, a metafísica carrega o destino de alimentar o nada. Nihil, que significa “o nada”, é exatamente o que se tem ao final da metafísica: a perda de valor do suprassensível (ou “Deus”), ou seja, a desvalorização dos valores mais altos – isso é o niilismo. A filosofia contemporânea não conseguiu não levar a sério o discurso nietzschiano. Seus temas estiveram presentes na maior parte das escolas da chamada “filosofia continental”. No decorrer do século XX, seus gritos também soaram em tímpanos de filósofos analíticos, especialmente dos que transitaram entre essa tendência filosófica e o pragmatismo.

Continentais e analíticos Até o fim da década de 1960, boa parte dos historiadores da filosofia considerava a filosofia contemporânea a partir de um rol de escolas e movimentos. Não se imaginava agrupar a filosofia contemporânea em duas grandes tendências, como ocorreu com a filosofia moderna, consagrada na divisão entre empiristas e racionalistas. Todavia, nas três últimas décadas do século XX, a historiografia começou a mudar acentuadamente, identificando a filosofia contemporânea segundo um contorno especial, também composto por duas grandes tendências: a de analíticos e a de continentais. 12


I ntrodução

O que, hoje, chamamos de filosofia analítica aparece na historiografia atual com origem no fim do século XIX, segundo a produção de filósofos austríacos e britânicos. Mostra corretamente que esse tipo de reflexão filosófica teve maior acolhida acadêmica no mundo de língua inglesa e que, por isso mesmo, se tornou uma filosofia identificada com o que seria “da Ilha” – o mundo britânico. Por contraposição, todas as outras tendências não analíticas foram chamadas de “filosofias do continente”. A fenomenologia, o existencialismo, a hermenêutica, a Escola de Frankfurt, o marxismo, o estruturalismo, o pós-estruturalismo e as outras tendências mais ou menos afins foram rotuladas de “filosofia continental”. O positivismo lógico e, em seguida, seus herdeiros interagiram crescentemente com a filosofia típica da América, o pragmatismo, ficando sob o título de “filosofia analítica”. Voltada à linguagem e à lógica, nos seus primórdios, a filosofia analítica mostrou-se pouco simpática à história da filosofia e à filosofia política, duas áreas que pareciam ter ficado sob o monopólio da filosofia continental. No entanto, no término do século XX, isso já não poderia mais ser tomado como uma característica de distinção entre as duas grandes tendências. Os filósofos analíticos envolveram-se com a história da filosofia, não só historiando a própria tendência analítica, mas também aplicando seus métodos à história antiga e às outras fases do pensamento. Principalmente após o envolvimento com o pragmatismo americano, também surgiram filósofos políticos no âmbito do movimento analítico. Os filósofos continentais, por sua vez, nunca foram totalmente avessos aos estudos da linguagem, e assim agiram segundo os parâmetros da hermenêutica e do estruturalismo. Todavia, no fim do século XX, já se mostravam desejosos de ampliar tal visão, olhando de maneira crescentemente curiosa para o que poderia vir das confluências entre o pragmatismo e os herdeiros diretos ou indiretos do positivismo lógico.

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