Saga Contra Hegemônica

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SAGA CONTRA HEGEMÔNICA: Reflexões sobre a possibilidade do futuro socialmente justo e ecologicamente equilibrado

Edmilson Rodrigues

Deputado Federal pelo PSOL-PA

Edmilson Rodrigues – Deputado Federal – PSOL-PA Câmara dos Deputados - Anexo IV - Gabinete 301

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SAGA CONTRA HEGEMÔNICA: Reflexões sobre a possibilidade do futuro socialmente justo e ecologicamente equilibrado

Edmilson Rodrigues

Deputado Federal pelo PSOL-PA


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Rodrigues, Edmilson. Saga contra hegemônica : reflexões sobre a possibilidade do futuro socialmente justo e ecologicamente equilibrado / Edmilson Rodrigues. – Brasília : Câmara dos Deputados, Gabinete 301, 2018. 68 p. : il. “Deputado federal - PSOL-PA”. Inclui bibliografia. Inclui o poema “Saga” de Paulo Fonteneles Filho dedicado ao autor. Desenho da capa: Do Autor 1. Capitalismo, aspectos sociais. 2. Movimento social, Brasil. 3. Ensino público, qualidade, aspectos sociais, Brasil. 4. Direito à educação, Brasil. 5. Política ambiental, Brasil. I. Título. CDU 330.342.14


Paulo Fonteles Filho e Edmilson Rodrigues


Dedico esta obra a Paulo Fonteles Filho, que faleceu prematuramente devido a um infarto fulminante no dia 26 de outubro de 2017, quinze dias após seu último pronunciamento público realizado no Ato contra a presença de Bolsonaro em Belém, na Praça da República. Como sempre, falou de modo incisivo mas poético para combater o conservadorismo e defender a democracia, a liberdade, o socialismo. Nascido em 1972 nos porões da ditadura, Paulinho sobreviveu à tortura quando estava ainda no ventre de sua mãe Ecilda Veiga, presa juntamente com o seu pai Paulo Fonteles (ex-deputado estadual paraense e advogado de trabalhadores rurais assassinado em 1987 a mando de latifundiários ligados à UDR – União Democrática Ruralista). Paulinho era pesquisador das ciências sociais, escritor e poeta, militante do Comitê Paraense pela Verdade, Memória e Justiça, membro da Comissão Estadual da Verdade, ex-vereador de Belém tendo sido líder do “Governo do Povo” quando tive a honra de ser prefeito, e dirigente do Partido Comunista do Brasil. Paulinho vivia sob ameaças por sua luta incansável em defesa das vítimas do latifúndio, denunciando as milícias urbanas, restaurando a memória das vítimas da ditadura militar (1964-1985) e trabalhando incessantemente pela preservação da memória das lutas populares, em especial a trajetória do pai. À frente do Instituto Paulo Fonteles, realizou pesquisas imprescindíveis e fez o bom combate às violações dos direitos humanos. Faço minhas as palavras da direção do PCdoB: “Paulinho era um dos melhores entre nós, amigo, companheiro, solidário, altaneiro, abnegado, dedicado a luta do povo, pondo a sua vida constantemente em risco na defesa dos direitos humanos num estado dominado pelo latifúndio e pela pistolagem. Sua trajetória nos deixa um legado de sonhos, esperança e luta.” Meses antes de morrer o poeta e combatente Paulinho Fonteles, devido às ameaças sofridas, declarou em entrevista ao Portal Vermelho: “Em certa medida eu faço a luta pela sobrevivência desde o ventre, então sou calejado nisso, então a gente tem que tratar isso com firmeza, não pode se recolher, não pode se acovardar. A capacidade de sobreviver é um milagre”. EDMILSON RODRIGUES



SUMÁRIO Apresentação (por Adolfo Oliveira Neto)

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Introdução

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Contra-hegemonia e produção do futuro

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Sistema Público de Educação: qualidade social e educadores

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A Questão Ambiental no Capitalismo

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Saga (por Paulo Fonteles Filho)

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APRESENTAÇÃO “Vês, velho companheiro, que não há saída e o que é tempestivo são as ideias em luta” PAULO FONTELES FILHO, SAGA Ao leitor atento, este livro parece ser a tentativa de um dedicado combatente em atender ao conselho de um sábio e querido amigo, indicado nesta pequena epígrafe. Por isso, o que falar do livro “Saga contra hegemônica: reflexões sobre a possiblidade de futuro socialmente justo e ecologicamente equilibrado”, que neste momento Edmilson Brito Rodrigues disponibiliza ao público? Em uma frase, este é um livro fundamental. E esta designação só é possível porque este é um livro importante pelo seu conteúdo, pelo contexto em que foi forjado e pelo que ele representa para este período histórico. Este livro chega em um momento em que a conjuntura política brasileira, que transformou o Estado em um covil de ladrões, emissários cegos do sistema financeiro mundializado, que agem para tirar direitos do povo brasileiro e manter, para alguns poucos, vultuosos privilégios. Os poucos que não se encaixam nesta designo possuem uma árdua e fundamental tarefa: resistir, sem se deixar cooptar e sem se deixar esmagar, como faz o povo cotidianamente. É este cenário que fez com que muitos e valorosos companheiros imaginassem (com toda a razão) que a tradução do nosso tempo são os cinco primeiros versos do belíssimo poema “Porque Cantamos?”, de Mário Benedetti. Se cada hora vem com sua morte se o tempo é um covil de ladrões os ares já não são tão bons ares e a vida é nada mais que um alvo móvel você perguntará, por que cantamos?

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Neste livro, que apresenta textos de diferentes épocas e construídos para momentos específicos, palavra por palavra, podemos ver a força das ideias que o Edmilson defende, em seu tom vibrante, com a autoridade de quem fala com os pés calejados de andar descalço no chão das lutas da classe trabalhadora, juntando os frutos para coletivizá-los e espalhando novas sementes como um jardineiro da esperança, ensinando e aprendendo na dialética da resistência indígena, negra, feminista, anticapitalista e popular. Na primeira parte, “Contra-hegemonia e produção do futuro”, a principal advertência que o autor nos faz é que, por mais difícil que possa parecer a conjuntura, jamais se poderá deter a emergência do período popular da história, construído pelos de baixo. Considerando que a forma de construção hegemônica do período atual, marcada pela perversidade sistêmica e pelo controle das vidas e dos territórios pelo dinheiro em estado puro, sem constrangimentos éticos ou morais, gera um conjunto de mazelas e de possibilidades para a ação política contra-hegemônica, para democratizar as riquezas e, novamente, colocar nas mãos do povo o destino de suas próprias vidas, a partir de uma perspectiva ética, democrática e solidária. Resgata a premissa marxiana de que cada período histórico ergue os desafios que se tenha condições de superar para mostrar que a conjuntura é apenas um elemento da luta política e, no desenvolver da história, a sociedade nunca teve condições tão ricas, técnica e filosoficamente, para forjar novas experiências como no período atual. Na segunda parte, “Sistema público de educação: qualidade social e educadores”, Edmilson, professor, dirigente sindical e filho imediato do acúmulo da luta dos trabalhadores e das trabalhadoras da educação, nos lembra que o projeto educativo defendido pelos trabalhadores e as vitórias materializadas na Constituição de 1988 e na legislação que se segue são bloqueadas pela opção brasileira que limita direitos sociais para garantir a rentabilidade astronômica do capitalismo financeiro. Nos mostra com dados que, a partir de diversos subterfúgios do governo federal, o orçamento executado para a educação é bem inferior ao já pequeno montante definido pela Lei Orçamentária Anual, o que amplifica os problemas do sistema público de educação, deteriorando escolas e espoliando dos trabalhadores

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quase tudo, menos os seus sonhos e a sua força para seguir na luta. Nos lembra, também, que há uma agenda regressiva em curso para transformar as escolas em territórios da discriminação, do conservadorismo e do pensamento único e que, como alternativa, só nos resta a vigilância permanente, construindo nas salas e nas ruas uma escola acolhedora e democrática, que abrace a sociedade na sua diversidade de temas e na maneira de ser dos sujeitos, ao passo que se comprometa filosoficamente com a classe trabalhadora e a superação das desigualdades e que, por isso, uma escola para além do capital. Na terceira parte, “A questão ambiental no capitalismo”, Edmilson nos lembra a dificuldade de se pensar a vida em um modo de produção que, não se contentando em transformar o meio ambiente em recurso natural, o aproprio de forma privada, criando uma séria crise que tem impactos profundos na geração atual e nas futuras. Este é o centro da questão ambiental hoje e os problemas colocados que, a partir da ação dos Estados e das grandes empresas, exaure os recursos para sustentar um padrão de consumo insuportável para o planeta, ao mesmo tempo que exclui parcelas significativas da população mundial dos recursos necessários para a manutenção da vida em sua forma mais simples. Este livro finaliza com um belíssimo poema “Saga”, escrito em 2011 para o Edmilson por Paulo Fonteles Filho, que nasceu, literalmente, como vítima nos porões da ditadura e se forjou irmão e companheiro nas lutas do povo, tendo nos deixado de forma prematura em outubro de 2017. A beleza e o significado do poema nos impede saber se Paulinho, como era conhecido, homenageia Edmilson com o texto ou se Edmilson, ao publica-lo aqui, homenageia a memória do primeiro. O importante é que, seguindo o espírito deste livro, a leitura de “Saga” nos alerta que somos irmãos, forjados como companheiros na luta do povo e que, por isso, carregamos no nosso sangue e na nossa memória o acúmulo de todas as lutas da classe trabalhadora e a vida de todos aqueles que tombaram por nós. Por isso este livro faz sentido. Ele representa o momento atual do Edmilson, com sua experiência, maturidade intelectual, coerência com o pensamento crítico e, sobretudo, a sensibilidade que lhe fez ser a expressão de tudo que nós somos, como pessoas e sonhos. Estando

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em luta no mundo, pensa como o mundo pode ser e nos apresenta ideias que são, na verdade, o resultado da poesia que a vida cotidiana cria e que a luta do povo transforma em canção. Se o momento atual, hegemonizado pelos coveiros de sonhos, são os primeiros versos do poema de Mário Benedetti que nos referimos antes, este livro nos lembra da nossa tarefa histórica e se impõe como os últimos versos: “cantamos porque chove sobre o sulco e somos militantes desta vida e porque não podemos nem queremos deixar que a canção se torne cinzas”. Na poesia da vida, que tem no povo o principal ator na busca da sua liberdade histórica, cada sujeito, individual ou coletivo, contribui com um verso. Este belo livro é uma letra a mais que o companheiro Edmilson coloca no seu verso, ao lado de lutadores e de sujeitos simples do povo que sabem que o sentido do primeiro verso da poesia da vida é a resistência e o do ultimo é a felicidade. ADOLFO OLIVEIRA NETO Professor da Faculdade de Geografia e Cartografia da UFPA. Belém, Pará, maio de 2018.

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INTRODUÇÃO Esta brochura é constituída de três capítulos autorais e de um capítulo-poema de autoria de Paulo Fonteles Filho a mim dedicado em março de 2011. O primeiro capítulo – Contra-hegemonia e produção do futuro - é uma reflexão teórica sobre a luta contra-hegemônica, ou seja, a luta baseada em projeto estratégico alternativo à atual sociedade como afirmação da possibilidade de se produzir um futuro justo e feliz, porque socialista. Para isso, refletimos sobre a filosofia da práxis propugnada por Marx como condição consciente para a superação da hegemonia atual. Refletimos sobre o modo capitalista de pensar e seu papel no condicionamento da ação das pessoas e afirmamos a convicção de que a humanidade já experimenta a constituição do limiar de um novo e popular período da história. Refletimos, também, sobre o novo sujeito histórico referenciando-nos a vários movimentos sociais desde os mais tradicionais até os novos movimentos sociais orientados pela utopia, compreendida não como irrealizável, mas necessária e possível construção coletiva da luta desse novo sujeito histórico O segundo capítulo – Sistema Público de Educação: qualidade social e educadores - é uma reflexão sobre a função transformadora da educação, da necessária qualidade social do sistema de educação, logo dos educadores. Discorremos sobre a educação como um direito humano fundamental. Refletimos sobre a concepção de sistema e de sinergia em uma perspectiva de totalidade dinâmica, fazendo-se a crítica da ideologia da “Qualidade Total” e apresentando, em contrapartida, a noção de qualidade social da educação como um bem social, o que na prática é negado, entre outros, pelo mecanismo de burla da lei orçamentária com aplicações sempre abaixo do legislado, mesmo porque não interessa ao capital considerar mesmo as necessidades humanas básicas, o que importa é o lucro. Nossa concepção de uma educação com qualidade social pressupõe a ruptura com a lógica do capital. No terceiro capítulo - A Questão Ambiental no Capitalismo -, em for-

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ma de entrevista, tratamos da relação entre políticas sociais e políticas ambientais; buscamos fazer a crítica do discurso da escassez de recursos públicos para justificar a negação de políticas que viabilizem direitos e redução das desigualdades sociais. Nesse sentido, fazemos a crítica de que as desigualdades resultam do crescimento “irresponsável” da população; Também criticamos o discurso hegemônico de que há uma nova ética empresarial e, por isso, um compromisso das empresas com o equilíbrio ambiental e a responsabilidade social, o que foge à lógica inerente ao capital que é exclusivamente o aumento dos lucros. O capítulo quarto é “Saga”, poema a mim dedicado pelo autor, o poeta Paulo Fonteles Filho, na qual é feita uma síntese de fatos históricos demonstrativos do poder revolucionário do nosso povo e demais povos irmãos para alimentar a certeza no futuro justo e feliz, porque: “Não houve combate no qual declinamos/ e a palavra socialismo nos fez fileiras./ Na densidade de todas as incertezas/ somos a vagadas revoluções./ Daqui, velho companheiro, vejo as vastas fogueiras/ iluminando a rubra alvorada”.

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I. CONTRA-HEGEMONIA E PRODUÇÃO DO FUTURO 1.1 Hegemonia e filosofia da práxis O conceito de hegemonia é indiscutivelmente um elemento chave para a compreensão dos fenômenos sociais, políticos e culturais que configuram o uso do território brasileiro no presente período histórico. Sua adoção pressupõe referenciar-se na filosofia da práxis, construção social da liberdade. Nesse horizonte, Leandro Konder proclama o presente como sobrecarregado de passado e, ao mesmo tempo, cheio das possibilidades concretas de futuro; Diz ainda que para se libertar “das armadilhas de uma continuidade hipostasiada” o sujeito deve “assumir uma postura crítico-prática que lhe permita identificar rupturas necessárias e ajudá-las a se concretizar”. A busca da liberdade, com a qual se firma na ação, só consegue se tornar mais concreta quando reconhece a dimensão da necessidade representada pelo outro; quer dizer, somente quando se torna intersubjetivo o movimento pelo qual o sujeito se realiza pode se tornar efetivamente objetivo; o interlocutor é alguém que, mesmo defendendo ideias divergentes, desempenha função essencial na auto-renovação e enriquecimento do conhecimento do sujeito e na superação das crispações dogmáticas que ocorrem sem que, muitas vezes, se dê contas delas (KONDER, 1992, p. 123). Somente quando se consegue “criar”, isto é, reproduzir espiritualmente e intelectualmente o mundo, as coisas, os processos, é que se pode conhecê-los. A reprodução espiritual e intelectual da realidade é um dos modos essenciais de criação da realidade humano-social de relação prático-humana com essa realidade (KOSIK, 1976). Abraçar a filosofia da práxis além de um compromisso intelectual é também um compromisso prático – transformador da sociedade.

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A globalização atual, apresentada como fábula – fábula da aldeia global, fábula do prodígio da velocidade na contração do espaço e do tempo, fábula do mundo homogêneo regulado pelo mercado, fábula da morte do Estado, fábula do fim da história, fábula da humanidade desterritorializada, fábula da obsolescência do princípio da soberania etc. - é como realidade, a expressão mais acabada da perversidade imanente ao modo de produção capitalista. A globalização como perversidade sistêmica pode e deve ser superada e dar lugar a uma outra globalização, a um novo período histórico que se expresse em um processo produtor de uma civilização, de uma humanidade. Mesmo que predomine hoje, inclusive entre os pensadores críticos, conforme observa Milton Santos (2000), um grande ceticismo, a produção de um projeto de futuro contra-hegemônico é necessário e possível, significa dizer, uma extensão baseada em uma racionalidade nova, já em processo de gestação nas horizontalidades imanentes às resistências dos lugares. Essa convicção assenta-se na compreensão de que a razão hegemônica – a razão do capital - é portadora, em si mesma, de forças que lhe são contrárias e obedientes às razões não-hegemônicas ou contra-hegemônicas, mais ou menos conscientes, só potencializáveis na práxis para a existência de um projeto estratégico encetado na vontade coletiva das classes e demais agentes hegemonizados de produzirem esse futuro humano socialista substantivado pela liberdade como princípio fundante. Na produção da nova história o presente não pode ser visto como mera decorrência do passado, nem o futuro como decorrência natural do presente. O “dado dinâmico na produção da nova história é o próprio presente, isto é, a conjunção seletiva de forças existentes. Se “o Homem é Projeto, como diz Sartre, é o futuro que comanda as ações do presente” (SANTOS, 2006). Para Jean-Paul Sartre (1905-1980), a totalidade como futuro em estado de possibilidade pressupõe ideia de escassez como elemento fundamental, ou seja, as necessidades humanas como evidência da negatividade, como valor implícito da dialética histórica. Entendida como negação da negação, a escassez é o viver-se no futuro através das desordens presentes, é o futuro como possibilidade de sua própria impossibilidade. A escassez é motor e origem da práxis e essa a relação do organismo com o fim

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exterior e o futuro, o organismo presente como totalidade ameaçada; O gênero humano é projeto e este, como transcendência é a própria exteriorização da imanência (SARTRE, 2002). Se a humanidade é projeto e este, como intencionalidade, autorizável pela filosofia da práxis, então ela move-se pela evidência das necessidades, da escassez apreendida como negatividade do presente, mas também como possibilidade. Assim, deve-se considerar as diferentes formas de produção e existência dessa escassez no espaço mundial que, no presente período, aprofunda seu caráter historicamente fragmentário melhor apreensível se mediado pela formação sócioespacial, em outras palavras, na historicizada do espaço que os diferentes processos de usos do território representam. Por isso, é imprescindível conceber o território como instância social onde todos os usos, os hegemônicos e os contra-hegemônicos, assumem concretude e onde estes, desde os mais diferentes lugares, afirmam suas potencialidades históricas de existência baseada em uma nova hegemonia construída na conflituosidade. Nessa perspectiva filosófica território e hegemonia tornam-se categorias de análise indissociáveis.

1.2 Espaço banal, tensões e produção das possibilidades No presente período, o desenvolvimento técnico-científico e informacional alcançou praticamente todos os lugares do mundo, o mundo todo, e gerou uma técnico-cientificização dos territórios em níveis de existência jamais vistos. Isso torna impossível pensar o espaço sem considerar o papel ativo dos fenômenos técnicos que lhe são inerentes e que são movidos pela tensão entre os contraditórios e/ou antagônicos interesses de usos que têm, no controle da informação, a medida de suas potencialidades viabilizadoras. O território, fração do espaço controlado pelo Estado, é, assim, território usado porque é espaço historicizado e deve ser compreendido como um todo constituído e constituindo-se, determinado e determinante do espaço global como totalidade maior; uma forma-conteúdo que articula o “conjunto indissociável de sistemas de objetos naturais ou fabricados

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e de sistemas de ações, deliberadas ou não” (Santos 1998, p. 49) em permanente processo de interação e interdeterminação estrutural, formal e funcional. Território é, nessa ótica, uma totalidade dinâmica. Os acontecimentos, inseridos em objetos no mesmo momento e em conjunto produzem a totalidade em movimento, são complementares e se explicam entre si. Cada evento expressa, simultaneamente, uma dinâmica mundial e aquelas produzidas desde os lugares. Essa totalidade pressupõe eventos e objetos dialeticamente articulados, condição para que esses ganhem realidade. Por serem individuais, mas não isolados, os eventos constituem situações, se sucedem, se superpõem e interdependem. São solidários entre si e se realizam em um processo de totalização dinâmica, constituindo o mundo como um espaço banal. Desde essa acepção a ideia de espaço banal a partir da noção de espaço geográfico em oposição a espaço econômico, sugere um bom ponto de partida para a reflexão sobre a tensão entre processos hegemônicos e contra-hegemônicos através do uso do território. Espaço banal é, nessa perspectiva, o espaço de todas as empresas, instituições, pessoas; todas as vivências; todas as contradições e tensões. Concebido como todo o espaço e, também, como espaço de todos, a categoria espaço banal permite diferenciar quantidade de qualidade, mostrar que o processo de produção da extensão não é homogêneo como o pensamento hegemônico tenta fazer crer, mas resultado da operacionalidade dos sistemas de ações, dos eventos, ou seja, desse processo lógico e histórico de produzir as possibilidades, a extensão planetária que no presente período caracteriza a globalização, segundo o poder de cada um, classes sociais, lugares e etc. O planeta tornou-se, pela primeira vez na história, sinônimo de ecúmeno, em outras palavras, unicidade técnica. Significa dizer que a técnica e a política se planetarizaram, temos pela primeira vez na história o tempo empírico, um tempo universal, um tempo que se faz com autorizações técnicas planetárias, sempre precisa de políticas e técnicas que sejam planetárias tornando, por isso, seletivos os eventos. Assim, a história do presente dá-se diferenciadamente nos lugares, as facticidades são diferentes nos distintos pontos do planeta, comungam diferenciadamente do tempo empírico, universal, planetário. Nos

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lugares, mediante diferentes temporalidades, todas as ações se dão conjuntamente, como um acontecer solidário. Então, espaço banal é esse conjunto de cristalizações das existências - materialidades, eventos, normatividades públicas ou corporativas que expressam e autorizam os eventos, as ações, as diferentes formas e as possibilidades latentes de uso do território, de uso do tempo e da técnica. O cotidiano se faz a partir de um tempo empírico que é, por sua vez, feito de informação, verticalizada sobretudo, que aparece como acontecer hierárquico, relacionada aos aconteceres complementares e homólogos e que, por ser hegemônica, se pretende única energia no cotidiano, mesmo quando se sabe que há uma informação produzida e transmitida desde os circuitos não hegemônicos, como contra-racionalidade, como processo contra-hegemônico (SANTOS, 2000).

1.3 Hegemonia: conceito apropriável no período contemporâneo O termo hegemonia vem grego: “Preponderância de uma cidade ou de um povo sobre outras cidades ou outros povos” ou, simplesmente, “Preponderância, supremacia, superioridade” (FERREIRA, 1975). Luciano Gruppi (1970, p. 1) ensina que o “termo hegemonia deriva do grego eghestai, que significa ‘conduzir’, ‘ser guia’, ‘ser líder’; ou também do verbo eghemoneuo, que significa ‘ser guia’, ‘preceder’, ‘conduzir’, e do qual deriva ‘estar à frente’, ‘comandar’, ‘ser o senhor’; direção suprema do exército. Hegemônico era o chefe militar, o guia e também o comandante do exército. Na época da guerra do Peloponeso, falou-se de cidade hegemônica para indicar a cidade que dirigia a aliança das cidades gregas em luta entre si”. Aqui, a noção de hegemonia recupera o sentido de rede de cidades sob direção de uma delas estabelecendo, no espaço, determinadas relações de mando e obediência. Para Tom Bottomore (1980) hegemonia é a noção segundo a qual a burguesia desenvolve historicamente mecanismos para estabelecer e manter sua dominação, o que exige compreender o Estado como um híbrido de força e consentimento. A manutenção do domínio por uma classe pressupõe, não só uma organização específica da força, mas também

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a capacidade de ir além de seus interesses corporativos estreitos. A classe só domina se exerce uma liderança moral e intelectual e se, dentro de certos limites, faz concessões a uma variedade de aliados unificados num bloco social de forças ou, como denominou Antônio Gramsci, bloco histórico. Esse bloco representa uma base de consentimento para a ordem social, na qual a hegemonia de uma classe é criada e recriada numa teia de instituições, relações sociais e ideias. Essa ‘textura de hegemonia’ é tecida pelos intelectuais, entendidos como todos aqueles que têm um papel organizativo na sociedade. Nessa perspectiva, hegemonia implicaria consentimento ativo, vontade coletiva que une diferentes grupos sociais, que em sua forma mais elevada corresponderá ao mais amplo controle democrático, e não se reduz à legitimação, falsa consciência, ou uso instrumental da população, ‘senso comum’ ou visão do mundo, mas compõe-se de vários elementos, alguns dos quais contradizem a ideologia dominante, como, aliás, grande parte da consciência cotidiana. Compreende Jorge Almeida que para Gramsci hegemonia é “uma combinação de liderança ou direção moral, política e intelectual com dominação, exercida por meio do consentimento e da força, da imposição e da concessão, de e entre classes e frações de classes” (ALMEIDA, 2002, p. 26); parte “da sociedade civil e de suas diversas instituições e do Estado” (idem); a existência de forças contrárias - que a ela resistem mediante apresentação ou proposição de projetos alternativos-, dão-lhe caráter de permanente instabilidade, precariedade e tensionamento, especialmente em “formações sociais com grandes contradições sociais, como as latino-americanas”. Além de mostrar que o conceito de hegemonia é indissociável do conceito de bloco histórico – “bloco social e político no poder de Estado e também predominante na economia..., portanto, um Bloco de poder” (idem, p. 27). Para Gramsci, acrescenta Almeida, a “imprensa como um destacado instrumento da sociedade civil na disputa de ideias” tem grande importância, daí analisar o papel da mídia na tensão contemporânea entre hegemonia e contra-hegemonia observando que, quando não se controla os núcleos centrais do poder do Estado nem a propriedade ou direção da grande mídia, somente a pressão da sociedade civil contra o Estado e o aparato midiático “pode mexer na agenda e democratizar

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o Estado e a mídia”. Corretamente, vê centralidade nos papéis da “sociedade civil e da ação política que nela se desenvolve na construção dos cenários contra-hegemônicos”, devendo-se, pois, considerar “as mediações, relações, interdependências e interinfluências de outros atores, tanto aqueles predominantes no Bloco de Poder como os que se situam principalmente fora dele” (idem p. 38-39). Um movimento contra-hegemônico, entendido como construção social baseado na filosofia da práxis, logo calcado em uma estratégia de transformação social, permite pensar a ação por dentro dos Estados e os territórios correspondentes. Vladimir Lênin (1870-1924), contudo, alerta que o Estado é, em última instância, instrumento de defesa dos interesses das classes hegemônicas: Se o poder político é exercido no Estado por uma classe cujos interesses coincidam com os da maioria, é possível uma direção dos negócios públicos efetivamente conforme a vontade da maioria. Porém, se o poder político é exercido por uma classe cujos interesses sejam distintos dos da maioria, a direção dos negócios públicos conforme a vontade da maioria torna-se inevitavelmente um logro ou acaba por oprimir a maioria (LENIN, V. I. 1978, p. 66-67). Sem descuidar do alerta leniniano, mas partindo das máximas marxianas de que: 1) nenhuma formação social desaparece enquanto puderem movimentar progressivamente as forças produtivas nela desenvolvidas e 2) a sociedade só se coloca problemas quando estejam já formadas as condições necessárias a sua solução; Antonio Gramsci, para quem “Estado é o todo complexo de atividades práticas e teóricas com que a classe dirigente justifica e mantém seu domínio e ainda consegue obter o consenso ativo dos governados” (GRAMSCI, 1990, p. 97), introduz reflexões fundamentais para a luta contra-hegemônica, consideradas as condições de complexidade dos Estados modernos, inclusive e necessariamente no período atual. Para esse autor, acontece “na arte política o que acontece na arte militar: a guerra de movimento (grifo nosso) se torna cada vez mais guerra de posição (grifo nosso) e pode-se dizer que um Estado vence uma

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guerra quando a prepara minuciosa e tecnicamente nos tempos de paz”. A estrutura das democracias modernas (Estado ou sociedade civil) “constitui para a arte política o mesmo que as ‘trincheiras’ e as fortificações do front na guerra de posição”. O movimento que antes era ‘toda’ a guerra torna-se elemento apenas ‘parcial’. (Idem, p. 106). O esforço de produção de uma contra-hegemonia não pode prescindir de uma periodização da história. O período histórico atual é técnico-científico e informacional. Neste, como nunca, a ideologia ocupa papel fundamental na produção, disseminação, reprodução e manutenção da globalização atual. No meio geográfico técnico-científico e informacional, os materiais disponíveis permitem continuar a fazer do planeta um inferno, mas também permite subvertê-lo. A política, desse modo, ganha relevância como “arte de pensar as mudanças e criar as condições para torná-las efetivas” (SANTOS, 2000, p. 14). Em outras palavras, a política é condição fundamental para a produção social de um projeto de futuro contra-hegemônico e para o exercício voltado a torná-lo uma nova hegemonia de caráter emancipatório. Quais sujeitos históricos serão capazes de dar existência ao feixe de eventos de magnitude transformadora estrutural no período presente? Considerando-se que o meio geográfico está dotado de instrumentos eficazes para a apropriação da mais-valia universal como jamais visto, com a exigência de irrisória quantidade de trabalho vivo, deve-se concordar com a convicção de Milton Santos: de que a mudança histórica em perspectiva provirá de um movimento de baixo para cima, tendo como atores principais os países subdesenvolvidos e não os países ricos; os deserdados e os pobres e não os opulentos e outras classes obesas; o indivíduo liberado partícipe das novas massas e não o homem acorrentado; o pensamento livre e não o discurso único. (SANTOS, 2000, p. 14). A crise do capitalismo é no atual período evidenciada tanto por fenômenos globais quanto por manifestações locais. Essas manifestações apenas reproduzem em todos os territórios um novo estágio da crise estrutural assentada na aliança entre as tiranias do dinheiro

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e da informação, haja vista que a regulação pelas finanças depende do controle dos espíritos. Isso explica o papel avassalador do sistema financeiro e o comportamento permissivo dos agentes hegemônicos responsáveis pelo aprofundamento da crise. Essa aliança tirânica entre dinheiro e informação conduz à aceleração dos processos hegemônicos, legitimados pelo “pensamento único” (RAMONET, 1999) e faz desaparecer ou subordina os processos não-hegemônicos com raras exceções em certas frações do território onde mantém certa autonomia de reprodução própria. O estrutural, no período atual, é ao mesmo tempo dinâmico e crítico. Nele, o uso extremado das técnicas e do pensamento técnico, instala a política por todos os interstícios do corpo social e conduz à obsessão pelas normas, estas indispensáveis à eficácia da ação. Contudo, as atividades hegemônicas tendem à centralização, esta dificulta a flexibilidade dos comportamentos, mormente as ações dos “de baixo”, acarretando um mal-estar no corpo social, haja vista que a única crise que os agentes hegemônicos desejam afastar é a financeira. Desse modo, aprofunda-se a crise real – conteúdo do tempo presente - econômica, social, política e moral (SANTOS, 2000). Crise que permite ao corpo social hegemonizado tornar possível um projeto alternativo, resultante de uma intencionalidade política contra-hegemônica, crítica, portanto, da política feita pelas empresas globais através das e avalizadas como normas pelas instituições do Estado de modo a garantir legitimação ao uso mercadológico do território. Isso porque, como observa Luiz Werneck Vianna (1978), no exercício da hegemonia “a burguesia solidariza o Estado com as instituições dirigentes da ação e da produção e da reprodução dos valores sociais”. Isso conforma o que genialmente Gramsci conceituou de Estado ampliado. É de Estado ampliado a patamares jamais vistos, produzidos pela globalização do capital, que aqui se refere. Ana Clara Torres Ribeiro acrescenta que existem obstáculos para a ação alternativa. Esses se tornam nítidos quando se observa “a acessibilidade aos novos recursos técnicos”. Esses obstáculos podem se expressar no consumo de objetos praticamente irrelevantes, nas “incompletudes técnicas continuamente recriadas e na subordinação do usuário à inovação permanente”. As redes técnicas permitem transformar a comunicação em informação mercantil; intensificam “o rit-

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mo da vida social, o que impede a reflexão, a meditação e a análise” e a “substituição de redes sociais por redes técnicas, da sociabilidade e da interatividade pela conectividade e, como diz Milton Santos, pela competitividade”. Esses “elementos materiais e imateriais sustentam a nova natureza do poder”. Desse modo, a ação hegemônica instrumental baseada na inovação e no permanente estímulo ao ativismo, condiciona as ações assentadas em valores e nos modos tradicionais de agir, constituindo as redes como “instrumentos de sistematização da vida coletiva pela ação hegemônica”, correspondendo à “manifestação radicalizada da razão de um certo tipo de racionalidade que conduz a ação dirigida a fins, a ação instrumental, estimulando a burocratização da vida social” (RIBEIRO, 2000, pp. 19-20). Porém, como toda hegemonia é relativizável e tem seu grau de instabilidade, essa ação hegemônica permite a disputa de novos conhecimentos, estratégia e domínio de novas linguagens, pondo em evidência forças sociais conscientes do significado dessa racionalidade burocrática e banalizadora da violência, da exclusão e dos riscos às relações societárias. A razão instrumental das redes técnicas a serviço do bloco histórico hegemônico produz uma racionalidade que lhe interessa, mas também contra-racionalidades ou ainda novas racionalidades, ou ainda novas e contra-hegemônicas racionalidades, como expressão de resistências sócioespaciais desde os mais diversos lugares– espaços do acontecer solidário – que no período técnico-científico-informacional contém, todos eles, todo o território nacional em sendo usado e o próprio mundo.

1.4 Ideias transformadoras no período atual É imprescindível na reconfiguração do território o aspecto do sistema de ações que relaciona a produção do conhecimento e a prática social no processo histórico. Concorda-se com José de Souza Martins (1982) no entendimento de que o modo capitalista de produção é, também, o modo capitalista de pensar (que dele é indissociável) e este leva tanto para o conhecimento de senso comum quanto para o pensamento científico as tensões do sistema expressas nas diferenciações ideológi-

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cas e de tendências existentes dentro de uma mesma formação social, haja vista que é o modo de pensar necessário à reprodução e reelaboração das bases de sustentação, ideológicas e sociais, do capitalismo, logo, da coisificação das relações sociais e da desumanização do ser humano. Daí a importância de fecundar o conhecimento, revolucioná-lo submetendo-o à crítica histórica, o que pressupõe um compromisso com a transformação da sociedade. Somente um conhecimento comprometido com a transformação do mundo e com a dignidade humana pode, mediante a crítica desenvolvida na própria ação, contrapor-se e propor alternativas ao modo capitalista de pensar. No mundo constituído e integrado por fatias especializadas onde as pessoas já nascem inseridas, cabe-lhes, ao seu próprio modo, assumir individualmente a busca da totalidade do mundo. Isso lhes impede de desenvolver a função heroica de civilizador, que é exclusividade do capitalista. Nesse mundo, sujeitos, sobrecarregados de exigências e significações que não decorrem deles mesmos quedam-se misturados indistintamente com os objetos, o que os tornam estranhos em relação a si próprios, haja vista que estão destituídos de humanidade; que a natureza humana é subvertida pela mediação dos objetos criados pelo trabalho humano. O próprio cientista, tido ao mesmo tempo como louco, ingênuo, alienado, sonhador e perigoso, sofre degradação moral, podendo ser tolerado desde que aceite que, nesse universo, só há lugar para a primazia da mercadoria, dos objetos que atendam aos delírios acumulativistas do capitalista. Somente se trabalha para o capital o cientista deixa de ser doido; somente é considerado cientista se submete a ciência à razão do capital, à racionalidade na qual a relação entre as pessoas pareçam como sendo relação entre coisas. (MARTINS, idem) Não é possível desconhecer o papel das ideias nas convulsões políticas que resultaram grandes mudanças históricas, ainda que nem sempre isso esteja presente no esforço teórico mesmo de pensadores críticos. Perry Anderson (2007) ressalta a indiferença de alguns intelectuais acerca da questão. Um dos eventos de grande importância na reconfiguração geográfica mundial até o presente, foi a Doutrina Truman, e o Plano Marshall que lhe deu existência. A Doutrina Truman, pilar da Guerra Fria, foi anunciada em março de 1947, pelo presidente

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Harry Truman (EUA) determinando prontidão para intervir militarmente em escala mundial sempre que fosse preciso defender um país aliado da agressão externa ou da subversão interna. Na prática, criou a psicosfera que busca dar legitimidade às intervenções restritivas da soberania dos Estados. Os EUA se autoinstituíram polícia do mundo na defesa da sua estratégia, de sua geopolítica. Desse modo, invadiram países, derrubaram governos, adestraram militares latino-americanos, estimulando-os a implantar ditaduras nos seus países. Observa Anderson (2007) que o começo da Guerra Fria estabeleceu uma batalha frontal e terminal entre dois blocos antagônicos, o que exigiu um esforço de afirmação ideológica sem precedentes em termos de eficácia e intensidade. Para isso, estabelecia a dicotomia não entre o capitalismo e o socialismo, mas entre democracia (ou “mundo livre”) e totalitarismo. A sanguinária ditadura militar brasileira (1964-1985) e demais ditaduras latino-americanas compunham o “mundo livre” para a estratégia estadunidense. O final da Guerra Fria a partir do início dos anos 1990 implicou em uma reconfiguração geográfica mundial radical em termos de poder. Após séculos de história, o capitalismo passou a assumir-se e proclamar-se como tal. Como nunca, o capitalismo desenvolveu sua habilidade para fazer crer como “pensamento único” seu sistema de crenças e como única sua agenda econômica – o Consenso de Washington -, dominando, inclusive, declarados adversários, para a ideologia de que se chegara ao estágio máximo do desenvolvimento social. Perry Anderson ressalta que as ideias cumprem papel fundamental no balanço das ações políticas e dos resultados da mudança histórica. O iluminismo, o marxismo e o neoliberalismo são exemplos significativos de impactos ideológicos modernos. Eles desenvolveram seus sistemas sofisticados de ideias em clima de isolamento inicial e de conflito com o entorno político circundante e com pouca ou nenhuma perspectiva de efetivação imediata. Contudo, crises objetivas de grande envergadura permitiram a que recursos intelectuais subjetivos adquirissem forças capazes de determinar o curso dos acontecimentos. Não é outra a razão que leva Gramsci, segundo análise de Luciano Gruppi (1978), a propor que se deve buscar tirar as pessoas simples de sua filosofia primitiva do senso comum e, para isso, conduzi-las a

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uma concepção superior da vida, à construção de um bloco intelectual e moral que torne politicamente possível o progresso intelectual de massas e não apenas de escassos grupos intelectuais. Ora, o uso do território pelos trabalhadores e demais classes hegemonizadas nas diversas formações sócioespaciais só pode exercer seu poder transformador se as contra-racionalidades que povoam o interior das estruturas hegemônicas, tornarem-se manifestação de consciência, ou seja, se forem baseadas em um projeto de futuro. E isso, pressupõe a constituição de blocos históricos moral e intelectualmente contra-hegemônicos e de massas. Milton Santos (2000) é otimista quanto às possibilidades. Ele mostra que estão em processo duas mutações simultâneas e associadas, a filosófica e a técnica. Valores culturais humanizantes se constituem e compõe uma nova base filosófica para uma nova racionalidade à dinâmica espacial enquanto as técnicas cada vez mais se tornam apropriáveis pelos de baixo e suas ações de algum modo embasadas nessa nova filosofia. Essas mutações tendem a se completar, autorizando mudanças estruturais profundas na existência. O mundo já iniciou a caminhada para tornar-se uma extensão de caráter demográfico, o período popular da história está em franco processo de constituição desde as entranhas do sistema ainda perverso. O futuro é uma possibilidade. O desafio é ancorá-lo no presente que o germina.

1.5 Estado, formação sócioespacial e hegemonia A acessibilidade e controle das técnicas em uma perspectiva contra-hegemônica exige essa nova base filosófica, essa nova concepção de mundo, esse novo sistema de valores, essa nova psicosfera. Todavia, o modo capitalista de pensar, fomenta a aceitação de valores e de determinadas normas de conduta tidas como obrigatórias, mas que são formas hegemônicas de controle. Para além de convencimento, o uso da força é, também, uma das formas empreendidas de controle dos indivíduos ou grupos, especialmente das classes hegemonizadas em cada território usado. Contudo, o uso da coerção baseada na lei será mais ou menos vista como “natural”, mais ou menos legitima-

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da, se certos valores culturais estiverem enraizados no imaginário. Em muitos casos, a opinião pública pode se transformar em violência quando a coação é justificada com base em valores aceitos amplamente, pelo senso comum. Para isso, o Estado, enquanto dimensão institucional do espaço, cumpre papel fundamental no processo de controle social com vistas na reprodução sistema. Daí assistir razão a Max Weber (1864-1920) quando concebe o Estado como comunidade humana que monopoliza e legitima, com vistas no controle social feito por meio da lei, o uso da força física com base em um determinado território. A ênfase ao território o qualifica como característica do Estado, considerado como única fonte do direito ao exercício direto ou concedido da coação (WEBER, 1999). O território usado como sistema híbrido de sistemas de ações e sistemas de objetos, tem forte conteúdo político, como se depreende. O Estado territorial é o ente político que exerce controle sobre as normas jurídicas incidentes nessa porção determinada por fronteiras do espaço geográfico reconhecidas internacionalmente como sob seu domínio soberano. Mas as fronteiras são política e culturalmente porosas e essa porosidade é mantida e dinamizada pelos distintos e incessantes usos do território, constituindo redes verticais, em geral hegemônicas, mas não exclusivamente, e relações horizontais que têm nos lugares geográficos a condição de espaço do acontecer solidário e que podem constituir, com outros lugares, redes com grande potencial contra-hegemônico (Rodrigues, 2008). Nessa perspectiva, a partir dos eventos que lhe configuram usos hegemônicos cristalizados mediante a ação do Estado e também pelos usos não hegemônicos perpetrados pelos “de baixo” a partir dos lugares e em todos os lugares, o território apresenta-se como uma das características fundamentais dos sistemas políticos. Por isso, o estado territorial é indispensável para a ancoragem do futuro, para comandar a realização de um projeto socialista, logo, voltado a cuidar do conjunto da população e não só de parte dela. Isso significará produção de uma nova hegemonia e, o que lhe é indissociável, um novo bloco histórico capaz de realizá-la e sustentá-la ou, em outras palavras, um novo sujeito histórico coletivo portador de um projeto de mudança com vistas a um estágio superior da história humana.

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Isso indica relevo de um princípio leniniano inspirador do desenvolvimento do conceito de hegemonia por Gramsci, o princípio de que é necessário uma análise concreta para cada situação concreta, o qual não suporta o viés dogmático da avaliação de uma situação singular circunstanciado por um corpo doutrinário. As formações sociais são singulares tanto pelos elementos que modelam estruturalmente sua constituição quanto pelos traços conjunturais, ou seja, pelo complexo emaranhado de circunstâncias para onde as determinações mais gerais ou mais particulares confluem e que ganham importância na análise e ação de um dado momento histórico. “Será marxista a práxis que formular a um só tempo o sistema de leis do processo objetivo e contraditório em curso e o programa de ação transformadora para a vontade coletiva interessada numa outra forma de convivência social”, pensa Luiz Werneck Vianna (1978, p. VII). Assim procedeu Lênin para pensar a construção da hegemonia na formação socioeconômica russa. Para Vianna, a perspectiva que Gramsci herdou de Lênin o faz privilegiar uma formação social concreta e postular para ela um planejamento estratégico-tático com o objetivo de viabilizar a expansão da força política e social da classe operária e facultar-lhe a conquista do poder. A hipótese mais geral de Gramsci, estatuída para um momento teórico que não se pretende universal – a mercadoria é um universal-concreto; uma formação social não o é -, mas precisamente particular, consiste no que podemos qualificar com uma situação de sincronia ou assincronia entre o poder e as fontes de legitimação no interior da sociedade civil. (VIANNA, 1978, p. XII).

Pensando-se a partir da perspectiva de Milton Santos, tratar-se-á de formação sócioespacial, uma totalidade apreensível através da análise dos processos de usos do território, entendido como espaço banal. A compreensão do uso do território empreendido pelas classes e frações de classes hegemônicas ou hegemonizadas no contexto de uma determinada formação sócioespacial permite aflorar para além da aparência, a essência do mundo e não uma visão invertida

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do mesmo, não um mundo como ideologia, enfim, chegando-se ao concreto pensado conforme a acepção de MARX (1986), haja vista que o território usado é uma forma-conteúdo. No período atual amplia-se a área territorial de produção, ao passo que a arena da produção, a parte do território onde se realiza o processo produtivo direto, diminui. Isso se torna factível no território brasileiro, entre outros fatores, porque se ampliaram as possibilidades de “difusão das mensagens e ordens em todo o território nacional” (SANTOS, 1998). A informatização do território, por exemplo, tornou-se condição imprescindível para o espraiamento territorial de uma produção de alta envergadura. Nesse contexto, tornou-se possível o uso do território, com o “conhecimento simultâneo das ações empreendidas nos diversos lugares, por mais distantes que eles estejam”. Dessa maneira, os motores econômicos internacionais e nacionais mais facilmente constituem sistemas de cooperação de grande abrangência e profundidade. É possível pensar os impactos na economia dos países ricos de uma interrupção do processo de exportação de energia contida nos produtos semielaborados metalúrgicos da Amazônia? É possível pensar o sistema industrial brasileiro sem a interligação das usinas produtoras de energia elétrica, inclusive interregionalmente e internacionalmente (gás boliviano, por exemplo)? Os eventos são dotados de simultaneidades distintas das de outrora devido a estas serem movidas por um único motor, a mais-valia no nível mundial, que, aliás, é determinante da forma como os eventos se realizam nos diferentes territórios (idem). A determinação de um período para a análise dialética da formação sócioespacial permite melhor apreender a relação de interdependência e interdeterminação, a constituição da unidade do diverso, entre os eventos universais e os particulares, entre o mundo e o lugar – espaço dos aconteceres solidários -, entre o global e o local, em sucessivos, permanentes e multifacetados processos de totalização. Concebendo-se o espaço geográfico como social, a análise da realidade historicizada ganha qualidade com a periodização, permite melhor apreender o desigual acúmulo de tempo da reconfiguração geográfica. Nessa perspectiva, o espaço geográfico, socialmente produzido, expressa-se em um tipo de movimento desigual e combinado de divisão

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social e territorial do trabalho que, em cada período histórico, dá concretude às formações sócioespaciais, seus indissociáveis elementos (estrutura, forma e função e processo), ao mesmo tempo determinadas e determinantes desse. A formação sócioespacial é o espaço na nação, o território circunscrito aos limites fronteiriços de um Estado soberano que, porém, é normatizado a partir de interesses que desde dentro ou de fora produzem permanentemente tensões. A formação sócioespacial medeia, através do diverso mas peculiar uso do território nacional, o processo de apreensão da essência da dialética mundo-lugar, universal-particular, do movimento não retilíneo, ilimitado, ou apenas metodologicamente limitável, da totalidade-mundo. Como categoria de análise possibilita, em cada momento histórico, apreender a dinâmica dos usos do território em termos econômicos, políticos das diferentes classes, empresas, instituições estatais e não estatais, processos de trabalho; enfim, o uso do território pelos agentes hegemônicos e pelos agentes não ou contra-hegemônicos. O uso do território no contexto de uma formação sócioespacial é o espaço de todos e todo o espaço, espaço banal - totalidade cuja análise é fundamental para a produção de um projeto contra-hegemônico baseado na consciência universal. É impositivo conceber a sociedade como um todo unitário e orgânico explicável a partir da base econômica e das relações de produção e de troca, mas não inteiramente redutível à base econômica. O espaço é uma instância desse todo. Apesar de ainda terem uma noção abstrativa do espaço, Gramsci e a Lênin foram capazes de fundar o conceito de hegemonia. O valor do conceito de formação econômico-social, que considera a sociedade em toda sua complexidade estava claro para Lênin, embora as relações de produção e de troca que baseavam sua explicação não fosse uma redução economicista, o que significaria excluir o lugar da iniciativa política, logo, o lugar ou possibilidade da hegemonia. Considerando o estágio da formação econômica e social Russa no início do século XX, Lênin concluiu que em uma determinada situação histórica de crise, as classes não hegemônicas podem vir a ser hegemônicas, mesmo que a revolução seja democrático-burguesa. Chegou a essa conclusão, precisamente, porque recuperou de Marx e qualificou o conceito de formação eco-

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nômico-social. (GRUPPI, 1978, p. 32). Vale complementar, formação sócioespacial, já que nenhum processo histórico é feito à revelia de um espaço geográfico concreto, um território usado.

1.6 Filosofia da práxis e o novo sujeito histórico Jean-Paul Sartre (2002), concebe que a dialética revela-se a um observador situado em interioridade, como práxis do indivíduo condicionada pela história mais ampla na qual ele está inserido. A práxis coletiva, de todos, revela-se ao indivíduo como a necessidade da sua própria práxis. Inversamente, a liberdade da práxis singular, de cada um, redescobre-se em todos desvelando uma dialética que se faz enquanto é feita. “A dialética como lógica viva da ação não pode aparecer como uma razão contemplativa; ela revela-se no interior da práxis e como momento necessário desta e torna-se método teórico e prático quando a ação em processo de desenvolvimento dá-se as suas próprias luzes” (SARTRE, p. 158). O referido autor observa ainda que “a experiência apresentar-se-á, a cada momento, como uma dupla investigação: deve nos revelar se a totalização existe, por um lado (e na ordem regressiva) todos os meios colocados em ação pela totalização, isto é, todas as totalizações, destotalizações e retotalizações parciais em suas estruturas abstratas e suas funções, e, por outro, deve deixar-nos ver como essas formas se engendram, dialeticamente, umas nas outras na inteligibilidade plenária da práxis” (idem, apud Rodrigues, 2008). Ver com a consciência filosófica que, como preconiza Marx, na medida em que a totalidade concreta, como totalidade de pensamentos, como um concreto de pensamentos, é de fato um produto do pensar, do conceber; não é de modo algum o produto do conceito que pensa separado e acima da intuição e da representação, e que se engendra a si mesmo, mas a elaboração da intuição e da representação em conceitos. O todo, tal como aparece no cérebro, como um todo de pensamentos, é um produto do cérebro pensante que se apropria

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do mundo do único modo que lhe é possível... O sujeito real permanece subsistindo, agora como antes, em sua autonomia fora do cérebro, isto é, na medida em que o cérebro não comporta senão especulativamente, teoricamente (MARX, 1986, p. 15). O sentido da práxis que se resgata aqui está imbricado à ação criadora da lógica dialética, que, em última instância, é lógica da liberdade. Uma práxis alienada terá equivalência à inércia trabalhada ou prático-inerte (idem, 181-185, apud RODRIGUES, 2008). Nesse diálogo, “indo além do ensinamento de Sartre”, Santos introduz uma ideia fundamental para a compreensão da dialética espacial, qual seja, a de “que o espaço, pelas suas formas geográficas materiais, é a expressão mais acabada do prático-inerte”. Nessa perspectiva, a inércia trabalhada, ou seja, o prático-inerte, isto é, o espaço assim entendido, não significa, necessariamente, práxis alienada haja vista que as ações não hegemônicas apreensíveis no espaço, em grande medida são não-alienadas, são conscientes; são práxis contra-hegemônicas, ou ainda, práxis contrárias à racionalidade hegemônica. Isso é possível porque tudo “o que é resultado da produção é, ao mesmo tempo, uma pré-condição da produção”. Não se trata, como chamava atenção Sartre, do prático-inerte. Em sendo espaço humano, trata-se de uma “inércia dinâmica”, diz Santos (1979). Enriquecendo esse esforço de reflexão em abordagem centrada no sistema de ações, que privilegia a produção do novo sujeito histórico no contexto da globalização contemporânea pela ação da sociedade civil “de baixo”, François Houtart (2007) indica pistas importantes para a apreensão das possibilidades do presente. O novo sujeito histórico, para dar conta dos desafios presentes, deve se estender ao conjunto dos grupos sociais submetidos ao processo de acumulação capitalista. Incluem, portanto, os que formam parte da “subsunção real”, referindo-se aos chamados ‘antigos movimentos sociais’, e os que integrariam o grupo dos subsumidos formalmente, ou seja, os ‘novos movimentos sociais’. Esse novo sujeito histórico, popular e plural, deve ser pensado como uma multiplicidade de atores sociais. Nessa perspectiva, os operários têm um papel importante a cumprir,

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mas compartilhado. O próprio processo de construção plural, múltiplo, autônomo, deve marcar esse novo sujeito como democrático. Pensando-se a ação desse sujeito nas diversas regiões, territórios, continentes e no mundo, a multipolaridade impõe-se como requisito organizativo e democrático. Será a construção social, voltada a toda a humanidade, de um sujeito no sentido pleno da palavra, o que inclui a “subjetividade redescoberta”. Essa busca de um novo sujeito histórico universal não impede Houtart de propor que os movimentos sociais devam precisar que pertencem à sociedade civil de baixo, conforme concebeu Antônio Gramsci, ou seja, como lugar das lutas sociais. Desse modo, pode-se fugir da armadilha perpetrada pela ofensiva semântica dos grupos dominantes e suas instituições, tais como o Banco Mundial, para os quais sociedade civil e restrição do papel do estado são coisas inseparáveis, o que tem envolvido muitas ONGs (organizações não-governamentais), com base na ideologia de que todos querem o bem da humanidade, talvez de forma ingênua, em suas ações estratégicas. Essa é a perspectiva de Perry Anderson ao propor a construção da resistência e a necessária produção de ideias que a balize não como um programa desde cima, mas como uma força desde baixo. Exemplo a destacar é o desafio assumido pelo movimento zapatista de experimentar novas formas de ação e comunicação que, usando uma radical, inesperada criativa forma de organização de atos, palavras e símbolos, tem sido capaz de desequilibrar o sistema, mais do que em qualquer outra parte do continente, ainda que se deva reconhecer suas enormes limitações. Mas, observa esse autor, “se estamos atrás de um ponto de partida para a reinvenção de ideias da esquerda, são em forças nacionais como estas, e movimentos internacionais como o Fórum Social Mundial, que elas podem ser buscadas.” (Anderson, 2007, p. 377). Corrobora com essa perspectiva Pablo Gonzáles Casanova (2007). Ele dedica importância fundamental para as minorias étnicas, especialmente nos países periféricos por terem sido “capazes de captar o universal concreto em suas variedades, em suas especificidades e em suas novidades históricas. Descobriram o novo mundo sem encobrir o passado. Descobriram o mundo atual e as linhas de um mundo

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alternativo emergente e por construir” (p. 415). As linhas do mundo alternativo, pode-se dizer, são as frestas do futuro que já se apresenta como possibilidade. Ressalta Gonzáles que as mudanças deram-se tanto nas regiões periféricas quanto nas centrais, protagonizadas pelos movimentos sociais tradicionais e pelos novos movimentos sociais, envolvendo os habitantes urbanos marginalizados, os movimentos de jovens, mulheres, homossexuais, desempregados, endividados, excluídos, e alguns dos velhos movimentos de camponeses e trabalhadores revolucionários ou reformistas. Os movimentos étnicos, contudo, captaram a velha e nova dialética do mundo a partir opressão, discriminação e exploração em sua dinâmica local, transnacional mediada nacional e internacionalmente. Os zapatistas, por exemplo, combinam suas antigas formas de resistência com uma articulação em redes de solidariedade variadas. A constituição das redes e organizações autônomas do tipo zapatista é instrumento novo e qualitativamente superior de luta para enfrentar o sistema dominante. Ao mesmo tempo é processo de articulação e reestruturação das forças sociais heterogêneas que têm a autonomia como princípio relacionado à irrenunciável dignidade. Um novo uso dos meios eletrônicos e de massas vem sendo experimento, como forma de revanche contra-hegemônica dos mais distintos lugares e territórios, mas não negam as formas presenciais de comunicação. Essa nova qualidade de comunicação, por ser interativa e intercultural, afirma o respeito ao diálogo das crenças, das ideologias e das filosofias voltado à “descolonização da vida cotidiana e dos ‘momentos estelares’ da comunidade crescente, esboço de uma humanidade organizada”. A rede internacional de organizações que lutam pela água como bem social e como direito humano e contra sua mercantilização; a rede em favor da mudança da função dos órgãos financeiros multilaterais das Nações Unidas (especialmente a tríade Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional e Organização Mundial do Comércio), hoje existentes em função dos interesses dos países hegemônicos e do grande capital financeiro; os avanços na luta dos povos dos países periféricos que, cada vez mais tornam-se centros propagadores de projetos alternativos à ordem vigente, tendo as comunidades indíge-

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nas como importantes protagonistas; a luta da Via Campesina e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), a resistência dos remanescentes de quilombolas e povos indígenas brasileiros por direito à terra e respeito para com suas culturas e contra os grandes projetos que as corporações transnacionais tentam implantar, mormente na Amazônia, além de novas organizações baseadas no padrão tradicional de movimentos sociais (sindicatos e centrais sindicais autônomas e combativas, organizações populares pelo direito à moradia etc.), são manifestações concretas desse esboço de humanidade organizada, esboço de um novo sujeito histórico, condição indissociável da noção de projeto alternativo de sociedade. Esse processo social de um novo sujeito histórico constituindo, não poderia ser diferente, expressa uma concepção transformadora de mundo, uma perspectiva utópica baseada na filosofia da práxis “Utopia, no sentido do que não existe hoje, mas que pode ser realidade amanhã, quer dizer, uma utopia não ilusória” (HOUTART, 2007, p. 428) mas necessária. Uma utopia compreendida não como o irrealizável, mas como construção coletiva e permanente, não como “uma coisa que vem do céu” (idem), mas como resultado da luta desse novo sujeito histórico coletivo que, como inércia dinâmica, pelo grau de tecnificação do mundo e dos territórios, tem ganhado maior poder de determinação no processo de viabilização de uma nova existência. Como mostra Milton Santos (2000), a mesma materialidade que tem servido para construir o mundo perverso e confuso pode viabilizar a construção de um mundo mais humano. Para isso, os novos sujeitos históricos constituem-se olhando pelas frestas do futuro, ganhando consciência das, e influenciar as, duas grandes mutações – a tecnológica e a filosófica - que, por dentro do ventre da atual ordem e contra ela, estão se gestando. O domínio do uso das técnicas da informação orientado por uma base filosófica que dê novo sentido à existência de cada indivíduo e de toda a humanidade fundada em uma racionalidade humanizante e não a do lucro em favor das minorias hegemônicas são os horizontes estratégicos que essas mutações estão viabilizando. A utopia é a busca de uma nova existência baseada em um projeto que não se limite a pensar apenas meras reformas na ordem admis-

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síveis pelos agentes hegemônicos (os territórios cêntricos, as corporações privadas oligopolistas, a burguesia e os lugares que exercem poder de determinar, verticalmente, a reconfiguração geográfica do mundo), mas em um projeto e uma práxis que intencione a germinação de uma nova ordem, livre das perversidades estruturais inerentes à ordem atual e dela inextirpáveis. Utopia que se baseia na afirmação de Marx de que a humanidade só se propõe objetivos que sejam alcançáveis e na convicção de que hoje se torna possibilidade, haja vista que, conforme afirma Milton Santos, finalmente, gestadas as condições materiais e filosóficas, uma história universal verdadeiramente humana está começando. Passos largos são dados em direção ao futuro humano socialmente justo, livremente organizado e feliz, porque socialista.

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por Edmilson Rodrigues, 2012

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II. SISTEMA PÚBLICO DE EDUCAÇÃO: QUALIDADE SOCIAL E EDUCADORES Parte-se aqui do pressuposto de que se reconhece a existência de um sistema público de ensino que, todavia, não atende ao objetivo de qualidade social com valorização profissional. Significa dizer que a qualidade do sistema de educacional atual não proporciona a igualdade substantiva entre todos – prevalece, então, a máxima popular de que o sistema torna alguns seres humanos “mais iguais do que outros”, a despeito de todos serem iguais perante a lei magna do país e à Declaração Universal dos Direitos Humanos. Significa dizer, também, que esse sistema cuja qualidade (ou falta dela) é produtora de desigualdade substantiva tem, no constrangimento à dignidade dos trabalhadores em educação, uma das manifestações mais concretas de desequalização social. Isto posto, pode-se afirmar que a velha palavra de ordem – Por um sistema público de ensino de qualidade social e valorização profissional - continua válida. O fato de ainda ser válida, mesmo que reconhecidamente velha, evoca à reflexão crítica sobre o problema. Compreender a realidade concreta da educação no contexto do mundo contemporâneo e as causas estruturais da produção da desigualdade sócio-educacional é condição imprescindível para afirmar-se a disposição de lutar para a transformação dessa realidade, como também, de aperfeiçoar os instrumentos de luta. Colocando-se em questão o sistema público de ensino, então é procedente começar por uma reflexão sobre o significado de sistema. É possível sintetizá-lo como sendo um conjunto de elementos interconectados, de modo a formar um todo organizado e portador de um objetivo geral a ser atingido. Nessa perspectiva, o objetivo de um sistema público de ensino de qualidade social com valorização profissional está plenamente justificado do ponto de vista conceitual. Contudo, somente a integração dos elementos que compõem um sistema pode garantir o que se define como sinergia, ou seja, um processo ou

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uma dinâmica que permite demonstrar o modo de interrelação e integração entre as diversas partes, elementos, aspectos ou dimensões do todo. A análise da sinergia de um determinado sistema permite perceber que as transformações ocorridas em uma das partes influenciará todas as outras, o que é essencial para a consecussão do objetivo projetado. O problema está no fato de o pensamento conservador – que na globalização atual ficou conhecido como “pensamento único” - tender sempre a achar que as partes por si só constituem sistemas capazes de explicar o todo e que as mudanças parciais são suficientes para a melhoria do conjunto das partes. Com isso, inviabiliza a apreensão das determinações que a sociedade – o modo de produção capitalista – exerce sobre todos os territórios, todos os lugares e todas as dimensões da vida; processo que, longe de homogeneizar o mundo o tem tornado mais fragmentado, porque é diferenciado em cada lugar e pelo lugar. O pensamento único balisa o sentido com o qual muitos estudiosos, governantes e, mesmo sindicalistas, trabalham sua concepção de sistema educacional. Inspiram-se, consciente ou inconscientemente, em uma propriedade da fisiologia, a homeostase (homeo: similar, igual e stasis: estático), termo cunhado pelo fisiologista norte-americano Walter Bradford Cannon em 1932 (LESCOUFLAIR, 2009) que implica no esforço de manter a estabilidade do meio interno, mesmo diante de mudanças no meio externo. Ora, esse esforço, apesar de considerar o caráter dinâmico desse equilíbrio, abstrai a totalidade como elemento determinante. Como perseguir o objetivo da qualidade social com valorização profissional sem enfrentar com um projeto estratégico global os dilemas do sistema educacional (o que não significa desconsiderar a importância de projetos e conquistas parciais)? Como avançar na consecussão desse projeto global sem aceber o sistema como uma totalidade dinamica? Para o pensamento conservador e fragmentado não está posto o objetivo da qualidade social. Qualidade social pressupõe uma visão de mundo que conceba a Educação como um bem social; um direito de todos e obrigação exclusiva do Estado e da família. Pressupõe, portanto, uma concepção socialista de mundo e de educação. Para os agentes do capital a qualidade que interessa é a ideologia da “Qua-

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lidade Total”. Este conceito muito em voga é parte da nomenclatura empresarial ditada pelas agências multilaterais da ONU (Banco Mundial, FMI, OMC, etc.). A “qualidade total” é a medida pela satisfação do “cliente”, de todos os “stakeholders” (entidades ou partes interessadas) e também da excelência organizacional da empresa. Um sistema público de ensino baseado na educação como um bem social e não um bem mercantil, não admite tratar cidadãos como clientes, para os quais se podem vender mercadorias ou serviços, como objetos de negócios. Qualidade total seria, então, o “[...] estado ótimo de eficiência e eficácia na ação de todos os elementos que constituem a existência da Empresa” (QUALIDADE ..., 2009) que, por isso, deve ter sua organização modelada – Modelo Referencial para a Qualidade Total (MRQT) – de maneira a adequá-la ao contexto no qual está inserida, ou seja, na dinâmica geral do modo de produção (e, lógico, consumo) capitalista no período da globalização. Ora, não se pode balizar as ações educacionais e pedagógicas com base nessa ideologia. É importante atentar ao alerta de Milton Santos, segundo o qual a globalização atual é muito menos um produto das ideias atualmente possíveis e, muito mais, o resultado de uma ideologia restritiva adrede estabelecida. Já vimos que todas as realizações atuais, oriundas de ações hegemônicas, têm como base construções intelectuais fabricadas antes mesmo da fabricação das coisas e das decisões de agir. A intelectualização da vida social, recentemente alcançada, vem acompanhada de uma forte ideologização.” (SANTOS, 2000, P. 159). É nesse contexto de ideologização que se insere a proposta de Escola Sem Partido (Projeto de Lei 867/2015) defendida pelos conservadores de plantão (hegemônicos na sociedade e nas instituições do Estado, como, por exemplo, no Congresso Nacional), que ganhou destaque desde a aprovação do impedimento, pelo Senado da República, da presidenta eleita Dilma Rousseff. Todo pensamento crítico é combatido como sendo mera ideologia. A redenção da verdade “não ideoló-

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gica” estaria nessa proposta que, ao invés de educar, forma agentes sociais alienados para dar sustentação à ordem social extremamente desigual e radicalmente perversa vigente. O “pensamento único” na educação busca realizar o objetivo de consolidar a ideologia liberal que na atual globalização exacerba a tese de que o estado deve ser mínimo para que as corporações empresariais transformem, mesmo a educação, a saúde, a natureza, as pessoas humanas, em objeto de lucro. Desenvolvem a hipócrita tese de que educação só pode assim ser denominada se for fruto da ação política e ideológica neutra dos agentes do processo educacional. Contra essa falácia, Paulo Freire (2012) ensina que: É importante enfatizar a impossibilidade de uma educação neutra, porque, de uma maneira geral e para o senso comum, isto não é algo óbvio. No entanto, é impossível ter uma educação neutra, assim como, por exemplo, uma ciência neutra. Isso significa que não importa se somos conscientes ou não enquanto educadores, nossa prática ou será para a libertação do homem – sua humanização, ou para sua domesticação – sua dominação. (FREIRE, 2012, P. 16) István Mészáros dá importante contribuição à análise do sistema do capital, sua crise estrutural e à compreensão da Educação nesse contexto, orientando a uma práxis necessariamente otimista. Ao observar que o capitalismo é um sistema economicamente articulado mundialmente, mostra que isso contribui para a erosão e desintegração de estruturas tradicionais de controle social e político diversificada pelos lugares. Afirma que “[...] sem ser capaz de produzir um sistema unificado de controle em escala mundial (Enquanto prevalece o poder do capital, o ‘governo mundial’ está fadado a permanecer um devaneio futurológico) a ‘crise de hegemonia ou do Estado em todas as esferas’ (Gramsci) tornou-se um fenômeno verdadeiramente internacional” (MÉSZÁROS, 2009a, p. 55). Isso porque o multifacetado poder do capital não consegue se expandir apesar de ser ainda muito forte, como todos nós sabemos. Essa sua incapacidade de promover uma racionalidade abrangente explica-se pelo fato de sua racionalidade operar

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no estreito interesse individual, da guerra de todos contra todos. “O capitalismo e a racionalidade do planejamento social abrangente são radicalmente incompatíveis (ibidem, p. 58) devido ao que Marx denominava de anarquia da produção capitalista. Isso explica, em grande medida, a tendência percebida por Milton Santos à dissolução das ideologias que se puseram como verdades únicas, como “pensamento único”. Mas o discurso da globalização, observa, alicerça as ações hegemônicas dos Estados, das empresas e das instituições internacionais, o papel dos objetos que nos rodeiam contribuem, juntos, para agravar essa sensação de que agora não há outro futuro senão aquele que nos virá como um presente ampliado e não como outra coisa. Daí a pesada onda de conformismo e inação que caracteriza nosso tempo, contaminando os jovens e, até mesmo, uma densa camada de intelectuais (ibidem). As instituições sociais inerentes à sociedade atual estão, permanentemente, em interação e articulação sistêmicas. Não é possível ter esperança em sucessos parciais isolados, mas somente como partes de um projeto global. Para Mészáros “o critério crucial para a avaliação de medidas parciais é se são ou não capazes de operar como ‘pontos de Arquimedes’, ou seja, como alavancas estratégicas para uma reestruturação radical do sistema global de controle social. Essa não era a perspectiva da maior autoridade institucional da educação do país, Fernando Haddad, quando ministro do governo Lula, quando em artigo publicado na Folha de São Paulo (2009) proclamou: “Uma boa maneira de julgar a atuação de um governante, numa área específica é avaliar as mudanças constitucionais avalizadas por sua base de sustentação, sem a qual é impossível aprovar uma emenda constitucional, com ou sem apoio da oposição”. Ou seja, o ministro quis dizer que sua gestão devia ser avaliada como boa porque a base de sustentação do governo e a oposição avalizaram sua política e até mudaram a Constituição Federal no respeitante à educação. Refere-se, mais especificamente, às Emendas 53 e 59 à Cons-

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tituição de 1988. Entre outras positividades dessas mudanças (com as quais se tem concordância) Haddad ressalta a obrigatoriedade do ensino dos 4 aos 17 anos; o fim da DRU (Desvinculação de Receita da União); a obrigatoriedade do estabelecimento de metas de aplicação de recursos públicos em educação, além do estabelecimento do Piso Salarial a partir de 1 de janeiro de 2010 “as novas gerações [...] hão de notar o sentido progressista em que foi reescrito o capítulo consagrado à educação na nossa lei maior.” A despeito de as instituições do Estado brasileiro serem dominadas pelos vorazes interesses da proclamada “base de sustentação”, deve se reconhecer que a sociedade se move, pressiona por conquistas e as tem viabilizado ao longo da história. Algumas dessas conquistas recentes, que podem ser reivindicadas pelos governos, não justificam, contudo, o reducionismo da análise de que um governante e sua política devam ser bem avaliados pelo que ele próprio considera “um sentido progressista” de dispositivos constitucionais, em um país que é caracterizado historicamente pelo desprezo às leis, quando essas, claro, tem algum caráter popular. Não é o caso de enumerar aqui muitos exemplos, mas, o não cumprimento do salário mínimo constitucionalmente estabelecido1; as milhões de crianças que permanecem fora da escola e que são levadas a frequentar as ruas, a indústria da prostituição, o mundo das drogas; a violência das enormes jornadas somadas aos baixos salários e péssimas condições ambientais que envolvem os professores e demais trabalhadores em educação etc., são suficientes mostrar a distância abissal entre lei e realidade e para fazer compreender que o objetivo de conquistar um exige um esforço 1 Segundo o DIEESE – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos – o Salário Mínimo, se respeitada fosse a Constituição Federal de 1988, deveria em dezembro de 2017 estar na ordem de R$ 3.585,05 contra os R$ 937,00 oficiais). Para 2018 o governo definiu que o valor do salário mínimo é de R$ 954, o que não recompõe, sequer, o poder de compra do brasileiro com relação a 2017. Segundo o Dieese o reajuste de 1,81% em relação ao valor que vigorava no ano passado ficou abaixo do Índice de Preços Consumidor (INPC), de 2,07%, que é a taxa de inflação oficial calculada pelo IBGE. Na verdade o valor do SM voltou ao nível de 2015, quando o valor era de R$ 953,87. Considerando-se que 45 milhões de brasileiros recebem o SM como salário, aposentadoria ou pensão, pode-se concluir sobre a perversidade de um sistema político que transforma as leis em meras letras mortas.

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de planejamento e ação estratégicos por parte dos que vivem do trabalho que implique, como propõe István Mészáros (2009) um projeto global de “Educação para além do capital”, haja vista que, o sistema do capital é irreformável; sua natureza como totalidade reguladora sistêmica é incorrigível. Há uma enorme diferença entre a lei e sua aplicação, entre orçamento e execução orçamentária; entre o que a lei autoriza investir e o que é realmente aplicado em educação. Luiz Araújo2 (2009) em análise da execução orçamentária do Ministério da Educação mostra bem essa contradição, quando demonstra que apenas 30,3% dos recursos do Orçamento Geral da União previstos para o MEC haviam sido empenhados até novembro do ano em foco, o que tem se tornado uma prática reincidente da maioria dos governos, ano após ano. Ora, mesmo que os burocratas de plantão argumentem que os entes da federação, mormente os municípios, por estarem inadimplentes com a União fiquem impedidos de receber repasses, pela falta de projetos, pela lentidão das licitações etc., não podem justificar a cruel realidade de aplicarem tão poucos recursos em área tão fundamental, apesar da garantia legal, por argumentos meramente burocráticos. Negam a verdadeira razão, qual seja, a lógica financeira que, através do sistema 2 Sempre que se discute a necessidade de garantir qualidade aos serviços públicos e as condições de dignidade aos servidores públicos, principais agentes executores dessas políticas, esbarra-se nas dificuldades financeiras a superar. Não se pode abstrair essa questão, afinal, como investir mais em educação básica, por exemplo, como garantir o pagamento do piso salarial do magistério sem recursos financeiros para isso. Em primeiro lugar, importa destacar que se trata mais de projeto estratégico, de prioridade, do que de mero cálculo financeiro. A sociedade civil, mormente os movimentos em defesa da educação pública, e alguns pesquisadores de nossas universidades tem feito esforço importante para construir caminhos para o financiamento público do sistema educacional. O professor Luiz Araújo – dirigente da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e professor da Universidade Nacional de Brasília (UNB) desenvolveu em sua tese de doutorado uma análise voltada tanto à garantia de investimentos voltados à universalização do direito à educação básica, quanto à redução das desigualdades territoriais, inter-regionais. Fórmula, baseada no conceito de CAQi – Custo Aluno-Qualidade Inicial - que, certamente, não é prioridade para quem (governo e corporações financeiras) ganha com as perversidades sócio-espaciais, entre as quais a negação do direito à educação, que tanto vitima as crianças e a juventude brasileiras. Os que queiram se aprofundar devem ler ARAÚJO (2016).

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da dívida pública, submete a soberania do país. Outra importante questão diz respeito à expectativa quanto ao Piso Salarial Nacional dos professores que, apesar da Lei 11.738/2008 que definiu sua obrigatoriedade, não é respeitado por grande parte dos governantes dos estados e municípios. A lei sofre os revezes de um governo de má fé e da administração do MEC que, sob comando de Mendonça Filho, tentam retirar esse direito dos educadores como se esses fossem responsáveis pela crise econômica. Araújo (dez. 2016) mostra que o valor do piso para 2017 sofreu correção de 7,64% passando dos atuais R$ 2.135,64 para R$ 2.298,80. Contudo, seu pagamento corre grande risco, porque o governo federal, que tem obrigação legal de complementar recursos em favor dos demais entes, passou a interpretar a lei conforme suas conveniências. A lei estabelece que 10% do valor da complementação da União para o FUNDEB devem ser usados para auxiliar estados e municípios que tenham dificuldades para garantir esse direito. Contudo, a AGU – Advocacia Geral da União – interpreta que somente poderiam ser ajudados os estados e municípios já contemplados com a complementação o FUNDEB. Dessa maneira, não poderão pleitear ajuda os entes que nunca precisaram, como é o caso do estado do Rio de Janeiro. Ora, não se pode ter dúvidas quanto a importância da garantia da dignidade profissional aos trabalhadores em educação como fundamento para a produção consciente do futuro igualitário, justo e liberto da exploração e de todas as formas de opressão. A exclusão da educação da DRU pode viabilizar uma aproximação maior entre o orçado e o executado. Mas apenas em tese, haja vista que a lei orçamentária, conforme a própria Constituição Federal determina, é uma peça apenas autorizativa, podendo o governo contingenciar parte dela a fim de cumprir seus compromissos junto ao sistema financeiro internacional. Ao excluir os recursos educacionais dos efeitos da DRU e prever a expansão da obrigatoriedade do ensino para a faixa etária de quatro a dezessete anos, cria mais um objeto de pressão política da sociedade em geral e dos educadores em particular em favor do cumprimento da lei. E assim que essa norma – essa possibilidade de conquista - deve ser vista, como mais um elemento de mobilização social e luta.

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A luta Por um Sistema Público de Ensino de Qualidade Social desejado por educadores e pela maioria da sociedade, contudo, não é fácil. O motivo maior é a alienação a que todos, inclusive os educadores, estão submetidos no mundo do capital. São várias as formas de alienação inerentes ao processo de submissão dos seres humanos ao capital. A essência de todas essas formas alienadoras está no fato de esse sistema tratar como mercadoria tudo, inclusive a natureza e os humanos. Não interessa ao capital considerar mesmo as necessidades humanas básicas; sua racionalidade é movida, cotidianamente, como observam Sérgio Lessa e Ivo Tonet, por suas ideações prévias segundo as quais o que importa é o lucro; se, para isso, a fome, a ignorância, a falta de casas e de assistência médica tiverem que ser mantidas em função da acumulação de capital, assim será; se, para esse objetivo, “é necessário levar a humanidade à catástrofe nuclear, produzindo reatores e bombas atômicas, ou ainda, destruir a natureza e romper o equilíbrio ecológico, tudo isso será feito em nome do capital e em detrimento das necessidades humanas” (LESSA e TONET, 2008, p. 100), essa lógica, contudo não prevalecerá porque há resistências e ações contra-hegemônicas, que são, ao mesmo tempo, tomada de consciência e produção de um pensamento não alienado e ação social transformadora, mesmo que tenham razão esses autores ao afirmarem que o projeto de manutenção da ordem atual é impulsionado “apenas pelo objetivo da acumulação privada do capital, tanto no plano individual quanto no plano global da sociedade capitalista” 2008, p. 103). Retornando-se a Mészáros para corroborar com a idéia de que não se pode limitar o projeto de sistema de ensino desdinado à mudança educacional radical, às franjas interesseiras do capital que aceita apenas remendos parciais, nunca mudanças estruturais. Isso significaria abandonar, de uma só vez, conscientemente ou não, o objetivo da transformação qualitativa da sociedade, logo, da educação. “é necessário romper com a lógica do capital se quisermos contemplar a criação de uma alternativa educacional significativamente diferente” (2009b, p. 27). O sentido da mudança educacional hoje, que avança na contribuição ao objetivo de um sistema público de ensino de qualidade social com

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valorização profissional exige disposição de remar contra a maré, contra o senso comum. As pessoas, inclusive os educadores, não conseguem perceber que, apesar da psicoesfera favorável ao sistema que se instala no Brasil e no mundo e da tecnoesfera a ela associada que, em nome do desenvolvimento, reconfigura o território e o normatiza para torná-lo funcional aos usos dos agentes hegemônicos, em detrimento da nação e da maioria do povo, há caminhos alternativos. A violência, a que se vê no desemprego, na miséria, nas agressões intra-escolares entre os alunos e entre esses e os professores e demais trabalhadores, como também aquela violência que, sutilmente, agride moralmente e perpetra preconceitos, humilha, subjulga, deprecia a dignidade humana, todas essas formas, não são inocentes, são intencionais, são necessárias ao funcionamento do sistema do capital, contribuem para alienar o pensamento e dificultar a produção de um projeto alternativo. Concordando-se que essa lógica perversa é incorrigível, então se deve “perseguir de modo planejado e consistente uma estratégia de rompimento do controle exercido pelo capital, com todos os meios disponíveis, bem como com todos os meios ainda a ser inventados e que tenham o mesmo espírito.” (MÉSZÁROS, ibidem, p. 35). Sim, porque além das violências funcionais derivadas há a violência estrutural. Esta está na base mesma da produção das demais formas de violência, por isso, constitui-se em central, em original. A violência “estrutural resulta da presença e das manifestações conjuntas, nessa era da globalização, do dinheiro em estado puro, da competitividade em estado puro e da potência em estado puro, cuja associação conduz à emergência de novos totalitarismos e permite pensar que vivemos numa época de globalitarismo muito mais que de globalização [...] consagrando, afinal, o fim da ética e o fim da política” (SANTOS, idem). Do ponto de vista financeiro, vale ressaltar, o sonho de uma educação de qualidade como bem social de qualidade acessível a todos é plenamente possível, desde que a racionalidade das políticas seja outra que não a do capital. Em 2017, por exemplo, as despesas com educa-

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ção representaram 3,15% do total, ou seja, de um total de recursos do orçamento na ordem de R$ 3, 41 trilhões apenas R$ 107, 52 bilhões representaram os gastos com o ministério da educação. Para se ter uma idéia da força do grande capital financeiro e do seu sistema de endividamento do país, o “refinanciamento da dívida pública mobiliária federal” alcançou o patamar de R$ 946,41 bilhões, ou seja, cerca de 35% do total de despesas. (BRASIL, 2017). Não cabe aqui uma análise mais detida acerca do Sistema da Dívida3, suas determinações assumidas acriticamente como normas por todos os últimos governos (que se negam a cumprir a Constituição no que diz respeito à realização de uma auditoria da dívida), os juros elevados, a redução de recursos das áreas sociais, o sucateamento e privatização dos serviços públicos, o vilipêndio dos direitos dos servidores e agressão a sua dignidade profissional etc. Em consequência vê-se o aumento da miséria, do sofrimento da população usuária dos sistemas públicos de educação, saúde, transporte, habitação. A desigualdade social e territorial e a consequente explosão de violência social são manifestações dessa lógica.

3 Indica-se visita ao site da Auditoria Cidadã da Dívida (http://www.auditoriacidada.org.br), onde se poderá perceber, através de estudos específicos e mais profundos, que o problema além de complexo é de alto poder ofensivo à soberania nacional e aos direitos de toda a cidadania.

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Dito isso, propõe-se aos educadores e suas organizações sindicais: •• trabalhar para influenciar socialmente na constituição de um projeto global de sistema de educação para além do capital, significa dizer que um projeto de educação libertadora não se prende apenas à luta pela garantia do acesso, da permanencia e do sucesso escolar a todos e em todos os níveis. Antes, é necessário afrmar a condição de bem social da educação, logo, incompatível com a lógica mercantil. Um sistema de educação com qualidade social deve ser público e gratuito, um direito de todos, uma obrigação do Estado brasileiro em suas três esferas; além de que o poder de participação e decisão da comunidade escolar sobre o projeto pedagógico deve ser um imperativo, um fundamento filosófico do sistema; •• realizar o esforço de, ao tempo em que se constrói com as forças vivas da sociedade esse projeto abrangente e revolucionário, constituir um plano de ação que se pretenda alavanca desequilibradora do sistema atual e que se expresse em conquistas parciais, mas totalizantes, no sentido de que cada movimento tático é parte de um movimento estratégico contra-hegemônico; •• trabalhar (mais do que qualquer outra categoria profissional) para exercer permanente reflexão crítica sobre a realidade social e educacional. Está em tempo de os Sindicatos constituirem espécies de Universidades Livres para, sistematicamente, desenvolver processsos de formação técnica, pedagógica e política dos trabalhadores em educação e demais segmentos da comunidade escolar, a partir de uma base científica crítica; •• Afirmar o princípio de uma escola sem muros – uma escola “porosa” à sociedade –, como condição necessária ao sistema público de ensino de qualidade com valorização profissional; logo, firmar-se como sindicato também poroso, democrático e transparente. Significa dizer, corporativo, mas não corporativista, capaz de perceber que o projeto de educação que almejamos, será fruto de uma luta a ser travada pelos e para além dos trabalhadores em educação. Pais, alunos, conselhos tutelares, entidades da sociedade civil, tais como, movimentos feministas, movimentos anti-racistas, movimentos LGBT, movimentos de idosos, movimentos de

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pessoas portadoras de deficiência, etc., devem estar inseridos entre os elementos imprescindíveis à realização da sinergia transformadora do sistema pretendida; •• Escola e sindicato devem ser entendidos como lugares da resistência, como espaços do acontecer solidário, onde os “de baixo” projetam suas ações conjuntas para o uso popular do território brasileiro; como espaços de produção das contra-racionalidades, da contra-hegemonia; •• trabalhar, incessantemente, para reverter a dominação ideológica do capital; •• Desenvolver programas, projetos e ações que portem o objetivo estratégico de constituição da igualdade substantiva, porque o capital sustenta-se na produção da desigualdade substantiva; •• trabalhar a concepção de educação como instrumento essencial para a constituição de formas-conteúdo organicamente viáveis de solidariedade entre pessoas e lugares, valores e relações horizontais de inspiração socialista; logo, coetaneamente, desconstituição/desconstrução das verticalidades imanentes à racionalidade desequalizadora e autoritária da ordem atual para qual a “educação” servil contribui.

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Acesso em 26 nov. 2009; QUALIDADE Total – Conceitos. Acessível em: http://www.qualidade. com/conc-01.htm. Acesso em 28 nov. 2009; RAMONET, Inácio. El pensamiento único: introducción. In: ALBIÑANA, Antonio et al. Pensamiento crítico vs. Pensamento único. 3ª. ed. Madrid: Le Monde Diplomatique, 1999. SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2000.

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por Edmilson Rodrigues, 2007

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A QUESTÃO AMBIENTAL NO CAPITALISMO4 Politizando: Partindo-se da premissa de que tudo se relaciona, qual a relação entre política social – como um tipo particular de política pública que coloca o estado em ação - com o meio ambiente? Edmilson Rodrigues: Concordamos com Milton Santos de que o espaço geográfico é um conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ações. Portanto o espaço como totalidade é resultado de uma sistemática integração dinâmica de ações e objetos. Esses sistemas são portadores de intencionalidades e só podem se exprimir e ganhar existência concreta nos objetos e estes adquirem existência autônoma e significação que se expressam no poder de agir sobre e significar as próprias ações, como inércia dinâmica. Ou seja, o espaço sempre é social. Se nessa gama de instâncias sociais nem todas são estritamente espaciais, sempre são espacializáveis. Daí poder-se afirmar que qualquer política social expressa uma intencionalidade que ao se espacializar reconfigura o meio geográfico (meio ambiente) como uma forma-conteúdo mais desigual, se a razão imperante for a do capital, ou mais justa se a razão for uma que se sobreponha à lógica do lucro. Politizando: No mundo contemporâneo, o discurso da escassez de recursos públicos é recorrente e tem servido de justificativa para manter a desigualdade de acesso a bens, serviços e direitos, não só entre pessoas e classes sociais dentro de um mesmo país, mas também entre países. Como o senhor avalia esse fato? Edmilson Rodrigues: A escassez é uma intencionalidade normativa da modernização fragmentadora que a globalização neoliberal tem promovido. Por exemplo, é real o não acesso dos pobres aos serviços sociais (políticas). Isso é explicável pelo fato de a divisão internacional do trabalho privilegiar, especialmente nos territórios dos países po4 Entrevista publicada no Politizando - Boletim do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Política Social (NEPPOS/CEAM/UNB), Ano 2 – Nº 6 Dez. de 2010, pp. 6 e 7.

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bres, determinados lugares que devem ter as densidades técnicas, que garantam a fluidez necessária à realização do lucro, o que implica em dispêndios de investimentos pesados na implantação de infraestruturas para servir às empresas, o que redunda no abandono de investimentos nas áreas sociais das quais os pobres dependem. Essa modernização territorialmente seletiva é, também, socialmente seletiva, o que explica a alta concentração de poucas empresas transnacionais em pouquíssimos lugares. Se a escassez é intencional pode-se falar em discurso da escassez que nem é neutro nem ingênuo e constitui a produção de uma psicosfera que busca dar existência ao objetivo de mercantilizar tudo, a natureza e os seres humanos. A economia liberal tem como conceito chave o de escassez que, rigorosamente, é o contrário de riqueza. Afinal, riqueza é o que é abundante e não o que é escasso. Nos marcos do pensamento liberal um bem para ser mercantil deve ser escasso. Se algo é pensado como escasso, então pode ser objeto de compra e venda. Ninguém compraria algo que fosse acessível a todos por sua abundância. O discurso da escassez hídrica, pode-se dizer, é uma ideologia liberal. A produção intencional da escassez em um território como o brasileiro, a negação do direito à água em lugares da Amazônia, região que detém significativo percentual da água doce existente no mundo é funcional à modernização a serviço das grandes corporações. Politizando: Então é incorreto afirmar, como o fazem os adeptos da velha ideologia malthusiana, de que está havendo crescimento irresponsável da população pobre em todo o mundo e que isso dificulta a realização de políticas sociais universais, além de implicar intensificação da crise ambiental, já que as ações antrópicas assumem grande significação?

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Edmilson Rodrigues: Esta é uma afirmação errônea. Eduardo Galeano já chamou atenção ao fato de que para os técnicos do sistema os pobres são numerosos ninguém; são coisas fora de lugar, porque são economicamente inviáveis e, por isso, expulsos pela própria lei do mercado devido à superabundância da força de trabalho barata. Enquanto os países ricos geram lixo em quantidade assombrosa, os países pobres geram os marginalizados que, por serem humanos sobrantes devem ter como destino o desaparecimento. O sistema convida-os a desaparecer porque, não existem os que não podem consumir. Os 24 países desenvolvidos que formam a Organização para a Cooperação no Desenvolvimento Econômico do Terceiro Mundo (OCDE) produzem 98% dos dejetos venenosos de todo o planeta. Presenteiam o terceiro mundo com seu lixo radioativo e outros lixos tóxicos que não sabem onde meter. Proíbem a importação de substâncias contaminantes, mas derramam-nas generosamente sobre os países pobres. Fazem com o lixo o mesmo que com os pesticidas e adubos químicos proibidos em casa: exportam-lhes ao Sul sob outros nomes. É Galeano que afirma não ser correto falar em excedente de população no Brasil, onde há 17 habitantes por quilômetro quadrado, ou na Colômbia, onde há 29. A Holanda tem 400 habitantes por quilômetro quadrado e nenhum holandês morre de fome. O sistema está em guerra com os pobres que ele próprio fabrica, e trata-os como se fossem lixo tóxico. Politizando: Por fim, o que o senhor tem a dizer sobre a recente e propalada preocupação das empresas privadas com a questão ambiental e com a chamada responsabilidade social das mesmas? Edmilson Rodrigues: Milton Friedman insuspeito liberal foi honesto ao afirmar que a responsabilidade social das empresas é, única e exclusivamente, a busca por aumento dos lucros. Ora, a apropriação privada da riqueza é o objetivo social suficiente e máximo mandamento do capitalismo. Contudo, essas questões entraram nas agendas das empresas oligopolistas e dos governos conservadores (e os progressistas ingênuos) como estratégia de marketing que, é verdade, tem funcionado para confundir e controlar os espíritos dos explorados e oprimidos.

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por Edmilson Rodrigues, 2013

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SAGA Para Edmilson Rodrigues. Daqui, velho companheiro, vejo as imensas fogueiras aturdidas no céu com suas profundezas remotas e estendidas na alma da mulher amada. O que faremos com nossos espíritos vocacionados para a lavra dos cavaleiros rudes ou mesmo talhados tal qual a mão camponesa? O que faremos com nossos poetas beberrões e estiolados? Tais homens descalços, guerrilheiros das vastas cidades rumorosas nos acodem quando seguimos coléricos e se precipitam por nossas bocas e pela pele das palavras assumimo-los, mesmo que mortos, mesmo que o latifúndio da mediocridade lhes sentencie ao punhal da crítica nos salões marmóreos. Não cortaremos nossas línguas. Dos colonizadores retemos o idioma e o ódio. Nas rebeliões somos a lança de mil Guaimiabas. Evocamos o sangue do gatilheiro Quintino. Da lâmina cortante gestou nossa fala. Nos teatros da infâmia estadunidense a polícia política prendeu a atriz: ela declamava um poema de Pablo Neruda. Nos revoltamos. Quase não dormimos pois que algo pulsa dentro das veias. E não é apenas sangue senão a inarredável crença no futuro.

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A mentalidade dominante de nossa época exige-nos leniência e bom comportamento. A mentalidade dominante de nossa época assevera a guerra preventiva. A mentalidade dominante de nossa época é a ideologia financeira do todo-poderoso mercado. A mentalidade dominante de nossa época está para ser destruída para a humanidade avançar. Quando eles dizem: “detestem os partidos”. Nós já nos organizamos politicamente. Quando eles dizem: “somos a moderna democracia”. Nós distribuímos manifestos contra a ditadura do dinheiro. Quando eles dizem: “em Cuba, não se respeita os direitos humanos”. Em Guantânamo, é verdade. Vês, velho companheiro, que não há saída e o que é tempestivo são as ideias em luta. Sujeitos às tempestades e aos vendavais da história, acreditamos, como Gorki, que só podemos recolher as impressões diretamente dos livros e da vida. O que faremos com nosso segundo coração que é a poesia? Não cortaremos nossas línguas. Da Batalha de Uruçumirim alvejamos Estácio de Sá em nosso primeiro grito de liberdade: nosso brado é o da Confederação dos Tamoios e de seu líder Aimberê. Insurretos na alma e na consciência expulsamos do Recife, em 1654,os holandeses de Nassau. Metálicos como as noites quilombolas cremos na voz combatente nos Palmares de Zumbi. Somos a garrucha centelheira de Angelim fazendo fogo nas tropas imperiais diante da infâmia e dos horrores nos acontecimentos do Brigue Palhaço.

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Na dorsal intensa da formação destas ideias a conclusão altaneira de Frei Caneca, herói da Confederação do Equador. Como leões sangrentos rugimos tal qual o praieiro Pedro Ivo. Em Castro Alves inauguramos o lirismo da poesia social e o amor será cantado apenas pelo amor e com ele procuramos febris a nossa Pátria abolicionista. Amparados pela caatinga reestabelecemos o sertanejo e inauguramos, como Pajeú, a tática da guerrilha em Canudos. Jamais cortaremos nossas línguas. Fomos, velho companheiro, das manhãs nascentes do século XX o Almirante Negro dos mares e a revolta da chibata chamou-se Antônio Cândido. Vês, poeta revoltoso, que as primeiras greves operárias amadureceram nossas mãos laboriosas e de como o produto do desenvolvimento de nossa própria civilização nos permitiu a Semana de Arte Moderna e o nosso nascimento a 25 de março de 1922. Desde então tudo foi diferente: a aurora principiava vermelha e um grande incêndio iluminou a consciência. Tomamos corpo, postura, nós que havíamos sido anarquistas decidimos tomar, por decisão, o poder político. Nas fornalhas fabris anunciamos a epopeia revolucionária na distante Rússia de Lênin. A voz dos desvalidos se fez escutar. O oprimido passou a ler livros e percebeu o conteúdo dos grilhões. No latifúndio dos coronéis fundamos o primeiro sindicato e toda a terra aramada e todo campônio espoliado enveredou a enxada para a luta.

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E assim têm sido em todos esses anos. Não há cárcere que desconheçamos. Em noites prematuras alteamos as bandeiras para que a vida pudesse prosseguir. Não houve combate no qual declinamos e a palavra socialismo nos fez fileiras. Na densidade de todas as incertezas somos a vagadas revoluções. Daqui, velho companheiro, vejo as vastas fogueiras iluminando a rubra alvorada Por Paulo Fonteles Filho, março de 2011

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