MAURÍCIO BORBA FILHO
DÍPTICOS DA NOITE
Edições do Prego.
Edições do Prego: Maurício Borba Filho Contato: mauricioborba132@hotmail.com Belém, PA -2016* DÍPTICOS DA NOITE, 2014-2015
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I
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MELENCHOLIA DE DÜRER Do meu lado não há cão nenhum. Pego ar, desfaço-o. Com ele, desenho os quadrantes do meu quarto, cada espaço da luz, cada barulho dos bichos à noite, cada ocorrência a quina úmida da mesa de madeira densa, cada letra impressa dos livros, cada doença do corpo – o botão do abajur, que ligo. Não há fuga do tudo que está para ser habitado, porque já está habitado. A linha escapa, segue vai reta, vai e continua como uma cobra cosendo um caminho sutil no cemitério de sentenças – a cor da parede é opaca, dura.
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NO MUSEU, escondo meus rastros, passos se apagam e escorrem como tambores de água: cachoeira dando para o nada. Ninguém nota, e os olhares crescem como ervas. Flashes disparam, reacendem lembranças da noite anterior – meninas falando espanhol riem alto, alguém tenta abrir a porta do quarto no hotel. À parte, uma delas lembra a anunciada de Fra Angelico posse do semblante oculto, estrondo de luz – a memória é arisca, e nunca para – percebo que ela colhe rastros, passos lhe ressurgem repisados, e enquanto ergue o olhar rígido de águia, fujo novamente e me escondo mais a fundo entre as árvores do perdido.
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Quando penso: me tateio num aquรกrio de disfarces
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Do grande espelho na sala vi o avião – vela navegando a noite, corais de estrelas, peixes azulados como a primeira manhã.
mas viro e vejo o avião – na noite, sua luz mesmo uma estria da noite suspensa quanta tristeza – dizes – nesse mundo
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ESTĂ S NA JANELA vendo nas nuvens tuas coisas lembradas sendo puxadas por um cavalo de luz EstĂĄs paciente, e a noite chegada te olha de volta sorris para o nada e apagas a luz
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EI-LO, DE NOVO, o grande cântaro da noite. Vejo homens e mulheres que chegam e servem-se sobre o tapete de escuridão. Vozes respingam como retalhos de seda – alguma coisa delas adere às partes descobertas do meu corpo - conto pelos dedos, tateando cada vibração. Parece que há alegria no festejo, mas dás de ver lá fora o velho rosto da madrugada. Observo as vozes que se desprendem de ti – estás inteira e cumprimentas, consciente, o grave calar dos galhos, as árvores do teu nome.
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PERTO DO COLO o colo se delia Outra figura – fantasma, vapor suspirava tua pele no tombo do dia estranho: com espanto viu-se o duplo no visor da câmera escapando do aparelho, partindo no meridiano da tua lembrança.
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O TEU CORPO DO PASSADO É OUTRO corpo - é ele que agora aponta o dedo a ti, e à noite vela o teu sono.
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EM MIM A Mテグ do tempo me faz passear dourando a grテゥs da tua sombra Geleia noturna em que colho os nomes de mim - os que te devolvo, para que me entendas a ti.
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– fina penugem, poeira dourada que espantas do ombro e que recolho - porque a noite é fria, e é triste, à noite, onde a luz rareia... A MANHÃ SE DISPERSA
o assombro branco de me perceber duplica as sílabas da pergunta – o que é isso? O que é isso? No quarto paira a nuvem... Forma antiga... Com força cruzo os braços e escondo o primeiro mapa, as pistas do dia.
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DE MANHÃ os lábios de ferro do sol abocanham o lugar onde estás. Corres para ver se há lugar aonde ir, lugar de se esconder, uma ilha de sombras difusas, ouvindo os carros que passam como peixes atordoados, cardume crepitante de aço e fumaça. Mas nada fica, tudo muda de lugar, inclusive o lugar onde estás. É difícil dormir com tanto sol. Deus trabalha à noite o diabo, de dia.
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O VENTO PASSEIA: castelos cedendo em ruína – desejos, rumores centelham num deserto negro de nuvens. Tudo está certo Tudo é conforme E no entanto, perto de nós ei-nos enormes a mirarmo-nos: rosa na lapela, dente à mostra, sorriso. Pó indecifrável do sossego – estou calmo, tu estás também. Mas se pudéssemos voltarmo-nos a nós, cobriria com a mão teus olhos negros e tu, penso farias o mesmo.
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TODOS OS DIAS uma sombra adentra a tua voz. Ela deita sobre as tuas vogais, cobre o pulmão da tua língua vibrante como a cera pastosa do fumo. Ela é a sombra distante de alguém que se esgueira pelas cortinas do tempo, daquele que vem e deita a gota do Não sobre o teu ombro desnudo. Todos os dias uma sombra vem, e a tua fala aberta se empareda como a serra que vejo quando prenso os olhos do sonho: o escuro.
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AS UNHAS DA LUA caem feito arpões no mar amarelado das ruelas, arranhando o breu com as lâmpadas que engasgam. A noite é uma antiga casa de silêncio Lá de dentro alguém olha, se levanta, passeia entre sonhos açodados que bruxuleiam da fogueira vermelha da solidão O cheiro de incenso é mau, e o ronco da areia que pinga do escuro é suave – mas quando se pensa em dormir, o resmungo das estrelas fica mais alto: ouça – este é o lamento do último tigre cortando o oriente.
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A LUA SELVAGEM aparece entre teus dedos: paramos certeiros na praia de névoa espessa espaço das horas da noite. deitamos nas dunas como se ancorássemos na corcova dum camelo – bebendo treva e sonhos, víamos do alto o mar que calava o desejo de partir: Deu a hora; é tarde. Alguém se lembra de casa.
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NA PRAIA a areia se derrama branca e cega, como um mar de barba alva a barba de Karl Marx, na foto do livro que lias à tarde o vento afugenta os roncos da morte – do medo da morte chove, e no leito do horizonte sumido um barco corta a camada de invisível e um pensamento preguiçoso vai atrás
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TUDO POR DENTRO, e tudo por fora… silêncio úmido: onda quebrando na parede. Topa-se com algo e isso logo se destaca - tua mão ganha uns contornos claros, cada um dos teus dedos é o corpo delgado de uma linha. Imaginas o frio e te espantas: a pele sob a linha se arrepia.
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PRA QUE IR À TERRA da saudade azul? Por que foste e voltaste com a marca salgada do mar? Não há nada aqui Mas também não há nada lá: Então para que ir, qual o gosto de avistar a asa do tempo entre as nuvens? na saudade azul despenca o pomo do teu nome – nome antigo que recolho no olho e na língua – retrato prendido na dúvida de ir, com a marca salgada do mar.
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EM ALGUM LUGAR um navio zarpa alguém amassa contra o peito a tua carta, não lida e olha o silêncio quente que o aguilhão da estrela deixou na pele da noite marinha – essa noite, esse corpo negro que estremece a cada palavra e embala o navio no nada, ao sabor do teu novo alfabeto. Talvez seja isso – ou nem tanto: em algum momento, subirá a água do teu sonho – Espera. Vê o quanto de tempo que passa – agora será o navio que atraca? Talvez nada aconteça; nada
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TRIGAIS A cada volta envelhece a 창nsia do sol: quando o vento estaca e as coisas passam a ser as mesmas, aqui e ali.
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II – REPETIÇÕES
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A RONDA NOTURNA Não te apercebes? Há pouco tempo a noite de verão tampava o teu ser. Agora vê lá fora uma adolescente de areia a espalhar entre a matilha as horas do teu sossego.
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VISTE:
acordaram-no o pulso, o martelo úmido da madrugada enquanto dormiam tuas sentinelas o perfume do que é ido, no roseiral da pensão em que estás, lá fora teu pelo, tua floresta que cala o canto dos pássaros, tuas mãos - as mãos de lázaro borbulhando nos telhados há também as cigarras... uma noite de se sonhar...
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TEU CORPO CAI no fosso da palavratuas mãos, teus braços, tua nervura e teu desejo anoitecem como a rua que se entrega, ainda convulsa, ao sono dolorido do crepúsculo. tuas pernas, tua maçã do rosto – tua musculatura grossa, a palpitação rósea da tua gema nua se encolhem rasteiras na manta marinha da memória – tens de ouvir ainda a besta que urra o teu nome – e o lustre dos teus olhos ficar a se esconder dentro de ti – há de vir ainda a mão que te procura – mão negra e amiga - e a palavra que então aveluda a língua, tua pele, romã – partida.
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Mテグ colher as uvas, maduras como a dor da manhテ」. tuas veias sob a luz se alongam - seriam os rios a percorrer um mapa: vida irreal.
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AS TUAS IMAGENS se aglomeram agora, pelos caminhos do ocaso disperso, aquático – conchas reunidas no silêncio loiro da areia. Tuas imagens, aquelas que se perderam nas estremas da cidade – uma cavalaria que vem com o entardecer, furando, dum ponto ao outro, um rasgo nas mãos dos lugares do presente e do passado espargindo o mel que perfuma o teu mundo de sombras. Pelas ruas da cidade pode-se topar com estas imagens –
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NA ENCRUZILHADA DA NOITE uma mão persegue os teus primeiros anos - o banquete amoroso, o aroma de romã que dormia em teus cabelos – a rosa colhida no golfo da tua vista cansada
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ESTE NÃO É o outro lado da matéria – porta da tua mão que me oferta, em duas, o fado de uma tarde triste - no avião, que lembro, um fado roçado pelas aves, inaudível: Não é, esta outra coisa, também, o outro lado da graça – brilho que cai, menos intenso, (barulho seco), como um santo de argila que tomba e se espatifa, e que orna tua cabeça como uma coroa sublime de céu e coisa bruta. Mais parece a muralha de rosas da tua dor, fumaça que cerca os lugares de visitar longa pista do imaginário cegueira da tarde que vem e enxuga a vista da vista
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ONTEM TINHAS UM OUTRO NOME
hoje quando te chamo o vento me responde com o cheiro de uma รกrvore distante
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ESTE É O PRIMEIRO LUGAR. Deleitemo-nos na fantasia de que antes dele, nada havia – no fundo escuro da água, cultivas o calor pesado do corpo da memória: peço para que me mostres os primeiros exemplares as primeiras espécies; as frutas retorcidas pelo esquecimento; as grandes presas da besta primitiva, curtidas pelo teu olhar perscrutador, olhar das estações do sol – os primeiros exemplares da vida, de tudo o que se calcificou sob tuas unhas – falas a língua das pedras de Altamira – sei, e porque entendo, já não existo. Me pergunto se não terias um museu portátil contigo. Mas não, esse não é o caso aqui: aqui tudo é mais difícil, incomparável como o pôr do sol fica mais grave, e só grave, como tudo: mais grave. Ficamos calados: a tua língua é a da pedra de Altamira – sei, e porque entendo já não existo.
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É DIFÍCIL ESTAR em dois lugares ao mesmo tempo – a mão que cobre a noite e o dia; a boca que acalanta o sibilo rumoroso do mar e dá de comer à terra nua; a perna firme que alonga o céu, epiderme da chuva, da América à África da Ásia à Europa, deste ao outro ponto – cruzar o mistério, o mapa invisível e selvagem; estar fora do meridiano da vista – quanta dor, dizes, quanta dor em tudo.
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É PRECISO ESTAR em outro lugar: eu digo para subirmos a árvore: aqui, a noite é perfumada, a folhagem germina os primeiros torpores da madrugada, canções antigas – estamos mais distantes da cidade.
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NO MUSEU, a inscrição de um nome na carta do Vermeer (Vermeer, Johannes. c. 1663) as gentes passam e talvez nem se perturbem com ela. mas essa inscrição de um nome na carta do Vermeer – ela assombra as gentes no museu, duplicando seus passos.
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NA PRAIA a areia é a cal da noite – água na passagem deste lugar ao outro lugar – atadura do tempo em que deitados, os peitos sob a lua, seguindo um pensamento vazio que se descola e vai atrás dos passantes da beira-mar, rimos
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NÃO HÁ NINGUÉM EM CASA. Estás em casa. O meu braço te alcança – já não estou em casa: a onça pintada na parede é um rio de água tépida – um sono rápido te cerca, a modinha da saudade que escutas não vem do rádio – ela é o que fica do ar que esquenta quando para.
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CÓPIA Há um quadro na sala – nele, há duas datas, que são nenhuma. Ele não me remete nem ao original nem a ele mesmo – vejo o sol que nada no mar muito verde, tardes em que estive.
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CÓPIA A sala em que estamos é mal iluminada – o teu olhar rígido de águia revela a presença inusitada de um homem entre duas datas: há um quadro na sala, é uma marina e é também a figura de um homem que rema no gesto verde do mar – vem remando desde que mudei para esta casa, e é possível que já estivesse a remar antes, ainda, onde quer que estivesse antes. Tocamos com os nossos os gestos verdes do mar... o remo... a sombra...
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da noite que nos espreita é um rio – vozes do rio que escutamos, olhando para o vazio, suportando a espessura delas esperando a queda súbita de uma estrela A ONÇA
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MERGULHO Um mergulho na noite: das rochas muito úmidas, estreladas, projeta-se o peso do corpo sobre a água fria – lá de baixo, revejo o salto uma vez, duas... uma outra vez ainda. Um mergulho à noite... As rochas muito úmidas... A água fria...
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