Ciaccona

Page 1

MAURÍCIO BORBA FILHO

CIACCONA

Edições do Prego.


Edições do Prego: Maurício Borba Filho Contato: mauricioborba132@hotmail.com Belém, PA -2015*

2


3


4


Paisagem I Cher ami, j’ai ta lettre datée. “En mer”. Há de se pensar no mar E nisto vem a vírgula, o lugar triste e baço triste e ágil o papel gasto e a caligrafia de Rimbaud – o t do seu être nesta carta de Rimbaud a Verlaine

5


Paisagem II da mata jade-úmidatoca de barulhos vê-se o olho da nossa casa – biblio teca secular de passos em falso

6


Paisagem III Porque no espaço da letra há um meio (um espaço) quando me lês, à noite, as palavras próximas da árvore, as palavras verdes de musgo da morcegueira, um punhado de galhos cai das mãos de sopro da tua garganta e patina na tua pele e atiça cada poro num espetáculo estranho e a noite toda depois vira uma fita muito antiga e anônima uma fita estrangeira da mais anônima patinação

7


Paisagem IV Quando passamos com o carro e a areia suspensa feito uma polaroid inteira da cidade grudada no ar nos faz pensar no pouco sono nas horas violentas no úmido da mata e na vaga cicatriz que se vai fechando na raiz dos nossos pelos ouvimos das janelas ouvimos da lataria da borracha esfumada muito quente no ar quente a cidade – suspiro de terra vermelha um suspiro m uito lento nos meses sem chuva

8


Paisagem V A viração insuspeitada no tapete de madeira que se desprende e salta como um gato rolando até o teto ou o vento acastanhado na vela que cobre as casas os prédios, as ruas todas desta cidade, como o casco de uma tartaruga terrivelmente anciã são marcas de partida provas e tinta de mudar-se

9


Paisagem VI Por mais que se diga que descansamos em volta da piscina que estamos a ver o nado esparramado o corpo n’água cuneiforme: nuvem morna sobre o cloro Por mais que se digam estas palavras, pode-se partir à outra beira – e a mesma natação é agora batida sob a alga a mesma espuma da piscina muito acima dada ao brilho Assim ficam os olhos cegos dos corais o corpo vário das algas a voz rouca da espuma: à beira

10


Paisagem VII ENGANAR, Continuamente enganado pelo suor das dunas que é mel, sol, ruído de estar só; pela palavra quente, pele de saudade – Enganar, com a dita sílaba Ah em banho maria na memória hálito que vem doutro continente vem do falar dos árabes de olhos vendados e anos-nanquim grudados na pele emplastrados no suor Eng anar: lembro – lembrar

11


Paisagem VIII não vi a bruta passagem estival sobre os bordões de ti – tua pele areada pelos gafanhotos de ouro também não mas vi que pensavas nisto enquanto rias teu elogio a Descartes

12


Paisagem IX azul dos peitos de sereia / arrepio de avião / gozo leve – vês de vento / gastando graxa dos sapatos

13


Paisagem X aniversรกrios de morte no Soledade - perto donde o osso era so mbra de sangue: pequeno - feito fotografia 10x15

14


Paisagem XI saindo dos portões verdes da tarde fazendo volume nos tetos de chuva com a sola dos sapatos -tec, teceu senti então os choques da respiração asmática do passado – o bosque como aglomeração de calendários – tec, tec, tec -

15


Ciaccona e não saberemos cruzar as pernas dentro das horas longas das horas longuíssimas destas em que ficamos a esperar a secagem do rio de pedra azul da nossa idade: quando enfim restar exposto o nosso abecedário entre os peixes – enfim – revelado não saberemos cruzar as pernas dentro destas horas longas nem fazer a figueta do alaúde com a língua enquanto ouvimos a ciaccona para acompanhá-la a ciaccona de uma anã branca indiferente ao telescópio não saberemos não saberemos mas observamos e guardamos desde já o vestígio dos humores da noite numa velocidade – baixíssima acompanhando a ciaccona da anã branca que foi dormir na nossa língua 16


Paisagem XII cansado de dizer o nome cansado de dizer este nome dum espanto a primeira letra estrela atravessada em damasco saindo agora a segunda fogaréu satélite de pedra em pedra a terceira esmalte de lava no dedo das meninas – e estou cansado vencido mas a voz sozinha se debruça nos balcões mirando verões sem paz

17


Paisagem XIII podando a matéria do branco devolves a palavra nua – estátua de tempo estátua de baía e uma volta escrita de luz

18


Paisagem XIV noites do roseiral noites de quase sumiço com o bico de chumbo da palavra apontada noites de tinta do roseiral quase sumindo asa amarela de nuvem-pavão: noite do roseiral que se desprega da parede: espinho

19


Paisagem XV Quando olho para cima vejo o vapor pedalando - fábrica celeste de quatro chaminés (a fumaça inquieta feito um bando de macacos invisíveis) a cópia carbono da velha fotografia do rms titanic então me vêm à mente três distâncias vetores, agulha de bússola

20


Paisagem XVI A disciplina do mercúrio quando faz quente: tigre branco de folhas de fogo /folhas do teu rosto outonal – crec, crec – os sapatinhos sobre elas anti-outono

21


Paisagem XVII é desejar demasiado possuir a disciplina do mercúrio a disciplina do tigre branco submeter-se às variações pulsar o pulmão o dia é vário nas paradas de ar e na garganta do olho tudo é pastilha e concretos carros copas de árvores tristes de tédio

22


Paisagem XVIII Daqui, a orla é uma grande costela de faraó – a oculta, segredo de pedras, trabalhos de morte – e o verdinh’ das copas arrepiado /a cabeleira vegetal de jean epstein

23


Paisagem XIX Está muito difícil permanecer no medo caí de mim como um eromíssil entre os azulões de newman óh! O medo óh!...

24


Paisagem XX Mais do que em outras noites Noite passada estive a nascer esquivo, com as patas jogadas aos ombros, acordado, caminhando no minuto iluminado por gérberas de silício no céu... Mais do que outras noites noite passada foi o broto legítimo da tua máquina de professar silêncios inaugurais

25


Paisagem XXI os dias estão diferentes – se vestem dentro de luvas socam no punho de uma mente porosa: azul marrom folha/ limo marulho e ferro – dentro: fantasia de fora

26


Paisagem XXII Entre os barulhos da grama a pomba posta em pele de mulher, inaugurando os livros de chuva no chĂŁo, 1Âş de outubro

27


Allemanda há o problema da colocação de pés – ficamos recostados contando nos dedões a maré cheia de alfabetos ficamos a olhar o salto das piranhas e o farrapo comprido de estrelas sobre as ilhas – nossa solução à colocação de pés permanecerá segredo de noite, arisca aos guardas noturnos

28


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.