(1851-2008) Hugo Silveira Pereira (ed.)
A LINHA DO TUA (1851-2008)
Hugo Silveira Pereira (ed.)
PROJECTO FOZTUA coordenadores ANNE MCCANTS (MIT, EUA) EDUARDO BEIRA (IN+, Portugal) JOSÉ MANUEL LOPES CORDEIRO (U. Minho, Portugal) PAULO B. LOURENÇO (U. Minho, Portugal) www.foztua.com
A capa procura sugerir o perfil da linha do Tua de Foz Tua até Bragança. Note-se que o troço entre Mirandela e Bragança passa pelo ponto mais alto da rede ferroviária portuguesa, em Rossas. Agradece-se a colaboração do professor António Vieira, do departamento de geografia da Universidade do Minho, e de Lurdes Martins (também da Universidade do Minho) para a definição deste perfil.
ISBN: 978-151-88937-3-5 Janeiro 2015 Design gráfico, paginação e capa por Ana Prudente Editação por Inovatec (Portugal) Lda. (V. N. Gaia, Portugal) Impressão por Minerva – Artes Gráficas, Lda. (Vila do Conde, Portugal)
PREFÁCIO Anne E. C. McCants Massachussets Institute of Technology
Nenhum outro projecto de obras públicas captura mais eficazmente o espírito das aspirações nacionalistas do século XIX do que a construção de caminhos-de-ferro. Nem houve imagem mais icónica da Revolução Industrial do que uma locomotiva a vapor circulando sobre carris de ferro. Ambos trouxeram velocidade e potência a rotas de transporte já existentes e, de forma ainda mais vincada, abriram novos territórios ao desenvolvimento económico e à ocupação humana. Os metros de via-férrea tornaramse literalmente uma medida fiável de poder político e de desempenho económico de um estado-nação; e por esta mesma medida, na década de 1850, Portugal estava bem atrás do resto da Europa Ocidental. Décadas de instabilidade política e de subserviência às exigências económicas de poderosas companhias comerciais estrangeiras tinham limitado a capacidade do país para investir em projectos de desenvolvimento de infra-estruturas de transporte. Mas em 1851, graças a um conjunto de reformas políticas, o cenário começou a mudar. Um novo discurso de progresso articulou-se continuamente a nível nacional, facilitando a emergência gradual da vontade política e económica necessária para implementar os seus mais básicos ideais. A construção de caminhos-de-ferro, não surpreendentemente, era o mais importante desses ideais. Este estudo em três volumes sobre a construção da linha do Tua, entre a década de 1880 e o primeiro decénio do século XX, atravessando o coração de Trás-os-Montes, conta em minucioso detalhe o modo como a ideia geral de progresso foi efectivamente traduzida numa linha-férrea totalmente operacional. Singularmente, a linha do Tua estava situada na mais remota região do país, caracterizada por um território montanhoso e desnivelado. Se este facto não fosse suficiente para dissuadir a escolha desta
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localização, recordemos que, antes do caminho-de-ferro, Trás-os-Montes tinha um potencial comercial limitado quase totalmente à vitivinicultura no vale do Douro. A forma como a linha do Tua se concretizou, quer como ideia política, quer como realidade de engenharia, é uma história fascinante, contada com grande detalhe histórico nesta obra. Os verdadeiros impactos económicos e humanos desta linha não foram uniformes, como foi demonstrado por muitos dos participantes do projecto FOZTUA e dos workshops Railroads in Historical Context. Mas é indiscutível que, ao longo da segunda metade do século XIX, quando novas vias-férreas eram sucessivamente propostas, ninguém duvidava quão críticas seriam elas para o crescimento económico e para a construção de relações comerciais mais sólidas com o resto da Europa e do mundo. Estes três volumes levam o leitor de volta a esta era de devota crença no progresso, recriando os turbulentos debates políticos, as complexas negociações (e desilusões) financeiras e os verdadeiros obstáculos de engenharia que tiveram que ser ultrapassados de modo a trazer a ‘era do vapor’ a uma terra de vetustos socalcos, conhecida pelo seu vinho do Porto e pouco mais.
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AUTORES Ana Carina Azevedo Doutora em História pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa com a tese A Organização Científica do Trabalho em Portugal após a II Guerra Mundial (1945-1974) e investigadora do Instituto de História Contemporânea da mesma faculdade. Eduardo Beira Coordenador do projecto FOZTUA. Engenheiro químico (1974). Professor associado (convidado) da Escola de Engenharia da Universidade do Minho (2001-2012), docente do programa MIT Portugal e Senior Research Fellow do IN+ Center for Innovation, Technology and Public Policy (Instituto Superior Técnico, Universidade de Lisboa). Autor de diversos livros e tradutor da obra do filósofo Michael Polanyi. Leonel de Castro Fotógrafo profissional, colabora regularmente com vários títulos da imprensa nacional. Licenciado em Comunicação Social pela Escola Superior de Jornalismo, completou também o curso de Fotografia na Escola Superior Artística do Porto e actualmente é doutorando na Universidade do Minho. Docente no Instituto Português de Fotografia e na Escola Superior Artística do Porto. José Manuel Lopes Cordeiro Doutor em História Contemporânea pela Universidade do Minho, onde é professor auxiliar no Instituto de Ciências Sociais. É director do Museu da Indústria Têxtil da Bacia do Ave, assim como representante nacional do The International Committee for the Conservation of the Industrial Heritage, organismo consultor da UNESCO/ICOMOS para o património industrial, e presidente da Associação Portuguesa para o Património Industrial. É também director da revista Arqueologia Industrial. Membro da equipa coordenadora do projecto FOZTUA. Maria Otília Pereira Lage Investigadora do Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória (Faculdade de Letras da Universidade do Porto). Pós-doutorada em Estudos Sociais e Históricos, doutora em História Moderna e Contemporânea, mestre em História das Populações, pós-graduada em Biblioteconomia, Arquivística e Documentação e Administração Escolar e licenciada em História. Professora reformada do Instituto Politécnico do Porto. Autora de vários livros. Paulo B. Lourenço Professor catedrático do Departamento de Engenharia Civil da Universidade do Minho, diretor do Mestrado em Análise Estrutural de Monumentos e Construções Históricas e director do Instituto para a Sustentabilidade e Inovação de Estruturas de Engenharia. Editor do International Journal of Architectural Heritage: Conservation, Analysis and Restoration. Especialista em conservação e reabilitação de construções, com actividade em mais de cinquenta monumentos espalhados pelo mundo. Membro da equipa coordenadora do projecto FOZTUA. Lurdes Martins Doutoranda na Escola de Engenharia da Universidade do Minho (Departamento de Engenharia Civil). Interesse académico pelas questões de arquitectura vernacular, ensaios in situ em granitos e influência dos ciclos de gelo e degelo sobre os granitos. Hugo Silveira Pereira Doutor em História pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Investigador doutorado no Centro Interuniversitário de História da Ciência e da Tecnologia
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(Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa). Autor de vários livros e artigos sobre história empresarial e história dos caminhos-de-ferro portugueses. Ângela Salgueiro Doutoranda em História pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, investigadora do Instituto de História Contemporânea e coautora da obra Ciência, Cultura e Língua em Portugal no Século XX. Da Junta de Educação Nacional ao Instituto Camões. Luís Santos Doutor em História Contemporânea pela Faculdade de História e Geografia da Universidade Complutense de Madrid. Ellan F. Spero Doutorou-se no Massachussets Institute of Technology com uma dissertação sobre os inícios da cooperação académica com a indústria entre as grandes guerras mundiais como ponto de entrada para compreender os cenários da inovação, a sua organização e as respostas estratégicas à incerteza. Estudou na Cornell University (BS/MS em Fiber Science and Apparel Design) e no Fashion Institute of Technology (Museum Studies e Textile and Fashion History). Graça Vasconcelos Professora auxiliar do Departamento de Engenharia Civil da Universidade do Minho e membro do Instituto para a Sustentabilidade e Inovação em Engenharia de Estruturas com interesses em alvenaria estrutural e não estrutural, madeira e caracterização experimental. Editora associada da revista Open Construction and Building Technology Journal. Pedro Venceslau Mestre em Arquitectura e Urbanismo pela Escola Superior Gallaecia. Albano Viseu Licenciado em História, mestre em Antropologia Social e Cultural (As Memórias do Estado Novo no espaço rural: estudo antropológico de um tempo histórico na freguesia do Romeu) e doutor em História (Memórias históricas de um espaço rural: três aldeias de Trás-osMontes (Coleja, Cachão e Romeu) ao tempo do Estado Novo). Professor aposentado de História no ensino secundário e superior. Investigador do Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória (Faculdade de Letras da Universidade do Porto). Autor de vários livros e artigos.
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ÍNDICE iii v
PREFÁCIO Anne E. C. McCants AUTORES PARTE I — DE FOZ-TUA A MIRANDELA
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1. PORTUGAL NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX
001 019
1.1. Caminhos-de-ferro em Portugal e no mundo Hugo Silveira Pereira 1.2. O problema das regiões montanhosas e a bitola estreita Hugo Silveira Pereira 1.3. Viajar em Portugal e no interior transmontano Maria Otília Pereira Lage, Albano Viseu e Hugo Silveira Pereira
034 057
2. A ODISSEIA DE UMA NOVA LINHA
057
2.1. O processo de decisão da construção da linha do Tua Hugo Silveira Pereira 2.2. Aspectos contratuais e financeiros Hugo Silveira Pereira 2.3. O projecto da linha Lurdes Martins, Graça Vasconcelos e Paulo B. Lourenço 2.4. A construção e os aspectos laborais Lurdes Martins, Graça Vasconcelos e Paulo B. Lourenço 2.5. Protagonistas: Clemente Meneres e o conde da Foz Albano Viseu e Luís Santos 2.6. Protagonistas: Almeida Pinheiro, José Beça e Dinis Moreira da Mota Hugo Silveira Pereira e José Manuel Lopes Cordeiro 2.7. A inauguração José Manuel Lopes Cordeiro e Hugo Silveira Pereira 2.8. As fotos de Emílio Biel e os desenhos de Rafael Bordalo Pinheiro Eduardo Beira, José Manuel Lopes Cordeiro, Leonel de Castro e Maria Otília Pereira Lage
071 085 095 115 132 151 167
183
PARTE II — ATÉ BRAGANÇA
185
3. PORTUGAL NA VIRAGEM DO SÉCULO
185 202
3.1. A bancarrota e o fim do fontismo Hugo Silveira Pereira 3.2. A lei de 14 de Julho de 1899 e o relançamento da construção ferroviária Hugo Silveira Pereira vii
215
4. A EXTENSÃO DA LINHA DO TUA A BRAGANÇA
215 228 245
4.1. A acção dos Beças na outorga da linha Hugo Silveira Pereira 4.2. A entrada em cena de João Lopes da Cruz Hugo Silveira Pereira 4.3. Contratos e detalhes financeiros da empreitada Hugo Silveira Pereira 4.4. O assentamento da linha Hugo Silveira Pereira 4.5. A inauguração e o epílogo da história de Abílio Beça e João da Cruz Hugo Silveira Pereira 4.6. A gorada ligação de Foz-Tua a Viseu Ana Carina Azevedo e Ângela Salgueiro
259 273 290 307
PARTE III — EXPLORAÇÃO E IMPACTOS
309
5. 125 ANOS DE EXPLORAÇÃO
309 325 351 365 382
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5.1. Material circulante Hugo Silveira Pereira 5.2. Da Companhia Nacional à CP Eduardo Beira 5.3. Dinâmicas demográficas no vale do Tua |Eduardo Beira 5.4. A linha na literatura Maria Otília Pereira Lage 5.5. O papel estruturador da linha do Tua em Foz-Tua, Cachão e Mirandela Pedro Venceslau 5.6. Alterações na linha do Tua (1895-1920) Albano Viseu 5.7. Evolução do sistema de mobilidade e decadência da linha Ana Carina Azevedo e Ângela Salgueiro 5.8. O encerramento da linha de Bragança na imprensa regional Ana Carina Azevedo e Ângela Salgueiro 5.9. Vale do Tua: Uma paisagem tecnológica Ellan F. Spero
491
6. FONTES E BIBLIOGRAFIA
491 501 520 527 529 532 533
6.1. Fontes 6.2. Bibliografia Índice de figuras Índice de gráficos Índice de mapas Índice de tabelas Timeline
427 458 473
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PARTE I
DE FOZ-TUA A MIRANDELA
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Portugal na segunda metade do século XIX
1. PORTUGAL NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX
1.1. CAMINHOS-DE-FERRO EM PORTUGAL E NO MUNDO001 Hugo Silveira Pereira002
“A história do século XIX poderia ser escrita à volta dos caminhos de ferro, das polémicas que suscitou, dos interesses que agregou, dos ódios que ateou”003. A centúria de oitocentos foi o século do caminho-de-ferro, da energia a vapor, dos comboios. A locomotiva mudou, sem dúvida nenhuma, a face do mundo e, muito embora outras tecnologias tenham surgido nesta época, “a locomotiva a vapor epilogou a tecnologia do século XIX”004 e assumiu-se como o “o símbolo mais espectacular desta era”005 . Esta nova forma de viajar e de transportar nasceu, como é genericamente sabido, em Inglaterra. Após algumas décadas de experimentação, em 1825 foi inaugurada a primeira linha de caminho-de-ferro com tracção a vapor entre as localidades de Stockton e Darlington. Cinco anos depois, iniciou-se o primeiro serviço regular de comboios. As cidades de Liverpool e de Manchester foram as primeiras a dispor da nova oferta de transporte. O sucesso deste caminho-de-ferro deu o mote para o estabelecimento de uma enorme rede que respondeu às necessidades de transporte dos 001
Este capítulo é baseado no capítulo 2.2. O exemplo estrangeiro da tese de doutoramento do autor. PEREIRA, 2012a: 44-55.
002
Centro Interuniversitário de História da Ciência e da Tecnologia (Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa).
003
MÓNICA, 1996: 8.
004
CAMERON, 2000: 233.
005
HOBSBAWM, 1979: 63.
1
A linha do Tua (1851-2008)
ingleses. Nas décadas de 1830 e 1840, foram construídos os principais troncos ferroviários, que foram complementados nas décadas seguintes com linhas secundárias, de modo que “the British railway system gradually came to resemble a web connecting all significant centres of population”006. O arranque dos caminhos-de-ferro em Inglaterra e no mundo foi acompanhado de perto por alguns portugueses que se exilaram naquele país durante a contra-revolução miguelista e a subsequente guerra civil entre liberais e absolutistas. Estes homens, quando regressaram a Portugal, vinham plenamente convictos das mais-valias que o caminho-de-ferro representava em Inglaterra e que decerto representaria também em Portugal. Um desses homens era Faustino da Gama, que assegurava, em 1855, que “não ha ninguém (…) que possa apoiar e desejar mais do coração do que eu, que entre nós se façam caminhos de ferro; eu que os vi nascer (…) em Inglaterra, que foi perto da cidade onde eu então residia, fallo do caminho de ferro de Manchester a Liverpool, quantas vezes vi o que havia a esperar d’elles? Muitas. Sei que as vantagens d’elles provenientes são incalculáveis”007. Faustino da Gama esquecia-se, porém, de que a Inglaterra não começou a construir caminhos-de-ferro do nada e possuía condições favoráveis ao seu uso muito anteriores ao início do assentamento das linhas. A percepção que aquele e muitos outros políticos portugueses tinham da realidade económica e ferroviária estrangeira e a representação que faziam da realidade nacional eram, contudo, outras. Essa percepção e essa representação acabariam por “determina[r] o modo de ser da linguagem”008 e também a própria estratégia governamental. É indiferente se a percepção correspondia ou não à verdade ou se as representações da realidade eram fidedignas ou envenenadas pelo erro. As percepções e representações não representam a realidade, da qual são deformações, mas por ela pretendem passar, uma vez que o ideal ou o desejável é muito mais sedutor que o real, permite reduzir o pensamento e orientar a acção009. Ao ver o sucesso de algumas linhas-férreas em Inglaterra e noutros países da Europa do norte e o crescimento das trocas comerciais e dinamismo industrial dessas nações010, era muito mais fascinante e simplista atribuir esses fenómenos somente ao caminho-de-ferro e esquecer como esses países tinham beneficiado de aumentos demográficos, níveis de vida mais elevados, importante consumo de bens industriais, capacidades de mobilização do rendimento nacional para outros sectores além dos 006
HAWKE & HIGGINS, 1983: 181-182
007
Diario da Camara dos Deputados, 2.5.1855: 32
008
FOUCAULT, 1998: 255.
009
FERNANDES, 1998
010
BAIROCH, 1976: 33 e 35-36. LÉON, 1982: 142 e 155-167.
2
Portugal na segunda metade do século XIX
de subsistência imediata, métodos de produção mais avançados a nível agrícola e industrial, entre outros factores específicos de cada economia011. Mapa 1 – Rede ferroviária europeia em 1860 012
A Inglaterra, por exemplo, dispunha já na primeira metade de oitocentos de um dinâmico sistema bancário com capacidade para canalizar capitais para a indústria e para a construção ferroviária. O seu sector agrícola possuía a mais extensa área cultivada e o mais elevado nível técnico da Europa. A aposta nos maquinismos na indústria conduziu a um aumento de produtividade nesta área de actividade. No sector dos transportes, os britânicos beneficiavam também de uma importante rede de canais, rios navegáveis e estradas que complementava o crescimento no sector primário e secundário. O caminho-de-ferro surgiu assim em Inglaterra no final do processo de passagem de uma sociedade pré-industrial para uma economia industrial, para satisfazer uma necessidade e não para criar uma procura013. Entre 1850 e 1870, quando Portugal procurava regenerar-se, a Inglaterra atingia o seu auge. “O êxito da Inglaterra demonstrava aquilo que se podia alcançar através dela, a técnica inglesa podia ser imitada, e a sua experiência e o seu capital importados”014. Em Portugal, 011
LÉON, 1982: 64. BAIROCH, 1976: 15.
012
MARTI-HENNEBERG, 2011: 7.
013
DEANE, 1976: 166 e ss. e 201 e ss. HAWKE & HIGGINS, 1983: 172 e 176-177.
014
HOBSBAWM, 1982: 51.
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A linha do Tua (1851-2008)
à entrada da segunda metade do século XIX, “England was regarded as a model par excellence on an evolutionary path”015. Mapa 2 – Rede férrea inglesa em 1865016
Porém, nem só a Inglaterra servia de modelo de inspiração para os governantes nacionais. Também a Bélgica e a França eram encaradas como exemplos do efeito que o caminho-de-ferro podia exercer em Portugal. Aliás, estas duas nações (sobretudo a França) influenciaram muito mais a gestão do negócio ferroviário nacional do que o Reino Unido (foi naqueles dois países que muitos portugueses obtiveram a sua 015
ALMODÔVAR & CARDOSO, 1998: 65.
016
PERDONNET, 1865.
4
Portugal na segunda metade do século XIX
formação em engenharia017). No parlamento, o economista estrangeiro mais citado era precisamente o francês Michel Chevalier, cujo “‘engineer’s view’ of the economy, and his enthusiasm for banking and railways, fitted the aims established by Fontes Pereira de Melo, the main political architect of the Portuguese Regeneration, like a glove”018. Uma outra autoridade amiúde nomeada nas cortes era o também francês Auguste Perdonnet, um verdadeiro entusiasta politico e económico dos caminhosde-ferro, dos quais esperava o fim das alfândegas; desenvolvimentos diários da agricultura, comércio e indústria; aumentos da produção agrícola e mineira, do consumo de carne e fruta fresca, do movimento das populações, do número de empregos, da velocidade de transporte e das quantidades transportadas; diminuições do custo de transporte; nivelamento dos preços no plano nacional; modificações da estratégia militar a par de uma aproximação pacífica entre países e entre governantes e governados; desenvolvimento científico, de regiões desertas, dos correios, da arte ferroviária e até dos cantos populares!019 Figura 1 – Auguste Perdonnet (à esquerda), Michel Chevalier (ao centro) e Fontes Pereira de Melo (à direita)020
Todavia, a França beneficiara no final do século XVIII de um aumento populacional e de uma quadruplicação do comércio internacional, que lhe garantiu o capital necessário para o take-off. O desenvolvimento da educação e da formação de técnicos era algo que também já vinha de trás. A famosa escola de pontes e calçadas data de 1747. Por fim, o código comercial francês estimulava a formação de empresas desde 017
MACEDO, 2009: 64.
018
BASTIEN & CARDOSO, 2009: 47.
019
PERDONNET, 1865: XLIV.
020
Bibliothéque nationale de France, http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b530656059.r=Auguste+Perdonnet. langPT). Les Annales des Mines, http://www.annales.org/archives/x/chevalier.html. Biblioteca nacional digital, http://purl.pt/13630.
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A linha do Tua (1851-2008)
1808. Tudo isto permitiu aos gauleses lançarem-se definitivamente no processo de desenvolvimento económico, sobretudo após os conflitos revolucionários e durante o II Império (1852-1870), no qual o caminho-de-ferro desempenhou um papel fulcral. Para François Caron, “le développement du chemin de fer correspond à la période de croissance la plus brillante de l’economie française au XIXe siécle”021. Mapa 3 – Rede ferroviária francesa e belga em 1865022
A Bélgica era também um país com uma longa tradição industrial, baseada numa agricultura próspera, na exploração de recursos minerais próprios, no aproveitamento das capacidades energéticas e de transporte dos rios, na construção de canais e estradas, no fomento da imigração de mão-de-obra qualificada e na facilidade de constituição e financiamento de sociedades anónimas023. No século XIX, a incerteza económica da década de 1830 foi ultrapassada com a construção de caminhos-de021
CARON, 1997-2005, vol. 1: 537.
022
PERDONNET, 1865.
023
DHONDT & BRUWIER, 1976: 330-355. HERTEN et al., 2001: 37.
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Portugal na segunda metade do século XIX
ferro e com o desenvolvimento da banca e da finança. A ferrovia contribuiu significativamente para que a Bélgica fosse na década de 1840 o país mais industrializado da Europa continental024. O juízo de Perdonnet em relação à política belga não podia ser mais abonatório: “grâce à cet acte decisif, la Belgique (…) a gagné au dehors l’admiration, sinon l’amitié de sus plus hautains ennemis”025. Em Portugal não se duvidava também do sucesso da estratégia da Bélgica, “ousado paiz, apenas teve liberdade quiz progressos. E o que fez? Lançou-se na construção dos caminhos de ferro adiante das outras nações que pareciam mais ousadas e ricas. Creou esses meios de producção, e por esses meios cresceram rapidamente os seus rendimentos públicos”026. O melhor exemplo de desenvolvimento provocado pelos caminhos-de-ferro vinha, porém, dos Estados Unidos da América. Se a ferrovia na América do Norte tinha um enorme potencial desenvolvimentista, decerto esse potencial não se perderia num país dezenas de vezes menor em superfície, ou pelo menos era essa a convicção dos políticos portugueses da segunda metade do século XIX. O deputado Dias Ferreira explicava no parlamento em 1865 que “um escriptor que eu li sobre esta materia, avaliava a população dos Estados Unidos em 1857, em 24.000:000 de habitantes, e contava que n’aquella epocha estavam já abertas á circulação 41,900 kilometros de linhas ferreas. Este mesmo escriptor (…) calculava que com o auxilio das linhas ferreas os Estados Unidos haviam de ter no fim d’este seculo 100.000:000 de habitantes. Ali formam-se como por encanto cidades e villas ao pé das estações”027. Contudo, já desde inícios do século XIX se vinha construindo uma rede de estradas que em 1830 atingia uma extensão de 19 mil km, além de que o número de americanos triplicou entre 1860 e 1910. Simultaneamente, uma agricultura produtiva e dinâmica e a criação de um quadro legal favorável basearam o desenvolvimento da sua indústria. Este crescimento não passou despercebido ao velho continente, que fez dos Estados Unidos da América o seu principal parceiro nas trocas extra-europeias. Inversamente, os norte-americanos eram os principais fornecedores de algodão e cereais da Europa028.
024
CAMERON, 1961: 120-125.
025
PERDONNET, 1865: 38.
026
Diario de Lisboa, sessão da câmara dos deputados de 6.5.1867: 1415 (Andrade Corvo).
027
Diario de Lisboa, sessão da câmara dos deputados de 30.11.1865: 2719.
028
BAIROCH, 1976: 81-82 e 177. FOGEL, 1972.
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A linha do Tua (1851-2008)
Mapa 4 – Rede férrea norte-americana em 1865029
Todos estes países serviam de exemplo de modelo desenvolvimentista que se pretendia impor em Portugal na segunda metade de oitocentos. Eram paradigmas que aparentemente mostravam como o caminho-de-ferro era uma aposta segura para o crescimento. Em 1860, o deputado Nogueira Soares convictamente afirmava que “o grau de civilisação de cada uma d’ellas [nações modernas] se póde medir pelo desenvolvimento e extensão proporcional das suas linhas férreas”030. Por outro lado, se aquelas eram as nações a quem Portugal se devia aproximar, outras havia de quem Portugal deveria divergir e ganhar lugares na corrida do progresso. Para isso era necessário construir estradas de ferro, tal como países como Espanha ou Itália vinham fazendo desde as décadas de 1830 e 1840. Neste contexto, “o grande perigo é ficarmos onde estamos: a Espanha cresce, aumenta, civiliza-se: se não seguirmos o seu exemplo, morreremos de inanição”, dizia o jornalista e deputado Lopes de Mendonça em 1853031. 029
PERDONNET, 1865.
030
Diario da Camara dos Deputados, 21.3.1860: 237
031
Apud. MÓNICA, 1996: 59.
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Portugal na segunda metade do século XIX
O perigo era real. Espanha era rival por tradição histórica e concorrente na posição de ponto mais ocidental da Europa. Era também semelhante em termos económicos: ressentira-se da perda das suas colónias americanas, não passara por nenhuma revolução demográfica ou agrícola e encontrava-se num estado financeiro deplorável. Contudo, iniciara a construção de caminhos-de-ferro em 1840 e no virar do meio século parecia apostada em redobrar os esforços até então encetados. O primeiro lustro da década de 1860 ofereceu resultados prometedores, mas cedo se verificou que o sistema de transporte ferroviário era inadequado para a realidade espanhola. Em 1865, o Journal des Travaux Publics descrevia como Espanha se esquecera de que os caminhos-de-ferro eram efeito e não causa da riqueza pública. Assim, a capacidade de transporte estava além das necessidades de tráfego; os níveis de produção não tinham aumentado; e a produção siderúrgica era desincentivada pelas isenções fiscais concedidas à importação de material metalúrgico e pelo desvio de capital para os caminhos-de-ferro. Em todo o caso, nem por isso se deixou de investir na ferrovia. Nos últimos anos da década de 1870, a construção ferroviária foi retomada com novo fôlego até que nos finais dos anos 1880 a expansão foi contida por uma crise agrícola comum ao continente europeu032. Mapa 5 – A rede férrea italiana e centro-europeia 033
032
JORDI NADAL, 1976: 537-553, 558-599 e 567-568. TORTELLA CASARES, 1982.
033
PERDONNET, 1865.
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A linha do Tua (1851-2008)
Itália seguiu uma política muito próxima daquilo que viria a ser o fontismo. Procurou atrair capitais e know-how estrangeiros para desenvolver as infra-estruturas de transporte nacionais. Em 1861, a rede férrea italiana atingia uma extensão de 2.400 km. Até 1876 a construção continuou a uma média de 350 km/ano. Apesar de a totalidade das linhas se debater com dificuldades financeiras e de algumas delas se terem revelado empreendimentos de fraco valor económico, o investimento e a construção não pararam, de tal modo que em 1890 a Itália contava com mais de 13.600 km de vias-férreas. O investimento não permitiu, porém, o desenvolvimento da indústria, pois até 1880 todo o material e conhecimento técnico foram importados034. De qualquer modo, e independentemente de os caminhos-de-ferro não atingirem as expectativas criadas, a ideia de que o vizinho se dotava de uma linha-férrea era intolerável e motivava os governos nacionais a antecipar-se aos estrangeiros na dotação de “um grande melhoramento, hoje tão generico que até as mumias do Egypto, esse typo de immobilidade historica, já andam em caminhos de ferro”035. A opção sempre foi construir e construir mais, malgrado a exploração das linhas se revelar sempre aquém das expectativas. O caminho-de-ferro valia por si só, pelo que representava a nível tecnológico e pelo simbolismo que trazia consigo. Em 1860, o engenheiro Belchior Garcês resumia bem este pensamento ao dizer ao parlamento que “se trouxermos a uma estação de caminho de ferro o homem menos civilisado, menos culto, um hottentote, ou um cannibal, e lhe mostrarmos uma locomotiva, emblema da magestade industrial, producto admiravel das artes mechanicas, ser quasi pensante, este homem enthusiasmou-se necessariamente pelos caminhos de ferro, e o seu primeiro desejo é levar esses caminhos para a sua terra”036. Em Portugal, o ideal de progresso dos governos da segunda metade do século XIX passou assim pelo desenvolvimento da circulação e dos transportes, nomeadamente do transporte ferroviário e marítimo037. O desejo de construir caminhosde-ferro acompanhou sensivelmente as grandes vagas de construção ferroviária na Europa da segunda metade do século XIX: a primeira, começada na década de 1850 e terminada em meados da década de 1860; a segunda, decorrida ao longo do primeiro lustro da década de 1870; a terceira, ao longo da década de 1880038. A primeira vaga ficou marcada pelos grandes objectivos de ligar por caminho-deferro Lisboa ao Porto e a Espanha (e daqui ao resto do velho continente, de modo a fazer do porto de Lisboa o cais da Europa). Excepções a estes planos só se verifica034
CAFAGNA, 1976: 287 e ss. CAMERON, 1961: 297. FENOALTEA, 1983: 49-53.
035
Diario da Camara dos Deputados, 17.3.1860: 182 (José Ponte e Horta).
036
Diario da Camara dos Deputados, 23.3.1860: 249.
037
PRATA, 2011. SALGUEIRO, 2008.
038
ALEGRIA, 1990.
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ram quando algum influente ou algum capitalista ou grupo de capitalistas mostrava interesse numa linha que não respondesse àqueles dois objectivos. Foi o caso dos primeiros quilómetros das linhas do Alentejo (entre o Barreiro e Vendas Novas), que serviam os interesses económicos do marquês de Ficalho e de José Maria Eugénio de Almeida (grandes proprietários na região). Foi igualmente o caso da linha de Sintra, concessionada em 1854 a um francês de nome Claranges Lucotte, que prometia assentar carris entre aquela localidade, Cascais e Lisboa sem qualquer ónus para o estado039. Trás-os-Montes parecia assim muito afastado da agenda dos governantes nacionais no que respeitava à construção ferroviária, pois estava muito distante da rota mais directa entre a capital portuguesa e o centro da Europa. Por outro lado, na região norte interior, o interesse económico que mais despertava cobiça entre os capitalistas da época era o vinho do Porto e o vale do Douro. Tudo fazia crer que os transmontanos tivessem que esperar muitos anos até ouvirem o silvo da locomotiva em Mirandela ou Bragança e de facto assim seria. Na década de 1850, os primeiros tentames de construir caminhos-de-ferro em Portugal acabaram por se revelar um fracasso. A companhia contratada para levar a ferrovia da capital até Espanha, a Central Peninsular, foi incapaz de honrar o compromisso assumido, quedando-se pela ligação Lisboa-Carregado. O homem que se lhe seguiu, Sir Samuel Morton Peto, não foi capaz de assentar um metro que fosse de carril entre o Porto e Lisboa, como acordara com o governo. Também o já citado projecto de Lucotte se revelou inexequível do ponto de vista financeiro. A única excepção a esta triste regra foi a Companhia dos Caminhos de Ferro ao Sul do Tejo, que a custo conseguiu ligar o Barreiro a Vendas Novas e a Setúbal. A década de 1850 foi sobretudo um período de muita aprendizagem, muita despesa e poucas realizações práticas. Neste decénio, nem o Porto se ligou a Lisboa, nem Lisboa se ligou a Espanha040. Ambas as ligações teriam que esperar pela década seguinte para verem a luz do dia. Foi por esta altura que chegou a Portugal o marquês de Salamanca, com uma proposta de construção, muita experiência adquirida e aparentemente muito dinheiro nos bolsos. Don José de Salamanca y Mayol era um capitalista de Málaga, dono de uma invejável fortuna e antigo ministro da fazenda de Espanha, que se tornou empresário ferroviário. Em 1850, era considerado um dos maiores do mundo com mais de 3 mil km construídos. Todavia, no país vizinho esteve também ligado ao maior escândalo financeiro do século (concedera como ministro um benefício a uma empresa de que era director). Em Portugal, o marquês de Salamanca formou a Companhia 039
ALEGRIA, 1990.
040
VIEIRA, 1988.
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Real dos Caminhos de Ferro Portugueses e em menos de cinco anos construiu os cerca de 500 km das linhas do norte (Gaia-Lisboa) e do leste (Lisboa-Elvas/Badajoz), conseguindo de uma assentada só realizar os dois principais objectivos da política ferroviária nacional041. Figura 2 – José de Salamanca e a Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses042
Ao mesmo, a construção ferroviária prosseguia no Alentejo. Em meados da década de 1860, a Southeastern of Portugal Railway Company levou o caminho-de-ferro a Évora e Beja. Concretizados os dois grandes objectivos da política ferroviária nacional e estando a rede férrea alentejana em grande desenvolvimento, restaria esperar e obter os proveitos do investimento. Puro engano. A Companhia Real, pouco tempo depois de inaugurar as suas linhas, entrava em situação de incumprimento face aos 041
SALGUEIRO, 2008.
042
http://www.magrama.gob.es/es/ministerio/palacio-de-fomento/ministros.aspx; www.cp.pt. 12
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seus obrigacionistas (que tinham financiado em grande parte a construção). De igual modo, a Southeastern of Portugal Railway Company, que comprara a Companhia dos Caminhos de Ferro ao Sul do Tejo e que explorava as linhas entre o Barreiro, Setúbal, Évora e Beja, passava também por graves dificuldades financeiras. A situação destas sociedades acabaria por se propagar às finanças nacionais, que, no segundo lustro da década de 1860, enfrentaram uma crise severa que impediu a continuação do investimento. Em 1867, tinha sido aprovada uma lei que previa a construção directamente pelo estado (até então, seguia-se o modelo de parceria entre o poder público e o interesse privado através da concessão de subsídios) das linhas do Minho e do Douro. Era uma tentativa de avançar com a construção, apesar da crise, e de mostrar aos credores e prestamistas internacionais que Portugal estava disposto a continuar com a aposta nos caminhos-de-ferro. Contudo, a falta de capacidade para financiar a obra e a chegada ao poder de um governo apostado em realizar cortes na despesa falariam mais alto e a execução desta lei seria deixada para mais tarde. Era, em todo o caso, o primeiro diploma legal que aprovava a construção ferroviária em Trás-os-Montes (a linha do Douro deveria chegar às proximidades do Pinhão) e que constituía o primeiro passo para estender a rede àquela província portuguesa. Usualmente, os caminhos-de-ferro seguiam sempre os vales dos rios, de modo a facilitar a construção e o transporte de materiais para a mesma. Dificilmente seria viável uma outra solução que não seguir o vale do Douro e aproveitar depois os seus afluentes para estabelecer um sistema férreo em Trás-os-Montes, como aliás viria a acontecer043. Mapa 6 – A rede ferroviária ibérica em 1870 044
043
ALEGRIA, 1990. PERIRA, 2012a. PINHEIRO, 1986. VIEIRA, 1983.
044
ALEGRIA, 1990. CORDERO & MENENDEZ, 1978: 248.
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A década de 1870 assistiu ao retomar da construção em várias frentes. O assentamento das linhas do Minho e Douro iniciou-se em 1872 (em 1879, o segundo estava na Régua). Um ano depois, começou a abertura do caminho-de-ferro do Porto à Póvoa e Famalicão. Em 1877, a linha do norte foi concluída com a inauguração da ponte Maria Pia. Neste decénio, chegou-se também à conclusão de que a linha do leste não era a solução mais eficaz para ligar Lisboa à Europa e fazer assim do porto da capital o mais movimentado do velho continente. Foi então que se concessionou o ramal de Cáceres, partindo da linha do leste até à fronteira em Marvão (embora outras soluções mais vantajosas pela Beira se aventassem). Todavia, este caminho-de-ferro tinha tão más condições de tracção que “quando se diga que o caminho de ferro de Lisboa a Madrid tem o celebre ramal de Caceres, e que este caminho é internacional, escusamos de encarecer a sabedoria que tem presidido aos estudos e ás concessões das nossas linhas ferreas”045. Foi um empreendimento pelo qual a Companhia Real nada solicitou do estado e que também por isso foi por este aceite. Com o tempo, percebeu-se, todavia, que o ramal de Cáceres também não oferecia a ligação mais directa entre a capital do reino e os Pirenéus. Por esta razão, em 1878, o governo abriu concurso para a adjudicação da linha da Beira Alta entre a estação de Pampilhosa (na linha do norte) e a fronteira perto de Vilar Formoso046. Por esta altura, debatia-se na associação de engenheiros civis portugueses a problemática do futuro da rede ferroviária portuguesa. Reconhecidos os erros da rede existente, construída “para calar as innumeras exigencias com simulacros de satisfação, para conciliar os interesses politicos com as forças do thesouro”047, trabalhavase agora no sentido de evitar esses erros em vias-férreas futuras, concebendo-se e apresentando-se ao governo um mapa geral da rede a construir. A discussão durou cerca de 18 meses, entre a apresentação da primeira proposta pela comissão nomeada para este efeito em Fevereiro de 1876 e a aprovação do parecer final da associação em Agosto de 1877, se bem que mesmo após esta data alguns engenheiros continuaram a publicar as suas propostas. Trás-os-Montes não ficou esquecido da discussão, tendo muitos engenheiros proposto várias linhas para esta província, de modo a quebrar o seu isolamento territorial. No primeiro alvitre da comissão, apenas foi proposto um caminho-de-ferro que ligasse Bragança ao Pocinho e constituísse a primeira secção de uma via paralela à fronteira de Espanha, de norte ao sul do país. No debate, foi também sugerido um caminho-de-ferro pelo vale do Tua desde Foz-Tua a Bragança, que de facto foi incluído no parecer intermédio da comissão. À medida que a discussão avançava, surgiram 045
Diario dos Dignos Pares do Reino, 8.7.1882: 1124 (Aguiar).
046
PEREIRA, 2012a.
047
LARCHER, 1878a: 269.
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propostas mais ou menos elaboradas, aproveitando os vales do Tâmega, Corgo, Tua e Sabor. A rede final sugerida pela comissão e aprovada pela associação de engenheiros dava a uma linha pelo vale do Tua o carácter de internacional, pois prolongava a linha do Douro até à fronteira em direcção a Zamora. Esta proposta seria ainda alterada a nível governamental por João Crisóstomo de Abreu e Sousa e pelo ministro das obras públicas, Lourenço de Carvalho. Ambos retiravam à linha do Tua o carácter internacional atribuído pela associação de engenheiros (a linha do Douro deveria seguir sempre o vale do rio até Barca de Alva, como aliás viria a acontecer) e João Crisóstomo até a retirava do mapa. Na proposta de lei que o ministro apresentou ao parlamento, já a via pelo vale do Tua voltava a constar da rede. No entanto, esta proposta nunca foi discutida e nunca se transformou em lei: do ponto de vista político e prático não era conveniente um diploma que limitasse a acção dos governos no que tocava à concessão de vias-férreas048. Mapa 7 – Propostas de rede da associação de engenheiros civis (à esquerda), de João Crisóstomo (ao centro) e de Lourenço de Carvalho (à direita)049
048
PEREIRA, 2013.
049
ASSOCIAÇÃO…, 1878. Diario da Camara dos Deputados, 7.2.1879: 345-353. Diario do Governo, 1878, n.º 210: 2260-2266. Revista de Obras Publicas e Minas, t. 9 (1878), est. 1; t. 10 (1879), n.ºs 109-110: 43-57. ALEGRIA, 1990: 287
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A linha do Tua (1851-2008)
O governo preferia ter um maior espaço de manobra para adjudicar linhas. Podia assim aceitar qualquer proposta de construção de um investidor privado e também beneficiar um ou outro grupo na concessão de linhas. De qualquer modo, nada impedia o governo de ordenar estudos generalizados e foi isso que fez em 1878 ao incumbir Sousa Brandão de analisar e propor uma rede férrea a norte do Douro. Sousa Brandão cumpriu a sua função e em 1880 entregou ao governo um mapa onde propunha várias ferrovias de diferentes graus de importância em Trás-os-Montes. As linhas prioritárias eram as que seguiam pelos vales do Tâmega, Tua e Sabor, ficando o caminho-de-ferro do Corgo e um ramal para Vinhais incluídos num conjunto de segunda ordem. Por fim previam-se uma série de vias transversais às citadas. A linha do Tua acabou por ser a preferida em virtude da sua posição mais central em relação à província. A 12 de Fevereiro de 1883, a proposta de lei para a sua construção foi apresentada ao parlamento pelos ministros da fazenda e obras públicas, Fontes Pereira de Melo e Hintze Ribeiro, num pacote que incluía também o caminhode-ferro da Beira Baixa e o ramal de Viseu. Depois de algum debate a propósito das questões de financiamento, o diploma foi aprovado nas duas casas do parlamento e subiu ao rei, que lhe deu a devida sanção. A lei foi publicada a 26 de Abril 1883 e em Setembro seguinte o concurso foi aberto. Infelizmente, ninguém apresentou propostas, em virtude de alguns termos do contrato de adjudicação (nomeadamente a questão da remição da linha pelo estado). Corrigido este detalhe, o conde da Foz apresentou uma proposta para a adjudicação das linhas do Tua e de Viseu. Em Junho de 1884, o contrato definitivo foi assinado e a construção iniciou-se no mesmo ano. Em 1885, o conde da Foz fundava a Companhia Nacional de Caminhos de Ferro a quem trespassou a concessão. Em Setembro de 1887, a linha do Tua foi finalmente inaugurada na presença do rei e da família real. O caminho-de-ferro chegou finalmente ao coração de Trás-os-Montes, muito embora apenas servisse uma vila de pequena dimensão e não ligasse a capital do distrito, Bragança, ao resto da rede050. A abertura da linha do Tua não aconteceu no melhor período da história nacional, pois cinco anos depois o tesouro nacional declarou bancarrota parcial ao não conseguir assumir a totalidade da dívida pública que havia contraído ao longo dos anos para financiar a política de fomento e de melhoramentos materiais. O retorno do investimento tardou e quando a casa bancária que financiava o défice da coroa portuguesa faliu, Portugal não teve outro remédio senão revelar-se incapaz de honrar os compromissos assumidos. Ao reino faltavam as condições que, como se viu nas páginas anteriores, outras nações tinham e que lhes permitiram tirar maior proveito 050
PEREIRA, 2012b. SANTOS, 2014.
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Portugal na segunda metade do século XIX
económico dos caminhos-de-ferro (sem embargo de estes países terem também passado por crises provocadas por bolhas especulativas formadas à volta da ferrovia). Uma dessas lacunas era algo tão simples como a falta de estradas. Numa ferrovia de montanha como a do Tua essa ausência era ainda mais sentida. Praticamente todos os operadores ferroviários nacionais no século XIX se queixaram da inexistência de rodovias de acesso às estações051. Figura 3 – Relatório e contas da Companhia Nacional apresentado em 1887052
De qualquer modo, não se pode negar também os efeitos positivos que o caminhode-ferro trouxe a Portugal. Numa altura em que uma viagem por terra do Porto a Lisboa demorava dias ou que, por exemplo, o correio enviado da capital para o nordeste demorava oito dias a ir e voltar053, a locomotiva introduziu na vida dos portugueses a velocidade, a rapidez, o poder ir e voltar a Lisboa no mesmo dia. Por outro lado, o caminho-de-ferro criou emprego na sua construção e na sua operação criou carreiras; e, mais importante, criou a ideia de progresso e de modernidade em Portugal. 051
PEREIRA, 2012a.
052
Relatorio do conselho de administração apresentado à assembleia-geral em 1887: 1.
053
ALEGRIA, 1990: 127.
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Portugal na segunda metade do século XIX
1.2. O PROBLEMA DAS REGIÕES MONTANHOSAS E A BITOLA ESTREITA054 Hugo Silveira Pereira055 Uma das maiores dificuldades que se levantavam à construção do caminho-de-ferro do Tua era o terreno que a linha devia percorrer, que poderia impor declives muito acentuados e raios de curva muito diminutos. Essa dificuldade era minorada parcialmente pelo facto de a directriz seguir em grande parte pelo vale do Tua. Mesmo assim, previa-se ainda a necessidade de abrir vários túneis em rocha viva, construir viadutos e levantar muros de sustentação numa linha para a qual não se esperava um grande tráfego (e por conseguinte um grande lucro) e ainda que usufruía de uma garantia de rendimento proporcionada pelo estado. Para responder a ambos os problemas – a dificuldade da construção e o alto custo da mesma – optou-se por assentar a via com uma bitola diferente da usada na maior parte da rede em Portugal. Enquanto nos caminhos-de-ferro já construídos a distância entre faces internas dos carris era de 1,67 m, na do Tua empregar-se-ia uma medida de 1 m. O debate sobre o uso de bitolas diferentes na rede, conforme o terreno atravessado e as expectativas de rendimento previstas, iniciara-se algumas décadas antes em Portugal e no estrangeiro.
054
Este capítulo é uma versão revista e aumentada do capítulo 5.7.2. A via de bitola reduzida (ou estreita) da tese de doutoramento do autor. PEREIRA, 2012a: 438-444.
055
Centro Interuniversitário de História da Ciência e da Tecnologia (Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa).
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A linha do Tua (1851-2008)
Na Bélgica, a primeira concessão de uma linha de via reduzida (1,15 m) data de 1843056. Na vizinha França, já se discutiam e empregavam grandes declives e raios reduzidos em caminhos-de-ferro de bitola menor desde o fim dos anos 1850, como modo de completar a rede com custos menores. Em 1863, uma comissão encarregada da introdução de melhoramentos na malha férrea gaulesa mostrava-se favorável à construção de linhas com condições de tracção mais modestas. Dois anos depois, desenvolvia-se a construção deste tipo de locomoção. Tratavam-se de ferrovias de mero interesse local, que respondiam à ausência de caminhos-de-ferro em determinadas regiões de França. A lei promulgada em 12 de Julho de 1865 concedia ainda um largo campo de acção aos municípios, que passavam a poder adjudicar vias-férreas, embora a declaração de utilidade pública fosse exclusiva do governo. Este diploma abriu um período de instabilidade no sector, pois fomentava a especulação, e contou com a oposição das grandes companhias ferroviárias, que não ficaram agradadas com a eventual concorrência057. Nos Estados Unidos, já desde as décadas de 1840 e 1850 que se generalizara a ideia de que a via estreita era uma maneira de adaptar o caminho-de-ferro ao terreno e fazer baixar os custos do primeiro estabelecimento (na década de 1870 os norte-americanos dispunham já de uma rede de via reduzida de substancial extensão)058. Por fim, em Espanha, em 1866, o governo ordenou a uma comissão o estudo deste tipo de viação para responder às necessidades de transporte que as redes de bitola larga não satisfaziam. Estes caminhos-de-ferro eram vistos como de segunda ordem, dos quais não se podia esperar o mesmo que das linhas de via larga059. Em Portugal, as primeiras referências a ferrovias de montanha com condições de tracção restritivas remontam a 1858. Neste ano o engenheiro Pedro de Alcântara Gomes Fontoura apresentou dois relatórios sobre a linha-férrea de Génova a Turim, caracterizada por grandes declives (até 35 mm/m) e curvas de raio diminuto (100 m), onde circulavam locomotivas duplas com rodas acopladas, que atingiam uma velocidade máxima de 35 km/h060. Alguns anos depois, o marquês de Sá da Bandeira referiu no parlamento o mesmo caminho-de-ferro, como exemplo de um sistema que conseguia vencer grandes declives e adaptar-se com curvas apertadas ao terreno061. Todavia, em termos práticos nada se concretizou. A nível governamental, só na década de 1870 começou o ministério das obras públicas a dar verdadeira atenção à 056
HERTEN et al., 2001: 73.
057
ARNOUX, 1860: 3-9. ARMAND, 1963: 53 e 62-65. CARON, 1997-2005, vol. 1: 430-440.
058
PUFFERT, 1995: 306-308. PUFFERT, 2000: 942-945.
059
COMÍN COMÍN et al., 1998, vol. 1: 242-243. MUÑOZ RUBIO, 2005: 1 e ss. WAIS, 1974: 505 e ss.
060
FONTOURA, 1860a. FONTOURA, 1860b.
061
Diario de Lisboa, sessão da câmara dos pares de 11.12.1865: 2846-2847.
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questão. Até então, as preocupações estavam centradas e reservadas às vias de primeira ordem. No início daquela década, o governo resolveu reunir mais informação sobre os caminhos-de-ferro de via estreita. Esperava que traçados com esta característica pudessem ser concedidos sem qualquer tipo de subvenção ou apoio financeiro e trouxessem mais tráfego às linhas de primeira ordem que entretanto se haviam construído. Foi assim que o engenheiro Cândido Celestino Xavier Cordeiro foi incumbido de iniciar um périplo pela Europa (Alemanha, Áustria e França) para estudar ferrovias em zonas montanhosas. Figura 4 – Cândido Celestino Xavier Cordeiro062
Entre 1871 e 1872, a associação de engenheiros civis portugueses contribuiu também para este esforço, publicando na sua revista – a Revista de Obras Publicas e Minas – um estudo sobre linhas de via reduzida (provavelmente da autoria de Vitorino Damásio). Confirmando a sua exequibilidade e segurança, Damásio(?) aconselhava o governo a fazer destas vias os afluentes dos caminhos-de-ferro de primeira grandeza, ligando povoações importantes, portos de mar ou rios. Não deviam beneficiar de qualquer tipo de auxílio estatal, devendo ser adjudicadas a companhias privadas e construídas com a maior economia possível e com uma bitola uniforme para toda a rede (1 m). A junta consultiva de obras públicas e minas concordava com esta opinião, mas admitia a concessão de subsídios aos indivíduos que construíssem e ope062
Revista de Obras Publicas e Minas.
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A linha do Tua (1851-2008)
rassem estas vias-férreas, caso contrário o tráfego não seria suficiente para remunerar os capitais investidos063. À opinião favorável dos engenheiros portugueses juntavam-se os exemplos práticos e lucrativos de caminhos-de-ferro de via estreita no estrangeiro, que eram bastante difundidos em Portugal através da Revista de Obras Publicas e Minas. Em 1873, noticiava-se uma linha nas montanhas da América do Norte que atravessava grandes gargantas e precipícios com declives até 30 mm/m e raios de curva até 60 m064. Na Suíça “mais um exemplar dos grandes serviços que as vias de largura reduzida podem prestar nos paizes accidentados, onde o trafego não póde remunerar as despezas de um caminho de ferro ordinario, é a linha entre Appenzell, Herisau e o caminho de ferro de Saint-Gall-Rorschach”, construído com curvas de 90 m e declives de 85 mm/m065. Por toda a Europa contavam-se então milhares de quilómetros de vias reduzidas, com destaque para as redes da Noruega, Suécia, Rússia e França. Entre a classe engenheira nacional concluía-se que “os caminhos de ferro de via estreita parecem-nos pois chamados a resolver na maior parte dos casos a questão tão debatida dos caminhos de interesse local, e desenvolver em todos os districtos de qualquer paiz uma circulação rapida, regular e económica”066. No que não havia unanimidade era na bitola, pois havia-as para todos os gostos e necessidades. Estes alvitres e factos favoráveis à via reduzida, aliados a uma retoma das condições financeiras em Portugal nos primeiros anos da década de 1870, estimularam a apresentação de propostas concretas para a construção de caminhos-de-ferro em bitola reduzida. No primeiro lustro do decénio de 1870 foram dez os projectos apresentados: Simão Gattai (linha de Guimarães), Kessler e Ellicot (linha da Póvoa), Teixeira de Sampaio (linha de Portalegre), Luís Augusto Palmeirim (linha de Santana a São Martinho), Filipe de Carvalho (linha de Cacilhas), Albert Meister (linha do vale do Lima), Damião Pinto (idem), Camille Mangeon e Evaristo Nunes Pinto (linha entre Coimbra e a Figueira), grupo do conde de Penamacor (linha entre Lisboa e Torres Vedras) e uma proposta de lei incumbindo o governo da construção da linha do Corgo067. Destas, oito transformaram-se em concessões definitivas, mas só uma efectivamente se concretizou (a da linha do Porto à Póvoa, inaugurada em 1875 e construída com uma bitola de 90 cm). As demais revestiram-se de um carácter meramente especulativo. O proponente apenas desejava arrebatar a adjudicação para depois a vender a quem oferecesse mais, ficando eventualmente com um cargo confortável na 063
Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas. Junta Consultiva de Obras Públicas e Minas. Liv. 32 (1871): 280-299; liv. 32-A (1871): 1-8v. ASSOCIAÇÃO…, 1871-1872. CORDEIRO, 1870.
064
Revista de Obras Publicas e Minas, t. 4 (1873), n.º 40: 170-171.
065
Revista de Obras Publicas e Minas, t. 8 (1877), n.º 88: 176.
066
Revista de Obras Publicas e Minas, t. 6 (1875), n.º 70: 414.
067
PEREIRA, 2012a: 441.
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direcção da nova companhia. Outra razão para a baixa taxa de sucesso destas iniciativas foi a falta de apoios por parte do estado. Não eram concedidos nem subsídios à construção ou exploração, nem isenções fiscais (algo que só foi mudado com a lei de 9 de Abril de 1874, que isentava de taxas a importação de material de construção e exploração por parte de companhias não-subvencionadas068). Em compensação, o governo não exigia nenhum depósito de garantia nem impunha nenhum prazo de concessão nem condições para remição da linha. Porém, estas contrapartidas não foram suficientes para seduzir os empreendedores069. Na segunda metade da década, o entusiasmo refreou-se em virtude da crise bancária de 1876 e da teima do governo em não conceder subsídios a estes empreendimentos. Surgiram apenas seis novas propostas, duas delas como prolongamento da já existente linha da Póvoa e outras quatro para vias novas. A taxa de sucesso seria maior (dois daqueles projectos seriam realmente realizados – a extensão do caminhode-ferro da Póvoa a Famalicão e a ligação entre Guimarães e a linha do Minho), mas não ainda suficientemente alta070. Por isso os poderes públicos procuraram também atrair novos investimentos, através de instrumentos retóricos e de um alargamento das isenções fiscais. No parlamento, o conde de Valbom (Joaquim Tomás Lobo de Ávila) elogiava as potencialidades da via reduzida no apoio à rede de 1,67 m de bitola071; a junta consultiva de obras públicas aconselhava a construção de uma malha de ordem inferior em via estreita072; e o governo propunha ao legislativo a concessão de isenção da contribuição industrial por dez anos às companhias de caminho-de-ferro de bitola reduzida, em troca dos serviços gratuitos a que normalmente as sociedades subvencionadas estavam obrigadas (a lei de 7 de Abril de 1877 viria a conceder essa isenção, mas limitava-a às empresas já formadas, ou seja unicamente à que explorava a linha da Póvoa)073. Portugal tentava assim acompanhar o que se fazia no resto da Europa (a diversa legislação de França, Bélgica e Espanha saída entre 1875 e 1880), no entanto fazia-o de uma forma muito mais tímida. Em 1878, o ministro das obras públicas encomendou novos estudos a Xavier Cordeiro, que voltava assim aos périplos internacionais. No final da sua comissão, Cordeiro escreveu um verdadeiro tratado sobre este tipo de caminhos-de-ferro, justificando as suas vantagens e limitações e as condições em que deviam ser construídos. 068
Collecção Official de Legislação Portugueza, 1874: 42-43.
069
PEREIRA, 2012a: 441.
070
PEREIRA, 2012a: 442.
071
Diario da Camara dos Deputados, 14.1.1876, 24.1.1876, 28.3.1876 e 19.3.1877: 21, 111, 820-821 e 701.
072
Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas. Junta Consultiva de Obras Públicas e Minas. Cx. 18, parecer 6418 (7.1.1875); liv. 37-A, parecer de 26.12.1876.
073
Collecção Official de Legislação Portugueza, 1877: 55.
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Figura 5 – A Memoria ácerca dos caminhos de ferro de via reduzida de Xavier Cordeiro074
Também o engenheiro Sousa Brandão foi enviado à Suíça e a Itália, onde analisou os caminhos-de-ferro entre St. Gallen e Appenzell e o de Righi, ambos de bitola 074
CORDEIRO, 1879.
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Portugal na segunda metade do século XIX
métrica. Na primeira daquelas vias, a inclinação chegava aos 35,8 mm/m com curvas até 120 m de raio. Na linha italiana o declive atingia uns estonteantes 250 mm/m, que só eram vencidos através de um sistema de cremalheira com rodas e carris dentados. Para o engenheiro, estas vias-férreas só deveriam servir de incentivo à sua construção em Portugal, país onde não seriam necessárias condições tão draconianas: 20 mm/m de declive máximo e 150 m de raios de curva mínimos (associados a carris e locomotivas mais leves) eram valores perfeitamente praticáveis. É na sequência destes estudos que Sousa Brandão projectou a já referida rede interna a norte do Douro075. Figura 6 – Francisco Maria de Sousa Brandão
A via reduzida era encarada como uma forma de levar os benefícios da viação acelerada aos locais onde a via larga em teoria não chegava ou deixava de oferecer perspectivas de negócio, designadamente em territórios muito acidentados. Superava os americanos (carril de ferro assente directamente sobre uma estrada) por aplicar exclusivamente a tracção a vapor e poder transportar mais mercadorias e passageiros. Ficava aquém da via larga em termos de velocidade, capacidade de transporte e necessidade de baldeação e de maiores cuidados na exploração e serviço. Estas perdas eram, porém, compensadas com o menor custo de primeiro estabelecimento e com o facto de estes caminhos-de-ferro se destinarem a servir regiões onde as necessidades de transporte e de altas velocidades não fossem tão grandes. Dentro de certos limites, a redução da bitola (até aos 90 ou 100 cm) permitiria a flexibilização de declives e raios de curva (até ao máximo de 30 mm/m e de 120 metros, respectivamente), o uso de material tractor e circulante mais curto e ligeiro e o emprego de um carril mais leve sobre uma infra-estrutura menos profunda, do que resultava uma redução das despesas de instalação (o que levou a apelidar estes caminhos-de-ferro de económicos)076. 075
BRANDÃO, 1879a. BRANDÃO, 1879b. BRANDÃO, 1880.
076
BRANDÃO, 1879a. MACHADO, 1864. ASSENTIZ, 1910. SANTOS, 1889.
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A linha do Tua (1851-2008)
A poupança na sua construção não derivava propriamente da redução da bitola (que implicava em todo o caso travessas, obras de arte, trincheiras e aterros mais curtos), mas sim de se poder adaptar o seu traçado ao terreno sem perda substancial de capacidade de tracção. Entendia-se que “curvas de 300 metros de raio para a largura de via de 1,68 (sic) podem considerar-se equivalentes ás curvas de 260 metros de raio para largura de via de 1,45 (sic) ou ás curvas de ainda menos de 180 metros de raio, para os caminhos de ferro de via reduzida”077. A via estreita permitia a construção de trainéis mais inclinados e curvas mais apertadas e com isto podia levar à diminuição do número de obras de arte (pontes, viadutos, túneis) a edificar. Xavier Cordeiro computava em 36% a poupança em relação à via larga, coeficiente que tendia a aumentar à medida que os terrenos se tornavam mais acidentados078. A economia prolongava-se depois à exploração, graças ao menor peso dos vagões e à diminuição do peso morto (por permitir comboios mais curtos que em via larga). Tudo isto compensava o problema da baldeação, que, de qualquer modo, podia também ser uma necessidade em vias de bitola igual. Em contrapartida, os declives acentuados e os raios de curva reduzidos provocariam um maior consumo de combustível, uma menor velocidade e um maior desgaste do material fixo e circulante. A própria linha ficaria também mais comprida. Tudo ficava pois dependente das necessidades e características das regiões a servir. À partida, a via estreita seria a opção óbvia para linhas desligadas da rede geral ou que a ela se comunicassem somente por uma das suas extremidades; vias que atravessassem um terreno acidentado e servissem um tráfego potencial restrito; caminhos-de-ferro em que as rampas se inclinassem no sentido do principal movimento; situações em que o trânsito de passageiros predominasse; ou ocasiões em que as mercadorias fossem previsivelmente de fácil baldeação. No entanto, mesmo nestas circunstâncias podia ser admissível a escolha da via larga, que também podia ser assente de forma económica. Tudo dependia dos estudos, que, para Xavier Cordeiro, eram a maior economia que se podia fazer079. Na realidade, a montanha não era condição obrigatória para a escolha da via reduzida. As linhas do Douro e da Beira Alta constituem excelentes exemplos desta situação. Ambas se situam em zonas acidentadas, ambas possuem variadíssimas obras de arte, ambas ostentam condições de tracção restritas e ambas foram construídas em bitola larga de 1,67 m. O caminho-de-ferro do Douro segue na maior parte da sua ex077
Arquivo Histórico do Ministério das Obras Pública. Junta Consultiva das Obras Públicas e Minas. Cx. 18, parecer 6418 (7.1.1875): 26.
078
CORDEIRO, 1879.
079
Arquivo Histórico do Ministério das Obras Pública. Junta Consultiva das Obras Públicas e Minas. Liv. 32 (1871): 280-299; liv. 32-A (1871): 1-8v. ASSOCIAÇÃO…, 1871-1872. Revista de Obras Publicas e Minas, t. 6 (1875), n.º 63: 154-156. CORDEIRO, 1879. SANTOS, 1889.
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Portugal na segunda metade do século XIX
tensão o vale do rio (o que não significa facilidades de construção, pois mesmo aqui foi necessário abrir muitos túneis), mas até lá chegar tem que atravessar uma zona desnivelada com muitos túneis e viadutos. O mesmo se pode dizer da linha da Beira Alta que atravessa uma das províncias mais abruptas do país e nem sempre acompanha a passagem deixada pelo Mondego. Contudo, em nenhum dos casos se optou pela bitola estreita (e a construção do caminho-de-ferro da Beira Alta foi iniciada em 1878 quando muito já se sabia sobre via reduzida), uma vez que ambas as linhas eram consideradas de primeira importância na rede, às quais se augurava um volumoso tráfego. A linha da Beira Alta era mesmo considerada na altura da sua construção como o mais importante caminho-de-ferro nacional por ligar Lisboa à fronteira francesa pelo percurso mais curto e directo. Por outro lado, a linha da Póvoa assente no litoral não atravessava uma região que se pudesse considerar demasiadamente acidentada, mas nem por isso foi construída em via larga. Os investidores optaram pela via estreita como forma de diminuir os custos da construção, um factor muito importante para um empreendimento que não contava com qualquer tipo de apoio por parte do estado. Apesar dos esclarecimentos e asseverações de Xavier Cordeiro e Sousa Brandão, a iniciativa privada continuava desinteressada destes investimentos. A especulação em torno de grande parte das concessões adjudicadas, o fraco desempenho económico-financeiro da Companhia do Caminho de Ferro do Porto à Póvoa e Famalicão, os problemas legais enfrentados pela companhia da linha de Guimarães (com o anterior concessionário e empreiteiro desta via-férrea) desincentivavam o investimento nos moldes usados até então (sem subsídios) e nem os bons exemplos vindos do estrangeiro (Espanha, Noruega, Suécia, Brasil, Estados Unidos da América e até Nova Zelândia) inverteram essa situação080. O governo viu-se assim forçado a abrir os cordões à bolsa caso desejasse realmente ter caminhos-de-ferro de via reduzida. O primeiro beneficiado desta nova política seria um grupo de capitalistas ingleses liderado pelo duque de Sutherland que se propunha a construir um caminho-de-ferro de via reduzida em… Goa, na Índia Portuguesa. Tratava-se de uma ferrovia que deveria ligar o porto de Mormugão a Castle Rock na fronteira com a Índia Britânica, sendo obviamente depois continuada até se ligar à rede já existente, e à qual o governo atribuiu em 1880 e 1881 uma garantia de juro 5% sobre 800 mil libras e 6% sobre 550 mil libras. Em teoria todo o sul da península indiana ficaria assim com uma saída de mar mais próxima do que Bombaim, situada mais para norte na costa. Havia dois problemas à prossecução deste projecto: em primeiro lugar o dinheiro que o Stafford House Committeee (o grupo de investidores britânicos) não tinha. Em segundo a vasta e acidentada cadeia montanhosa que 080
ROPM, t. 14 (1883), n.º 157: 25; t. 15 (1884), n.º 169: 65.
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A linha do Tua (1851-2008)
se elevava paralelamente à costa a cerca de 45-80 km de distância de Mormugão – os Ghats Ocidentais (ou cordilheira Sayhadri). Mapa 8 – A linha de Mormugão e a rede da Índia Britânica 081
081
Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas. Mapas e Desenhos, C-1-10-B.
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Portugal na segunda metade do século XIX
Os Ghats não são montanhas muito elevadas (os seus picos situam-se entre os 300 e os 900 metros acima do nível do mar), mas elevam-se muito abruptamente com declives muito acentuados e com poucos desfiladeiros ou pontos de passagem. Ao contrário do que viria a acontecer no Tua e em outras linhas de bitola estreita portuguesas, em Goa não havia nenhuma passagem natural formada por um rio onde os carris pudessem ser colocados. Seria positivamente necessário furar a rocha numa extensão de algumas dezenas de quilómetros. Além do mais a zona dos Ghats era e é uma região subtropical, quente, densamente florestada e povoada por animais selvagens, sujeita às monções e altamente propícia a doenças. Era um extraordinário desafio para os engenheiros que teriam que planificar e dirigir a construção e sobretudo para os operários a quem caberia a abertura do leito e o assentamento dos carris. Seria um desafio que proporcionaria ainda inaugurar uma política de investimentos em caminhos-de-ferro de via reduzida; aplicar os conhecimentos recolhidos por Xavier Cordeiro, que foi mesmo enviado para a Índia como fiscal do governo para supervisionar os estudos no terreno e a construção da via; e obviamente acumular experiência na construção de caminhos-de-ferro de via reduzida em terrenos montanhosos. Figura 7 – Aspecto do porto de Mormugão antes do início da construção082
082
MENDES, 1989, vol. 1: 202-203.
29
A linha do Tua (1851-2008)
Os estudos foram feitos pela companhia concessionária (a West of India Portuguese Guaranteed Railway Company, que contratou o engenheiro Edward Sawyer e a empresa Hawkshaw, Son & Hayter) devidamente acompanhados por Xavier Cordeiro, que, fiel ao seu conselho de não optar pela via reduzida simplesmente por se ter que atravessar uma zona de montanhas, alvitrou que a linha devia ser construída em bitola larga, uma vez que se poderia esperar um volumoso tráfego vindo da Índia Britânica – uma visão excessivamente optimista. Contudo, o governo português não estava disposto a suportar um orçamento muito elevado (sobre o qual recaía a garantia de rendimento oferecida por Portugal à West of India) e acabou por optar pela via reduzida, no que foi secundado pelo governo da Índia Britânica, responsável pela continuação do caminho-de-ferro no seu território. A construção iniciou-se em finais de 1881 e revelou-se um empreendimento extraordinariamente difícil sobretudo na cordilheira dos Ghats: clima febril, acompanhado de péssimas condições sanitárias num cenário de floresta densa. Foi necessário erigir sete pontes e cinco viadutos e abrir 12 túneis nas montanhas, onde os trabalhadores tinham que estar atentos aos tigres que povoavam a região. Dentro dos túneis o ar era normalmente bafiento e doentio, o que ceifava a vida a muitos dos operários. Além disto, nas montanhas só era possível trabalhar durante seis meses em cada ano, por causa das monções. Muitas vezes, quando os construtores regressavam tinham que refazer alguns dos trabalhos, pois as chuvas tinham-nos destruído. Nestas condições era difícil contratar pessoal suficiente para a obra. Figura 8 – Aspecto da linha de Mormugão atravessando as cataratas de Dudhsagar em 1929 (à esquerda) e actualmente (à direita)083
Tudo isto acabou por atrasar a obra e por levar à demissão de Xavier Cordeiro que se sentiu lesado por declarações menos abonatórias do ministro português da marinha e ultramar. Cordeiro regressou a Portugal, sendo empregado pela Companhia 083
DIAS, 1929.
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Portugal na segunda metade do século XIX
Real dos Caminhos de Ferro Portugueses, e foi substituído em Goa por Fernando Luís Mouzinho de Albuquerque que sempre revelou um excesso de zelo na condução das suas tarefas de fiscalização, acabando também por se envolver em disputas desnecessárias com a companhia e assim atrasar a entrega da obra e a abertura da linha, o que veio a acontecer em Janeiro de 1888. No final, Goa passou a dispor de uma linha com 82 km em que 40% do traçado era em curva e 65% em declive; os comboios circulavam a uma média de 27 km/h fora da secção dos Ghats e a uma média de 13 km/h nos Ghats, onde aliás era necessário usar duas locomotivas (uma à frente e outra atrás no percurso ascendente; duas à frente no percurso descendente). O empreendimento acabou por se revelar um fracasso para Goa e para Portugal, porque poucas eram as mercadorias que buscavam o porto de Mormugão. Já para a West of India foi um sucesso pois tinha um rendimento garantido de 6% sobre a totalidade do capital investido. A responsabilidade desta situação não pode ser atribuída à bitola da via, que contudo limitava seriamente as capacidades de transporte da mesma. Outros factores mais importantes como a falta de ligações directas por navios a vapor entre Mormugão e a Europa ou o desinteresse das companhias britânicas em lidar com um caminho-de-ferro em território estrangeiro (com moeda, língua e procedimentos diferentes) justificam de forma mais completa o fracasso da linha de Mormugão084. Voltando um pouco atrás no tempo, mais precisamente cinco anos, até 1883, no parlamento nacional discutia-se uma proposta de lei destinada a autorizar a construção mediante garantia de juro sobre um capital fixo das linhas da Beira Baixa, Tua e Dão (ramal de Viseu), as duas últimas em bitola estreita. Depois de reconhecer a necessidade de financiamento de vias-férreas no ultramar, o mesmo governo que decretara o auxílio à linha de Mormugão concedia um novo apoio aos primeiros caminhos-de-ferro de montanha em bitola estreita em Portugal: no vale do Tua e no vale do Dão. O processo seguiu os trâmites habituais desde a apresentação da proposta ao legislativo e sua aprovação, abertura de concurso (ganho na parte referente às linhas de via estreita pelo conde da Foz, que brevemente formaria a Companhia Nacional), início da construção e inauguração dos novos serviços (1887 para a linha do Tua, 1890 para o ramal de Viseu)085. Inauguradas estas três ferrovias (Mormugão, Tua e Viseu), seria de esperar que outros se lhes seguissem, porém não foi isso que aconteceu. Chegaram algumas propostas ao ministério das obras públicas para a construção de caminhos-de-ferro de via reduzida sem custos para o estado (designadamente a ligação de Fafe a Guimarães e a linha de Coimbra a Arganil). No parlamento, alguns deputados do vale do 084
Sobre o caminho-de-ferro de Mormugão, ver: KERR & PEREIRA, 2012.
085
PEREIRA, 2012a.
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A linha do Tua (1851-2008)
Corgo procuraram dotar a sua região de caminhos-de-ferro de via estreita. O próprio governo apresentou uma proposta de lei para complementar a rede ao norte do Mondego, mas nenhuma destas iniciativas se concretizaram no curto prazo. Mapa 9 – Proposta governamental de Junho de 1888 para complementar a rede férrea a norte do Mondego086
A construção e inauguração daquelas linhas ocorreram no período final do fontismo, pouco antes da bancarrota de 1892, que abriu as portas a uma década de austeridade e corte na despesa e no investimento público087. As empresas que detinham e operavam vias-férreas de bitola reduzida (e não só) passavam por sérias dificuldades financeiras: no caso da Companhia Nacional, a garantia de rendimento paga pelo estado não chegava para cobrir o prejuízo, uma vez que a construção custara mais do que o orçamentado (e não esqueçamos que a garantia de juro era apenas e só sobre o custo orçamentado). Só a West of India soube precaver-se desta situação ao exigir do estado uma garantia de juro sobre o total do capital gasto no projecto. Tudo isto fazia 086
Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas. Mapas e Desenhos, C-32-7-B.
087
PEREIRA, 2012b.
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Portugal na segunda metade do século XIX
com que a angariação de capital se tornasse cada vez mais difícil: o estado esgotara a sua capacidade de apoio ao investimento e das poucas companhias que aceitavam construir sem a garantia do estado, nenhuma conseguia convencer os prestamistas a abrir os cordões à bolsa e financiar a obra. No final do fontismo, Portugal Continental contava apenas com quatro linhas de via reduzida (Porto – Póvoa – Famalicão, Tua, Guimarães e Viseu), que, desligadas entre si, não constituíam um serviço em rede e só de forma muito frágil complementavam o serviço prestado pela malha de via larga. Mapa 10 – As linhas de via estreita do Porto à Póvoa e Famalicão e de Guimarães e projectos para as suas extensões088
A demora com que a rede de primeira ordem se constituiu, o débil desempenho das companhias que se constituíram até à década de 1880 e a falta de capacidade pública para subvencionar investimentos privados em grande escala nesta área motivaram esta situação, apesar de do estrangeiro chegarem a Portugal, através de diversos periódicos da especialidade, notícias de boas explorações de linhas de via reduzida.
088
Arquivo histórico-diplomático. Ligações por intermédio de pontes.
33
Cx. 38, mç. 8, doc. 281.
A linha do Tua (1851-2008)
1.3. VIAJAR EM PORTUGAL E NO INTERIOR TRANSMONTANO Maria Otília Pereira Lage089 Albano Viseu090 Hugo Silveira Pereira091 O principal problema nacional a solucionar com a estratégia de melhoramentos materiais encetada na segunda metade do século XIX foi o do subdesenvolvimento do sistema de transportes e vias de comunicação, que, até à regeneração, era apodado de africano por Oliveira Marreca092. Em 1748, foi publicado um guia de itinerários terrestres, editado por João Baptista de Castro. Este roteiro foi reeditado e aumentado sucessivamente até 1844, podendo-se afirmar que entre a primeira e a última versão o número de estradas novas é insignificante093. Quase não existiam rodovias e as que existiam eram de má qualidade, inseguras e atacadas amiúde por salteadores, de tal modo que “um companheiro de jornada confessou ter feito testamento e encomendado a alma a Deus, antes de se afoitar àquela arriscada empresa de transmitir os ossos aos eixos da mala-posta e confiar a vida aos prováveis assaltos dos pinhais e despenhadeiros de duas noites entre Lisboa e Porto”094. 089
Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória (Faculdade de Letras da Universidade do Porto).
090
Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória (Faculdade de Letras da Universidade do Porto).
091
Centro Interuniversitário de História da Ciência e da Tecnologia (Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa).
092
Apud. MACEDO, 2009: 122.
093
MATOS, 1980: 25. Ver também ABREU, 2011: 81.
094
Apud. GAIO, 1957: 26. Ver também ABRAGÃO, 1955-1960. ALEGRIA, 1990. BETTENCOURT, 1959.
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Portugal na segunda metade do século XIX
Viajar dentro do reino era assim difícil, moroso e perigoso, de tal modo que alguns autores estrangeiros consideravam as diferentes localidades como reinos separados095. No século XVIII, M. Link considerava que “a Portugal, só o que falta são estradas e canais”096. Cem anos depois, em 1882 um escritor franco-polaco – Bronislaw Wolowski – ainda afirmava que Portugal “est un pays aussi inconnu en Europe que la Chine”097 em virtude da falta de vias de comunicação. Para o autor português Cláudio Adriano da Costa, a falta de estradas era mesmo a principal causa para a degradação do sexo feminino, pois à falta de vias onde pudessem circular carros, cabia às mulheres os trabalhos de transporte mais pesados098. A situação não era exclusiva de Portugal, sendo partilhada, grosso modo, pelos países do sul da Europa, sobretudo Espanha. No país vizinho, em meados do século XIX, eram poucos os “arrieros, carreteros o cocheros que al ponerse en camino no se santigüen, murmuren alguna oración, pocos los que no lleven alguna reliquia o escapulario”099,tal era o receio em percorrer os caminhos castelhanos. Em Espanha, a falta de investimento público durante o absolutismo no sector dos transportes terrestres, o relevo acidentado, a instabilidade política no dealbar do regime liberal e a impotência da fazenda pública impediram o desenvolvimento da sua rede viária. As mesmas razões podem ser apontadas para o sector dos transportes português. Apesar disto, Espanha estava mais bem servida de estradas que Portugal, mas ambas as nações estavam ainda muito longe da realidade francesa ou inglesa100. Em Portugal, em 1852, a única via de comunicação com alguma qualidade era a estrada entre Lisboa e Coimbra (iniciada cerca de 1780 e concluída em 1798), mas mesmo assim era preferível tomar o barco do que seguir por essa estrada, que na década de 1840 era frequentemente alagada101. Contudo, quem quisesse ir da capital ao Porto por via marítima teria que esperar que o mar estivesse calmo e que a barra do Douro estivesse aberta. Não podia também ter muita pressa, pois a viagem demorava 20 horas. Por terra podia-se demorar até quatro a cinco dias. Para outros pontos do país a situação era igual: a viagem de Lisboa a Elvas, Algarve ou Bragança ou a subida do Douro desde o Porto até ao Pinhão era jornada para durar vários dias.
PEREIRA, 2010. SOUSA 1941. 095
MATOS, 1980: 29-30.
096
Apud. ABREU, 2011: 90.
097
WOLOWSKI, 1883: 1. Ver também PEREIRA, 2012a.
098
Apud. MATOS, 1980: 30.
099
Apud. GÓMEZ MENDOZA, 1989: 35.
100
COMÍN COMÍN et al., 1998, vol. 1: 2-11. GÓMEZ MENDOZA, 1982: 21-22 e 24-25. GÓMEZ MENDOZA, 1989: 35-36. GÓMEZ MENDOZA, 1991: 104-108. HERTEN et al, 2001: 34.
101
ALEGRIA, 1981: 359-360.
35
A linha do Tua (1851-2008)
Mapa 11 – Tempo de demora do correio em 1810 (à esquerda) e 1874 (à direita)102
As mercadorias circulavam assim num raio reduzido, excepto em zonas onde houvesse algum interesse imediato a explorar. Era mais viável o transporte fluvial ou de cabotagem do que o transporte terrestre até ao e no interior. Mas mesmo aquele não era desprovido de dificuldades. Os rios tinham um regime irregular, secavam durante o Verão e tornavam-se revoltos durante o Inverno, tinham a foz assoreada e estavam pejados de dificuldades à navegação. Em todo o caso, eram a principal via de comunicação entre o litoral e o interior. A região vinhateira duriense era servida pelo Douro. Uma vasta área que se estendia desde a Figueira da Foz até à Covilhã aproveitava-se do Mondego. O Tejo dava vazão aos produtos de grande parte da Estremadura e do Ribatejo, do Alto Alentejo e da Beira Alta (a sul da Guarda). Pelo Sado, escoavase muito do cereal alentejano. Considerando a insuficiência de estradas e a relativa rapidez, baixo custo e facilidade de deslocação de grandes cargas que proporcionavam, foram os rios que permitiram um maior alargamento do mercado, muito embora 30 a 102
ALEGRIA, 1990: 127. Apud. PACHECO, 2004: 97.
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Portugal na segunda metade do século XIX
40% do território nacional, incluindo áreas de considerável especialização agrícola, não tivesse acesso a cursos fluviais. Na primeira metade do século XIX, procurou-se melhorar e desenvolver a navegabilidade dos rios nacionais. Introduziu-se o barco a vapor no Tejo (1821), iniciou-se a construção do canal da Azambuja (1822), planeou-se a construção de outros canais de ligação entre Sado, Tejo e Guadiana e entre Douro e Vouga e fizeram-se obras em alguns leitos. Contudo, os resultados ficaram muito aquém das necessidades do país e a navegabilidade fluvial manteve-se limitada, sazonal, errática e insegura103. Os portos não se encontravam melhores, apesar de o mar ser a opção preferida para o transporte de mercadorias e passageiros para outros países e mesmo entre cidades nacionais costeiras. As principais barras portugueses encontravam-se em condições deficientes. A falta de investimento tinha levado ao assoreamento de algumas delas (situação agravada pelo aumento do calado dos navios) e a inexistência de faróis dificultava a navegação ao longo da costa. No século XVIII e primeira metade do século XIX, muitas foram as propostas de melhoramento, mas poucas foram as realizações e nem a introdução da carreira a vapor entre Lisboa e Porto mudou sobremaneira a situação. Na segunda metade de oitocentos, a navegação de cabotagem conheceu francas melhorias, graças à realização de obras nos portos e faróis104. Fosse como fosse, as vias de comunicação terrestres eram as que mais necessitavam de investimento. Já durante o regime absolutista se tinham aberto algumas estradas, mas estas não conseguiram suprir as precisões do reino. Os liberais, cônscios desta realidade, que limitava a circulação de pessoas e bens e comprometia a actividade económica, procuraram alterar a situação. Em 1835, foi nomeada uma comissão de melhoramentos da comunicação interna. Devia elaborar um plano geral de estradas, pontes, encanamentos, canais e portos, de acordo com os recursos disponíveis105. Em finais da década de 1830 começaram a gizar-se as bases para uma política de estradas à escala nacional, integrada com a navegação fluvial e costeira. Mouzinho de Albuquerque e a inspecção-geral de obras públicas realizaram vários estudos preparatórios, dentro das limitações com que se confrontavam. No final, aquilo que realmente foi feito ficou aquém do esperado por falta de recursos financeiros e excesso de instabilidade política. Na década de 1840, com Costa Cabral, notou-se um incremento no esforço de desenvolvimento das vias de transporte terrestre. Surgiram as sociedades promotoras das comunicações internas do reino e dos interesses materiais da nação, que deveriam sugerir ao governo os meios para construir estradas. Tentou-se também colocar 103
ALEGRIA, 1990. GASPAR, 1970: 70. JUSTINO, 1988-1989: 189. SERRÃO, 1962: 269. SERRÃO et al., 1999-2000, vol. 6.
104
ALEGRIA, 1990.
105
MATOS, 1980: 39.
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o país na rota dos melhoramentos materiais, fazendo da construção de estradas macadamizadas, quer por acção directa do estado, quer pela contratação de empresas construtoras (o modelo preferido, por se entender mais simples e económico), uma das prioridades políticas para acabar com o atraso económico de Portugal (propostas de lei de 26 de Julho de 1843 e de 9 de Agosto de 1848). Mapa 12 – Estradas propostas pelo governo de Costa Cabral em 1843 (à esquerda) e 1848 (à direita)106
No entanto, os concessionários raramente tinham dinheiro para cumprir o contrato, sendo as concessões canceladas ou abandonadas antes do início dos trabalhos. Demais, não havia em Portugal nem mão-de-obra qualificada nem recursos técnicos suficientes, faltando ainda o levantamento topográfico do terreno. Por outro lado, as companhias promovidas por Costa Cabral não passavam de projectos especuladores, que tinham como fim recompensar os seus apoiantes políticos. O mais flagrante exemplo deste tipo de empresas foi a Companhia de Obras Públicas de Portugal, que chamava a si o exclusivo das iniciativas respeitantes às comunicações internas. Apesar de estatutariamente contar com um capital de 20 mil contos, só 8 mil foram efectivamente angariados. Destes, apenas mil foram disponibilizados para o investimento, que seria aliás caracterizado por uma enorme falta 106
Apud. PACHECO, 2004: 105.
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Portugal na segunda metade do século XIX
de rigor. A primeira queda de Costa Cabral arrastou consigo a companhia, que não conseguiu realizar nada daquilo a que se propusera107. Mapa 13 – Representações cartográficas de Trás-os-Montes e Alto Douro em finais do século XVIII108
A construção sistemática de estradas teve que esperar pelo biénio 1849-1850. A 22 de Julho de 1850 era aprovada uma lei sobre a moderna rede nacional de estra107
FINO, 1876: 18-19, 24-25 e 29-37. MACEDO, 2009: 126. MATA, 1999. PINHEIRO et al., 2011: 41.
108
Biblioteca nacional digital, purl.pt/1380. MATOS, 1980, mapa VIII – Carta topográfica da província de Trásos-Montes, compreendida entre o Douro e o Sabor até Bragança.
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das, que regulamentava e sistematizava a sua construção. A segunda queda de Costa Cabral colocou um entrave a este trabalho, que contudo ainda produziu 200 km de rodovias até ao início da regeneração e “tornou dominante a corrente de opinião que defendia que o essencial era desenvolver os meios de comunicação e possibilitar o investimento de capitais”109. Fontes Pereira de Melo retomou assim o esforço cabralista. Para tal, o governo recorreu ao crédito, mas a falta de meios técnicos e humanos impôs um baixo ritmo à construção. Mapa 14 – Sistemas gerais de comunicação do reino de 1854 (à esquerda) e 1862 (à direita)110
Por outro lado, o caminho-de-ferro sempre reuniu as principais preferências do investimento, muito embora o seu alcance fosse limitado sem estradas. Do ponto de 109
PINHEIRO, 1983: 52.
110
Biblioteca nacional digital, purl.pt/3407; purl.pt/6275.
40
Portugal na segunda metade do século XIX
vista económico, político e sobretudo simbólico, a ferrovia era um investimento muito mais espectacular e imponente que uma mera estrada. A partir de meados da década de 1860, e por pressão das companhias concessionárias de caminhos-de-ferro, investiu-se mais em estradas de acesso às vias-férreas existentes. Contudo, no final do século uma grande parte do país continuava sem cobertura rodoviária, apesar de se terem construído mais de 12 mil km de estradas de macadame111. * Se a nível nacional, em meados do século XIX, o estado dos transportes era mau, em Trás-os-Montes, a situação era péssima. O relevo das regiões a norte do Tejo sempre dificultou as comunicações terrestres para o interior. Trás-os-Montes em particular era composto por “montes mui altos (…) tão altos, que em muitas tem huma legua de subida de mui aspera terra”112. Os obstáculos orográficos fomentaram o isolamento geográfico. Juntamente com a fraca densidade populacional e o baixo dinamismo económico do interior transmontano, aqueles factores serviram de justificação para uma maior ausência de investimento no desenvolvimento vial da região, malgrado as recomendações das autoridades locais113. Em 1790, o corregedor de Torre de Moncorvo, José António de Sá, lamentava-se nos seguintes termos: “achei toda a comarca no estado mais lamentavel a este respeito principalmente as estradas, as quaes não se tendo concertado em tempo algum estavão cheias de fragas, e penedia com descidas precepitadas denegando tranzito às carroagens, e dando o perigozissimo aos viajantes de cavallo, tudo com grave damno da agricultura, e comercio. Igualmente havia falta de pontoens para a passagem de rios, e regatos caudelosos; e pontes notaveis que noutro tempo se construirão a grande custo, se hião arruinando por falta de concerto”114. Em 1796, Columbano Ribeiro de Castro, juiz demarcante da província de Trás-os-Montes fazia “considerações várias sobre a estrada do Marão que julgava a mais áspera da província e talvez do Reino” e sobre a estrada nova que, passando por Mesão Frio, ligava o Porto às terras do Douro e cidade de Lamego. Em vão115. Vinte anos depois, em 1818, no nordeste transmontano, só Bragança e Miranda estavam incluídas no mapa das comunicações postais portuguesas.
111
ALEGRIA, 1990. PINHEIRO, 1983: 53 e ss. VALÉRIO, 2001: 361-363.
112
CASTRO, 1844: 161.
113
MATOS, 1980: 16 e 18.
114
Apud. ABREU, 2011: 98.
115
MENDES, 1981: 104.
41
A linha do Tua (1851-2008)
Mapa 15 – Comunicações postais em Portugal em 1818116
Tinha-se, contudo, consciência de que era necessário melhorar a rede rodoviária nacional no interior. Em 1781, Miguel Pereira Pinto Teixeira preconizou a construção de várias estradas, uma das quais ligava o Porto a Bragança (passando por Penafiel, Amarante, Vila Real e Mirandela). Contudo, nenhuma estrada deste plano foi efectivamente aberta117. Nos anos seguintes, surgiram mais diplomas legais que visavam o desenvolvimento da rede rodoviária transmontana, debalde118. Nos inícios do século XIX, segundo Adrien Balbi, as comunicações eram mais fáceis e rápidas entre Lisboa, as ilhas da Madeira e dos Açores e alguns portos da Europa do que entre a capital e as cidades transmontanas de Chaves e Bragança119. Em 1846, o governo recomendou à Companhia das Obras Públicas que iniciasse as obras nas províncias do Algarve, Alentejo e Trás-os-Montes (estrada de Vila Real a Amarante)120. No entanto, mais uma vez, nada efectivamente foi feito.
116
Apud. PACHECO, 2004: 98.
117
MATOS, 1980: 32-33.
118
ABREU, 2011: 91-92.
119
Apud. MATOS, 1980: 29.
120
MATOS, 1980: 183.
42
Portugal na segunda metade do século XIX
Mapa 16 – Representações cartográficas de Trás-os-Montes e Alto Douro em inícios do século XIX121
121
Biblioteca nacional digital, purl.pt/1586. MATOS, 1980, mapa I – Carta militar das principais estradas de Portugal.
43
A linha do Tua (1851-2008)
Em termos fluviais, era possível navegar o Douro até Barca de Alva desde inícios do século XIX. Todavia, o normal era não passar de Foz-Tua, limite do principal comércio de vinho da região122. O porto fluvial de Foz-Tua ganhara alguma predominância deste a delimitação pombalina da região do Douro. À foz do Tua chegavam barcos rabelos carregados de produtos necessários a Trás-os-Montes: arroz, peixe fresco e salgado, especiarias, fazendas, calçado, mobiliário e tudo o que a região precisava e não produzia. Do Tua, partiam barcos carregados com cereais, vinho, azeite, seda, madeiras, cânhamo, variadas carnes, peles curtidas, entre outras coisas123. A montante de Foz-Tua, porém, manteve-se um grande subdesenvolvimento económico, social e cultural que tem de ser observado nas suas especificidades próprias, conforme descrição geral da província de Trás-os-Montes, à época124. Em 1876, o visconde de Vila Maior reiterava que “pode dizer-se que nos 35 Kilometros que separam a foz do Agueda das penedias do Cachão da Valleira, o aspecto geral do paiz denuncia um grande atrazo agricola”125. O Douro era assim o principal vector de entrada na província transmontana, apesar de apenas servir a sua orla sul. À medida que se avançava para norte do Douro, as dificuldades de transporte e comunicação cresciam. Entre 1852 e 1880, os distritos de Bragança e Vila Real eram os que menos haviam sido dotados de estradas. Em média, cada distrito nacional naquele período viu crescer a sua rede rodoviária em 437,7 km. Bragança e Vila Real estavam abaixo da média e na cauda nacional, com 226,8 km e 294,3 km, respectivamente. Nenhum outro distrito tinha valores tão baixos. Comparando-se a extensão da rede rodoviária distrital (inclui estradas reais, distritais e municipais) com a superfície dos distritos respectivos, nota-se que Bragança apresentava um coeficiente de 3,4 km/10 mil ha, só se superiorizando a Beja. Vila Real ostentava um valor mais elevado (6,7), mas mesmo assim abaixo da média nacional (8,3). Em termos de população servida pelas estradas, tanto Vila Real como Bragança tinham os valores mais baixos do país (12,7 e 12,9 km/10 mil habitantes), respectivamente, muito abaixo da média geral nacional (17,1)126. No caso particular do vale do Tua, só existiam duas pontes cruzando aquele rio: uma em Mirandela (considerada “excelente”127) e a outra em Abreiro (a antiga ponte do Diabo, obra de grande dimensão em comprimento e em altura, construída na Idade Média e destruída pelas grandes cheias de 1909). Na margem direita, conserva-se 122
MATOS, 1980: 267.
123
MORAIS, 2013. VENCESLAU, 2014. VISEU, 2007: 290.
124
MENDES, 1981.
125
VILA MAIOR, 1876.
126
ABREU, 2011: 84.
127
Apud MENDES, 1981:104
44
Portugal na segunda metade do século XIX
ainda um trecho com cerca de 2 km de uma calçada medieval, que ligava Abreiro à ponte do Diabo, presumivelmente parte da estrada real que fazia a ligação entre Torre de Moncorvo e o Porto, passando por Abreiro, Vila Flor e Murça128. Genericamente, os transmontanos viam-se forçados a servir-se de caminhos “tão mal formados [que] oferecem tantos perigos a cada passo, que nos das montanhas, além de não darem passagem em muitas partes a carruagens, não he raro acharem-se homens mortos, por se terem precipitado em despenhadeiros”129. As acessibilidades baseavam-se em caminhos pedonais que serpenteavam por entre a região. As estradas (na sua maioria, de terra batida) escasseavam e ligavam apenas as povoações mais importantes130. A situação da rede vial no nordeste do reino era assim, nas vésperas da chegada do caminho-de-ferro ao coração de Trás-os-Montes, desesperada, reforçando a ideia de afastamento e isolamento da província. De tal modo assim era que “o maior terror que póde inspirar-se a um funccionario qualquer, civil ou militar, é ameaçal-o com uma transferencia para Bragança. Suppõe-se que Bragança é a Siberia”131. * Falar da evolução das vias de comunicação terrestres e do modo de viajar na província transmontana em específico antes da chegada do caminho-de-ferro não se afigura tarefa fácil, uma vez que as fontes descritivas desta realidade não abundam. As principais obras para este estudo são as teses de doutoramento de Artur Teodoro de Matos e de Carlos d’Abreu, que citam e analisam algumas fontes que descrevem como era viajar até e em Trás-os-Montes. Matos analisou o Roteiro terrestre de Portugal em que se expõem e ensinam por jornadas summarias não só as viagens e as distancias que ha de Lisboa para as principais terras das provincias deste reino, mas as derrotas por travessia de umas e outras povoações d’elle de João Baptista de Castro (1748, reeditado e aumentado sucessivamente até 1844); os itinerários militares levantados em 1845 por Belchior José Garcês; a Memoria sobre a construção de estradas em Trás-os-Montes, offerecida pelo sr. Belchior José Garcez, e apresentada pelo Sr. Deputado Domingos Manoel Pereira de Barros em 1842; e a Memoria Economico-Politica em que, primo se faz ver que o fomento da Agricultura em geral deve occupar as primeiras vistas do Ministerio132. 128
VENCESLAU, 2014.
129
COSTA, 1789: 105 e 396-397.
130
ABREU, 2011: 105.
131
Diario da Camara dos Deputados, 23.2.1880: 542 (Pires Vilar). Ver também CALIXTO, 1965. GAIO, 1957: 24. MACEDO, 2009: 188. MÓNICA, 1996. TEIXEIRA, 1956: 31.
132
MATOS, 1980: 90.
45
A linha do Tua (1851-2008)
Com base neste acervo documental, Artur Teodoro de Matos compilou um conjunto de rotas para e dentro da província de Trás-os-Montes (1750-1850), identificando ainda dados particulares que os viajantes da altura deveriam ter em atenção. Mapa 17 – Percursos terrestres para Trás-os-Montes e dentro da província (itinerários a preto, estalagens representadas com um E, barcas de passagem identificadas com uma bola preta e pontes designadas por | |)133
Assim, de Lisboa a Torre de Moncorvo percorria-se uma distância de 61 léguas, passando-se cerca de 20 ribeiras, quase todas com ponte, sendo que as estalagens neste percurso eram sofríveis134. Dentro da província, quem viandasse de Moncorvo até Bragança atravessava à saída da primeira localidade o rio Sabor através de uma ponte de pedra com sete arcos, 625 palmos de comprimento (cerca de 137,5 m) e 22 (5 m) de largura. Seguiam-se “onze ribeiras, que se passão sem perigo, huma das 133
MATOS, 1980: 85-90; mapa II – Levantamento dos itinerários de Portugal.
134
CASTRO, 1844: 163.
46
Portugal na segunda metade do século XIX
quaes se chama a Villariça, que he quando se vae da Junqueira para S. Comba”135. Neste percurso existiam boas hospedarias. Na Junqueira o viajante dispunha de duas estalagens onde podia comprar vinho e comida. Entre a Trindade e Bornes, existiam também boas estalagens. Se de Bragança, o peregrino pretendesse dirigir-se a Chaves percorria um caminho muito movimentado, mas de trânsito difícil em alguns pontos. O rio Tuela era cruzado em Soeira através de ponte de alvenaria com dois arcos. Em Vale de Armeiro cruzava-se o rio do mesmo nome136 por uma ponte de madeira, assente em pilares de alvenaria. O turista era forçado depois a virar para sudoeste em direcção a Valpaços, onde existiam em 1845 três estalagens. Daqui seguia novamente para norte até Vilartão, virando para oeste em direcção a Chaves, cruzando uma ponte de alvenaria de 16 arcos sobre o Tâmega. Por fim, refira-se um outro roteiro transmontano entre Vila Real e Mirandela, no qual se cruzavam três pontes, todas de cantaria: uma em Alvites; a segunda sobre o Tinhela entre Cadaval e Murça; a terceira, de 20 arcos, em Lamas de Orelhão137. Uma outra fonte datada de 1845 (um reconhecimento militar feito pelo capitão Belchior José Garcês Sobral) confirma as dificuldades de circulação desta feita no eixo entre o Pocinho e Lagoaça, como já em 1844 o mesmo autor o fizera para o itinerário de Mesão Frio a Freixo de Espada à Cinta. O primeiro ponto de passagem relevante era Torre de Moncorvo, que distava cerca de 13,5 km do Pocinho. Esta distância era vencida por um caminho de 12 a 28 palmos (2,6 a 6 m138) de largura em pouco mais de duas horas (média de 6,75 km/h). De Moncorvo o capitão Sobral seguiu para Cabeço de Mula, onde chegou 113 minutos depois, e para Carviçais, após uma marcha de cerca de uma hora. À saída de Carviçais existia uma bifurcação que permitia aos viajantes dirigir-se a Mogadouro ou a Lagoaça e depois seguir para Miranda do Douro. O primeiro caminho, de quatro léguas de extensão, era mau, pelo que era preferível seguir por Lagoaça. Este percurso era percorrido em cerca de 2,5 horas (6 horas desde o início da viagem no Pocinho). Em Lagoaça, existiam várias ramificações para pequenas aldeias e para Mogadouro. Viajando mais para nordeste, chegava-se a Sendim e depois a Miranda, cidade “votada à penúria, não possuindo actualmente senão gloriosas reminiscências da sua antiga grandeza” em virtude da sua “posição (…) fora de estrada alguma seguida; o abandono em que ficou desde a saída da Mitra, Autoridades e tropa para Bragança; os seus poucos capitais e nenhuma indústria”. O tempo total de viagem subia então a 18 horas e 38 minutos ou cerca de 6 km/h em marcha militar139. 135
CASTRO, 1844: 164.
136
Arquivo nacional Torre do Tombo. Memórias Paroquiais de 1758. Barreiras [Barreiros], Monforte de Rio Livre, vol. 6.º, n.º 44a, p. 331-334.
137
MATOS, 1980: 85-90.
138
MATOS, 1980.
139
AFONSO, 2011.
47
A linha do Tua (1851-2008)
A literatura da época é também uma profícua fonte de informação para esta e outras temáticas, se bem que deva ser analisada com muito cuidado e devidamente estudada e considerada, já que se trata de incontornável referência para uma compreensão não-anacrónica dos contextos e processos históricos140. Recentemente, uma tese de doutoramento analisou obras de viagens de autores do século XIX, contemporâneos de vultos do romantismo português. Trata-se de uma plêiade de escritores que colaboraram na imprensa periódica que se encontrava em expansão em Portugal, a partir da segunda metade do século XIX, e que ficaram associados à designada escola do folhetim. “Ricardo Guimarães, Lopes Mendonça, Júlio César Machado, Luciano Cordeiro, Teixeira de Vasconcelos, Francisco Maria Bordalo, Ramalho Ortigão (com excepção para Ramalho Ortigão e Luciano Cordeiro) são escritores que ficaram praticamente esquecidos pela história e crítica literárias mas cuja obra consagrada às viagens, teve em sua época, grande projecção, atraindo muitos leitores aos folhetins que assinavam”141. Poucos são os que falam directamente de Trás-os-Montes, mas da sua leitura e do confronto com outras descrições de outras regiões da periferia nacional e com o conhecimento já existente sobre transportes e viagens no século XIX, é possível pintar sugestivamente alguns traços do que seria viajar em Trás-os-Montes nesta centúria142. Sendo uma das províncias mais acidentadas do país – a par da Beira Alta – Trás -os-Montes era também uma das regiões que mais bloqueios oferecia aos viajantes. Camilo Castelo Branco, em 1855, escrevia que “a província de Trás-os-Montes é um sertão desconhecido, um retalho de Portugal segregado da civilização”143. Raul Brandão, em 1912, (ainda) descrevia que “no fundo, muito no fundo, corre o Douro barrento, entre destroços de ossadas corroídas. Infunde temor. E logo mais montes bravos, outras muralhas disformes”144. Curiosa a descrição dos montes como muralhas que impediam o livre acesso de pessoas, animais e mercadorias, até porque no século XVIII militares estrangeiros consideravam a orografia nacional e a falta de estradas como os principais obstáculos à conquista de Portugal145. As altas montanhas e os vales estreitos e alcantilados da região desincentivavam as viagens de homens e a troca de produtos a longa distância. Isto era tanto mais verdade quanto mais afastados se encontravam os povoados de vias fluviais, como já foi referido. Actualmente, a paisagem transmontana é uma das atracções da província. No 140
ALLENDE PORTILLO, 2009. ALLENDE PORTILLO, 2010. LAGE, 2014 a.
141
CABETE, 2010: 22-23.
142
LAGE, 2014a.
143
Apud. CABETE, 2010: 322 (nota 694).
144
BRANDÃO, 1974: 263-264.
145
MATOS, 1980: 29-30.
48
Portugal na segunda metade do século XIX
século XIX, o potencial turístico era largamente ultrapassado pelas dificuldades que tal paisagem antepunha aos viandantes. Nem as loquazes palavras de Ramalho Ortigão em relação ao Peso da Régua alteravam esta situação: “acordado pela mais alegre alvorada que os melros têm jamais assobiado pela fresca ramaria das veigas, abro a janela. Um deslumbramento! Debaixo da varanda, voltada a Norte, estende-se em doce declive um largo talhão de vinha baixa, cerrada, espessa, em todos os tons de verde, desde o mais vivo ao mais escuro, rajada das tintas maduras do Outono em manchas cor de âmbar e cor de fogo, loiras, vermelhas, calcinadas. Em baixo o rio Douro, espraiado, descreve um enorme S em toda a extensão do vale, reluzindo entre rasgões de olivedos e de pomares, por trás das ramas viçosas dos choupos e dos amieiros. Uma cortina de montanhas fecha o horizonte de todos os lados. No plano mais alto, em frente, ao fundo, alteia-se a cordilheira do Marão, cujos cabeços calvos, de uma cor térrea banhada em sol, parecem pintar sobre a transparência do céu o dorso imenso de um fantástico boi. Por todas as encostas do primeiro plano descem os vinhedos em largos degraus de verdura, desde o alto dos montes salpicados de pinhais até à beira rio. Em todas as quebradas alvejam casas caiadas de branco, cintilantes ao sol nascente…”146. Na viragem do meio século, praticamente não se podia falar em estradas em Trás -os-Montes, mas tão-somente de deficientes caminhos, “feitos a pé, a dorso de animal ou em carro de duas rodas”147, e carreiros quase intransitáveis e de segurança precária – alguns dos quais abertos nos tempos pombalinos para a fiscalização dos produtos vínicos. Eram regularmente transitados por um total de 420 almocreves que então existiam em Trás-os-Montes, com uma distribuição irregular, sendo em número mais elevado nos locais de comércio mais próspero, como nas regiões de Chaves e Vila Real148. Citando uma vez mais o visconde de Vila Maior, bastantes anos mais tarde, “não há uma única estrada regular que ponha em contacto Barca d’Alva com as terras importantes de qualquer das províncias, e estabeleça comunicação fácil com o reino vizinho. São quase intransitáveis os caminhos das montanhas que alli conduzem e o acesso pelo rio não offerece nem mais facilidade nem mais comodidade e segurança”149. Cerca de 35 anos depois, Raul Brandão confirmava esta realidade. Em Trás -os-Montes, “não há estradas: há córregos, leitos secos, torrentes, caminhos a pique cortados na rocha viva. (…). O homem isolado só convive com deus e com a terra”150. Havia algumas excepções a esta regra, como por exemplo a estrada que ligava a 146
ORTIGÃO, 1943-1946.
147
MACEDO, 1963: 139.
148
MENDES, 1981: 104-105.
149
VILA MAIOR, 1876: 65.
150
BRANDÃO, 1974: 263-264.
49
A linha do Tua (1851-2008)
Régua a Vila Real, que proporcionava aos viajantes uma viagem mais rápida e descansada em diligências puxadas por um quarteto de cavalos. De Vila Real partiam outras estradas, tanto para ocidente, em direcção ao Porto, como para oriente, rumo a Murça, Mirandela ou Bragança. De Mirandela saíam ainda outras vias secundárias para Vila Flor, Torre de Moncorvo, Valpaços, Chaves e outras terras transmontanas. Contudo, a rodovia entre Vila Real e o Porto, então designada Estrada do Marão, era “a mais áspera da província e talvez do reino”, cujo estado era deplorável e a precisar de benefícios urgentes que não recebia há muito151. Camilo Castelo Branco deixou-nos uma descrição muito particular sobre a viagem de Vila Real ao Porto. “Há poucos anos que eu jornadeava de Villa Real para o Porto, e cheguei, quebrado de corpo e alma, a uma póvoa escondida nos fraguedos do Marão, chamada Ovelhinha. O rocim, que me alli trouxera, ganhára pulmoeira na subida da serra, de maneira que, na assomada onde chamam as «rodas», os bofes arquejavam-lhe com tal ímpeto, e encavernada tosse, que não há ahi cousa triste que mais diga! Quando descavalguei, na Ovelinha, devolvi o garrano ao proprietário, e procurei quem me alugasse cavalgadura, menos poitrinaria, até Amarante. Voltando à estalagem, achei uma liteira parada que chegára n’aquelle ponto. Perguntei ao liteireiro se ia de retorno. Respondeu-me que levava patrão. Contemplei a liteira com mágoa e inveja, principalmente quando a eguazinha gallega, que eu ajustára, começou a espirrar uma tosse mais que muito significativa de pulmoeira e mormo real”152. O romancista refere ainda que uma viagem por esta estrada de liteira durava perto de 20 horas153. De facto, antes do advento do caminho-de-ferro os meios de transporte eram arcaicos. Além do transporte individual a pé usando bornais, alforges ou varas, os portugueses dos séculos XVIII e XIX recorriam sobretudo à força animal (sobretudo gado bovino e asinino), tanto para carregar no dorso, como para puxar veículos de passageiros (andas, palanquins, liteiras, coches) ou mercadorias (carros de bois). Em 1814, em Trás-os-Montes, existiam 3.447 bestas maiores (9% do total nacional) e 988 bestas menores (7%), números que cresceram para 5.205 (10%) e 2.041 (8%) seis anos depois. Associado aos animais de tiro, estava normalmente o carro de bois. Na província transmontana existiam, em 1814, 4.335 destes veículos (6% do total nacional) e 10.380 em 1820 (10%). Para o transporte de passageiros existia a liteira (maior) ou a cadeirinha (mais pequena), uma cabine de madeira que dispunha de dois varais atrelados a bestas ou a homens. Refira-se ainda os coches, as berlindas, as diligências, as malas-postas ou as seges, veículos de uso eminentemente urbano e/ou
151
Apud PINA, 1999. Ver também PINA, 2003.
152
CASTELO BRANCO, 1864.
153
CASTELO BRANCO, 1864: I-VI.
50
Portugal na segunda metade do século XIX
para pessoas mais abastadas e portanto pouco vistas e usadas em Trás-os-Montes154. Mas mesmo estes veículos eram também antiquados, lentos e desconfortáveis. A mala-posta, por exemplo, constava de uma série de caixas, uma para guardar o correio, outra para guardar as bagagens e outra para guardar os passageiros, mas muitas delas velhas e com pouca segurança155. Camilo Castelo Branco deixou-nos uma particular descrição da liteira, que via o seu futuro ameaçado pelo advento das estradas de macadame e de ferro. “A liteira sacrificada, a liteira dos dous machos pujantes e das cincoenta campainhas estridulas, essa é a que vi de uma assentada, desfeita à serra e enxó para remendos de ignobeis carrinhos e carroções. Esta é que é a liteira das minhas saudades, porque se embalaram n’ella as minhas primeiras peregrinações; porque, dos postigos de uma, vi eu, fóra das cidades, os primeiros prados e bosques e serras empinadas; porque o tilintar das suas campainhas me alegrava o animo, quando a toada festiva me interrompia as cogitações da tarde por essas estradas do Minho e Traz-os-montes”156 . A passagem dos rios era feita através de barcas de passagem ou, se aqueles o permitissem, a vau. Em Trás-os-Montes, os viajantes dispunham de 25 serviços de barcas de passagem em 1849157. Ao todo, entre os séculos XVIII e XIX, o número de barcas ascendeu a 33, sendo, nos finais do século XVIII e só no Douro, em número de 15 e uma de utilização gratuita (a barca de por Deus, no lugar do Moledo). Trás-osMontes contava então com 347 homens – 54 barqueiros e 293 marinheiros – que asseguravam grande parte das relações comerciais entre a região transmontana, a Beira e a cidade do Porto158. No rio Tua, existia também este serviço de barcas de passagem em Foz-Tua, Ribatua, Amieiro, Frechas, Chelas e Miradeses, gerido respectivamente pela confraria de Santo António do Fiolhal, pelos mordomos de São Mamede, pelos mordomos de Santa Luzia, pelos moradores de Frechas e por particulares desconhecidos. Mantiveram-se em operação até à época contemporânea, e mesmo após a abertura da linha do Tua, fazendo o serviço de ligação às estações ferroviárias159 Hospedarias e estalagens eram instalações praticamente inexistentes e as que haviam eram de má qualidade, como a que acolheu Clemente Menéres numa das suas primeiras deslocações ao Romeu160. Trás-os-Montes foi ainda até ao final do século XIX uma região propensa à crimi154
MATOS, 1980: 362-374.
155
MACHADO, 1865: 6-10.
156
CASTELO BRANCO, 1864.
157
MATOS, 1980: 85-90, 252-253 e 430.
158
MENDES, 1981:107.
159
ABREU, 2006b: 60-63 e 71. ABREU, 2011: 232-235. MENDES, 1981: 107.
160
VISEU, 2013.
51
A linha do Tua (1851-2008)
nalidade, que desincentivava as viagens. Ironicamente, era a falta de comunicações eficazes uma das razões para essa alta taxa de criminalidade. “Trás-os-Montes era a terra dos «valentões» (…), homens bravos que habitavam nas partes mais selvagens da região, conhecidos entre si através de certos sinais e pela sua terrível reputação. Caracterizavam-se como justiceiros e alguns eram, de facto, espíritos honrados, embora deturpados, atuando (sic) no desafio da lei, fiéis a um falso e deturpado sistema de direito. Todavia, a maioria degenerara em simples bandidos”161. O velho adágio para lá do Marão, mandam os que lá estão tem a sua origem nesta realidade. Mapa 18 – A localização das barcas de passagem em Trás-os-Montes nos séculos XVIII e XIX162
Por todas estas razões, não espanta assim que o custo do transporte para Trás-osMontes fosse mais elevado. Em 1785, por exemplo, é conhecido que a universidade de Coimbra detinha um serviço de recovagem para várias localidades. O preço do transporte dependia da distância e da dificuldade em percorrer a mesma. Assim, ao passo que uma recovagem até ao Porto custava 160 réis e para Lisboa custava 200, para Trás-os-Montes o preço era de 360 réis163. Nos debates parlamentares, encontram-se também várias referências ao estado de atraso em que se encontravam as estradas e outras vias de comunicação na região. Já foi referido que o deputado brigantino, Pires Vilar, comparava Trás-os-Montes à Sibéria. Pinto Moreira, um outro parlamentar de um círculo do interior – Baião, na fronteira com Trás-os-Montes – lamentava que a sua “gente, espalhada pelos outei161
SOUSA, 2013, vol. 1: 184. Ver também LAGE, 2014b: 222.
162
ABREU, 2006b: 59.
163
MATOS, 1980: 413-414.
52
Portugal na segunda metade do século XIX
ros, vê passar todos os dias repetidas vezes, soltando gritos de alegria, aquella machina immensa do progresso que a sauda e chama [a locomotiva na linha do Douro], e ao mesmo tempo reconhece com pezar o descontentamento, que a condemnaram ao verdadeiro supplicio de Tantalo, pois que não póde aproveitar se d’essa conquista da sciencia e do engenho humano”164, uma vez que não existiam estradas165. Contudo, estes discursos, sobretudo proferidos por parlamentares transmontanos ou do interior, hiperbolizam o subdesenvolvimento das comunicações nas regiões periféricas nacionais, como argumento retórico para convencer os governos a tomar medidas em prol das suas regiões (ou para mostrar aos seus constituintes que tinham tentado obter do executivo os indispensáveis melhoramentos), muito embora tivessem reais razões de queixa da falta de investimentos em estradas por parte dos governos da segunda metade do século XIX. Em 1884, todo o país, mas sobretudo o interior norte, beneficiava de uma rede curta e insuficiente para atender a todas as suas necessidades, pois a dotação financeira para este fim fixada no orçamento do ministério das obras públicas foi sempre diminuta. Notava-se assim uma multiplicidade de pequenos lanços de acesso a estações ferroviárias, nomeadamente no litoral oeste e noroeste (onde se concentrava o maior movimento comercial). O interior estava mal servido. Mapa 19 – Áreas com maior densidade de estradas (1884)166
164
Diario da Camara dos Deputados, 21.5.1890: 345.
165
PINHEIRO, 1986.
166
ALEGRIA, 1990: 161.
53
A linha do Tua (1851-2008)
Os concelhos e distritos podiam ter contribuído para uma melhoria do panorama da rede vial, pois as estradas municipais estavam a seu cargo, de acordo com a lei. Contudo, o fundo municipal dedicado a este tipo de obras era frequentemente delapidado e desviado para outros fins, perante a passividade do parlamento que aprovava quase sempre as necessárias autorizações167. Em 1886, o bispo de Bragança queixava-se de que “não há outras vias de comunicação, a não ser por caminhos feitos pela própria natureza: íngremes, tortuosos e estreitíssimos que, de longe em longe, se encontram por felicidade dos transeuntes”168. As dificuldades financeiras enfrentadas na década de 1890 impediram a alteração da situação. É sintomático que num inquérito feito aos municípios em 1898-1899 muitos eram os concelhos (sobretudo no norte e no interior) que não pediam quaisquer caminhos-de-ferro, mas apenas estradas169. Na última década do século XIX, a província transmontana era claramente deficitária em termos de estradas, como se pode ver na tabela seguinte. Tabela 1 – Extensão da rede rodoviária transmontana em comparação com a rede rodoviária nacional (em km)170 Ano
Bragança
Vila Real
Trás-os-Montes
Total nacional
%
1892
306
404
710
12.494
5,7%
1893
306
422
728
12.932
5,6%
1894
306
429
735
13.287
5,5%
1895
323
429
752
13.497
5,6%
1896
352
430
782
13.797
5,7%
1897
406
434
840
13.953
6,0%
1898
437
434
871
14.186
6,1%
1899
452
452
904
14.448
6,3%
1900
452
458
910
14.750
6,2%
No último decénio de oitocentos, Trás-os-Montes contava com 5-6% das estradas a nível nacional, embora a sua superfície total em percentagem do total da superfície 167
NAVARRO, 1887. PORTUGAL, 1907. ALEGRIA, 1990: 161
168
Apud VISEU, 2007: 127-128.
169
PORTUGAL, 1899a.
170
Annuario Estatistico de Portugal, 1900: 466. SOUSA, 2013, vol. 1: 122. VALÉRIO, 2001: 363.
54
Portugal na segunda metade do século XIX
do país represente cerca do dobro (11,9%). Aliás, no início de novecentos, a situação mantinha-se, havendo “estações no caminho de ferro do Douro, não procuradas por estarem completamente destituidas de communicações”171. A situação mantinha-se já bem entrados no século XX. Ainda na segunda metade de novecentos as acessibilidades eram muito limitadas. Em 1961 considerava-se indispensável construir 11 mil km de estradas e caminhos172. Cerca de um século antes, o fontismo privilegiou a construção de caminhos-deferro e entre estes os que ligassem Lisboa a Espanha e à fronteira com França pelo caminho mais curto e fácil173. Esta política de imediato fez com que a construção ferroviária (e rodoviária) em Trás-os-Montes fosse adiada em muitos anos. A província não só ficava afastada da rota menos extensa entre Lisboa e os Pirenéus, como também era tida como uma região montanhosa e acidentada, com altas montanhas e estreitos vales, onde assentar um caminho-de-ferro (ou abrir uma mera estrada) seria uma tarefa hercúlea. Para além disto, só os deputados locais, alguns estudiosos influentes (como Júlio Máximo de Oliveira Pimentel, visconde de Vila Maior174) ou casos raros de empreendedores de finais do século (Cândido Sottomayor, Clemente Meneres, João da Cruz, etc.) percepcionavam em Trás-os-Montes riquezas cuja exploração justificava a existência de uma ou mais linhas-férreas ou de novas rodovias. Os governantes nacionais não afinavam pelo mesmo diapasão. À excepção do vinho do Porto e do vale do Douro vinhateiro, Trás-os-Montes era encarado como terra com pouco interesse do ponto de vista económico, agreste e pobre175, percepção genérica que se iria manter por muito tempo.
171
MENEZES, 1900: 4.
172
VISEU, 2007: 127.
173
ALEGRIA, 1990. PEREIRA, 2012a. PINHEIRO, 1986.
174
LAGE, 2013.
175
PEREIRA, 2012b.
55
A odisseia de uma nova linha
2. A ODISSEIA DE UMA NOVA LINHA
2.1. O PROCESSO DE DECISÃO DA CONSTRUÇÃO DA LINHA DO TUA176 Hugo Silveira Pereira177 O processo que desembocou na lei que abriu concurso para adjudicação da linha do Tua desenrolou-se dentro de um quadro político inaugurado em 1851. É certo que já na década anterior tinham surgido algumas propostas para a construção de caminhos-de-ferro em Trás-os-Montes, contudo nenhuma delas pretendia mais que especular com o negócio, procurando obter a concessão e depois vendê-la pela melhor oferta178. Naquele ano um golpe de estado pôs fim ao governo autoritário de Costa Cabral e normalizou a vida parlamentar portuguesa, inaugurando ainda um espírito conciliador que punha de lado a ferocidade do debate ideológico e congregava os diferentes quadrantes políticos num objectivo comum: o progresso material do reino179. A linha do Tua só muito tardiamente foi inserida nesta agenda desenvolvimentista nacional que ficaria conhecida para a posteridade como fontismo, em homenagem ao seu principal propugnador, Fontes Pereira de Melo. Em todo o caso, para se compreender o processo de decisão que levou à sua construção, é necessário voltar um pouco atrás no tempo. O caminho-de-ferro do Tua não se consubstanciou no ar e foi o resultado de uma política ferroviária encetada com objectivos particulares e 176
Este capítulo é baseado no texto introdutório da compilação Debates parlamentares sobre a linha do Tua. PEREIRA, 2012b.
177
Centro Interuniversitário de História da Ciência e da Tecnologia (Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa).
178
VIEIRA, 1983: 84-88.
179
PINHEIRO, 1983: 53. Ver também BONIFÁCIO, 1992: 96-98.
57
A linha do Tua (1851-2008)
executada dentro de um quadro político-parlamentar específico – uma monarquia constitucional com um parlamento bicameral. O grande objectivo da política ferroviária do fontismo era aproximar Portugal de um “estrangeiro cada vez mais estrangeiro”180, quer em termos de distância e tempo, quer em termos económicos. Na altura entendia-se que a melhor maneira para se concretizar este ensejo era através da construção de caminhos-de-ferro, que aparentemente operavam milagres no estrangeiro e em Portugal podiam modernizar um sistema de transportes ao tempo completamente arcaico181. A curto prazo, porém, os objectivos passavam por ligar por via-férrea Lisboa ao Porto e a Espanha. Isto adiou desde logo qualquer esperança de ver locomotivas em Trás-os-Montes, muito embora se percepcionassem algumas riquezas e interesses a explorar nesta região182. Além disso, o engenheiro francês contratado para estudar a construção ferroviária em Portugal – M. Watier – mostrava-se muito pessimista quanto à possibilidade de levar caminhos-de-ferro ao interior norte de Portugal183. No início da década de 1860, dois deputados transmontanos (Júlio do Carvalhal Sousa Teles e Afonso Botelho) tentaram contrariar no parlamento a opinião de Watier, propondo por três vezes a construção de uma linha do Porto à Régua ou Foz-Tua, que seria “a salvação do Douro, e ao mesmo tempo o engrandecimento e a ventura da provincia de Traz-os-Montes”184. A falta de estudos no terreno desaconselhava a construção imediata, pelo que em 1862 o governo incumbiu o engenheiro Sousa Brandão da realização desses exames. O relatório daquele técnico foi aprovado pelo órgão consultivo do governo, o conselho geral de obras públicas, mas a iniciativa privada parecia mais voltada para uma linha pelo Minho, tendo surgido quatro propostas nesse sentido. A câmara baixa do parlamento chegou mesmo a aprovar um projecto de lei para se abrir concurso para a construção desta via, no entanto a câmara alta nunca seria ouvida e o projecto ficaria sem efeito185. Vendo-se na iminência de ser ultrapassados pelo Minho, vários deputados transmontanos chamariam em 1864 a atenção do governo para a necessidade de uma linha-férrea até Trás-os-Montes. Alguns deles propunham inclusivamente o complemento do futuro caminho-de-ferro do Douro com uma estrada até Abreiro e um americano (caminho-de-ferro assente 180
SERRÃO, 1962: 271
181
GUILLEMOIS, 1995. JUSTINO, 1988-1989: 189-190. MATOS, 1980.
182
ALEGRIA, 1990: 161 e 335.
183
WATIER, 1860.
184
Diario da Camara dos Deputados, 22.5.1860: 234-235. Diario de Lisboa, sessões da câmara dos deputados de 9.3.1861, 17.1.1862, 12.6.1862 e 12.6.1862: 694-695, 182, 1638 e 1775-1776. ALVES, 2000, vol. 9: 224.
185
Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas. Conselho de Obras Públicas e Minas. Liv. n.º 19 (1864): 53-54, 361-364 e 366-370. Diario de Lisboa, sessões da câmara dos deputados de 9.5.1864 e 10.5.1864. PEREIRA, 2012a.
58
A odisseia de uma nova linha
directamente sobre a estrada) até Mirandela, enquanto outros sugeriam levar o caminho-de-ferro até Torre de Moncorvo186. O governo do então presidente de conselho duque de Loulé acabou por tomar uma decisão salomónica, ordenando a Sousa Brandão novos estudos das linhas do Porto a Braga e do Porto à Régua e Salamanca187. A solução de conduzir o caminho-deferro até Salamanca desagradou a alguns militares que temiam uma duplicação de vectores de penetração inimiga, caso a linha da Beira Alta fosse também construída até àquela cidade espanhola188. O marquês de Sá da Bandeira, herói nacional das lutas contra os franceses e contra os absolutistas, partilhava a mesma preocupação e preferia que, atingida a Régua, o caminho-de-ferro visasse Vila Real e depois Mirandela, Bragança e Zamora189. Outros parlamentares sugeriam que Chaves se integrasse neste plano, ligando-se ou por Vila Real ou por Amarante à via-férrea do Douro190. Figura 9 – O duque de Loulé (à esquerda) e o marquês de Sá da Bandeira (à direita)191
As legislaturas iam passando e o desejado caminho-de-ferro até Trás-os-Montes 186
Diario de Lisboa, sessões da câmara dos deputados de 16.2.1864, 12.3.1864, 19.4.1864, 20.4.1864 e 25.4.1864: 436, 779, 1207, 1223-1224 e 1295.
187
Boletim do Ministério das Obras Publicas, Commercio e Industria, 1864, n.º 11: 589.
188
PIMENTEL, 1865
189
Diario de Lisboa, sessão da câmara dos pares de 23.12.1865: 3004-3005.
190
Diario de Lisboa, sessão da câmara dos deputados de 9.5.1864 e 10.5.1867: 1475 e 1467. PEREIRA, 2010.
191
Biblioteca nacional digital, http://purl.pt/6796; http://purl.pt/13761.
59
A linha do Tua (1851-2008)
não saía do campo das intenções. Até que em 1867 o governo propôs ao parlamento a imediata construção por conta do estado dos caminhos-de-ferro que do Porto seguissem até à Galiza e ao Pinhão. Na apreciação que faziam à proposta governamental, as comissões parlamentares de obras públicas e fazenda encaravam uma estrada de ferro pelo vale do Tua como o futuro prolongamento da linha do Douro em direcção a Zamora passando por Bragança. O projecto seria aprovado e a lei entraria em vigor a 2 de Julho de 1867. Todavia, a conjuntura económico-financeira de então não propiciava a realização de grandes investimentos e o início das obras seria adiado por cinco anos192. Em Julho de 1872, começava finalmente a construção a partir do Porto. O assentamento de carris em direcção ao Douro iniciou-se em Julho de 1873 desde Ermesinde e progrediu muito lentamente, de tal modo que só em meados de 1875 chegaria a Caíde. Figura 10 – A estação de Caíde em finais da década de 1870193
Antecipando a conclusão da obra, um grupo de deputados transmontanos solicitou ao governo a realização de estudos para prolongar a linha na direcção do nordeste e servir os recursos agrícolas e minerais de Trás-os-Montes194. Um outro conjunto de parlamentares propunha a construção de um caminho-de-ferro entre a Régua e
192
Diario de Lisboa, sessão da câmara dos deputados de 4.5.1867: 1396-1399. Colecção Oficial de Legislação Portuguesa, 1867: 441 e ss.
193
Centro português de fotografia. Depósito Geral, arm. 3, gav. 7. MACEDO, 2009.
194
Diario da Camara dos Deputados, 6.2.1875: 334.
60
A odisseia de uma nova linha
Chaves. O diploma seria enviado às comissões parlamentares, mas de lá não sairia195. Em resposta, tribunos minhotos sugeriam que a ligação a Trás-os-Montes se fizesse por Braga196. Entretanto, a construção continuava na margem do Douro, tendo a linha finalmente entrado em Trás-os-Montes ao chegar à Régua (Julho de 1879) antes de se deter no Pinhão em meados de 1880197. Figura 11 – Estação da Régua (à esquerda) e do Pinhão (à direita) na década de 1880198
Assente junto ao rio e estacando no Pinhão, a linha do Douro mais não servia do que o extremo sudoeste de Trás-os-Montes, de pouco ou nada valendo ao resto da província. Por esta razão, foram surgindo algumas propostas para alterar a situação, desde um americano entre a Régua e Vila Real199 a uma via pelo vale do Sabor até Miranda200 ou uma ligação pelo Minho desde Famalicão ou Guimarães201. Fora do parlamento, um outro homem fazia pressão para que o caminho-de-ferro chegasse a Trás-os-Montes. Tratava-se de Clemente Menéres, um empresário natural da Vila da Feira que investira avultadas quantias no nordeste transmontano e sentia a necessidade de um transporte eficaz para o Porto. Menéres pressionou os poderes centrais 195
Diario da Camara dos Deputados, 1.3.1875: 568-569.
196
Diario da Camara dos Deputados, 10.3.1875: 772-773 e 831-834.
197
PEREIRA, 2010. TORRES, 1936.
198
Centro português de fotografia. Depósito Geral, arm. 3, gav. 8. MACEDO, 2009.
199
Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas. Junta Consultiva de Obras Públicas e Minas. Cx. n.º 20 (1876-1877), parecer n.º 7637.
200
Diario da Camara dos Deputados, 28.3.1877: 823-826.
201
Diario da Camara dos Deputados, 24.3.1879; 24.4.1880 e 28.5.1880: 957-958, 1560 e 2360-2361. Arquivo Histórico-Diplomático. Caminhos-de-ferro. Ligações por Intermédio de Pontes. Cx. n.º 38, mç. n.º 8, doc. n.º 28. Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas. Junta Consultiva de Obras Públicas e Minas. Cx. n.º 22 (1879), parecer n.º 8156. SANTOS, 1884. OLIVEIRA, 1979: 7.
61
A linha do Tua (1851-2008)
no sentido de dotar Trás-os-Montes de um caminho-de-ferro, patrocinando artigos de opinião e lançando boatos sobre alegadas sublevações dos transmontanos em prol desse melhoramento. No parlamento, contava com o interesse de alguns deputados em algumas quintas da região e ainda com o apoio de deputados como Eduardo José Coelho ou o bispo de Bragança, que em algumas ocasiões levavam à ordem do dia a necessidade de introduzir a viação acelerada no nordeste. Numa dessas intervenções, o prelado brigantino chegou mesmo a afirmar que só havia votado a favor da linha da Beira Alta (em 1878) em troca de igual melhoramento ser aprovado em Trás-osMontes202. Como foi referido anteriormente, muitas das propostas para Trás-os-Montes – aventadas dentro e fora do parlamento – foram incluídas nos debates sobre o plano geral de rede que tiveram lugar no segundo lustro da década de 1870 na associação dos engenheiros civis portugueses. Nesta ocasião, às linhas do Tua e do Sabor previa-se um grande futuro, quer como caminhos-de-ferro internacionais, quer como parte da grande via paralela à fronteira de norte a sul do país. O engenheiro Campos e Silva, director de obras públicas em Bragança, asseverava que o terreno só se propiciava à via reduzida e para Veríssimo Guerreiro e Sousa Brandão uma linha pelo vale do Tua seria a melhor solução, mesmo que se ficasse a curto prazo por Mirandela203. No entanto, no relatório final da associação de 1877, apenas a linha do Tua (como continuação da do Douro até Espanha) e o prolongamento da de Guimarães até Chaves pelo vale do Tâmega seriam incluídos204. Com esta proposta não concordava João Crisóstomo de Abreu e Sousa que, incumbido pelo ministro das obras públicas, Lourenço de Carvalho, apresentaria em 1878 uma nova proposta de rede, na qual a ligação a Bragança era feita desde o Pocinho pelo vale do Sabor. Vila Real e Chaves ficariam também servidas de caminhos-de-ferro, mas a linha do Tua desaparecia do mapa. Em 1879, o próprio ministro das obras públicas apresentaria uma proposta ao parlamento (que contudo nunca seria discutida). Além do caminho-de-ferro do Tua (até Bragança e Vinhais), seriam incluídos também três ligações a Vila Real, Chaves e Miranda do Douro e o prolongamento da linha do Douro até Salamanca por Barca de Alva205.
202
Diario da Camara dos Deputados, 18.3.1881: 1065. Diario da Camara dos Dignos Pares do Reino, 3.4.1878, 9.2.1881 e 19.4.1882: 277-278, 139-140 e 427-428. ALVES, 2007: 124-125.
203
Revista de Obras Publicas e Minas, t. 9 (1878), n.º 97: 42-45; t. 10 (1879), n.ºs 109-110: 43-57; n.º 115: 372-378.
204
Revista de Obras Publicas e Minas, t. 9 (1878) n.ºs 97 e 100-104 (1878): 1-8, 181-244, 256-279, 289-304 e 317326.
205
Diario da Camara dos Deputados, 7.2.1879: 345-353.
62
A odisseia de uma nova linha
Figura 12 – Lourenço António de Carvalho, ministro das obras públicas206
Esta opção por Barca de Alva acabaria por reunir a predilecção do governo, o que condenaria o projecto de fazer da linha do Tua uma ferrovia internacional que prolongasse o caminho-de-ferro do Douro até Espanha. É com base nesta certeza que em 1880, um novo relatório era adicionado ao conjunto de estudos sobre caminhos-de-ferro em Trás-os-Montes. Tratava-se de um exame iniciado em Junho de 1878 por Sousa Brandão, Pereira Dias e Barnabé Roxo e que sugeria a construção de quatro grandes vias-férreas pelos vales de quatro afluentes do Douro: pelo Sabor até Zamora, pelo Tua até Mirandela e Bragança, pelo Corgo até Chaves e pelo Tâmega também até Chaves207. Sousa Brandão previa o uso de bitola estreita em cada uma daquelas linhas e, no caso da linha do Tua, estacava-a em Bragança, uma vez que a ligação da linha do Douro a Espanha far-se-ia muito provavelmente por Barca de Alva. Mapa 20 – As propostas de Sousa Brandão208
206
O Occidente, revista illustrada de Portugal e do estrangeiro, 15.2.1878, n.º 4: 28.
207
Arquivo Histórico do Ministério das Obras Púbicas. Junta Consultiva de Obras Públicas e Minas. Cx. n.º 25 (1883), parecer n.º 10305. Diario da Camara dos Deputados, 23.2.1880 e 18.3.1881: 541-542, 1065. BRANDÃO, 1880. PEREIRA, 2010. SALES, 1983: 111.
208
BRANDÃO, 1880.
63
A linha do Tua (1851-2008)
Além de tornar a linha do Tua um caminho-de-ferro unicamente nacional, a opção por Barca de Alva acabaria também por adiar a sua execução. O esforço do governo centrar-se-ia na continuação da construção da linha do Douro até à fronteira e nas negociações diplomáticas e financeiras para ligar a fronteira à cidade espanhola de Salamanca. Espanha não facilitou a concretização do projecto e o governo português acabou por atribuir uma garantia de juro a um consórcio de bancos portugueses, apadrinhado pelo capitalista Henri Burnay, que se dispunha a construir as linhas entre dois pontos na fronteira portuguesa e Salamanca. Alguns dos opositores ao governo ainda tentavam impedir a consumação deste negócio, aconselhando que a internacionalização da linha do Douro se fizesse por Bragança e pelo coração de Trás-os-Montes até Zamora209. Surpreendentemente, a câmara de Bragança, pretendendo mostrar a sua lealdade para com o governo do partido regenerador, representou ao rei contra tal solução, invocando razões do foro militar e da defesa nacional210. Este processo – que ficou infamemente conhecido como salamancada – só seria concluído em 1882, com a aprovação do financiamento do governo ao chamado Sindicato Portuense211. Figura 13 – Burnay, o titereiro da salamancada212.
209
Diario da Camara dos Deputados, 1.6.1882: 1764-1766.
210
ALVES, 2000, vol. 9: 225.
211
SOUSA, 1978.
212
O Antonio Maria, n.º 163: 228.
64
A odisseia de uma nova linha
Até esta altura, o governo nada faria para levar o caminho-de-ferro ao coração de Trás-os-Montes, a não ser preparar a estação de Foz-Tua para receber no futuro uma segunda linha para norte213. As reivindicações mantinham-se, mas caíam em saco roto. Em 1882 e 1883, a câmara de Mirandela enviou representações ao rei, pedindo a construção da via-férrea214. No parlamento, um grupo de deputados requereu a realização de estudos para duas ferrovias naquela província: uma desde a Régua por Vila Real, Vila Pouca de Aguiar, Mirandela e Zamora e outro entre Mirandela, Chaves e Bragança215. Em vão. Até que em 1883, o caminho-de-ferro do Douro chegava finalmente a Foz-Tua e foi precisamente neste ano que se tomaram verdadeiros passos para decretar a construção da linha até Mirandela. Figura 14 – Ponte sobre o Tua no caminho-de-ferro do Douro216
213
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Caminhos de Ferro do Estado. Construção. Direcção da construcção dos Caminhos de ferro do Minho e Douro. Linha do Douro. 8.ª Secção. Estação provisória do Tua. Memória descritiva. 29 de Dezembro de 1882. Cx. 130 (1912), proc. 130/10. Parecer da Junta Consultiva de Obras Públicas e Minas. 29 de Janeiro de 1883, cx. 130 (1912), proc. 11.
214
ABREU, 2006a: 6. SALES, 1983: 111.
215
Diario da Camara dos Deputados, 17.2.1883: 372-373.
216
MACEDO, 2009.
65
A linha do Tua (1851-2008)
Em 8 de Janeiro de 1883 a junta consultiva de obras públicas e minas dava parecer positivo ao relatório de Sousa Brandão sobre uma rede de via reduzida a norte do Douro. Das linhas sugeridas por aquele engenheiro, a junta destacava a do Tua por passar por uma das zonas mais produtivas e populosas de Trás-os-Montes e por já ter um projecto definitivo redigido. Sousa Brandão considerara-a também a potencialmente mais lucrativa de todas as linhas propostas no seu plano por atravessar produtivo solo com excesso de produção sobre o consumo e ligar-se a Mirandela, vila central que comunicava com toda a província (Valpaços, Vinhais, Macedo de Cavaleiros) e que pelas suas relações comerciais precisava de um caminho-de-ferro. Na avaliação que faziam ao trabalho do seu colega, os vogais da junta começavam por repetir a lição de Xavier Cordeiro quanto à escolha da bitola: a via larga era preferível por permitir maior velocidade e capacidade de transporte, mas a bitola estreita prestava-se melhor a terrenos mais acidentados e era mais económica, ficando a escolha final dependente das circunstâncias específicas do caminho-de-ferro a construir. No caso particular da linha do Tua, o ideal era manter a mesma distância entre carris que se verificava no caminho-de-ferro do Douro, mas considerando que os níveis de produção e população da área atravessada eram perfeitamente servidos por uma linha de bitola métrica, esta devia ser a medida escolhida. Sousa Brandão tinha dividido a linha em quatro secções (Mirandela a Longra; Longra ao rio Tinhela; rio Tinhela à ribeira da Figueira; e ribeira da Figueira a FozTua), que ao todo mediam 53 km. A sua directriz assentava sempre sobre a margem direita do Tua, só mudando para a margem oposta em Mirandela. Em termos de condições de tracção, não excedia os 15 mm/m que aliás só eram atingidos em 4,5 km da linha. Quanto ao traçado em planta, apresentava 36% do traçado em curva e destas 1/6 tinham um raio inferior a 250 m. A junta não se mostrou incomodada com este projecto provisório, admitindo até que os raios de curva podiam baixar aos 150 m, valor aceitável para comboios com 100 m de extensão e velocidades de 25 km/h. O orçamento era bastante lisonjeiro: ao todo, para Sousa Brandão, a linha do Tua custaria 1.431 contos ou 27 contos/km; a junta mostrava-se, contudo, muito mais optimista, dando como exemplos caminhos-de-ferro de via reduzida estrangeiros onde o custo quilométrico variava entre os 5 e os 21 contos. Apesar de não conhecerem o terreno como Sousa Brandão, os vogais da junta estimavam um custo provável de 20 contos/km, mas concederam aproximar este valor do orçado por aquele engenheiro: o parecer final previa um custo de 25 contos/km (1336 contos ao todo). Um dos vogais da junta consultiva discordava da opinião dos seus colegas: João Crisóstomo de Abreu e Sousa era um dos mais antigos e ilustres engenheiros portugueses, não se lhe conhecendo qualquer ligação afectiva, política ou económica a Trás-os-Montes. Contava à altura 72 anos, estando ligado aos caminhos-de-ferro desde a década de 1840 quando trabalhou na Companhia das Obras Públicas de Por-
66
A odisseia de uma nova linha
tugal. Na década seguinte estaria ligado à Companhia Central Peninsular, cujo trabalho prosseguiu depois de esta companhia ter rescindido o seu contrato para a construção da linha de Lisboa a Santarém. Mais tarde, foi enviado ao estrangeiro para estudar os caminhos-de-ferro de outras nações, examinou o traçado da linha do sul e esteve envolvido em várias comissões de inquérito à Companhia Real. Seria também o homem que tomaria o leme da governação após o ultimato inglês de 1890217. Figura 15 – João Crisóstomo de Abreu e Sousa218
Para João Crisóstomo, devia-se em primeiro lugar estabelecer a rede geral a construir, qual a bitola de cada uma das linhas e depois estabelecer uma prioridade entre elas. Para o engenheiro, as linhas da Régua a Chaves, de Foz-Tua até Bragança e do Pocinho até Espanha (Zamora) eram as que melhor serviam os interesses dos transmontanos nas suas relações internas e externas com o Porto a Beira e o Minho. O seu concessionário tanto podia ser o estado como uma só companhia privada, tendo em consideração que seria inconveniente fraccionar em demasia as concessões, tanto do ponto de vista da operacionalidade das vias como do ponto de vista financeiro. Porém, para João Crisóstomo, a linha do Tua não deveria ser a prioritária, uma vez que corria na maior parte da sua extensão por um vale estreito e alcantilado, cruzado somente por duas estradas abaixo de Mirandela. Mais importantes seriam as ferrovias entre Régua e Chaves e entre o Pocinho e Bragança. Serviriam cidades importantes da província, já dotadas de estradas e a sua construção não seria mais difícil nem mais cara que a do caminho-de-ferro do Tua. Porém, convencido pela força da maioria na junta de que a linha do Tua seria a escolhida, João Crisóstomo partilhava também as suas opiniões em relação a este caminho-de-ferro. A linha do Tua deveria ir desde já a Bragança (tendo também um 217
Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas. Processos individuais. MÓNICA, 2005-2006, vol. 3.
218
Exército Português, http://www.exercito.pt/sites/EPE/Historial/Paginas/default.aspx.
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A linha do Tua (1851-2008)
ramal para Vinhais) e ser assente em bitola larga, pois o tráfego decerto cresceria muito rapidamente (acima dos níveis ostentados pelas linhas alentejanas e do leste) e a bitola estreita não daria vazão a todas essas mercadorias e bens. A sua construção ficaria certamente mais cara, mas um aumento do custo quilométrico para 32 a 34 contos era perfeitamente aceitável para João Crisóstomo – gastava-se mais no presente, mas obtinha-se um serviço e um retorno maior no futuro219. De posse deste parecer da junta consultiva (e do voto em separado de João Crisóstomo), o governo pôde com mais propriedade preparar uma proposta para o legislativo. A 19 de Janeiro de 1883, os ministros das obras públicas e fazenda, Hintze Ribeiro e Fontes Pereira de Melo, apresentavam ao parlamento uma proposta de lei para adjudicar em concurso três linhas férreas – linha da Beira Baixa (bitola larga), linha do Tua e ramal de Viseu (bitola estreita) – às quais era ainda atribuída uma garantia de juro. A discussão iniciava-se a 12 de Fevereiro 1883, depois de as comissões parlamentares de obras públicas e fazenda darem parecer positivo à iniciativa do governo. O debate foi relativamente curto, durando apenas quatro dias. Durante a discussão, ninguém falou abertamente contra o projecto, já que levava o caminho-de-ferro a zonas órfãs e necessitadas deste melhoramento, muito embora alguns duvidassem da sua exequibilidade e por tal acusassem o governo de demagogia e eleitoralismo. Alguns deputados ainda tentaram corrigir aquilo que entendiam ser dois erros na proposta: a escolha da bitola estreita e o facto de a linha do Tua se ficar por Mirandela. Os apoiantes do governo reiteravam as vantagens da proposta, da escolha da bitola estreita e do facto de a linha chegar a Bragança numa segunda fase de construção. Outros argumentos semelhantes foram trocados em relação às outras duas linhas envolvidas neste pacote legal, mas no final a maioria presente na câmara dos deputados favorável ao governo acabaria por aprovar o diploma (17 de Fevereiro de 1883). A discussão transferiu-se então para a câmara dos pares, onde o debate se iniciou a 9 de Março de 1883. A contenda foi aqui ainda mais rápida que na câmara baixa, como aliás era habitual, durando apenas duas sessões. No entanto, o resultado final seria ligeiramente diferente. Os argumentos repetiram-se de parte a parte e a 10 de Março de 1883 os pares achavam por bem aprovar algumas alterações à proposta original do governo (em relação à forma do juízo arbitral e à garantia de juro que passava de 5% para 5,5% sobre o rendimento líquido), o que forçou à descida do diploma novamente à câmara dos deputados. Estes podiam recusar as sugestões dos pares, o que obrigaria à formação de uma comissão mista de pares e deputados para se chegar a um acordo e portanto a um longo processo burocrático220. Pelo contrário, os deputados acataram as alterações dos pares (sessão de 2 de Abril de 1883). Para 219
Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas. Junta Consultiva de Obras Públicas e Minas. Cx. n.º 25 (1883), parecer n.º 10305. 8 janeiro 1883
220
SANTOS, 1986.
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A odisseia de uma nova linha
todos os efeitos, o parlamento havia dado o seu beneplácito à iniciativa governamental e o diploma podia subir ao poder moderador – o rei – que, como era costume, o ratificou sem grandes problemas. A 26 de Abril de 1883, era publicada a carta de lei que autorizava o governo a abrir concurso para atribuição de uma garantia de juro (entre outros apoios) à construção das linhas da Beira Baixa, Tua e Viseu221. Figura 16 – Bases da adjudicação das linhas222
A praça foi aberta por decreto de 28 de Setembro de 1883, mas não apareceram quaisquer candidatos, uma vez que as condições de resgate da linha por parte do estado afastaram os interessados223. Clemente Menéres procurou então cativar o banqueiro Henry Burnay e os capitalistas franceses Pereire, mas como não conseguisse, propôsse ele próprio a levar a efeito a obra. O espírito de iniciativa de Menéres acabou por não ser necessário, pois o governo aceitaria alterar as condições de remição da linha (decreto de 22 de Novembro de 1883), o que foi de encontro às pretensões do conde da Foz, um poderoso capitalista de Lisboa, que a breve trecho se tornaria o homem forte da Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses, a principal empresa ferroviária do reino224. O contrato provisório entre o conde da Foz e o governo foi assinado a 24 de Dezembro de 1883 e chegou ao parlamento a 13 de Fevereiro de 1884, novamente atado à linha da Beira Baixa e ao ramal de Viseu. A necessidade de ouvir novamente o legislativo em relação a esta matéria ficou-se a dever ao facto de as condições aprovadas anteriormente pelo parlamento terem sido alteradas durante procedimento concursal (a questão da remição da linha). A discussão iniciou-se a 13 de Maio de 1884 nos deputados e três dias depois nos pares e uma vez mais versou sobre elementos paralelos àquilo que estava em debate. Contestava-se ainda as directrizes das diversas linhas e sugeria-se que as companhias concessionárias fossem obrigadas a ter uma maioria de cidadãos nacionais nas suas direcções, sob pena de a adjudicação não ser feita e o estado assumir a construção dessas linhas. As rotas dos caminhos-de-ferro em discussão 221
PEREIRA, 2012a: anexos 23 e 25.
222
Arquivo histórico parlamentar. Secção I/II, cx. 521.
223
Colecção Oficial Legislação Portuguesa, 1883: 97-98 e 285-292. FINO, 1883-1903, vol. 1: 562-564.
224
GOMES, 2009: 5.
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não foram alteradas no parlamento, mas a proposta para obrigar as concessionárias a ter direcções maioritariamente nacionais foi aceite, o que viria a dar um imbróglio com a Companhia Real, concessionária provisória da linha da Beira Baixa, e com Henry Burnay, adjudicatário do ramal de Viseu. Ambos os casos seriam resolvidos em favor do conde da Foz que acabaria por tomar conta da direcção da Companhia Real e juntar a concessão do ramal de Viseu à da linha do Tua. O rei D. Luís promulgaria novamente as decisões dos corpos legislativos e a 26 de Maio de 1884 era publicada a lei que oficializava a adjudicação da linha do Tua ao conde da Foz. O contrato definitivo seria assinado um mês depois, a 30 de Junho de 1884225. O concessionário empenhou-se na obra e em 9 de Agosto de 1884 e 30 de Junho de 1885 apresentava dois projectos pela margem esquerda do Tua. Isto contrariava os estudos de Sousa Brandão, mas ia de encontro ao projecto de Almeida Pinheiro, incumbido de estudar a margem esquerda do rio por portaria de 12 de Janeiro de 1883. Este projecto fora também aprovado pela junta consultiva, que elogiava o trabalho e boas condições de tracção em tão acidentado terreno: o traçado contava com mais de 60% de rectas e quase 50% de patamares, nunca se atingindo o declive máximo imposto por lei e contrato226. Esta questão invadiu ainda o parlamento, motivando inflamadas intervenções de Teixeira de Sampaio, deputado nascido e eleito em Alijó, que exigia que a directriz se estabelecesse na margem direita e chegou mesmo a criticar os projectos pela orla oposta apesar de não ter formação para tal227. No entanto os seus intentos não seriam coroados de sucesso e o governo seguiria a opinião do concessionário (pela margem esquerda). Depois de aprovado o plano de construção e de iniciada a obra (em 16 de Outubro de 1884 em Mirandela), o conde da Foz trespassou a concessão à Companhia Nacional dos Caminhos de Ferro, por ele fundada (portaria de 29 de Setembro de 1884 e decreto de 1 de Outubro de 1885)228. A empreitada foi tudo menos fácil e rápida, em virtude das características orográficas da região que determinaram que “o comboio, aberto na rocha viva da montanha a pique, serpeja[sse], cá no alto, acompanhando as curvas duras do contorcido rio no fundo de um vale estrangulado, feito de altas serras de penedos a despenharem-se”229. Por estes motivos, o prolongamento da linha até Bragança foi adiado.
225
Colecção Oficial Legislação Portuguesa, 1883: 359-367 e 406 e ss.; 1884: 190-210 e 307-313.
226
Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas. Junta Consultiva de Obras Públicas e Minas. Cx. n.º 27 (1884), parecer n.º 11627; cx. n.º 29 (1885), parecer n.º 12791. Diario da Camara dos Deputados, 6.3.1884: 515.
227
Diario da Camara dos Deputados, 29.12.1883, 6.3.1884, 18.3.1884, 13.5.1884, 7.1.1885, 16.1.1885, 24.1.1885, e 8.2.1886: 1892-1893, 512-519, 732-734, 1534-1567, 8 e 11, 117-118, 236, 397 e 403.
228
ALVES, 2000, vol. 9: 225. BARATA, 1945. CORDEIRO, 2011. SALES, 1983: 111. SILVA, 2004. TORRES, 1936.
229
Apud. ABRAGÃO, 1956: 228. Revista de Obras Publicas e Minas, t. 26 (1895), n.ºs 303-304: 191-194;
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A odisseia de uma nova linha
2.2. ASPECTOS CONTRATUAIS E FINANCEIROS Hugo Silveira Pereira230 O contrato definitivo assinado entre o conde da Foz e o governo a 30 de Junho de 1884 era o acordo típico para a concessão de caminhos-de-ferro com garantia de juro que por esta época se assinava em Portugal. A forma de adjudicação de linhas-férreas em Portugal só foi verdadeiramente regulamentada em 31 de Dezembro de 1864, quando o então ministro João Crisóstomo de Abreu e Sousa, autorizado por lei de 25 de Junho de 1864, publicou um decreto geral sobre caminhos-de-ferro. Até então as concessões eram reguladas latamente pela carta constitucional de 1826 (que determinava a necessidade de ouvir o parlamento sobre qualquer medida que envolvesse aumento de despesa, emissão de dívida ou contracção de empréstimos) e pelo código comercial231. Havia ainda o decreto de 18 de Outubro de 1845, que definia as regalias de que tais iniciativas poderiam beneficiar (prazo de concessão até 99 anos, entrega dos terrenos e materiais que pertencessem ao estado, isenção de direitos alfandegários sobre a importação do material necessário à construção e exploração e isenção de impostos gerais e locais), bem como as contrapartidas (necessidade de os traçados serem aprovados pelo governo, transporte gratuito de correio oficial e a preço reduzido de material e pessoal militar, sujeição à fiscalização governamental, sujeição às leis do reino, possibilidade de remição, obrigatoriedade de constituição de companhias previamente à concessão). Ficavam apenas por concretizar os detalhes relativos à vigilância, segurança, uso e conservação da via, a definir em regulamentos ulteriores. 230
Centro Interuniversitário de História da Ciência e da Tecnologia (Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa).
231
CAETANO, 1981. MIRANDA, 1992.
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A linha do Tua (1851-2008)
Figura 17 – Parte inicial do decreto de 18 de Outubro de 1845232
Até 1864, o estado andou a reboque das circunstâncias. Concretamente para cada linha era aprovada uma lei ad hoc que determinava os direitos e deveres de governo e concessionário (prazos de concessão e construção, apoio financeiro, isenções fiscais, condições da obra, juízo arbitral, conservação da obra, serviços mínimos, etc.). A aprovação destes contratos era acompanhada da ratificação de outros diplomas sobre aspectos gerais da construção (expropriações, fiscalização da obra, administração de obras públicas, polícia e exploração de caminhos-de-ferro)233. Foi assim que se estabeleceram os acordos para a construção das linhas do norte, do leste, do sul e do sueste. O decreto de 31 de Dezembro de 1864 era inspirado na legislação francesa de 1845 e marcaria a política ferroviária nacional nas décadas seguintes. Só seria fundamentalmente alterado em 1927, ano em que era ainda considerado “o código fundamental da nossa legislação ferroviária”234. Não se debruçava apenas sobre a fiscalização da construção e exploração, abarcando também aspectos ligados à concessão e aos direitos e obrigações de estado e companhias. Decretava muito explicitamente que todas as ferrovias e instalações fixas associadas faziam parte do domínio público (aos concessionários pertencia apenas o material circulante e respectivo combustível, mas estes não podiam ser alienados a não ser para serem substituídos). Os governos estavam apenas autorizados a ceder temporariamente este domínio a entidades privadas que o exerceriam em substituição do 232
Colleccção Official de Legislação Portugueza, 1845: 753.
233
Colleccção Official de Legislação Portugueza, 1856: 282-283 e 444-448. FINO, 1874: 7.
234
ALMEIDA & CAMBEZES, 19--: 36 (decreto 14330 de 25.8.1927, rectificado a 20.10.1927). SOUSA, 1915: 353. Ver também ARMAND, 1963: 30-33. CARON, 1997-2005, vol. 1: 95-96. MELO, 1939. SANTOS, 1934. SOUSA, 1918.
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A odisseia de uma nova linha
estado e em proveito próprio, tendo forçosamente que obedecer a determinadas obrigações e beneficiando de certos direitos. Esta cedência temporária carecia também de aprovação parlamentar, excepto se se tratassem de ramais de linhas já contratadas ou vias-férreas de extensão inferior ou igual a 20 km, que tivessem por fim ligar minas ou estabelecimentos industriais com algum rio navegável, porto de mar ou caminho-de-ferro. Em ambos estes casos, era também obrigatório não incorrer o erário público em qualquer encargo financeiro. Porém, o decreto não definia exactamente o que era um ramal, o que originou algumas polémicas com o ramal de Cáceres, a linha do oeste ou a linha da Beira Alta235. Mesmo as linhas que não entroncavam noutras geraram alguma controvérsia, porque houve casos em que caminhos-de-ferro com mais de 20 km foram concedidos sem aprovação parlamentar (a linha do Porto à Póvoa e Famalicão ou de Guimarães, por exemplo). Por outro lado, estas linhas não tinham prazo de concessão predeterminado nem possibilidade de remição por parte do estado, pressupondo-se que a concessão era perpétua, o que contrariava o carácter de bem de domínio público atribuído aos caminhos-de-ferro. Figura 18 – Articulado inicial do decreto de 31 de Dezembro de 1864236
Não era obrigatório o concurso. O governo podia negociar directamente com uma empresa, mas tal acordo seria provisório até que o parlamento o sancionasse. A lei da contabilidade pública de 1881 alterou esta prescrição e tornou compulsiva a abertura de concurso para contratos apresentados às cortes237. Suspeições de favorecimento em adjudicações directas (na linha do oeste com Burnay e a Companhia Real) 235
PEREIRA, 2012a: 330-331.
236
Colleccção Official de Legislação Portugueza, 1864: 1032.
237
Colleccção Official de Legislação Portugueza, 1881: 117
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A linha do Tua (1851-2008)
levariam à inserção desta obrigatoriedade na lei. Foi uma vitória de Pirro para os defensores desta medida, pois era sempre possível ao governo fazer uma adjudicação directa mascarada de concurso. Em todo o caso, foi em virtude desta moldura legal que a linha do Tua foi colocada em hasta pública. Além disto, o decreto de 31 de Dezembro de 1864 contemplava ainda outros aspectos ligados à ferrovia: fiscalização da construção e exploração, fiscalização tributária das empresas, segurança de passageiros e ferroviários, direitos e deveres dos concessionários face ao estado, aos utentes e aos proprietários dos terrenos confinantes ao caminho-de-ferro, direitos e deveres de passageiros e vizinhos das linhas e foros de cada tipo de infracção ficavam desde já determinados na lei, se bem que pendentes de regulamentação posterior (regulamento de 11 de Abril de 1868 sobre a fiscalização da exploração e manutenção, segurança e direitos dos passageiros, procedimentos em caso de acidentes, salubridade e segurança públicas e polícia geral das linhas-férreas238; regulamento de 15 de Março de 1888 sobre fiscalização da construção de caminhos-de-ferro239; decreto de 21 de Fevereiro de 1891 e portaria de 31 de Março de 1891 alterando a organização da hierarquia e organização fiscal sobre as companhias privadas240). Para lá de todos estes diplomas gerais, a lei de 5 de Maio de 1860, que aprovava o contrato com o duque de Salamanca para a construção dos caminhos-de-ferro do norte e do leste, foi também importante para a história da legislação ferroviária nacional. Em termos legais só se aplicava aos referidos caminhos-de-ferro, no entanto o seu articulado serviria de inspiração a todos os outros contratos e leis que concediam linhas com apoios públicos, fossem eles a garantia de juro (ou rendimento) ou a subvenção quilométrica241. Figura 19 – Artigo 1.º da lei de 5 de Maio de 1860242
238
Colleccção Official de Legislação Portugueza, 1868: 125-132. AGUILAR, 1945.
239
Colleccção Official de Legislação Portugueza, 1888: 106-109. EÇA et al., 1888. AGUILAR, 1945. SOUSA, 1918.
240
FINO, 1883-1903, vol. 3: 71-103. AGUILAR, 1945a. BARATA, 1945. SANTOS, 1934. SOUSA, 1926.
241
PEREIRA, 2012a: 324-334.
242
Colleccção Official de Legislação Portugueza, 1860: 160.
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A odisseia de uma nova linha
Estes eram os principais auxílios financeiros concedidos aos operadores ferroviários e ambos foram concedidos pelos diversos governos nacionais na segunda metade do século XIX. Além destes, havia uma panóplia de outros apoios desde a isenção de determinados impostos, à abolição de direitos alfandegários sobre material para a construção e exploração da linha, passando pela declaração de utilidade pública nos processos de expropriação, pela cedência gratuita de terrenos pertencentes ao estado ou pela concessão de uma zona de protecção contra linhas paralelas. Era aliás o que normalmente se fazia noutros países da Europa Continental. Em contrapartida, a concessionária comprometia-se a prestar serviços mínimos e também alguns serviços gratuitos ao estado (como o transporte de correio) e a devolver o domínio efectivo do caminho-de-ferro ao governo passado um determinado prazo, normalmente 99 anos, que poderia ser encurtado através da remição da linha, mediante o pagamento de uma anuidade até ao fim do prazo da concessão. A principal diferença entre a garantia de rendimento e a subvenção quilométrica estava na extensão de tempo durante a qual esse auxílio era devido pelo governo. Pela garantia de juro, o estado assegurava à concessionária uma verba anual líquida predefinida ou correspondente a uma percentagem do capital investido ou orçado na construção da linha durante um prazo fixo. Tinha a vantagem de adiar os encargos do tesouro para quando a linha já estivesse em exploração, de os dividir por um largo período de tempo e de os tornar mais leves ou até mesmo nulos, tudo dependendo do comportamento da exploração: se o rendimento atingisse os 2% e a garantia fosse de 6%, o governo só entraria com 4%; se o rendimento ultrapassasse os 6%, tudo dependia do acordado, mas normalmente o que se estipulava era dividir o excesso em partes iguais por estado e companhia. Nada ficava previsto no caso de o rendimento líquido ser negativo, mas à partida esse défice não seria coberto pelo erário público. De todo o modo, e partindo do princípio que o rendimento da linha seria sempre positivo, a saúde financeira da companhia ficava acautelada. A desvantagem deste método era desincentivar a concessionária a executar uma construção e uma exploração competentes, pois tinha assegurado um rendimento atractivo. A forma de cálculo da verba garantida sofreu alterações ao longo do tempo. Inicialmente era uma percentagem calculada sobre o capital orçado por lei. Na década de 1860, tentou-se garantir uma verba bruta fixa, mantendo-se dependente da concessionária a gestão da despesa e consequentemente do rendimento líquido. Embora a companhia fosse obrigada a manter um certo número de viagens por dia, era-lhe possível reduzir a oferta ao mínimo, diminuindo a sua despesa em prejuízo do serviço público e aumentando assim o seu lucro. Esta opção não vingou e voltou-se a usar o capital orçado como base de cálculo nas propostas que iam sendo discutidas
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A linha do Tua (1851-2008)
no parlamento. A partir de 1880 a despesa passou a ser uma variável a ter em conta no cômputo do rendimento líquido garantido. Normalmente era fixada num mínimo de 40% do rendimento bruto, garantindo-se assim que a empresa não pouparia na exploração com prejuízo do serviço, em virtude de ter certificada uma verba dos cofres públicos. Se a empresa gastasse mais, em teoria, poderia oferecer um serviço melhor sem risco. No entanto, não era certo que essa despesa redundasse numa melhoria ou aumento da oferta. Por isso e para impedir que a concessionária abusasse desta regalia estabelecendo despesas sem justificação (cobertas pela garantia de rendimento), resolveu-se limitar também o valor máximo da despesa. Surgiu assim mais uma cláusula no sistema de garantias de rendimento que limitava o desembolso efectivo a uma percentagem menor do capital. Se, por exemplo, a garantia fosse de 6% e o rendimento atingisse os 2,5%, o estado mantinha a obrigação de entregar uma determinada quantia à empresa, mas essa quantia era limitada ao estabelecido contratualmente (usualmente 2% ou 3% do capital investido). Era uma forma de incentivar a empresa a realizar um melhor serviço. A subvenção quilométrica consistia na entrega por cada quilómetro construído de uma quantia durante a construção, que normalmente montava a metade do orçamento. Podia ser encarado como uma forma de entrada no capital da companhia, que viria assim os seus encargos reduzidos e o seu lucro futuro favorecido. Tinha a vantagem de obrigar a concessionária a uma boa construção para que a exploração fosse a mais regular possível. Além disso constituía uma despesa certa e fixa para o estado, embora castigasse o orçamento de forma mais severa e num prazo mais curto. Na década de 1850, chegou-se também a tentar uma combinação destes dois subsídios: o governo entregava uma determinada quantia de dinheiro por cada quilómetro assente e garantia ainda um rendimento durante a exploração. Foi um sistema que não seduziu os responsáveis nacionais e que nunca mais foi proposto. A escolha de um sistema em detrimento do outro dependia das expectativas de rendimento e da aceitação do negócio por parte da iniciativa privada. Do lado do estado, em linhas das quais se esperava um alto rendimento, por servirem um movimento já existente, o ideal seria a garantia de juro. Nas que se destinavam a criar movimento, o ideal seria conceder subsídio quilométrico. Do lado dos investidores, em teoria a garantia de juro seria sempre mais sedutora, embora obrigasse a uma maior angariação de capital no início da empreitada. No entanto, era difícil, para não dizer impossível, fazer cálculos certeiros em relação aos rendimentos previsíveis das linhas. Os governos foram-se movendo neste campo por convicções e percepções possíveis da realidade, de acordo com as circunstâncias de momento. As primeiras experiências na década de 1850 com garantias de juro não foram agradáveis. As próprias expectativas em relação ao retorno do investimento foram esmorecendo e como
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A odisseia de uma nova linha
tal a subvenção quilométrica acabou por ser o auxílio ao investimento preferido dos governos até finais da década de 1870243. Contudo, se antes tinha sido o governo a ficar descontente com a garantia de juro, desta vez passaram a ser as companhias ferroviárias as insatisfeitas com a subvenção quilométrica. A Companhia Real, que tinha construído as linhas do norte e do leste com um subsídio de 50 contos/km, tinha entrado em falência pouco depois de inauguradas as suas ferrovias (em meados da década de 1860) e necessitou de mais ajudas do estado (designadamente uma isenção do imposto de trânsito) para se manter à tona. A Companhia do Caminho de Ferro da Beira Alta passaria pelo mesmo a partir de 1882 – apesar de a linha explorada ser encarada como o verdadeiro caminho-deferro internacional que mais depressa colocaria Lisboa em comunicação com França, a verdade é que o tráfico era extremamente diminuto e a companhia via-se com sérias dificuldades financeiras. Aquelas que eram consideradas as principais linhas nacionais tinham-se revelado um desastre financeiro, pelo que os investidores começaram a exigir garantias de rendimento ao estado para aceitarem novas concessões244. Por outro lado, os subsídios quilométricos concedidos pelos governos regeneradores tinham pesado sobre o orçamento. A oposição – o partido progressista – sempre foi muito crítica em relação ao despesismo regenerador. A garantia de juro foi uma forma de continuar a construir caminhos-de-ferro sem onerar muito o tesouro, pois, como vimos, os encargos seriam adiados para o início da exploração e espaçados no tempo. Foi neste contexto que se realizou a adjudicação da linha do Tua com garantia de juro em 1883. Como vimos, no capítulo anterior, o concurso foi aberto em 28 de Setembro de 1883 e reaberto cerca de dois meses depois, após alteração das condições de resgate das linhas. Para licitar, o conde da Foz teve que depositar 40 contos em títulos de dívida ou metal sonante no Banco de Portugal, quantia que mais tarde teve que dobrar para oficializar a adjudicação (e que serviria de caução até que as obras realizadas valessem outro tanto). A licitação versava sobre o custo quilométrico a partir do qual se calculava a garantia de juro. O máximo permitido era 23 contos e venceria o concurso quem fizesse o lanço menor. O conde da Foz superiorizou-se a dois outros candidatos com uma oferta de 19,692 contos e ficou com a adjudicação provisória245. Era um valor relativamente baixo para uma linha que se mostraria muito difícil de abrir, razão pela qual a exploração deste caminho-de-ferro se mostrou nos primeiros anos deficitária, como veremos. O contrato assinado pelo conde da Foz foi redigido em sete páginas e contava com 243
Para tudo isto, ver: PEREIRA, 2012a: 366-370.
244
ALEGRIA, 1990.
245
Colleccção Official de Legislação Portugueza, 1884: 206. SANTOS, 2014: 62.
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81 artigos divididos por quatro capítulos. O conde ou companhia a quem ele passasse a concessão (mediante autorização e aprovação governamental dos seus estatutos) assumia o compromisso de construir “um caminho de ferro, que, partindo da linha do Douro e seguindo pelo Valle do Tua, termine em Mirandella, sendo o dito caminho de ferro completo em todas as suas partes, com todas as expropriações, aterros e desaterros, obras de arte, assentamento de vias, estações e officinas de pequena e grande reparação, e todos os edificios acessorios, casas de guarda, barreiras, passagens de nivel, muros de sustentação, muros de vedação ou sebes para separar a via ferrea das propriedades contiguas e em geral as obras de construcção previstas ou imprevistas, sem excepção ou distincção, que foram necessarias para o completo acabamento da linha ferrea”246. Figura 20 – Primeiro artigo do contrato assinado pelo conde da Foz 247
Obrigava-se ainda a adquirir todo o material fixo e circulante necessário à exploração, escolhendo os melhores modelos conhecidos. O material de passageiros devia ter três classes: a primeira classe teria assentos estofados, a segunda classe assentos de estofo mais ordinário e a terceira classe assentos de madeira. Comprometia-se também a estabelecer um telégrafo ao longo de toda a linha e ainda a fazer a demarcação quilométrica e o levantamento da planta cadastral do caminho-de-ferro. 246
Colleccção Official de Legislação Portugueza, 1884: 204.
247
Colleccção Official de Legislação Portugueza, 1884: 204.
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A odisseia de uma nova linha
A construção deveria ser feita de acordo com os projectos definitivos apresentados pelo concessionário e aprovados pelo ministério das obras públicas e pelo ministério da guerra (deveriam incluir um plano geral da obra, um perfil longitudinal, um perfil transversal, as obras de arte e uma memória descritiva e justificativa de todo o traçado). Os estudos poderiam ser fiscalizados por fiscais do ministério e o concessionário tinha direito a consultar todos os planos anteriores na posse do governo. Estes projectos deviam ser apresentados até um ano após a data do contrato definitivo. Se fossem rejeitados, seria estipulado um novo prazo para apresentação de novos planos. Se estes, mesmo assim, fossem rejeitados, o concessionário era obrigado a aceitar os projectos apresentados pelo governo. Em qualquer um dos casos antecedentes, o concessionário tinha depois 60 dias para iniciar a obra. Qualquer alteração aos projectos teria que ser aprovada pelo governo. O concessionário poderia emitir obrigações para financiar a construção, mas o seu produto líquido deveria ser colocado à ordem do governo, que o desbloquearia à medida que os trabalhos avançassem. A construção deveria estar acabada num prazo de dois anos a contar da data da aprovação dos projectos pelo governo e nela o concessionário deveria usar materiais de boa qualidade, no entanto não se definia o que era boa qualidade. Se o concessionário não conseguisse cumprir aquele prazo, pagaria uma multa por cada mês de atraso, que não poderia ser superior a 2 contos. A linha-férrea devia ser assente com uma só via de bitola métrica, excepto nas estações onde seriam construídas as necessárias vias de resguardo e de serviço. Os declives não deveriam ultrapassar os 18 mm/m e os raios das curvas não poderiam ser inferiores a 150 m e nos casos em que o fossem deviam ser assentes em plano horizontal. Em caso algum as rectas entre duas curvas de sentido contrário podiam ter menos que 50 m de extensão. Os carris deviam ser de aço com um peso mínimo de 20 kg/m e as travessas deviam ser todas creosotadas. As obras de arte deviam ser em pedra, ferro ou tijolo e nas passagens de nível o concessionário deveria montar uma barreira e uma guarda. Nenhuma secção do caminho-de-ferro poderia ser aberta sem expressa autorização do governo, ouvidos os seus fiscais. Qualquer falha no cumprimento deste articulado ou recusa por parte do concessionário em acatar os julgamentos dos árbitros competentes no que respeitasse à construção daria ao governo o direito de rescindir o contrato e colocar a concessão em hasta pública. O preço da arrematação seria entregue ao concessionário deduzidas as verbas eventualmente gastas com garantia de juro ou fiscalização. Se porém não aparecessem concorrentes ao leilão, todo o material construído ou adquirido passaria para a fazenda pública sem qualquer pagamento de indemnização ao concessionário original. O governo não tinha também que responder por qualquer dívida do concessionário fosse de que natureza fosse (esta ressalva destinava-se a evitar querelas jurídicas e indemnizações injustas como aquelas por que o governo passara na década
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A linha do Tua (1851-2008)
de 1860 com a companhia inglesa que assumiu a concessão da linha do sueste248). Durante a exploração, o concessionário podia aprovar os regulamentos próprios que entendesse, mas estes deveriam ser previamente aprovados pelo governo. Podia ainda oferecer os serviços que desejasse, mas estava obrigado a prestar os seguintes serviços ao estado: transporte de militares e material de guerra em serviço por metade do preço (uma regalia comum a todas as linhas nacionais e que se manteve até bem recentemente); transporte gratuito de fiscais do governo em funções de fiscalização; transporte gratuito de correio e dos seus empregados e material (em ambulâncias postais ou carruagens de segunda classe caso as primeiras não estejam disponíveis); uso gratuito do telégrafo para despachos oficiais do governo; autorização para colocar linhas telegráficas do estado nos seus postes. O número de viagens diárias seria também determinado por acordo entre o estado e o concessionário, de acordo com as necessidades da circulação. A própria velocidade dos comboios deveria ser fixada de acordo com o governo e com os regulamentos de polícia e segurança do caminhode-ferro. Durante o período da concessão, o concessionário deveria manter todo o material em boas condições, ficando toda e qualquer reparação a seu cargo, excepto no caso de guerra em que o custo das reparações seria assegurado pelo orçamento de estado. Terminado o período de concessão, o governo deveria receber a linha e seu material fixo em boas condições. O material circulante e combustível teria que ser adquirido ao concessionário e serviria ainda de garantia durante os cinco anos seguintes para qualquer reparação que o governo tivesse que fazer na linha. Se o concessionário não conservasse a linha e material em boas condições ou fosse remissa em satisfazer as requisições nesse sentido feitas pelo governo, podia este proceder às necessárias reparações, apropriando-se depois de igual valor das receitas da empresa acrescido de 20% à laia de multa. Em caso de suspensão da exploração, o estado podia tomá-la sob a sua responsabilidade e deveria intimar o concessionário a retomá-la o mais brevemente possível. Caso o concessionário no prazo de três meses não o conseguisse fazer, veria o contrato rescindido e perderia direito a qualquer indemnização. Em troca de todos estes deveres e responsabilidades, o concessionário poderia usufruir da exploração da linha por um prazo de 99 anos a contar da data da assinatura do contrato definitivo, sendo-lhe ainda garantido um rendimento anual líquido de 5,5% em relação ao valor quilométrico por que foi feita a concessão (os 19,6923 contos) ao longo daquele mesmo período de tempo. Para este cálculo, fixavam-se as despesas de exploração em 50% do rendimento bruto, com um máximo de 1,2 e um mínimo de 0,7 contos. Na eventualidade de o produto líquido exceder 5,5%, metade do excesso pertencia ao estado até ao completo reembolso das somas adiantadas pelo governo ao concessionário. O governo poderia resgatar o caminho-de-ferro antes do 248
PEREIRA, 2011.
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A odisseia de uma nova linha
término dos 99 anos e após o 15.º ano de concessão, ressarcindo o concessionário através do pagamento de uma anuidade até ao fim do prazo de concessão original. Essa anuidade seria igual à média do rendimento anual líquido de exploração dos melhores cinco dos sete anos anteriores e em caso algum esse valor poderia ser inferior a 5,5% do capital do valor quilométrico da adjudicação (neste caso 19,9623 contos). Figura 21 – As concessões que o governo fazia à companhia249
Eram-lhe ainda concedidas várias isenções fiscais (a nível geral ou municipal) durante vinte anos a contar da data do início das obras, bem como dispensa durante cinco anos a contar da data do contrato definitivo de taxas alfandegárias sobre a importação de material necessário à construção e exploração. Esta liberdade não era contudo ilimitada, porque no contrato indicavam-se precisamente que materiais e em que quantidade estavam isentos de taxas alfandegárias. Por fim, a nível fiscal, era ainda garantido que nenhum imposto especial seria lançado durante a concessão. O concessionário só pagaria o imposto de trânsito sobre o preço de passageiros e mercadorias, que contudo não poderia ser superior a 5%. As tarifas ainda eram fixadas pelo governo enquanto durasse a garantia de juro; assim que esta tivesse sido totalmente reembolsada, as pautas passavam a ser estabelecidas por comum acordo entre governo e concessionário. Este tinha ainda direito de preferência sobre qualquer ramal que viesse a entroncar na linha do Tua, no entanto não tinha direito a qualquer zona de protecção em relação a linhas paralelas nem a qualquer indemnização pela construção de prolongamentos do seu caminho-de-ferro. Ademais, qualquer outra companhia detentora de uma linha que entroncasse no caminho-de-ferro de Mirandela tinha direito de fazer circular o seu próprio material nesta via, pagando para tal uma portagem. O concessionário ou companhia a quem ele trespassasse a concessão eram considerados portugueses para todos os efeitos jurídicos e legais. Qualquer disputa entre o governo e o concessionário deveria ser julgada por um tribunal arbitral composto 249
Colleccção Official de Legislação Portugueza, 1884: 206.
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A linha do Tua (1851-2008)
por quatro juízes, dois nomeados pelo governo, dois pelo concessionário. Em caso de empate seria nomeado um quinto louvado escolhido por comum acordo entre ambas as partes ou pelo supremo tribunal de justiça em caso de desacordo. Excluíam-se da jurisdição deste juízo arbitral todas as questões ligadas aos projectos de construção, que ficavam dependentes única e exclusivamente do governo. Ao assinar o contrato, o conde da Foz tornou-se o concessionário da linha do Tua (a qual juntaria ao ramal de Viseu), no entanto para poder levar a empreitada a bom termo era necessário criar uma companhia. Foz foi adjudicatário e construtor da linha até 1 de Outubro de 1885, data em que passou a concessão à Companhia Nacional, formada por escritura pública em Lisboa três dias antes (28 de Setembro de 1885). O governo, por decreto daquela data, aprovava os estatutos da nova companhia e autorizava também o trespasse250. A estrutura da empresa, funções e quadros de pessoal foram definidos por regulamentos internos, geralmente designados de ordens de serviço. A Organização geral dos serviços da linha do Tua definia em traços gerais o organograma da companhia: o conselho de administração ficava em Lisboa com a parte administrativa da empresa; a direcção de exploração sedeava-se em Mirandela com a componente técnica da operação (assim que esta fosse iniciada). A direcção de exploração tinha também pessoal eminentemente administrativo (contabilidade, fiscalização e estatística; secretaria; armazéns e serviços de saúde), mas empregava a maioria dos seus empregados em três grandes serviços mais directamente ligados ao caminho-de-ferro: movimento e tráfego (organizava e geria o serviço de comboios e estações); material e tracção (tinha a seu cargo a condução, conservação e reparação do material circulante); e o serviço de via e obras (encarregado da conservação da via, edifícios, instalações, túneis, aquedutos e estruturas metálicas). Com o início da exploração, a companhia publicou também um conjunto de regimentos que geriam o serviço ferroviário nas suas múltiplas vertentes. O serviço era feito por composições de comboios mistos (passageiros e mercadorias), correios e mercadorias. Os horários previam a realização de comboios suplementares. A estação do Tua na linha Douro era de uso comum com a do caminho-de-ferro do Tua. Os serviços de transmissão eram objecto de uma contabilidade própria, que as administrações acertavam com regularidade251. O capital inicial da Companhia Nacional era de 600 contos, um valor insuficiente para levar a cabo a construção das linhas do Tua e de Viseu. Por esta razão foi necessário emitir obrigações. Esta era uma situação comum nas companhias ferroviárias ibéricas. Inicialmente constituía-se o capital acionista e depois recorria-se a empréstimos obrigacionistas, cujo valor superava muitas vezes o capital em acções. Isto era uma for250
Collecção Official de Legislação Portugueza, 1885: 556 e ss.
251
Para tudo isto e para uma lista dos regulamentos e ordens de serviço da Companhia Nacional, ver GOMES, 2014.
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A odisseia de uma nova linha
ma de garantir financiamento sem pôr em causa ou em risco o controlo da companhia, uma vez que as obrigações não concediam direito de voto nas assembleias-gerais252. Tanto as acções como as obrigações foram subscritas maioritariamente em Portugal. O investimento em caminhos-de-ferro secundários seria teoricamente mais acessível a grupos portugueses e por outro lado não interessava aos capitais estrangeiros, que estavam também prevenidos com o fraco rendimento das linhas nacionais de primeira ordem. Além do mais, as tentativas de colocação de obrigações em França revelaram-se infrutíferas253. Subscrito o capital, a obra podia ser concluída (havia sido começada pelo conde da Foz ainda antes da constituição da companhia). No entanto, este capital revelarse-ia insuficiente para cobrir os 19,7 contos/km orçados e que constituíam a base para o cálculo da garantia de juro. A solução para este problema passou por desviar parte do orçamento da linha de Viseu para o Tua. Este buraco teve que depois ser tapado com nova emissão de títulos de dívida254. Por tudo isto, os primeiros anos da exploração ameaçavam tornar-se um problema para a Companhia Nacional. A construção havia custado muito mais que 19,7 contos/ km, mas a garantia de rendimento líquido era apenas calculada sobre esse valor, pelo que nunca daria à companhia um rendimento real de 5,5% do capital investido, como estipulado na lei. Para piorar a situação, o tráfego era extremamente reduzido. O estado, sem dúvida, pagava a sua parte entregando todos os semestres o complemento do rendimento líquido da exploração à companhia até um máximo de 5,5% sobre 19,7 contos. Nos primeiros dez anos, o erário pagou quase sempre o valor máximo dessa garantia, mas isto não era suficiente para que a companhia honrasse os seus compromissos com os detentores de obrigações255. Figura 22 – Pagamento da garantia de juro256
252
ARTOLA, 1978: 371-381 e 521. CARON, 1997-2005, vol. 2: 37. CASARES ALONSO, 1973: 109. COMÍN COMÍN et al., 1998, vol. 1: 88-92. JORDI NADAL, 1982: 39-41. MORAL RUIZ, 1979: 113. TEDDE DE LORCA, 1978: 29.
253
SANTOS, 2014: 65-66.
254
SANTOS, 2014: 68.
255
PEREIRA, 2012b: XXXVII.
256
FINO, 1883-1903, vol. 3: 59.
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A linha do Tua (1851-2008)
O problema da Companhia Nacional foi o baixo custo orçamentado para a construção da linha que se reflectiu nas bases do concurso para a adjudicação da linha do Tua: 23 contos/km era manifestamente pouco para uma das linhas de mais difícil construção na história dos caminhos-de-ferro em Portugal. Este problema tinha sido antecipado em 1880-1881 pelos investidores ingleses que apostaram na concessão do porto e caminho-de-ferro de Mormugão em Goa. Talvez pouco crentes nas capacidades de previsão de custos dos engenheiros nacionais, aqueles capitalistas só aceitaram tomar conta da obra depois de o governo português lhes oferecer uma garantia de juro de 5% sobre 800 mil libras (cerca de 3.600 contos, custo estimado da empreitada) e ainda uma outra garantia de 6% sobre qualquer capital adicional acima daquele valor (seria de 550 mil libras ou 2.500 contos). Deste modo a West of India Portuguese Guaranteed Railway Company (assim seria chamada a companhia fundada por aqueles homens) não corria qualquer tipo de risco com a exploração ou com erros de orçamentação de custos e teria uma vida bastante desafogada. O mesmo não fez a Companhia Nacional do conde da Foz, que se veria sem recursos para honrar as suas dívidas. A companhia suspendeu o pagamento aos obrigacionistas em 1 de Julho de 1891. Neste ano, o serviço das obrigações montava a 133 contos/ano. A dívida a outros credores era de cerca de 800 contos. O rendimento anual proporcionado pela linha e pela garantia de juro era de cerca de 60 contos. Nestas condições, a direcção da Companhia Nacional resolveu encetar um plano à revelia da assembleia-geral e dos credores, que passava por pagar um quarto do cupão das obrigações e uma parte do débito aos outros credores e alargar o prazo da amortização das cargas financeiras para o limite do prazo de concessão das suas linhas. Foi um projecto imposto sob ameaça aos credores: se estes o não aceitassem, a companhia não poderia cumprir os deveres impostos pela lei da concessão e o governo tomaria conta das linhas, não se responsabilizando, como estava previsto na lei, por nenhuma dívida anterior da empresa. Os credores aceitaram, mas mais tarde os obrigacionistas veriam os seus débitos transformados em acções, acabando por ficar com o controlo da companhia257.
257
SANTOS, 2014: 136-139.
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A odisseia de uma nova linha
2.3. O PROJECTO DA LINHA Lurdes Martins258 Graça Vasconcelos259 Paulo B. Lourenço260 A região do Tua apresenta aspectos paisagísticos e geotécnicos peculiares que dotam este local de uma beleza natural única, com apreciáveis encostas, desfiladeiros, precipícios e cascatas de água que rompem ao longo de penhascos nas montanhas. As margens do rio Tua são premiadas com a sombra de amieiros e salgueiros. O difícil acesso, a inclinação, extensão e esforço físico, impediu a agricultura em muitos locais, permanecendo a flora selvagem, principalmente os zimbros e arbustos de grande porte. O ar limpo dada a pouca indústria local e a ausência de pessoas permite a muitas espécies de líquenes crescerem luxuriantemente. Castanheiros, pinheiros e sobreiros cobrem as vertentes sobranceiras ao longo do rio Tua numa floresta densa e verdejante dada a ausência de incêndios. A fauna neste local também é muito variada e contempla várias populações de morcegos, esquilos, aves, assim como, outras espécies que só podem ser encontradas nesta região. A diferença de altitude é tão extrema que em Foz-Tua pode estar nublado, aos 300 m um nevoeiro denso com 5 m de visibilidade e aos 650 m um sol radiante. O relevo é constituído por inúmeros vales onde se encaixam linhas de água que se ramificam 258
Instituto de Sustentabilidade e Inovação em Estruturas de Engenharia (Escola de Engenharia da Universidade do Minho).
259
Instituto de Sustentabilidade e Inovação em Estruturas de Engenharia (Escola de Engenharia da Universidade do Minho).
260
Instituto de Sustentabilidade e Inovação em Estruturas de Engenharia (Escola de Engenharia da Universidade do Minho).
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A linha do Tua (1851-2008)
conferindo uma morfologia peculiar representada por uma série de maciços rochosos e de vales apertados. O troço de Foz-Tua a Brunheda, aproximadamente 20 km de extensão, apresenta-se como um vale encaixado, de aspecto agreste, ladeado por escarpas que chegam aos 676 m. A Brunheda representa a transição entre um relevo íngreme para um relevo menos acidentado e mais suave. Figura 23 – Troço da linha-férrea de Foz-Tua a Mirandela nos 21 km iniciais
Após os primeiros 20-30 km as características morfológicas alteram-se e o terreno passa a ser mais rectilíneo e plano até Mirandela e posteriormente Bragança. Figura 24 – Características da linha-férrea de Foz-Tua a Mirandela: nos primeiros 30 km (esquerda) e após os primeiros 30 km (direita)
Em termos geológicos e do ponto de vista litológico, a região do Tua é caracterizada por rochas graníticas e formações metassedimentares (essencialmente xisto). 86
A odisseia de uma nova linha
Efectivamente, foram estes maciços rochosos que constituíram um desafio construtivo aos engenheiros da altura. A região das Fragas Más pelas suas características geomorfológicas particulares merece um local de destaque neste capítulo, por tratar-se de um local emblemático da linha do Tua, com obras de arte dignas de registo, que só podem ser facilmente entendidas, após uma análise das suas características geomorfológicas. Este local situa-se entre o km 5 e 6 e é uma zona com maciços rochosos de elevada envergadura, escarpas íngremes e o precipício mais sério da linha, sem base de suporte para a construção da ferrovia, o que motivou a construção de um viaduto. Esta condição, aliada às dificuldades existentes no terreno, conduziu a alguns dissabores construtivos, devido à quase inexistência de estudos relativos ao traçado neste local. O viaduto das Fragas Más fica encaixado entre dois túneis e só após a abertura dos mesmos é que foi possível o acesso ao local. Portanto, quando se procedeu aos estudos, não se pôde definir o traçado neste ponto. Figura 25 – Viaduto das Fragas Más (esquerda) e túnel e viaduto das Presas (direita)
Foram apresentados dois projectos para a construção da ferrovia entre Foz-Tua e Mirandela: o primeiro, pela margem direita do Tua, foi apresentado pelo engenheiro João José Pereira Dias e pelo condutor Barnabé Roxo, sob a direção de Sousa Brandão; o segundo, pela margem esquerda, foi apresentado por António Xavier Almeida Pinheiro. Nestes projectos, os engenheiros seguiram os parâmetros previamente estabelecidos na lei. Contudo, qualquer omissão relativamente a determinado parâmetro nas especificações técnicas publicadas pelo governo conduzia à adopção por parte dos projectistas da mesma metodologia de outros projectos aplicados noutros países, citando-os ao longo da memória justificativa. Figura 26 – Projectos do caminho-de-ferro do Tua
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A linha do Tua (1851-2008)
A escolha final recaiu sobre o projecto de Almeida Pinheiro, uma vez que, em primeiro lugar, era mais barato. A escolha da margem direita do Tua exigiria a construção de uma ponte com extensão considerável para atravessar o Tua, quando a linha-férrea se estendesse até Bragança; por outro lado, a proposta de Sousa Brandão implicava a construção de dez túneis com a extensão total de 1307 m, ao passo que o projecto de Almeida Pinheiro previa nove túneis numa extensão global de apenas 510 m. Na solução pela margem esquerda do Tua, existiria mais um viaduto e o volume de alvenaria previsto para os muros de suporte era superior (em 6903 m3), no entanto isto não fazia com que este projecto fosse mais caro que o de Sousa Brandão. Em segundo lugar, a análise da carta orográfica evidenciou que a margem direita era muito mais cortada por profundas ravinas, presumindo-se que fosse muito mais irregular e acidentada; por outro lado, o projecto de Sousa Brandão obrigaria à construção da estação de Foz-Tua em terreno acidentado, o que limitaria as suas dimensões e exigiria consideráveis trabalhos de terraplanagens (a alternativa seria prolongar a linha do Tua paralelamente à do Douro na procura de um local mais razoável para a construção da referida estação); por fim, em termos de condições de tracção a solução de Almeida Pinheiro era melhor e mais conforme com o estipulado na lei (a percentagem de traçado horizontal era substancialmente mais elevada pela margem esquerda; e o traçado com declive descendente era quatro vezes superior pela margem direita, o que para inclinações próximas dos 18 mm/m exigia uma capacidade de frenagem do comboio considerável). Em 1883 foi publicado o anteprojecto para a linha do Tua e em 1884 o projecto definitivo. No entanto, em 1885, um novo plano foi publicado com algumas alterações ao definitivo, sendo designado como projecto definitivo rectificado. Figura 27 – Representação esquemática do anteprojecto (esquerda) e projecto definitivo da linha do Tua
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A odisseia de uma nova linha
O traçado da linha-férrea não foi fácil de estabelecer, dadas as circunstâncias próprias do percurso, caracterizado por desfiladeiros íngremes com desníveis, com necessidade de atravessamento de maciços rochosos de montanha através de túneis e falta de acesso aos locais de construção. Alguns locais de acesso constituíam um autêntico terreno de vegetação densa com necessidade de desbastação. Como consequência da dificuldade das condições de relevo e acessos, o projecto de construção foi marcado por inúmeras alterações ao anteprojecto e ao projecto. O anteprojecto resultante dos estudos prévios incluiu mais túneis do que aqueles que efectivamente foram construídos e também subestimou o caudal de alguns rios e ribeiros, não prevendo a construção de pontes, como a da Cabreira, de Meireles e da Carvalha. O anteprojecto não incluiu também o segundo túnel das Fragas Más. Estas rectificações ao anteprojecto foram o resultado do baixo nível de conhecimento das reais condições existentes no terreno. Quando estudos adicionais foram realizados para a definição do projecto em 1884, ainda não foi possível definir com rigor os perfis transversais, em parte devido a problemas de expropriações não resolvidos e ausência de permissão por parte dos proprietários para averiguação das condições reais do terreno. Esta situação também conduziu à necessidade de modificar algumas obras de arte concebidas no projecto e considerar outras que não estavam previstas. Figura 28 – Traçado em planta e perfil longitudinal da linha (nas Fragas Más) no anteprojecto e no projecto261
Perfil Longitudinal
Projecto (1884.8.4)
Anteprojecto (1883.8.29)
Traçado em Planta
261
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua.
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A linha do Tua (1851-2008)
A primeira alteração está localizada ao km 5 nas Fragas Más e refere-se ao perfil longitudinal definido no anteprojecto e no projecto. Como já foi mencionado, o local das Fragas Más é caracterizado por um relevo muito acidentado, com vales e desfiladeiros estreitos. O acesso ao local dos trabalhos também era escasso ou mesmo inexistente. Portanto, quando os estudos foram realizados, não foi possível obter um perfil correcto, resultando na diferença encontrada entre os dois projectos. O projecto apresentado para a linha do Tua eliminou erroneamente o viaduto das Fragas Más, mas introduziu um segundo túnel neste local (túnel das Fragas Más II). Este túnel de 45 m de extensão permitiu um aumento da secção horizontal (de 196 m para 735 m). Outro exemplo é referente ao local da Armadilha (km 12). Os dois túneis previstos neste local no anteprojecto foram eliminados, por se tratar de uma solução altamente dispendiosa, quer em termos de recursos humanos e materiais, quer em termos de tempo necessário para a execução dos mesmos. Por outro lado, a realização destes túneis em nada aliviava o traçado em perfil, visto que estes dois túneis seriam atravessados por um troço ascendente de 18‰ durante 1 km (limite máximo previsto no projecto). Este declive descendente de 18‰ estendia-se por um curto percurso de 320 m, mas tendo em consideração o peso próprio da locomotiva e da sobrecarga (passageiros e mercadorias), poderia causar descarrilamentos caso o sistema de travagem não estivesse operacional. Esta situação ocorreu pelas mesmas razões apontadas anteriormente, relacionadas com o levantamento incorrecto dos perfis. Os maciços rochosos neste local têm centenas de metros de diâmetro, o que levou a muitas mudanças ao anteprojecto. O grau de dificuldade expectável dos trabalhos, essencialmente resultante do trabalho manual para o desmantelamento destes maciços através de equipamento rudimentar, tal como, martelo e cinzel, e a ausência de uma estrada de acesso ao local foram as principais razões para a discrepância. Embora a construção da linha do Tua tenha tido início em 1884, após aprovação do projecto definitivo, em 1885 foi apresentada uma retificação, resultante de um conhecimento adicional das condições locais, devido ao contacto directo dos engenheiros com o local dos trabalhos. O projecto rectificado foi visto como uma actualização do projecto final com a introdução de alterações não abrangidas nos projectos anteriores. O projecto rectificado considerava a possibilidade de eliminar o viaduto das Presas e substituí-lo por um aqueduto e um muro de suporte. Esta situação ocorreu, porque no projecto definitivo de 1884 foi incluída uma trincheira ao km 1,2 de acordo com os perfis transversais obtidos nos estudos iniciais. No entanto, após um rigoroso levantamento no local foi verificado que a montante do km 1,2 haveria uma trincheira com 28 a 30 m de cota e a jusante a necessidade de construção de um muro de suporte com origem no rio Tua. O conhecimento desta condição determinou a necessidade de internar o traçado na montanha para que fosse possível atravessar aquele local em túnel, razão pela qual foi introduzido o túnel n.º 1 das Presas no projecto rectificado. Desta altera-
90
A odisseia de uma nova linha
ção na diretriz pareceu erroneamente ser possível a eliminação do viaduto das Presas no projecto rectificado, sendo que no projecto este foi concebido não devido ao grau de importância do curso de água nesse local que é insignificante, mas sim para evitar um aterro com cota máxima de 21,5 m que exigiria um muro de suporte considerável. Figura 29 – Representação esquemática do projecto definitivo (1884) e do projecto rectificado (1885) da linha do Tua
Figura 30 – Traçado em planta e perfil longitudinal no local das Presas segundo o projecto definitivo e o projecto rectificado262 Perfil Longitudinal
Projecto Rectificado (1885.6.30)
Projecto (1884.8.4)
Traçado em Planta
262
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua.
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A linha do Tua (1851-2008)
Outra das alterações registadas diz respeito à região das Fragas Más, com a introdução do viaduto encaixado entre dois túneis. Este viaduto foi construído para evitar um muro de suporte com mais de 30 m de altura e com fundações no rio Tua. No projecto rectificado ambos os túneis das Fragas Más sofreram uma redução na sua extensão. No entanto, ambos os projectos adoptam para estes túneis um raio mínimo de 150 m, visto tratar-se de um contraforte considerável, o que diminuiu os trabalhos de movimentação de terras e de escavações integrais do maciço. No projecto rectificado, embora fossem eliminados os troços horizontais neste local, foram excluídos os declives ascendentes de 10‰ (previstos no anteprojecto e projecto e que exigiriam à locomotiva um maior esforço de tração), que passaram a declives de 4‰ em 1199 m. Figura 31 – Traçado em planta e perfil longitudinal no local das Fragas Más segundo o projecto definitivo e o projecto rectificado263 Perfil Longitudinal
Projecto (1884.8.4)
Anteprojecto (1883.8.29)
Traçado em Planta
O túnel de Paradela foi também eliminado no projecto rectificado, pois os perfis transversais e longitudinais demonstraram não ser necessária a sua construção, agravando no entanto o troço com inclinação ascendente que passou de 7,3‰ para 11‰.
263
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua.
92
A odisseia de uma nova linha
Figura 32 – Traçado em planta e perfil longitudinal no local da Paradela segundo o projecto definitivo e o projecto rectificado264 Perfil Longitudinal
Projecto Rectificado (1885.6.30)
Projecto (1884.8.4)
Traçado em Planta
Por fim, verifica-se que o túnel do Amieiro II, após o km 13,9 foi eliminado no projecto rectificado, porque não havia espessura suficiente no terreno. Além disso, este era relativamente inclinado a montante, ao contrário do que fora anteriormente previsto. Figura 33 – Traçado em planta e perfil longitudinal no local do Amieiro segundo o projecto definitivo e o projecto rectificado265 Perfil Longitudinal
Projecto Rectificado (1885.6.30)
Projecto (1884.8.4)
Traçado em Planta
264
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua.
265
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua. 93
A linha do Tua (1851-2008)
As principais diferenças entre os três projectos são apresentadas na seguinte tabela. Tabela 2 – Comparação entre o anteprojecto, o projecto e o projecto rectificado266 Anteprojecto (1883)
Projecto (1884)
Rectificado (1885)
18%o
17,5%o
17,5%o
30 km (56%)
31,6 km (59%)
25,5 km (47%)
221m
225m
243m
Traçado curvilíneo
17,1 km (32%)
17,4 km (32%)
19,4 km (36%)
Traçado retilíneo
36,9 km (68%)
36,5 km (68%)
34,5 km (64%)
53.953m
53.940m
53.917m
Declive máximo Extensão com declive Raio médio
Extensão
Com o projecto definitivo e rectificado, a inclinação máxima do traçado diminuiu, reduzindo o esforço de tracção ferroviária. O valor do raio médio aumentou no projecto rectificado, o que melhorou a segurança ferroviária e permitiu a circulação de locomotivas a velocidades superiores. Os restantes parâmetros eram semelhantes para todos os projectos. Em conclusão, devido às complexas condições geomorfológicas do vale do Tua, os trabalhos construtivos da linha foram precedidos por vários estudos, cujo objectivo era definir alguns detalhes do traçado em planta e dos perfis longitudinais. Os primeiros estudos remontam a 1880 e os últimos são de 1883. O projecto para a construção da linha do Tua data de Agosto de 1884, no entanto, devido às mudanças impostas pelas condições geomorfológicas in-situ, novas alterações ao projecto foram apresentadas em 1885. A este respeito o local das Fragas Más é um exemplo real das condições geomorfológicas adversas que engenheiros e trabalhadores tiveram que enfrentar. Em geral, a elaboração do projecto da linha do Tua entre Foz-Tua e Mirandela foi um processo difícil, com inúmeras mudanças identificadas entre o anteprojecto (1883), o projecto (1884) e o projecto rectificado (1885), resultantes de um levantamento anterior impreciso das condições do terreno (devido a falta de equipamento adequado e dificuldade de acesso aos locais). Somente após o contacto com a realidade algumas mudanças importantes relacionadas com as estruturas especiais de engenharia foram consideradas ou actualizadas267. 266
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua.
267
MARTINS et al., 2013.
94
A odisseia de uma nova linha
2.4. A CONSTRUÇÃO E OS ASPECTOS LABORAIS Lurdes Martins268 Graça Vasconcelos269 Paulo B. Lourenço270 A linha do Tua foi construída entre 1884 e 1887. Numa primeira fase, ligou as povoações de Foz-Tua e Mirandela, numa extensão de aproximadamente 54 km. O seu traçado tem origem ao km 131,42 da linha do Douro, correndo paralelamente a este caminho-de-ferro por aproximadamente 650 m. Afasta-se depois da ferrovia do Douro e segue sempre a margem esquerda do Tua até alcançar Mirandela. É composta por sucessivos alinhamentos rectos, concordados por curvas circulares. Já existiam exemplos de aplicação de curvas de transição do tipo clotóide em algumas ferrovias muito antes da construção da linha do Tua. A grande vantagem destas curvas é a promoção de uma mudança gradual ao longo do raio da curva, reduzindo o desconforto sentido pelos passageiros e promovendo a segurança ao impedir o aparecimento repentino da força centrífuga271. Em todo o caso, as curvas definidas no projecto da linha do Tua foram principalmente circulares, sem curvas de transição.
268
Instituto de Sustentabilidade e Inovação em Estruturas de Engenharia (Escola de Engenharia da Universidade do Minho).
269
Instituto de Sustentabilidade e Inovação em Estruturas de Engenharia (Escola de Engenharia da Universidade do Minho).
270
Instituto de Sustentabilidade e Inovação em Estruturas de Engenharia (Escola de Engenharia da Universidade do Minho).
271
DER/SP, 2006.
95
A linha do Tua (1851-2008)
Figura 34 – Traçado em planta entre os kms 5,45 e 5,72 km na região das Fragas Más272
Em geral, o raio mínimo de 150 m foi aplicado nos contrafortes para diminuir os trabalhos de terraplenagem, que são muito limitados em locais onde existem grandes maciços rochosos, tal como no interior dos túneis. Outra consideração técnica na execução de um projecto ferroviário é a determinação da sua Escala (Dt), que em linguagem ferroviária designa o desnível, normalmente expresso em milímetros, entre os eixos das duas filas de carris, numa secção transversal. Tal como acontece nos projectos rodoviários, existe a necessidade de sobre-elevar o extradorso da curva para que ocorra um equilíbrio de forças em curva, com o intuito de aproximar o movimento circulante em curva às condições de circulação em recta. O projecto ferroviário da linha do Tua adoptou a aplicação da Escala ao longo do traçado em curva. Figura 35 – Forças actuantes devido à curvatura273
A linha ferroviária do Tua é caracterizada por um vasto número de obras de arte (túneis para atravessamento de maciços rochosos, viadutos para superar íngremes encostas, muros de suporte, aquedutos, pontes e pontões), sobretudo nos seus primeiros 21 km. Este troço da linha conta com cinco túneis, dois viadutos e 118 muros de suporte (em alvenaria de pedra de junta seca perfazendo um volume total de 170 mil m3) – ao todo existe na linha um total de seis túneis, dois viadutos e 161 muros de suporte. 272
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua.
273
FARELO, 2010.
96
A odisseia de uma nova linha
Nestes 21 km iniciais, as dificuldades foram inimagináveis, como bem descreve Eduardo Coelho num número do Diario de Noticias de 1887. “A abertura dos primeiros vinte quilómetros do primeiro troço constituiu uma tarefa de engenharia e de execução difícil e arrojada, tão selvática e aparentemente inaproveitável se apresentava a pedregosa e alcantiladíssima garganta que o rio Tua escavou para alcançar o gigantesco desfiladeiro do Douro. No parecer dos melhores técnicos, essa obra não é inferior, em responsabilidade, a algumas vias helvéticas ou francesas das cercanias dos Alpes. É particularmente impressionante o trecho das chamadas Fragas Más. A construção da linha nesse despenhadeiro exigiu vigoroso ânimo aos engenheiros e trabalhadores que aí formigaram por algum tempo, a romper rochedos e esporões, muitas vezes dependurados por cordas e empoleirados em pranchas rapidamente guindadas quando se acendiam os rastilhos”274. Foi necessário transpor desfiladeiros e escarpas íngremes, aos quais os trabalhadores tinham muitas dificuldades em chegar, uma vez que “existia apenas (…) um único caminho, o que descia de Castanheiro do Norte a Barca do Tua. Este caminho que era para peões e cavaleiros foi necessário arranjá-lo para carros: ainda assim os declives mais suaves que se logrou obter foram os de 0,50 metros por metro! Os ferros para os viadutos das Prezas, Fragas Más e Paradela, pesando cerca de 260 toneladas, havendo peças que pesavam mais de uma tonelada, foram conduzidos por esta vereda que desemboca hoje no quilómetro 9 da linha, onde há uma casa de guarda. Para que os carros pudessem descer à linha por esta ladeira sem se despenharem no Tua, era necessário irem atrás deles sustentando uma forte espia 20 a 30 trabalhadores, um dos quais o que servia de carreiro, ficou numa dessas descensões num estado miserável, ficando também feridos os engenheiros que pessoalmente dirigiam este trabalho penosíssimo, tão rude quanto inglório. As margens do Tua apresentam-se nos primeiros 30 quilómetros da linha sob um aspecto imponente como vista panorâmica, mas de uma dificuldade extraordinária para a construção de uma estrada férrea, embora de via reduzida. Não faz ideia dessas dificuldades extraordinárias quem for de comboio, senão olhando para a margem direita do Tua semeada de anfractuosidades, cortadas por abruptas ravinas que gemelha gargantas de monstros, ou formada por extensas rochas graníticas levemente inclinadas para o monte e perfeitamente lisas, chamadas vulgarmente lisos, atestando à evidência que nunca foram pisadas pelo pé do homem”275 . O trabalho, quer em planta quer em perfil, foi extraordinariamente difícil. O desenvolvimento do traçado em curva atingia nesta parte da linha metade da extensão do caminho-de-ferro, ou seja 10.500 m. O restante é composto por alinhamentos rectos, no entanto, o maior deles não atinge 500 m de comprimento. 274
Diario de Noticias, 27.9.1887: 1.
275
Diario de Notícias, 27.9.1887: 1.
97
A linha do Tua (1851-2008)
Mapa 21 – Representação em planta de Castanheiro do Norte em relação ao rio Tua e à linha-férrea
A linha do Tua foi dividida em duas secções: a primeira secção correspondia ao início da linha em Foz-Tua até ao km 15,451 (perto de S. Lourenço) e a segunda secção ia desde o km 15,451 até ao km 53,917 (fim da linha na estação de Mirandela). Figura 36 – Secções de construção da linha do Tua: primeira à esquerda e segunda à direita
As obras iniciaram-se na primeira secção a 4 de Junho de 1885 e na segunda secção (em Mirandela) a 16 de Outubro de 1884. Cada secção estava subdividida em três lanços. Os trabalhadores foram distribuídos pelos seis lanços e os trabalhos desenvolveram-se em simultâneo na primeira e na segunda secção. Tabela 3 – Lanços da primeira e da segunda secção da linha do Tua Primeira Secção (0-15,451 km)
Segunda Secção (15,451-53,917 km)
Lanços
km
Lanços
km
1.º lanço
0-5
4º lanço
15,451 - 25,592
2.º lanço
5 - 9,965
5 lanço
25,592 - 36
3.º lanço
9,965 - 15,451
6 lanço
36 - 53,917
º º
98
A odisseia de uma nova linha
Durante a construção, os túneis, viadutos, aquedutos, pontões e muros de suporte foram construídos juntamente com o resto da linha. Em média mensal, estavam presentes no local da obra 833 trabalhadores para a primeira secção e 875 trabalhadores para a segunda. Contudo, o grosso da mão-de-obra concentrou-se na primeira secção, onde chegaram a laborar para cima de 1.000 homens por mês. Este valor é bastante elevado tendo em conta que esta secção tinha apenas 15,451 km. Esta concentração justifica-se pelas dificuldades construtivas dos primeiros 15 km. A segunda secção, embora mais extensa (38,4 km), apresentava condições geomorfológicas mais favoráveis, pelo que o número de trabalhadores empregados no local era inferior. Todas as pontes e viadutos (com excepção da ponte de Frechas que é em alvenaria) são estruturas metálicas com encontros em cantaria. A ponte com menor vão é a ponte de Meireles ou Cachão e o viaduto de maior vão é o das Presas. Todas as pontes e viadutos metálicos foram dimensionados pelo mesmo método simplificado com recurso apenas à consideração de um modelo de viga simplesmente apoiado, sendo este muito diferente dos métodos actualmente adoptados. No caso da ponte de Frechas o seu dimensionamento foi elaborado através de um conhecimento empírico, adquirido com a massificação da construção destas estruturas e baseado em princípios mecânicos simplificados. Destaca-se também que grande parte desses projectos foi realizada pela Sociedade Anónima Internacional de Construção e Negócios Braine-Le-Conte (Bélgica). Mapa 22 – Mapa das pontes e viadutos da linha do Tua276
O tipo de ponte presente ao longo do traçado revela que o material de construção adoptado foi o granito e o xisto (alvenaria de pedra), característico da região. Por outro lado, foi tida particular atenção com a não-construção de pilares no leito do rio Tua, devido à possibilidade de existência de terreno pouco coeso. Quando as margens do rio apresentavam um aspecto rochoso esta questão já não se colocava. A opção por 276
Google Maps Engine.
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A linha do Tua (1851-2008)
pontes e viadutos metálicos, embora revestida de alguns inconvenientes (quanto à sua conservação, elevado custo económico comparativamente à alvenaria de pedra e dificuldade de transporte dos perfis de aço pelos difíceis acessos à linha), foi a solução adoptada para todos os viadutos. Tabela 4 – Cadastro das pontes, viadutos e pontões da linha do Tua Pk Tipo de Designação (meio Obra vão)
Tipo N.º de obra vãos
Vãos teóricos (m)
Compr. Elementos Ano Observação (m) em arquivo Peças desenhadas (1886)
Presas
1+409
Metálica
2
42,53
42,53
Cálculos Justificativos – Braine-LeEncontros e Conte – 1886 86,0 1887 Pilar central Expediente em cantaria referente à consolidação do talude (1989) Elementos de campo (1989)
Viaduto Metálica
2
22,5
22,50
Peças desenhadas Encontros e (1886) 50,7 1887 Pilar central Cálculos em cantaria Justificativos – Braine-LeConte – 1886
3,0 2,77
2,81
2,75 2,80
Expediente 1953 a 1956
2,78 3,87
3,87
2,76 2,79
Elementos de campo
Fragas Más 5+800
49,0 1962 2,80 2,78
Ponte
Paradela
11+358 Metálica
2,78
1
25,02
100
2,75 3,40
Trabalhos de substituição da ponte 1962 Peças desenhada do projecto de 1962
Cálculos Justificativos – Braine-LeEncontros Conte – 1886 27,0 1887 em cantaria Peças Desenhadas – 1886
A odisseia de uma nova linha
Pk Tipo de Designação (meio Obra vão)
Tipo N.º de obra vãos
Vãos teóricos (m)
Compr. Elementos Ano Observação (m) em arquivo
Leiras
17+064 Alvenaria
1
3,00
3,0
1887
Abóbodas em cantaria
Ferrada
17+311 Alvenaria
1
4,00
4,0
1887
Abóbodas em cantaria
Freixo
20+371 Alvenaria
1
2,00
6,0
1887
Abóbodas em cantaria
-
23+715 Alvenaria
1
2,00
10,0 1887
Abóbodas em cantaria
20,00
Cálculos Justificativos – Braine-LeEncontros Conte – 1886 21,0 1887 em cantaria Peças Desenhadas – 1886
1
35,02
Cálculos Justificativos – Braine-LeEncontros Conte – 1886 36,0 1887 em cantaria Peças Desenhadas – 1886
2,00
3,0
Pontão
Cabreira
26+642 Metálica
1
Ponte
Abreiro 29+200 Metálica ou Vieiro
Pontão
-
32+583 Alvenaria
1
Pontão
-
35+552 Alvenaria
2
Ponte
Pontão
Meireles ou 41+741 Alvenaria Cachão
-
42+028 Alvenaria
1,5
1,5
11,0
1887
Abóbodas em cantaria
1887
Abóbodas em cantaria
1
15,20
Cálculos Justificativos – Braine-LeAbóbodas Conte – 1886 15,4 1887 em cantaria Peças Desenhadas – 1886
1
2,00
8,0
1887
Abóbodas em cantaria
Ribeira da Ponte Carvalha ou 45+778 Alvenaria Frechas
1
12,00
Peças Desenhadas Abóbodas – 1885 12,5 1887 em cantaria Medições e cálculos – 1885
Pontão
1
2,00
3,2
-
47+696 Alvenaria
101
1887
Abóbodas em cantaria
A linha do Tua (1851-2008)
Figura 37 – Pontes metálicas: Paradela, Pk 11+358; Cabreira, Pk 26+600; Vieiro, Pk 29+200; Meireles/Cachão, Pk 41+741277
Um dos viadutos emblemáticos desta linha era o das Presas. Os textos da época descreviam-no (e também ao das Fragas Más) nos seguintes termos: “logo à saída de Foz-Tua, e a um quilómetro, temos o viaduto das Prezas, cuja situação é em extremo curiosa, não é um curso de água nem um vale que se atravessa: é uma forte depressão, toda ela no sentido vertical, que tem a margem do Tua naquele ponto, e que só por meio de um tabuleiro de ferro se podia saltar. Parece mais uma varanda do que um viaduto, assim como o das Fragas Más, outro precipício dos mais sérios que teve a linha. Os operários desciam para o trabalho ligados por fortes cordas, sustentadas superiormente; esta precaução durava até terem recortado na rocha um caminho, ou antes um carreiro de formigas, cuja passagem era sempre evitada pelos menos destros. Alguns desgraçados operários foram vítimas, pela sua temeridade, tendo a maior parte dos acidentes sido motivados pela natureza do terreno: uma vez um rebanho de ovelhas que pascia pela parte superior da linha fez mover uma pedra que veio a rolar pela margem abaixo; um operário, procurando fugir-lhe, fê-lo precipitadamente e caiu no abismo. Como este, outros desgraçados pagaram com a vida os benefícios que hoje gozamos, permitindo-nos fazer comodamente uma viagem que ainda ontem era das mais penosas do país — a do Pinhão a Mirandela”278. Como já vimos, a região das Fragas Más é uma área com muitos maciços rochosos, íngremes escarpas e com os mais graves precipícios do vale, sem base de apoio para o assentamento da linha, o que motivou a construção de um viaduto. O viaduto original das Fragas Más era uma estrutura mista formada por duas secções metálicas com 22,50 m de vão cada uma e um pilar de alvenaria no centro.
277
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua. LOPES, 2011. SILVA, 2008.
278
Diario de Notícias, 27.9.1887: 1.
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A odisseia de uma nova linha
Figura 38 – Viaduto das Fragas Más: original (esquerda); danos causados pela queda de rochas em 1962 (direita)279
Em 1962, o viaduto foi parcialmente destruído pela queda de um bloco rochoso de grandes dimensões. A estabilidade do talude ficou comprometida pela existência de um sistema de diaclasamento. A solução passou pela construção de um viaduto em betão armado que ao mesmo tempo fizesse a contenção do maciço rochoso da encosta. A remoção da ponte executou-se com grande dificuldade e parte da estrutura acabou mesmo por cair ao rio, sendo possível ainda hoje avistar alguns destroços do tabuleiro metálico quando o nível do rio está baixo. Devido à presença do sistema de diaclasamento do maciço não foi possível efectuar um corte no maciço para diminuir a inclinação do talude, pois o risco de desabamento era elevado. Assim, procedeu-se apenas à demolição de todos os blocos rochosos que se encontravam soltos. Do lado de Mirandela, para a reconstituição da plataforma da via, foi criado um maciço de betão ciclópico de fundação e procedeu-se ao recalçamento e estabilização dos maciços rochosos também com betão. No tramo do lado de Foz-Tua criaram-se contrafortes de betão armado com vãos a rondar os 3,4 m. As cabeças dos contrafortes foram ligadas entre si por uma laje que envolveu também superiormente as cristas das massas rochosas existentes, criando um plano horizontal em que se apoiou a estrutura celular que, num tramo e noutro, forma a plataforma de assentamento das travessas.
279
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua.
103
A linha do Tua (1851-2008)
Figura 39 – Viaduto das Fragas Más: betão ciclópico no tramo do lado de Mirandela (esquerda); cofragem da laje de travação e apoio da estrutura celular no tramo de Foz-Tua. Armaduras dos contrafortes (direita)280
Figura 40 – Viaduto das Fragas Más: contrafortes contraventados no tramo do lado de Foz-Tua281
280
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua.
281
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua.
104
A odisseia de uma nova linha
Figura 41 – Viaduto das Fragas Más: cofragem e armaduras prontas a receber betão na estrutura celular no tramo do lado de Foz-Tua (esquerda); cofragem da estrutura celular – segunda betonagem de 1,2 m no tramo do lado de Foz-Tua (direita)282
Os encontros existentes e o pilar central, que davam antes apoio ao viaduto metálico, foram reconstruidos em betão, perfeitamente ligado às alvenarias ainda existentes, por meio de armaduras travadas entre si por pregagens. Figura 42 – Viaduto das Fragas Más: betonagem do pilar central; cofragem e armaduras da laje de travação e apoio da estrutura celular no tramo do lado de Foz-Tua283
282
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua.
283
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua.
105
A linha do Tua (1851-2008)
Os túneis são um meio para ultrapassar os obstáculos naturais e simultaneamente manter o alinhamento da via-férrea. São a opção escolhida para atravessar montanhas, nas situações em que a sua construção seja mais económica do que o movimento de terras. Em termos de método construtivo destacam-se dois tipos de túneis: o mineiro (ou verdadeiro) e o falso túnel (cut and cover). Designa-se por falso túnel o que é construído a céu aberto e que, depois de concluído, é aterrado sobre a abóbada. O túnel de Frechas ao km 46,2 é um exemplo de um falso túnel. O túnel mineiro envolve a execução de uma abertura totalmente envolvida pelo maciço rochoso ou terroso. À excepção do túnel de Frechas, todos os túneis no Tua são deste tipo. Para escavar a rocha recorreu-se ao uso de explosivos (devido à inexistência de uma tuneladora na altura da construção) e de ferramentas básicas auxiliares na escavação, como cinzéis e picaretas. Além disto, foi necessário recorrer a uma grande força de trabalho humana e animal para o transporte dos detritos resultantes da escavação. Figura 43 – Falso Túnel: túnel de Frechas ao km 46,2
Dos seis túneis da linha-férrea do Tua, três foram revestidos no seu interior: o de Tralhariz, o das Fragas Más II e o de Frechas. O revestimento das paredes foi executado em alvenaria de pedra e o revestimento da abóbada em blocos de cimento. O revestimento para além de conferir maior estabilidade ao maciço evita infiltrações de água para o interior do túnel. As possíveis razões para o revestimento interior dos túneis citados são as seguintes: para o túnel de Tralhariz o revestimento poderá estar associado à reduzida altura do maciço que este atravessa, conferindo-lhe assim uma maior estabilidade interior; relativamente ao túnel de Frechas, o revestimento interior foi realizado por se tratar de um falso túnel; em relação ao túnel das Fragas Más II, o revestimento terá sido executado devido à fractura existente no maciço rochoso e que só foi identificada pela fiscalização em ofícios de 1919.
106
A odisseia de uma nova linha
Figura 44 – Túnel da Falcoeira: túnel sem revestimento interior (esquerda); túnel com acabamento interior (centro); fractura do maciço granítico superior do túnel das Fragas Más II (direita)
Ofícios de 1919 relatam alguns danos e erros construtivos detectados ao longo do traçado. Um desses ofícios referia-se aos túneis das Fragas Más. Para o túnel das Fragas Más I foi identificado numa extensão de cerca de 20 m (num total de 99 m) um desaprumo dos pés direitos; na testa do túnel no lado de Bragança, foram identificadas algumas fendas. A fiscalização também apontou para o desenvolvimento crescente de fendas na boca do túnel das Fragas Más I (lado de Bragança) no intradorso da abóboda, bem como a deformação da abóboda. No túnel das Fragas Más II foram identificadas fendas justificadas pelo excesso de pressão (carga de rocha ou maciço de alvenaria superiormente ao túnel), especialmente na ausência de muros de ala a consolidar a testa dos túneis, ou por infiltrações quando o extradorso da abóboda não é correctamente projectada. As figuras seguintes representam as peças desenhadas de um projecto referente a um túnel tipo. Salientam-se os muros de ala adjacentes às faces laterais do túnel, que são muros de retenção que fazem parte do encontro de uma ponte ou túnel destinado a suportar, lateralmente, o aterro de acesso quando não estabelecida paralelamente ao eixo da via. Figura 45 – Túnel tipo: alçado e corte transversal (esquerda); corte longitudinal (direita)284
284
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua.
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A linha do Tua (1851-2008)
No que diz respeito aos muros, existem dois tipos ao longo do traçado: muros de suporte e muros de espera. Na época atribuía-se o nome de muro de suporte aos que suportavam directamente a linha, isto é, àqueles imediatamente sobre os quais a linha era assente. O muro de espera era designado quando sobre aquele era criado um talude onde a linha era assente. Figura 46 – Perfil transversal dos muros: muro de suporte (esquerda); muro de espera (direita)285
A principal diferença estrutural entre estes dois tipos de muro está na largura dos degraus, a qual é maior no muro de espera. Figura 47 – Muros de suporte nos primeiros 21 km da linha do Tua
Na documentação consultada não existe um registo do cadastro dos muros existentes ao longo da linha. No entanto, foi possível apurar que foram construídos 10.049,41 m lineares de muros e que nos primeiros 21 km foram construídos 118 muros, com um total de 170 mil m3 de alvenaria em pedra. A contabilização dos muros de espera e de suporte foi efectuada com base nos perfis em planta e longitudinais do traçado da linha entre Foz-Tua e Mirandela. Assim, contam-se 161 muros ao longo do caminho-de-ferro. Este número é extremamente elevado comparativamente com o número inicialmente apontado pelos estudos (1883), que era de apenas 30 muros.
285
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua.
108
A odisseia de uma nova linha
Figura 48 – Tipos de muro: de suporte (esquerda); de espera (direita)286
Ao longo da construção, foram contabilizadas as baixas médicas dos trabalhadores, bem como o número de fatalidades em acidentes de trabalho e por doença, pelo menos para a primeira e a segunda secção durante o mês de Maio, Junho e Julho de 1886. Para este trimestre é possível verificar que as baixas estavam relacionadas com febres intermitentes e com alguns casos de varíola. O mês de Julho foi aquele no qual se registaram mais ocorrências de febres (30 trabalhadores). Registaram-se apenas quatro casos de varíola, sendo que em um desses casos um dos trabalhadores acabou por falecer. De qualquer modo, é de realçar a reduzida percentagem de trabalhadores que ficaram doentes durante o trimestre analisado, em comparação com o número total de trabalhadores.
1ª secção Nº trabalhadores de baixa médica
Gráfico 1 – Baixa por doença dos trabalhadores da primeira e segunda secção da construção da linha do Tua em 1886287
14 12 10 8 6 4 2 0
Maio % de absentismo 13/1356=0.96%
Junho 13/1353=0.96%
286
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua.
287
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua.
109
Julho 10/1115=0.90%
1ª secção Nº trabalhadores de baixa médica
A linha do Tua (1851-2008)
30 25 20 15 10 5 0
Maio % de absentismo 13/1356=0.96% Febre
Junho 13/1353=0.96%
Julho 10/1115=0.90%
Varíola
O primeiro acidente mortal ocorreu em Outubro de 1885, na primeira secção da linha. No total, foram contabilizadas 19 mortes, 16 para a primeira secção e três para a segunda secção, o que facilmente se explica pela maior dificuldade e perigo oferecido pelos primeiros 20 km do vale do Tua. Considerando-se uma média diária de 1.470 trabalhadores, o número total de mortes é significativamente baixo: apenas 1,3% dos trabalhadores envolvidos na construção da linha perderam a vida. A principal causa de morte dos trabalhadores foi ferimentos provocados por pedras decorrentes de explosões de tiros de fogo. Outra causa frequente de morte foi as quedas em altura. Apenas um trabalhador faleceu por doença (varíola)
Número de trabalhadores mortos
Gráfico 2 – Causas de morte dos trabalhadores envolvidos na construção da linha288
7 6 5 4 3 2 1 0
Tiros de fogo
Quedas
Quedas
Esmagamento
6
5
1
6
Não determinada 1
Na primeira secção, o maior número de mortes foi registado no primeiro (0-5 km) 288
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua.
110
A odisseia de uma nova linha
e terceiro (9,9-15,4 km) lanços da ferrovia, ou seja, no viaduto das Presas e ao longo das várias trincheiras para a realização de muros de suporte, bem como no local das Fragas Más. Para a segunda secção todas as mortes ocorreram no quarto lanço (excepto o trabalhador que morreu de varíola cujo lanço é desconhecido). O gráfico 3 expõe a distribuição do número de trabalhadores mortos para cada secção da linha.
Nº trabalhadores mortos 2ª Secção
Nº trabalhadores mortos 1ª Secção
Gráfico 3 – Número de trabalhadores mortos nas duas secções da linha do Tua289
16 14 12 10 8 6 4 2 0
3,0 2,5 2,0 1,5 1,0 0,5 0
1º lanço (0- 5km) 7
2º lanço (5- 9,9km) 1
3º lanço (9,9- 15,4) 8
Total
4º lanço (15,4-25,6) 2
5º lanço (25,6-36) 0
6º lanço (36-53,9) 0
Total
16
3
Em relação aos acidentes de trabalho ocorridos ao longo da construção contaramse 58 acidentes, 36 na primeira secção e 22 na segunda. Os trabalhos em ravinas e falésias levaram à queda de muitos trabalhadores, assim como a utilização de explosivos para a abertura de túneis causou graves lesões nos operários, tais como cegueira, amputações e queimaduras graves. Os acidentes ocorreram na sequência de tiros explosão, uma manipulação incorrecta dos mesmos e atingimento por pedras projec289
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua.
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A linha do Tua (1851-2008)
tadas pela explosão. Algumas destas situações foram causadas por um sobrecálculo da quantidade de dinamite e pólvora a usar. Num desses casos, “ocorreu tiros na trincheira nº 76 e uma pedra atingiu o pedreiro que trabalhava no muro de suporte nº 68. A distância do muro até à trincheira era de 70m. O pedreiro ficou ferido sem gravidade na mão esquerda”290. Além de acidentes com explosivos, também se assinalou um número significativo de quedas e deslizamentos em trincheiras e muros de suporte.
Nº trabalhadores acidentados 2ª secção
Nº trabalhadores acidentados 1ª secção
Gráfico 4 – Número de trabalhadores acidentados durante a construção291
40 35 30 25 20 15 10 05 00
25 20 15 10 05 00
1º lanço (0- 5km) 16
2º lanço (5- 9,9km) 6
3º lanço (9,9- 15,4) 14
Total
4º lanço (15,4-25,6) 6
5º lanço (25,6-36) 11
6º lanço (36-53,9) 5
Total
36
22
A maior frequência de acidentes verificados na primeira secção coincide com os locais onde ocorreu um maior número de mortes (primeiro e terceiro lanços da linha). O registo de acidentes tem particular incidência no local das Presas (túnel 290
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua.
291
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua.
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A odisseia de uma nova linha
e viaduto), na região das Fragas Más (muros de suporte, trincheiras e viaduto) e na estação de Santa Luzia (fundações e muros de suporte). Em relação à segunda secção, o registo dos acidentes concentra-se no quinto lanço, ou seja, na ponte do Vieiro (Abreiro) e ao longo das trincheiras e muros de suporte. Os acidentes em muros de suporte e trincheiras estão relacionados com o deslizamento de rochas e de terra. O trabalho era sem dúvida perigoso, mas, a ter em conta as descrições dos acidentes, alguns destes ficaram também a dever-se a uma completa imprudência por parte dos operários: “o trabalhador estava a deitar pólvora a um tiro servindo-se de um atacador de pau. Recorreu com as mãos a um ferro de aço para atacar o tiro. Ficou com a cara queimada. Foi para o hospital de Mirandela”. Noutro caso, “o trabalhador atacou fogo ao rastilho para explodir 5 tiros e foi vítima da explosão, quando se aproximava para verificar os tiros que não tinham rebentado”. E ainda outra situação relativa ao manuseamento de explosivos: “Explosão de tiros nos cavoucos do muro. O trabalhador procurou abrigo debaixo de uma fraga deixando uma mão a descoberto, a qual foi colhida por uma pedra fraturando-a. Ferido em tratamento no Amieiro, onde se encontra com febres intermitentes”. Noutra situação, “o servente colocou-se à frente da boca do aqueduto que estava a ser revestido, para amparar uma pedra. Ficou com o braço esquerdo e a cabeça debaixo da pedra. Fraturou o braço e ficou com a mão esmagada. Tinha sido repreendido pelo encarregado para se desviar da frente da pedra, mas ignorou o aviso”. Casos como este, de não prestar atenção aos avisos de segurança repetiam-se: “o trabalhador ignorou o som de aviso de fogo. Ficou gravemente ferido na cabeça por uma pedra projetada. Foi conduzido para uma casa no Castanheiro. Operado no hospital de S. António em 24/08/86. Está em fase de recuperação mas apresenta alteração das faculdades mentais”. Mesmo os períodos de descanso podiam ser perigosos: “Desabamento na trincheira soterrando um homem que estava a dormir a sesta”292. Em resumo, o número de trabalhadores mortos durante a construção da linha do Tua foi de apenas 18. Houve também 59 feridos. Os dados oficiais indicam 21 mortos e 61 feridos (dados publicados no Diario de Noticias da época)293. São valores relativamente baixos quando comparados com a tradição oral sobre a construção desta ferrovia, que fala em muitos mais desastres e falecimentos. Se se comparar estes valores com o de outras ferrovias, chegamos à mesma conclusão: a construção do caminho-de-ferro de Foz-Tua a Mirandela originou a morte de um número reduzido de trabalhadores. A construção da linha-férrea do Tua entre Foz-Tua e Mirandela foi realizada dividindo o traçado em duas secções. A primeira secção compreendeu o km 0 até ao 292
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua.
293
Diario de Noticias, 27.9.1887, n.º 7796: 1.
113
A linha do Tua (1851-2008)
km 15,451 (perto de S. Lourenço) e a segunda secção estava compreendida entre o km 15,451 e o km 53,917 (fim da linha em Mirandela). De acordo com os arquivos consultados a construção iniciou-se na primeira secção a 4 de Junho de 1885; e na segunda seção a 16 de Outubro de 1884. É possível concluir que a construção da ferrovia começou em Mirandela (segunda secção-fim da linha) e, basicamente, ao mesmo tempo em Foz-Tua (início da linha), encontrando-se perto do km 15 em S. Lourenço. Os trabalhadores foram distribuídos ao longo das duas secções. Também é impressionante o número de trabalhadores envolvidos na sua construção com uma média diária de 1.470 operários (soma da primeira e segunda secção). A linha do Tua regista um total de dois viadutos, cinco pontes, oito pontões, seis túneis, 207 aquedutos e 161 muros de suporte. Assim, para o início da linha (primeiros 21 km) foram construídos a maioria dos túneis, muros de suporte e todos os viadutos da linha. A este respeito a região das Fragas Más é um exemplo real de condições geomorfológicas extremas e difíceis a que os engenheiros e trabalhadores tiveram que enfrentar. Todas as pontes e viadutos da linha na secção entre Foz-Tua e Mirandela, com a excepção da ponte das Frechas, que é de alvenaria, são estruturas metálicas com encontros de alvenaria. A ponte com menor vão é a ponte do Cachão (ou Meireles) e o viaduto metálico com o maior vão é o das Presas. Todas as pontes e viadutos metálicos foram dimensionados pelo método simplificado usando apenas a consideração de um modelo de viga simplesmente apoiada. As principais causas de morte e acidentes dos trabalhadores na construção da linha do Tua foram as seguintes: (1) tiros de explosão, (2) quedas e deslizamentos de terra e (3) esmagamento por pedras. As quedas ao rio Tua nos primeiros 15 km da ferrovia são descritos em relatórios oficiais e foi sempre fatal para o trabalhador, que caía de uma altura de 40 m. Há alguns locais que pelas suas características (desfiladeiros, falésias, terreno irregular) têm uma maior incidência de acidentes e mortes. É o caso dos primeiros 5 km (viaduto e túnel de Presas e de Tralhariz), no lugar das Fragas Más (viaduto e muros de suporte) e entre os 10 e 15 km (nas trincheiras e muros de suporte). Realça-se que alguns acidentes e mortes relatados ocorreram devido ao descuido dos trabalhadores, que desrespeitaram as advertências do capataz. A linha do Tua comparativamente com outras linhas férreas construídas na mesma época não resultou numa perda significativa de vidas humanas.
114
A odisseia de uma nova linha
2.5. PROTAGONISTAS: CLEMENTE MENERES E O CONDE DA FOZ Albano Viseu294 Luís Santos295 Na história do caminho-de-ferro do vale do Tua entre Foz-Tua e Mirandela, vários homens desempenharam papéis de relevo e foram de alguma forma importantes para a construção e abertura da linha. Personagens como Eduardo José Coelho ou o bispo de Bragança, que no parlamento lutaram pelo assentamento de carris no vale do Tua; ministros como Fontes Pereira de Melo ou Hintze Ribeiro, que a decretaram; e, claro, engenheiros, maquinistas, operários que abriram o leito do caminho-de-ferro e contribuíram para a exploração da linha. Contudo, dois homens se destacam nesta história, sobretudo no que respeita aos anos imediatamente anteriores à abertura de concurso para a construção desta ferrovia e nos primeiros tempos da exploração da linha do Tua. Esses homens foram Clemente Menéres e o conde da Foz. * Clemente Menéres nasceu a 19 de Novembro de 1843 em Santa Maria da Feira,
294
Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória (Faculdade de Letras da Universidade do Porto).
295
Historiador.
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A linha do Tua (1851-2008)
filho de uma família humilde296. Começou a trabalhar na serralharia do pai, antes de emigrar em 1859, com apenas 16 anos, para o Brasil, onde trabalhou num negócio de um tio. À semelhança do que acontecia com a maior parte dos emigrantes portugueses no Brasil, Clemente Menéres não fez lá fortuna e regressou a Portugal em 1863. Figura 49 – Clemente Menéres297
Nesta altura, constituiu com João Joaquim de Paes a sociedade Paes e Menéres, destinada à exportação de produtos portugueses e coloniais. E, para tentar angariar mais clientes, viajou por vários países da Europa, da América do Sul e do norte de África. Nestas viagens, adquiriu uma enorme experiência comercial e ideias para novos negócios, que depressa implementou em Portugal: criou uma fábrica de conservas (a primeira no norte do país), estabeleceu uma moagem e investiu fortemente na exportação de vinho, azeite e cortiça. Em 1874, Clemente Menéres esforçou-se por assegurar as matérias-primas de que necessitava para os seus negócios a preços mais vantajosos. Neste ano, dirigiu-se a Trás-os-Montes, onde comprou no lugar de Romeu várias propriedades de sobreiros, uma árvore desvalorizada nesta região e que era usada sobretudo para lenha.
296
Este texto é baseado em VISEU, 2013.
297
VISEU, 2013: 1.
116
A odisseia de uma nova linha
Figura 50 – Placa evocativa da chegada de Clemente Menéres ao Romeu298
Renovou também plantações de vinha (destruída pela filoxera, desde a década de 1860) e iniciou uma cultura intensiva de oliveiras. Investiu igualmente no arroteamento, desbravamento e cultivo de grandes faixas de terreno inculto, no sentido de aumentar a produtividade e a produção das suas terras299. Implementou, por fim, métodos de trabalho novos naquelas paragens que rentabilizaram a exploração da sua propriedade (ao nível da irrigação, extracção de azeite, fabrico de vinho e cultivo e apanha de fruta). No que se pode considerar parte de um processo de concentração vertical, Clemente Menéres conseguiu deste modo assegurar o fornecimento das matérias-primas para os seus negócios. A sua Quinta do Romeu estava também provida de instalações para a transformação destas matérias-primas em produtos transformados: adegas para o vinho (de mesa e do Porto), lagares para o azeite, silos, palheiros e uma fábrica para a cortiça (que pretendia exportar para os mercados da Europa e da América do Sul)300. Figura 51 – Vista panorâmica dos vinhedos e do olival da Quinta do Romeu301
Clemente Menéres dotou também a sua propriedade de escritórios e outras infra-estruturas para a sua gestão e deu ainda aos seus funcionários, residências, uma 298
VISEU, 2013: 21.
299
VISEU, 2013: 22.
300
VISEU, 2013: 24.
301
VISEU, 2013: 23.
117
A linha do Tua (1851-2008)
escola (para a qual contratou também professores no sentido de aumentar a formação dos seus empregados) e uma cantina. A propriedade de Clemente Menéres no Romeu foi também um foco de emprego em Trás-os-Montes. Menéres dava trabalho a muitos operários das regiões mais próximas. Em épocas de maior necessidade de trabalho, e para tarefas mais específicas, a Quinta do Romeu empregou também trabalhadores de outras zonas do país (Alentejo, Guimarães, Porto, Douro, Mirandela, etc.). Para a constituição do grande domínio e respectiva sustentação, Clemente Menéres investiu avultadas somas de dinheiro, tendo mesmo contraído em 1885 um empréstimo bancário, dando como garantia hipotecária a própria propriedade. Com o passar dos anos, a cortiça rapidamente se tornou o produto de excelência da Casa Menéres, muito embora a sua exploração se debatesse com várias dificuldades, desde a subdivisão excessiva das florestas ao desconhecimento dos processos de cultivo silvícola, passando por secas, incêndios e períodos de clima adverso. No entanto, o maior problema enfrentado pela Casa Menéres era a incipiência do sistema de transportes e comunicações da região, que lhe custavam muito tempo e avultados capitais. A cortiça era extraída em locais de difícil acesso e transportada depois através de estradas fracas e carreiros em cavalgaduras e carros de bois. A sua expedição para o Porto e outras regiões do país era também de extrema dificuldade pelas mesmas razões302. Figura 52 – Transporte de cortiça303
Por esta altura, o Romeu só tinha a estrada real n.º 6 para se ligar ao litoral do reino (era por esta via de comunicação que circulava a mala-posta, cujo serviço foi inaugurado também em 1874). Isto trazia problemas à própria preparação da cortiça que não podia ser expedida em prancha (formato preferido dos mercados compradores), uma vez que as fracas condições de transporte e comunicações entre o Romeu e o Pinhão o não permitiam. A maior parte da cortiça tinha que ser transformada 302
VISEU, 2013: 24.
303
VISEU, 2013: 25.
118
A odisseia de uma nova linha
em rolhas na fábrica do Romeu, o que diminuía o seu valor de mercado. Pela década de 1880, o caminho-de-ferro era já uma realidade em Portugal e Clemente Menéres gizou o projecto de levar uma linha-férrea até Trás-os-Montes e às suas propriedades em que tanto dinheiro investira para poder escoar de forma mais eficaz a sua produção de vinho, azeita, frutas e cortiça. Por esta altura, a linha do Douro aproximava-se da foz do Tua (chegara ao Pinhão em 1880) e entre os engenheiros e políticos portugueses debatia-se o sentido a dar àquela via-férrea, no intuito de a conduzir à fronteira com Espanha. Existiam duas possibilidades: ou continuar a ferrovia pelo vale do Douro até Barca de Alva; ou flecti-la na direcção norte pelo vale do Tua até Mirandela e Bragança. A estas discussões assistia com muita atenção Clemente Menéres, que via na segunda possibilidade um excelente meio de dotar as suas propriedades com o mais avançado e eficaz meio de transporte à disposição das pessoas na época. Estas linhas não eram exclusivas: uma não excluía a outra, mas a internacionalização da linha do Douro pelo nordeste serviria de forma muito mais eficaz os interesses de Clemente Menéres. E então Menéres lutou para que a linha subisse o vale do Tua e se internasse em Trás-os-Montes, servindo as suas terras e o seu investimento, em vez de continuar pelo vale do Douro até se ligar a Espanha por Barca de Alva. Nessa luta, Menéres contou com o apoio no parlamento do deputado brigantino Pires Vilar e com o auxílio da câmara municipal de Mirandela. Em 1880, Pires Vilar defendia na câmara dos deputados a necessidade de se levar a linha do Douro, desde Foz-Tua até Mirandela, Bragança e fronteira, em vez de a continuar junto ao rio até Barca de Alva. Em 1882 e 1883, a câmara de Mirandela pedia ao governo que não esquecesse a linha de FozTua a Bragança no seu plano ferroviário. Aquela autarquia enviou ainda representações à associação comercial do Porto, da qual Clemente Menéres era sócio e a qual teria decerto interesse na construção de uma via-férrea pelo vale do Tua, que provavelmente estimularia a actividade comercial na Invicta. Não será demais supor que tenha sido o próprio empresário a acicatar os ânimos daquele deputado e daquela edilidade, motivando-os para a prossecução de um objectivo comum que beneficiava a todos. O próprio Clemente Menéres também não ficou parado, tendo iniciado várias diligências para convencer os poderes centrais a dotar Trás-os-Montes de tão grande melhoramento. Este espírito de iniciativa contrastava, porém, com o fleuma, tranquilidade e passividade dos transmontanos, que não moviam uma palha para convencer Lisboa a investir na província. Por isso, Menéres começou a escrever telegramas onde inventava sublevações por parte dos pacatos transmontanos contra a contumácia dos governos em não lhes conceder um caminho-de-ferro, o símbolo
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A linha do Tua (1851-2008)
do progresso304. Muitos desses telegramas foram difundidos por jornais do Porto e de Lisboa, que se juntavam, assim, conscientemente ou não à campanha movida por Clemente Menéres. O seu objectivo era colocar a reduzida opinião pública nacional do lado dos transmontanos e da sua própria aspiração de ter um caminhode-ferro por onde escoar as suas produções. Num país onde o analfabetismo grassava, esta mensagem transmitida pelos jornais não chegaria à maioria da população. No entanto, chegaria a quem interessava: o governo e os ministros das obras públicas e fazenda, por quem normalmente passava a decisão de construir novos caminhos-de-ferro. Clemente Menéres tinha também consciência de que a realização deste sonho de levar a ferrovia a Trás-os-Montes não passava apenas pelo uso de retórica e pela apresentação de argumentos de justiça e equidade para com aquela província no parlamento. Era preciso invocar argumentos de índole económica e apelar à cobiça dos homens por quem passava a decisão. Nesse sentido, Menéres serviu de intermediário na aquisição de quintas/propriedades agrícolas na região do Tua por parte de alguns deputados. Influentes como Eduardo Pinto da Silva, Martins de Azevedo e José Nogueira Pinto, através da acção do empresário do Romeu, tornaram-se proprietários na região e, como tal, passaram a engrossar a lista dos interessados na construção da via-férrea, funcionando como grupo de pressão junto do governo. A acção de Clemente Menéres não foi bem-sucedida no imediato. O executivo regenerador preferiu em primeiro lugar levar o caminho-de-ferro a Barca de Alva e fazer a ligação até Espanha pela fronteira leste e não pelo nordeste. Todavia, o empresário não desistiria da sua pretensão e, em 1883, veria os seus esforços recompensados, quando os ministros das obras públicas e fazenda apresentaram ao parlamento uma proposta de lei onde se incluía a colocação em concurso da adjudicação do assentamento e exploração da linha de Foz-Tua a Mirandela. Era uma meia-vitória para Menéres: em primeiro lugar, porque o caminho-de-ferro se ficaria por Mirandela e não chegaria, assim, às suas propriedades do Romeu; em segundo lugar, porque a bitola a empregar na construção da via era diferente da usada na linha do Douro (esta era de 1,67 m; aquela de 1 m), o que levantaria alguns problemas. Fosse como fosse, não deixava de ser um grande melhoramento para Trás-os-Montes e uma enorme melhoria no processo de escoamento dos produtos da quinta do Romeu e da região transmontana. Como vimos em capítulos anteriores, as bases do concurso não seduziram nenhum investidor, sobretudo nas cláusulas que respeitavam à garantia de juro e ao resgate da linha por parte do estado. A tarefa de Clemente Menéres não estava ain304
VISEU, 2013:56.
120
A odisseia de uma nova linha
da terminada. A lei estava aprovada, o concurso aberto, mas ninguém se mostrava interessado na construção do caminho-de-ferro. Menéres não desistiu e procurou cativar o seu amigo Henri Burnay para o negócio. Burnay, contudo, não se mostrou interessado nem disponível para tal empreendimento. Nada que fizesse esmorecer a vontade de Menéres de dotar Trás-os-Montes de um caminho-de-ferro. Contando com o apoio de mais 44 signatários, Menéres apresenta uma exposição ao rei, pedindo a clarificação do artigo do contrato posto em concurso, sobre a compensação a pagar ao concessionário em caso de resgate antecipado. Era intenção de Clemente Menéres apresentar uma proposta ao governo para a construção da linha do Tua; ele próprio reconhecia que o contrato, tal como estava redigido, não era atractivo em termos de negócio. A praça original foi encerrada e novo prazo para apresentação de propostas foi estipulado, desta feita com os artigos sobre o resgate da linha redigidos de modo a atrair a atenção dos investidores. Clemente Menéres desta vez não quis arriscar e o seu espírito de iniciativa e desejo de levar o caminho-de-ferro a Trás-os-Montes levaram-no a apresentar candidatura ao concurso. Era uma proposta feita no limite do estipulado pelo governo. A licitação máxima seria de 23 contos/km e o grupo liderado por Clemente Menéres fazia um lanço de 22,999 contos/km. Não seria o objectivo principal de Menéres ficar com a linha, mas que ela se construísse. Era, de facto, um negócio no qual ele não tinha qualquer experiência. Menéres era um comerciante, comprava e vendia os mais diversos produtos e pouco ou nada saberia de construção e exploração de vias-férreas. Daí que o lanço oferecido fosse tão próximo do limite máximo imposto nas bases do concurso. A construção ficava garantida – não se verificaria o que acontecera no concurso anterior – e a linha do Tua seria no curto prazo uma realidade. No entanto, o grupo de Menéres deixava aberto um amplo espaço para que outros capitalistas, mais experimentados nestas andanças, pudessem apresentar propostas mais baixas e, portanto, mais favoráveis para o governo. E foi isso que aconteceu. O conde da Foz, Tristão Guedes de Queirós Correia Castelo Branco, comunicaria a Clemente Menéres e ao seu grupo que iria apresentar uma proposta mais baixa. Este tipo de acordos pré-concursais não eram completamente incomuns e destinavam-se a evitar que uma concorrência exacerbada fizesse baixar em muito o preço quilométrico da linha e colocar assim em causa a viabilidade económico-financeira do caminho-de-ferro. Ao tomar conhecimento da existência de um outro interessado no concurso para a linha do Tua, Clemente Menéres desistiria do concurso. O seu objectivo estava atingido. O caminho-de-ferro pelo vale do Tua ia ser adjudicado, estaria pronto em poucos anos e a quinta do Romeu ganhava um corredor ferroviário que a colocava mais próxima do Porto, dos mercados internacionais, e, consequentemente, a tornava mais valiosa.
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A linha do Tua (1851-2008)
Figura 53 – Descarga de cortiça e de outros produtos na estação de Mirandela305
Clemente Menéres faleceria no dia 27 de Abril de 1916, com 73 anos. Por esta altura, já tinha sido constituída a Sociedade Clemente Menéres, uma companhia por quotas que formara com outros membros da sua própria família. Na direcção da sociedade sucederam-lhe os dois filhos José e Manuel. Mas, o seu nome ficaria indelevelmente marcado na história de Trás-os-Montes, pelos esforços estrategicamente utilizados para a construção de um caminho-de-ferro de Foz-Tua a Mirandela e pelo investimento que fez na sua quinta do Romeu306. * Se Clemente Menéres teve o sonho, a concretização do mesmo coube ao conde da Foz. Foz teve um percurso inverso ao de Clemente Menéres. Enquanto este nasceu numa família humilde e subiu na vida ao ponto de deixar um importante legado à 305
VISEU, 2013: 39.
306
VISEU, 2013: 45.
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A odisseia de uma nova linha
sua família, Foz foi criado numa das famílias mais ricas de Lisboa e acabou os seus dias perto da ruína. Em todo o caso, o seu papel na realização da linha do Tua foi tão determinante como o desempenhado por Clemente Menéres307. Tristão Guedes de Queirós Correia Castelo Branco, conde da Foz, nasceu em Lisboa a 9 de Maio de 1849, filho do general Gil Guedes Correia de Queiroz e de Maria Georgina Palha de Faria Lacerda. Os seus pais eram abastados proprietários no Alentejo e Ribatejo. Quando em 1870 perdeu o seu pai, Tristão herdou um legado avaliado em 30 mil contos308. Esta verdadeira fortuna seria usada pelo conde da Foz ao longo de cerca de 20 anos nos mais diversificados investimentos e também em luxos com que o cidadão mais comum apenas poderia sonhar (a sua colecção de arte e as festas que dava na sua casa localizada nos Restauradores em Lisboa tornaram-se famosas)309. Figura 54 – O palácio Foz nos Restauradores em Lisboa310
307
O texto seguinte é baseado em SANTOS, 2014.
308
SANTOS, 2014: 18-19.
309
SANTOS, 2014: 20
310
SANTOS, 2014: 85.
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O investimento do conde da Foz na linha do Tua insere-se num conjunto de iniciativas financeiras empreendidas por si no sector ferroviário nacional, que por sua vez se inseriam no plano geral de negócio que desenhou sobretudo na década de 1880. O conde da Foz tomou proveito de um modelo de desenvolvimento, que vinha sendo empreendido desde a década de 1850 e que passava pela aposta na construção de obras públicas e sobretudo infra-estruturas de comunicação e transporte. Este modelo assentava numa relação de reciprocidade entre o estado e certos interesses privados. O estado necessitava da intermediação de determinados agentes, que abriam as portas do crédito internacional às suas actividades. Em troca, favorecia-os como parceiros privilegiados na atribuição das correspondentes operações financeiras e de concessões (caminhos-de-ferro, obras públicas, portos, tabacos, etc.), além de negócios e privilégios diversos, os quais podia auxiliar com subsídios e apoios de diferentes tipos. Neste sentido, uma rede de influência política era fulcral. O conde da Foz cedo se apercebeu de que para constituir relações privilegiadas com o estado necessitava de aliados no governo. A integração de Foz no partido progressista está na génese da aproximação às suas figuras-chave e aos benefícios a alcançar. Um dos seus grandes aliados e figura-chave na sua rede de influências foi Mariano de Carvalho, membro do partido progressista que chegou tão alto como ministro da fazenda. Era também um dos mais influentes ideólogos e publicistas do partido progressista, para o que contribuiu a sua carreira de jornalista e invulgar talento político, reconhecido pelo próprio Fontes, que certa vez ao ir para o parlamento exclamou: “Está lá o Mariano de Carvalho e só esse, é um exército!” Figura 55 – Mariano Cirilo de Carvalho311
311
FERNANDES, 2007.
124
A odisseia de uma nova linha
Neste contexto, o conde da Foz tornou-se um dos principais capitalistas portugueses, líder de um grupo – sindicato no dizer da época –, que disputou os negócios que se estabeleciam em torno do estado e não só. Investiu em caminhos-de-ferro em Portugal e em Espanha e tentou alargar esses investimentos à Turquia312 e China313; foi director e accionista do Banco de Portugal314, ligou-se ao Banco Lusitano e fundou uma pequena casa de crédito em Paris315; apostou na agricultura, participando na Companhia Real Promotora da Agricultura Portuguesa e explorando as suas vastas propriedades no Alentejo e Ribatejo (cereais, vinho, azeite, cortiça e produtos pecuários)316; fundou companhias mineiras em Portugal e Espanha317; investiu no canal do Panamá318 e interessou-se por diversas actividades no Brasil319 e Venezuela320. A linha do Tua acabou assim por ser uma parte pouco importante na carteira de investimentos do conde da Foz, cuja pedra angular era sem dúvida a Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses. Em 1884, com a ajuda do então deputado Mariano de Carvalho, Foz implementou um corte decisivo no modelo de gestão desta companhia, substituindo, através de um artifício legal, a maioria francesa da direcção por uma maioria de administradores portugueses. Tudo começou com a lei que aprovava as adjudicações das linhas da Beira Baixa, do Tua e de Viseu aos respectivos concessionários. Na discussão parlamentar, Mariano de Carvalho propôs e viu aprovado um aditamento que estipulava que as companhias que detivessem ou para quem fossem trespassadas as adjudicações deveriam ter uma maioria de administradores portugueses nas suas direcções. As concessões das linhas do Tua e do ramal de Viseu tinham sido feitas a dois indivíduos, mas a linha da Beira Baixa tinha sido adjudicada a uma firma já constituída, precisamente a Companhia Real321. A aceitação da obrigatoriedade de uma maioria portuguesa no conselho de ad312
Centro nacional de documentação ferroviária. Arquivo da CP, caixa 82, pasta Companhia Nacional; listagem de accionistas, dig. 28-30.
313
Centro nacional de documentação ferroviária. Arquivo da CP, caixa 15, pasta Contrato entre a Companhia Real e a empresa Dauphin Duparchi, fl. 51.
314
REIS, 2011: 107
315
Centro nacional de documentação ferroviária. Arquivo da CP, caixa 334, pasta Cartas com bancos, Marchand e Lusitano, dig. 105-106.
316
SANTOS, 2014: 14.
317
SANTOS, 2014: 131-133.
318
Centro nacional de documentação ferroviária. Arquivo da CP, caixa 133, pasta Cartas comerciais, dig. 114.
319
Centro nacional de documentação ferroviária. Arquivo da CP, caixa 15, pasta Contrato entre a Companhia Real e a empresa Dauphin Duparchy, fl. 24.
320
Centro nacional de documentação ferroviária. Arquivo da CP, caixa 15, pasta Contrato entre a Companhia Real e a empresa Dauphin Duparchi, dig. 24.
321
SALGUEIRO, 2008: 57-58
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ministração implicava uma mudança dos estatutos e uma interferência que a maioria dos accionistas (de origem francesa) não queria aceitar. Em assembleia-geral, a direcção em funções propôs que a companhia não aceitasse a imposição do governo e prescindisse da concessão da linha da Beira Baixa. O que normalmente deveria acontecer seria uma aprovação da proposta da direcção pela maioria dos accionistas franceses, que usualmente se faziam representar por procurações. Contudo, desta vez a mesa da assembleia-geral, presidida por um dos aliados de Foz, declarou que as procurações apresentadas pelos representantes dos accionistas franceses eram inválidas à luz da lei portuguesa por se tratar de documentos particulares escritos em língua estrangeira. Deste modo, foi retirado o direito de voto aos representantes dos accionistas franceses e, pela primeira vez na história da companhia, os sócios portugueses detinham maioria em assembleia-geral. Naturalmente, a proposta da direcção foi rejeitada e por unanimidade decidiu-se demitir a direcção e aceitar a imposição do governo, alterando-se para tal os estatutos322. Esta assembleia-geral selvagem (nas palavras da imprensa da época) colocou o conde da Foz à frente dos destinos da Companhia Real. O seu domínio sobre esta sociedade prolongou-se até à crise de 1891-1892. Durante este período, o conde da Foz aumentou substancialmente as concessões da empresa e acentuou inclusivamente o investimento em caminhos-de-ferro espanhóis. A Companhia Real já investia em caminhos-de-ferro no país vizinho, se bem que através de contratos pouco lucrativos. Foz tentou pôr fim a alguns desses acordos e renegociar outros, procurando ainda melhorar as receitas da companhia com a ampliação da rede. A sua política acabou por não alterar o rumo da empresa em direcção ao desastre financeiro, que se revelaria em 1891-1892. Foz foi assim um dos homens mais ricos e influentes de Portugal, com domínio sobre a mais importante companhia ferroviária nacional. Em 1883-1884, o então conde conquistou a adjudicação da linha do Tua e do ramal de Viseu. Como já foi referido, Foz só apresentou candidatura ao segundo concurso aberto em Novembro de 1883, uma vez que as bases para a remição da linha incluídas no primeiro não agradaram aos potenciais interessados. Nesta praça, quatro investidores mostraram interesse, no entanto, como já foi visto, Clemente Menéres retirou-se da corrida quando soube que Foz estava disposto a ficar com a adjudicação. No final, Foz bateu os outros dois concorrentes com um lanço de 19,7 contos. Como já vimos, o contrato definitivo de concessão para a linha de Mirandela foi assinado a 30 de Junho de 1884 (previa uma garantia de juro calculada sobre um preço quilométrico de 19,7 contos). O acordo para a adjudicação do ramal de Viseu seria firmado cerca de um ano depois a 29 de Junho de 1885 entre o governo e qua322
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tro membros do grupo de Foz (preço por quilómetro de 23 contos), depois de Henry Burnay também não ter aceitado a imposição de formar uma companhia com uma maioria de administradores portugueses. O conde da Foz deu início à construção da linha do Tua, contratando para tal os empreiteiros Lliort e Vilageliu. O empreendimento fez-se em coordenação com contactos internacionais: procurou-se em vão obter financiamento no estrangeiro (as obrigações acabaram por ser colocadas em Portugal) e o material fixo e circulante foi adquirido na Alemanha (em Esslingen e Bochum, provavelmente por intermediação do francês Ellicot)323. Alguns meses depois do início da construção, Foz fundou a Companhia Nacional de Caminhos de Ferro, a quem seriam trespassadas as concessões da linha do Tua e do ramal de Viseu. Figura 56 – Acção da Companhia Nacional de Caminhos de Ferro
A direcção-geral da companhia seria confiada a Almeida Pinheiro, um engenheiro próximo de Foz a quem este frequentemente recorria para questões ferroviárias. Nos órgãos sociais da Companhia Nacional, encontramos de novo membros de confiança do grupo Foz. O presidente era o próprio conde e o vice-presidente o visconde de Mo323
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reira de Rei, António Augusto Ferreira de Melo e Carvalho. Este homem era na altura destes acontecimentos um membro da câmara dos pares, onde normalmente defendia as posições do partido regenerador, o que demonstra bem que mais fortes que as lealdades partidárias eram as lealdades financeiras. De facto, até as lealdades financeiras se aliavam à concorrência se isso as beneficiasse. Por exemplo, apesar da divergência surgida na disputa da Companhia Real, o banqueiro e industrial francês Camondo não hesitou em recorrer a Foz para introduzir em Portugal os cimentos Portland ou lhe propor o fornecimento de travessas para as novas linhas. Entre os restantes membros da direcção tínhamos Alfredo Ribeiro, Eduardo Segurado, Henrique Mateus dos Santos (outro regenerador), Júlio Marques de Vilhena (mais um regenerador), António Maria de Fontes Pereira de Melo Ganhado (sobrinho de Fontes Pereira de Melo e simultaneamente administrador da Companhia Real) e Arnaldo Navarro. O conselho fiscal era composto por António Francisco da Costa Lima e Adrião de Seixas, este último um dos juristas que haviam defendido a posição do grupo Foz na Companhia Real324. Na mente do conde da Foz (marquês, desde 1886325) esteve sempre presente o objectivo de prolongar a rede da Companhia Nacional, nomeadamente a linha do Tua desde Mirandela a Bragança. Esta ligação seria realizada, mas não durante a sua administração, que foi aliás bastante conturbada. Desde o início que os custos de construção superaram em muito os 19,7 contos sobre os quais recaía a garantia de juro o que colocou a companhia em sérias dificuldades financeiras. Como vimos, a solução mais imediata foi desviar verbas do orçamento do ramal de Viseu para a linha do Tua. No próprio ramal de Viseu foi necessário introduzir alterações ao projecto inicial, que incluíram novas obras de arte e consequentemente aumentaram também o preço de construção. O capital inicialmente angariado através de obrigações tornou-se insuficiente e foi necessário proceder a nova emissão de títulos de dívida. A exploração da linha do Tua também não foi muito rendosa (em virtude da fraca densidade populacional da região, que ademais tinha sido atingida pela filoxera, e da falta de estradas que comunicassem com as estações), o que agravou os problemas financeiros da companhia, que se viu assim numa espiral de incumprimentos326. O director-geral Almeida Pinheiro revelava algum pânico em correspondência mantida com o marquês da Foz. Anteviam-se como soluções para este problema a construção de estradas e a concessão da extensão da linha de Mirandela até Bragança, com um rendimento garantido pelo estado (o que permitiria angariar mais capital através de obrigações e pelo menos no curto prazo da construção minorar os problemas da companhia). Todavia, a construção de estradas 324
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era extremamente morosa e por outro lado o governo não apresentava condições para financiar novas obras ferroviárias. A direcção da companhia ainda tentou obter do estado o compromisso de incluir no cômputo da garantia de rendimento as despesas de exploração, sempre que as receitas brutas não fossem capazes de as suportar, mas o problema arrastou-se sem solução imediata à vista. Entretanto, o ramal de Viseu era inaugurado em 1890, mas o início da sua exploração não melhorou a situação financeira da empresa327. Por outro lado, a crise financeira do estado colocou a descoberto todas as incipiências dos investimentos de Foz, que ao longo dos anos vinham acumulando prejuízos. A falência aproximava-se a passos largos. Foram tomadas medidas de corte na despesa (onde se incluía uma simbólica suspensão do pagamento dos honorários da direcção), mas o seu alcance seria limitado. Em meados de 1891 a Companhia Nacional suspendeu mesmo os pagamentos aos obrigacionistas e a outros fornecedores e empreiteiros. Unilateralmente, sem aprovação dos credores nem da assembleia-geral, a direcção de Foz na Companhia Nacional elaborou um plano de pagamentos aos credores insatisfeitos. O marquês argumentou que caso estes não aceitassem o plano, a companhia caía nas mãos do estado e qualquer tentativa de ressarcimento da dívida seria muito mais espinhosa. Naturalmente, os obrigacionistas não ficaram agradados com esta solução e conseguiriam impor outra: a direcção demitir-se-ia e os obrigacionistas conseguiriam uma parte da representação social da companhia trocando os seus títulos por acções328. O fracasso da Companhia Nacional seria porém um dos mais pequenos problemas com que Foz se debateria neste período e que acabariam por o levar à ruína. Maior dificuldade seria levantada pela Companhia Real, a maior empresa nacional na altura e que, tal como a Companhia Nacional, estava também perto da bancarrota, depois de um intenso período de construções e investimentos ferroviários (linha do oeste, ramal de Cascais, linha de Sintra, túnel e estação do Rossio além de outras obras de engenharia financeira em Espanha) cujo retorno tardava em aparecer. À Companhia Real estava intimamente ligado, desde os tempos do conde da Foz, o Banco Lusitano. Este banco debatera-se com problemas financeiros já antes de 1884. Com Foz, o Lusitano entrou no negócio da Companhia Real, com o objectivo de drenar capital da empresa em seu benefício, através das lucrativas operações financeiras que proporcionava, como, por exemplo, a colocação de títulos. No início da década de 1890, o banco sentiu a crise e viu-se inclusivamente forçado a suspender a troca das suas notas por metálico. Numa tentativa de o salvar, Foz, em 1891, autorizou a transferência de obrigações do fundo de pensões da Companhia Real, no valor de 205 contos, para o Banco Lusitano. Esta proeza levaria Foz à cadeia. Seria liber327
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tado sob fiança de 250 contos, mas o seu prestígio ficaria manchado para sempre329. Figura 57 – A questão do caminho-de-ferro e a dança dos títulos
A partir daqui a carreira de Tristão Castelo Branco como capitalista entrou numa espiral descendente. Foi afastado das companhias ferroviárias que dominara (Real e Nacional), do Banco de Portugal e do Banco Lusitano. Após a morte da mãe e da sua segunda esposa, retirou-se para um exílio bucólico em Torres Novas, onde se dedicou à agricultura. O seu palácio nos Restauradores foi inicialmente arrendado e depois vendido, assim como o seu faustoso recheio. Figura 58 – Casa da Torre de Santo António, na quinta de Santo António em Torres Novas330
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O marquês da Foz, um dos homens que animaram o capitalismo da segunda metade da década de 1880 e que tornou realidade o sonho de Clemente Menéres, viria a falecer em 1917 na sua quinta de Torres Novas331.
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2.6. PROTAGONISTAS: ALMEIDA PINHEIRO, JOSÉ BEÇA E DINIS MOREIRA DA MOTA Hugo Silveira Pereira332 José Manuel Lopes Cordeiro333 No capítulo anterior destacámos os homens que procuraram criar as condições económicas e financeiras para que a linha do Tua fosse uma realidade. Neste falaremos dos que efectivamente contribuíram para a sua concretização no terreno, no vale do Tua. Obviamente que uma obra da envergadura do caminho-de-ferro de Foz-Tua a Mirandela empregou milhares de operários, dos quais é impossível dar conta por falta de fontes. Assim, nos parágrafos seguintes, enfatizaremos o papel dos engenheiros-directores da empreitada: António de Xavier Almeida Pinheiro, José António Ferro de Madureira Beça e Dinis Moreira da Mota. * António Xavier de Almeida Pinheiro nasceu a 4 de Fevereiro de 1845 em Estremoz, filho de António Xavier Pinheiro, tenente-coronel de lanceiros, condecorado com as ordens de São Bento de Avis e de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa. Em 1862, com 17 anos, assentou praça na armada como aspirante de terceira classe na companhia dos guardas-marinhas em 1862. Frequentou em seguida a escola 332
Centro Interuniversitário de História da Ciência e da Tecnologia (Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa).
333
Centro de Investigação em Ciências Sociais (Universidade do Minho).
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politécnica de Lisboa e mais tarde a escola do exército, depois de se desvincular do exército nacional. Em 1871, concluiu o curso de engenharia ministrado por aquela instituição de ensino, tendo obtido o primeiro prémio pecuniário em ambos os anos da formação. Entrou para o serviço do ministério das obras públicas no dia 30 de Janeiro de 1872, como engenheiro subalterno da repartição distrital de Angra do Heroísmo. A 21 de Julho daquele ano, tornou-se engenheiro chefe de secção na mesma direcção de obras públicas. No mesmo ano tornou-se sócio da associação de engenheiros civis portugueses. Deixou o arquipélago dos Açores em 30 de Março de 1873, depois de obter a necessária autorização do seu superior hierárquico. No dia 26 de Abril, passou a trabalhar sob as ordens de Francisco Maria de Sousa Brandão nos estudos do caminho-de-ferro de Abrantes a Monfortinho (linha da Beira Baixa). Por esta altura, o ministério das obras públicas e a classe engenheira nacional pretendiam fazer deste caminho-de-ferro a verdadeira ligação internacional entre Lisboa, Espanha e França, verificado que fora o erro da directriz da linha de leste (que fazia aquela ligação mas por um percurso muito maior). No início da década de 1870, o governo encomendou estudos sobre esta ferrovia a Sousa Brandão, que viria a demonstrar que a conexão férrea internacional pela Beira Baixa era, de facto, a melhor e mais rápida solução para ligar Lisboa à fronteira espanhola (e francesa)334. Almeida Pinheiro participou assim nestes estudos, trabalhando com um técnico com uma enorme experiência e uma enorme autoridade335. Contudo, em Novembro de 1873, transitou para a linha do Douro, a pedido do director da construção deste caminho-de-ferro, Lourenço de Carvalho. Sousa Brandão não se opôs à solicitação e dispensou Almeida Pinheiro, que se apresentou ao novo serviço a 5 de Novembro de 1873. Começou por trabalhar nos estudos da secção da linha do Douro da Régua ao Pinhão, tendo como ajudante o engenheiro Poppe. O director da construção tinha-o “na conta de um dos seus mais intelligentes colaboradores [e] perdoava-lhe de boa vontade a quasi autonomia que elle se arrogava na Regua”336. A 28 de Janeiro de 1874, foi considerado oficialmente chefe de secção. Terminados os estudos da secção da Régua ao Pinhão, Almeida Pinheiro foi encarregado do exame da secção anterior, de Porto de Rei à Régua, no que contou com o apoio do seu colega engenheiro Aguilar. Em seguida, foi incumbido da construção da sexta secção do mesmo caminho-de-ferro do Douro, tarefa que manteve até 1879. A 2 de Agosto deste ano foi-lhe ordenado que se apresentasse no ministério das 334
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obras públicas em Lisboa, que o encarregou (15 de Novembro) novamente da análise da directriz de um novo caminho-de-ferro, desta feita o de Lisboa a São Martinho do Porto e Pombal. Estes estudos faziam parte dos planos do governo do partido progressista para adjudicar uma linha-férrea paralela à linha do norte (Porto-Lisboa) à Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses. Contudo, a discussão política desta via trouxe à colação o argumento militar (no entroncamento em Pombal e no atravessamento das linhas de Torres), que invalidou os esforços do governo (e de Almeida Pinheiro) que não conseguiu assim aprovar o contrato no parlamento337. Antes (desde 24 de Janeiro de 1880), o engenheiro acumulou o estudo daquela via-férrea com o da directriz de um caminho-de-ferro que partindo da linha de leste seguisse até Castelo Branco e se prolongasse até entroncar na linha da Beira Alta. Por esta altura, o caminho-de-ferro da Beira Baixa (por Castelo Branco) fora despojado do seu carácter internacional, em virtude da construção do ramal de Cáceres pela Companhia Real e da oposição desta empresa àquele empreendimento. A linha da Beira Baixa passou a ser encarada como uma solução interna que constituía uma secção de uma ferrovia paralela à fronteira com Espanha, uma forma de ligar os caminhos-de-ferro de Leste e da Beira Alta e um meio para ligar a Covilhã à rede férrea portuguesa. Almeida Pinheiro foi um dos primeiros engenheiros a estudar esta solução. Dos seus exames resultaria a publicação de uma memória descritiva e justificativa da linha da Beira Baixa na Revista de Obras Publicas e Minas em 1884 (Caminho de ferro da fronteira. Memoria descriptiva e justificativa), onde defendia a sua construção por conta do estado338. Em 12 de Novembro de 1881, foi-lhe confiada nova comissão para encontrar solução para uma outra necessidade da rede férrea nacional: a ligação entre as linhas do Douro e da Beira Alta. Almeida Pinheiro realizou dois estudos (pelo vale do Côa e pelo vale do Teja) que permitiam o assentamento de uma via entre o Douro e Vila Franca das Naves/Vila Fernando. Este caminho-de-ferro esteve durante muitos anos na mente dos governantes nacionais, chegando mesmo a constar do plano ferroviário de finais da década de 1920, mas nunca foi construído339. A perícia de Almeida Pinheiro valer-lhe-ia um novo trabalho em 1883. A 11 de Janeiro, o governo solicita-lhe a realização de um novo estudo da linha de Foz-Tua a Mirandela. Como já vimos anteriormente, Sousa Brandão fizera uma análise pela margem direita do rio e o governo pretendia então obter uma segunda opinião pela margem esquerda (que viria efectivamente a ser implementada, malgrado a oposição do deputado de Alijó, Teixeira de Sampaio). O ministério abriria concurso para adju337
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PINHEIRO, 1884.
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dicar esta linha (juntamente com as da Beira Baixa e de Viseu) ainda em 1883 e Almeida Pinheiro seria uma vez mais chamado pelo ministro para fazer parte da comissão que presidiu ao concurso para a concessão do caminho-de-ferro da Beira Baixa340. Terminada esta tarefa, o engenheiro foi enviado para o sul do país (a 18 de Outubro de 1883), para fiscalizar directamente os trabalhos de construção da linha-férrea do Algarve (entre Beja e Faro). Contudo o seu futuro mais imediato passaria efectivamente por Trás-os-Montes e pelo vale do Tua ao serviço do adjudicatário da linha de Mirandela, o conde da Foz. O início da sua ligação com este empreendimento data pelo menos de Setembro de 1884, já que neste mês uma carta enviada ao conde da Foz identifica Almeida Pinheiro como engenheiro ao serviço do concessionário341. Oficialmente, porém, o engenheiro só a 28 de Novembro de 1884 obteve exoneração do serviço do ministério das obras públicas para poder passar ao serviço “da Companhia que se está organizando para construir e explorar a linha ferrea de Foz-Tua a Mirandela”342. Foz e Almeida Pinheiro não eram desconhecidos um do outro. Na verdade, o conde recorria amiúde aos serviços do engenheiro para questões ferroviárias. Aliás, Foz fora empreiteiro de algumas obras na linha do Algarve, que Almeida Pinheiro fiscalizara343. O projecto da Companhia Nacional era mais à medida do perfil profissional do engenheiro. Segundo o elogio publicado na Revista de Obras Publicas e Minas quando da sua morte, “tinha a propensão para o commando apparatoso (…), comprazendo-se em operar por conta propria, e em ponto grande, até onde chegavam os seus recursos bafejados pela fortuna”344. Entre 1884 e 1890, o técnico dirigiu a realização de estudos e a construção do caminho-de-ferro do Tua e do ramal de Viseu, ao serviço da Companhia Nacional de Caminhos de Ferro. No dia da inauguração da linha do Tua, evidenciou o seu carácter rigoroso e disciplinado que sempre imprimiu ao assentamento de ambas as vias: podia-se “vêr todo o pessoal da linha, uniformisado, como elle proprio, segundo a sua phantasia, obedecer ao seu nuto, adoptar as suas maneiras, imitar os seus processos”345. Após a conclusão de ambos os trabalhos, foi agraciado com a comenda da ordem militar de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa e tornou-se ainda directorgeral da Companhia Nacional346. Foi assim responsável pela organização e direcção 340
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Arquivo histórico do ministério das obras públicas. Processos individuais. António Xavier de Almeida Pinheiro.
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da exploração das duas ferrovias. Deste modo, Almeida Pinheiro reforçou a sua confiança junto do conde da Foz, que voltou a contar com a sua perícia na construção da linha da Beira Baixa (adjudicada à Companhia Real, de que Foz era presidente). Figura 59 – Almeida Pinheiro e o seu staff347
Como foi referido atrás, os investimentos do conde da Foz acabariam por se revelar ruinosos e Almeida Pinheiro presenciou na primeira pessoa à derrocada do capitalista. Em 1889, quando a Companhia Nacional já se encontrava em incumprimento, o engenheiro escreveu uma missiva alarmante ao conde, informando não ter dinheiro para fazer face às despesas da construção do ramal de Viseu e da linha da Beira Baixa. De facto, Almeida Pinheiro chegou mesmo a adiantar “sem garantia e do seu bolso, quantiosas sommas para a conclusão dos trabalhos, e tomou individualmente e para o mesmo fim responsabilidades de certa monta em alguns bancos de Lisboa, soffrendo prejuizos consideraveis n’estas operações, que em caso algum podiam ser lucrativas, mas a linha foi aberta á exploração, e estava satisfeito o seu amor proprio de engenheiro”348. Foi aliás, por esta razão que Almeida Pinheiro se demitiu do cargo que ocupava na empresa construtora da linha da Beira Baixa, quando a obra estava perto do seu fim349. 347
Pontos nos ii, 14.10.1887, n.º 127: 324.
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O técnico deu mostras de se querer também desligar da Companhia Nacional desde 1889350, contudo só abandonaria efectivamente aquela firma em 11 de Março de 1892, altura em que passou à disponibilidade no ministério das obras públicas. Almeida Pinheiro foi assim um engenheiro que se especializou sobretudo em caminhos-de-ferro. Contudo, isto não quer dizer que não se tenha dedicado a outros campos na arte da engenharia. Por exemplo, em 24 de Maio de 1881, foi encarregado de proceder a vários trabalhos topográficos auxiliares da exposição científica que a sociedade de geografa de Lisboa resolvera fazer à serra da Estrela. Ainda neste ano (9 de Julho), foi nomeado vogal do júri especial para os exames de empregados civis da escola do exército, cargo que ocupou ainda em 1882 (7 de Julho) e 1883 (5 de Julho). Perseguiu também carreira política, nas fileiras do partido constituinte (uma pequena agremiação que orbitava em torno das figuras de Dias Ferreira, Pinheiro Chagas e Vaz Preto351), pelo qual foi eleito deputado em Mogadouro para a legislatura de 1884-1887. No parlamento, fez parte, como não podia deixar de ser, da comissão de obras públicas, tomando parte no debate do projecto de lei sobre melhoramentos a introduzir no porto de Lisboa (orando contra). Interveio também em discussões que iam para lá dos meros interesses da engenharia e das obras públicas (contrato com o Comptoir d’Escompte, publicação de documentos da Santa Sé sem beneplácito régio e reforma da carta constitucional). O fim da sua ligação à Companhia Nacional marcaria também o ocaso da sua dedicação aos caminhos-de-ferro. Depois de se demitir daquela firma, foi nomeado director de obras públicas da Horta (24 de Março de 1892), todavia nunca tomou posse daquele cargo. Foi exonerado a 30 de Setembro e colocado na disponibilidade a 1 de Dezembro do mesmo ano. A partir daqui, as fontes calam-se, só voltando a falar em 1898 para dar conta da sua morte com apenas 53 anos de idade352. * José António Ferro de Madureira Beça nasceu a 10 ou 11 de Março de 1859 em Vinhais, mas foi criado em Bragança. Em 1877 rumou a Coimbra onde estudou matemática. Obtido o diploma universitário em 1881, inscreveu-se na escola do exército no curso de engenharia, tendo, enquanto aluno, projectado uma praça em Torre de Moncorvo (1882)353. 350
SANTOS, 2014: 69.
351
SOUSA & MARQUES, 2004.
352
Para tudo isto, ver: arquivo histórico do ministério das obras públicas. Processos individuais. António Xavier de Almeida Pinheiro. Revista de Obras Publicas e Minas, t. 30 (1899), n.ºs 349-350: 19-20. MÓNICA, 2005, vol. 3: 300-301.
353
ANDRADE, 1990.
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Figura 60 – José António Ferro de Madureira Beça354
No final do curso de engenharia, foi contratado pela Companhia Nacional de Caminhos de Ferro para dirigir as obras da construção da linha do Tua. O projecto da estação de Mirandela foi também da sua autoria355. Trabalhou nesta empresa entre 1884 e 1886, mas desconhecem-se mais detalhes desta ligação laboral. Sabemos que em 1886 deixou o serviço da Companhia Nacional, mas desconhece-se o mês em que efectivamente se desvinculou da empresa. Certo é que em Outubro deste ano tornou-se engenheiro condutor de primeira classe no ministério das obras públicas356. É assim possível que tenha também trabalhado com Dinis da Mota, que dirigiu a obra a partir de Janeiro daquele ano. A ser correcta esta afirmação, ambos tiveram que lidar com um motim ocorrido nas imediações de Foz-Tua em Março de 1886. De acordo com um ofício da Companhia Nacional, “a povoação de Foz-Tua foi durante algumas noites o theatro das scenas mais vergonhosas e barbaras que jamais se tem produzido n’esta região. Correrias continuas, gritos afflictivos, tiroteios com cartuchos de dinamite trouxeram esta povoação sobressaltada por algum tempo e puseram em risco a vida dos seus habitantes”. A revolta acabaria por ser resolvida graças à acção de um irmão de José Beça, Celestino Beça, alferes de caçadores, estacionado em Bragança. 354
ARAGÃO, 1967: 10.
355
SOUSA, 2013, vol. 2: 670.
356
Arquivo nacional torre do Tombo. Registo Geral de Mercês de D. Luís I, liv. 49, f. 229. Collecção Official de Legislação Portugueza, 1886: 428-440. Gazeta de Bragança, 28.12.1902, n.º 554. O Seculo, 7.5.1902, n.º 7308: 1. LEITÃO-BANDEIRA, 2010: 436-437.
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Figura 61 – O motim, segundo a Companhia Nacional357
Como funcionário público, José Beça fez parte da equipa que estudou os caminhos-de-ferro a norte do Mondego, cabendo-lhe o exame das linhas de Arganil à Covilhã e de Mirandela a Bragança358. Terminados os estudos daquelas vias-férreas, foi nomeado chefe da repartição técnica da direcção de obras públicas de Lisboa. Em finais de 1886 e inícios de 1887, transitou para o corpo de engenheiros de obras públicas, tendo colaborado com os projectistas da rede de esgotos de Coimbra (Cecílio da Costa e Costa Couraça). Algures entre 1887 e 1893 trabalhou também na construção da linha da Beira Baixa. Em 1890, era colocado pela Gazeta de Bragança nos jazigos de mármore e alabastro de Santo Adrião em Trás-os-Montes, embora não saibamos específicos da tarefa que ali desempenhou359. Ainda naquele ano elaborou o projecto da casa da Assembleia Brigantina, enquanto trabalhava no nivelamento dos arruamentos de Bragança e da reconstrução da canalização de águas da cidade360. Por portaria de 9 de Março de 1893, foi nomeado para uma comissão incumbida de organizar os regulamentos para o regime, polícia e serviço das bolsas de trabalho. A comissão foi dissolvida por por357
Arquivo histórico militar. Processo individual de Celestino Jacinto Madureira Beça. Ofício da Companhia Nacional de Caminhos de Ferro datado de 12.6.1886 dirigido a Celestino Beça.
358
Gazeta de Bragança, 21.6.1903, n.º 579. PEREIRA, 2012a: 142.
359
Gazeta de Bragança, 8.7.1890, n.º 99.
360
SOUSA, 2013, vol. 2: 670 e 704.
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taria de 30 de Junho seguinte após cumprimento dos seus objectivos, sendo os seus vogais louvados361. No âmbito desta tarefa, conheceria o director-geral do comércio e estatística, Ernesto Madeira Pinto, que provavelmente o levou para os quadros da direcção-geral de estatística e dos próprios nacionais. Aqui foi chefe-engenheiro da primeira secção da repartição central e chefe da repartição do serviço de recenseamento geral da população, tendo dirigido os trabalhos do censo populacional de 1900. Neste âmbito, foi nomeado representante de Portugal no encontro da direcçãogeral de estatística demográfica que se realizou em Paris em Agosto daquele ano, tendo também representado o reino em Bruxelas362. José Beça coordenou ainda a elaboração do mapa corográfico de Portugal, onde dispunha os dados recolhidos durante o censo juntamente com a rede rodoviária e ferroviária de Portugal e a divisão administrativa do reino. Mapa 23 – Mapa corográfico de Portugal, coordenado por José Beça363
361
MACHADO, 1893: 211 e 224.
362
Gazeta de Bragança, 24.6.1900, n.º 425; 20.10.1901, n.º 492; 28.12.1902, n.º 554; 21.6.1903, n.º 579.
363
Biblioteca nacional digital, purl.pt/22847.
140
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Ao longo da sua carreira montou uma rica biblioteca pessoal com mais de 120 volumes de diversas obras científicas. José Beça era tido como um homem culto e inteligente a quem muitos colegas engenheiros recorriam para assuntos da arte e não só364. Em termos políticos, era militante do partido regenerador desde 1892365. Tornou-se deputado pela primeira vez (por Bragança) em 1900, altura em que tinha já um considerável currículo a nível académico e de experiência profissional. A sessão legislativa foi iniciada em 1901 e José Beça foi nomeado para as comissões de obras públicas, petições e estatística. A sua acção foi bastante discreta, só tendo tomada a palavra em poucas ocasiões. De resto, limitou-se a assinar pareceres que iam parar às comissões das quais era vogal (para aprovação do regulamento do porto de Ponta Delgada; para modificação da organização especial dos distritos dos Açores; ou para autorizar a câmara de Ponta Delgada a celebrar um contrato para a construção de um caminho-de-ferro na cidade366). Fora do parlamento, publicitou a necessidade de estender a linha do Tua a Bragança em jornais, centros de conversa e discussão, meios de negócio e em todas as estações oficiais367. Em Maio, apresentou ao governo uma proposta de Fortunato Zagury, requerendo a concessão daquela linha em troca de uma garantia de juro de 4,5%. O governo optaria por abrir concurso e José Beça trabalhou no sentido de angariar concorrentes. Procurou cativar a Companhia Nacional e vários bancos para a obra, em vão. Conseguiu porém interessar um empreiteiro de estradas, chamado João Lopes da Cruz, que se tornou concessionário da linha. Foi José Beça quem no parlamento redigiu o parecer que aprovava a adjudicação. No seu parecer mostrava que o caminho-de-ferro de Bragança estava incluído nos pressupostos da lei de 14 de Julho de 1899 e que seria um melhoramento improtelável para Trás-os-Montes368. A adjudicação acabaria por ser aprovada (lei de 24 de Maio de 1902)369 e a acção de José Beça continuaria desta feita na tentativa de auxiliar o concessionário a angariar o capital necessário para a obra, uma vez que este não tinha capacidade financeira individual para arcar com a empreitada. José Beça aconselhou-o a concorrer à adjudicação da linha do Corgo, no sentido de tornar as suas concessões mais atractivas do ponto de vista financeiro, e procurou ele próprio em Portugal e no es-
364
Arquivo contemporâneo do ministério das finanças. Direcção-geral dos Impostos. José António Ferro Madureira Beça. LIS/LIS3/IS/02732. Gazeta de Bragança, 27.12.1903, n.º 606: 1-2.
365
Gazeta de Bragança, 15.9.1901, n.º 487
366
Diario da Camara dos Deputados, 7.1.1901: 2; 25.2.1901: 3; 2.4.1901: 27; 22.4.1901: 2; 3.5.1901: 19; 11.5.1901: 23 e 29-30. MÓNICA, 2005, vol. 1: 359-360.
367
Gazeta de Bragança, 27.12.1903, n.º 606: 1.
368
Diario da Camara dos Deputados, 28.4.1902: 5-7.
369
Collecção Official de Legislação Portugueza, 1902: 252-259. Gazeta dos Caminhos de Ferro, 16.5.1902, n.º 346: 154.
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trangeiro (Londres e Paris) desbloquear o capital necessário à obra370. No entanto, estes esforços seriam afectados por uma doença grave que o começou a afligir desde finais de 1902. A enfermidade, de início, não prostrou Beça, que continuou a trabalhar na questão financeira da linha de Bragança e em meados de Dezembro José dava sinais de melhoras aos irmãos. Todavia as últimas semanas do ano registariam um agravamento do estado de saúde do engenheiro, que viria a falecer na madrugada de 26 de Dezembro, vítima de um aneurisma, com apenas 43 anos371. O funeral realizou-se em Lisboa, onde José foi sepultado, e foi muito concorrido. Às duas da tarde foi descido o féretro da câmara ardente para um carro preto puxado por quatro cavalos; sobre o caixão foi colocado um pano de veludo com bordados de outo e prata e as coroas de flores enviadas pelos irmãos do defunto, pelos seus empregados da repartição de estatística e também por João Lopes da Cruz, que assim prestava homenagem ao homem que o auxiliara na tarefa de desbloquear financeiramente a questão do caminho-de-ferro de Bragança. Atrás do carro fúnebre seguia uma sege dourada com o prior dos mártires e cerca de 80 carruagens372. Postumamente, a câmara de Bragança fez uma homenagem ao seu conterrâneo, renomeando a antiga rua da Alfândega para rua engenheiro José Beça. Tinha sido nesta artéria que o engenheiro vivera antes de partir para a universidade de Coimbra373. Figura 62 – Rua Engenheiro José Beça na actualidade374
370
Gazeta de Bragança, 27.12.1903, n.º 606: 1. PEREIRA, 2012c: XLIII. SOUSA, 1903: 66.
371
Gazeta de Bragança, 4.1.903, n.º 555: 1(?). Revista de Obras Públicas e Minas, t. 34 (1903), n.ºs 397-399: 13.
372
Gazeta de Bragança, 9.11.1902, n.º 547; 16.11.1902, n.º 548; 14.12.1902, n.º 552; 28.12.1902, n.º 554; 4.1.903, n.º 555.
373
Gazeta de Bragança, 2.8.1903, n.º 585; 27.12.1903, n.º 606.
374
Fotografia de Hugo Silveira Pereira.
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* Dinis Moreira da Mota nasceu a 2 de Março de 1860 no arquipélago dos Açores, mais precisamente na Ribeira Grande, ilha de São Miguel. Frequentou e concluiu o curso de matemática na universidade de Coimbra entre 1877 e 1881. Ingressou depois na escola do exército onde estudou engenharia civil, curso que completou em 1883. Iniciou a sua carreira como engenheiro civil na direcção de obras públicas do distrito de Lisboa. Figura 63 – Dinis Moreira da Mota, c. 1886375
A sua ligação à linha do Tua começou em 1884, quando foi convidado pelos fundadores da Companhia Nacional de Caminhos de Ferro para participar no estudo técnico da linha cuja construção se preparava. Em Outubro desse ano, foi nomeado engenheiro civil do ministério das obras públicas, comércio e indústria e em Novembro seguinte foi enviado para o Alentejo para substituir António José Arroio na direcção da construção do caminho-de-ferro do Algarve, uma linha que pertencia ao estado. Nesta ta375
CORDEIRO, 2012: 282.
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refa, Dinis Moreira da Mota lidou com condições de trabalho pouco hospitaleiras (algo que viria a encontrar também mais tarde no Tua): uma terra pobre, desértica e isolada, sem estradas e com casas de fraca qualidade. Estes obstáculos foram enfrentados pelo engenheiro com a máxima determinação que mais tarde aplicaria no vale do Tua. Em 1885, como vimos, formava-se a Companhia Nacional que tempos depois ficaria com as concessões da linha do Tua e do ramal de Viseu. Dinis Moreira da Mota, que entretanto havia completado e entregue os seus estudos sobre o traçado da primeira daquelas vias-férreas, estava esperançado de poder continuar a sua carreira na nova empresa. As suas expectativas foram concretizadas em Novembro de 1885, quando firmou um contrato com a Companhia Nacional como engenheiro-chefe da construção. Contudo, teve que esperar cerca de dois meses (até Janeiro de 1886) para entrar em funções, até que a necessária autorização governamental para se desvincular do ministério das obras públicas fosse aprovada. Como vimos, é possível que tenha trabalhado juntamente com José Beça na direcção da obra. As primeiras dificuldades enfrentadas por Dinis da Mota no Tua não se ligaram a detalhes técnicos ou de construção, mas sim a obstáculos levantados pelos próprios accionistas da companhia, que desconfiavam da sua reduzida experiência na construção de caminhos-de-ferro para levar a cabo uma obra de tamanha dificuldade. Contudo, o director-geral da companhia, António Xavier de Almeida Pinheiro, conhecia a perícia de Dinis da Mota, desde os tempos em que este participara nos estudos prévios do caminho-de-ferro do Tua. Graças a esta confiança, o ilhéu manteve-se no seu posto e continuou a dirigir os trabalhos de construção. Estes revelaram-se de uma extrema dificuldade, não só em termos técnicos como em termos de gestão de homens. Os trabalhos desenrolaram-se no interior mais profundo de Portugal, num vale escarpado, apertado entre abruptas montanhas. Por outro lado, a disciplina entre os homens nem sempre era fácil de manter. A aglomeração de alguns milhares de operários num só local favorecia o aparecimento de focos de violência, além de que a própria região, uma das zonas mais inóspitas e isoladas de Portugal, era propensa a acção de bandos de criminosos, alguns dos quais se encontravam entre as próprias equipas de trabalho. Finalmente, os donos dos terrenos a expropriar para o assentamento dos carris levantaram também obstáculos à boa prossecução da obra. Estas difíceis condições não desencorajaram, contudo, o jovem engenheiro, que ainda foi capaz de introduzir numerosas mudanças aos planos de construção, que asseguraram a sua viabilidade. Quanto à falta de disciplina e ameaças dos criminosos, Dinis da Mota muniu-se de um revólver… De acordo com o testemunho de um dos seus descendentes, o técnico levantava-se de madrugada, percorria quilómetros, balançava-se em cordas pelos penhascos do vale, comia quando e se era possível e recolhia a sua casa tarde e completamente extenuado. Os seus esforços não se limitaram à construção da linha, uma vez que sobre Di-
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nis da Mota recaiu também a responsabilidade de escolher o material circulante a utilizar na exploração. Em 1886, deslocou-se a França, Bélgica e Alemanha, onde, além de ter tido a oportunidade de avaliar a oferta de material circulante, adquiriu também conhecimentos sobre a forma de se construírem caminhos-de-ferro noutras paragens376. Na Alemanha, visitou as instalações da Maschinenfabrik Esslingen de Emil Kessler, perto de Estugarda. Como veremos em mais pormenor noutro capítulo, foi esta a casa escolhida pela Companhia Nacional para fornecer o material circulante para a linha do Tua e para o ramal de Viseu. Dinis da Mota foi quem negociou os contratos respectivos. O seu momento de glória sucederia no dia da inauguração, a 27 de Outubro de 1887, na presença do rei D. Luís I e da família real. O seu trabalho seria muito elogiado pela imprensa, que via nele um dos engenheiros com maior futuro em Portugal. Pelos serviços desenvolvidos no Tua, foi condecorado com uma medalha, que, contudo, recusou. Mais valiosa era a experiência adquirida nesta empreitada de quase dois anos, que lhe valeu novas oportunidades de carreira dentro e fora da Companhia Nacional. Figura 64 – Dinis da Mota, segundo os traços de Rafael Bordalo Pinheiro377
Ainda em 1887, Dinis da Mota foi nomeado chefe de exploração do caminhode-ferro do Tua, um cargo que acumulou com o de engenheiro-chefe da construção 376
O Brigantino, 18.11.1886, n.º 4: 3.
377
Pontos nos ii, 14.10.1887, n.º 127: 324.
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do ramal de Viseu. Em 1889, voltou à Alemanha para novamente adquirir material circulante, desta feita para a exploração do ramal de Viseu. Nesta viagem, aproveitou para visitar a exposição universal de Paris, organizada entre 6 de Março e 31 de Outubro daquele ano, e durante a qual foi inaugurada a torre Eiffel. Dinis Moreira da Mota recorreu uma vez mais aos serviços da fábrica de Estugarda a quem encomendara as primeiras locomotivas da Companhia Nacional, onde deixou uma imagem extremamente positiva. A sua perícia técnica levou a Maschinenfabrik de Kessler a escrever uma carta à direcção da Companhia Nacional, recomendando que a montagem e experimentação das máquinas fossem feitas em Portugal, nas oficinas da companhia, sob direcção do engenheiro português. Durante este período, Dinis da Mota desenvolveu uma intensa actividade profissional e aprofundou a sua experiência. Acumulou as suas funções na Companhia Nacional com outra na Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses – a de construir as estações e apeadeiros na secção entre Abrantes e Covilhã da linha da Beira Baixa. O engenheiro desempenhou esta função até Setembro de 1891, tendo depois assumido o cargo de director da construção em Alpedrinha (Fundão). Esta empreitada constituiu também um grande desafio para a engenharia da época, sobretudo pelo elevado número de túneis e pontes que exigiu. Terminada esta comissão, regressou ao serviço do ministério das obras públicas em Lisboa, onde passou a viver. Ainda ponderou avançar para uma posição de professorado no curso de engenharia da escola do exército, mas este seria um projecto que nunca concretizaria. Regressaria à sua terra natal, a ilha de São Miguel, em Julho de 1892. Esta decisão foi motivada por um conjunto de factores a nível pessoal e conjuntural. A nível profissional, o seu novo emprego no ministério não se coadunava com o seu espírito empreendedor; em termos familiares, perdera no curto espaço de tempo que mediou Janeiro e Abril de 1892 o seu filho, o seu irmão e o seu pai; o seu casamento passava também por um período turbulento, em virtude da sua carreira profissional que absorvera maior parte do seu tempo; a situação política e económica do país (bancarrota, quebra generalizada de várias companhias, ultimato inglês, revolta republicana no Porto) pode também ter pesado na decisão do engenheiro de deixar o continente e regressar à sua ilha natal. Nos Açores, Dinis da Mota dividiu a sua actividade entre a engenharia, a agricultura – uma das suas paixões – e a política. Como agricultor, montou uma pequena exploração agrícola em Lagoa, onde se dedicava não só ao cultivo de vinha, mas também à pecuária, entre outras actividades. Nesta actividade, procurou munir-se de melhores conhecimentos, contactando lavradores com mais experiência e constituindo uma notável biblioteca agrícola, inclusive com livros encomendados do estrangeiro. Como resultado do estabelecimento dessa rede de contactos com outros agricultores e do conhecimento que adquiria através de bibliografia estrangeira, conheceu António de
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Andrade Albuquerque Bettencourt, com o qual (e juntamente com outros agricultores) formou o primeiro sindicato agrícola português: o sindicato agrícola de Lagoa. Esta foi uma das questões que Dinis Moreira da Mota também defendeu enquanto deputado às cortes, para as quais foi eleito em Outubro de 1892 nas listas do partido regenerador. Em Julho de 1893, apresentou, juntamente com António Barjona Almeida de Freitas (o fundador do primeiro sindicato agrícola no continente), um projecto de lei para regulamentar e estimular a formação de sindicatos agrícolas. A sua proposta mereceu o apoio do governo, mas não seria aprovada, pois o parlamento seria dissolvido entretanto. Dinis da Mota foi também um propugnador da autonomia açoriana em Lisboa, agindo em aliança com o seu irmão Aristides Moreira da Mota. Em 1892, apresentou uma proposta de lei sobre a autonomia dos Açores preparada pela comissão autónoma do distrito de Ponta Delgada, liderada pelo seu próprio irmão. Uma vez mais, este diploma não seria aprovado, por causa da dissolução do parlamento, todavia viria a dar origem ao decreto de 2 de Março de 1895 que deu início ao primeiro período de autonomia do arquipélago dos Açores. Além disto, o engenheiro ilhéu enquanto deputado defendeu os interesses do seu círculo eleitoral em muitas outras questões: produção e taxação de álcool, rotas marítimas entre os arquipélagos e o continente ou o estabelecimento de um cabo telegráfico submarino. Como engenheiro, Dinis da Mota começou por ser inspector da quinta circunscrição industrial em Ponta Delgada, cargo que manteve até 1894, quando passou para a direcção de obras públicas daquele distrito. Três anos depois, era nomeado adjunto do engenheiro director das obras do porto artificial de Ponta Delgada, José Maria Cordeiro de Sousa. Figura 65 – Aspectos dos trabalhos no porto de Ponta Delgada378
378
CORDEIRO, 2012: 290.
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As obras deste embarcadouro haviam começado na década de 1860 e tinham sido aparentemente terminadas em 1894, tendo sido consideradas as mais complexas alguma vez feitas num porto português. No entanto, um conjunto de violentas tempestades ocorrido naquele ano acabaria por destruir uma grande parte do trabalho, que teve naturalmente que ser recomeçado. Esta foi a primeira grande obra empreendida por Dinis da Mota nos Açores, uma empreitada cuja conclusão era de vital importância para a vida económica do arquipélago, uma vez que este não possuía qualquer porto natural. O técnico introduziu mudanças nos planos de (re)construção do porto, que mereceram relutância por parte dos seus colegas engenheiros. Apesar disto, estes planos seriam adoptados a partir de 1901 e de facto venceriam as dificuldades colocadas pela violência do mar e pelas condições climáticas específicas dos Açores. Muito embora as obras só tenham sido verdadeiramente terminadas em 1942, o contributo de Dinis Moreira da Mota para que o porto de Ponta Delgada fosse uma realidade foi determinante. Figura 66 – Extracção de pedra na pedreira de Santa Clara para a construção do quebra-mar379
No mesmo ano em que começou a trabalhar no porto, 1897, Dinis da Mota apresentou um projecto para a construção de um caminho-de-ferro em São Miguel, entre Ponta Delgada, Ribeira Grande, Povoação, Vila Franca do Campo e Lagoa. Para levar a cabo o plano, foi constituída uma comissão promotora do caminho-de-ferro, na qual se incluíam várias personalidades insulares. Entre elas figurava o engenheiro. Esta comissão realizou estudos, cujas conclusões obviamente eram favoráveis à concretização do projecto. O caminho-de-ferro apresentaria maiores dificuldades no 379
CORDEIRO, 2012: 292.
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seu traçado até Ribeira Grande por atravessar regiões montanhosas. Para a ultrapassagem destes obstáculos a experiência de Dinis da Mota no Tua seria decerto muito valiosa. Em 26 de Julho de 1899 o governo autorizou a abertura de concurso para a construção do caminho-de-ferro, mas devido à falta de fundos para organizar uma companhia a construção nunca avançou. Figura 67 – O caminho-de-ferro na Revista Michaelense380
Além destas obras Dinis Moreira da Mota encetou diversas reparações e melhoramentos nas pequenas docas de pesca micaelense; construiu estradas; estabeleceu o primeiro sismógrafo do arquipélago; e reconstruiu o corpo da biblioteca de Ponta Delgada. Nestas obras, revelou sempre um pioneiro sentido de estética paisagística, procurando embelezar os terrenos eventualmente destruídos durante a construção. Foi o caso das pedreiras que forneceram as pedras para o porto, nas quais foram plantadas várias árvores que viriam a dar origem ao parque Dinis Moreira da Mota, entretanto destruído pelas obras do aeroporto de São Miguel. A nível sociocultural, este engenheiro desenvolveu também uma importante actividade, fundando instituições de caridade e promovendo a realização de exposições de artes e indústrias. Foi também professor de ciências no liceu de Ponta Delgada. 380
CORDEIRO, 2012: 296.
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Figura 68 – Dinis Moreira da Mota, c. 1912381
Até à sua morte, desempenhou ainda os cargos de director de obras públicas (desde 1910) e de presidente da câmara de Ponta Delgada (até 1914). Seria no exercício destas funções que viria a morrer em 1914 de uma angina de peito. O seu legado ficaria contudo perpetuado no vale do Tua e na ilha de São Miguel382.
381
CORDEIRO, 2012: 298.
382
CORDEIRO, 2012.
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2.7. A INAUGURAÇÃO383 José Manuel Lopes Cordeiro384 Hugo Silveira Pereira385 Depois de um complicado processo burocrático e de uma construção extraordinariamente difícil, a linha do Tua podia ser finalmente inaugurada e os comboios podiam por fim trazer o progresso e a civilização até ao coração da província transmontana. Os exames preliminares à obra tinham sido feitos entre os dias 22 e 25 de Setembro de 1887. Embora muitas obras ainda estivessem por acabar, a comissão fiscal responsável pela vistoria à linha autorizava a sua abertura provisória ao tráfego de passageiros386. Em todo o caso, a ocasião era de festa e deveria ser celebrada ao mais alto nível, muito embora se tratasse da abertura de uma linha relativamente pouco importante no panorama ferroviário nacional. Na verdade, o próprio rei D. Luís e sua família (rainha D. Maria Pia, príncipe real D. Carlos e infante D. Afonso) deslocaram-se ao extremo nordeste do reino para assistir e apadrinhar o evento e ao mesmo tempo visitar e saudar os seus súbditos do norte do país. Era a primeira vez em muitos anos que o monarca visitava uma das províncias mais pobres e subdesenvolvidas do país, pelo que só a expedição régia era já motivo para celebrar. Além disto, inaugurava-se um caminho-de-ferro, o mais avançado 383
Este texto é baseado no texto dos autores sobre o mesmo assunto publicado no terceiro volume de actas do workshop Railroads in Historical Context: construction, costs and consequences. CORDEIRO & PEREIRA, 2014.
384
Centro de Investigação em Ciências Sociais (Universidade do Minho).
385
Centro Interuniversitário de História da Ciência e da Tecnologia (Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa).
386
O Seculo, 1.9.1887: 1. PEREIRA, 2012b: XXXIV
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meio de comunicação da época, que prometia enriquecer regiões pobres como Trás -os-Montes, e – no caso da linha do Tua – cujo arrojo da construção estimulava a curiosidade nacional: se a visita real constituía por si só uma razão para comemorar, o destaque ia completamente para a festa da inauguração do caminho-de-ferro do Tua: “entre todos os festejos que constituem o programa que está subordinado à visita da família real ao norte do país, o que mais prendia a atenção de todos (…) era sem dúvida «a inauguração do caminho de ferro de Foz-Tua a Mirandela» (…). A curiosidade de todos estava incitada por quanto se tem dito já a respeito do arrojo de tal empreendimento”387. Em todo o caso, “A presença da família real portuguesa veio (…) dar àquela festa de progresso novas e brilhantes cintilações, ruidosos e entusiásticos sinais de alegria”388 Figura 69 – Pormenor do quadro O Rei D. Luís e a Rainha D. Maria Pia visitando o Porto de Leonel Marques Pereira (palácio nacional da Ajuda)389
387
Jornal do Comercio, 1.10.1887: 1.
388
O Comercio do Porto, 30.9.1887: 1.
389
RAMOS, 1994: 95.
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Quer a visita do rei, quer a inauguração do caminho-de-ferro foram aproveitados politicamente pelo regime monárquico. Por esta altura, o republicanismo medrava. Em 1878, o Porto havia elegido pela primeira vez um deputado daquela facção política – Rodrigues de Freitas – para o parlamento da monarquia, muito embora para este resultado muito tenha contribuído o partido progressista ao não apresentar nenhum candidato na Invicta. No início da década de 1880 a ameaça fortalecera-se. Aproveitando as polémicas com o tratado luso-britânico de Lourenço Marques ratificado pelos progressistas e os contratos de obras públicas assinados entre os regeneradores e sindicatos financeiros, financiados através do crédito e dos aumentos de impostos, o partido republicano consolidava-se e a sua imprensa tornava-se mais acutilante. Em resposta, a monarquia revia a sua política de tolerância e tomava medidas repressivas contra os hereges e a revolução390. Simultaneamente, procurava popularizar a figura do rei junto dos seus súbditos, pondo-o circular pelas províncias nacionais no sentido de contrariar a propaganda republicana. Uma das melhores formas de atingir este objectivo era tirando partido das inaugurações de caminhos-de-ferro que na década de 1880 se sucederam, designadamente da linha da Beira Alta (1882) e da linha do Tua. Contudo, e ao contrário do que aconteceu com a primeira daquelas linhas, não se notou um aproveitamento partidário do evento. Em 1882, a abertura do caminho-deferro da Beira Alta motivou ásperos ataques entre republicanos e monárquicos e mesmo entre os próprios partidos fiéis ao regime (progressista e regenerador)391. Cinco anos depois, a festa no Tua não serviu de pretexto para a troca de invectivas entre os protagonistas do regime. Tal como acontecera anos antes, durante a sua discussão no parlamento, a linha do Tua gerou algum consenso, ou pelo menos ausência de combate, entre os militantes dos partidos monárquicos rivais. Os jornais da época acabam por reflectir esta situação. A maior parte deles descreve a inauguração em tons de tal forma frenéticos que o investigador actual suspeita até que ponto essas descrições não são exageradas e não tinham como objectivo convencer os leitores coevos de que não havia oposição ou descontentamento face à monarquia. O Século era o único que dava a entender que isto não correspondia bem à verdade: que o rei não era assim tão querido entre a população e que não nutria também profundos sentimentos pelos seus súbditos – “ao que vemos, eles [os Braganças] nem aproveitam as boas ocasiões para sorrir ao povo” –, que o povo dava muito mais importância à inauguração que ao monarca, enfim que os restantes jornais – “patético[s] na bajulice”392 – noticiavam acontecimentos que não tinham acontecido: “«mais um dia de júbilo para o 390
TORGAL & ROQUE, 1993: 137-141.
391
PEREIRA, 2012c.
392
O Século, 30.9.1887: 1.
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honrado e bondoso povo português, que vê na família real penhor da independência e da liberdade pública». Penhor lembra casa de penhores. E a liberdade e a independência estão bem empenhadas na casa de penhores da ajuda”. Mais: os festejos estavam longe de ser espontâneos, tendo sido induzidos pelo governo: “Oh! Entusiasmo! Oh! Delírio! Como ambos brotais espontâneos dos peitos dos portugueses! O sr. Presidente do conselho concedeu feriado em todas as repartições da alfândega, para que os empregados possam ir à recepção do paço. Espontâneo! Espontâneo! Espontâneo!”393. Em todo o caso, da comparação entre as notícias de alguns jornais da época, podemos ter uma razoavelmente acertada visão daquilo que foi a inauguração da linha do Tua no dia 29 de Setembro de 1887. Como seria de esperar, o acontecimento não passou despercebido à imprensa nacional e pelo menos a um jornal estrangeiro, o Figaro, representado pelo visconde de Claverie. Muitos dos jornais nacionais enviaram os seus correspondentes a Trás-os-Montes para cobrir os eventos (a visita do rei e a inauguração do caminho-de-ferro do Tua). Outros periódicos preferiram confiar no que estes correspondentes enviavam para as suas redacções e limitaram-se a transcrever o que era publicado nos demais jornais. Assim, o Jornal do Comercio enviou Higino de Mendonça; do Correio da Manhã vieram Jaime Vítor e Augusto Lobato; representando o Diario de Noticias estava Baptista Borges; pelo Diario Popular, Eduardo Schwalback; pel’O Seculo, Alves Correia; João Chagas do Primeiro de Janeiro; Acácio Pereira d’O Comercio do Porto; o Economista confiara a cobertura do acontecimento a António Castilho; o Jornal da Noite à dupla Marques da Costa e Ortigão Sampaio; pelo Época, Pinto Coelho; pelo Ilustrado, Luís da Costa; Sárrea Prado do Nação; Lapa Valente do Correio Portuguez; o seu colega Borges de Avelar escrevia para o Comercio Portuguez; para o Folha Nova escrevia Ricardo Costa; José Abranches era o correspondente do Notícias da Noite; Fontoura de Carvalho, do Novidades; e Francisco Carrelhas do Actualidade; a Revolução de Setembro e o Jornal do Porto estavam também representados, mas não foi possível determinar os nomes dos correspondentes; por fim, destaque também para Mendonça e Costa, da Gazeta dos Caminhos de Ferro e para o ilustre desenhista português Bordalo Pinheiro que escrevia e desenhava para o Pontos nos ii394.
393
O Seculo, 1.10.1887: 1.
394
O Comercio do Porto, 30.9.1887: 1. Diario Popular, 26.9.1887, n.° 7358: 1. Jornal do Comercio, 1.10.1887: 1.
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Figura 70 – Rafael Bordalo Pinheiro395
Aliás, é graças a Bordalo Pinheiro que hoje dispomos de algumas descrições pictóricas dos festejos e da envolvência dos mesmos. Não se conhecem quaisquer fotografias tiradas na ocasião. Os únicos registos que possuímos são os desenhos saídos do punho de Bordalo Pinheiro e publicados no Pontos nos ii. A prosa deste periódico deixou também uma descrição das horas passadas pelo rei em viagem e em Mirandela. Contudo, os textos de Bordalo Pinheiro eram normalmente carregados de muita ironia e sarcasmo, pelo que para os detalhes do evento recorreremos a outros 395
Biblioteca nacional digital, http://purl.pt/5856.
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periódicos, designadamente O Comércio do Porto, o Correio da Manhã, o Diário Ilustrado, o Diário Popular, o Jornal do Comércio e O Século. A jornada do rei começou quatro dias antes da festa da inauguração, no dia 25 de Setembro de 1887. D. Luís e o seu séquito tinham à sua frente uma viagem de mais de 500 km entre a capital Lisboa e o vale do Tua, o que era algo que dificilmente poderia ser feito num só dia. Na década de 1880 já era possível ir de Lisboa ao Porto e voltar (uma distância de pouco mais de 600 km) em menos de 16 horas, no entanto, não nos esqueçamos de que estamos a falar do rei, sua família e sua corte, de que esta era uma jornada festiva e de que o rei pretendia aproveitar a inauguração da linha do Tua para visitar os seus súbditos do norte do reino. A viagem não podia nem devia ser apressada. Assim, o rei embarcou no comboio em Lisboa na estação de Santa Apolónia e tomou a direcção norte por volta das 8h00 do dia 25 de Setembro. As estações da linha do norte decoraram-se para a ocasião. Os influentes locais faziam fila para ver e cumprimentar o soberano e a sua família. Em Coimbra, o rei foi saudado pelos professores da universidade. O resto do povo reunia-se nas gares e nos átrios das estações para ver o rei e sua esposa, o anjo da caridade, expressão pela qual ficou conhecida D. Maria Pia. “Algumas mulheres ajoelhavam-se. O príncipe da Beira, a uma janela da carruagem, ria e batia palminhas”396. A família real chegou à estação de Campanhã, no Porto, oito horas depois para pernoitar na cidade. A viagem fora longa, pelo que os jornais elogiavam o rei pelo “árduo sacrifício (…) de fazer uma viagem tão fatigante como a que ontem realizou” e também pelo seu “muito desejo de tomar parte nas festas de progresso”397. A alta sociedade da Invicta esperava o comboio régio. As ruas da cidade estavam brilhantemente iluminadas, assim como o edifício da câmara municipal398. Como já foi referido, o rei aproveitou o ensejo proporcionado pela inauguração da linha do Tua para visitar os povos do norte. Na manhã do dia 26, embarcou novamente no comboio em Campanhã em direcção à província do Minho. Uma vez mais, as elites sociais do Porto esperaram o rei e desejaram-lhe uma agradável viagem. Algumas horas depois o rei desembarcava em Braga, cidade que se engalanou para receber o monarca. Os jornais destacavam sobretudo as iluminações do Bom Jesus, para onde tinham ido “mais de 20.000 copinhos de várias cores”399. A 29 de Setembro, os viajantes estavam novamente no Porto. Na madrugada desse dia, sob chuva ligeira, estavam novamente em Campanhã, onde os esperavam dois comboios. O primeiro, com os convidados da Companhia Nacional, partiu as 4:30; o 396
Diario Popular, 26.9.1887, n.° 7358: 1.
397
O Comercio do Porto, 30.9.1887: 1.
398
Diario Popular, 26.9.1887, n.° 7358: 1.
399
Diario Popular, 25.9.1887, n.° 7357: 1. Diario Popular, 26.9.1887, n.° 7358: 1.
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segundo, conduzido pelo maquinista Nicolau Tolentino400 e transportando D. Luís e seus convidados (onde se incluíam, por especial favor do rei, os jornalistas), deixou Campanhã pelas 5:30 da manhã401. Acompanhando o monarca, encontramos também parte da elite sociopolítica do país: o presidente do conselho, Luciano de Castro, e o ministro das obras públicas, Emídio Navarro; os condes de Ficalho, Tarouca e Moçâmedes; os viscondes de Moreira de Rei, Vilarinho de S. Romão e Trindade; os engenheiros Francisco de Almeida, João Joaquim de Matos, Luciano Simões de Carvalho e Justino Teixeira; os parlamentares Eduardo José Coelho e João Lobo Santiago Gouveia; os convivas Oliveira Martins, Duval Teles, Benjamim Pinto, Albino Montenegro, José Borges de Faria, Malaquias de Lemos, Alberto de Oliveira, Sá Vargas, Simões Ferreira, Abreu Nunes, João Diogo de Barros, Casimiro Mena, António de Albuquerque, José Celestino de Paula e Mello, Almeida e Brito, Pereira Moitas, Leal de Faria, Luís da Terra Viana, Carlos de Moser, João Pinto Bartol e Ricardo Pinto Bartol, entre outros402. Figura 71 – Alguns convidados em Campanhã, segundo Rafael Bordalo Pinheiro403
Figura 72 – Detalhes da carruagem da imprensa, segundo o mesmo artista404
400
Diario Popular, 2.10.1887, n.º 7364: 1.
401
Diario Ilustrado, 30.9.1887: 1. Diario Popular, 25.9.1887, n.° 7357: 1. Diario Popular, 30.9.1887: 1. Jornal do Comercio, 1.10.1887: 1.
402
Correio da Manhã, 30.9.1887: 1. O Comercio do Porto, 30.9.1887: 1. Diario Ilustrado, 30.9.1887: 1. Jornal do Comercio, 30.9.1887: 1.
403
Pontos nos ii, 14.10.1887, n.º 127: 323.
404
Pontos nos ii, 14.10.1887, n.º 127: 323.
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O comboio real passou por Valongo (5:50), Paredes (6:20), Penafiel (6:30), Marco de Canaveses (7:20), Mosteirô (7:35), Ermida (7:45), Rede (8:00), Régua (8:20), Covelinhas (8:45) e Pinhão (9:00), antes de parar em Foz-Tua pelas 9:45, mais de quarto horas depois da partida no Porto. Nas estações em que a composição parou, o rei era invariavelmente cumprimentado pelo presidente da câmara local e pelas restantes autoridades civis e militares, ao mesmo tempo que era brindado com o som de música e de foguetes405, como Bordalo bem descreve num dos seus desenhos. Figura 73 – Um presidente de câmara dirige-se ao rei durante uma paragem406
A maioria daquelas estações estava decorada com bandeiras e flores e magotes de gente acotovelavam-se para assistir à mera passagem do comboio. De acordo com O Século, algumas daquelas gares estavam completamente desertas407. Em Foz-Tua, a estação estava decorada com bandeiras, tapetes e até com um troféu feito com as ferramentas que os operários haviam usado na construção da linha. Muitas pessoas aguardavam a chegada do monarca, tanto na gare como em barcos no rio. A família real foi recebida pelo bispo de Bragança, José Alves de Mariz, e pelas autoridades locais. O presidente da câmara de Carrazeda de Ansiães leu um discurso em homenagem ao rei, o qual foi seguido de foguetes e de peças musicais, como era costume nas festividades portuguesas. Dentro de um elegante pavilhão erigido para a ocasião e coberto de tecidos azuis e brancos (as cores da monarquia nacional e da casa reinante de Bragança), foi montado um dossel, onde a família real recebeu os 405
Correio da Manhã, 30.9.1887: 1. Diario Popular, 30.9.1887: 1. O Comercio do Porto, 30.9.1887: 1..
406
Pontos nos ii, 14.10.1887, n.º 127: 323.
407
O Seculo, 1.9.1887: 1.
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cumprimentos das sumidades presentes na cerimónia. No entanto, uma pessoa conseguiu quebrar a regra protocolar deste momento: “uma pobre mulher velha, esfarrapada, conseguiu chegar até junto de S.M. a rainha, aos pés da qual ajoelhou. Depois, erguendo-se a pedido da soberana, disse que era viúva inválida, e que seu único filho tinha ido para soldado, ficando desamparada. S. M. a rainha deu-lhe uma esmola de 2 libras e S.M. el-rei igual quantia”408. Figura 74 – Gravuras de um músico e de pessoas esperando o rei... para lhe pedir dinheiro, de acordo com Bordalo Pinheiro409
Depois de esta recepção calorosa, os convivas tomaram outro comboio na direcção norte até Mirandela, onde a grande cerimónia de inauguração se deveria realizar. Era um dia ventoso, mas solarengo, o que permitiu aos viajantes apreciar a fantástica paisagem proporcionada pelo vale do Tua. O comboio real deixou a estação às 10:20, sendo celebrado em cada estação da nova linha do Tua, embora não tenha parado para retribuir todos os cumprimentos. Na estação de Brunheda, mais de mil pessoas esperavam o comboio, de acordo com a contabilidade do Diario Popular. Muitos dos espectadores tentaram chegar, tocar e beijar as mãos do casal régio. A rainha viu-se mesmo em dificuldades para não ser levada da sua carruagem. O Jornal do Comercio refere outro episódio pitoresco: uma mulher “voltando-se para el-rei fez lhe a seguinte pergunta, apontando para o príncipe D. Carlos: Oh! senhor, senhor, este que é o seu filho? El-rei respondeu-Ihe afirmativamente e indicou à mulher o infante D. Afonso como seu segundo filho; a mulher retorquiu então: «São duas perfeições, Deus os conserve.»”410. O Século tinha uma versão diferente dos factos. Segundo este jornal “Uma mulher do povo gritou: - Viva também o menino! A duquesa de Bragança riuse e replicou-lhe em português: - Mas olhe que ele não vem aqui. - Que pena! - tornou a 408
O Comercio do Porto, 30.9.1887: 1. Diario Popular, 30.9.1887: 1.
409
Pontos nos ii, 14.10.1887, n.º 127: 326.
410
Jornal do Comercio, 1.10.1887: 1-2.
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mulher, mas é o mesmo: viva o menino!”411. A cena d’O Século pode mostrar alguma simplicidade e ingenuidade das gentes de Trás-os-Montes, mas não consegue esconder que havia ainda de facto uma grande admiração pela família real. Ainda em Brunheda, “foi mostrado a el-rei um curioso tipo humano. É nada mais nada menos que um exemplar antropológico, que se pode considerar intermediário entre homem e macaco. Chama-se Domingos Cathrino; é pobre, vive de esmolas e ignora a idade que tem. É baixo, pouco mais alto que um chimpanzé. E ele é-o a valer. El-rei examinou com ávido interesse este homem, digno de ser objeto de estudos de um antropologista”412. Em Codeçais, nova paragem por volta das 11:05. Esta pausa não estava prevista no programa e foi imposta pelos habitantes da região. Um homem chamado Belchior Joaquim Azevedo, “abusando com a mais extraordinária sem cerimónia da paciência de el-rei”413, subiu a uma plataforma e leu uma petição dos povos de Codeçais e Pereiros, pedindo que sua majestade influenciasse a companhia concessionária para construir uma estação naquele lugar. O homem garantia que tal melhoramento beneficiaria em muito o comércio e a indústria local, uma afirmação curiosa tendo em conta que a maior parte da população local vivia da agricultura. Recitou depois dois poemas ao rei. As versões deste poema divergem de jornal para jornal, no entanto uma das quadras declamava-se assim: “Uma coisa o contrista, ó monarca Uma coisa lhe incute aflição É não ter neste sítio ridente O conforto d’alguma estação!” O talento do poeta foi de seguida festejado entusiasticamente pelos seus conterrâneos. O enviado do Jornal do Comercio não partilhava deste entusiasmo e arengava: “oh! infeliz poeta Belchior, se o rei teve paciência para te ouvir, eu é que não posso deixar de me vingar da maçada que indiretamente me deste”414.
411
O Século, 30.9.1887: 1.
412
Jornal do Comercio, 1.10.1887: 1-2.
413
Jornal do Comercio, 1.10.1887: 1-2.
414
O Comercio do Porto, 30.9.1887: 1. Diario Popular, 30.9.1887: 1; 2.10.1887: 1. Jornal do Comercio, 30.9.1887: 1.
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Figura 75 – Belchior Azevedo lendo o seu poema ao rei415
O comboio régio continuou a sua jornada pouco passava das 11:30. Parou em Abreiro e por volta das 12:10 chegava a Vilarinho. Às 12:50, o rei chegava finalmente a Mirandela, estação terminal da linha do Tua e onde a grande festa de inauguração iria ter lugar416. Na cidade, o soberano e os seus convidados foram recebidos ao som do hino real, de foguetes e de bombos por milhares de pessoas de Mirandela e das povoações vizinhas. Os reis foram depois saudados pelas autoridades locais, designadamente pelos presidentes das vereações de Vila Flor e Mirandela. A decoração da estação de Mirandela (desenhada por um tal José Moreira de Matos) era extraordinária, pelo menos para os conceitos da época: tecidos coloridos pendiam das janelas; bandeiras, galhardetes e coroas de flores estavam colocados um pouco por todo o lado. O vestuário da rainha condizia: quando chegou, usava um casaco de veludo negro que depois trocou por um vestido de caxemira cor de mel. No local foi montado um elegante pavilhão, pintado por Manini e decorado pelo arquitecto Marques da Silva. Ainda na estação foi erigido um altar, para que o bispo de Bragança pudesse abençoar duas locomotivas da Companhia Nacional: a máquina n.º 1, chamada de Traz os Montes, e a n.º 2, Bragança417. Figura 76 – Uma locomotiva preparando-se para a bênção418
415
Pontos nos ii, 14.10.1887, n.º 127: 326.
416
Diario Popular, 30.9.1887: 1.
417
O Comercio do Porto, 30.9.1887: 1. Diario Popular, 1.10.1887, n.º 7363: 1. Jornal do Comercio, 30.9.1887: 1; 1.10.1887: 1.
418
Pontos nos ii, 14.10.1887, n.º 127: 326.
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O povo assistindo na estação e arredores festejou cada momento da cerimónia. As forças militares que acompanhavam a família real em todo o percurso da sua viagem viram-se e desejaram-se para conter o entusiasmo popular e manter a ordem419. Depois da cerimónia de bênção e da celebração de um Te Deum na igreja de Mirandela, um almoço foi oferecido aos convidados. Foi servido num pavilhão decorado pelos já citados Manini e Marques da Silva. O tecto e as paredes estavam decorados com tecidos brancos. No tecto, foram colocados três medalhões hexagonais: o central fora pintado em tons de azul claro e os outros dois emolduravam o escudo de armas da casa de Bragança. Ao longo das paredes foram pendurados vários logotipos da Companhia Nacional. Uma barra de madeira com essa mesma marca percorria também toda a extensão do pavilhão. As portas de entrada estavam decoradas com cortinas e tapeçarias. No fundo do pavilhão, um grande armário expunha peças de prata. À frente do armário, uma mesa semi-circular fora montada. Os seus lugares foram ocupados pela família real, pelos membros do governo, pelas autoridades locais e por alguns membros da imprensa. À frente da mesa, foi colocado um retrato do rei. O almoço contou com entre 200 e 250 convidados, servidos por 40 ou 50 criados vestidos a rigor. Alguns jornais adiantavam o custo desta refeição: 5 contos, uma pequena fortuna para a época420. Figura 77 – O almoço, segundo Bordalo Pinheiro421
419
O Comercio do Porto, 30.9.1887: 1. Jornal do Comercio, 30.9.1887: 1.
420
Correio da Manhã, 30.9.1887: 1. O Comercio do Porto, 30.9.1887: 1. Diario Ilustrado, 30.9.1887: 1. Diario Popular, 1.10.1887, n.º 7363: 1. Jornal do Comercio, 30.9.1887: 1.
421
Pontos nos ii, 14.10.1887, n.º 127: 327.
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A ementa era extremamente elaborada. Fora preparada pela casa Ferrari de Lisboa, que a preparou numa cozinha de campanha montada in loco propositadamente para este almoço. O menu era o seguinte: Chauds: Consommé printanier à la Royale, Quenelles de volaille au Ponson, Bâtons à l’italienne, Orly de soles à la Choiseul, Filet de bœuf à la diplomate, Blancs de poulardes au suprême. Froids: Escalopes de veau à la St. Petersburg, Galantines de chapons marbrées, Jambon de York à l’aspic, Bordures de homard à la provençale, Chaud-froid de perdreaux à la favorite, Rocher de foie-gras à la gelée. Roti: Dindonneaux truffés à la Périgueux. Entremets: Asperges en branches sauce mousseline, pouding à la Reine, pains de ananas au chartreuse, glaces panachés aux fruits. Grosses pièces: Arbres de nougat aux pistachés, biscuits de Turin à la crème. Pâtisseries divers. Dessert. Vins nationaux et étrangers, café, liqueur422. O rei não pôde estar presente durante todo o almoço, uma vez que as suas funções oficiais exigiram a sua presença na câmara de Mirandela, onde assinou o livro
422
O Comercio do Porto, 30.9.1887: 1.
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de honra423. Foi seguido pelo presidente da câmara da cidade, que, segundo Bordalo Pinheiro, estava num dilema, pois não sabia se havia de acompanhar o monarca ou ficar para trás e apreciar a boa comida dos Ferrari… Figura 78 – O dilema do presidente da câmara de Mirandela424
Já com o rei na câmara, no almoço lançaram-se vários brindes: à Companhia Nacional (a concessionária), à engenharia portuguesa (pela sua audácia e conhecimento), à imprensa nacional e a outras entidades (estes últimos brindes apelidados de aborrecidos pelo repórter do Jornal do Comercio…)425. Entretanto, na vereação, apropriadamente decorada para a situação, o presidente da câmara fez o discurso da praxe, agradecendo ao rei a sua presença na cidade. O procurador-geral tomou também a palavra, perorando sobre as expectativas que se criavam com a abertura do caminho-de-ferro. Findas as celebrações e as cerimónias protocolares, o rei pôs-se a caminho para Lisboa. Às 15:21 o comboio deixava a estação de Mirandela percorrendo novamente as escarpas do vale do Tua até à estação de entroncamento na linha do Douro. Aqui chegou a família real às 17:35, onde um outro comboio os aguardava. Às 19:00 chegavam à Régua onde os convidados jantaram. A refeição foi oferecida pela câmara local e pelo bispo de Lamego. O jantar nada ficava a dever à refeição de Mirandela. Era o seguinte: Menu Commé au riz
423
O Comercio do Porto, 30.9.1887: 1. Jornal do Comercio, 30.9.1887: 1; 1.10.1887: 1.
424
Pontos nos ii, 14.10.1887, n.º 127: 327.
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O Comercio do Porto, 30.9.1887: 1. Diario Popular, 1.10.1887, n.º 7363: 1. Jornal do Comercio, 1.10.1887: 1.
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Froid Petits pâtés aux huitres Filets de bœuf à la demi-glace Langue à 1’écarlate Galantins de volaille aux truffes Mayonnaise de homard Foie-gras à la brillante Dindon farci aux truffes Entremets sucrés Pudding diplomatique Glace à l’ananas à la pyramide Gâteaux montés Biscuits assortis Fruits divers et fromage Vins Bordeaux, Sauterne, Xérès, Porto, Madère, Champagne - Moët et Chandon. Café et liqueurs À sobremesa, “o presidente da câmara levantou este brinde: «A câmara municipal da Régua agradece a Vossa Majestade a honra de visitar esta terra e de presidir a esta festa, que é toda do povo. Viva el-rei e a família de Vossa Majestade». Ao que o soberano respondeu: «Não posso agradecer este brinde de outra maneira senão bebendo aos melhoramentos materiais da província de Trás-os-Montes»”426. Pouco tempo depois, D. Luís, a sua família e os seus convidados deixaram a Régua. Chegaram ao Porto algumas horas depois por volta das 23:30. Durante a viagem de regresso, o rei testemunhou o mesmo entusiasmo que havia sentido da parte da manhã quando percorreu a linha do Douro no sentido inverso427. No final do dia, a inauguração estava feita e pode-se dizer que foi um sucesso e uma enorme festa. Independentemente dos sentimentos que o povo sentia ou não sentia pelo rei e independentemente das críticas que se faziam ou não faziam ao regime monárquico, a verdade era que no dia 29 de Setembro de 1887 se inaugurava um caminho-de-ferro e isto era só por si uma descomunal razão para as populações 426
Diario Ilustrado, 1.10.1887: 1. Diario Popular, 1.10.1887, n.º 7363: 1; 2.10.1887: 1. Jornal do Comercio, 30.9.1887: 1.
427
Diario Ilustrado, 30.9.1887: 1. Jornal do Comercio, 1.10.1887: 1.
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se sentiram orgulhosas, alegre e sobretudo esperançadas no futuro. No Portugal da década de 1880, um caminho-de-ferro ainda era visto como um fim em si e não como um instrumento para induzir o progresso…
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2.8. AS FOTOS DE EMÍLIO BIEL E OS DESENHOS DE RAFAEL BORDALO PINHEIRO428 Eduardo Beira429 José Manuel Lopes Cordeiro430 Leonel de Castro431 Maria Otília Pereira Lage432 Para celebrar a abertura da linha do Tua, em 1887, a Companhia Nacional editou um álbum de capas vermelhas e em “in-fólio oblongo com frontispício e 23 fotografias” do caminho-de-ferro e da paisagem envolvente433. Trata-se de um dos raros documentos com imagens coevas da linha. Este álbum é pouco conhecido. Existe um exemplar na biblioteca Sarmento Pimentel, em Mirandela (coleção doada por Nuno Cadavez), cuja condição física, porém, não é das melhores. O seu autor foi Emílio Biel. * Carl Emil Biel nasceu em Annaberg, na Alemanha, a 18 de Setembro de 1838. Em 1857, veio para Portugal, como representante da empresa de botões de metal 428
Este texto é baseado nos estudos publicados pelos autores em BEIRA, 2014.
429
IN+ Center for Innovation, Technology and Policy Research (Instituto Superior Técnico).
430
Centro de Investigação em Ciências Sociais (Universidade do Minho).
431
Fotojornalista
432
Centro Interdisciplinar Cultura, Espaço e Memória (Faculdade de Letras da Universidade do Porto).
433
CADAVEZ, 1998: 42-43.
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Schalk434, tendo-se estabelecido em Lisboa. Decidido a permanecer em Portugal, terá sido por esta altura que aportuguesou o seu nome para Emílio Biel, pelo qual ficou conhecido. Não permaneceu muito tempo na capital, já que em 1860 se encontrava no Porto, como representante da Schalk. Na Invicta, Emílio Biel decidiu-se a singrar por conta própria. Em 1864, estabeleceu-se como negociante e no ano seguinte fundou uma fábrica de botões na rua do Moreira, n.º 5 (Bonfim). Passados cerca de dois anos a fábrica foi transferida para novas instalações na rua da Alegria, 373435 Figura 79 – Carl Emil Biel436
Simultaneamente, Biel estabeleceu-se como representante de diversas firmas alemãs, desenvolvendo também contactos junto dos meios comerciais da cidade (associação comercial e centro comercial do Porto). Em 1866, estava ligado ao estabelecimento de fotografia de Joachim Friedrich Martin Fritz, a Photographia Fritz, um dos primeiros ateliers fotográficos do Porto, fundado em 1854. A partir de então, Emílio Biel iniciou aquele que foi considerado o mais impor434
HEITLINGER, 2013: 15.
435
Arquivo Distrital do Porto. Registos notariais. 2.º cartório notarial do Porto, liv. 503, f. 122v, apud. FARIA & CASTELO-BRANCO, 2007.
436
Apud. BEIRA, 2014: 37.
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tante trabalho de levantamento fotográfico do país durante o século XIX. A sua atenção concentrou-se inteiramente na actividade que desenvolvia no estúdio fotográfico. Em 1871, abandonou a fábrica de botões437 e em 1876, juntamente com Fernando Joan Martin Niels Brütt, um alemão de origem dinamarquesa, estabeleceu a sociedade Emílio Biel & C.ª. Inicialmente, a sociedade ocupou as instalações da Photographia Fritz, que Biel havia adquirido (cerca de 1873) na rua do Almada, 122438. Por esta altura (finais de 1879), foi criado o centro artístico portuense, em que participaram, além de Emílio Biel, outros grandes vultos da fotografia, como Aurélio da Paz dos Reis e Carlos Relvas. Em 1880, em virtude do seu talento e do bom relacionamento que mantinha, desde a sua passagem por Lisboa, com o rei consorte D. Fernando, foi-lhe atribuído o título de Photographo da Casa Real. Quatro anos mais tarde, iniciou uma colaboração com a revista Illustração Portugueza. Figura 80 – Emílio Biel, fotógrafo da casa real439
A sua actividade de estúdio granjeou-lhe um enorme prestígio, pela qualidade dos retratos que efectuava. Porém, Emílio Biel dedicou-se também à edição fotográfica com base na técnica da fototipia, a qual terá aprendido com Carlos Relvas, o seu introdutor em Portugal. Tratava-se de um processo de impressão fotomecânica feita por contacto com o negativo fotográfico, que permitia realizar um amplo conjunto 437
Arquivo Distrital do Porto. Registos notariais. 6.º cartório notarial do Porto, liv. 4363, f. 101.
438
Arquivo Distrital do Porto. Registos notariais. 2.º cartório notarial do Porto, liv. 518, fs. 41v-43v, apud. FARIA & CASTELO-BRANCO, 2007.
439
Apud. BEIRA, 2014: 39.
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de cópias (até cerca de 500). A sua actuação no domínio da fototipia iniciou-se com a edição crítica d’Os Lusíadas, em 1880, por ocasião das comemorações do tricentenário da morte de Camões. Para este trabalho, nomeadamente para a produção das respectivas ilustrações, Emílio Biel constituiu, em 22 de Maio de 1880, uma sociedade específica440. Emílio Biel devotou ainda o seu tempo à fotografia paisagística e das grandes obras de engenharia que estavam então em curso em Portugal. Em 1876-1877, retratou as diferentes fases da construção da ponte D. Maria Pia, sobre o Douro. Em 1882, com o apoio e influência do engenheiro Cândido Celestino Xavier Cordeiro, inspector de obras públicas e consultor da Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses, Biel iniciou um importante e pioneiro trabalho de documentação fotográfica das várias fases de construção de obras públicas nacionais. Acompanhou o levantamento da ponte Luís I (1883-1886), a construção do porto de Leixões (188492) e o assentamento das linhas do Minho e Douro, de Salamanca à fronteira de Portugal, do Tua (décadas de 1870 e 1880) e do Vouga (esta última já no século XX). Figura 81 – Túnel da Valeira, fotografado por Emílio Biel441
440
Arquivo Distrital do Porto. Registos notariais. 8.º cartório notarial do Porto, liv. 573, f. 5v.
441
Apud. MACEDO, 2009: 365.
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O seu talento foi também reconhecido além-fronteiras. Foi premiado nas exposições internacionais de Filadélfia (1876), Paris (1878) e Rio de Janeiro (1879) e nas exposições de fotografia do Porto (1886), Viena (1888) e Berlim (1888). A década final do século XIX marcou o início de nova etapa na actividade empresarial de Emílio Biel. A 4 de Outubro de 1890 inaugurou as novas instalações da sua companhia no palacete do conde do Bolhão, à rua Formosa n.º 342442. Procedeu ainda a uma divisão das áreas de actividade da empresa, criando duas grandes secções: a Emílio Biel & C.ª – Editores (em sociedade com José Augusto da Cunha Morais, considerado o maior fotógrafo da África portuguesa), consagrada às indústrias gráficas (fotografia, fototipia e litografia); e a secção fotográfica da direcção-geral dos trabalhos geodésicos. Por esta altura, a actividade da sua oficina litográfica e fotográfica encontrava-se em plena ascensão. Empregava 60 operários e chegava a produzir uma média diária de 50 a 80 clichés. Ele próprio passou a colaborar com a revista Branco e Negro (1896-1898). A Emílio Biel & C.ª – Editores, por seu lado, lançou-se num ambicioso projecto de levantamento fotográfico dos principais motivos artísticos, etnográficos e paisagísticos de Portugal continental. A partir de 1900, a revista O Ocidente deu à estampa as primeiras gravuras deste trabalho, que viriam mais tarde a ser agrupadas na obra A Arte e a Natureza em Portugal: album de photografias com descripções, clichés originaes, copias em phototypia, monumentos, obras d’arte, costumes e paisagens. No que respeita à fotografia paisagística, Biel editou obras notáveis, como o Album phototypico de vistas da cidade do Porto (1889), o Album phototypico de vistas e costumes do Norte de Portugal (c. 1900), O Douro: principaes quintas, navegação, culturas, paisagens e costumes (1911), ou a Arte Religiosa em Portugal (1914). Para além de tudo isto, o fotógrafo consagrou-se ainda à edição de bilhetes-postais ilustrados, uma área que vivia então a sua época de ouro em Portugal. Produziu cerca de 500 postais diferentes, dos quais sensivelmente metade registava motivos e paisagens da cidade do Porto. Paralelamente à sua actividade como fotógrafo e editor, Emílio Biel investiu igualmente nas áreas da produção de electricidade e dos transportes urbanos (além de se manter como representante de várias empresas industriais em Portugal). Destaque-se a sua acção na instalação da central hidreléctrica para fornecimento de luz a Vila Real (1894)443, a sua intervenção na construção do caminho-de-ferro americano da ponte Luís I à estação de Gaia444 ou o desempenho do cargo de administrador da 442
O Primeiro de Janeiro, 5.10.1890, n.º 275
443
8 Arquivo Distrital do Porto. Registos notariais. 8.º Cartório notarial do Porto, liv. 677, f. 20v.
444
Arquivo distrital do Porto. Empresas. Companhia Carris de Ferro do Porto, ofício de 25 de Setembro de 1894; escritura de cessão de direitos, em Março de 1900; contrato de arrendamento entre a Companhia Carris de Ferro do Porto e Emílio Biel, em 19 de Janeiro de 1901; escritura de cedência de direitos de Emílio Biel a
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empresa Águas do Gerês. O empresário interessou-se também pela aplicação dos raios X em medicina, por entomologia, pela cinematografia ou pelo automobilismo (foi dele o primeiro carro a circular no Porto). Emílio Biel faleceu a 14 de Setembro de 1915. Em Março do ano seguinte, com a declaração de guerra entre Portugal e a Alemanha, o estado português decretou providências relativamente às pessoas e bens dos súbditos inimigos residentes em Portugal. Os bens de Emílio Biel, então na posse dos seus herdeiros, foram confiscados e vendidos em hasta pública. O seu espólio foi dividido por várias entidades, contudo foi possível salvaguardar uma pequena parte, que se encontra actualmente no arquivo histórico municipal do Porto e no centro português de fotografia. * Nas fotografias que registou, Biel combinou a promoção do progresso oitocentista com uma indelével admiração pela natureza. Biel gosta de sublinhar a grandeza dos acidentes naturais e da acção do homem ao explorá-la. Nos dois casos, é o conceito de sublime kantiano que parece orientá-lo. A fotografia de Biel surge, na sua característica mais marcante, como representativa do século de Prometeu, o demiurgo grego que roubou o fogo aos deuses para o ceder ao homem, iniciando o progresso da civilização. É uma homenagem aos grandes empresários e engenheiros da revolução industrial, figuras carismáticas e virtuosas desse progresso técnico de que o caminho-de-ferro é um dos símbolos mais marcantes. Nas 23 fototipias de Emílio Biel sobre a construção do primeiro troço da linha do Tua (Foz-Tua a Mirandela), o autor oferece-nos composições impressionantes e uma abordagem fotográfica inovadora, com imagens que revelam um domínio técnico (captação e laboratório a avaliar pela riqueza tonal) e enquadramentos já de carácter cinematográfico. A panorâmica ajuda a traduzir toda a beleza rude e inóspita do vale e do leito do rio cavado pela força da natureza, ambos depois sujeitos à intervenção do homem. Os planos são bastante ricos pela informação que oferecem ao leitor, dentro da perspetiva do olhar de Deus, permitindo revelar os locais de maior dificuldade da obra.
Clemente Joaquim da Fonseca Guimarães Meneres, em 19 de Janeiro de 1901. Registos notariais. 6.º cartório notarial do Porto, liv. 4421, f. 49; 7.º cartório notarial do Porto, liv. 765, f. 37v.
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Figura 82 – Comboio saindo do túnel das Presas445
Nas composições em análise, verificamos sempre uma relação entre a natureza e a técnica. Os ideais do fontismo, a expansão do progresso técnico estão bem vincados nas 23 imagens que o autor nos apresenta: no ferro usado nas pontes e viadutos; nos túneis que atravessam montanhas; nas estações da linha; e, claro, no grande símbolo da revolução industrial, a locomotiva a vapor, que contracena com o leito do rio e toda a vegetação circundante. Nos primórdios da fotografia, toda a técnica necessária para obter uma imagem, desde os equipamentos de captação aos processos de revelação, não era propriamente simples. Tudo era bastante dispendioso e complexo e havia necessidade de um grande poder de síntese na preparação das tomadas de vista. A quantidade de imagens produzidas era pequena, daí termos apenas 23 fotografias, embora acreditemos que mais tenham sido excluídas da edição. 445
Apud. BEIRA, 2014: 13.
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A narrativa construída pelo autor dá-nos a ilusão de estarmos a acompanhar uma viagem de comboio pelo caminho-de-ferro do Tua. Este comboio conduz o leitor numa visita às obras criadas pelo homem, às penedias destruídas pelos operários entre paisagens naturais recheadas de flora e fauna. Biel foca e enquadra nas paisagens agrestes de montanha ou planas do vale, imbuídas de grande expressividade e beleza estética, personagens masculinas do mundo do trabalho técnico ou rural. Capta o pormenor dos trajes locais e certas posturas, como colocar o casaco por cima do ombro. Quando falamos da presença humana nas fotografias, não falamos apenas de pessoas que por ali passavam ou viviam, mas de trabalhadores da obra ou então operadores que acompanhavam Biel no levantamento fotográfico encomendado. Os figurantes retratados permitem ao fotógrafo, através da linguagem de composição, colocar o ser humano no enquadramento para melhor percepcionar a dimensão da obra e a sua relação com a enormidade das montanhas. Assim se obtém a noção de escala. Por vezes, só um olhar muito atento percebe a presença humana na imagem, assim como o comboio perdido na imensidão das montanhas. Nestas fotografias, é denunciada a quase incongruência do esforço humano para dominar os elementos, sem nunca esquecer a veneração pelo extraordinário da paisagem. Em segundo ou terceiro plano aparecem, também, por vezes, imagens de casas rurais, enquanto, em primeiro plano, as árvores e encostas servem de moldura ou enquadramento estético das fotografias. Ao longo do álbum, todas as fototipias estão identificadas com uma legenda em que podemos ler o local e a referência à obra. Ao contrário dos álbuns Douro Ilustrado (1876) e Caminhos de Ferro no Norte Ilustrado (1878 e 1899), as tomadas de vista não são apresentadas, uma vez que o fotógrafo fez toda a captação das imagens ao longo da via férrea, à excepção da imagem que abre o álbum – a tomada de vista é feita na margem oeste do rio Tua – e da que o encerra – uma panorâmica da cidade de Mirandela. Estas aparentes excepções acentuam o cunho monográfico do álbum. Há composições muito cuidadas, linhas fortes e geometrizantes, picados e contra picados realçando a sinuosidade das escarpas que acompanham o leito do rio. A utilização de planos gerais no enquadramento destas fototipias é constante. O fotógrafo mostra a obra por inteiro, em toda a sua plenitude. Torna-se até interessante pensar sobre o local onde estaria Biel colocado para conseguir obter algumas tomadas de vista, nomeadamente em planos picados. Tudo nos leva a crer que o equipamento e o seu operador estariam suspensos em guindastes, para obterem uma perspetiva vista do céu sobre a terra (estação e caldas de S. Lourenço). Esta observação pressupõe uma reflexão e preparação prévia, pelo que não se trata de um registo mecânico, desprovido de sensibilidade artística. Os padrões oferecidos pela natureza são marcados pela diversidade de flora que brota entre os penhascos. Criam-se sucessivos planos em que se acentua a perspectiva e se aumenta a volumetria entre os elementos apresentados nos quadros ao longo da narrativa.
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Figura 83 – Composição saindo do túnel das Fragas Más446
A profundidade também é marcada em algumas imagens pelos leitos do rio Tua ou pela linha do comboio. Em primeiro plano, temos os carris em paralelo, vão afunilando, criando uma diagonal numa linguagem ocidental, quase sempre da esquerda para a direita. À época, a espontaneidade não era muito vincada, se tivermos em conta que se trata de uma altura em que o equipamento não era fácil de manusear ou transportar, como foi referido anteriormente. As composições valem pela sensibilidade e pelo know-how de Emílio Biel. Apesar de as composições nos parecerem estáticas, o que de alguma forma provoca conforto no leitor, todas elas não deixam de ser bastante ritmadas, graças aos vários elementos distribuídos ao longo da tela nos sucessivos planos, com um formato rectangular e sempre na horizontal447.
446
Apud. BEIRA, 2014.
447
Para tudo isto cf. AMAR, 2001. AUMONT, 1995. BARRETO, 1993. BAURET, 1992. BENJAMIN, 1983. DUBOIS, 1981. FIGUEIREDO, 2000. FREUND, 1974. JOLY, 1994a. JOLY, 1994b. LEDO, 1998. MEDEIROS, 2008. ROSEIRA, 1992. ROUILLÉ, 2009. SENA, 1998a. SENA, 1998b. SERÉN, 2002. SERÉN, 2008. SERÉN, 2009. SIZA, 1995. SONTAG, 1981. SOUSA, 1994.
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* Pela mesma altura em que a Companhia Nacional editava o álbum com as fotografias de Emílio Biel sobre a construção da linha do Tua, eram também publicadas no jornal Pontos nos ii alguns desenhos, da autoria de Rafael Bordalo Pinheiro, sobre a inauguração daquele caminho-de-ferro. Algumas destas gravuras mostram grandes semelhanças com algumas das fotos de Biel, o que sugere que estas serviram de inspiração ao caricaturista português. Emílio Biel e Rafael Bordalo Pinheiro tiveram percursos pessoais e sociais diferentes. Os contextos das suas produções, as condicionantes de representação, as técnicas utilizadas, a sensibilidade artística, a cultura, tendências e leituras iconográficas foram também díspares e influenciaram de diferentes formas os registos valorativos dos seus trabalhos. No entanto, ambos os artistas têm também características comuns, que os aproximam em vertentes de rigor e apreço da técnica, forte sentido de empreendedorismo industrial, intensa actividade ligada à edição e ambivalência social enquanto patrões e operários de um certo modo de capitalismo industrial em Portugal. No caso particular de Bordalo Pinheiro, a sua visão progressista, espírito aberto e participação activa da então moderna civilização, dominada pela imagem tecnológica, concorreu para a implosão de cânones estéticos, sociais e comportamentais antigos. “Rafael Bordalo Pinheiro deve ser considerado um dos primeiros e mais radicais artistas modernos portugueses (…). Artista por temperamento que, na juventude auto-didacta, abordou a pintura e o teatro, ele optaria por uma prática cultural particularmente moderna: o jornalismo e, no seu vasto espectro, o jornalismo ilustrado em que o texto é apenas uma das componentes da mensagem, mais imediatamente proposta e apreendida através da ilustração que, nos jornais de Bordalo, foi sempre humorística e caricatural”448. Numa altura em que os jornais e revistas cresciam exponencialmente, Bordalo Pinheiro foi determinante na história do jornalismo nacional. No último quartel do século XIX, a ilustração – principalmente o retrato – invadiu a imprensa, por intermédio de artistas como Rafael Bordalo Pinheiro, que iniciara, ainda jovem, o gosto e o estudo do desenho e das artes em geral. Pioneiro da banda desenhada em Portugal e seu mentor também no Brasil, destacou-se a nível mundial449 como mestre da caricatura e da sátira social e política. Dedicou-se à criação de cartoons em jornais e revistas nacionais e estrangeiras (El Mundo Comico, Ilustración Espanõla y Americana, Ilustrated London News, El Bazar, O Mosquito, O Psit e O Besouro). Em Portugal, 448
SILVA, 2007. Ver também sobre FRANÇA, 1980. COTRIM, 2005.
449
PINHEIRO, 1996.
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fundou também alguns periódicos pautados por uma grande liberdade intelectual e de crítica descomprometida ao poder (A Parodia, O Antonio Maria, A Lanterna Magica, Pontos nos ii, além de outros de existência efémera). “Rafael Bordalo Pinheiro, conhecido de todos os portugueses por ser o criador do ‘Zé Povinho’, foi um caricaturista exímio, com um tipo de traço que o distinguiu de todos os caricaturistas nacionais e internacionais”450. No domínio das artes foi membro do Grupo de Leão, associação lisboeta de pintores e artistas dirigida por Silva Porto, em que se envolviam também a literatura, a filosofia, a música e a arquitectura. Artista por vocação, Bordalo Pinheiro, com sua sátira humorística e caricatural de forte empenhamento ético, soube aliar, de modo inovador, arte e técnica, sendo considerado, em seu apego à modernidade, excepção no ambiente pessimista de crítica da sociedade portuguesa protagonizado pelo grupo de intelectuais da Geração de 70 conhecidos, mais tarde, por Vencidos da Vida. A sua reportagem em banda desenhada da inauguração da linha do Tua e o álbum fotográfico de Emílio Biel são dois notáveis exemplares de fotodocumentalismo, então, nos seus primórdios em Portugal. Vão muito para além dos interesses específicos do transporte ferroviário, por toda a informação que encerram ao nível das paisagens, de tipos humanos, obras de engenharia, arquitectura interior decorativa, trajes, objectos e costumes. Ambos os trabalhos, ainda que exemplares de géneros artísticos diferentes, sugerem fortemente um claro e impressivo espirito da época, captado de modo objectivo e crítico, e evidenciam alguma semelhança ao nível de traços formais e estéticos. Reproduzem imagens diferenciadas da construção e inauguração do caminho-de-ferro, com enorme inventividade técnica e revolucionariamente deslocalizada da arte da academia. A beleza das imagens, os percursos ao longo do rio, pela linha em construção ou já no comboio inaugural, os aspectos históricos e etnográficos, o carácter da região e o impacto causado pela construção ferroviária fazem destas obras dois documentos únicos sobre a história da linha do Tua. Na reportagem em cartoon de Bordalo Pinheiro, começa-se por observar os personagens que se deslocam a par do comboio inaugural da linha do Tua. Percebe-se de imediato os seus semblantes e fisionomias de grande expressividade. O autor revela aqui uma enorme “capacidade de captação ou flagrante, termos que não podiam ser mais contemporâneos e devedores da linguagem fotográfica”451, o que sugere a presença da ideia fotográfica de Emílio Biel nas pessoas caricaturadas e na paisagem retratada, não pela câmara, mas pela mão de Rafael Bordalo Pinheiro, com idêntica verosimilhança e fidelidade ao real. Exemplo evidente dessa semelhança pode obser450
ROCHA, 2011.
451
TAVARES, 2010: 80
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var-se nas figuras seguintes, uma fotografia e uma gravura das encostas abruptas do vale do Tua. Figura 84 – Fotografia e gravura do vale do Tua452
Esta similitude, que sugere que Bordalo Pinheiro teve um conhecimento directo do álbum de Biel, continua nos desenhos do centro da composição alegórica da inauguração, os quais parecem reproduzir uma fotografia do fotógrafo alemão. O mesmo se pode dizer da panorâmica da cidade de Mirandela, se bem que o fotógrafo e o caricaturista a tenham retratado de ângulos ligeiramente diferentes. Em todo o caso, podemo-nos perguntar se se trata de um efeito de época ou de inspiração que o desenho artístico vai buscar à fotografia? Mas no trabalho de Bordalo Pinheiro, onde as imagens se combinam com as palavras, ao contrário do que sucede nas fotografias de Biel, são as figuras humanas de vários tipos sociais, sempre em grupos que surgem em primeiro plano. Na alegoria maior (figura anterior), destacam-se claramente as figuras da equipa de engenheiros da obra. 452
Pontos nos ii, 14.10.1887, n.º 127: 326. Apud. BEIRA, 2014: 14.
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Todas as figuras de Bordalo Pinheiro são atravessadas por uma explícita narratividade dos momentos mais simbólicos da efeméride. Os desenhos, de linhas minuciosamente descritivas, espelham bem a os numerosos populares que aderiram às comemorações, a classe profissional ligada à construção da linha e ainda as elites privilegiadas convidadas para a inauguração. Por condensação, Bordalo Pinheiro retratou e caricaturou o conjunto da sociedade da época no seu melhor e no seu pior, como sempre foi seu traço peculiar. Assomam nesta interessantíssima banda desenhada elementos de sátira, riso e liberdade descomprometida com o poder. Contudo, nem por isso o cartoonista deixou de procurar uma representação implícita de reportagem fidedigna. O desenhador é também repórter e tem gosto por ir directamente à fonte, ao acontecimento para divulgar mais um avanço tecnológico em Portugal. Bordalo Pinheiro viveu sempre entre esta pulsão do desenho453, os desafios do jornalismo e da crónica diarística e a curiosidade pela indústria e pela tecnologia. Figura 85 – Fotografia do túnel das Fragas Más, panorâmica de Mirandela e gravura da inauguração454
453
SILVA, 2007: 242.
454
Pontos nos ii, 14.10.1887, n.º 127: 324-325. Apud. BEIRA, 2014: 12 e 34.
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Em suma, tanto as fotos de Biel como as gravuras de Bordalo Pinheiro são documentos valiosíssimos para se reconstruir toda uma memória visual e histórica da linha do Tua e da sua inauguração oficial. São imagens que se estruturaram, no seu conjunto, na utilização da óptica, perspectiva e articulação de sucessivos planos, no uso expressivo da tonalidade claro-escuro e na procura do pormenor, do detalhe e da nitidez. A dimensão criativa enquanto intenção documental e/ou artística encontrase bem presente quer no acto de fotografar de Emílio Biel, quer no acto de desenhar de Rafael Bordalo Pinheiro, duas figuras pioneiras em Portugal de finais do século XIX. * Replicar, mais de 100 anos depois, as fotografias de Emílio Biel para o álbum da Companhia Nacional de Caminhos de Ferro é um exercício de imaginação. O tempo passou, o ambiente modificou-se, a urbanização alargou-se, a vegetação e a arborização cresceram, e hoje a paisagem é substancialmente diferente. No entanto, ainda é igual em alguns aspectos. É igual na rudeza das fragas e das encostas rochosas, no rio lá no fundo entre fragas e rochedos, nos declives alucinantes das encostas na zona de Foz-Tua a Brunheda e nos extraordinários socalcos de altitude. Tentar reproduzir as fotografias centenárias de Biel é reviver as emoções que o viajante desse tempo, e em particular o próprio fotógrafo, experimentaram perante a novidade que o progresso lhes oferecia. Essa novidade era por um lado a supremacia do homem sobre a natureza hostil, mas também a força de uma natureza capaz de impressionar o mais positivista dos fotógrafos. Reproduzir as fotografias originais é, em alguns casos, impraticável. As diferenças de objetivas, profundidades de campo, aberturas focais, e outros detalhes técnicos tornam o exercício inútil. Mas é nas emoções que os locais retratados despertam no viajante que se mantém o essencial do fascínio que Biel conheceu há mais de 100 anos atrás.
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PARTE II
ATÉ BRAGANÇA
Portugal na viragem do século
3. PORTUGAL NA VIRAGEM DO SÉCULO
3.1. A BANCARROTA E O FIM DO FONTISMO001 Hugo Silveira Pereira002
O assentamento e a abertura da linha de Foz-Tua a Mirandela ocorreram num período de intensa construção ferroviária em Portugal. Na década de 1880, além do caminhode-ferro do Tua, foram inaugurados os troços finais das linhas do Douro, do sueste e do Porto a Famalicão, a ferrovia da Beira Alta, o caminho-de-ferro de Guimarães, a linha de Lisboa a Torres e Figueira da Foz (oeste) e o ramal de Viseu. Mapa 24 – A evolução da rede ferroviária ibérica entre 1880 e 1890003
001
Este texto é baseado nos capítulos 3.4.10 e 3.5 da tese de doutoramento do autor. PEREIRA, 2012a: 140-150.
002
Centro Interuniversitário de História da Ciência e da Tecnologia (Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa).
003
ALEGRIA, 1990. CORDERO & MENENDEZ, 1978: 250-252.
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O esforço financeiro necessário acabou por ser demasiado pesado para os cofres públicos nacionais. Se em meados da década de 1880 se vivia uma verdadeira euforia ferroviária (ainda para mais com a abertura da linha da Beira Alta, tida como a verdadeira ligação internacional que haveria de fazer de Lisboa o cais da Europa), a década de 1890 assistiu ao descalabro da política do fontismo. A bancarrota de 1892 – e a 186
Portugal na viragem do século
morte do homem que deu o nome a este período da história nacional cinco anos antes – marcaram historicamente o fim da regeneração e do programa de melhoramentos materiais que lhe estava associado. No entanto, entre 1887, ano da conclusão da linha do Tua, e 1892, os últimos governos da regeneração não sentiram a necessidade de (re)equilibrar as contas públicas e diminuir o investimento, apesar de alguns discursos e relatórios oficiais revelarem precisamente o contrário. Em 1887, o executivo presidido por Luciano de Castro, líder do partido progressista, anunciava ao parlamento as suas principais preocupações: levantar o crédito público e atingir o equilíbrio orçamental pela mais rigorosa economia, redução ou adiamento de despesas; não admitir nenhum novo encargo sem lhe criar a respectiva receita; proceder a uma melhor fiscalização na cobrança de impostos; e criar uma nova pauta alfandegária. Só esgotados estes recursos, se recorreria ao imposto. Quanto ao sector dos transportes, o rumo passava pela continuação dos estudos ferroviários e das construções dos caminhos-de-ferro já iniciadas e pela abertura de mais estradas. Ainda a nível ferroviário, foi nomeada uma comissão para reorganizar os serviços de exploração e fiscalização dos caminhos-de-ferro em Portugal (portaria de 26 de Outubro de 1886) e regulamentou-se o regime de cobrança do imposto de trânsito (decreto de 20 de Setembro de 1888)004. O governo prometia também virar a sua atenção para o sistema de informação estatística, através da criação do ministério da agricultura, comércio e indústria, pois “quando se discute uma questão de caminhos de ferro, nunca se póde saber qual o rendimento provavel d’este melhoramento, porque não ha estatistica agricola, nem industrial, nem nenhum dos elementos indispensaveis que nos outros paizes se encontram”005. Deste modo “caminharemos com passos seguros, sendo certo que a definitiva regularisação da situação financeira será o meio mais energico para rapidamente adiantarmos a obra civilsadora há trinta e cinco annos encetada, sem repetirmos erros ou sermos arrastados por imprevidencias que ao paiz têem custado e custam dolorosos sacrifícios”006. A oposição regeneradora, pela voz de João Franco e Santos Viegas, via no novo ministério da agricultura um esvaziamento de funções do das obras públicas e acusava o governo de não querer mais caminhos-de-ferro007. Três dias de debate sobre a mudança ministerial não augurava nada de bom ao 004
Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas. Processos individuais. Augusto César Justino Teixeira; Jacinto Heliodoro da Veiga. Collecção Official de Legislação Portugueza, 1888: 106-109. FINO, 1883-1903, vol. 2: 231-241 e 247-251.
005
Diario da Camara dos Deputados, 22.2.1886: 482 (Mariano de Carvalho).
006
Diario da Camara dos Deputados, 15.4.1887: 94 (relatório do estado da fazenda).
007
Diario da Camara dos Deputados, 22.2.1886: 482-484 e 490-491.
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novo executivo, que acabou por rever as suas prioridades e dar andamento ao negócio ferroviário. Repetiu assim a retórica típica do partido progressista desta época. Iniciou a governação com um discurso retraído para depois avançar com medidas mais incisivas para o alargamento da rede ferroviária. Em 1886 e 1887, o ministério das obras públicas concedeu cinco novas vias-férreas: as linhas de Cascais e de cintura de Lisboa (alvarás de 7 de Julho de 1886 e 9 de Abril de 1887), o caminho-de-ferro do litoral do Algarve (alvará de 2 de Dezembro de 1887), a ferrovia de Coimbra a Lousã por Arganil (alvará de 10 de Setembro de 1887) e o troço de Vendas Novas a Santarém (decreto de 2 de Setembro de 1887). Além disto, o governo legislou também no sentido de se poder substituir estradas por caminhos-de-ferro na rede rodoviária (lei de 21 de Julho de 1887)008. Circularam ainda rumores sobre um alegado arrendamento das linhas do Minho e Douro à Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses, o principal operador ferroviário da época. O objectivo era criar os meios para romper a cintura de ferro espanhola, um conjunto de vias-férreas que alegadamente circundariam Portugal no sentido de desviar o tráfego dos portos portugueses para os portos espanhóis. O arrendamento não se chegou a realizar e aliás criou anticorpos entre os membros do próprio governo009. À excepção da medida sobre o assentamento de caminhos-de-ferro nas estradas, todas as outras foram tomadas por decreto e sem audição do parlamento. O governo era acusado de favorecer a Companhia Real, pois o ministro da fazenda, Mariano de Carvalho, era considerado muito próximo da direcção daquela sociedade. As críticas não se ficaram, porém, por aqui. Ao adjudicar a um concessionário privado a linha do litoral do Algarve, o governo era acusado de não proteger os caminhos-de-ferro públicos, uma vez que parte dessa linha estava incluída numa lei de 1883 que autorizava a sua construção pelo estado. Nas concessões de Cascais e de Santarém a Vendas Novas, o executivo era censurado por alegadamente não ter tido em conta o impacto militar de ambas as ferrovias (malgrado a sua curta extensão). Em suma, para a oposição, o governo infringia a “legislação em vigor e escandalisa[va] os homens sérios, os que ainda não chafurdaram n’este pelago de negociatas, em que a politica portugueza ameaça submergir-se”010. Nem os parlamentares regeneradores do Algarve (Luís de Bivar, visconde de Bivar ou Coelho de Carvalho) se deixavam convencer, tornando-se os principais contestatários da concessão da linha do litoral algarvio011. Apesar das críticas, em todo o caso naturais, o partido progressista manteve-se 008
Collecção Official de Legislação Portugueza, 1886: 347-349; 1887: 179-182, 309-310 e 629-631.
009
CORDEIRO, 1999: 59-63.
010
Diario da Camara dos Dignos Pares do Reino, 23.4.1888: 624 (Vaz Preto).
011
Diario da Camara dos Dignos Pares do Reino, 3.4.1888, 10.4.1888, 11.4.1888 e 16.4.1888: 504, 536-539, 551552 e 573-574.
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firme no governo e em 1888 tomou duas grandes iniciativas em relação ao sector ferroviário. Em Janeiro propôs o arrendamento e alargamento e da rede alentejana (propriedade do estado) num projecto geral de colonização da província. Em Junho, apresentou uma proposta de lei para concluir a rede a norte do Mondego, mediante a concessão de uma garantia de juro. Este projecto incluía as linhas em via reduzida do Tâmega (até Chaves), de Braga a Cavez, de Mangualde a Recarei (na linha do Douro) e de Vidago a Vila Franca das Naves. A extensão do caminho-de-ferro do Tua de Mirandela a Bragança constava também dos planos do governo. Os objectivos desta medida eram dar independência económica à linha do Douro, colmatar o défice de exploração da ferrovia de Barca de Alva a Salamanca, desenvolver a agricultura transmontana e centrar no Porto o tráfego de todo o norte e parte do centro de Portugal012. Os estudos preliminares destas ferrovias (a cargo dos engenheiros Perfeito de Magalhães, Justino Teixeira e provavelmente Afonso de Espregueira) já vinham sendo feitos desde 1886013. Apesar de aprovados pelas comissões parlamentares de fazenda e obras públicas, nenhum destes projectos de lei chegou à discussão, provavelmente pelas críticas que parte da oposição e da imprensa lhes fizeram014. A proposta para o complemento da rede a norte do Mondego acabou por ser remodelada e dividida no ano seguinte. Questões ligadas ao procedimento concursal e ao facto de as linhas previstas serem ou não prolongamentos de vias existentes levaram àquela remodelação. Assim, numa primeira parte foi incluído o caminho-de-ferro de Coimbra à Covilhã (extensão da linha de Coimbra a Arganil adjudicada à Companhia do Caminho de Ferro do Mondego) e a via-férrea de Bragança (prolongamento da linha do Tua da Companhia Nacional). Num segundo diploma, foram encaixados os restantes015. Estas propostas do governo e a sua confirmação da profissão de fé nos caminhosde-ferro foram recebidas com entusiasmo pelos deputados progressistas e também pelos parlamentares regeneradores que viam as suas zonas de influência agraciadas com uma linha: Firmino João Lopes e Ferreira de Almeida em relação à linha do Tua; António Baptista de Sousa, Azevedo Castelo Branco, Fernandes Vaz e José de Alpoim pela de Vidago até Vila Franca das Naves. No entanto notava-se uma certa descrença 012
Diario da Camara dos Deputados, 16.1.1888 e 1.6.1888: 130-132 e 1813-1819. MONTENEGRO, 1889. PEREIRA, 2012b.
013
Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas. Processos individuais. Augusto César Justino Teixeira; Francisco Perfeito de Magalhães; Gazeta dos Caminhos de Ferro de Portugal e Hespanha, a. 1, n.º 16 (1.11.1888): 234 e 245-246; n.º 17 (16.11.1888): 262-264; n.º 18 (1.12.1888): 278. ESPREGUEIRA, 1890. SOUSA, 1932.
014
SANTOS, 1884, [Parecer das comissões de obras públicas e fazenda sobre o complemento da rede ao norte do Mondego] e [Parecer das comissões de obras públicas e fazenda sobre o arrendamento das linhas do sul e sueste]. SOUSA, 1907: 210.
015
Diario da Camara dos Deputados, 29.5.1889: 927-929.
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na exequibilidade da totalidade do projecto, o que levou aqueles deputados a pugnarem pela construção das suas linhas em detrimento das adversárias016. Entretanto, atrasos e irregularidades nas construções das linhas da Beira Baixa (o túnel da Gardunha), oeste (adiamento da construção da ligação directa de Alfarelos à Figueira), Algarve, Tua (atritos quanto ao serviço comum da estação de Foz-Tua), Viseu e urbana do Porto catalisaram as críticas da oposição e até do progressista Ferreira de Almeida (que na legislatura seguinte seria mesmo eleito pelos regeneradores)017. Cumulativamente, a salamancada explodia nas mãos do governo quando o cartel bancário do Porto que financiara a construção das linhas de Salamanca a Barca de Alva e Vilar Formoso revelou a sua preocupante situação financeira à conta do negócio. O subsídio governamental concedido não impedia a existência de défice na exploração, pelo que o Sindicato Portuense viu-se forçado a pedir nova ajuda ao estado. A comissão nomeada por portaria de 23 de Novembro de 1887 (composta por António de Serpa, Augusto Fuschini, João Joaquim de Matos, Tomás Nunes da Serra e Moura e Manuel Raimundo Valadas) confirmou um ano depois (29 de Dezembro de 1888) o estado caótico da exploração: os 135 contos de subsídio só cobriam 1,5% do custo total da exploração, que ultrapassava largamente a receita; a companhia não conseguia colocar no mercado nem acções nem obrigações; a ruína dos bancos seria uma calamidade para o Porto; por fim, auxiliar o sindicato seria do interesse da cidade, do país e das linhas da Beira Alta e do Douro. O governo aproveitou então um parecer existente sobre a apropriação do porto de Leixões para fins comerciais e remodelou-o no sentido de auxiliar o Sindicato Portuense (projecto de lei de 14 de Junho de 1889). A garantia de rendimento era dobrada para 270 contos e a transformação do porto de Leixões num porto comercial era também adjudicada aos bancos portuenses (lei de 29 de Agosto de 1889). O Sindicato Portuense formou então a Companhia das Docas do Porto e Caminhos de Ferro Peninsulares a quem encarregou de realizar a obra018. Como seria de esperar, a duplicação de um subsídio a um negócio que já tinha dado prejuízo à fazenda pública foi altamente criticada pela oposição. Muitos exigiam um inquérito com efeitos suspensivos à questão sem o qual o processo mais não seria que uma “verdadeira parodia do expediente, usado ha annos, n’um pais nosso vizinho, de fuzilar interinamente e mandar depois formar processo ao fuzilado”019. As sessões 016
Diario da Camara dos Deputados, 9.5.1888, 11.5.1888, 29.5.1889, 3.6.1889, 12.6.1889, 15.6.1889: 1498-1499, 1548-1549, 926-927, 997-998, 1183-1186, 1248.
017
Colecção Official de Legislação Portugueza, 1888: 405. Diario da Camara dos Deputados, 14.4.1888 e 23.4.1889: 1060 e 405-406. Diario da Camara dos Dignos Pares do Reino, 13.5.1889 e 19.6.1889: 238-239 e 541.
018
Colecção Official de Legislação Portugueza, 1889: 376-378. CORDEIRO, 1999: 62-63. ESPREGUEIRA et al., 1889. SOUSA, 1978.
019
Diario da Camara dos Deputados, 22.6.1889: 1350-F (Dias Ferreira).
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Portugal na viragem do século
parlamentares por diversas vezes tornaram-se especialmente violentas, mas, no final, o projecto foi aprovado, bem como a nomeação de uma comissão de inquérito mas sem efeitos suspensivos. Na câmara dos pares, o regenerador Hintze Ribeiro historiou a questão de modo a isentar o seu partido de responsabilidades e colocá-las em cima do antigo líder progressista, Anselmo Braamcamp (que decretara que a linha tinha que ir a Salamanca), e do engenheiro também regenerador, Lourenço de Carvalho (que a incluíra no seu plano geral). Por seu lado, os progressistas culpavam os adversários pelo descalabro da questão, o qual tentavam agora corrigir. O projecto acabou por ser aprovado com muitas críticas ao governo, que por sua vez apontava o despesismo regenerador com as linhas do Minho, Douro e Algarve e com os portos de Lisboa e Leixões como a causa da persistência do défice020. Figura 86 – Anselmo Braamcamp (à esquerda) e Hintze Ribeiro (à direita)021
Apesar do desgaste a que foi submetido com esta questão, o governo não caiu. Mais tarde, o executivo viu-se fragilizado pela demissão dos ministros das obras públicas e fazenda, alegadamente por desinteligências internas: Mariano de Carvalho por se achar desautorizado na implementação do seu plano financeiro; Emídio Navarro por um negócio com companhias vinícolas. Contudo, só o diferendo com Inglaterra a propósito do mapa cor-de-rosa pôs fim ao governo progressista (13 de Janeiro de 1890). O rei D. Carlos chamou ao poder o chefe dos regeneradores, António de Serpa, para minorar as sequelas do conflito022. 020
Diario da Camara dos Deputados, 12.1.1889: 60 e ss. (relatório do estado da fazenda). Diario da Camara dos Dignos Pares do Reino, 27.6.1889: 617-624.
021
Biblioteca nacional digital, http://purl.pt/6201. RAMOS, 2007, figura 28 (pormenor).
022
SOUSA & MARQUES, 2004.
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Figura 87 – António de Serpa Pimentel023
O discurso de apresentação do novo ministério, a resposta à coroa e o relatório da fazenda de 19 de Maio de 1890 pareciam indicar que a questão ferroviária estava encerrada, pelo menos temporariamente. Não foram propostos novos caminhos-de-ferro, reforçando assim a ideia de que este tipo de investimento estava suspenso024. Só melhoramentos ao nível da exploração, tanto ao nível público como privado, como alargamento de estações (linha do Algarve, ramal de Setúbal, linha do leste, linha de cintura), aumento das vias de resguardo (estação de Coimbra) ou duplicação da via foram realizados025. Os deputados das zonas que ainda não tinham caminhos-de-ferro indispuseram-se contra esta agenda do governo e apressaram-se a propor novas ferrovias ao parlamento: Alfredo Brandão e Elvino de Brito defenderam a linha de Arganil à Covilhã; António Baptista de Sousa e Eduardo José Coelho ressuscitaram a rede a norte do Mondego (projecto naturalmente defendido pela classe engenheira026); Fialho Machado lembrou o caminho-de-ferro de Pias a Barrancos; Alves Passos propôs a conclusão da rede do Minho; Matoso Corte Real evocou o ramal de Alfarelos; Jerónimo Pimentel e Francisco Machado pugnaram pela continuação da linha de Guimarães por Trás-os-Montes; Tomás Ribeiro (nos pares) advogou a ligação entre as linhas da Beira Alta e do Douro por Viseu. A estas propostas, o ministro das obras públicas, Frederico Arouca, respondia com a promessa da apresentação de um plano de rede027. Multiplicavam-se também as queixas sobre obras e estações na linha da Beira Bai023
Occidente, revista illustrada de Portugal e do estrangeiro, 15.2.1878, n.º 4: 28.
024
Diario da Camara dos Deputados, 15.1.1890, 12.5.1890 e 19.5.1890: 57-58, 185-186 e 271 e ss.
025
Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas. Junta Consultiva de Obras Públicas e Minas. Cx. 36 (1891), pareceres 20447 (11.6.1891), 20475 (18.6.1891), 20534 (9.7.1891), 20537 (9.7.1891), 20557 (13.7.1891) e 20947 (26.10.1891).
026
VILLAS-BOAS, 1890.
027
Diario da Camara dos Deputados, 7.5.1890, 10.5.1890, 26.6.1890, 4.7.1890, 11.7.1890, 21.7.1890 e 23.7.1890: 137, 158-159, 883-888, 1016, 1152-1153, 1413 e 1464-1466. Diario da Camara dos Dignos Pares do Reino, 23.7.1890 e 6.8.1890: 715-716 e 800-801.
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Portugal na viragem do século
xa (Ruivo Godinho, Vaz Preto), sobre o plano da Companhia Real de centralizar toda a circulação no Rossio (Margiochi), sobre irregularidades na linha de Arganil (Monteiro Cancela), sobre a transferência das linhas de norte e leste e as do estado para as mãos de um grande sindicato (conde de Bertiandos), sobre acidentes nas linhas (Costa Lobo) e sobre a falta de estradas. Os reparos vinham de todo o parlamento, sobretudo na questão da linha urbana de Lisboa. As tarifas passaram também a ser usadas como arma de arremesso contra o governo. Esperava-se delas a resolução da crise agrícola que afectava Portugal. Tanto se sugeria a sua redução, como uma alteração no seu sistema (fazendo-as depender do peso da mercadoria e não da distância percorrida) de modo a proteger os produtos portugueses face aos estrangeiros028. Os dois grandes partidos preferiram entrar num ciclo vicioso de culpabilização mútua, vendo que a situação financeira do país cada vez se degradava mais: “o illustre deputado quando lhe convinha mostrar que as responsabilidades eram do partido regenerador, dizia «tanto de annuidades; tanto de garantia para o caminho de ferro de Ambaca; tanto de garantia para o caminho de ferro de Torres Vedras; tanto de garantia para obras que foram votadas pelas camaras regeneradoras»; mas, quando depois precisava mostrar que o partido progressista havia feito alguma cousa, já sabia então dizer: «construímos em quatro annos tantos kilometros de caminhos de ferro». (Riso. – Apoiados.) Construimos?! Mas isto é absolutamente falso. (Apoiados.)”029. Entretanto, o diferendo com Londres por causa do ultimato fomentou a agitação social com manifestações no próprio parlamento e na rua, forçando o governo a pedir a demissão a 16 de Setembro de 1890030. Figura 88 – Manifestações populares contra o ultimato inglês031
028
Diario da Camara dos Deputados, 17.5.1890, 11.7.1890 e 5.8.1890: 253-254, 1153 e 1683-1685. Diario da Camara dos Dignos Pares do Reino, 9.5.1890, 21.5.1890 e 23.6.1890: 136, 191-195 e 338-339.
029
Diario da Camara dos Deputados, 19.6.1890: 787 (João Franco).
030
RAMOS, 1994: 181-185. SOUSA & MARQUES, 2004.
031
Occidente, revista illustrada de Portugal e do estrangeiro, 21.1.1890, n.º 399: 20-21.
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Depois de um mês de crise política, o rei nomeou um ministério apartidário liderado por João Crisóstomo de Abreu e Sousa que suspendeu definitivamente a política de fomento: “a questão dos trabalhos publicos em Portugal está em grande parte terminada, porque os poucos que há vão findar em breve”032. O essencial então era gerir o que estava construído, reformar os regulamentos de fiscalização (decreto de 21 de Fevereiro de 1891) e na melhor das hipóteses conceder linhas sem qualquer encargo para o estado (caso do prolongamento da linha de Guimarães a Fafe)033. Num projecto de lei apresentado pelo regenerador João de Paiva para atender ao estado do tesouro público, propunha-se claramente que nenhum caminho-de-ferro fosse construído enquanto houvesse défice nas contas públicas. No mesmo diploma, as preocupações do parlamentar passavam pela agricultura, colónias, economias, ensino, proteccionismo e estradas034. Numa altura em que Portugal sofria os primeiros sintomas de crise, as últimas grandes questões no sector ferroviário ocorreram com a Companhia Real, que desde 1889 se debatia com dificuldades de tesouraria. A queda dos seus rendimentos, o esforço financeiro para construir dezenas de quilómetros de linhas em Portugal sem garantia de juro, vários negócios ruinosos em Espanha e a impossibilidade de recapitalizar a empresa nos mercados externos forçaram a Companhia Real a declarar a suspensão de pagamentos em 1892. Igual medida foi tomada pela Companhia Nacional, que se debatia com problemas financeiros semelhantes035. Em 13 de Janeiro de 1892, o governo nomeou uma comissão (composta por António de Serpa, Ernesto Madeira Pinto, Perfeito de Magalhães, Manuel Francisco de Vargas e Augusto César Guimarães da Silva) para realizar uma sindicância à Companhia Real, que, no parlamento, era acusada de prejudicar o crédito nacional por associar as suas obrigações ao estado036. Dias depois, o presidente do conselho, João Crisóstomo, confessou aos deputados que o seu ministro da fazenda, Mariano de Carvalho, entregara ilegalmente à Companhia Real 2.600 contos, pedindo por isso a demissão. O ministro da fazenda admitiu não só essa entrega, mas muitas mais, no valor total de 15.700 contos. Argumentava que o fizera não para salvar a companhia mas sim o crédito nacional, que se afundaria com a empresa se esta falisse037. 032
Diario da Camara dos Deputados, 17.3.1891: 4 (Tomás Ribeiro).
033
Collecção Official de Legislação Portugueza, 1891: 50 e ss. e 113 e ss.
034
Diario da Camara dos Deputados, 17.6.1891: 2-19.
035
PINHEIRO, 1986: 501. PINHEIRO, 1997: 154. SALGUEIRO, 2008: 92-102. SANTOS, 2014. TORRES, 1985: 96 e ss.
036
Collecção Official de Legislação Portugueza, 1892: 3. Diario da Camara dos Deputados, 11.1.1892: 3-6. Diário da Camara dos Dignos Pares do Reino, 11.1.1892: 2-9.
037
Diario da Camara dos Deputados, 14.1.1892: 2-4. FERNANDES, 2007: 615-621.
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Portugal na viragem do século
O rei chamou Dias Ferreira, que constituiu um governo de independentes. Os republicanos aproveitavam o caso da Companhia Real e o relatório da sindicância à mesma para denegrir o regime, ao passo que os monárquicos se digladiavam em torno da habilidade de Mariano de Carvalho, do alegado desaparecimento de 4 mil contos dos cofres da companhia à custa do túnel do Rossio e das queixas contra as companhias privadas e os seus dirigentes038. Entretanto, o conde da Foz, fundador da Companhia Nacional e homem-forte da Companhia Real era detido por suspeita de fraude financeira039. A norte, a Companhia das Docas revelava-se incapaz de continuar a exploração das linhas até Salamanca, o que poderia levar à perda da concessão para Espanha. Para o evitar, o estado ordenou à direcção dos caminhos-de-ferro do Minho e Douro que tomasse conta das linhas, cuja exploração era deficitária (decreto de 1 de Abril de 1892)040. A Companhia Real via-se também em perigo de suspender a exploração, o que levou o governo a nomear uma comissão de administração (composta por Barros Gomes, Teles de Vasconcelos, conde de Magalhães, Manuel de Castro Guimarães, Vitorino Vaz Júnior, Danican Philidor, Armand Ferré, Kergall e Heinrich Hohenemser) para gerir as linhas por conta da companhia. Legislou também no sentido de impedir que as receitas operacionais fossem arrestadas ou embargadas (decreto de 21 de Abril de 1892). Este diploma indispôs os comités de obrigacionistas, que queriam reaver o seu dinheiro, levando à necessidade de se chegar a um acordo041. Das medidas entretanto propostas pelo executivo para enfrentar a crise, nenhuma incluía caminhos-de-ferro. As palavras de ordem eram redução de despesa e desenvolvimento da agricultura e indústria. O decreto de 1 de Dezembro de 1892 é um bom exemplo desta política ao tentar reduzir a despesa na exploração das linhas do estado e na fiscalização das linhas privadas042. Em Fevereiro de 1892, Oliveira Martins, ministro da fazenda, propôs e viu aprovado pelo parlamento um convénio unilateral com os credores externos para atenuar o serviço da dívida (lei de 26 de Fevereiro de 1892, art.º 8.º, aplicada por decreto de 13 de Junho de 1892), que, na realidade, representava uma bancarrota parcial do estado português043.
038
Diário da Camara dos Dignos Pares do Reino, 3.2.1892: 1-2 e 10. SOUSA & MARQUES, 2004.
039
SANTOS, 2014.
040
Collecção Official de Legislação Portugueza, 1892: 94.
041
Collecção Official de Legislação Portugueza, 1892: 205-206. BARATA, 1945. SOUSA, 1941.
042
FINO, 1883, vol. 3: 158-175.
043
Collecção Official de Legislação Portugueza, 1892: 38 e 427-428.
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A linha do Tua (1851-2008)
Figura 89 – Joaquim Pedro de Oliveira Martins044
Oliveira Martins pretendia implementar um paradigma económico diferente, assente na colonização do sul do reino, no proteccionismo e substituição de importações, na aposta na instrução, no fomento do cooperativismo financeiro, no investimento nas colónias e na marinha mercante e sobretudo na paralisação do programa de obras públicas e na nacionalização dos caminhos-de-ferro, para evitar que a riqueza por eles realizada saísse do país045. Contudo, as suas medidas desagradaram aos monárquicos e mesmo a colegas seus no governo, que recusaram aplicar o convénio com os credores externos046. Rapidamente foi o executivo remodelado (a 27 de Maio de 1892), com a saída de Oliveira Martins da fazenda (substituído pelo próprio presidente do conselho, Dias Ferreira) e do visconde de Chanceleiros das obras públicas (rendido pelo engenheiro Pedro Vítor). De início, o novo governo contou com o apoio dos regeneradores de Hintze Ribeiro, mantendo-se “impreterivel e fatal destruir o desequilibrio orçamental, por meio de diminuição de despezas, e de augmento de receitas”047. Com o passar do tempo, porém, o parlamento e os próprios apoiantes regeneradores começaram a 044
Biblioteca nacional digital, http://purl.pt/93/1/iconografia/geracao70.html.
045
MARTINS, 1987: 12-15 e 320-324.
046
RAMOS, 1994: 207-208.
047
Diario da Camara dos Deputados, 16.1.1893: 12.
196
Portugal na viragem do século
levantar obstáculos à governação. O estado da Companhia Real e da Companhia das Docas eram assuntos recorrentes nas câmaras, sobretudo na dos pares. A sindicância à primeira foi publicada em finais de Setembro de 1892 e concluiu que a sociedade havia esgotado o seu capital accionista e obrigacionista e estava sobrecarregada com uma divida flutuante avultada. Faltavam-lhe os recursos necessários para saldar essa dívida, para pagar a conclusão das obras em execução e para fazer face aos encargos permanentes de capital. O relatório final revelava também a existência de muitas irregularidades na gestão da companhia048. A 20 de Fevereiro de 1893, Dias Ferreira pediu a demissão, sendo sucedido por um governo regenerador liderado por Hintze Ribeiro, que mantinha o objectivo de reduzir a despesa049. Em termos de caminhos-de-ferro, só se concluíram os contratados. Quando em Fevereiro de 1893, o deputado Miguel Dantas propôs à câmara electiva um auxílio à companhia de que era principal accionista (Companhia do Caminho de Ferro do Porto à Póvoa e Famalicão), advertiu antecipadamente: “tranquilisem-se os animos, que não é do actual projecto que advirá aggravamento ás condições do thesouro, nem é do que tão parca e baldadamente se pede que podem arreceiar-se os medrosos e desconfiados”050. Ainda nesse ano, a proposta para a construção da linha de Messines a Lagos só foi apresentada depois de os deputados algarvios Sárrea Prado e Francisco Machado provarem que o subsídio que se pagava à companhia de navegação da carreira entre Lisboa e o Algarve (que seria suspenso, caso aquela obra fosse realizada) era suficiente para pagar a prestação anual da empreitada051. Já o transmontano Eduardo José Coelho queixava-se da falta de viação acelerada na sua província, mas não se atrevia a apresentar uma proposta de despesa052. Nos anos seguintes, os caminhos-de-ferro estiveram arredados dos discursos da coroa e respectivas respostas (prédicas que abriam oficialmente as sessões parlamentares). Em termos ferroviários, apenas questiúnculas e pequenas queixas eram trazidas ao parlamento053. A resolução da questão com os credores externos (intentada, debalde, através de lei de 20 de Maio de 1893) tornara-se uma necessidade premente054. A afectação de fundos para o fomento diminuiu drasticamente. O equilíbrio das contas públicas e a questão ultramarina passaram a marcar a agenda dos governos na década 048
Diário da Camara dos Dignos Pares do Reino, 3.1.1893, 13.1.1893 e 28.1.1893: 3-5, 15-16 e 42. PORTUGAL, 1892.
049
Diario da Camara dos Deputados, 23.2.1893: 3-4 e 8-9. SOUSA & MARQUES, 2004: 512-513.
050
Diario da Camara dos Deputados, 17.2.1893: 2.
051
Diario da Camara dos Deputados, 21.6.1893: 42 e 46.
052
Diario da Camara dos Deputados, 22.6.1893: 15.
053
Diario da Camara dos Deputados, 31.5.1893: 7-8.
054
Collecção Official de Legislação Portugueza, 1893: 114-117. PINHEIRO, 1986: 506-507. SERRÃO, 1986: 54. SOUSA & MARQUES, 2004: 132.
197
A linha do Tua (1851-2008)
de 1890. O fontismo falia apesar de ter proporcionado ao país um crescimento, que permitiu manter desde 1850 a política de obras públicas, e ter criado condições para que nas décadas seguintes se saboreassem os resultados do investimento realizado055. O ministério das obras públicas não foi extinto, embora tal parecesse ser o desejo do republicano Jacinto Nunes, que se “fosse um dia dictador (...), a primeira coisa que faria era cortar, fazer desapparecer, por completo, o ministerio das obras publicas (...), porque é por intermedio d’este ministerio, que estamos constantemente distribuindo dinheiro por alguns á custa de todos (...), dando á custa do compadre povo grossas fatias aos afilhados. Alem d’isto, é por este ministerio que se faz a grande corrupção eleitoral, que se vicia na sua origem o regimen representativo, se depravam os caracteres, e se desmoralizam os costumes”056. Tal, todavia, não era a opinião geral. A importância dos caminhos-de-ferro construídos era reconhecida nos diplomas aprovados pelo governo, cuja principal preocupação era manter em exploração as linhas pertencentes a empresas em falência. Fora do ministério, havia ainda construções a fiscalizar (linha da Beira Baixa, ramal de Viseu) e garantias de juro a contabilizar. Ao mesmo tempo, trabalhava-se no sentido de melhorar a qualidade e corrigir os defeitos na exploração das linhas públicas e privadas. A Companhia Real, a Companhia do Caminho de Ferro da Beira Alta, a Companhia do Porto à Póvoa e Famalicão e as direcções do Minho e Douro não deixaram de fazer melhorias nas suas instalações, fosse o alargamento de estações, a construção de apeadeiros, a renovação de material circulante, o prolongamento de vias de resguardo, a duplicação da via, a substituição de tabuleiros nas pontes, obras que normalmente eram aprovadas pelo conselho superior de obras públicas e minas. Surgiam também propostas para a construção de linhas em via reduzida ou alternativas aos caminhos-de-ferro em leito próprio057. Entretanto, era necessário regular a situação financeira da Companhia Real, à qual se encontrava ligada a situação financeira da nação, pois os credores externos do estado tinham investido também na companhia, da qual o tesouro era igualmente credor. É neste contexto que o ministro das obras públicas, Bernardino Machado, pediu ao parlamento (10 de Julho de 1893) autorização para tomar as medidas necessárias 055
LAINS & SILVA, 2005. MATA, 1988. MATA & VALÉRIO, 1993. PINHEIRO, 1992: 179.
056
Diario da Camara dos Deputados, 22.6.1893: 7 (sessão nocturna).
057
Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas. Conselho Superior de Obras Públicas e Minas. Cx. 39 (1892-1893), pareceres 22423 (12.1.1893), 22500 (6.2.1893), 22513 (9.2.1893), 22527 (16.2.1893), 22572 (2.3.1893), 22729 (24.4.1893) e 22855 (2.6.1893); cx. 40 (1894), pareceres 23691 (12.3.1894) e 23718 (19.3.1894); cx 41 (1894), pareceres 23786 (12.4.1894), 23911 (14.5.1894), 24025 (21.6.1894) e 24132 (26.7.1894); cx. 42 (1894-1895), pareceres 24406 (29.10.1894), 24691 (24.1.1895) e 24887 (11.3.1895); cx. 43 (1895), pareceres 25031 (18.4.1895) e 25374 (25.7.1895); cx. 44 (1895), pareceres 25359 (22.7.1895) e 25478 (29.8.1895); cx. 45 (1895), pareceres 25715 (7.11.1895) e 25758 (14.11.1895). Diario da Camara dos Deputados, 22.7.1899: 730-731.
198
Portugal na viragem do século
para assegurar o reembolso das quantias que o estado tinha a haver da companhia e regularizar a sua situação financeira, sem incorrer com isso em maiores despesas. Dois dias após, o diploma foi discutido e na mesma sessão foi aprovado pelos deputados. O mesmo aconteceu dias depois nos pares. A premência da questão motivou esta pressa, mas não impediu o criticismo da oposição058. Nos pares, ao lado do governo, votava o conde de Magalhães, que militava na oposição – era um chamado amigo de Vaz Preto –, mas ao mesmo tempo – e mais importante na hora da decisão – era também administrador da Companhia Real059. Figura 90 – Bernardino Machado060
A subsequente lei de 27 de Julho de 1893 e o decreto de 9 de Novembro de 1893 estabeleciam que uma cessação de pagamentos requerida pelo estado seria imediatamente declarada pelo poder judicial sem qualquer formalidade e ficavam suspensas todas as execuções sobre as companhias, que eram obrigadas a acordar uma convenção com os seus credores. Em caso de ausência de concordata, a companhia entrava em falência e as suas concessões eram colocadas em hasta pública, podendo ser adjudicadas a outra companhia, entregues a uma comissão de credores (não se verificando o primeiro ponto) ou entregues ao estado (não se ve058
Diário da Camara dos Dignos Pares do Reino, 6.6.1893 e 7.6.1893: 164 e 174.
059
Diario da Camara dos Deputados, 10.7.1893 e 12.7.1893: 6-7 e 18-32. Diário da Camara dos Dignos Pares do Reino, 14.7.1893: 502-516.
060
Museu da presidência da república, http://www.museu.presidencia.pt/presidentes_bio.php?id=23.
199
A linha do Tua (1851-2008)
rificando as duas últimas situações). Em todo o caso, a exploração mantinha-se061. Na posse desta nova moldura legal, o governo não perdeu tempo a pedir a declaração de cessação de pagamentos da Companhia Real (emitida pelo tribunal do comércio de Lisboa em 13 de Novembro 1893). Seguidamente, nomeou uma comissão onde se reuniam os interesses do estado (Frederico de Arouca, João Arroio e Ernesto Madeira Pinto), da companhia (António Carrilho, Manuel Pais Vilas Boas e Manuel de Castro Guimarães) e dos credores portugueses (Vitorino Vaz Júnior), franceses (Albert Lechat) e alemães (Heinrich Hohenemser). Foi esta equipa que em 4 de Maio de 1894 estabeleceu em Paris um acordo, aprovado pela assembleia-geral da companhia a 8, ratificado a 10 pela direcção e no dia seguinte pelo tribunal do comércio de Lisboa e pelo governo. O acordo previa uma reconversão do capital obrigacionista com a emissão de novos títulos. Por seu lado, a Companhia Real aprovava novos estatutos (30 de Novembro de 1894) e preparava-se para enfrentar o futuro com uma administração composta na sua maioria por representantes dos obrigacionistas e de portugueses062. Se o estado financeiro da Companhia Real foi relativamente regularizado, o do estado português ainda estava muito longe do equilíbrio desejado. Nos anos seguintes do governo regenerador, até 1897, os novos ministros das obras públicas (Carlos Lobo de Ávila e Campos Henriques) e fazenda (Hintze Ribeiro) não encontraram condições para propor novos investimentos em caminhos-de-ferro (no orçamento de 1896, por exemplo, só se permitiam melhoramentos nas linhas públicas até à quantia de 70 contos063). O silêncio dos discursos de abertura da sessão em relação à construção de novas ferrovias era ensurdecedor. Isto não significou que não se fizessem trabalhos de bastidores nem se analisassem outras obras públicas de menor envergadura (estradas, americanos, edifícios). Contudo, dominavam a ordem do dia a pacificação política do país, a questão financeira (a que se ligava o convénio da Companhia Real e ainda os estragos deixados pela salamancada064), a questão ultramarina e as lutas entre regeneradores e progressistas065. Os interesses das pequenas companhias e caminhos-de-ferro (ramal de Portimão, prolongamento de Cacilhas, linhas do Tua, Corgo, Guimarães e Famalicão) eram evocados pelos deputados locais, mas dificilmente seriam atendidos, pois “o governo não 061
Collecção Official de Legislação Portugueza, 1893: 482-483 e 813-816.
062
FINO, 1883-1903, vol. 3: 195-197, 216-225, 228-229, 235-236 e 259. Gazeta dos Caminhos de Ferro, a. 60, n.º 1449 (1.5.1948): 293; n.º 1459 (1.10.1948): 524. Gazeta dos Caminhos de Ferro de Portugal e Hespanha, a. 7, n.º 154 (16.5.1894): 160 e supl.; n.º 167 (1.12.1894): 373-374. AGUILAR, 1945. AGUILAR, 1949. BARATA, 1945. CORREIA, 1939. REIS, 1940. SOUSA, 1941.
063
Diario da Camara dos Deputados, 18.1.1896: 56-57.
064
Diario da Camara dos Deputados, 26.10.1894, 6.11.1894 e 17.11.1894: 174, 177, 335, 478 e 482-483. Diário da Camara dos Dignos Pares do Reino, 23.1.1897 e 26.1.1897: 50-51, 74.
065
RAMOS, 1994: 135-178. SERRÃO, 1986: 57-77. SOUSA & MARQUES, 2004: 513-514.
200
Portugal na viragem do século
projecta construir caminhos de ferro, porque não os póde fazer nas actuaes circumstancias”066. Assim, a proposta de E. Bartissol para construir e entregar ao estado cinco ramais das linhas públicas ao sul do Tejo, mediante uma anuidade por 99 anos só podia ser recusada. Segundo, os cálculos do conselho superior de obras públicas e minas, a anuidade, equivalente a uma percentagem da receita bruta da rede do sul e sueste, garantia ao empreiteiro um lucro de 6 ou 7% do investimento e ao estado um encargo anual de 80 contos. Na negativa, pesou ainda o facto de o conjunto de linhas propostas não ser o mais indicado067. Nesta época, apenas se atendeu à pretensão da Companhia do Caminho de Ferro do Porto à Póvoa e Famalicão de ver anuladas as obrigações que contraíra em troca de uma isenção fiscal (lei de 21 de Maio de 1896). Ordenou-se ainda a construção do ramal de Portimão que faria cessar o pagamento do subsídio à carreira de navegação do Algarve068. As grandes discussões na capital votavam por completo ao esquecimento a já esquecida província de Trás-os-Montes. Os transmontanos cada vez ficavam mais descrentes de verem alargado na região o serviço ferroviário, que se resumia, à época, à linha do Tua e ao troço final da linha do Douro. Em 1886, o jornal O Brigantino lamentara-se: “Mirandella caminha! E Bragança?... Não haverá uma alma christã que se condoa de nós?”069. No final do século XIX, o lamento tinha ainda mais razão de ser.
066
Diario da Camara dos Deputados, 17.4.1896: 1037. Ver também Diario da Camara dos Deputados, 20.11.1894, 22.11.1894, 5.2.1896, 7.2.1896, 18.1.1897 e 29.1.1897: 520, 539, 205-206, 220 e ss., 381 e ss., 64-70 e 170-171.
067
Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas. Conselho Superior de Obras Públicas e Minas. Cx. 42 (1894-1895), parecer 24862 (28.2.1895). Gazeta dos Caminhos de Ferro de Portugal e Hespanha, a. 7, n.º 168 (16.12.1894): 389-390.
068
Collecção Official de Legislação Portugueza, 1896: 400.
069
O Brigantino, 18.11.1886, n.º 4: 3.
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A linha do Tua (1851-2008)
3.2. A LEI DE 14 DE JULHO DE 1899 E O RELANÇAMENTO DA CONSTRUÇÃO FERROVIÁRIA070 Hugo Silveira Pereira071
Nos inícios de Fevereiro de 1897, o partido progressista regressava ao poder, substituindo o executivo regenerador de Hintze Ribeiro. Luciano de Castro presidia a nova equipa ministerial, que contava com Ressano Garcia na fazenda e Augusto José da Cunha nas obras públicas. Aparentemente, os objectivos governamentais não se alteraram. Mantinha-se a preocupação com o ultramar, face à cobiça das potências europeias sobre às colónias portuguesas, e o equilíbrio das contas públicas. Contudo, este governo deixaria o seu nome ligado a importantes medidas sobre caminhos-de-ferro que dariam novo ânimo à política do fomento material. Inicialmente, o governo, de forma alguma tímida, começou por adjudicar provisoriamente por decreto de 1 de Abril de 1897 a linha pelo vale do Corgo desde a Régua à fronteira espanhola por Vila Real e Chaves. Desta medida não resultava qualquer aumento de despesa para o estado, uma vez que os adjudicatários apenas solicitavam isenções fiscais sobre um rendimento que no momento não existia. De qualquer modo, era necessário ouvir o parlamento, mas o assunto nunca foi apresentado em ordem do dia072. 070
Este texto é baseado nos capítulos 3.6, 5.4.1, 5.4.2, 5.4.4.2 e 5.5.3 da tese de doutoramento do autor. PEREIRA, 2012a.
071
Centro Interuniversitário de História da Ciência e da Tecnologia (Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa).
072
FINO, 1883-1903, vol. 3: 349-360. Diario da Camara dos Deputados, 22.7.1897: 348-352.
202
Portugal na viragem do século
Meses depois, porém, o gabinete atacou com força a questão ferroviária. A 12 de Julho, apresentou uma proposta (baseada no acordo de 1 de Junho de 1897 com o marquês de Guadalmina, credor da Companhia Real) para arrendar toda a rede do estado (Minho, Douro, sul e sueste) e adjudicar várias linhas complementares àqueles caminhos-de-ferro073. A polémica que tal proposta levantou (mesmo entre os progressistas, mas sobretudo junto do conde de Burnay, que era também parte interessada no negócio), aliada à recusa do Crédit Lyonnais e do Comptoir d’Escompte em participar no projecto, esmoreceu a vontade do governo em a discutir. De facto, o diploma nunca foi apresentado em ordem do dia, apesar de contar com o parecer positivo das comissões de obras públicas e fazenda, que ainda acrescentavam algumas linhas ao conjunto de ferrovias a construir074. No ano seguinte, e malgrado os avisos de prudência financeira constantes do discurso e resposta à coroa, o governo tomaria medidas ainda mais incisivas no sentido de desenvolver um ambicioso plano de construção ferroviária. Antes, veria as suas intenções secundadas por várias reclamações de deputados e pares (regeneradores, inclusive) a favor de linhas no norte (Tua, Corgo, S. Pedro da Cova ao Porto), centro (ramal de Merceana) e sul do país (ramal de Portimão). Na câmara baixa, o governo conseguiu ainda aprovar a concessão de isenções fiscais aos adjudicatários das linhas do Corgo e Lima (lei de 14 de Julho de 1898). Até ao fim da sessão legislativa, apenas uma operação realizada com as obrigações da Companhia Real de que o estado dispunha animou a oposição e o debate político075. Seria após o encerramento das cortes que o governo encetaria um conjunto de medidas para retomar a construção de caminhos-de-ferro em Portugal, sobretudo após a substituição em Agosto de Augusto José da Cunha por Elvino de Brito na pasta das obras públicas. Elvino José de Sousa Brito era um engenheiro e político português nascido na Índia em 1851. Tirou o curso de engenharia na prestigiada escola de pontes e calçadas de Paris e, em Portugal, participou na construção das linhas do Minho e Douro. Dirigiu ainda a repartição de estatística do ministério das obras públicas, sendo responsável pela publicação do Anuário Estatístico de Portugal e Colónias. Politicamente, estava vinculado ao partido progressista que o elegeu pela primeira vez para o parlamento em 073
Diario da Camara dos Deputados, 12.7.1897: 211-224. FINO, 1883-1903, vol. 3: 364-373. PORTUGAL, 1892: 194.
074
Diario da Camara dos Deputados, 27.7.1897: 408-409 e 412. Diário da Camara dos Dignos Pares do Reino, 15.6.1897 e 23.8.1897: 12 e 233-235. Gazeta dos Caminhos de Ferro, a. 11, n.º 244 (16.2.1898): 53. Gazeta dos Caminhos de Ferro de Portugal e Hespanha, a. 10, n.º 229 (1.7.1897): 193-194.
075
Diario da Camara dos Deputados, 18.1.1898, 7.2.1898, 12.2.1898, 15.2.1898, 16.2.1898, 22.3.1898 e 6.5.1898 a 30.5.1898: 69-71, 240-242, 289-290, 313-314, 332, 677 e 1043 a 1310. Diário da Camara dos Dignos Pares do Reino, 10.2.1898, 11.3.1898, 26.4.1898, 28.5.1898 e 1.6.1898: 77, 127-128, 245-246, 320 e 371-O. FINO, 18831903, vol. 3: 403.
203
A linha do Tua (1851-2008)
1880 pelo círculo de São João da Pesqueira. Voltou a São Bento em 1884, tendo sido sucessivamente eleito nos plebiscitos até 1894. Depois de um interregno de três anos assumiu novamente as funções de deputado em 1897. Em 1898, ascendeu ao pariato e foi nomeado ministro das obras públicas076. Figura 91 – Elvino José de Sousa Brito, ministro das obras públicas077
Dois meses apenas após a sua nomeação, o novo ministro apresentou em decreto (6 de Outubro de 1898) um ambicioso plano de melhoramento (material e administrativo) e alargamento das linhas do estado. Apesar das dificuldades financeiras por que Portugal passava (o convénio para a dívida externa só seria definitivamente selado em 1902, após duas tentativas falhadas em 1898 e 1900078), Elvino de Brito não tinha dúvidas em não se associar “á opinião d’aquelles que julgam absolutamente impossivel, nas actuaes circumstancias do thesouro, a construcção de novas linhas ferreas pelo estado”079. As propostas de Elvino de Brito pretendiam atingir vários objectivos. Desde logo, esperava-se não só aumentar a receita dos caminhos-de-ferro do estado, mas também levar os benefícios da viação acelerada às regiões nacionais que deles ainda não usufruíam. Ademais, o decreto de 6 de Outubro de 1898 dotaria finalmente Portugal de um plano geral de rede, aprovado por lei e gizado sobre bases sólidas e científicas. A elaboração de um plano para a malha ferroviária nacional foi um assunto sempre presente no debate político e técnico da segunda metade do século XIX. Na década de 1870, a discussão foi particularmente profícua entre a classe engenheira reunida na as076
MÓNICA, 2005, vol. 1.
077
MATOS & MARTINS, [s. d.]: 1.
078
SOUSA & MARQUES, 2004: 133.
079
PORTUGAL, 1898: 5.
204
Portugal na viragem do século
sociação de engenheiros civis portugueses. Várias propostas foram aventadas e depois de cerca de dois anos de discussão um relatório final foi elaborado e provavelmente entregue ao governo. Em 1879, o ministro das obras públicas, o também engenheiro Lourenço de Carvalho, apresentou ao parlamento uma proposta ligeiramente diferente da da associação a que pertencia para fixar de uma vez as linhas a construir e a sua prioridade. O projecto nunca foi discutido. Determinar sobre papel os caminhos-de-ferro a assentar não era tarefa fácil, desde logo pela deficiência da informação estatística e cartográfica ao dispor dos governantes. Por outro lado, a fixação rígida das linhas a construir não era uma ideia atractiva do ponto de vista político. Ao longo dos anos, prevaleceu a ideia de que um caminhode-ferro que não representasse um encargo para o estado era um bem em si mesmo. Ora, isto não se coadunava com a existência de uma lei que determinasse explicitamente quais os caminhos-de-ferro que deviam ser construídos (e por exclusão de partes quais os que não eram necessários). Por outro lado, sem um plano de rede, a acção dos governos tornava-se muito mais livre. Sem lei, não havia desrespeitos, nem havia contestação parlamentar. Por fim, os executivos podiam adaptar-se mais facilmente às necessidades, à informação do momento, à vontade da iniciativa privada, aos interesses políticos e aos caprichos de Espanha (no caso das ligações internacionais) e decidir assim em conformidade080. Em 1898, Elvino de Brito propôs-se a fazer o que não tivera sido feito até então: construir de forma pensada e planeada. Para o ministro, “a falta de um plano bem definido de viação accelerada tem deixado ao criterio do governo, subordinado a circumstancias politicas de occasião, a escolha das linhas a construir, quer pelo estado, quer por emprezas concessionarias, sem se attender, muitas vezes, aos verdadeiros interesses do paiz”081. Elvino de Brito repetia a mensagem deixada pela associação de engenheiros 25 anos antes: até então a rede fora construída não para desenvolver o país, mas sim satisfazer interesses políticos. O impacto dos planos do ministro estava irremediavelmente condenado a ser pequeno, uma vez que Portugal por esta altura contava já com mais de 2 mil km de caminhos-de-ferro. Em todo o caso, Elvino de Brito nomeou em 1898 duas comissões para analisar a questão e propor os caminhos-de-ferro a serem construídos a norte do Mondego e a sul do Tejo (pelo já citado decreto de 6 de Outubro de 1898). Uma grande parte da província da Beira Alta e a totalidade das províncias da Beira Baixa e da Beira Litoral não entravam nos planos do ministro. Como já vimos, um dos seus objectivos era incrementar a receita das linhas do estado, aumentando-lhes o tráfego através da construção de vias afluentes. Entre o Mondego e o Tejo, o estado 080
Sobre a discussão do plano de rede ver PEREIRA, 2012a: 308-322. PEREIRA, 2013.
081
Diario da Camara dos Deputados, 27.2.1899: 13
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não possuía quaisquer caminhos-de-ferro, pelo que estas regiões não foram tidas em consideração neste programa. As comissões foram encarregues de elaborar uma lista hierarquizada de linhas que atendessem a quatro critérios distintos: serem úteis à defesa do país; ligarem as redes públicas com outras nacionais ou estrangeiras; colocarem centros importantes de produção e consumo em comunicação com o sistema geral de vias-férreas do reino; e facilitarem as ligações regionais. Os vogais das comissões deviam ainda ter em conta as condições topográficas das regiões e as suas necessidades económicas e administrativas. Cumpria-lhes também indicar a largura de via, as condições técnicas, a extensão e o custo provável de cada uma das vias propostas, especificando quais as que convinham ficar sob alçada do estado e quais as que podiam ser entregues ao sector privado082. A brusca oposição que se levantara ao contrato Guadalmina, que, no fundo, previa uma privatização do sector ferroviário público, podia ter motivado o novo titular das obras públicas a marchar no sentido oposto da nacionalização ou pelo menos reforço do papel do estado como operador ferroviário. Elvino de Brito não caminhou nesse sentido nem fechou completamente a porta à iniciativa privada no que dizia respeito às novas linhas a assentar, embora tenha afastado por completo o fantasma do arrendamento das linhas do estado a privados. No relatório que introduzia o seu decreto, o ministro não quis nem sobrepor a mais-valia da exploração pelo estado àquela realizada por companhias nem o contrário. Na verdade, tudo estava dependente das circunstâncias do local e do momento. Traçada a malha, devia ser esta apresentada aos poderes e associações locais e a grupos cuja autoridade fosse manifestamente relevante (nomeadamente a associação de engenheiros e o conselho superior de guerra). Os conselhos ou pedidos que resultassem destes inquéritos seriam analisados e podiam ser incluídos ou não no plano final. Assim que este estivesse concluído, devia ser submetido ao conselho de superior de obras públicas para uma apreciação final. A palavra final era dada ao governo, que ficava desde logo autorizado a decretar com força de lei as redes propostas. Qualquer caminho-de-ferro que não fosse incluído no lote não podia ser construído sem ser previamente alvo de um minucioso processo de inquérito administrativo de utilidade pública. Elvino de Brito não queria deixar nada ao acaso e pretendia evitar que a continuação da rede fosse feita sem critério083. A acção reformista do ministro não se ficou por aqui. Elvino de Brito nomeou uma outra comissão “para elaborar um plano de reorganisação dos serviços dos caminhos de ferro explorados pelo estado” (conde de S. Januário, Pinto Basto, Simões de Almeida e Sousa, Leopoldo Mourão, António Francisco da Costa Lima, Paiva Cabral 082
PORTUGAL, 1898.
083
PORTUGAL, 1898: 5.
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Portugal na viragem do século
Couceiro, Justino Teixeira, Inácio Lopes, Gualberto Póvoas, Perfeito de Magalhães e Fernando de Sousa). Esta reorganização devia ter em mente a fusão das direcções do Minho e Douro e do sul e sueste sob a égide de um conselho administrativo sedeado em Lisboa, que reunisse “as classes e corporações mais directamente interessadas na boa gerencia das linhas”084. A centralização da gestão ferroviária do norte e do sul era contrabalançada pela concessão de um maior grau de autonomia ao conselho administrativo indicado, que “exercerá em relação ás linhas do estado funcções analogas ás das companhias”085. Elvino de Brito pretendia reunir nesta nova entidade o melhor dos dois mundos: público e privado. Na introdução ao seu decreto, o ministro elogiava a exploração ferroviária pública, mas propunha-se a eliminar alguns dos seus defeitos (decorrentes de uma excessiva centralização e burocratização) através da aplicação dos métodos de trabalho mais descentralizados das companhias privadas. Pretendia-se designadamente evitar as dificuldades que uma excessiva centralização, acompanhada de uma limitada liberdade de acção concedida aos directores das linhas públicas (alguns dos quais constavam da comissão e sabiam por experiência própria como era difícil assinar simples contratos de fornecimento de material), levantavam a uma eficaz e económica gestão. Assim, a entidade a criar teria teoricamente mais independência para gerir os seus recursos financeiros e para resolver os seus problemas operacionais mais rápida e eficazmente. Resultaria de uma teórica combinação das vantagens da exploração por companhias com as vantagens oferecidas pela exploração pública086. A publicação do decreto de Elvino de Brito deu o mote para a discussão parlamentar após a abertura da sessão de 1899. A primeira invectiva incidiu sobre a contradição entre o espírito do decreto e a proposta antecedente de Ressano Garcia para arrendar e privatizar as linhas públicas. Por outro lado, o diploma parecia chocar também contra as ideias do novo ministro da fazenda, Manuel Afonso de Espregueira, um estrénuo opositor à contracção de empréstimos externos e um activo defensor da contenção de despesas. O timing do programa de Elvino de Brito levantou também críticas e censuras. Havia o natural receio do aumento da despesa quando ainda era necessário resolver a questão financeira com os credores externos. Os deputados mais suspeitosos desconfiavam ainda de que o projecto do ministro progressista estava secretamente colado a um acordo com os prestamistas estrangeiros, que envolvia os caminhos-deferro públicos. Tudo isto motivou vários ataques ao governo, com João Franco como ponta-de-lança nessas ofensivas087. 084
Colecção Official de Legislação Portugueza, 1898: 712.
085
Colecção Official de Legislação Portugueza, 1898: 712.
086
Para o decreto, ver Colecção Official de Legislação Portugueza, 1898: 711 e ss.
087
Diario da Camara dos Deputados, 30.1.1899: 7-9.
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A linha do Tua (1851-2008)
A discussão foi continuada com a apresentação ao parlamento da proposta de lei de 27 de Fevereiro de 1899, que consubstanciava o espírito do decreto de 6 de Outubro de 1898. Se dúvidas restassem no que tocava à crença nos caminhos-de-ferro, Elvino de Brito tratava de as dissipar, declarando que “na obra complexa e difficil, mas inadiavel e promettedora do fomento, occupam logar primacial o aperfeiçoamento e o desenvolvimento das vias de communicação, de entre as quaes sobressaem, em importancia e valor, os caminhos de ferro”088. O aperfeiçoamento e o desenvolvimento das vias-férreas nacionais passavam por um duplo esforço de melhoria técnico-administrativa dos caminhos-de-ferro existentes e de construção de novas ferrovias. No introito ao projecto de lei apresentado em Fevereiro, Elvino de Brito recordava a necessidade de desburocratizar a administração da operação ferroviária e acrescentava também que “em muitas estações faltam ainda as linhas de serviço, caes cobertos e descobertos, basculas, baterias de placas rotatorias, habitações para o pessoal e dependências necessarias para o reguardo e conservação das mercadorias. É escasso o material circulante. Não existem, emfim, os elementos indispensaveis a uma boa exploração technica”089. Em termos retóricos, Elvino de Brito não sentia dificuldades. Contudo, em termos financeiros, o ministro tinha que ultrapassar grandes obstáculos para levar avante os seus projectos. Portugal estava numa difícil e complicada situação financeira que, aparentemente, não se harmonizava com o largo investimento que estava na mente do titular das obras públicas. Era necessária uma solução e Elvino de Brito tinha-a. De facto, “anima-me a convicção de que, sem novos encargos para o thesouro, se poderá melhorar consideravelmente a exploração das linhas ferreas do estado, e construir a parte complementar das nossas actuaes redes ferroviarias”090. No entanto, o recurso ao crédito através da emissão de títulos de dívida estava completamente posto de parte, como o próprio autor do relatório confessava: “deve, acaso, o estado ir engrossar a sua divida e complicar as questões que o regimen d’ella suscita, recorrendo ao credito, nas condições habituaes, para effectuar essas construcções? Seguramente, não”091. As verbas para estes planos seriam angariadas de forma diferente. O ministro propunha que o capital para o melhoramento e ampliação da rede fosse composto pela verba anualmente inscrita no orçamento e pelas receitas ligadas à operação ferroviária. Para a realização deste pensamento surgiu o fundo especial dos caminhos-de-ferro do estado, que seria composto pelos aumentos da receita dos impostos de trânsito e selo cobrados em toda a rede e da receita líquida da exploração das linhas públicas (em 088
Diario da Camara dos Deputados, 27.2.1899: 11.
089
Diario da Camara dos Deputados, 27.2.1899: 12.
090
Diario da Camara dos Deputados, 27.2.1899: 12.
091
Diario da Camara dos Deputados, 27.2.1899: 13.
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Portugal na viragem do século
relação aos valores de 350 e 750 contos, respectivamente). O fundo seria também engordado pelo aumento das receitas e diminuição das despesas proporcionados pelas novas linhas propostas, ou seja, pelo incremento da colecta do imposto de trânsito e pela redução das garantias de juro concedidas a companhias (em relação a valores-base de, respectivamente, 220 e 672,5 contos). Receitas extraordinárias ligadas à ferrovia, como juros de depósitos das receitas de exploração, o valor do subsídio à navegação para o Algarve que deixaria de ser pago após a construção do ramal de Portimão, doações de corporações locais e depósitos de garantia de concessões que revertessem para o estado seriam também canalizadas para o fundo especial. Em suma, “nada mais rasoavel do que applicar á despeza altamente productiva da construcção de novas linhas, que tão salutar influencia exercerão no desenvolvimento da riqueza publica, o excesso de receitas que dos proprios caminhos de ferro provenha”092. O ministro estimava que ao fim de um ano, o fundo contaria com cerca de 200 contos e ao fim de 15 anos com perto de 800 contos. Estas verbas deveriam depois ser consagradas aos encargos de empréstimos sucessivos para a construção de novas linhas, à renovação do material circulante e à realização de obras complementares. Com uma capacidade de cobrir encargos de empréstimos até 1.200 contos, o ministro contava abrir em média 50 a 60 km de novos caminhos-de-ferro por ano. O ministro não arrogava para o estado o direito exclusivo de construir estas novas linhas, nem fechava a porta à iniciativa privada. Em termos administrativos, Elvino de Brito propunha ainda a criação de uma nova entidade denominada caminhos-de-ferro do estado, gerida através de um conselho de administração sediado em Lisboa, numa tentativa de descentralizar e desburocratizar a gestão das linhas operadas pelo governo. “Descentralisação de serviços; expedição rapida de negocios; acquisições de materiaes, realisadas legal e opportunamente; fornecimentos em commum, sem encargos duplicados ou superfluos; admissão e destituição do pessoal, conforme as regras previamente definidas e subordinadas ás conveniencias e necessidades occorrentes; orçamentos seguros e rigorosamente proporcionados ás exigencias da administração; receitas arrecadadas e applicadas em condições legaes e compativeis com a indole especial dos respectivos serviços; pagamentos pontualmente realisados e rigorosamente fiscalisados, sem as delongas que sempre prejudicam e muitas vezes desacreditam a exploração: – taes são, em summa, as vantagens que desejo realisar nos serviços dos caminhos de ferro explorados pelo estado, confiando-os á superintendencia do conselho de administração, ao qual ficarão immediatamente subordinados os directores dos caminhos de ferro do Minho o Douro e de Sul e Sueste”093. 092
Diario da Camara dos Deputados, 27.2.1899: 14.
093
Diario da Camara dos Deputados, 27.2.1899: 13.
209
A linha do Tua (1851-2008)
Em relação às linhas prioritárias a assentar, o ministro antecipava-se aos trabalhos das comissões nomeadas anteriormente por si (só entregariam os seus relatórios em Maio e Julho de 1899) e indicava-as ao parlamento. Eram elas os prolongamentos das vias do Algarve (de Faro a Vila Real de Sto. António) e do Tua (de Mirandela a Bragança) e ainda os ramais de Portimão e de Pias a Moura. Estes eram caminhos-deferro que seriam incluídos mais tarde nas redes propostas pelas comissões, sendo por isso provável que o ministro tenha conferenciado com os engenheiros antes de propor a lei ao legislativo. Representavam ainda, segundo o ministro, a satisfação de justas reclamações dos povos algarvios, alentejanos e transmontanos. No caso particular da linha de Bragança, “alem de representar o pagamento de uma divida sagrada ao districto mais desfavorecido do paiz, tem a vantagem de reduzir consideravelmente com o seu trafego a garantia de juro na de Mirandella a Foz-Tua, augmentando, ao mesmo tempo, as receitas do caminho de ferro do Douro”094. A proposta passou despercebida na resposta à coroa discutida dias depois, mas até à sua apresentação sob a forma de projecto de lei em 22 de Abril de 1899, após apreciação das comissões parlamentares de fazenda e obras públicas, vários deputados procuraram incluir as suas regiões nas intenções do governo. Assim o fizeram Oliveira Matos em favor da linha de Arganil, António Cabral em defesa das linhas de Braga a Monção e Chaves ou Teixeira de Sousa em relação à linha do Corgo095. Alguns destes parlamentares militavam na oposição ao governo nas fileiras do partido regenerador. Seria pois de esperar que o diploma pudesse agregar regeneradores e progressistas na sua aprovação. Além do mais, apostava naquilo que aqueles sempre apostaram: os caminhos-de-ferro. No entanto, em ambas as casas do parlamento, os regeneradores, quando não viam no projecto “um verdadeiro poisson d’avril para entreter a camara nos seus ocios e illudir o paiz nas suas esperanças”096, temiam o impacto do projecto de lei sobre as finanças públicas. Por outro lado, afirmavam preferir a realização de melhoramentos nas vias-férreas já existentes e a construção de estradas de acesso às estações. A própria comissão de obras públicas fermentou a acção da oposição ao antepor no texto do seu parecer a melhoria dos caminhos-de-ferro já em operação à construção de novas ferrovias. A oposição relevou o facto de a comissão ter aumentado em 500 contos as verbas do fundo especial dos caminhos-de-ferro e de ter adicionado duas outras linhas ao rol inicialmente proposto pelo ministro097. Uma vez mais, foi o espírito de oposição que imperou, que, aliás, ficou bem demonstrado numa das intervenções de Teixeira de Sousa, deputado regenerador na094
Diario da Camara dos Deputados, 27.2.1899: 17. Para a proposta de lei, ver Diario da Camara dos Deputados, 27.2.1899: 11-19.
095
Diario da Camara dos Deputados, 7.3.1899, 9.3.1899 e 18.4.1899: 5-6, 3-4 e 4.
096
Diario da Camara dos Deputados, 26.4.1899: 7 (Teixeira de Vasconcelos).
097
Arquivo histórico parlamentar. Secção VI, cx. 215, projecto de lei n.º 147.
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Portugal na viragem do século
tural do distrito de Vila Real (Sabrosa). Depois de muito criticar o projecto, acabou por propor à mesa que na lista de caminhos-de-ferro constante do texto do diploma se incluísse também a sua linha do Corgo098. Por outro lado, os regeneradores tanto davam a entender que temiam que a proposta governamental tivesse como objectivo escondido a alienação das linhas-férreas do estado, como, logo a seguir, sugeriam que a construção das linhas aventadas fosse feita exclusivamente por capital privado ao qual se concederiam isenções fiscais alargadas. Fosse como fosse, a verdade é que muitos deputados – inclusivamente alguns regeneradores – acreditavam na possibilidade de os planos de Elvino de Brito serem exequíveis, de tal modo que procuraram incluir no arrolamento de linhas previsto a priori na lei caminhos-de-ferro que servissem as suas regiões de influência, eleição ou naturalidade. Parlamentares tipicamente de campanário, ou seja, que apenas advogavam os interesses locais no parlamento, como Joaquim Veiga, Henrique Kendall, Eduardo José Coelho, Tomás Ribeiro, Oliveira Matos, Gonçalves Braga, Chaves Mazzioti, o visconde de Serra da Tourega, Vieira de Castro ou Eusébio Nunes099 pediram a palavra durante e depois da discussão para convencer o ministro a abranger mais ferrovias nos seus planos. Estas solicitações vinham particularmente de parlamentares das regiões entre o Tejo e o Mondego, área esquecida pelo ministro no projecto de lei que gizara. No fundo, esses deputados exigiam equidade, “porque nós, os da provincia da Beira, também somos gente”100. Após cerca de duas semanas de discussão, o projecto foi aprovado. Apesar da resistência movida pelos regeneradores (por puro espírito de oposição, mas também aproveitando a mudança de opinião do governo e os fantasmas do aumento da despesa), o governo conseguiu passar o diploma nas duas casas do parlamento e promulgá -lo como lei de 14 de Julho de 1899101. O trabalho continuava agora nas mãos dos engenheiros das duas comissões criadas pelo ministro, que nomearia uma terceira, por decreto de 27 de Setembro de 1899 para levar a cabo a mesma missão que as suas congéneres, mas para o tracto de terreno nacional entre o Mondego e o Tejo102. As comissões nomeadas para a análise das redes a norte do Mondego e sul do Tejo rapidamente estabeleceram contactos com os concelhos de todo o reino. Enviaram um questionário tipo no qual genericamente pediam informações sobre o potencial económico dos concelhos, ferrovias cuja construção aconselhavam e se estavam ou não dis098
Diario da Camara dos Deputados, 28.4.1899: 5-12.
099
Diario da Camara dos Deputados, 15.5.1899, 19.5.1899, 25.5.1899, 10.6.1899, 8.7.1899: 3, 5-6, 3, 2-3, 3.
100
Diario da Camara dos Dignos Pares do Reino, 18.5.1899: 357 (Luís Bandeira Coelho).
101
FINO, 1883-1903, vol. 3: 488-495. Para mais detalhes sobre o decreto de 6 de Outubro de 1898, a lei de 14 de Julho de 1899 e os planos de Elvino de Brito, ver: ALEGRIA, 1990. SANTOS, 2011.
102
PORTUGAL, 1905.
211
A linha do Tua (1851-2008)
poníveis para contribuir financeiramente para as obras. A generalidade dos concelhos pediu vários caminhos-de-ferro, outros contentavam-se meramente com estradas, mas a maioria esmagadora revelava-se sem capacidade ou sem vontade para dar dinheiro ao governo para estes melhoramentos. Respostas idênticas obteve a comissão do estudo da malha férrea entre o Mondego e o Tejo, que iniciou e concluiu a sua tarefa mais tarde que as suas congéneres. No distrito de Bragança, responderam ao inquérito, solicitando o caminho-de-ferro de Mirandela a Espanha pela capital de distrito, as câmaras de Bragança, Vinhais e Vimioso. Todas esperavam deste investimento um desenvolvimento da sua agricultura, pecuária e mineração. Nenhuma, porém, se mostrava disponível para auxiliar financeiramente a construção103… A prioridade dada às regiões de influência das linhas do estado fica aqui mais uma vez bem patente. Ao passo que as duas comissões criadas em Outubro de 1898 terminaram os seus afazeres em meados de 1899, a equipa nomeada para o exame da região entre o Mondego e o Tejo só entregou o seu relatório final em 1901104. Analisando o trabalho das duas primeiras comissões, as redes que propunham tinham como principal objectivo ligar as diversas regiões do norte e sul do país a Porto e Lisboa, respectivamente, criando ainda dois grandes núcleos ferroviários em Chaves e Évora. As linhas até Espanha eram completamente desvalorizadas, “haja vista a experiencia das outras ligações internacionaes, cujos resultados não corresponderam ás esperanças que n’ellas se tinha depositado”105. O processo de aprovação das tramas sugeridas foi, porém, emperrado pelo ministério da guerra, que devia dar a sua opinião sobre as implicações militares das novas linhas sobre a defesa nacional106. Deste modo, o decreto que aprovava a rede a norte do Mondego só foi publicado a 15 de Fevereiro de 1900. Seguiu-se o diploma que ratificava com força de lei os caminhos-de-ferro a construir a sul do Tejo (publicado em folha oficial a 27 de Novembro de 1902). Por fim, o édito que fixava a malha ferroviária das Beiras, entre o Mondego e o Tejo só foi assinado pelo rei a 19 de Agosto de 1907. No total, projectavam-se mais de 3 mil km de vias-férreas (perto de 1.300 a norte de Mondego, cerca de 800 entre este rio e o Tejo e pouco mais de mil nas províncias do sul do reino). As linhas foram hierarquizadas em cinco classes, que tanto incluíam caminhos-de-ferro de bitola estreita, como de bitola normal107.
103
PORTUGAL, 1899a. PORTUGAL, 1899b. PORTUGAL, 1905. Ver também PINHEIRO et al., 2011.
104
PORTUGAL, 1899a. PORTUGAL, 1899b. PORTUGAL, 1901. PORTUGAL, 1905.
105
PORTUGAL, 1899b.
106
PEREIRA, 2012a: 322.
107
ALEGRIA, 1990. SANTOS, 2011: 159.
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Portugal na viragem do século
Mapa 25 – Proposta de rede das comissões nomeadas por Elvino de Brito108
108
PORTUGAL, 1899a. PORTUGAL, 1899b. PORTUGAL, 1901. PORTUGAL 1905. Ver também ALEGRIA, 1990.
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A linha do Tua (1851-2008)
A extensão das redes a assentar a norte e sul do país e a sua hierarquização comprovam que o plano projectado pretendia beneficiar claramente as zonas de influência económica das linhas públicas e em particular o norte interior do país. Se esta malha passasse do papel para o terreno, Trás-os-Montes ficaria tão bem servido de caminhosde-ferro como as demais regiões nacionais. Por outro lado, Portugal dotava-se finalmente de uma lei que predeterminava quais os caminhos-de-ferro a construir, quase 50 anos após o início da construção ferroviária no país. Também Bragança, sede da casa reinante, à qual dava o nome, se via enfim englobado nos planos ferroviários do governo de Lisboa.
214
A extensão da linha do Tua a Bragança
4. A EXTENSÃO DA LINHA DO TUA A BRAGANÇA
4.1. A ACÇÃO DOS BEÇAS NA OUTORGA DA LINHA Hugo Silveira Pereira109
De entre os influentes que pugnaram em finais do século XIX e inícios do século XX pela construção da extensão da linha do Tua até Bragança, o destaque vai inteiramente para Abílio Beça e para o seu irmão José Beça. Abílio José Augusto Ferro de Madureira Beça nasceu a 20 de Agosto de 1856 em Vinhais, filho de José António Ferro de Madureira Beça e Maria Augusta de Morais Beça110. Terá frequentado o liceu de Bragança, após o que ingressou no curso de direito da universidade de Coimbra (Outubro de 1875). Em Maio de 1879, recebeu o grau de bacharel e um ano depois concluiu os estudos superiores111. Habilitado com o curso de direito, Abílio Beça passou a exercer advocacia em Bragança, onde abriu uma banca, na rua de Trás112. A posse de um grau universitário fortaleceu a sua posição na elite local e tornou-o elegível para o parlamento113. O curso de direito “além de facultar a aprendizagem dos assuntos legais e administrativos, adestrava os estudantes na eloquência retórica, era
109
Centro Interuniversitário de História da Ciência e da Tecnologia (Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa). Os capítulos 4.1 a 4.5 são baseados em PEREIRA, 2015.
110
ALVES, 2000, vol. 1: 357-358. MÓNICA, 2005, vol. 1: 357.
111
Arquivo da universidade de Coimbra. Universidade de Coimbra. Cartas de curso. Direito (1880), 3.ª série, cx. 76 (AUC-IV-2.ªD-13-3-6). MÓNICA, 2005, vol. 1: 357.
112
ALVES, 2000, vol. 1: 357-358.
113
ALMEIDA, 1991: 39-42. ALMEIDA & MORENO LUZÓN, 2012: 24. CRUZ, 2009: 94-95. SOUSA, 2013, vol. 1: 185. 215
A linha do Tua (1851-2008)
o viveiro natural dos homens políticos e, em particular, dos futuros parlamentares”114. Por volta de 1880, Abílio Beça tornou-se também professor de história e geografia no liceu de Bragança, cargo que acumulava com o de docente de francês no seminário diocesano115. A partir de 1886, assumiu as funções de director de jornal, primeiro n’O Brigantino e depois na Gazeta de Bragança116. Figura 92 – Abílio José Augusto Ferro de Madureira Beça117
Casou a 17 de Maio de 1882 em Macedo de Cavaleiros com Ana Clotilde de Sá Machado Leitão Bandeira, filha única de João Carlos Leitão Bandeira e de Leopoldina Carolina de Sá Machado Pavão. O casal teve seis filhos, mas cinco deles faleceram precocemente. Os Leitões Bandeira eram uma família com uma grande história e tradição. As suas origens remontam a finais do século XVII, mas as raízes dos seus dois ramos (Leitão e Bandeira) vão até à Idade Média. Na década de 1720, radicaram-se no distrito de Bragança, onde cimentaram a sua influência com a implantação do regime liberal. O sogro de Abílio Beça era um dos quarenta maiores contribuintes do concelho e, como tal, foi político. Entre 1870 e 1892, desempenhou diversos cargos administrativos autárquicos, inicialmente sob a égide do partido progressista (o qual ajudou a estabelecer em Bragança), mas depois como militante do partido regenerador118. A carreira política de Abílio Beça começou em 1884, ano em que foi nomeado vogal da comissão executiva da junta geral do distrito, provavelmente sob os auspícios 114
ALMEIDA & MORENO LUZÓN, 2012: 41.
115 Arquivo nacional Torre do Tombo. Registo Geral de Mercês de D. Luís I, liv. 43, f. 258v-259v. ALVES, 2000, vol. 3: 417-420. MÓNICA, 2005, vol. 1: 357. 116
ALVES, 2000, vol. 1: 357-358. MÓNICA, 2005, vol. 1: 357.
117
Illustracão Portugueza, 1910, n.º 222: 26.
118
LEITÃO-BANDEIRA, 2010: 252. MÓNICA, 2005, vol. 3: 357.
216
A extensão da linha do Tua a Bragança
do sogro no seio do partido progressista. É também possível que a sua luta pela linha de Bragança se tenha iniciado neste ano, já que por esta mesma altura a junta geral enviou uma representação à câmara dos deputados, solicitando que o caminho-deferro que então se construía no Tua não se ficasse por Mirandela e alcançasse também Bragança119. Segundo O Brigantino, Abílio Beça escreveu ainda alguns artigos n’O Primeiro de Janeiro, defendendo que a linha do Tua deveria ser feita pela margem esquerda do rio para facilitar a sua futura continuação até Bragança120. Anos mais tarde, O Seculo confirmava que “o sr. Abilio Beça encetou na imprensa uma larga propaganda a favor do prolongamento d’esta linha até Bragança, fazendo estabelecer uma forte corrente de opinião no alto districto”121. Entretanto, em finais da década de 1880, Abílio Beça abandonou o partido progressista e aproximou-se da ala mais à esquerda dos regeneradores, a chamada esquerda dinástica, movimento político formado por Augusto César Barjona de Freitas. Concorreu com o patrocínio deste partido às eleições para o parlamento de 1889, mas não conseguiu ser eleito122. Figura 93 – Eduardo José Coelho123
Por esta altura, o seu principal rival político em Bragança era o progressista Eduardo José Coelho, que na altura era ministro das obras públicas. Quando Coelho tentou retrazer o projecto de 1888 de Emídio Navarro às câmaras, juntou numa só proposta de lei as linhas do Tua e de Arganil, não conseguindo fazer aprovar nenhuma delas. De 119
SOUSA, 2013, vol. 1: 255.
120
O Brigantino, n.º de Dezembro de 1889: 2.
121
O Seculo, 7.5.1902, n.º 7308: 1.
122
O Brigantino, 29.3.1889: 158. Gazeta de Bragança, 11.5.1902, n.º 521. SOUSA & MARQUES, 2004: 243.
123
Illustracão Portugueza, 1904, n.º 51: 808-809.
217
A linha do Tua (1851-2008)
imediato O Brigantino aconselhou os seus leitores a “entoar um doloroso de profundis e derramar sentidas lagrimas sobre o projecto do prolongamento do caminho de ferro do Tua até Bragança”124. A carreira política de Abílio Beça sofreu uma reviravolta com a extinção da esquerda dinástica, após o seu líder e fundador ter sido enviado para Inglaterra como ministro extraordinário em 1890 no âmbito do processo diplomático espoletado pelo ultimato inglês125. Foi então que Abílio Beça ingressou no partido regenerador e chegou ao parlamento126. Foi eleito pela primeira vez para São Bento em 1894, mas a sua acção em prol da linha de Bragança foi nula, pois a legislatura foi abruptamente terminada pouco mais de um mês depois da sua abertura127. O executivo regenerador governou em ditadura até 1896, pelo que o parlamento só reabriu novamente as suas portas neste ano. Nas eleições realizadas a 17 de Novembro de 1895, o partido regenerador concorreu praticamente sozinho às urnas, em virtude da desistência dos progressistas que assim protestavam contra a lei eleitoral entretanto decretada128. Abílio Beça apresentou candidatura pelo círculo de Bragança e foi naturalmente eleito para um parlamento quase totalmente regenerador, o qual os adversário apelidaram de Solar dos Barrigas129. Figura 94 – O Solar dos Barrigas130
124
Cf. O Brigantino, 28.2.1889, n.º 152: 1. 14.3.1889, n.º 156; 29.3.1889, n.º 158; 20.6.1889, n.º 170; n.º de Dezembro de 1889: 2.
125
SOUSA & MARQUES, 2004: 243.
126
Gazeta de Bragança, 14.10.1906, n.º 751. Norte Transmontano, 8.10.1896, n.º 82: 1.
127
ALVES, 2000, vol. 1: 357-358.
128
ALMEIDA & MORENO LUZÓN, 2012: 21-22.
129
Arquivo histórico parlamentar. Caixa 1924. Tribunal de verificação de poderes. Auto da eleição do círculo n.º 4 (Bragança).
130
O António Maria, 7.3.1896, n.º 433: 4.
218
A extensão da linha do Tua a Bragança
Foi nesta sessão legislativa que Abílio Beça iniciou a sua luta parlamentar que levaria à abertura de concurso para a construção da continuação da linha do Tua até Bragança. Num longo discurso proferido em 7 de Fevereiro de 1896, Abílio Beça começou por “chamar á attenção do governo e em especial do sr. ministro das obras publicas para a situação em extremo precaria e, a certos respeitos, quasi alarmante em que se encontram alguns concelhos do districto de Bragança”. No seu entender, a solução passava pela continuação da política de obras públicas, da qual “o districto de Bragança tem sido sempre (…) o mais esquecido, o mais desprezado pelos governos d’este paiz”. A falta de meios de transportes fazia de Trás-os-Montes a província mais desconhecida do reino, apesar das riquezas que – asseverava – o seu solo e subsolo continham. Por exemplo, as grutas de alabastro com “caprichosos rendilhados de stalactites e stalagmites” eram tão belas e curiosas que “se houvesse próximo uma estação de caminho de ferro, formar-se-ía para ali uma constante romaria de nacionaes e estrangeiros, para as visitar”. Por isso o deputado brigantino solicitava ao ministro das obras públicas, Campos Henriques, que decretasse a construção de mais estradas em Bragança e sobretudo abrisse concurso para a extensão da linha do Tua. Apesar de Portugal estar a passar por uma grave crise financeira, Abílio Beça não tinha receio em falar de investimento em caminhos-de-ferro e sobretudo na extensão de Bragança, uma vez que sua urgência e o alegado retorno seguro do investimento eram razões mais que ponderosas. Por outro lado, aumentava-se o tráfego na linha do Tua (a cuja companhia o estado pagava uma garantia de juro) e na linha do Douro (propriedade pública)131. Campos Henriques prometeu a Beça uma resposta, mas esta tardava, pelo que o deputado voltou à carga a 29 de Fevereiro seguinte, lançando “alvitres sobre a maneira pratica de se construir um caminho de ferro para Bragança” com o qual “lucraremos todos, lucrará a nação inteira”. Abílio Beça apresentava quatro soluções. Em primeiro lugar, falou da construção de uma linha pelo sistema decauville (ferrovia com bitola de 60 cm, que admitia curvas até 25 m de raio e inclinações de 8%132). Contudo, este sistema tinha várias limitações a não mais pequena das quais a diferença de bitola em relação à linha do Tua. O ideal era assim prolongar em bitola métrica o caminho-de-ferro até Bragança, num investimento que o orador calculava ser de cerca de 1.000 contos de reis. O montante podia ser adquirido por empréstimo, usando-se a diminuição da garantia de juro paga à Companhia Nacional e o aumento de rendimento da linha do Douro para pagar o juro e a amortização do mesmo. “Parece-me ser este um alvitre que com vantagem se póde adoptar. Mas quando não queira acceitar este, posso indicar um outro”. Considerando que a Companhia Nacional era a grande interessada na linha, mas estava em graves dificuldades financeiras, o estado podia aceitar 131
Diario da Camara dos Deputados, 7.2.1896: 220-224.
132
PEREIRA, 2012a: 436.
219
A linha do Tua (1851-2008)
reembolsá-la dos custos da construção em seis anos e com esta garantia a empresa angariava os capitais necessários à obra. “Mas para que não falte onde se escolha, e para que o governo não possa allegar desculpa de nada fazer sobre o assumpto, ainda posso indicar uma outra fórma pratica de se realisar o emprehendimento, a favor do qual propugno”. Essa forma era utilizar os milhares de operários empregados em Lisboa em “obras de utilidade muito contestável” na construção da linha, em vez de se andar a “inventar obras” na capital. Se com tantos alvitres o governo nada fizesse, “é porque realmente não tem boa vontade em attender às fundadas e legitimas reclamações do districto de Bragança, de que a minha voz e apenas um fraco echo”133. Na resposta, Abílio Beça obteve do ministro as promessas e banalidades próprias de um momento em que não se podia decidir nem positiva nem negativamente. Nas correntes circunstâncias da fazenda, o governo só podia acudir às despesas “tambem importantes e impreteriveis, como são, por exemplo, as que dizem respeito á renovação do material de guerra e á compra de navios, o que obsta a que esta obra se possa fazer imediatamente134. Figura 95 – Artur Alberto de Campos Henriques135
Segundo o abade de Baçal, a acção de Abílio Beça não se limitou ao parlamento. Depois de os seus discursos não terem tido o efeito pretendido, “Abílio Beça não 133
Diario da Camara dos Deputados, 29.2.1896: 381-384.
134
Diario da Camara dos Deputados, 29.2.1896: 384-385:
135
Library of congress. Prints and photographs reading room, http://loc.gov/pictures/resource/ggbain.00739.
220
A extensão da linha do Tua a Bragança
esmorece na propaganda escrita e verbal; procura adeptos por toda a parte entre os homens de valor que podem auxiliá-lo; mete-se, insinua-se, teima, importuna, calcula, combina, aplana, reclama, impõe-se numa persistência de fanático regionalista, e mais a mais consegue criar atmosfera propícia”136. Documentalmente, só se conhece uma tentativa de realizar um comício em Bragança em Abril de 1896 para discutir uma representação a enviar ao rei, pedindo-lhe a construção do caminho-de-ferro. No entanto, a assembleia acabou por não se realizar, alegadamente por pressão do governo137. A sessão de 1896 terminou a 9 de Maio e Abílio Beça regressou a Bragança, onde reocupou o seu lugar na política autárquica local. Os trabalhos parlamentares foram retomados a 2 de Janeiro de 1897 para a segunda sessão da legislatura. Esta, contudo, esteve em funções apenas por mais um mês, pois o governo foi demitido e parlamento foi dissolvido a 8 de Fevereiro. Para o lugar do regenerador Hintze Ribeiro era escolhido o líder progressista Luciano de Castro. Estes eventos provocaram uma interrupção na carreira e no lobbying parlamentar de Abílio Beça. As novas eleições foram marcadas para o dia 2 de Maio de 1897138. Como seria de esperar, os progressistas conseguiram uma larga maioria a nível nacional e, em Bragança, Abílio Beça não conseguiu a eleição139. Como vimos em capítulo anterior, o governo de Luciano de Castro tomou medidas decisivas para relançar a construção ferroviária em Portugal, designadamente o decreto de 6 de Outubro de 1898 e a lei de 14 de Julho de 1899. Os progressistas de Bragança exultaram com a decisão do governo progressista140. Em relação à posição do partido regenerador local, não foi possível encontrar os números da Gazeta de Bragança para este período em particular, que permitissem analisá-la. Contudo, Abílio Beça sempre defendeu a necessidade da construção da linha e nunca negou os apoios à sua realização, mesmo se viessem do partido adversário. Assim, o mais provável é que tivesse acolhido com entusiasmo os planos de Elvino de Brito. De facto, um número de 1905 da Gazeta de Bragança relata que em 1899 Abílio Beça e outros regeneradores se dirigiram a Foz-Tua para se encontrarem com Elvino de Brito e lhe agradecerem o favor de ter inserido a linha de Bragança na lista de caminhos-de-ferro prioritários141. Tempos depois, o governo convocou novas eleições para 26 de Novembro de 1899. Obteve uma maioria absoluta, mas Abílio Beça, desta vez, conseguiu também 136
ALVES, 2000, vol. 9: 227.
137
O Nordeste, 21.4.1896, n.º 358. Norte Transmontano, 9.4.1896, n.º 56: 2; 14.5.1896, n.º 61: 2; 16.4.1897, n.º 11: 1.
138
SOUSA & MARQUES, 2004: 516-517.
139
Norte Transmontano, 7.5.1897, n.º 14: 1.
140
O Nordeste, 1.3.1899, n.º 505
141
Gazeta de Bragança, 15.1.1905, n.º 661. O Nordeste, 19.7.1906, n.º 996: 2.
221
A linha do Tua (1851-2008)
a eleição. Contudo a sua acção parlamentar foi bastante discreta. Lutou por outros interesses bragançanos que não o caminho-de-ferro. O governo progressista manteve-se em funções até 24 de Junho de 1900, quando foi substituído por um executivo regenerador. Como era usual nestas situações, o rei dissolveu o parlamento e convocou novas eleições (para Novembro)142. Abílio Beça não concorreu ao sufrágio, pois foi nomeado governador civil de Bragança (a 6 de Julho de 1900) pelo novo ministro do reino e também presidente do conselho e líder do partido regenerador, Hintze Ribeiro143. Na condição de governador civil, o antigo deputado retomou os contactos com os “altos poderes do Estado” no sentido de dotar Bragança de um caminho-de-ferro. Ao longo de 1900, dirigiu-se por várias vezes à capital, sendo recebido pelos reis e pelo presidente do conselho144. Contudo, para exercer uma pressão constante sobre o governo era necessária uma presença mais constante em Lisboa e no parlamento. Abílio Beça escolheu o seu irmão José para a tarefa. Os progressistas consideravam “o mano Zé (…) um passarinho blanc-bec [homem jovem e sem experiência] (…) absolutamente inutil no parlamento”145. A apreciação do jornal ao candidato regenerador era manifestamente injusta. José Beça tinha já um considerável currículo quando se candidatou a São Bento. Tinha conhecimentos académicos (era engenheiro) e experiência profissional (trabalhara na construção da linha de Mirandela e nos estudos do caminho-de-ferro de Mirandela a Bragança) suficientes para defender eficazmente a extensão da via-férrea do Tua em Lisboa. Tinha, ademais, a motivação de pugnar pelos interesses da sua região, de reforçar a influência regeneradora no distrito, de garantir o futuro político da sua família e de abrir novos horizontes para o seu próprio porvir profissional (como engenheiro e conhecedor da região seria decerto convidado a participar ou até dirigir a obra). José Beça foi eleito pelo círculo de Bragança nas eleições realizadas a 25 de Novembro de 1900 para a sessão legislativa iniciada em 2 de Janeiro de 1901146. A sua acção nesta sessão foi bastante discreta. No hemiciclo, interveio por poucas vezes e apenas para apresentar documentos à mesa ou para manifestar a sua intenção de voto. Desenvolveu uma actividade bem mais relevante nas comissões parlamentares a que pertencia147. 142
MARQUES, 1991: 681.
143
ALVES, 2000, vol. 1: 357-358 e 417-420. SOUSA et al., 2005: 131-134.
144
Gazeta de Bragança, 8.4.1900, n.º 414; 14.10.1900, n.º 440; 18.11.1900, n.º 445: 1; 3.3.1901, n.º 459. O Nordeste, 25.7.1900: n.º 685. O Seculo, 7.5.1902, n.º 7308: 1.
145
O Nordeste, 31.10.1900, n.º 699.
146
Boletim Parlamentar do Districto de Bragança, 17.2.1901, n.º 1: 2.
147
Para a acção parlamentar de Beça neste período, ver: Boletim Parlamentar do Districto de Bragança, 14.5.1901, n.º 4: 4. Diario da Camara Dos Deputados, 7.1.1901: 2; 25.2.1901: 3; 2.4.1901: 27; 22.4.1901: 2;
222
A extensão da linha do Tua a Bragança
A falta de intervenções sobre o caminho-de-ferro de Bragança pode parecer estranha. No entanto, nesta altura, José Beça pouco ou nada podia dizer no parlamento para realizar o ensejo dos brigantinos. O governo dispunha de autorização legal para iniciar a construção da linha, mas faltavam-lhe os capitais necessários148. Os Beças sabiam que aquela não era a hora de falar, mas sim de agir. Por isso, José Beça – segundo a sua biografia escrita pelo seu irmão Abílio – iniciou uma campanha de sensibilização a favor da linha de Bragança em jornais, centros de discussão, meios de negócio e em todas as estações oficiais149. Os periódicos da época (Gazeta de Bragança e Gazeta dos Caminhos de Ferro) confirmam que José Beça negociou com alguns potenciais capitalistas e com o ministro das obras públicas, Manuel Francisco Vargas, pelo menos desde Março de 1901. Um desses investidores foi a casa Zagury & C.ª de Londres, que – segundo o próprio José Beça – em Maio apresentou ao governo uma proposta, requerendo a concessão da linha e uma garantia de juro de 4,5%150. A oferta foi aceite pelo ministro, na condição de a adjudicação ser feita por concurso público. A exigência não contentou o proponente, que pretendia uma adjudicação directa para evitar as demoras burocráticas. Contudo, o ministro não abdicou da sua pretensãoe decidiu abrir concurso151. Abílio Beça encontrava-se na capital desde finais de Maio para assistir ao juramento do príncipe real e para participar no conselho de estado152. É pois provável que tenha tido alguma influência na decisão do ministro das obras públicas. Contudo, na ausência de fontes, só se pode especular sobre a acção dos Beças neste processo. A ida do governador civil a Lisboa pode ter tido outro fito: impedir que a autoridade do ministro da marinha Teixeira de Sousa colocasse a linha do Corgo à frente da linha de Bragança. Teixeira de Sousa era natural de Sabrosa no distrito de Vila Real e portanto tinha todo o interesse em aproveitar a oportunidade para beneficiar a sua zona de naturalidade e influência. Apesar de ser correligionário de Abílio Beça, pretendia furtar-lhe a liderança política regeneradora em Bragança. Neste distrito, aliás, contava com apoiantes próprios que faziam uma oposição surda ao próprio governador civil153. 3.5.1901: 19; 11.5.1901: 23 e 29-30. MÓNICA, 2005, vol. 1: 359-360. 148
PEREIRA, 2012b: xliii.
149
Gazeta de Bragança, 27.12.1903, n.º 606: 1.
150
Gazeta de Bragança, 10.3.1901, n.º 460: 1.
151
Gazeta de Bragança, 10.3.1901, n.º 460; 2.6.1901, n.º 472; 16.6.1901, n.º 474; 15.9.1901, n.º 487; 20.10.1901, n.º 492: 1. Gazeta dos Caminhos de Ferro, 16.3.1901, n.º 318: 91; 16.5.1901, n.º 322: 156; 16.6.1901, n.º 324: 179-180; 16.10.1901, n.º 332: 342. ALVES, 2000, vol. 9: 227. PEREIRA, 2012b: xlii. SOUSA, 1903: 66. SOUSA, 1905.
152
Gazeta de Bragança, 26.5.1901, n.º 471; 2.6.1901, n.º 472. O Nordeste, 29.5.1901, n.º 729.
153
COELHO, 1901: x. ALVES, 2000, vol. 7: 690-691. MÓNICA, 2005, vol. 3: 803
223
A linha do Tua (1851-2008)
O jornal progressista de Bragança, O Nordeste, confirmava precisamente as diligências do ministro da marinha para sabotar a linha do Tua em benefício da linha da Régua a Vila Real. Segundo aquele jornal, em conselho de ministros, Teixeira de Sousa mostrara-se manifestamente contra a extensão do caminho-de-ferro do Tua154. Assim, tudo leva a crer que a luta entre os Beças e o ministro da marinha foi real e que os primeiros saíram vencedores da disputa com a abertura de concurso para a continuação do caminho-de-ferro de Mirandela até Bragança. Mesmo sem a certeza de aparecerem candidatos à concessão, a mera colocação do caminho-de-ferro em hasta pública era já uma enorme vitória para Abílio Beça. Os agradecimentos que endereçou no paço das Necessidades ao rei e à rainha e em Algés a Hintze Ribeiro eram mais que justificados155. Na capital do distrito, a Gazeta exultava com “a perspectiva que agora se nos antolha mais segura e fagueira do advento da viação acelerada até esta cidade” e não se esquecia de “victoriar os nomes sympathicos e queridos dos leaes campeões e propugnadores das regalias brigantinas, os srs. dr. Abilio Beça e José Ferro de Beça”, juntamente com o do “sempre amigo de Bragança”, Emídio Navarro156. O Nordeste não estava tão optimista quanto a Gazeta, nem a emulava nos elogios aos Beças. O jornal progressista via na declaração do ministro um mero estratagema eleitoral, tendo em vista as eleições de Outubro seguinte157. Na verdade, o o acto do ministro não foi apenas um acto eleitoralista, uma vez que veio acompanhado de outros diplomas que o efectivavam. Por portaria de 25 de Setembro de 1901, o ministro, ouvido o conselho técnico de obras públicas, aprovou o projecto para o caminho-de-ferro de Mirandela a Bragança e a elevação do orçamento do mesmo de 1.447 para 1.558 contos. O troço final da ferrovia ficava em suspenso, de acordo com a portaria de 10 de Junho de 1887, que determinava que a estação terminal fosse construída de modo tal que permitisse o eventual prolongamento da via até Espanha e Miranda do Douro. De qualquer modo, aprovado o grosso do projecto, o ministro determinou, por decreto de 10 de Outubro de 1901, o objecto e as bases do concurso: construção e exploração durante 99 anos da linha de Mirandela a Bragança; atribuição de uma garantia de juro de 4,5%; e licitação sobre o custo quilométrico, reservando-se o executivo o direito de não escolher a proposta mais baixa. O contrato a assinar com o vencedor do concurso seria provisório, até ser aprovado pelas cortes158. O expediente do ministro foi apenas o primeiro passo de um longo percurso para 154
O Nordeste, 26.6.1901, n.º 733: 3.
155
Gazeta de Bragança, 16.6.1901, n.º 474: 3. O Nordeste, 21.8.1901, n.º 741; 23.10.1901, n.º 750; 30.10.1901, n.º 751: 1.
156
Gazeta de Bragança, 16.6.1901, n.º 474: 1 e 3; 28.7.1901, n.º 480: 1.
157
Gazeta de Bragança, 16.6.1901, n.º 474; 28.7.1901, n.º 480: 1.
158
FINO, 1883-1903, vol. 3: 748-752. PEREIRA, 2012b: xlii.
224
A extensão da linha do Tua a Bragança
a realização da linha. Faltava ainda encontrar quem levasse a tarefa a cabo. Zagury, o único empresário que tinha mostrado interesse na obra, continuava em jogo, mas não tinha assinado qualquer contrato. Exagerava – para não dizer mentia –, pois, a Gazeta ao noticiar que a sua companhia já tinha conseguido todo o capital necessário à obra. O Nordeste acompanhava a hipérbole da Gazeta, mas em sentido oposto, ao considerar a mesma empresa e o mesmo empresário instituições falidas e sem qualquer tipo de seriedade159. A verdade situava-se provavelmente algures entre o preto da opinião d’O Nordeste e o branco da notícia da Gazeta. Nem Zagury estava falido, nem estava já preparado para iniciar a construção. O capitalista mostrara apenas interesse, o que já conseguira convencer o ministro a aceitar abrir concurso. No entanto, não era certo que aquele interesse se transmutasse num acordo oficial, assinado com o governo. Por esta razão, os Beças continuaram a sua acção de angariação de novos interessados. Em Junho de 1901, o engenheiro Manuel Afonso de Espregueira dirigiu-se a Bragança para fiscalizar as obras da estrada da cidade à fronteira com Espanha. Abílio Beça recebeu-o e acompanhou-o na sua visita. Espregueira era um reconhecido engenheiro civil e um insigne membro do partido progressista, ex-ministro da fazenda e ex-director da Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses (aliás, o primeiro português a assumir o cargo)160. Era com toda a certeza um homem com autoridade suficiente para influenciar a decisão de investir na linha de Bragança. Figura 96 – Manuel Afonso de Espregueira161
Beça sabia disto e estava também consciente de que acima das rivalidades políticas estavam os interesses da região. Por isso, assistiu-o na sua visita e ao mesmo tempo 159
Gazeta de Bragança, 16.6.1901, n.º 474. O Nordeste, 21.8.1901, n.º 741.
160
MÓNICA, 2005, vol. 2. SALGUEIRO, 2008.
161
Illustracão Portugueza, 1904, n.º 51: 808-809.
225
A linha do Tua (1851-2008)
usou a Gazeta para difundir o alegado potencial económico do alto distrito. Durante a estadia de Espregueira em Bragança, era possível ler-se na Gazeta que a principal riqueza da província estava a norte de Mirandela, pelo que o projectado e desejado caminho-de-ferro haveria de atingir um alto rendimento a muito breve trecho162. Quanto a José Beça, reuniu-se com a Companhia Nacional, a principal beneficiada e à partida a principal interessada na continuação da linha do Tua, e procurou verificar a sua disponibilidade para construir o caminho-de-ferro. Em Julho de 1901, a administração informou-se dos custos da obra (cerca de 1.600 contos) e tentou levantar o capital necessário junto do Banco Comercial de Lisboa e do Banco de Portugal. José Beça, por seu lado, bateu à porta da casa Torlades (uma sociedade comercial fundada no século XVIII em Setúbal pelo hamburguês com o mesmo nome) e o Montepio Geral, debalde. Todas as instituições contactadas exigiam um juro considerado demasiado elevado pelas obrigações que a Companhia Nacional estava disposta a emitir. Simultaneamente, Abílio Beça viajou por várias vezes até Lisboa, tentando decerto usar a sua notoriedade e a sua rede de contactos partidários para encontrar outras soluções de financiamento. Segundo O Nordeste, também o Banco Nacional Ultramarino foi contactado, mas recusou igualmente financiar o investimento da Companhia Nacional. A notícia em si é um pouco estranha, já que esta instituição estava mais vocacionada para investimentos nas colónias163. De forma pessimista, o periódico progressista concluía que “o caminho de ferro foi-se”164… A abertura oficial do concurso por portaria de 14 de Novembro de 1901 (por 90 dias, até 14 de Fevereiro de 1902)165 marcou o princípio de uma nova etapa no processo. A publicação da portaria em Diario do Governo foi saudada com uma alegria imensa na redacção da Gazeta, que escrevia sem receios que “o mais vital melhoramento de Bragança (…) é, emfim, uma realidade”. Este optimismo exacerbado baseava-se num pretenso interesse de vários capitalistas no negócio: um tal marquês de Lune, um outro Cachapuz e também um “engenheiro italiano, representante de uma companhia poderosa” que só a Gazeta conhecia, já que é a única fonte que menciona estes homens166. Uma vez mais, O Nordeste destoava deste optimismo e via nas notícias lançadas pelo rival mera areia que Abílio Beça atirava para os olhos dos bragançanos167. Apesar da confiança ilimitada da Gazeta, a abertura da praça não significava con162
Gazeta de Bragança, 30.6.1901, n.º 476.
163
FIGUEIRA & MENDES, 2013: 312-318.
164
Gazeta de Bragança, 28.7.1901, n.º 480; 15.9.1901, n.º 487; 6.10.1901, n.º 490; 24.11.1901, n.º 497; 1.12.1901, n.º 335: 391; 16.12.1901, n.º 336: 399; 16.3.1902, n.º 342: 91; 12.4.1903, n.º 569; 19.4.1903, n.º 570. O Nordeste, 11.9.1901, n.º 744. PEREIRA, 2012b: xliii.
165
FINO, 1883-1903, vol. 3: 766-781.
166
Gazeta de Bragança, 3.11.1901, n.º 494.
167
O Nordeste, 21.8.1901, n.º 741.
226
A extensão da linha do Tua a Bragança
sequentemente a construção do caminho-de-ferro. Para tal, era preciso que pelo menos um empreendedor apresentasse uma proposta. Todavia, Zagury não se queria sujeitar aos aborrecimentos de um concurso público; a Companhia Nacional, principal interessada no negócio, não conseguia encontrar parceiros nem soluções financeiras para submeter uma oferta realista. A questão aparentemente estava bloqueada. Até que, a poucos dias do fim do prazo para a submissão de propostas e vindo praticamente do nada, surge um novo interessado na obra: um tal de João Lopes da Cruz.
227
A linha do Tua (1851-2008)
4.2. A ENTRADA EM CENA DE JOÃO LOPES DA CRUZ Hugo Silveira Pereira168
João Lopes da Cruz nasceu a 4 de Agosto de 1851 em Linhares (Carrazeda de Ansiães). Era um dos cinco filhos de Manuel Lopes da Cruz e de Felicidade de Sousa169. Em Outubro de 1870, emigrou para o Brasil170. Uma fotografia da época, preservada por um dos seus descendentes, indica que o seu destino foi mais precisamente o Rio de Janeiro. Na década de 1870, eram poucos os transmontanos que emigravam (a grande vaga emigratória só se verificaria na década seguinte). João Lopes da Cruz foi um desses pioneiros. Não se conhecem as razões que o levaram a sair de Portugal. O frequente era os emigrantes saírem na peugada de familiares que haviam saído do reino e se estabelecido no estrangeiro como negociantes ou empregados de comércio171. Outros factores que expliquem a decisão de João da Cruz poderão ser o seu espírito de aventura e de iniciativa e a sua ambição de conseguir ser ou ter algo que Trás-os-Montes não lhe podia proporcionar. Esta é uma hipótese que combina perfeitamente com o seu percurso de vida e que vai também de encontro à memória que foi transmitida entre os seus descendentes. Ao seu neto, João Sampaio, foi contado que o seu avô “foi um homem que nunca teve medo do futuro”172. 168
Centro Interuniversitário de História da Ciência e da Tecnologia (Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa).
169
Arquivo distrital de Bragança. Registos paroquiais. Paróquia de Linhares. Registo de baptismos, caixa 1, livro 1 (1851). MORAIS, 2014: 293-294.
170
Arquivo distrital de Bragança. Passaportes. Registo de passaportes deferidos (1868-1878), registo 24, f. 28v.
171
ALVES, 1994: 94.
172
Entrevista a João Sampaio: 7.
228
A extensão da linha do Tua a Bragança
Figura 97 – João Lopes da Cruz “auzentou-se da sua Patria no dia 12 de Outubro de 1870 para o Rio de Janeiro”173
Quando saiu de Portugal, João da Cruz era solteiro e caixeiro de profissão. Media 1,56 m e tinha cor trigueira. A sua cara era redonda com cabelo e olhos castanhos. O nariz e a boca eram regulares e não possuía quaisquer sinais particulares. Sabia ler, escrever e contar174, o que na altura era “condição necessária ao sucesso na emigração”175. Não se conhecem os detalhes da actividade que João da Cruz em terras brasileiras. Presumivelmente, terá prosseguido a sua carreira como comerciante, uma vez que “o mais natural será que as profissões de origem tendam a manter-se e até a evoluir”176. Certo é que João da Cruz foi muito bem-sucedido no Brasil, pois em 1873, três anos apenas após a sua ida, regressou a Linhares e comprou uma casa a Maria da Graça Sousa. Um ano depois, começou a emprestar a juros verbas avultadas de dinheiro 173
Arquivo pessoal de João Sampaio. LAGE, 2013: 112.
174
Arquivo distrital de Bragança. Passaportes. Registo de passaportes deferidos (1868-1878), registo 24, f. 28v.
175
ALVES, 1994: 249.
176
ALVES, 1994: 232.
229
A linha do Tua (1851-2008)
a alguns habitantes de Campelos, com hipoteca dos seus bens. Em 1875, adquiriu em Linhares várias propriedades de António Joaquim Ferreira Pontes, que se encontravam penhoradas ao Crédito Predial Português. Dois anos passados, foi de novo para o Brasil, de onde regressou em 1878 e para onde retornou em Outubro deste ano. Em 1880, voltou a Portugal e às suas actividades de prestamista em Carrazeda. Neste ano, emprestou 2,5 contos a Francisco António de Frias Menezes Vasconcelos e Carolina Augusta Adelaide de Mesquita Pimentel, com hipoteca de vários bens na freguesia de Selores (moradia e quinta da Senhora do Prado) no valor de 3,7 contos. Em 1884, o casal reconhecia a existência de uma dívida de 1,75 contos, a qual devia ser paga em seis meses com juros de 10% e hipoteca de metade do solar de Selores e da quinta do Comparado177. Ao longo da primeira metade da década de 1880, João da Cruz continuou a fazer empréstimos a juros a vários moradores de Carrazeda. Alguns dos seus clientes não conseguiram, porém, devolver-lhe o dinheiro e perderam as suas propriedades para o brasileiro. Foi deste modo que em 1885 João da Cruz se tornou proprietário de várias fazendas em Campelos. No mesmo ano, juntou 19 prédios rústicos, uma casa de habitação e seis prazos ao seu património178. A aquisição de propriedades por confisco por parte dos brasileiros que emprestavam dinheiro a juros era um fenómeno frequente no norte de Portugal, que Alves Redol descreveu magnificamente, se bem que para um período ligeiramente posterior, no seu romance Porto Manso. Por esta altura, era solteiro, embora provavelmente vivesse amancebado com Maria da Natividade Lopes, com quem teve sete filhos entre 1879 e 1899 (Jaime, Felicidade Amélia, José António, João, Cândida, António Júlio e Manuel). João Lopes da Cruz deixou ainda descendência com outras duas mulheres na década de 1880: Angélica Lucinda Botelho (com quem concebeu João) e Maria do Carmo (de quem teve Maria Cândida e Luís Carlos)179. João Lopes da Cruz regressou definitivamente à sua pátria na década de 1880. Além de continuar a dedicar-se aos negócios financeiros, passou também a investir em empreitadas de estradas no distrito de Bragança180. Por vezes misturava as duas actividades. Em 1882, venceu o concurso para a execução de algumas tarefas na secção entre Foz-Tua a Castanheiro da estrada real n.º 39. Um dos fiscais da obra, António Ferreira Rodrigues, era também seu cliente no trato dos empréstimos a juros. A situação era obviamente suspeita e foi denunciada pelo engenheiro responsável, que duvidava da probidade do fiscal por ter “como certo por me ser assegurado por pessoa 177
MORAIS, 2014: 294-295.
178
MORAIS, 2014: 294-295.
179
MORAIS, 2014: 293-294.
180
MORAIS, 2014: 295.
230
A extensão da linha do Tua a Bragança
digna de crédito, que algumas compras de prédios que o mesmo empregado ultimamente tem feito, têm sido com dinheiro do empreiteiro cujo trabalho fiscaliza, João Lopes da Cruz, a quem deve proximamente 380$000 réis”. Dias depois, João da Cruz queixava-se do fiscal ao engenheiro, libertando-se assim de qualquer suspeita que lhe pudesse ser imputada181. O empreiteiro continuou a trabalhar noutros lanços da estrada real n.º 39 até 1893182. Antes, em 1888, assumiu uma boa parte das empreitadas decretadas pelo governo para a abertura de rodovias em Trás-os-Montes. Cruz trabalhou assim nas vias de Bragança à Torre de D. Chama e à fronteira de Espanha em Portelo/Calabor183. A crise financeira de 1891-1892 levou à suspensão destes e de outros projectos, tendo o empreiteiro obtido a rescisão do contrato e o pagamento das tarefas já realizadas184. No entanto, não abandonou por completo esta actividade pelo menos até 1902, ano em que ainda se encontra o seu nome ligado à abertura de estradas nos pareceres do conselho superior de obras públicas185. Segundo a Gazeta de Bragança, era “habilissimo n’essa ordem de trabalhos; e com os lucros que d’elles tem auferido, ha ja feito uma fortuna”186. De facto, com o capital angariado no Brasil, nos empréstimos a juros e nas obras públicas, João da Cruz continuou a acumular propriedades (tomando partido da diminuição do preço da terra, após a invasão da filoxera do vale do Tua na década de 1880)187 e a partir de certa altura dedicou-se também à vitivinicultura. O empreiteiro procedeu à construção de socalcos e à plantação de novas vinhas nas suas terras, dando nova vida à vinicultura da zona. No início do século XX, anunciava na Gazeta de Bragança a venda dos seus vinhos, que assegurava serem de superior qualidade188. João da Cruz era assim um verdadeiro empreendedor, com um talento nato para o 181
Arquivo distrital de Bragança. Fundo da antiga junta autónoma das estradas. Estrada real 39. Foz Tua a Vila Flor. Correspondência, 1882, ofícios n.º 1 (24 de Fevereiro), 2 (2 de Março), 15 (1 de Dezembro) e 17 (6 de Dezembro).
182
Arquivo distrital de Bragança. Fundo da antiga junta autónoma das estradas. Estrada real 39. Foz Tua a Vila Flor. Correspondência, 1884, ofícios n.º 2 (28 de Janeiro), 6 (12 de Fevereiro), 10 (20 de Fevereiro), 60 (18 de Outubro) e 67 (10 de Novembro); 1887, ofício n.º 21 (16 de Abril); 1888, ofícios n.º 7 (24 de Fevereiro), 9 (15 de Março), 12 (28 de Março) e 13 (9 de Abril).
183
Gazeta de Bragança, 16.2.1902, n.º 509; 28.6.1903, n.º 580.
184
Arquivo distrital de Bragança. Fundo da antiga junta autónoma das estradas. Estrada real 39. Foz Tua a Vila Flor. Correspondência, 1892, ofícios n.º 1 (5 de Janeiro) e 35 (9 de Setembro); 1893, ofício n.º 23 (18 de Outubro).
185
Arquivo histórico do ministério das obras públicas. Conselho superior de obras públicas e minas. Cx. n.º 50 (1901), pareceres n.º 30546 e 30687; cx. 51 (1901-1902), parecer n.º 31007. MESQUITA, 2012: 73.
186
Gazeta de Bragança, 16.2.1902, n.º 509; 28.6.1903, n.º 580.
187
MORAIS, 2014: 295.
188
Gazeta de Bragança, 1.7.1905, n.º 684: 1; 1.10.1905, n.º 697: 2.
231
A linha do Tua (1851-2008)
negócio e que não tinha medo de arriscar. Estes traços da sua personalidade ficam uma vez mais evidenciados numa transacção que fez em 1895. Neste ano, pediu 20 contos emprestados a José Ribeiro Vieira de Castro e João Baptista de Lima Júnior, dando como garantia a hipoteca “de todos os seus bens em geral” e de alguns créditos que possuía sobre o estado como empreiteiro de estradas189. Neste sentido, o seu interesse e envolvimento no negócio ferroviário não é de todo surpreendente. É altamente provável que, no desempenho da sua actividade como empreiteiro de estradas, João Lopes da Cruz tenha conhecido Miguel Augusto Ferro de Beça (tio de Abílio e José Beça), que era condutor de obras públicas em Bragança. Datará assim desta altura o início da sua relação com aquela família. Como já foi dito em capítulo anterior, na década de 1880, Abílio Beça tornou-se membro da junta geral de distrito, uma instituição com recursos financeiros próprios e poderes executivos para os aplicar190. Não será, pois, completamente descabido supor que, quando precisasse de um empreiteiro, Abílio Beça tenha conferenciado com o seu tio e este lhe tenha recomendado João da Cruz. Documentalmente confirmado é que em 1889 o empreiteiro contratou Abílio Beça como seu advogado para o defender num processo de embargo que lhe fora movido por diversos proprietários de terrenos adjacentes à estrada em construção entre Bragança e Espanha191. Não é de estranhar que esta relação jurídica se tenha mantido e aprofundado nos anos seguintes, até pela própria natureza da actividade profissional de João da Cruz. Aliás, na tradição oral dos seus descendentes ficou a ideia de que o empreiteiro e o advogado eram bons amigos192. A confirmação da existência de uma relação prévia entre João da Cruz e os Beças é fulcral para perceber o desenrolar do processo que levou à abertura do caminho-deferro de Bragança. Fica assim explicada a razão pela qual um empreiteiro de estradas, sem capitais próprios suficientes, sem crédito conhecido no mercado financeiro nacional e sem qualquer tipo de experiência conhecida na construção ferroviária, se tenha lançado num empreendimento da envergadura da linha de Mirandela a Bragança, “questão magna e à qual [Abílio Beça] tem ligada a sua palavra e com ella o seu futuro político”193 e para cuja realização não havia interessados em condições de se apresentar a concurso. Em Fevereiro de 1902, o prazo do concurso estava prestes a terminar sem a apresentação de propostas. O encerramento da praça sem o aparecimento de candidatos 189
Arquivo distrital do Porto. Empresas. Companhia Carris de Ferro do Porto. Secretaria geral. Processos e questões diversas. Rescisão de contrato, PT/ADPRT/EMP/CCFP/SG/013/13.084. B/6/1/4 - 14.8.
190
SERRA, 1988: 1045-1047 e 1050-1055. SOUSA & MARQUES, 2004: 196-197
191
Arquivo distrital de Bragança. Juízo de direito da comarca de Bragança. Auto de embargo que contra João Lopes da Cruz movem vários proprietários de Bragança.
192
Entrevista a João Sampaio: 7.
193
Gazeta de Bragança, 16.3.1902, n.º 513: 1.
232
A extensão da linha do Tua a Bragança
seria uma derrota política para Abílio Beça e demonstraria que a linha de Bragança não era atractiva ao investimento privado. Era o pretexto necessário para avançar com outras ferrovias (como a do Corgo) e adiar indefinidamente o assentamento da extensão da linha de Mirandela. Tudo isto foi evitado temporariamente com o lanço de 26,88 contos/km apresentado por João da Cruz194. Figura 98 – João Lopes da Cruz195
A Gazeta de Bragança exultava com o aparecimento de um homem com o “espirito emprehendedor d’um norte-americano (…), tão emprehendedor, inteligente e activo, e ao mesmo tempo com aptidões praticas n’esta especie de negocios e conhecedor das condições topographicas da região e das condições economicas em que n’ella se realisam os trabalhos d’esta natureza”. Se não se pode duvidar dos conhecimentos topográficos regionais de João da Cruz, as suas aptidões técnicas e sobretudo financeiras na construção de caminhos-de-ferro podiam levantar algumas suspeitas. Porém, a Gazeta assegurava que o empreiteiro tinha já estabele194
ALVES, 2000, vol. 9: 227. PEREIRA, 2012b: xliii.
195
Arquivo pessoal de João Sampaio.
233
A linha do Tua (1851-2008)
cido parcerias com capitalistas brasileiros do Porto, o que era claramente falso196. Em todo o caso, do concurso nada resultou, pois a firma Zagury protestou, alegando que a proposta que tinha apresentado por intermédio de José Beça não fora tida em consideração. Obviamente, a empresa não tinha razão, pois a sua oferta tinha sido feita de forma oficiosa e antes da abertura da praça. Porém, se o governo optasse por esgrimir argumentos jurídicos com a Zagury, a adjudicação e o início da construção seriam adiados por muitos meses197. De imediato, Abílio Beça viajou até Lisboa para pressionar o ministro das obras públicas no sentido de desembaraçar a questão. A Gazeta de Bragança, por seu lado, garantia que brevemente a concessão seria entregue ao “nosso amigo e primeiro emprehendedor do districto, sr. João da Cruz”. O jornal confiava em absoluto na influência de Hintze Ribeiro, Abílio Beça e Emídio Navarro198. A solução mais rápida passava por anular o primeiro concurso e abrir um novo e foi precisamente isso que o governo fez. Por portaria de 24 de Março de 1902, a praça era reaberta por 20 dias, tendo como base de licitação os 26,88 contos/km oferecidos por João da Cruz199. Quando o prazo para apresentação de propostas chegou ao seu fim (a 15 de Abril), tinham sido recebidas duas propostas: a companhia Zagury fez um lanço de 26,34 contos/km (25,34 para algumas fontes200) enquanto João Lopes da Cruz apresentou uma licitação de 25,99 contos/km201. O governo não estava obrigado a aceitar a oferta mais baixa, podendo fazer uma avaliação qualitativa das propostas. Em todo o caso, foi ao brasileiro que o ministro das obras públicas fez a concessão. O acordo provisório entre o governo e João da Cruz foi assinado a 19 de Abril de 1902202. Para o tornar definitivo, era necessário aprovação parlamentar. Contudo, a sessão legislativa daquele ano estava prestes a terminar. Se o parlamento encerrasse os trabalhos sem validar o contrato, o concessionário teria que esperar até à reabertura das cortes em Janeiro do ano seguinte203. Considerando a volatilidade política da época, nada garantia que nessa altura o governo fosse o mesmo e que o novo executivo estaria disposto a levar e aprovar no legislativo esta despesa. Por tudo isto, José Beça (que tinha sido reeleito para São Bento pelo círculo de Bragança, nas eleições de 6 de Outubro de 1901, e fazia parte da comissão parlamentar de obras públicas204) iniciou 196
Gazeta de Bragança, 16.2.1902, n.º 509. ALVES, 2000, vol. 9: 227.
197
Districto de Bragança, 28.3.1902, n.º 3: 2. Gazeta de Bragança, 9.3.1902, n.º 512; 6.4.1902, n.º 516. PEREIRA, 2012b: xliii.
198
Gazeta de Bragança, 16.3.1902, n.º 513.
199
FINO, 1883-1903, vol. 3: 816-817. ALVES, 2000, vol. 9: 227. PEREIRA, 2012b: xliii.
200
Cf. PEREIRA, 2012b: xliii.
201
Gazeta de Bragança, 20.4.1902, n.º 518. O Nordeste, 16.4.1902, n.º 775. PAÇÔ-VIEIRA, 1905: 217.
202
FINO, 1883-1903, vol. 3: 823-836.
203
SANTOS, 1986.
204
MÓNICA, 2005, vol. 1.
234
A extensão da linha do Tua a Bragança
uma corrida contra o tempo no sentido de aprovar o contrato com João da Cruz. A responsabilidade deste processo caía agora sobre os seus ombros. Nas palavras de Trindade Coelho, “«noblesse oblige»; e a tauto (sic) obriga o sr. José Beça uma dupla nobresa: a do seu mandato, e a do seu diploma de engenheiro”205. A 22 de Abril, três dias depois de assinado o acordo provisório, José Beça e Alberto Charula (outro deputado do distrito) pediram para interpelar com urgência o ministro acerca do contrato com João da Cruz. O parlamento, porém, não considerou a interpelação urgente206. A dúvida começou a ensombrar os espíritos dos Beças e dos brigantinos. Contudo, estes tinham um aliado de peso na capital: Emídio Navarro. No jornal que dirigia – o Novidades –, Navarro publicou um editorial, que fundamentava a aprovação do contrato e que sugestionava que manobras de bastidores impediam a sua discussão no parlamento: “n’isso parece que se empenham os que a todo o transe querem ligar a sorte d’este caminho de ferro ao do valle do Corgo” – escrevia. Emídio Navarro apelava a que não se entrasse “no capitulo das rivalidades mesquinhas” e lembrava igualmente que o concessionário tinha já assumido compromissos por causa da adjudicação. Além do mais, o caminho-de-ferro de Bragança não “está rigorosamente comprehendido nos projectos, que importam aumento de despeza. Este é dos que augmentam as receitas”207. O artigo em questão foi devidamente transcrito na Gazeta de Bragança e alegadamente deixou a cidade em polvorosa. Em Lisboa, Hintze Ribeiro recebeu um telegrama, informando que “leitura artigos publicados nos jornais novidades (…) cauzaram sensação extraordinaria fazendo augmentar consideravelmente movimento de protesto contra ideia (…) de que proposta de lei não passara na actual sessão legislativa”208. O centro regenerador de Bragança pressionou também o presidente do conselho, insinuando que “o addiamento d’este assumpto será objecto de grandes desgostos para o partido regenerador e quiçá daraa logar a profundas modificações no partido”209. Por telegrama e presencialmente, Abílio Beça tentou também influenciar Hintze Ribeiro, “resolvido a conseguir o caminho de ferro ou a deixar alli [no gabinete do presidente do conselho] o seu diploma de chefe do districto” – escrevia a Gazeta de Bragança210. De Bragança partiram ainda telegramas tendo como destinatários o rei e a rainha, 205
Boletim Parlamentar do Districto de Bragança, 17.2.1901, n.º 1: 3
206
Diario da Camara dos Deputados, 22.4.1902: 2.
207
Novidades, 21.4.1902, n.º 5536: 1.
208
Arquivo regional de Ponta Delgada. Fundo Ernesto Rodolfo Hintze Ribeiro. Caminhos-de-ferro. Bragança. Chaves. Telegrama 11.4.17.18: 2.
209
Arquivo regional de Ponta Delgada. Fundo Ernesto Rodolfo Hintze Ribeiro. Caminhos-de-ferro. Bragança. Chaves. Telegrama 11.4.17.23: 1.
210
Gazeta de Bragança, 11.5.1902, n.º 521: 1. ALVES, 2000, vol. 9: 228.
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A linha do Tua (1851-2008)
o governo, os presidentes da câmara dos pares e dos deputados, vários parlamentares, os jornais da capital e figuras de estado como Eduardo José Coelho ou Emídio Navarro211. Outros concelhos do distrito manifestaram ao governo a sua apreensão em relação a este assunto. Vimioso mostrava “o seu grande desgosto e indignação por lhes constar que [o caminho-de-ferro] não é posto á discussão na referida sessão e achar-se já adjudicado ao respectivo arrematante”. Vinhais lembrava que era de “necessidade inadiavel a construcção do caminho de ferro de Bragança”. Em Macedo era “extrema a anciedade com que (…) os povos do concelho seguem o andamento da questão”. Mogadouro ia ainda mais longe: a linha “é questão de vida ou de morte”212. Figura 99 – Telegrama enviado pela câmara de Mogadouro
No parlamento, José Beça e Alberto Charula trouxeram a questão novamente à ordem do dia. O segundo lembrou o atraso e olvido a que Trás-os-Montes sempre fora votado e a utilidade e necessidade do caminho-de-ferro para a região. José Beça descreveu aos deputados a “grande excitação na cidade de Bragança” e “como não é conveniente deixar progredir a agitação dos povos do districto de Bragança, sobretudo no momento actual, eu peço ao nobre Ministro das Obras Publicas que, em nome 211
Arquivo regional de Ponta Delgada. Fundo Ernesto Rodolfo Hintze Ribeiro. Caminhos-de-ferro de Chaves e Bragança. Telegrama 11.4.17.9: 3; telegrama 11.4.17.11: 2; telegrama 11.4.17.20: 3; telegrama 11.4.17.24; telegrama 11.4.17.26; telegrama 11.4.17.28; telegrama 11.4.17.33. Gazeta de Bragança, 27.4.1902, n.º 519. O Nordeste, 25.4.1902, n.º 777 (suplemento); 30.4.1902, n.º 777. ALVES, 2000, vol. 9: 227-228.
212
Arquivo regional de Ponta Delgada. Fundo Ernesto Rodolfo Hintze Ribeiro. Caminhos-de-ferro. Bragança. Chaves. Telegrama 11.4.17.4: 2; telegrama 11.4.17.5: 1-2; telegrama 11.4.17.6: 2; telegrama 11.4.17.7: 1.
236
A extensão da linha do Tua a Bragança
do Governo, faça qualquer declaração que leve a tranquillidade a todos os espiritos”. O ministro, Manuel Francisco Vargas, não entrou em “largas esplanações, acêrca do assunto por S. Exa. tratado, porquanto a melhor resposta que posso dar-lhe, aquella que seguramente mais o satisfará, tenho-a eu aqui”. Essa resposta era a proposta de lei, que autorizava o executivo a aplicar o fundo especial de caminhos-de-ferro ao contrato com João da Cruz e à construção da linha da Régua à fronteira por Vila Real e Chaves213. Figura 100 – Francisco Manuel Vargas, ministro das obras públicas214
A proposta foi enviada à comissão de obras públicas, que nomeou José Beça para relator do parecer final, que dava origem ao projecto de lei a discutir. No dia imediatamente a seguir, o documento estava na mesa da câmara dos deputados. Não sendo completamente inédito, era um projecto de lei escrito em tempo recorde215. No diploma, o relator demonstrou que ambos os caminhos-de-ferro estavam previstos na lei de 14 de Julho de 1899. Todavia, os capitais disponíveis no fundo especial de caminhos-de-ferro não eram ainda suficientes para suportar a realização dos dois melhoramentos “que a formosa, fertil e laboriosa provincia de Trás-os-Montes, com tanta instancia e persistencia reclama, e que não pode por mais tempo ser protelada sem grave damno dos seus interesses economicos”. Por não se entender que a contracção de um empréstimo fosse a solução mais vantajosa, o governo resolveu atribuir uma garantia de juro a ambas as linhas. José Beça evocou ainda como uma década de paragem na construção de vias-férreas tinha feito com que Portugal “ficasse num dos infimos logares entre os paises que, pela sua pequena população ou pelo reduzido do seu territorio, melhor se comparam com o nosso”. O engenheiro argumentou por fim 213
Diario da Camara dos Deputados, 24.4.1902: 2. BEÇA, 1902. ALVES, 2000, vol. 9: 228.
214
O Seculo, 7.5.1902, n.º 7308: 1.
215
Diario da Camara dos Deputados, 25.4.1902: 15. Cf. PEREIRA, 2012a, anexo 25.
237
A linha do Tua (1851-2008)
que ambas as linhas iriam explorar zonas com potencial económico e iriam aumentar o rendimento do caminho-de-ferro do Douro. Por todas estas razões, o parecer da comissão de obras públicas não podia deixar de ser favorável (como aliás o seria também o da comissão de fazenda)216. A discussão na câmara dos deputados foi relativamente rápida. Apesar da má situação financeira do país, quase todos foram unânimes em concordar com a justiça política e económica da medida. Apenas o deputado Oliveira Matos quebrou o consenso, por ver no projecto de lei um encargo anual de 200 contos e por não ver contemplada a sua zona de influência (Arganil)217. Este discurso motivou respostas de vários deputados, alargando o período de debate. José Beça assistia à troca de argumentos com um olho no relógio. O seu parecer deveria ter sido discutido brevemente, mas a discussão prolongava-se. Quando chegou a sua vez de falar, desistiu da palavra, apesar de ser o relator. Depois de mais algumas breves intervenções, o projecto de lei foi finalmente aprovado218. O diploma seguiu para a câmara dos pares, onde contava com o apoio de Eduardo José Coelho e do bispo de Bragança, que se deslocara propositadamente a Lisboa para votar o projecto219. Este foi posto em debate a 2 de Maio. As comissões reunidas de fazenda e obras públicas repetiram os argumentos de José Beça em favor da medida. Os pares que entraram no debate revelaram algumas dúvidas quanto ao valor quilométrico da concessão e ao uso da garantia de juro, mas aprovaram a proposta220. A boa notícia foi recebida em Bragança com entusiasmo. A celebração durou horas “no meio dos parabens de um, dos vivas e abraços d’outros, um completo delírio”. A multidão “mal podia caminhar pelas ruas”, não havendo “rua na cidade, aonde o povo não manifestasse o jubilo que lhe vae na alma”. Pela madrugada fora “reina delirante contentamento. Os brigantinos felicitam-se abraçando-se mutuamente”221. O conselho de estado e o rei sancionaram o diploma a 14 de Maio e a lei saiu em Diario do Governo dez dias depois. No final, “tudo acabou bem, como nos romances” – escrevia O Seculo222. O contrato definitivo foi assinado a 24 de Outubro de 1902223. Apesar da excitação causada pela ultrapassagem dos obstáculos burocráticos atrás 216
Diario da Camara dos Deputados, 28.4.1902: 5-7.
217
MÓNICA, 2005, vol. 2: 804-805.
218
Diario da Camara dos Deputados, 28.4.1902: 16-21.
219
Gazeta de Bragança, 4.5.1902, n.º 520.
220
Diario da Camara dos Dignos Pares do Reino, 2.5.1902: 548-551.
221
Districto de Bragança, 9.5.1902, n.º 9: 1-2; 16.5.1902, n.º 10: 2. Gazeta de Bragança, 4.5.1902, n.º 520; 11.5.1902, n.º 521; 18.5.1902, n.º 522. O Nordeste, 30.4.1902, n.º 777; 7.5.1902, n.º 778; 14.5.1902, n.º 779. ALVES, 2000, vol. 9: 228.
222
O Seculo, 7.5.1902, n.º 7308: 1.
223
Arquivo distrital de Lisboa. Registos notariais. 9.º cartório notarial de Lisboa. Livro 359, caixa 72, f. 2. PEREIRA, 2012b: xliii.
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A extensão da linha do Tua a Bragança
descritos, ainda faltava percorrer um longo caminho até à inauguração da linha. João Lopes da Cruz não tinha capacidade financeira individual para arcar com a empreitada e precisava de angariar o capital necessário noutras fontes. Logo após obter a concessão, o empreiteiro procurou a Companhia Nacional para obter um acordo que permitisse o início dos trabalhos no prazo mais curto possível. A direcção prometeu ajudar, desde que o concessionário obtivesse primeiramente os fundos necessários224. Uma das dificuldades enfrentadas por João da Cruz derivava da pequenez do empreendimento, que o tornava desde logo pouco apelativo aos investidores (a própria Companhia Nacional, ainda no tempo do conde da Foz, sentira o mesmo problema, como já foi referido noutro capitulo225). Para tornar o negócio mais interessante, João Lopes da Cruz tentou adicionar a linha do Corgo à sua concessão, no que terá sido aconselhado por José Beça (segundo o seu irmão Abílio)226. O concurso para atribuição daquele caminho-de-ferro foi aberto a 2 de Agosto de 1902227. Quando encerrou, a 5 de Novembro, tinham sido recebidas quatro propostas, sendo a de Cruz a mais baixa. Contudo, o ministro das obras públicas optou por não aceitar nenhuma228, o que se terá ficado a dever ao facto de o governo pretender adjudicar a linha à Fonsecas, Santos & Viana, cujo director, Francisco Isidoro Viana, era amigo próximo do ministro da marinha, Teixeira de Sousa229. Porém, existindo uma proposta mais favorável – a de Cruz – a adjudicação àquela casa não podia ser feita sem escândalo. Na nova praça, aberta a 15 de Novembro230, as especificações técnicas eram uma cópia das condições propostas anteriormente pela Fonsecas, Santos & Viana231. Em todo o caso, do novo concurso nada resultaria e a linha do Corgo acabaria por ser construída directamente pelo estado232. João Lopes da Cruz teve assim que buscar outras soluções para a linha de Bragança. Em Setembro de 1902, o Districto de Bragança noticiava que o concessionário se encontrava em Lisboa para formar duas companhias, uma para a instalação da infra -estrutura e outra para a superestrutura. Em Dezembro do mesmo ano, o empreiteiro negociava com a casa Burnay, que lhe propusera o trespasse da concessão para a Companhia Nacional, ficando como empreiteiro-geral da obra (pela qual receberia 224
Relatorio do conselho de administração apresentado à assembleia-geral em 1903: 4.
225
SANTOS, 2014.
226
Gazeta de Bragança, 27.12.1903, n.º 606.
227
FINO, 1883-1903, vol. 3: 844-859.
228
Gazeta dos Caminhos de Ferro, 16.11.1902, n.º 358: 346-347.
229
MÓNICA, 2005, vol. 3: 803-804.
230
FINO, 1883-1903, vol. 3: 914-916.
231
Diario da Camara dos Deputados, 11.2.1903: 11-18
232
FINO, 1883-1903, vol. 3: 965-966. SOUSA, 1903: 66.
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A linha do Tua (1851-2008)
17,5 contos/km construído). Segundo a Gazeta, João da Cruz aceitou a proposta. Pela mesma altura José Beça recomendou-lhe Costa Serrão para engenheiro-director da obra233. Infelizmente, a curto prazo, nada resultaria destes contactos. Cruz não trabalhou sozinho nesta tarefa, pois contou com a preciosa ajuda de José Beça, que, em Portugal e no estrangeiro (Londres e Paris), procurou desbloquear o capital necessário à obra. O papel do engenheiro foi confirmado e realçado pela Gazeta de Bragança e também por personalidades coevas, designadamente o engenheiro Fernando de Sousa e o conde de Paçô-Vieira, ao tempo ministro das obras públicas234. Os esforços de José Beça foram limitados por uma grave enfermidade que se começou a manifestar em finais de 1902 e que o viria a vitimar na madrugada de 26 de Dezembro235. Pouco antes de se finar, terá dito – ou os jornais tê-lo-ão feito dizer – ter “pena e muita pena morrer sem ver concluida a obra para que tanto trabalhou”, mas “morria contente com a esperança de atravessar a linha ferrea de Mirandela a Bragança, ao menos morto”236... O falecimento de José Beça foi um duro golpe para João da Cruz. A situação do concessionário agravava-se, pois o prazo imposto no contrato de adjudicação para o início das obras aproximava-se e o seu incumprimento autorizava o governo a rescindir o acordo. Para obstar a que isto acontecesse, o ministro das obras públicas concedeu ao concessionário uma prorrogação de prazo de três meses para início das obras (portaria de 7 de Janeiro de 1903)237. João da Cruz aproveitou o adiamento para intensificar contactos com potenciais investidores. A Gazeta de Bragança noticiava negociações com a casa francesa Sterné & Grosselin e com a firma britânica Tyje. Porém, nenhuma destas negociações chegou a bom porto. Os franceses afastaram-se perante o mau crédito que os negócios ferroviários tinham em Portugal; os britânicos chegaram a um acordo com Cruz, que, segundo a Gazeta, terá esbarrado na impossibilidade de colocar obrigações no mercado nacional. Foi então que o empreiteiro recebeu uma oferta das casas bancárias Burnay e Fonsecas, Santos & Viana para lhes passar a concessão e ficar com a empreitada-geral da obra. A proposta teria o suporte financeiro da firma belga Thys e estaria envolvida com a adjudicação da linha do Corgo. No entanto, a decisão do governo de construir por si esta ferrovia derribou a viabilidade do negócio238. 233
Districto de Bragança, 26.9.1902, n.º 29: 2. Gazeta de Bragança, 7.12.1902, n.º 551; 14.12.1902, n.º 552; 19.4.1903, n.º 570. O Nordeste, 3.12.1902, n.º 808; 27.12.1903, n.º 606.
234
Gazeta de Bragança, 27.12.1903, n.º 606: 1. ALVES, 2000, vol. 9: 228-229. PAÇÔ-VIEIRA, 1905. PEREIRA, 2012b: xliii. SOUSA, 1903: 66.
235
ALVES, 2000, vol. 1: 359-360; vol. 6: 727-728; vol. 7: 50-51.
236
Gazeta de Bragança, 4.1.903, n.º 555: 1(?). Revista de Obras Públicas e Minas, t. 34 (1903), n.ºs 397-399: 13.
237
PEREIRA, 2012b: xliii.
238
Gazeta de Bragança, 23.3.1903, n.º 566: 1.
240
A extensão da linha do Tua a Bragança
Entretanto, o prazo da prorrogação concedida anteriormente aproximava-se do seu fim. Em Bragança, levantavam-se nuvens de dúvida sobre as reais capacidades de João da Cruz. “À proporção que se avisinha o ultimo dia [da prorrogação], mais e mais nos sentimos desanimados, quasi descrentes de que se dê começo aos trabalhos (…). Diz-se que o sr. João Lopes da Cruz, não podendo vencer as graves difficuldades que tem surgido para obter capitaes, pensa em pedir nova prorogação de praso. Não acreditamos em tal boato, porque, se assim fosse, poder-se-ia dizer… o que, por emquanto, não ha absoluto direito de dizer”239. De acordo com a Gazeta de Bragança, o empreiteiro pensou em construir qualquer coisa para contornar os termos do contrato. Tal subterfúgio não foi necessário, pois o ministro concedeu-lhe novo adiamento (despacho de 20 de Março de 1903)240. A solução desagradou a alguns brigantinos, para quem “o sr. João da Cruz (…) prejudicou em nosso entender a real effectivação d’este melhoramento: pois que, compromettendo-se desde logo (…) a tomar a concessão nos precisos termos do respectivo programma do concurso, sem se preocupar com a falta de capitaes, que, dizia ao tempo, ter de sobejo, impediu que alguem aventasse outra solução ao problema”241. Fazer caducar a adjudicação, rescindir o contrato e colocar a obra sob a alçada do estado (como acontecera com a linha do Corgo) era uma solução que cada vez ganhava mais adeptos. No entanto, em finais de Março de 1903, o empreiteiro foi contactado por John Edwards, um sócio de Henry Burnay242, que retomou a proposta de trespasse da concessão e prometeu facilitar a colocação das obrigações no mercado londrino, se Cruz baixasse em 2% o valor a receber como empreiteiro-geral. A proposta foi aceite pelo brasileiro243. Dias depois, a Gazeta noticiava que em Londres, a 31 de Março, tinha sido firmado o acordo para a colocação das obrigações para a construção da linha de Bragança. João da Cruz aceitava trespassar a concessão a uma companhia nomeada por Burnay e pela Fonsecas, Santos & Viana e tornava-se empreiteiro-geral da construção, pela qual receberia 17,15 contos/km assente244. A empresa por trás do negócio era naturalmente a Companhia Nacional, que era também a emissora das 23 mil obrigações colocadas (90 mil réis cada e juro de 4,5%). A operação foi autorizada em assembleia-geral de accionistas a 16 de Maio. A 27 de Junho, os estatutos da Companhia Nacional eram alterados de acordo com as decisões 239
Districto de Bragança, 20.2.1903, n.º 50: 1.
240
Gazeta de Bragança, 23.3.1903, n.º 566. ALVES, 2000, vol. 9: 229. PEREIRA, 2012b: xliii.
241
Districto de Bragança, 20.3.1903, n.º 54: 1.
242
LIMA, 2009.
243
Districto de Bragança, 3.4.1903, n.º 56: 1. Gazeta de Bragança, 19.4.1903, n.º 570: 2
244
Gazeta de Bragança, 5.4.1903, n.º 568: 1.
241
A linha do Tua (1851-2008)
da assembleia-geral. No mesmo dia, o governo aprovava-os e a 2 de Julho autorizava a companhia a emitir a nova série de obrigações245. Obtidos os fundos, João Lopes da Cruz e a Companhia Nacional negociaram a transferência da concessão, após autorização do governo por portaria de 30 de Junho de 1903246. A 6 de Julho, o brasileiro e a empresa assinavam dois contratos em Lisboa: pelo primeiro, a Companhia Nacional tornava-se a nova concessionária da linha de Bragança; pelo segundo, João da Cruz era contratado como empreiteiro-geral da construção247. Figura 101 – A autorização do trespasse248
O resultado final (o trespasse) foi o desejado desde o início pelos intervenientes deste processo. A Companhia Nacional era a escolha óbvia para ficar com o caminho245
FINO, 1883-1903, vol. 3: 1028-1035 e 1039-1041.
246
Collecção Official de Legislação Portugueza, 1903: 342. FINO, 1883-1903, vol. 3: 1035-1036. Companhia, 1903: 25-26. PEREIRA, 2012c: xliv.
247
Arquivo distrital de Lisboa. Registos notariais. 9.º cartório notarial de Lisboa. Livro 359, caixa 72, fs. 2-4v. Relatorio do conselho de administração apresentado à assembleia-geral em 1904: 11. ALVES, 2000, vol. 9: 229.
248
Collecção Official de Legislação Portugueza, 1903: 842.
242
A extensão da linha do Tua a Bragança
de-ferro de Bragança, que era a extensão natural da sua linha de Foz-Tua a Mirandela. Por outro lado, desde 1900 que se falava na hipótese de ligar por via-férrea Foz-Tua a Viseu, estabelecendo-se assim uma conexão directa entre a Beira Alta e o nordeste transmontano. Não faria, pois, sentido dividir a exploração por vários operadores. Foi por isso que o primeiro contacto dos Beças neste processo foi precisamente com a Companhia Nacional. Quanto à firma Zagury, serviu bem os interesses da linha, ao convencer o ministro das obras públicas da existência de interessados no negócio e de que a abertura de concurso não seria sem consequências. Porém, a Companhia Nacional, em virtude do seu processo de reestruturação financeira249, não estava em condições de apresentar qualquer proposta e corria-se o risco de a praça ficar deserta. É nestas circunstâncias que aparece João da Cruz a licitar sozinho. Ao fazer um lanço de 26,88 contos (e depois 25,99), impede que o concurso feche sem propostas e passa a servir de testa-de-ferro da Companhia Nacional, a quem cederia mais tarde os direitos da adjudicação, através do traspasse. Aliás, a própria Gazeta de Bragança refere que foi José Beça quem recomendou João da Cruz para assumir o encargo da construção da segunda parte da linha do Tua, depois de falhadas todas as diligências com a Companhia Nacional250. O trespasse foi um acto administrativo muito comum ao longo de toda a segunda metade do século XIX, que concedeu bastos lucros a muitos especuladores, com pouco ou nenhum benefício para a nação. Em plena crise de finais do século XIX, o traspasse era considerado “um dos processos do corso que a moderna civilização nobilitou”251. Através deste procedimento, o concessionário original entregava os seus direitos a outra companhia, recebendo em troca uma soma avultada ou um cargo confortável e bem remunerado nessa firma. João Lopes da Cruz ficou com a parte do negócio que historicamente dava mais lucro: a construção. As negociações entre a dupla Cruz e Beça e os potenciais investidores não visavam assim financiar o concessionário original, mas sim a Companhia Nacional. Por esta altura, Portugal sofria ainda as consequências da bancarrota de 1892, encontrando-se em negociações com os seus credores externos. Investir em Portugal era um negócio de alto risco. Deste modo, nenhum investidor aceitaria obrigações de um desconhecido ou de uma companhia formada por um desconhecido, como João Lopes da Cruz. A Companhia Nacional oferecia outras garantias, não obstante poder ser também considerada uma aposta de investimento arriscada. Isto é comprovado pelo facto de as negociações para o financiamento só terem terminado oito meses após a adjudicação e depois de duas prorrogações de prazo para o começo da construção. Os títulos de 249
SANTOS, 2014.
250
Gazeta de Bragança, 29.3.1903, n.º 567; 19.4.1903, n.º 570.
251
CORDEIRO, 1999: 53.
243
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dívida da companhia tinham outro valor, sobretudo depois de a firma concluir com sucesso o seu processo de reestruturação financeira252. Quando João da Cruz passou a adjudicação à Companhia Nacional, o círculo ficou completo. O capital estava disponível e o empreiteiro preparado. A construção podia começar.
252
SANTOS, 2014.
244
A extensão da linha do Tua a Bragança
4.3. CONTRATOS E DETALHES FINANCEIROS DA EMPREITADA Hugo Silveira Pereira253
Em termos jurídico-legais foram assinados dois contratos distintos para a construção da linha de Mirandela a Bragança: o contrato de concessão e o contrato de empreitada (com respectivos adicionais). Em termos gerais, o primeiro seguia grosso modo a estrutura e as características de outros acordos de adjudicação de caminhos-de-ferro firmados anteriormente, designadamente o de Foz-Tua a Mirandela. As bases para a sua redacção começaram por ser determinadas por decreto de 10 de Outubro de 1901, estando genericamente subordinadas “ás condições annexas ao decreto de 28 de Setembro de 1883, para a construcção e exploração do caminho de ferro de Foz-Tua a Mirandella”. O mesmo decreto abria concurso durante 90 dias para a adjudicação da construção do caminhode-ferro de Mirandela a Bragança, passando por Macedo de Cavaleiros, de acordo com o projecto aprovado por portaria de 25 de Setembro de 1901. Obrigava os candidatos a fazer um depósito prévio de 4 contos de réis para submeter a sua proposta (que seria elevado a 8 contos caso vencessem o concurso ou devolvido caso não fossem os escolhidos), estipulava que a base de licitação era o custo quilométrico e reservava ao governo o direito de não escolher o proponente que oferecesse o lanço mais baixo254.
253
Centro Interuniversitário de História da Ciência e da Tecnologia (Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa).
254
FINO, 1883-1903, vol. 3: 749-752.
245
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Figura 102 – Portaria aprovando o projecto (à esquerda) e base primeira do programa e caderno de encargos da linha de Bragança (à direita)255
Do estipulado neste decreto foi elaborado o caderno de encargos da construção e exploração da linha de Bragança, aprovado por portaria de 14 de Novembro de 1901, que também estabelecia as regras administrativas para o procedimento concursal. O caderno de encargos fazia parte do concurso, ficando implícito que os indivíduos ou entidades que apresentassem propostas o aceitavam na sua totalidade256. Como já foi referido, foi necessário realizar dois concursos e o vencedor de ambos foi João Lopes da Cruz, que assinou a 19 de Abril de 1902 um contrato provisório com o governo para a adjudicação da construção e exploração do caminho-de-ferro de Mirandela a Bragança. O acordo replicava exactamente o caderno de encargos, adicionando apenas um artigo (77.º) que obrigava à audição parlamentar para transformar o contrato provisório em definitivo. Pelo acordo firmado com o governo, João Lopes da Cruz obrigava-se a assentar e operar um caminho-de-ferro de via única (excepto nas estações), bitola métrica, inclinação máxima de 18 mm/m e curvas de raio mínimo de 150 m (sendo que as rectas entre curvas de sentido contrário deviam ter no mínimo 50 m). Os carris deviam ser da melhor qualidade, de aço e de peso não-inferior a 20 kg/m e deviam ser assentes sobre travessas de madeira ou metal. Esta via-férrea continuava a que terminava em Mirandela, seguia por Macedo de Cavaleiros até Bragança, e devia incluir “aterros e desaterros, obras de arte, assentamento de vias, estações e officinas de pequena e grande reparação, e todos os edificios accessorios, casas de guarda, barreiras, pas255
Collecção Official de Legislação Portugueza, 1901: 740.
256
FINO, 1883-1903, vol. 3: 766-781.
246
A extensão da linha do Tua a Bragança
sagens de nivel, muros de sustentação, muros de vedação ou sebes para separar a via ferrea das propriedades contiguas, e em geral as obras (…) que forem necessarias para o completo acabamento da linha ferrea” (art.º 1.º, n.º 1). As obras de arte (viadutos, pontes, pontões, aquedutos, etc.) tinham obrigatoriamente de ser construídas em pedra, ferro ou tijolo. O trabalho devia começar dois meses após a assinatura do contrato e devia estar pronto em dois e três anos, conforme se tratasse da primeira (Mirandela – Valdez) ou da segunda secção da linha (Valdrez – Bragança), respectivamente. Por cada mês de atraso, o concessionário pagaria uma multa até 2 contos/mês. A obra devia seguir o projecto aprovado pelo governo em 25 de Setembro de 1901, que podia ser alterado pelo adjudicatário, mediante autorização do ministério. João Lopes da Cruz obrigavase também a submeter à aprovação do governo uma nova variante para o troço final de aproximação a Bragança. Comprometia-se ainda a fazer os melhoramentos e ampliações na estação de Mirandela “que forem reclamados pelo maior desenvolvimento que ao serviço resultar da exploração da nova linha”; e ainda a construir uma estação principal “com as accommodações necessarias para passageiros, mercadorias e empregados; officinas, machinas e apparelhos para a feitura e concerto do material de exploração, armazens, telheiros e depositos para arrecadação e pintura de locomotivas, tenders, carruagens e vagons; fossos para picar o fogo; apparelhos e reservatorios para a alimentação das machinas” (art.º 1.º, n.º 1, § 5.º). O fornecimento, conservação e renovação de material circulante (dos melhores modelos existentes) durante o período de concessão era também da responsabilidade do empreiteiro, bem como a instalação do telégrafo, a demarcação quilométrica e o levantamento da planta cadastral. Em compensação por estas obrigações, João Lopes da Cruz ou a companhia por ele formada tinha direito a explorar o caminho-de-ferro durante 99 anos. Era-lhe garantido um complemento do rendimento líquido de 4,5% sobre um custo quilométrico de 25,99 contos. Para este cálculo, pressupunha-se que as despesas de exploração seriam de 50% do produto bruto (excluindo imposto de selo e de trânsito), fixando-se um mínimo de 0,7 contos e um máximo de 1,2 contos/km. Se o rendimento líquido da exploração excedesse os 4,5%, metade do excesso seria para o estado até ao completo reembolso das quantias adiantadas ao concessionário. Este era ainda isento de qualquer contribuição geral ou municipal durante 20 anos (à excepção do imposto de selo e de trânsito que seriam cobrados desde o início da exploração) e de direitos de importação sobre o material necessário à obra por um quinquénio. O material seria também transportado gratuitamente pela linha do Douro (salvo despesas acessórias e impostos de selo). O estado comprometia-se igualmente a ceder de forma gratuita todos os terrenos que lhe pertencessem e que fossem necessários para a construção. João Lopes da Cruz tinha ainda o direito de construir, sem qualquer subsídio, todos os
247
A linha do Tua (1851-2008)
ramais afluentes da sua linha, mas não lhe era reconhecida qualquer zona de protecção face a caminhos-de-ferro paralelos. O governo tinha o direito de resgatar a linha em qualquer altura, comprometendose, porém, a pagar uma anuidade ao concessionário até ao fim do prazo da concessão. Essa anuidade seria equivalente à média dos cinco anos mais produtivos dos últimos sete anos de exploração e não poderia ser inferior ao produto líquido do último ano de exploração nem a 4,5% do custo da linha. O procedimento seria o mesmo, caso o resgate fosse feito antes de estarem decorridos sete anos. Feito ou resgate ou decorrido o prazo da concessão, o adjudicatário devolveria ao estado a propriedade de todo o material fixo e circulante, só recebendo uma compensação por este último. As tarifas seriam fixadas unilateralmente pelo governo enquanto este pagasse o complemento do rendimento líquido. Assim que fosse completamente reembolsado desta despesa, os preços de transporte seriam estabelecidas por acordo entre ambas as partes (na falta de acordo, adoptar-se-iam como máximos os valores das tarifas cobradas nas linhas do estado ou, não as havendo, a média das tarifas cobradas pelas companhias existentes). Serviços ligados ao estado beneficiavam de redução ou mesmo isenção tarifas: militares em serviço pagariam apenas metade do bilhete, fiscais do governo em trabalho viajariam gratuitamente e material de guerra seria transportado a metade do preço normal. A isto acrescia o dever da empresa de transportar gratuitamente o correio e pessoal ligado a este serviço e de emitir via telégrafo sem custos os despachos oficiais do governo. Se o concessionário não cumprisse algum destes quesitos ou se se recusasse a pagar as multas impostas pelos fiscais nos termos da lei, ficava o governo autorizado a rescindir o contrato. A concessão seria colocada em hasta pública e o valor da arrematação seria entregue ao antigo adjudicatário, deduzidas as despesas feitas pelo estado à laia de garantia de juro ou fiscalização. No caso de não aparecerem interessados em nova adjudicação, o estado ficaria com toda a obra feita, sem que fosse obrigado a pagar qualquer indemnização ao antigo concessionário. Na situação específica de este não conseguir manter a exploração, o estado assumi-la-ia; se passados três meses o adjudicatário ainda não conseguisse reunir as condições para retomar a exploração, ficava o contrato ipso facto rescindido. Em caso de desacordo entre as duas partes, estabelecia-se desde logo que a litigância seria decidida por um tribunal arbitral composto por quatro juízes, dois nomeados pelo concessionário e dois pelo governo. Em caso de empate nomear-se-ia um quinto juiz a contento de ambos os litigantes. Se não houvesse acordo quanto à escolha do quinto árbitro, seria este eleito pelo supremo tribunal de justiça257.
257
FINO, 1883-1903, vol. 3: 823-836.
248
A extensão da linha do Tua a Bragança
Figura 103 – A lei de 24 de Maio de 1902, que aprovou o contrato com João da Cruz258
Era um acordo que, como já foi dito, não fugia ao contrato tipo que foi estabelecido com diversas entidades ao longo do século XIX, desde a concessão das linhas do norte e do leste a D. José de Salamanca em 1859259. Como também já foi referido, João Lopes da Cruz acabou por se desvincular de todas estas obrigações contratuais, quando fez o trespasse da concessão para a Companhia Nacional e se tornou empreiteiro-geral da construção. A 30 de Junho de 1903, o ministro das obras públicas autorizou a cessão de direitos e a 6 de Julho seguinte o empreiteiro e a direcção assinaram em Lisboa a escritura de trespasse. No mesmo dia e no mesmo cartório, as duas partes assinaram também o contrato de empreitada. Estes acordos eram extremamente vantajosos para a Companhia Nacional ao passo que eram potencial e altamente lesivos dos interesses de João Lopes da Cruz. Desde logo, ao trespassar a concessão, o empreiteiro perdeu o direito ao depósito de garantia feito no âmbito do concurso, que revertia para a companhia260. Além do mais, esta podia isentar-se do pagamento da empreitada “se se der a hypothese improvavel” de os financiadores Fonseca, Santos & Viana e Burnay não lhe abonarem os fundos necessários à obra. Neste caso, João da Cruz apenas podia reclamar daquelas entidades e nunca da então concessionária. O contrato de empreitada era ainda mais draconiano. O empreiteiro-geral com258
Collecção Official de Legislação Portugueza, 1902: 252.
259
PEREIRA, 2012a.
260
Companhia, 1903: 27.
249
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prometia-se a executar “todos os trabalhos e fornecimentos (incluindo-se n’estes o pagamento de todas as expropriações e respectivas despezas commerciaes e de procuradoria que haja) previstos ou imprevistos sem excepção ou distincção que forem necessarias para a completa construcção da linha ferrea de Mirandella a Bragança” por 17,15 contos/km (art.º 1.º). Apenas o fornecimento do material circulante não estava incluído nas obrigações de João da Cruz. O pagamento seria feito mensalmente, por quilómetros de “terraplanagens completamente executados e por obras completas”, desde que o empreiteiro provasse que tinha em dia os créditos devidos aos seus empregados e fornecedores. Àquele valor seria deduzido 10% do total, que ficava a servir como garantia de boa construção durante um período de meio ano. Decorrido este prazo, e ainda na condição de o empreiteiro fazer prova de não de ter valores em dívida para com os seus operários e fornecedores, a companhia procederia à entrega dos décimos em falta. Caso João Lopes da Cruz entrasse em incumprimento para com os seus operários e abastecedores, a companhia podia rescindir o contrato (art.ºs 37.º, 38.º, 39.º, 42.º e 43.º). Os imprevistos atrás referidos incluíam, por exemplo, uma avaliação negativa dos terrenos das fundações para obra de arte ou edifício por parte dos fiscais do governo ou da Companhia Nacional. Neste caso, o empreiteiro teria que executar as escavações como lhe fosse indicado, “sem direito a indemnização ou reclamação alguma” (art. ºs 9.º e 25.º). Demais, o plano de trabalhos (da responsabilidade de João da Cruz) podia ser recusado pela companhia, que podia também impor-lhe o seu próprio projecto, “não me podendo eu [Cruz] recusar à execução d’elles e sem que isso modifique por qualquer forma a minha responsabilidade para com a Companhia” (art.º 19.º). Ao empreiteiro era possível elaborar e apresentar à sua custa qualquer alteração ao projecto original do governo, mas estas teriam que ser validadas previamente pela concessionária e posteriormente pelo ministério das obras públicas (art.ºs 7.º, 10.º, 12.º e 15.º). A recusa das mudanças sugeridas não dava a Cruz direito a qualquer tipo de compensação e da delonga na sentença sobre as novas variantes não resultaria qualquer prolongamento do prazo final para entrega da obra (art.º 11.º). Por outro lado, se as modificações ao projecto tivessem como consequência a necessidade de fazer expropriações ou obras de arte não previstas no plano original, o custo adicional que estas representavam seria suportado pelo empreiteiro, sem qualquer aumento do preço do seu trabalho; mas, se pelo contrário daquelas mesmas alterações resultasse a supressão de obras de arte ou a desnecessidade de expropriações, o preço da empreitada diminuiria proporcionalmente (art.ºs23.º e 24.º). A obra tinha que ser começada até ao dia 1 de Julho de 1903, se o prazo fixado pelo ministério se conformasse com esta data. Caso contrário, a data para início dos trabalhos seria antecipada para o dia indicado pelo governo (art.º 14.º). O prazo para
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A extensão da linha do Tua a Bragança
conclusão da empreitada era, como estava previsto no caderno de encargos, de dois anos para a secção Mirandela-Valdrez e de três para o troço Valdrez-Bragança, ambos a contar do dia do início das obras (art.º 28.º). Por cada dia de atraso – sem prejuízo do direito de rescisão que assistia à companhia – João da Cruz teria que pagar 120 mil réis e 100 mil réis, conforme se tratasse da primeira ou da segunda secção, respectivamente. A multa imposta à concessionária pelo estado – recorde-se – era bastante mais leve, não podendo ser superior a 2 contos de réis/mês. Por outras palavras, enquanto João Lopes da Cruz pudesse pagar a multa, a Companhia Nacional até lucrava com os atrasos. Inversamente, em caso de cumprimento antecipado de objectivos, o empreiteiro receberia uma recompensa de 40 mil e 33 mil réis em cada uma daquelas secções (art. ºs 33.º e 34.º). Este bónus podia ser acrescido de mil réis/km por cada troço contínuo de pelo menos 10 km desde Mirandela, mas apenas na condição de o governo pagar ao empreiteiro a respectiva garantia de juro (art.º 35.º). Em suma, este prémio nunca seria pago, uma vez que o complemento do rendimento líquido seria entregue à concessionária e nunca ao empreiteiro da linha. Após a conclusão da obra, esta seria inspeccionada pela companhia e depois pelos fiscais de obras públicas. Se estes não a aprovassem, cabia ao empreiteiro executar à sua custa e sem aumento de remuneração as correcções indicadas pelos agentes do ministério. O mesmo se verificaria em caso de estragos provocados dentro do prazo de garantia de seis meses (art.ºs 44.º e 46.º)261. Figura 104 – Preâmbulo do contrato assinado por João da Cruz
Pelo disposto neste contrato a Companhia Nacional tinha quase tudo a ganhar, enquanto João Lopes da Cruz tinha quase tudo a perder. O teor leonino das condições impostas ao empreiteiro tornaria este acordo ilegal à luz do actual enquadramento jurídico. Todavia, no início do século XX – e para infelicidade do contratado – não era isto 261
Para tudo isto, ver: arquivo distrital de Lisboa. Registos notariais. 9.º cartório notarial de Lisboa. Documentos dos livros de notas. Maço 62, caixa 37 (6/39/6/4), Julho a Setembro de 1903, documento B034642.
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que acontecia. Cruz assinou um pacto que protegia em praticamente toda a extensão a concessionária e só em casos excepcionais garantia os seus interesses. Ou o empreiteiro detinha uma enorme confiança nas suas capacidades e enfrentava uma obra potencialmente ruinosa para si com um optimismo exacerbado ou não foi capaz de se impor aos endinheirados e distintos capitalistas de Lisboa. Provavelmente, verificou-se um pouco de ambos. A idiossincrasia dos transmontanos, “cujo orgulho consistia em levar a cabo qualquer façanha, mesmo que arriscada”262, explica em parte o arrojo de Cruz de tomar a si o compromisso de construir a linha. Por outro lado, João da Cruz era apenas um mero brasileiro, ex-empreiteiro de estradas e com interesses ligados ao vinho algures no distrito de Bragança. Tinha decerto muito traquejo negocial e comercial adquirido durante a sua carreira e a sua vida. Contudo, possivelmente nunca havia lidado de perto com pessoas do garbo de Henry Burnay ou dos directores da Companhia Nacional. Amedrontado pela elegância dos seus parceiros de negócio e deslumbrado pela hipótese de deixar o seu nome ligado ao mais importante melhoramento de Bragança da sua história recente, João da Cruz assinou o fatídico contrato de 6 de Julho de 1903… A sua ingenuidade em todo este negócio fica ainda bem patente no facto de não ter criado uma sociedade de responsabilidade limitada para assumir a empreitada. As fontes (jornais da época e até o próprio papel timbrado com que João da Cruz se correspondia com Clemente Meneres, como se verá em breve) referem-se por vezes à Empresa Lopes da Cruz. No entanto, esta era apenas uma firma aparatosa que o empreiteiro se apropriou para si próprio e não tinha qualquer existência jurídica. João da Cruz assinou o acordo como indivíduo, assumindo os compromissos descritos como tal e associando automática e ingenuamente ao contrato todo seu próprio património. No caso de incumprimento, era o cidadão João Lopes da Cruz e os seus bens que se responsabilizavam por todas as penalidades estipulados no trato. Figura 105 – A empresa Lopes da Cruz263
262
SOUSA, 2013, vol. 1: 184.
263
Arquivo Menéres. Arquivador da correspondência, empresa Lopes da Cruz.
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De facto, João Lopes da Cruz rapidamente se apercebeu de que o contrato que assinara muito dificilmente seria cumprido. Assim, no final de 1903, cinco meses apenas após o início oficial das obras, o empreiteiro começou a debater-se com sérias dificuldades financeiras. Depois de investir 42 contos do seu próprio bolso, viu-se “com o credito cerceado em toda a parte” e “perante a necessidade de empatar enorme capital, que não estava ao meu alcance”264. Por isso, em Dezembro, declarou à direcção da Companhia Nacional “não poder manter nem sustentar o seu contracto por falta de recursos”265. Um caminho-de-ferro era construído em várias frentes simultaneamente e não continuamente desde o ponto inicial até ao ponto final. Contudo, o empreiteiro só receberia o seu pagamento por quilómetro completo ou obra completa. Obviamente, isto exigia uma grande soma de capital que João da Cruz não dispunha. Para solucionar o problema, a companhia e o empreiteiro-geral assinaram, em 7 de Dezembro de 1903, em Lisboa, um adicional ao contrato. Era reconhecido por ambos os outorgantes que os preços e modalidades de pagamento acordados previamente obrigavam João da Cruz “a empregar na execução da empreitada quantia superior áquela de que lhe convem dispôr para tal fim”. Cruz solicitava por isso “que lhe sejam feitos pagamentos parciaes por conta de certos materiaes postos junto ás obras e a ella destinadas [carris, agulhas, placas giratórias, travessas, etc.], e por conta das unidades de trabalho executadas, que não constituam as obras completas ou os kilometros completos”. A direcção da Companhia Nacional aceitou o pedido e dispôs-se a pagar até 90% do valor dos materiais indicados e até 90% das unidades de trabalho concluídas, à laia de adiantamento do pagamento ao empreiteiro. Em troca, aplicavase o coeficiente de redução indicado no art.º 4.º do contrato original às séries de preços aprovadas pelo governo e Cruz aceitava pagar 1% de comissão e 6,5% de juro sobre as importâncias que recebesse266. Contudo, em Junho de 1904, o empreiteiro confessava já não ter meios para continuar a obra. O seu engenheiro-director conferenciou então com a direcção da Companhia Nacional, mostrando-lhe “que não devia ser attribuida á falta de recursos pecuniarios a difficil situação em que me achava, mas sim ao inexequivel contracto que tinha assinado”267. Os directores da companhia discordaram e sugeriram a Cruz nomes de entidades que lhe podiam emprestar o dinheiro necessário. O empreiteirogeral não as refere senão por abreviaturas: S., T. e F. Segundo João Lopes da Cruz, os empréstimos contraídos estabeleciam juros altíssimos e eram feitos contra garantia dos décimos que ele tinha a receber da concessionária. “Assim dei o primeiro passo 264
CRUZ, 1906: 6.
265
COMPANHIA, 1907: 7.
266
Arquivo distrital de Lisboa. Registos notariais. 9.º cartório notarial de Lisboa. Livro 364, caixa 73, fs. 81v-83v.
267
CRUZ, 1906: 16-17.
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para cahir nas apertadas malhas da agiotagem, devido á falta d’auxilio que moralmente me devia ser dado pela Companhia”268. A partir desta altura, as relações entre o empreiteiro e a companhia tornaram-se mais conflituosas. Em Dezembro de 1904, o Districto de Bragança insinuava que “é ella [a empreitada] fertil em intriguinha lá entre os seus, segundo o que se diz, embora extra-officialmente”269. Em Fevereiro de 1905, Costa Serrão expunha novamente à Companhia Nacional as dificuldades por que passava a empreitada e solicitava novo adiantamento de pagamento, sob pena de suspensão dos trabalhos270. A companhia acedeu e a 15 de Fevereiro e 31 de Maio seguintes assinou novos adicionais ao contrato com João da Cruz (relativos respectivamente à primeira e à segunda secção). O preço do metro cúbico das terraplanagens era aumentado, mas, em contrapartida, o juro a pagar pelo empreiteiro por estes adiantamentos era também alteado para 7%271. A magnanimidade da Companhia Nacional não melhorou de todo a situação de João da Cruz. Os abonos concedidos funcionavam como um empréstimo camuflado, de modo que “a conta dos abonos foi subindo sempre” e o valor real dos pagamentos feitos ao empreiteiro diminuíam sucessivamente272. Figura 106 – Outorgantes e testemunhas do adicional de 31 de Maio de 1905273
Porém, as notícias divulgadas pelos jornais bragançanos apontavam precisamente no sentido oposto. Após a assinatura do adicional de 15 de Fevereiro, a Gazeta de Bragança escrevia que os obstáculos financeiros que se haviam levantado à empreitada haviam sido vencidos não sem dificuldades pela “intelligencia, a perseverança, 268
CRUZ, 1906: 16-17.
269
Districto de Bragança, 16.12.1904, n.º 145: 3.
270
COMPANHIA, 1907: 9.
271
Arquivo distrital de Lisboa. Registos notariais. 9.º cartório notarial de Lisboa. Livro 385, caixa 78, fs. 3132v; livro 390, caixa 78, fs. 48-49.
272
CRUZ, 1906: 16-18.
273
Arquivo distrital de Lisboa. Registos notariais. 9.º cartório notarial de Lisboa. Livro 390, caixa 78, fs. 48-49.
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a actividade incançavel do primeiro [João da Cruz], e a competencia, auctoridade, o credito do segundo [Costa Serrão] junto das estações technicas officiaes e dos potentados financeiros da capital”274. O Districto de Bragança anunciava também “como certo que o sr. Lopes da Cruz conseguiu resolver todas as difficuldades financeiras, estando habilitado com os capitaes necessários para dar ás obras de construcção do caminho de ferro de Mirandela a Bragança todo o desenvolvimento preciso”275. Na verdade, João da Cruz viu-se forçado “a pedir auxilios financeiros a todos os meus amigos, para poder cumprir e respeitar o contracto que firmara”276. Em Junho de 1905, O Nordeste incluiu Abílio Beça entre esses amigos, numa notícia que pretendia atacar o antigo governador civil277. Contudo, anos mais tarde, no parlamento, no rescaldo da morte de Beça, o deputado Pereira Lima confirmou que ele “dispôs de parte dos seus haveres, ao mesmo tempo que solicitava dos seus amigos que concorressem tambem com dinheiro para as empreitadas, visto que as obras eram dispendiosas, e os orçamentos inferiores ao que ellas custavam”278 . Pela mesma altura, O Nordeste reconfirmava – desta feita numa toada mais apaziguadora e laudatória – que Abílio Beça “chegou a mendigar capitaes e (sic) firma de valor, a fim de aplanar dificuldades financeiras para a realização da suprema aspiração de Bragança – o caminho de ferro”279. Figura 107 – Abílio Beça, segundo gravura d’O Seculo280
274
Gazeta de Bragança, 26.2.1905, n.º 666.
275
Districto de Bragança, 24.2.1905, n.º 155: 2.
276
CRUZ, 1906.
277
O Nordeste, 28.6.1905, n.º 942: 1.
278
Diario da Camara dos Deputados, 6.6.1910: 5.
279
O Nordeste, 29.4.1910, n.º 1178: 1.
280
O Seculo, 7.5.1902, n.º 7308: 1.
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De qualquer modo, e apesar destes auxílios, houve, de facto, salários em atraso e despedimentos em massa281. O próprio empreiteiro admitiu mais tarde que “houve partidos de operarios a produzir uma insignificancia de trabalho, durante semanas, por não ter dinheiro para lhes pagar”282. Todavia – segundo o acórdão do supremo tribunal de justiça referente ao processo movido por César Azevedo à Companhia Nacional –, a concessionária nunca exigiu ao empreiteiro “como lhe cumpria a prova autenticada de que estavam em dia todos os pagamentos do pessoal empregado”283. Enquanto João da Cruz fosse capaz de continuar a obra, a invocação de tal argumento para rescindir o contrato era algo que não lhe interessava. A origem dos problemas financeiros de João da Cruz residia no facto de a Companhia Nacional só desbloquear pagamentos mediante a encomenda de materiais e por unidades de trabalho completas. Além do mais, o empreiteiro via retirado a estes embolsos 1% de comissão e ficava ainda com uma dívida equivalente a 6,5% (e depois 7%) dessas transferências, à laia de juros. João Lopes da Cruz previra que com um capital inicial de 90 a 100 contos “poderia levar a cabo sem maiores dificuldades a construcção do caminho de ferro de Mirandella a Bragança”284. Estas previsões seriam porventura demasiado optimistas, de qualquer modo, para cumprir o prazo de entrega e poder dar desenvolvimento suficiente aos trabalhos (para não dar azo a uma rescisão contratual e eventual indemnização por incumprimento), o empreiteiro foi forçado a atacar a construção em vários pontos, o que o obrigou a um investimento inicial maior do que as suas capacidades. Além disso, não contou com o facto de a companhia levar ao extremo as prerrogativas que lhe advinham do contrato original. Como confessou mais tarde, Cruz contava com a boa vontade dos directores da companhia para não se cingirem ao contrato ou até alterá -lo de forma razoável, algo que para ele não era “nada mais natural e justo”285. Um outro detalhe ligado ao saldo dos créditos de João Lopes da Cruz prendeu-se com o facto de a Companhia Nacional não aceitar a entrega de qualquer quilómetro de via sem que as valetas estivessem abertas e regularizadas. Para ultrapassar a situação, o empreiteiro propôs que a companhia tomasse conta desta tarefa, proposta que foi aceite, naturalmente por um preço exorbitado. Para piorar a situação, o serviço não foi realizado a tempo, o que causou que algumas trincheiras fossem inundadas e tivessem que se refeitas à custa do empreiteiro. A Companhia Nacional não foi subcontratada por João da Cruz apenas para esta tarefa. Já em 1904, o assentamento da via e o reforço dos aterros foram subadjudicados à própria concessionária, pois o empreiteiro não 281
Districto de Bragança, 16.12.1904, n.º 145: 3.
282
CRUZ, 1906: 6 e 39.
283
Arquivo do supremo tribunal de justiça. Registo de acórdãos comerciais da primeira secção, livro n.º 5, acórdão 35676, fs. 201v.
284
CRUZ, 1906: 6-7 e 13-15.
285
CRUZ, 1906: 11.
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dispunha de locomotivas e vagões para este serviço. Algumas obras nas estações ficaram igualmente a cargo da empresa. Naturalmente, o transporte de material e pessoal para a obra ficou ainda a cargo da Companhia Nacional, que obviamente, cobrava este serviço a João da Cruz. Na secção de Foz-Tua a Mirandela, por cada tonelada transportada por quilómetro a companhia cobrava 4 réis. Nos novos troços abertos à exploração, o preço dobrava. Quanto ao transporte dos operários, foi inicialmente objecto de um bónus, que, todavia, foi cancelado quando o movimento se tornou demasiado grande286. Em todas estas situações, a companhia aproveitou-se da situação de necessidade do empreiteiro e prestou os serviços requisitados por um preço inflacionado. Assim, ao mesmo tempo que o empreiteiro via “tudo encaminhado de fórma a chegar a um bom resultado (…), via de repente surgir-me debaixo dos pés a ruina e approximar-se a passos agigantados o negro phantasma da miseria para mim e minha família!!”287. Num último fôlego, o empreiteiro dirigiu-se a 14 de Julho de 1906 ao oitavo cartório notarial do Porto para hipotecar a um tal de António Manuel Teixeira uma boa parte das suas propriedades (incluindo 55 mil l de vinho armazenados em Mirandela) em troca de um empréstimo de 22,5 contos288. O dinheiro, porém, esgotou-se rapidamente, provavelmente em salários em atraso e pagamentos a fornecedores. Duas semanas depois, João da Cruz intentou junto dos directores da Companhia Nacional obter uma nova forma de adiantamento do seu pagamento, alegando as dificuldades financeiras que enfrentava. “D’esta vez porém a Companhia não se commoveu, e não acedeu”289. Figura 108 – Letra aceite por João Lopes da Cruz para financiar a construção290
286
Companhia Nacional. Relatorio do conselho de administração apresentado à assembleia-geral em 1904: 1011. CRUZ, 1906: 26-27 e 36. COMPANHIA, 1907: 35-44.
287
CRUZ, 1906: 20.
288
Sobre os detalhes da hipoteca, ver: arquivo distrital do Porto. Registos notariais. 8.º cartório notarial do Porto, PT/ADPRT/NOT/CNPRT08/001/0822, fs. 77-81v. I/34/1 - 138.
289
COMPANHIA, 1907: 9.
290
Arquivo distrital do Porto. Empresas. Companhia Carris de Ferro do Porto. Secretaria geral. Processos e questões diversas. Rescisão de contrato, PT/ADPRT/EMP/CCFP/SG/013/13.084. B/6/1/4 - 14.8.
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O fecho da porta da Companhia Nacional ao empreiteiro foi para este um duro golpe. Com os adicionais entretanto assinados e com a angariação de capitais juntos de conhecidos seus, João da Cruz conseguiu manter a construção activa durante mais algumas semanas. No entanto, chegou o dia em que o seu crédito se exauriu. Esse dia foi o 30 de Julho de 1906. Nesta data, o empreiteiro comunicou à concessionária que não podia continuar a obra por fata de fundos. A Companhia Nacional não se comocionou e dois dias depois rescindiu o acordo de empreitada, alegando justa causa291, que, de facto, tinha. Segundo o art.º 31.º do contrato, “se a Companhia reconhecer que os trabalhos não seguem com o conveniente desenvolvimento para que possam ser concluídos nos prazos fixados, terá o direito de rescindir o contracto e de tomar posse das obras, materiaes, ferramentas e utensilios, barracões, officinas e estaleiros, direitos estes que poderá exercer independentes da decisão judicial e administrativa”. Pelo parágrafo único do mesmo artigo “a Companhia poderá continuar com a construcção das obras por sua administração directa, ou poderá contractal-as com novo empreiteiro, sem que me [a Cruz] reste direito algum de reclamação ou indemnisação”. Mais ainda, de acordo com o art.º 32.º, João Lopes da Cruz perdia também “direito ás sommas que a Companhia me dever, ao deposito de garantia em poder do Governo, a quaesquer quantias retidas em poder da Companhia e a todos os objectos e valores de que a Companhia tomar posse nos termos do art.º 31.º sem que por isto me seja devida indemnisação e ficando eu ainda responsavel por todas as perdas e damnos que para a Companhia advier da minha falta”292. As consequências da denúncia do contrato nestes termos eram implacáveis para o empreiteiro. Perdia todo o trabalho que fizera e abdicava de todos os créditos sobre a Companhia Nacional, podendo ainda ser responsabilizado pelas perdas e danos sofridos pela concessionária. No entanto, e apesar de tudo isto, João da Cruz endividara-se pessoalmente para levar a cabo a empreitada. Necessitava agora saldar essas dívidas, mas não tinha como, pois o dinheiro que contava receber da companhia esfumara-se. Em suma, no dia 1 de Agosto de 1906, João Lopes da Cruz estava arruinado.
291
CRUZ, 1906: 37.
292
Arquivo distrital de Lisboa. Registos notariais. 9.º cartório notarial de Lisboa. Documentos dos livros de notas. Maço 62, caixa 37 (6/39/6/4), Julho a Setembro de 1903, documento B034642.
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