TUA história vivida (histórias da vida)

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Maria Otilia Pereira Lage

“TUA” HISTÓRIA VIVIDA (Histórias de Vida)

Maria Otilia Pereira Lage

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“TUA” HISTÓRIA VIVIDA (Histórias de Vida)

• Maria Otilia Pereira Lage


“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

PROJETO FOZTUA coordenadores ANNE MCCANTS (MIT, EUA) EDUARDO BEIRA (IN+, Portugal) JOSÉ M. CORDEIRO (U. Minho, Portugal) PAULO B. LOURENÇO (U. Minho, Portugal) www.foztua.com

ISBN: 978-153-01702-8-9 Fevereiro 2016 Design gráfico, paginação e capa por Ana Prudente Editado e impresso por Inovatec (Portugal) Lda. (V. N. Gaia, Portugal) Impressão da capa e encadernação por Minerva – Artes Gráficas, Lda. (Vila do Conde, Portugal)

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EVOCAÇÃO DE MEMÓRIAS Passeando presente dela pelas ruas (…) imaginou injetar-se lembranças, como vacina. para quando fosse dali poder voltar a habitá-las, uma e outras, e duplamente, a mulher, ruas e praças …. Mas desconvivendo delas, longe da vila e do corpo, viu que a tela da lembrança se foi puindo pouco a pouco …. A lembrança foi perdendo a trama exata tecida até um sépia diluído de fotografia antiga Mas o que perdeu de exato da outra forma recupera: que hoje qualquer coisa de uma traz da outra sua atmosfera. (JOÃO CABRAL DE MELO NETO “O Profissional de Memória”)

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AGRADECIMENTOS Às populações locais do Vale do Tua, a quem se dedica este livro, à estimulante interação dos entrevistados e à equipa do trabalho de campo realizado, todos no seu conjunto, fundamentais aliados para a realização do estudo subjacente à presente obra.


ÍNDICE

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INTRODUÇÃO

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1. ESPAÇO FÍSICO ENVOLVENTE: O VALE DO TUA EM TRÁS-OSMONTES

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2. GALERIA DE INFORMANTES E TRAJETÓRIAS BIOGRÁFICAS 2.1. Universo populacional do Vale do Tua 2.2. Painel de trajetórias biográficas representativas

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3. HORIZONTE SOCIAL E TEMPORAL: Cartografia de materiais de memória 3.1. Contexto e conjunturas socioeconómicas locais e regionais 3.2. Processo histórico-social e político geral

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4. HISTÓRIA VIVIDA: A arte de fazer e de contar no Vale do Tua 4.1. Roteiro de um documentário histórico e sentimental 4.2. Recursos naturais, patrimoniais, materiais e técnicos 4.3. Enquadrando e desenredando (externalidades). Barragem do Tua

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5. A METODOLOGIA: MÉTODO BIOGRÁFICO E “HISTÓRIAS DE VIDA” 5.1. Histórias de vida e história oral 5.2. Reconstituição de memórias e vivências do Vale do Tua

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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APÊNDICE DOCUMENTAL - Corpus de fontes orais e guião de documentário


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INTRODUÇÃO O presente livro foi produzido no âmbito do projeto internacional FOZTUA (2010- 2015), uma parceria académica entre a Universidade do Minho (Portugal) e o programa MIT Portugal, envolvendo o MIT - Massachusetts Institute of Technology (USA), que tem decorrido paralelamente ao projeto de construção da barragem de Foz Tua. Tem por objetivo mapear as principais transformações ocorridas no desenvolvimento do vale do Tua, na região transmontana, a partir de finais do séc XIX e durante o séc XX, mais precisamente com a construção e funcionamento da linha férrea do Tua (1887-2008) e evidenciar, num enquadramento histórico e ambiental, as linhas dominantes de mudança social aí verificadas. Assenta na análise documental de cerca de meia centena de entrevistas representativas da história recente da população local e no estudo transdisciplinar dessas narrativas orais impregnadas de significado e densidade histórica que permitem, numa ação conjunta investigador – informante, a reconstrução da socio-história do vale e linha do Tua na longa diacronia de mais de 100 anos. Esta é reveladora da evolução de múltiplas dimensões concretas: ambiência natural e recursos mineralógicos e termais (Caldas de S.Lourenço); construção e funcionamento do centenário caminho-de-ferro de via estreita, impactos e importância no desenvolvimento local; atividades quotidianas nas povoações ribeirinhas, negócio do volfrâmio, racionamento e fome durante a II Guerra Mundial; recorrentes migrações, surtos de emigração das populações rurais nos sécs XIX e XX e presença de galegos; vida e trabalho nos caminhos-de9


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ferro; estatuto e carreira sócioprofissional de ferroviários; mobilidades sociais, comunicação e transporte ferroviário de passageiros e mercadorias; acidentes ferroviários; iniciativas de empreendedorismo agro-industrial (Romeu, CUFMirandela e Cachão). Uma das concretizações deste trabalho consiste em reconstituir a memória social e história - vivida001 das populações do vale do Tua, através de relevantes “fontes orais” e “histórias de vida”002 significativas que, a nível micro, evidenciam ter sido fundamental o caminho-de-ferro para o desenvolvimento económico, social e cultural desta comunidade cuja tradição rural se mantem, mas em que interessa observar diferentes dinâmicas de evolução para a modernidade. O livro e o vídeo que o complementa põem-nos em contacto direto com os protagonistas de uma “história vivida” e contada na 1ª pessoa através das memórias e relatos de vidas, atividades, profissões e acontecimentos do vale do Tua que a ferrovia mudou. Aí se reivindica, coletivamente, em narrativas orais de cunho autobiográfico, um direito ao “legado da transição” como instrumento para enfrentar os desafios de um futuro imediato e incerto. Isto porque a História e Memórias do vale, rio, linha e comboio do Tua, indissoluvelmente ligadas às vivências e experiências de vida e de trabalho das populações transmontanas, são essencialmente o produto dos homens que construíram e agiram essa história e memórias, contribuindo para garantir a sua continuidade transformada, desde finais do séc XIX até aos nossos dias. Assim, este livro e o documento videográfico constituem registo dessa memória social e ação histórica local que é obrigação intelectual e dever cívico transmitir às gerações presentes e futuras.003 “Tua” história vivida (histórias de vida) é assim uma obra plural entretecida de múltiplas e polifacetadas vozes que, no seu conjunto, constroem uma meta001  Ou seja, a história–objeto na definição do historiador francês Pierre Vilar, o que nos remete para o estatuto ontológico da história. 002  Esclarecendo o conceito de «historia de vida» como técnica etnográfica comum à sociologia, história e psicologia, pode entender-se por «história» uma história em minúsculas, de «personagens comuns » que se não refere a façanhas de heróis ou homens famosos, mas é pelo contrário reflexo de uma vida simples, sem fama nem glória; e por «vida», os relatos contados na primeira pessoa por qualquer protagonista vulgar capaz de expressar-se com fluidez e uma boa dose de memória firme, relatos estes que também se diferenciam das biografías narradas pelos escritores ou das memórias de pessoas públicas. 003  Tal finalidade teve desde logo tradução parcial na continuição deste projeto, numa 2ª fase, alargada em 2014 / 2015, às comunidades escolares dos 5 municípios do vale do Tua cujos resultados se divulgam na edição de novas publicações como por ex: LAGE, Maria Otilia Pereira - Vidas e Viagens à volta do vale do Tua. Projeto Foz Tua MemTua 2 escolas, 2016. LAGE, Maria Otilia Pereira, Org. - Vale do Tua: Trabalho de campo e história local (Antologia). Projeto Foz Tua MemTua 2 escolas, 2016.

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narrativa que se desenrola na surpreendente sub-região transmontana do Vale do Tua feita de gentes, pedra e água ao longo de uma história densa mais que centenária que singulares narrativas orais decompõem, reconstituem e nos devolvem. Assume-se como meio de divulgação de uma herança cultural viva, legada pela ação de populações anónimas, cuja presença na região se assinala ao longo de sucessivas gerações. É nessa medida que se começa por refletir aqui sobre a função do historiador, através do poema “O Profissional de Memória” do grande poeta brasileiro, que por isso se escolheu para epígrafe de abertura, qual fotografia antiga em tom de sépia, evocadora de lembranças que embora por vezes diluídas se conservam, ainda hoje, na sabedoria de factos que comunicam e na atmosfera sugestiva que transmitem. O processo de investigação que lhe subjaz monumentalizando a memória reconstituída com as populações devolve-a a estas, como pertença coletiva e identidade cultural própria, tentando integrá-la no desenvolvimento de uma memória com futuro que se reclama para este património histórico. Numa das vertentes específicas desse projeto, uma equipa interdisciplinar de investigadores realizou, durante 4 anos, intensa investigação envolvendo trabalho de campo junto das populações locais, com larga expressão de ex-ferroviários da linha do Tua. Foi realizada durante a pesquisa, recolha e organização da informação necessária, uma série diversificada e representativa de entrevistas a pessoas com reconhecida experiência de vida, produzindo-se assim materiais de memória e conteúdos relevantes sobre as realidades históricas e sociais do vale, rio e linha do Tua. Foram recolhidas, e registadas em diferentes suportes (escrito e audiovisual) 47 entrevistas semi-estruturadas, individuais e coletivas com 48 informantes privilegiados de diferentes categorias etárias (entre os 54 e os 104 anos de idade) e estratos sócioprofissionais004, sendo depois editados os respetivos registos videográficos, constituindo-se assim dois 004  Trabalhadores e operários ferroviários da via e do movimento, maquinistas e chefes de estação, revisores, inspetores, chefes de lanço, guardas de linha, pequenos, médios e grandes agricultores e comerciantes, emigrantes e combatentes da guerra colonial portuguesa, utentes e viajantes do Comboio do Tua, familiares de figuras emblemáticas da história da construção da linha férrea do Tua (engenheiros, empreiteiros, políticos, pessoas públicas e notáveis locais), jornalistas regionais, administradores, operários e técnicos de empreendimentos agro-industriais e fabris que foram fator de desenvolvimento interativo com o comboio e a linha férrea.

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arquivos complementares de materiais escritos e audiovisuais cujos conteúdos informativos configuram o núcleo principal de suporte documental desta obra. O trabalho de campo decorreu a espaços-tempos metodicamente programados e incidiu sobre dezenas de aldeias, vilas e cidades da área geográfica do vale do Tua, tendo exigido sucessivos contactos com um amplo universo de meia centena de informantes privilegiados de 3 gerações, amostragem representativa de homens e mulheres, com diversificados perfis e estratos sociais, ocupações profissionais, formações e trajetos de vida diferentes, e uma diversidade de papéis e posições sociais ocultas ou mais destacadas sobretudo em meio rural mas também urbano. Estas fontes orais integram depoimentos, testemunhos, narrativas, trajetórias e histórias de vida, e constituem um importante repositório de vivências, memórias individuais e coletivas, perceções e representações que localmente se conservam sobre a construção, evolução, declínio e encerramento da linha do Tua. Esse acervo devidamente organizado e tratado documenta a singularidade local e a abrangência nacional da história recente da economia, sociedade e cultura desta micro-região transmontana e sua envolvente natural cuja apresentação geográfico-histórica se faz no 1º capítulo deste livro. O segundo capítulo faz um mapeamento de natureza sociológica do universo de informantes privilegiados com quem se trabalhou. Eles são os atores sociais na espácio- temporalidade em estudo e os aliados fundamentais deste trabalho, cuja contribuição se retribui, com justa voz pública, de modo específico e adequado, nos capítulos seguintes. Nos terceiro e quarto capítulos, mobiliza-se mais extensivamente o importante corpus documental de fontes históricas orais inéditas, a cuja análise interpretativa se procede, o que confere particular vivacidade aos contextos e acontecimentos observados por diferentes escalas, aspetos e dimensões da micro-história da região do vale do Tua. Com o quinto e último capítulo, em que se explica sucintamente o método e metodologias da investigação realizada sobre que assenta esta obra, completa-se a apresentação da estrutura em que se organiza a sua escrita. Salientamos, por fim, dimensões que compõem o principal argumento de “TUA” História Vivida, o qual se sintetiza. 12


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Os requisitos da história vivida e fontes orais, bem como as exigências da reconstituição de histórias de vida, foram concetual e metodologicamente orientados por um quadro teórico transversal designadamente aos domínios da história, sociologia, etnometodologia e comunicação audiovisual. As singulares histórias de vida repertoriadas apresentam uma notável riqueza longitudinal já que assentam na reconstituição de memórias e trajetos biográficos individuais, recorrem a entrevistas em profundidade e utilizam inclusivé documentação pessoal. Por sua vez, a história escrita a partir de fontes orais, ao privilegiar a reconstituição de memórias, depoimentos e testemunhos, utiliza documentação de natureza pessoal e particular, sem porém deixar de atender à construção social e histórica dos acontecimentos e seu conhecimento e estudar processos de mudança, evolução e regularidades. A análise transdisciplinar das narrativas orais evidencia na longa diacronia e à escala micro, persistências e mudanças mais significativas da história ambiental, social e cultural dos últimos cem anos do vale do Tua, em especial as induzidas pela construção, funcionamento e encerramento do caminho-de-ferro do Tua (1876 -1998). Todos os testemunhos ligados à história da linha férrea do Tua disponibilizam conhecimentos e impressões que possibilitam compreender acontecimentos, ações, protagonistas, práticas e saberes leigos e técnicos, mudanças sociais e culturais. A substância social, cultural e histórica que com os informantes privilegiados, nossos aliados imprescindíveis na observação participante, se descreve e evidencia prende-se com as aspirações legítimas de cada indivíduo ao seu desenvolvimento pessoal, humano e profissional que se confrontaram e confrontam com constrangimentos e leis que em grande medida lhes escapam. Donde a preocupação em desmontar e interpretar discursos vigentes sobre a história do vale e linha do Tua, tentar recuperar e repor o que populações e indivíduos hoje maioritariamente solitários, mas não silenciosos, entendiam e entendem como sendo as suas verdades sobre o assunto. Assim, investigadores e atores sociais tornaram-se “colaboradores, compondo e construindo a história” (Atkinson,2002, p.126) das comunidades do vale do Tua. A chegada do comboio do Tua ao nordeste transmontano nos finais do séc XIX viria a marcar em definitivo a história seguinte do vale do Tua que gerações transformaram num espaço único de cultura e saber, construindo a 13


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paisagem e o território. É a este legado coletivo que se quis dar visibilidade, nele interessando todo o tipo de leitores e o público em geral.

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Estação de Tralhariz e Tunel de Álvella Foto E. Biel, “Album fotográfico da Linha do Tua” (1887)

1. ESPAÇO FÍSICO ENVOLVENTE: O VALE DO TUA EM TRÁS-OS-MONTES «A linha do Tua é, no seu início, paralela à linha do Douro, e ao próprio rio Douro, mas com um declive ascendente acentuado. Ao infletir para norte, deixa o vale do Douro, e entra no vale do Tua, pela margem esquerda do rio. Numa curta inflexão do trajeto ferroviário, há uma paisagem que se transforma profundamente. Pelo seu carácter inesperado, a vista que se colhe da ponte rodoviária, de onde Orlando Ribeiro fez a fotografia, é das mais impressionantes de todo o percurso da linha ferroviária. Para montante temos o vale do Tua, que neste troço se apresenta muito cavado. É a porta de entrada de um universo surpreendente e único que vamos percorrer. A Ponte das Presas e o túnel com o mesmo nome, que imediatamente se lhe segue, são a primeira expressão de uma intervenção humana que constituiu um dos maiores desafios da engenharia portuguesa do século XIX. Todo o conjunto se encontra perfei15


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tamente enquadrado na paisagem, pois todo ele acaba por revelar uma singular delicadeza face à grandiosidade do vale. » [Duarte Belo, Portugal – Luz e Sombra, pp 102-103] Assim, pela linha do Tua “coluna dorsal de Trás-os-Montes” na opinião de muitos dos seus ex-ferroviários, entramos no coração do Nordeste Transmontano e na história natural do seu notável vale do Tua, atravessado ininterrupta e diariamente durante mais de 120 anos por esta linha férrea de bitola estreita que, ao longo de 133 km, serviu com as suas 17 estações e mais de 21 apeadeiros, um grande número de povoações. Por isso, é suposto ter sido a campeã das linhas férreas nacionais deste tipo. Na segunda metade do séc XIX, antes da construção da linha do Tua, era assim traçado o «Rápido esboço do estado económico e cultural d’este districto de Bragança”: «Quem percorrer, ainda que seja rapidamente, este districto, vê logo quanto são avultadas as suas riquezas naturaes. (...) Mas no entanto esta primeira impressão de riqueza vem logo associada com outra, que se pôde talvez exprimir pela palavra - aridez - bem triste, bem estranha, por isso mesmo que as duas são opostas e formam tamanho contraste. É que na montanha núa de qualquer vegetação, de ordinário até a mais rasteira, a terra despega-se e cáe sob a acção das chuvas e das geadas. No valle, por onde serpenteia a corrente, as aguas alagadiças, e sem que sejam reguladas, formam brejo improductivo. No cimo apparecem despidas as rochas, esqueleto informe que deixa romper a descoberto a carne que se esphacela: em baixo os lôdos fertilíssimos ficam perdidos e são arrastados pelas aguas. Atravessam-se assim por esta forma largos tractos de terreno, ora vadeando uma corrente, ora pela lombada ou meia encosta da serra, seguindo o atalho caprichoso talhado e batido com os pés dos homens e dos animaes. Continuando assim o caminho vê-se de repente a paisagem mudar de aspeto. No valle as aguas são melhormente repartidas, e o paul torna-se em lameiro que se cobre de herva; a vinha trepa em alguma das encostas; nas terras menos fundas apparece o centeio em companhia de algum dos outros cereaes; nas terras mais quentes encontra-se sempre a oliveira; e associadas a estas, que diremos culturas predominantes, agrupam16


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se então uma infinidade de outras mais secundárias, e variando sempre com o terreno e com o clima. No centro de um d’estes pedaços cultivados encontra-se uma povoação...» (D.Antonio Coutinho, agrónomo)005 Assim era o território do distrito brigantino, já bem entrada a segunda metade do século XIX, uma vasta área isolada e adormecida, marcada por uma variedade de terrenos e de clima, povoamento disperso e de contraste acentuado entre a aridez das serras e rochas multiformes de vegetação rasteira e os vales quentes das vinhas e oliveiras fertilizados pelos lodos e águas alagadiças onde o sistema de troca direta era ainda vigente, já que em matéria de indústrias «até os nomes são desconhecidos», e as estradas se contam pelos dedos. Desse «paiz que vive entregue a si mesmo”, deixa D. António, autor citado, na sua carta a Batalha Reis, um quadro triste e sombrio. Cinquenta anos depois, a região será percorrida por um geógrafo - Vergilio Taborda - que dela faz um outro retrato. Trás- os- Montes é, porém, ainda o mesmo. Por isso, tantos ensinamentos que Taborda colhe nas obras do mestre. As feiras, as tarefas agrícolas, as migrações de trabalho, tudo se mantem. Finda a sementeira, a terra entra em repouso sobre o manto das geadas e com ela os homens, recolhidos à lareira, nos longos serões de inverno, até que a primavera, despertando a natureza, de novo os enleie nas malhas dos mesmos trabalhos. O isolamento continua ainda.006 De facto, como bem descreve já no séc XX, Vergilio Taborda, notável geógrafo transmontano aqui citado (a negrito e entre aspas]: “Distinta é a região norte transmontana… terras mais altas, desdobrando-se em montanhas e planaltos montuosos, um clima rigoroso de invernos frios e verões quentes, variado até ao infinito consoante as circunstâncias de relevo e exposição, húmido e pluvioso a oeste, mais seco à medida que se caminha para a frontei005  D. Antonio Xavier Pereira Coutinho - «Rápido esboço do estado económico e cultural d’este districto de Bragança”. Cap.I.“A Quinta Districtal de Bragança no anno agricola de 1875 a 1876 –Relatório. Apresentado ao Ill.mº e Exc.mº Snr. Adriano José de Carvalho e Mello digníssimo governador civil pelo agrónomo do districto..., Porto, Typ. do Jornal do Porto, 1877. In Notas e Recensões : “O DISTRITO DE BRAGANÇA em 1876 numa carta de D.Antonio Xavier Coutinho”. REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS - GEOGRAFIA I Série, Vo l. III, Porto, 1987, p.247. 006  “Notas e Recensões: “O DISTRITO DE BRAGANÇA em 1876 numa carta de D.Antonio Xavier Coutinho”. REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS - GEOGRAFIA I Série, Vo l. III, Porto, 1987, p. 243 a 277.

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ra oriental… um solo granítico e arcaico, magro e descarnado nas partes altas, de maiores aptidões agrícolas nos vales… junto à serra de Bornes, é caracterizada por um solo de xisto precâmbrico e um clima peculiar de verões muito quentes e uma secura acentuada….” [Nas terras também definidas como terra mista, com condições especiais de altitude e exposição e aspetos peculiares de clima, vegetação e culturas] “que recebem o hálito de vales propriamente durienses” [predominam a vinha, a oliveira e a amendoeira e com elas o centeio também. De clima excessivo, é uma região de carvalhos, tojos, giestas, carqueja e urze, aqui e além, e sobretudo] “nas paisagens xistosas do Tua, pintalgados pela flor e cheiro inconfundíveis da esteva.” [A contrastar com a dureza e altura dos montes, surgem os pomares, as hortas, os soutos - espaços mais próximos do homem e da sua fome. De referir que a propriedade é, na sua maioria,] “de pequena superfície e fragmentada” [e a apropriação do solo revela a alma do transmontano –] “um ser com sede e fome de terra”. [No que respeita ao povoamento, pode-se falar de uma arquitectura da solidariedade; temendo o frio e a solidão, as casas juntam-se umas às outras, formando grupos compactos de aldeias e lugares. Estes aglomerados de pedra têm, muitas vezes, como razão da sua existência, estarem perto da água, uma aliança íntima e frequente. É perto da água que existem as boas terras: os solos mais frescos e fundos das veigas, a terra fértil das hortas, espaços que, no todo, evidenciam um entendimento entre o homem e o local onde vive.] 007 O geógrafo citado rejeita os termos “Terra Fria” e “Terra Quente” para distinguir, dentro do Alto Trás-os-Montes, norte e sul, pois vê nesta nomenclatura reflexos de uma linguagem popular, ao contrário de outro reputado geógrafo, Orlando Ribeiro, que posteriormente os utiliza quando se refere à influência do rio Douro e seus afluentes sobre parte da região, marcando uma “diferença de altitude e de clima, que essas expressões evidenciam”. Assim, já em meados do séc XX, este autor considera, numa notável síntese geográfica de informação reunida durante décadas em seus cadernos de campo, durante várias viagens feitas à região, que as expressões Terra Quente e Terra Fria distinguem duas regiões naturais, a saber: 007  Litescape.pt. Alves, Isabel Fernandes - Vozes Transmontanas na Paisagem. Paisagens de pedra e água na poesia de A. M. Pires Cabral. Lisboa, FCSH / NOVA, Editora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 2013.

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a chamada Terra Fria que “(…) é um planalto de 700-800 m de altitude média, dominado por algumas serras pouco altas e entalhado por vales profundos e estreitos. O clima é rude e contrastado, com inverno frio e longo e um estio muito quente. (…) O carvalho negral, o castanheiro, o freixo ou negrilho, formam tufos distantes, o solo das depressões cobre-se de esteva odorante. O cereal dominante é o centeio, em afolhamento bienal.”(…); e a que se designa “A Terra Quente formada pelos vales que afluem ao Douro, providos às vezes de largas bacias, encaixados alguns centos de metros no planalto. O clima é, por isso, muito diferente: com poucas chuvas, inverno moderado pelo abrigo das altas vertentes e verão com dias tórridos que sucedem a noites abafadas. O manto vegetal toma, pela primeira vez, uma feição francamente mediterrânea: belas matas de sobreiros, olivais, plantações de figueiras, amendoeiras, laranjeiras e outras árvores de fruto. Mas a originalidade da região está na cultura da vinha. Calcada exatamente sobre um afloramento de xisto que o Douro atravessa no sentido da maior dimensão, a «região demarcada dos vinhos do «Pôrto» é a mais admirável obra humana que pode ver-se em Portugal. (…)”008 Em que medida as descrições anteriormente expostas sobre aspetos físicos, humanos e culturais dos distintos lugares da região transmontana, com particular destaque para os seus vales, podem suscitar sentimentos de pertença e identificação, presentes quer nas trajetórias e histórias de vida aqui contempladas, quer em categorias estéticas e literárias ou mesmo nos crescentes movimentos ambientais dos nossos dias? Para além da crescente e pormenorizada atenção que desenvolvem, desencadeiam uma forte influência na compreensão física e imaginativa da vida humana associada aos lugares numa forte intimidade e estreita cumplicidade baseadas no conhecimento e no respeito, entre os seres humanos, o seu território local de origem ou de pertença e os aspetos materiais do ambiente natural, histórico e cultural. Territórios e indivíduos interpenetram-se numa leitura compreensiva cuja depuração e decomposição metafórica geram a catalização de afetos, perceptos e singularidades que delineiam mundos físicos e mentais que compõem o 008  Orlando Ribeiro, Apud GUEDES, Maria Teresa Valente de Sousa Guedes - O Alto Douro na obra de Orlando Ribeiro. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2010. Tese de Mestrado em riscos, cidades e ordenamento do território.

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cenário contrastante e polícromo de uma densa história vivida do quotidiano neste território que as histórias de vida dos seus naturais e habitantes entretecem e exemplificam. “nós, os excessivos transmontanos, nascemos excessivamente longe. Um rio e uma cadeia montanhosa separam a nossa terra do resto de Portugal. E nós somos esse rio, feito de mil rios e riachos, e essa montanha, feita de mil serras e colinas. (...) O rio: a água rumorosa e ágil. A montanha: a pedra estável e grave. A água - aventureira. A pedra – taciturna. Água e pedra. Nós: os andarilhos das sete partidas e os obstinados prisioneiros da gleba.” (Antologia 15). (…) esta é uma terra dúplice: terra de vinho, terra de água, terra de azeite, terra de pão, terra de luz (...) mas terra também de horizontes austeros, imutáveis, opressivos, que asfixiam sonhos e incitam à retirada” (ibidem). Mas os que nela nascem, crescem e morrem com esta terra agarrada ao corpo e ao espírito: “trazemos as unhas sujas dela, os olhos namorados dela.” E, por isso, (…) “esta terra é-nos inevitável – obriga os que imitam a pedra e a vivem por dentro, e obriga os que imitam a água e a vivem por fora. Isto é: os que a amam em presença e os que a amam em memória”009 O imaginário literário do vale do Tua010, longe, construído de pedra, terra e água, por prisioneiros da gleba de alma resistente à vida de andarilhos de múltiplas partidas, torna-se presente nesse horizonte impressivo de serras, riachos e colinas onde frutificam com a vegetação e o alimento diário, ações diárias corajosas e memórias vivas capazes de transpor a opressão, a imutabilidade e a asfixia. Fica assim delineado, diferenciada e complementarmente, o enquadramento físico e ambiental deste singular e valioso património histórico e cultural (i) material, que se pode intuir na “terra mater” das histórias de vida em que se molda esta obra e a preenchem de colorido humano e social. Porém, este cenário rico, profundo e variado ao nível da geografia histórica 009  A.M. Pires Cabral apud ALVES, Isabel Fernandes - Vozes Transmontanas na Paisagem. Paisagens de pedra e água na poesia de A. M. Pires Cabral. Lisboa, FCSH / NOVA, Editora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 2013. 010  LAGE, Maria Otilia Pereira, Org.; BEIRA, Eduardo, Fot. - “Tua” Colectânea Literaria: O vale, o rio e a linha Férrea. Projeto FozTua, 2013.

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e natural compreender-se-á de um modo mais vivo quando dermos voz aos que nele se construíram contribuindo para a sua construção socio-histórica, o que se fará nos próximos capítulos.

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Passageiros do comboio do Tua Foto Arq.Raízes, Blog “Amigos de Pensar Ansiães”, s/data (provavel anos 70, sec. XX)

2. GALERIA DE INFORMANTES E TRAJETÓRIAS BIOGRÁFICAS O ambiente físico e natural do vale do Tua atrás descrito tem vindo sucessivamente a ser transformado pelo trabalho de seus habitantes e pela ação de todos quantos participaram na sua história económica e social. Aí, como a nível nacional, foi fator inegável de mudança a alteração das comunicações e meios de transporte registada sobretudo na viragem do séc XIX para o séc XX, a qual seria marcada pela incontornável influência da linha férrea do Tua, marco na história oitocentista dos caminhos-de-ferro portugueses, bem como pelo seu profundo impacto na vida e na história das populações locais desta região, sobretudo durante todo o século passado. Define-se então neste capítulo o espaço social historicamente construído nesse ambiente físico e natural. Para isso faz-se a caracterização sociodemográfica de um universo populacional representativo dessa contextualidade es22


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pácio-temporal, constituído por: 48 indivíduos, idade média de 80 anos, selecionados e entrevistados nesse âmbito. Esboça-se a seguir um painel histórico sociológico significativo de alguns desses “agentes eficientes”011 (individualidades sociais com atributos e atribuições), graficamente representados no seu conjunto e da sua correspondente “superfície social” 012 (isto é, a quadrícula dinâmica de movimentos e posições individuais e sociais), com o qual se ilustra, documenta e analisa a qualidade desse universo. Importa, porém, explicitar previamente a necessária prevenção sociológica sobre a chamada “ilusão biográfica”, a evitar quando se trabalha com histórias de vida como aqui acontece, a qual nos orienta na interpretação dinâmica quer das trajetórias de vida e acontecimentos biográficos narrados pelos agentes eficientes, quer da superfície social que as suas posições e movimentos permitem delinear. “Os acontecimentos biográficos definem-se como colocações e deslocamentos no espaço social, isto é, mais precisamente nos diferentes estados sucessivos da estrutura de distribuição das diferentes espécies de capital que estão em jogo no campo considerado. O sentido dos movimentos que conduzem de uma posição a outra (…) evidentemente se definem na relação objetiva entre o sentido e o valor dessas posições num espaço orientado. O que equivale a dizer que não podemos compreender uma trajetória (…) sem que tenhamos previamente construído os estados sucessivos do campo no qual ela se desenvolveu e, logo, o conjunto das relações objetivas que uniram o agente considerado (…) ao conjunto dos outros agentes envolvidos no mesmo campo e confrontados com o mesmo espaço dos possíveis. Essa construção prévia também é a condição de qualquer avaliação rigorosa do que podemos chamar de superfície social, (…) isto é, o conjunto das posições simultaneamente ocupadas num dado momento por uma individualidade biológica socialmente instituída e que age como suporte de um conjunto de atributos e atribuições que lhe permitem intervir como agente eficiente em determinados campos. (…) [Sendo] o individuo, a pessoa, o “eu”, “o mais insubstituível dos seres”… para o qual nos conduz irresistivelmente uma pulsão narcísica socialmente reforçada (…)”013 011  Conceito teórico desenvolvido pelo reputado sociólogo francês Pierre Bourdieu 012  Ibidem. 013  BOURDIEU, Pierre – “A ilusão biográfica”. In Usos e Abusos da Historia Oral, p. 190-191.-

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Atendendo a esta perspetiva sociológica que alerta para a necessidade de contornar a ilusão biográfica, consideram-se, esquematicamente, como “agentes eficientes” e correspondente “superfície social” os informantes privilegiados que entrevistámos e as respetivas narrativas orais produzidas no quadro da pesquisa de campo efetuada sobre história e memórias do vale e da linha do Tua e em interação com os investigadores sociais com os quais colaboram no processo de construção do conhecimento do objeto em estudo. Os seus testemunhos e depoimentos constituem um importante capital de informação e conhecimento num amplo espaço de possíveis inteligibilidades, compondo, ao mesmo tempo, uma galeria humana social e cultural de singular expressividade simultaneamente do espaço socioambiental e das ambiências biográficas e socioprofissionais. Nessa medida são sucintamente apresentados no seguinte painel (quadro nº1) que contempla variáveis biográficas e de género, temáticas e cronológicas, relevando nestas últimas os principais períodos ou arcos temporais do sec XX a que fundamentalmente se reportam as suas narrativas. 2.1. Universo populacional do Vale do Tua A tabela e gráficos seguintes construídos a partir da agregação de elementos dispersos e diversos mas globalmenre caraterizadores, possibilitam uma visão de conjunto dos agentes eficientes e suas trajetórias e da superfície social que configuram indicadores de orientação para a reconstituição sócio-histórica do vale, rio, linha e comboio do Tua que assim se empreende. Quadro nº1 – Galeria de informantes: “agentes eficientes” e “superfície social” Nºentrevº / Nome / idade

Naturalidade / Residência

1 / A.O. 80 anos

2 / A.S.S. 83 anos

Notas biográficas

Género

Palavras-chave

Fiolhal - C.A. (Carrazeda de Ansiães)

Professora aposentada, Ensino Primário, proprietária rural e dona de quinta na encosta do Tua

Feminino

Volfrâmio; II Guerra Mundial; vinha com benefício Anos 1940 - 2009

Foz Tua - C.A.

Pequeno proprietário e ex ferroviário

Masculino Contrabando de volfrâmio / Comboio do Tua. Anos 1940 - 1970.

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Maria Otilia Pereira Lage

Nºentrevº / Nome / idade

Naturalidade / Residência

Notas biográficas

Género

Palavras-chave

3 / A.J.A. 77 anos

Foz Tua - C.A.

Ex-ferroviário aposentado, filho de antigo maquinista.

Masculino linha do Tua / Ferroviários / Acidentes. Anos 1930 - 1975

4 / J.A.T. 77 anos

Sentrilha – C.A.

Agricultor, ex-pastor e ex-emigrante na Alemanha

Masculino Vale do Tua; linha do Tua / Volfrâmio / Emigração. Anos 1940 - 1980

5 / M.F.L. 82 anos

Pombal - C.A.

Pequena proprietária e comerciante, viúva de ex-emigrante na Alemanha

Feminino

6 / A.J.S. 63 anos

Porto

Veterinário, proprietário Masculino linha do Tua- Construção / de antiga família de empreiteiro / Barragem do C.A., ex-presidente da Tua. Anos 1900 - 1990 Câmara C.A., bisneto do empreiteiro da linha do Tua, João da Cruz

7 / M.A.F.M.C.C. 82 anos

Castanheiro do Norte, C.A.

Farmaceútica aposentada, neta de antigo engenheiro da linha do Tua

Feminino

8 / F.Q. 66 anos

Amieiro, Alijó.

Ferroviário e chefe de estação da linha do Tua, aposentado presidente da Junta de Freguesia de Amieiro - Alijó

Masculino linha do Tua / S. Tomé e Príncipe / África / serviço militar. Anos 1970 - 1990

9 / N.C. 77 anos

Mirandela

Alfarrabista, bibliófilo, dono da centenária Livraria Académica do Porto.

Masculino Comboio do Tua / Mirandela / Inauguração linha do Tua. Anos 1940 - 1970

10 / M.S. 93 anos

Leça da Palmeira Matosinhos

Viúva e curadora da obra do escritor Jorge de Sena, reside em Santa Barbara, USA

Feminino

linha do Tua / Ponte de Abreiro / Comboio do Tua. Anos 1940 - 1950

11 / ACCA 62 anos

Barca de Alva

Viúva de ex-ferroviário da linha do Tua, descendente de ferroviários, foi guarda de linha e residiu na estação do Caminho de Ferro de Mirandela

Feminino

Ferroviários / guarda de linha / estação de Frechas / estação de Mirandela / linha do Tua / fado / religião popular / mobilidade social Anos 1950 - 1980

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Comboio do Tua; Termas S. Lourenço / transporte carros bois / Emigração. Anos 1940 - 1980

linha do Tua – Construção / Comboio do Tua / apeadeiro Castanheiro. Anos 1890 - 1940


“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

Nºentrevº / Nome / idade

Naturalidade / Residência

Notas biográficas

Género

Palavras-chave

12 / M.J. 90 anos

Mirandela

Ex-ferroviario da linha do Tua – trabalhador da via e chefe de distrito

Masculino linha do Tua / condições de trabalho ferroviário / II Guerra Mundial / Fome / Companhia Nacional Anos 1940 - 1960

13 / P.A. 80 anos

Mirandela

Ex-ferroviario da linha do Tua – assentador de travessas, revisor e inspector

Masculino linha do Tua / ferroviários / 25 Abril. Anos 1950 - 1980

14 / M.L. 104 anos

Areias - C.A.

Proprietária agrícola

Feminino

Construção da linha do Tua / ferreiros / ferramentas / almocreves Anos 1880-1960

15 / A.M. 77 anos

Areias - C.A.

Enfermeira reformada

Feminino

Moçambique / Porto / Escola Primária / Termas S. Lourenço Anos 1960 - 1980

16 / J.R. 64 anos

Coleja - C.A.

Ferroviário reformado, ex-chefe de estação do Tua.

Masculino Pesca / Agricultura / África / Mobilidade social. Anos 1950 - 1990

17 / M.LLS 91 anos

Jerusalém do Romeu Mirandela

Professora Ensino Primário

Feminino

18 / J.C.OM 80 anos

Leça da Palmeira / Matosinhos Porto

Engenheiro, bisneto do fundador da Casa Clemente Meneres, técnico superior das Indústrias Jomar e gerente da Empresa Menéres.

Masculino Família Clemente Menéres / Romeu / Porto / Matosinhos / Brasil / Agricultura transmontana. Anos 1910 - 1990

19 / V.A.P. 71 anos

Salsas – Bragança.

Ferroviário reformado da CP. em estações da linha do Tua e noutras vias férreas e guarda da Secção Museológica Ferroviária de Bragança.

Masculino Material circulante / espólio museológico / locomotivas antigas. Anos 1900 - 1990

20 / C.A.G. 71 anos

Mirandela

Operário, serralheiro efetivo da CUF (Companhia União Fabril) em Mirandela desde 1963 e encarregado geral da conservação e do fabrico, de 1970 a 1987.

Masculino História da CUFMirandela / fábrica / operário / indústria em Trás-os-Montes. Anos 1960 - 1980

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Sociedade Clemente Meneres / Feitor / Romeu / Macedo / Bragança Anos 1930 - 1980


Maria Otilia Pereira Lage

Nºentrevº / Nome / idade

Naturalidade / Residência

Notas biográficas

Género

Palavras-chave

21 / A.F.S. 82 anos

Mirandela

Jornalista imprensa regional de Mirandela, funcionário do MAP, dirigente desportivo e dos BVM e Presidente Centro de Gestão da Empresa Agrícola do Vale do Tua.

Masculino Família de ferroviários e agricultores / CUFMirandela / História do Cachão / 25 de Abril / Camilo Mendonça / Trigo Negreiros / complexo fabril / empreendimento agro-industrial / notáveis locais pioneiros do Comboio do Tua Anos 1930 - 1980

22 / H.R.N. 79 anos

Tomar Mirandela

Técnico de eletro mecânica da CUF no Montijo, Lisboa e Mirandela.

Masculino História da CUF / Quimigal Anos 1950 - 1960

23 / N.P. 54 anos

Mirandela

Engenheiro e funcionário da empresa CUF - Mirandela, desde 1979.

Masculino História da CUF Mirandela. Anos 1970 - 1980

24 / A.J.R. 70 anos

Mirandela

Ex-ferroviário da linha do Tua, electricista da CP desde 1960.

Masculino Oficinas da Estação de Mirandela / mobilidade sócio-profissional. Anos 1960 - 1980

25 / J.E.G. 70 anos

Codeçais Moncorvo

Ex-ferroviário da linha do Tua, servente e chefe de eletricistas das Oficinas, desde 1980.

Masculino Oficinas da Estação de Mirandela / mobilidade sócio-profissional. Anos 1960 - 1980

26 / A.D.J. 63 anos

Moncorvo Barreiro

Ex-ferroviário da linha do Tua, operário da CP desde finais dos anos 1960.

Masculino Oficinas da Estação de Mirandela / Família Ferroviária. Anos 1970 - 1980

27 / B.S.C. 65 anos

Grijó – Macedo de Cavaleiros

Ex-ferroviário da linha do Tua, funcionário da CP desde 1975, como auxiliar de estação em Bragança e ajudante de condutor.

Masculino Estação de Bragança / CP / mobilidade social. Anos 1970 - 1990

28 / L.Q.F.T. 65 anos

Mirandela

Ex-ferroviário da linha do Tua, entrou para a CP em 1975, como assentador e chegou a Supervisor.

Masculino Carreira de ferroviário / CP / Centenário da linha do Tua / Cachão / Romeu / Transporte ferroviário mercadorias / mobilidade social. Anos 1970 - 1990

27


“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

Nºentrevº / Nome / idade

Naturalidade / Residência

Notas biográficas

Género

Palavras-chave

29 / R.R.Q. 71 anos

Lousa (Moncorvo) / Mirandela

Ex-ferroviário da linha do Tua, começou como fogueiro e em finais dos anos 1970 passou a maquinista.

Masculino Carreira de ferroviário / melhoria de condições de vida e trabalho / 25 de Abril / mobilidade social. Anos 1960 - 1980

30 / A.S. 65 anos

Codeçais C.A.

Ex-operário da CP, ex-emigrante no Luxemburgo, reformado e agricultor.

Masculino Serviço militar em Africa / Guerra Colonial / emigração / mobilidade sócio-profissional / Caldas de S. Lourenço. Anos 1960 - 1980

31 / L.A. 73 anos

Brunheda CA.

Ex-ferroviário da CP, maquinista na Linha da Póvoa, reformado, agricultor.

Masculino Acidentes ferroviários / horários do comboio / guardas de linha / tradições / Caldas de S.Lourenço. Anos 1960 - 1980

32 / L.G. 79 anos

Codeçais C.A.

Ex-ferroviário da CP, durante 34 anos, nas estações e revisor nos comboios das Linhas do Douro e do Tua.

Masculino linha do Tua / ferroviário / Mobilidade sócioprofissional / agricultor / Protestos contra encerramento da linha do Tua. Anos 1950 - 1990

33 / M.J.M.L.C. A.M. 81 anos

Angola

Filha do Dr. João Lopes da Cruz Júnior, médico natural do concelho de Carrazeda de Ansiães, neta de João da Cruz, empreiteiro da linha do Tua.

Feminino

Família João da Cruz, Empreiteiro da linha do Tua / Falência / linha do Tua - Construção (19001905). Anos 1905 - 1950

34 / M.J.L.C 82 anos

Angola

Neta de João da Cruz, empreiteiro da linha do Tua, filha Dr. João Lopes da Cruz Júnior, médico natural do conc.de Carrazeda de Ansiães.

Feminino

ibidem

35 / M.FLC 83 anos

Angola

ibidem

Feminino

ibidem

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Maria Otilia Pereira Lage

Nºentrevº / Nome / idade

Naturalidade / Residência

Notas biográficas

Género

Palavras-chave

36 / J.M.LC 80 anos

Angola

Neto de João da Cruz, empreiteiro da linha do Tua, filho Dr. João Lopes da Cruz Júnior, médico natural do conc.de Carrazeda de Ansiães.

Masculino ibidem

37 / M.C. 66 anos

Setúbal / Trásos-Montes / Lisboa

Professor universitário, ex-jornalista e autor da letra da canção O Comboio do Tua”. Viúvo de transmontana continua ligado a Trásos-Montes por laços familiares.

Masculino Festival da Canção (1979) / Canção O Comboio do Tua / Trás-os-Montes. Anos 1970 - 1980

38 / F.MCV 63 anos

Porto / Brasil

Cantora e fadista portuguesa, com uma carreira musical em Portugal e Brasil, com numerosos discos gravados de música ligeira e tendo atuado com Amália Rodrigues, na Televisão, e em festivais. Intérprete da canção “O comboio do Tua” - 4º lugar no Festival da Canção de 1979 com êxito nacional.

Feminino

Canção Comboio do Tua / Ferroviários do Tua / Emigração para o Brasil / Música ligeira / Fado. Anos 1960 / 1980

39 / MJS 91 anos

Pinhal do Norte – C.A.

Proprietária agrícola, filha de agricultores do Vale do Tua e mãe de dois comerciantes de Mirandela e de uma professora de ensino primário

Feminino

Vale do Tua / Vida rural / Agricultura / Comboio do Tua / Termas de S. Lourenço / Volfrâmio / contrabando de minério / Eleições Humberto Delgado (1958) / II Guerra Mundial / Fome / Racionamento / Vinho do Porto / Poesia popular / mobilidades / emigração / Guerra Colonial / Regedor / Eleições no Estado Novo Anos 1940 - 1980

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“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

Nºentrevº / Nome / idade

Naturalidade / Residência

Notas biográficas

Género

Palavras-chave

40 / F.A. 78 anos

Carrapatosa / Lavandeira, C.A.

Ex-ferroviário, entrou para a CP em 1957, trabalhou em vários serviços e linhas férreas, foi depois fogueiro e maquinista da linha do Tua desde 1967 até se reformar em 1995. Conduziu locomotivas a vapor e a Diesel, honra-se de ter conduzido na linha do Tua, na década de 1980 o então presidente da República, Mário Soares.

Masculino Maquinista / Material circulante / comboio a vapor / Máquinas Diesel / linha do Tua / Mobilidade social / Formação profissional / Sindicato / 25 de Abril. / Viagem histórica / horários / CP / locomotivas antigas / Barragem do Tua / transporte ferroviário / Desenvolvimento Anos 1950 - 1990

41 / M.C.M 85 anos

Beira Grande C.A. / Penafiel

Descendente dos fidalgos das Casas Solarengas de Selores e Alganhafres, estudou em Bragança e Lamego, filha de trabalhador de quintas do Douro, foi regente escolar e professora de ensino prmário, em várias localidades transmontanas e no distrito do Porto. Quando estudante em Bragança fez diversas viagens no Comboio do Tua.

Feminino

Comboio do Tua / Canções populares / Casa brasonada de Selores / Casa brasonada de Alganhafres / aristocracia rural / Falências / Carrazeda de Ansiães / João da Cruz / empreiteiro da linha do Tua / Regente Escolar / Ensino Primário / Emigração / transportes. / Desenvolvimento Anos 1940 - 1970

42 / M.PMV 57 anos

Porto / Ribeirinha V.F. / Lavandeira - C.A.

Técnica tributária dos Serviços de Finanças no Porto, licenciada em História, tem casa e raízes familiares em Trás-os-Montes, região do Vale do Tua.

Feminino

linha do Tua / Estação da Ribeirinha / Comboio do Tua / rio Tua / Cachão / Festa da Srª da Assunção / Marechal Carmona / Tifo / Galegos / Apelidos. Anos 1970 - 1990

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Maria Otilia Pereira Lage

Nºentrevº / Nome / idade

Naturalidade / Residência

Notas biográficas

Género

Palavras-chave

43 / A.FLS. 88 anos

Monte Meões, aldeia do Romeu – c. Mirandela / Porto.

Engenheiro desde 1950, Masculino Casa Clemente Menéres trabalhou na construção / Romeu / linha do de várias barragens do Tua / Comboio do país, no Metropolitano Tua – estações e de Lisboa e, a partir apeadeiros / Engenheiro de 1958, na EDP, até / Barragens EDP / Paiva se reformar. Passou a Couceiro / conspirador infância em Jerusalém monárquico / Ferroviário do Romeu, neto de / Capataz / Professora administrador da Casa Ensino Primário / Clemente Menéres do Empreendimento agroRomeu e filho de exindustrial ferroviário da linha do Anos 1920 - 1970 Tua.

44 / E.M. 65 anos

Mirandela

Engenheiro aposentado da Câmara de Mirandela, é desde então responsável do Metropolitano ligeiro de Mirandela, empresa criada pela Câmara Municipal para transporte coletivo de passageiros em meio ferroviário ligeiro de superfície, sendo a sociedade constituída por Câmara Municipal de Mirandela (90%) e CP (10%). A partir de 1995, a nova empresa começou a explorar o troço entre Mirandela e Carvalhais e passou a assegurar, desde Out. 2001, o serviço no restante troço activo da linha do Tua (de Tua a Mirandela). A ligação ao Tua foi suspensa em 2008, na sequência de 2 acidentes graves na linha do Tua, é desmantelada a automotora e só assegurada a ligação Carvalhais – Cachão.

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Masculino Empresa do Metro de Mirandela / Mobilidades / Transportes urbanos / linha do Tua (encerramento) / acidentes ferroviários / Acessibilidade / Câmara de Mirandela / CP. / Desenvolvimento Anos 1990 - 2010


“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

Nºentrevº / Nome / idade

Naturalidade / Residência

Notas biográficas

Género

Palavras-chave

45 / MFLCA 79 anos

Angola Luanda

Neta de João Lopes da Cruz, empreiteiro da linha do Tua (troço de Mirandela a Bragança) casado com uma senhora natural de Ribalonga, aldeia de Carrazeda, e filha do médico militar, dr. João Lopes da Cruz Júnior, assinalado na toponímia de Carrazeda de Ansiães.

Feminino

46 / VMFBP 80 anos

Bragança / Lx

Descendente de antiga família transmontana de ascendência espanhola, residente em Lisboa, filho de juíz que exerceu em Bragança, cidade onde viveu a infância e bisneto por linha materna do Conselheiro Abílio Augusto de Madureira Beça, político promotor da construção do 2º troço da linha do Tua, Mirandela-Bragança e empreendedor durante os cargos políticos que teve na cidade e no distrito de Bragança.

Masculino Família do conselheiro Abílio Beça [Vinhais, 1856 - Salsas, 1910] / Ascendência espanhola / Governador Civil de Bragança / político transmontano / Presidente da Câmara de Bragança / Deputado pelo distrito de Bragança / promotor da linha do Tua (MirandelaBragança) / escolas primárias / Historia de família / Desenvolvimento Anos 1900 - 1950

47 / EPMGQ 75 anos

Lisboa

Bisneto de Tristão Guedes Correia de Queirós, 2.º Conde da Foz (1849-1917), grande colecionador de obras de arte e exproprietário do Palácio Foz (Restauradores, Lisboa) onde deu festas tornadas célebres na alta sociedade lisboeta. O seu nome ficou na história dos caminhos- de- ferro, pelo financiamento da construção das primeiras linhas férreas em Portugal.

Masculino História de família / Conde da Foz / Caminhos de Ferro Portugueses / Investimentos nos caminhos de ferro / Financiamento / linha do Tua-construção. Anos 1880 - 1910

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I Guerra Mundial / Campanhas militares portuguesas Africa / Linha Tua-construção / Toponímia Carrazeda Ansiães / Luanda / Clube Transmontano / Família Lopes da Cruz / Emigração-África e Brasil. Anos 1900 - 1950


Maria Otilia Pereira Lage

Os gráficos que se seguem foram elaborados tendo em conta quatro variáveis selecionadas para categorizar a diversidade de elementos constantes do quadro anterior: escalões etários, género, naturalidade e profissão dos entrevistados. Neles se configura o perfil social dos indivíduos considerados que permite saber a partir de que posição social falam esses informantes privilegiados. Observados separadamente e no conjunto proporcionam uma leitura mais imediata e explícita da representatividade do universo populacional e possibilitam ainda evidenciar características gerais dominantes das trajetórias e histórias de vida dos autores das narrativas orais, “ agentes eficazes” que colaboraram na investigação de que também foram objeto e que, por sua vez, entretecem uma singular “superfície social” e história quotidiana do vale do Tua.

entrevistados

Gráfico nº1 – Distribuição por escalões etários 20 10 0

15

14

11

5 “+90”

2 90 - 80

80 - 70 anos

70 - 60

Fonte - Quadro nº1 –Galeria de informantes. MOPL, 2015.

40+60

Grafico nº2 - Distribuição por Género Feminino 17 Masculino 30

Fonte: Quadro nº1 –Galeria de informantes. MOPL, 2015.

33

60 - 50


“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

Gráfico nº3 – Distribuição por Profissões

36+4+9112613

Ferroviários 36% Operários 4% Engenheiros 9% Agricultores 11% Professor / as 9% Farmacêutica 2% Enfermeira 2% Veterinário 2% Livros / Imprensa 6% Cantora 2% Técnicos 4% Profissão desconhecida 13%

Fonte: Quadro nº1 –Galeria de informantes. MOPL, 2015.

Gráfico nº 4 –Distribuição por naturalidade Lisboa 3 Porto 5 Angola 5 Douro 3 Macedo de Cavaleiros 1 Moncorvo 3 Romeu 2 Bragança 2 Vale do Tua 23

Naturalidade

Entrevistados Fonte: Quadro nº1 –Galeria de informantes. MOPL, 2015.

2.2. Painel de trajetórias biográficas representativas A precedente apresentação gráfica da caracterização do universo de atores e agentes sociais nossos aliados de investigação é agora desenvolvida e parcelarmente ilustrada pela transcrição seletiva de alguns fragmentos de narrativas orais em que se descrevem trajetos de vida e trajetórias profissionais desses agentes. Com esta galeria de protagonistas locais e suas vozes únicas se compõe um autóctone grupo coral que, completando e enriquecendo o traçado painel de informantes, contribui para um conhecimento concreto densificado e mais 34


Maria Otilia Pereira Lage

próximo das histórias de vida que, por sua vez, constituem a ancoragem da história vivida do Tua. Pode intuir-se, com base na perspetiva sociológica abordada, que o traçado seletivo desta galeria de “agentes eficientes” e suas trajetórias concorrem ativa e explicitamente para a definição dos contornos nítidos de uma dinâmica e diacrónica “superfície social” característica das populações desta sub-região transmontana do vale do Tua. A sua linha férrea e o comboio constituem o eixo organizador do conjunto de narrativas de vida e de trabalho que a seguir se transcrevem parcialmente, estruturadas em dois sub - núcleos: Trajetos de vida no vale do Tua; Trajetórias de trabalho na linha e comboio do Tua. Os Ferroviários. 2.2.1. Fragmentos de narrativas e trajetos de vida Viver no vale do Tua nos últimos cem anos significa ser marcado incontornavelmente pela entrada inaugural do caminho-de-ferro e pela cadência de chegadas e partidas dos comboios num território até então quase isolado pela falta de acessos e de transportes. Como se poderá ver, são de assinalar, entre muitos outros aspetos conformadores e típicos da vida quotidiana das populações ribeirinhas do Tua merecedores de todo o interesse e atenção, fenómenos constantes e sucessivos que afetaram profundamente a história e a vida das popluções locais como designadamente as contantes migrações internas e os sucessivos surtos e ciclos de emigração. ● Agricultor de aldeia ribeirinha do Tua “…Sou analfabeto… só frequentei a escola durante 2 ou 3 meses, que nessa altura funcionava na aldeia de Pinhal do Norte, a aldeia mais próxima… fui rapidamente guardar gado (ovelhas) o que fiz até aos 20 anos de idade. Como comecei a guardar gado muito novo e não podia fazê-lo, fui preso… Havia um guarda na Carrazeda, o Redondo, que era muito mau e não me podia ver com as ovelhas. Um dia, multou-me e como não paguei a multa, estive preso, na Carrazeda, durante 10 dias... …O meu pai tinha as ovelhas para fazer queijo que se vendia bem em Carlão, Candedo e Porrais, terras do lado de lá do rio Tua, que as mulheres atravessavam a pé, com a canastra dos queijos à cabeça. Como estas terras tinham pouco gado, os queijos vendiam-se muito bem… 35


“TUA” HISTÓRIA VIVIDA

…Com 20 anos casei - me com uma mulher da Santrilha que já tinha 35 anos. Isto foi em 1952. Ela vivia com a mãe que tinha enviuvado e eu passei a ser o homem da casa e o guardião das duas... Nessa altura também tive bois para trabalhar no campo. Normalmente, ia comprá-los à feira a Candedo. Criava-os, trabalhavam e depois, passados anos, vendia uma junta de bois por 4 ou 5 contos... …Mais ou menos em 1968, emigrei para França para arranjar melhores condições de vida e poder dar estudos aos filhos. Fui a salto, com um grupo de 3 ou 4… Paguei à volta de 600 escudos a um passador que orientava a passagem na fronteira de Chaves. …Até Mirandela fomos de comboio e daqui a Chaves fomos de camioneta. …Vesti duas andadas de roupa e não levei mais nada... para termos as mãos livres…. Não estava permanentemente em França…. fazia trabalho sazonal numa quinta, onde trabalhavam 20 portugueses na agricultura…. Mas lá não era preciso andar a cavar: havia máquinas para tudo… Regressei de vez em 1976 e agora vivo com a reforma de cá e com a de lá… …Os três filhos que tive foram estudar para o liceu de Mirandela. A mais velha fez o Magistério Primário em Bragança… ia de comboio e demorava mais ou menos 6 horas para lá chegar... …Quando me casei, para ir a Carrazeda, demorava mais ou menos 2 horas. A cavalo, não chegava a 1 hora. Íamos à feira, às Finanças, à Conservatória para registarmos os filhos...e outras coisas mais... …O meu Pai ainda andou na 1ª Grande Guerra… Também me falava sobre a construção da linha do Tua, onde andou muita gente daqui e de longe. Até vieram para cá muitos Galegos, os quais viviam mal. Trabalhavam na linha e nas vinhas. Na construção da linha morreu muita gente: os galegos enterravam-nos por lá, onde calhava!...[Informante 4 –duas entrevistas em 2010 e 2011] *** • Proprietária rural, farmacêutica aposentada e neta de engenheiro ligado à linha do Tua “…A linha do Tua é fabulosa mas mete um bocado de respeito… uma vez fiz a viagem de comboio até Mirandela… fui só mesmo para ver… tive medo… era de respeito… naquela descida do Castanheiro para o rio Tua é que as minhas 36


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tias ainda têm uma propriedade com cortiça, laranjas, azeite… iam lá regar as laranjas mas nunca me deixaram ir porque era muito longe… é na encosta do rio Tua que vai ser alagada pelas obras da barragem… …Sou a mais nova dos netos de Manuel Maria Lopes Monteiro, engenheiro civil, nascido em 1855 e falecido em 1923. Licenciou-se em 1883 / 84. Vivia na aldeia do Castanheiro. Formou-se no Porto, ainda não existia a linha do Douro em toda a sua extensão. Assim, viajava de barco até à estação da Ermida, fazendo o restante trajeto de comboio. Quando começou a trabalhar, ganhava “5 escudos em ouro por mês” sempre ouvi dizer isto na família.... Viveu em Bragança, onde foi engenheiro das obras públicas. Também esteve a exercer as mesmas funções em Mirandela e em Vila Real.… teve um papel importante na construção da linha do Tua: isso estava bem documentado em vários livros de família que estarão nas mãos de um alfarrabista, uma vez que foram vendidos. Foi diretor das obras públicas em Bragança. Antes de falecer, fez as partilhas: a casa do Castanheiro ficou para 4 dos filhos; a casa de Arnal coube a 2 dos filhos e a casa da Fontelonga ficou para os restantes 3 filhos. A casa da Fontelonga, muito posteriormente, foi doada pela tia à igreja e funciona lá atualmente o lar de idosos. Também, na aldeia do Castanheiro, foi doada uma propriedade pela minha tia Isaura para ser construída a Escola Primária que ainda hoje lá está. Parte da casa do Castanheiro, a frontaria, a certa altura foi vendida a um sujeito que veio de África e eu fiquei com a parte de trás da casa, que é a mais antiga, a original, onde existe ainda um enorme lagar, a pia de pisar o vinho, uma trave enorme onde se fazia a prensa e tem ainda aquelas lojas todas... Na aldeia do Castanheiro havia três grandes famílias: os Monteiros, os Frias / Filipes e os Freitas… no Verão, a nossa família frequentava muito as termas de S. Lourenço…. íamos de burro e cavalo e atalhávamos pela aldeia do Pombal. Como se vivia no Castanheiro no tempo da minha juventude? De acordo com o que observava, as pessoas viviam muito mal… tinham vidas muito sacrificadas e trabalhavam, muitas vezes, em condições difíceis. Por exemplo: para lavarem a roupa, deslocavam-se a pé até ao rio Tua, onde faziam as barrelas com cinza e estendiam lá a roupa. De regresso, subiam com tudo à cabeça e sempre a subir até à aldeia. Posteriormente, na quinta da Lavandeira, que tinha uma mina de água belíssima, construíram um lavadouro público, em pedra, o que facilitou a vida das mulheres. As crianças andavam sempre 37


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descalças e com as roupas bastante esfarrapadas. As pessoas alimentavamse mal. Lembro-me de ter assistido a refeições feitas em casa dos caseiros, as quais consistiam num prato de batatas cozidas que cada um ia molhando, à vez, em azeite e acompanhava com pão centeio…. o centeio era negro, negro… Quando comiam pão de trigo, era uma festa... o peixe do rio aparecia mas tinha muitas espinhas… Para se aquecerem, as mulheres, que eram umas heroínas, iam à lenha, traziam molhos enormes de agulhetas que recolhiam no monte. Cultivavam o azeite, as laranjas e a cortiça…. mas víamos as estrelas… …As pessoas utilizavam o comboio para se deslocarem até Bragança. Apanhavam o comboio no apeadeiro do Castanheiro do Norte que tinha lá um funcionário... Quando tinham de se deslocar ao Porto, iam a pé até Foz-Tua apanhar o comboio…” [Informante 7, duas entrevistas em 2011 e 2012] *** • Proprietária agrícola e pequena comerciante de aldeia ribeirinha do Tua Nasci a 10 de Abril de 1931, na aldeia do Pombal de Ansiães, Rua do Calvário. Casei aos 27 anos com um homem da Régua que era sapateiro de profissão. Tive 4 filhos: 2 raparigas e 2 rapazes. Quando chegou a altura de os filhos estudarem, o meu marido foi obrigado a emigrar para a Alemanha... A casa onde morávamos também era pequena e era preciso arranjar uma maior. Emigrou mais ou menos por volta de 1966 e foi trabalhar para uma fábrica de ferro em Hamburgo. Esteve lá 15 anos. Emigrou através de um mediador. Até à sua saída, foi o único sapateiro da terra. Tinha muita freguesia e fazia calçado para gente de Carrazeda, do Amieiro, etc. …Eu fiquei a explorar um pequeno comércio aqui no Pombal e a educar os filhos. Desta aldeia foram várias pessoas para a Alemanha e para a França. Na França ainda lá vivem algumas famílias. Os meus filhos fizeram o liceu em Bragança. Deslocavam-se para esta cidade pela linha do Tua, de comboio, que apanhavam na estação de S. Lourenço para onde iam a pé ou a cavalo… a cavalo demoravam à volta de 1 hora... Eu ia com alguma frequência a Bragança e sempre de comboio. Só passei a viajar de comboio para o Porto quando os filhos para lá foram estudar, os que seguiram o ensino superior... Eu só tive uma irmã que faleceu quando fez 51 anos, com um cancro na garganta. …quando eramos mais novas discutíamos 38


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às vezes por causa do tamanho das nossas orelhas, uma porque as tinha muito grandes e a outra porque as tinha muito pequenas. A nossa mãe, para pôr fim à discussão dizia: ”orelhas grandes, vida longa; orelhas pequenas, vida curta...”. E, na verdade, a que tinha as orelhas pequenas, partiu aos 51 anos de idade e a outra irmã ainda está viva para contar estas histórias... …Fiz a 4ª classe na escola do Pombal. Gostava muito de ler e os da família Lima que tinham muitos livros emprestavam-mos. Por exemplo, o engenheiro Lima pôs-me à disposição os livros do seu escritório. Lembro-me que trouxe de lá um livro que me marcou para o resto da vida. Chamava-se “Saúde e Amor na vida sexual” e era de um escritor italiano. Havia, no Pombal, outra família importante, a família dos Lebres que eram morgados. Esta terra “produziu” 3 governadores civis: o Dr. António Luís Freitas, que foi governador civil de Bragança. Os outros dois foram o Eng. Raúl Lima e o Dr. João Noronha… …No meu tempo não havia muita gente do Pombal a trabalhar na estação de S. Lourenço. No entanto, um homem do Pombal, de nome Manuel Pinto, esteve muitos anos a trabalhar na estação, mas a gente que lá trabalhava vinha mais do Amieiro. Daqui também houve um maquinista que já morreu… …ia-se por esta linha fora para Mirandela. A viagem de ida e volta era feita no mesmo dia. Também se ia a Bragança, mas aí já era preciso lá dormir… Na altura também se ia à feira a Candedo quando era necessário comprar ou vender animais… …Naquele tempo havia muitos casamentos de raparigas com 12 anos de idade. Faziam-se para juntar fortunas de família… uma irmã do meu bisavô casou com 12 anos e teve 12 filhos… ...Quando eu andava na escola primária, as pessoas passavam mal: havia muitas necessidades… Nós, graças a Deus não… tínhamos os produtos da terra… e o meu Pai caçava. Usava um “enchoeiro” (armadilha) para apanhar perdizes. Servia-se de uns pauzinhos (“aboízes”), onde espetava uma haste de um sombreiro já velho, com um feijão pequeno para atrair a perdiz… Por aqui nunca vi lobos, mas havia-os: iam aos currais e matavam muita ovelha. As raposas matavam muitas galinhas…. …Ainda me lembro bem da forma como se atravessava o rio, na Brunheda, antes de haver a ponte: era a pé, por cima das poldras, ou de barco… [Informante 5, duas entrevistas em 2011]

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*** • Proprietária agrícola natural de aldeia das encostas do Tua / ex-professora de ensino primário …Nasci aqui no Fiolhal que, em tempos, foi um baldio. Era um feudo. Tem casas ainda do século XVI. Foi dado a umas famílias, os Figueiredos, que vieram dos lados de Viseu e se tinham tornado conhecidos por feitos praticados na Índia… A minha bisavó, natural do Castanheiro do Norte, era filha única com muitos haveres. Casou com um rapaz de Castanheira de Pêra que tinha estudos e era irmão do Padre de lá. Dedicava-se aos negócios de lanifícios. O seu trabalho obrigava-o a deslocações de comboio até ao Pinhão e, daí até ao Tua, de mala-posta. Quando vinha, ficava instalado em casa dos pais da minha bisavó. Ele tinha 26 anos, era bonito, estudado e de boa família. Ela tinha apenas 13 anos e casaram-se. Ela dizia: “eu não me casei, casaram-me…”. Tiveram 20 filhos. Só num ano teve 3 filhos: um, em Janeiro e dois gémeos em Dezembro. Nunca amamentou os filhos pois tinha sempre uma ama de leite. Naquele tempo (séc. XIX), todo o homem de estatuto tinha uma amante, a quem a mulher fechava os olhos desde que o marido desse bom viver em casa. E isso acontecia. Sempre que tinha mais um filho, “enquanto estivesse a guardar o mês”, comia frango ao longo da semana e comia cabrito assado ao fim-de-semana… faleceu aos 85 anos… A minha mãe era do Fiolhal e era filha de um brasileiro. Sou a pessoa mais velha da família Costa Santos… Muitos jovens desta região partiram por causa da filoxera. Só em 1880 se iniciou o debelar desta doença da vinha com a introdução das cepas americanas. Independentemente desta doença, o pequeno lavrador passou sempre muitas vicissitudes: por exemplo, tinha que dar 950kgs de uvas para uma pipa de 550 litros de vinho do Porto…. então pôr filhos a estudar era dificílimo… …No Brasil, o meu avô começou a trabalhar num armazém de secos e molhados, armazém de vinho, vinagre, petróleo, arroz, feijão, grão, etc.. Como era muito sério e muito trabalhador, ganhou a confiança dos patrões que, ao fim de alguns anos, lhe propuseram sociedade… Depois de vários anos de trabalho no Brasil, regressou ao Fiolhal, em 1890, onde comprou um casal que estava à venda (propriedades dispersas que podem até não se situar na mesma aldeia). …uma curiosidade: trouxe do Brasil um cordão de ouro e um xaile de merino preto para cada uma das irmãs e um capote alentejano para cada um dos irmãos. Regressado do Brasil, não trabalhava porque recebia 40


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uma reforma. Tinha um Procurador. Quando regressou do Brasil, já havia a linha do caminho-de-ferro de Mirandela até Foz-Tua, a qual fora inaugurada em 1887. Começou a ser construída em 1884… Entretanto encetou o namoro com a senhora mestra do Fiolhal (em 1890 só havia escola no Castanheiro) e casou com ela. Tiveram uma filha apenas, a qual nunca seguiu estudos porque os pais não queriam separar-se dela …nessa altura ainda não havia o caminho- de -ferro de Mirandela para Bragança… O meu pai fez a 4ª classe na escola do Castanheiro e a minha mãe frequentou o Colégio de Tralhariz, que era particular e tinha internato. Naquele tempo, anos de 1800 e tal… pagavam 18 libras por ano e os exames da 4ª classe iam fazer-se a Moncorvo… Eu frequentei a escola primária em Foz-Tua a partir de 1938. Vivia no Fiolhal. Ia a pé para a escola e demorava mais ou menos 20 minutos. Descia pelo meio dos vinhedos e atravessava a linha do comboio pela parte debaixo da Quinta dos Smiths. A escola tinha 40 alunos, da 1ª à 4ª classe. O Fiolhal não tinha escola; no entanto, na casa da minha avó, funcionava a escola com o ensino feito por ela para aquelas crianças que não queriam ou não podiam ir para Foz-Tua ou para Tralhariz. …Estive no Tua até à 4ª classe mas, em Maio adoeci com uma hepatite... Estive muito doente e, só aos 13 anos fui para Bragança acabar a instrução primária para a escola de uma tia minha, em Formil, muito perto da igreja de Castro de Avelãs. Ia de comboio para Bragança. A viagem demorava 6horas. Lá, estava em casa da minha tia que era casada com o chefe da estação de Bragança, político ferrenho, “do reviralho”… contra a situação. Foi com este tio que me iniciei na política. Fiz a 4ª classe, fiquei distinta, mas os meus pais não me deixaram fazer o exame de admissão ao liceu. O meu pai era muito conservador e queria que a filha fosse dona de casa. Durante 7 anos aprendi a bordar, a cozinhar, etc. Aos 20 anos voltei para Bragança para estudar no liceu. Depois tive bolsa de estudo na Escola do Magistério Primário, em Bragança, onde tirei o curso de Professora de Ensino Primário… …nesses terrenos das encostas do Tua onde tenho uma quintinha que ainda se salvou de ser alagada pelas obras da barragem… aí antes era preciso “fazer o circo”, como o povo dizia, isto é, raspar toda a erva seca, o “faneco”… vem de feno… para que os incêndios que pegavam com as faúlhas do comboio se não propagassem”[Informante nº1, duas entrevistas, 2011 e 2012]

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*** • Livreiro antiquário e bibliófilo, natural de Mirandela “….Fiz a minha primeira viagem de comboio, primeiro na linha do Tua e, depois, na linha do Douro, viajando sempre em terceira classe… em 1948 / 49… Nesse dia, fiz três coisas pela 1ª vez na minha vida: andei de comboio, calcei sapatos e vesti um fato completo, de riscado, do mais barato que havia no mercado… De vale de Juncal, minha aldeia natal, até à estação de Mirandela, vim com o Pai e outra pessoa numa carrocita puxada por um macho. O meu Pai fez-me companhia na viagem, embora me recorde de uma pequena / grande peripécia acontecida nessa minha 1ª viagem. Apanhámos o comboio em Mirandela e viajámos até Foz-Tua. Aí mudamos para a linha do Douro a fim de seguir viagem até ao Porto, fazendo uma paragem acentuada na Régua. Aqui, o meu Pai saiu do comboio para ir ao bar da estação. Quando a máquina deu sinal de partida, como era deficiente físico, e não conseguia andar sem muletas, o meu pai não chegou a tempo ao comboio e viu-o partir, percebendo que o filho passaria a fazer o resto da viagem sozinho. Decidiu, então, ir falar com o chefe da estação, pedindo-lhe que transmitisse ao revisor o recado segundo o qual havia um rapazinho que viajava sózinho pela 1ª vez. O meu Pai viajou no comboio seguinte e eu esperava-o, com a mala, na estação de S. Bento. Como um azar nunca vem só, detetei que tinha perdido o chapéu do meu Pai. Sabendo que o meu progenitor era amigo, mas bastante severo, estava tremendamente receoso com a chegada dele, que, para meu grande espanto, foi então extremamente compreensivo… Nota importante: nessa altura, no comboio, viajava muita gente. …Quatro dias depois de ter chegado ao Porto, vi um anúncio no jornal que pedia um marçano para a livraria Académica. Concorri ao lugar, fui admitido e arranjei emprego para a vida inteira. Fui subindo no meu posto de trabalho até que me tornei no dono da livraria… Durante toda a adolescência, viajava para a minha terra, no Natal e no mês de Setembro, quando a livraria fechava para férias. Como fazia a viajem nestas datas, o comboio ia sempre lotado… íamos como a sardinha na canastra… …Já bem mais tarde, uma vez houve uma reunião de escritores em Vila Real, no Solar de Mateus, onde se discutiu que seria interessante criar um Centro de Documentação Transmontana. Eu afirmei nessa reunião: “ terei muito gosto em criar em Mirandela um centro para onde mandarei livros”. Isso já foi feito depois do 25 de Abril. Mandei para Mirandela livros sobre Trás-os-Mon42


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tes e fazia uma ficha sobre aquilo que mandava. De momento, haverá nesse centro, na Biblioteca Municipal, à volta de 2.000 títulos sobre Trás-os-Montes. Vou lançar agora o 5º volume sobre bibliografia transmontana… …mas já antes e quando juntei algum” dinheirito” comprei um “caixote” KodaK e, nas férias, entre os anos 1949 – 1952, fotografava as pessoas da minha aldeia. Decorridos 50 anos, resolvi fazer uma surpresa às pessoas, ampliando as fotografias e oferecendo-as a quem de direito. Constatei que muitas pessoas não possuíam uma única fotografia dos familiares e ” ficaram mais contentes com aquilo do que um gato com um chocalho”, como se costuma dizer… “Há pequenos nadas que podem fazer a felicidade das pessoas”. Em vale de Juncal foi criada uma associação cultural com o nome do meu Pai. Este local tem livros, reúne pessoas que arranjam algum dinheiro para fazer melhorias quer na aldeia, quer na própria associação. Estão agora lá também muitas das fotografias que eu tirei com o meu “caixote”. ... O fundador desta casa [Livraria Académica fundada em 1912] convidou-me a ficar com ela pois eu sempre trabalhei com livros… Por isso tenciono comemorar os cem anos da minha Livraria… e fazer uma exposição sobre A Renascença Portuguesa014 que tem os mesmos anos da livraria...[Informante nº9, uma entrevista em 2012] Como podemos concluir destes excertos de fontes orais que documentam a diversidade de trajetórias de vida das populações ribeirinhas do vale do Tua, viver e trabalhar neste meio rural sempre foi tão difícil que os que tinham ou podiam ter outras ambições cedo abalavam do seu lugar de pertença; no entanto,ligados ao torrão natal por afeições e memórias, a ele regressavam sempre. Constantes migrações internas e emigração crescente, como única via de procura de uma vida melhor para si e seus filhos, foram aqui movimentos populacionais dominantes, mormente desde que passaram a ser facilitados pelo caminho-de-ferro. 2.2.2. Trajetórias de trabalho na linha e comboio do Tua. Os ferroviários Trabalhar nesta região interior transmontana-duriense foi durante largos anos no 014  Movimento cultural português com um ideal nacionalista, surgido em 1912, no Porto, onde esteve ativo alguns anos. Foram seus principais mentores, Jaime Cortesão, Teixeira de Pascoais e Leonardo Coimbra. A Revista Águia, publicada no Porto entre 1910 e 1932, e em que colaboraram Fernando Pessoa e Mário de Sá Carneiro, era o seu órgão oficial.

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imaginário ferroviário traduzido por esta expressão émica “Ou Tua ou rua ou praias do Pinhão” que poderá interpretar-se como sinónimo de ameaça ou de última oportunidade em matéria de colocação no exercício de funções profissionais. A este título, são significativas as seguintes histórias de vida de ex-ferroviários da linha do Tua selecionadas num conjunto de 17 entrevistas feitas a pessoal ferroviário que permitem questionar tal asserção que se tornaria lugar-comum. É de destacar a sua relevância, designadamente ao nível do que demonstram sobre vinculação à profissão ferroviária, considerada acima de tudo “uma família”, a consciência social de pertença à sua terra natal, as condições favoráveis nos caminhos- -de-ferro à reprodução social e mobilidade sócio-profissional cujas manifestações diversas e diferentes etapas permeiam todos estes fragmentos de suas narrativas orais. • Pessoal Ferroviário - Vida profissional (via e estação): Carreiras / categorias “…Havia várias etapas na vida profissional de um ferroviário… pessoal trabalhador e chefes de distrito…O trabalhador da via – fazia a renovação, a manutenção e a limpeza da via (arrancava as ervas, por exemplo, dado que ainda não havia herbicidas). Na altura, as travessas de madeira estavam assentes na terra, não tinham brita, o que dava muito mais trabalho…A maioria das travessas eram feitas em pinho, mas também as havia feitas com madeira de carvalho e eucalipto…. O Chefe de Distrito (era o chefe de brigada).Os Chefe de Lanço …são atualmente os supervisores de via…julgo que é assim que lhes chamam….os distritos eram unidades mais pequenas do que os lanços. Por exemplo: toda a linha do Tua era um lanço e as sub-divisões eram os distritos / troços de Mirandela a Bragança. …isto foi feito à semelhança de Inglaterra, no tempo da Margaret Taecher… A CP deu lugar à Refer e actualmente todas as infraestruturas são da Refer… a CP só tem os comboios… …nos anos 1980 fez-se a separação das infraestruturas e do comercial… …o pessoal dos comboios eram os maquinistas, os condutores, responsáveis pela circulação, os revisores, os fogueiros, estes só quando havia máquinas a vapor… …no pessoal da estação havia os praticantes de fator, os fatores, os carregadores, os operadores de manobra, os fiéis de estação e os encarregados de apeadeiro… 44


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…o Fator era o chefe das estações pequenas. Havia Fator de 3ª, de 2ª e de 1ª. Depois passou a ser designado por letras. Também havia o praticante de fator. …as vagonetas eram usadas para transportar os carris, travessas… …ainda no tempo da Companhia Nacional houve uma reformulação das carreiras e das categorias e alterações ao regulamento da carreira… …Os chefes de lanço e os chefes de distrito tinham todos direito a casa. Por esse motivo é que havia ao longo das linhas de caminho-de-ferro várias casas que hoje ainda existem, mas vão ficando em ruínas. …Havia avaliações anuais do pessoal para efeito de mudança de escalão. Para se ser avaliado era necessário fazer formação profissional… para se fazer avaliações havia cursos de formação… …Eu cheguei a ser avaliador na linha do Tua enquanto era avaliado pelo Inspector que, por sua vez, era avaliado pelo Engenheiro da Região. …ainda cheguei a trabalhar na Estação de Santa Luzia a fazer uns jeitos… por exemplo, a um cunhado meu que às vezes tinha outros serviços a fazer… …havia um ferroviário que era de S. Mamede e que se formou em Filosofia… está no Pinhão… a estação agora só abre 3 vezes por semana… o pai dele foi carregador… eu consegui que ele fosse a fiel de estação… escreveume no facebook porque quer fazer um trabalho sobre o Jornal “ A Voz do Amieiro”… Nos ferroviários, havia a tradição de a profissão passar de pais para filhos… também sempre que morre um ferroviário a gente vai ao funeral… há solidariedade…” [Informante nº 8, duas entrevistas 2013] *** • Capataz, encarregado e fator na chefia de pequenas estações “(…) o meu pai foi sempre maquinista na linha do Tua… antes era da Companhia Nacional e só depois é que foi para a CP… isso foi aí em 1930 e tal… 1936 / 37 / 38… Nesse acidente, o meu pai partiu 2 costelas mas o fogueiro… mete carvão na máquina… não sofreu nada… o maquinista é que bateu na manivela da alavanca… …Comecei a trabalhar nos caminhos-de-ferro com 22 anos e meio, depois que saí da tropa… corri tudo, Lisboa, Ovar, Gaia, Santa Luzia na linha do Tua…, desde servente até fator que fazia o serviço de circulação e contabilidade… (…) comecei como servente… era o vassoura da estação… Na ânsia 45


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de subir na carreira, fui para Alfarelos, onde fiz o curso de Agulheiro. Fui promovido a Agulheiro e fui de novo para Foz-Tua. Entretanto, concorri para Capataz de Manobra e fui para a estação de Vila Nova de Gaia, onde estive durante 2 anos… coordenava o trabalho dos serventes… Concorri, então, para Encarregado de Apeadeiro… chefiava estações de pouco movimento… e fui colocado em Chanceleiros, estação na linha do Douro, a seguir ao Pinhão. Depois, fui para a Régua, de novo para Foz-Tua e, de seguida, para a estação de Santa Luzia da linha do Tua. Entretanto, abandonei por algum tempo os caminhos-de-ferro devido a uma transferência que considerei injusta e à não atribuição da casa a que tinha direito e fui para Foz-Tua trabalhar na empresa Cockburns. Foi então que aconteceu a revolução de 25 de Abril. Mas a paixão pelos caminhos-de-ferro era mais forte do que eu e concorri novamente, tendo sido colocado em Santa Luzia [Setembro de 1974]… Durante o tempo em que estive em Santa Luzia, tinha uma motorizada que ficava em S. Lourenço, enquanto percorria a pé o caminho até ao local de trabalho, pois não havia estrada… Saí de Santa Luzia a fim de ir frequentar, no Entroncamento, o curso de Fator. Fui depois colocado em Ferradosa, a chefiar a estação. Daí, voltei para Foz-Tua, pois o apelo da minha terra era sempre muito forte. Aqui, trabalhei como Fator… No Tua [1980-1993] tive casa como agulheiro, no bairro que lá existe para famílias dos ferroviários… era da CP… agora é da Câmara… Depois de ter trabalhado em Foz-Tua, pedi a reforma [1993]. … Trabalhei sempre muito, a uma média de 12h por dia. Havia falta de pessoal para trabalhar… Mas também ganhava… além disso tinha direito ao modelo X44 que permitia viagens gratuitas aos funcionários. Quando havia casa disponível, também podia viver nela. No caso de não haver, arrendava casa, mas pagava sempre uma renda pequena… Sempre gostei dos comboios… tinha as regalias dos caminhos de ferro… tinha passe livre do meu falecido pai… nunca quis ser polícia…” [Informante nº 3; 2 entrevistas em 2012 e 2013] *** • Maquinista …Nasci na Carrapatosa. Aos 18 anos, comecei a trabalhar nos caminhosde-ferro. Há 52 anos que vivo na Lavandeira (Carrazeda de Ansiães), onde casei. Frequentei a escola primária em Linhares. Da Carrapatosa a Linhares, demorava mais ou menos 40 minutos “a andar a pé e descalço”, “ quando ía46


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mos a brincar uns com os outros, demorávamos duas horas”. Fiz a 4ª classe: “naquele tempo, quem é que tinha estudos? Alguns ainda faziam a admissão, mas muito poucos… Quando comecei a trabalhar, depois de casar, fui para Cotas, por cima do Pinhão. Mais ou menos no ano de 1967 vim para o Tua, onde estive vários anos, mas sempre a trabalhar na linha. Depois, pedi a transferência para a tração: fui para Cernada do Vouga, um ano para Aveiro até que me matriculei na escola de Campanhã para poder ascender a fogueiro. Fui, então, para a Boavista (Porto) e depois para a Régua, mas já como fogueiro. Depois da Régua, fui frequentar a escola de Campanhã para poder ser Maquinista. Para se ser Fogueiro, a formação era de 2 ou 3 meses, mas para se ser Maquinista, era maior. Em ambos os casos tinha que se passar numa Junta Médica e no Psicotécnico. Havia maquinistas que tinham que ir todos os anos à Junta Médica, a Lisboa, ou porque tinham tensão alta ou porque se suspeitava de algum problema de coração. Por vezes ficavam impedidos de exercer durante algum tempo. Eram muito rigorosos com isso. Quando havia mudança para novas locomotivas, tinham sempre que ir à Junta Médica e ao Psicotécnico. … eu fui diversas vezes… E, sempre que mudavam de locomotiva tínhamos formação e avaliação... Tínhamos que ir à Escola de formação em Campanhã. Tínhamos formação em função das máquinas que conduzíamos e fazíamos provas escritas e provas orais. Quando tínhamos que conduzir locomotivas novas, voltávamos à Junta Médica e ao Psicotécnico. Tínhamos formação escrita quando mudávamos de locomotiva. Fazíamos provas escritas e orais… …quando mudei para o vapor, fui conduzir as Allans, que eram automotoras de cor azul no início e, depois, vermelhas. …Eram um rico material, com grande estabilidade; só eram problemáticas no Verão, por causa do calor. Por vezes deitavam a água fora; de Mirandela até ao alto de Rossas era preciso saber lidar com elas... A propósito disto, lembro-me de um maquinista que demorou uma hora e quarenta minutos de Mirandela a Bragança precisamente porque não soube lidar bem com as dificuldades que lhe surgiram por causa do calor. No dia seguinte, eu, com a mesma máquina e o mesmo calor, demorei trinta minutos. Nas subidas, era preciso abrir um bocadinho aos vasos, mas aos poucochinhos. Fomos indo assim até que no alto do Azibo abrimos os vasos todos e pusemos-lhe a água fresca da ribeira do Azibo… …as máquinas Diesel …foi das coisas boas que vieram para a linha do Tua; bastava ser cuidadoso na condução porque avarias elas não tinham... 47


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Depois vieram as Chepas (máquinas jugoslavas)… essas eram uma desgraça. Eram pior do que as Allan cem vezes. Era material péssimo; aqueciam demasiado, fugia a carga às baterias, eram um problema…. Foram os ferroviários que lhes deram o nome por causa da telenovela brasileira D. Chepa, que era transmitida na altura e por causa de elas se embalarem muito… Ainda são as que andam no metro de Mirandela. Os engenheiros não achavam graça nenhuma ao nome…. …Enquanto trabalhei na linha, fiz de tudo. Andei a meter travessas na linha, trabalho duro... mas eu tinha ambição... E foi esta ambição que me fez progredir na carreira: da linha fui para a Tração e daqui para Fogueiro… Deixei de ser eventual mais ou menos em 1960. Fui nomeado para o quadro para o Entroncamento… Depois casei-me e vim trabalhar para o Tua, já com casa para onde levei a mulher. Como tinha boas informações junto dos superiores, pedi transferência para a Tração…. Em Mirandela, fui nomeado maquinista em 70 ou 72 e aqui permaneci até me reformar. Depois, ainda fui durante meio ano destacado para a Régua porque havia lá muita formação para dar a maquinistas… Pagavam-me as deslocações, por fora. Mas, lá as máquinas andavam-se a desfazer, eu é que já as conhecia. Ainda fiz exame para Inspector, mas fiquei mal. Mas, ainda bem.... trabalhei com as máquinas a vapor, com as Diesel, com as Allans e com as Chepas… Conhecia as peças todas destas máquinas… embora tivesse formação mecânica, a prática diária ensinava-me muita coisa… era muito duro… diversas vezes, deitávamo-nos e passado pouco tempo já estavam a chamar a gente... …o maquinista a vapor era mais bem visto pelo público; este, respeitava mais a pessoa do maquinista a vapor. Depois, no tempo da Diesel, parece que já não prestavam a mesma atenção ao maquinista… Como era difícil lidar com o vapor, valorizava-se mais quem era bom maquinista e chegava à tabela. Os utentes já sabiam quem se preocupava mais e era melhor maquinista e preocupavam-se em saber quem era a pessoa que ia conduzi-los. É que naquela altura enchiam-se 3 ou 4 carruagens de pessoas que iam de Macedo trabalhar para Bragança e queriam e precisavam de chegar a horas. Por isso, estavam interessados em que o maquinista fosse bom profissional… Durante a época escolar iam muitos alunos no comboio e era preciso chegar à tabela por causa das horas deles; no entanto, nem todos os maquinistas pensavam do mesmo modo e havia aqueles que não se preocupavam tanto com o rigor horário… Por falar em ser rigoroso… o Zé Alvarenga (já falecido) conduzia a 48


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máquina 81, que era a mais fraquinha que lá havia e andava sempre atrasado. Eu conduzia a 111, que era a melhor máquina que lá havia. Depois, eu passei para a 81 e ele para a 111. Eu comecei a conhecer a máquina, o meu ajudante também era bom rapazinho e, ambos, lá nos íamos desenrascando, sobretudo na etapa entre Mirandela e os Cortiços, onde se patinava mais e o que é certo é que chegávamos à tabela. O Zé Alvarenga, com a 111, chegava sempre atrasado... A 111 era a melhor máquina a vapor que havia na linha do Tua… A 81 era a máquina mais antiga e a mais fraquinha que lá havia. Andava sempre atrasada… A 84 era uma maravilha. O percurso entre o Romeu e os Cortiços demorava quase sempre 20 minutos. No Verão, atrasava-se por causa da folha do sobreiro que caía nos carris e por causa da humidade… Quando vieram as Chepas, havia um comboio que chegava à meia-noite… até Rossas, era a subir e dava o sono. Eu, como maquinista, para não ter sono, ralhava comigo próprio e dizia coisas como estas: ó seu burro, tu não vês que vais a conduzir uma automotora?!... então, é a dormir que se conduz um automóvel?!...”. Normalmente, fazia o percurso Tua – Bragança… …As locomotivas Mallet [tipo de locomotiva a vapor articulada] …só existiam no Tua e no Pocinho… …a parte da linha que custava mais a fazer era desde a ponte de Carvalhais até Rossas, sempre a subir… Tive o descarrilamento de uma Chepa, na ponte de Rebordãos, mas vinha a 25Km de velocidade. Saíu dos carris sem que se tivesse percebido a razão. …Eu fui escolhido para fazer o comboio em que veio Mário Soares. Para mim foi um dia de fome. Vinha um inspetor atrás de mim, que não percebia nada de condução, mas queria tudo à moda dele; era muito mesquinho; viemos com o café desde Bragança até ao Cachão... …uma vez, eu já trazia 16 horas de condução, vínhamos de noite e, quando cheguei a Bragança, não quis ir ao ramal particular levar o adubo à CUF. Participaram de mim: tinha de pagar 500 escudos de multa. Só que como já levava 16h. de serviço, a participação não valia de nada porque tinha horas a mais... seria ilegal fazer a participação…. [acha que era mais importante:] …ser cuidadoso, ter atenção a quem vai à nossa retaguarda, cumprir o mais possível os regulamentos, colaborar com toda a gente, respeitar toda a gente sermos exigentes connosco próprios...”[Informante nº 40, duas entrevistas em 2014] 49


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*** • Revisor (de agricultor a ferroviário e de novo a agricultor) (…) Nasci e cresci aqui em Codeçais, frequentei a escola primária da aldeia, fui fazer as passagens da 1ª para a 2ª, da 2ª para a 3ª e da 3ª para a 4ª classe à aldeia de Pinhal do Norte numa capela que estava junto do Terreiro e que na altura era a escola do Pinhal e o exame da 4ª classe à vila de Carrazeda, em Junho de 1947. Os meus pais eram agricultores e eu trabalhei no campo quando ainda andava na escola… antes de ir para as aulas ia cedo com o meu pai para o campo, regar batatas, no mês de maio e andava lá muitas vezes com a barriga a dar horas... Fui fazer a tropa para a Escola Prática de Artilharia em Vendas Novas, em 7 de abril de 1956; a sua especialidade era Transmissões. No fim da recruta, um amigo da aldeia da Sobreira conseguiume lá um impedimento e passei a ser o cozinheiro da Mess de Sargentos… Vim-me embora da tropa em 7 de Julho de 1957… Casei em 16 de Dezembro de 1959… …Ainda era solteiro quando fui trabalhar para o caminho-de-ferro. Fui contratado para fazer a limpeza ao longo da linha. Os que faziam isto eram chamados os eventuais… quando chegava ao Natal, éramos despedidos por causa das concessões… Em Janeiro, tornavam-nos a chamar, mas o tempo para trás já não contava… Quando fizeram a renovação da linha do Tua, desde Foz-Tua até à Brunheda, comecei a trabalhar já a renovação vinha depois de Santa Luzia. Por isso, trabalhei lá durante o mês de Janeiro e, em Fevereiro, mandaram-me para Salsas trabalhar como assentador (meter travessas na linha). …Entretanto, “foram as eleições de Américo Tomás” e chamaram-me de novo para a tropa. Só que afinal tinha sido um engano mas que me impediu de voltar para Salsas. Fui para as obras para o Pocinho “chegar massa aos pedreiros e a quem calhava”. Em seguida voltei a trabalhar na via em Almendra, onde continuava como eventual. Depois fui à Junta para o serviço de Movimento para ser Carregador das estações e assentei praça no Pocinho, no dia 14 de Agosto de 1959, com o lugar de Carregador… Em Dezembro de 1959, depois do casamento, fui mandado para o Tua trabalhar como Carregador. Aí estive 5 anos. A seguir estive 4 anos em Abreiro. Passei ainda pelas estações de Covelinhas, Gouvinhas; Ferradosa e Vesúvio (Linha do Douro); Moncorvo (Linha do Sabor) e Freixo de Espada à Cinta. 50


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…Finalmente ingressei no serviço da revisão de bilhetes após ter frequentado o curso para ser revisor. Fiquei em 1º lugar entre 13 candidatos. O Curso foi em Lisboa (Rossio) e no Porto (Campanhã). Depois de ter passado 12 anos a trabalhar nas estações, comecei a exercer as funções de Revisor, em 1972 e terminei no dia 6 de Dezembro de 1993, quando me reformei. Como revisor, andei entre Tua e Bragança; mais tarde, entre Bragança – Mirandela – Tua (linha do Tua) e Porto (S. Bento); Régua – Chaves e Pocinho – Duas Igrejas (Linha do Douro)…. …começava o turno em Mirandela por volta das 11h, fazia Mirandela-Tua, de onde saía por volta do meio-dia, chegava ao Porto (S. Bento) às 15h, ia acompanhar uma marcha a Contumil, ia novamente para o Porto, mas agora sem serviço, dormia lá e à meia-noite e vinte do outro dia, ia em serviço desde Campanhã até Mirandela. Depois ia para o descanso... …A pior linha para ser Revisor era a da Régua para baixo: tinha muito movimento... normalmente, antes de chegar às estações, botava a cabeça de fora por uma janela e via um, dois, três ou quatro e, da janela, via para que carruagem eles entravam; alguns entravam aqui no topo e iam parar ao outro topo, mas como eu já sabia a manha de muitos, ia-os perseguindo até ao topo do comboio… os da Linha de Mirandela, mais na zona do Cachão, sobretudo na altura em que abriram as fábricas eram um problema… havia muito mânfio a procurar a melhor maneira de fugir ao pagamento e depois discutiam com o revisor, só que comigo, eles não levavam a melhor... …Os passageiros frequentes podiam fazer três tipos de assinaturas: mensal, trimestral ou semestral. Essa assinatura tinha que ser renovada quando terminava o prazo de validade. Apesar disso, alguns esqueciam-se… eu já conhecia os vezeiros; um deles era dos homens mais ricos de Frechas, mas andava sempre a fugir ao revisor!... Na altura da feira de Mirandela havia sempre muito movimento e era muito mais complicado o trabalho… Na época pós 25 de Abril, o movimento era enorme por causa dos militares… essa bicharada a quem davam um quarto de bilhete… ainda trabalhei com as máquinas a vapor… às vezes os clientes chegavam a Mirandela cheios de carvão…. Trabalhei também com as automotoras Diesel (as Allain) e, mais tarde, com as carruagens tipo Suíço. As Allain faziam 60km / hora de Mirandela ao Tua… …Era adolescente quando aconteceu a 2ªguerra mundial, mas lembro-me bem: passou-se muita fome. Eu também passei. A seguir à guerra foi um ano de muita seca. Então é que houve fome de todo o tamanho! 51


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…Não, não andei a trabalhar no minério [volfrâmio] porque era muito novo. As minas eram no Ribeiro das Bogas, entre a Brunheda e Codeçais, mas mais perto da estação de Codeçais… …Mirandela tinha uma comunidade ferroviária muito forte. Em Codeçais, também: quando lá andei, éramos para aí uns doze, de várias categorias. Desta aldeia trabalhava muita gente no Cachão. O transporte utilizado era o comboio… Fazia-se mais vida em Mirandela do que na Carrazeda devido ao comboio que também transportava os animais e tudo… quando era do transporte dos adubos (entre 1960 e 1965) havia muito comboio a circular… No Tua, era tudo carregado a braços: o adubo, o carvão, as pipas de vinho, a cortiça, as travessas da linha… só daqui de Codeçais, em 1955, passaramme 800 arrobas de cortiça pelas costas; juntava-a para o cavalo carregar… ganhava 20$00 de sol a sol… nunca emigrei… trabalhava no caminho-deferro… e já era do quadro…, tinha mulher e já um filho e achei que não devia deixá-los... …Em Codeçais, sentiu-se muito o fecho da linha porque a aldeia ficou muito mais isolada… às terças e quintas é que há transporte para a Carrazeda, mas só temos duas horas e meia para estarmos na vila; se vamos ao centro de saúde e a consulta é demorada, temos que vir de táxi... …quando era novo, não frequentava as termas… só ia para o S. Lourenço quando era destacado para lá trabalhar. Não fazia lá termas, também porque só a partir dos anos 70 é que comecei a poder gozar férias, depois de Marcelo Caetano ter dado essa regalia. Antes disso, só podíamos gozar 10 dias de uma vez mais dez dias alternados… na altura, a CP era uma família; havia gosto no trabalho, pontualidade, disciplina. Depois estragaram tudo…. Tive a oportunidade de ir para a GNR e para a Guarda Fiscal, mas preferi ser ferroviário… “[Informante nº 32, uma entrevista 2014] *** • Chefes de estação …Esta estação de Santa Luzia, aqui em frente, inicialmente era chamada do Amieiro mas, como havia lá para o sul, perto de Pombal, a estação de Amieira, o que originava confusões e troca de mercadorias, decidiram mudar-lhe o nome e batizá-la com o nome da santa padroeira da aldeia, que era e é Santa Luzia. 52


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…Fiz o curso de rádio-telegrafista no Porto e fui escolhido para a Trafaria… fui como operador de informação, 1º cabo, para São Tomé… eram ao todo 30 homens neste trabalho, considerados os trinta melhores do curso e, por isso, escolhidos… Quando fui para o Ultramar tinha feito a 4ª class, mas lá frequentei o liceu e terminei o 2º ano…. Quando trabalhava em Foz-Tua, vivia no Amieiro, mas também tinha casa no bairro da CP, junto da estação. Como tinha carro próprio, percorria facilmente os 15Km que separavam FozTua do Amieiro e deslocava-me assim de 2 em 2 dias. …Fui para ferroviário como muitos dos homens do Amieiro: era o 1º emprego que procuravam. O caminho-de ferro-era a única via de ligação à freguesia… uns iam para a via… outros para a estação …outros para revisores… O comboio, nestas terras, era algo de muito importante para o transporte de pessoas, para o escoamento da cortiça, da azeitona, da baga do azeite e das laranjas. Utilizava-se muito o comboio para ir às feiras a Mirandela comprar e vender produtos ou para ir ao Tua. Para ir à Alijó não havia transporte, nem estrada...ou se ia a pé ou a cavalo... Naquele tempo, o chefe de estação ou mesmo o fator, era uma pessoa considerada importante porque tinha um bom conhecimento das pessoas e da região. Era muito estimado e convidado pelas pessoas para confraternizar com elas. Era a pessoa que tinham mais próxima para qualquer informação mais esclarecedora. …O dia-a-dia do chefe de estação: com a redução do pessoal, o chefe começou a fazer quase tudo… telefone, bilheteira, chefia… eu próprio fiz bilheteira durante muito tempo... Antes da redução, chegou a haver mais ou menos 20 homens a trabalhar na estação do Tua… [Informante nº 8, duas entrevistas em 2013] *** …Na minha criancice vivi muito entre o Porto e Coleja. Porquê? Porque um irmão do meu pai a quem nós chamávamos o” tio rico”, levou-me para o Porto para eu poder estudar. Ele saiu daqui para ir fazer a tropa e nunca mais voltou. O meu tio tinha mais posses que os outros porque era amante de uma senhora, com dinheiro, que me recebeu muito bem. Só que quando eu frequentava o 4º ano do liceu Rodrigues de Freitas, ela faleceu. O meu tio foi viver para o hotel da Boavista, na Foz, e eu vim para Coleja para casa do meu pai, tinha eu 14 ou 15 anos. Passei a ter que ir com ele aos peixes… O meu pai pescava de noite, 3 ou 4 kg. de peixe que vendia na sua aldeia e em 53


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aldeias vizinhas. Ganhava 20 escudos que lhe davam para uma semana. Não tinha ambição nenhuma e enquanto lhe durasse o dinheiro, não fazia mais nada. Nessa altura havia pouco peixe: deitavam tiros de dinamite no rio para matarem os peixes… Nesta aldeia havia mais alguns pescadores… Depois ele entusiasmou-se e comprou uma rede maior em 2ª mão, na foz do Sabor, um “tresmalho” que tirava 15 ou 20 kg. de peixe. Fazíamos pescarias de noite. Depois, eu ia vender o peixe pelas aldeias. …Fui o 3º ferroviário que saiu desta aldeia… Era uma vida difícil… iniciei o meu trabalho no Pocinho como fator de 3ª e de 2ª. Interrompi o trabalho para fazer tropa em Moçambique. Quando regressei, fui para Vargelas, onde estive durante treze anos e meio. De 1986 a 1994 estive em Foz-Tua como chefe de estação. Depois, a meu pedido, fui para Leça do Balio e, de lá, me reformei. Andei na linha do Tua quando fui fator de 2ª: estive destacado em Santa Luzia e em Codeçais… mas nestes sítios estive só para dar apoio, quando havia falha de pessoal... Quando trabalhei na estação de Foz-Tua, ainda “apanhei o tempo do comboio a vapor”. …Deixei de trabalhar como ferroviário no ano de 2001 porque a linha fechou. Vim-me embora por rescisão amigável. Reformado, só estou desde 2005. Vim viver definitivamente para Coleja, onde tinha comprado propriedades com as economias que fui fazendo. Com o regresso à minha aldeia natal, realizei o sonho da minha vida… Eu gostava de ter sido agricultor, de ter batatas, vinho e azeite para todo o ano e um porco morto, que é sustento para o ano todo. E realizei esse sonho: depois do 25 de Abril comprei por 530 contos as propriedades que tenho. Nesta data, o meu vencimento também aumentou para quatro contos e quatrocentos. …Já depois de adulto, fiz o 12º ano no liceu Rodrigues de Freitas, a estudar à noite… …O Tua era uma grande estação, muito trabalhosa e com muita gente; a propósito até havia um dito entre os trabalhadores: ou Tua ou Rua, já que ninguém pedia para ir para o Tua… A maior parte do trabalho devia-se ao facto de ser uma estação de transbordo; o maior trabalho era o do pessoal braçal… o comboio transportava tudo ou quase tudo. Para o Tua, iam comboios repletos de adubo, quando iam para cima e repletos de trigo quando vinham para baixo. Havia também vagões completos de urnas que vinham de Amarante. Não me recordo de lá passarem vagões de cortiça. …Os comboios que vinham da via estreita, de Bragança para o Tua, com três e quatro carruagens, vinham sempre cheios. Aos fins de semana até ti54


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nham quatro e cinco carruagens. E cabia sempre mais gente porque as pessoas também viajavam de pé… …Na sala de espera da estação de Foz-Tua, há um mini museu que fui eu que comecei a fazer… tinha lá um livro de reclamações muito interessantes, muito bem escritas, com uma caligrafia lindíssima, normalmente feitas por viajantes, no tempo em que havia o gosto pela escrita, o que não é o caso de hoje… Não tive lá grandes problemas. Vivia por cima da estação. Acho mesmo que fui um privilegiado dentro dos caminhos-de-ferro, dado que tive sempre direito a casa nas diferentes estações onde trabalhei. Tinha viagens pagas para a minha mulher e para as filhas, enquanto solteiras, ou os filhos até aos 21 anos de idade. Hoje, essa regalia já acabou. Havia também as tainadas nas estações: em Vargelas chegava a assar 15Kg de peixes do rio! Mas, aqui fazíamos uma vida muito económica; também não havia café nem onde gastar o dinheiro. Além disso, a partir de 1973, com a instalação da quinta dos Taylors, com quem mantinha muito boas relações, passei a ter água e luz que não pagava, graças a eles. Também tinha sempre carne de porco e bacalhau que eles mandavam para o chefe da estação (os chefes de estação, mesmo que fossem fatores, eram muito respeitados porque sempre sabiam ler e até escreviam cartas… os trabalhos com as mulheres guardas de passagens de nível foram os mais custosos que tive. Era mesmo o maior receio que eu tinha. Em Vargelas, tinha duas que andavam sempre à porrada… para arranjarem problemas, todas elas estavam por aí… no Tua, além das duas das passagens de nível, também tinha duas para os dormitórios… Nestas aldeias por aqui nestas redondezas houve sempre gente a trabalhar nos caminhos de ferro; uns chamavam outros. Aldeias onde me lembra de haver ferroviários: Castanheiro, Ribalonga, S. Mamede, Alijó, Parambos, Pombal, Codeçais, Brunheda, Tralhariz, Pereiros, Amieiro, Abreiro, etc… [Informante nº 16, duas entrevistas] • Guarda de linha / passagem de nível “…Quando vivia em Ligares, na minha infância, passava muitos serões com a minha mãe enquanto o meu pai dormia no campo com as ovelhas porque era pastor. Foi durante estes longos serões que ouvi e decorei muitas ladaínhas e cantigas que a minha mãe me recitava e cantava… era a nossa televisão… ainda me lembro de algumas… Com a idade de 14 anos fui passar umas férias à praia, no Porto, com uns primos. Nessa altura, os meus irmãos já tinham 55


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emigrado. Naquele tempo, ir passar férias ao Porto e à praia, era um deslumbramento. Mas, apesar disso, eu estava triste, chorava e quis regressar à minha terra... Voltei de comboio. Os meus primos levaram-me à estação de Campanhã e entregaram-me ao revisor. Mas… na carruagem em que entrei, vi um jovem a cantar e a tocar guitarra: “ele olhou para mim e eu olhei para ele e, nessa altura, é que eu vi o deslumbramento da vida. Trocámos olhares, fotografias e papeizinhos”. Depois, ele saiu em Freixo de Numão e eu continuei para Ligares. Ao fim de oito dias, recebi a primeira carta dele na mercearia onde se telefonava e onde se recebia o correio. Namorámos durante meio ano mas, neste curto espaço de tempo, só nos vimos quatro vezes. Ele ia à minha aldeia. …Apesar de ter feito com sucesso o exame de admissão ao liceu, em Bragança, não prossegui estudos porque casei com 14 anos. Ele tinha 21 anos e era de Mós do Douro, concelho de Vila Nova de Foz-Côa. …Tive o primeiro filho aos 15 anos, o segundo aos 17 e o terceiro aos 20 anos… O meu marido começou a trabalhar aos 14 anos, na estação de Santarém, como fator, porque o pai era ferroviário e tinha mais três irmãos também ferroviários. Vivemos o primeiro ano de casados na terra dele. Ao fim desse ano ele pediu a transferência. Viemos para Mirandela quando eu tinha 20 anos, em 1970. O meu marido trabalhou em Mirandela durante 18 anos. Era Fator de 1ª.Viemos do Barreiro A, de uma zona industrial, para Mirandela… Para alguns seria um choque. Para mim, que não gostava do Barreiro, foi uma felicidade… Aquela vilazinha em miniatura era o bem-estar de uma família, era um sossego, eu sentia-me bem no Nordeste Transmontano porque era aqui que eu sentia que ia criar os meus filhos de outra maneira e que seria mais feliz. Fui eu que pedi ao meu marido que pedisse a transferência para Mirandela… Na sua profissão de ferroviário em Mirandela, andava muitas vezes destacado do Tua a Bragança, mas vivíamos na Estação de Mirandela. Viviam aqui 16 famílias de ferroviários no meio de um ótimo ambiente. Dávamo-nos imensamente bem. Parecíamos uma só família. Uma estação era um ponto de encontro e de desencontros. Encontro, por exemplo, de estudantes que vinham estudar para Mirandela. Era também um lugar onde se via muita gente chorar, mas também se viam muitas alegrias. A única tragédia de que me lembro, foi a da morte de um ferroviário, num descarrilamento em Santa Luzia... …O meu marido faleceu em 1985 num acidente de automóvel quando me ia buscar à estação de Frechas, onde eu trabalhei durante meio ano a fazer uma passagem de nível. Eu era a guarda da passagem um pouco à revelia da 56


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vontade do meu marido. Mas tínhamos três filhos para educar e eu queria o melhor para eles. Apesar de o meu marido ter chegado a Fator de 1ª e ganhar bem, eu achava que devia ajudá-lo. Depois de o marido ter falecido, vivi ainda durante mais seis anos na Estação.…” [Informante nº 11 - Encontro de Ferroviários do Tua, 25 de Abril, 2013] ***

• Guarda da secção museológica ferroviária de Bragança “(…) O meu pai era ferreiro. A mãe era doméstica e cultivava os produtos de uma lavoura de subsistência. Tenho duas irmãs. Uma delas é guarda de passagem de nível e trabalha em S. Romão do Coronado.… Depois de fazer o exame da 4ª classe fui trabalhar com o meu pai para a oficina. Mas não era ferreiro que eu queria ser. O meu sonho era outro: ser ferroviário. Eu quando via um amigo meu que trabalhava na C.P. com aquele boné na cabeça, só pensava que também havia de ter um boné assim... O Belmiro Aragão, chefe de estação e tio de um amigo meu, meteu lá o sobrinho como praticante de Fator. Mas, o rapaz não era sério e metia a mão na gaveta. Um dia, quando ouvi dizer que precisavam de pessoal para trabalhar na via, falei com esse Chefe que, de início, achou que eu tinha pouco físico. Mas… eu lá fui... para o Tua, onde comecei a trabalhar, no dia 27 de setembro de 1961, como eventual de dia. No dia 14 de novembro do mesmo ano, fui transferido para Cachariz e Albergaria dos Doze. Sempre como eventual de dia, fui mandado sucessivamente para Lamarosa, Entroncamento, Praia de Ribatejo, Santa Margarida, Barquinha, Tramagal. Daqui, novamente para o Entroncamento. Depois para Alcântara Mar, como servente de 3ª classe. Aqui, trabalhei até ao dia 1 de dezembro de 1966. Seguidamente, fui transferido para a estação de Salsas, onde trabalhei desde 4 de dezembro de 66 até novembro de 1991, altura em que fechou a estação. Fui, então, para Paços de Brandão, Arrifana, Pocinho, Mogadouro, onde estive destacado apenas 5 dias. Daqui, pedi transferência para a estação de Bragança, isto em 1984. Fiquei nesta estação e fazia Bragança – Mirandela e Mirandela – Bragança. Um dia tive um acidente de trabalho em Macedo de Cavaleiros… Foi o dia mais triste da minha vida porque fiquei impossibilitado de trabalhar na via. Estive de baixa, fui submetido a uma Junta Médica e a C. P. queria-me reformar…. No entanto, não aceitei a reforma porque sabia que tinham serviço 57


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compatível para mim, no meu novo estado. Eu queria mesmo trabalhar porque “nunca fui homem de tabernas”. …Desde 1991 até 2005 exerci funções de guarda da Secção Museológica de Bragança. Zelei por todo o material que aqui se encontrava e que ainda se encontra em ótimo estado de conservação… eu ainda hoje tenho saudades do caminho-de-ferro e se a C. P. abrisse uma secção do Núcleo Museológico, eu ainda era capaz de ir trabalhar… há lá uma carruagem verde, de 2ª classe, que foi restaurada nas oficinas do Pocinho e que transportou o ex-presidente da República, Dr. Mário Soares, desde o Tua até Bragança, quando ele visitou esta cidade. Fui eu um dos que fizeram o acompanhamento presidencial desde Bragança até ao Cachão… Quando em 27 de setembro de 1906, foi feita a fusão, a Companhia Nacional deixou de o ser e passou a ser C.P. (Companhia dos Caminhos-de-ferro Portugueses – empresa pública), essa carruagem foi para o Núcleo Museológico. …eu é que fazia a manutenção de todas as locomotivas, tinha-as sempre a brilhar... a locomotiva 114 ainda trabalhava; aliás elas estão todas em bom estado de conservação, mas o facto de não serem usadas, faz com que depois não trabalhem… Uma das vezes em que o Eng. Giestal Machado visitou o Núcleo, foi ver a placa giratória, que eu tinha sempre muito bem oleada, o que o levou a fazer o seguinte comentário: “o Senhor está de parabéns, mas nós também. Eu não posso exigir mais do Senhor!...”. Havia sempre visitas de estudo de alunos com as respetivas professoras, que também me davam os parabéns pela boa organização e funcionamento do Núcleo. Estão lá placas com a fotografia das máquinas, as suas características, etc. Há lá máquinas que eram da oficina, tais como o torno ou a limadora. Também lá está a carruagem em que viajou el-rei D. Carlos. Em 91, ela já não estava ao serviço porque já havia as automotoras “Schepas”, as quais só andavam bem no tempo fresco. No tempo quente precisavam logo de água. Eram jugoslavas. No entanto, tiveram que deixar de funcionar porque não aguentavam. No ano de 91, já trabalhavam as Diesel… …Em 27 de setembro de 1906, a locomotiva nº 1 foi o 1º comboio que chegou a Bragança… Ainda me lembra de a ver trabalhar… Também lá estão os quadriciclos, os quais tinham a seguinte funcionalidade: quando o chefe de lanço queria passar uma vistoria ao seu próprio lanço, servia-se do quadriciclo, assim como os engenheiros para fazerem a inspeção à linha. É um veículo manual. Quando era preciso utilizar os quadriciclos, a linha ficava interdita 58


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no espaço de tempo em que e onde eles circulavam, a fim de evitar acidentes… …por volta do ano 2000, o Núcleo Museológico de Bragança fazia uma receita mensal de 80 a 90 contos. O dinheiro era para a C.P., depositado diariamente por mim na Caixa Geral de Depósitos. Havia muitos visitantes estrangeiros. Ainda guardo fotografias dessas visitas, fotografias essas que eles depois me mandavam. No início do funcionamento do Núcleo, não se pagava nada. …Reformei-me da C.P. no dia 1 de Agosto de 2005.” [Informante nº 19, uma entrevista em 2012] *** • Coletivo de ferroviários [RQ] …Comecei a minha carreira como fogueiro, em Mirandela… a seguir, ingressei na escola de maquinistas em 1971... Efetivei-me como maquinista em Mirandela, onde estive de 1977 até 2009, altura em que me reformei… [F A] …Comecei o meu trabalho na C P como servente de tracção, em 1957, com a 4ªclasse e com a idade de 18 anos… A CP era o que havia de mais rentável naquela altura!.... Depois fui fogueiro e comecei a trabalhar como maquinista em 1971…. Efetivei em Mirandela, onde trabalhei até à idade da reforma. …Fiz muitas vezes a viagem de Foz-Tua a Mirandela no comboio a vapor: o sucesso da viagem dependia muito de como a máquina se portava e da habilidade do fogueiro… [JR] …eu passei a transição do vapor para o Diesel, quando era chefe de estação em Foz-Tua. A máquina a Diesel podia com 400 toneladas… a de vapor só podia com 200… começámos a fazer comboios até às 400 toneladas. Bastava-nos pedir autorização ao posto regulador e ela eranos concedida através de um telegrama… Eu iniciei a minha vida na CP como chefe, fator, em 1969, no Pocinho. Fiz a tropa e quando regressei fui para Vargelas, onde estive 13 anos e meio, até ser chefe de estação… tinha então 37 anos. Fui depois para o Tua, onde estive, como chefe de 1986 até 1994. [MJ] …entrei para a CP em 1941. Em 1951 fui para Torres Vedras (Oeste), onde estive até 1954. Depois fui para Caminha, onde permaneci 8 anos. Concorri a subchefe e fui para Arcozelo das Maias, no Vouga, onde estive dois anos. Entretanto, a meu pedido, fui 2 anos para Viana do Castelo. Depois concorri a chefe de distrito e fui para o Romeu, em 1964. Estive lá 8 anos. 59


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Seguidamente fui para o Tua, como chefe de lanço, durante dois anos. Daqui fui para Bragança onde permaneci 15 anos e, por último, vim 2 anos para Mirandela, de onde me reformei. Ser chefe de lanço era trabalhar entre Bragança e Tua. O pessoal da via, aqueles que trabalhavam na manutenção da linha, não me tornavam a vida fácil: tinha que os orientar e tinha que fazer a escrita dessa gente toda. Ainda tinha a meu cargo os guardas das passagens de nível. Antes de entrar para a CP trabalhei na Companhia Nacional (Linha do Sabor, Linha de Chaves, linha do Tua a Bragança e Linha do Dão). Trabalhar para uma empresa ou para a outra era exatamente a mesma coisa… A única diferença é que tinha um vencimento maior na Companhia Nacional… Lembro-me muito bem do ano de 1941 – o ano da fome –… fui muitas vezes a pé de Vilar de Rei, no Sabor, a Mariz, saber de pão e chegava a casa sem nada. Fui muitas vezes a Sendim saber de pão e, de pão, nada!... E éramos 12 pessoas em casa… Conheci muito bem o tempo da guerra… Trabalhei nos comboios durante 48 anos!.... [P. A] …comecei por assentar travessas… depois passei a revisor de bilhetes, tendo trabalhado nas linhas do Douro, do Tua, da Beira Baixa… do Tejo para o Norte, onde passa o comboio, trabalhei em todas as estações... Fiz trabalho de revisor entre os anos de 1968 e 1982. De 1982 a 86, trabalhei como inspetor, com sede no Porto, …mas corria o Norte todo... foram os anos da pré-reforma… Como inspetor, tenho histórias boas e histórias ruins para contar. No que respeita às últimas, falo da quase certeza de passar o Natal com a família e acabar por passá-lo na estação de Santarém, na companhia do maquinista e do revisor… Consoámos sozinhos daquilo que levávamos, pois se quiséssemos uma pinga de água, nem tínhamos onde a ir beber… E assim passámos os três a noite toda… E também, qualquer um de nós não tinha direito a receber horas extraordinárias, embora fizéssemos muitas!… [todos] …“Antes do 25 de Abril éramos uns mártires, éramos multados por tudo e por nada!... …tínhamos 13, 14 e 15 horas de serviço …muitas horas extraordinárias sem ganhar… como serventes era do primeiro ao último comboio, mas sem horas extraordinárias… das 8h da manhã ás 11h da noite… na folga entrava-se às 3h… havia também a folha de trânsito. Se tivéssemos atrasos no horário, o que acontecia às vezes e por motivos alheios à nossa vontade, tínhamos que justificar a razão do atraso. No entanto, a parte boa da questão, é que era sempre possível arranjar-se uma avaria que nos livrava de pagar a multa que nos seria descontada no vencimento… 60


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[F.A. acrescenta]… a nossa profissão de ferroviários, antes do 25 de Abril, era mísera. Ganhávamos muito pouco e trabalhávamos muito. Foi Vasco Gonçalves, que era filho de ferroviários, que nos beneficiou após esta data. Quando entrei para a CP ganhava 700$00… em 1957, 750 escudos por mês”. [outro concretiza] …em 1966 ganhava “um conto e duzentos” e em 1976, 1.800 escudos como fogueiro de primeira… em 1963, quando fui nomeado para o quadro, ganhava 900$00, mas antes… quando perguntavam a um ferroviário quanto ganhava no início da carreira, ele respondia: “ ganho 20 escudos e uma caixa de fósforos”… isto porque uma caixa de fósforos custava então três tostões… [Todos consideram] …a vida de um ferroviário era melhor do que a de um agricultor… era uma vida limpa e uma posição que dava para namoriscar raparigas de outra posição, mais cultas… tínhamos outra apresentação, usávamos uma farda decente… quando não tínhamos farda sujávamo-nos no carvão… e tínhamos o vencimento certinho ao fim do mês...” [Informantes nºs 12, 13, 16 e 19, entrevista coletiva –Encontro de confraternização dos ferroviários do Tua, Mirandela, 25 de Abril de 2012] Os fragmentos de narrativas e de histórias de vida passadas no vale e linha do Tua, que acabaram de ser apresentados, compõem não só um relevante repertório de fontes orais de história, mas ainda um pano de fundo vivencialmente muito rico. Para além disso, entretecem com outras que se lhe irão seguir enquanto reveladoras de dimensões diversas, um manancial de materiais de memória individual e social densa que exigem e possibilitam fazer a sua cartografia, temática e cronologicamente. Por sua vez, esta permitirá esboçar o contexto socio-histórico mais significativo da vida e ambiente das populações locais entre dois marcos importantes de transformação técnica e tecnológica do território natural desta região: o início oitocentista da construção da sua linha férrea e a edificação contemporânea da barragem do Tua.

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Linha do Tua- ponte da Presa, 1972 (Foto - Raízes disponibilizada no Blogue “Amigos de Pensar Ansiães”)

3. CONTEXTO Socio-histórico: Cartografia de materiais de memória Vários e sucessivos factos da história nacional e global, para além dos mais variados episódios que marcaram a vida das populações locais no vale e linha do Tua, se fizeram sentir na história local e regional do vale do Tua, desde, por exemplo, a I Guerra Mundial (1914-1918) e II Guerra Mundial (1939-1945), a exploração do volfrâmio durante o Estado Novo (1939-1955), a Guerra Colonial portuguesa em África (1961-1974), até às mudanças surgidas com o 25 de Abril de 1974 e o início do processo de democratização. Os efeitos e as mudanças induzidas de tais acontecimentos político-econó62


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micos e sócioculturais afetaram também profundamente a realidade e o imaginário destas populações locais que deles guardam memórias ainda nítidas e vivências sofridas que pontuam as suas narrativas. Esta é mais uma razão que explica a cartografia desses materiais que aqui se faz, privilegiando uma perspetiva diacrónica e dialógica de organização dos excertos, a seguir transcritos, de histórias de vida a este propósito mais significativas. Os materiais de memória histórica e social identificados e compilados nos registos escritos e audiovisuais das entrevistas e narrativas seletivamente mobilizadas foram objeto de uma análise de conteúdo feita a dois níveis (Minayo, 1992) com vista a: a) esboçar a conjuntura socioeconómica e política e o contexto socio-histórico geral; b) identificar observações de comportamento de cada indivíduo na interpelação com diversas etapas do processo histórico social e cultural. Fez-se também desses materiais uma cartografia temática e um mapeamento cronológico do arco temporal abrangido [1887-2010] entre a construção da antiga linha férrea do rio Tua e a da sua recente barragem, os quais são ilustrados respetivamente pelo seguinte diagrama de nuvem e subsequente gráfico de temporalidades. Diagrama de temas focados

Fonte: Quadro nº1 –Galeria de informantes. MOPL, 2015.

Como se pode observar, evidenciam-se no diagrama alguns núcleos temá-

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ticos principais abordados nas narrativas e os quais constituem outros tantos aspetos e momentos da história do Tua: a) Construção da linha do Tua: troços de Foz Tua- Mirandela- Bragança (saberes leigos e técnicos – ferreiros, empreiteiros, engenheiros). b) Ferroviários e especificidades de funcionamento da linha do Tua (trajetórias sociais e profissionais, profissões, salários, horários de trabalho, condições e mudança de vida e relações com a comunidade). c) linha e comboio do Tua e respetivo impacto no desenvolvimento trasmontano. d) Memórias e vivências dos modos de vida das populações ribeirinhas: impactos, representações e lógicas de perceção acerca da linha e comboio do Tua (diversidade de contextos socio-históricos, evolução, regalias sociais, melhores vencimentos, polémicas e denúncia do encerramento da linha). e) Narrativas diversas de fenómenos marcantes da evolução da história local e regional que se foram sucedendo desde finais do séc XIX e ao longo do séc XX, (fluxos migratórios, movimentos de passageiros e mercadorias, mobilidades e mobilidade social, exploração do volfrâmio - recurso mineralógico das encostas do vale do Tua e leito do rio -, empreendimentos agro-industriais em ligação com a linha do Tua,etc.). f) Acontecimentos da história nacional e mundial em que se destacam a afirmação oitocentista dos transportes ferroviários, a participação de Portugal na I Guerra Mundial (1914-1918) com as campanhas militares em África, as dificuldades do racionamento e da fome por ocasião da II Guerra Mundial (1940-1944), a Guerra Colonial em África (1969-1974), a melhoria das condições de vida com o 25 de Abril de 1974 e seus impactos locais interpenetram-se com as dinâmicas locais e regionais, permitindo uma inteleção da história do Tua, multi-escalar e pluri-perspetivada. Como se ilustra no gráfico seguinte de ocorrência de temporalidades referente a acontecimentos e fenómenos verificados num arco cronológico dilatado, entre finais dos sécs XIX e XX e dominantemente narrados pelos informantes, enfocam-se mais exaustivamente os períodos correspondentes, respetivamente, às fases de construção, funcionamento e declínio da linha e comboio do Tua, com destaque para as décadas de 1900-1950 e 1940-1980, e referência frequente aos períodos da I e II Guerras Mundiais e Guerra Colonial portuguesa em África.

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entrevistados

Gráfico nº5 – Incidência cronológica das narrativas 18

20 10 0

10 4

3 1890-1940

1900-1950

1920-1970

7

4 1940-1980 anos

1950-1990

1970-1990

1 1990-2010

Fonte: Quadro nº1 –Galeria de informantes. MOPL, 2015.

Nos materiais assim graficamente trabalhados, poder-se-á seguidamente, de um ponto de vista sociológico e antropológico observar condutas, comportamentos, costumes, tradições e comunicações de cada indivíduo, entre si e com o coletivo social e cultural a que pertencem. Já do ponto de vista histórico, este arquivo importante de fontes orais revela facetas inéditas e variadas componentes da História Vivida do Tua que é possível agrupar em torno dos seguintes vetores ou coordenadas: vale, rio, linha férrea e comboio, empreendimentos agro-industriais e mobilidades, outros aspetos da vida quotidiana rural e urbana da região, sobre que não abundam ou quase inexistem outras fontes orais ou escritas. Trata-se então de um conhecimento histórico de temas locais e regionais específicos que só a reconstituição / construção destas fontes orais aqui mobilizadas é de fundamental interesse para o avanço da história local e regional. Os fragmentos de fontes orais que adiante se apresentam são demonstrativos quer de traços característicos das conjunturas socio-económicas regionais e do contexto sóciocultural e seus impactos sobre as populações do Tua, quer de observações e comportamentos típicos dos indivíduos e grupos sociais locais na sua inter-relação com diversas etapas do processo histórico-social e político geral. Organizam-se assim em dois grandes grupos abordados nas seguintes rubricas: 3.1. – Contextos e conjunturas da linha e comboio do Tua; 3.2.– Processo histórico social e político geral.

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3.1. Contextos e conjunturas sócioeconómicas locais e regionais Através do que se descreve e conta nas narrativas que se seguem e do muito mais que as mesmas sugerem, podemos viajar ao longo dos últimos 120 anos pelas transformações que a linha e o comboio do Tua influíram em diferentes espaços, contextos e conjunturas do interior do mundo rural do nordeste transmontano. • Sob o impacto da linha do Tua. Comboio, mobilidades e sociabilidades “…o meu pai era ferreiro e tinha a forja no “cimo do povo”… aquelas casas lá herdei-as depois eu mas dei-as a quem não tinha casa… Também tinha um negociozinho de madeiras. A minha mãe cozia pão e vendia-o para o Tua (era na altura da construção da linha férrea Tua – Bragança). Como o meu pai morreu cedo, a minha mãe passou a comprar e a vender nas feiras… de Vila Flor e Carrazeda. Para isso tinha a ajuda do filho mais velho, que era meu padrinho… Iam, por exemplo, a pé para a feira de Vila Flor, onde vendiam ovelhas, porquinhos… Lá, comprava cereal… para moer a farinha para o pão que cozia e vendia… tinha duas mulheres a ajudar no forno… iam vender muito ao Tua porque na altura havia aí muita gente a trabalhar nas obras da linha… as mulheres levavam-no… recebiam10 pães por 100 vendidos… a minha mãe tinha aí um negociozinho… montou uma tabernita onde vendia pão, azeite, sal que iam buscar ao Tua… davam uma tigela de grão de centeio por duas de sal… Os almocreves do Mogo [aldeia do planalto do concelho de Carrazeda] iam a cavalo buscar o cereal que ela tinha comprado. Traziam-no até à moagem, onde os moleiros o iam buscar… Na altura por aqui só havia moinhos de água. No Frarigo [nome de lugar próximo] havia vários moleiros porque o ribeiro, mais caudaloso, permitia a construção e o trabalho dos moinhos… Os Rebelos de Parambos, depois ainda quiseram fazer um moinho a gás, mas não dava boa farinha….só mais tarde é que vieram os moinhos a motor para Carrazeda… …sim conheci muitas pessoas que andaram nas obras da linha do Tua; até lhes chamavam os baluartes… eles vinham muito às Areias arranjar os utensílios de trabalho na forja do meu pai… mas a minha mãe é que nos contava muitas coisas… até fizeram lá uma grande festa quando foi da inauguração do comboio… e as pessoas iam muitas vezes para a linha ver passar o tal comboio… 66


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…a primeira vez que andei de comboio foi para irmos à aldeia de Codeçais… uma professora que era de cá casou lá e ficou lá a viver com o chefe da estação de Codeçais… também fui a Mirandela ao médico… íamos apanhar o comboio à estação de S. Lourenço… era mais perto daqui… Andei novamente neste meio de transporte para ir a Bragança, mas já mais tarde… tinha lá pessoas conhecidas… …Do Tua vinham muitos peixeiros vender peixe pelas aldeias. Conheci bem uma vendedora, a Percevelha, que vendia sardinhas… as peixeiras quando anoitecia ficavam na Lama Grande… o sr Cândido que vendia muita madeira tinha lá uma casa e dava-lhes dormida e uma comidinha… era boa pessoa e a mulher também… faziam isso por caridade” [Informante nº 14] *** “…O meu avô esteve ligado à construção da linha… A minha família, quando viajava, utilizava o comboio, mas para ir até à estação de caminhode-ferro, servia-se de burros que levavam as pessoas e as malas… Sou a mais nova dos netos de Manuel Maria Lopes Monteiro, engenheiro civil, nascido em 1855 e falecido em 1923. Licenciou-se em 1883 / 84. Vivia na aldeia do Castanheiro. Formou-se no Porto, ainda não existia a linha do Douro em toda a sua extensão… Quando começou a trabalhar, ganhava “5 escudos em ouro por mês” sempre ouvi dizer isto na família.... Viveu em Bragança, onde foi engenheiro das obras públicas. Também esteve a exercer as mesmas funções em Mirandela e em Vila Real. …teve um papel importante na construção da linha do Tua. Foi diretor das obras públicas em Bragança. [Informante nº 7]

***

“…Sobre o meu avô, só sei aquilo que o meu pai contava, tinha eu 13 anos… era um homem muito trabalhador e inteligente que tinha feito a fortuna à sua custa; tinha muitas quintas, tinha Vinho do Porto; era muito respeitado… por exemplo, quando viajava na mala-posta e eram assaltados, se soubessem que ele ia lá dentro, já não faziam nada… era muito generoso… Fiquei com a ideia de que se meteu na aventura da construção da linha porque se preocupava com o desenvolvimento daquelas terras transmontanas que, se 67


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ainda agora estão um bocado abandonadas, na altura, ainda era pior… Sei que o meu avô enfrentou dificuldades na construção da linha. Ele tinha uma empreitada com prazo fixo para entrega e a construção atrasou-se porque se depararam com terrenos graníticos onde surgiram imprevistos de que não estavam à espera. Em consequência disso, não lhe terão pago, o que o obrigou a hipotecar ou a vender a maior parte das quintas que possuía. Terá morrido na sequência do desgosto que teve… A. C. terá sido um dos responsáveis pela falência de Lopes da Cruz, já que não terá defendido os interesses do seu cliente, mas os do Estado…” [Informante nº 34, neta de joão Lopes da Cruz, empreiteiro da linha do Tua no troço de Mirandela a Bragança]

“…O facto de haver comboio facilitava a emigração, a saída. Nessa altura passavam, por dia, dois ou três comboios de carga no intervalo dos de passageiros, da gente que ia trabalhar para Mirandela e para o Cachão. Iam sempre cheios de passageiros… …Nesta aldeia ouvia-se bem o apito do comboio. Agora já não se ouve nada... o combóio nunca devia ter acabado.... …Na Brunheda havia 2 barqueiros: passavam vinho e pessoas (2 ou 3 escudos cada passagem)… A ponte da Brunheda foi construída em 1986…” [Informante nº 4] *** “…Em Foz-Tua a azáfama e a movimentação das pessoas era grande, sobretudo para aquelas que ainda continuavam viagem, tendo que mudar de comboio… Destas viagens recordo-me bem do fumo da máquina a vapor que sujava as pessoas, sobretudo aquelas que gostavam de ir para a janela… Com o andar dos anos, fui-me apercebendo da beleza desta viagem, sobretudo do belo horrível e da paisagem dantesca da linha do Tua. Via as pessoas que trabalhavam aquelas encostas com um esforço titânico, sobretudo em frente ao Tralhão, a S. Lourenço e a Santa Luzia e, em jeito de desabafo, confidencio que a gente de Trás- os Montes foi sempre muito marginalizada, sem o merecer… Mas tenho outras recordações destas viagens: por exemplo, a da merenda partilhada. Todos viajavam com a sua merenda, a qual consistia em 68


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frango envolto em ovo (quando havia dinheiro para comprar o frango…), bolos de bacalhau, pão de centeio guardado num saco de pano e, vinho. Tudo isto era levado num cabaz próprio… A merenda era motivo de união e de confraternização entre as pessoas… Ainda hoje vou mas de carro e, quando chego por alturas de Vila-Real, tenho a ideia de que entro num outro mundo, num “reino maravilhoso”… A cidade de Mirandela mudou muito e para melhor… É verdade que a cidade também tem uma situação estratégica: é o encontro de várias estradas. …Falando agora da Linha Mirandela-Bragança e da sua importância: permitia ir à capital do distrito para tratar dos assuntos mais importantes…” [Informante nº 9] *** “…Fui para ferroviário como muitos dos homens do Amieiro: era o 1º emprego que procuravam. O caminho de ferro era a única via de ligação à freguesia….uns iam para a via… outros para a estação… outros para revisores… O comboio, nestas terras, era algo de muito importante para o transporte de pessoas, para o escoamento da cortiça, da azeitona, da baga do azeite e das laranjas. Utilizava-se muito o comboio para ir às feiras a Mirandela comprar e vender produtos ou para ir ao Tua. Para ir para a Alijó não havia transporte, nem estrada...ou se ia a pé ou a cavalo... …A morte da linha e alguns episódios um tanto tristes relativos ao ano de 1991 (quando se deu o fecho da linha do Pocinho para a Barca de Alva) : “as pessoas reclamaram, mas sabe que o transmontano, assim que vê os seus bens fugirem, tal como estão a fugir outros, hoje também, trata de demonstrar o seu desagrado”. Aconteceu isso nessa altura. Mas as empresas de camionagem começaram a fazer o mesmo trajeto do comboio e a ir às povoações. A linha Tua – Bragança acabou em 1991… A linha era segura e o caminho-de-ferro tinha muito movimento. Com o IP4, deu-se o declínio do caminho-de-ferro. Os militares, mesmo assim, ainda continuaram a frequentar o comboio, mas as empresas de camionagem acabaram por lhes dar as mesmas vantagens e eles começaram também a frequentar o transporte que elas forneciam. E a linha do Tua morreu muito por culpa das pessoas que deixaram de frequentar o comboio... Lembro-me de um desprendimento entre Brunheda e S. Lourenço (perto do Tralhão): houve um descarrilamento, a máquina vinha carregada de trigo e o maquinista faleceu. Outro, entre a Brunheda e 69


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Foz-Tua, em que o maquinista ficou sem uma perna... Estes acidentes aconteceram ainda no tempo da máquina a carvão… Quando o eng. V. afirmou que não podia garantir a segurança da linha, não pensou que as máquinas continuaram a andar de Mirandela para o Tua e havia segurança… houve depois mais descarrilamentos com as novas automotoras do que havia nesses tempos.... Pela linha do Tua vinham muitas mercadorias – havia vagões para os pequenos volumes. Com o IP4, deixou de haver transporte de mercadorias (pequena e grande velocidade)… acabaram os vagões completos e acabaram as mercadorias rápidas que só subsistiram alguns anos… A linha deixou de ser a vapor nos anos 80. Antes da construção do IP4, a linha tinha muito movimento. Havia 5 ou 6 composições diárias… Muita gente daqui que trabalhava no Cachão ia e vinha de comboio todos os fins de semana e outros, todos os dias… quase metade da nossa povoação… homens, mulheres, rapazes… trabalhava lá… o comboio daqui lá demorava cerca de 1 hora… O complexo do Cachão também utilizou muito a linha para fazer o escoamento de cereais, adubos, postes para os telefones e as próprias travessas da linha… No Amieiro, o único transporte que havia era o comboio... quando acabou a ponte a aldeia ficou isolada… só no verão se podia passar a pé numas cascalheiras que há ali abaixo… Para atravessarem o rio, havia o barco e o teleférico….” [Informante nº 8]

3.2.– Processo histórico-social e político em geral A linha e o comboio do Tua não só interferiram nas vidas anónimas de indivíduos e grupos sociais das comunidades transmontanas como contribuíram para as desenvolver e para envolver os locais e a região nos grandes acontecimentos do séc XX que marcaram o Mundo e Portugal. Deste processo complexo e denso nos falam as seguintes transcrições de fontes orais que nos aproximam dos momentos históricos coletivos pela singularidade dos que deles participaram direta ou indiretamente. • I Guerra Mundial “…da I Guerra Mundial… lembro-me… o Zé Pinto… fidalgo… do cimo do povo... andou lá e o Zé Carlos Almeida que casou com a Berta e morreu pouco 70


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depois, tuberculoso… ouvi contar que fugiram da guerra de cavalo… …”.[Informante nº 14.] *** “…Tenho ideia de ouvir dizer que o meu pai tinha nove filhos legítimos e mais do que isso ilegítimos… O meu pai era médico militar; reformou-se como coronel-médico. Estudou no Porto nos primeiros anos do curso, mas quando o pai morreu e perdeu as quintas, ele teve que emigrar para o Brasil, onde fez imensas coisas para sobreviver, até que percebeu que tinha mas é que continuar a estudar. Pediu dinheiro emprestado à lavadeira que era portuguesa e veio para Portugal continuar os estudos, mas em Lisboa… Aqui, agarrou-se aos livros a sério e formou-se... Depois foi para África (Angola). Como médico militar, andou nas campanhas de África da 1ª Guerra Mundial, onde tínhamos problemas com os Alemães… …Uma das formas que o meu pai teve de ganhar dinheiro no Brasil, foi a fazer versos, pois tinha muita facilidade para isso. Fazia versos para os namorados oferecerem às namoradas; e fazia discursos políticos que ele aproveitava de uns para os outros; só tinha que mudar umas tantas palavras e adequava-se a todas as fações políticas. Fez muitas outras coisas. Trabalhou na estiva; foi empregado de um talho… aqui, um dia, aconteceu-lhe algo que o fez perceber que precisava de regressar a Portugal e dar um rumo à sua vida… Um dia entrou nesse talho um antigo colega da Escola Médica do Porto que ficou muito admirado quando o viu ali…. Ele sentiu-se tão mal, tão mal, que jurou que havia de voltar para Portugal para se formar. Voltou, começou a levar a vida a sério e formou-se mesmo... Parece que enquanto estudou no Porto, andava sempre na paródia, mas quando foi estudar de novo, agora para Lisboa, decidiu que tinha mesmo que se formar. Com medo de se tentar e de não estudar o suficiente para se poder formar, pôs uma pistola em cima da secretária e disse: “João Lopes da Cruz, no dia em que perceberes que não te formas, dás um tiro na cabeça”. Tinha passado por tanta coisa que tinha percebido que aquele era o melhor caminho para ele.… O meu pai tem em Carrazeda de Ansiães uma rua com o seu nome João Lopes da Cruz (filho)… Tal como o pai, era muito generoso e tinha bom coração. Quando estava em Luanda e via os doentes, se as pessoas fossem mesmo carenciadas, não só não lhes levava dinheiro pela consulta, como ainda lhes deixava algum em 71


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cima da mesa para a galinha e para a canja. Tinha uma casa só para receber os Trasmontanos que emigravam para lá, enquanto eles não começavam a ganhar a vida em África… Quando regressou a Portugal, a grande preocupação dele foi desipotecar duas quintas em Trás-os-Montes que o meu avô perdeu quando faliu com as obras da linha do Tua. Uma delas era a quinta do Zimbro, que tinha um vinho do Porto muito bom. Mas, como era muito boa pessoa, acabou por dar as quintas a uma irmã que vivia lá e que tomava conta da mãe …” [Informante nº 34] • II Guerra Mundial “…Da II Guerra não tenho grandes lembranças… o volfrâmio… sim… nessa altura houve muito dinheiro porque se vendia o minério, muito caro, para Espanha… as raparigas que andavam a ele, metiam aquelas “chinas” nas meias, vendiam-no… era caro… e faziam bom dinheiro… compravam boas saias e vestidos… ficaram mais vaidosas… eu nunca andei… o meu trabalho sempre foi em casa e nas propriedades… os homens compraram casas… Os compradores vinham buscá-lo. Passavam-no, de noite, de uns sítios para os outros… era clandestino… Para o Tua, nunca vi que fosse… para a Alijó, talvez…”. [Informante nº 14] *** “…As minhas memórias da 2ª Guerra…: em 1939, frequentava a 2ª classe, quando passou em frente à casa dos meus pais uma padeira, que vinha do Tua e disse: “rebentou a guerra mundial”. Soubera da notícia, através dos caminhos-de-ferro e da estação dos correios. No Fiolhal não havia nenhum rádio. Lia-se o jornal que chegava pelas 15.30 horas da tarde para quem o assinava. Os meus pais faziam-no. Quando o jornal chegava, era uma alegria. Havia na aldeia dois irmãos, Celestino Luís e Luís Celestino, que liam para todos aqueles que se juntavam à volta deles. Os poucos que assinavam o jornal, emprestavam-no… Eu sentia a guerra distante, mas lembro-me bem do mapa que a minha mãe tinha na cozinha e onde ia pondo um alfinetinho, conforme as tropas iam avançando, tanto dos alemães como dos aliados. …Não fui afectada pelo racionamento porque os meus pais eram abastados. Mas, as famílias numerosas tinham muitas dificuldades na aquisição de alimentos. E acabaram por ser as mais afectadas pelo racionamento. …Aprendi a fazer sabão com 72


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borras de azeite e soda cáustica quando Salazar deu ordens para se produzir e para se poupar. Havia mesmo um aforismo popular naquela época: “produzir e poupar, manda Salazar”. Salazar dizia” das camisas velhas dos vossos maridos, fazei camisas novas para os vossos filhos mais velhos e das camisas velhas dos vossos filhos mais velhos, fazei camisas novas para os vossos filhos mais novos”. …Também me lembro de que havia contrabando de café para Espanha. …e a farinha era racionada. …Lembro-me que em casa dos meus pais se fez um buraco enorme no quintal para esconder as latas do azeite. Havia gente com fome que ia aos quintais das pessoas abastadas e tentava roubar para comer… [Informante nº1] *** “…Estamos a falar dos anos 40 do tempo da fome por causa da 2ª guerra. O povo vivia mal: comia uma malga de caldo de couves, não havia azeite, nem batatas, nem pão...O racionamento durou um ano inteiro. Íamos aos “sótos” ao Pinhal e à Brunheda, mas era tudo muito racionado... Havia muito contrabando de azeite… Fazia-se o sabão com as borras do azeite, com cinza e soda Depois punha-se a secar ao sol…. O carvão também começou a falhar muito e as mulheres iam a pé, com molhos de lenha à cabeça, levá-los à estação da Brunheda, de onde seguiam para o Tua e para Mirandela. …Nesta altura havia muito movimento na linha. Era pelo comboio que vinham as mercadorias, o cereal, o peixe, o carvão e...o correio. Para se deslocarem a Mirandela, só tinham o combóio. Também se ia a cavalo, mas demoravam-se bem 4 horas... Quando se ia a Mirandela comprar ou vender ovelhas, ia-se a pé, mas saía-se ao fim da tarde e chegava-se lá no dia seguinte de manhã…” [Informante nº4] *** “…1945, ficou conhecido pelo Ano da Fome, em que tudo era racionado. Faziam-se trocas: por exemplo, trocava-se um litro de azeite por um quilo de açúcar. Lembro-me de uma senhora da Ribeirinha da linha do Tua, que tinha muito açúcar e que fazia este tipo de troca… Quando não havia pão, faziamse talassas: faziam-se na sertã, com farinha muito rarinha e açúcar por cima. Tomava-se com elas o café, todos os dias… Um pão centeio chegou a custar 50 escudos. Começou a não haver mercearia nos “sótos”… Aquilo que se po73


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dia arranjar era através de senhas que se iam buscar à Câmara de Carrazeda. Era tudo racionado. E havia muitas famílias com 6, 8 e 12 filhos...Só com um filho, eram muito poucos…” [Informante nº 5] *** • Guerra Colonial Portuguesa em África. Emigração para a Europa “…Fiz o curso de radio-telegrafista no Porto e fui escolhido para a Trafaria… fui como operador de informação, 1º cabo, para São Tomé… eram ao todo 30 homens neste trabalho, considerados os trinta melhores do curso e, por isso, escolhidos. Reportavam ao capitão Jales Moreira. Tinham muito boas relações com o Comandante. O meu número mecanográfico era o 00063866. Aqueles que possuíam os números mais baixos foram os primeiros a ser mobilizados. Quando fui para o Ultramar tinha feito a 4ª classe, mas lá frequentei o liceu e terminei o 2º ano. …O dia-a-dia em S. Tomé: controlava informações de guerra e dos movimentos independentistas… na base dos aviões da Cruz Vermelha e outros… no local de trabalho, estavam sempre 3 homens de serviço que tinham tarefas diferentes; um, gravava emissões em bobines, da Rádio Portugal Livre, da Rádio Kinshasa, por exemplo; outro, gravava novas emissões que aparecessem de Cabinda, Congo ou de Kinshasa, colónias espanholas e Guiné Equatorial; finalmente, o terceiro gravava tudo em Morse e eu era um deles…pertencia aos serviços secretos, convidados para a Pide e correios… Foi na altura da crise no Biafra e da guerra em Angola… Tinha a oportunidade de ter muita informação. Por exemplo, lembro-me de que uma vez apanhámos uma mensagem que informava acerca de uma emboscada que iam fazer às tropas portuguesas. Imediatamente enviámos uma mensagem relâmpago (mensagem prioritária em Morse) para Lisboa. Sobre a guerra apanhávamos mensagens importantes assim como notícias prévias de ataques, tudo através do código Morse. As mensagens eram transmitidas para Lisboa. Fui convidado pela PIDE para ficar nesta ilha, mas não aceitei… Um colega meu foi para a ilha do Príncipe, mas era uma vida de ilha sempre limitada… Também não me dava com o clima que era muito quente e muito húmido. Emagreci lá 13 kilos e fiquei sem o cabelo. Quanto ao resto, a vida em S. Tomé “era a vida de uma ilha: passávamos meses inteiros a alimentar-nos de arroz porque muitas vezes falhava o barco e batatas não as havia”. Era a vida muito limitada... a 74


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chegada de certos géneros alimentares estava sujeita à chegada do barco. O camarão era barato e podíamos mesmo apanhá-lo. Tinhamos fogão e fazíamos a nossa própria comida. Também conheci bem a vida das roças. Conheci lá gente como, por exemplo, um senhor que era da CUF e um outro que era de Pombal de Ansiães, da família dos Malheiros. Este, foi para lá muito novo e lá casou com uma senhora que era dona de várias roças de café, de cacau e de côco. Ele era irmão do Sr. Albino Malheiro e cunhado da Srª. Conceição, do Pombal….” [Informante nº 8] *** “…A CP era o lugar que nos dava mais segurança naquela altura… estive como eventual, na CP, até 1970. Em Janeiro desse ano fui assentar praça em Vila Real e comecei a fazer tropa em Abrantes, onde fiz a especialidade de infantaria. Depois fui para Moçambique. Fiquei na pior zona de guerra: Cabo Delgado. Estava já perto da Tanzânia. Só para chegar de Lourenço Marques até à Companhia para onde fui, demorou 3 meses… fui em rendição individual: o cabo que fui render, era de Braga, tinha levado um tiro nas costas, na sequência do qual morreu. O batalhão a que eu pertencia foi para Cabinda, mas na altura, os que tinham mais pontuação, por estranho que pareça, não eram os que eram mais depressa mobilizados e os do meu batalhão queriam que eu trocasse com um soldado casado, mas ele entendeu que se não tinha sido mobilizado, também não tinha que trocar. Então, vim para Lisboa, onde estive um mês, seguindo depois para o quartel de Chaves para ir substituir aquele cabo que morrera. …A vida no batalhão não era fácil, sobretudo porque eu ia sempre para os Adidos e passava o tempo a mudar de sítio: Lourenço Marques, Nampula, Moeda, Sagal, Palma, Porto Amélia… Estava sempre sob fogo mas o maior medo ainda era o das minas. Tive dois acidentes nas minas anti-pessoais, vi morrer muitos colegas, vi outros que ficaram cegos, outros sem pernas e muitos horrores… …Um pelotão de combate tinha 25 homens. Tinha 2 Cabos e 1 Furriel. Depois, ainda se dividia em 4 equipas. Eu tinha a minha equipa. Quando transportavam os camiões, as equipas tinham que picar o caminho (aquilo não era estrada nem era nada…). Só depois é que passava o camião a que chamavam o rebenta minas que era uma Berlier sem portas, nem tejadilho, nem nada e ia carregada de sacos de areia. Dos lados havia tipo de uma bala 75


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e os que iam atrás, tinham os sacos no chão e, no centro, uma metralhadora, chamada A Breda, onde ia sempre um 1º Cabo e um Soldado que era o municiador que puxava as balas. …Foi aqui que fui duas vezes ao ar, nas minas... Nestas minas, ficava-se desorientado, abalado… Quando se ia para um daqueles lugares onde estivessem aqueles a quem os soldados chamavam “turras”, iam sempre paraquedistas ou os Comandos para ajudarem; faziam o reconhecimento e depois instalavam-se à volta para eles descerem. Quando iam para o mato, iam mais confiantes… Só mais para o fim é que regressei à zona de Inhambane, onde já era melhor (quase não se ouvia falar de guerra). Ainda estive um mês destacado com o pelotão a que pertencia, num lugar chamado Malvérnia que era a antiga Rodésia. Mas, o pior ainda estava para vir: o pelotão a que pertencia foi destacado par a o Norte, já mais perto da Beira. No Norte tivemos um grande ataque quando seguiamos por uma estrada. Vi morrer colegas e muitos africanos e aí é que fiquei mesmo abalado. Nesta zona tive uma vida um bocado atribulada. Ao todo, fiz 34 meses de tropa. …Quando regressei, em 1972, não conseguia falar sobre a guerra. Andei a tratar-me em Mirandela e no Quartel Militar do Porto… Quando fui para Moçambique, embarquei no navio Pátria que demorou 22 dias. Para cá já vim de avião. Embarquei na Beira… …Em 1973, emigrei para o Luxemburgo. Aí também ainda tive acompanhamento médico… acho que nunca mais fui a mesma pessoa. Para ir para o Luxemburgo, tive que pagar a quem conseguiu que eu fosse, mas já fui com documentação. Fui trabalhar para uma linha de caminhos-de-ferro, chamada “Companhia do Seco”. Tinha que andar a reforçar as pontes antigas, de ferro, mas o trabalho era penoso. Apanhava-se muito pó e não era um trabalho nada saudável; apesar de ter um chefe que gostava do meu trabalho, acabei por desistir e ir trabalhar para o Aeroporto, na parte da aerogare, na assistência para carregar, descarregar e limpar o avião…. Aí fui incentivado a candidatar-me para a Delegação dos Trabalhadores (mais ou menos em 1980). Fiquei logo como Delegado à Segurança e depois como Secretário, depois Vice e, finalmente, Presidente. Mas fui-me apercebendo de que as pessoas de lá não gostavam muito dos Portugueses; igualavam-nos aos Marroquinos e aos Argelinos; não éramos bem vistos. Eram contra nós pelo facto de ainda termos as colónias. Ora, se nós tínhamos feito aquela guerra contrariados e tínhamos sofrido na pele com todo aquele horror, nós achávamos que eles assim estavam a bater à porta errada. Vinham comboios cheios de skinheads 76


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(os da cabeça rapada), manifestar-se contra os portugueses. Teve que vir o Duque falar à televisão …ele ainda tem uma costela aqui de Bragança… para acalmar os ânimos. …É que estes jovens emigrantes que tinham feito a guerra do Ultramar não tinham ainda família constituída e estavam lá sozinhos, bem treinados na luta e, então, os hospitais enchiam-se naqueles dias das manifestações… partíamos-lhes as costelas com os cartazes que eles traziam; eu estive envolvido nisto, pelo menos umas três vezes... Quando me aposentei, regressei a Codeçais, aonde vivo com a minha família. Agora que estou reformado apenas me dedico a cultivar as minhas hortas… [Informante nº 30] • 25 de Abril de 1974 …quando foi do 25 de Abril, uma vez, ao chegar a Salsas, o fator Pimentão estava a dizer que havia uma revolução e o Jorge tinha lá um cartão a dizer VIVA A LIBERDADE… Pusemos logo o cartão na frente da máquina e lá fomos assim até ao Tua… Antes do 25 de abril, já havia o sindicato dos ferroviários, mas era quase só para os compadres e afilhados. Não funcionava nada. Depois do 25 de Abril formou-se o sindicato dos maquinistas e as coisas avançaram um bocadinho… já ganhávamos mais uns tostõezitos e tínhamos mais direitos... Em 1991, em Mirandela, tirava quase 300 contos... Foi nessa altura que fiz a minha casita na Lavandeira. Mas, quantas vezes comíamos em andamento! Saíamos de Mirandela às 5 da tarde para chegar a Bragança por volta das 8 ou 10h para comermos, mas quantas vezes estávamos a comer e a neve passava de um lado para o outro! Era complicado... [informante nº 40] *** “…Lembro-me bem de ter passado a data do 25 de Abril na estação. Senti um bocadinho a liberdade e comparei o que via com o meu marido a ouvir a Rádio Moscovo debaixo dos lençóis… E foi bom este dia, até porque os ferroviários passaram a ganhar mais um bocadinho… Havia 4 comboios de passageiros ao longo do dia: 4 para Bragança e 4 para o Tua. …Recordo com tristeza o acabar da linha entre Mirandela e Bragança. A viagem demorava por volta de hora e meia, mas valia a pena fazê-la só pela paisagem que era maravilhosa, tal como a viagem para Foz-Tua. Enquanto houve comboios, quer de passageiros, quer de mercadorias, houve sempre muito movimento na estação. As pessoas vinham sobretudo para Foz-Tua. Na altura da guerra 77


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colonial, havia alguns comboios só para militares… Entre 1970 e 1985 ainda funcionava muito o comboio a vapor: era usado pelas pessoas das aldeias da região, por pessoas que vinham do Porto, de Lisboa e de outras proveniências. Já existia o autocarro, o qual acabou por prevalecer porque o dinheiro compra tudo…” [Informante nº 11]. Numa análise retrospetiva dos registos transcritos, vemos cruzarem-se ciclos de tempos e lugares densificados de acontecimentos com impactos diversos e em diversas escalas: local, regional, nacional e global. Podem observar-se, nessas conjunturas e contextos económico-sociais, aspetos culturais dominantes de um crescente dinamismo da história local que gravita em torno do vale, linha e comboio do Tua, cujos agentes sociais e seus comportamentos simultaneamente influenciaram. São, como se viu, narrados e comentados pelos indivíduos que respetivamente os situam nas diferentes etapas do processo histórico nacional e internacional em que ocorreram, tendo-os vivido direta ou indiretamente. Registaram-se como vetores predominantes da História os grandes conflitos bélicos que marcaram inexoravelmente o séc XX no plano nacional e internacional, e que tiveram o seu impacto, à escala regional de Trás-os-Montes e ao nível local, afetando também as vidas das populações da sub-região do Tua cuja interioridade e isolamento se foram reduzindo por força de um maior movimento económico e mobilidades sociais geradas pelo longo e regular funcionamento do caminho-de-ferro. Deixaram-se assim também esboçados alguns traços marcantes de uma história local “não ensimesmada” em busca de seu estatuto próprio. O significado do local na pesquisa histórica, uma espécie de depósito arqueológico de épocas e locais diferenciados, situou-se a um “nível de construção / investigação da realidade em que as coisas adquirem uma dimensão distinta, um “tempo específico” o “tempo dos lugares”, próprio “de cada espacialidade” (Jesus Arpal). Podemos intuir a diversidade e homogeneidade dos espaços, apreender o tempo vivido pelas localidades, composto de uma amálgama de experiências diferentes dos “pólos hegemónicos”, o que permite também problematizar a relação tempo-história, evitar o reducionismo histórico, apresentar o concreto da dinâmica social e do quotidiano das populações e dos indivíduos, devolvendo-lhes a sua historicidade. Em síntese, ficou bem visível no caso do vale do Tua, que se à história local interessa, sobretudo, a apreensão do “tempo dos lugares”, um tempo realmente 78


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vivido pelas populações das e nas localidades, composto por uma amálgama de experiências distintas, a história nacional e internacional “generalizante” trabalha um tempo uniforme, o chamado “tempo do mundo” que “não é, nem deve ser, a totalidade da história dos homens” (F.BRAUDEL: 1996, 8-18). 015 Daí, também, o interesse acrescido do presente capítulo em que se relevaram ecos e impactos locais de acontecimentos históricos nacionais e internacionais do séc XX que se fizeram sentir na região do vale do Tua, bem como se deu ênfase aos modos como foram apreendidos e vividos coletivamente pelos seus indivíduos, naturais e residentes.

015  LAGE, Maria Otilia Pereira – “O tempo dos lugares: Carrazeda de Ansiães e Torre de Moncorvo na I República. “ Revista CEPHIS, n2, 2012, p.337-363.

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Terminus da linha do Tua em Bragança- Chegada do 1º Comboio, 1906 (Foto Raizes disponibilizada no Blogue” Amigos de Pensar Ansiães”)

4.HISTÓRIA VIVIDA. A arte de contar e fazer contar no Vale do Tua “A Vida não é a que uma pessoa viveu, mas sim a que ela recorda e como a recorda para contá-la. “ (Gabriel Garcia Marques)

Continuando a mobilizar fragmentos de histórias de vida, aborda-se agora, de modo mais específico, a história vivida. A epígrafe anterior sinaliza a precaução literária016 em relação à escrita da história que tal como na literatura só pode narrar os restos ou rastros do acon016

Gabriel Garcia Marques, escritor colombiano, Prémio Nobel da Literatura em 1982.

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tecido, uma vez que tem de suportar-se em fontes e registos em que os tempos idos se traduzem já transformados pelas recordações e memórias dos homens. E podemos,a partir de agora, operacionalizar esses rastros do acontecido ampliando com maior solidez e vivacidade o conhecimento socio-histórico desta sub-região transmontana e da linha férrea do Tua. As análises feitas ao material das entrevistas realizadas, exemplo dessas fontes orais e rastros ou restos, permitem observar, como se viu, múltiplos temas que por elas perpassam suscetíveis de serem traduzidos em palavraschave que representam os conteúdos essenciais das narrativas dos entrevistados e os acontecimentos que mais os marcaram. Recuperam-se os conteúdos mais significativos do conjunto das entrevistas: dados, informações e assuntos recorrentemente abordados bem como o que neles perpassa, subliminarmente, e o que se subentende nos discursos e memórias dos atores. Identificam-se cinco vetores transversais que atravessam e organizam os conteúdos – o vale e o rio, a linha férrea e o comboio, a envolvente natural e a exploração termal e agro-industrial (Termas de S. Lourenço, Sociedade Clemente Menéres no Romeu, CUF-Mirandela e Cachão). Traduzem-se e interpretam-se os principais e mais expressivos resultados do trabalho de campo que lhes subjaz, baseado em metodologias da história oral, através da compilação, ordenação e transcrição dos excertos mais representativos das narrativas entendidas como fontes orais essenciais à construção da História Contemporânea das populações locais do vale do Tua. Estabelece-se com os atores sociais uma relação simétrica entrevistador -entrevistado e os seus depoimentos e testemunhos são tidos como os de autoridade no assunto, pois se parte do princípio que os dados e informações não precisam de ser verificados nem referenciados às trajetórias dos próprios indivíduos que os forneceram podendo ser cruzados entre si e com outros documentos. Uma das contribuições da história oral foi a da ampliação da conceção de fontes históricas e testemunhos verbais autorizados, inclusive de indivíduos e populações anónimas, até na medida em que, como refere o historiador Paul Thompson “ o gravador tem permitido que a fala da gente comum – sua habilidade narrativa, por exemplo, - seja, pela primeira vez, seriamente compreendida” (Thompson, 1992: 41). Cada depoimento é tratado como uma versão sobre o acontecido e o vivido, sem minimizar o facto de que “a ‘entrevista de memórias’ comporta possibi81


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lidades de reconstrução de rotinas e modos de vida quotidianos que, de outro modo, teriam que se considerar historicamente perdidos por falta de transmissão” (Niethammer, Luz, 1989:12). Não se pode então separar nos relatos, o “real” da impressão pessoal pois que o processo de memória também depende do interesse individual do informante que, por vezes, tem ainda intenções claras quanto ao registo do acontecido e do vivido. Porém, esta dimensão de subjetividade é uma questão que exige reflexão mediatizada na medida em que “recordar e contar é já interpretar (…) excluir ou exorcizar a subjectividade como se fosse somente a fastidiosa interferência na objetividade factual do testemunho, quer dizer em última instância, torcer o significado próprio dos factos narrados” (Portelli, Alessandro, 1996:60-61) A credibilidade das fontes orais é uma credibilidade diferente. Se na perspetiva dos entrevistados a importância dos relatos orais reside no processo de construção simbólica do acontecido realizado no testemunho, na ótica do investigador, a história não é apenas sobre as estruturas, os eventos, ou comportamentos, mas ainda sobre os modos como são vivenciados e lembrados na imaginação. Faz parte da história não só o que os indivíduos pensam que aconteceu mas também o que acreditam que poderia ter acontecido… sua imaginação de um passado e de um presente alternativos pode ser tão fundamental quanto o que de facto aconteceu. (Thompson, 1992: 41). As narrativas de história oral “têm valor documental e sua interpretação tem a função de descobrir o que documentam” (Alberti, Verena, 2004:19) e a história oral privilegia a recuperação do vivido, segundo a conceção de quem o viveu, a partir das formas interpretativas e da reconstrução da memória de quem o viveu. Aliás, esse fascínio do vivido é, hoje, um dos principais fatores do sucesso académico da história oral. Devedor de idêntico fascínio é ainda o documentário vídeo, material acompanhante deste livro, o qual foi construído a partir dos registos de som e imagem de histórias de vida segundo roteiro ou moldura organizativa que adiante se apresenta. As sub-rubricas que se lhe seguem expandem-se em narrativas orais que documentam minuciosa e extensivamente temas alusivos aos principais recursos naturais e materiais do vale e linha do Tua referenciados e sua história recente, sendo implícitos os modos como foram vivenciados e são lembrados.

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4.1. Roteiro de um documentário histórico e sentimental Seguiremos, daqui em diante, uma espécie de Roteiro de vidas no Vale do Tua, memórias da linha e do comboio de Foz- Tua a Bragança, cuja estrutura, o documentário vídeo ajudará a traçar os contornos que definem a micro-história do vale, rio, linha e comboio do Tua e suas envolventes natural, económica, social e cultural captando na medida do possível, o processo da sua evolução ao longo de mais de 120 anos e a história vivida das populações que se pode apreender nas histórias de vida. A temática abordada de história social contemporânea – modos de vida das populações do vale, memórias, vivências, tradições, mobilidades e modernidades em torno da via férrea e do comboio - foi em certa medida suscitada por dois acontecimentos recentes ocorridos já no presente século: o encerramento da linha férrea e a suspensão do funcionamento do comboio, fraturante do viver, pensar e sentir das populações ribeirinhas e a polémica em torno da construção da barragem do Tua. É tratada sob o ponto de vista estético e antropológico de um narrador, observador crítico e participante do meio físico e das pessoas que o habitam e / ou habitaram e que pretende, a partir de factos infinitamente pequenos e imponderáveis da vida quotidiana, conseguir chegar a generalizações convincentes (Malinowski). Visa-se deixar intuir aspetos do trabalho empírico de investigação desenvolvido num processo intensivo de pesquisa em contacto com as populações, durante mais de três anos, que se traduziu na acumulação de um espólio significativo de histórias de vida e fontes orais que permitem reconstruir e divulgar a História Local e Regional, memórias, vivências e representações do vale, rio, linha e comboio do Tua, tema presente na sociedade portuguesa, com particular enfoque no último século de história desta periferia interior do Nordeste Transmontano. Paralelamente, pretendeu-se também contribuir para documentar e divulgar a riqueza cultural, visual, ambiental e paisagística desta micro-região. As principais sequências contempladas organizam-se num eixo espáciotemporal que acompanha o processo histórico da linha férrea do Tua desde a sua construção / inauguração até ao seu encerramento progressivo desde os anos 1990 e construção da barragem do Tua, a partir de 2008, passando pelas fases de seu desenvolvimento, auge e declínio. As estratégias de abordagem, definição de estrutura e estilo de tratamento 83


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do assunto, que se pretendem muito simples, visam a flexibilidade do roteiro, conciso e objetivo, aqui esboçado como apoio ao desenvolvimento do presente capítulo que apresenta por sua vez uma forte componente de arquivo oral vivo o qual implica também que seja resultado de um processo criativo marcado por várias etapas de seleção que orientam uma série de recortes, entre a conceção da ideia e a edição final que marcam a apropriação do real por um discurso de natureza histórico-social. Sublinham-se, como contexto englobante, à partida, registos marcantes do evento de inauguração oitocentista da linha férrea do Tua, animada pelo apito das máquinas a carvão e a diesel, e o trepidar da passagem do comboio ronceiro nos carris, ilustrados por fotos do álbum da linha do Tua de Emílio Biel e imagens da banda desenhada de Rafael Bordalo Pinheiro. Termina-se com a evocação de objetos do património ferroviário da linha que integram o importante espólio museológico de máquinas / carruagens desativadas e material circulante à guarda do Museu Ferroviário de Bragança, sob o fundo sonoro da canção, outrora em voga, de Mário Contumélias “Olha o comboio que sobe o Tua…”, premiada no Festival Televisivo da Canção em 1979, a que se sucedem imagens atuais da construção da barragem do Tua. A perspetiva de desenvolvimento centra-se, imaginativamente, no fluir dinâmico do rio Tua desde a nascente - junção dos rios Tuela e Rabaçal - até à Foz no Douro – margens e leito fervilhantes de vida de espécies animais e vegetais e reconstrói-se com fragmentos de entrevistas e histórias de vida – excertos videográficos e textuais narrados na 1ª pessoa (material impresso e material de arquivo – filmes de encontros de ferroviários, fotos antigas, arquivos de som e pesquisa de campo nas locações de filmagem) selecionados a partir dos mais informativos, dramáticos ou não, atraentes e sugestivos. O argumento esboça então a história contemporânea dos últimos 120 anos desta microrregião transmontana, essencialmente rural, mas pontuada por empreendimentos agro-industriais (Romeu, CUF-Mirandela, Cachão) e alguns aglomerados urbanos (cidades de Mirandela e Bragança e vilas de Alijó, Murça, Carrazeda, Vila Flor, Macedo de Cavaleiros) – região revolucionada pela ferrovia e que abrange o recém-criado Parque Natural Regional do Tua. Apresenta-se a Linha Ferroviária do Tua nos troços Tua-Mirandela e Mirandela-Bragança, numa perspetiva histórica da sua construção nos finais do séc XIX e funcionamento ao longo do séc XX, enfatizando a importância da conservação do património natural e ferroviário com vista a um futuro de84


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senvolvimento turístico. Dá-se relevo ao património paisagístico do vale do Tua, ribeirinho e planáltico, e ao património construído (pontes, estações, apeadeiros, termas, azenhas, moinhos, casas, empresas e empreendimentos agro-industriais…). Privilegia-se, simbolicamente, a área de incidência direta do espelho de água incluindo a área submersa / desmontada por impacto da construção da barragem do Tua. Sugerem-se algumas breves reflexões sobre o efeito da construção da barragem do Tua no património construído, da perspetivação de novas oportunidades económicas e sociais que poderão ser abertas para a região transmontana, e reflete-se sobre a importância da conservação do património construído, tendo em vista o desenvolvimento do turismo cultural. O contraste entre o passado e o presente do caminho-de-ferro, que com as suas transformações, serviu a população do Nordeste Transmontano durante um século, é relevado, sem visões saudosistas, neste “repositório histórico” sobre o caminho-de-ferro que, outrora, trouxe desenvolvimento e progresso para a região e que hoje se espera seja transformado em património que deve ser recuperado para continuar a servir as populações locais, numa perspetiva eficaz de desenvolvimento localmente rentável, sustentado e gerador de uma forte dinâmica de equilíbrio tradição / modernidade. Por isso se releva o património histórico, o património material, o imaterial e o construído, o património vernacular ferroviário. “Todo o esforço titânico daqueles homens que, muitas vezes, estavam um dia inteiro pendurados numas cordas a destruir rochas tinha que ser homenageado, tal como o eng. Dinis da Mota que conduziu a locomotiva real de inauguração da linha, o empreiteiro João da Cruz que construiu o troço da linha de Mirandela a Bragança, acabando na bancarrota e Abílio Beça, o político que representou Bragança em Lisboa e defendeu Bragança até à sua morte, na estação de comboio de Salsas”. A estabilidade das pontes, estações e apeadeiros e outro património material e imaterial, numa abordagem algo geométrica, cruza-se com a recriação de um processo rápido e simples por meio de uma sucessão de curtas viagens da automotora e metro atual de Mirandela ao Cachão, encarada de forma meramente indicativa de mobilidades urbanas remanescentes. O argumento do documentário vídeo constrói-se com materiais editados dos 50 depoimentos videográficos, de forma a ajustar as realidades vividas, recordadas e narradas, em observação ao formato discursivo de um imaginado documentário fílmico. 85


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A sua estrutura aproxima-se de um caleidoscópio de memórias individuais masculinas e femininas (trabalhadores e residentes de várias localidades do vale e passageiros do comboio) e coletivas (encontros de ferroviários no 25 de Abril), sempre narradas na primeira pessoa e desenvolve-se em três atos centrais de contornos espácio-temporais. O fazer e o desfazer desta epopeia podem ser representados cenicamente como se propõe no guião-roteiro que consta do Apêndice Documental que se inclui no fim do livro. A apresentação e o desenvolvimento sequencial das cenas principais fazse em planos justapostos do passado / presente e em diacronia de sequências cronológicas do recente ao passado histórico e dos mais antigos para os mais jovens informantes privilegiados, cruzados num eixo geográfico descendente, da Nascente para a foz do rio Tua (Bragança, Romeu, Mirandela / CUF, Cachão, Vila Flor, Murça, Alijó, Carrazeda, Tua). A linha férrea é sempre evocada e recriada como a espinha dorsal de Trás-osMontes, entre ruralidade e modernidade, tradição e inovação, com relevo para a mobilidade das populações, escoamento e fluxos de mercadorias importadas / exportadas, através da composição e análise de diversificados conteúdos e fragmentos das trajetórias biográficas e histórias de vida” mais significativas segundo critérios de representatividade, de qualidade e de saturação informativa.

4.2. Recursos naturais, patrimoniais, materiais e técnicos. A diversidade de recursos próprios e as raras potencialidades naturais e materiais desta zona da região transmontana são frequentemente referidas nas narrativas e trajetos de vida e de trabalho dos informantes. Estes salientam as belíssimas condições naturais, as culturas agrícolas, silvícolas e pecuárias, a fauna e flora local, a existência de um património histórico edificado, do mais antigo, como o arqueológico e religioso, ao mais recente, em que destacam o balneário termal de S.Lourenço e empreendimentos agro- industriais concretos de maior vulto, que influíram no desenvolvimento económico e social transmontano do séc XX, e se desenvolveram à sombra da linha e do comboio do Tua, entretanto hoje, como estes, já desativados e encerrados. 86


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Numa perspetiva atual e de futuro, cujo interesse é igualmente relevado pelas populações locais, trata-se de um conjunto significativo de condições e meios potenciadores de desenvolvimento do turismo rural e natural que, a par da ausência de problemas ambientais, pelo menos, até recentemente, e da reativação da linha e do comboio do Tua como meio de desenvolvimento de turismo integrado e sustentado, é subliminarmente desejado pelos informantes entrevistados e visto como futuro económico, social e cultural, local e regional. A região é também reconhecida pela existência de numerosos cursos de água, que correm geralmente em vales apertados e sinuosos, como é típico dos rios “jovens” de montanha, recurso hídrico que contrasta com um solo em geral árido e seco. Notam-se os contrastes dos vales profundos e encaixados em vertentes íngremes e abruptas com intervenção humana remota. O homem foi mudando a paisagem natural que tem vindo a ser transformada pelo agricultor, substituindo as mais antigas por novas espécies como os sobreiros, os medronheiros, as estevas, etc. Ao longo das estações do ano mudam-se os ambientes e as cores: tonalidades escuras esverdeadas e fulvas no outono e inverno frios e húmidos, contrastam com o colorido de amarelos e verdes na Primavera e Verão, mais soalheiros, mantendo-se a componente comum dominante dos rios Douro e Tua. Esta zona transmontana caracteriza-se por uma vegetação rica e diversa e por grandes contrastes a que correspondem distintos cobertos vegetais e diferentes usos do solo condicionados pelas variadas e extremadas condições geográficas (relevo do terreno) e climáticas entre a Terra Quente, a Terra Fria e uma zona de transição. Na Terra Quente, onde corre o rio Tua, de invernos amenos e temperaturas elevadas no Verão, as culturas mais comuns são a hortícola e frutícola, sendo frequentes, para além da batata e cereais (trigo, centeio, aveia), a vinha, a oliveira, a amendoeira, a figueira, a laranjeira, o sobreiro, o pinheiro manso e várias espécies de ervas medicinais. Já mais próximo da região duriense, sobressaem os socalcos e patamares de vinhedos. Em algumas zonas existe um “matagal” mediterrânico, em estado virgem, formado por bastante vegetação herbácea e arbustiva tradicional e típica do ecossistema mediterrânico. Este tipo de vegetação natural encontra-se nas zonas de baldios, nos vales que acompanham as linhas de água, até ao Tua. Quanto à atividade pecuária predominam as ovelhas e as cabras. 87


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Na Terra Fria, com invernos longos e frios e geadas regulares, são frequentes os lameiros de regadio, o trigo e a batata, os carvalhos, sendo também comum a criação de gado. Os montes e serras são um equilíbrio da sustentabilidade, com ecossistemas agrários-sociais, com grande extensão de culturas cerealíferas (trigo, centeio, cevada, e milho miúdo), e ainda algumas importantes espécies arbustivas produtoras de lenha e de frutos como a castanha, a azeitona e a amêndoa. Distingue-se ainda uma zona de transição, com características intermédias entre a Terra Fria e a Quente. Os valores de precipitação os mais elevados surgem a poente e vão decrescendo para nascente e para sul; este clima muito particular permite não só um bom cultivo da vinha e oliveira mas também a fruticultura. Todas estas características fazem da paisagem um património único de Trás -os-Montes a preservar e uma das suas grandes atrações, com a presença humana, apesar de atualmente cada vez mais rarefeita, devido ao envelhecimento populacional e desertificação crescente, ainda a fazer-se sentir, nas práticas agrícolas e hortofrutícolas em regra de economia familiar que lhe conferem um carácter único e distinto, como é o caso da vinha e dos pomares de amendoeiras, oliveiras, laranjeiras e outras árvores de fruto. Uma perceção comum de todos estes recursos desprende-se da generalidade dos relatos e histórias de vida espácio-temporalmente enraizadas na história centenária da ferrovia do vale do Tua, conforme se ilustra na seguinte narrativa que traça um quadro impressivo da vida quotidiana nas aldeias ribeirinhas do Tua quando ainda eram servidas e dinamizadas pela linha férrea. “…a linha do Tua… aí na estação da Brunheda, nesse tempo furavam uma trincheira muito forte e ficou muito minério espalhado por ali… era um pedregulho grande… havia um filão que passava por debaixo da linha …deixavam passar o comboio… e andavam por lá na trincheira a apanhar o minério… apareceu lá um filão que dava umas “chinas” boas… era só chegar lá, meter os guilhos e tirar… mas cá no alto também andaram muitos ao minério… os compradores vinham saber dele de noite, carregavam os sacos em burros e levavam-no por esses caminhos para onde calhava… andava muita gente envolvida e havia muito quem o comprasse… naqueles anos do minério não se fabricava nada… andavam só a apanhar, a comprar e a vender minério…eu não andei que era pequeno… o meu pai sim também andou ao minério… ia 88


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para a Carrazeda a pé… a Mirandela e ao Tua iam de comboio que agora só há do Cachão a Mirandela… aqui vem um táxi que faz os transportes… dizem que a EDP vai compor a linha… bem é, que andava sempre a automotora cheia… na Sentrilha havia 12 casais, com mais de 7 filhos cada e que tinham 7 juntas de bois e gado caprino e ovino… vendia-se daqui muito vinho, algum para queimar e fazer aguardente vínica; muita ia para o Castanheiro fazer o vinho tratado… eu teria os meus 12 ou 13 anos… lembra-me mais porque eu andava por lá com as ovelhas nas terras da Brunheda e bem os via arrancarem muito minério… do outro lado do rio também havia… andava muita gente com um sacho, faziam uns poços… andava muita gente atrás dele… o meu primo que está em Mirandela comprou um pouco… no Pombal, nas Areais, na encosta do Pinhal, em Zedes, no Amedo… aí em Carrazeda era o minério da companhia alemã… ainda há lá e em muitos sítios por aí, poços bem fundos… muitos, os caçadores sabem onde estão… …sim… acho que sim, o minério podia ir muito pela linha do Tua mas não se sabia o que lá ia… preparavam as embalagens camufladas… muito desse minério era do contrabando… só a companhia podia vender, mas aí tinham as camionetas e os carros que transportavam… vinha cá muita gente do Cachão comprar minério… na Pranheira do Amedo havia lá muito… tinham lá uma casas boas… dos fiscais e dos engenheiros… muita dinamite para rebentar aquelas pedras grandes e abrir as frentes e havia lá muitas carretas para ir ao fundo das minas… depois desapareceu tudo numa noite… lembro-me bem de andarem lá a trabalhar muito tempo… lavavam o minério numa vala de água que escorria pelo caminho abaixo… lembra-me muita coisa… havia muito movimento nessa altura… carravam tudo para o Porto… azeite, cereais, vinhos que iam direto dos lagares em bidões de 30 almudes… daqui até à estação da Brunheda iam em carros de bois pelos caminhos que ainda não havia estrada… para cima, carravam adubo… os comboios passavam todos os dias, vários… ao meio dia passava um para baixo para o Tua e às três outro para cima, para Mirandela e Bragança… era o comboio… comboio normal era só um; à noite era o misto que arrebanhava o pessoal e as mercadorias… …cada estação tinha um chefe e um carregador… os do Amieiro, Codeçais e Franzilhal, encostado ao Cachão, eram todos a trabalhar lá, sábados e domingos… os do Pinhal trabalhavam mais nos prédios, a fabricar a terra… no caminho de ferro eram mais das aldeias ribeirinhas… os de Abreiro eram mais chefes e revisores… no Amieiro tinha pessoal para tudo… 89


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…os comboios eram a carvão… na altura da guerra cortaram por aí muitos pinheiros, sobreiros e eucaliptos… a torga era para os ferreiros… para fazer carvão para o comboio… levavam aqueles toros às costas… da Fraga do Lobo levavam às costas para a Gricha para a azenha da Sobreira… era uma fila de mulheres a tirar aquela lenha e a carregá-la… ganhavam pouco dinheiro mas faziam todo o trabalho que era preciso… vinham os vagões à Linha carregar aqueles toros e muita lenha… havia também os comboios só de mercadoria… eram grandes … cerca de 10 carruagens… no verão era difícil andarem… do Porto traziam vagões de farinha… …havia os fatores que vigiavam as carruagens… eram responsáveis por tudo… havia uma carruagem no meio onde iam 2 ou 3 que às vezes ficavam na estação até vir o outro comboio… …Daqui dá para olhar lá para o fundo e já não o ver passar… nem ouvir o apitar por ali fora… dá soidades aquilo… pela ideia dos de Codeçais não o tiravam… acabou o comboio por ser o pessoal menos… em Bragança quando parou veio uma companhia espanhola carregou aquilo tudo e levou de noite… as carruagens foram para Lisboa e Porto… pensavam que a linha não tinha dono… foram os donos das terras onde passava o comboio que quando parou mandaram tirar a linha… sim, as travessas originais foram feitas de castanho mas depois já eram de eucalipto… …os declives eram rochosos, mas aquilo andava nas invernadas bem vigiado… do Tua para o Amieiro os trabalhadores andavam sempre a vigiar… para fazer a estrada, é que esborraçaram tudo… tiraram as fragas e pedras todas, moeram tudo… …da Sentrilha não trabalhavam no comboio, mas da Brunheda e do Pinhal trabalhavam e da Felgueira é que trabalhavam lá muitos… agora só lá vive o Ramires… …usavam muito o comboio, para ir ao Tua e a Mirandela, para irem à Régua, à Casa do Douro e para irem a Bragança… para irem a Carrazeda iam a pé ou a cavalo… …começaram a tirar comboios, a tirar pessoas… povo que não tinha que fazer… mas a emigração não foi a causa que matou o comboio… e ainda trouxeram muito dinheiro que ganharam fora e puseram aí muito casario… …acidentes graves lembro-me de morrerem duas ou três pessoas aqui perto, no Tralhão, no Pinhal… houve um descarrilamento, morreram um guarda-freios que vinha na cabina em cima do comboio onde havia uma manivela 90


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para reduzir a velocidade… o comboio vinha carregado de trigo e o homem caiu ao rio e morreu… foi para aí há 40 anos… [anos 1970]… e outra vez um que vinha carregado de enxofre, aqui e m cima, por baixo da ponte da Brunheda… numa distância mais ou menos 100 metros, um do outro… daqui para o Tua era muito acidentada a linha… mas o melhor era tirarem aquela pedra abaladiça, melhorarem a linha e manterem o comboio… já há muitos anos que se fala da barragem… já o Sousa lá ia fazer medições… para aí nos anos 1960… a linha foi e era fundamental para a economia destas terras… depois a camionagem veio dar-lhe um golpe… as camionetas, os carregadores da CP mudaram para a empresa de camionagem EGT – Empresa Geral de Transportes… aí por volta dos anos 1970… os adubos e o carregamento agora é todo feito no Pocinho e não no Tua… antes os carregamentos vinham para Brunheda, Codeçais e por aí fora noutras estações… depois ficaram a despacho no Tua e agora o adubo vai para o Pocinho e vem de Espanha que é mais barato… agora são os camiões que descarregam os sacos de adubo… no Nuno Carvalho, do Planalto Rural, em Carrazeda e os da Fontelonga… o Meireles… ainda se lembra do Júlio Lucrécio (alcunha)?era negociante forte… …os tempos do minério… ainda andaram para aí 10 anos… em Codeçais havia um gajo, o Bernardino, que tinha umas terras com muito minério e ele fumava cigarros feitos com notas porque não havia papel… muitos içaram bem com o minério, souberam aproveitar… [interveio entretanto um genro do sr. Zé, emigrante sazonal na Suíça, que fora padeiro no Cachão] …a linha do Tua era o único meio de escoamento do que aqui se produzia… fazíamos as guias… para as caldas do S. Lourenço vinha muita gente de Bragança e de outros sítios… o comboio demorava ali na estação cerca de 15 m… vinham de manhã para lá para os banhos e à noite voltavam para casa… sempre de comboio… quando íamos aos peixes, dávamos com uma marra nas pedras nos sítios onde havia cardumes e, com a vibração, os peixes ficavam atordoados e era só apanha-los… então íamos dali para o Tua com os canastros de peixes, vendê-los… também íamos para Abreiro e o pequeno almoço era muitas vezes 2 peixinhos grelhados… com vinho que era a água do rio… na linha do Tua em Codeçais e em Rossas, as pessoas saiam do comboio, iam à fruta ou fazer outras coisas e depois tornavam a entrar mais adiante [Informante nº4, 1ª entrevista, 2011] 91


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Vale e rio do Tua encaixados entre serras. Aldeias de Castanheiro e Tralhariz, apeadeiros da linha do Tua. Foto aérea de Henri Richard

4.2.1. O Vale e o rio Tua “infunde, ó rio, a líquida dedada, a marca enorme do que passa devagar no sal e no fermento do destino terrestre de quem vive e morre ribeirinho” (A.M. Pires Cabral).

Nesta invocação poética do rio Tua capta-se a ambiência singular deste lugar que sempre deixou nas pessoas que com ele conviveram ou convivem, um 92


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sentimento de pertença bem vincado sobretudo nos entrevistados com mais estreita relação com a zona do baixo Tua. A paisagem do rio Tua, com as suas grandes falésias, é selvagem, distante, agreste e tem como característica principal uma natureza bravia ainda bordada de pequenos mantos de floresta virgem sendo aparentemente abandonada, à exceção das pequenas povoações ribeirinhas (ver fig. itinerário), pelas populações que se concentram nas aldeias, antigas unidades antropológicas que pontuam o alto das fragas. O rio com o seu leito em geral estreito, de águas cristalinas e tranquilas, corre apertado entre encostas rochosas, inserido num vale cheio de vida e cor, tranquilidade e silêncio perdido na lonjura dos montes. Com a presença do rio Tua e inúmeras ribeiras, muitas das quais vão aí desaguar, a rede hidrográfica desta zona é vasta e abundante. O rio Tua, que em parte do seu percurso desliza por um vale encaixado, percorre zonas mais planas, fertilizando essas áreas, graças às inundações que ocorrem em períodos de maior pluviosidade tornando-as, com o depósito de nutrientes, muito férteis na cultura de hortícolas e fruticultura junto ao rio; são os famosos lameiros onde crescem, por exemplo, as muito tenras hortaliças e repolhudas couves transmontanas. O rio Tua e a sua bacia hidrográfica dispõem, entre outros recursos, de possibilidades materiais importantes, como o seu aproveitamento hidroelétrico e algumas condições de navegabilidade que poderão vir a ser aumentadas com a albufeira criada pela construção da barragem de Foz-Tua. As suas características fluviais serão beneficiadas por uma ligação mais funcional entre os rios Tua e Douro, suscetível, por sua vez, de potenciar um futuro plano de desenvolvimento económico-social e turístico. Associada ao valor patrimonial e cultural expresso em grande parte das narrativas, encontram-se muitas vezes evocados os recursos naturais e as culturas agrícolas do vale e sua envolvente próxima do rio Tua. Tal como se pôde já ver e emerge ainda no seguinte extrato que assinala também a persistência e singularidade histórica do seu aproveitamento humano, inclusive, através de meios artesanais de produção. “(…) Falando sobre o rio e o vale do Tua, temos quatro situações a considerar: 93


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1ª – o aproveitamento hidráulico do Tua já se fazia no século XIX por meio de moinhos metidos no leito do rio. Muitos deles foram arrasados, eventualmente por uma cheia, mas as condutas de uma antiga azenha com características industriais ainda permanecem no apeadeiro do caminho-de-ferro de Castanheiro, numa extensão de 70 ou 80 metros. 2ª – a existência da Quinta da Ribeira que possui um núcleo romano, cujo património não está a ser estudado nem protegido. Pertence a Tralhariz. 3ª – a importância que teve a cultura do tabaco na zona da foz do Tua, nos dois lados da encosta, na zona do Fiolhal e na zona de S.Mamede Riba-Tua. Acabou com a proteção aos tabacos que vinham de África. Nas casas senhoriais das zonas referidas, ainda há vestígios das salas de secagem, sobretudo na casa dos Carmos e na casa dos Figueiredos. A cultura do tabaco aparece também em Frechas… desde Vilarinho das Azenhas até Frechas. 4ª – O vale do Tua tinha um património interessante em termos agrícolas que consistia na produção da laranja na baía de S. Mamede. Não foi possível reproduzir as características desta laranja noutros locais com características idênticas como é, por exemplo, a Ribeira do Mosteiro em Freixo de Espada à Cinta. É interessante que esta laranja só se dá do lado de S. Mamede, em frente ao apeadeiro de Tralhariz e na encosta onde vai ser feito o encosto da barragem, do lado do Fiolhal. A Quinta da Ribeira tem laranjeiras, mas não têm nada a ver com a laranja de S. Mamede. Como curiosidade, também vou referir que na Senhora da Ribeira havia uma leprosaria, na Quinta da Gafaria, que pertencia ao meu pai. Fica perto de umas termas denominadas Águas Santas.” [Informante 6] Apesar da variedade endógena de recursos e potencialidades anteriormente descrita, a zona do vale do Tua tem sido e é ainda considerada, numa perspetiva macro, uma região pobre que se debate, atualmente, com crescentes problemas de perda de população e uma população rural bastante envelhecida, indicador socioeconómico e variável demográfica corroborados em informação das entrevistas e a que há menção (in)direta em algumas narrativas orais. Na seguinte história de vida de nonagenária de aldeia do Pinhal do Norte (Carrazeda de Ansiães), é esboçado um cenário peculiar entretecido em espácio-temporalidades onde se destacam quadros da vida rural e atividade agríco94


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la, recordações do comboio do Tua e de quotidianos felizes, alusão à emigração e mobilidades, lembranças ainda vivas dos impactos locais da II Guerra (exploração de volfrâmio, contrabando de minério, racionamento e fome), da Guerra Colonial portuguesa em África e da candidatura de oposição de Humberto Delgado às eleições presidenciais do Estado Novo, em 1958. (…) “vivíamos além, no Arrobaldo [nome do lugar], logo ao sair para a Brunheda [aldeia vizinha do Pinhal do Norte]... alguns dos meus irmãos fizeram a 4ª classe e outros, só a 3ª… a irmã mais nova, com uma diferença de 16 ou 17 anos, já tirou o curso de Enfermeira. Foi trabalhar para o Hospital de S. João e depois foi trabalhar para o Brasil, chamada por uma irmã que já lá estava… eu nem a 3ª classe fiz… E quer saber porquê? Olhe, tínhamos bois. A D. Susana [professora] até era boa pessoa, mas também tinha lá as suas coisas… Vieram as férias da Páscoa e eu, a mando do meu pai, ia sempre com os bois e, por isso, não fiz os deveres de férias, nem eu nem outra rapariga. Então, a professora, a D. Suzana, mandou-nos embora da escola… Casei-me com 19 anos com José Augusto Araújo, um conterrâneo meu que tinha 20. Ele tinha feito a 4ª classe “bem feita, ficou distinto”. Conhecemo-nos nos bancos da escola. Tivemos quatro filhos, uma rapariga e três rapazes. Agora vivo aqui com a minha filha, mas conservo a minha casa, no centro do Pinhal, onde vou às vezes. Os outros filhos vivem em Mirandela. Um deles foi estudar e formou-se; o outro tirou o curso de mecânico e trabalhava na Ripal. Quando se casou, passou a ser o proprietário da padaria Seramota, em Mirandela. O João Batista é o dono do Café Mira. Tirou o curso de Música em Bragança e “esse é que é o músico”. Dois dos meus filhos fizeram a guerra em Moçambique: “o meu Zé Maria esteve lá primeiro e ainda sofreu por causa da guerra. Era condutor. O meu Batista esteve lá já na desfeita [por volta de 1973] e foi lá um fidalgo, só tocava, foi lá muito bem tratado”. [Primeiro com os pais, depois com o marido, D. J. trabalhou sempre na agricultura] “…. vinho, azeite, figos, amêndoa, tínhamos muito de tudo, era uma casa farta, graças a Deus…”. (…) Comecei a namorar na escola, namorei toda a vida, casei-me e pronto… O meu marido teve muitas namoradas, mas eu nunca tive nenhum, nem uma hora… mas ele era uma jóia… muito inteligente… fez a 4ª classe e ficou distinto… tocava muito bem violino… se o vissem até se admiravam… ele ia para os bailes todos, não o largavam. Tinha uma tuna e faziam muitas serenatas: uns tocavam banjo, outros violão, outros bandolim… só não tocou no 95


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nosso casamento, mas veio tocar o Sr. Alfredo Pereira, da Vila e o Zé António das Areias, o irmão do Luís, veio ajudar…”. [Casou-se no fim da 2ª Guerra Mundial. Lembra-se de tudo o que se passava nessa altura porque o marido lia sempre o jornal e, enquanto ela fazia meias para os filhos, ele transmitia-lhe o que lia sobre a guerra.] (…) Eu sabia a guerra todinha… e, na altura, houve para aqui uma grande fome. Vinham os do Governo tirar o azeite à gente… olhe que chegávamos a esconder os bidões debaixo da palha da cria; as mulheres enchiam as bexigas dos porcos de azeite e punham-nas à cinta para fingirem que estavam grávidas. Vinham homens, de noite, com os odres, enchiam-nos e iam-nos passar ao Canal, por baixo da ponte da Brunheda, para irem para Carlão. Compravam azeite e minério… os de Carlão sempre foram muito negociantes... lembro-me bem da “fome de 41” quando o pão chegou a custar 50$00 o alqueire. Iam buscá-lo às costas além do rio e traziam-no até ao barco, tudo feito em segredo. Eram Os Pimpões de Candedo que vendiam o pão em segredo. …Nessa altura, eu dei muito azeite e “abadas” de figos a gente das Areias e de Zedes porque havia muita pobreza... (…) Enquanto fui solteira, nunca viajei para o Porto. Ia à Régua, mas a maior parte das vezes, ia a Mirandela ao médico e a tudo o que era preciso… quando íamos à festa, iam grupos de mocidade…. Depois de casada fui algumas vezes ao Porto “para gozar e depois fui lá muita vez porque tive lá o meu marido doente... Apanhava o comboio na estação da Brunheda para onde ia a pé: saía ainda de noite, de lampião na mão, e chegava já de noite… [Antes de casar, andou a trabalhar na extração do minério de volfrâmio]. (…) Nessa altura, andava tudo ao minério. Foi enquanto a guerra durou. O minério ficou mais caro porque os Americanos davam mais dinheiro do que os Alemães e quanto mais se picavam uns aos outros, mais o minério aumentava. O kilo era a 50$00 e a 55$00. O nosso tinha volfrâmio e estanho. Aquele que tinha só volfrâmio era mais caro: a 700$00 o kilo. Trabalhei durante 4 anos no minério, três como efetiva e um ano sem o ser. Trabalhava perto da aldeia, na cota da Ribeira, junto à Quinta do Tralhão e à Quinta dos Veigas. Também havia uma mina nas Areias, no terreno que era do Sr. José Joaquim e outra na Pranheira, mas nunca fui para lá trabalhar… [Segundo a sua opinião] … os ricos iam fazer concessão de minério aos pobres e a toda a gente. O Sampaio da Carrazeda também foi à Ribeira e queria fazer uma concessão, mas o meu pai impediu-o e disse-lhe que tinha o terreno registado em seu 96


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nome. Mas, já nas Areias, o Barbosa fez uma concessão no terreno do José Joaquim e o dono ficou sem ele… (…) O meu trabalho no minério?...consistia em britar as pedras com um martelo; saíam placas misturadas com pedra, britava-se para tirar a pedra e depois ia para a lavandaria e lavava-se tudo. Não havia máquinas. Era tudo feito manualmente…. Sim, eu ainda apanhei muitas “chinas” (pedras muito mineralizadas)… O minério estava nas rochas… Nós não fizemos poços, mas o Fonseca de Paradela tinha um sobreiral com muito minério e fazia-os. Tirou de lá muita quantidade. Depois vendia-se a negociantes de Carlão. Os de Carlão diziam às raparigas: - apanhai também a “pirita” (pirite)… era de cor preta… que nós pagamos a 20$00 o kilo. E nós assim fazíamos…. Chamavam-lhe a “candonguice”… Também se apanhava o cornelho (de cor preta) pois vendia-se bem e diziam que era para fazer penicilina. Era segregado pela espiga do centeio. Quando chovia, o pão ganhava cornelho. …nem eu nem o meu marido nunca emigramos… Não podíamos pois tinhamos muito trabalho com os nossos campos que cultivávamos. Mas um dos nossos filhos emigrou para França e trabalhou lá durante 10 anos, na região do Loire. …Uma vez veio cá e levou-me para passar lá algum tempo. Até gostei da França, mas não para lá ficar. Tinha cá a minha vida e muito que fazer. Vim de boleia com uns vizinhos. Fui e vim de carro. Nunca andei de avião…. [O genro explica que o marido da D. J., José Augusto Araújo, proprietário agrícola, tocava música, era leitor assíduo do jornal diário, gostava de ler e lia muito, escrevia bem e foi durante vários anos o Regedor da aldeia e faleceu no exercício do cargo, no dia 23 de abril de 1974. Tinha 49 anos. Ela não gostava que ele tivesse este cargo, sobretudo devido aos pastores que eram muito conflituosos por causa dos locais de pasto.] … “engaleavam-se” uns com os outros… (…) O meu marido faleceu 2 dias antes do 25 de abril, ele que teria gostado tanto de assistir à queda da ditadura! [Era um homem de esquerda que não gostava de Salazar, comenta a filha]. …“O meu marido não era da oposição, mas quando Humberto Delgado morreu, ele até botou luto; andava com uma gravata preta”. Quando havia eleições vinham a esta aldeia “descarregar o voto” os das seguintes aldeias: Codeçais, Pereiros, Felgueira, Brunheda e Sentrilha. Entre os de Codeçais havia muitos ferroviários e esses eram todos contrários, eram da oposição. …Uma ocasião, um rapaz de lá, quando descarregou o voto, deu vivas à liberdade e disse bem alto que daria a forca pela liberdade e prenderam-no, mas não sei em que eleições foi... A urna que 97


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continha os votos era uma talha das do azeite e toda a gente votava, os que estavam em casa doentes, os que já tinham morrido, era uma farsa. (…) Não… nunca tirei a carta, nem mesmo a de trator. Para o serviço da lavoura tinha trator e tinha um cavalo e um burro. Quando precisava de cavar e de lavrar as terras, “metia” 3 e 4 burras para esse serviço. Também contratava homens para trabalharem com o atomizador quando era preciso sulfatar… o meu atomizador foi o primeiro que cá houve, comprei-o ao Sr. Carvalho do Grémio (Carrazeda)… Enquanto o meu marido foi vivo era ele quem se ocupava com a parte financeira; depois de ele morrer, passei eu a fazer as contas e a tratar de tudo…. Vendia aquilo que produzia. O azeite vendia-o muitas vezes ainda no lagar onde o ia fazer… o lagar do Eng. Lima… [no Pombal, aldeia vizinha do Pinhal]. Também vendia muito aos da Frieira, aos de Carrazeda, aos das Areias, aos de Zedes e a outros que mo compravam... Produzia vinho de dois tipos: o de consumo e o tratado. Ainda no tempo do meu pai, ele enchia os tonéis com o vinho de consumo e vendia o “vinho tratado” aos Ingleses (os Smiths) que pagavam muito bem. Depois, já no meu tempo, eu vendia o vinho tratado para os Ingleses, para os Agrelos de S. Mamede… era o filho do Garcia que o “carrava”…, para a Casa do Douro… “fez muita, muita falta ter acabado”… e para a Cockburns (Quinta das Carvalhas), que também era um grande comprador e, mais tarde para a atual Syminghton… também cheguei a vender vinho para o Pinhão… o vinho de consumo vendia-o em tonéis para a Carrazeda para o Sr Alfredo Pereira e para o Sr. Carlos Malhado… …Depois da morte do meu marido ia muito mais vezes à Carrazeda: à feira, ao Grémio da Lavoura e a outros sítios tratar da vida…. Primeiro ia a cavalo, depois começou a haver uma carrinha e eu ia nela… também ia de comboio à Régua receber o dinheiro do vinho… …não tenho fotografia do meu casamento… e quem as tinha?... nem do batizado dos filhos, naquele tempo não havia… era preciso ir à Carrazeda… por acaso tínhamos cá um rapaz muito habilidoso que lá comprou uma maquinita e tirava algumas por aí… até tirava muitas à canalha… era o Santeiro, o que fazia as esculturas em madeira…” [o genro, que assistiu à entrevista, mostrou algumas peças, religiosas e profanas, desse artista popular. A entrevistada cantou então uma canção que o marido fez, e que já quase moribundo cantou aos filhos, em jeito de testamento de valores]: 98


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“Tenho três filhinhos, três amores Dizia um pai que vivia alegremente São quatro jóias, são quatro flores São cobiçados por toda a gente. Enquanto eu puder trabalharei Para esses quatro anjos de candura Só com eles eu repartirei O santo pão amargo da desventura. Só me resta uma coisa Que é que ele seja imortal Quero-vos ver a todos reunidos À lareira numa noite de Natal”. [Informante nº 39]

Uma outra narrativa feminina duma octogenária da aldeia vizinha do Pombal, dá conta de diferentes vivências e hábitos tradicionais de caça no vale do Tua, de recordações do funcionamento e serventia para as populações locais da linha e do comboio, intercaladas de lembranças vivas de figuras típicas e episódios quotidianos, tradições e impacto local de acontecimentos históricos nacionais ou internacionais. “…ia-se por esta linha, rentinha ao rio Tua para Mirandela. A viagem de ida e volta era feita no mesmo dia. Também se ia a Bragança, mas aí já era preciso lá dormir. Na altura também se ia à feira a Candedo quando era necessário comprar ou vender animais. Acerca de desastres na linha, lembro-me de ouvir falar de um comboio que caiu ao rio, perto da estação de S. Lourenço. Neste acidente morreu o fogueiro. Há alguns anos atrás, houve um acidente na Brunheda. Nas grandes cheias de 1911, o rio chegou até à linha do comboio. Naquele tempo havia muitos casamentos de raparigas com 12 anos de idade. Faziam-se para juntar fortunas de família… uma irmã do meu bisavô casou com 12 anos e teve 12 filhos… …Quando era nova, o Padre do Pombal chamava-se Leandro, mas só aqui esteve sete meses. Depois esteve o Padre Luís que veio do Minho, o Padre Veiga da Carrazeda e um padre de quem não me lembra o nome, mas que era o Sr. Reitor que teve vários filhos... 99


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…1941 foi o Ano da Fome, em que tudo era racionado. Faziam-se trocas: por exemplo, trocava-se um litro de azeite por um quilo de açúcar. Lembro-me de uma senhora da Ribeirinha da linha do Tua, que tinha muito açúcar e que fazia este tipo de troca. Quando não havia pão, faziam-se talassas: faziam-se na sertã, com farinha muito rarinha e açúcar por cima. Tomava-se com elas o café, todos os dias. …Um pão centeio chegou a custar 50 escudos. Começou a não haver mercearia nos “sótos”… …Aquilo que se podia arranjar era através de senhas que se iam buscar à Câmara de Carrazeda. Era tudo racionado. E havia muitas famílias com 6, 8 e 12 filhos...Só com um filho, eram muito poucos... Quando andava na escola primária, as pessoas passavam mal: havia muitas necessidades… …uns iam pescar peixes no rio… o meu pai caçava… ali perto do rio usava um “enchoeiro” (armadilha) para apanhar perdizes. Servia-se de uns pauzinhos (“aboízes”), onde espetava uma haste de um sombreiro já velho, com um feijão pequeno para atrair a perdiz… …Por aqui nunca vi lobos, mas havia-os: iam aos currais e matavam muita ovelha. As raposas matavam muitas galinhas…. …Ainda me lembro bem da forma como se atravessava o rio, na Brunheda, antes de haver a ponte: era a pé, por cima das poldras, ou de barco… depois ainda houve o funicular que funcionou alguns anos entre a estação de Santa Luzia e a aldeia do Amieiro do lado de lá do rio… [Informante nº 3]

Rio e linha do Tua junto a Brunheda (Carrazeda de Ansiães). Foto de M J Fernandes Lopes

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4.2.2. linha e comboio do Tua

“Agreste a travessia dos vales ao longo do Tua (…) São paisagens únicas, deslumbrantes, algumas delas apenas acessíveis ao comboio.” (Francisco Manuel Viegas)017 Ao longo do rio Tua, um dos poucos rios selvagens do país, corre ainda hoje, embora desativada, a linha do Tua, obra centenária da engenharia portuguesa e uma das mais espetaculares linhas de comboio do país e da Europa, o primeiro e único troço de caminho-de-ferro em Trás-os-Montes que ficará a breve trecho parcialmente submerso pela albufeira da barragem do Tua, recentemente construída.018 …A linha do Tua é fabulosa mas mete um bocado de respeito… uma vez fiz a viagem de comboio até Mirandela… fui só mesmo para ver… tive medo… era de respeito… [Informante 7] A paisagem da linha do Tua, em particular no baixo Tua é, em geral, caracterizada por traços e fatores agrestes e inóspitos, de carácter seco, desumanizado, onde o sol e o calor são intensos, durante os estios, perdurando os nevoeiros no inverno, que cedem lugar a fortes nevadas nas terras altas e planálticas a partir de Rossas até Bragança. De grande riqueza natural, o cenário é de contrastes entre o rio, as rochas e as encostas de cores e texturas variadas. “…uma vez, em Bragança, às seis e tal da manhã havia muita gente na gare e sabem porquê?... é que tinha caído uma grande nevada e, por cima, caíu uma grande geada. Não se podia circular de carro: se isso acontecesse hoje na A4 ou no IP4, ou essa porcaria toda, eu queria ver como era... eles haviam de ter de ficar encerrados em Bragança... eu sou contra o fecho da linha, sou contra a barragem do Tua, sou contra isso tudo... as Nações foram desenvolvidas pelos comboios, não foi pela camionagem!... Eu viajava sempre de comboio e ainda viajo! “ [Informante 40 -2ª entrevista]

017  Autor do livro - Comboios Portugueses: um guia sentimental. Com Fotografias de Maurício. Abreu. Lisboa: Circulo de Leitores, 1988. 018  A albufeira do empreendimento, em fase final de construção em 2016, terá uma cota de 170m

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Disponível em http://ml.ci.uc.pt/mhonarchive/histport/msg02106.html

A linha do Tua é abrangida por três unidades de paisagem distintas: as da Terra Quente, do Baixo Tua e Ansiães, que pertencem ao grupo de paisagem da região de Trás-os-Montes, e as do Alto Douro Vinhateiro, já do grupo da região do Douro. Mais especificamente, a zona do vale do Tua, o Baixo Tua, é considerada uma unidade de paisagem ecológica e cénica impressionante, um verdadeiro “ecossistema único sem preço”019 que, embora não integre a Rede Natura 2000, se caracteriza por uma notável raridade e forte identidade. A consciência profunda de ligação identitária a este microcosmo ambiental de excecional raridade pressente-se no imaginário cultural que perpassa muitas das histórias de vida analisadas, como na deste ferroviário, natural e residente no vale do Tua, filho e neto de ferroviários, cuja narrativa ilustra, de modo significativo, quer as peripécias vulgares da carreira ferroviária, quer a extensão e diversidade do itinerário da linha entre Foz Tua e Bragança: “Nasci em Foz-Tua. Aos três anos de idade, fui para Mirandela e morava por cima da estação do caminho-de-ferro porque o meu pai era maquinista na via estreita da linha do Tua, entre Bragança e Tua. Fiz a 1ª classe em Mirandela, mas devido à morte prematura do meu pai, regressei a Foz-Tua, onde frequentei a escola até fazer a 4ªclasse. A morte do meu pai deveu-se a uma tuberculose óssea contraída em serviço, num inverno de muita neve, quando 019

Base de dados do IPPAR.

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conduzia o comboio e, no Alto de Roças, teve que sair para desimpedir a via e varrer a neve dos carris. Molhou-se todo, não mudou de roupa e com o calor da máquina, constipou-se devido à grande diferença de temperatura. Tinha trabalhado na linha do Tua durante 18 anos, faleceu aos 33, tendo deixado o filho órfão de 3 anos e a viúva com uma pensão de 174 escudos / mês. O meu avô também tinha trabalhado nos caminhos-de-ferro… era assentador na linha de Minho e Douro. Fiz a tropa em Lisboa (6 meses como recruta no Entroncamento). Na tropa, fui para o Batalhão de caminhos-de-ferro. Aí, tirei a especialidade de condutor de comboios. Com saudades da minha terra natal, concorri e fui colocado na estação de Roças, em 1962, onde permaneci 6 meses. Concorri para Foz-Tua, onde trabalhei como Servente. Na altura, a estação tinha bastante movimento, eram mais ou menos 50 pessoas a laborar no local. Na ânsia de subir na carreira, fui para Alfarelos, onde fiz o curso de agulheiro. Fui promovido a agulheiro e fui de novo para Foz-Tua… Entretanto, concorri para Capataz de Manobras e fui para a estação de Vila Nova de Gaia, onde estive durante 2 anos… Concorri, então, para Encarregado de Apeadeiro e fui colocado em Chanceleiros, estação na linha do Douro, a seguir ao Pinhão. Depois, fui para a Régua, de novo para Foz-Tua e, de seguida, para Santa Luzia… Antes disso, abandonei por algum tempo os caminhos de ferro devido a uma transferência que considerei injusta e à não atribuição da casa a que tinha direito e fui para Foz-Tua trabalhar na empresa Cockburns. Foi então que aconteceu a revolução de 25 de Abril. Mas a paixão pelos caminhos-de-ferro era mais forte do que eu e concorri novamente, tendo sido colocado em Santa Luzia. Aqui, havia bastante movimento de passageiros, aos fins-de-semana, para o Cachão. Mas, durante a semana, o movimento era pouco com gente do Amieiro, de Pombal, do Franzilhal, etc… As pessoas do Amieiro atravessavam o rio Tua, de barco,para virem apanhar o comboio. Quando o rio tinha demasiada corrente, serviam-se do funicular. A ponte caiu numa altura em que o rio teve uma grande cheia. Os passageiros de Pombal e do Franzilhal vinham de burro. Os de Pombal iam pelo Barrabás que só tinha caminho para burros. Nessa altura, a estação de S. Lourenço estava fechada. Durante o tempo em que estive em Santa Luzia, tinha uma motorizada que ficava em S. Lourenço, enquanto percorria a pé o caminho até ao local de trabalho, pois não havia estrada. É curioso que a 103


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estação de Santa Luzia passou a ter este nome depois de ter sido inicialmente chamada de estação do Amieiro (isso já não é do meu tempo…). Mas a explicação da mudança de nome deve-se ao facto de haver, na linha do oeste, perto de Alfarelos, uma estação com o nome de Amieira. Isto confundia os funcionários e havia bastantes vezes troca de mercadorias, que depois tinham que ir para leilão por não serem reclamadas por quem de direito. Como já referi, o movimento em Santa Luzia permitia-me ter tempo para ler os regulamentos dos comboios, que eram muitos. Saí de Santa Luzia a fim de ir frequentar, no Entroncamento, o curso de Fator. Fui depois colocado em Ferradosa, a chefiar a estação. Daí, voltei para Foz-Tua, pois o apelo da minha terra era sempre muito forte. Aqui, trabalhei como Fator: fazia circulação de comboios, fazia a bilheteira e fazia despachos de mercadorias, tais como adubos e cereais (de referir que esta linha transportou muitas barricas de ouro, na altura da 2º Guerra). O tráfego da linha do Tua só reduziu depois de terem cortado Mirandela e Bragança. De uma cidade à outra demoravam-se 4horas. Do Tua a Bragança, eram 6 horas. Foi necessário reduzir a velocidade de 60Km para 30Km devido ao facto de a linha ser perigosa. Mas, depois de passar a estação de Mirandela já não havia necessidade de reduzir a velocidade. Depois de ter trabalhado em Foz-Tua, pedi a reforma. Trabalhei sempre muito, a uma média de 12h por dia. Havia falta de pessoal para trabalhar… Mas também ganhava… além disso tinha direito ao modelo X44 que permitia viagens gratuitas aos funcionários. Quando havia casa disponível, também podia viver nela. No caso de não haver, arrendava casa, mas pagava sempre uma renda pequena…”[Informante nº 3]

Itinerário da linha do Tua

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A seguinte narrativa coletiva020, de acentuado dialogismo e expressividade, em complemento de anteriores histórias de vida, permite não só ilustrar a especificidade do que era trabalhar e manter a linha do Tua - traço marcante de muitas destas trajetórias singulares da história vivida do Tua -, mas possibilita ainda percecionar o que era a vida e a profissão de ferroviário em Portugal durante a segunda metade do séc XX. [F. dos A] “…Fiz muitas vezes a viagem de Foz-Tua a Mirandela no comboio a vapor: o sucesso da viagem dependia muito de como a máquina se portava e da habilidade do fogueiro: “quando a máquina andava bem oleada, tudo corria melhor; de outro modo, parava-se várias vezes para pôr, por exemplo, mais água para poder produzir mais vapor, mas a viagem era mais cansativa. A tática passava muito por saber trabalhar com o carvão e nunca deixar diminuir o fogo. Nem todas as máquinas queimavam o carvão do mesmo modo. Parava-se em plena via e fazia-se o que fosse preciso… A descer, não havia problemas, elas andavam que se fartavam, agora a subir, isso não havia pai para elas…”. As máquinas nem sempre estavam na sua melhor forma porque elas andavam por muitas mãos. Havia colegas de trabalho que não se importavam de as entregar em más condições. Isto, quando deixou de haver distribuição das máquinas sempre ao mesmo maquinista, pois quando havia a responsabilidade pela máquina que era entregue, o maquinista tinha que responder pelo tempo perdido na viagem devido ao seu mau funcionamento. Quando faziam as viagens de Mirandela para Bragança, muitas vezes transportavam 145 toneladas de carga e quando nevava, principalmente desde Macedo até ao Alto de Roças, a neve entrava e tinha que se aguentar. O trabalho era muito e pesado. De Mirandela a Bragança, havia pontos em que a linha subia 2% por metro… “eu cá, preferia ir 10 vezes ao Tua e nem uma vez a Bragança…”. [R. Q.] “…uma ocasião, em Tralhariz, encontrámos um ramo grande que tapava um enorme calhau na via; pedimos socorro e esperámos toda a noite.”. Como não havia meios para pedir socorro, faziam 5 ou 6 km a pé até à estação. Os telemóveis só vieram nos anos 90 e, mesmo assim, da Brunheda 020  Transcrição parcial de entrevista de grupo realizada em Mirandela, a 25 de Abril de 2012, no fim do almoço de confraternização dos ferroviários da linha do Tua, com 5 ex-trabalhadores da CP, desde os anos 1950 a 2009, e atualmente reformados de diversas carreiras: R.Q. natural da aldeia da Lousa e residente em Mirandela; M.J. da aldeia de Carrapatosa (Linhares de Ansiães), sogro de R.Q.; F.A. da mesma aldeia, residente em Lavandeira(Carrazeda de Ansiães); J.R., natural da aldeia de Coleja, freguesia de Seixo de Ansiães; e P. de Mirandela.

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para baixo, só havia rede entre o Castanheiro e Santa Luzia. Daqui até ao Tua, voltava a não haver rede. Se era durante a noite, nas máquinas a vapor tinham uma luz produzida a partir do óleo de purgueira, que alimentava uma candeia, a qual não alumiava praticamente nada. Os sítios mais difíceis da linha no tempo da máquina a vapor eram de Foz-Tua até Santa Luzia porque havia subidas muito íngremes. Depois fazia-se bem. Mas, entretanto surgia a subida de Frechas e… depois dos Carvalhais até Roças, era sempre a subir, durante80Km…” [E concretiza, sobre a anunciada perigosidade da linha entre Mirandela e Bragança em que é quase unânime a afirmação de que ela não era perigosa] “…como maquinista e como praticante das Allans, com motor AEC, durante todo o ano de 1973, a nossa marcha era sempre na casa dos 50 / 60 Km / h, isto com carris de 8 metros. Com as renovações, vieram os carris de12 e de 18 metros e, então, em vez de irmos a essa velocidade, passámos a ir a 30 / 40Km”. E continua: “ uma vez tive uma conversa com o Inspetor acerca dos péssimos horários dos comboios de que os utentes se queixavam e ele respondeu-me: “nós temos ordens para fazer os piores horários, que é justamente para acabar com a linha”… A linha não era perigosa, mas os responsáveis acharam que sim… O engenheiro V. C. disse que não se podia responsabilizar pela segurança da linha, mas “o problema é que ele não percebia nada destes assuntos”… o que é certo é que apesar dos maus horários e de outras tentativas de fechar a linha, as automotoras entre Bragança e Foz-Tua, andavam repletas.” [M. de J.] “…Ser chefe de lanço era trabalhar entre Bragança e Tua. O pessoal da via, aqueles que trabalhavam na manutenção da linha, não lhe tornava a vida fácil: tinha que os orientar e tinha que fazer a escrita dessa gente toda. Ainda tinha a seu cargo os guardas das passagens de nível… eram trabalhadores muito difíceis de gerir. Será porque eram quase sempre mulheres? Trabalhavam sempre duas: uma guarda e uma substituta. Normalmente geravam-se conflitos entre elas. Muitas delas eram familiares de ferroviários…” Também recordam muitas das boas histórias que viveram no Comboio do Tua. Por exemplo, a dos cozidos que faziam nas panelas a vapor. Diz R. Q.: “ainda lá tenho a minha: nem a dou, nem a vendo, nem a empresto …Na casa da máquina, onde a gente guiava o comboio, havia um tubo próprio que dava para ligar à panela, o que a tornava uma autêntica panela de pressão onde se fazia um cozido que era uma autêntica sopa de pedra. Também cozía106


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mos lá o feijão mesmo sem o deitar de molho. Nessa altura, comíamos todos do mesmo prato, que era um grande prato de barro vermelho. Muitas vezes só tínhamos dez minutos para comer, mas aquilo sabia-nos pela vida!”. Apesar de tudo, todos estes trabalhadores consideram que a vida de um ferroviário era muito melhor do que, por exemplo, a de um agricultor: “tínhamos outra apresentação, usávamos uma farda decente e tínhamos o vencimento certinho ao fim do mês”. [Entrevista colectiva nº 11, Mirandela, Encontro de ferroviários da linha do Tua no dia 25 Abril, 2012] Naturalmente, os ferroviários são os que melhor conhecem a linha do Tua, sobretudo os que nela trabalharam e diariamente vivenciaram, durante longas trajetórias biográficas e carreiras profissionais diversificadas. Daí que continuemos a recorrer às suas vozes e experiências que decorrem agora das narrativas orais de um outro coletivo de ferroviários que descrevem com minúcia alguns episódios e factos concretos próprios do movimento, evolução e declínio da linha do Tua, situando-os na história da região. [ADJ, operário da CP desde 1967, nas Oficinas Gerais da Linha em Mirandela] …Nessa altura havia as automotoras Allans...máquinas holandesas… Mirandela tinha três distribuídas por três operários e António Diamantino tinha uma a seu cargo. O Carvalho tinha outra e o Pinto tinha a terceira… [AJR, elecricista e JEG, chefe de eletricistas das O.G.:] …as Oficinas em Mirandela eram o local onde arranjávamos todo o material da linha do Tua, e olhe que não era pouco… era o material motorizado, o do vapor e o circulante todo; mas, o grande centro de reparações era em Campanhã. Apesar de ser a altura do vapor, a iluminação das carruagens era elétrica. Era feita por um gerador. Tinha uma poli no rodado e uma correia que fazia girar um dínamo. Esse dínamo, que era montado no chassis, girava e ia para um enrolador de tensão, onde se regulava a corrente para carregar as baterias. Funcionava como o alternador de um carro. A locomotiva era iluminada a carboneto e Pur“ As máquinas mais fiáveis em manutenção e em despesa eram as Diesel. Claro que quando se passou para o elétrico ainda foi melhor!... O local onde funcionavam as Oficinas era composto por duas secções: a secção do motorizado e a secção do vapor; havia o cais descoberto e o cais coberto; havia a secção do motorizado (das automotoras Allan); havia uma secção denominada “As forjas”, onde faziam ou reconstruíam as molas para as carruagens; mais para o lado da CUF, havia a secção do vapor. Seguia-se a secção dos tornos e depois a secção do material rebocado; em frente, estava a secção do 107


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vapor, onde se colocavam as máquinas; para o lado esquerdo, ficava a secção do carvão e o local onde estava a placa giratória, onde viravam as máquinas. As carruagens eram de madeira e o carpinteiro, nesta altura, era o Sr. Adriano Augusto Serra. As últimas locomotivas da linha do Tua (as verdes e brancas) eram jugoslavas. Em 1969, em Mirandela, ainda havia muita locomotiva a vapor e, quando havia alguma avaria numa automotora “Allan”, ela era substituída por uma a vapor. As locomotivas a Diesel foram introduzidas em 1967 / 68. …As máquinas mais fiáveis em manutenção e em despesa eram as Diesel. Claro que quando se passou para o elétrico ainda foi melhor! E, quanto ao facto de haver mais incêndios na altura do vapor, isso não é verdade; isso eram tudo boatos!.... Quando entrávamos como aprendizes para a Oficina, estudávamos mais disciplinas teóricas no 1º ano. No 2º ano já tínhamos mais parte prática, conforme a escolha que fazíamos: eletricista, vapor, estofador, etc.”… …No pós 25 de abril, a nossa vida melhorou um bocadinho. Passámos a ganhar melhor, a ter melhores condições de trabalho e passou a haver mais poder reivindicativo. Passámos a ter um refeitório ou uma cozinha para preparar as refeições, etc. …isto é, dantes não se podia exigir nada e depois já se podia pedir e… pedindo muito, conseguia-se!”. A comunidade (família) ferroviária era bastante unida. [Em relação ao início do fecho da linha do Tua e ao muito falado desvio das locomotivas da estação de Bragança depois do encerramento do troço da linha Mirandela–Bragança, as opiniões e respostas são vagas, com diferentes versões e maior ou menor pormenor e convicção]… o que é que nós sabemos?... sabemos que estiveram lá as máquinas paradas. Também estava uma em Macedo. De vezes em quando, mandavam-nos lá carregar as baterias e elas estiveram lá enquanto eles entenderam. Depois decidiram trazê-las nuns chariots pela estrada de macadame até Mirandela. Foi tudo feito em segredo, clandestinamente, pela calada da noite…. Depois de terem estado em Mirandela, levaram-nas para o Tua para as venderem para a Argentina ou lá para onde é que eles quiseram…. [surge outra versão opinativa e crítica]… quem sabia mais sobre estes acontecimentos era o Sr. Casimiro, o chefe das oficinas de Mirandela já falecido…. cheguei a ser inquirido pelo Eng.º Dias Torres sobre o desaparecimento das máquinas, mas eu nada lhe disse uma vez que achei que o engenheiro perguntava aquilo que já sabia e não quis meter-me em sarilhos… De Bragança e de Macedo lá vieram as máquinas e correu tudo 108


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normalmente… mas a linha faz falta não só para nós como para o público em geral. Havia muito pessoal que trabalhava lá: via, movimento, oficinas… A linha fechou, não foi por desleixo, mas porque a quiseram fechar. Ainda fizeram uma renovação de Macedo a Sendas, mas depois fecharam mesmo a linha de Bragança a Mirandela… [R.R.Q. conta também a sua versão do que se terá passado com o desvio das locomotivas na estação de Bragança]… As locomotivas foram lá buscá-las, de noite, e trouxeram-nas em dois camiões TIR para Mirandela. Dizem que cortaram as comunicações todas para virem em silêncio, a fim de ninguém saber. Não havia comunicações com ninguém para não telefonarem para este ou para aquele. Em relação à que estava retida em Macedo, foi a mesma coisa. Foi lá um inspetor buscá-la. A GNR guardou todas as passagens de nível e, no dia seguinte de manhã, já estava em Mirandela. Não se sabia de nada, nem mesmo o chefe da estação… Não houve ali reação nenhuma das pessoas... Eu só soube nesse dia de manhã. Eu entrei ao serviço às 6:30 h, de manobras, o chefe de estação que estava lá ao serviço, telefonou-me pouco antes a dizer: «Ó Queijo, a que horas entras ao serviço?». «Às seis e meia da manhã» -respondi. «Então, vê se estás cá a horas, porque se passa isto assim-assim». Eu até fiquei um bocado surpreendido. Ora eu que estava a acabar de me preparar, arranquei para a estação.E qual não foi o meu espanto, quando chego à estação e me dirijo ao inspetor que lá estava, que eu conhecia, vi dois sujeitos da polícia judiciária logo atrás de mim. Como eu conhecia o inspetor, cumprimentei-o e ele perguntou-me se eu estava de serviço. Respondi que sim e ele mandou-me ir buscar uma máquina para descarregar as que estavam nos dois camiões TIR, as de Bragança, mas a de Macedo que também já lá estava (terá sido carregada pelas 4 a 5 da manhã). Dizem que foi o próprio inspetor que a foi lá buscar. Depois, andei ali toda a manhã. Descarregaram-se as máquinas, arrumei tudo no depósito, arrumou-se tudo na oficina e eles lá seguiram a sua vida. E, a partir daí, não soube mais nada… [Sobre os descarrilamentos verificados na linha num curto período dos anos 1970] …numa semana saímos para um descarrilamento e só regressámos, salvo erro, na semana a seguir. Começámos lá para cima, nos Cortiços, no Quadraçal, ou lá onde é que foi; depois houve outro, aquele em que antes das Fragas Más, no Castanheiro, a máquina ficou a cair para o rio. Isto foi em 78. Naquele tempo havia descarrilamentos por causa dos temporais, devido às pedras que caíam e por falta de manutenção das trincheiras… 109


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[LQFT, sucessivamente assentador, chefe de brigada. supervisor e chefe de distrito na linha do Tua, desde os anos 1970 até esta fechar lembra a vida na estação de Mirandela e a solidariedade da comunidade local para com os ferroviários] … Todas as cargas de cortiça, naquele tempo, saíam do Romeu em comboios de mercadorias; da fábrica do Cachão saía muita coisa para Lisboa e para o Porto. Tudo o que era carregado desde Bragança, era passado à mão no Tua (quer da via larga para a via estreita, quer da via estreita para a via larga. Eram assim os nossos trabalhos… Vivi alguns anos na estação de Mirandela. Os meus filhos nasceram e criaram-se lá. Aquilo, mais do que um emprego, era uma família. Os garotos brincavam ali sem risco nenhum. A própria estação tinha uma parte para dormitórios de maquinistas e pessoal circulante e outra parte para residência de ferroviários. Havia outras casas junto da estação para habitação de funcionários. Havia o cafezito da Tia Glória, onde era obrigatório entrar e tomar o café… A Tia Glória também arranjava as marmitas para muitos de nós. Ela era a “Mãe” dos ferroviários… Havia muita solidariedade entre todos. Muitas vezes o pessoal circulante não trazia nada de comer e aquilo que inicialmente era para quatro chegava para seis… Os próprios habitantes eram solidários com as nossas necessidades. As hortas que eles fabricavam podiam ser frequentadas pelos ferroviários, se delas precisassem… não havia problema nenhum… Estávamos muito bem integrados também com os habitantes de Mirandela. Não éramos de modo nenhum uma comunidade à parte... [e identifica o que considera duas dificuldades principais na linha do Tua, salientando ainda a sua importância turística]: …primeira… à saída da linha, no Tua, havia ali um cotovelo que fazia com que a frente da máquina não reconhecesse bem o itinerário a jusante…. Para não falar da zona da Brunheda ao Tua que era a mais acidentada. Era um túnel aberto, como diziam os turistas que por lá passavam. Era a zona que metia mais respeito, mas também era a que mais encantava quem por lá passava…. segunda… depois, o Romeu era um ponto turístico com a Maria Rita. Toda a zona do Quadraçal era um local espetacular. Aliás, os nossos governantes, a nível do turismo, não sabem aproveitar as potencialidades que temos. É uma pena que o metro não vá, pelo menos, até Abreiro ou até ao Romeu. Vilarinho e Ribeirinha não têm qualquer transporte… o Romeu era um ponto turístico muito importante. Foi muita pena que o comboio não fizesse o seu terminal naquele lugar. Nem sequer havia qualquer tipo de transporte para lá. Uma ocasião, dois casais 110


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pediram-me que os levasse ao Romeu. Deixei de almoçar para os levar. Ficaram encantados com tudo o que viram…. [outros ex-operários qualificados das Oficinas Gerais de Mirandela, desde o início dos anos 1960]… éramos uma comunidade ferroviária, com aceitação por parte da população mirandelense e isso de haver pessoas a viver na linha e imediações da estação… a viver na linha era mais pessoal do movimento. Agora das oficinas, não. Família ferroviária diz-nos sempre algo porque passávamos por qualquer lado, ou ia aqui, ou ia ali e quer fosse do movimento, quer fosse da oficina, quer fosse fogueiro, era tudo ferroviário e fazia tudo parte da família… [Sendo dito que as oficinas de Mirandela assistiam e reparavam a maquinaria e material circulante de outros ramais de via reduzida, como a linha do Sabor, a Linha do Corgo, etc. foi explicado que:]… isso só acontecia em casos extremos… Aliás, o grande centro de reparações era em Campanhã. Quando havia grandes reparações, era tudo em Campanhã. Em Mirandela, era feita a manutenção, substituição de rodados, substituição de motores, mas já vinham reparados… Ultimamente havia já as automotoras verdes e brancas, as jugoslavas, estiveram muitos anos no Tua. Foram lá para Campanhã para ser modificadas, Mas essas locomotivas deram-nos muito trabalho enquanto não foram modificadas. [Localizam e descrevem em pormenor as Oficinas Gerais na Estação de Mirandela em que todos trabalharam:] …É fácil de reconstituir… Conforme há aquele desnível da estação, havia ali o cais descoberto, depois havia o cais coberto. Junto da parede do cais, havia duas residências; depois havia a secção do motorizado (das automotoras Allan), isto no mesmo sentido. Depois, para o outro lado, havia uma secção denominada “As forjas”, onde faziam ou reconstruíam as molas para as carruagens; mais para o lado da CUF, havia a secção do vapor. Seguia-se a secção dos tornos e depois a secção do material rebocado; isto tudo para o lado direito. Em frente, estava a secção do vapor, onde se colocavam as máquinas. Era o depósito das máquinas; para o lado esquerdo, ficava a secção do carvão e o local onde estava a placa giratória, onde viravam as máquinas. As carruagens eram de madeira e o carpinteiro, nesta altura, era o Sr. Adriano Augusto Serra. As últimas locomotivas da linha do Tua (as verdes e brancas) eram jugoslavas. Havia um ramal para carregar e descarregar vagões com produtos para a fábrica da CUF. 111


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[atalha J.E.G.:] …nas Oficinas trabalhava-se em tudo. Arranjava-se todo o material da linha do Tua e era muito. Era composta por duas secções: a secção do motorizado e a secção do vapor e ainda havia a secção do material circulante (os vagões, …). Na altura do vapor, não havia energia elétrica, mas para a iluminação das carruagens e do comboio era produzida energia elétrica por um gerador que tinha uma correia ligada ao rodado e havia um dínamo que gerava a corrente. [atalha outro entrevistado para explicar como se produzia essa corrente eléctrica]: …Tinha uma poli no rodado e uma correia que fazia girar um dínamo. Esse dínamo, que era montado no chassis da carruagem, girava e ia para um regulador de tensão, onde se regulava a corrente para carregar as baterias. Funcionava como o alternador de um carro. A locomotiva era iluminada a petróleo, a carboneto e a purgueira. …As máquinas mais fiáveis em manutenção e em despesa eram as Diesel. Claro que quando se passou para o elétrico ainda foi melhor! E, quanto ao facto de haver mais incêndios na altura do vapor, isso não é verdade; isso eram tudo boatos!... …Em 1969, em Mirandela, ainda havia muita locomotiva a vapor e, quando havia alguma avaria numa automotora “Allan”, ela era substituída por uma a vapor. As locomotivas a Diesel foram introduzidas em 1967 / 68 e na do Tua foram introduzidas mais tarde… [Quanto à formação necessária para trabalhar nas Oficinas Gerais explicam] …Quando entrávamos como aprendizes para a Oficina, estudávamos mais disciplinas teóricas no 1º ano: Português, Matemática / Álgebra, Máquinas, e outras. No 2º ano já tínhamos mais parte prática, conforme a escolha que fazíamos: eletricista, vapor, estofador, etc.”… E foi nessa altura que foram introduzidas as locomotivas 1400 no Douro… [referem-se às mudanças na profissão dos ferroviários e melhorias de condições de vida e de trabalho com o movimento de democratização do 25 de Abril de 1974] …No pós-25 de abril, a nossa vida melhorou um bocadinho. Passámos a ganhar melhor, pois antes do 25 de Abril ganhávamos à volta dos 700 escudos, mais precisamente 624 escudos. Aumentaram os salários, passamos a ter melhores condições de trabalho e passou a haver mais poder reivindicativo. Passámos a ter um refeitório ou uma cozinha para preparar as refeições, etc. 112


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… isto é, dantes não se podia exigir nada e depois já se podia pedir e… pedindo muito, conseguia-se!”. A comunidade (família) ferroviária era bastante unida. [Sobre as desvantagens da via estreita para o transporte de mercadorias de e para o Romeu / Sociedade Clemente Menéres, Lda. e para o Complexo Agro -Industrial do Cachão, a partir de 1964, explicam BSC, ajudante de condutor e de maquinista em Bragança e Macedo de Cavaleiros e LQFT, supervisor na linha do Tua de Mirandela ao Cachão] …Todas as cargas de cortiça, naquele tempo, saíam do Romeu em comboios de mercadorias e eram grandes cargas; da fábrica do Cachão eram escoados e despachados muitos produtos daquela estação para Lisboa e para o Porto e outros locais. Um movimento impressionante que, a pouco e pouco, se foi degradando: ou porque as estações não se iam abrindo, ou por causa dos camiões, ou por falta da aposta por parte das entidades que pudessem ter apostado mais no caminho-de-ferro. E vinham muitos passageiros do Tua até estas estações. Tudo o que era carregado desde Bragança, que havia comboios de mercadoria com fartura, tudo era passado à mão no Tua (quer da via larga para a via estreita, quer da via estreita para a via larga). Na altura, não havia empilhadores, era tudo passado às costas dos trabalhadores do Tua, onde havia o cais de transbordo e que dia e noite faziam o transbordo de todo o material, até altas horas. E eram assim os nossos trabalhos… [Estação de Mirandela e comunidade local envolvente] …Vivi alguns anos na estação de Mirandela. Os meus filhos nasceram e criaram-se lá. Um já tem 25 anos e outro 30 e foram nascidos e criados ali. Naquele tempo, não era só o emprego que nós tínhamos na CP, pois mais do que um emprego, era uma família que nós tínhamos. Se nos faltasse alguma coisa, íamos a fulano a buscar e retribuíamos, quando fosse necessário. E mais que um emprego, era como que uma família que ali tínhamos. Os garotos brincavam ali e andavam pelos comboios sem risco nenhum. Os manobradores tinham sempre aquele cuidado e reparavam se havia qualquer garoto por ali a brincar. E, no fundo, o que ali tínhamos era como que uma família. O que era muito interessante. Havia a estação e algumas casas em volta. A própria estação tinha habitações de ferroviários com uma outra parte para dormitórios de maquinistas e pessoal circulante e outra parte para residência do pessoal da estação. Havia casas junto da estação para habitação de funcionários que viviam ali. Havia o cafezito da Tia Glória, onde era obrigatório entrar e tomar o café… A Tia Glória também arranjava as marmitas para muitos de nós. Telefonávamos 113


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para lá e dizíamos-lhe: «D. Glória, tenha-me aí a marmita pronta para o comboio das tantas horas. Ela era a “Mãe” dos ferroviários… como que um pronto-socorro. Ela não desconfiava das pessoas. A pessoa levava e, depois, é que pagava. Por vezes, ficava ela sem as batatas cozidas para dar a quem ali ia buscar essas refeições… …Na estação havia um ambiente de família. Onde estão agora as casas de banho e aquele edifício onde se vê o programa de Turismo da Câmara, era a casa do chefe da estação. Do lado esquerdo da linha, moravam o chefe das obras e o chefe de lanço e, em cima, em frente, onde hoje é a estação de camionagem, era o chefe de distrito, naquela casa abandonada que agora lá está. Na estação viviam dois fatores, um chefe de telecomunicações, um assentador e funcionava um restaurante. Na parte do Cais, viviam dois serventes da estação. Havia, depois, as Oficinas onde funcionava a parte do Diesel, a parte do vapor e a da tração. Depois havia as cocheiras, onde se metiam as unidades motoras. Eram grandes e lembro-me delas a funcionarem a 100 por cento. Eram umas oficinas médias. Mas as do Pocinho eram quase tão grandes como estas, mas com menos pessoal. Em Campanhã, ou em Contumil, eram maiores. As da Régua eram pequenas, nem um terço das de Mirandela. As da Régua eram parecidas com a do posto diesel de Mirandela, onde metiam as automotoras para manutenção. Na parte do vapor, havia forjas, tornos… Naquela altura, nas oficinas de Mirandela trabalhavam 20 a 30 pessoas, ou mais, talvez. Porque trabalhavam ali torneiros, serralheiros, soldadores, picheleiros, carpinteiros, estofadores, etc… e, depois, havia a parte dos serventes da tração: uma média de 9 ou 10 serventes. Nós chegamos a ser ali 21 maquinistas e quase o mesmo número de fogueiros, enquanto houve o vapor. Foram uns anos bastante agitados. [Vivencias próprias e experiências comuns deste pessoal ferroviário] …Por norma, antigamente, a própria empresa tinha casa para os ferroviários deslocados, conciliando essa atribuição com a categoria ou com a colocação que a gente fazia para um determinado sítio. Por norma, quase que havia sempre casa de habitação para a pessoa que fosse deslocada. Eu trabalhei em Bragança, estive lá uns anos e trabalhei como condutor de uma Dresina (veículo ferroviário utilizado para transporte, trabalhos e inspeção das vias férreas). Tinha o meu filho acabado de nascer. Aprendeu a dar os primeiros passos na estação do Pocinho, pois também fui para ali deslocado como condutor de Dresina. Às vezes, íamos destacados por uma semana e essa semana 114


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passava a anos. A empresa arranjava-nos as condições mínimas para ali poder estar: arranjava uma casita para ali poder estar. Ia a mulher e levava-se o indispensável para ali poder estar. E, no fim-de-semana, vinha-se à aldeia e segunda-feira, de manhã, regressávamos para retomarmos o serviço. [a solidariedade e a perfeita integração na comunidade, do pessoal ferroviário, é salientada por B C, outro ferroviário de Mirandela] …havia muitas situações entre o pessoal circulante, porque entre o pessoal da via estavam mais familiarizados. Quando éramos destacados, como a mulher ficava em casa, às vezes cozíamos umas batatas e se precisávamos de uma cebola íamos ao pessoal que ali vivia e dele nos socorríamos. Vivíamos as situações dramáticas dos nossos colegas. Havia muita solidariedade entre todos. Muitas vezes o pessoal circulante não trazia nada de comer e aquilo que inicialmente era para quatro chegava para seis… Estávamos perfeitamente integrados na comunidade local de Mirandela. Não éramos de modo nenhum uma comunidade à parte... Os próprios habitantes eram solidários com as nossas necessidades. Íamos tomar café à D. Glória ou ao café Cabora Bassa e a outro que havia por ali. Aquelas hortinhas, em frente à estação, era tudo fabricado. E havia ali sempre qualquer coisa, quando se necessitava… [L. Q. explicou ainda a funcionalidade das pequenas hortas de que dispunham] …Essas hortas funcionavam assim: aqueles que estavam ali destacados e que vinham alguns dias até ali não iam trazer coisas. E aquilo era para a comunidade dos ferroviários. Quem delas precisasse, fosse de quem fosse, o ferroviário podia ir buscar e não havia problema nenhum… [Informantes nºs 24 a 29, entrevista nº 18, 2ª entrevista de grupo realizada no encontro de Ferroviários da linha do Tua, no Azibo, em 25 de Abril de 2014]

Termas de S.Lourenço- povoação e estação (Foto aérea de Henri Richard)

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4.2.3. Ambiência natural e empreendimentos agro-industriais Destacam-se na ambiência natural do vale e na história da linha do Tua, o tradicional complexo termal das Caldas de S. Lourenço, localizado na pequena e alcantilada povoação, com apeadeiro do mesmo nome na linha do Tua, hoje abandonado, mas que registou na primeira metade do séc. XX (anos 1940) uma vida quotidiana intensa e animada. Isso é mencionado em várias narrativas orais que referem estas termas como estância de lazer muito procurada, não só localmente, mas também por pessoas de diferentes perfis sociais de todo o país e mesmo do estrangeiro, para tratamento de doenças de pele, ossos e vias respiratórias. Encontram-se aí, ainda em funcionamento, um balneário centenário, património edificado a carecer de obras de recuperação e restauro, mas em vias de desativação pela Câmara Municipal de Carrazeda de Ansiães, a qual mantém atualmente, em instalações pré-fabricadas construídas para o efeito, um novo e bem equipado balneário, tendo em projeto a construção de um grande e mais desenvolvido empreendimento balnear com valência turística. Convoca-se o seguinte testemunho feminino de autóctone local, octogenária, residente na aldeia vizinha de Pombal de Ansiães, que descreve razoavelmente o lugar, o empreendimento termal antigo e atual, a sua capacidade de atração e ambiente plurifuncional concreto “..Nessa altura, o S. Lourenço era muito frequentado por gente que vinha a banhos, à procura de alívio para males de pele, de reumatismo e outros, através das suas águas sulfurosas. Havia gente que chegava em padiolas e, passados alguns dias, começavam a andar. Tomava-se banho no tanque grande, banho colectivo: chegavam a tomar 20 pessoas ao mesmo tempo, durante mais ou menos meia hora (evidentemente que os banhos eram só femininos ou só masculinos). Não podia ser mais tempo porque tinham que dar lugar a outros que estavam sempre à espera. Também se bebia daquelas águas sulfurosas que lavavam o organismo por dentro e curavam certas doenças. Havia também 2 ou 3 banheiras contíguas ao tanque grande. Para as pessoas se instalarem havia algumas pensões, onde se alugava um quarto e onde havia uma cozinha comum. Tinha que se levar roupa de cama e louça para cozinhar e comer. A pensão maior que lá havia era do Sr. Luís Areias do Pombal. À noite havia bailes na casa dos Malheiros que tinham grafonolas. Do Pombal, iam os Baltasares “que eram todos fadistas e tocavam muito bem”. Eram serões muito animados e com muita gente. 116


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Estas águas tinham tal fama curativa, que o próprio diretor das águas de Chaves, afirmava que as de S. Lourenço eram melhores. Vinha muita gente de Bragança, do Porto e até de Espanha. Também vinham de todas as aldeias mais ou menos próximas, sendo que os habitantes do Amieiro vinham a pé pela linha. A época balnear ia desde Junho até aos Santos (início de Novembro). As pessoas do Pombal só iam no fim das colheitas para aproveitarem o facto de já haver menos afluência de gente. No entanto, não havia médico. Só este ano de 2011 é que estas termas começaram a ser exploradas de maneira diferente e passaram a ter um médico para ver as pessoas antes destas iniciaram qualquer tratamento. No entanto, o tanque primitivo continua disponível para aqueles que o querem utilizar. No tempo que referíamos anteriormente, em que as pessoas que lá se instalavam tinham que cozinhar, havia “chicheiros” que vinham vender a carne, havia peixes do rio e todo o outro peixe que vinha no comboio. Também havia “um comércio” para os produtos de mercearia. Também se vendia louça que dizia “Recordação de S. Lourenço”. No meu tempo não havia muita gente do Pombal a trabalhar na estação de S. Lourenço. No entanto, um homem do Pombal, de nome Manuel Pinto, esteve muitos anos a trabalhar na estação, mas a gente que lá trabalhava vinha mais do Amieiro. Daqui também houve um maquinista que já morreu…” [Informante nº 3] A forte vivência destas termas pelas populações locais é visível nas memórias muito vivas desta nonagenária, proprietária agrícola do Pinhal do Norte, aldeia próxima das Caldas de S. Lourenço, onde começou a ir desde criança em companhia dos pais. (…) Iamos sempre no fim da vindima… era quando ia quase toda a gente de por aqui perto… Juntava-me lá com as minhas primas das Areias, com as filhas do Sr. Cândido, ferreiro, também das Areias, íamos aos bailes que lá se organizavam e pernoitávamos lá, dormindo no chão. Na casa do Malheiro havia sempre bailarico. Tomávamos banho no tanque e como éramos só raparigas e não tínhamos fato de banho, tomávamos em cuecas apenas… Instalávamo-nos no mesmo quartel, a casa da curva, que agora está a cair… também íamos para cima para os da Barbosa, para os do Sr. Pinto ou para o da Acácia... Costumávamos almoçar lá com a família e comíamos o que levávamos de casa: chouriços, salpicões, um frango ou um coelho, aquilo que tínhamos…. Naquela altura, para ir para o S. Lourenço, ainda não havia o 117


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caminho que há agora. Ia-se pelo alto do monte… Nessa altura o S. Lourenço era muito movimentado, mas não havia lá onde comprar nada… O comboio trazia gente da Régua, do Porto, de Soutelo, de Nagozelo, etc. e havia mulheres do Pombal que ganhavam dinheiro a carregar as coisas que as pessoas precisavam de trazer para as termas. Passavam lá 10 ou 15 dias. Tomavam banho, os homens jogavam as cartas, as mulheres faziam a meia, faziam renda. Conversavam uns com os outros. À noite havia os bailes e eu até tive um tio enfermeiro que arranjou lá casamento. Ela era de Soutelo, da família dos Soverais, uma gente muito rica. Casaram e foram para Angola…. [Informante nº39] As Caldas de S. Lourenço, a cujas propriedades medicinais e sanitárias as populações locais desde cedo e de há muito se habituaram, serviram ainda ao longo dos anos outros interesses e necessidades quotidianas em especial dos que viviam nas aldeias ribeirinhas e estações da linha do Tua, e que as adotaram quase como parte da sua identidade cultural: L.A.- …sim, claro… também frequentei os bailes de S. Lourenço no tempo em que ainda não havia estrada para lá. Às vezes íamos pela linha do comboio… costumávamos ir a partir do mês de Junho até ao fim das vindimas. Dançávamos ao som de um gira-discos que levávamos. Dançávamos na casa do baile e onde houvesse corrente para ligar o gira-discos. O mais importante mesmo era a dança e a diversão… [Informante nº31] A.S. – “…também fui lá às Caldas tomar banho quando foi para ir à inspeção para a tropa porque era inverno e a água era quentinha…” [Informante nº30] A grande maioria dos informantes privilegiados insistiu na utilidade da linha para o transporte de mercadorias e para a criação de dinâmicas várias ao comércio local, com o movimento ascendente de adubos, carvão, cimento e ferro para a construção civil, e o movimento descendente de cereais, azeite, cortiça, fruta, fumeiro e muitos outros produtos locais e regionais… Referiu-se ainda ao considerável desenvolvimento proporcionado pela linha e comboios do Tua em certos núcleos da região, em consequência de projetos e empreendimentos agro-industriais: no Cachão (CAICA), no Romeu (Casa Menéres), em Mirandela (CUF, oficinas da CP…), ao longo de grande parte do séc XX. A dinâmica económica e social conseguida designadamente em Macedo de Cavaleiros, Bragança, Carrazeda de Ansiães, Alijó, Murça e 118


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Vila Flor esteve ainda ligada à regular e intensa receção de matérias-primas e equipamentos agrícolas que acabaram por induzir uma certa modernização da agricultura, atividade principal da região, proporcionar o incremento e escoamento de produtos agrícolas e transformados (fruta; vinho; azeite, cereais, farinhas…) e contribuir para intensificar a criação de gado e a exploração dos produtos derivados (leite, queijo, peles). Como se pode observar, algumas das histórias de vida documentam com expressividade aspetos importantes da história recente dos principais empreendimentos agro-industriais referidos. É o caso da seguinte narrativa do Eng. JCOM de 80 anos, bisneto do fundador da Casa Clemente Menéres, ex-técnico superior das Indústrias Jomar e ainda colaborador da gerência da empresa Menéres, referente à criação e incremento da Sociedade Clemente Menéres em Romeu de Jerusalém e suas estreitas ligações industriais e financeiras à cidade do Porto: “.…Desde pequenino, habituei-me a passar férias no Romeu. Aí, tive o prazer de conhecer o Sr. Lopes Seixas [feitor] e a Srª D. Rosinha [esposa], que fazia umas alheiras maravilhosas. Nessa altura, o gerente era José da Fonseca Menéres, pai de Clemente Menéres. …A família Menéres passava férias no Romeu. As pessoas iam conforme havia lugar na residência. A casa original ardeu num grande incêndio provocado por uma lareira. Depois do incêndio, construiu-se uma nova casa, em 1941. Quem ia muito para o Romeu era o António Menéres de Araújo. A família de Lisboa ia menos, devido à distância. A vida do dia-a-dia das pessoas que iam, acompanhava sempre a atividade agrícola: vindimas, extração da cortiça, etc… Havia sempre muito pessoal; um, local, outro que era contratado para certos trabalhos como, por exemplo, a extrcção da cortiça, para onde vinham trabalhadores do Alentejo. O pessoal de fora ficava alojado em Vila Verdinho… …Ainda me lembro de haver verões muito quentes e de ver o pessoal a assar sardinhas nos carris do comboio… em 1947, por exemplo…. [Quando se lhe pergunta se o Romeu ainda é hoje importante na família, responde afirmativamente e diz que sempre houve uma ligação muito forte, sobretudo resultante do facto de o bisavô ter criado um pacto social que estipula que os sócios serão sempre da família.] 119


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…Depois dos anos 50, construíram o açude e começou a cultura da fruta em grande escala: a maçã, a pêra e o famoso pêssego, superior ao de Alcobaça. Foi Manuel Menéres que introduziu a cultura da maçã golden em Portugal, com o apoio do Prof. Vieira Natividade, de Alcobaça. Também havia a produção do azeite, e a atividade do lagar, que era no inverno, para se produzir o famoso azeite do Romeu… [Interrogado sobre qual terá sido a implicação de Clemente Menéres, o patriarca da família, sobre a forma como, no início, provocou a movimentação dos povos transmontanos para que se construísse a linha do Tua, diz:] ...o meu bisavô, Clemente Menéres, escolheu Trás-os-Montes para a sua atividade agrícola. Precisava de cortiça para a fábrica de rolhas, do Porto, construída em 1901 / 1902, e teve conhecimento de que havia um núcleo de sobreiral fantástico na zona do Quadraçal. Apesar de os sobreiros estarem implantados numa zona rochosa, mesmo assim ele ficou tão entusiasmado que começou a comprar sobreirais. Ele era de terras próximas da Vila da Feira e já estava familiarizado com a feitura de coisas com cortiça. Também começou com a cultura da vinha, que tinha já sido muito estragada pela filoxera... [A propósito, citou os dizeres da placa que está, no Porto, em frente ao Hospital de Sto António:” Clemente Menéres, paladino da agricultura transmontana”. E prossegue:] …Mas Trás-os-Montes estava muito isolado. Era imperioso, por causa da fábrica das rolhas, fazer o transporte das coisas e nada melhor do que o caminho-de-ferro para fazer o transporte e o escoamento… Como se sabe, as ligações rodoviárias eram muito deficientes; também havia o rio, mas era para quem estivesse situado perto das suas margens. Ora, como o negócio de Clemente Menéres era criar a matéria prima para a fábrica de rolhas, começou por ter fábricas locais em Mirandela e no Romeu e, mais tarde, criou a fábrica no Porto. Como a grande dificuldade era o transporte da matéria-prima para o Porto, daí veio a tentativa da criação da linha ferroviária… …É em 1902 que é criada a Sociedade Clemente Menéres, L.da. Antes desta houve a sociedade Menéres & Companhia, e ainda antes houve a Sociedade Clemente Menéres & Filhos. O negócio era essencialmente feito a partir dos vinhos e do azeite. …Depois de ter comprado muitas propriedades, Clemente Menéres entendeu que devia atrair gente do Norte, que ele conhecia. Um bom exemplo disto 120


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é a família Nogueira Pinto, de Leça da Palmeira, que está na origem da compra da Quinta dos Carvalhais. Foi assim que vários capitalistas foram para aquela zona. Por exemplo, o Marquês da Foz que foi um grande acionista de caminhos-de-ferro. Mais tarde, um Eduardo Pinto da Silva, um Conselheiro Azevedo… e mais alguns. Estas pessoas criaram um lobbie, angariando assinaturas para se conseguir o caminho-de-ferro mais depressa. Hintze Ribeiro foi quem deu o grande impulso. …Em 1915, a introdução do camião revolucionou a vida do Romeu. Evitava que a cortiça ficasse nos campos, por exemplo. Uma pequena camioneta, a primeira, foi utilizada para transporte de cortiça para a estação do Romeu… …Quando era miúdo, ia para Trás-os-Montes de comboio. Saía às 9 horas da manhã de S. Bento e chegava ao Romeu às 17h. Só nos princípios dos anos 50 comecei a ir de carro. A viagem do Porto a Mirandela demorava 7 horas. O tio José da Fonseca Menéres ia num Ford, modelo T, e demorava 10 horas… …Falando ainda de transportes e de tecnologia, existia já lá a máquina a vapor para acionar um volante que movia o lagar. Daí havia a derivação para as várias máquinas, tudo através de correias. Como era necessária alguma corrente elétrica, havia um dínamo que carregava uma série de baterias, tipo Leclanché, que forneciam a iluminação para o lagar e para a residência. O fornecimento era de baixa potência e só dava mesmo para a iluminação. Por isso, o primeiro frigorífico tinha que ser alimentado a petróleo… Sempre tiveram no Romeu pessoal especializado muito interessante. Houve um mecânico extraordinário que era o Manuel Maneta, assim chamado porque de facto trabalhava só com um braço e com o antebraço e fazia coisas fantásticas. Não sei se era mesmo do Romeu, mas estava lá radicado. Havia também o carpinteiro que se tornou, mais tarde, o mecânico de automóveis. E havia o Parente que fazia tudo o que era preciso… era serralheiro, era mecânico… etc. …O pai do primeiro Clemente Menéres aconselhou-o a ir ao Brasil, onde ele tinha um tio e onde casou. Quando regressou ao Porto, começou com a atividade comercial. Foi um homem com uma visão comercial extraordinária. Foi o primeiro vendedor da casa do pai no Brasil. Mas também enviou produtos para as colónias e para alguns países da Europa. Há até nesta sala uma fotografia com o embaixador Venceslau de Morais e umas latas de azeite da sociedade Clemente Menéres… …Clemente Menéres esteve mais do que uma vez em situações económi121


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cas difíceis, sobretudo no período que antecedeu a 1ª Grande Guerra, o qual tornou as coisas muito difíceis e veio fragilizar o mercado da exportação. Aliás, Clemente Menéres, antes de morrer, chegou a ter tudo hipotecado, mas conseguiu vencer a crise e desipotecar tudo. Dos três filhos do primeiro matrimónio, Alfredo Menéres, José da Fonseca Menéres e Agostinho Menéres (o meu avô), este último foi o escolhido para os negócios com o estrangeiro porque falava bem alemão, inglês e francês. Chegou mesmo a ter um escritório em Hamburgo. Há até um episódio muito curioso, talvez no ano de 1913, em que já se notava a rivalidade que ia haver entre os alemães e os ingleses. Agostinho Meneres dizia ao pai, numa carta, sobre a exportação do vinho do Porto: “mande para a Dinamarca, não diga que é para a Alemanha, porque se os Ingleses sabem, nunca mais nos compram vinho….”. [Acerca do negócio dos vinhos, J. C. disse que, a determinada altura, houve uma proibição do negócio dos vinhos aqui no Porto.] …Foi quando o meu avô, Agostinho Meneres, com os filhos, criou a firma Menéres & Companhia, em Matosinhos. Numa zona de lavradio, nasceu um pólo industrial fantástico, que foi muito importante para o mercado da exportação. Os produtos eram comprados em Trás-os-Montes não só ao Clemente Menéres, mas também a outros, e exportados em grande escala para o Brasil e para outros sítios. …Ainda hoje existem, em Matosinhos, as ruínas desta fábrica. …Na cortiça continuava a haver exportação para os países que a adquiriam e para onde era exportada em prancha; nessa altura, as rolhas que se produziam em Mirandela eram aproveitadas para a fábrica de Matosinhos. …A primeira fábrica de rolhas nasceu no Romeu. Mais tarde, passou para Mirandela. Mas, aqui, passou a haver dificuldades de mão-de-obra porque havia concorrência na zona de Zamora, onde existia também uma fábrica de rolhas. O meu bisavô geria a fábrica de Mirandela, onde um dos principais encarregados era espanhol, de nome Cortes. Um dia, por causa da falta de mão-de-obra, irritou-se e criou então a fábrica no Porto, precisamente no edifício onde estamos agora… Todo este edifício tem um carácter de arquitectura fabril. …Quem estudou o perfil deste homem, como lavrador e industrial, diz que ele tinha muita iniciativa, era muito organizado, era o gerente, o homem do marketing, o homem dos recursos humanos e geria toda a parte de contabilidade porque, no Brasil, tinha aprendido toda a técnica de trabalho com 122


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dupla entrada, o método das partidas dobradas… já era aquilo que seria um TOC (Técnico Oficial de Contas) dos nossos tempos. Ele criou leis laborais na fábrica de rolhas em Mirandela, tais como as que tinham a ver com o despedimento dos trabalhadores: se estes quisessem abandonar o trabalho tinham que avisar com 15 dias de antecedência, mas o mesmo era válido para o patrão se quisesse despedir o trabalhador… Outro aspeto: Clemente Menéres nunca teve sócios a não ser os primeiros, onde até houve uma situação desagradável; a firma era Pais & Menéres. Mas, a partir daí, as sociedades foram sempre com os filhos. Inicialmente ele era o único dono do Romeu, nunca o misturou com as outras empresas… …Real Companhia Vinícola: inicialmente, a fábrica era Menéres & Companhia e mais tarde, quando decresceu a importância comercial da firma, houve alguém que comprou parte das quotas e criou a Real Companhia Vinícola Portuguesa. Aí já os meus tios e o meu avô não ficaram sócios, mas ficou o mais novo, José da Fonseca Menéres, e Alfredo Menéres passou a pertencer só ao Conselho Fiscal. Aí esvaziou-se a importância da fábrica… E era uma verdadeira fábrica porque reunia todas as potencialidades próprias: tinha a serração própria, a tanoaria; fabricava as próprias caixas de madeira para exportar o vinho; tinha já uma instalação elétrica própria para produzir energia; tinha uma vagoneta que facilitava o escoamento dos produtos todos pelo porto de Leixões… …O modo como Clemente Meneres desenvolveu o negócio foi com o crédito bancário. Ele tinha muito crédito pessoal, não tinha propriamente fortuna pessoal. Era também muito amigo do fundador do Banco Espírito Santo e tinha facilidade em lidar com a Banca… …Desde 1902 até 1916, data da sua morte, apostou fortemente na parte agrícola e conseguiu recuperar da crise financeira que tinha acontecido. Deixou à família, em testamento, as quotas muito bem distribuídas e deixou muitos bens… Houve, durante a 2ª guerra, em 1941 / 42, uns alemães que passaram pelo Romeu e ofereceram 20 mil contos pela Sociedade… São de Clemente Menéres estas frases: “Gerir sem livros, é gerir às cegas” e ainda “Ter casa o suficiente e terra até que não a vejas”. Eram alguns dos seus princípios. Ele era um homem que estava sempre a querer inovar e não era por acaso que ia muito ao estrangeiro. Dedicou-se aos três setores: Agrícola, Comercial e Transformador. A sua primeira iniciativa, no Porto, como industrial, foi a criação da fábrica de conservas. Aqui, havia uma par123


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ticularidade interessante: como a lata da conserva era feita de folha de Flandres, quando se abria, ela explodia. Clemente Menéres informou-se junto de um técnico e criou um sistema que consistia em aquecer ligeiramente a lata, esta já descomprimia porque aumentava o volume e já se conseguia abrir sem que o azeite saltasse… …A ideia da produção da fruta do Romeu era para a fábrica de Matosinhos…. Ele foi pioneiro em muitas situações: - a energia elétrica local; - a introdução de todos os mecanismos apropriados nas fábricas; - na parte agrícola, o combate à filoxera e as pesquisas no campo da agronomia. Aqui, teve o apoio do neto mais velho, António, que estudou em Leipzig, formando-se em agricultura. Fixou-se em Mirandela e trabalhava para a Sociedade, ganhando um ordenado como o de qualquer trabalhador. Alfredo da Fonseca Menéres casou com uma senhora da família Nogueira Pinto e ele também tinha formação agrícola… …Com a existência do feitor, estava-se perante o que se pode chamar uma gestão à distância. Com ele colaboravam os capatazes (criados); os jeireiros ; os compradores e os guardas que eram muitos pois as propriedades abrangiam 54 freguesias, ou seja, 8 concelhos de Trás os Montes. No Porto estava centrado o gerente. Os guardas eram fundamentais porque havia sempre roubos… Para a articulação entre o Gerente e o Feitor, tudo era transmitido por escrito. O original ficava no escritório do Romeu e, no Porto, ficavam as cópias. Existe todo esse material nos copiadores… …Havia grande relação de confiança entre o feitor e Clemente Menéres. Ainda conheci o feitor Lopes Seixas, que era um homem afável, muito simpático e a esposa também. Mas já não convivi muito com ele porque ele deixou a Sociedade em 1941 e esteve ausente entre 1937 / 38. …O 1º feitor, o Bernardo, sendo analfabeto, foi um homem notável e muito conhecedor. Aliás, recordo um episódio passado entre ele e o meu bisavô, no Romeu. “ Como sabem, o transmontano é calmo por natureza e este homem era-o até excessivamente. Uma noite, ao serão conversavam feitor e gerente, na companhia do cão da casa. Quando Clemente Menéres pergunta ao Bernardo se ele dava o suficiente de comer ao animal, ele responde com toda a bonomia: “ Claro que dou o suficiente, mas também para o que ele faz!...”. Este feitor tinha uma ecónoma que era a mulher, a Srª D. Maria. Era ela que tinha a caixa do dinheiro, a qual geria… 124


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[Sobre as causas do encerramento da fábrica da cortiça em Mirandela, julga que foi muito fruto da primeira Grande Guerra, mas também da diminuição da procura da cortiça; ela tinha até mais valor se exportada em prancha do que fabricada em rolhas.] …A dinâmica empresarial de Clemente Menéres, a sua ação, o seu dinamismo, está bem patente na frase que já foi citada nesta entrevista: “Clemente Menéres, paladino da agricultura portuguesa” …Foi um homem dinâmico, inteligente e com muita iniciativa, o qual sabia rodear-se de bons colaboradores e escolher sempre bons técnicos. Criou as primeiras fábricas do Norte do País. Foi um pioneiro na maior parte das suas atividades e aquela em que apostou sempre mais foi a atividade agrícola, a qual teve sempre continuidade e ainda hoje existe. Conseguiu manter a sociedade sempre unida na família. Em 1902, fez-se em Portugal a primeira sociedade agrícola e é das poucas que ainda hoje existe. Ao longo dos anos pensou-se em transformar esta sociedade em Sociedade Anónima, mas como havia um grupo sempre com um maior poder de quotas, achou-se que isto ficaria mais seguro se continuasse como uma sociedade por quotas. José da Fonseca Menéres foi o primeiro gerente, e os seguidores nunca precisaram do dividendo da sociedade para sobreviver. Sempre se investiram os dividendos. É um caso muito particular. Daí isto se manter. Mas esta empresa funciona também muito com a carolice, o que tem o seu valor. Em 2002, ao completar 100 anos, o pacto social foi modificado, neste momento já é uma sociedade aberta, mas a quota continua a não poder ser vendida senão à família, não é aberta nesse aspeto. E se o familiar morrer sem descendência, a sociedade toma conta da quota. …No Brasil, Clemente Menéres tinha uma rede de correspondentes. Naquele tempo, havia casas no Porto, cujas famílias mantinham negócios regulares com Clemente Menéres; com a influência das duas grandes guerras, houve intervalos muito grandes e esses laços todos se perderam… …A crise de 40 verificou-se por todo o país, mas em Trás-os-Montes houve sempre uma atividade de subsistência, as pessoas tinham as suas culturas e criavam os animais de que precisavam. Assim, a crise sentia-se muito menos do que no litoral, por exemplo… mas desenvolveu - se também a Obra Social Clemente Meneres, em que se chegava a dar terra a todos aqueles que dela necessitassem para construir as suas casas.” [Entrevistado nº 18] Complementa e diversifica a anterior história de vida de acentuado cunho familiar e genealógico, este outro relato biográfico de uma professora de en125


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sino primário, aposentada, com 91 anos, filha e neta de antigos e conhecidos feitores no Romeu, que aqui, onde a mãe foi governanta, nasceu e viveu com a família, com um nível de vida bem superior ao generalizado na região. [Romeu e família Menéres]... Conheci bem os Menéres. “Conheci-os a todos, por dentro e por fora, com todos os seus defeitos e virtudes… Lembro-me do mais velho, que arranjou a fortuna no Brasil, onde se casou com uma mulher de nome Carlota. A certa altura regressou e veio viver para o Romeu. Quando chegou ao Romeu, ele lá vinha com as ideias dele, e queria comprar sobreiros. Dizia que nos sobreiros é que ganhava a vida e então comprou quantos sobreiros lhe apareceram - comprou o Quadraçal todo, aquela zona só de sobreiros que começa no Romeu e acaba nos Cortiços. Como não podia lá estar sempre, porque tinha a vida dele, mas como era desses homens cheios de vontade de subir na vida, precisava de levar um homem de confiança para o Romeu, a quem pudesse deixar entregues as compras que tinha feito e os negócios que lá arranjou… …Ele não vivia lá, no Romeu, mas tinha um amigo que tinha uma fábrica de fechaduras, acho que no Porto ou em Gaia, a quem pediu se lhe arranjava lá na fábrica um homem de confiança que fosse para Trás-os-Montes. Ele arranjou-lhe o meu avô, Joaquim Barbas, que foi ao Romeu inteirar-se dos assuntos – e nunca mais de lá voltou. A minha avó começou a achar que o marido se demorava por lá e como era uma mulher muito despachada e expedita, fez questão em ir ter com o marido, saber onde ele estava e como estava. Como eles sabiam a raça de que ela era, “de antes quebrar que torcer”, arranjaram-lhe a ida. Era o tempo da mala-posta: naquela altura era muito difícil viajar de e para o Porto, porque de Mirandela para cima só se ia de carro de cavalos. “A mala-posta já não é do meu tempo, mas ainda é do meu tempo a velhota que tinha uma taberna muito grande, junto da estrada - era ali o lugar de mudança de cavalos. Chegavam ali e deixavam os cavalos nessa casa, onde os tratavam até ao dia seguinte, e levavam os que lá estavam, já tratados, para irem até Bragança; era apenas uma mudança de cavalos. A mala-posta era no Romeu. …A minha avó foi lá ter com ele e ficou a viver no Romeu de Cima (onde está agora o restaurante), até arranjarem, no Romeu de Baixo, a casa onde depois nós vivemos. …Tiveram por lá uma soalheira de filhos. O meu avô dizia: “eu vim aqui 126


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parar, mas não quero que os meus filhos fiquem aqui, quero que vão lá para baixo ganhar a vida” e por isso os meus tios espalharam-se cá por baixo (zona envolvente da cidade do Porto)… Um deles morava em Ovar… …Um dos meus avós é de uma aldeia adiante de Fiães, e outro é de Vilar de Paraíso. A minha mãe dizia assim muitas vezes “eu tenho muita família em Vilar do Paraíso, mas não conheço lá ninguém”… …Eu já não conheci o meu avô, Joaquim Barbas, porque ele já tinha morrido quando nasci”. …“Os Menéres que eu conheci bem já morreram todos. O primeiro deles, a quem nós chamávamos o Menéres Velho, trabalhava numa casa de fechaduras, no Porto. Depois emigrou para o Brasil... Quando regressou, foi para o Romeu… Constituiu uma sociedade com mais de cinquenta sócios, com regras rígidas. Por exemplo, ninguém podia deixar de ser sócio enquanto vivesse, nem podia desfazer a sociedade. Era um homem cheio de vontade de subir na vida: era menino para lavar a própria camisa, à noite, e no dia seguinte, vesti-la e sair para a rua a parecer um lorde… O Menéres Velho teve dois filhos: o José Menéres e o Manuel Menéres. Tanto o José como o Manuel eram casados. O José era da idade da minha mãe, o Manuel era muito mais novo. O José tinha duas filhas: chamavam-se Josefina e Maria Beatriz. Mas tinha mais filhos. Uma delas até casou em Macedo de Cavaleiros com um ricaço, lá viveu e lá morreu. O Manuel teve um filho, o Clemente… …Os Menéres não estavam lá permanentemente, mas passavam lá sempre o mês de Maio e a época das vindimas. Durante o resto do ano também iam lá. O Manuel ia mais vezes, às duas por três, estava lá caído. O José podia não ir tanto, mas preocupava-se mais… …Com o comboio, acabou a mala-posta. Mas isso do comboio é outra história, porque o comboio não era para passar ali, o comboio era para ir não sei por onde, mas os Menéres tinham todo o interesse em que ele fosse por ali. Foi tudo feito com a influência deles, senão não teria sido assim. …Quando eu lá estava nas férias, íamos à estação buscar o correio. Quando sentíamos o comboio a vir de Mirandela para cima ainda dava mais do que tempo para ir à estação. …Depois aquilo tornou-se muito bonito e muito movimentado, mas foi mais tarde… [Trajetória biográfica, profissional e famíliar] …O meu pai morreu nas Areias, em 1952. Já tinha 90 anos… 127


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…Quando o meu pai estava no Romeu, eu fiz o liceu em Bragança. Tenho mais de quantas fotografias da cidade. Nessa altura eu ia do Romeu para Bragança, e de Bragança para o Romeu, sempre de automóvel, porque o meu pai tinha um carro para o movimento dele na vila e, quando precisava, tinha outro para andar nos montes. Quando deixou de trabalhar para os Menéres, foi viver para a casa dele em Areias. Quando ele morreu eu estava a trabalhar em Vale da Sancha, perto de Mirandela. E antes de estar em Vale da Sancha, ainda estive na Torre de Dona Chama, que é uma aldeia muito boa no concelho de Mirandela. Comecei a trabalhar ainda novita, tinha para aí 21 ou 22 anos. Depois de Vale da Sancha, fui para Seixo de Ansiães, e do Seixo é que vim para as Areias, e das Areias vim para Rebordosa, e depois fui para Sobrado, depois de Sobrado fui para Valongo, e depois para Canelas, Vila Nova de Gaia. Quando dei aulas nas Areias, o meu pai ainda não tinha morrido. Ele fazia anos em Fevereiro, e semeava sempre batatas novas no quintal, e depois mandou fazer aquele portãozinho no fundo do quintal para eu ir para escola, para me livrar da rua que era muito molhada. Eram dele estas palavras: “a rapariga afoga-se aqui”. A escola era onde ainda está. Até tenho uma fotografia em frente daquela oliveira em frente ao edifício da escola, era eu uma rapariga nova. …Nas Areias vivia uma irmã do meu pai que era a minha tia Quitéria, cujo marido se dava mal com toda a gente. Ela passava lá os dias connosco, lá comia, e portava-se muito bem com a minha mãe. Ela não teve sorte com o casamento. A única pessoa que tinha cabeça como devia ser era o meu pai, que sustentava metade daquela tropa... …O meu pai chamava-se Francisco Lopes de Carvalho, mas depois passou a chamar-se Francisco Lopes Seixas. A minha mãe era Rosa Domingues Barbas. O pai da minha mãe era o Joaquim Barbas, o qual, como já disse, foi feitor dos Menéres. O meu pai tinha ido trabalhar para a casa Menéres e, nessa altura, conheceu a minha mãe e casaram-se. Eu fui a primeira filha. Depois nasceu o meu irmão Francisco. A Maria Luísa Lopes de Carvalho era minha irmã, mas era filha do primeiro matrimónio do meu pai. A mãe dessa Maria Luísa era de Candoso, ou por ali assim. A Maria Luísa veio para um colégio interno no Porto, por ordem do meu pai, e com consentimento dos Menéres. Foi professora do ensino primário. Chegou a estar presa por razões políticas ligadas ao anti-clericalismo. Foi condenada por ensinar religião na igreja e por ir à missa todos os dias 128


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- ela tinha sido educada num colégio católico, e era muito religiosa. Vivia em Codeçais, onde era a maior influente da igreja, e por causa disso acusaramna de ir dinamitar a ponte de Abreiro. Naquela altura a ponte de Abreiro foi dinamitada e ela foi uma das acusadas… porque o homem era dos caminhosde-ferro e ativista monárquico… O meu pai ficou furioso porque diz que aquilo não lembrava a todos. Ela esteve presa em Braga, não propriamente na cadeia, mas numa casa - improvisavam cadeias em casas, e metiam lá as pessoas. Ela chorava muito. O meu pai, com pena dela, pagou a uma mulher que mandou para lá para lhe fazer companhia dia e noite. É que a minha irmã levava aquilo muito a sério porque estava muito sentida. Depois, a minha mãe foi para lá uma temporada para lhe fazer companhia. A minha mãe contava coisas muito engraçadas relacionadas com essa estadia. Depois voltou para Codeçais, porque foi julgada e acabou a pena. Aquele que veio a ser meu cunhado, o Amador, era chefe da estação de Codeçais. Foi nesta aldeia que se conheceram e se casaram. Primeiro, ela estava na aldeia e ele ia lá todos os dias. Depois, começou a ter muito serviço na estação e precisava de estar lá e ela também gostava mais de estar lá com ele do que de ficar na aldeia. Eu ainda lá estive a viver algum tempo com a minha irmã. Eu andava na escola e, por causa disso, é que estava lá com ela. Tinha 7 ou 8 anos, era da idade do meu sobrinho, do filho mais velho da minha irmã. …O meu pai não gostava de ver o meu cunhado no Romeu e arranjou-lhe, com a ajuda dos Menéres, trabalho num armazém de azeites no Porto. Ele veio para esta cidade e vivia aqui. Ele e a minha irmã estiveram aqui instalados porque o meu pai lhes montou uma casa, onde viviam muito bem, mas o meu cunhado atirou com tudo ao ar em pouco tempo. Só sabia estar a mandar, não tinha habilidade para aquilo. Depois foi para África, para os caminhosde-ferro, em Moçambique, e esteve lá uma temporada. A minha irmã ficou cá sozinha. Depois ele queria que ela fosse lá ter. A minha irmã ainda chegou a arranjar a mala para ir para lá. Nessa altura tinha três filhos, o Alberto, o José Augusto e a Elisa. …A minha mãe e a minha irmã eram muito amigas e andavam sempre juntas, davam-se muito bem. A minha mãe era muita amiga do meu pai, sempre foram o casal ideal, e a minha irmã também era amiga do pai. No Porto, a minha irmã continuou a ensinar, numa instituição para onde iam os filhos dos professores. 129


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A minha mãe era um bocado mais nova do que o meu pai. Não era muito instruída, mas tinha a 4ª classe. Eu era 30 anos mais nova do que a minha irmã. Era da idade dos filhos dela, éramos todos da mesma idade, tios e sobrinhos, era tudo a mesma coisa… …Vivi no Romeu até ir estudar para Bragança. Era novita quando me matricularam no Liceu, tinha para aí 10 ou 12 anos. O comboio era o meio de transporte que nós usávamos para ir a qualquer parte. Nessa altura já tinha vindo várias vezes ao Porto. Ficávamos em casa da minha irmã, que vivia nesta cidade. Eu fiz a Escola do Magistério no Porto, depois de ter acabado os estudos no liceu de Bragança. Fazia todas as viagens de comboio. Demorava um dia inteiro. Vinha do Romeu ao Tua, onde mudava de comboio. Até chegar ao Porto era um dia de pândega. Quando era miúda ia todos os anos, com os meus pais, passar as férias a qualquer parte. Muitas vezes íamos para as termas de Moledo do Douro e de Aregos. Nós, eu e o meu irmão, viajávamos com eles no comboio… …O meu pai tinha um carro e um motorista para tudo quanto precisava. Tinha telefone na cabeceira da cama; naquele tempo, já era como agora. Ele ia pagar as contribuições a todas as sedes do concelho onde os Menéres tinham propriedades. Em cada zona tinha um guardador dos sobreiros e esses homens iam de vezes em quando ao Romeu. O meu pai, quando chegava a casa, dizia para a empregada: “olha, está ai o corticeiro para almoçar” (chamavam-lhe os corticeiros). Algumas vezes iam lá receber, outras vezes iam levar as contas. O meu pai também corria o concelho todo, era ali um rei pequeno, ele é que mandava em tudo e em todos… …A mãe da minha irmã era de uma gente tão completa e tão boa que a minha mãe dizia que “ tudo o que vinha da mão dela parecia de uma senhora”. Ainda lá tenho numa caixa, nas Areias, uns pompons vermelhos, com um colchete na ponta, que serviam para embelezar a cama, quando ela estava feita. Para a minha tia Quitéria, isso era tudo chinês… [A vida diária no Romeu]: …A minha mãe tratava da cozinha, gerindo 7 ou 8 criadas; a minha mãe era a governanta da casa: passava tudo pela mão dela; era quem punha e dispunha e decidia tudo. Por exemplo, quando iam os homens tratar das vinhas, vindos do Douro, era a minha mãe que lhes calculava aquilo que eles precisavam de comer, era ela quem, todos os dias, dava à empregada que vinha com eles, aquilo que eles haviam de comer no dia seguinte… 130


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Ela dispunha de tudo quanto era preciso e não se podia queixar porque ela tinha quantas empregadas eram precisas. Se ela dissesse que precisava de mais mulheres para trabalhar na cozinha, o José Menéres dava-lhe carta branca para chamar as que ela quisesse. Até havia sempre 3 ou 4 operárias da jeira que eram certas quando havia falta de pessoal. Como tínhamos telefone para todos os lados, a minha mãe telefonava para lá e dizia assim: “Ó Sr. Francisco Domingos, mande-me a Leonídia, a Beatriz, esta e aquela, preciso cá delas por serem sempre as mesmas e já estarem habituadas”. A minha mãe não fazia nada diretamente; as mãos dela andavam muito tratadinhas porque ela tinha pessoal para tudo. Também tinha uma cabecinha como poucos, lá isso era verdade… …Passando ao meu pai… era a mesma coisa. Depois de jantar, ia todas as noites para o escritório, onde recebia todo o pessoal: iam os da quinta do Monte Meões que é aquela, cá em baixo, onde está a estrada e onde há dois pinheiros mansos muito grandes, um em de cada lado, onde estava um caseiro todo o ano a tomar conta. Tinha lá um telefone, que servia para o meu pai tratar dos assuntos quando não podia lá ir. Às vezes, metia-se no carro e ia lá num instante e outras vezes vinha o caseiro ao Romeu. Mas ainda havia mais duas quintas que ficavam à beira de casa: a da Raposa e a do Olival das Vinhas. Havia muitas mais, mas ficavam mais longe, algumas já junto de Macedo; dessas não sei dizer os nomes. Eu não ia muito a Macedo: ficavanos fora de mão. A vida fazia-se toda para Mirandela. O meu pai não ia lá todos os dias, mas pouco menos… Umas vezes ia de carro, outras vezes ia de comboio. A viagem demorava uns dez ou 15 minutos… …O meu pai, às vezes, estava no escritório, de repente surgia algo que era preciso e ele só, ia logo: “eu vou a Mirandela num instante e já venho”. Pegava no casaco ou em qualquer coisa, ia para a estação e dizia assim, “dizei à minha mulher que eu vou a Mirandela e venho já” outras vezes tinha o motorista à mão e só dizia: “ó fulano, leva-me a Mirandela” …Nessa altura, a estrada era de terra batida, mas era muito movimentada; tinha sempre muita gente para cá e para lá. Mirandela sempre foi um meio bastante desenvolvido: tinha feiras de mais de quantas coisas e o meu pai tinha lá aquelas relações todas e resolvia as coisas todas num instante... …Nós utilizávamos diariamente o telefone para Mirandela: a minha mãe, à noite, pensava em tudo o que era preciso para o dia seguinte. Telefonava para lá a encomendar tantos kl de carne, tantos kl de peixe, mande-me isto, 131


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mande-me aquilo… e o Jaime (um dos empregados permanentes, casado com a Senhorinha, que também trabalhava na casa) ia lá buscar as coisas todas que metia em saquinhas de pano, pois ainda não havia as de plástico… …Aquela vida era já muito desenvolvida e muito movimentada. Eu crieime naquele ambiente e, talvez por isso, saí assim mexida e habituada a um nível de vida muito bom… …Conheci bem o José Menéres e o Manuel Menéres, que era o dono dos automóveis Ford; diziam que era com esse negócio que ele ganhava o dinheiro. Também diziam que o filho do Manuel seria o seu continuador, mas ele não percebia nada daquilo… …O José Menéres era o que trabalhava no Romeu, esse é que era o “verdadeiro lavrador”, o que percebia daquilo… Tinha uma filha chamada Josefina que se casou com um tal de apelido Manso, que era também dono de uma quinta. A gente até lhe chamava o Menéres Manso. Ele era um ricaço de Macedo muito bem parecido. O Meneres pai viu naquele casamento uma boa oportunidade para a filha. Mas… em Macedo vivia uma viúva de um oficial que era tio dele. Entretanto, chegou a Macedo um médico que, ao ver aquela viúva rica, com aquele palacete, enganchou-a e casou com ela. Foi uma vergonha: uma velha carcaça casada com um rapaz novo…. E o Manso, sendo tio dessa velha, herdaria o que era dela que, entretanto passou para o médico que se encheu ali e o sobrinho ficou a ver navios e a Josefina ficou sem aquela riqueza que o pai lhe tinha arranjado, só porque a velha se apaixonou. Está a perceber? Não?... Eu explico melhor: Em Macedo de Cavaleiros havia uma senhora que vivia numa casa brasonada e que era mulher de um oficial. Ela era tia desse Manso. Como ela não tinha filhos, ele e uma irmã dele chamada Rosinha eram os herdeiros e, por isso, traziam-na nas palminhas. Quando ela ia ao Romeu, só faltava levarem-na de charola porque era rica. Depois, um desses médicos novos que vinham para a província, espreitou o furo ao ver aquela velha rica com aquele casarão e enganchou-a. Ela, ao pé dele, pareciam a avó e o neto. Mas, entusiasmada, fez-lhe tudo o que tinha e deixou os sobrinhos sem nada. De maneira que lá ficou o Manso sem receber a parte que lhe caberia por morte da tia… …Eu não ia muito a Macedo. Mas ia sempre lá quando se começavam a limpar os sobreirais. Porquê? Eu explico: quando se tirava a cortiça, era preciso empilhá-la para que os compradores pudessem ir vê-la. Era necessário transportá-la. Então, o meu pai ia pessoalmente a Macedo e a Mirandela, 132


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andava pelas feiras a comprar os cavalos necessários para o transporte da cortiça. Comprava aí uns vinte ou trinta animais. Depois de todo o trabalho feito, ia vender os animais que tinha comprado. Vinham homens do Alentejo para comprar toda aquela cortiça. Lembro-me bem do Sr. Pires (alentejano) que era o que chefiava estes homens que se hospedavam no Romeu mais ou menos durante um mês. Havia uma casa grande com muitos quartos onde cabia muita gente. Vinham na altura de tirar a cortiça. Na primavera começavam-se a despir os sobreiros… [Percurso escolar e importância do comboio] …Fiz a escola primária no Romeu, mas estive um ano em Codeçais. Por uma questão política, a professora do Romeu teve de deixar a casa e ir para outro sítio. Ela estava numa casa que pertencia aos Menéres e houve ali motivos que eu não entendi, mas o que é certo é que a escola ficou sem casa para a professora e os alunos passaram a ter aulas em Vale de Couço (a aldeiazinha do lado de lá do ribeiro). O meu pai não quis ver-me naquelas confusões e mandou-me para casa da minha irmã que, na altura, vivia em Codeçais e era lá professora. O filho mais velho dela, o meu sobrinho José Augusto também era aluno dela… …Quando fiz o exame da 4ª classe, os meus pais matricularam-me no liceu de Bragança. Andei lá sete anos. Estava interna num colégio de freiras e ia ter aulas ao liceu. Só vinha a casa nas férias. O meu pai mandava o motorista buscar-me. Naquele tempo, andar de carro era um privilégio que poucos tinham… Uma vez em que o meu pai esteve muito doente com uma infeção, foi o Sr. Francisco Domingues da quinta de Monte Meões quem me foi buscar. …Quando acabei o sétimo ano do liceu, como não havia Escola Normal em Bragança, vim estudar para o Porto. Fiquei hospedada em casa da mãe da D. C. que veio a casar com o meu sobrinho J A. Nesta casa estavam mais de quantos estudantes hospedados. Se foi aqui que eu conheci aquele que veio a ser meu marido? …Eu já o conhecia há muito tempo… até porque ele esteve a trabalhar, no Porto, com o meu cunhado, o Amador, num armazém de azeites, emprego arranjado pelos Menéres para o Amador. Quando o meu cunhado deu o pontapé na fotrica toda, quem esteve sempre ao lado dele foi o meu marido que era muito bom e disse que não o deixava só numa altura daquelas… …O valor que tinha o comboio no Romeu era grande: além do transporte de passageiros, era ele que levava o correio, as revistas, etc.…. O que vinha do Porto tinha muito movimento, o de Bragança tinha pouquinho. E em Bragança o que é que havia? Havia o liceu e havia a tropa, que era o 31 e o 133


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10, que eram os quartéis. Se não fosse o 31 e o 10, Bragança não tinha vida nenhuma… …A gente do exército, os mais graduados, eram os explicadores dos alunos que precisavam de apoios extra. Eu ainda tive explicações de Matemática com um desses homens (eu era mais fraquita a Matemática)… …A primeira vez que fui a Lisboa, foi quando comprei a minha casa. Fiquei instalada num hotel na Praça da Figueira e fui comer ao “João do Grão”. Fui lá por causa da papelada da compra da casa, já que eu estava inscrita na Caixa Nacional de Pensões e me saiu uma posição. Era preciso tratar do assunto com rapidez e o meu marido não estava com pressa nenhuma. Também lhe disse que ou se despachava e vinha comigo ou eu tratava do assunto sozinha… Eu fazia mesmo questão em não perder a oportunidade que me tinha sido dada… …A casa do Romeu era do meu pai. Ele não vivia lá…. A casa era em Vale de Couço e ele vivia em Jerusalém do Romeu. Ele comprou-a porque a minha mãe fazia questão de ter uma casa na terra dela. Ele tinha a intenção de lá fazer obras, mas como não a habitava, nunca chegou a fazê-las. Depois, passados muitos anos, quem vendeu a casa foi o meu irmão. Vendeu-a a um emigrante…” [Informante nº17] Julgou-se ainda útil, para completar a panorâmica multi-perspetivada traçada deste conhecido empreendimento no Romeu, selecionar uma terceira e última história de vida que ilustra outras dimensões da história da Sociedade Clemente Menéres e se cruza em vários aspetos com as duas anteriores. O seu protagonista, AFLS, de 88 anos, sobrinho da anterior entrevistada e filho de transmontanos com trajetórias biográficas ligadas à linha do Tua, é engenheiro aposentado com uma carreira profissional sempre ligada à construção de várias barragens e túneis do país. (…) Quando nasci a minha mãe já tinha quase 40 anos e o parto era considerado de risco. Embora ela vivesse em Codeçais (Carrazeda de Ansiães), como era muito amiga do Sr. José Menéres e da D. Josefina, estes aconselharam-na a ir para Monte Meões, pois podia precisar de um médico. Codeçais nem estrada tinha na altura. A minha mãe casou em 1914 e eu era o 3º filho… Eu não sei bem qual foi a origem da minha mãe, ela parece que ficou órfã com 12 anos, era filha do 1º casamento do meu avô, creio que a minha avó era de Viseu e tenho quase a certeza que eram da família do Sr. Teixeira de Sousa, 134


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que foi o último Primeiro-ministro da Monarquia, no reinado de D. Manuel II… Mas não sei mais nada… Só sei que o meu avô não queria separar-se da minha mãe e ela já estava formada; naquela altura, ser professora primária era um caso muito complicado e ela concorria para ser colocada e nunca o era. Um dia falou sobre isto com o Sr. Menéres, dizendo-lhe que já há quatro ou cinco anos que não recebiam resposta nenhuma dos concursos que fazia. Este deslocou-se a Bragança para saber o que se passava e constatou que nunca lá tinha chegado nenhum requerimento dela. É que o meu avô, que era o encarregado do correio no Romeu apanhava-lhe os requerimentos e não os mandava para Bragança... O Sr. Menéres então entregou um documento em mão e ela foi logo colocada… e foi para Codeçais… isso irritou o Pai que não queria separar-se dela. Além disso, Codeçais era uma aldeia mesmo muito pobre. “Aquilo eram só fragas”, dizia ele. Assim, pai e filha zangaram-se. Ela ainda era solteira. Mas, aquele que havia de ser seu marido, era de Codeçais e era revisor da linha do Tua a Bragança. Ele era revisor, ela era a senhora professora, começaram a namorar e casaram. “O meu avô foi aos arames, não sei se tinha para ela outros projetos e, pura e simplesmente, cortou relações com a minha mãe. Só fizeram as pazes quando eu nasci. Entretanto, nasceu o meu irmão, nasceu a minha tia Leonor, nasceu o tio Chico e a minha irmã… como entretanto fizeram as pazes, o meu avô foi meu padrinho e, por isso, me chamo também Francisco... …O meu pai, quando casou, passou a ser chefe de estação em Codeçais. A mulher era professora na mesma aldeia, viviam na estação e ela ia todos os dias de burrico para a escola que ficava mais ou menos a 2km. Os dois filhos mais velhos ainda viveram na estação, mas quando o mais velho dos três fez a 4ª classe, teve que ir para o liceu. O meu pai montou casa no Porto, onde vivia com o filho mais velho e a minha mãe vivia com os outros dois filhos em Codeçais. O meu pai pediu a demissão da estação e tinha um negócio de azeites no Porto. Só que apanhou a crise de 1929 e a vida começou a correr muito mal; viviamos apenas do ordenado da minha mãe que já era professora primária no Porto. O meu pai teve que emigrar. Foi para Angola e, como tinha prática do trabalho nos caminhos-de-ferro, arranjou um belíssimo lugar nos caminhos-de-ferro de Luanda a Malange. Estava a viver razoavelmente e já tinha tudo preparado para receber a mulher e os filhos lá em Luanda. Estavam feitas as malas para embarcar e fomos para o Romeu no fim do ano letivo, isto em 1935. Eu tinha feita a 1ª classe no Porto, no Carvalhido, com 135


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a minha mãe como professora e fui para a escola do Romeu; o irmão andava no 7º ano e a minha irmã estava com a tia Leonor num colégio em Bragança. Estava tudo pronto para irmos quando a minha mãe adoeceu e nunca mais se levantou. Isto foi em maio ou junho e ela morreu em Novembro. O meu pai, quando recebeu a notícia, veio logo no primeiro barco. Passámos a viver os três juntos, mas o meu pai continuava a querer que fossemos para Luanda, pois estava lá tudo pronto para isso. Fizemos de novo as malas. Mas punha-se um problema: o meu irmão mais velho já não podia acompanhar-nos porque ia entrar na Universidade. O meu pai decidiu que era melhor ficarmos juntos. Conseguiu arranjar um emprego “muito fraquito” na Junta Nacional dos Vinhos. Não teve ninguém que o ajudasse, nem em Codeçais, nem no Romeu e passou uns anos muito mal. Foram alguns amigos que emprestaram dinheiro até que conseguiu arranjar uma transferência para Gaia, para a Junta Nacional do Vinho e “começou a respirar mais fundo embora tivesse muitas dívidas, na altura. Omeu irmão já estava no FQN (preparatórias de medicina), dava explicações e ajudava muito o pai. A minha irmã tratava da casa e eu, o filho mais novo, ia para o liceu. No Porto, vivemos na Travessa dos Clérigos. Depois surgiu a oportunidade de alugar, por um preço muito baixo, uma quinta em V. N: de Gaia, entre as Devesas e a Calçada das Freiras, mais concretamente no lugar do Marco – Quinta de Valverde. A quinta, além da casa, tinha lagares, tinha vinhas, estava muito bem apetrechada.O meu pai alugou-a por três anos e, como sabia muito de agricultura, aquela quinta pagou-lhe as dívidas. No fim dos três anos, a senhoria, como viu que a quinta era rendosa, pediu uma exorbitância pela renovação do contrato. Fomos então viver para o Porto, para a rua da Boavista, mesmo em frente ao depósito de fardamentos, já eu andava no 5º ano do liceu. Vivemos aí até que acabei o curso, em 1950. (…) Agora, o que eu gostava de afirmar era o seguinte: o esforço do meu pai deu como fruto, dos três filhos que teve, 11 netos, 6 meus e 5 do meu irmão; a minha irmã foi professora primária, casou, não teve descendência e viveu em Avanca; foi diretora da Casa Museu Egas Moniz durante alguns anos e o meu cunhado era contabilista no Amoníaco Português, em Estarreja... Nessa altura, o meu pai já estava muito mais sossegado, já não devia nada a ninguém e já vivia uma vida relativamente feliz… O meu pai até dizia com muita graça:” os meus filhos são muito meus amigos… para me ajudarem, escolheram os dois cursos mais compridos da faculdade, medicina e engenharia…”. (Na altura, engenharia também tinha 6 anos)… Desses 11 netos, há já 20 bisnetos... 136


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(…) Sim, a minha mãe foi presa quando morava em Codeçais, onde namorava com o meu pai, Amador dos Santos, que havia de ser seu marido e que era um conspirador monárquico, acusado de favorecer a entrada das tropas de Paiva Couceiro em Bragança. A mãe foi acusada de ensinar doutrina cristã na Escola, mas ela defendeu-se dizendo que não era na escola, mas sim na Igreja, para onde ia com as crianças depois do horário letivo. Isto passou-se entre 1910 e 1914. Estiveram ambos presos em Braga… A minha mãe estava lá acompanhada pela mãe da Tia Leonor… Esteve lá três meses e foi julgada… Amador dos Santos, como era revisor do caminho-de-ferro, levava as mensagens que tinham sido entregues no Porto, do Tua para Bragança e, em Bragança, ia de noite levá-las a Espanha. Ele foi sempre monárquico até à morte de D. Manuel II… ele não aceitava o D. Duarte Nuno… [Sobre o episódio de dinamitar a Ponte do Diabo, Lopes dos Santos sabe, como diz, o que o pai lhe contou] …havia um comboio de tropas que ia sair do Tua para Bragança para ir combater tropas republicanas. E o meu pai deu ordens, já que ele era chefe da célula monárquica de Codeçais, para o meu tio Manuel, que era o irmão mais velho, dinamitar a ponte de caminho-de-ferro de Abreiro, para o comboio não passar com as tropas. Ainda por cima, o meu pai era revisor desse comboio. Ao chegar perto da ponte, o meu pai pôs-se na última carruagem para dar o salto e ficou muito chateado porque a ponte não foi dinamitada porque o meu tio Manuel era mais velho e tinha juízo… ... A ponte de Abreiro foi construída pouco antes da ponte da Arrábida, nos anos 50… “Lembro-me bem; eu já era engenheiro e estava na Hidro Elétrica do Cávado que depois veio a dar a EDP. A Ponte do Diabo era uma ponte rodoviária que foi levada pela cheia de 1909. Está lá agora uma ponte nova feita pela Junta Autónoma de Estradas (Eng. Correia de Araújo) …sim, o Eng. Jorge de Sena fez parte da equipa que fez os pareceres técnicos e a ponte foi construída nos anos 50 do séc. XX. [Voltando ao Romeu] …Passei lá parte da minha infância; conhecia lá tudo e toda a gente. Depois da minha mãe morrer e do meu pai já cá estar no Porto, fui algumas vezes passar um mês, nas férias grandes, com a Tia Leonor. Eu conhecia melhor o Romeu do que Codeçais. O Romeu tinha uma qualidade de vida muito superior – tínhamos os automóveis, tínhamos as estradas, tínhamos tudo… Vivíamos em casa do meu avô que usufruía das coisas da família Menéres... Muito mais tarde, em 1954 ou 55 o Sr. José Menéres já tinha morrido e quem estava à frente da casa era o irmão, Manuel Menéres 137


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que tinha feito umas obras sociais tremendas, o melhoramento das aldeias… [Sobre a vida dos Menéres, nessa altura, no Romeu]: …eles eram uma família muito grande e, nas férias, juntavam-se lá muitos elementos da família. Conheci bastantes e, entre eles, o Manuel Menéres – eu já estava casado e a trabalhar na OPCA quando surgiu a oportunidade de ir trabalhar para Lisboa, para as obras do Metropolitano, quando ele perguntou ao meu patrão se conhecia algum engenheiro que pudesse ir ao Romeu para orientar as obras das duas barragens que ele quis fazer no Quadraçal para ter água para regar as oliveiras… então fui eu para lá... O Manuel Menéres quando me viu ficou delirante. Levei um encarregado, orientei os trabalhos todos, estive lá durante uma semana, mas nunca mais lá fui... A construção das barragens foi no ano de 1955… …A Casa Menéres tinha muitos trabalhadores e vários feitores. Havia o Olival das Vinhas, o Moinho do Gato, a Canameira, Monte Meões e outros sítios… O meu avô era o administrador daquilo tudo... Ele costumava andar no Ford, modelo TM505, guiado pelo Cardoso que era do Porto e, depois, pelo Zé Prado que era transmontano. O Ford modelo A era o dos patrões… Tinham, pelo menos, duas camionetas que vinham trazer cortiça ao Porto… A cortiça vinha pela camioneta mas também vinha pelo comboio. O transporte pelo comboio ficava mais caro porque tinha que fazer transbordo no Tua… Eu viajava sempre de comboio para o Romeu: saía de S. Bento às 10h. e chegava ao Romeu por volta das 6h. da tarde. [Sobre a sua vida profissional] …O primeiro emprego que tive “a sério” foi na barragem da Caniçada, numa empresa luso-italiana, a ETEL, onde estive quatro ou cinco anos. Foi nessa altura que casei… Já andava mortinho por casar, já namorávamos há sete anos e não havia dinheiro… e foi depois que me nasceu o primeiro filho… Entretanto, recebi um convite para ir para o Picote para a OPCA, que tinha adjudicado o desvio provisório e não tinha nenhum engenheiro com experiência de túneis… então, por indicação de uma pessoa minha amiga, convidaram-me e eu que estava a ganhar quatro contos e quinhentos, fui ganhar oito…. Estive dois anos e alguns meses no Picote... Depois fui para Lisboa para o Metropolitano e em 1958 entrei para a EDP. Ainda não tinha acabado a construção da barragem de Paradela… fui para a construção da barragem do Alto Rabagão, onde estive desde o primeiro dia até ao último. Só vim com a família para o Porto, quando o filho mais velho, o Zé Nuno, teve que ir para o liceu. Nessa altura, montámos casa na Foz e ia 138


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para lá durante a semana, mas só me aconteceu isso de Outubro a Junho… Em Junho, fui transferido para o Porto, onde fiquei sempre. A ICA só acabou em 1969. Foi Marcelo Caetano quem fez a fusão das cinco maiores empresas elétricas portuguesas: a Ica, a Douro, o Zêzere, a Termoelétrica, a Tapada de Outeiro e a Companhia Nacional de Eletricidade, que fazia a distribuição da energia. Mais tarde, com o 25 de abril, uniram tudo e, a partir de 76, ficou a EDP, à semelhança da França que era a EDF. Na EDP estive sempre ligado às barragens e túneis; estava no Departamento de Produção Hidráulica… …Já a habitar no Porto, para onde tinha vindo em 65, trabalhei no projeto da barragem da Valeira, onde foi preciso fazer um túnel e construir a ponte da Ferradosa. O caminho-de-ferro já passava de uma margem para a outra, perto da Valeira, mas essa ponte estava numa cota tal que ficou inundada. Foi preciso fazer outra mais alta e aí trabalhou o Correia de Araújo… o Edgar Cardoso fez a ponte de Mosteirô… Havia uma questão muito antiga, já do tempo da Venda-Nova entre a ICA e uma povoação porque as pessoas conseguiam passar de uma margem para a outra através de uma pedras, mas com a barragem da Venda-Nova, isso ficou inundado e a ICA pôs lá um barqueiro permanente que fazia a travessia gratuita, mas a população queria uma ponte. A ICA mandou fazer essa ponte… Na altura, eu estava no Alto Rabagão… Essa ponte foi feita pelo Edgar Cardoso – é a Ponte de Sanfins, que foi fiscalizada por mim. É uma ponte relativamente curta, aí com uns cinquenta metros. Edgar Cardoso ia lá de vezes em quando. Então, ele dizia: “este é o arco mais abatido do mundo!”. E eu replicava: “não, senhor engenheiro, esta é a viga mais torta do mundo!... ele zangava-se comigo…”… O Carrapatelo ainda foi feita pela Douro e Vilarinho das Furnas pela CPE. Também trabalhei no projeto da barragem do Pocinho. Hoje, sou reformado da EDP. [Voltando a Codeçais] …ao longo da vida fui lá muitas vezes. O meu pai morreu lá. Tinha ido para lá num dia de muito calor, contra a minha vontade, e foi ver uma vinha que tinha muito longe; como tinha problemas pulmonares, ficou muito aflito, telefonaram-nos e eu, o meu irmão e o meu sogro viajámos de noite para Codeçais, mas quando chegámos, ele tinha acabado de morrer. Depois passei a ir lá tratar das coisas. Agora já há muitos anos que não vou lá… não vou lá desde 95… já não conheço lá ninguém… só lá tenho um primo… o Luciano,[ex-ferroviário da linha do Tua]… Eu já era engenheiro e esse meu primo tinha acabado de fazer a 4ª classe quando a Câmara de Carrazeda quis fazer um projeto de uma estrada para Codeçais, projeto esse que me foi 139


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encomendado e eu então fui para lá com um colega e o Luciano foi o meu porta-mira… tinha os seus 14 anos… A estrada ia do alto da Sentrilha até Codeçais e foi projetada por mim… Estava quase a acabar esta obra quando fui chamado para a ETEL. …Fui muitas vezes à feira a Mirandela, mas nunca à de Carrazeda… porque enquanto para ir a Carrazeda eram 2h. a pé, para Mirandela era meia hora de comboio e era barato... …Sim tenho muitas fotografias do nosso casamento, realizado na Capelinha das Aparições, em Fátima… Encontrei pela primeira vez a minha mulher, a minha Candidinha, na Faculdade, numa aula de Desenho Rigoroso. Ela chamava-se Maria Cândida Gomes Borregana. Quando o livro de ponto passava por mim, eu via aquele nome, Borregana, e não sei porquê associava-o a uma rapariga que lá estava também e que era muito feia, até lhe chamávamos o grão-de-bico… e, um dia, a Maria Cândida estava à minha frente e eu vi-a a assinar M. Cândida G. Borregana… olhei para ela e disse: ai, afinal esta é bonita… e, olhe, fiquei logo arrumado… passado um ano, pedi-lhe namoro, ela aceitou e depois esperamos sete anos para casar. Ela licenciou-se em Matemáticas em quatro anos. Ela acabou em 48 e eu ainda tive mais dois anos... [Voltando ao Romeu] …o comboio ia pelo Quadraçal. Todos os dias, o pessoal da casa Meneres (não havia bombeiros) ia apagar o fogo que o comboio fazia com as fagulhas que deitava. Eram fogos fáceis de apagar porque durante o inverno era tudo muito bem limpo. Algumas das trincheiras do Quadraçal eram enormes e altíssimas. [rememora o itinerário completo do Comboio do Tua e enumera com rapidez o nome das estações todas da linha do Tua desde Foz Tua até Macedo: Tua, Tralhariz, Castanheiro, Amieiro, S. Lourenço, Brunheda, Codeçais, Abreiro, Ribeirinha, Vilarinho, Cachão, Frechas, Latadas, Mirandela, Carvalhais, Vilar de Ledra, Avantos, Romeu, Cortiços, Grijó, Macedo, Bragança] …As relações do avô Lopes Seixas com os Menéres eram de patrão para empregado... O meu avô gostava muito de oliveiras e o Menéres (o fundador) só queria cortiça; mas o meu avô ia plantando oliveiras. Por causa disso, discutiu com o meu avô, zangaram-se e o Menéres despediu-o. Mas foi buscá-lo às Areias dali a três meses, pediu-lhe que voltasse e que plantasse as oliveiras que quisesse... O meu avô tinha sido capataz na construção da linha do Tua e foi lá que os Menéres o foram buscar – era o que eu ouvia dizer mais tarde... …Os Menéres também tinham vinho, além da cortiça. Aliás, o endereço 140


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telegráfico deles era LIÈGE – VIN. Os principais armazéns e lagares eram em Monte Meões, a dois km abaixo do Romeu, no caminho de Mirandela… [Informante nº 43] Um segundo grande empreendimento agro-industrial que se desenvolveu na região, igualmente servido pela linha do Tua, foi o estabelecimento fabril da emblemática Companhia União Fabril (CUF) que tendo começado com o negócio de azeites veio mais tarde a alargar-se aos hospitais, tendo chegado nos anos 1950 a ser um império nacional. A sua fábrica em Mirandela, em atividade desde os anos 1920 até 1987, tornou-se na região um marco de industrialização e desenvolvimento económico, social e cultural ao longo do séc XX, dando emprego a muita mão-de-obra local que assim pôde evitar a emigração, fenómeno marcante da história recente da população transmontana. É-nos apresentada com os pormenores da sua evolução e dinâmica quotidiana imbrincados na história local, quer numa impressiva e diacrónica descrição de um ex-jornalista da imprensa regional, quer através de um relato técnico detalhado e vivido muito de perto por antigo operário especializado da empresa, que respetivamente se transcrevem: (…) Comecei a ir para a escola quando rebentou a 2ª Guerra. Andei lá de 39 a 43 e a minha vida passava-se entre o caminho-de-ferro e a CUF… A CUF era um espetáculo para uma criança: tinha o guindaste, tinha a descarga… vivia-se a CUF… Havia 2 núcleos fortes de operários em Mirandela: o caminho-de-ferro e a CUF… eu suponho que o D. Manuel de Mello [antigo grande empresário português neto de Alfredo da Silva cuja herança industrial consolidou] seria oriundo de uma família que vendeu tudo e saiu daqui. Era tudo deles desde a estação do caminho-de-ferro até à Serra de Bornes, suponho, não tenho a certeza…. …então apareceu a CUF pela mão de Alfredo da Silva [industrial português que viveu entre 1871-1942 e foi dos mais empreendedores na sua época e fundador de empresas emblemáticas como a Tabaqueira, a CUF, etc.], em 26, e era a infra-estrutura mais importante da região, era única… Era uma unidade de 1º plano e criou uma rede de comissários. Estes homens, nem todos foram honestos (tal como acontece hoje…) e parte das compras que eram feitas através deles, em vez de serem rentáveis para a CUF, algumas não eram porque a azeitona era paga a diferentes preços. Eu sei de um comissário que comprava a azeitona na aldeia dos Avantos e vendia-a como se ela fosse 141


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de Mascarenhas ou de Mirandela e depois o rendimento não era o mesmo… Então, a CUF criou cá um pequeno laboratório e já comprava azeitona com amostra laboratorial; depois a CUF fornecia o subproduto para toda a região. Aqui, o aquecimento fez-se durante anos e anos a partir do subproduto da CUF. O bagaço queimado era vendido para as lareiras e dava um borralho de primeiro plano. A CUF tornou-se, na época, uma infra-estrutura de apoio social a nível de aquecimento. Isto, nos anos 40 e 50, tanto na altura da guerra como no pós-guerra… Aqui, a fome foi muito sentida, sobretudo nas classes mais humildes. Sendo uma zona agrícola muito boa, foi criada a inspeção dos abastecimentos por causa do mercado negro e havia senhas para tudo. O agricultor não podia vender. Tinha que entregar. Daqui, alguns comboios iam para a Alemanha, outros iam para os Aliados e vinham os junkers da Alijó, buscar o minério e o azeite. As padarias vendiam o pão, chamado o charrão, que era já só farelo… Voltando à CUF: conheci o Encarregado dos Escritórios, o Sr. Costa dos Avidagos, o qual tinha o lugar mais bem remunerado de Mirandela, no tempo do diretor Monteiro. Depois sucedeu-lhe o Eng. Meneses. A seguir a este veio o Carvalho, o regente agrícola; depois, o Resende que abriu uma ourivesaria e foi para África. O escritório da CUF trazia para si toda a rede de camionagem. Todos os empregados da camionagem viviam agregados à CUF, a qual tinha a Companhia de Seguros Império e os seguros eram todos feitos nesta Companhia; Isto depois era um monopólio. Em Mirandela havia 3 ou 4 empresas de camionagem. Também havia a de Chaves e havia a carreira para o Porto, mas com pouca frequência porque o comboio absorvia tudo. Os seguros e a camionagem viviam 80 / % à volta da CUF. A CUF comandava a atividade comercial da vila e até da região. Em 58, eu já era diretor da Bola e o Dr. Manuel Pires, médico da CUF, comprou um terreno à Condessa de Ares, por 100 contos, mas, fino, quando veio cá o D. Manuel de Melo, mandou dar 100 contos à Bola: Clube de Futebol de Mirandela. E a sede da Bola… sim do futebol…acabou de se fazer com o dinheiro da CUF e do Dr. Trigo de Negreiros. Não tinha 10 tostões e ficou a 1ª sede do país… Está lá, no Parque do Império. Em 39, foi feito aquele muro de suporte, em cimento. Três camiões basculantes que vieram do Barreiro aterraram toda a parte do Auditório quando fizeram os pavilhões que limparam tudo o que havia na CUF: Acabou de se aterrar tudo em 1950. Estou a falar do sítio onde existiam as bombas da CUF. A Câmara é que ficou 142


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com as instalações. Suponho que o D. Manuel de Melo era da família Cid Melo e Castro que era uma família muito rica. Cid Melo e Castro ainda chegou a ser ministro de Salazar. Não era brasonado e, no tempo do rei, quem não era brasonado, ia de vela… Os terrenos onde foi construída a CUF, seriam da família Cid Melo e Castro. O D. Manuel de Melo passou a pertencer à família ao casar-se com a filha de Melo e Castro. [Informante nº 21] A história de vida que se segue, ilustrativa da situação dos operários em Mirandela, vila e hoje única cidade do vale do Tua, em grande medida devido à influencia histórica da linha do Tua, traça um quadro muito expressivo da atividade fabril intensa e pouco frequente na região, com suas práticas e saberes técnicos especializados e leigos. Evidencia ainda a inserção e impactos positivos no desenvolvimento local e regional desta unidade empresarial da CUF, que descreve em articulação com outros estabelecimentos da mesma empresa espalhados pelo país, demonstrando assim conhecer bem a história da mesma. “…O meu pai trabalhou mais de 40 anos na Cerâmica de Vila Nova, onde era amassador de barro, o qual, na altura, era amassado a cutelo. Esta fábrica foi construída por Armindo Carvalho, Alfredo Neto, Aníbal Rocha e David Pires, em 1930. Trabalhava com barro vermelho que vinha de um lugar perto da cidade de Mirandela, onde está agora construído um bairro. Fabricava sobretudo telha e tijolo. Chegou, no entanto, a fazer imagens de santos. O processo era todo manual. Laborou à volta de 50 anos, pois fechou nos anos 80. A minha mãe era doméstica, tomava conta dos filhos que chegaram a ser 11, mas cinco deles morreram com o garrotilho (o mesmo que difteria), doença da época. Na idade normal, frequentei a escola de Carvalhais de onde saí com 11 anos. O meu sonho era ser serralheiro mas, como” não tinha altura bastante”, ninguém me dava esse trabalho. Assim, trabalhei, durante um ano, numa sapataria. Entretanto, saí e, no mesmo dia, arranjei emprego numa serralharia, onde estive até ir para a tropa, em 1963. Na tropa, tive um acidente quando tive que transportar um colega às costas: parti um joelho. Fui parar ao Hospital da Estrela, onde estive internado durante 88 dias, até que fui considerado incapaz para o serviço militar. Os meus superiores queriam que eu declarasse que parti o joelho devido a uma brincadeira, mas eu recusei-me a fazê-lo e exigi que ficasse declarado que tive o acidente ao ser obrigado a transportar um colega às costas. Nessa altura, já era casado e já tinha 2 filhos. Vim para casa. Passado algum tempo fui chamado para a CUF, isto ainda em 1963. 143


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Na serralharia ganhava 30$00 / dia; na CUF, passei a ganhar 47$00 / dia e recebia de 15 em 15 dias. Este ordenado representou uma grande melhoria na minha vida. Exercia as funções de chefe de turno e de serralheiro, na altura em que a extração foi remodelada. Decorridos dois meses de trabalho, passei a ganhar 64$00 / dia. Ao fim de mais ou menos um ano, passaram-me para os quadros efetivos da empresa. Entretanto, assistia-se ao grande surto de emigração para a França e Alemanha e estive tentado a emigrar para a Alemanha para ganhar mais dinheiro. Mas um diretor comercial aconselhou-me a ficar na empresa, dizendo-me que tinha futuro profissional garantido: o Sr. Mário Sá ia reformar-se e eu passaria para o seu lugar. E assim aconteceu. Fui nomeado encarregado geral da conservação e do fabrico, deram-me casa, água e luz, no bairro da CUF, mesmo à beira da estrada, isto por volta de 1970. Nesta altura, quem chefiava a CUF de Mirandela era o Eng. Meneses Barbosa de Ribalonga, aldeia de Carrazeda de Ansiães. A esposa era de Belver, outra aldeia do mesmo concelho… a D. Fernanda… Ele era o diretor da zona centro que incluía também as fábricas de Alferrarede, Barreiro, Soure, Lavradio e Canas de Senhorim. O projeto da fábrica de Mirandela era o mesmo destas fábricas, onde também estive. Em Alferrarede, até estiva a viver aí uns 6 ou 7 meses. Em todas elas eu trabalhava na manutenção. Mas, a primeira fábrica da CUF nasceu em Abrantes, para extração de óleo, pela mão do Sr. Alfredo da Silva. …Em 1970, a fábrica já não era como a primitiva, montada por Alfredo da Silva. A extração de óleos foi remodelada em 1963. O funcionamento da fábrica, propriamente dito era o mesmo, mas o subproduto, o bagaço, já dava óleo alimentar, enquanto anteriormente só era útil para sabão. O produto usado para a lavagem do bagaço era o sulfureto, o que não era bom para a alimentação. Havia 8 extratores fixos; a capacidade de cada um deles seria de 4 toneladas; eram todos forrados a tijolo. A partir de 1963, o tijolo foi todo retirado, foi posta uma boca de carga própria e a boca de descarga era também uma boca própria. Enquanto antes, o subproduto, depois de lavado, era descarregado à pá, agora passou a ser descarregado a vapor. Passou-se do sulfureto de carbono para a hexana, benzina, gasolina dos aviões. …A separação do óleo fazia-se na destilaria. Havia 2 colunas para a 1ª fase e a segunda fase. Aquilo funcionava por calor e água – vapor. Chegava 144


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ao destilador, a hexana vaporizava facilmente e o óleo seguia para os depósitos da refinaria, no Barreiro. Os extratores tinham uma carga de 6.000KG cada um e em 2 / 3 segundos, descarregava-se o produto do extrator… …Os adubos só se faziam no Barreiro. Cá havia um posto de distribuição que era apoiado por um ramal ferroviário com um guindaste que suportava 2.500KG de carga. Este ramal ligava à linha do Tua pela estação de Mirandela (o sítio era onde está agora a estação de camionagem). O adubo vinha e ia ensacado. Nesse ramal também existia uma nora e, parte da estrutura ainda lá está, junto ao Hospital. A nora era para elevar também o subproduto do bagaço que vinha em vagões. Os adubos começaram quando a fábrica foi montada (1926). Acabou em 94. Quando a fábrica foi montada, logo no edifício do lagar, lia-se: “CUF – fabrica os melhores adubos”. …Aqui havia o lagar onde se fazia azeite, mas vinha bagaço de todo o lado. Os grandes vendedores existiam por todo o Nordeste, Freixo de Numão, Moncorvo e, até, Castelo Branco. Parte desse produto era transportado por camionetas que vinham de propósito do Barreiro. Mais tarde eram” os comissários” que o angariavam. …O azeite era feito aqui no lagar que tinha 26 prensas que trabalhavam em contínuo. O trabalho com as 26 prensas já não é do meu tempo… …Várias razões levavam as pessoas a fazer o azeite na CUF. Em primeiro lugar, a empresa pagava logo; em segundo, a CUF comprava a azeitona aos comissários e, depois, fazia o azeite; o bagaço, comprava-o também aos comissários e fazia o óleo… …O azeite era mandado para o Barreiro em bidões de 200 litros, através do caminho-de-ferro. O guindaste era para carregar os bidões. …Quando eu trabalhava na CUF, em 1963, éramos 40 efetivos e trabalhavam mais 40, sazonais, todo o ano (sazonais, neste contexto, significa que não eram efetivos do quadro, mas governavam-se lá todo o ano. Nesta altura, o gestor era o Eng. Meneses. Como a fábrica estava modernizada, funcionava todo o ano e estava equipada para fazer de tudo. Até chegou a fazer farinha com o excedente da batata… …A extração funcionava 24horas / dia todo o ano com o bagaço da azeitona, com a grainha da uva, que também dava cerca de 12 / % de óleo para a alimentação., com a copra e o coquenote (vinham de África milhares e milhares de toneladas), com o gérmen de milho e com a azeitona. Nós recebíamos 5.000 toneladas de grainha de uva, que dava trabalho para 2 meses: era 145


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preciso secá-la, peneirá-la para lhe tirar a polpa e o cango e, por fim, moê-la para depois ir para a extração para ser lavada. …Durante um ano… 6 meses eram para trabalhar o bagaço da azeitona …; 3 meses para o coquenote e a copra… era meio – meio…; 2 meses eram para a grainha da uva e o resto, um mês, para reparações. …Quando foi construída, a fábrica tinha 11.000m2 de área coberta e tinha uma área total de 38.000m2… …Aquilo que me dava mais dores de cabeça eram as avarias: às vezes punha-me a pé às 3 e 4 da manhã para fazer reparações. Era também o sentido da responsabilidade. Nós, depois, já tínhamos muitos equipamentos. Por exemplo, para trabalhar a copra e o coquenote, aquilo tinha que ser moído com um moinho de martelos e o granulado tinha que sair mais ou menos certo; aquilo depois ia a uns brutos moinhos, com 5 rolos, de 1.000 KG cada rolo, uns em cima dos outros e o produto depois saía em flancos que era para ir à extração para não empapar… Trabalhei em Alferrarede com um lavador, mas era já… tapete: entrava o produto num lado e estava sempre o chuveiro a cair em cima… …A partir de 1970, eu era encarregado da conservação e do fabrico. Reportava ao Eng. Meneses. Ele tinha abaixo dele o Marques Dias que tinha vindo do Barreiro, com o curso da Escola Industrial; era boa pessoa e também vivia no Bairro como eu. …Na altura do 25 de Abril, o Eng. Meneses convocou todo o pessoal da fábrica para comunicar que, a partir dali, eu era o Encarregado, tendo pedido a colaboração de todos…. …Nessa altura, todo o pessoal já sabia ler e escrever… …Nessa altura, o pai do Eng. Normando era Diretor Comercial. Quando faleceu, Marques Dias ocupou o cargo dele. Entretanto, este também saiu para montar a sua própria empresa. Queria a toda a força levar-me com ele para S. Miguel de Acha que distava 25km de Penamacor e 25Km de Castelo Branco. Mas eu não quis ir porque já tinha os quatro filhos a estudar na Escola Secundária, aqui mesmo à beira de casa… …Sobre a Central Eléctrica – quando a fábrica começou, os motores eram poucos e a maior parte eram a vapor. Tinham o nome de burrinhos. Eram motores de pistão. A base principal que fazia movimentar toda a fábrica era constituída pelas caldeiras – duas – que trabalhavam com a pressão de 12Kg / cm2; tinham 8m de comprimento por 1,5m de altura, 100 tubos cheios de água 146


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para aquecer. Duas caldeiras que trabalhavam todo o dia faziam trabalhar toda a fábrica: a extração, os secadores em caso de necessidade, o lagar e a central. Na altura, a central funcionava a vapor. A partir de 63 já era melhor ter uma central de eletricidade. Tinha um transformador e recebia a eletricidade da rede. Nos anos 60, a CUF tinha completa autonomia para tudo. Tinha a melhor oficina de Mirandela. Éramos completamente autónomos. Já tínhamos um torno que torneava um veio com 30 metros, se fosse preciso. A caldeira trabalhava muito tempo a lenha que era transportada pelo caminhode-ferro e era rachada ali: todos os dias havia mais de 10 homens a rachar lenha; o meu pai ainda trabalhou neste serviço. A lenha vinha de Roças e de outros sítios onde houvesse linha de caminho-de-ferro para poder transportar os troncos. Depois passou a trabalhar com o subproduto do bagaço. Dava para alimentar as duas caldeiras e ainda se vendiam milhares de toneladas para as cerâmicas. Também se consumia muita casca de amêndoa… …A CUF era das empresas portuguesas que tinha melhores condições para os trabalhadores, mesmo aqui em Mirandela. Tínhamos o Hospital da CUF que era só para os trabalhadores da empresa e tínhamos também uma boa Caixa de Previdência. Os nossos filhos eram subsidiados nos estudos e recebiam sempre roupa e brinquedos pelo Natal… …A CUF fechou em 1987 e eu ainda estive lá sozinho, a tomar conta daquilo, mais sete anos. Reformei-me aos 57 anos de idade. Quando saí da empresa, fui indemnizado… …O volume de negócios da empresa era quase todo escoado pela CP. Mais tarde, em 63, 70, era tudo transportado por camionetas para Mirandela. Mais tarde ainda, mais ou menos nos anos 70, ainda montamos um senfim de carga, no Tua, para carregar as camionetas. O senfim era um parafuso que empurrava as coisas e funcionava como elevador… …Quem podia habitar o Bairro da CUF: o serralheiro, o eletricista, o encarregado e o pessoal do escritório. As casas eram muito boas e já tinham aquecimento. Situavam-se perto da atual Escola Secundária. Os armazéns do subproduto estavam no espaço em que funciona agora o Instituto Piaget. …Quanto a poluição originada pela fábrica, devo dizer que ela era mínima porque todo o subproduto e a carga eram manuais, isto no tempo em que a fábrica foi construída. A partir de 63, quando começou o vapor, então já se formava uma nuvem. Mas também é preciso lembrar que em 63 não havia uma única casa na rua D. Afonso III nem no Bairro do Fomento; aquilo eram 147


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tudo terrenos de cultivo. Quem deu cabo daquilo tudo foi quem quis ali os bairros. Ainda se fez uma câmara de descarga ao longo de 30 metros com umas janelas de abrir e fechar, o que eliminou bastante a poluição. Tínhamos 2 bombas no rio que estavam 24h. a puxar água para 2 tanques que levavam 300mil litros cada um, mas mesmo assim tinha que haver recuperação de água, através de bombas de recuperação, uns tanques. Também havia recuperação de hexano através de um depósito, uma cisterna que estava a um metro de profundidade. Apesar dos cuidados existentes, deve ter havido fuga porque uma vez aconteceu um acidente junto da casa do ferroviário, cujo filho morreu porque, ao brincar, “chispou” com um pau nalguma pedra, e houve uma descarga que incendiou o local. …Apesar de tudo, a CUF foi de extrema importância para a região. E foi essencial na história de Mirandela: garantiu postos de trabalho, deu mãode-obra durante 70 anos e consumia os produtos da região; uns vendiam e outros compravam… …Quando o Sr. Alfredo da Silva montou o lagar, os magnates de Mirandela não receberam bem a ideia. Um deles foi o Dr. Manuel Maria Pires que era o médico avençado da CUF. Mas havia outro: o Dr. Aires Lima, o Conde de Feijó, o Capitão Elídio Esteves, o Zé Lima, O Hermenegildo, o Dr. Amândio… Alguns deles só trabalhavam a própria azeitona, pois tinham os seus lagares.... …Recentemente, logo a seguir a Frechas há uma unidade de óleo alimentar. Quem a construiu foi Aníbal Pires, em sociedade com alguém. No entanto, o negócio não correu bem. O atual dono da empresa vive em Lisboa… …Pergunta-me a razão pela qual o Sr. Alfredo da Silva veio construir esta empresa em Mirandela. Repare que ele só construía onde houvesse linha de caminho-de-ferro e matéria-prima. Ele próprio, para se deslocar, só utilizava o comboio. Quando lhe perguntavam para onde ia, respondia invariavelmente: “vou para Calcanhares do Mundo”… [E prossegue acrescentando outras curiosidades] …Alfredo da Silva tinha em todas as fábricas um boi que trabalhava como um funcionário: andava permanentemente para trás e para a frente, puxando um cilindro de porpianho que calcava o subproduto para que não fermentasse. Assim, em todas as fábricas havia a casa do boi… …A fábrica tinha óptimas instalações. Estava equipada com todo o material necessário para fazer face a um incêndio... …Na caldeira havia uma buzina que funcionava a vapor: chamavam-lhe a 148


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buzina da CUF e ouvia-se a 20km de distância. Regulava as horas de entrada e de saída do pessoal… …Dentro da fábrica, o subproduto era transportado em vagonetas manuais, numa linha que existia ao longo de toda a fábrica. Mais tarde vieram os dumpers e as máquinas carregadeiras… …Também tínhamos uns secadores verticais para secar o subproduto. Este percorria vários andares até que caía seco. Funcionava a lenha ou a vapor. O transporte do subproduto para a extracção era feito por uma conduta subterrânea de 100metros de comprimento por metro e meio de largura e 2 metros de altura. Na extracção, o carregamento do extractor fazia-se através de um tapete que transportava o bagaço para o exterior, o qual tinha um tegão que funcionava em cima de carris. [sobre as datas de registo e de construção da casa da antiga gerência da CUF, concretiza:] …é de 1926 e a data do registo da 1ª fábrica, de 1929… Foi tudo construído ao mesmo tempo. A explicação é simples: os lagares precisavam de alvará para serem construídos. Esse alvará era expedido pela circunscrição industrial de Vila Real. A fábrica começava a trabalhar e, depois, o alvará havia de vir… [quanto a ter fotografias antigas da fábrica, explica:] …Na CUF de Mirandela havia, ao longo do ano, algumas festas comemorativas, sobretudo no Natal, a festa das crianças. Mas as fotografias que documentavam tudo isso iam para a revista da CUF no Barreiro. Não havia o hábito de as enviar para os jornais de Mirandela… [Informante nº 20]

A linha e comboio do Tua no Cachão (Foto disponibilizada in Blogue “Amigos de Pensar Ansiães”)

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Nos anos 1960 surge no Cachão, outra aldeia e estação da linha do Tua, próxima de Mirandela, o Complexo Agro-Industrial do Cachão (CAICA), o maior empreendimento agro-industrial surgido de raíz em Trás-os-Montes, de iniciativa pública liderada pelo engenheiro Camilo de Mendonça. Da sua história, breve mas de impacto desenvolvimentista na região, principais redes políticas, sociais e pessoais de funcionamento e de destacados protagonistas individuais, nos dá conta, num retrato pormenorizado, o seguinte excerto de entrevista do jornalista octogenário da imprensa regional de Mirandela, cuja narrativa oral, crítica mas empenhada nos acontecimentos narrados, é repleta de informação, factos e dados concretos. “…Conheci a esposa dele [Camilo de Mendonça], a D. Anita que pertencia aos Barrosos de Travanca e que morreu há 4 ou 5 anos. Quando Camilo de Mendonça se formou, foi trabalhar como secretário do tio que era o Joaquim Trigo de Negreiros, tio por afinidade. Depois é que engrenou como deputado. O Camilo andou muito à sombra do tio. Quando apareceu cá em cima, em 1958 / 60, foi por empurrão do tio. Ele era muito trabalhador e trazia na bagagem criar uma grande unidade. Nos anos do Cachão, ele mal dormia em casa. Eu nem sei como é que ele fez os filhos… Dormia quase sempre no carro. Foi um louco de trabalho. Ele aparece aqui já depois de ser diretor da televisão. Vem para cá e cria a Federação dos Grémios da Lavoura. Havia grémios da lavoura em todos os concelhos. Nós tínhamos 24, mais 8 grémios de vinicultores, tutelados pelos meus serviços. Já havia a Corporação da Lavoura, na vigência do ministro da Economia que era da intimidade dele. Nesta mesma altura, o Mota Campos foi o homem que idealizou criar centros rurais, tal como Manuel Menéres com as aldeias melhoradas. Eles pensaram criar núcleos urbanos e neles cabia um complexo. Ele estudou a localização do Cachão. Não foi por acaso que o colocou num cruzamento que era um entreposto comercial antigo, com o caminho-de-ferro, com Vila Flor… Nesses núcleos cabia um complexo. Ele queria criar os serviços administrativos do Complexo em Mirandela, mas não o consumou. Depois, criar nas Latadas, até ao Cachão, fábricas, montagem de tratores, fábricas de atrelados, enfim, um centro oficinal do fabrico destas coisas. O Cachão nasceu com muito dinheiro, muito dele vindo da Junta de Colonização Interna. A ideia de Camilo de Mendonça era a de colocar no Cachão todos os naturais e todos aqueles que quisessem trabalhar lá, fossem bons ou 150


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não. Já tinha mil, duzentos e tal trabalhadores quando era um complexo que podia viver com 200 ou 300… Foi um dos erros do Camilo. É que para ele não havia” apartheids”… Ele queria fazer a sede administrativa do Cachão em Mirandela. A 1º reunião que fez foi na sede do Sport Clube e fê-la com o objetivo de criar um lagar tipo cooperativo para o azeite. Ora, aqui, os importantes e os que tinham capital tinham todos lagar… A reunião foi um fracasso e o Camilo foi escorraçado. Isto passou-se ainda quando a CUF estava em plena laboração. Também houve muitas atividades de emparcelamento promovidas pelo Cachão. Entretanto, o povo começou a dificultar a venda de terrenos. O Cachão não se sustentava porque tudo funcionava com muitos funcionários. Quando aconteceu o 25 de abril, o projeto do Cachão já tinha 14 anos, mas o Estado estava sempre a injetar dinheiro para lá. O Camilo era íntimo do 1º Ministro… Marcelo Caetano veio a Mirandela em 68 / 69. Foi uma grande e verdadeira explosão popular. Em 68 tinha vindo o ministro Veiga Simão. Foi nessa altura que Mirandela teve direito ao liceu. Mirandela, o que tem, vem do Camilo, do Trigo de Negreiros e, agora, um bocadinho do Vara… O Dr. Trigo de Negreiros, depois de deixar o lugar de ministro, foi presidente do Supremo Administrativo e continuou a apoiar o Cachão. Aliás, esta empresa funcionou enquanto houve dinheiro. Pós 25 de Abril, foi para lá um capitão que percebia tanto daquilo como eu percebo de têxteis. Só para lá foram analfabetos!... Também lá esteve o Gomes de Castro (este casou com uma prima do Durão Barroso) que, com o apoio do Pires Veloso ainda fez alguma coisa. Com o 25 de abril, a CUF também fechou. O Cachão teve uma grande diferença em relação à CUF: é que recebia os produtos dos agricultores e pagava tarde, mal e a más horas. No entanto, no tempo do Eng. Camilo, este não ganhava nada com o Cachão. O que lhe valia é que, como administrador da Sogás, recebia 30 contos e tinha direito a carro. Mas, o que ele dissesse era uma escritura. O comerciante por largo não queria o Cachão; agora o agricultor minimamente inteligente só podia querer o Cachão. Havia uma proximidade funcional entre os serviços do estado e os serviços de agricultura, os quais estavam largamente ao serviço dos projetos do Cachão. Esta empresa era um alfobre de Socialistas que, na realidade não o eram, andavam a enganar Cristo… Quando Gomes de Castro veio para o Cachão, eu fiz-lhe a radiografia do comando do pessoal e alertei-o para o facto de ele ter caído num mundo que não conhecia e que eu conhecia demasiado bem. Disse-lhe, entre muitas outras coisas, 151


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o seguinte: na 1ª reunião vão levantar-lhe os problemas, na segunda, vão contrariá-lo e, na terceira, vão insultá-lo. De facto, no fim desta, foi parar ao hospital. Depois, telefonou-me e quis conversar comigo. Claro que deixou o Cachão e, atrás dele muitos outros: o Araújo, o Afonso, o Francisco Manuel, o Amândio, o Zé Lopes de Bragança, o veterinário… etc…. Isto era o Cachão pós 25 de abril. As pessoas começaram a sair e a vir para o MAP [Ministério da Agricultura] que recebeu o pessoal do fomento agrário (não havia dinheiro para lhes pagar…). Mas, ao longo desses 14 ou 15 anos, o Cachão foi útil sobretudo porque se desenvolveu um bocado a parte frutícola: a maçã, na Carrazeda; o morango, na Vilariça e a cereja em Alfândega. Houve um enquadramento regional das várias potencialidades, que não havia até ali. A parte dos laticínios também funcionou: em relação ao fabrico do queijo, houve pessoal que se foi especializar para Alcaíns que era um posto experimental de queijo da serra, que era do MAP. Houve experiências piloto em Carrazeda e noutros locais, como em Macedo, o leite pasteurizado e o empacotamento, etc.… O grande problema do Cachão foi o crescer demais em pessoal. Acerca dos “concursos” para fornecimento no Cachão, que de concursos não tinham nada, mas funcionavam na base de amizades pessoais: o gestor comercial era o Manuel Amílcar Morais que entrou para os serviços comerciais porque a esposa era de Codeçais e ele esteve muitos anos em Vilarinho e conheciam o cunhado do Eng. Camilo. Este Manuel Amílcar Morais tinha sido fator do caminho-de-ferro. Lá, era chefe dos serviços comerciais e era fino demais para arrecadar algum, segundo diziam. Depois trouxe o Morais, que estava no Grémio de Vila Flor, outro sabido. E quem fazia os concursos e comprava eram estes dois indivíduos. Depois quem fez lá fortuna foi o Basílio Pires, analfabeto, meio pastor, veio de Rebordaínhos pela mão do Hermínio Galhardo que era o agrónomo, vice-presidente com o Camilo e o tesoureiro era o Faria. Eram três agrónomos que se davam como três irmãos… Quem mandava era o Camilo; quem assinava as letras eram eles os três. E, depois, às vezes para pagar as letras no Borges e Irmão e no Banco Ultramarino, era um problema… Até que ponto o Eng. Camilo teria consciência disto? Eu passei horas e horas a conversar com o Camilo sobre os problemas do Cachão. Não há qualquer dúvida de que quem mandava era o Camilo e de que ele tinha uma visão espetacular da região, mas não tinha gente para o acompanhar. Também ninguém o contrariava, até porque lhe tinham medo. Quando 152


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começou a ver que era extremamente difícil manter aquilo, começou por querer correr com o Dr. Correia de Barros, o que tinha o jornal Além Douro e a Revista Nordeste. E queria que fosse eu a substitui-lo. A páginas tantas, como eu estava no MAP e não queria sair de lá, ele já me queria dar o emprego sem eu lá ir. Ora eu não podia aceitar tal proposta! Mas ela continuava com aquela ideia de querer dar emprego a todo o licenciado do distrito de Bragança e a todos os que lá quisessem trabalhar, ideia com a qual eu não podia estar de acordo. Mas este sistema só funcionou até ao 25 de abril durante o tempo em que o dinheiro vinha sempre. Quando vinham aquelas bateladas, acertavam contas. Com o 25 de abril, é fácil perceber o que se passou. Após esta data, fugiu para França e depois para o Brasil. Teria mais ou menos 60 anos de idade. No Brasil, mais concretamente no Nordeste, onde o Eng. Manso o foi visitar, ele chegou a uma altura em que não tinha dinheiro nem para tabaco… Foi lá Professor e Assessor de uma secretaria de estado da agricultura. Ganhava pouco. Não queria vir para Portugal porque se sentia envergonhado. Só regressou ao seu país quando já estava doente e em cadeira de rodas. Foi para uma clínica para a Parede (Lisboa), mas morreu num corredor da clínica quando ia fazer uma TAC. Na revista do Nordeste foi publicado o seu elogio fúnebre… a estrutura da família do Eng. Camilo era de Alfândega, Vilarelhos, não de Carrazeda. Ele era sobrinho da D. Maria Olímpia, casada com o Dr. Trigo de Negreiros e ela era de Vilarelhos… pertencia aos Mendonças. [Informante nº 21] Retomando, a propósito, a história do movimento intenso de mercadorias na linha do Tua, a que esteve ligada a laboração dos três empreendimentos agroindustriais de maior capacidade produtiva nesta região transmontana, atrás documentados (CUF, Sociedade Clemente Menéres, Lda. e CAICA), importa referir que a dada altura, entre os anos 1950 e 1970, o intenso transbordo de produtos e mercadorias na estação de Foz Tua, acabou por suscitar dificuldades ao escoamento regular da produção e à captação de matérias-primas, designadamente a essas empresas mas também aos maiores comerciantes e agricultores regionais, aos silos e às cooperativas de Mirandela, Macedo de Cavaleiros, Mogadouro, Vila Flor, Carrazeda de Ansiães, Murça, Alijó e Bragança... A CUF tentou mesmo uma solução com a instalação no Tua de um sem-fim, de um monta-cargas, acabando por vir mais tarde a transportar a sua produção e as matérias-primas em camiões da empresa; também o CAICA passou a utilizar um serviço de camionagem próprio, alternativo ao comboio, e desviou 153


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o transporte de adubos para o Pocinho, construindo um armazém na Vilariça para sua posterior distribuição pela região; a Sociedade Clemente Menéres tentou vigiar o aumento das tarifas, observar as exigências da CP, em relação às quantidades transportadas, à carga de espécies e aos preços praticados, e pediu vagões ajustados ao transporte da cortiça, essencialmente. A linha manteve a bitola reduzida, não sendo dada razão às empresas que queriam o seu alargamento, com ajuste à linha do Douro e necessidades supervenientes… 4.2.4. Populações – Património, cultura popular e identidade. Para uma compreensão mais abrangente e concreta do universo populacional aqui considerado, convem lembrar alguns indicadores socioeconómicos e demográficos específicos em comparação com o todo nacional. A população nos cinco concelhos transmontanos do vale do Tua tem vindo a baixar desde 1991, ano em que contabilizava 66970 habitantes; a partir de então desceu para 62446 em 2001, ficando reduzida a 54814 em 2011.021 Neste ano, a percentagem de pessoas com mais de 65 anos em relação ao total da população estava perto de 27.5% quando os indicadores eram para a região do Nordeste de 17.1% e para Portugal de 19%.022 O setor primário representava ainda em 2011, cerca de 18% do emprego total, no que contrasta expressivamente com a percentagem nacional e da região Nordeste com cerca de 3%, em ambos os casos.023 Também o poder de compra per capita destas populações em quatro dos concelhos abrangidos pelo vale do Tua, excetuando Mirandela, era apenas de metade da média nacional (2009)024 É, porém, fundamental do ponto de vista do conhecimento recorrer de novo aos testemunhos locais, que respondem ao entendimento atual de que “todas as medidas são e permanecem ligadas a redes locais e de que os efeitos globais são adições – sobreadições, em regra, de medidas locais.” (H.J Rheinberger, 2013) Assim, como aqui temos tentado fazer, alicerçando-nos nas vozes plurais das populações anónimas, podemos e devemos observar este universo popu021

Censos 2011: Instituto Nacional de Estatística www.ine.pt.

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Censos 2011: INE www.ine.pt

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INE, www.ine.pt

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lacional numa escala diacrónica e local, o que nos permite compreendê-lo, na sua diversidade, de um ponto de vista mais próximo da sua própria história quotidiana vivida. Esta, como se pode concluir pelos numerosos e representativos relatos de vida que temos vindo a mobilizar para uma abordagem abrangente mas minuciosa e intensa da história do vale do Tua entretecida em expressivos materiais de memória das suas populações, ganha na narrativa seguinte, outros contornos de uma dinâmica e especificidade rural, base económica e social da região e de um colorido tradicional que adensam e enriquecem a nossa compreensão: …Na Sousa Velha, lá no alto, tiraram lá muito minério… era no monte para o lado do S. Lourenço…morreu lá um mineiro de S. Mamede de Riba Tua… e ao pé do Penedo Furado da Maia Esteves, à entrada do Pombal quem vem do Pinhal… eram minas a céu aberto… lá no morro havia nascentes e lavavam lá o minério… vendiam-no ao sr. Mário Lima, aqui do Pombal… aqui era o povo mais remediado que ia para o negócio do minério… se ia pela linha do Tua?...concerteza, acontecia-lhe como às outras coisas, vinho, etc. ia tudo para o S. Lourenço para ir pelo comboio… iam de madrugada… faziam várias carradas… quase todas as casas tinham carros de bois… nessa altura havia aí no Pombal 8 ou 9 juntas de bois… do Mário Felgueiras, do Acácio e outros… ainda não havia estrada, mas um caminho largo… a estrada foi feita por cima… alargaram… a calçada romana era por onde iam para Paradela, Castanheiro… tinha uma ponte pequena que ampliaram… aí pelos anos 1920 / 1930… …a linha do Tua sempre foi muito importante… por ali escoava-se o vinho, o azeite, a cortiça… muito… havia aí um sobreiro que dava 60 arrobas de cortiça / 900 kg… eram precisas 4 pessoas para o abarcarem… andou para ai uma semana a arder… pelo comboio também vinham as mercearias para os “sótos”… não se ia muito a Carrazeda comprá-las… só íamos a pé à vila de 10 em 10 dias, nas feiras para trazer a carne do Antoninho Xixeiro… o comboio usávamos para ir para o Porto, para ir à feira a Mirandela… …no ano de 1945, por causa da carestia não tínhamos nada para comer… era o racionamento… havia umas poucas de azenhas pelo rio acima… e aquela Isabel forneira ia a Vilarinho das Azenhas e trazia pão do Cachão para vender e comer por aí e aqui… custava um centeiozinho já muito dinheiro… não se comprava… davam tantos quilos de farinha por pessoa… com essa “ração” fazíamos bolinhos de ovos fritos, tipo panquecas, para comer com o 155


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leite de cabra e o café… o açúcar também era por ração… uma das senhoras da Ribeirinha na linha do Tua, com muitos filhos, tinha muito açúcar… então trocávamos 1 litro de azeite por 1kg de açúcar… a população daqui tinha muitas ligações com as povoações da Linha de Mirandela para baixo… nessa altura havia tanta gentinha…! havia 3 comboios de passageiros e outros de mercadorias, transporte de adubos e outras coisas… ganhavam uma comissão… havia o mercado negro… iam pelo comboio e traziam 3 ou 6 alqueires de trigo escondido que aquilo era contrabando… …para aqui vinha gente do Pinhal, de Zedes, das Areias, do Amedo, apanhar a azeitona, cavar as vinhas, fazer as vindimas… eram rebanhos de homens… vinha tudo de comboio… só daqui perto é que vinham de burro… as estradas por ai são só de 1947 e depois… …no Pombal, na altura da guerra havia 800 pessoas… agora ainda há para aí umas 200… …para além da estação de S. Lourenço havia também a estação do Amieiro, donde se vinha e ia de barco para o outro lado a povoação de Amieiro… e a estação da Brunheda que servia o pessoal do Pinhal, Sentrilha, Paradela…o Castanheiro tinha apeadeiro… as aldeias todas deste lado do rio tinham acesso ao comboio da linha do Tua… …no verão, vinha muita gente de todo o lado, de comboio para o S. Lourenço, para as termas… contava a minha mãe que chegavam de padiolas e saiam de cá curados… vinham e iam de comboio… chegou a haver lá uma pensão muito grande onde ficava gente muito rica e doutores… o dono era daqui do Pombal… chegou a vir para lá para o S. Lourenço gente de Espanha e de Lisboa e de todo o lado para curar moléstias de pele.. nós íamos lá todos os domingos tomar banho e só depois das vindimas é que íamos para as termas … lembro-me de uma vez vir lá um geólogo e o director das águas termais de Chaves que disse que as águas do S. Lourenço eram melhores que as de Chaves…. …desastres na linha? …lembro-me de ouvir falar de um comboio que caiu ao rio por baixo do S. Lourenço e que morreu o fogueiro e há uns anos, outro desastre na Brunheda… e também de quando o rio chegou à linha, nas cheias grandes de 1911… …homens daqui que trabalharam na linha do Tua…? Havia um maquinista daqui que já morreu… em Mirandela também havia outro, o filho da Ambrosina… havia chefes de estação… o Luís Azevedo que casou lá em cima em 156


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Roças, a estação mais alta… o Manuel Pinto da idade dos meus pais também foi lá chefe da estação… …também havia muita gente daqui que ia ao rio e vendiam… o peixe também vinha pelo comboio e também as peixeiras que o traziam do Castanheiro e do Tua… …uma mulher do Tua arranjou cá uma casinha e do Tua mandava vir o peixe ou ia lá ela buscar e vendia-o aí… remediava-se a gente como podia… …traziam e levavam no comboio, lenha que vinham aqui fazer, vinho e sal, e mais coisas… tudo ia e vinha pelo comboio… [Informante nº 3] Nesta minuciosa narrativa oral podemos intuir como se foi forjando na história recente das populações do vale do Tua um valioso património histórico representado pela linha e comboio do Tua, uma cultura popular ainda intrinsecamente ligada à natureza e uma profunda identidade rural de fortes raízes ambientais.

4.3. Enquadrando e desenredando externalidades. Barragem do Tua Reconstituir memórias e reconstruir materiais de memória implica um manancial de práticas sociais e um largo espetro de procedimentos de investigação. Para que se possa compreender a formatação das condições justificativas é 157


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preciso recorrer a premissas concetuais de ordem metodológica e teórica. Abordaremos nesta secção, de modo abreviado, o campo teórico de base que lhe subjaz, o do seu enquadramento (framing) de partida, ou seja, neste caso, o do cálculo de origem que justificou a construção da barragem do Tua – as suas internalidades. Estas enquadram o que será tomado em conta (no sentido literal do termo) numa interação que nunca é em si própria uma relação de troca. Tal framing engloba o processo de práticas calculadas como regras, regulamentos, acordos, contratos, transações, entre outros. (M.Callon, 1998). Tudo o que transborda este quadro, e que os economistas reconhecem facilmente ser indefinido, consiste no que os mesmos começaram por chamar de externalidade (overflowing), que abrange tudo aquilo que é externo às práticas calculistas, ou seja, o que talvez possa vir a pesar, mais tarde, na interação calculada mas que não poderia ser integrada, ao tempo, naquele cálculo das internalidades, designadamente, as chamadas externalidades negativas, isto é, o que fora eliminado depressa de mais e que vem assombrar do exterior, sob a forma de consequências inesperadas, o cálculo demasiado rápido e simplificado. (M.Callon,1999:17).025 Todos esses elementos indefinidos são tomados como externalidades que não contam no mesmo momento, nem na mesma temporalidade do que é incluído no cálculo. É esta diferença entre o interior e o exterior, entre o que conta e o que não conta, entre o que é comensurável e o que é incomensurável, entre o que é calculável e o que é incalculável, entre o que é presente agora e o que se apresentará talvez mais tarde, que vai permitir a alguns, consideraremse quites de qualquer dívida seja com quem for. (M.Callon,1999:31). Nesta perspetiva de análise sociológica, cujo desenvolvimento transborda do alcance deste livro, foram identificadas no processo de investigação que lhe subjaz um conjunto de práticas sociais que interagem entre si : 1) práticas de troca: reposicionamentos por meio de estratégias individuais de comunicação, prezando valores defendidos pela cultura local; 2) práticas representacionais: espetacularização da realidade por meio de imagens e narrativas estimulantes que representam como é, foi e deve ser a vida no vale do Tua na sua relação histórica com a linha férrea e a barragem do Tua; 3) práticas normativas; atuação no poder público para garantir os interesses de grupo. Cada uma destas práticas, separadamente, influencia a outra. 025  CALLON, Michel et al. – Sociologie des agencements marchands. Textes choisis. Paris:Presses de Mines Transvalor, 2013.

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A sua interpretação pode contribuir para a compreensão do jogo de formatação e enquadramento das internalidades e da complementaridade das externalidades (Callon, 1998) geradas pelo novo empreendimento hidroelétrico no rio Tua. Algumas externalidades negativas foram assinaladas por vários atores sociais entrevistados, designadamente: 1) o problema da perda de mobilidades gerada pela desativação da linha do Tua e dos comboios, cujo processo de internalização foi objeto de ponderação mas que acabou por ser contratualizado e diferido para terceiros; 2); a perda de património histórico, ecológico, paisagístico e ambiental, parcialmente internalizado através da contratualizaçao de projeto arquitetónico de intervenção qualificada; 3) os efeitos locais de desapossamento e omissão de consulta direta da imposição do poder central político e económico e a falta de “enforcement” do poder público quanto à criação e desenvolvimento integrado e sustentado do Parque Natural do Vale do Tua, proposta pelo poder autárquico local; 4) a ainda a incomensurável questão das linhas de alta e muito alta tensão (LATTES) de travessia projetada para o espaço aéreo do Alto Douro Vinhateiro, Património da Humanidade. É neste âmbito sociológico de análise mais fina das variáveis económicas, sociais e políticas enunciadas, que valerá a pena fazerem-se futuramente outros estudos026 deste “case study” que na economia e natureza deste livro aqui apenas se poderia esboçar.

linha do Tua – Aproximação do comboio à estação de Foz Tua Foto de Filipe Esperança 026  Ver, por exemplo, o seguinte trabalho sobre a barragem do Tua que se aproxima desta linha de análise: Laura Centemeri, Jose Maria Castro Caldas - A escolha apesar da (in)comensurabilidade: Controvérsias e tomada de decisão pública acerca do desenvolvimento territorial sustentável. 2013. p.101-125 <hal-01054935 > HAL Id: hal-1054935 https://hal.archives-ouvertes.fr/hal-1054935.

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5. A METODOLOGIA: “HISTÓRIAS DE VIDA” e MÉTODO BIOGRÁFICO Importa, por fim, apresentar a metodologia usada no desenvolvimento da investigação que serve de base à escrita deste livro sobre o vale e linha do Tua em que se procura transmitir a memória cultural das suas populações, a qual se pode definir como uma “actividade que ocorre no presente, em que o passado é continuamente modificado e reescrito, moldando assim o futuro”(Bal, 1999; vii). A metodologia interdisciplinar adotada articula procedimentos da micro -história e da história oral com uma linha de interpretação que se apoia na corrente sociológica e antropológica do interacionismo simbólico (Escola de Chicago) que concebe a comunicação como a produção de sentido num universo simbólico determinado e permite analisar o sentido da ação social na perspetiva dos participantes do universo considerado. Desenvolve-se a partir dessa investigação etnográfica e sociológica o método de análise biográfico que se baseia nas histórias de vida027 que seguimos na exploração e interpretação dos depoimentos orais recolhidos em situação de entrevista com os informantes privilegiados. Cruza-se com o repertório de histórias de vida e trajetórias sócio-profissionais mobilizadas como meio eficaz de aproximação à realidade social, o trabalho de produção das fontes orais e a atitude do historiador frente a elas, 027  Este método foi aplicado pela primeira vez no departamento de sociología da Universidade de Chicago, que se tornou o centro da disciplina nos Estados Unidos durante muitos anos, fundando uma linha de pensamento sociológica, designada “Escola de Chicago” que teve grande apogeu nos anos 1920 e que deu origem à teoria conhecida como “interaccionismo simbólico”. Thomas e Znaniecki, membros desse departamento, publicaram em 1918 a obra – O campesinato polaco nos Estados Unidos e na Europa, cuja novidade era essa metodologia usada durante anos em que durou a sua investigação.

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afirmando a importância da história oral como instrumento eficaz para o estudo de processos históricos imersos no Tempo Presente.

5.1. Histórias de vida e história oral A história oral, modalidade descritiva e narrativa que permite perpetuar acontecimentos, conhecimentos, saberes e práticas humanas, reproduz uma esfera importante das culturas coetâneas dos informantes em cuja dimensão simbólica e interpretativa se reflete a visão e a versão dos fenómenos produzidos, pelos próprios atores sociais. Por isso, tanto a história oral como as histórias de vida - “espaços de contacto e influência interdisciplinar (…) que permitem através da oralidade interpretações qualitativas de processos e fenómenos histórico-sociais”- são técnicas transdisciplinares à história, antropologia, sociologia e psicologia social, podendo ser usadas por todas estas áreas das ciências sociais. A informação baseia-se em materiais autobiográficos, documentos pessoais e familiares (fotografias antigas, correspondência, artefactos e outros), realçando-se a atitude e definição pelo ator e relevando-se a enfâse nos aspetos interpretativos.028 Estas metodologias têm vindo a suscitar o interesse dos investigadores que se afastam de perspetivas unidirecionais mais ortodoxas e supõem antes uma comunicação entre distintas disciplinas académicas. Converteram-se num complemento muito frutuoso de investigação científica, já que a incorporação do ponto de vista do sujeito que lhe subjaz foi em grande medida determinada por características das sociedades atuais como a globalização mundial, o consumo e as mudanças sócioeconómicas vertiginosas que suscitam uma revalorização do subjetivo. Convem, porém, precisar melhor o significado do conceito “história de vida”. Por “história” entende-se aqui o reflexo de vidas simples de populações anónimas, sem fama nem glória apregoadas. No que se refere ao termo “vida”, devem entender-se os relatos contados na primeira pessoa, por qualquer protagonista expressos com relativa fluidez e memória sólida e credível; 028  ARJONA GARRIDO, CHECA OLMOS, Juan Carlos- “Las historias de vida como método de acercamiento à realidade social.” Gazeta de Antropologia. Nº14, 1998. Disponível em: http://hdl.handle.net/10481/7548 [consulta em 2 Maio 2015]

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diferenciam-se pois das biografias de gente famosa e das memórias de pessoas consideradas socialmente notáveis. Importa distinguir entre história de vida e relato de vida. Este pode ser considerado um sub-género da história da vida, menos amplo e completo, já que incorpora apenas aspetos de maior interesse para o investigador. Para que uma narrativa seja completa e possa ser considerada como “história de vida”, requer ser acompanhada de material complementar: fotografias, documentos e outras manifestações materiais que credibilizem e validem o fio condutor argumentativo exposto. Poder-se-á então definir “história de vida” como “um relato autobiográfico, obtido pelo investigador através de entrevistas sucessivas cujo objetivo é mostrar o testemunho subjetivo de uma pessoa em que se recolham quer os acontecimentos quer as valorações que o indivíduo faz da sua própria existência (Pujadas 1992:47). As histórias de vida, que são um método científico de aproximação à realidade social, podem definir-se ainda como uma técnica etnográfica de investigação. O trabalho inicia-se por uma fase de preparação teórica para definir os objetivos principais da investigação e desenhar o processo de estudo a desenvolver. Seguidamente, deverão selecionar-se os melhores informantes privilegiados, servindo-se, se possível, de narrativas autobiográficas, documentos e contactos pessoais a que possa ter acesso. A realização das entrevistas de acordo com os critérios teóricos e objetivos previstos, mantendo um ambiente de comunicação entre entrevistador e entrevistado, cordial, aberto, de confiança e cumplicidade interativa, estimulando o desejo de falar do entrevistado e falando o entrevistador apenas o suficiente, implica uma postura de distanciamento crítico para evitar que a informação e os dados a obter possam degenerar em relatos fantasiosos, fictícios ou pouco pertinentes. A gravação videográfica que capta também a expressão corporal ou comunicação não verbal é a forma de registo recomendada, porque mais completa, mas não dispensa anotações complementares do investigador em diário de campo e a posterior transcrição escrita das narrativas orais que atenderá à literariedade do que foi recolhido, mantendo expressões, léxico e linguagem émica usados pelos informantes. A boa investigação, com o uso desta técnica, procura obter narrativas que não sejam exclusivas da vida do informante mas que introduzam também o 162


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contexto espácio-temporal descritivo de lugares, outros protagonistas e personagens, factos históricos, etc. tal como os informantes os perceberam em seus momentos próprios. Visa alcançar a fiabilidade e veracidade do que os informantes contam pelo que analisa os seus discursos e a coerência interna dos relatos, a sua forma de estruturação e a congruência dos resultados finais. Contrasta ocorrências paralelas e lacunas de informações, dados, acontecimentos significativos, memórias e histórias paralelas ou relatos de acompanhantes do informante. Esta análise contrastiva pode suscitar novas pistas e dados sobre o narrado, facilita e melhora o tratamento do material recolhido (narrativo, documental e histórico) com técnicas de triangulação da informação que permitem fazer a validação dos relatos. A maior dificuldade e exigência desta técnica verifica-se na fase de análise e interpretação dos conteúdos em que é preciso realizar dois tipos de análise: uma “vertical” de cada narrativa e outra “horizontal” do conjunto das entrevistas e relatos. Cruzando ambas as análises e recorrendo à “saturação da informação por repetição” obtém-se então um núcleo central de toda a história. A análise de conteúdo permite trabalhar com a informação intrínseca e extrínseca para aceder não só ao que é explícito mas ainda ao que se encontra implícito ou subentendido no que os informantes não disseram expressamente mas têm presente, o que se revela muito útil na captação de contextos mais gerais quer do informante quer do seu mundo. Através da descrição e da narrativa, os sujeitos constroem-se, no âmbito de estratégias discursivas que acionam um jogo de interações, não com intenção exclusiva e unívoca, mas utilizando mensagens em geral, comunicação simbólica, etc. em que se podem entrever ideologias, valores e outros elementos, para além do que o informante pretende expressar conscientemente. Esta análise não está isenta de uma socio-semiótica do discurso cuja finalidade consiste em determinar as manifestações dos sujeitos num discurso social biográfico que permite um outro nível de visibilidade do indivíduo e sua envolvência. As histórias de vida apresentam uma série de vantagens e inconvenientes que são intrínsecas à própria técnica. Ou seja, embora este tipo de entrevista permita uma abordagem às relações primárias, derivado não só do que aconteceu com a vida de uma pessoa, mas também do modo como influenciaram os processos de evolução e mudança social, não se pode esquecer que esta técnica também regista algumas limitações como a impaciência do investigador (que tem como objetivo recolher todas as informações necessárias em algumas reu163


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niões), a dificuldade de acesso a um informante com memórias longas, a sua vontade de colaborar, etc. Todavia a maior controvérsia que as histórias de vida suscitam entre os cientistas sociais não decorre da implementação desta técnica mas sim do seu uso enquanto método e respetivo grau de eficácia e representatividade, ou seja, poder-se concluir se a amostra e informação obtida possibilitam generalizações, o que se revela difícil pois as histórias de vida não permitem juízos universais ou conclusões generalizáveis. Deve, no entanto, ter-se presente que esta técnica etnográfica, constitutiva da investigação etnológica e sociológica, permite a obtenção de dados sobre fenómenos sociais que dependem de variáveis espácio-temporais a investigar e que são difíceis de conseguir através de outras técnicas (Szczepanski 1978). Assim, podendo não ser de natureza universal, as suas contribuições são de toda a validade designadamente para a construção e análise de narrativas biográficas, fontes orais de história e história do vivido.

5.2. Reconstituição de memórias e vivências do Vale do Tua Na linha do entendimento concetual e metodológico exposto que privilegia o método biográfico e de histórias de vida, devolve-se a palavra aos que viveram e vivem a história do vale, da linha e do comboio do Tua tentando, pela relação dialógica entre entrevistador e entrevistado, fazer emergir “uma visão do mundo experimentada pelo que a exprime”. E é também através dessas diversas narrativas orais entretecidas numa tessitura de vivências e lembranças que assistimos ao desenrolar de uma aparente banalidade do quotidiano, surgindo-nos, de imprevisto, palavras emocionantes e memórias relevantes, não desprovidas de uma função catártica. Na perspetiva da história, além desta revisão sobre um passado local e relativamente recente, a presença de um “historiador” entrevistando testemunhas de um período / acontecimento implica demarcar um momento particular do campo historiográfico. Nos anos 1970, a investigação histórica recuperou a importância das experiências individuais e das situações singulares, privilegiando ao mesmo tempo a dimensão do vivido. Estas mudanças de perspetiva, se geraram discussões sobre o uso de novas fontes e de novas metodologias 164


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históricas, contribuíram também para um renovado impulso no campo da história, designadamente da história cultural. Desde o início do século XX que certas correntes da sociologia e da antropologia, mormente o interacionismo simbólico, passaram a recorrer no seu trabalho científico ao uso de relatos orais, uso que se generalizou no campo mais vasto das ciências sociais no mundo académico. Todavia, no caso da História, foi tão só com o aparecimento da “Nova História” que as fontes orais se começaram a afirmar apesar das resistências de alguns historiadores. Se nos deixássemos guiar apenas pelas narrativas individuais e coletivas atravessadas pela singularidade e complexidade de memórias e subjetividades, ainda que sujeitas a um imprescindível tratamento técnico e analítico, ficaríamos com uma visão particular e de algum modo idealizada ou reinventada da história centenária da linha e comboio do Tua em seus ambientes naturais (vale e rio) e socioculturais envolventes em diversas temporalidades, das mais antigas às mais recentes. As visões e conceções dos indivíduos sobre os assuntos e acontecimentos abordados são parciais e limitadas àquilo que seus olhos viram, seus ouvidos escutaram, suas perceções ditaram e suas memórias traduziram e / ou reinventaram. São os seus autores, atores sociais, agentes eficientes ou informantes privilegiados, homens e mulheres entrevistados de diferentes idades, origens sociais e trajetórias que, “tomados a sério”, em última análise definem quem e quais os acontecimentos que devem delas participar, conseguindo, de per si ou no conjunto, pôr-nos a “pensar e sentir do lado de lá”, em espaços-tempos que progressivamente se nos abrem em múltiplas vivências, memórias e experiências de vida. O que foi sendo vivenciado (real ou imaginariamente) por cada um deles, quando contrastado entre si ou na versão acumulada e unitária do conjunto, permite identificar, conhecer ou reconhecer eventos e personagens reais, imaginários e representações sociais das populações transmontanas sobre fenómenos decisivos do seu próprio passado e história contemporânea: a intercomunicabilidade e mobilidades possibilitadas pela ferrovia do Tua. Nas narrativas individuais e coletivas, reportórios significativos de interesse comum, sobressaem descrições minuciosas de vidas, paisagens e microcosmos essencialmente rurais, práticas, saberes leigos e técnicos do mundo ferroviário, sensibilidades, crenças, valores e comportamentos, sempre em estreita relação com o objeto e a natureza que são os aspetos primordiais, pelo 165


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que assim se torna possível ultrapassar relativismos e ir além das explicações comuns e dimensões micro-analíticas. A exigência de reconstituição histórica, a partir sobretudo de fontes orais, dados qualitativos, assuntos e matérias de caraterísticas subjetivas e sensíveis, obriga, por fim, a refletir sobre algumas questões relacionadas com história e memória, objetividade e subjetividade, que se colocam neste processo de investigação concreta. Primeiro, é preciso ter presente que a história, representação do passado, é uma reconstrução sempre problemática e incompleta do que deixou de existir (Pierre Nora). Já a memória é um fenómeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente. Segundo, existe “uma diferença essencial entre a realidade física e a realidade social, pois ao passo que o efeito de um fenómeno físico depende exclusivamente da natureza objetiva desse fenómeno e pode ser calculado com base no conteúdo empírico deste, o efeito de um fenómeno social depende, além disso, do ponto de vista subjetivo assumido pelo indivíduo ou pelo grupo face a esse fenómeno e só pode ser calculado se conhecermos não só o conteúdo objetivo da causa presumida, mas também o significado que possui num determinado momento para certos seres conscientes.”029 Esta observação torna evidente que uma causa social, como a que aqui se tenta estudar, não é simples, mas composta e compósita e, nessa medida, tem que incluir elementos objetivos e subjetivos que foi possível reconstituir através dos diferentes usos do método biográfico que ensaiamos. As histórias de vida do vale e da linha do Tua revelam-se ricas de afetos profundos de pessoas de várias gerações e diversas condições sociais que vivenciam uma estreita, próxima e intensa relação com o espaço local e regional envolvente, o qual sempre exerceu sobre elas enorme influência e uma fortíssima pertença identitária. A linha férrea e o comboio do Tua foram a coluna dorsal desta zona transmontana, tendo exercido na sua longa vida influência inegável em inúmeras vidas do vale do Tua, como salientam todos os informantes, acentuando-lhes, a alguns deles, a sua natureza atual de património cultural coletivo e museu vivo, valor social e histórico que se encontra inscrito na memória social das populações. Todas estas dimensões atravessam as múltiplas histórias de vida recolhidas, outros tantos materiais de memória a 029  THOMAS, W.I., ZNANIECKI, Florian (1958) - The Polish Peasant in Europe and America I. New York, Dover Publications, p.38 (autor clássico das histórias de vida)

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preservar, valorizar e divulgar nas suas multifacetadas vertentes que emergem através de uma oralidade muito expressiva e viva de grande densidade etnosociológica e histórica, património imaterial da região do Tua que também assim se procurou recuperar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente livro, produzido a partir de uma recolha e compilação de expressivas narrativas orais de um conjunto significativo e representativo de pessoas naturais e ou residentes no vale do Tua, mobiliza e dá visibilidade a um acervo considerável de vivências, memórias e materiais de memória. Nele se alicerça a história vivida pelas populações locais em múltiplas espaciotemporalidades a que é transversal a histórica linha férrea do Tua que, paralela ao curso sinuoso do rio Tua, um dos últimos rios selvagens de Portugal, atravessou durante mais de cem anos uma paisagem de beleza rara e cuja construção constitui um marco da história da engenharia nacional do séc. XIX. Tentando não ficar aquém dos desafios dessa grandeza e raridade evocadas e descritas com acuidade e minúcia, ao longo do livro, este procura na sua escrita, reinventar, de forma singular e polifónica, um hino de louvor à micro -história da população anónima do vale do Tua. Procura dar voz a numerosas e fiéis testemunhas, muitas delas desiludidas com o encerramento da linha do Tua e consequente desativação do comboio do Tua, elemento fundamental de sua consciência identitária, para assim recuperar e manter viva a memória desta sub-região transmontana e narrar a sua história em que se continua a alicerçar numa crença / querência030 num desenvolvimento integrado e sustentado desta região, ainda hoje uma das mais pobres e isoladas do país. A história vivida das populações do vale do Tua que aqui se narra com múltiplas e plurais histórias de vida expressa a sua arte de contar e fazer contar através de um roteiro de documentário histórico e sentimental que, em registo videográfico, acompanha e ilustra esta obra de particular densidade cultural e émica, com imagens, sons e vozes de pessoas, ambientes e patrimónios locais. 030  Significando lugar onde se nasceu, criou e habituou a viver e ao qual sempre se quer voltar, como frequentemente acontece em muitas das aldeias do vale do Tua, às quais os seus emigrantes sempre retornam, depois de viajarem pelo mundo e terem sido mesmo bem sucedidos.

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A sua compreensão e escrita que influirá naturalmente nas leituras deste livro foi feita em vários planos e interseções a que importa, por fim, fazer menção expressa: os quatro planos considerados - “historias de vida”, “narrativas de vivências e memórias”, “ambiente natural e tecnológico” e “ desenvolvimento regional e populações locais” - foram descritos e analisados através de três vetores de focagem principais - método biográfico, fontes orais e história local / regional.

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APÊNDICE DOCUMENTAL

Corpus de fontes orais e guião-roteiro do Documentário Este apêndice permite percorrer e evocar a história do tua (vale, rio, linha e comboio) narrada em discurso direto, através das memórias de populações anónimas. O corpus contemplado compõe-se de uma diversidade polifacetada de estórias, narrativas, testemunhos e memórias recolhidas e transcritas simultaneamente em suporte escrito e audiovisual, constituindo um arquivo de fontes orais, património documental que se contruiu e assim se vê preservado. Todas estas entrevistas são inéditas e apresentam o (s) nome(s) do (s) entrevistado(s) e do(s) entrevistador(es). As entrevistas não excedem as 5.000 palavras e são indexadas com as palavras-chave correspondentes, posteriormente organizadas em índice temático e tratadas em diagrama “cloud” ou diagrama nuvem incluído no corpo do texto do presente livro. São antecedidas de uma apresentação com ficha técnica e dados biográficos do informante de, no máximo entre 500 e 1000 palavras. Os seus conteúdos essenciais foram descritos, organizados e mobilizados na produção deste livro. Na sua maioria são complementadas pelos respetivos registos audio-videográficos, também eles objeto de tratamento para edição, constituindo um impressivo arquivo audiovisual relevante que deu origem a uma base de dados multimédia disponível por consulta na web. Apresentam-se ordenadas por informante e cronologia da sua realização, da data mais antiga para a mais recente. Um subconjunto de sete entrevistas previamente realizadas, sem registo audiovisual, numa etapa inicial e preparatória da realização deste trabalho de campo, constitui informação prévia de novas entrevistas com os mesmos informantes, os primeiros sete entrevistados, e encontram-se, por isso, acopladas a cada um destes, na qualidade de primeira entrevista. As respetivas realização e divulgação têm a autorização do(s) entrevistado(s) que concordam com os objetivos e a edição deste trabalho destinado a constituir um acervo documental e audiovisual de memórias sobre a história e vivência da linha férrea e comboio do Tua, em funcionamento entre 1887 (inauguração do troço Tua –Mirandela), 1992 (encerramento entre Carvalhais-Bragança) e 2012 (Tua-Mirandela). Produzido no âmbito do projeto internacional e multidisciplinar FOZTUA, patrocinado pelo MIT, Universidade do Minho e EDP, este acervo de entrevistas destinado a ser incorporado num núcleo de memória do vale e da linha do Tua, a disponibilizar em sede de Centro Interpretativo do Vale do Tua, integra o movimento de acesso livre à informação. Estão disponíveis 50 entrevistas realizadas com 47 entrevistados durante qua172


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tro anos, entre 2011 e 2014, que abrangem os seguintes temas constituintes dos tópicos principais dos guiões de entrevista: • O quotidiano nas povoações ribeirinhas do Tua • Os anos da fome (anos 1940) • Escassez e racionamento de bens alimentares e produtos energéticos na II Guerra Mundial • Exploração e comercialização de volfrâmio durante a I e II Guerras Mundiais • A vida e o trabalho nos caminhos-de-ferro • Ferroviários: carreiras, trajetórias profissionais e condições de trabalho • Transporte de passageiros e mercadorias • Acidentes ferroviários • A construção da linha do Tua • Os galegos • A importância local da linha e comboio do Tua • Perceções do encerramento da linha e da construção da barragem do Tua • Histórias de vida • Emigração • Mobilidades • Trânsitos • Termas de S. Lourenço • Empreendimentos agro-industriais no Nordeste Transmontano, junto à linha do Tua: o da SCM no Romeu, o da CUF em Mirandela e o do Cachão. Para servir de fio condutor e guião a uma proposta de roteiro para produção do documentário vídeo, elaborou-se, a partir de conteúdos informativos e literários, o seguinte esquema: GUIÃO- ROTEIRO 1º Ato – Origens / fim da Monarquia (vistas panorâmicas e paisagísticas do vale e do rio, espécies animais e vegetais, atividades piscatórias / venatórias e envolventes) 2º Ato – Evolução / Estado Novo - Super narrativa na 1ª pessoa (caleidoscópio de depoimentos e patrimónios) 3º Ato – Interfaces ruralidade / modernidade / 25 de Abril e pós… (construção da linha férrea e construção da barragem - dois momentos históricos decisivos em dois planos) 173


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1º ATO - ORIGENS Cena 1 – Dinamite. Braços abertos às montanhas Cena 2 – A máquina era o fascínio daquele comboio. Baforadas de fumo e rolos de vapor “Fragas Más”: Pontes, túneis, estações e apeadeiros Cena 3 – “Ribeirinha” : Sobreviver em meio agreste Cena 4 – O comboio arrastador, estouvado saltimbanco

2º ATO - EVOLUÇÃO - SUPER NARRATIVA Cena 5 - Nostalgia da terra-mãe livre e rebelde Cena 6 – Gentes de 1ª, 2ª e 3ª classe Cena 7 – Turbilhão de memórias dormentes Cena 8 – Paisagens fugitivas Cena 9 – As merendas… sociabilidades Cena 10 - Saudações e despedidas

3º ATO – INTERFACES (entre o que fui e o que sou… encontros de ferroviários) Cena 11 – Contemplação do rio Tua (imagens e textos literários), cenário cultural e humano que se sente fluir percorrendo-o de canoa… e não só através dos mapas, quadros, caudais, hidrogramas e cotas. Cena 12 – O vale do Tua, integrado na sua paisagem ecológica, com o traçado da via férrea histórica e singular que acompanha o rio, com as suas culturas em terraços, enquanto património de memória e identidade de Portugal e património natural e cultural da Europa. Um conjunto significativo do acervo de entrevistas selecionado para este efeito, com base em critérios de qualidade, diversidade e representatividade foi objeto da respetiva edição de imagem e som pelo staff de tecnologia audiovisual de apoio ao projeto FOZTUA que produziu o documentário vídeo que complementa este livro. Para tal produção, contribui como referência de base, o roteiro e guião explicitados na rubrica quatro desta obra, da qual este video é parte integrante enquanto material acompanhante.

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