Um Rio de Gente

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Coordenação e produção executiva Alexandre Ramos

Fotografias Tuca Siqueira

Administração Lúcia Siqueira

Produção fotográfica GARIMPO Audiovisual e Comunicação

Pesquisa Inácio França

Produção de objetos (páginas 52 e 62) Tatiana Ferraz

Assistência de pesquisa Jaqueline Soares

Tratamento de imagens Robson Lemos

Transcrição Joyce Sales, Ana Nery Melo, Gabriella A. Melo, Marianna Melo

Assessoria de imprensa Daniel Vilarouca

Redação e edição Inácio França

Projeto gráfico e diagramação Via Design Criação Estratégica Cláudia Fagundes, Daniela Silveira e Nara Castro Estágiarios: Eduardo Mafra e Tiago Morais

Prefácio Alexandre Ramos Revisão de texto Édson de Oliveira Rodrigues, Cida Pedrosa

Impressão CEPE - Companhia Editora de Pernambuco

F814r França, Inácio, 1968 Um rio de gente: histórias, causos e lendas do Capibaribe / Inácio França; fotos Tuca Siqueira. - Recife : Andararte, 2010.

128p. : il.

1. RIO CAPIBARIBE - PERNAMBUCO - HISTÓRIA. 2. RIO CAPIBARIBE - PERNAMBUCO - ENCHENTES. 3. RIO CAPIBARIBE - PERNAMBUCO - POLUIÇÃO. 4. RIO CAPIBARIBE (VALE) - CONDIÇÕES ECONÔMICAS. 5. RIO CAPIBARIBE (VALE) - POPULAÇÃO - VIDA E COSTUMES SOCIAIS. 6. RIO CAPIBARIBE - PERNAMBUCO - LENDAS. 7. RIO CAPIBARIBE (VALE) - NARRATIVAS PESSOAIS. 8. BACIAS HIDROGRÁFICAS - PERNAMBUCO. 9. RIO CAPIBARIBE - PERNAMBUCO - PESQUISA. I. Tuca, Siqueira, 1979-. I. Título CDU 911.2(813.4) CDD 551.482 PeR - BPE 10-100


Um rio que não é apenas um rio Rio que é água O Capibaribe é assim: por vezes é água, por vezes é seco. Ao longo dos seus 270 quilômetros de percurso, nascendo em Poção e desaguando no oceano em Recife, relaciona-se com os ambientes, tanto os urbanos quanto os rurais que, de tão deteriorados, deformam o princípio básico de um rio: chegar ao mar garantindo a vida em todas as suas formas. Um rio que é água, utilizada em todas as suas dimensões, que abastece, irriga, transporta, é até moradia, gera economia e, por muitas vezes, é engenharia, política, educação e cultura. Rio que é resíduo, sólido ou líquido, mas também é resquício de lugares e histórias de gente importante ou comum que passam com suas águas. Assim, o rio não é somente água, são ambientes, relações, culturas e sua utilização gera distintos significados. O rio é o lugar onde ele está, por vezes adormecido, parado no seu tempo, dinâmico e conflituoso. É um patrimônio comum, com seu momento e sua dinâmica, organizando a vida e a história, os hábitos, as ações e as relações, individuais, familiares e comunitárias. Ribeirinhos com esperanças e expectativas, vivências e imaginários que se relacionam com o rio.

Rio que é gente Ao percorrer seu leito em 2007, na Expedição Capibaribe, percebemos uma vasta riqueza de experiências, histórias acumuladas, informações sucessivas que careciam de registro. Gente anônima e vida que brota do rio. Destacar esse conhecimento ribeirinho, a partir do olhar histórico e atual de sua gente, foi a intenção desta pesquisa.


Assim, a equipe revisitou o Capibaribe identificando pessoas de boa conversa e com vivências marcantes, que ressaltassem a memória individual e social das localidades e a sua relação com o rio. Pessoas que se relacionam e têm a consciência da importância do Capibaribe, testemunha de vidas que por ele passaram. Assim como leva nossos dejetos ao cruzar essas paragens, ele também guarda o resíduo de narrativas passadas que, acumuladas, se transformam em histórias formais de lugares e fatos sociais significativos. São diversos atores, que vivenciaram diferentes momentos históricos e interpretam a realidade a partir da construção social de ambientes específicos. Um valioso patrimônio imaterial de um povo. Decidimos contar essas histórias de vida, intensas e ricas, como muitas outras existentes no percurso desse rio. Tais relatos talvez se perderiam no tempo e no lugar se não fossem explorados e dissecados por essa pesquisa, realizada entre março e novembro de 2009, e contados nesse livro. Em cada um desses relatos percebemos singulares e notáveis processos de produção, conservação e difusão da memória, que exigiram procedimentos particulares de abordagem e relacionamento com as pessoas entrevistadas. Assim, a aproximação através dos mecanismos de história oral foi um aprendizado constante, mostrando-se um relevante instrumento de conhecimento dos modos de vida de comunidades. Ao associar memória e identidade, possibilitamos a realização da pesquisa partindo do tempo presente, de personagens vivos. Estes, além de testemunhar os fatos, relatar trajetórias e repassar histórias antigas, permitiram observar um processo de seleção do conhecimento e da cultura popular. Desta forma, muitas questões subjetivas são percebidas nos relatos, enriquecendo ainda mais os resultados da pesquisa que tinha como objetivo a valorização da cultura popular dos lugares, resgatando e registrando estas histórias enquanto patrimônio ribeirinho e construção de identidades da memória local. Este livro tem a intenção de preservar e respeitar a voz, o jeito de contar, as recordações, as contradições de cada pessoa entrevistada. Manter a estrutura e o ritmo das narrativas colhidas é fundamental para se preservar, além do conteúdo relatado – real ou imaginário -, o vocabulário e a forma como as várias gerações dos pernambucanos que vivem na Bacia do Capibaribe se relacionam com a língua e a linguagem. Assim, a singularidade das histórias reais, os causos, as lendas, as anedotas, superstições da região serão resgatadas, tanto no que diz respeito às informações quanto na forma. Apesar da atual relação de descaso com o rio, vista mais intensamente quan-


do este corta as cidades, essas histórias de vida demonstram que a afetividade com ele ainda existe. É possível perceber o que vem mudando na cultura e na vida das pessoas. São fatos individuais ou familiares que resgatam os sentidos mais diretos dos princípios de felicidade, liberdade e autonomia. Também expressam relações coletivas da identidade comunitária ligadas por uma veia-água-capibaribe.

Rio que é história Um rio é o que cada um viveu, imaginou e que sempre é mais que um rio. É um mar de culturas que flui como suas águas e é com essa intenção que buscamos resgatar estas formas de viver ou de cuidar da vida. Um rio como testemunho de vidas passando por ele. Um rio é história. A registrada pelos meios formais mostra que o Capibaribe foi um elemento importante para o desenvolvimento do Estado. Desde as culturas indígenas que ali se fixaram, aos portugueses e holandeses que o utilizaram como meio de ocupação. História marcada pela utilização da água fazendo surgir cidades em seu percurso: Santa Cruz do Capibaribe, Toritama, Salgadinho, Limoeiro, Paudalho, São Lourenço da Mata e Recife. Também é uma história não registrada formalmente. História de vida contada por pessoas comuns e, muitas vezes, perdidas e esquecidas à medida que avança a tecnologia da informação, a universalização e a padronização da cultura. Sentimos isso no caminho, o desinteresse dos mais novos com a valorização das culturas locais ou uma necessidade de transcender as narrativas do lugar. Mas, ao mesmo tempo, uma necessidade de resgate de quem viveu essa história, como no caso das mulheres de Capela Nova, distrito de Vertentes, que tentam resgatar a mazurca do lugar, apesar do desinteresse local. Somos muitos Inácios, Margaridas, Josés, Alaídes e Marias que trazemos uma cultura hídrica. Toda civilização se relaciona com a água de forma simbólica, religiosa, histórica. Herança essa que se encontra ameaçada, pois demos as costas ao rio que hoje é depositário de lembranças e dejetos. Todos temos um vínculo com um rio, nossos inconscientes estão repletos de passagens por eles. Dessas histórias da vida real que passam junto com o rio, ficaram muitas lições: da sabedoria, paciência, riqueza dos sentimentos, lembrança de sua história, mas, principalmente, pelo sentimento de pertencimento com este rio tão Capibaribe. Alexandre Ramos Coordenador do projeto




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É fácil encontrar Inácio José Bezerra na zona rural de Poção. Basta ir ao Sítio Lagoa do Angu e perguntar por ele a qualquer agricultor a caminho da roça ou a alguma dona-de-casa absorta no trabalho de varrer o alpendre. Além de o cidadão ser aprendiz de sanfoneiro e o contador de histórias mais falante do lugar, a comunidade está acostumada com forasteiros, principalmente pesquisadores, políticos da capital, equipes de TV, ambientalistas, repórteres ou estudantes universitários. Vez ou outra, até helicópteros fazem vôos rasantes por lá.

Ali nas terras altas de Poção, onde a divisa dos estados de Pernambuco e Paraíba está a quase 1.200 metros acima do nível do mar, o mato é sempre verde, principalmente às margens do rio, mesmo que ele não passe de um riacho com dois palmos de largura. Nem no verão o calor é insuportável. Mas não foram o clima agradável e a abundância de água que prenderam Inácio ao lugar onde nasceu e foi criado. Sempre risonho, festeiro, tomador de aguardente, Inácio saiu poucas vezes do Sítio Lagoa do Angu em seus 67 anos de vida. Para cuidar da mãe, dona Joana Maria da Conceição, algo que o pai, Pedro Bezerra, nunca fez, permaneceu na mesma casa em que ele e outras seis crianças vieram ao mundo. “Minha irmã foi-se embora pra São Paulo e eu não ia deixar a minha mãe. Porque todos eles... minha irmã arranjou um marido, mais dali arranjou outro. Foi morar ali em cima, arranjou outro. E a minha mãe cansada, doente. Aí eu digo: ‘olhe eu não vou deixar a minha mãe’. Aí disseram: ‘arruma uma noiva, te casa’. Eu digo ‘não quero’. Por quê? ‘Porque eu tenho a minha mãe. Eu não vou casar, arranjar uma mulher pra botar em minha companhia pra eu ver ela maltratar a minha mãe. Porque a minha mãe tá em primeiro lugar. Ou eu arranjo uma pessoa pra ser certa com eu e minha mãe ou então pra ser a favor de mim. Pra ser contra a minha mãe, não quero’.

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O motivo de tanta movimentação é um olho-d’água fria e limpa, que brota no meio da propriedade de seu José Genu e dona Maria do Carmo, junto a uma mata, ou melhor, a um resto de mata fechada e ameaçada pelos pastos que avançam por todos os lados. O filete de água que mina na “cacimba” corre lento, passa por trás da casa do casal, cruza a estrada de terra e o povo vai chamando de Catibiribe, Catibaribe ou Capiberibe, tanto faz. Os mais jovens chamam de Capibaribe, do jeito que aprenderam na escola.


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“E assim não quis. Aí esperei até a minha mãe morrer. Minha mãe morreu no dia de Santana de 1996¹. Aí eu passei uns três anos sozinho. Quando foi depois, arranjei Zefinha. Aí tô mais ela, pronto. Só deixo ela, agora, quando eu morrer. Eu me ajuntei com ela com 58 anos. E ela tava com 60”. “Nunca fui no Recife, nunca. Um dia eu conheço o mar. Rapaz, eu vou te falar. Eu tô com 67 anos. Vou dizer um negócio pra você: você acredita que eu nunca fui em Jataúba? Toda quarta eu tô em Pesqueira e eu já passei em Belo Jardim, já passei em Caruaru. Olhe, eu já fui até mais longe do que Caruaru, do que Recife, do que Santa Cruz. Eu já fui até São Paulo, pra casa da família, da família da minha mulher. Eu já passei em Caruaru, pra São Paulo quando ia e quando vinha, mas quer dizer que pra parar em Caruaru, e eu andar pra conhecer Caruaru não, nunca fui”. Até hoje, Inácio vive na casa onde nasceu, a 300 metros da nascente do Capibaribe onde sua prima mora com o marido, Genu. Sua boa memória garante que pouca coisa mudou no terreno em torno da “minação d’água”. No lugar do capim para as poucas cabeças de gado, havia mais roçados.

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“Aquilo ali era cheio de cana, de capim, de tomate. A terra era do finado Zé Genu, o pai de Chico Genu, o pai de Severino Genu, o pai de Sebastião Genu e o pai de Zé Genu, o pai de Antonieta, o pai de Joana, esse pessoal. No tempo do pai deles, aquilo ali era terra de mandioca, era pra plantar mandioca, plantar milho, feijão, cana, tomate, laranja, mangueira, tinha muita coisa. Agora o velho morreu, ficou a família, aí um ficou pra um canto, outro ficou pra outro”. “Aquela terra da mata é deles, aquela mata lá era fechada, tinha muita madeira, pra cá era a parte deles trabalhar, fazer a planta de fruta. A nascente toda a vida foi ali, daquele tamanho. A nascente do rio é lá. A mata nunca foi mais, nem foi menos. É aquilo ali. A mata só é aquela reboladinha”. Inácio tocou sua vida no mesmo lugar onde sua família havia fincado raízes, mas nunca seguiu o exemplo paterno. Além de não dar muita atenção para a mulher e os filhos, Pedro Bezerra não era de suar a camisa. O filho garante que o pai nunca trabalhou, pelo menos não que ele lembre. Era Joana da Conceição quem pegava no pesado, quem ensinou os filhos a preparar a terra, plantar, cuidar da roça. Não fosse ela, os filhos tinham morrido de fome. “Meu pai nunca fez nada na vida, rapaz. Meu pai só dava pra fazer menino, que nem fez a gente. Deixou nós tudo pequeno, a minha mãe trabalhando pra dar de comer a nós. Sem trabalhar, sem coragem de trabalhar, porque aqui tinha terra pra trabalhar. Ele não trabalhava porque não queria”. “Quando eu era criança, quando a gente era criança, a gente andava pelo mundo com uma mochilinha preta no mundo, pedindo. Aqui era bom porque tinha casa de farinha em todo canto e a gente pedia bolo de massa. Chegava numa casa de farinha e pedia. A gente entregava pra mãe. Corria pra outra, arrumava outro pouquinho trazia pra casa. E quando não tinha, a ¹ 26 de Julho.


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gente se largava no mato. A gente se ajuntava quatro, cinco moleques, seis... Ia pro curral, pro cercado ajuntar cana quente pra chupar. Agora, aquilo não era porque queria não. Era fome, era fome, não era brincadeira”. “Sofri mais do que jumento embaicado, passei fome, passei frio, dormi descoberto que nem um tanguari. Eu vim tomar um jeitinho quando comecei a me entender de gente, mas um jeitinho assim pra trabalhar. Mas trabalhar em lugar que sofri mais do que uma madalena-véiadoida. E depois Deus me ajudou, mostrou pra que lado eu ir. Começou eu trabalhando que nem... que nem jumento no cambito. Trabalhando a morrer, no cabo da enxada, trabalhando no gado, na chuva, no sol quente, xincado. Trabalhava, o patrão chegava e dizia: ‘Eu não vi serviço feito’. Mas eu não era trator pra me matar. Eu trabalhei muito. Em casa de farinha, puxei mandioca no meio da roda. Quando eu comecei, quando eu tinha idade de nove anos, eu já tava no meio da roda puxando mandioca. Era num tambor. Eu botava a gamela de apanhar massa no coxo pra botar na prensa, botava a gamela, eu subia, pegava o meio da roda, o meio da roda vinha em tempo de arrancar meu queixo”.

“O pessoal diz: ‘Compra um bezerro’. Eu digo: ‘Não quero’. Eu vou criar uma frota de bezerro pra depois morrer aí de fome. Um pedacinho de terra assim, eu vou encher ele de pasto? E quando pegar o verão? Eu não tenho onde botar. Quer dizer que a precisão é no verão. No inverno tudo é bom. Aí, quando bate o verão, o cabra vai fazer o quê?” Os fundos do “taquinho” de terra de Inácio dão para o baixio por onde passa o fio de água que é o Capibaribe. Como a nascente é muito próxima, raramente o volume de água que desce na época das chuvas é capaz de provocar grandes estragos ou botar medo nos agricultores. Só uma vez Inácio viu o riacho que corre manso por trás da sua casa ganhar força, transformarse em algo destruidor. Foi em 1960. “Acho que eu tinha pra base de uns 17, 18 anos no máximo. Aí tinha uma velha ali, num lugar chamado Colônia. Ela gostava de todo ano fazer a novena de São José. Aí, quando bateu o dia de São José, no dia 19 de março, vamos pra novena na casa de Dona Dora. Mas a maior parte não era atrás de novena não, era atrás de ir pra farrar, beber cana, comer bolo, tomar café. E rezar, eu sei que muitos não rezavam, não. Eu rezava, que toda vida eu fui devoto, mesmo”. “Aí nós assistimos lá à novena, né. Quando terminou a novena, nós saímos de lá numa base de umas cinco e meia, quase de noite. Lá vem meio mundo de gente... moça, rapaz, homem, tudo, vinha aquela frota da novena. Quando nós chegamos lá pro lado do Sítio Velho, nós reparamos que tinha uma nuvem... era uma nuvem bem aqui assim, não era uma nuvem de alarmar não, uma nuvem normal. Eu olhei, eu digo: ‘Olha vai chover’. Um velho disse assim:

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Aposentado, já não trabalha mais em roçados alheios. E só planta para seu consumo próprio e da mulher, Zefinha, que complementa a renda com o lucro dos biscoitos, salgadinhos, refrigerante e cachaça, essa o carro-chefe da venda que funciona na sala da frente da casa. “Eu só trabalho no meu taquinho de terra. Eu não trabalho mais pra ninguém, não. Eu planto milho, planto feijão, planto bananeira, planto laranja, planto pé de mamão. É só pra o gasto, eu não vendo nada, não”.


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‘Ôxe, aquilo não é nuvem de chuva nada, rapaz. Tu sois é doido, tu tá sonhando é? Tu bebesse cana rapaz!’ Eu disse: ‘Tu vai ver se não vai chover’. “Aí nós tocamos o pé, tocamos o pé, tocamos o pé. Aí, andamos, andamos ligeiro. Aí já começou a nuvem engrossando e foi subindo, e foi espalhando pra acolá, aí começou a cair umas pingueira. Aí disseram: ‘Vamos correr, vamos correr, que vai chover’. Nós corremos, quando nós corremos que chegamos na estrada, aí começou aquelas pingueira meio grossa. O meu irmão falou: ‘Ô Inácio, tu vai pra casa de Zequinha ou vai pra casa?’ Eu disse: ‘Sabe de uma coisa? Eu vou me embora pra casa’. “Quando chegamos em casa, parou aquela pingueira. A casinha da gente era uma tanguarina de taipa coberta de palha de coco. ‘Mãe, mãe, mãe’. Ela disse: ‘O que foi?’ Ela abriu a porta. Eu disse: ‘Mãe parece que vai chover’. Ela disse: ‘É nada, menino, isso vai passando’. Eu disse: ‘Passando o quê, oxe!’ Aí ela saiu pra fora e disse ‘menino hum, vai chover nesse instante’. Aí, ela disse: ‘Eu vô botar a janta de vocês’. Aí ela botou o xerém pra nós. Quando foi um pouco, começou o trovão. Trovão geral, começava e saía arrodeando. O trovão e o relâmpago, com um pouco abriu as porta do céu e haja chuva!”

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Agora isso era chuva do pingo banguelo, chuva segura, cada pingo desse tamanho assim. Aí eu digo: ‘Virgem Nossa Senhora do Céu!’ Eu digo: ‘E vai derrubar a casa’. Mas não tinha vento. Daqui um pouco, mãe escutou e disse ‘olha essa chuva é de gelo. Essa chuva é de pedra’. Aí começou com pedra. E tome, tome, tome chuva. Choveu assim uma base de uns 30 minutos, daqui um pouco parou. Aí mãe disse ‘a chuva parou, vamos dormir’. Ôxe, com um pouco, outra do mesmo rojão. Do mesmo jeito. Sustentou o rojão até quatro e meia da manhã. Agora, chuva de rolo mesmo! O dia tava clareando”. “A casa coberta de palha de coco, não molhou nada. A chuva foi muita chuva, mas não foi chuva de molhar a casa, não. Quando foi daqui um pouco só ouvia a fala: ‘Ô Joana!’ Mãe disse: ‘O que é Tio João?’. ‘Vem olhar que coisa bonita’. O pobre do véio com umas alpercatas de couro, com uma tira de sola desse tamanho de couro cru, com uma correia. ‘Vamos olhar Joana, que coisa bonita’. Aí nós descemos. Quando nós chegamos, descemos por ali. Do jeito que tava o rio era um pano d’água só. Aquela cacimba ali, ninguém nem sabia onde era a cacimba mais”. “Aí mãe disse ‘ai meu Deus, terra molhada tem muita’!”


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É árdua a vida de quem vive no Sítio do Saco, um arruado de poucas casas às margens das águas frias e rasas do Capibaribe, bem na divisa dos municípios de Poção e Jataúba. O nome do povoado é esse porque é assim que chamam um lugar quase isolado, que tem um único caminho, tanto para chegar quanto para sair. E o caminho é uma estrada ruim, com buracos, ladeiras, erosão e lajedos que atrapalham até as robustas Toyotas que levam e trazem os poucos moradores, os agentes de Saúde ou as voluntárias da Pastoral da Criança.

É Josefa quem guarda mais lembranças da enchente. Só ela se encontrava em casa com os filhos mais velhos. O marido estava fora, visitando o pai que continuava a viver na vila de Pirauá. Doente, andando com dificuldade, o agricultor também precisa do apoio da mulher para encontrar no fundo da memória as lembranças do temporal que virou enchente e espalhou o medo. “Aquela chuva começou de cinco horas da tarde e foi terminar não sei que horas do dia, porque... ficou chovendo e a gente não podia sair. Ave maria, tinha trovão demais. Às cinco horas começou a chover, ele não tava nem aqui, tava em Cachoeira, em Pirauá, na casa do povo dele. A gente pensou de morrer, todo mundo. Nessa época eu tinha, três ou quatro filhos. Minha mãe morava ali em cima, e eu com medo de tá aqui sozinha, nós passamos um tempão só cambitando menino. Cambitando menino pra casa da minha mãe: ‘Vamos morrer tudo junto!’ E no meio da chuva a gente ia tudo correndo pra lá” “A gente tinha aquela fé, que a gente quando tem mãe a gente tem, aquela confiança que tem naquela mãe, naquele pai, né? Meu pai era um homem medroso, quando ele avistava uma chuva, ele acendia a luz nos pés do santo e ficava pra dentro e pra fora, as portas se viam com ele, abrindo as portas e olhando. Aí, a gente tinha um pouquinho de medo. E, de manhã cedo, a gente olhava praquelas serra, e só via aquelas valetas. E barro, e barro.

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Nesse lugar difícil de chegar e sair, as recordações do pé d’água de 1960, são raras, um privilégio do casal de moradores mais antigos, Raimundo Cordeiro Lima e sua mulher, a única que ele amou em 85 anos de vida, Josefa Leandro de Lima. Como a maioria das casas vizinhas é ocupada por parentes, principalmente filhos, netos e sobrinhos, só eles lembram o que se passou no Saco, naquela noite em que as águas desceram das serras ao redor arrastando tudo e inundando o inofensivo Capibaribe, que ali, a poucos quilômetros da nascente, não passa de um riacho.


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E onde passava ficava a rodagem, né? Foi um perigo. Sempre dá chuva pesada, mas aquela parece que foi mesmo. O pessoal não ouve falar do dilúvio? Ela começou com muito trovão, aí depois ficou só relâmpago. Aí, o pessoal diz quando tá caindo outro dilúvio, né? Só a água. Teve gente que criava uma vaquinha, uma cabrinha, esse menino morava do lado, parece que foram duas vacas dele. Deve ter ficado na beira do rio e não puderam sair e o rio levou”. A história contada por Josefa ajuda Raimundo a se situar, a recordar seus próprios passos há quase cinco décadas. Ele confirma o que escutou e conta como ficou ilhado no outro distrito. “Eu tava em Cachoeira, na casa do meu pai. Eu queria vir embora, ele não deixou eu vir, pra não morrer no meio do caminho. Cheguei em casa no outro dia, quase de tarde, Ave maria! Eu vinha de pé, porque não dava pra andar com cavalo, não. O estrago no caminho era grande demais, homem”. A voz vacilante de Raimundo se transforma, se torna mais clara, sua dicção mais precisa, quando explica a razão de ter deixado o distrito de Pirauá, onde morava com os pais, para viver no Saco.

Cheia de orgulho e surpresa, Josefa interrompe a narrativa do marido por um instante: “Olha, ele tá muito lembrado!”. “Era forró, hoje num é mais forró não, né? O tocador da gente era aquele cabra que morreu, mataram ali. Era Zé da Pitu, que ele era de Alagoinha. Ave maria, não tinha pareia, não... tocou pra nós, não foi?” Do amor entre Raimundo e Josefa, brotou uma história de dedicação à família, além de 18 filhos, 103 netos, 100 bisnetos e dois tataranetos. Muitos deles morando lá mesmo, no Sítio do Saco. Outra parte do numeroso clã espalhou-se pelo mundo, com filhos, netos e bisnetos em São Paulo e Pesqueira. No meio de tanta gente, Raimundo não esconde o carinho, quase predileção por um neto, José Adriano, de 25 anos, cujo pai foi assassinado em Belo Jardim e teve de ser criado pelos avós. “Aqui é menino que não acaba, mas esse aí é meu neto, é meu filho e agora é meu pai, porque eu criei ele e agora ele tá me criando. Eu disse a ele: ‘Essa casa é sua. Nunca fiz isso com filho nenhum, mas você só tem direito quando eu morrer, quando eu for vivo você vai

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“Foi por causa dela. Eu passei uma vez, nós ficamos proseando, aí eu botei um amor a ela danado. Nós casamos no ano de 50. Eu ainda me lembro, foi até num dia de terça-feira, na Igreja de Lagoa Seca. É, vai fazer 60 anos. Eu me lembro da dança, que foi boa danada. Que o povo gostava de dançar pé de serra, e as meninas gostavam de dançar. Eu era dançador, mesmo. Eu ia dançar em Poção, tinha cabra de fora que vinha só prestar atenção a eu dançar mais ela”.


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ficar aqui comigo’. Ele é trabalhador demais, não tem filho meu que é mais trabalhador, mas todos eles são”. Josefa completa a história, contando como foi que, mesmo depois de idosos, assumiram a responsabilidade de criar um neto, mas nem com a ajuda de José Adriano, ela consegue listar os nomes de todos os filhos: “Esse menino, mataram o pai dele e nós ficamos cuidando dele. A mãe dele casou-se com outro homem, e chegou a carregar o menino, mas depois, lá em Poção, não deu certo. Hoje em dia ele se orienta, quando ele foi chegando nos 10 anos, eu fui ensinando a ele, dizendo como é que é. Eu disse 100 netos, né? Ele já me lembrou que tinha mais três... Me lembro do nome dos 18 filhos. Olhe, a primeira é Nazaré, depois Luzinete, depois Margarida, Ramiro, Fernando, José Romildo, Givonete, Graciete, Marlyete, Gilvanete de novo, porque eu tive uma, mas depois morreu, mas é o mesmo nome; Severino dos Ramos, Maria Expedita, Maricelma, Laudineide, Glaudineide, Quem lembra mais de algum? Cristina, eu já disse? Teve outro Zé Romildo... De dezoito, morreram quatro”.

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O rio desce as serras e chega a áreas mais povoadas, encontrando um vilarejo atrás do outro. A abundância gerada pelas suas águas ou, a depender da época do ano, pela umidade que vem do subsolo, alimentou um intenso comércio entre os municípios da região. Durante décadas, mangaios e almocreves iam e vinham pelas estradas de terra carregando frutas, verduras e legumes para vender nas feiras livres das cidades e vilarejos.

Na juventude, ao lado do pai, cuidou de sua roça, plantando feijão, macaxeira e milho para a própria família. Já casado e com filhos, tangeu pelas serras os burros carregados com a produção alheia. Vendeu, comprou e trabalhou para o governo. Garantiu uma aposentadoria tranquila. E, durante todo esse tempo, cultivou um amor correspondido por dona Maria José de Melo, um amor que não teve nada de casto, uma paixão vivida, sem culpas, há mais de 60 anos. A caminho para o Sítio das Marianas, a alguns quilômetros da divisa de Jataúba e Brejo da Madre de Deus, um agricultor chamado Nena dá uma informação importante para avaliar o grau de lucidez do morador mais velho daquela região: “Se for negociar com ele, tome cuidado que o homem é vivo demais”. Cincinato ri do alerta dado pelo vizinho, não confirma nem desmente sua esperteza, mas, ao contar sua história e da sua comunidade, revela uma memória intacta, um tesouro de datas, detalhes, frases completas proferidas há muito tempo. “Quando eu me entendi de gente, um dia chegou um amigo do meu pai, mais a mulher e o menino. O menino com uma cartilhinha de ABC. Aí eu olhei, olhei. Quando ele foi embora, eu disse: “Pai, mande comprar uma cartilhinha daquela pra mim”. “Pra que você quer, meu filho?” Digo: “Pra eu aprende a assinar meu nome”. “Como é que você aprende? Não tem escola, não tem nada aqui”. Eu digo: “Eu peço lição a quem sabe”.

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As tropas de burros dos almocreves não existem mais. No século XXI, ainda há pequenos roçados de subsistência, porém o que mais se planta no Alto Capibaribe é cenoura, cuja produção é comprada por atravessadores e vendida na Ceasa do Recife. Desse mesmo lugar, vem quase tudo que é comercializado nas feiras livres semanais. José Cincinato da Silva, prestes a completar 99 anos, em fevereiro de 2010, foi testemunha e protagonista de tudo isso.


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“Era novo, novo. Eu tinha 10 anos, 11 anos, por aí assim. Era um menino, um menino. Aí ele mandou adquirir a cartilhinha e eu ficava, quando eu encontrava uma pessoa que sabia ler, eu pedia uma lição e assim aprendi a assinar o nome. Só aprendi a assinar o nome, mesmo”. Foi o bastante para, depois de começar tirando leite das vacas, ainda adolescente, “tomar conta do serviço” da fazenda onde morava sua família. Era uma espécie de administrador ou gerente do proprietário das terras, de quem acabou comprando a casa e o pequeno lote em que vivia. Isso foi em 1953. A partir daí, a lavoura passou apenas a complementar a renda, quase um passatempo. “Eu nessa data, nesse tempo, eu já tinha um empreguinho na prefeitura de Brejo, empreguinho pra cobrar imposto. Um parente meu trabalhava na prefeitura, foi lá e arrumou esse empreguinho pra mim, pra cobrar imposto. Saída de mercadoria de um município pra outro”. Com duas atividades simultâneas, Cincinato conta como era possível conciliar o serviço de almocreve e o de fiscal da Receita Municipal. Curiosamente, a cansativa rotina com a tropa de burros ajudava a fiscalização. “Continuei e fiquei trabalhando, trabalhava, eu comprava, gostava de comprar mamona pra carregar, pra vender. Arrumei uns burrinhos, eu encontrava um cabra com uma tropinha de boi pra Pesqueira, pra Poção, aí eu cobro o imposto”.

“Depois as coisas foram melhorando, Deus foi me ajudando e eu fui comprando um bichinho, uma coisinha e tal. E trabalhando na prefeitura, trabalhei 18 anos na prefeitura. Depois, com 18 anos, eu fui... chegou um fiscal, um inspetor fiscal procurando uma pessoa pra credenciar também pra trabalhar no Estado. Aí, me apontaram. Aí, mandaram me chamar, eu fui. Cheguei, falou perguntando se eu aceitava. Eu disse: “É, mas minha leitura é pouca”. Aí disse: “Não, você não tá cobrando imposto do município? Você vai trabalhar com o município e no Estado. Depois você pode até ser nomeado no Estado”. E, de fato, com poucos dias fui nomeado no Estado”. A fama de homem trabalhador, com tino para negócios e o fato de ser casado e pai de cinco filhos não impediram José Cincinato de varar noites e mais noites nas festas, ou “sambas”, em Passagem do Tó e Jataúba. Tocando sanfona e dançando forró, ele arrasou corações. O seu, porém, batia exclusivamente por Maria José. Os dois se apaixonaram quando ela tinha 15 anos, uma menina no Sítio Mundo Novo. Ele, um homem casado, cheio de filhos e quase 35 anos nas costas. “Eu gostava dela de muito tempo. Eu, já casado, gostava dela. Vou contar outra história... vivi

19 “Eu gostava dela desde 1945”

“Fiquei tangendo, tangi burro dez anos. Dez anos! Serviço pesado, é o serviço mais pesado que existe no mundo é tanger burro. Carregava quatro burros, era cinco horas. Carregava, tangia. Onze horas tava baixando feijão, milho pras feiras... Caruaru, aquela mata por lá, eu conheço aquilo ali tudinho, Cupira... Vinha de novo, comprava de novo... aí comprava cereais e vendia ali na cidade de Jataúba, nesse tempo, não era cidade não, era vila e tinha uma feira, a de Jataúba, a feira era no chão. Trabalhei dez anos nessa vida, uns chamam de almocreve”.


Um rio de gente

59 anos com a primeira esposa, o nome era Olívia. Ela morreu em 89. Eu com nove anos casei com ela...” Nesse momento, Maria José, completamente cega aos 78 anos, interrompe e corrige o marido: “Nove meses...” “Com nove meses eu me casei com ela...” Mais uma vez, Maria José: “Casei com ele no dia 25 de julho de 1990”. “Graças a Deus, até hoje ninguém brigou, não. É de muito tempo já, eu gostava dela desde 1945. E a minha esposa era amiga dela...” Maria José toma a palavra, definitivamente, para, com sinceridade, sem falsos pudores, contar sua história de amor eterno. “Eu sou falsa, né? Mas, na época, já gostava dele também. Já fui casada primeira vez, com outro marido, me casei a primeira vez. Tive só duas filhas do meu primeiro marido. Dois filhos: uma filha e um filho... e tem uma filha dele... era essa que tava aqui” (ela se refere a Maria da Paz, sua filha mais velha e dona da casa onde aconteceu a entrevista).

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“Esse velho... não dei muita atenção a ele, esse que eu casei com ele a primeira vez. E então, aí inventou de morar junto, eu disse: ‘Eu não vou querer morar junto de ninguém, porque eu estou grávida de três meses’. Ele disse: ‘Tem nada, não, quando nascer, nós damos à sua mãe e ajuda ela criar’. Eu digo: ‘Mas tinha graça!’ Minha mãe já uma senhora, já velha, já criava um neto. E eu, nova em folha, pra morar com esse camarada, dar minha filha aos outros? Ah, minha mãe, mas não posso! Aí passei oito anos junto com o véio... aí ela nasceu, eu tava casada de três meses”. “Aí, ele não falou mais, ele viu que eu queria muito bem a ela e não falou, de jeito nenhum. Vem falar, pra tu ver se não vai ficar só! Aí, ele não falou, e ela novinha... ele pegou amizade a ela, a menina não podia chorar, dá um chorinho...” “Cicinato não, ele era casado tinha a família dele e tal. Um dia, ele veio, conversou besteira que só. ‘Eu não posso viver com você mais porque já me casei e você é casado’, mas nós nunca se esquecemos um do outro. Olhe, eu vou dizer, porque a gente tem que falar a verdade: ‘Nunca me esqueci de gostar dele’. A gente passava dois a três meses sem se encontrar, um tempo e lá vai, lá vai. Até que... eu fiquei viúva, passei 18 anos viúva. E ele só passou nove meses. Pronto, aí inventou de casar, casamos até hoje”. Cincinato escutou tudo com um sorriso sonso, que não esconde o orgulho desse amor: “Ela não pode dizer que eu não presto...” “Ele também não pode dizer nada porque traí meu marido. Meu primeiro marido eu traí com ele, mas depois casei com ele. Graças a Deus, eu nunca traí ele, não”.


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Duas fileiras de casas de porta-e-janela, ladeando uma larga rua de paralelepípedos. Essa é a descrição de Passagem do Tó, um povoado cercado de plantações de cenoura e beterraba, às margens do Muquém, afluente do Capibaribe. Lá, todos os moradores têm a mesma resposta diante da pergunta: Quem mais conhece as histórias da região? Ninguém precisa pensar muito para responder: “É Bartolo”, apelido de Bartolomeu Bernardo de Araújo. Bartolo é um homem robusto, de 68 anos, que, mesmo recebendo aposentadoria, ainda passa seus dias preparando o roçado, cuidando das plantas, semeando e colhendo milho, feijão, melancia, jerimum ou macaxeira. A resposta dos moradores só não é completamente verdadeira porque não inclui sua esposa, Maria das Dores Silva Araújo.

“O Capibaribe nasceu... ele nasce na Lagoa do Angu. Agora, o sítio chama-se Gangorra, entendeu? Aí na Gangorra ele vem vindo, aí passa no Sítio Cachoeira, depois Amarela, depois do Amarela, Sítio Imburana, Sítio Mariana, Jacarará. É aqui já chegando, aí depois de Jacarará, é aqui o Sítio Riacho das Éguas, aí pra baixo é o Apolinário, depois de Apolinário, Ipueiras, Forno Velho, Capibaribe... como é o lugar de Chiquinho, como é?” “Logradouro”. É Maria das Dores quem responde, antes de o marido prosseguir: “Logradouro, Poço Fundo, Santa Cruz do Capibaribe. É até onde eu sei. O peixe nasce dentro d’água, o peixe conhece o rio. Eu nasci aqui, aí eu conheço tudo isso aí, né. Só até Toritama, de Toritama pra lá eu não sei”. A maioria das obras em que Bartolo trabalhou como pedreiro continua em pé: algumas escolas, raros postos de saúde, prédios hoje usados pelas repartições das prefeituras de Jataúba ou Brejo da Madre de Deus. Uma das obras não era tão sólida assim e, até hoje, rende boas gargalhadas em Passagem e seus arredores. “Olhe, na Barragem Contra-Açude eu trabalhei, sabe no que foi que trabalhei? Eu trabalhei carregando os doutores dali da cidade, da ruazinha em que a gente mora pra o Contra-Açude.

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Ele, de tanto viajar para trabalhar nas obras de construção civil, serviço que rendia os trocados necessários para complementar a renda incerta da agricultura, acabou conhecendo um pouco da história e da vida das comunidades do Alto Capibaribe. Ela, de tanto cuidar dos filhos, da cozinha e da casa, recorda os detalhes das histórias dos sítios em torno da Passagem do Tó.


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Eu possuía uma Rural na época, aí eu levava eles de manhã, vinha de 11 horas, ia de uma, e voltava de cinco, até terminar. Terminaram a barragem e na primeira chuvada que deu, ela não aguentou. Terminaram ela, não fizeram um serviço bem-feito, aí ela estourou”. “O pescoção, Marco Maciel, era o governador. Veio aí inaugurar, abraçou muita gente, aí ela encheu e estourou. Serviço malfeito! Dizem, eu não vi não, o pessoal conversando diz que até carroça tinha dentro do aterro. Conforme vai a molhação vai se espalhando, aí estourou. “Depois vieram para consertar ela, foram depois do Contra-Açude, que ia ser no sítio ContraAçude, né... aí foram pra sítio Muquém onde nasce esse rio, entendeu? Ficaram lá fizeram as bases tudo direitinho, encerrou-se tudo, fizeram os estudos deles lá, mas aí não deu, não dava certo a barragem. Aí vieram construir com um projeto véio, de quando eu era moleque. Em vez do açude, foi esse tanquinho aí no riacho no Muquém”. Da barragem que ruiu, o casal não sente falta. Difícil, mesmo, é ir e vir pelas estradas de terra cheias de crateras que ligam as comunidades da região. Quando o Capibaribe e seus riachos estão cheios, fica ainda mais complicada a tarefa de ir à feira na sede do município, Jataúba, ou em Brejo da Madre de Deus, onde o comércio é mais movimentado. “Teve um ano que, da divisa de Jataúba com Pesqueira até o açude Algodão, fizeram um serviço, mas não foi um investimento bem-feito, só a máquina passando e tirando, tirando. Se você tira dinheiro do bolso da calça e não bota, acaba, né? Duvido fazer estrada aqui pra prestar, só arranca pedra, quando chove a terra vai embora, fica só a pedra.

“Tá com uns dois meses, eu tava sentado, jogando dominó, aí chegaram uns caras de lá e pegamos a conversar: ‘Me diga uma coisa, aquela senhora que eu levei para Jataúba, faz muitos anos, aquela senhora ainda é viva?’ Sei que tinha um que era sobrinho dela, aí eu contei a história e o menino disse: ‘A gente se lembra dessa história’. Sabe o que é uma vida sofrida? É a nossa”. No trecho em que a estrada atravessa o Capibaribe, o caminho de terra passa exatamente no leito do rio. No inverno, a rotina da comunidade muda bastante, pois muitos tomam a iniciativa de minimizar a dificuldade da travessia do rio cheio. Maria das Dores revela o que há por trás dessa mobilização: “Os meninos fazem isso por solidariedade, mesmo. Mas vocês tiveram muita sorte, porque tá com um ano que o rio, nessa época, não passava ninguém. Tem que ter coragem, né, para enfrentar a correnteza”. Solidariedade, o mesmo motivo que levou Bartolo a transportar a mulher doente até a cidade, é o que estimula os homens mais jovens de Passagem do Tó, do Riacho das Éguas ou do Sítio

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“Uma vez, fui buscar uma senhora. Aí, cheguei nos matos, lá na Serra da Cachoeira, tirei o banco traseiro, derrubei nos matos, arreei a mala e botamos a mulher. A mulher se acabando, aí eu saí: ‘Calma dona Maria, calma!’ Ia levar pra Jataúba. Ela fazia assim: ‘Aaaaiiiiiiiii! Meu Deus, o que é que eu faço?’ Quando chegou na Amarela, eu disse a ela ‘pronto, agora tenha fé em Deus que daqui pra frente eu vou andar e a senhora não sente nada’. Cheguei em Jataúba e a mulher escapou.


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das Marianas a se revezar, ajudando mulheres, idosos e crianças a passar de um lado para outro. Bartolo conta que um acampamento permanente fica instalado numa elevação do terreno, a poucos metros da água. “Tem ano que dá aquela enxurradazinha, ano passado ele judiou conosco aqui. Os homens passavam com as mulheres nas costas, passava até o outro lado, onde ficavam os carros, aí tomavam o destino. Era zero hora, no correr do dia tinha uma turma, de noite outra, com o fogo aceso direto”. Nem sempre a operação é assim tão simples. Para transportar uma moto, por exemplo, são necessários, no mínimo, quatro homens que carregam o veículo usando como apoio traves de madeira atravessadas entre as rodas. Maria das Dores explica que mulheres grávidas ou pessoas doentes também não podem ser, simplesmente, colocadas nas costas. “Tem a cadeira de balanço que passa com os doentes. Vai uns três assim, com a cadeira de balanço. Teve um menino, gente operada, pós-operada, de todo jeito eles passam. Já teve uma ambulância do outro lado do rio para socorrer o pessoal”. À exceção da dificuldade na travessia, Bartolo e Das Dores nunca tiveram muitas razões para se queixar das águas do Capibaribe na época das cheias. Há alguns anos, o rio cheio também deixava Bartolo com água na boca, sonhando com o cheiro do peixe frito.

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“Tem um açude aí, em Poço Fundo, que quando ele sustentava água, tinha peixe, quando o rio subia, descia era peixe de uns três quilos. Tem vez que ainda tem tilápia, traíra. Curimatã acabou. Quando o rio tava cheio, o pessoal ia pegar peixe de todo jeito, de mão, de cacete...” “Lembrei! Eu falei do açude que estourou, olha tem o açude aí perto da rua¹, ele criava peixe e o peixe subia, a gente pegava lá na ruinha. Um ano, eu era molecão já, teve um verão grande, tava tudo seco no sertão por aí. Era setembro, outubro por aí, ainda não tinha chovido e depois deu uma chuvada daquelas, choveu nas bicas lá em cima no Muquém, desceu ajuntando tudo, chegando cá encontrou água, aí o açude tava bem baixinho e chegou a faltar isso aqui pra sangrar”. “O açude não sangrou e parou. Aquilo ali apodreceu, menino. Vou dizer uma coisa para vocês: foi tanto peixe, foi tanto peixe, tanto peixe, que vinha gente de Santa Cruz, de Brejo, de Jataúba, de Pesqueira, de Belo Jardim, da redondeza e nem urubu venceu! O que apodreceu, a gente aguentava a catinga porque era o jeito, a gente não tinha pra onde ir! Quando dava o vento, ia direto pra dentro da rua, né”. A festa provocada pela chuva e pela pescaria abundante só não podia ser comparada com a festa verdadeira, que se repetiu durante décadas, no dia de Santo Antônio, padroeiro de Passagem. O forró, na noite de 12 de junho, era tradicional, conhecido no Alto Capibaribe e atraía gente de tudo quanto é município do Agreste Setentrional. Na memória de Bartolo, não faltam recordações dos dias de festa da sua juventude. “Tinha festa aqui em Passagem. A gente era moleque, veja como era atrasado: eu não sabia nem o que era um rádio. Vinha um cara de Santa Cruz mais o padre, padre Zuzinha, que era quem ¹ No caso, a “rua” a que Bartolo se refere é o povoado de Passagem do Tó.


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celebrava missa nessa região todinha, ele andava a cavalo. Padre Zuzinha chegou até a ser prefeito de Santa Cruz. Ele vinha, tinha um cara que tinha um rádio, chegava na casa de um tio meu, botava o rádio dentro de casa, fechava as portas e a gente pagava para assistir. Era só Luiz Gonzaga, era Maria Fulô.. Cigarro de Palha... aquelas músicas velhas de Luiz Gonzaga. A noite todinha só assistindo rádio. Tinha aqueles bonecos, mamulengos. Era o divertimento! “Então, nos bares, o pessoal tomava umas pingas. Tinha bacamarte, ronqueira, tinha foguetão. Meu avô e meu pai eram fogueteiros. Tinham dois tipos de foguetão: um chamava ‘avia-serra’, que dava um tiro bem grande e subia, disparava a serra e saía tá, tá, tá; e o outro quando era a noite chamava ‘foguetão de lágrima’, ele subia e descia aquele negócio bem azulzinho, alumiando, descia queimando e arriava. Era na festa e na procissão”. “Não tinha energia, era tudo no escuro, fogueira no meio da rua. E os zabumbeiros, tinha zabumbeiro que acompanhava a procissão todinha, cinco horas da manhã e os zabumbeiros já tavam na porta da igreja. Tocava o sino, a zabumba rolando e os foguetões. Aí, depois o negócio foi melhorando, melhorando, aí começaram a fazer festa. De festa em festa, foi aumentando. Sei que tava ficando famosa a passagem de Santo Antônio. Era bom, bonito. Mas depois começou a aparecer umas coisas, roubo, morte, aí tinha uma coisa: nunca vi tanta gente e tanto carro. Mudou de padre com o estilo velho, botou moral e agora os jovens não querem saber de igreja, só querem saber de vaidade, cachaça, namoro e baile”.

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O Capibaribe deixou para trás as terras altas em Poção e, pouco quilômetros depois de passar sob a ponte da rodovia PE-145, já nos limites do município de Jataúba, chega a Serrote Apertado, uma comunidade que tem esse nome por causa da localização das poucas casas e dos pequenos sítios. A vila, na margem do lado esquerdo, nasceu espremida entre o rio e um conjunto de morros, chamados de serrotes. Do lado oposto do rio, outra serra reforça a sensação de isolamento.

Aos 81 anos, José Gomes tem saudades de uma época de prosperidade garantida pelo algodão e de caça farta. “Dava para criar a família. Tinha algodão ali nas vargens¹, nas serras, tinha em todo canto. Muita gente trabalhava, a gente fazia os tabletes, descaroçava e fazia o farelo. As famílias, hoje em dia, não querem mais trabalhar na terra, todo mundo só quer costurar”. O algodão foi substituído pela cenoura e pela beterraba. Depois chegaram as máquinas de costura que esvaziaram os campos. Para as caçadas porém, não há nada que substitua a fauna das matas e serras ao redor da comunidade. “A caça piorou muito aqui, mas veado ainda tem muito naquelas serras da Passagem². Em Cacimba D’água ainda pegam muito. Tamanduá tem ainda, aquele tamanduá do menor, mas é brabo, onde bater aquela unha, Deus me livre, aí arranca a carne, arranca...” Lourival acrescenta um argumento que ajuda a explicar porque as caçadas já não fazem parte da rotina dos moradores da região, antes que José continue o inventário de suas saudades e peça ajuda à memória do vizinho, que, aos 59 anos, é bem mais jovem e parece ter a memória em forma: ¹ O mesmo que várzeas. ² O distrito de Passagem do Tó.

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Nos alpendres, os moradores mais velhos ficam horas nas frentes das casas esparsas, separadas umas das outras por currais e raras plantações. A sensação é de que o tempo passa mais devagar em Serrote Apertado, mais lento que os poucos carros que tentam vencer os buracos da estrada de terra que leva até Ipueiras, já no município de Santa Cruz do Capibaribe. Cercados de bodes e cabras diante de casa, José Gomes de Oliveira e sua esposa, Maria Madalena, conversam com o vizinho Lourival Manoel da Silva. O assunto é o mesmo de todas as tardes: a criação, o sumiço dos plantios, a chuva ou a falta dela.


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“Tamanduá tem, mas é que, hoje em dia, o pessoal não precisa mais caçar tamanduá pra comer, de andar atrás dessas coisas. São muito poucos os que caçam”. “Onça ainda aparece aqui, mas é pouca. Faz pouco... faz uns quatro anos ou faz mais que pegaram aquela onça vermelha? Aquela que aquele menino, Zé de Biu Cândido, pegou de arataca, rapaz? “Isso faz uns cinco anos”. Lourival dá a informação, mas não tem tempo para prosseguir. “...foi logo aí, na serra, aqui embaixo da serra, logo aqui perto. Uma onça vermelha, bichona grande, aquela suçuarana, porque tem a onça vermelha, tem a preta e tem a pintada, que é a perigosa. Essa onça tava matando a criação toda”. Desta vez, é Maria Madalena quem interrompe para ajudar o marido: “Tava aparecendo muito bode morto por aqui”. José Gomes aproveita a deixa e esclarece: “Essa onça bodeira, ela só pega gente se aperrear ela muito”. Entre as aves, permanecem fáceis de encontrar várias espécies que sempre foram comuns na região.

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“Dos pássaros, tem muito concriz, galo-de-campina, mas o que desapareceu daqui foi o canário. O canário tem mais não, só um perdido. O galo-de-campina canta no inverno. No verão ele não canta, mas no inverno canta, canta que é uma beleza”. Sem demora, a conversa sobre caçadas leva às misteriosas assombrações que aterrorizavam – em alguns lugares ainda aterrorizam - os caçadores do Agreste Pernambucano. As caboclinhas nunca deram sossego àqueles que se atrevem mata adentro. O experiente José Gomes confirma a existência do ser sobrenatural, repetindo aquilo que se escuta em, praticamente, todas as comunidades do Vale do Capibaribe. “O cabra, toda vez que ia pro mato com o cachorro para caçar, sabia logo quando o cachorro chegava perto porque elas assobiavam. Quando ela assobia bem de perto é porque ela tá longe e, quando assobia de longe, é porque ela tá bem pertinho. Muitas vezes, acontece que, quando elas assobiam, a pessoa se arreia no mato, quando o cachorro não apanha a pessoa, ela se arreia no mato, fica perdido”. “Os cabras dizem que é mulher, mas que não pode chamar o nome, como é... caipora. Chamam ela de caipora. Ela dá uma pisa, que o cabra nem vê, ninguém vê ela”. Quando Lourival entra na conversa é para revelar algo surpreendente. Ele não só escutou os assobios, como sentiu na pele as malvadezas de uma caboclinha. “Uma vez, deram uma pisa de urtiga no mato em mim. Levei foi muita lapada de urtiga no lombo. Eu fui pro mato caçar, aí vi ela assobiando. Se a pessoa arremedar o assobio, pode esperar que apanha. Aí, eu arremedei, quando vi foi a lapada de urtiga nas costas. Só vi foi o cachorro ganindo. Vim embora correndo”.


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José insinua que o amigo apanhou porque lhe faltou prudência: “Eu caçava sozinho nessas serras, entrava numa serra, saía embaixo na outra. De caboclinha só ouvi os assobios, mas não arremedava, não. Eu tinha medo, né. O negócio é, quando sair para caçar, levar uma roda de fumo e deixar em cima de um toco, deixar para ela fumar, aí ela não assombra, não, deixa a pessoa caçar. Uma vez saímos pra caçar, aí um menino rogou uma praga para a caboclinha pegar a gente. Aí, quando chegamos na serra, foram os assobios e os cachorros se mijando de medo. E tem dias que os animais daqui, os cavalos, os burros, amanhecem com aquelas tranças bem-feitinhas, bem trançadas, mesmo. É a caboclinha”. A dificuldade para obter informações e notícias das cidades, uma realidade que durou até a chegada das antenas parabólicas, era proporcional à intimidade com os bichos, as plantas e o clima. A certeza da existência de poderes nas matas é resultado desta relação íntima. Outra consequência é a capacidade de compreender os sinais da natureza e usá-los para planejar a vida. Lourival detalha o conhecimento gerado a partir de fatos que poderiam passar despercebidos. “Os passarinhos da natureza adivinham tudo. A gente não adivinha nada, mas eles adivinham tudo. Se amanhecer com eles cantando, aquela barulheira toda, pode esperar que chove. Se amanhecer o dia tudo calado, pode se aquietar, que não chove mais, não”. “O ano de inverno bom a gente conhece através da natureza, das plantas, pelos pássaros. Se você vê um formigueiro num riacho, as formigas construindo numa barragem, fazendo a morada delas no solo da barragem, nem espere não, que o inverno não vai ser bom, não”.

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“E o pé de árvore, então? Quando o inverno vai ser bom, quando dá o mês de outubro, ele começa a se preparar, a botar flor, fica todo carregado. Se você não vê ele botar nada, é que não acontece nada no inverno também, não. Esse ano pode até ser bom, mas não tá parecendo, não”.


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Aos 89 anos, em Poço Fundo José Vicente só não é mais velho que seu irmão, Augusto de Souza Lima, quatro anos mais velho, com pouca memória e andando com ajuda de muletas. Curiosamente, pouca gente o conhece pelo seu nome de batismo. No povoado, ele é o Zé Ferrão. E seu irmão Augusto é chamado por todos de Seu Caboclo ou Caboclo Ferrão.

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O apelido foi herdado do avô, vaqueiro na Serra do Vento, perto de Pesqueira, que, ao brigar com outro vaqueiro, “ferrou” o rival com a vara de ferro usada para picar e fustigar o gado. O homem agredido não morreu, mas o avô fugiu, levando com ele o apelido que se transformaria, praticamente, em nome de família. Se o apelido veio do avô, do pai, morto aos 104 anos, ele espera herdar a longevidade. Por enquanto, o único mal que o aflige é uma dor na coluna, resultado de anos na roça.

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A parede de concreto do açude de Poço Fundo não é nenhum prodígio da Engenharia. Do mesmo tamanho dela, ou maiores, devem existir milhares pelo mundo afora, porém, junto à pequena vila onde foi construída, a barragem parece um verdadeiro colosso, que modificou a paisagem e os hábitos da população do povoado. Um dos mais antigos moradores do lugar, José Vicente Ferreira, lembra que, durante o período das obras, o ambiente no distrito de Santa Cruz do Capibaribe era de muito movimento e festa permanente, com centenas de trabalhadores vivendo em acampamentos.

Toda a movimentação que mudou a rotina do distrito na época da obra da barragem, a primeira construída com recursos públicos Capibaribe abaixo, está bem viva na memória de Ferrão. “Os operários fizeram um campo aí, da barragem para cá era muita barraca, muita mesmo. Ficavam mais de 100 pessoas aí. Daqui tinha gente trabalhando, mas os empregados eram tudo de fora: de Caruaru, de Camocim¹, do Ceará tinha gente aqui, o gerente que comandava parece que era cearense, era daqui, não”. “Se não fosse a barragem o Poço Fundo não prestava, não, embora povo diz que quem fez Poço Fundo foi a sulanca, não foi a barragem, foi a sulanca”. A sulanca, a helanca² trazida do Sul, garantiu o dinamismo da economia de Santa Cruz do Capibaribe e dos seus distritos, depois que a praga do bicudo dizimou as lavouras de algodão ¹ Município de Camocim de São Félix. ² Tecido 100% poliéster.


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de, praticamente, todo o Nordeste. Hoje, a indústria têxtil está bastante diversificada, produzindo de roupas populares a outras mais sofisticadas. Zé Ferrão lembra como tudo começou e não consegue esconder seu espanto com as dimensões que a atividade assumiu em sua vila. “Antes da barragem, já tinha sulanca. A barragem ajudou muito, mas quem fez Poço crescer foi a sulanca. Hoje, aqui tem um movimento de fabrico grande, tem fabrico que se não tiver 50 alfaiates, se não tiver, tá perto disso”. “Antes da Barragem, Chico de Deda vendia um tecido que vinha de São Paulo. Aqui todo mundo costurava para ele, aí depois com muito tempo, foi aparecendo outro pano melhor, foi limpando. Antigamente, todo pano tinha uma sujeira de óleo, não largava tinta, dava para fazer um calção, uma cueca, aí lá vai”. “Depois, começou a aparecer máquina, naquele tempo era aquela máquina teço-teco, na mão, depois passou para máquina de pé, foi passando, hoje as máquinas estão de um jeito que se brincar pegam as mãos, né?” “Agora, Poço Fundo tá grande, tem muita gente de fora que vem trabalhar aqui. Vem de Taquaritinga, de Caruaru, Palmares, São José do Egito, Sumé, tudo trabalhando, todo mundo ganha, um vai cortar, outra tirar linha, tem muito fabrico aqui, tem com dez, com oito trabalhadores, tem muito.

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“Agora tem como ganhar mais dinheiro com a sulanca, mas se for contar do meu tempo, não comprava roupa, não. Sabe como fazia roupa antigamente? Sabe o que é o tear? Era feito no tear, um pano grosso. Fiava na mão naquela época. As meninas faziam, os homens usavam aquelas calças amarradas aqui em cima. Era o costume. Não tinha tecido para vender, não, a maior parte fiava no fuso. O algodão era daqui mesmo”. A fabricação de roupas populares chegou bem depois que o algodão foi exterminado pela praga do bicudo, episódio que mudou a vida não só na Zona Rural de Santa Cruz do Capibaribe, mas de milhões de agricultores nordestinos, incluindo os camponeses de Poço Fundo. “Teve um tempo que o governo pagava para plantar algodão. Eu plantei, quando arrancaram, o meu tava roçado completo, eram dois hectares, mais ou menos. Passaram aqui, veio o fiscal e eu nem tava aí, mas deixaram o recado: ‘Ou arranca ou vamos pulverizar’. Era a ordem do governo. Arrancou todo mundo, daqui só ficou eu. E eu ia arrancar meu algodão nada, um algodão daquele! Mas foi perdido, não pulverizei, perdi o algodão todinho, o besouro comeu todinho, não deixou uma maçã. Aqui ainda tem pé de algodão daquele tempo”. Zé Ferrão conta a história do seu apelido, testemunhou as mudanças que aconteceram na vida da sua comunidade, guardou na memória como a paisagem da sua vida foi transformada por um paredão de cimento que era inimaginável em sua infância. Contudo, além da imaginação são as histórias que ele gosta de contar aos borbotões, histórias que a maioria dos seus vizinhos nem suspeita que se passaram ali tão perto de suas casas.


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Histórias como o estranho resultado de uma pescaria exatamente no local de uma antiga tragédia: “Aqui passou sete anos sem derramar água, mas o poço não secou. Nessa época, morreu o menino afogado, porque era fundo o poço. Agora, a fonte seca, mas esse poço nunca secou. Aí, a gente tava pescando um dia, o cabra pegou a vara e disse que tinha um bicho puxando, aí disse ‘eu não vou segurar, não’, aí puxaram, quando saiu, veio um facão pendurado no anzol. Um facão! Mas ele escapuliu e entrou na água de novo”. O menino afogado não apareceu, mas Ferrão não vacila em garantir que acredita em fantasmas. E recorre à Bíblia para encontrar um inédito argumento para justificar sua convicção na existência de coisas do outro mundo: “Até a Bíblia mostra história de fantasma. Quando Jesus tava andando em cima d’água, é um fantasma, então quer dizer que existia, não é? ‘É, não é’. E Jesus chegando: é fantasma”. Tradicionalmente, as pescarias sempre rendem boas histórias, mas a julgar pelo que Ferrão conta, a superfície do Capibaribe esconde um mundo sobrenatural, cheio de coisas esquisitas, inexplicáveis.

“Outro dia, tava pescando e Antônio Catanho disse: ‘Vocês nunca viram um peixe? Vão ver hoje’. Pegou foi uma traíra grande, mas quando viram tava com bicheira do lado. Eu disse: ‘Solta essa nojenta que tem uma bicheira nela!’ Soltaram e ela foi embora, mas só podia ser outra coisa. Uma bicheira dentro d’água? Eles viram. E tava viva ainda, soltaram e ela foi embora. Sempre aparece essas coisas em pescaria, em caçada aparece muito”. A última frase funciona como uma senha, um fio que leva a um novelo de causos extraordinários. “Eu fui caçar um dia nesse Serrote do Morcego, parece uma mentira. Fui com Inácio. Tinha um mocó que parecia um gato. Eu disse: ‘Inácio, um mocó desses ninguém pega. Vou atirar de perto’. Cheguei perto, mas ele correu para o lado que eu tava, quando eu vi foi o estralo: ele deu uma dentada que fechou a espingarda tanto assim. Mordeu, fechou a espingarda, aí viemos embora. Deu uma dentada que fechou a boca da espingarda. É coisa que aparece, não pode ser mocó, mesmo. Era outra coisa”. “Outro dia, fui caçar no açude antes do dia amanhecer, caçar juriti, é um passarinho, parece lambu. Quando o sol saiu uma coisinha, fui embora. Quando o dia tava clareando, chegou

33 “Até parece uma mentira”

“Um irmão meu, que mora aí, foi pescar no Poço de Rebelo, então bota chumbo no anzol para descer, botou a isca. Cadê o anzol descer? Não descia, não descia. O chumbo perdeu-se, como é que descia? A gente aqui sempre usava uma pratinha de alumínio, então eu disse: ‘Eu tenho uma prata aqui, bota pra ver se dá para descer’. Ele botou, amarrou, pegou, quando subiu não veio nada. Aí, uma traíra saiu dizendo ‘não tem troco, não’. A gente saiu correndo, viemos embora. Não era possível traíra falando. Botei a prata para o anzol baixar, não foi para trocar, não. Não ia ficar ali, não, não dá pra gente, não”.


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um bicho grande voando, sentou-se. Eu terminei de carregar a espingarda, era pintado de vermelho, eu atirei. Diga o que era? Um jabuti. Tá vendo? Veio voando, sentou-se, era um jabuti. Eu me assombrei, corri, até a chinela eu perdi com medo. Fui embora. Isso é coisa que aparece”. Os animais são uma constante em quase todos os relatos de Zé Ferrão, incluindo um pacato peru. “Aparecem muitas coisas por aqui. Vocês conhecem peru? Quando ele fica velho, cria uma escova no papo. Eu trouxe uma ração, não sei de onde, e o peru cresceu, criou a escova, não era no papo, era na crista, parecia uma vassoura pendurada. Todo mundo ia lá olhar. Inventaram de matar o peru, quando foi um dia mataram o peru, sangraram, o peru se levantava e caía, tome cacete, morre mas não morre. Sangrado, mas levantava e caía. Disseram ‘vou ver se ele morre agora’, aí botaram num cepo, com o facão cortaram a cabeça. O peru caiu, deu um pulo e foi embora sem a cabeça, nunca mais apareceu, só ficou a cabeça. O peru sumiu”. Em Poço Fundo, as coisas sobrenaturais não acontecem apenas no meio da mata ou na beira do rio, longe das vistas da população. Zé Ferrão garante que até “na rua”, no quintal de casas ladeadas por outras residências, acontecem fatos sem explicação.

“Até parece uma mentira”

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“Aqui o povo conta uma história que até parece uma mentira. Foi em 55, uma velha criava gatos em casa, mas viajou. Foi visitar um parente em Brejo, por ali, e os bichos ficaram sozinhos. Os gatos não se entendiam, não, tinham uns que não gostavam dos outros. Então, quando foi numa quinta-feira, bem cedinho, a gente ia pra feira e pegou uma briga de gato ali, quando eu cheguei tinha 38 gatos mortos na rua. Se mataram brigando, era rabo de gato, orelha, olho espalhado. Foi uma guerra de gatos. De tarde, eu fui seguindo, um ajudante em cima disse: ‘Ô fulano, repara a neve!’ Mas não era neve, não: era o cabelo dos gato voando”.


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Como viviam as famílias que moravam nas cidades do Vale do Capibaribe no final do século XIX ou nas primeiras décadas do século XX? Quem visita a casa de Margarida Aragão sabe, exatamente, como responder a essa pergunta. As cadeiras de palhinha e madeira negra, os porta-retratos com fotos de gente fantasiada no carnaval de 1919, a lata com centenas de almanaques dos anos 20 e 30 e o rosto do patriarca Major José Negrinho, avô da proprietária, na moldura oval na parede, são os mesmos objetos do tempo em que a casa era o lar de sua mãe Cecília, seus irmãos e parada obrigatória de primos e tios.

A rua é uma das poucas que ainda não foi transformada pela força do dinheiro da sulanca, que construiu mansões com piscina, lojas iluminadas por néon colorido, prédios com fachada de vidro azul e espalhou picapes importadas nas avenidas da parte alta de Santa Cruz. As ruas José Negrinho e Cesário Abílio Aragão, pai de Margarida, por exemplo, estão no movimentado miolo da área comercial da cidade. Margarida guia o visitante que se aventura pelo tempo. Sua memória preserva datas, nomes e o relato repleto de detalhes das alegrias e fracassos de sua família, mas também da história da cidade. O que não está guardado em suas lembranças, pode ser encontrado nas fotografias, cadernetas ou nos recortes de jornais mantidos sob rigoroso cuidado. Cesário Abílio é o nome mais frequente em tudo que Margarida narra. O pai foi uma figura marcante, sua morte um fato inesquecível. Oitenta e dois anos depois, a filha ainda guarda a boneca que ele lhe deu de presente, em 1927, quando tinha seis anos de idade. Um caderno com registros da contabilidade pessoal de Cesário e da movimentação da loja A Invicta, sustento da família durante anos, também permanece inteiro e bem conservado, com anotações bastante legíveis de compra e venda de gado realizadas a partir de 1898. “Eu imaginava que todo mundo morria, mas meu pai e minha mãe não. Meu pai morreu, eu tava com 17 anos, foi um dos primeiros, em 39. Ah, meu filho, passei tanta agonia! Quando

35 “Vai dar outra cheia igual de 100 em 100 anos”

Nem é preciso cruzar o umbral da casa para iniciar a viagem de volta ao passado. A avenida Padre Zuzinha, a rua larga onde mora Margarida, foi, durante décadas, a principal de Santa Cruz do Capibaribe, onde viviam as pessoas mais poderosas da cidade, em duas fileiras de casas e sobrados, com um canteiro central com árvores hoje centenárias. Numa das extremidades da avenida, a igreja matriz construída sob ordens dos padres Ibiapina e Estima, igual às fotos em sépia dos álbuns dos Aragão.


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pai morreu, Benedito tava no Recife, Cláudio tava no Salesiano, em Jaboatão. Ele tinha muita terra: Gamelinha, Malhada do Meio, Capoeira, Gavião, Serra do Machado, Barra da Fome, mas pai não chamava Barra da Fome, não. Tem escrito no livro da safra de algodão Barra da Felicidade”. “Mãe se foi em 82, com 81 anos. Tava tão esclerosada que era de fazer pena”. Cesário fumava muito e sofria de problemas respiratórios que acabaram por matá-lo, em 1939. Quatro anos antes de sua morte, durante uma crise de bronquite, resolveu deixar a moradia em uma de suas fazendas e, com medo de não ser socorrido a tempo, decidiu viver na cidade. No final de 1935, a família instalou-se na casa cujo quintal dá para o rio, onde Margarida mora até hoje e de onde ela pôde assistir, em posição privilegiada, ao espetáculo proporcionado pelas enchentes do Capibaribe, incluindo uma grande cheia dias depois da chegada à nova casa. “Em 35, a gente veio e ficou até a data de hoje, e aí não saiu mais, não. Eu tinha feito 14 anos em outubro, a gente veio em dezembro. A gente tava almoçando no final de dezembro, não tinha muro, no quintal tinha uma porteirinha com cadeado, e a cabeça da cheia vinha naquelas alturas, parecia uma serra, ninguém via água não, só era madeira. Quando a água foi aparecer já foi chegando ali atrás do beco. Em 1935, no mês de dezembro”.

“Antes, já tinha dado cheia nos outros anos. Padre Zuzinha dizia que, na vida dele, foram duas coisas que ele achou bonito: o eclipse de 40 e a cheia de 47. Ele não tava aqui que em 35, ele veio para cá em 38”. “Não entrou água aqui na de 47, mas entrou naquele beco e naquele outro beco. Entrou no beco, mas fecharam ali depois da casa do padre. Mãe tinha medo. Só não entrou aqui porque a gente criava porco, aí mandava no inverno botar areia pra não ficar muita lama e ficou assim como um topete. Mas ali atrás, que hoje é rua, tinha uns barreiros e encheu tudo. Padre Zuzinha, antes de cinco da manhã, veio aqui, só podia ver daqui a altura da água. Quando ele foi chegando aqui, cinco da manhã, a água foi baixando. Porque ele tava com medo, né? Se a água viesse por cima... mas, olhe, a cor da água não era uma cor de água de cheia, era uma cor vermelha. Foi muito bonita essa cheia”. “Dizem que o povo ia para Juazeiro a pés. E dizem que um fulano de tal mandou dizer a Padre Cícero que mandasse dois tostões de chuva para Jataúba. Mas, menino! Dizem que quando a pessoa chegou lá com o recado pra Padre Cícero, dizem que o Padre Cícero disse ‘eu não vou mandar dois tostões, não, eu vou mandar dois vinténs’. É história de rua, eu não sei, eu não tô inventando”. “Começou a chover. Tava tudo seco: rio, riacho. Começou a chuva no domingo, dia 30 de março de 1947. Aquelas nuvens escuras, roxas, o povo admirado, porque nunca se viu umas nuvens daquelas. Mas dizem que, no outro dia, caiu mais de 35 trombas-d’água no céu. Mas,

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Os estragos e a dimensão daquela cheia, a primeira que Margarida viu do seu quintal, foram superados 12 anos depois por uma das maiores enchentes da região. A posição da rua, construída na margem elevada, sempre evitou os prejuízos provocados pelas águas e pela lama. Para os moradores daquele trecho da rua da Matriz, cheia sempre foi sinônimo de beleza.


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esse menino! Essa água começou a chegar no rio seco, começou a chegar aqui devagarzinho, era meia-noite. Eu fiquei sentada e comecei a rezar. E mãe e Inácio, tudo lá na beira do rio, olhando a altura da água, com medo. Inácio era meu irmão, já faleceu. Era o mais velho, era de 19. Eu sei que eu fiquei no quarto rezando, aí mãe chegou, e disse que a água tava baixando, aí eu tive coragem de sair pra ir olhar”. “Eu sei que naquele muro ali da casa deu nado. Naquela grota, a água tomou conta. Foi muita água, a água foi na parede do açude do Gavião, que é dos Aragão. Da murada de Zeni, a água fazia assim, como as ondas, na parede. Eu não queria uma casa ali, Deus me livre. Diz o povo que vai dar outra cheia igual a essa de 100 em 100 anos, eu não vou estar mais viva.” Não eram só as enxurradas do Capibaribe que divertiam as crianças de Santa Cruz, no começo do século passado. No trecho mais largo da Padre Zuzinha, existe um cruzeiro, instalado bem na frente da igreja matriz, que, sempre nos finais de tarde, era o ponto de encontro dos meninos e meninas, que chegavam de banho tomado, roupa trocada e barriga cheia. A brincadeira só terminava quando as mães chamavam, avisando que era hora de dormir. “Brincava toda noite, era muito bom. Todo tipo de brincadeira. ‘Eu sou rica, rica, rica’, de cadeirinha, de anel... a moça ficava do outro lado e depois ia procurar, pra saber em que dedo tava o anel. A gente brincava também de cozinhado: uma dava arroz, outra um pedaço de carne...”

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Margarida ainda tem na ponta da língua várias canções e quadrinhas que acompanhavam as brincadeiras diante da matriz: “ ‘Lindaura, quando fores embora / escreva pelo meio do caminho / se não tiveres papel, num passarinho / da cabeça faça um tinteiro, do bico pena aparada / dos olhos letra miúdas, das asas carta fechada / pombinha voou, sentou / Lindaura foi embora e não me levou’. Aí, abraçava a menina na roda, ela ia pra o meio e a outra ficava. Tinha outra no meio: ‘A dança da carapinha é uma dança deliciosa / quem bota o joelho em terra fica formosa / as moças levantam os braços, as moças sacode a saia / fulana tem dó de mim, fulana me dá um abraço’, aí ela é que recebia o abraço ia para o meio. “‘Eu sou rica, rica, rica de marré, marré, decê’. Aquele cordão lá e as outras respondiam ‘Eu sou pobre, pobre, pobre de marré, marré, decê...’ ‘Quero uma de vossas filhas para comigo me casar...’ ‘Escolha a que quiser...’,aí dizia: ‘Quero a fulana...’ ‘Qual é o presente que você vai dar pra ela?’ ‘Dou o presente de costureira... ‘ ‘Ela disse que se agrada de marré, marré...’ ‘Vou fazer a festa dela...’ Aí a gente pinotava, aí aquela moça já vinha e ficava. Era muito bom. Tinha boca do forno: ‘Boca de forno! Vá na casa de fulano e diga que eu quero isso aqui’. E da berlinda: ‘Fulano tá na berlinda por quê? Porque é bonita, feia, preguiçosa, malcriada. E de se esconder, a gente se escondia e botava o chinelo, quando chegava perto dizia: ‘Você tá quente!’ E quando tava longe dizia: ‘Você tá gelada’. Era bom demais”. Margarida cresceu, virou professora, dona de um pequeno colégio e diretora de uma escola pública. Várias personalidades importantes da cidade, inclusive prefeitos e empresários, foram


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alfabetizados sob sua orientação e seus cuidados. Esse tempo todo, ela permaneceu na casa dos seus pais e sempre solteira, dedicada aos irmãos, aos alunos e à memória da família. “Não, eu casei não. Tive medo de sofrer, mas eu dou conselho para que toda moça case para na velhice ter quem cuide. Eu tinha muito medo de homem bruto, ignorante, de um cavalo batizado. Eu dou muito valor a um dono de casa bom, porque casa sem homem é casa sem nome. No tempo do meu irmão, Luiz, era outra coisa: tudo daqui ele resolvia. “Meu pretendente era Brás Firmino, vinha falar comigo e eu brincando de boneca. Eu nem gostava dele, eu me escondia. Eu tinha pai e mãe, ia pensar em me casar com 16 anos?”

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“O tempo tá passando muito ligeiro. Sabe por quê?”

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Para quem chega a Santa Cruz do Capibaribe com o objetivo de comprar ou vender, São Domingos parece ser mais um bairro da cidade que se tornou um dos principais centros comerciais e industriais de Pernambuco. Parece, mas não é. Separado de Santa Cruz pelo rio, São Domingos teve sua população multiplicada nos últimos anos com a chegada dos operários das fábricas de tecido, mas, na verdade, é um distrito de Brejo da Madre de Deus, município cuja sede fica a 38 quilômetros por uma precária estrada secundária.

Eunice ainda era menina quando aprendeu com a avó, Júlia, e a mãe, Clotilde, a moldar o barro e queimá-lo no forno para transformá-lo em resistentes panelas e vasilhas que garantiram a sobrevivência de quatro gerações da família. Essa atividade é o que distingue a rotina de Nice do cotidiano dos seus vizinhos. Além de só precisar conviver com toda a movimentação da cidade vizinha uma vez por semana, de vez em quando ela precisa descer ao leito do rio para extrair montes de barro. Aos 72 anos, precisa da ajuda do único filho homem, Francisco, que a leva em uma carroça. Foi com a venda das louças que saem do forno artesanal dos fundos do quintal que Nice criou os cinco filhos –Francisco, Josefa, Júlia, Patrícia e Isabel – depois que o marido a abandonou para ficar com “outras 400 mulheres”. “Eu adoro trabalhar com barro e esse barro do rio é ótimo. Vou com a carroça, aí pego e meu filho traz. Passo uns dois meses para ir de novo, demora porque eu faço pouca louça”. “Mãe era de Toritama e o povo de Toritama não sabia fazer louça de barro, não. Quando eu era criança, em toda casa por aqui se fazia, mas eu aprendi foi com a minha avó e com as tias. Tirava o barro do rio não, tirava era de perto do rio. Quando eu peguei a fazer louça, eu tirava daqui mesmo, do lugar onde essa rua surgiu. Não tinha rua não, era só o povoado mesmo, era sítio mesmo. Isso foi quando eu estava com 14 anos. Minha irmã trabalhava desde os seis ou cinco anos, uma irmã minha. Fazia as panelinhas, mas eu mesmo, não. Depois só fazia eu,

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A maioria dos operários, costureiras e comerciários que vivem no povoado cruza a ponte que leva a Santa Cruz do Capibaribe várias vezes durante a semana, tanto para ir ao trabalho quanto para outras atividades, como fazer compras ou ir ao médico, por exemplo. A rotina da artesã Eunice Clotilde do Nascimento Oliveira não é muito diferente. Sempre aos sábados, leva as louças de barro que fabrica no quintal e, na frente da casa de sua amiga Margarida Aragão, espalha as peças sob a sombra da árvore a espera dos fregueses na feira de Santa Cruz.


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mais uma irmã minha e mais duas mulheres daqui, só nós quatro mesmo. Outra irmã minha que sabe fazer, não faz mais, tem meio mundo de gente que não faz mais”. “Eu acho ruim fazer a louça pequena. Agora, as jarras grandes, o que eu gosto mais de fazer é a jarra grande. Agora não, que eu tô fazendo de duas latas1, mas eu já fiz de três, quatro latas d’água grandonas, adorava. Hoje em dia, ainda compram, mas antes o povo comprava muita jarra”. Algo está deixando a artesã bastante angustiada. O prazer em fazer o barro do Capibaribe virar louça não é compartilhado por mais ninguém da família. Suas netas não têm nenhum interesse em aprender as técnicas que se tornaram patrimônio e tradição das mulheres da família há mais de 100 anos. As meninas de São Domingos não querem saber de cerâmica. Costurar para as tecelagens rende mais dinheiro e status. “Hoje em dia, de jeito nenhum elas fazem, não sabem fazer um pratinho desse tamanho, nem isso elas fazem. Pode mandar elas fazerem, mas elas não fazem. O pessoal de hoje em dia não quer trabalhar, só quer cozinhar em fogo de gás. Não querem coisas de barro, porque panela de barro é para cozinhar mais em fogo de lenha. Quem compra mais coisa da gente, hoje em dia, é o pessoal que vem de fora, o pessoal rico da rua que tem sítio, chácara, esses aí compram coisas de barro”. As grandes mudanças na economia da região e nos hábitos de consumo da comunidade também transformaram o próprio rio. Na opinião de Nice, para pior. Quando o rio estava cheio, por exemplo, ela costumava completar a refeição pescando em suas águas. Com o rio seco, plantava em seu leito jerimum, macaxeira e feijão.

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“Minha avó fazia jereré com uns cordões bem fininhos, mas vai alargando, vai ficando com a boca bem grande. As pessoas pescavam no rio, pescavam muito. Passando o jereré, a gente pescava traíra e caritó2, que é um peixe do casco grosso, grosso, mas é gostoso”. “E, outra coisa que nós pegávamos, era piaba. Quando o rio tava já apartando, se começava a puxar a areia, de pá ou de enxada, até cortar aquela água, como se tivesse fazendo a parede de um açude. Tinha vez que ficava alva a areia de tanta piaba. Aí, a gente pegava e ia pra casa da minha avó, era os filhos, os genros, as noras dela. Ela repartia pra tudinho”. “Naquele tempo não se usava óleo, não. A gente salgava os peixes e comia torrado. Quando secava, assava na brasa, no fogo de lenha. E era bom, viu”. O pescado era mais frequente à mesa do que a carne de caça. Mesmo assim, de vez em quando, Nice e seus filhos experimentavam sabores diferentes durante as refeições. “Já comi Teju, Camaleão... e é bom. Não tem coisa mais gostosa no mundo do que a carne do teju. A carne dele é branquinha, muito diferente, uma carne grossa. O camaleão tem carninha pouca, muito osso e pouca carne. Teju não, é pouco osso e muita carne, é gostoso. Tatu, já comi também. Já viu o Preá, já? É bom”. “Tem uns meninos que ainda pegam cágado d’água no rio para comer. Um dia desses pegaram um aí. Eu não como não, Deus me defenda! É um trabalho da murrinha pra cortar aquele casco dele, é uma pele grossa”. ¹ Capacidade das jarras, medida em quantidade de latas de águas que cabem na peça. ² Provavelmente, o mesmo peixe que, em outras regiões do Vale do Capibaribe tem o nome de acari ou cari.


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A ponte facilitou a vida dos moradores de São Domingos, mas colocou um ponto final na atividade dos proprietários das canoas que faziam a travessia no trecho de rio que separa o povoado da sede do município de Santa Cruz. “A canoa mais famosa era a de Mateus porque todo mundo gostava mais dele, era a melhor que tinha, a que o povo confiava mais. Uma vez, a canoa foi embora com o meu cunhado Manoel Clemente até ali, onde hoje tem aquela outra pontezinha, perto do açougue, vocês sabe onde é o açougue aqui? Se caísse ali dentro não tinha mais jeito não, morria tudinho. Eles tiraram a camisa, quem não sabia nadar era João Vieira. Eles acertaram: ‘Quando a canoa virar, a gente mergulha e vamos embora’. O pobrezinho do João Vieira ficou numa agonia porque não sabia nadar, mas ajudou Deus e ele foi ajeitando a canoa, ajeitando, até encostar na barreira do rio. Isso já tá com uns 30 anos”. Nos dias de feira, muitos homens de ambos os lados do rio se juntavam nas margens para acompanhar o insólito espetáculo proporcionado pelas loiríssimas mulheres dos gangarras, descendentes dos holandeses3 que vivem no Sítio do Bandeira.

Nenhuma dessas mudanças na vida de São Domingos foi tão intensa quanto a da velocidade com que o tempo passa. Nice tem uma explicação simples para o ritmo frenético das transformações no século XXI. “Quando a gente tinha 12, 13 anos, era um tempo bom, mas a gente só comprava uma roupinha no final do ano, no Natal. Era de ano em ano que se comprava uma roupinha, aquele calçadinho novo. Os pais de família iam pra feira, compravam dois sacos de farinha e meio saco de peixe, que era pra comer a semana toda. A gente comia aquela farinha bem cedo com café, comia no meio-dia com feijão e comia de noite. Hoje em dia, você faz uma feira pra passar um mês. O povo só quer comer arroz, macarrão, biscoito, bolacha, pão. Antigamente, não era assim não, era diferente, muito diferente mesmo”. Quando o pessoal diz que o tempo na rua tá passando muito ligeiro, sabe por quê? Antes demorava a passar porque a gente esperava pra comprar um calçadinho no final do ano, o arroz também só comprava no final do ano, criava umas galinhas no terreiro, matava e fazia uma tigela de arroz. Hoje, se come arroz todo dia. Todos os dias se compra uma roupa. Passa muito rápido. Hoje em dia, todo dia a gente compra uma roupa, tem uma menina aqui mesmo que, todo santo dia, compra uma roupa. Naquela época, a pessoa comprava uma roupa de ano em ano. Comprava ou mandava fazer. Uma vez mãe comprou uma roupinha pra nós, mas era um pano tão encardido que ela teve de comprar tinta e pintar de amarelo os vestidos”.

³ O filme Gangarras do Bandeira, produzido pela Fundação Joaquim Nabuco e dirigido por Lula Clemente e Cátia Oliveira, registra o preconceito sofrido pela comunidade, formada por holandeses que ficaram em Pernambuco após a invasão holandesa, no século XVII.

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“Tinham as gangarras, que eram todas meio doidas. Elas iam passar no rio com a água por aqui assim, na cintura. As pessoas levantavam a roupa, mas tinha um limite pra ajeitar a roupa. Elas não, quando iam passar levantavam a roupa toda, aparecia a calcinha, elas levantavam a saia até a cabeça. Elas diziam: ‘Eu não vou molhar a minha roupa, não’. Elas nem ligavam. Tinha umas que iam sem calcinha mesmo. Elas não se importavam, não. O povo achava graça e elas ralhavam assim: ‘Tá rindo de quê, seu besta?’”


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Travessia

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“Depois da ponte construída, o pessoal ainda utilizava a canoa boa parte do tempo. A canoa era aqui por trás do Bandepe e se utilizava para passar ali. O pessoal vinha dos sítios e, pra não ter que ir até a ponte - tinha gente que vinha com animal, com carroça com burro -, vinha e passava. Traziam para a cidade uma carga enorme: cereais, milho, às vezes roupa, mesmo. No início aqui, o pessoal ia para Zona Rural levando pedaço de tecido, corte de tecido, levava lá pra trocar por ovos, galinha, queijo para vender aqui ou levar para Recife”.

“Quando tava mais cheio, a travessia era com a canoa, mas quando o rio era só a laminazinha d’água, tinha uma famosa pegadinha da época, quando a turma colocava a pedra no rio. Para ir na feira, dia de segunda-feira que é quando o pessoal vinha da Zona Rural, passavam para fazer as compras. Na volta pra casa, a gente chegava no rio onde a passagem ficava mais estreita, cavava um buraco na areia, botava uma pedra embaixo e uma outra em cima da lâmina d’ água. Aí, quando o pessoal vinha, molhava as alpercatas e, às vezes, até derrubava a feira”. Arnaldo Vitorino, 56 anos, professor de Geografia em Santa Cruz do Capibaribe. Engajado nos movimentos em defesa da revitalização do rio, Vitorino possui um verdadeiro museu com objetos relacionados ao Capibaribe em sua casa.

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“Dos donos de canoa, primeiro foi seu Augusto, tinha Mateus, Zé Duquinha e tinha também seu Adjá, mas isso já foi depois, primeiro foi seu Augusto. Conheci todos eles, todos os quatro. Seu Adjá é falecido, Mateus faleceu também, hoje só vive Zé Duquinha, que ainda é vivo hoje. Ele foi o primeiro a fazer uma canoa de ferro, com chapa de teto de Kombi, ele fez uma bela, uma canoa bem-feita. Hoje, ele deve estar com seus 60, 70 anos”.



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A relação de Toritama com o Capibaribe não é muito cordial. Há décadas, o rio deixou de ser balneário e fonte de água limpa para ser transformado em esgoto da cidade, cada vez mais industrializada e com a atenção voltada para a BR-104. Pela rodovia, chegam os caminhões, picapes e ônibus de sacoleiros que levam a produção de jeans e roupas. Entre lavanderias industriais, fábricas, lojas com vitrines modernas e milhares de oficinas de costura, vive Nélson Rodrigues Torres, sujeito com alma de bruxo e de poeta. Um homem de 59 anos que, quando era menino no Sítio Oncinha, aprendeu a dar vida aos galhos secos largados no leito do rio, personagem e cenário de toda sua vida.

“Sou fã desse rio Capibaribe. É que eu nasci em suas margens e acho que ele é tudo pra mim. Vivi nele a minha infância todinha”. Em Toritama, a família e seus vizinhos já se acostumaram a vê-lo chegar em casa carregando dezenas de galhos retorcidos, pedaços de troncos de árvores mortas há muito tempo. Suas esculturas são tão admiradas entre os colegas de trabalho e diretores da empresa, que a Compesa já organizou exposições de suas peças em Recife. Ainda criança, depois de ajudar o pai, Joaquim, no roçado da família, ele percorria o leito seco do rio. Sua imaginação dava formas diferentes a tudo que via pela frente. O mais curioso é que, mesmo vivendo numa cidade onde o dinheiro corre com mais intensidade do que as águas do rio, ele se recusa a fazer de sua arte um meio de vida. “As águas são poucas e as árvores morrem. Aí, eu pegava aqueles galhos secos e ia formando em alguma coisa que eles davam”. “Desde criança eu fazia mamulengos, carrinhos de madeira e tal. Disso aqui, veio esse pensamento meu, só que eu nunca disse que isso era uma arte, mas as pessoas achavam interessante.

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No Capibaribe, Nélson encontra tanto a matéria-prima para sua arte quanto a do seu trabalho, é operador de sistema da Companhia Pernambucana de Saneamento, a Compesa, que leva água da barragem de Jucazinho para abastecer a região. Antes disso, ele bem que tentou trabalhar como operário em São Paulo e na própria Toritama, mas o destino o levou de volta para junto das suas águas.


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Aí, então, eu faço hoje sem saber nem o que é aquilo que eu faço”. “Quando passava uma cheia, aí então aquelas árvores rolavam. Quando tinha árvores no alto do Rio Capibaribe. Então, eu ia olhando e aquelas que estavam mortas eu serrava, trazia pra casa. Meu pai ia e dizia: ‘Lá vem tu com as tuas besteiras’. Eu trazia e fazia. Depois, ele via: “Tá até bonito”. “Vender não, vendo não. Eu acho bonito. Quando eu faço, aí eu pego assim uma espécie de amor. Fico olhando aquilo, que aquilo serve como terapia pra mim. Fico olhando aquilo, às vezes dou de presente aos amigos. Eles levam e eu só fico, né, olhando. Algumas vendi, com pena. Eles pegam assim: ‘Eu vou levar, é quanto?’” “Antes, eu fabricava jeans um pouquinho em casa. Então a minha sala sempre foi decorada com essas coisinhas minhas que eu faço. Aí os fregueses achavam bonito e queriam comprar, mas eu ficava até sem graça. Minha esposa: ‘Vende Nélson’. Eu digo: ‘Mas rapaz, eu tenho pena’. Meu modo de saber falar, né? Aí eles mesmo diziam: ‘Você faz outra depois’. Só que essa é inédita, né? Porque não tem outra igual”. No Capibaribe, Nélson não encontra apenas o material que será modelado. Alguma vezes, ele se refere ao rio como um ser vivo, ou melhor, como um amigo de quem foi íntimo no passado. Em outros momentos, parece estar falando de um brinquedo ou de um bichinho de estimação que marcou seus primeiros anos. E do qual ele sente falta.

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“Nasci e me criei naquelas dunas de areia. Se chama duna, né? Que era lindo aquela areia lavada. Era uma alegria. Como eu fui o caçula de casa, era sozinho, muito solitário. Hoje eu sou meio solitário, não sou muito de ter festa, já é de mim. Então tinha esse rio, que era onde eu conversava com ele e acho que ele me entendia”. “Minha vida foi sempre lá naquelas areias. Elas molhadas parecem assim, areias movediças. Quando eu via aquela areia, eu corria, pulava, só que não atolava.” A infância ficou para trás, o significado do leito seco permaneceu o mesmo para Nélson. A diferença é que, na adolescência e na juventude, o entretenimento, a brincadeira já não era solitária, mas compartilhada com todos os rapazes de Toritama e dos arredores. As cenas descritas por ele parecem absurdas para os meninos do século XXI, que costumam olhar para o rio que atravessa a cidade como uma pocilga repleta de sacos plásticos, garrafas pet, latas de cerveja e animais mortos. Uma pocilga azul da cor dos jeans, cuja tinta escorre das lavanderias clandestinas. “De tardezinha, quando todo mundo encerrava trabalho nos fabricos de calçados, tinha uma bola de borracha. Aí, todo mundo ia para o rio. Menino! Era assim, desde em cima até embaixo aqueles campos, tudo mundo jogando bola até anoitecer. Era uma festa, principalmente ali na ponte, a platéia enchia ali. Depois tinha aquele banho.” “A gente tinha, sabe, um ditado aqui quando era criança: quando nós íamos jogar bola na rua, das casas diziam: ‘Ei, lugar de jogar bola é no rio’, porque era lá que a gente jogava”.


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Espaço de diversão e lazer para crianças e jovens, o Capibaribe também desempenhava papéis diferentes na vida da cidade, a depender da época do ano. Enquanto ainda havia água empoçada, fazia parte do cotidiano das mulheres, que aproveitavam a água represada entre as pedras para lavar roupa. Depois, nos longos meses de estiagem, passava a ser vital para a sobrevivência do povo e dos animais. “Na escassez de água, a gente tinha que ir para as cacimbas, só que aqui na nossa área é muita pedra, com dois metros já é a pedra, então a água era pouca nesse setor daqui da cidade. A gente ia e cavava, o povo mais velho cavava as cacimbas”. “Era fila para pegar água com as latas e os potes. Sabe o que é pote, não é? Pote da asinha pequena. Na fila, esperavam juntar água, quando tava a porção de água, pegavam com as cuinhas. Sabe o que é cuia? Aquelas caçarolazinhas. Ou, então, uma latinha de queijo do reino, que é muito boa de pegar água e os ricos tinham, que eles comiam queijo do reino. Às vezes, a gente pegava aquelas baciazinhas e ficava na fila”. “As melhores cacimbas eram ali na ponte, embaixo, era onde dava cacimba porque a pedra era mais funda. Já lá fora da cidade, havia cacimbas mais profundas. Quando iam cavar era mais uma aventura: alguém saía batendo em toda casa: ‘Tá noite de lua, vamos todo mundo cavar!’ Quem não participava não pegava água. Nessas noites que eram claras, era uma festa. Ia toda a população ribeirinha, né? Aquilo era ouro pra gente”.

“Essa cidade já foi a capital do calçado, vendia sapato para todo Brasil. Toda casa tinha um fabrico de calçado. Toda vida Toritama foi uma cidade de indústria e comércio”. “Nós íamos, assim sabe, pra São Paulo trabalhar com calçado, que lá a gente ganhava mais como operário. Eu mesmo fui, sabe, pra lá, morar lá. E lá dava muito aparas. Entende? Aquelas garras de jeans, aí o povo daqui viu que aquilo dava para fazer gorros, bonés de jeans. Aí alguém trouxe umas aparas pra cá. Isso foi nos 60. Aí, começou um monte de fabricozinhos de gorro, entendeu? Fazendo pra feira, aquilo foi aumentando”. “Até que, depois, um senhor aqui chamado Eudim, nome popular, disse que queria fazer essa calça jeans e a gente nem aí. Nesse tempo, a gente chamava calça coringa. Pra ter uma calça de jeans, a gente comprava em São Paulo, a calça Lee, e a US Top, alguém lembra dela?” “Em São Paulo, minha mulher Neide, Neide Juvita, trabalhou lá na Staroup, registrada¹. Ela costurava, era costureira e foi trabalhar na Staroup, depois a gente veio pra cá, aí começou jeans aqui. Ela dizia: ‘Ah, eu trabalhei na Staroup’. O povo dizia: ‘Oh!’ Ela era quem fazia as mostras aqui pra esse primeiro fabricante, quem desenhava, quem fazia o molde, tudo. Ela ¹ Com carteira de trabalho assinada, recebendo todos os direitos trabalhistas.

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Nélson testemunhou as mudanças na economia de Toritama e suas conseqüências tanto no curso d’água que a atravessa, quanto no jeito de viver da população. Ele não foi só testemunha, foi protagonista. Além de se arriscar em São Paulo, tentou a vida trabalhando como sapateiro nas pequenas fábricas de sapatos que existiam na cidade. Quando o calçado começou a ser substituído pela indústria têxtil, os jeans ajudaram a sustentar a família antes de sua entrada na Compesa.


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parou porque a família aumentou mais e esse emprego meu ajudou na situação financeira”. Toda a degradação que se espalhou no Médio Capibaribe não desanima Nélson, que teima em enxergar soluções que irão garantir um futuro melhor. Convicto disso e de que a mudança para melhor não irá acontecer sem a participação ou pressão dos principais interessados, ele está presente em todas as mobilizações com foco no meio-ambiente e na revitalização do rio Capibaribe. “O mal é o nosso progresso. O povo das construções vinham até de Caruaru pegar areia aqui. Até expulsaram a gente do rio. E esse rio foi morrendo e nem sequer areia traz mais, vem assim uma enchente, ele passa e não tem mais onde pegar areia”. “As lavanderias novas recolhem água suja, lava e depois devolve ela limpíssima. Nesse caso, o custeio não é tão caro, não. É somente organizar as cidades. Por exemplo: Toritama tem esse plano pra limpar isso tudo da cidade em 10 anos”.

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No dia de São João de 1938, nasceu o filho temporão de João Joaquim Nunes, no Sítio São João, uma comunidade às margens do Capibaribe. A escolha do nome era óbvia e o garoto recebeu o mesmo nome do pai. O menino foi o sexto filho de Josefa Maria da Conceição a escapar da sina de ser enterrado no caixão branco de anjinho, como aconteceu com outros 15 antes dele. Àquela altura, João, o pai, estava com 73 anos e no terceiro casamento.

“De 1940 pra cá eu lembro tudo, de tudo eu lembro. O meu pai me sentava na perna e dizia: ‘Aquela nuvem de chuva por trás daquela serra ali pega Caruaru, pega Lagoa de Baixo’. Lagoa de Baixo hoje chama-se Agrestina”. Como o pai, João começou a vida na agricultura, depois, já casado com Maria José e pai de família, descobriu sua vocação para o comércio. Trabalhou como caixeiro-viajante, vendendo sapatos e outros produtos no agreste e sertão, mas nunca deixou de observar os fatos da natureza. Em sua memória impecável, guarda os detalhes, o dia, o mês e o ano dos acontecimentos importantes que viveu ou testemunhou, sempre relacionando tudo com as enchentes, secas ou vendavais que assolaram Toritama. Nada o encanta mais do que os arco-íris. Ele acredita que a aparição do arco colorido no céu é a confirmação da promessa que Deus teria feito a Noé de que a Terra não seria mais devastada por um dilúvio. Desde criança, João conta os arco-íris que vê no céu e registra tudo em cadernetas de anotações. Sua contabilidade revela um curioso padrão e um recorde que havia sido quebrado em maio de 2009, quando a entrevista foi realizada. “Anos de cinco, de sete e de nove são bons pra ter arco-íris. Esse ano já contei 43 arco-íris. O ano em que eu mais vi arco-íris foi 1949 e esse ano já passou. Em 1949 foram 35”. O interesse pelas cores do arco-íris só pode ser comparado à fascinação provocada pelo rio cheio, com suas águas velozes mudando a paisagem e arrastando o que encontra pela frente.

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O velho João morreu antes do sexto aniversário do caçula. Mesmo assim, mais de seis décadas depois, João ainda lembra dos momentos que, sentado no colo do pai, prestava atenção nas nuvens, árvores, pedras, nos pássaros e no leito do rio que ele lhe apontava. Sem forças para passar muito tempo na roça, o homem passava boa parte do dia no alpendre, com o caçula na cadeira de balanço. A natureza é o vínculo entre o filho e a memória do seu pai.


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De tanto observar, ele cita de cor detalhes e situações de várias enchentes que presenciou durante quase 40 anos, antes que as barragens construídas nas décadas de 70 e 80 domassem o Capibaribe. “Existia aqui em Torre de Taquaritinga na época, que hoje é Toritama, certo? Então, existia um cemitério na parte da cidade, ali na vila areial, vila não, povoado, porque aqui era vila e lá, povoado. Existia esse cemitério e na enchente de 1940, se não me engano, no dia 12 de março de 1940, o rio Capibaribe botou grandes enchentes, caíram várias trombas d’água lá na serra, perto de Poção, então ele botou essas grandes enchentes e carregou a metade do cemitério velho que tinha aqui em Torre de Taquaritinga. Isso foi nos anos 40. Eu tinha dois anos, mas eu me lembro, eu estou contando aquilo que vi”. “Agora, na enchente de 1947, deu uma trovoada num dia de domingo. Ela começou, provavelmente, de três horas da tarde para três e meia. Essa trovoada chegava da Serra do Vento, onde nasce o rio afluente do Capibaribe que chama rio Tabocas, por sinal, é onde foi feita a barragem, o açude Gercino Pontes, se não me engano. Foi isso mesmo, né? De 1972 pra 75, foi construída essa barragem. Quando foi na segunda de manhã, cinco horas da manhã, a cheia do rio passou, mas acontece que o rio era mais alto e tinha um campo de futebol na areia por trás. A água passou da frente da calçada da igrejinha do Sítio São João, entrando pro lado do povoado. Por trás, ela torou o muro das casas, por trás. A água tava numa faixa de 70, 80 centímetros pra lavar a ponte, mas não lavou”.

“Então acontece o seguinte: de 60 para 1977. Em 77, primeiro de maio, ela botou, passou ali. Eu vi o medidor: o soldado saía, levava uma lanterna bem grande e focalizava: quatro metros e meio, 4,70m... ela foi 5,08m, tá lá a baliza”. “Aí vamos pra 1981. Chegou aqui o inverno de 1981 do dia 15 pro dia 19 de março. A chuva engrossou e rio começou a botar grandes enchentes. Ela passou com seis a oito centímetros acima da enchente de 77. Eu digo porque sou testemunha: o soldado ia, focalizava e telefonava pra Codecipe¹, em Recife, fazia contato de 10 em 10 minutos. Teve uma hora que, quando chegou lá, já tava passando de 5,10m, aí ele assombrou-se veio correndo, depois ele voltou e já tava numa faixa de 5,16m. Foi aí que ele veio ligeiro pra telefonar pra lá. Isso foi já nas enchentes de 81. A maior que passou aqui foi no dia 23 de março de 1981”. Mesmo sem lembrar a data exata, ele recorda que, além dos entulhos comuns a todas enchentes, nas cheias do Capibaribe muita coisa esquisita passou rio abaixo. “O que vi de mais estranho passar por esse rio, lá em cima, lá em São João, foi muita cruz do cemitério de São Domingos, lado de caixão, tampa de caixão já estragada, que o rio levou do cemitério. Teve pessoas que acharam ossos de pessoas mortas”. A visão dos caixões de defuntos, arrancados do cemitério destruído rio acima, não foi a única ¹ Coordenadoria de Defesa Civil de Pernambuco.

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“Quando foi a partir do dia 5 de março de 1960, aí começou a chover, chuva torrencial mesmo, daí insistiu. Do dia 5 de março ao dia 10 ou 12 de abril de 1960, ele botou mais de 25 cheias grandes. Foi grande”.


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vez que João ficou frente-a-frente com coisas do outro mundo. Apesar de garantir que não tem medo de coisas sobrenaturais e não acreditar na existência das caboclinhas, a assombração mais lembrada pelos moradores do Vale do Capibaribe, ele conta, com riqueza de detalhes, seu encontro com um ser fantasmagórico na área rural de Toritama. “Em 1993, eu saí daqui cedinho e, quando cheguei onde tem aquele riacho, na frente da outra ponte. Aquilo ali se chama riacho das Barreiras Queimadas ou riacho das Onças, ele nasce lá perto da Pedra do Cachorro, lá de São Caetano. Quando saí da vereda e atravessei o riacho, quando cheguei perto do serrote, quando olhei, pensei que não, tinha uma mulher onde tinham uns tanques em que o pessoal lavava a roupa lá. Aí, lá vem aquela mulher. Eu digo: ‘Ôxe, de onde vem essa mulher a essa hora? Já sei, essa mulher foi bater pano e esqueceu do sabão, qualquer coisa assim, e tá voltando pra pegar’. Aí, eu continuei andando. Quando eu cheguei perto dela, eu olhei assim, ela tinha um chapeuzinho de palha na cabeça, um pano aqui bem amarradinho, um blusão velho, azul, mas já tava cinzento, uma saia no meio da canela, aquelas perninhas finas bem alvinhas, um chinelinho daqueles cruzados. Ela ali, já vem a mulher, e eu olhando pra ela. Eu pela vereda e, quando cheguei como daqui pra esse carro, eu olhei assim: ‘Ôxe, a mulher não vem andando, não?’ Ela vinha flutuando, sabe? Quando ela vinha chegando bem perto, eu disse assim ‘Bom dia, dona moça’. Eu não tive medo de jeito nenhum e pensei ‘se eu correr, eu me assombro’. Aí eu olhei pra trás e vi: ela não foi pra lá, nem pra cima de um pé de mamona, nem entrou na pedra. Ela desapareceu”.

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Aposentado, cercado de amigos, com oito filhos criados, bom contador de histórias e dono da memória a quem muitos vizinhos recorrem para lembrar de fatos importantes de suas próprias famílias, João Joaquim ainda queria mais da vida. Já estava perto de completar 60 anos quando tratou de realizar o velho desejo de tocar um instrumento musical, assim como seu irmão Antônio, cantador de viola que morreu em setembro de 1978. Aprendeu com facilidade e ganhou um apelido pelo qual se tornou conhecido: João do Cavaquinho. “Eu nunca tive professor. Meu professor foi Deus, primeiramente. Pra não dizer que não tive, tem um senhor ali chamado Elias, um grande músico, ele é maestro, mas de do-ré-mi-fá, não sei de nada. Agora, se eu escutar, tô com 71 anos, mas se eu escutar uma música cinco ou seis vezes, eu acerto. E acerto de ouvido”. “Às vezes, a gente vai fazer seresta. Tem um senhor aqui de Vertentes que chama a gente pra tocar em festa de aniversário, aí vai meu sobrinho cantando e eu acompanhando, mas eu gosto mais de cantar pros outros acompanharem, é melhor, é menos trabalho. Minhas músicas são de Nélson Gonçalves, Roberto Fioravante, Silvio Caldas, Augusto Carreras, Orlando Silva, Orlando Dias...” Cavaquinho, João só aprendeu a tocar depois da aposentadoria. Mas a verdade é que ele sempre foi festeiro e, desde os 16 anos quando deixou a casa da mãe, teve que aprender a conciliar a necessidade de trabalhar para sobreviver com o desejo de não perder uma farra. “Fiquei com minha mãe até o dia 22 de abril de 1954, depois arrumei uma casa e fui morar só, fui trabalhar. Eu fui criado batendo triângulo, tocando samba, limpando mato, tirando


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capim pra gado. Se era pra tirar quatro feixes de capim pro gado, pra de manhã beber um leitinho, então eu fazia o seguinte: se amanhã bem cedo era pra tira mais quatro feixes, sabe o que é que eu fazia? Eu tirava oito e botava quatro, deixava quatro já prontos pra de manhã bem cedo, porque de noite eu ia pra dança, uma légua ou duas pra tocar, brincar e dançar. E eu nunca briguei com ninguém, era aquela zoada, quando eu via um pantim de briga, eu saía e vinha embora”. “Depois que eu me casei mudou, a gente precisa entender que a responsabilidade de casado é outra coisa”. Voz baixa, fala mansa, João sabe que pode ensinar mais do que um rol de datas, nomes e números. Ele diz que, além de sempre fugir de briga, tentava resolver seus problemas de trabalho ou de família em paz. Uma de suas filhas, Maria Rosana, que acompanhou a entrevista à distância enquanto fazia o acabamento de peças de jeans encomendadas por um fabricante, balança a cabeça confirmando o que ele diz em tom de quem dá um bom conselho.

“Quem entra no mal, nele perece antes de chegar aos dias de vida determinado pelo Senhor. A educação é boa, mas ela parte daqui de dentro de casa, não é preciso o filho errar e a pessoa pegar ele e ficar batendo. Senta ao lado da mesa e vamos conversar”. “Aquilo que acontece de bom e de ruim com os outros é uma lição para cada um de nós, por isso que é bom ser calmo. Não existe todos os deputados federais, senadores e tais, que ganham milhares de reais por mês? Não tem precisão deles fazerem essas coisas erradas, mas então ele vai e faz, então aprenderam a ter educação pra quê? Para transmitir 70 ou 80% para o mal, quando devia ser 90% para o bem”.

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“Eu vou falar um assunto pra vocês. Talvez vocês não achem bom, mas eu vou falar. Eu gostaria que até o presidente da República soubesse disso, tá entendendo? Você sabe o que é? Eu vou falar para vocês: a educação é muito boa, agora 30.000 vezes melhor que a educação, isto é, abaixo de Deus e de Jesus, não é? Abaixo deles a educação é boa. Agora, existe uma coisa que pra mim é 30.000 vezes melhor. Vocês sabem o que é? Vou falar pra vocês que têm idade de serem meus filhos: chama-se inclinação. Se você sabe perdoar, tendo uma boa inclinação, você sabe perdoar, sabe respeitar, tá entendendo? Uma palavra branda acalma todo o furor, a perseverança vence toda a dificuldade”.



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As rochas que afloram na superfície, formando lajedos imensos, impedem que a água se acumule no subsolo e fazem de Cabaceiras, no Cariri paraibano, um dos lugares mais secos do Semi-árido. Foi de lá que a família de Maria Dalva dos Santos saiu na década de 1940, à procura de uma vida melhor. Seu pai viajou na frente com os dois filhos mais velhos. Meses depois, voltou com a boa notícia: levaria todos para Pernambuco, onde havia arrumado ocupação e moradia.

Tímida, Dalva passa a maior parte dos seus dias conversando com os vizinhos, nas calçadas de Capela Nova, andando com uma ajuda de uma bengala, item obrigatório depois que fraturou o fêmur ao cair no meio da rua, perto de casa. A máquina de costura continua na sala, sob a janela, mesmo lugar onde ela passava horas observando tudo o que acontecia no povoado, enquanto fazia roupas sob encomenda e criava cinco filhos. “Eu acho que, do povo todo que tem aqui, não tem cinco pessoas que eu não fiz roupa pra eles. Hoje ninguém se preocupa mais com isso, vai na feira, encontra tudo da maneira que quer e, do preço que quer, encontra. Quem vai pagar mais?” O hábito de comprar roupas prontas nas feiras de Toritama ou de Caruaru não foi a única transformação na vida de Capela Nova - uma única rua com casas de porta-e-janela de cada lado - testemunhada pelos moradores mais velhos do distrito. Também lá, a fabricação de jeans substituiu a agricultura como principal meio de vida. “O pessoal nessa beira de rio plantava muita verdurinha pequena. Era pimentão, era cebola, coentro, cebola verde, mas, hoje em dia, depois de querer tudo e comprar na feira, deixaram de plantar. Eu mesmo não passava sem um pé de cebola nem por dinheiro! Hoje em dia, o povo vive de negócio”.

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Dalva não tem boa memória para datas, mas lembra que estava com quase 20 anos quando começou a colher café em uma pequena fazenda em Taquaritinga, onde passaram a viver na casa cedida pela proprietária. Como ela nasceu em 1922, calcula que deixou a Paraíba em 1941, talvez 1942. Cinco anos depois, casou com Artur Patrício e foi morar na beira do Capibaribe, na comunidade de Capela Nova, que apesar de ser distrito de Vertentes, fica bem mais perto de Toritama.


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“Antigamente, quando começava o inverno, quando dava quatro horas da manhã, o pessoal ia passando já pro roçado. As mulheres, de madrugada, já começavam a fazer comida pro povo. Assim, quando dava aquela hora, não tinha ninguém, tava tudo no campo, tudo trabalhando. Hoje em dia, o povo trabalha não, só quer empreguinho e negociar. O povo não quer mais trabalhar, não. Essas vargens¹ eram tudo plantada de roçado. Hoje em dia, o povo não liga mais”. A água do rio não faltava. Maria Dalva faz uma revelação que contraria os livros e os estudos que asseguram que o Capibaribe só se torna um rio perene no trecho entre Limoeiro e o estuário, no Recife. A informação é confirmada pela filha Ivanise e pelos vizinhos que acompanham a conversa. “Aqui e acolá fica um taco de água, corre direto, sempre tem água. Nem que fosse um pouquinho, mas corria. E era boa a água”. A boa qualidade da água do Capibaribe já foi uma unanimidade na região. A julgar pelo que Maria Dalva conta, não há morador de Capela Nova que, logo depois da época das chuvas, não tenha tomado banho naquele trecho do Capibaribe.

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“Era doce a água, era como água de barreiro, era boa a água, hoje em dia, Ave Maria, até pros animais... os bichos não bebem. Muito poluída a água desse rio, mas a água era uma beleza. Nesse pé de serra que tem aí embaixo, o pessoal quando não queria pegar água por aqui, ia pegar lá, porque a água lá era doce, doce como mineral. Chovia de gente pra ir buscar ali em cima. Eu morava aqui e ia buscar água ali em cima no rio mesmo. A água chegava azul de tão boa que era, mas hoje em dia não serve mais pra nada”. “Começou a sujar quando encheu de lavanderia em Toritama. Isso faz mais de 25 anos. E, depois de Tabocas², a água ficou ruim. Depois que fizeram a barragem de Tabocas a água ficou ruim, porque quando a água vinha do rio era boa. A gente via logo, quando passava a enchente ela começava a avermelhar, ficava uma água amarela, todo mundo sabia que era água ruim”. “Toritama, há 15 anos atrás, não era nem a metade do que é hoje. Aí, aquelas sujeiras caem tudo dentro desse rio. Uma lavanderia hoje gasta 500 quilos de sal por semana. E o sal faz o quê na água? Vai ficar mais salgada ainda”. Dalva recorda uma tradição da Semana Santa que se perdeu por causa da poluição, quando as mulheres da vila permaneciam sem tomar banho durante os dias que antecediam a data sagrada, que marca a crucificação de Jesus Cristo. “Toda sexta-feira da Paixão, era tão bonzinho tomar banho no rio de madrugada. Quando passava a sexta-feira para o sábado, se juntava um bocado de mulheres pra tomar banho no rio. Era uma beleza, mas acabou”. As mulheres também se juntavam quase todos os finais de tarde para lavar roupa. Dalva assegura que, ao contrário do que é comum em outros povoados do interior, a lavagem de roupa era um ¹ O mesmo que várzea. ² A barragem de Tabocas abastece Toritama e Santa Cruz do Capibaribe.


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procedimento silencioso, sem música nem clima de festa. Apenas rotina. Muito diferentes eram os velórios em Capela Nova. Sempre que havia uma morte, as cantadoras de incelências se mobilizavam para que o morto chegasse ao outro mundo acompanhado de música. “Era uma alegria, era uma festa. O povo falava que, no dia que morria uma pessoa, era uma noite de festa porque tinha cachaça e canto. Bebiam tudinho, tinha delas que dormia debaixo do caixão. Deixa eu falar outra coisa pra vocês: olha uma cantadeira de incelência!”. A “cantadeira” é sua cunhada Leoniza Lucina da Silva, que chegou na casa de Dalva trazida pela curiosidade. Ela é uma das poucas remanescentes de um grupo de mulheres que não perdiam um velório por nada. Aos 78 anos, Leoniza vai ao fundo da memória, mas não consegue lembrar das estrofes que costumava cantar. “Ajunta os carregadores que o defunto que ir embora... Nossa Senhora das Dores... não é assim não... Já deu uma hora, que a cruz pendeu, ajunta os carregadores que o cortejo... não, sei não”. Muitas cantadoras de incelências também animavam a mais significativa expressão cultural do povoado: a mazurca. Quando se fala em mazurca, por sinal, as mulheres se emocionam ao recordar as rodas de dança que, nas festas juninas principalmente, se formavam diante da capela da comunidade. A filha de Dalva, Ivanise, corre para chamar sua prima Maria José de Jesus, a Sula, herdeira de uma estipe de mazurqueiras.

Ivanise sonha com o renascimento da mazurca, mas sabe que a tarefa não é das mais fáceis: “Não dá nem pra ensinar. Porque é um ritmo, não é? Você bate no pé, é muito difícil, entendeu? E tem os versos né, que são muito bonitos, é uma pena. Essa minha prima sempre fala: ‘Nise, vamos ensinar aos meninos’. Só que hoje, se a gente ensinar pra eles, vai ser aquele caso: ‘Ah, isso aí tá por fora’. Não tem som de música, é o pessoal cantando, batendo com o pé e a mão”. “Na escola a gente dançava. Nessa época do ano³ a gente se reunia e, como ela era a filha da mazuqueira, ela puxava muito”. A mazurca saiu da vida de Ivanise e de Sula quando, na década de 70, as duas foram viver em São Paulo com os respectivos maridos. Passaram anos sem dançar nem escutar as estrofes. Mesmo assim, Sula lembra dos versos que costumava cantar. “Por detrás daquela serra, ô morena, ô morena / eu tenho um pé de laranjeira, ô morena”. “Tem outro que é assim: ‘a mulher de Mané Amaro, mora no Alto do Bode / deixou de dançar pagode por isso me deixou / Tomaram meu amor, cadê a mulher de Mané Amaro / Mariano carregou, ô Amaro, ô Amaro”. ³ A entrevista ocorreu em maio, semanas antes das das festas juninas.

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Nesse momento, Maria Dalva passa a falar menos. Ela é uma das poucas mulheres de Capela Nova que nunca dançou mazurca, apesar do seu marido adorar a folia. Ela explica que não faltava interesse, mas a criação que recebeu do pai foi tão repressiva que ela não conseguia entrar na roda.


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“Bananeira chora, chora bananeira que o meu amor foi embora / da tua casa pra minha passa um riacho no meio / tu de lá dá um suspiro e eu de cá um suspiro e meio / bananeira chora, chora bananeira que o meu amor foi embora”. “Eu me criei ouvindo minha mãe falando e eu dançando, eu mesmo. Eu sempre tive paixão por dança antiga. Quem matou a tradição foi o progresso. Eu gosto de ir pra festa em Caruaru porque, em junho, eles botam as tradições.” Leoniza, a mesma que teve dificuldades para lembrar da incelência, não vacila para cantar estrofes da mazurca: “Hoje é de chuva, a noite é nublada / amanhã é dia de vento depois trovoada / nevoeiro desce, levanta / sustenta a pisada no som da garganta...” “E aquela: ‘Sete machados com 18 madeiras fina pra fazer meu tabuado / Meu tabuado é feito de madeira fina ô morena, ô morena / por detrás daquela serra tem um pé de carambola’”. “Maribondo miudinho fez a casa no matinho / veio o fogo e queimou tudo, maribondo levou fim / Ô maribondo oi, ô maribondo ai / Senhora dona da casa, bote a cabeça na porta / que eu quero lhe perguntar quantas galinhas tem mortas /ô maribondo oi ô marimbondo ai...”

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Entre agricultores, proprietários de poucas cabeças de gado, donas de casa, tocadores de viola e mototaxistas, há um homem cuja história de vida é incomum em um povoado como Duas Estradas, na área rural de Surubim, a poucos quilômetros do paredão da barragem de Jucazinho¹. Musculoso, atarracado, pele clara, cabelos crespos e loiros, Antônio Ângelo de Albuquerque não aparenta os 73 anos que tem. Seu corpo foi talhado pelos 21 anos como pugilista profissional, nos ringues no Rio de Janeiro e Recife.

“Fui com esse irmão para o Recife e comecei trabalhar em padaria, entregando pão nas portas das casas, em pacotinhos. Era o Cordeiro, o Cordeiro era a minha região. Sabe aquela vila onde tem o Hospital Getúlio Vargas? Eu entreguei pão ali em casa por casa. Aí, Geraldo, que depois chegou a coronel do Exército, arranjou um serviço pra mim, acho que eu não tava com 12 anos completos, num posto de gasolina na Madalena. Aos 11 anos, abandonei o negócio de pão e, dos 11 aos 13 anos, fiquei na bomba de gasolina. E dali, também fiquei como ajudante de missa. Eu sou católico e eu era ajudante de missa”. “Aí, um irmão meu foi se embora pra Paulo Afonso trabalhando na Chesf e me levou pra Paulo Afonso, só que eu não fiquei em Paulo Afonso. Ele foi direto para o Rio de Janeiro e me levou. Lá, ele montou um borracheiro pra ele. O que me levou pra Recife ficou, era o Biu, Severino, meu irmão. O que me levou pra Paulo Afonso, o que era da Chesf, era Manoel”. No Rio, a experiência em posto de gasolina lhe garantiu um emprego na mesma função. Antes de completar 15 anos, Antônio passava o dia abastecendo carros, contando os minutos para correr até a academia, onde começou fazendo exercícios do que ele chama de “Educação Física” e, logo, passou a treinar boxe. “Ali perto da minha casa, lá em Tribobó², tinha um rapaz que já treinava boxe. Eu me acordava às três horas da manhã para fazer Educação Física. Ele dizia: ‘Rapaz, você dá pro negócio. ¹ A barragem de Jucazinho abastece de água potável os municípios da região de Caruaru. ² Bairro de São Gonçalo, município da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, próximo a Niterói, antiga capital do Rio de Janeiro.

61 “Daqui eu tô vendo o mundo: é uma maravilha”

Se a profissão e o tipo físico distinguem Antônio dos seus vizinhos, o apego ao lugar onde nasceu é o traço que o une a todos que estão ao redor da ampla casa que ele construiu com os rendimentos de uma empresa de formação de vigilantes, sua principal atividade depois que abandonou o boxe. Ele saiu de Duas Estradas ainda criança, levado para o Recife por um irmão que morava no bairro do Cordeiro. Anos depois, outro irmão o arrastou para o Rio de Janeiro.


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E fazendo sombra, viu!’. Sombra é você pegar com o pé na frente do camarada, o cara abaixa, vai lá e bate, chama-se sombra. Quer dizer, o cara me treinou bastante e disse: ‘Eu vou lhe levar pro boxe. Você dá, rapaz’. Treinei bastante todos os dias, todos os dias. Aí, eu fui pra academia no Ginásio Caio Martins, em Niterói, onde é o Canto do Rio, né? De lá me tornei um campeão amador e segui minha vida como profissional boxeador. Fiz um contrato com o São Cristóvão de Futebol e Regatas, com um tal de Assis Sereno”. O boxe é o seu assunto preferido. Antônio é capaz de passar horas recordando os detalhes de suas muitas lutas e dos bastidores dos anos em que viveu como boxeador, época em que conheceu ídolos do esporte, como o medalhista olímpico Servílio de Oliveira e o campeão mundial Éder Jofre. Foi o esporte que o trouxe de volta ao Recife, contratado para uma série de lutas com transmissão pela TV. “Fui campeão... primeiro eu fui campeão fluminense do Estado do Rio, fui campeão carioca de amador, fui campeão brasileiro, vice-campeão brasileiro. Fui campeão carioca dos profissionais. Eu lutei com o campeão sul-americano, que era Celestino Pinto. Eu empatei com ele. Lutei com o Juarez de Lima, que era o quarto do ranking do mundo, lutei duas vezes e empatei. E, então, eu fiquei boxeando lá um bocado de tempo. Eu era meio-médio”.

“Na minha carreira, perdi duas vezes. Foram duas vezes ou foi só uma? Deixa eu ver... Olha, eu lembro de uma derrota. Só uma, porque o médico suspendeu a luta. Eu levei um corte no malar, sangrava muito. Ajeitaram, mas o sangue vinha demais, aí o médico veio parar a luta. Quer dizer que eu não perdi por nocaute, não, nunca! Nunca cai pra lutador nenhum do mundo. Foi por desistência, chama-se desistência médica. O oponente foi Antônio do Santos e, rapaz, o cara era craque, viu. Ele me deu uma pancada e sangrei muito, não tinha mais jeito”. Mesmo no auge da carreira, Antônio nunca deixou de visitar o pai, que trabalhava como marchante comprando e vendendo gado para abate, os irmãos, os tios e os primos na pequena Duas Estradas. Nessas ocasiões, para não perder a forma física, ele improvisava treinamentos nos barrancos às margens do Capibaribe ou entre os roçados da vizinhança. “Quando eu vinha visitar o meu pai e tinha luta fora, tinha que voltar com bastante preparo físico, então eu subia essa serra correndo duas vezes”. Nas visitas à terra natal, o boxeador fazia algo mais do que treinar e conversar com o velho João Ângelo. Ele buscava encontrar uma namorada entre suas vizinhas ou primas. Mesmo tendo sido noivo duas vezes com moças do Rio de Janeiro, ele sabia que iria se sentir mais feliz casado com alguém de Duas Estradas. Seria mais um vínculo com sua infância. De tanto teimar, Antônio acabou casando com Maria do Livramento, uma prima 16 anos mais jovem.

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“Depois, me contrataram no Recife, a TV Jornal do Comércio. Meu empresário de lá me contratou com o empresário daqui. A TV Jornal do Comércio, nessa época, era de Pessoa de Queiroz. Eu fiz 32 lutas no Clube Português. Fui campeão pernambucano, depois campeão do Norte ao Nordeste do Brasil”.


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“No Rio de Janeiro, segui minha vida, mas quando eu determinei em casar, eu disse: ‘Acho que essas moças daqui não vão dar certo pra mim, não. Eu vou para o interior procurar uma menina de pé no chão, parente, que eu conheça a família. É importante conhecer a família. Em momento nenhum eu durmo pensando que ela vai botar água quente no meu ouvido. Isso é só brincadeira, viu? Ela é minha prima. Eu conheço ela de pequenininha. Eu tenho 41 anos de casado. Eu sou um homem feliz. Eu me casei por escolher a pessoa com que eu ia me casar. Porque casar sem saber quem é a família da pessoa, é um problema. A moça pode ser uma santa, mas se a família não prestar...” “Cheguei assim e vi aquela menininha já grossinha, eu disse: ‘Não falei que eu vim pra ver se achava uma menina do interior, pé no chão?’ Então, eu escolhi ela. Quando vi a menina assim, mas eu digo: ‘Mas essa menina é muito nova!’ Mas era fortezinha, toda entroncadinha, do jeito da menina que eu gosto”. O interesse de Antônio deixou preocupada a avó de Maria do Livramento, afinal de contas a menina estava com 11 anos incompletos, era uma criança. E o pretendente um pugilista profissional, já com 26 anos, que costumava vir da capital federal cheio de presentes para os parentes.

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“Eu pensei: ‘Mas rapaz, não dá, não. Vou embora, vou voltar para o Rio sem namorada de novo. Eu disse a ela: ‘Olhe, venha cá. Dê um abraço. Seu primo vai para o Rio de Janeiro, mas daqui a dois aninhos eu volto. Ela fez assim: ‘Sai daqui troço!’ E me deu uma cotovelada. Com dois anos eu voltei e ela tava com quase 13, já uma mocinha que eu olhei. Eu, todo de terno, tinha chegado. Aí, eu olhei pra ela e vi que já pegava namoro. Eu digo: ‘Agora dá! Agora já pega namoro, agora dá!’ O namoro foi todo na beira do Capibaribe, onde Maria do Livramento ainda brincava de peão ou de pega-pega nas areias brancas do leito do rio seco. Cheio de pudores, Antônio ficou vermelho, encabulado, e não quis revelar nada sobre o namoro. Maria do Livramento, hoje com 57 anos, não se acanhou e contou tudo, inclusive os detalhes mais picantes. “Você quer ver um namoro quente? Era quando ele viajava e passava dois ou três meses lutando lá fora. Quando chegava, trazia aqueles presentes grandes pra mim, aquelas toalhas bonitas. Aí, a areia do rio era bem limpa, era um pátio, era uma neve, a areia do rio. Uma noite de lua bonita, com muitos daqueles caga-fogo que chamam agora de vaga-lume, antes de tomar banho nós forrávamos a toalha e namorava, se beijava. O namoro era primeiro lá, pra depois vir pra casa. Eu sei que a nossa vida aqui foi muito legal”. Antônio aproveitou e, ganhando por pontos do pudor, resolveu abrir o jogo sobre as conseqüências da fase mais quente do namoro, revelando um segredo da família: “Mas rapaz, esse namoro que ela falou no rio foi danado. Isso aconteceu uma vez, mas a mãe dela deu uma pisa nela que quase mata. Eu disse: ‘Agora nós vamos embora porque não dá mais não. Aí, eu carreguei ela, essa menina eu carreguei. Carreguei pra casar, é claro! Carreguei, fui pro Recife, fiquei três dias em Recife, voltei e me apresentei. Carreguei ela pra me casar”. Ao decidir morar no povoado, o pugilista aposentado comprou a casa onde nasceu e passou


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boa parte da infância, situada às margens da estrada de terra que liga Duas Estradas ao município de Salgadinho bem diante do Capibaribe. Nessa casa, viveu durante anos com a mulher e os filhos, alternando temporadas no “interior”, como ele diz, e em outra residência perto da empresa, instalada em Jaboatão dos Guararapes, na Região Metropolitana do Recife. Depois de uma crise de hipertensão, Antônio desistiu da capital e das preocupações da vida de empresário. Inicialmente, foi viver na velha casa às margens do rio, mas como ela estava bastante deteriorada, construiu uma outra bem maior, no alto de uma das encostas, de onde vê as serras cobertas de mata, o leito do rio, plantações e currais. “O ar é puro, um ar frio, paisagem bonita. Olha a visão daqui, gente. Eu acho que é a oitava maravilha do mundo. Deixaram esse cantinho pra mim. Eu vejo os quatro cantos. É muito bonito. É uma serra do lado, uma serra do outro... eu fico aqui sentado, serelepe. Daqui, assim, eu tô vendo o mundo: é uma maravilha”. Quando fala da vida em Duas Estradas, sua emoção é crescente, mas chega ao ponto de chorar toda vez que se refere à casinha que foi do seu pai. Durante a entrevista, em duas oportunidades ele tocou no assunto, mas não insistiu, contornando o tema sempre com lágrimas nos olhos. Finalmente, o ex-boxeador teve sua fortaleza nocauteada pelas recordações.

Muito emocionado, ele revela a razão de ser tão ligado ao imóvel, hoje quase em ruínas: “Mamãe morreu eu era pequenininho, tinha um ano e dois meses. Com quatro anos de idade, eu acho, foi a primeira vez que mamãe se apresentou pra mim nessa casa. Tenho certeza que é minha mãe. Eu vi direitinho: é mamãe. Aí, quando eu tô aperreado, mamãe vem a mim com aquela voz: ‘Tenha calma, Antônio’. Por último, agora, quando eu tava nessa casa, mamãe veio, sentou-se na cama e olhou pra mim, rindo assim, alegre, viu? Eu tava nessa casinha, tava curtindo a casa da minha mãe”.

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“Olhe, eu vim curtir a minha casinha. Eu queria curtir, eu vim curtir, então. Meus irmãos diziam, ‘mas Antônio, não faça isso, não. Você não precisa morar nessa casa’. Não é precisão, é amor. E amor não se compra. Tá bom, a casa já tá velha, tem de 120 para 130 anos, a chuva já vem derrubando umas paredes. Eu vou terminar derrubando e fazendo outra casa lá”.


“A água vinha borbulhando, já quentinha”

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A caminho do mar, o Capibaribe encontra o vigor de homens de pele curtida pelo trabalho sob o sol do agreste, homens que alimentam suas famílias com a ajuda das suas águas. O rio também é testemunha silenciosa da determinação de mulheres que se recusaram a aceitar o papel que lhes era destinado tanto por seus pais quanto por suas mães e avós. Mulheres com histórias de vida que, em qualquer lugar do planeta, poderiam simbolizar a luta pela autonomia e independência do sexo feminino.

Alaíde foi professora de uma escola municipal durante 30 anos e ganhava um dinheiro extra como bordadeira, mas foi a habilidade para manejar a máquina de costura que assegurou sua sobrevivência e uma vida confortável para sua única filha, Verônica. Ainda hoje, aos 87 anos, ainda tem energia e saúde para sentar-se na frente da máquina e dar conta de pequenos serviços encomendados por parentes ou amigos. “No dia em que comprei uma máquina, eu disse: ‘Nunca que eu quero me casar’. Já costurei muito aqui, primeiro costurei muito para a madrasta, para os meus irmãos, com 18 anos eu comecei a fazer tudo, aprendi a costurar, corte e costura. E eu nunca tenho tempo pra nada, quando eu pego uma coisa, já estou pensando em outra que já tá ali adiante”. “Desde solteirinha, desde criança eu gostava de ter o meu dinheiro. Com 13 anos, eu comecei a fazer casas de botão pra camisa. Eu tinha uma tia, que era casada com meu tio, que era costureira. Eu fazia as casas das camisas para ela e ganhava dinheiro. Logo, logo, eu fiquei pegando em dinheiro por conta disso. Eu tenho um neto que se chama Frederico que diz assim: ‘Vovó, eu só gosto do meu dinheiro’. Eu digo: “Faz muito bem, meu filho”. Independente, só casou aos 34 anos, idade em que a maioria das solteiras de sua geração já acreditava estar encalhadas, sem possibilidade de conseguir um marido. Depois de casada, nem considerou a opção de encher a casa de filhos. Uma filha com o primeiro marido, Inocêncio, foi o bastante.

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Alaíde Belarmino Araújo é uma dessas mulheres. Ela garante que lhe sobram motivos para sentir orgulho. A memória quase infalível, capaz de apontar as datas dos acontecimentos mais importantes da história de Salgadinho ou da vida das famílias vizinhas, é um dos motivos que a deixa envaidecida. O outro, ainda mais importante, é o fato de sempre ter sido capaz de se manter graças ao seu próprio trabalho.


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“Só me casei com 34 anos, porque eu não queria me casar. As moças se casavam e ficavam assim, arrumavam muitos filhos. Felizmente, eu só fui mãe de Verônica. E para as meninas que casam eu digo: ‘Um é pouco, dois é muito, três é demais’. Um filho dá pra se criar direitinho, com os cuidados que dá uma criança, é coisa séria, não é? Lá em casa, eu fui criada assim, pelo menos a minha madrasta era uma pessoa muito ciumenta com os filhos. Desde o primeiro filho, ela nunca mais saiu de casa, só ficava em casa cuidando dos filhos. Acordava antes dos filhos, quando dava o horário deles levantarem, já tava acordada, era assim. A boa mãe é assim mesmo, não é?” “Eu fui feliz, graças a Deus. Quando falam de marido, eu mesmo não tenho o que dizer, foram todos bons. Eu não sei se era porque eu tinha muita ocupação na vida, terminava uma coisa e já pegava outra. Meu primeiro marido, quando chegava o leite, distribuía 30 litros e o resto juntava, fazia queijo. Ele carregava o queijo, levava o queijo pra Limoeiro, vendia o queijo em casa. Era queijeiro”. “Faz 45 anos que eu moro nessa casa, eu fazia aluguel e pensava: “Não faço mais aluguel não, vou comprar uma casa”. Eu comprei essa casa. O dinheiro do meu esposo só dava pra o negócio dele, a gente morava num sítio e lá tinha umas vaquinhas, vendi e comprei a casa. Duas vacas pra comprar essa casa, tá vendo?”

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“Passei dez anos casada com ele, depois meu esposo faleceu. Eu fiquei sozinha, fiquei, fiquei... Depois, com dez anos de viúva, uma outra pessoa daqui começou a me perseguir e eu sem querer casar. Nunca vi um negócio daquele. Olhe, o médico do posto me dava conselho e tudo, dizia: ‘Mas não quer casar com Paulino?’ Quando foi um dia, eu disse que ia pensar. Mas valeu a pena, nunca vi gente melhor, não. O segundo era fazendeiro e só durou seis anos”. Antes da mudança para a área urbana de Salgadinho, Alaíde testemunhou o surgimento do turismo, atividade econômica pouco comum na Bacia do Capibaribe. Os primeiros visitantes chegaram atraídos pelas fontes de águas termais que afloram no solo do município, com dezenas de olhos d’água ao redor da cidade e, até mesmo, no leito do rio. “Foi aparecendo assim, eu me lembro muito disso. Toda a vida eu fui trelosa. Eu ficava brincando com as águas, cavava assim, lá no terminal da cidade. Eu me lembro que eu cavava assim com a unha, ficava botando a mão na água, cavava assim, a água vinha borbulhando, já quentinha. Eu tinha mais ou menos uns nove ou dez anos”. “Em 1930 foi quando chegou a dona Amelinha, eu tinha oito anos. Dona Amelinha era uma senhora que veio aqui e criou o hotel. Vinha muita gente nessa época, por causa da hospedagem, né? Antes, vinham umas pessoas, mas não tinha onde ficar, não tinha hospedagem. Foi quando fizeram o primeiro hotel, de dona Amelinha, esse daqui da rua”. A fama das águas quentes e milagrosas de Salgadinho – ricas em Cálcio, Magnésio, Potássio, Sílica e Sódio - espalhou-se rapidamente, chegando ao Recife e aos estados vizinhos, principalmente a Paraíba. Até o início dos anos 80, o movimento de famílias inteiras de turistas era intenso na cidade. A procura diminuiu, mas os dois hotéis da cidade ainda têm uma taxa de


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ocupação razoável e diárias com tarifa superiores a R$ 150,00. Alaíde dá um exemplo de sua própria família para atestar o poder curativo das fontes termais. “A quantia de banhos era dois banhos no dia, por 21 dias. As pessoas passavam esse tempo todo aqui e, todo dia eram dois banhos”. “Eu tenho um irmão, ele teve uma doença, como uma erisipela, na cabeça dele e da menina. Essa menina que eu falo, ela tinha o cabelo aqui, bem comprido, depois o cabelo começou a cair e teve que cortar. Eu trazia ela pra cacimba de Manoel Camelo, que tinha lá em cima. Vinha aquela água toda. É tanta água que é aquela beleza. E eu trouxe e sarou tudinho. Uma grande beleza. Só falavam que era de Manoel Camelo porque era na frente da casa dele. Eu vinha e dava banho nela todas as tardes, de quatro horas. Era aquela água fina”. Não eram apenas as fontes de água quente que eram usadas para banho em Salgadinho. O Capibaribe, caudaloso na estação das chuvas ou represado nos poços durante a estiagem, era o principal balneário da região. A exemplo do que acontecia em outros municípios, suas águas também tinham uma importância religiosa na cidade. “Festa boa é a de Natal. É muita gente, vem todas as pessoas dos sítios, né? Tinha as barracas, aquelas bombas, sanfonas, tudo isso. E tinha o Banho de Natal no rio. Era de manhãzinha, logo cedinho, antes do sol nascer no dia 25 de dezembro”.

Festeira, Alaíde recorda outra expressão cultural comum no agreste pernambucano e que, ao menos em Salgadinho, caiu em desuso. “Aqui tinha cavalo-marinho. Tinha uma brincadeira também que fazia assim com umas bonecas, é que eu me esqueço o nome, aquela brincadeira antiga, hoje não tem mais. O cavalomarinho era um homem vestido numa fantasia, vestido assim como um cavalo mesmo. Era pra brincar”.

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“Era animado, naquele tempo era animado sempre. Na festa de Natal, trabalhava o povo todo. Vinha sanfoneiro. Eu dancei muito aquela música de sanfona, tinha o Tiago Ramos, um sanfoneiro. Eu era dançarina boa. Tiago era tão bonitinho, mocinho. Eu conheci ele desde mocinho. As moças diziam: ‘Lá vem, lá vem, ah como ele é bonito!’ O namoro dele aqui era só de passagem, ele nunca teve namoro fixo, que eu soubesse não. Mas era sanfoneiro bom, ah quando ele abria aquela sanfona...”


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Tiago Ramos está completamente surdo. O mais conhecido sanfoneiro e poeta popular de Passira, hoje, é um homem de ar triste e poucas palavras que, sentado na calçada de sua acanhada casa, passa a maior parte dos dias quieto, observando o movimento do comércio próximo ao centro da cidade. Quando não está vendo o mundo sem escutá-lo, está na sala, lendo livros de histórias de páginas amareladas ou com caderno e caneta na mão, escrevendo versos sobre as coisas que viu, viveu ou ouviu falar.

Aos 84 anos, alimenta o sonho de publicar um livro com mais de 600 poemas, obra que iria se juntar aos quase 60 folhetos e livretos que já publicou. Editar o livro se tornou uma ideia fixa, uma verdadeira obsessão: “Tudo o que eu quero fazer na minha vida é esse livro. Eu queria ver se achava um patrocinador para fazer isso”. A música o tornou famoso, mas palavra escrita é sua paixão desde a infância. O pai, o cantador de viola Manoel Ramos da Silva, nunca deu importância à educação dos filhos. Tiago cresceu entre agricultores no Sítio Caçatuba, mas logo cedo percebeu que não tinha vocação alguma para a lavoura. Obsessão semelhante àquela que o motiva a insistir na publicação do livro, o levou a se alfabetizar. “Eu gosto muito de colecionar histórias. São coisas que eu tenho paixão: História, Geografia e Matemática, eu não aprendi com ninguém, meu professor fui eu mesmo. Quando fui para a escola, já sabia fazer duas contas e assinar o meu nome”. “Passava pela escola e escutava os meninos dizer bê-a-bá, bê-é-bé, fui decorando aquelas palavras, a carta de ABC. Ouvindo os alunos dizer as coisas, eu aprendi. E, depois, eu comecei a conhecer tocador de viola, os cordelistas nas feiras naquela época. No ano de 60, eu comecei a escrever as poesias populares”.

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Quando consegue reimprimir os folhetos de cordel que escreveu ao longo de décadas, o poeta os coloca à venda na feira ou nas festas da região, conseguindo um dinheiro extra para complementar a aposentadoria. Tiago sempre teve de lançar mão de múltiplos recursos e talentos para sobreviver. Como a poesia e a música nunca renderam o suficiente para garantir uma vida tranquila, também teve que trabalhar como marceneiro e pedreiro.


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“Tinha uma jangada pra atravessar de Pedra Tapada para São Vicente, que já era Limoeiro. Eram essas coisas assim, essa dificuldade, naquele tempo tudo era difícil. O sonho da minha vida era estudar, eu andava a pé até Limoeiro pra comprar livro, eu só andava com livro debaixo do braço. O pessoal dizia: ‘Tiago de seu Mané tá ficando meio doido, só anda com aquele livro debaixo do braço’.” “A professora disse: ‘Vão construir a escola’. Eu fiquei doido. Na escola daqui, minha primeira professora foi Maria Alves de Lima. Ela perguntou: ‘Você aprendeu com quem?’ Eu fiz até o terceiro primário. O terceiro ano primário, naquela época, é o segundo grau de hoje”. Tiago estudou, aprendeu e ensinou. Seu cordel de maior sucesso de vendas conta a história de Passira em versos. O folheto é comprado principalmente por alunos e professores da cidade. Isto o deixa orgulhoso, pois ele sempre alimentou o desejo de ver as crianças de sua terra bem informadas sobre o lugar em que nasceram. “Passira antigamente era Malhada do Boi. Esse nome já se foi há muitos anos, quando era um povoado, não tinha o nome da serra. Passira hoje é a terra da cerâmica e do bordado. Nos anos 40, foi mudado o nome para Passira devido à Serra da Passira. Foi o escritor Mario Melo, ele queria botar outro nome, mas disse: ‘Não, vamos botar o nome da serra’. Passira começou como Malhada, depois foi Malhada do Boi”.

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“Em Passira, tinha muita história. O povo daquela época tinha que beber água salgada na cacimba, ia buscar no Capibaribe, eram mais de 100 pessoas numa fila, esperando que a água jorrasse devagarinho para trazer um potezinho na cabeça”. Uma das coisas que Tiago gosta de lembrar é da cheia de 1975. Apesar de morar na cidade, situada numa elevação distante do curso d’água, e ter sido pouco afetado pela elevação das águas do Capibaribe, aquela enchente mudou sua vida. Por conta do talento como carpinteiro, foi contratado para fabricar os novos móveis da residência do casal Maximiano Campos e Ana Arraes, filha do ex-governador Miguel Arraes de Alencar, que, em plena ditadura miltar, vivia no exílio. “O que eu sei do rio e das enchentes, é sobre a enchente de 75. Tava ruim de vida, na minha arte não tinha inverno. Foi quando botei a mala de ferramentas na cabeça, fui trabalhar no Recife, fui parar na casa de Eduardo Campos”. “Eu tava trabalhando na casa de um fazendeiro que é daqui e conhecia muito a família de Arraes. Dona Ana pediu: ‘Seu Trajano, arrume um marceneiro para os móveis da minha casa, que os móveis estão tudo estragado, sujo de lama, acabou-se tudo’. Aí, o fazendeiro disse: ‘À tarde, a senhora venha cá, vou mandar ele. Aí, dona Ana foi lá me chamar. Passei 10 anos lá. Eduardo tinha 11 anos. Na época, o irmão dele tinha sete anos de idade, Antônio”. “Eduardo Campos, ele já grande, eu trabalhando lá, ele subia nas minhas costas e eu dava voltas com ele. Aí doutor Maximiano¹ dizia: ‘Deixa Tiago trabalhar Eduardo, sai daí’. Depois, eu fui trabalhar na casa de doutor Ariano Suassuna. Dona Zélia disse: ‘vamos comprar o material que falta’. Em todo canto do Recife tinha uma pessoa conhecida minha. Dona Zélia dizia: ‘Você é conhecido que só!’.” ¹ O escritor Maximiano Campos, já falecido, pai do governador Eduardo Campos


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“Mas aquela cheia de 75, ninguém nunca viu uma coisa daquela, não. A ponte velha de Limoeiro, quando dava cheia, só chegava até três metros da varanda pra baixo, mas, na cheia de 75, foram três metros da varanda pra cima. Arrasou com a rua da Barriguda: 140 casas, a água levou tudinho. A praça de Limoeiro, levou todinha. Ali ficaram mais de 10 barcaças socorrendo o povo, a gente ficou inundado”. Antes mesmo de conhecer a família Arraes, Tiago sempre gostou de acompanhar a política, além de colocar seu talento a serviço de alguns candidatos. Não todos, só para aqueles de quem gostava. Miguel Arraes era um deles. O outro era o famoso coronel Chico Heráclio, o mais famoso líder político do Agreste pernambucano nos tempos da riqueza gerada pelo algodão e pela cana-de-açúcar. “Muita gente achava ele ruim, mas, para mim, ele era bom demais. Quem não gostava era gente que comia dinheiro dele e votava contra”.

Apesar de seu afeto pelo coronel, Tiago deixa claro que não sente saudades da forma como a autoridade era exercida naquele tempo: “O povo hoje não que saber dessas coisas mais não. O Coronel Chico viveu aqui, na hegemonia, por uns 40 anos. Quando ele apontava ali, a pessoa já tava toda tremendo de medo. Isso acabouse! Medo de político acabou-se! Senhor de engenho poderoso como naquela época não existe mais não, eles estão é levando chumbo pelas costas”. O poeta não é respeitado em Passira apenas por conta de sua ligação com a família do atual governador. Sua intimidade com a sanfona, como forrozeiro do grupo Cangaceiros do Baião, é admirada pelos que ainda lembram ou ouviram falar de suas apresentações nas principais festas das cidades da região e de outros estados, principalmente Paraíba e Ceará. “Depois de aprender a ler, comecei a tocar um fole de oito baixos. Com o ouvido estourado, assim mesmo escutava alguma coisa. Comecei no fole de oito baixos, depois com a sanfona pequena, de 24 baixos. Depois Luiz Gonzaga me deu uma sanfona com 120 baixos, aquela dali que tá no retrato”. “A sanfona quem deu foi Luiz Gonzaga por intermédio do professor Vilaça², de Limoeiro, que me via tocar. Trouxe a sanfona, não era nova não, mas era boa. Inventei de ir para São Paulo e dei fim, se fosse hoje o pessoal pagava só para ver”. ² Professor Marcos Vinícius Vilaça, ministro do Tribunal de Contas da União.

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“Teve um comício do Coronel Chico lá em Limoeiro, no tempo de Miguel Arraes. Ele nunca tinha falado em comício, mas aí ele disse: ‘Francisco, vá anunciar que eu vou falar hoje a noite para o povo’. Foi aquele rebuliço medonho. Quando foi de noite, tava assim de gente, não cabia mais. Todo mundo queria ouvir o Coronel Chico falar. Quando foi na hora do comício, botaram um caminhão grande, luzes, uma banda de música. Aí lá vem o Coronel Chico. Tinha um caminhão alto, aí ele disse: ‘Segura minha mão aqui’. Um cara veio e empurrou a bunda dele, aí ele disse: ‘Tira a mão daí filho-da-puta!’ Foi uma risadagem. O que ele falou foi: ‘Eu vou apoiar Miguel Arraes, faz 14 anos que eu tô por baixo, agora eu vou apoiar Miguel Arraes’. Ele não sabia falar em comício, não”.


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“Eu andei muito pelo sertão, tocando sanfona por esse mundo afora. Arranjei muita namorada, as garotas faziam questão, batiam na minha titela. Hoje, as garotas quando me vêem, se torcem”. “Passei 35 anos tocando sanfona, depois veio essa... esse negócio do ouvido. Já abalei esse mundo todinho para comprar um aparelho para o ouvido e ninguém me ajudou, também agora não quero mais, já tô velho”. Do aparelho de audição, Tiago desistiu. Do livro de poesia, jamais. “A mocidade vai embora e não voltará novamente os dias de nossas vidas vão embora de repente isto é um grande exemplo a gente gastando o tempo e o tempo acabando a gente”

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“O tempo me envelheceu não tenho o que fazer perdi minha mocidade nada mais tenho a perder. O tempo descobre o tempo não tenho magoa do tempo que me fez envelhecer” “A velhice traz ao homem fraqueza e tremedeira, vista curta e catarata, reumatismo e cegueira, cabelo branco e calvície, e nervosismo e caduquice, disenteria e canseira”


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Não é novidade para ninguém que, durante muito tempo, fazer política no interior do Nordeste era uma atividade exclusivamente masculina. No agreste setentrional de Pernambuco, dominado pela herança autoritária do lendário coronel Chico Heráclio, não era diferente. Alaíde Guilherme Santiago, contudo, ignorou as tradições e os papéis destinados às mulheres de Poço do Pau, um vilarejo situado exatamente às margens do Capibaribe.

Quando estava perto de completar 60 anos, depois de muito viver e sofrer, sua inquietação não se limitou à vida doméstica ou ao trabalho como bordadeira. Alaíde se tornou cabo eleitoral dos candidatos de oposição aos governantes que apoiavam a ditadura militar. Participava de passeatas, discursava em comícios, pedia votos, trabalhava de mesária na secção eleitoral. Nas sucessivas eleições que se seguiram à redemocratização, desde meados dos anos 80, se tornou a principal liderança política de Poço do Pau, personagem imprescindível para aqueles que pretendiam se eleger prefeito de Passira. Aos 84 anos, ainda dá conselhos, orienta eleitores, mas sua atenção ora está reservada para os netos e sobrinhos, ora para os cuidados exigidos pela pequena propriedade da família. Quando não está cuidando da terra ou dos parentes, quase sempre está puxando conversa com os visitantes. Contar histórias da sua família, do rio e do povoado, aliás, é algo que Alaíde faz o tempo todo com desenvoltura. “Pai era agricultor. Ele morava lá em Araras, em João Alfredo, mas um tio meu chamado Napoleão adoeceu - ele morava em Passira -, mandou chamar meu pai e disse: ‘Olha Rafael, toma conta disto aqui que eu estou muito doente, vou embora para o Recife’. Nesta época, olhe, não tinha carro. Sabe como levaram ele pra Limoeiro? Numa cama, sabe o que é uma cama de lona? E lá, ele morreu. Aí, a gente ficou morando aqui mesmo, era um casarão, viu? A gente ficou morando aqui, morando, morando, morando... Meu pai depois comprou um terreno ali, construiu umas casas e teve sete filhos, a mais velha sou eu.”

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Ainda mocinha, contrariou o pai para se casar com um sujeito chamado José Neves, com quem teve uma filha e muitos dissabores. Em pouco tempo, já dava razão ao velho Rafael Guilherme Santiago. Dez anos depois de casada, tomou coragem para separar-se definitivamente, para espanto do restante da comunidade de agricultores, gente que, em 1955, raramente ouvia falar de esposas largando os maridos, por piores que eles fossem.


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Alaíde fala do ex-marido e do casamento desastrado sem ressentimentos. Pelo contrário, há bom humor quando ela conta os detalhes da vida conjugal, marcada por traições, ameaças, alcoolismo e a pouca disposição de José Neves para o trabalho. “Eu não tinha muito conhecimento com ele, não. A gente começou namorando, namorando, lá vai, lá vai. Meu pai disse: ‘Minha filha, não case com este rapaz, não, que não vai dar certo’. Meu pai tinha mais conhecimento com ele. ‘O que você precisar, eu lhe dou. Pode ser qualquer coisa, eu pago. Pago tudo pra você, só não pode casar’. Aí, eu me casei com ele. Fui morar numa casinha ali embaixo. Agora, todo domingo de tarde, todo domingo de manhã, ele ia lá pra baixo jogar jogo de dominó”. “Ele inventou de trabalhar no Recife, não sei em quê, só disse que ia trabalhar lá em Cavaleiro¹. Toda semana, tinha um rapaz daqui que ia vender galinha lá em Cavaleiro. Toda semana, quando ele voltava no sábado, eu ia lá saber: ‘Ele perguntou por mim?’ Ele dizia: ‘Conversou, conversou, mas nunca perguntou pela senhora’. Passou seis meses sem vir em casa, nunca perguntou se eu era viva. Aí adoeceu e voltou para casa”. “Aí botou pra beber,beber, beber. Como é que o povo diz? Dormia pra beber. Era bêbado direto, sem trabalhar. A irmã dele chegava lá em casa e dizia: ‘Alaíde, vá lá pra casa, lá vocês têm o que comer, toma café da manhã’. Zé Neves bebia os seis dias da semana, sem botar nada em casa. Eu vinha pra cá, minha mãe me dava umas coisinhas, eu levava café, fazia o café e bebia escondido dele, porque ele não queria que eu tomasse café”. “Uma vez ele pegou aqui, me levou e puxou a faca. Eu puxo pra lá, ele puxa pra cá... ele bêbado, né? Eu segurando na mão dele e ele puxando, puxando. Aí, ele soltou a faca e disse: ‘Ainda hoje, eu te mato’. E desceu pra beber. Eu vim pra cá, cheguei e disse: ‘Oh, minha mãe, eu vim embora, não aguento mais, não!’. Ela também não disse nada. Trouxe primeiro a minha filha. A rede da minha filha era a coisa mais linda do mundo. Antigamente, sal era em saco, não era? Eu peguei uns quatro sacos daqueles de sal, emendei um saco no outro e costurei, botei uma cordinha: era a rede da minha filha”. José Neves não passou muito tempo sozinho. Em um povoado chamado Cafundó, ele conheceu outra mulher, uma moça chamada Olívia, que foi morar com ele na mesma casa onde tinha vivido com Alaíde. O casal teve cinco filhos, mas, como todos já esperavam em Poço do Pau, o relacionamento não durou muito. “Ela chegou aqui e disse: ‘Alaíde, vai buscar teu marido’. Eu respondi assim: ‘Eu não quero nem de graça mais. O marido é teu agora, fica com ele. Não quero aquilo mais nada’.” Em 1970, José Neves morreu sozinho em um hospital do Recife. Muitos anos depois da separação, Alaíde voltou a tomar as rédeas do destino diante da necessidade de mudar a vida das bordadeiras da comunidade. Na década de 1980, o bordado artesanal era a principal atividade e fonte de renda das mulheres de Passira, incluindo Poço do Pau. O problema é que elas trabalhavam muito, mas não conseguiam bons preços na hora de ¹ Na verdade, Cavaleiro é um distrito de Jaboatão dos Guararapes, Região Metropolitana do Recife.

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“Graças a deus, ele nunca bateu em mim não, mas não bateu porque eu corria”.


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vender as peças para os atravessadores. Alaíde criou então uma cooperativa de bordadeiras. Com a cooperativa, as mulheres de Poço do Pau passaram a vender o bordado diretamente para os compradores em Passira e nos centros comerciais da capital pernambucana. Com o sucesso, aumentaram as encomendas e a necessidade de dedicar mais tempo ao trabalho. Assim, as crianças não tinham com quem ficar. Mais uma vez, a liderança de Alaíde ajudou a comunidade a superar o obstáculo. “Eu bordava, recebia os bordados, lavava o bordado, engomava, fazia tudo e levava pra cooperativa. Aí, chegou uma menina que me ajudava aqui e disse: ‘Ó Alaíde, vê se tu arruma pra gente formar uma escolinha aqui. Eu disse: ‘Eu vou, Inês. Vamos fazer uma escola para as crianças’. Eu formei uma creche aqui e fui falar com o prefeito. ‘Seu prefeito, eu montei lá uma crechezinha. Agora, quero saber como é que eu faço, porque já tem merenda, mas precisa da professora e de uma merendeira’. Arrumei uma professora ali de Caçatuba e trouxe um merendeira que, ainda hoje, trabalha lá. Isso foi em 84, quantos anos fazem? 25 anos! Ela ainda trabalha na creche, ela se chama Maria da Graça Ferreira”.

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A credibilidade de Alaíde em Poço do Pau só não é maior do que a sua fama de contadora de histórias. Sempre que surge um visitante querendo saber algo a respeito do passado da comunidade, os moradores indicam a casa da bordadeira aposentada, numa extremidades da única rua que corta o povoado, cujo terraço dá para o Capibaribe. Até para uma emissora de TV ela já deu entrevista. Uma de suas histórias favoritas é sobre a esquecida rivalidade que existia entre a próspera Limoeiro e a minúscula Poço do Pau. “Eu digo que Limoeiro deve tanto a Poço do Pau. Falam que Limoeiro tá crescendo, tá crescendo, mas não falam porque Limoeiro deve a Poço do Pau. E deve muito. Tinha uma santa. Essa santa o povo chamava Nossa Senhora da Apresentação. O padre de Limoeiro, Padre Ponciano², mandou os índios roubarem a santa daqui, dessa casinha que fica ali. Aí levaram a santa e chegaram lá no pé de limão, botaram a santa. O povo daqui fez uma procissão e trouxe a santa de volta. Botaram na casinha, mas como a casinha não tinha porta, o padre mandou roubar de novo. O povo foi buscar em procissão. O padre mandou buscar mais uma vez, colocou no pé de limão e disse que a vontade da santa era que a igreja fosse ali e não em Poço do Pau”. Olhando o rio do terraço, ela lembra dos banhos de lama negra que deixavam os cabelos mais sedosos nos seus tempos de menina, mas reclama dos seus vizinhos, que, segundo ela, agridem o Capibaribe diariamente. “Eu, garotinha, tomava banho nesse rio. Aqui tinha uma barreira assim, bem alta. A lama da barreira era bem pretinha. Era aquela turma de menino, todo mundo tomando banho, né? Quando terminava, vamos lavar os cabelos. Lava com lama o cabelo, pegava aquela lama e lavava os cabelos. “Hoje o pessoal joga lixo assim. Eu digo: ‘Menina, uma coisa dessa não se faz! Toda quarta feira o carro de lixo passa. Ajunta o lixo, menina, ajunta o lixo! Bota no carro do lixo, o carro ² O padre Ponciano Coelho viveu no século XVIII e foi responsável pela elevação de Limoeiro à condição de vila


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do lixo toda quarta feira passa. Pra quê você joga lixo dentro do rio?’ Ali tem uma bueirazinha que tá dessa altura de lixo. Ó, é lixo, é lixo, é lixo de toda qualidade”. Na altura do vilarejo, o Capibaribe tem vários “poços”, pontos mais profundos nos quais, quando a água está correndo na época das chuvas, se formam áreas que eram usadas pela população para mergulhos, banhos e pescarias. Alguns desses poços tem nomes curiosos, a exemplo do próprio nome do povoado, que cresceu próximo a um poço onde havia um tronco de árvore morta na margem. “Tem a Volta de Regina, tem o Poço do Facão. Meu pai contava de uma briga muito grande ali embaixo. Quando o cabra correu e o outro não pôde matá-lo, ele pegou o facão e jogou dentro do poço que tem ali”. “A Volta de Regina é porque ali tem uma casa velhinha. A dona da casa chama-se Regina e ela casou com um rapaz moço, moço, que chamava-se Antônio Rufino. Ela tinha uma filha que era chamada Maria. Ela mandou a filha embora e foi morar na casinha que tinha aqui. É por isso que chamam a Volta de Regina. E tem o Poço de Alaíde. Por que é Poço de Alaíde? Porque fica no meu terreno”.

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Quando o Capibaribe chega a Limoeiro, encontra o que sobrou de um tempo em que a riqueza cruzava a velha ponte em forma de algodão, cana-de-açúcar, gado e do intenso movimento gerado pelo comércio daquela que já foi a mais importante cidade do interior de Pernambuco. Às margens do rio, havia dezenas de fazendas cujos donos conheciam a extensão do próprio poder. Abandonadas ou sem manutenção há anos, suas casas-grandes foram construídas de frente para o rio, responsável direto pela fertilidade das terras, prosperidade dos seus proprietários e felicidade das crianças.

“Nós éramos muito amigos da família de Chico Heráclio. A irmã dele era professora, foi a minha primeira professora, dona Isaura Heráclio. Ela era uma criatura maravilhosa, caridosa, boa. E ele era como todo mundo já sabe: gostava muito de mandar, era rigoroso assim e fazia das dele, né? Mas, em si, não era um homem mal, não”. “Tem um fato muito engraçado, engraçado não, uma coisa que eu tenho que contar porque eu vi também. Meu pai e minha mãe sempre foram muito caridosos e tratavam bem a todos. Uma vez, o pai dele veio com uma comitiva das terras dele, lá de Vertentes, chamavam até de Vertentes dos Heráclio¹. E ele, então, ficou febril, vinha a cavalo, né? Não aguentou mais, aí parou lá em casa e papai o recebeu, o acolheu. Mamãe gostava muito de dar remédios homeopáticos àquela redondeza toda, para as crianças que estavam doentes. E ela fez tudo isso para o pai de Chico Heráclio. Meu pai mandou os empregados tomarem conta dos cavalos. Depois disso, o Chico Heráclio ficou com certa atenção para o meu pai e minha família. Não que a gente fizesse campanha pra ele, nem nada não, era tudo somente no ponto de amizade”. Nos tempos áureos, Limoeiro convivia, simultaneamente, com a prosperidade e o Capibaribe limpo. O rio era fonte de água para a agricultura e espaço de lazer para as crianças e os jovens, ¹ Vertentes dos Heráclio situa-se na Zona Rural do município de Bom Jardim, a 18 quilômetros de Limoeiro.

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A importância de Limoeiro na metade do século XX era personalizada pelo poder político de Francisco Heráclio do Rego, o coronel Chico Heráclio, um dos líderes políticos mais importantes do estado nas décadas de 50 e 60. A família de Maria José Rodrigues da Silva sempre manteve relações cordiais com os Heráclio e a imagem do velho líder está bem viva em sua memória. Professora aposentada, Maria é a caçula dos 12 filhos do comerciante Domingos Rodrigues da Silva e de Júlia Guimarães Rodrigues. A família era uma daquelas cujas terras, o Sítio São Domingos, ficava na beira do rio.


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que aprendiam a nadar em suas águas. Maria José tinha medo da correnteza, por isso suas lembranças são quase sempre das brincadeiras no solo firme da margem ou de banhos rápidos nos trechos mais rasos. “Dois ou três dias depois das cheias, meu pai ia verificar se já dava pra tomar banho e, então, era a alegria de todos nós. Os menores ficavam mais na beirada e os outros aventuravam-se nadando até mais adiante e, então, as brincadeiras surgiam. Ficávamos na margem e um de nós, então, pegava uma pedra e começava: ‘Galinha gorda!’ Nós respondíamos: ‘Gorda é ela! Vamos comer, vamos a ela. Qual é o melhor da galinha? É a titela, vamos a ela’. Ele jogava a pedra e todos nós caíamos na água. A água era tão límpida! Era festa, era o triunfo de quem achava a pedra”. “Eu nadava pouco porque da minha família, eu fui a última, né? Eu fui a mais nova, era menos afoita do que as outras, mas a maioria atravessava o rio. Tinha umas pedras que ficavam salientes e, quando a água baixava, aparecia os picos das pedras, do outro lado da nossa residência. Eu tinha uma irmã que era foguinho mesmo na natação, nadava e ficava lá no topo da pedra, chamando as outras e criticando o medo, a fragilidade das outras. Um dia, essa minha irmã salvou uma outra amiga que ia se afogando. Ela estava na pedra e a amiga foi nadando, querendo imitar, mas perdeu o controle e foi se afogando. Minha irmã, que estava no topo da pedra, jogou-se sobre ela, arrastou para a pedra e, ali, meu pai e meus irmãos foram e salvaram ela”.

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Uma ou duas vezes ao ano, as cheias do Capibaribe mudavam a rotina da cidade. O fenômeno natural era um grande acontecimento que, vez ou outra, deixava marcas na paisagem quando destruía casas, levava móveis, matava animais ou arrasava plantações. Para Maria José, as temidas cheias eram um mal menor, os benefícios de viver junto ao rio compensavam, com folga, os transtornos da época das chuvas. Um dos maiores estragos ocorreu em 1924, ano em que Maria José nasceu. “Quando chegavam as enchentes no rio Capibaribe, meu pai ia em primeiro lugar observar tudo, quando passava o grosso com aquelas coisas, as sujeiras, madeiras, muita coisa de casas que tinham sido destruídas. Ficava tudo pelas margens quando passava”. “Meu pai contava que, em 1924, chegou até a calçada da casa. Ele já tinha arrumado com minha mãe os pertences para saírem. Mas, segundo ele contava, tinha um cidadão que chegou e disse assim: ‘Compadre, o senhor não vai sair não’, aí passou o dedo, ele estava até descalço, passou o dedo assim perto de onde estava a água: ‘Daqui ela não vai passar’. Não sei por qual razão, se foi abençoado por deus ou foi muita fé, sei que a água foi voltando e não passou daquele risco”. “Agora, houve outras cheias perigosas, né? Inclusive, se não me engano, no ano de 1955. Uma parte da família já estava aqui nessa casa da cidade. Ficou lá uma empregada, que era como uma babá, ela ficou com a outra minha irmã ajudando lá, não é? O sítio tinha muita coisa ainda, mas essa cheia foi tão forte, tão forte, que acabou muita coisa lá perto da Pirauíra² e entrou na nossa casa, estragou muitos móveis, derrubou paredes, levou muitos móveis, marquesas bonitas, antigas”. ² Bairro na periferia de Limoeiro


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“Essa cheia grande entrou lá pela... Sabe onde tem a passagem molhada lá depois da Pirauíra? Onde tem uma capela? Pois bem, ali, essa grande cheia invadiu tudo. Atingiu tudo, veio água até próximo ao açougue. Lavou um pouco a ponte velha, depois ela cedeu”. “Fora isso, era uma benção esse rio, era gente pescando, muitas lavadeiras, todo mundo se aproveitava daquela água. Era uma tranquilidade, era bonito ver o rio”. Assim como aconteceu em Capela Nova, onde as mulheres se banhavam nas águas do rio na Sexta-feira da Paixão, a poluição extinguiu uma tradição religiosa mantida pelos católicos, o Banho de São João. Maria José diz acreditar que a sujeira tomou conta do rio depois da inauguração do hospital cujo lixo, segundo ela, era jogado direto no Capibaribe. “Na minha casa mesmo, uma senhora que era amiga da minha mãe foi passar o São João lá na minha casa e, então, quando deu a noite de São João, saíram cantando e foram tomar banho no rio. Cantavam ‘oh, meu são João, eu vou me lavar, minhas mazelas na água eu vou deixar’. Depois que tomavam banho era assim: ‘Oh, meu São João, eu já me lavei, as minhas mazelas na água eu já deixei, para o ano eu vou voltar, se o senhor São João me ajudar’.” A vida no Sítio São Domingos era muito movimentada. O pai de Maria José, Domingos, era um homem diferente dos seus contemporâneos e conterrâneos. Ele amava as artes e, em uma época em que as mulheres eram condenadas a servir aos pais e, depois, aos maridos, estimulava suas filhas a estudar.

“Minha irmã Cosma estudou no Recife e, quando ela voltava nas férias, sempre trazia as amigas, as colegas que moravam lá e que tinham muita vontade de conhecer o Interior. Elas ficavam lá na nossa casa, no sítio, e minha irmã, que era muito afeiçoada ao teatro, preparava, estudava com as colegas as peças teatrais, com os irmãos menores também”. “Quando ela chegava, preparava o palco. A sala do sítio era muito grande, aí ela tirava as portas dos quartos pra poder fazer o cenário, com caixotes fazia os móveis da peça. A vizinhança toda vinha assistir. Ah, eram peças maravilhosas! Um dia desses, eu tava procurando coisas por aí, encontrei uma peça enorme que elas ensaiaram. Tinha uma parte infantil para os menores da família, né? E tinha as histórias romanescas”. A sede de conhecimento de Domingos era imensa, coisa que seus pais agricultores descobriram logo cedo, no sítio onde ele nasceu, próximo a Bom Jardim. Apesar de sustentar a família com duas lojas, uma de tecidos e outra de cereais, seu maior interesse era outro, bem diferente da rotina do comércio.

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Domingos era ainda mais ousado: suas filhas mais velhas faziam teatro, atividade que a elite nordestina comparava à prostituição. As moças chegaram a montar inúmeras peças na casa da família no sítio. O resultado é que, ao alcançar a vida adulta, seus filhos desenvolveram algum tipo de atividade artística. Teotônio, por exemplo, era poeta, teatrólogo e redator. Amâncio também trabalhou em teatro além de ter sido cantor e dançarino. Teodora era pintora e escultora.


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“Vou lhe dizer a história do meu pai. A família dele era grande, parece que cinco irmãos e três irmãs. Trabalhavam na roça, todos analfabetos. Meu pai tinha uns 12 anos, quando veio um professor desses de aldeia, né? Abriu uma escolinha, como ele dizia, para desarmar os meninos. Meu avô colocou os dois mais velhos na escola. Meu pai ficou pra morrer porque os dois mais velhos não tinham vontade de estudar, era aquela coisa, sempre reclamação. Aí, meu pai olhava... ele nasceu no Domingo de Espírito Santo, por isso que ele foi assim. Aí ele disse: ‘Ó pai, porque o senhor não faz o seguinte: no dia em que Antônio e José não forem pra escola, deixa eu ir no lugar deles? O pai falou com o professor. Ele teve oito dias de escola, mas aprendeu a ler e a escrever. Agora, o que é que ele fazia? Quando voltavam da escola iam lá pro roçado, né? Nas folgas do roçado, ele ficava embaixo de uma árvore, escrevendo no caderno dele”. “Um dia desses, eu encontrei uma carta dele, escrita por ele. O papel já amarelado e tudo, mas eu trago como uma relíquia. Ele aprendeu a ler assim. Agora, ninguém fazia conta melhor do que ele, mentalmente. Podiam perguntar o que quisesse e ele, pá, na hora respondia. Escrevia e lia, era louco por cordel, decorava até cordel”. “Ele tinha um livro chamado Lunário, ele escrevia tudo naquele Lunário, sabia quase tudo da Lua. Tinha criaturas que estavam pra ter criança que iam lá e ele dizia: ‘Você vai ter menino em tal dia, por causa da fase da lua’. E era exato. Agora, tinha uma história de cordel que ele gostava muito, A Donzela Teodora. Ele pôs numa filha o nome de Teodora”.

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Dos 12 filhos, oito eram mulheres. Todas estudaram no Recife e seguiram carreiras diferentes – duas delas se tornaram freiras. Maria José também estudou longe de casa, na Academia Santa Gertrudes, no Alto da Sé, em Olinda, para onde foi com 17 anos, poucos meses antes da morte de Domingos. Na Academia, concluiu o pedagógico e tornou-se professora, carreira que seguiu até a aposentadoria. “Eu quis ser professora. Foi minha escolha. Gostei muito de ser professora e, graças a Deus, formei muita gente”. Maria José mora no centro de Limoeiro, com a sobrinha Júlia, e está escrevendo um livro sobre a história de sua família. E, herança do pai, tem alguns poemas inéditos, mas não sonha em publicá-los, pois fica encabulada só de pensar na possibilidade de estranhos lerem o que escreve. “O livro se chama A Corrente dos 12 Elos. Eu estou começando pela casa, meu pai, minha mãe, depois a irmã mais velha, na seqüência”.


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A paisagem de Ribeiro Grande, distrito de Limoeiro às margens do Capibaribe, já não é a mesma com a qual os moradores mais velhos do povoado se acostumaram na juventude. O lago artificial da Barragem de Carpina mudou o curso do rio e de alguns dos seus afluentes, como o Cotunguba, inundou povoados, desalojou e dispersou a população da região. Para João Berto da Silva, porém, foi apenas mais uma mudança em sua vida em permanente transformação.

A descoberta da vocação para comprar e vender surgiu aos 20 anos e espantou seu pai, homem acostumado a viver da terra e dos seus frutos. Sem nunca ter colocado os pés em Recife, foi até a capital comprar mercadoria para revender aos vizinhos e aos moradores dos outros vilarejos próximos a Ribeiro Grande. “A minha vida foi uma vida atrapalhada desde o tempo que eu era novo. Era um tempo muito atrasado, não tinha transporte, não tinha nada, a vida da gente era trabalhar alugado. Dessas terras por aqui, eu sei contar buraquinho por buraquinho. O povo tinha um dizer que, quando o umbigo dos meninos caía, jogava na água para nadar ou no mourão da porteira para ser fazendeiro. Então, o meu umbigo papai enterrou aqui. Só criei gado, trabalhei e fui me arranjando, quando foi em 1944, trabalhei e fui juntando uns trocados, mandei papai vender meu algodão e fui para o Recife. Comprei miudezas e saí negociando. Então, comecei no comércio em final de 44 vendendo miudezas”. “Em 1950, botei uma barraquinha lá embaixo, essa daqui é nova, faz só 14 anos. Depois que eu fui roubado, passei para essa daqui, fiquei com medo, saí de lá de sete da noite, o cara ficou me arrodeando e eu com medo que ele me matasse. Isso foi aqui mesmo, lá

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João Berto fez de tudo um pouco em seus 86 anos de vida. Nasceu em uma família de agricultores, mas logo sentiu que era inquieto demais para capinar e plantar. Virou comerciante, aplicou injeções, fez curativos, foi agente de polícia, sindicalista, pescador e cortador de cana. Só não foi político porque recusou o convite de um partido para se candidatar a vereador. Mesmo aposentado como trabalhador rural, continua cuidando de sua mercearia, atividade que nem sequer considera como um “trabalho, trabalho mesmo”.


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embaixo, perto da ponte, eu tenho um terrenozinho lá, herança da minha mãe. Aqui, eu tô perto de casa, quando dá seis horas eu fecho e vou embora”. “Comprava as miudezas no mercado de São José, na rua das Calçadas. Ali, eu mexia com tudo, eu mexia por ali tudinho. Comprava ovos aqui, embalava e levava para Recife”. Na mesma época em que passou a viver do comércio, João Berto aprendeu a pescar nos trechos mais profundos do Capibaribe, chamados de poços. Nas horas da pescaria, confundiam-se a luta pela sobrevivência e o prazer, a diversão. “Quem morava perto, pescava. Trabalhava na roça e era pescador. Trabalhava de dia e, à noite, ia pescar. Eu também gostava de pesca com vinte e poucos anos. Eu gostava de pescar e saía pra pescar de noite no Capibaribe, eu não tinha medo não”. “Era muito peixe! A gente pegava Carapeta, Cari, Piaba, era um bocado de peixe, todo tipo de peixe tinha. Hoje, os peixes que aparecem por aí são diferentes. Para melhor lhe dizer, dos que apareciam antigamente só tô vendo Traíra e Piaba, o Cari ainda tem, mas o jacangá, jundiá e sambararu eu não vi mais”. “Homem, tinha muito pescador! A história é essa que eu tô contando, o que eu fazia eles faziam também. Desses pescadores que existiam aqui daquele tempo, só tem eu, o resto morreu tudinho”.

“Nadar, eu nadava muito, tinha medo não, na água eu não afundava. Eu era menino, o povo ia pescar nesse rio aí, as mulheres pisavam no peixe e gritavam: ‘João, vem tirar esse peixe do meu pé’. Eu mergulhava e tirava. Eu nadava cachorrinho, nadava de braçada, nadava de costas, nadava de todo jeito. Acho que já nasci sabendo. Quando eu entrei na água, fui logo nadando. Tem gente que bate na água e afunda, eu não”. “Hoje, eu não entro mais na água. Hoje, eu tenho medo da água. Um dia, o rio cheio, o de lá, que tinha muita força... Um dia, a gente brincando pra lá e pra cá, tinha um redemoinho no meio e, vai lá e vem cá, sei que na última que eu vou, dá uma câimbra nas duas pernas e o redemoinho puxando, escapei da boca do redemoinho, escapei fedendo, mas escapei nadando de costas, com as pernas paradas, movia só os braços. Aí, fiquei com medo de rio cheio”. As múltiplas atividades e talentos de João Berto ajudaram a fazer de sua mercearia um ponto de encontro para os moradores de Ribeiro Grande e arredores. O movimento aumentou depois que ele fez um curso no Recife e aprendeu a fazer curativos e a prestar os primeiros socorros. Depois disso, se transformou em agente de polícia voluntário, uma

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Muito antes de aprender as artes da pescaria, ele já nadava tanto nas águas do Capibaribe quanto nos poços do pequeno Cotunguba. Já adulto, levava os filhos para brincar nas águas do rio, incluindo a caçula, Érica, que nasceu quando João já tinha passado dos 60 anos. As aventuras no rio foram deixadas de lado porque, logo depois de uma enxurrada, quase morreu afogado no Cotunguba.


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atividade que não rendia um centavo de salário, mas conferia ao portador do distintivo algum prestígio na comunidade. “Eu aqui fazia curativo, aplicava injeção, pegava vacina no posto e saía vacinando nas escolas. Aqui mesmo, eu apliquei 60 injeções numa mulher, todo dia era uma injeção e eu sem saber qual era a doença dela. Como eu era prevenido, minha agulha era fervida, eu não contaminei ninguém. Depois ela desapareceu, tiraram ela daqui para Recife, passou um bocado de tempo e me disseram que ela tava tuberculosa. Para melhor lhe dizer, a primeira injeção que eu apliquei, apliquei em mim. Ponto, sutura, eu fazia, se alguém levasse um corte, eu ponteava. Eu hoje esqueci de tudo, mas aprendi muita coisa porque participei de um curso lá no Regina Hotel, no Derby, de cinco semanas. Esse hotel ficava na beira do Capibaribe, mas em 1975, quando a cheia veio, comeu a metade dele”. “Fui agente de polícia seis anos e seis meses, de 1953 a 59. Naquele tempo, não ganhava nada, não. Nem o vereador ganhava nada, nem o comissário ganhava nada. Se a gente tivesse a arma da gente, andava com ela, quem não tinha, não andava com nada, não”.

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Pouco depois do golpe militar de 1964, João fez parte das primeiras diretorias do Sindicato dos Trabalhadores Rurais local. Na época, a ditadura estimulou a criação dos sindicatos para neutralizar a influência dos remanescentes das Ligas Camponesas na Zona da Mata e no Agreste de Pernambuco. A atuação sindical enche João de orgulho, pois foi no processo de implementação da aposentadoria rural que ele teve a chance de ajudar muitos agricultores mais velhos, quase todos da geração do seu pai. “Fui delegado do sindicato, trabalhei no departamento jurídico com um advogado, também fui secretário do sindicato. Antes, apareceu Francisco Julião. O sindicato não tinha força, quem tinha força eram as Ligas Camponesas, que é quem fazia agitação pro povo”. “Quando a aposentadoria rural saiu, eu era o secretário do sindicato. A aposentadoria para os velhos chegou na minha mão no mês de maio. Chegou em 1971, mas entrou em vigor em janeiro de 72. Quando chegou, de novembro pra dezembro, eu comecei a arrumar os velhos, os registro deles, tinha uns que diziam: ‘E eu confio lá nisso’. A primeira que eu fiz foi o de papai e de mais dois velhos, ia pra Bom Jardim tirar documento do povo, andei um bocado”. “Depois, o pessoal começou a aumentar a idade, foi aquela luta, mas eu só pegava quem fazia o certo. Ninguém tinha registro de nascimento. Eu dizia: ‘Me diga uma coisa: qual foi o ano que você casou?’ ‘Casei em tal ano’. ‘Tava com quantos anos?’ ‘Tantos anos’. A data do mês eu botava qualquer uma, mas o ano era sempre o ano certo. Teve um velho que foi três vezes e não tirou, aí eu disse a ele: ‘Você chega lá e diz que nasceu no dia tal de tantos anos’, porque eu é quem dava a data. O pessoal lá no cartório cismou comigo. Dei muita entrada em aposentadoria”. “Tinha um camarada que queria 200 cruzeiros de cada um pra assinar, eu disse: ‘Não


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entre nessa, não, que você entra em cana. Se quiserem dar alguma coisa você pega, mas cobrar, não’. Se ele insistisse, eu denunciava e ele entrava em cana”. Com tantas alternativas, João Berto pôde garantir o sustento da família com certa tranquilidade, tanto que, além dos seus dois filhos, acolheu e criou como seus os três filhos do primeiro casamento de sua mulher. Nem sempre as coisas foram tão fáceis. Ainda adolescente, anos antes de começar a trabalhar como comerciante, sua família enfrentou períodos de fome e seca na região. Junto com o pai e os irmãos, trabalhou como canavieiro nos engenhos de açúcar em Ipojuca, a mais de 100 qquilômetros de distância. A pobreza era tanta que viajavam a pé. “Em 37, eu tava com 13 anos, foi a maior fome que vi nesse meio de mundo. A gente comia farinha dessa cor, azeda que só limão, a fuba era uma catinga infeliz. Papai trabalhava pro finado Jorge, que era dono dessas terras aqui. Ele chegava em casa às 11 horas da noite, esperando a mercadoria que vinha no trem de carga. Papai esperava o fubá e, quando chegava em casa, mamãe cozinhava e acordava a gente pra comer. Ninguém nunca teve uma barriga inchada, a gente comia de tudo. Tinha um primo ali que tinha 10 filhos, os meninos era tudo se lambuzando na lama e comendo cuscuz e sardinha, morreu um e tem nove vivos”.

“Conhece Ipojuca? Aquela cidade era desse tamainho. Aquele mercado foi feito em 1940. Eu trabalhava ali num engenho atrás da cidade. Trabalhei na usina da cana em 1938, 39, 40, 41, 42, 43, até a entrada de 44 eu trabalhei. Foram sete anos. Era sofrimento, agarrava um malotezinho e saía pra lá a pés, eram dois dias andando, dormia no meio do caminho”. O lago artificial da barragem ajudou a resolver, simultaneamente, os problemas das grandes enchentes na Região Metropolitana do Recife e da falta d’água para a lavoura no Agreste. Apesar disso, as lembranças da época das obras não são das melhores. “Eu ia era perdendo um filho na construção da barragem. Ele trabalhava de vigia e, à noite, tomava nota dos carros de pedra que chegavam. Aí, ele deitou-se e a caçamba chegou e despejou as pedras em cima dele. Hoje, ele tá com 55 anos. Ele é pescador também. Eu não sei como ele escapou. Quem tirou a pedra de cima dele foi um guincho. De quatro horas da manhã, chegaram dizendo: ‘Adelino foi acidentado,’ saí feito doido. Cheguei na rodoviária e deixei a minha picape, primeiro fui no Barão de Lucena, depois no Getúlio Vargas1. Não sei como ele escapou”. O sorriso largo no rosto de João também vira um sorriso amarelo quando surge a lem¹ Hospital Barão de Lucena e Hospital Getúlio Vargas, ambos no Recife.

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“Muita gente comeu palma. Para melhor lhe dizer, teve outra seca em 1958, aí comemos palma. Pegou o verão de agosto de 1957 e só veio chover no dia 2 de maio de 1958. Esse tempo todo sem pingar, sem dar um pingo de chuva, mas aí choveu até o dia sete de maio, parou e só foi chover em junho. Tem muita gente aqui que não trabalhou, não botou uma safra, eu botei e lucrei à vontade”.


Um rio de gente

brança do êxodo de amigos e simples conhecidos, gente que deixou a região depois que as águas do lago artificial subiram. “Tem muitos daqui que foram embora e eu não vi mais, já morreram, outros tão por fora e aqui não aparecem mais. Tem um que, foi não foi, vem aqui olhar onde morou, é Francisco Franco, mora em Camaragibe. Vem com o filho, as filhas, vem olhar o lugar onde morava. O lugar onde ele morava tá todo coberto”.

“Escapei da boca do redemoinho, escapei fedendo”

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Um rio de gente

A rotina dos agricultores da Agrovila da Barragem é dura. É preciso acordar cedo todos os dias, preparar a terra, livrá-la de tocos e raízes velhas, prevenir as pragas, ordenhar vacas, evitar que bodes e cabras invadam o terreno dos vizinhos, fazer a colheita e vender os excedentes. Depois de tudo isso, é preciso arrumar tempo e forças adicionais para complementar as refeições pescando no lago artificial formado após a construção da Barragem de Carpina, há pouco mais de 30 anos.

Antes da barragem, Valdenice morava na comunidade de Ilhetas, que ficou submersa pelo lago artificial. Antes mesmo das águas subirem, ela e o marido Severino levaram os 13 meninos para perto do canteiro de obras e passaram a fornecer comida para os “496” operários contratados pela empreiteira. Enquanto ela cozinhava e servia as mesas, dava um jeito de cuidar das crianças. O marido aproveitava o dia para comprar e vender cabeças de gado, bodes ou porcos. À noite, trabalhava como vigilante da própria construção. O tempo para dormir era pouco. Para divertimento, nenhum. A inauguração da barragem, em 1978, complicou ainda mais as coisas para o casal. Na época, a direção do Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (Dnocs), responsável pela obra, tentou obrigá-la a sair das margens do lago sob a alegação que estavam em terras que tinham se tornado patrimônio federal. Valdenice conta que todos sabiam que os terrenos, valorizados graças ao grande volume de água, seriam “comprado” em seguida por fazendeiros ricos da região. “Meu pai faleceu e deixou a propriedade dele dentro das águas. Então, eu continuava herdeira e já residia aqui, então eu esperei receber. Quando vieram pagar, só dava pra comprar uma unha e morrer embaixo do viaduto com uma turma de meninos pedindo esmola”. “Aí, a turma do Dnocs veio, pedindo pra eu sair. Eu digo: ‘Pague o que me deve’. Responderam: ‘A senhora só recebe quando sair’. Eu digo: ‘Isso é conversa pra consolar! Só saio daqui

91 “Não tem quem me tire daqui”

Valdenice Tomé Gomes não reclama. As coisas já foram bem mais difíceis ao longo dos seus 68 anos de vida. Hoje, mora sozinha e ninguém, nem mesmo a filha que é sua vizinha na vila, depende dela para sobreviver. Houve um tempo, contudo, em que ela tinha de trabalhar na roça, pescar, criar 13 filhos, batalhar pela saúde de um filho adotivo e, em plena ditadura militar, lutar contra o governo para garantir a posse de um pequeno lote de terra.


“E todos nós caíamos na água”

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Um rio de gente

se me der um prazo determinado, quando eu encontrar um lugar que eu veja que é conveniente e que dê pra eu viver com os meus filhos. Não vou sair assim nas carreiras, não’.” “Alfredo, o engenheiro, ficou como chefe. Botaram um tenente ali, tomando conta de uma casa. Esse tenente passou seis meses me filmando. Eu tava trabalhando, ele chegava e me filmava. Eu disse pro doutor Alfredo: ‘É doutor, é muito lamentável, mas eu não vou pedir esmola, não. Eu tinha onde morar, eu tinha onde trabalhar. O senhor mandou cortar minha lavoura, cortaram minha energia’. Sabe qual foi o meu final? Fui na Assembléia¹, falei com os deputados, mas não tem quem me tire daqui. O doutor Alfredo disse: ‘Se a senhora tiver peito, a senhora se segura. A casa vai ser virada, a máquina vai vir e vai derrubar tudo’. Eu disse: ‘Me seguro’.” As caminhonetes vieram e cortaram minha cerca à noite, cortaram todinha. Vieram quatro carros do Dnocs, chegaram de dez horas da noite, cortaram oito carretéis de arame que eu tinha comprado para cercar as plantações de palma, milho, feijão. Eu não ia morrer de fome, nem meus filhos. Não tinha como, eu ia morar onde?” O caso só foi resolvido em Brasília, para onde Valdenice viajou com passagem doada pela Assembléia Legislativa. Antes, ela procurou o sindicato rural, a Fetape² e até uma emissora de tevê. Por medo ou omissão, ninguém comprou sua briga. Ao mesmo tempo em que ela batia nas portas dos gabinetes, seu marido tinha de passar meses nos canaviais de São Paulo, trabalhando como bóia-fria para sustentar a família. Valdenice lutava sozinha.

O sacrifício para conquistar o direito à terra para trabalhar foi mais um dos obstáculos que Valdenice teve de enfrentar. Ela conta que, desde criança, sempre trabalhou para ajudar a família, além de suportar uma escola onde os professores hostilizavam as crianças filhas de trabalhadores rurais. Festas e brincadeiras eram coisas com as quais ela nem imaginava ter direito. “Agradeço muito a Deus e a meus pais porque eu não sei o que é vagabundear, eu nunca conheci o que é boneca, eu nunca conheci uma bola, eu não sei o que era um dia de domingo pra sair, pra se divertir. Era só no campo, trabalhar. Dia de domingo, meu pai dava por conta pra eu tirar seis feixes de capim. Quando eu chegava em casa, era uma e meia, duas horas da tarde. Quando eu tomava um banho, eu tava me tremendo pra comer. Quando terminava de fazer a refeição do almoço, eu ia torrar café, pisar”. “Se a gente fosse pra uma festa, era pra procissão a partir de cinco horas. De oito horas, dez horas tava em casa. Mas era tanto bicho pra gente cuidar, que quando terminava de dar a ração aos bichos, já eram sete horas da noite. Aí mãe dizia: ‘O que é que vocês vão fazer na festa uma hora dessas?’” ¹ Assembléia Legislativa de Pernambuco. ² Federação dos Trabalhadores da Agricultura do Estado de Pernambuco. ³ Sônia Wright é cientista política e integra a Rede Mulher e Democracia.

93 “Não tem quem me tire daqui”

Na capital do País, ela contou com a ajuda da militante dos direitos humanos Sônia Wright³ e o então deputado federal Sérgio Murilo Santa Cruz. Sônia conseguiu advogados dispostos a defender a camponesa. O parlamentar levou o caso até o ministro do Interior, Mário Andreazza. Depois de muito ser pressionado, o ministro aceitou uma proposta do deputado e cedeu a área para o Sindicato, que arrendou os lotes para os moradores. Valdenice sonha com o dia em que receberá o título de posse da terra das mãos do presidente da República.


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“Vocês me viram com a roupa remendada? Porque essa calça, ela tem o bolso grande, eu boto ela bem presa, aí eu vou a plantar, tá remendada, mas eu não me importo, não. Minha menina diz: ‘Mãe, tira essa roupa! Isso é roupa de mendigo’. Eu digo: ‘Roupa de mendigo não, é roupa de gente que gosta de trabalhar’. Quando eu chego dentro de casa, eu tiro. Quando eu tô no campo, vem um espinho fura, vem um arame corta, rasga. A minha vida foi sempre essa. Eu dizia: ‘Mas não tem nada, não, vamos cuidar, ter fé em Deus, que eu vou tirar vocês dessa. Deus quer e vocês vão sair dessa luta de cortar cana’.” “O meu marido viajava pra cortar cana, eu passava 15 dias lá na barragem, com a barraca armada, pescando e trabalhando, tirando leite, gado, as vacas tudo ao redor da barraca... Cabra, carneiro. Toda a vida eu gostei de trabalhar, eu nunca parei. Eu roçava os matos, isso eu arranco o mato, eu cavo roça, eu arranco mandioca, ajudo na casa de farinha, o que tiver. Olhe, eu não escolho serviço, não. Meu serviço é serviço do campo mesmo, isto é, monto a cavalo, eu tiro leite, eu tiro capim, boto capim pro gado”. Em todos esses anos de trabalho árduo, Valdenice contabilizou alguns sucessos e, pelo menos, uma grande derrota. Além de conquistar o lote de terra de onde tira seu sustento, ela registra como vitória o fato de ter garantido para os filhos um destino diferente do seu, pois estão todos espalhados pelo Brasil, trabalhando em diversas atividades. Uma das filhas,Valdênia, vive na agrovila e herdou da mãe a liderança da comunidade e a capacidade para articular com gestores públicos e dialogar com a sociedade civil.

“Não tem quem me tire daqui”

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As lembranças de seu maior fracasso, porém, estão espalhadas pela casa onde vive: são as fotos de um filho adotivo, uma criança desnutrida que ela “pegou para criar” na década de 80, morto com problemas neurológicos antes de completar seis anos. A proximidade da barragem ampliou as possibilidades de trabalho para os moradores da agrovila e ela não deixou passar a oportunidade. Para melhorar a qualidade de vida da família, ela aprendeu a pescar na mesma época em que lutava pela terra. Durante muitos anos, a pesca foi farta, mas as coisas mudaram nas águas represadas do Capibaribe. “Antes variava, dava traíra, cará, piaba, pitu, camarão. Ainda hoje eu pesco, só que a pescaria, agora, tem de ser de viveiro. Acredite quem quiser acreditar. Porque é o seguinte: você pega uma tela, como daqui pra aquele curral, vem com uma criação de peixe e solta ali dentro. A ração é todo dia em cima da água, o peixe come, come e tem aquele prazo certo”. “Você, com aquela experiência, já tem uma idéia de como é que vai dar aquele pescado. Aí, você faz o quê? Procura a freguesia, já instala outro viveiro em outro setor. Quando você tira esse aqui, ali na frente já tem outro e, na outra semana, você tira. Aqui, você descansa a semana todinha. Na outra semana, você vai lá e já bota outra criação nova, e assim continua”. De tanto pescar, ela aprendeu muita coisa sobre o rio, os peixes e os animais que vivem em suas margens. Com esse conhecimento, ela assegura que a poluição no Capibaribe não é coisa nova, ao menos, não para ela. A sujeira, porém, não é suficiente para afastar alguns animais de grande porte que vivem na beira da água e que já foram muito comuns na Bacia do Capibaribe.


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“A água era poluída porque nunca teve tratamento, né? O esgoto do hospital de Limoeiro cai todinho dentro do rio Capibaribe. E ainda hoje cai do mesmo jeito”. “Capivara é que nem uma lontra, é, que anda dentro da água? No mato que tem dentro do açude, tem cada capivara desse tamanho. Ninguém pode mais plantar feijão de corda e milho, não. Elas toram o milho com tudo. Esse vizinho mesmo aí, só não ficou de esmola o ano passado por que Deus é grande. Não é fácil de ver, não. É fácil de noite, com a lanterna, porque ela anda com o rebanho de noite, pela beira. Às vezes, até de dia, pela coincidência, ela aparece”. “E tem jacaré, tem cada jacaré! Uma vez, eu tava puxando a rede e achando pesado. Aí, balançou a rede, eu digo: ‘Isso é um peixe grande, deixa eu ver se ele vai se enrolando’. Nada! Quando eu puxei, a canoa estremeceu. Eu digo pro menino que tava remando: ‘Segura, rema pra trás, rema pra trás, que tem um peixe grande aqui, é um peixe grande demais!’ Quando eu puxei mesmo, ele deu aquela entrada assim pro lado da canoa, quando chegou na costela da canoa, eu vi o papo amarelo dele todinho assim. Fez ‘pá’ na canoa, me jogou lá fora, torou a rede e foi embora. Era um jacaré”.

“Não tem quem me tire daqui”

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“Olhado mata, tá sabendo?”

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Basta um acesso de tosse, dor na barriga, crise de coluna, irritação na pele ou qualquer outro sintoma para que os moradores dos povoados de Rosarinho e Desterro, na área rural de Paudalho, se dirijam a uma casinha de dois cômodos, pintada de branco, no fim de uma rua sem saída e calçada de paralelepípedos, próxima da margem do Capibaribe. O endereço não é do posto de saúde da prefeitura nem a residência de um médico. Trata-se da casa de Maria Paula, a rezadeira mais famosa da região. Com orações e simpatia, ela cura e afasta mau-olhado há pouco mais de meio século. A alegria irradiada pelo sorriso largo, sempre escancarado, faz o doente esquecer os olhos desbotados da rezadeira, cega desde que apanhou seguidas vezes do ex-marido, Manoel, um homem violento com quem teve um casal de filhos.

“O que vem na minha cabeça eu rezo. Foi Deus que me ensinou quando eu tava com 30 anos de idade. Tem hora que o povo gasta dinheiro com médico e não serve, aqui eu rezo e a pessoa fica boa”. Pela quantidade de gente que procura as rezas, é possível imaginar que Maria Paula poderia viver com mais conforto, mas a cura não custa nada. Quem possui algum dinheiro, quase sempre retribui deixando alguns trocados, mas a maioria dos clientes é gente simples, agricultores ali mesmo do Desterro. “Cobro nada, não. Quando me dão qualquer coisa, eu recebo. Tem gente que me dá um vestido, outro me dá uma sandália, conforme o que quiser dar, né? Dinheiro, eu recebo. Uma vez uma mulher perguntou a mim: ‘A senhora reza a dinheiro?’ Eu digo: ‘Por que essa pergunta?’ Ela disse: ‘Faz mal receber dinheiro, a senhora tá vendendo as palavras de Jesus’. ‘Não senhora, eu nunca cobrei ninguém. Se eu cobrasse, aí tava vendendo’. Agora, se o pessoal diz ‘tome dona Maria, isso é seu, pra comprar um pão...’” As críticas pelo fato de, vez ou outra, aceitar algum dinheiro foram poucas e nunca lhe causaram

97 “Olhado mata, tá sabendo?”

Maria Paula começou a rezar e curar doentes ainda casada. As primeiras pessoas beneficiadas pelo poder de suas orações foram seus vizinhos, na comunidade do Desterro. Depois, começaram a chegar moradores do distrito de Rosarinho e da sede do município. Em pouco tempo, sua fama se espalhou pela região e, hoje, atrai pessoas doentes de São Lourenço da Mata, Carpina, Nazaré da Mata, Limoeiro e até do Recife.


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embaraço. Rezando há mais de 50 anos, o que mais magoou a católica Maria Paula foi o preconceito de parte de sua vizinhança, que confundiu o poder de curar com rituais de outras religiões. “Graças a Deus não rezo ninguém com maldade, gosto de rezar, eu estimo, peço a Deus de dia e de noite pela força da minha reza. Agora, o pessoal começou a me chamar de catimbozeira. O pessoal me pergunta muito isso, viu. Uma rezadeira é diferente de uma catimbozeira. Me chamaram de catimbozeira, quase eu ia deixar de rezar. Eu me confessei com o padre e disse a ele que era rezadeira, mas que muita gente tava me chamando de catimbozeira. Aí ele perguntou: ‘E a senhora é?’ ‘Sou não, seu padre, sou não. O senhor sabe de uma doença chamada fogo-selvagem1? Eu rezo aquele negócio e rezo esse negócio que sai na língua das pessoas, herpes, né?” O racismo oculto sob o preconceito religioso deixou mágoas que, dificilmente, serão esquecidas. Contudo, o que lhe dá mais trabalho no cotidiano de rezas e curas são os maus-olhados. Os clientes que chegam carregando a marca da maldade alheia exigem muita reza e esforço por parte da rezadeira. Mau-olhado é tão difícil de resolver que, quando precisa enfrentá-lo, Maria Paula chega ao final do dia exausta e melancólica. “Olhado mata, tá sabendo? Tem olhado macho e olhado fêmea. O olhado macho quem botou foi homem; o fêmea, quem botou foi mulher. Quem descobre sou eu, quando rezo o Pai Nosso e as Ave Maria. De macho, a rezadeira erra quando tá no Pai Nosso e, de moça, erra na Ave Maria. E quando não tem, não erra. Quando a gente tá tirando, fica com aquele frio, é um frio que vejo a hora morrer”.

“Olhado mata, tá sabendo?”

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Maria Paula aprendeu a rezar – ou “recebeu o dom de Deus”, como ela insiste – no pior momento de sua vida, há 52 anos, quando estava perdendo a visão, após ser espancada seguida vezes pelo marido. Este é o único assunto que apaga o sorriso da rezadeira do Desterro. “Eu perdi a visão depois que meu marido deu um murro na minha cabeça. Já tô cansada de contar, já me abusei”. “Eu não sei como é aquilo, marido ruim, não sei como foi. Ele me iludiu pra casar, chegou na minha porta pra falar de casamento, eu disse a ele que não queria casar. Quando eu olhei pra ele, não me agradei logo. Mas meninas ficaram tudo intimando. Eu dizia: ‘Com tanta moça no meio do mundo, tu foi se agradar de mim? Não vai dar certo. Você dessa cor, com os olhos azuis’. Chegava a doer os olhos dele, nem era um azul, era um, sei lá... Ele era um rapaz bonito, mas eu não me agradava porque ele era bem alvo e eu dessa cor. Só dava certo com um da minha cor”. “Acabou que casei com 22 anos. No mesmo ano que a gente namorou, foi o casamento. Ele disse a vizinha que ia mostrar que se casava comigo. Me pegou na surpresa. Quando foi um dia, eu tava conversando com comadre Tereza, ele chegou e trouxe um presente. Aceitei, mas foi pior. Me casei com ele, mas não vivi, vivia levando cacete, perdi minha visão. Ninguém podia fazer nada, meus irmãos estavam longe, eu não sabia resolver nada e fiquei no sofrimento até a data de hoje. O murro que ele deu me botou pra morrer. E tô morrendo até a data de hoje”. Antes do casamento, Maria Paula ajudava a família na roça. Desde pequena ela aprendeu a quebrar milho, colher algodão e a lavar mandioca para fazer beiju2. Sua mãe chegou a matriculá-la na esco¹ Segundo o Dicionário Aurélio, “dermatose de evolução crônica, potencialmente letal, só reconhecida no Brasil”. ² Bolo de massa de tapioca ou mandioca.


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la, mas ela não “tinha cabeça” para a rotina das aulas. Em compensação, sabia tecer e manipular jererés3 com habilidade nas pescarias no Capibaribe. Ainda hoje, mesmo sem enxergar absolutamente nada, consegue fazer pequenas de redes de pesca que vende ou dá de presente. “Eu pescava era muito com jereré. De cinco pra seis da tarde, a gente chegava na beira do rio e era tá, tá, tá, tá... os peixes corriam tudinho. Eu só sei que passava o jereré e, quando vinha, vinha cheio. Vinha pra casa com o bisaco4 cheinho, botava na vasilha que, de primeiro, chamava-se alguidar de barro, mas que hoje só tem de alumínio. Tinha o alguidar grande, que era de lavar roupa e feito de barro, e tinha outros pequenos, que era para lavar prato. Aí, vinha mãe: ‘Vou te ajudar a tratar o peixe’. Mas ela só catava aqueles grandinhos e deixava os miudinhos, jogava no mato. ‘A senhora tá jogando o meu peixe no mato, é? Não jogue não, deixe que eu trato’. Fazia do jeito que queria, fazia moqueca numa folha de bananeira. Temperava ele bem temperado, enrolava na folha da bananeira e botava no fogo. Mas, é bom! Quando dava fé, tava aquele cheiro no mundo. É gostoso!” Quem fazia os alguidares de barro utilizados na cozinha era a própria mãe, que buscava na lama do Capibaribe a matéria-prima para as panelas e tijelas usadas em casa ou vendidas na feira. Depois que a mãe ficou viúva com seis filhos para criar, foi essa atividade que garantiu a sobrevivência da família.

“Mãe pegava aquele barro bem encarnadinho, trazia e, quando chegava em casa, desmanchava ele na água e depois passava na louça por fora, ficava bem vermelhinho. Com uns três dias, quando tivesse enxutinho, ela botava no fogo pra cozinhar aquela louça. Ficava uma forma tão bonita. A gente vivia disso”. Vivendo no Desterro desde criança, Maria Paula tem sempre alegria e fé disponíveis para todos na comunidade. Mas, com a audição aguçada, recentemente ela passou a queixar-se dos mais jovens, que costumam fazer farras com o som ligado no volume mais alto. “Eu não acho aqui ruim. Tem muita gente, é todo mundo muito contente. Tem hora que eu acho ruim, eu sofro da minha cabeça, eu não aguento zoada, aí tem hora que eles botam um som tão alto que eu só falto endoidar. Isso me dá uma dor de cabeça tão grande! Na semana passada, botaram um som tão alto, tão alto, que eu me levantei e, quando vi, a cama tava tremendo. Isso tudo é falta de educação. Ia passando um rapaz, que eu não sei nem quem é, eu disse: ‘Vem cá, vem cá, manda abrandar aquele som ali, eu tô em tempo de endoidar. Ele foi e disse: ‘Abranda o som que dona Maria tá aperreada da cabeça’. Ah, se eu tivesse a vista boa! Eu não queria que deixasse de tocar não, porque eu também tenho um som pequeninho, que eu boto pra tocar quando eu tô com tempo. Ele toca o dia todinho, baixinho, não ofende a ninguém”. ³ Espécie de rede com cabo de madeira para pesca de camarões e peixes que pequeno porte. 4 O mesmo que bornal ou mochila.

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“Mãe ficou viúva muito nova, chorou muito, ficou muito acabada, mas depois arrumou emprego e me deixou na casa de uma tia, madrinha e comadre. Eu tava com uns sete anos de idade. Mãe fazia panela de barro e e eu fazia também, ela ensinou a gente a fazer. Pegava o barro no rio, um barro bem alvinho, um barro bem ligado. A gente pisa ele com a mão de pilão numa tábua ou numa pedra, ele fica bem coisadinho, faz aquela bola assim e vai fazendo assim com o pilão, vai abrindo, abrindo e vai ajeitando. Depois, vai pro forno”.


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Perseveranรงa

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“É, tinha os escravos. Madrinha Quinu contava, dizem, que a igreja do Rosarinho foi feita ainda no tempo dos escravos. Tinha Seu Maquiqui, que carregou pedra pra essa igreja, que era descendência de escravo, ainda. Era um negro do beiço bem grande. Dizem que ele carregou pedra pra construir essa igreja de Rosarinho, que era a igreja dos negros”. “No rio, brincava muito, se pegava uma sistossoma¹ triste. Eu peguei. E, então, me tratei, quando eu me tratei mesmo foi em Nazaré da Mata. E eu acho que ainda tem alguma coisa dentro, às vezes, eu sinto umas coisinhas furando aqui de lado. Foi porque a gente passava muito no rio, pra lá e pra cá. Nessa época² do ano, tá limpo. Mas, quando dá setembro, a usina começa a moer e começa a descer aquela calda. O pessoal gosta porque morrem os peixes, aí eles pegam aquele peixe mesmo. O pessoal vai lá, cata e come. Quando solta calda é um fedor danado”. Amara Maria da Silva, 59 anos, professora aposentada no distrito do Desterro e voluntária do grupo que cuidava da centenária igreja do distrito do Rosarinho, comunidade quilombola na zona rural de Paudalho.

¹ Esquistossomose, infecção provocada pelo parasita esquistossoma. ² A entrevista foi realizada em junho de 2009.

101 Perseverança

“Estudei numa escolinha particular que tinha lá, uma menina é que ensinava. Depois, terminei, com 12 anos terminei a quarta série lá, aí minha mãe não deixou mais estudar, dizendo pra não aprender muito pra não fazer carta pra namorado, essas coisas todas. É, fiquei um tempão sem estudar. Nesse meio tempo, fiquei sem fazer nada. Depois uma menina adoeceu aqui e eu fiquei no lugar dela, me chamaram pra ficar lá no lugar dela e vim estudar aqui em Paudalho. Ficava lá pela manhã, cuidava da minha vaquinha e, à tarde, eu vinha estudar aqui. A gente voltava de pé, não tinha transporte, aí voltava de pés. Concluí, fiz o Magistério. Aí, passei a ensinar, fiz uma série de coisas na minha vida. Depois que terminei, fiquei ensinando lá e passei à diretora da escola. De primeiro, minha mãe não aceitou. Quando eu vim estudar, fazer admissão, ela não aceitava, né? Não aceitou mesmo. Ela achava, nesse tempo ela pensava assim, tinha uma cabeça fechada, né? Achava que a gente só ia aprender pra fazer carta pra os namorados”.


“Nós somos Lenhadores, vivemos da arte”

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Quando o Capibaribe chega a Paudalho, encontra uma cidade bem diferente de outras que cresceram de costas para suas águas. Na Zona da Mata, a riqueza da cana-de-açúcar construiu casas, praças, áreas de lazer e prédios públicos, todos voltados para o rio. A localização do casario não é gratuita, é, sim, a expressão do relacionamento que a cidade manteve com o rio ao longo de sua história.

De domingo a terça-feira de carnaval, os dois clubes desfilam pelas ruas da cidade, obedecendo a um percurso combinado previamente e em horários diferentes. O acerto é necessário para impedir o encontro das agremiações e evitar socos e pontapés, comuns em outros tempos. As fantasias, máscaras e alegorias são preparadas em segredo nos meses que antecedem à folia. Maria de Jesus Soares de Araújo ajuda a por lenha na fogueira dessa rivalidade desde que era menina. Aos 70 anos, Maria de Jesus é a vice-presidente de Lenhadores, fundado em 1907 e mais antigo dos rivais. Antes, ela já foi presidente oito vezes e diretora-social outras tantas. Foi a mãe, Maria José, que a levou junto com as três irmãs para o clube. Ela não casou e acabou sendo a única da família que dedicou boa parte de sua vida ao Lenhadores. “Por volta assim dos 13 anos de idade já acompanhava minha mãe nas costuras do clube, na época do desfile. O trabalho das crianças era apanhar agulha, vidrilho, porque naquele tempo era vidrilho, se bordava com vidrilho. Hoje em dia, tem lantejoulas, tem bico, aquelas rendas bonitas, não é? E a gente fazia esse trabalho. Fui crescendo, fui crescendo, virei presidente do clube. Só tem uma coisa que eu não quero ser: tesoureira”. “Para fazer o desfile a Prefeitura ajuda e a diretoria sai pedindo com o Livro de Ouro. E, com esse dinheiro, a gente consegue fazer a festa. E, uma das coisas que a gente faz questão no desfile, é orquestra de frevo boa! Só presta boa!”

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Em Paudalho não há a frenética prosperidade das fábricas de roupas de Toritama e Santa Cruz do Capibaribe. Também não existem restos de um passado grandioso, como em Limoeiro. Na cidade, o clima é de festa. Em junho, a população dança com mais de 30 quadrilhas, porém vibra para valer com as disputas ferrenhas entre três delas: a Emenda, a Rosa Linda e a Mastruz com Leite. Já no carnaval, o Caboclo Urubá, o Bloco do Marreco, o Leão Quebra-osso, As Donzelas e o Cruzeiro, são coadjuvantes da quase centenária rivalidade entre os clubes Lenhadores e Estrela.


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O carnaval de Paudalho não tem concurso ou prêmios. Quem decide o vencedor é a opinião do povo na rua. Ou seja, não há vencedor, pois a cidade é praticamente dividida entre os dois clubes. “Não tem concurso. Cada um trabalha pra sair o mais bonito. Cada um faz o seu percurso e não há encontro, entendeu? Não há! Porque muitas brigas já houve. Briga mesmo, de polícia levar preso”. As histórias dos carnavais do século passado não registram apenas as brigas de rua no instante em que os clubes se encontravam em pleno desfile. Há recordações mais doces, revelando tradições locais que não se perderam e somam sabor às cores e aos sons da festa. “Contava o meu avô que, quando tava na rua, visitava algumas casas e saía lanche. E o lanche eram filhoses¹, uma comida tradicional. Filhoses são doces. Aqui em casa mesmo, às vezes a minha irmã, a que reside em Maceió, porque tenho outra em Recife, gosta sempre de fazer filhoses na época de carnaval. Aí, oferece a quem for chegando aqui. Chega e vai comendo”. A profunda ligação com o carnaval de Paudalho não fez de Maria de Jesus uma foliã. Introvertida, sossegada, ela costurou fantasias, organizou desfiles, arrecadou recursos, mas nunca desfilou. Ela não se arrisca nem a cantar o hino de Lenhadores, diz que “não tem jeito”. Só com a ajuda da amiga Maria do Socorro Assis, que estava em sua casa para lhe desejar os parabéns pelo seu 70º aniversário, comemorado exatamente no dia em que a entrevista foi realizada, cantarola os versos iniciais da música: “Respeite meus senhores, o nosso estandarte.

“Nós somos Lenhadores, vivemos da arte”

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Nós somos Lenhadores. Vivemos da arte.” Maria do Socorro, por sinal, é Estrela. Ou seja, é torcedora e costureira do clube arqui-rival. Em Paudalho as coisas são assim: o clima esquenta quando o assunto é carnaval, mas são raros aqueles que confundem as coisas. O resto do ano é tempo de paz, assegura Maria de Jesus: “Quando eu realizava o aniversário de pai todo ano aqui, a casa ficava cheia de Estrela e Lenhadores. Aí, tocava o Hino do Estrela e tocava o Hino do Lenhadores”. Maria do Socorro confirma, recordando mais um fato: “Os parentes de Jesus eram todos Lenhadores, não é? São Lenhadores ainda. Mas ela tem muitos amigos que são do Estrela, aí, por sinal, o menino que veio tocar não sabia tocar o hino do Estrela. Por isso não, a gente cantou”. O aniversário do pai de Maria de Jesus era motivo mais do que suficiente para unir os torcedores dos dois clubes e de quantos mais existissem em Paudalho. Severino Soares de Araújo nunca foi um homem rico e jamais teve poder político, mas era respeitado por todos na cidade. Negro, filho de uma família pobre, estudou bastante – muitas vezes por conta própria – e se tornou funcionário público federal, ao ser contratado agente de estatística do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Isso já era o bastante para alguém ser visto como uma referência ¹ Doce a base de farinha de trigo e ovos


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pelos paudalhenses, mas ele foi o responsável pela confecção dos mais detalhados mapas com os mananciais de água da região. Severino também tinha muito conhecimento da língua portuguesa, lia bastante e, quando morreu em 2007, aos 98 anos, era conhecido por dois apelidos na cidade: Dicionário ou Enciclopédia. “Ele fez até o mapa da cidade, com os dados da população, quantas pessoas, de tudo em relação à cidade, pontos históricos. E quando chegava visita pra construir uma indústria, um negócio, procurava ele pra saber qual o ponto melhor na cidade. Ele, antes de ser contratado para o IBGE, iniciou num balcão de padaria. E ele era quem traçava a quantidade de trigo para pão, bolacha e assim por diante. Nessa época, ele aprendeu datilografia. Naquela época, quem sabia datilografia era demais”. “Ele sempre era chamado pra fazer alguns escritos da delegacia, da prefeitura, fazia a contabilidade do comércio. Foi assim que chegou uma carta de alguém da Presidência da República para o Prefeito e demais pessoas, como da Câmara, pra indicar uma pessoa para um serviço do IBGE. Aí todo mundo: ‘É Severino’.” O emprego público obrigava Severino a visitar constantemente o Recife. Muitas vezes, levava as filhas e a esposa, que aproveitavam para fazer compras no comércio da capital. Em um desses passeios, Maria de Jesus pôde conhecer pessoalmente um dos ídolos do pai, o então presidente Getúlio Vargas, que iniciava sua segunda passagem pela presidência depois de ter sido eleito em 1950.

O exemplo e o apoio do pai sempre estimularam Maria de Jesus, que se formou em Pedagogia na Universidade Católica de Pernambuco estudando à noite, em Recife, para onde viajava depois de trabalhar durante o dia todo em sua cidade. Depois de formada, dirigiu a Escola João Cavalcanti Petribu até a aposentadoria, há pouco mais de 20 anos. O que Severino nunca estimulou foi a presença das quatro filhas nas brincadeiras e banhos de rio. Brincar na areia das margens até podia, banho e mergulhos, jamais. Banho era privilégio dos meninos. “Brincadeira era mais em casa naquele tempo, mamãe não deixava sair. Hoje em dia, pode tudo. Brincar no rio era uma beleza. Naquela época, quando eu era criança, quando olhava assim só via a areia, a meninada toda brincando na areia, era limpo, muito limpo. E, quando o rio tava cheio, vinha alguém com um barco para passar para o outro lado. Era, tinha um barco”. “Agora, banho não tomava, não. Tinha gente que tomava, mas não dava certo a gente tomar banho ali. Eu via, mas não participava, porque filha era mais presa”.

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“Um belo dia, fui para Recife com meu pai, acho que eu tinha 10 anos, 11 anos. Esperando o ônibus ele disse: ‘Não saia daqui não, viu!’ E eu ali, olhando os carros passando, aí, de repente, parou um carro, depois muitos carros, muitos carros, me salta um senhor baixinho, todo de branco o chapéu, a bengala. Eu pensei: ‘Oxente! Aquele é Getúlio!’ Aí gritei ‘pai’ e ele veio. Eu disse: ‘Olhe, quem chegou aí foi Getúlio Vargas’. Ele respondeu: ‘Que história, menina!’ Quando ele chegou em casa, o rádio ligado deu a notícia: ‘Por motivo superior, o avião teve que aterrissar em Pernambuco’ e mais não sei o quê. Aí, ele olhou assim pra mim: “Menina, você conheceu o homem e eu não conheci!’ Isso foi em frente do Grande Hotel, na parada de ônibus para o Interior.”


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Camaragibe está de costas para o Capibaribe. A cidade cresceu em torno da avenida por onde passam os veículos que levam os moradores às indústrias, ao comércio ou aos serviços oferecidos em Recife. Como um vizinho calado e de quem nada se sabe, o rio passa por trás dos bairros mais pobres, verdadeiros dormitórios dos trabalhadores que passam o dia na capital e não têm tempo para lembrar da correnteza e da sujeira que ela carrega para o mar.

Sua história é parecida com a de muitos outros que habitam casas inacabadas nas ruelas e escadarias de Santa Mônica. Diferente é seu ofício. Antônio já foi pedreiro, mas faz tempo que é mais conhecido pelo seu título e apelido. Ele é o Mestre Toinho, o mais experiente dos mestres de maracatu em atividade no estado de Pernambuco. “Eu vim parar aqui porque mãe faleceu. Nessa época, eu morava em Casa Amarela, de lá fui pra Paulista, na casa de meu irmão, depois que minha mãe faleceu, aí minha irmã morava aqui e aí me chamou. Arrumou uma ca... esse mucambo aí pra eu comprar. Eu comprei, tá aí em construção, aí tô aqui. Faz uns 15 a 17 anos que eu tô aqui”. “Agora, fizeram praça, calçaram o que não tava calçado. Mudou e muito! Tem carro lá, praça pro menino brincar, tem Kombi aí – essas Kombi vão pra lá primeiro depois voltam, descem”. “Isso aí era mata fechada, tudinho aí, ó. Tá vendo ali, onde tá o primeiro andar ali? Pra lá mais uma coisinha, tinha uma porteira. Porteira como negócio de....de... fazenda. Tá entendendo? É! Isso era passarinho, era muito passarinho aí. Era demais, mesmo. Era sabiá, galo-de-campina, era tudo aí. Aí, toraram tudo isso aí, os matos, tá entendendo? O prefeito calçou isso agora aí, também... saiu calçando essa descida aí”. Não fossem os afazeres de mestre de maracatu, Toinho seria mais um a ignorar completamente o Capibaribe. Na margem direita, já em território do Recife, na mata dos Brennand, estão os pés de macaíba, matéria-prima para fazer alfaias de respeito.

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Os bairros ribeirinhos são aqueles que foram urbanizados mais recentemente e muitos dos seus habitantes vieram de longe. Em alguns dessas áreas, como Santa Mônica, ainda sobrevivem vestígios da época em que o amontoado de casas de hoje era a Zona Rural do município vizinho, São Lourenço da Mata. Antônio Pereira de Souza completou 64 anos, mas chegou a Camaragibe nos anos 90, para morar na casa da irmã.


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“Nunca gostei de tomar banho de rio, não. Pra você ver, que não sei nem nadar. Que eu não gosto... não gosto de jeito nenhum , não, mas vou do outro lado e atravesso o rio, mas não pode, não, por causa do Ibama, né? Ai a gente vai lá.... entocado. É! E é perigoso porque tem vigia, sabe? Anda até de cavalo”. “Ali mesmo aquele... ali mesmo, ó, tá um tronco lá. Ali era um pé de macaíba grande mesmo, aí eu fiz um bombo, é o maior que tem lá na sede do maracatu. Foi torado ali, desse terreno aí. Eu torei, aí fiz. Essa alfaia era tão...essa macaíba era tão grande que, no carnaval apresentei esse maracatu, quando entrou essa alfaia era o repórter em cima batendo direto. Naná¹ mesmo dizia ‘...é o maior bombo de Pernambuco’, porque era muito grande”. “A macaíba vem toda fechada, aí você tem que ocar ela todinha, pra deixar bem fininha, bem oca mesmo. É o trabalho de pegar a macaíba fechada, que ela vem fechada, aí pega o formão, que eu faço, oca ela todinha de formão, aí deixa oco pra poder trabalhar. Encourar, e botar o aro e colocar as cordas. O aro é jenipapo, é. Agora, se eu fizer de compensado, aí eu faço o bojo de compensado e faço o aro de compensado, mas só que não é de confiança, o aro de compensado, porque na hora do acocho, que o batuqueiro vai acochar, não aguenta isso aqui, ó! Se abre, tá entendendo?”

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Toinho é o atual mestre do Maracatu Encanto da Alegria, da Bomba do Hemetério, Zona Norte da capital. O trabalho de mestre não requer expediente diário na sede da agremiação, mas quando se aproxima o carnaval o ritmo muda e ele precisa estar lá quase todos os dias, acompanhando os ensaios, orientando os batuqueiros, conferindo ou consertando os instrumentos. A lista de maracatus por onde ele já passou é extensa: Estrela Brilhante, Leão Coroado, Leão de Judá, Elefante, Indiano e Cambida Estrela. Ele conta que não falta trabalho: quando está insatisfeito com a agremiação, larga tudo e vai para casa. A notícia se espalha e, no dia seguinte, chovem duas ou três ofertas, então ele se dá ao luxo de escolher uma delas. O apoio de Luiz de França, no início da carreira, garantiu prestígio imediato entre os maracatus de Baque Virado. “Olhe, primeiro não tocava em maracatu nenhum. Eu tocava tarol em ciranda e muito mal, que não sabia nem tocar! E eu tinha um compadre meu que tocava no Maracatu Leão Coroado, era...é Ivanildo, aí ele foi pro Cambinda Estrela. Aí compadre fez... chegou compadre um dia e disse: ‘Olhe, compadre, o maracatu tá a fim de um tarozeiro, que vão botar o tarozeiro pra lá e eu disse a eles que ia levar você. Eu digo: ‘O senhor é doido, é, fazer um negócio desses, é?’ ‘... mas você não toca tarol?’ ‘...eu toco tarol de ciranda e muito mal, compadre, como é que eu vou pra lá?’ “Meu amigo, eu fui, quando chegou lá, tinha um cabra tocando lá, tava assim de gente, ó. Era uma casa de capim naquela época, uma janela e uma porta, só. Bem pequeninha. Aí eu fui olhar, fiquei debruçado na janela assim, olhando. Daí vem o dono: ‘Ivanildo, cadê teu compadre?’ ‘...Olha ele aqui’, aí pegou o tarol e veio me entregar. Aí eu digo: ‘Não, mas eu não quero tocar, não’. Mas é porque eu fiquei todo encabulado, porque o cabra fica com medo, né, de pegar, né? É muita gente”. “Aí, eu sei que deram o tarol um cara lá, o camarada começou tocando e eu olhando. Quando ¹ O percussionista Naná Vasconcelos


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foi depois, que eu comecei a olhar mesmo, aí subiu aquele negócio, aquela vontade, aí eu chamei: ‘Compadre, peça o tarol a ele que agora eu vou tocar’. Aí, toquei, quando deu... quando eu comecei tocar o dono disse: ‘Rapaz, você disse que não sabia tocar, tava com medo foi?’ Eu digo: ‘Não, porque nunca toquei...’ ‘...o senhor bem dizer é profissional, o senhor vai ficar aqui nesse maracatu’. Fiquei lá. Não demorou nada eu passei pra alfaia, tocando a alfaia... eu toco. Toco alfaia, toco gongué... aí passei... Aí fiquei, né?! Fiquei lá... aí, de lá desci pra Leão Coroado. Pra Leão Coroado, passei um bocado de tempo...” “De Leão Coroado, passei uns tempos, aí seu Luiz me chamou, seu Luiz de França: ‘Seu Toinho – porque ele me chamava de Toinho – seu Toinho, eu quero uma conversa com o senhor’. Eu digo: ‘Diga, seu Luiz’. Olhe, eu bebia naquela época, bebia uma coisinha e muito, viu? ‘A partir de hoje, você vai ser mestre do Maracatu Leão Coroado’. Eu digo: ‘O que é isso, seu Luiz?’ ‘Tá certo? Depois eu converso com o senhor’. Aí eu disse a ele: ‘Senhor Luiz, eu não quero nada de particular, meu negócio é logo, diga logo!’ Foi no treino, isso. E eu tocando. Tocando alfaia. Ele me chamou e disse. Aí eu disse: ‘Seu Luiz, em particular, não gosto nada em particular’. Aí ele disse: ‘Mas você é muito avexado, rapaz!’ Eu digo: ‘Não! Só não gosto de particular e o senhor sabe disso’. Porque ele disse a mim. Eu queria que ele dissesse logo! Tá entendendo? E ele não queria, só queria reservado. Eu digo: ‘Não! O senhor tem que falar...’ Aí foi quando ele parou o batuque, aí veio falar comigo, pra eu ser mestre de maracatu, tá entendendo? Aí eu...digo: ‘É, é... tá certo’.

“Eu tinha uma base assim de 17... ou 18 anos, por aí assim... Era muito novo! Era muito novo no Maracatu. Faz tanto tempo que o cara se esquece, nessa faixa assim, eu era mocinho, mocinho. O mais velho do Maracatu... e não sou eu que digo, é o povo mesmo que diz, que o mais velho do Maracatu de Baque Virado aqui sou eu”. Já no final da entrevista, o gravador voltou a ser ligado para gravar as toadas de maracatu que Toinho fez questão de cantar: “Oi, que sonho tão bonito, Não me deixaram sonhar, Lanceiro pegar suas lança Vamos pra rua lutar!

Oi, que sonho tão bonito, Não me deixaram sonhar, Lanceiro pegar suas lança Vamos pra rua lutar!”

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“Aí seu Luiz: ‘Agora tem uma coisa, você tem que deixar... parar de beber! Nem digo que você não beba, mas você tá bebendo demais!’ Eu já bebia! Aí ele fez: ‘Mas você não vai beber. Tá certo? Se beber, beba pouco’. E eu digo: ‘Rapaz... tá certo, seu Luiz’. Ele também que era o presidente. Era o presidente e ele quem apitava, não é ?! Aí eu fui e disse pra ele: ‘Então vamos fazer o seguinte: o senhor quer eu como mestre do maracatu, eu apito, eu sou o mestre do maracatu, mas também, quando eu não quiser apitar o senhor apita, porque fica eu e o senhor’. Ele concordou: ‘Tá certo!’ Aí eu treinava o maracatu, quando eu não queria, tava cansado eu dava a ele. Tá entendendo?”


“Foi muito sufoco em sessenta e seis”

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A vida de Miriam Pereira de Lima mudou, completamente, em 1966, quando uma das maiores enchentes registradas no Baixo Capibaribe inundou o Recife e arrasou tudo o que sua família possuía. Quarenta e três anos depois, ela vive sozinha no bairro Santa Mônica, numa casa sem muros e com amplo quintal, encarapitada nas encostas das margens do rio que, para o bem ou para o mal, sempre foi cenário e personagem dos seus 63 anos de existência.

“Meu pai era plantador de verdura, horteleiro. E a gente se criou ali no rio, tomando banho... molhava a plantação com água do rio. Tudo isso, a gente lá, na Iputinga. Chamavam ele Zé da Horta. Ainda tem muita gente antiga lá que se lembra. Um dia, eu fui na casa de uma... fui visitar uma amiga que tinha chegado, aí quando eu comecei a conversar, contei de meu pai... eu falei de Zé da Horta, um homem disse: ‘O quê? A senhora é filha de Zé da Horta?’ E eu: ‘Sou’. Tinha seu Coló, tinha seu Damião, tudo era plantador de alface, pimentão, cenoura, pepino, quiabo, maxixe... essas coisas... e couve. Vendiam as hortaliças na feira de Cordeiro e na feira de Casa Amarela. E tinham os compradores que vinham, né, comprar”. “Tudo ali é perto do rio. É o Poço Alto, onde eu nasci, ali chamava Poço Alto, ali por trás do Hiper da Caxangá. Agora tem a Estrada do Barbalho, né? Aquele lugar chamava Poço Alto. E tinha o Rio das Pedrinhas, que a gente ia pescar, que a gente tomava banho. Eu morava ali, em frente ao Detran, de frente não, ao lado do Detran. Aquela casa do Detran era casa de uns... uns... umas pessoas... um senhor que era médico, chamava doutor Rubem. E essa casa muito grande, chamava Casa Grande, ali onde é o Detran hoje, ali. Lá no final, aí tinha a horta e a gente tinha o rio que... a gente pegava a água do rio”. O drama invadiu o dia-a-dia da família de José Pereira, o Zé da Horta, e dos outros agricultores da Iputinga com as chuvas de 1966. Pescarias de curimatã e de pitu, travessias para o Monteiro e Casa Forte, nos botes de Sinval ou Biu, brincadeiras de natação. De uma hora para outra, tudo virou recordações arrastadas pelas enchentes. Naquela época, Miriam tinha 20 anos e

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Para falar do local onde vive desde 1975 e do seu cotidiano, Miriam usa poucas palavras, quase sempre monossílabos. Seus olhos só começam a se animar quando fala dos quatro filhos, a quem dedicou seu tempo e sua energia. O sucesso profissional de Ricardo, Rinaldo, Marcelo e Marcos a faz se sentir realizada. Mas sua língua se solta, para valer, quando o assunto é a infância à beira do rio, na Iputinga e em Monsenhor Fabrício.


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já estava casada há dois, amamentando os gêmeos Ricardo e Rinaldo, nascidos há menos de dois meses. “Veio aquela cheia e acabou com tudo, né? Fiquei debaixo de um pé de árvore, com duas crianças... bem novinhos, com 42 dias, só ficou um pedacinho assim pra gente ficar. O lugar que a gente estava, só ficou uma ilha, passei o dia todinho lá, passando fome, né, com as crianças somente amamentando, sem comer. Meu marido tinha ficado lá pra ir pegar as coisas, com meu pai, minha mãe. Eu fiquei sozinha”. “Aí depois cheguei numa casa, aí eu pedi: ‘Me dê um pouquinho desse feijão’. A mulher tava cozinhando um feijão. Aí eu pedi comida à mulher e ela me deu. Ficou com muito pena de mim porque com duas crianças... Me levaram pra uma casa, disseram: ‘Aqui não chega água’. De repente a água chegou e eu fiquei com um menino de seis anos nas costas, era meu irmão mais novo, e dois nos braços”. “No outro dia, quando amanheceu o dia, foi que a minha irmã, procurando: ‘Você não viu não uma mulher com duas criancinha novas, não?’ Tava enrolada no lençol, que a mulher me deu, aí eu disse assim: ‘Eu tô aqui, Hilda!’, eu não podia nem falar. Eu rouca:. ‘Eu tô aqui, Hilda’. Aí ela: ‘Ai meu Deus! ela não morreu, não’. Eu tava rua, debaixo do pé de árvore. Aí ela quando me viu começou a chorar: ‘Ela não morreu, não, Nivaldo’. Ela com o noivo dela, que tava me procurando também”.

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Depois, tentando retomar a vida, ela soube que outras pessoas, gente conhecida, que vivia por perto, na margem oposta, perdeu mais do que os poucos bens.

“Foi muito sufoco em sessenta e seis”

“Foi muito sufoco em 66, viu?!”

“Lá na... perto de minha casa, um lugar chamado, Caiara, ouviram falar? O rio é bem pertinho, né? Morreu de uma família só, morreram três filhos e uma tia. De uma família só... era de Djalma... filhos de Djalma. Dessa família morreram três filhos.... três netos de Castanha e a filha, que vinham num barco, aí o barco virou e morreu tudinho”. Depois da cheia, a mãe e o pai foram morar no bairro de Jardim Primavera, também em Camaragibe. Ela, os filhos e o marido – que a abandonou há vários anos e não teve o nome citado nenhuma vez na entrevista - foram para o centro da cidade, perto da prefeitura. Em 1975, o casal comprou o terreno onde construiu a casa no Loteamento Santa Mônica. “A diferença foi grande, né? Porque eu sempre morei na Iputinga, nasci lá, e vir morar em outro lugar, foi muito difícil. Mas, agora, eu não quero sair mais daqui”. “Quando eu vim morar aqui, não tinha nem energia. Esse poste aí, ó... Pra eu botar energia aqui, eu tive que comprar ele. Porque a luz só chegava até aí, na esquina. Aí o homem disse que tinha... ‘se a senhora comprar o poste, eu boto a luz aqui’. Pra botar água aqui, foi preciso a gente pagar pra botar. A gente que comprou a encanação todinha daqui, pra botar. Agora, tá muito fácil, todo mundo chega, só botar, puxar a água, às vezes nem paga. Eu, pra fazer isso aqui, eu paguei! Foi sacrifício! Até cavei essa rua aí pra botar água, com meus filhos e meu esposo”.


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“Aqui não tinha nada. Só tinha casa nesse outro lado de lá. Essas casas daqui, não tinha nada. Aqui era só mato, mas aqui não faz medo, não. Aqui, meu filho, esses anos todinhos, nunca aconteceu nada aqui, não. A tranquilidade! Era tranquilo! De sair, deixava a porta aberta, esquecia, e quando eu chegava tava tudo do mesmo jeito. Mas hoje... tem que trancar tudo”. O esforço para reconstruir a vida em Camaragibe teve de acontecer simultaneamente à necessidade de garantir a educação dos quatro filhos, o maior projeto de vida de Miriam Pereira. “Eu só estudei até a quarta série, eu sempre fui dona de casa. Eu mesmo me casei com 18 anos, aí não quis que meus filho ficassem igual a mim. Botei tudo pra estudar. Foi sacrifício pra levar! Até 12 anos leva eles até no colégio, com medo daqueles ônibus da 1002 pra Limoeiro e Carpina, que só passavam bestados, aí na avenida¹. Até no centro de Camaragibe, que eles estudavam no Frei Caneca. Não tinha ônibus, aqui. Tinha que ir de pés mesmo”.

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¹ A Belmino Correia atravessa o centro de Camaragibe e faz a ligação entre a Zona Oeste do Recife e os municípios da Zona da Mata Norte.


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Medalhas de ouro, prata e bronze eram os prêmios oferecidos pela prefeitura do Recife aos 10 melhores colocados da Prova Heróica. Mais interessados no desafio e na fama do que em fortuna, pelo menos 30 nadadores entravam nas águas cristalinas do Capibaribe para superar os sete quilômetros rio abaixo, do Poço da Panela até a rua da Aurora, onde ficava a sede da administração municipal em meados da década de 50. O público acompanhava a largada para, em seguida, entrar em seus carros e se juntar à multidão que esperava os competidores na chegada.

Aloísio não aprendeu a nadar no rio, mas por causa da esquistossomose que o contaminou na infância, época em que tomava banho no trecho do Capibaribe que corta o Engenho Constantino, propriedade de sua família e onde foi criado, em São Lourenço da Mata. “Na época, o tratamento era muito pesado, eram umas injeções que doíam demais e fazia a gente urinar azul, o porquê eu não sei. Eu fiquei muito magro, com as orelhas de abano, andava daqui pra ali e ficava com falta de ar. O médico disse só tinha um jeito: começar a nadar. Eu comecei de seis pra sete anos, no Clube Português. Pra eu nadar, era na marra, quando eu chegava na borda da piscina, meu pai, muito educado, dava porrada na minha mão pra eu voltar, não podia parar. Aí, nadei até os 25 anos”. “Na Prova Heróica, pulava na água e saía nadando. Agora, era muito bom, só era ruim quando atravessava o Gasômetro. Vocês não conheceram o Gasômetro, era ali pro lado da estação do trem, nos Coelhos, era ruim porque tinha a fuligem e aí,quando pegava na boca, a gente, vomitava. Era Prova Heróica porque não era fácil nadar sete quilômetros. A gente não nadava pra ganhar primeiro lugar, era para ganhar medalha, porque as medalhas eram até o décimo lugar e todo mundo queria ganhar uma”. Nadar no Capibaribe não era novidade na vida de Aloísio. Antes e depois de disputar a Prova Heróica, ele costumava cruzar em rio em diversos pontos, ora para exercitar-se, ora por pura diversão. A água do rio era sua segunda casa.

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Houve quatro edições da Prova Heróica e, em duas delas, Aloísio José Maranhão Dias participou. Na primeira, em 1954, quando tinha apenas 17 anos, ganhou a medalha de ouro reservada para o vencedor. Dois anos depois, garantiu o segundo lugar em mais um ótimo desempenho. As medalhas e os recortes de jornais ainda estão guardados nos armários do seu apartamento no bairro de Casa Forte, de cuja varanda se avista uma das curvas do rio.


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“A gente ia pro Barroso, pegava aquelas baleeiras que eles tinham lá, quando chegava no meio do rio tomava banho, depois pegava os barcos e voltava para o Barroso. Antes disso, lá em São Lourenço, tinha Ermírio Dantas de Albuquerque, hoje ele já faleceu, mas foi capitão-de-mar-eguerra. Ermírio, apostava comigo, nadando, atravessar 15 ou 20 vezes o Capibaribe”. Tamanha intimidade com água levou Aloísio a construir uma carreira vitoriosa. Depois de nadar no Capibaribe e nas piscinas do Português, foi para São Paulo nadar no Palmeiras e no sofisticado Cube Esperia. Competiu como grandes da natação dos anos 50, como Tetsuo Okamoto, primeiro nadador medalhista olímpico, e chegou a ser campeão sul-americano pelo Palmeiras disputando duas provas de velocidade, os 100 metros livres e costas. Em São Paulo, ele fez mais do que nadar. Enquanto competia, cursava Administração de Empresas na Faculdade Mackenzie. Quando largou as competições, passou a dedicar-se a outra de suas paixões: a boêmia. Sempre que voltava para o Recife, até as noitadas tinham o Capibaribe como cenário, pois as farras eram em uma palafita construída na avenida Martins de Barros, próximo ao Palácio do Campo das Princesas, em pleno centro do Recife, onde funcionava uma famosa boate chamada Flutuante.

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“Teve uma vez - eu morava no apartamento em São Paulo, eu e Luiz Carlos Menezes, também de São Lourenço da Mata -, chegou um dia de Natal, fomos pra missa e, depois, fomos comprar a festa da gente. Compramos peru, presunto, uva, tudo que tinha direito. Ficamos eu e Luiz Carlos, Luiz falou: ‘Tá bom não, o que vamos fazer? Vamos ali comigo’. Chegou lá, perguntamos quantas mulheres tinham. Eram cinco. ‘Quem quer passar um Natal bom arretado?’ Todas as cinco quiseram. Passamos o Natal, cinco putas, eu e Luiz Carlos. Era uma vida boa. O rico pode ter vivido a vida que eu vivi, mas não melhor que a minha. Eu era liso, só fazia nadar e estudar, não pensava em nada, aí o meu sogro um dia chegou: ‘Tá na hora de casar, dez anos de namoro é muito tempo’. Eu namorava Leda desde os 14 anos. Então, eu disse: ‘O senhor marca o dia’. Ele marcou e eu casei, fui forçado a me casar. Chegou um dia eu disse: ‘Seu Zé, eu não quero mais a sua filha, não. Tome conta dela e ainda lhe dou uma bonificação de três meninos’.” Lêda acostumou-se rápido ao bom humor do marido, com quem vive até hoje. De volta ao Recife, casou e montou uma fábrica de móveis, vendida logo depois. Com o dinheiro do negócio, Aloísio comprou três lojas de móveis e eletrodomésticos em Camaragibe, Carpina e São Lourenço. Na enchente de 1975, a solidariedade dos vizinhos impediu que perdesse todo o estoque da filial da cidade na qual foi criado. “Foi muito ruim, eu tava lá em cima do outro lado do rio, onde eu morava. Me disseram que minha loja tinha se acabado dentro d’água. Eu fiquei muito preocupado. Aí, eu chamei meu amigo Biu Mendonça: ‘Bora lá comigo, Biu, vamos atravessar o rio comigo’. A correnteza tava danada. Quando eu cheguei lá, graças a Deus eu não tinha tido problema, a água tinha baixado e o pessoal tinha tirado os móveis. Sabe quanto eu perdi de móveis? Nenhum tostão. O rio encheu, deu dois metros dentro da minha loja, mas, antes de encher, o pessoal, meus amigos, tiraram de dentro da loja todos os móveis e levaram pra cima, pra casa de um amigo nosso. Isso foi muito bom”.


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“Morreram dois em São Lourenço, de coração, porque disseram que a água ia chegar na Igreja. Você não tem idéia daquilo, não. A cidade toda ficou dois metros debaixo da água, o comércio todo, todo. Eu sei que a cheia mexeu com a vida de muita gente, mas alguns se locupletaram, teve gente que não teve nada com cheia e recebeu financiamento com juros subsidiado, mas só foi uns dois ou três, eu descobri, foi no Bandepe e no Banco Mercantil, que faziam o repasse lá em São Lourenço”. Aloísio manteve sua loja, foi eleito presidente do Clube dos Diretores Lojistas do município, mas decidiu investir em outro ramo: a criação de porcos de “alta linhagem”. Por conta da inseminação artificial e melhoramento genético, manteve um rebanho de qualidade e vendia a carne para grandes frigoríficos do sul do país, principalmente a Sadia e a Perdigão. Aos 72 anos, aposentou-se, deixou os negócios de lado, e está concentrado naquilo que considera a prioridade de sua vida: lutar pela revitalização do rio Capibaribe. Representando o Rotary Club, faz parte do Comitê de Bacia do Capibaribe e está à frente de quase todos os movimentos em defesa do rio. Uma batalha difícil, mas que o deixa animado e otimista. Ele tem certeza que o Capibaribe vencerá.

“Você veja, aqui mesmo no meu prédio, o que não presta vai pra dentro do esgoto, é um mau cheiro grande em qualquer época. Mas eu tenho certeza que vamos vencer. Por quê? Pra minha surpresa eu tive agora em Santa Cruz do Capibaribe e a secretaria de Meio Ambiente tá com 20 mil mudas. Foi uma surpresa minha. A menina de Brejo tem quatro ou cinco mil mudas. Eu vi todo mundo com mudas. O Rotary tem um projeto de 100 mil mudas para o rio Capibaribe, mas até agora não foi aprovado. Ou melhor, foi aprovado, mas tá empacado na Secretaria de Recursos Hídricos, mas vai sair, vai sair. Tenho certeza que vão limpar esse rio com drenagem porque, aqui em Recife, quem mais suja o rio, fora os prédios, são os canais”. Aloísio sonha com o dia em que os recifenses voltarão a tomar banho no rio e a comer os pratos e aperitivos feitos com os frutos do Capibaribe, pratos como o caramujo ou o cascudo ao molho de coco, que ele lembra com água na boca. “Tinha muito caramujo no rio, a gente tirava os caramujos pra cozinhar no coco, pra comer. Depois o caramujo fez uma viagem pra França, quando voltou, voltou escargot. E tinha também uma mulher, Expedita, uma preta velha que morava no Prego, que era a zona de São Lourenço, ela era uma das putas e era minha amiga, ela pegava cascudo, um peixinho pequeno que vive no chão do rio comendo o que não presta. Ela pegava pra fazer de coco e comer comigo, foi quando eu aprendi a comer e a tomar cachaça. Foi na beira do rio também”.

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“Vou dizer porque eu luto. Porque eu sempre fui criado dentro do rio, eu comecei a brigar pelo rio muito cedo. Quando eu via o pessoal jogando coisa dentro do rio, eu brigava. Eu me lembro que eu briguei com um prefeito de São Lourenço, Amaro Alves de Souza, porque ele fez uma passagem e, por baixo dessa passagem, corria tudo quanto é bosta pra dentro do Capibaribe. Eu disse: ‘Amaro, isso tá ruim’, mas ele ficou com raiva de mim por causa disso. Isso foi há quase 40 anos atrás. Briguei também na Compesa, há um ano, porque, desde que inaugurou, a estação de tratamento do Paque Capibaribe tem uns 15 anos que não funciona”.


“Capivara até hoje tem”

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Mudou quase tudo em torno de Zomilton Tomé Porangaba. O Parque da Jaqueira tomou o lugar dos campos de futebol do Tramways Sport Club; o cotonifício da Torre não existe mais; um supermercado com um estacionamento enorme foi construído no lugar onde existia a fábrica de sacos de estopa; a antiga indústria têxtil está vazia e abandonada; uma ponte, que o povo chama de viaduto, foi construída para ligar a rua José Bonifácio aos bairros da Zona Norte do Recife; o rio está sujo, com enormes manguezais onde antes havia praias de areia branca.

O aparente anacronismo tornou a travessia a remo conhecida da população do Recife, tanto que Zomilton já cansou de dar entrevistas para jornais, emissoras de TV e estudantes de Jornalismo. Até filme já fizeram sobre sua vida. Apesar de parecer obsoleto com duas pontes na vizinhança, o barquinho continua sendo o principal meio de vida da sua família. “Eu adoro isso aqui. Inclusive, eu tenho um depósito de água mineral, mas trabalho até três horas. De três horas, eu venho pra cá. Isso aqui é um lazer. Eu vendo água, negócio com grade na porta para não dar ladrão, mas minha vida todinha é aqui. Meu filho trabalha de segunda à sexta. Sábado e domingo sou eu, pra dar folga a ele”. “Ainda dá pra sobreviver. Graças a deus, ainda dá. O povo que passa aqui é pra ir pra Jaqueira pra trabalhar, tem cliente pra Jaqueira, pro colégio das Damas. Muita gente da Torre também passa porque, atravessando aqui, pega o ônibus na Rui Barbosa e chega mais depressa na cidade”. “Antes, era a mesma finalidade, colégio e trabalho. Inclusive, o movimento aqui era pra dois barcos e não dava vencimento. Era grande porque tinha a fábrica da Torre, tinha o cotonifício Capibaribe, tinha a fábrica de confecção, que é onde tem esse dois prédios. Somente na Confecção trabalhavam 3.000 moças. Aquela ponte do Carrefour não existia. Ali, era outro

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Só o que parece não ter mudado é o barco a remo de Zomilton, que continua a fazer a lenta e agradável travessia a preços baixos entre a Torre e a avenida Rui Barbosa, na altura da Jaqueira, o bairro com maior índice de qualidade de vida da capital pernambucana. A imagem do pequeno barco remete ao final do século XIX, época em que o avô de Zomilton, conhecido na área pelo apelido de Manoel da Bala, começou a atravessar os operários, a maioria dos morros de Casa Amarela que vinham andando ou pendurados em bondes pela estrada do Arraial e avenida Conselheiro Rosa e Silva.


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barco. E, agora, estão passando esses ônibus PE-15, Casa Amarela, Nova Torre. Aí pronto, quebrou muito a gente”. O aumento das linhas de ônibus e da quantidade de veículos prejudicou a atividade do barqueiro, mas Zomilton já teve motivos mais fortes para se preocupar. Ele perdeu o sono quando um político em campanha eleitoral decidiu prometer que uma nova ponte seria construída exatamente no local da travessia. “Teve um sujeito que queria fazer uma ponte aqui. Era um candidato a vereador, mas perdeu. Perdeu, mas não foi só por causa disso, não. Ele botou uma paisagem, tirou a foto do barco e escreveu: ‘Em breve, uma ponte aqui’. Aí, a turma ficou revoltada. Diziam: ‘Olhe, eu até votava nesse rapaz, mas eu não vou votar nele não, só por causa dessa proposta’. Isso aqui é o nosso ganha pão e, outra coisa, isso aqui já é histórico. É da história isso aqui. Pode me tirar sim, mas a gente também não vai sair de mão limpa, né. A gente tem que ser bem indenizado. Eu pago imposto pra Capitania dos Portos”. “Uma ponte vai enfeiar tudo, vai dar é muito marginal. Aqui, eu tomo conta e é meu ganha pão. É tudo pra mim”.

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A travessia a remo da Jaqueira, realmente, faz parte da história da cidade. Enquanto outros barqueiros da cidade se aposentavam ou trocavam de profissão, a família de Zomilton perseverou. Seu avô, o citado Manoel da Bala, passou os remos para Manoel Porangaba, pai de Zomilton, que todos conheciam como Manoel Alagoano. Agora, Zomilton já divide o trabalho com o filho mais velho, Antônio Marcos. “Meu pai trabalhava na fábrica, então quem vivia mais aqui era meu avô, que era quem atravessava. Depois, meu pai saiu da fábrica, aí ficou aqui atravessando o povo. Meu avô já tava cansado, muito velho, com mais de 80 anos. Remava pelo tato, porque ele era cego. Remava pelo tato. No começo ele tinha vista, mas com a consequência do tempo, ele foi perdendo a visão e ia só pelo tato. Inclusive, querem botar o nome dele naquela ilha ali, querem registrar como a ilha Manoel da Bala1”. “Eu quase nasci no barco, dentro do rio mesmo. Quem rendia meu pai era a minha mãe, grávida de mim. Não só de mim, de todos os filhos, né. Foram seis filhos, eu sou o quarto. Aí, eu fui crescendo, crescendo, aí fiquei aqui”. Criado na prainha espremida entre a antiga fábrica de confecção e o Hospital Evangélico, Zomilton foi testemunha do processo de urbanização do Recife e da consequente degradação do Capibaribe. Sua memória preserva as imagens de uma cidade que vivia em torno da beleza do rio. “Tinham quatro campos do Tramways, aí onde é o parque da Jaqueira. Já tinha essa igrejinha, junto era um sítio de pés de manga. Vinha tanta gente jogar bola nos campos, era tudo lotado. Vinha o povo de Alto José de Pinho, Alto do Pascoal, Alto Santa Teresinha, Água Fria, Nova Descoberta, vinha tudo bater bola aí. Quando acabava o jogo, o pessoal ia tomar banho de rio. Tinha uma escada ali no fim do mangue, era uma escada por dentro do muro, começava na calçada e dava no rio”. ¹ Os pedestres podem ver a ilhota a partir do calçadão da avenida Rui Barbosa, na altura do Parque da Jaqueira.


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“Esse rio era todo de praias de areia, a gente corria pela beira do rio. Com tanta poluição, apareceu a lama, antes não tinha lama. Eu, com 30 anos, ainda cheguei a tomar banho nesse rio, mas já tava poluindo, já. Hoje em dia, eu não boto nem o pé. Não peguei doença não, é porque eu vi tanta gente adoecendo que eu disse: ‘Eu não vou mais tomar banho nesse rio, nada”. “Vinha a turma do Sport, do Náutico. Vinham mais de 50 caras nadando nessas competições, com uma lancha atrás, pra se acontecesse alguma coisa. Pra você ver, a água era tão limpa que a turma do Sport nadava aqui. Passavam mais de 20, 30, até ali depois do Carrefour, aí voltava tudo nadando. Era limpo, era limpo mesmo esse rio”. Passavam nadadores, lanchas, remadores e animais que, hoje, evitam as águas do rio a qualquer custo. Os golfinhos atraíam a atenção até dos pescadores e de pessoas acostumadas com a vida nas águas, gente como Zomilton, que, aos 60 anos, ainda abre um sorriso e não esconde o entusiasmo só de lembrar os grupos de golfinhos que subiam o rio até o trecho próximo ao Poço da Panela.

Zomilton garante que, mesmo raramente, os animais que deram origem ao nome do Capibaribe, as capivaras, ainda podem ser encontradas nos trechos das margens do rio cobertas de mato e de acesso mais difícil para os seres humanos. Outros animais aparecem com frequência ainda maior. “Rapaz, capivara até hoje tem, né. Eu não vejo muitas não, mas já vi por aqui, mas hoje é raro. Na minha infância eu não vi capivara, não, mas depois de velho eu vi. Aqui mesmo, tem duas capivaras atrás do muro do hospital2”. “De vez em quando, aparece até jacaré aqui. Já vi jacaré agora, já grande, mas tudo jacaré pequeno. Agora, garça tem demais”. Na casa simples de alvenaria, onde o barqueiro já morou e atualmente é usada como ponto de apoio, praticamente não há traços ou indícios da modernidade que o cerca, além do aparelho de tevê de 14 polegadas e do telefone celular no bolso da bermuda. Entretanto, amarrado e oculto sob o manguezal, está o Saionara, um barco idêntico ao mais antigo, usado na travessia, o Samaritano. Equipado com um pequeno motor a diesel, comprado por meio de financiamento, o Saionara é a ferramenta de trabalho mais valiosa de Zomilton. Com esse barco, foi possível compensar as perdas de passageiros provocadas pela melhoria do sistema de transporte 2

Hospital Evangélico, situado no bairro da Torre.

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“Achava muito bonito os botos. Passavam quatro, seis botos, a coisa mais linda. Vinham assim mesmo, com a maré enchendo. Agora, pegava o canal pela parte de lá, que é mais fundo. Eu corria pela beira da maré, a gente acompanhava os botos, eles saíam nadando, né, e a gente correndo atrás. Era criança, né, achava muito lindo. Continuavam, chegava lá muito depois do Carrefour, mas quando a maré parava e começava a secar, os botos voltavam. Eles vinham comer peixe, era lindo, lindo mesmo. A gente viu aqui muito boto, não foi pouco, não”.


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público do Recife. Com o motor, ele passou a oferecer passeios mais longos aos recifenses interessados em conhecer todas as curvas do rio Capibaribe, da foz até a altura das terras da família Brennand, na Várzea. “O preço do passeio eu faço por R$ 60,00. Agora, é um passeio gostoso, com a maré cheia é melhor. Pode vir que é bom demais. O melhor negócio que eu fiz foi comprar um motor pra esse barco. O motor é novo, tá ali”.

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Agradecimentos Aguinaldo Mendes, Genaro Pereira, José Marcos Areda e Márcio Falcão, Arnaldo Vitorino, Carol Fontes, Felipe Barros, Fernando Gonçalves, Geórgia Araújo, Pedro, Júlia e Bruno, Gilberto Silva, Gilson Pereira, Helena Marçal, Hélvio Polito, José Antônio Bastos e Manoel dos Santos Neto, Joseilda Gonçalves, Júlia Rodrigues, Leo Antunes, Manuela Mansur, Maria das Neves dos Santos, Maria Yeda Costa, Norma Suely e Mônica Barroso, Mônica Roque, Neguinha, Pedro e Miguel, Padre Cazuza, Romero Souza Leão, Tatiana Ferraz, Wellington Bigode.





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