Vidas Compartilhadas

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Recife, 1º de julho de 2018 domingo

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odos temos histórias emocionantes para contar. Algumas revelam como a dor da morte pode se transformar em solidariedade e levar esperança para um recomeço. O JC apresenta o mundo da doação e dos transplantes de órgãos pelas vozes de pessoas que ensinam, mesmo diante das adversidades, a recomeçar a vida quantas vezes for preciso. Confira conteúdo extra, com vídeos e fotos: www.jc.com.br/vidascompartilhadas


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SUS No País, 92% dos transplantes são feitos com recursos públicos

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onvidamos você a percorrer os olhos pelas páginas deste caderno especial e, em alguns momentos durante a leitura, fazer a seguinte pergunta: “E se fosse comigo?”. É um questionamento que levará a várias reflexões sobre dores e medos, que serão vencidos por doses de emoção e igualmente pela racionalidade. Ao longo de dois meses, nós fizemos essa pergunta várias vezes por dia, enquanto percorríamos o revelador mundo dos transplantes de órgãos e tecidos. Imaginávamos como, diante de tanta dor pela morte de um ente querido, uma família conseguia se deixar tocar pela generosidade e dizer sim à doação. E ao mesmo tempo, nos inundamos de emoção por saber que aquele consentimento possibilitou a transformação da dor da morte no renascimento de outras vidas. “É tudo muito mágico”, define a enfermeira Noemy Gomes. Com essa declaração, a coordenadora da Central de Transplantes de Pernambuco (CT-PE) faz alusão ao gesto da doação – que, vez ou outra, parece um tanto inexplicável. Como pode, por exemplo, o coração de um doador voltar a bater no peito de uma outra pessoa no curto tempo de quatro horas? Sim, é possível. A ciência tem dado tantos largos passos que a missão de salvar vidas faz parte da rotina diária da medicina e demais áreas da saúde. Só em 2017, ano de maior número de transplantes da história de Pernambuco, aproximadamente 1,8 mil pessoas no Estado ganharam a chance de recomeço porque receberam um novo órgão. Em média, foram quase cinco pessoas por dia que voltaram a alimentar a esperança após terem passado pelo transplante. Muitas delas não retornaram apenas a viver. Mais do que isso: ganharam ânimo, força e bem-estar para realizar ações que muita gente cumpre no piloto automático, mas que ganham um valor imenso para elas. Voltar a caminhar, varrer a casa, respirar sem desconforto, beber água sem limitações, estudar, trabalhar, formar uma família são sonhos que se tornaram reais, após o transplante, para quem se viu entregue a uma doença grave e, muitas vezes, terminal. Não são apenas os avanços da ciência os responsáveis pela retomada de vida, ano a ano, de mais e mais pacientes. De nada adiantaria ter medicamentos eficazes contra a rejeição do órgão e exames menos invasivos para acompanhar a saúde das pes-

Luta acirrada contra

o tempo

soas transplantadas se, por trás de todo esse progresso, não existisse um time que acolhe os parentes de um potencial doador. Um time que também se torna cada vez mais qualificado para dar o diagnóstico da morte encefálica (acontece quando o cérebro perde a capacidade de comandar as funções do corpo), confortar física e emocionalmente as famílias para que elas possam ter os subsídios necessários e sentir-se seguras para exercer o direito de doar órgãos. Nós, enquanto cidadãos, também temos o nosso papel nessa corrente da doação de órgãos e tecidos. “Quando as pessoas se declaram doadoras para a família, ainda em vida, o processo se torna menos doloroso. No momento da morte, os parentes se sentem confortados ao ser colocada para eles a decisão. Se deixamos claro que desejamos exercer o direito da doação após a morte, provavelmente haverá toda uma dedicação, por parte da família, para que os órgãos realmente cheguem a quem precisa”, esclarece Noemy. Atualmente, em Pernambuco, 1.004 pacientes estão na fila da esperança – a lista de espera da CTPE, que reúne todas as pessoas que aguardam um órgão ou tecido para a retomada de vida. Esse quantitativo já foi três vezes maior. “Chegou a 3 mil em 2011. Essa fila ratifica a necessidade de se abordar o tema dentro de nossas casas. Ser doador de órgãos e tecidos é um ato de solidariedade ao próximo e que dá a possibilidade de o paciente ter mais qualidade de vida”, reforça o médico oncologista Iran Costa, secretário estadual de Saúde. Ele acrescenta que, a partir de 1995, quando a CT-PE foi criada, quase 20 mil vidas pernambucanas foram modificadas completamente pela doação de órgãos. A empatia (a arte de se colocar no lugar do ou-

Atualmente, em Pernambuco, 1.004 pacientes estão na fila da esperança – a lista de espera da CT-PE, que reúne todos os que aguardam um órgão ou tecido

tro) também responde, em grande parte, pelo volume de pessoas que renasceram. “Se a gente passar a refletir sobre a possibilidade de que cada um de nós pode passar por esse processo (enquanto doador e também receptor de órgãos), certamente a taxa de negativa familiar será menor”, frisa o oftalmologista Lucio Maranhão, do Hospital de Olhos de Pernambuco (Hope) e da Fundação Altino Ventura (FAV), responsável por proporcionar a milhares de pacientes a retomada da visão após o transplante de córnea. A negativa a que o médico se refere é o principal empecilho do renascimento. Atualmente, de cada 10 possíveis doações de órgãos, cinco são

frustradas no Estado: até abril deste ano, entre as famílias de potenciais doadores de órgãos e tecidos entrevistadas, 48 autorizaram a doação e 53 recusaram. Ou seja, mais da metade disse não à chance que tinham pacientes, em estado de saúde grave ou terminal, de retomar a vida plena.

REFERÊNCIA

O Brasil tem hoje o maior sistema público de transplantes do mundo. Entre todos os procedimentos nacionalmente realizados, 92% são feitos com recursos públicos. O percentual de Pernambuco é um pouco maior do que a realidade brasileira: 95% dos transplantes de órgãos e tecidos, no Estado, são financiados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), que completa 30 anos em outubro deste ano. Na lista dos tipos de cirurgias feitas em Pernambuco, só não são totalmente realizadas com recursos do SUS córnea (72,9%) e medula óssea (90%). “Ao considerarmos as políticas de saúde pública, o sistema de transplante funciona bem. O Estado tem um importante papel na articulação e no desenvolvimento de todo o processo, melhorando a captação dos órgãos e a conversa com as famílias de potenciais doadores. Isso alavancou bastante o número de transplantes em Pernambuco, que faz um belo trabalho e se tornou referência no segmento em todo o País”, salienta o hematologista Rodolfo Calixto, coordenador do Setor de Transplante de Medula Óssea do Real Hospital Português (RHP). Nas próximas páginas, ele e outros especialistas revelam por que as histórias compartilhadas neste caderno nos inspiram a refletir como um simples gesto de solidariedade é capaz de dar uma nova chance para recomeçar.


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Um novo olhar sobre

a vida

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irou os óculos escuros, olhou fixamente para o rosto do pai e disse: “Que cara feia”. Fora de contexto, essa frase poderia causar aborrecimento ou soar, no mínimo, como brincadeira sem graça. Para o comerciante Altamir Ferreira, 50 anos, as palavras formaram uma melodia que simbolizava o quanto o filho, de 18 anos e batizado com o mesmo nome, conseguia contemplar tudo em volta sob uma luz diferente. Era o sinal de que uma máquina passou a ter condições de funcionar. Uma máquina chamada visão. Naquela ocasião, pelos olhos (praticamente) de lince, o jovem Altamir voltava a contemplar um leque imenso de informações que o cerca e, dessa maneira, conseguia se apropriar do ambiente ao redor. “Depois de anos sem conseguir enxergar, ele achou diferente o rosto do pai, que agora está mais queimado do sol, mais forte e com cabelos brancos. Então, quando ele falou ‘cara feia’, percebi o tanto de tempo que ele passou sem ver bem”, conta a mãe do rapaz, a professora aposentada de língua portuguesa Glória Alencar, 49. O episódio que ela relembra ocorreu poucos dias após Altamir Filho ter se submetido ao transplante de córnea – cirurgia esperada por cerca de um ano pela família, natural de Major Izidoro (AL), município a 200 quilômetros de Maceió. O pai, que não se irritou nem um tico com as palavras do filho, só tem o que comemorar: “Ele não andava direito porque mal enxergava. Agora está perfeito e mais alegre. É outra pessoa”. Quando Glória recorda a trajetória pela qual teve que passar para o filho receber uma nova córnea (tecido transparente que cobre a pupila e ajusta o foco da imagem no olho), ela deixa transparecer uma sucessão de sentimentos e emoções positivas, como felicidade e gratidão. É agradecida à família que possibilitou a doação da córnea do parente que se foi, além de esbanjar alegria porque agora o filho, que vivia tristonho em casa, só pede para passear. “A partir do momento em que ele foi deixando de enxergar, passou a ficar mais quieto. Comecei a estranhar porque ele era animado, extrovertido e brincalhão”, diz Glória, que lembra o dia em que ficou angustiada ao perceber que ele batia no rosto porque não conseguia ver os vídeos no celular. “Tentei acalmá-lo, dizendo que ele iria ficar assim por pouco tempo, mas a nossa luta durou pouco mais de um ano.” Os primeiros obstáculos despontaram em setembro de 2016, quando um “risquinho” apareceu no olho esquerdo de Altamir Filho. “Levei numa oftalmologista. Ela disse que se tratava de um germe e que futuramente seria necessário passar pelo transplante. Eu pensei que a cirurgia viria só em muitos anos. Mas passados seis meses, a perda da visão ficou mais perceptível.” A contar desse momento, foi iniciada a peregrinação da família. “Fomos para Maceió, e lá disse-

ram que ele tinha que fazer o transplante de córnea. Mas a equipe não operaria por ele ser especial”, relata Glória, ao referirse à condição genética de Altamir Filho. Ele nasceu com síndrome de Down, alteração que ocorre em cerca de um a cada 700 nascimentos. “Quando a médica disse que não faria a cirurgia por causa da síndrome de Down, já senti um pouco de rejeição da parte dela.” O transplante foi indicado por causa do diagnóstico de ceratocone – distrofia da córnea que acomete de 2% a 7% das pessoas com Down.

Por quase um ano, família peregrinou de Alagoas a Brasília na tentativa de fazer transplante IDAS E VINDAS Altamir, Glória e o outro olhar do jovem de 18 anos, que 15 dias após a 1ª consulta em Pernambuco estava de córnea nova

Com os obstáculos encontrados em Maceió, a família seguiu para Aracaju, onde a lista de espera por uma córnea chegava a dois anos, segundo relata Glória. “Era muito tempo. Então, o médico recomendou irmos a Brasília. Quando chegamos lá no dia combinado, o oftalmologista disse que não havia córnea disponível. Como mãe, eu já não estava mais suportando, pois a baixa visão começou a limitar a vida do meu filho. A angústia era imensa. Cheguei até a dizer que, se não encontrasse uma córnea para ele, eu seria capaz de doar a minha.” Depois de tantos altos e baixos, Glória chegou até o Hospital de Olhos de Pernambuco (Hope), na Ilha do Leite, bairro da área central do Recife. O Estado possui o status de córnea zero. Isso significa que o paciente, após realizar as avaliações médicas necessárias para ser inscrito na fila de espera, faz o transplante em até 30 dias. Muitos dos exames Altamir Filho já tinha feito. Então, em menos de 15 dias após a primeira consulta, ele já estava de córnea nova. “Nem acredito que agora estamos contando a vitória. Ninguém imaginava que um ano de luta poderia ser resolvido, em Pernambuco, em poucas semanas.” Hoje faz exatamente 1 mês e 16 dias de uma cirurgia que, de tão bem-sucedida e esperada, presenteia o jovem com os registros das melhores cenas de sua vida.

Alegria de voltar a enxergar

O status de córnea zero foi uma conquista de Pernambuco como um todo. Isso envolve os médicos e demais profissionais de saúde, as equipes da Central de Transplantes, os bancos de olhos e o trabalho de conscientização da população”, diz o oftalmologista Lucio Maranhão

Se cada um pudesse ver, um dia que fosse, a alegria de alguém que recebeu uma córnea e voltou a enxergar, não teria dúvidas sobre a importância da doação de órgãos e tecidos. Com essa declaração, o oftalmologista Lucio Maranhão, do Hospital de Olhos de Pernambuco (Hope) e da Fundação Altino Ventura (FAV), mostra o quanto é valioso conscientizar a sociedade. “Já acompanhei pacientes que tinham privações visuais e estavam sem esperança. São pessoas que, às vezes, até entram em depressão. Quando recebem nova córnea, ganham de volta não apenas a visão, mas também a alegria de viver e a vontade de fazer coisas que não conseguiam antes”, frisa Lucio Maranhão, que já realizou cerca de 800 transplantes de córnea. O oftalmologista é um dos que médicos que abraçaram a missão de diminuir a fila de espera por transplantes de córnea em Pernambuco. Em 2013, ele contribuiu para que o Estado alcançasse o status de córnea zero, mantido até 2015, segundo a Central de Transplantes de Pernambuco (CT-PE). O título, retomado em 2017, caracteriza os casos em que o paciente, após realizar os exames necessários para ser inscrito na fila de espera, é submetido ao transplante em até 30 dias. Atualmente, 75 pessoas aguardam uma córnea no Estado. “O procedimento é indicado para os casos de opacidade de córnea, que deixa a visão turva, e doenças que deformam completamente esse tecido (como o ceratocone), a um ponto que baixa a visão do paciente. O transplante ainda

pode ser feito em casos de infecções. Se atingirem a córnea, dependendo da gravidade, uma cirurgia terapêutica pode ser feita”, informa Lucio Maranhão. O médico acrescenta que, para a cirurgia, é necessário que a estrutura do olho esteja em boas condições. “Se a retina, a mácula e o cristalino estiverem ruins, a visão não volta após o transplante. É por isso que os pacientes precisam ser bem avaliados antes do procedimento.” Outro detalhe é que não há limite de idade para a cirurgia. Os pacientes com diminuição da qualidade de visão decorrente de problemas na córnea depositam no transplante a única esperança para voltar a enxergar. “Acompanho uma paciente, na FAV, que estava com perda de visão nos dois olhos e, há 12 anos não enxergava. Precisou passar pelo transplante, e eu presenciei o dia em que foi tirado o tampão do olho. Pela primeira vez, depois de mais de 10 anos, ela viu a filha (que estava ao lado). É um momento do qual nunca vou me esquecer. Fiquei bastante tocado”, relembra Lucio Maranhão. Para o oftalmologista, um instante como esse desperta a empatia, que é a capacidade de experimentar e compreender o sentimento do próximo. “Mesmo partindo, podemos fazer uma caridade a quem fica. É uma parte de nós que continua viva no semelhante, que será eternamente agradecido por essa doação.” A gratidão sublinhada pelo médico é um dos bens mais preciosos para quem renasce a partir desse gesto (simples, mas rico) de solidariedade.


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COMPATÍVEIS Luiz Cauã, Murilo e Matheus são a prova da força contida na simples doação de medula óssea

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s três meninos da imagem que enobrece esta página nos dão a chance de entender que, independentemente da idade, todos temos uma história para contar. Eles nem imaginam que, com a alegria estampada nos olhos, ensinam como o recomeço faz parte da vida de todos nós e que, quase sempre, ganhamos a oportunidade de seguirmos inteiros após um baque. “Quando apareceu o meu doador? Fiquei feliz, feliz, feliz e feliz”, respondeu Luiz Cauã, 11 anos, ao ser questionado sobre o momento em que soube que havia sido encontrada, após nove anos de espera, uma pessoa compatível com ele. A luta dele contra uma anemia genética começou nos primeiros dias vida. Ele nasceu sem produção de hemácias (células vermelhas do sangue) e sempre teve o transplante de medula óssea como a única chance de cura. Para sobreviver, passou nove anos dependendo mensalmente de transfusões de sangue. “Logo após o nascimento, na primeira consulta com a pediatra, Luiz Cauã fez um exame que acusou uma taxa muito baixa de hemoglobina (proteína que transporta o oxigênio pelo sangue). Apenas aos 5 meses de vida, veio o diagnóstico. Fomos avisado de que não havia medicamento para tratar a doença e que somente o transplante de medula óssea o salvaria”, conta a mãe do menino, a dona de casa Shirlene Maria Tavares, 35, moradora de Igarassu, no Grande Recife. Naquele momento, começava a procura por um doador na própria família. As chances de se encontrar alguém compatível, entre irmãos ou um dos pais, é de 25%. Os parentes de Cauã não estavam dentro dessa estatística. Para resistir à anemia, Luiz Cauã passou por milhares de transfusões até os 3 anos, quando apareceu uma esperança num cordão umbilical (uma das fontes de células-tronco para o transplante de medula óssea). Fez o procedimento, passou três meses internado e teve alta. Tudo parecia se acalmar, se não fosse a rejeição do enxerto da medula. Foi preciso voltar à rotina das transfusões – um pesadelo que acabou aos 9 anos, quando se descobriu um doador. “Vai mudar tudo”, diz Luiz Cauã logo que soube da compatibilidade. E o garoto estava mais do que certo. Com o transplante, nasceu um novo espírito de criança em Luiz Cauã, que comemora em setembro dois anos de infância feliz. Na zona rural de Rio Branco, no Acre, também não falta celebração. Há quase um mês da volta para casa de Murilo Andrade Nascimento, 10, a família ainda está em festa. Após passar seis meses no Recife, onde foi submetido ao transplante de medula óssea, o menino volta a apreciar o modo de vida do campo. “Está andando por tudo o que é lugar, soltando pipa, matando a saudade do açude, dos amigos e de todos da família”, relata o pai de Murilo, o microprodutor rural Marcos Nascimento, 57. É um garoto que deixou de lado o ar abatido da anemia aplástica severa (condição em que o organismo deixa de produzir quantidade suficiente de células sanguíneas novas) para desfrutar de tudo o que a vida tem a oferecer. Para destruir a doença (diagnosticada em outubro do ano passado, após Murilo terminar o tratamento contra uma hepatite autoimune), o único caminho seria o transplante. Começaram as buscas na família pelo doador. A notícia dos sonhos chegou em 15 dias: o irmão Marcos, de 20 anos, foi 100% compatível. “Quando soube, senti uma emoção muito grande. Naquela hora, a minha vontade era de gritar, comemorar o fato de já ter um doador para o meu filho. Estava receosa porque a doutora falou que essa busca nem sempre é fácil. Há casos em

Dose tripla para o

recomeço Para ser doador de medula basta ir a um hemocentro, manifestar o interesse e receber as orientações

que o paciente tem 11 irmãos e nenhum deles pode doar. Então, foi um momento muito gratificante pra gente”, recorda a mãe de Murilo, a dona de casa Ana Célia Andrade Nascimento, 47 anos, que atribui, ao filho Marcos, o título de herói de Murilo – o irmão mais novo que ele sempre pedia . “Hoje a vida dos dois está ainda mais ligada. E Murilo voltou a ser o menino brincalhão, de nove meses atrás. Está contente por ter vencido a doença”, vibra o pai. Agradecida aos médicos pelo atendimento dado ao menino, como também aos amigos pelas orações e vibrações positivas, a família agora planeja abraçar uma mobilização na região do Acre onde mora. “Sempre pensamos que essas coisas nunca podem acontecer com a gente. Após tudo o que vivemos, só podemos dizer que ficamos mais unidos e aprendemos a crescer com cada desafio. Agora a nossa pretensão é convidar os amigos para se cadastrarem como candidatos a doador de medula óssea. É tudo tão prático, e o risco é mínimo para devolver a vida a uma pessoa (quase) sem esperança”, destaca Marcos, que está cheio de razão. O cadastro não tem mistério. Basta ir a um hemocentro, manifestar o interesse em se inscrever e receber orientações. É retirada também uma pequena quantidade de sangue (10 ml) do candidato a doador. Quando houver um paciente com possível compatibilidade, o voluntário será consultado para decidir quanto à doação e à chance de salvar uma vida.

NINGUÉM SEM DOADOR

O hematologista Rodolfo Calixto é o coordenador do Setor de Transplante de Medula Óssea do Real Hospital Português (RHP), no bairro de Paissandu,

área central do Recife. Desde 2002, ele acompanha pessoas que renascem após doações. “A gente vai se apaixonando por esse trabalho e se envolve mesmo. Conseguimos salvar a maioria dos casos. Digo para ir com fé que tudo vai dar certo”, destaca o médico, que viu progredir a busca pelos doadores no banco nacional. Ele recorda que, há seis anos, o tempo médio de espera para se encontrar um doador compatível fora da família era de 9 meses. Hoje, dura em torno de cinco meses. “O período ainda é longo, mas caiu quase pela metade.” No ano passado, o RHP começou a salvar vidas com uma nova técnica: o transplante de medula óssea de doador que não é 100% compatível, conhecido como haploidêntico. “Três pacientes já passaram por esse procedimento, que traz a mensagem de que ninguém mais ficará sem doador.” O haploidêntico ocorre quando a compatibilidade é de apenas 50%, o que é possível com parentes como pai e mãe. A questão é que se trata de um transplante mais difícil, com taxa de rejeição mais alta. “Mas para uma pessoa em estado grave e que não encontra um doador totalmente compatível, é um procedimento que pode ser viável”, ressalta Rodolfo Calixto. Foi o que aconteceu com o estudante Matheus Lima da Luz, 10, que mora em Rolim de Moura, no Estado de Rondônia. “Ele chegou com uma aplasia grave (doença em que a medula não funciona). O caso dele não permitia esperar até aparecer um doador 100% compatível. O nome de um até surgiu no banco, mas ele não foi encontrado pelas equipes de busca. Um outro foi detectado, mas fora do Brasil. Ou seja, esperar (os trâmites internacionais) também seria difícil no caso dele. Então, o haploidêntico foi o mais indicado”, conta o hematologista. Para passar pelo transplante, Matheus chegou ao Recife em janeiro deste ano. Recebeu a medula do pai (50% compatível) em fevereiro. No mês passado, veio a boa notícia: a saúde do menino voltou a prosperar e ele recebeu o aval para voltar para casa. Com a mãe, a costureira Eucineia Santos de Lima, 34, sempre por perto, Matheus nunca perdeu o ânimo. Recuperado, ele até já faz planos. “Quero me tornar hematologista quando crescer, pois gostei muito do doutor que me atendeu em Porto Velho (capital de Rondônia). Quero cuidar de pessoas também”, diz Matheus, que é um exemplo de como o transplante dá espaço para a essência de criança resplandecer de forma autêntica, livre e feliz.

Para algumas doenças, o transplante de medula óssea é a única medida curativa. É o caso das leucemias graves, como também dos linfomas de característica agressiva, que não são curados só com quimioterapia. O transplante pode não representar 100% de cura para todos os pacientes. Muitas vezes, o procedimento é realizado e, ainda assim, a doença volta depois de um tempo ou aparece a rejeição. Mas são riscos administráveis, que permitem dar uma chance real ao paciente, bem maior do que a que ele teria apenas com a quimioterapia”, diz o hematologista Rodolfo Calixto


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É muita

LIVRE “É muito bom voltar a respirar como antes. Senti um alívio”, diz Vinícius

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nspirar e expirar mil e uma vezes, sem dificuldade. Faz nem um mês que esse ato involuntário e inconsciente acontece sem perturbações. O desarranjo decorrente do ar que faltava pelo mínimo esforço, como uma simples caminhada, foi para bem longe. “É muito bom voltar a respirar como antes. Ah, eu senti um grande alívio”, diz o estudante Vinícius Cezar de Souza Santos, 15 anos, que recebeu um novo coração há menos de um mês. Passou pouco tempo na fila de espera pelo transplante cardíaco – precisamente quatro dias. A saúde do adolescente estava totalmente fragilizada; dependia do uso contínuo de medicamentos para manter as funções do coração. De tão grave, o caso passou a ser prioridade na lista dos pacientes que aguardam um coração. Na redação do JC, a gente só esperava boas notícias para Vinícius, até que uma mensagem enviada à reportagem, numa quarta-feira à tarde, sinalizou que havia um provável doador para o jovem. Poucas horas depois, a negativa: o coração não tinha boas condições para ser implantado. Continuamos, então, esperando nova oportunidade para Vinícius sair da fila de espera. Não demorou muito: no dia seguinte, a Central de Transplantes de Pernambuco (CT-PE) foi notificada sobre um potencial doador. Faltavam o diagnóstico de morte encefálica e, sendo confirmado, a autorização da família para a doação de órgãos. A efetivação aconteceu na madrugada. Poucos minutos antes das 6h, o telefone da reportagem toca. “E aí, vamos transplantar?”, perguntou, em tom otimista, o cardiologista Rodrigo Carneiro, que acompanha Vinícius desde o início deste ano no Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (Imip), no bairro dos Coelhos, área central do Recife. Àquela altura, faltava o doador passar pelo ecocardiograma, exame capaz de avaliar se o coração está em boas condições para ser implantado. O telefonema do cardiologista carregava tanto otimismo que a reportagem preferiu não esperar o resultado do exame. Às 6h40, a equipe do JC já estava no Imip. Cinquenta minutos depois, veio a revelação de um coração perfeito, pronto para ser implantado no adolescente. A família dele, do município de Escada (na Zona da Mata Sul de Pernambuco, a 60 quilômetros do Recife), já havia sido comunicada da possibilidade. O resultado do ecocardiograma apressou os passos do pai e da mãe para chegarem ao Imip. Foi preciso o médico acordar Vinícius, que ainda dormia num leito da enfermaria, para dar a notícia. Coube ao cirurgião cardiovascular Diogo Ferraz a tarefa de comunicar ao jovem que, em breve, ele teria um novo coração. “Levantei meio assustado, sem saber o que acontecia. Quando soube que a cirurgia seria realizada, não fiquei nervoso. Sabia que o transplante poderia me dar uma vida normal.” Naquele momento, o relógio corria contra o tempo. Foi tudo tão rápido que não deu tempo de os pais de Vinícius verem o filho antes da entrada no bloco cirúrgico. Entre a anestesia e o fim da cirurgia, passaramse três horas e sete minutos. O transplante cardíaco requer mesmo pressa. Para coração, o tempo de isquemia (prazo entre a retirada do órgão do doador e o implante no receptor) é de apenas quatro horas. “O nosso tempo é bem limitado. No caso deste coração que foi para Vinícius, o órgão foi parado, por uma solu-

num só FESTA Fátima e Valdir agradecem a chance do recomeço e vão celebrar o aniversário do filho duas vezes por ano

ção de preservação, às 9h44. Foram 86 minutos entre esse horário e o momento em que Cristiano (outro médico da equipe) fez o coração voltar a bater”, relatou o cirurgião cardiovascular Jeú Delmondes de Carvalho Júnior, que fez parte da equipe de captação do órgão ao lado do também cirurgião Felipe Ribeiro Walter. Na noite do dia em que o procedimento aconteceu, Jeú deu a boa notícia: “Vinícius já respira sem aparelhos e está evoluindo muito bem”.

O transplante cardíaco requer pressa. Da retirada do órgão ao procedimento final são, no máximo, 4 horas Um momento como esse, para o cirurgião Cristiano Berardo, é sempre carregado de lembranças. “Antes do transplante, percebemos o quanto o paciente está mal. Quando ele acorda, na unidade de terapia intensiva (UTI), relatando que se sente melhor, vem muita emoção. É incrível”, diz o médico, que associa a doação de órgãos a recomeço. “É uma chance de começar de novo.” A declaração representa o sentimento de Vinícius e seus pais: o eletrotécnico Valdir Cezar dos Santos, 46, e a analista administrativa Maria de Fátima Souza Santos, 43. “Nosso filho agora tem duas datas de nascimento”, diz a mãe, mencionando o dia em que deu Vinícius à luz e a data do transplante. Já em casa (a alta hospitalar ocorreu oito dias após a cirurgia), o jovem relata o que espera daqui para frente. “Meu sonho? Ter uma vida normal, ao lado da minha família, sem preocupações. E desejo também voltar a conversar sobre qualquer coisa, menos doença. Quero voltar a sair com os meus amigos, terminar os estudos, entrar numa boa faculdade... Vou seguir em frente”, conta. Da redação do JC, continuamos a vibrar por ele e a transmitir boas energias. A Vinícius, nossa gratidão por nos ensinar como a resiliência (capacidade desenvolvida para enfrentar, superar, ser fortalecido e transformado por experiências de adversidade) é o caminho para construir uma nova história e recomeçar quantas vezes for preciso.

TRABALHO CONJUNTO Cirurgiões Jeú Delmondes Jr., Diogo Ferraz e Cristiano Berardo operaram Vinícius

ATENÇÃO Anna Paula Lapa e Rodrigo Carneiro acompanham Vinícius desde o começo do ano no Imip


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felicidade

DISPOSTO Sete meses após ganhar novo coração, Leonardo vibra ao correr na esteira

coração

Aposentado veste a camisa da doação

Estado é segundo em transplantes do órgão no Brasil O balanço da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO) mostra que Pernambuco fechou o ano de 2017 em segunda posição entre os Estados com o maior número de procedimentos cardíacos no Brasil. Em comparação com 2016 e considerando todos os órgãos, o maior crescimento foi observado no transplante de coração: no ano passado, em Pernambuco, 54 pessoas receberam o órgão e, em 2016, 38, um incremento de 42%. Na primeira posição, está São Paulo, com 130 procedimentos em 2017. “Aumenta ano a ano, em Pernambuco, o volume de transplantes cardíacos, em pacientes mais complexos (maior gravidade), que têm relatado mais qualidade de vida após a cirurgia. Um exemplo da nossa ascensão está no fato de o Imip fazer parte de um seleto grupo de 28 hospitais, no mundo, capazes de fazer mais de 30 transplantes de coração anualmente”, destaca o cirurgião cardiovascular Fernando Figueira, coordenador do Serviço de Transplante Cardíaco do Imip. O médico acrescenta que o implante de um novo coração é o tratamento ouro para um paciente com insuficiência cardíaca em fase avançada, condição em que não há mais resposta com medicações ou outro tipo de cirurgia. “O transplante está indicado quando, ao longo de um ano, se extrapolam todas as possibilidades terapêuticas para a insuficiência cardíaca grave, que leva à morte em aproximadamente metade dos pacientes. Após o transplante, é oferecida uma sobrevida média de 11 anos”, frisa Figueira, com a certeza de que a gratificação pessoal é o melhor retorno que se tem ao ver cada paciente com um novo coração batendo no peito.

Uma placa na entrada de uma casa no bairro de Ouro Preto, na cidade de Olinda, Grande Recife, sinaliza não apenas uma das residências, mas transparece o sentimento dos que sabem o valor da luta contra o tempo para salvar uma vida. “Família feliz” é o que lemos no muro, assim que chegamos ao lar do chefe de operações de transportadora aposentado Leonardo Gomes da Silva Filho, 60 anos, que há sete meses tem um novo coração batendo no peito. Não precisamos de muitos minutos de conversa para descobrir que, após o transplante cardíaco, Leonardo tornou-se seu próprio juiz sobre o que é felicidade. Ninguém define melhor do que ele a satisfação pela vida. “Eu estou me sentindo ótimo, muito bem mesmo, praticamente um atleta. Na esteira, já uso a inclinação como se estivesse subindo ladeira, correndo, numa velocidade de 6,5 km/h. Meto bronca! Isso me deixa muito feliz. É vida nova agora”, vibra Leonardo. Com essa declaração, ele revela que a felicidade que transborda hoje no coração está intimamente ligada à saúde recuperada e à liberdade para fazer escolhas, sem ter limites para ir e vir. A alegria é tão grande que ele estampa no peito a satisfação que o alimenta. Gravada na camisa usada em comemorações ao lado dos parentes, a frase “Refloresça a vida; doe órgãos” torna visível o quão grata a família é por ganhar a oportunidade de continuar com Leonardo por perto, graças a desconhecidos. Embora a identidade do doador seja omitida, por aspectos legais, ele retribui o gesto singelo de forma multiplicada, pois faz questão de compartilhar a emoção que circunda o mundo

Leonardo foi diagnosticado com amiloidose, doença rara e progressiva, durante uma viagem do transplante, libertador para quem convive com doença grave, em muitos casos, terminal. “Fizemos a camisa no réveillon, pouco mais de um mês após o transplante. A família toda vestiu. As nossas filhas, que não moram no Recife, vieram para ver o pai antes da cirurgia e ficar mais um tempo”, diz Verônica Vasconcelos Silva, 55, esposa de Leonardo. A filha caçula, 30 anos, vive em João Pessoa. A mais velha, com 32, mora no Canadá. Foi lá onde Leonardo soube que a sua chance de vida estava no transplante cardíaco, durante viagem programada para o casal acompanhar o nascimento do primeiro neto, Nicolas, hoje com 1 ano. “Iríamos ficar um semestre no Canadá. Depois de quatro meses lá, passei mal num dia, com pressão baixa. Recebi atendimento e fiz um ecocardiograma (exame capaz de avaliar se o coração está em boas condições). Logo os

médicos suspeitaram de amiloidose (doença rara e progressiva que ocorre quando há acúmulo de uma proteína em órgãos como coração, rins e fígado) e fizeram uma biópsia, que confirmou a doença. O único jeito era voltar para o Brasil e ser submetido ao transplante cardíaco”, recorda Leonardo. Em 4 de outubro do ano passado, ele e a esposa retornaram, de avião, acompanhados de uma enfermeira e com todo o suporte para eventuais complicações de saúde. Tudo ocorreu bem. “No dia seguinte à nossa chegada, já estava internado no Imip (Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira), onde passei um mês fazendo os exames pré-transplante. Entrei na fila de espera e aguardei a chegada do meu coração em casa.” Veio a expectativa de um telefonema do hospital. Um dia ligaram para dizer que havia sido identificado um doador compatível. “Corremos para o hospital e, quando eu estava a caminho do bloco cirúrgico, o médico disse que o coração tinha parado. Voltei para casa”, relembra. Oito dias depois, Leonardo recebe outra ligação. “Trocamos rapidamente de roupa e fomos ao Imip. Dessa vez, ele entrou na sala de cirurgia, enquanto eu e minhas filhas ficamos no corredor. De repente, passa um médico segurando uma maleta. Perguntamos se nela estava o coração de Leonardo”, diz Verônica. A resposta: “Provavelmente”. Aquele momento foi inundado de fé, de um sentimento que faz a família compreender que nada é impossível e que vale sempre a pena aguardar o prazo da esperança no renascimento.

Transplante de órgãos não é um esporte individual. Trata-se de um jogo coletivo. A satisfação, a cada procedimento realizado, é de todos os participantes da equipe. Todos têm uma contribuição peculiar e se sentem gratos por participarem de algo tão grandioso, que é o restabelecimento de qualidade de vida. Os pacientes que chegam ao nosso serviço fazem parte da fatia da população economicamente ativa, que deveria estar no auge de suas realizações pessoal e profissional. Após o transplante, são pessoas que voltam a produzir, trabalhar e viver seus sonhos. É um trabalho muito gratificante”, frisa o cirurgião cardiovascular Fernando Figueira


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DESTINO Hugo e Maria do Carmo: namoro na hemodiálise

Na sala de espera, o amor

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ntrou uma mulher bonita e elegante na sala de hemodiálise. Foi o suficiente para ele se admirar e deixar de lado o marasmo que, vez ou outra, teimava em rondar aquele espaço repleto de máquinas cuja missão é limpar e filtrar o sangue – ou seja, fazer parte do trabalho que um rim doente não é capaz de executar. “Puxa! Como ela é linda...”, pensou o jornalista Hugo Montarroyos assim que viu a pedagoga aposentada Maria do Carmo Alencar chegar à clínica para realizar uma sessão de hemodiálise (procedimento pelo qual ambos passavam, três vezes na semana, enquanto estavam na fila de espera do transplante de rim). E imediatamente passou também pela mente de Hugo: “Mas que pena que ela está aqui. Mas já que está aqui...”. E assim ele continuou a apreciá-la, imaginando que poderia ser casada porque usava um anel, semelhante a uma aliança, na mão esquerda. “Dizia para mim mesmo que, por causa disso, nem perto dela chegaria.” Bastou, contudo, Maria do Carmo trocar o horário da sessão de hemodiálise para Hugo se aproximar um pouco e tentar puxar papo. Conversaram por algumas horas. “Queria saber o que ela fazia, onde morava... Quando me dei conta, já havia ficado muito interessado nela. Chegando em casa, enviei uma solicitação de amizade pelo Facebook. Ela aceitou, mas não respondeu a mensagem privada que eu tinha mandando também.” Provavelmente, como eles não eram amigos na rede social, o recado deve ter ficado ocultado e, só depois de dois meses, ela leu. “Começamos,

então, a nos comunicar”, recorda Maria do Carmo. Entre tantas conversas, a suspeita de Hugo (para a felicidade dele) não foi confirmada. “Soube que era solteira e fiquei na expectativa em como essa amizade poderia evoluir.” Um dia marcaram para tomar um café, a paquera progrediu e o namoro começou. “Já completamos dois anos juntos. Somos companheiros e nos completamos até no que não somos parecidos. Tenho a tranquilidade em dizer que conheci o amor da minha vida”, conta Maria do Carmo. “Acredito que eu passei por tudo isso para conhecer Carminha (como Hugo a chama carinhosamente)”, complementa o jornalista, ao deixar entender que o destino quis que ele passasse pela doença renal crônica para o seu caminho e o de Maria do Carmo se cruzarem. “Talvez, se a gente se conhecesse de outra forma, não seria tão profundo, tão bonito como é... Carregamos a certeza de que é para o resto da vida.”

HORA DO TRANSPLANTE

Esse carinho todo deu um novo rumo ao casal e deixou de lado o marasmo das sessões de hemodiálise. O recomeço da vida deles ainda estava por vir. Depois da solidez desse amor, prevaleceu um círculo virtuoso (série de acontecimentos positivos) para eles. “A energia da gente cola no que desejamos”, filosofa Hugo. Nove meses após o início do namoro, Maria do Carmo recebe um telefonema para avisar que havia chegado o momento do transplante renal. O doador foi um pa-

“Beber água, por exemplo, passou a ter um valor imenso para mim”, conta Hugo Montarroyos

ciente de 30 anos, que teve morte encefálica, ao levar um tiro na cabeça. “Sou eternamente grata por essa doação. Esperei um ano e dois meses pelo transplante, indicado porque eu tinha rins policísticos. Sou hoje uma mulher muito feliz com a nova vida e a boa saúde que ganhei. Só tenho o que comemorar”, relata cheia de emoção. O destino sincronizou tudo tão bem que o tempo de recuperação do pós-transplante de Maria do Carmo foi o suficiente para ela estar pronta e dar força a Hugo, que realizou o mesmo procedimento quase cinco meses depois que ela recebeu o novo rim. “Quando soube que havia sido encontrado um doador compatível, eu fiquei em choque, como se tivesse recebido uma anestesia. Afinal, fazia

quase seis anos que eu estava na fila de espera e, por todo o tempo passado, já descartava a possibilidade de transplante. Achava que não apareceria mais um rim para mim”, conta Hugo, que recebeu a notícia de que seria submetido à cirurgia na noite de um domingo. Na tarde do dia seguinte, ele foi operado e, assim que acordou depois do transplante, só esbanjava alegria por estar vivo. “Naquela hora eu pensei que eu já havia superado o mais difícil e que tudo que viesse, a partir de então, seria lucro. Lembro que, um dia após a cirurgia, só fazia chorar. Eu não acreditava que estava com um novo rim, a emoção tomou conta de mim. Foi tudo muito libertador.” A sensação de independência relatada por Hugo está embutida de significados. Mais do que se sentir livre das sessões de hemodiálise, ele estava certo de que, a partir daquela ocasião, poderia voltar a fazer coisas simples, das quais era impedido de fazer por causa do problema renal que tinha. “Beber água, por exemplo, passou a ter um valor imenso para mim. Enquanto eu estava em tratamento com a hemodiálise, não poderia ingerir mais de um litro de líquido por dia. Agora, tomo à vontade.” Hoje ele e Maria do Carmo sempre estão com uma garrafinha de água a tiracolo. Com a saúde plena, o casal agora planeja muitas viagens juntos e quer curtir todos os momentos lado a lado, com a certeza de que agora não enfrenta mais limites para continuar a renascer (também) pelo amor.

Em geral, doenças renais crônicas são silenciosas

ENTRAVE Detecção em geral é em fase avançada, diz Frederico Cavalcanti

Foi subitamente que o jornalista Hugo Montarryos descobriu a doença renal crônica. Apesar de saber que tinha picos na taxa da pressão arterial, não imaginava que um dia pudesse passar tão mal a ponto de, no dia em que chegou ao hospital, já receber a notícia de que precisaria passar por sessões de hemodiálise. A forma inesperada com que o problema grave nos rins apareceu para Hugo é recorrente entre a maioria dos pacientes. “O maior problema de boa parte das doenças renais é que elas são silenciosas. Em fase precoce, é muito difícil flagrar algum sintoma relacionado à evolução da agressão ao rim. Essa detecção geralmente só acontece em fases avançadas da doença renal crônica”, explica o médico Frederico Cavalcanti, coordenador da Unidade de Nefrologia do Real Hospital Português (RHP), no bairro de Paissandu, área central do Recife. É justamente no momento em que os problemas se agravam que os médicos indicam a substituição da função renal, que pode ser feita pela diálise e o transplante de rim. “Este é o padrão ouro no tratamento”, frisa Frederico.

Nesse cenário, Pernambuco se destaca: aparece em 5º posição, no Brasil, entre os que mais realizam o procedimento. Em 2017, o Estado bateu um recorde: realizou 406 transplantes de rim (anteriormente, 2015 tinha sido o ano com mais procedimentos: 344). Em comparação com 2016, com o registro de 286 cirurgias, o aumento em 2017 foi de 41%. Apenas três Estados realizaram mais de 40 transplantes renais, no ano passdo, por milhão de população com doador falecido – entre eles, está Pernambuco, ao lado do Rio Grande do Sul e do Paraná, segundo o balanço da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO). “O transplante melhora muito a qualidade de vida dos pacientes. Às vezes, eles já se sentem tão acostumados com a hemodiálise que podem manifestar pouca segurança para passar pelo procedimento”, esclarece Frederico. Ele acrescenta que o retorno das pessoas, aos serviços de hemodiálise após o transplante, é essencial para estimular os pacientes mais resistentes ao procedimento, que é capaz de dar liberdade e vida nova.


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Adeus à diabetes e à hemodiálise Em julho de 2013, a auxiliar de professora da educação infantil Adriana Roberta Cavalcanti, 32 anos, passou por uma das piores complicações da diabetes tipo 1, diagnosticada desde os 9 anos. Desmaiou em casa por causa de uma crise extrema de hipoglicemia (nível muito baixo de glicose de sangue) e cortou o queixo. Como tantas outras vezes, foi socorrida pelos vizinhos, que logo ligaram para o marido dela, o assistente de fotografia Adriano Tomé, 40. “Enquanto eu aguardava o cirurgião para costurar o queixo cortado, o telefone toca. Era o médico da equipe de transplante do Imip (Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira, no bairro dos Coelhos, área central do Recife) para comunicar que havia sido identificado um doador de pâncreas e rim compatível comigo. Eu saí descalça do hospital onde estava, sem dar satisfação a ninguém. Chegamos logo ao Imip”, recorda Adriana, que não consegue explicar a sensação que a invadiu ao saber que faria um transplante duplo, capaz de lhe devolver uma qualidade de vida que não conhecia. O tipo de diabetes que Adriana tinha é decorrente de uma falência total do pâncreas, que deixa de produzir insulina. Por isso, ela tomava doses de insulina para tentar levar uma vida saudável. Mas o tratamento não surtia efeito, e o excesso de glicose no sangue também comprometeu os rins. Por isso, Adriana precisou se submeter a sessões de hemodiálise, que não

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SUPERMÃE Adriana agora acompanha Ariane

traziam os resultados esperados. Foi inscrita na fila de espera do transplante de rim com pâncreas, indicado para as pessoas com diabetes que desenvolvem insuficiência renal. “Horas antes de o transplante ser realizado, pensei que ficaria livre da máquina de hemodiálise. Aquilo me trouxe uma sensação tão boa... E deu tudo certo. No pós-operatório, passei um mês no hospital e atualmente só vou às consultas a cada quatro meses. Permaneço saudável, meus exames estão ótimos e nunca mais precisei me internar”, comemora Adriana. O transplante duplo foi responsável por dar a Adriana um bem-estar que ela não conhecia. “Antes da cirurgia, eu não trabalhava, tinha um cansaço imenso, vivia sem forças e ânimo. Achava que eu poderia morrer a qualquer momento. Hoje eu tenho saúde.” A nova vida também veio acompanhada por mais tempo para cuidar da filha, a estudante Ariane, 9. A sensação é de que o recomeço deixou aflorar ainda mais o sentimento maternal. “Hoje em dia posso cuidar dela, acompanhá-la nas festinhas dos amigos e da escola.” Ela não se cansa de agradecer à família que autorizou a doação dos órgãos que trouxe tanta esperança. “Foi um ato de amor que os parentes fizeram sem saber quem eu sou”, completa Adriana, que não tem dúvidas de que a generosidade que envolve o mundo dos transplantes é responsável por lhe dar agora satisfação pela vida.

Fila menor pra transplante duplo EMOÇÃO “É fantástico ver o resultado dos pacientes”, diz Medeiros

O Imip é o único serviço, em Pernambuco, que realiza o transplante rim com pâncreas, menos frequente do que os demais procedimentos no Estado. De janeiro a maio deste ano, segundo a Central de Transplantes de Pernambuco (CT-PE), duas cirurgias de implantação dos dois órgãos, simultaneamente, foram feitas – o percentual é 50% menor do que no mesmo período de 2017. Atualmente cinco pacientes aguardam, no Estado, por esse transplante duplo. “As indicações para o procedimento são bem restritas e, por isso, a fila de espera é menor, em comparação a outros órgãos. Geralmente podem ser beneficiados pacientes com diabetes tipo 1, dependentes do tratamento com insulina, e que estão em programas de hemodiálise. Observamos uma boa melhora na qualidade de vida após a cirurgia”, esclarece o nefrologista Amaro Medeiros, que coordena a Unidade Geral de Transplantes do Imip. Os resultados, segundo o médico, são

animadores: após o primeiro ano do procedimento, a média de sobrevida do paciente com os novos pâncreas e rim é de 94%. No Imip, as equipes de transplante e de endocrinologia analisam agora a possibilidade de o serviço iniciar o transplante isolado de pâncreas. “É outra indicação interessante, pois há pacientes com diabetes tipo 1, jovens, que dependem de insulina e que podem se beneficiar com o procedimento. Vamos analisar bem como podemos oferecer a cirurgia, pois há um grupo de pessoas que, apesar de seguir tudo o que há disponível para tratar a diabetes, evolui muito mal. Para elas, o transplante isolado de pâncreas pode ser uma alternativa”, acrescenta Amaro, que se emociona ao falar como trabalhar com o universo da doação de órgãos tem sido fascinante, para ele, desde a década de 1970. “É fantástico ver o resultado dos pacientes”, declara o nefrologista, sempre com o sorriso de quem sabe como o transplante transforma vidas.


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FELICIDADE Pais e irmãs de Emanuel vibram com o que consideram milagre

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a madrugada do dia 22 de junho de 2006, o telefone tocou. “É da casa de Emanuel Moraes Batista?”. Sem delongas, responde um senhor que havia acabado de acordar para atender a ligação: “Não, tem nenhum Emanuel aqui”. E colocou o aparelho no gancho. Quem estava do outro lado insistiu e ligou mais uma vez. Fez a mesma pergunta. A resposta foi novamente negativa. Mas, dessa vez, a esposa desse senhor ouviu o diálogo e disse com voz enfática: “Emanuel é o nosso neto; não desligue”. O senhor estava com tanto sono que demorou a perceber que se tratava do mais precioso telefonema. A conversa prosseguiu. Quem ligava era um profissional de uma equipe de transplantes para informar que havia um doador para Emanuel – o bebê que tinha apenas 6 meses de vida. O pequeno aguardava um fígado, e aquele telefonema jamais poderia ser perdido. Era a oportunidade de ouro para o renascimento da criança, que estava na fila do transplante há três meses, com saúde debilitada por causa da atresia de vias biliares, doença que provoca perda da função hepática. A única chance de cura é o transplante. Antes de ligar para a casa dos avós de Emanuel, a equipe já tinha entrado em contato com a família de outra criança que era prioridade na fila. Mas ela estava doente, o que a impedia de enfrentar uma cirurgia de grande porte. Com isso, Emanuel passou a ser o primeiro da lista de espera por um fígado, devido à condição frágil de saúde em que se encontrava. “Venham logo para o hospital porque é o dia do transplante dele”, informou, pelo telefone, o profissional da equipe que atuava na captação de órgão. Àquela altura, o grupo do médico Cláudio Lacerda, do Hospital Universitário Oswaldo Cruz (Huoc), no bairro de Santo Amaro, área central do Recife, já estava à espera do bebê para a cirurgia que representaria uma nova vida. Mal terminou a ligação, os avós de Emanuel não pensaram duas vezes para seguir imediatamente à residência dos pais do menino. O tempo era curto, e a família tinha que chegar, em horas, ao Huoc. “Lembro que pai veio numa carreira danada. Pediu para eu arrumar logo Emanuel. Em instantes, saímos de casa. Meu filho permaneceu dormindo. O céu estava clareando quando pisamos no hospital, e a enfermeira logo pediu para eu não amamentá-lo, pois o jejum de 12 horas era necessário para a cirurgia”, recorda a mãe de Emanuel, a comerciante Jeane Patrícia de Moraes, 42 anos. Tudo parecia ocorrer de forma tão sincronizada que, justamente naquela madrugada, ele não acordou para mamar. “Ele choramingou um pouco, mas a gente acalentou e conseguiu segurar a fome. Isso deu uma fé tamanha. Ao meio-dia, ele entrou no bloco cirúrgico”, relembra o pai de Emanuel, o contador Antônio Henrique Batista, 39. Ao relembrar aquele dia, ele diz com voz trêmula: “Foi um milagre. A gente esperava muito por isso”. Cinco horas após o início da cirurgia e com corações cheinhos de esperança, a família do menino recebe a notícia de que o procedimento foi um sucesso. A expectativa da equipe responsável pelo transplante também era gigantesca. O motivo? Os profissionais nunca tinham realizado a cirurgia em um bebê tão pequenino. Então, aquela ocasião se tornou ainda mais simbólica: Emanuel se tornou a mais nova e mais leve (pouco mais de cinco quilos) criança a passar por um transplante de fígado no Brasil. “Ele entrou, no bloco cirúrgico com os olhos bem amarelinhos, a pele meio esverdeada e a barriga volumosa. Logo após o procedimento, vimos a rápida mudança. Ele estava bem branquinho. Com a barriguinha costurada, ele já saiu da sala com o abdome menos saliente e os olhos mais vivos. A sensação que tivemos foi de nosso filho ter nascido mais uma vez”, conta Antônio. A vitalidade contemplada em Emanuel, pelos médicos e pela família, logo após a cirurgia, despontou da solidariedade – um sentimento que Emanuel, hoje aos 12 anos, conhece bem. “Meu pai gosta de falar da minha história porque acredita que ela pode conscientizar as pessoas sobre a importância da doação de órgãos. Foi esse ato que me salvou. Esse fígado que hoje tenho veio de uma criança que foi atropelada quando tinha 2 anos de idade e, após a morte dela, a mãe doou os órgãos”, diz Emanuel, que tem uma infância cheia de vida. “Brinco, estudo e faço natação.” Os cuidados com a alimentação e a necessidade de tomar medicamentos existem, mas foram normalmente incorporados à rotina. Ao compartilharem a história de Emanuel, os pais não deixam dúvidas sobre o sentimento que carregam. “A gente transborda de tanta felicidade”, relata Antônio, cujo depoimento é complementado pela esposa. “A gente não conhece a mãe que autorizou a doação do fígado do filho que ela perdeu, mas somos imensamente agradecidos. Mesmo diante de tanta dor, ela foi capaz de ser solidária.” Ao passearem por tantas lembranças e episódios de superação, os pais de Emanuel se consideram premiados. Não sabem eles que toda essa história, cheia de emoção, só premia quem a escuta. São pessoas como eles que nos contagiam de fé quando ousamos não acreditar no impossível.

Renovação ainda quando bebê

O fígado é um órgão vital, sem o qual não é possível sobrevivência. Ele tem mais de 200 funções. Por isso, quem tem doenças hepáticas degenerativas fica muito debilitado, e o transplante geralmente é a única maneira de tratar efetivamente essas pessoas, permitindo a recuperação plena da saúde. Ao melhorarem, os pacientes visitam o nosso serviço para abraçar a secretária, os médicos, as enfermeiras... Quando alguém enfrenta os problemas que eles vivenciaram passa a valorizar bem mais a vida. E as crianças, ao ganharem um fígado novo, renascem completamente. Os adultos também, mas as crianças transplantadas... Ah, como elas ficam felizes”, diz o cirurgião Cláudio Lacerda

“O pós-transplante é fascinante” O dia 16 de agosto de 1999 é daqueles que o médico Cláudio Lacerda, chefe do Programa de Transplante Hepático de Pernambuco, armazena com todos os detalhes na memória. Uma telefonista de 44 anos, com cirrose biliar primária, aceitou a proposta de ser a primeira paciente a renascer pelas mãos da equipe de um serviço que, assim como ela, ganhava vida. Ela recebeu um fígado saudável no Hospital Universitário Oswaldo Cruz (Huoc), no bairro de Santo Amaro, área central do Recife. “Antes de começar, falei com Deus. Pedi a Ele para, caso achasse que eu estava fazendo a coisa certa, dar-me força interior e sorte. Quando comecei a incisão na pele de Conceição, o nervosismo deu lugar a um bem-estar indescritível”, escreve o cirurgião, no livro Acorde o governador, que conta trajetórias de superação 16 anos após a cirurgia naquele agosto de 1999. Hoje, passadas quase duas décadas do pontapé inicial para criação do serviço de transplante hepático em hospital público de ensino, Cláudio Lacerda coleciona um universo de histórias emocionantes, tanto pelas tristezas quanto pelas alegrias que são capazes de nos ensinar a limpar os olhos para perceber o encantamento de crianças, adolescentes, adultos jovens e idosos pela vida, que deixam para trás as angústias e o sofrimento físico antes do transplante. Na ponta do lápis, a conta do

Cláudio Lacerda coleciona um mundo de histórias emocionantes

volume de pacientes que receberam um novo fígado, pelo Programa de Transplante Hepático de Pernambuco, chega a 1.250 pessoas. “É um serviço que atua em três hospitais: o Huoc, o Jayme da Fonte (Zona Norte do Recife) e o Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (área central da cidade). Todos são financiados pelo Sistema Único de Saúde (SUS)”, informa Cláudio Lacerda. Complexo, o transplante de fígado é quase sempre a única maneira de tratar (e salvar) quem vive com doenças degenerativas do órgão. É a segunda maior fila de espera atualmente em Pernambuco, com 133 pacientes, atrás apenas das 779 pessoas que aguardam um rim. “O transplante hepático é um procedimento

altamente desafiador. A gente lida com quadros muito graves. Mas, quando passa o pós-operatório, a maioria dos pacientes tem saúde plena. Isso é fascinante. É gratificante vê-los retomar a capacidade intelectual e física”, frisa o cirurgião, que descreve o hiato entre os primeiros transplantes e as cirurgias atuais. “Tudo era encarado com altíssimo grau de dificuldade. Aos poucos, os procedimentos foram dominados e agora o processo acontece com tranquilidade. Somos um dos maiores centros transplantadores de fígado no mundo, com 120 cirurgias por ano.” O médico também se orgulha dos avanços da Associação Pernambucana de Apoio aos Doentes de Fígado (Apaf), fundada por ele. “Essa instituição é fundamental porque a maioria dos pacientes é pobre, e de nada adianta cuidar do fígado das pessoas sem cuidar delas.” A Apaf, que funciona no Hospital Oswaldo Cruz, atende mensalmente, em sua Casa de Acolhimento, cerca de 100 pacientes e seus acompanhantes. “Os pacientes recebem todo apoio e hospedagem enquanto o diagnóstico é concluído. E permanecem recebendo suporte durante a permanência no Recife para o tratamento. É um trabalho muito bonito”, acrescenta Cláudio Lacerda, sem ter dúvidas de que é possível fazer medicina de ponta, em hospital público, e cuidar de gente com dignidade, carinho e respeito.


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Entrevista Noemy Gomes

Exemplo do SUS que dá certo

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atural do Crato (CE), a enfermeira Noemy Gomes, 41 anos, é daquelas pessoas que não deixam dúvidas do amor que deposita em tudo o que está relacionado à doação e transplantes de órgãos e tecidos. Está sempre disposta a incentivar o trabalho de conscientização da população sobre um tema que deve ser debatido na família, no trabalho e na escola. Tanto empenho levou Noemy a coordenar a Central de Transplantes de Pernambuco. A missão virou um divisor de águas. “Antes disso, eu era completamente desinformada. Fui capaz de dizer não à doação no momento em que me foi colocada a decisão. Mas hoje não me vejo morrer sem ser doadora”, revela nesta entrevista, que não deixa dúvidas do quanto é contagiante o mundo do qual faz parte. O INESPERADO

Até ser convocada pelo Estado, em 2005, após aprovação em concurso público, nunca imaginei que me envolveria com o trabalho de doação e transplante de órgãos e tecidos. Quando fui ver para onde seria alocada, soube que ficaria na Central de Transplantes de Pernambuco (CT-PE). Cheguei a pensar se era aquilo mesmo que eu queria. E disse a mim mesma: 'Sei nem para onde vai isso. Gostaria mesmo era de ir para um hospital”. E logo já estava fazendo contatos para ser remanejada de setor. Mas um médico, com quem conversei na época, não hesitou e disse: “Vá para a central”. E eu acabei me apresentado para o que estava previsto. Em dezembro de 2005, fui para o Hospital da Restauração (HR) compor uma área que depois passou a ser chamada de Comissão Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante. Como parte do quadro de funcionários da CT-PE, fiquei cinco anos no HR. Em 2010, recebi o convite para assumir uma gerência interna na central, que toma conta das comissões intra-hospitalares e das organizações de procura de órgãos (OPOs). Em seguida, veio a licença-maternidade e, antes de terminá-la, em 2012, fui convocada para assumir a gerência da CT-PE. Antes de 2005, eu trabalhava no setor de hemodinâmica do Hospital das Clínicas (HC), ligado à Universidade Federal de Pernambuco, onde fiquei por nove anos. Em hospital privado, atuei em emergências e em unidades de terapia intensiva, que é a área da minha especialização.

A MUDANÇA

Quando entrei na CT-PE, em 2005, eu era uma Noemy completamente desinformada. A prova disso é a minha carteira de identidade (RG), onde consta que não sou doadora de órgãos. É algo vergonhoso que tenho carregado, pois ainda não troquei o documento, emitido em 2000, ao me casar e trocar o sobrenome. Lembro que, ao chegar ao Instituto de Identificação Tavares Buril, fui informada de que eu tinha que decidir se colocaria no documento ser doadora de órgãos. E no mesmo local ouvi o seguinte: “Coloque 'não sou doadora'. Vai que a senhora sofre um acidente e, quando virem ‘doadora’ no RG, terminem de matá-la para tirar seus órgãos”. Imediatamente eu disse: “Coloque que não sou doadora”. A maior vergonha disso é que eu já era concluinte de um programa de residência em UTI no HR e nunca havia visto uma pessoa ser morta para ter os órgãos arrancados. Ainda assim, optei por não ser doadora. E a lei (que possibilitava o carimbo da expressão “não doador de órgãos e tecidos” no RG)

caiu, e a identidade continuou. Quando comecei a trabalhar na CT-PE, vi um mundo novo, tudo o que não aprendi na faculdade. Então, fui observando o que o diagnóstico de morte encefálica permite: que outras vidas sejam transformadas a partir de uma pessoa que faleceu. Isso contagia. Hoje sou completamente apaixonada por esse universo e brigo muito (pela causa da doação). Para mim, a política de transplantes no Brasil é um exemplo do Sistema Único de Saúde (SUS) que dá certo. É algo que me move. Vibro com cada história de vida transformada, fico triste com cada família que perde um ente querido. Nunca fui abordada para uma possibilidade de doação (no caso de parente que morreu), mas sempre penso: “Se acontecer comigo? Como eu gostaria de ser acolhida no hospital?”.

Em junho, fez um ano que a gente mantém o status de córnea zero. É um privilégio. Há casos de pacientes que se inscrevem na fila de espera pela manhã e, à tarde, a córnea está liberada para se fazer o transplante. Mas, para isso, é preciso termos doadores. Por isso, não podemos fraquejar. As equipes têm que estar treinadas e incentivadas a manter o volume de doação”

FAMÍLIA INFORMADA

Quando comunicamos à família que somos doador de órgãos e tecidos, facilitamos o processo, pois ajudamos os parentes no momento de uma possível decisão (após a morte). São tranquilos os casos que acompanhamos de pessoas que se declararam doadoras em vida. Quando elas morreram, as famílias não recusaram a doação. Lembro o caso de uma funcionária da CT-PE que faleceu após um acidente vascular cerebral hemorrágico. Na ocasião, eu pensei: “Se esse processo (da doação ao transplante) funciona, terá que dar certo hoje porque ela é doadora e vivia dizendo que, quando morresse, gostaria de ter os órgãos doados”. E tudo funcionou.

NEGATIVA ALTA

Pernambuco já teve negativa familiar de 60% (ou seja, entre as famílias entrevistadas para pos-

Pernambuco tem hoje um sistema de transplante muito bem estruturado. Investimos bastante no treinamento de equipes para levantar as doações. Afinal, todo o processo é uma corrente em que cada elo é essencial. Se algum deles se rompe, o trabalho é perdido”

sível doação de órgãos do parente que faleceu, 60% não autorizaram). Com a maturidade profissional que tenho hoje, acompanhando todo o sistema, vejo que essa negativa não é consequência da família; é nossa, enquanto profissionais de saúde. Considero que a informação é a vilã e também é a heroína de todo o processo. É vilã a partir do momento em que há ausência dela; é heroina quando a família é bem orientada pelos profissionais de saúde e, dessa maneira, torna-se disponível para falar sobre doação. Por isso, batemos na tecla da importância do treinamento, da capacitação das equipes de saúde dos hospitais.

UM EXEMPLO

Sempre falo do cúmulo da minha história: há 20 anos, não fui formada para trabalhar com doação e transplante. Mesmo vivenciando tudo num hospital, já enfermeira, fui capaz de dizer não à doação no momento em que precisei decidir para colocar no documento. E para quem não tem a mínima informação, como se sente ao ter que decidir isso? Precisamos entender que a família, ao chegar a um hospital com um parente, deposita confiança nos profissionais de saúde. Então, temos que assumir essa responsabilidade de conhecer o processo, de deixar a família muito bem informada sobre todos os passos para que, no momento da decisão, ela esteja ciente de todos os recursos. Na prática, observamos isso. Houve recentemente mudança no protocolo de morte encefálica, o que exigiu treinamento generalizado, inclusive das equipes que fazem busca pelo doador. Os três primeiros meses deste ano foram de intensa negativa familiar, justamente porque os profissionais não estavam preparados para a mudança. Fizemos uma força-tarefa

para treiná-los o máximo possível. E já começamos a colher frutos, pois abril e maio foram meses com maior número de doadores.

MORTE ENCEFÁLICA

A morte é uma só. Ela pode vir por morte encefálica ou pela parada cardíaca. Ou o coração para, ou o cérebro para primeiramente. Os próprios profissionais de saúde têm que entender a morte encefálica como morte. É ela que permite uma pessoa a ajudar outras que nem conhece. Com o diagnóstico de morte encefálica, pode-se doar coração, fígado, rim, pâncreas, pulmão... Assim se dá nova chance de vida a outro. E todos nós podemos passar por isso. Afinal, o que leva à necessidade de transplante não são doenças raras; são doenças do dia a dia, como hipertensão, diabetes e hepatite. Quem de nós não está susceptível a adquirir ou a desenvolver essas doenças? Por isso, todos nós precisamos pensar em doação.

SOMOS SOLIDÁRIOS

Em enquetes feitas na internet ou em programas de rádio, nunca vi prevalecer o não à doação. Então, alguma coisa acontece, no hospital, que impede o processo. É nesse ponto que entra a responsabilidade do profissional de saúde. Muitas vezes uma explicação malfeita do diagnostico leva a pessoa a dizer não à doação. Costumamos dizer que, quando uma família chega ao hospital com um parente, ela chega com uma mochila vazia e que vai enchendo ao longo do internamento; vai sendo preenchida de impressões boas e ruins. Então, na entrevista em que a família tem que decidir se quer ou não exercer o direito da doação, a mochila é aberta e geralmente a negativa é decorrente de todo o histórico que aconteceu no internamento. Por isso, trabalhamos tanto o acolhimento familiar.

SIM À DOAÇÃO

A CT-PE funciona 24 horas por dia, sete dias por semana. A gente se reveza em dias de sobreaviso, pelas noites e madrugadas, nos feriados e fins de semana. As equipes de transplante ficam ainda mais em alerta, pois elas assinam o compromisso de estarem disponíveis o tempo todo. E o processo da captação à cirurgia exige muita coisa: transporte aéreo, carro em alta velocidade e até BPTran (Batalhão de Policiamento de Trânsito), que é acionado quando precisamos efetuar o transplante mais rapidamente. É um mundo contagiante. Não me vejo morrer sem ser doadora. Morrer e não doar é desperdiçar vida.


12 Jornal do Commercio

Recife, 1º de julho de 2018 domingo

JC

Da dor, nasce a

esperança

C

Soube de uma criança que teve morte encefálica e que os órgãos (exceto coração) tinham viabilidade para serem doados. Paralelamente, uma outra criança dependia de um novo fígado para continuar vivendo. Como parente de doadora, conversei com a mãe do menino. Disse que infelizmente o filho dela não estava mais ali. A dor dela era tão grande que ela negou a doação, e a criança com doença hepática também foi a óbito. Devemos entender que doar órgãos é gerar vidas”, diz Cibelle Padilha, irmã de doadora

onheça agora a história por trás de um gesto de solidariedade multiplicado por três. É o relato de uma mulher que, inspirada na trajetória de vida da irmã, disse sim à doação de órgãos no momento mais doloroso da vida. Em abril, a cirurgiã cardiovascular Cibelle Padilha, 33 anos, abriu o coração para a generosidade. Ela estava diante da confirmação do diagnóstico de morte encefálica da irmã, a advogada Giselle Padilha, 36, que faleceu após complicações de uma parada cardíaca, decorrente de uma dosagem de medicação, para tratar a depressão, maior do que a habitual. Mesmo diante de tanta dor, Cibelle decidiu que os órgãos da irmã deveriam ser doados a pessoas que ela nem conhecia, mas tinha a certeza de que estavam em urgência para recebê-los. Foi através dessa atitude de empatia, colocando-se no lugar de pessoas que tinham fé no transplante para continuar vivendo, que Cibelle multiplicou esse simples ato. O gesto foi triplo porque três pessoas renasceram com os órgãos de Giselle. “Por alguma razão, a Central de Transplantes de Pernambuco alegou que fígado e córneas estavam inviabilizados para serem implantados. Mas o coração e os dois rins da minha irmã puderam ser doados. A vida dela não tinha mais como ser salva. Mas, mesmo após a morte, ela conseguiu preservar outras três vidas”, emociona-se Cibelle. Nos casos de morte encefálica (acontece quando o cérebro perde a capacidade de comandar as funções do corpo), como ocor-

Coração, fígado, rins, pâncreas e córneas podem ser doados se há morte encefálica

reu com Giselle, é possível doar coração, rins, pâncreas, fígado e córneas, dependendo das funções de cada órgão no momento do diagnóstico. “O tempo de parada cardíaca foi tanto que levou a danos neurológicos. Ela teve hipoxia cerebral (condição que prejudica a função do cérebro). É difícil aceitar. Nossa família até chegou a pedir uma segunda opinião de mais um neurologista para nos livrarmos de todas as dúvidas sobre a morte encefálica”, contou Cibelle. Ela acrescenta que, quando foi colocada a decisão para doar ou não os órgãos da irmã, a família não teve dúvida de concordar com o gesto, pois Giselle sempre deixava claro que gostaria de, se possível, ser doadora. “Inclusive, isso constava na carteira profissional dela.” Mas a família precisou lidar com uma situação delicada. Profissional de saúde, Ci-

belle estava ciente de que doar órgãos é desafiar o tempo. Ao mesmo tempo, ela tinha que poupar o sobrinho, o filho mais velho de Giselle, que estava com a festa de 8 anos marcada para dois dias após a confirmação da morte da irmã. “Se a gente autorizasse a doação no dia em que o protocolo de morte encefálica foi fechado, a minha irmã seria sepultada no dia do aniversário do filho. Mas a nossa família não queria deixar de fazer a doação”, diz. Como os demais órgãos estavam com função estável, os parentes de Giselle pediram para a Central de Transplantes aguardar um pouco e, no dia seguinte à festa da criança, a doação foi autorizada. A saudade permanece em Cibelle. As boas lembranças, ao lado da irmã, também. “Em abril deste ano, quando se passou um ano da morte de Giselle, eu comemorava também um ano de vida das pessoas para quem os órgãos dela foram doados. Certamente, eram pessoas que estavam sem vida antes disso.” Para ela, viver a dor da morte de um ente querido é sempre doloroso e, por isso, nem todo mundo consegue raciocinar no momento de decidir pela doação. “Penso que, ao sepultar ou cremar um parente que teve morte encefálica, com todos os órgãos, tirase a oportunidade de dar vida a outras pessoas”, diz Cibelle, que dá inspiração para transformar a dor em esperança para o próximo. Afinal, a doação de órgãos possibilita que vidas sejam compartilhadas e, assim, certidões de óbitos são transformadas em certidões de nascimento.


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