A esse ambiente ainda pouco familiar refere-se o filósofo Michel Foucault, no Prefácio do livro As palavras e as coisas, quando confessa seu mal-estar diante do texto do escritor argentino Jorge Luís Borges, intitulado El idioma analítico de John Wilkins (Borges, 1993, p. 84-87), um texto que, segundo o pensador “[...] perturba todas as familiaridades do pensamento [...]” (Foucault, 1987, p. 5). Pode-se dizer que essa evidência se estende por toda a obra borgeana e tem pelo menos uma consequência avassaladora e imediata sobre o leitor: a constatação da dificuldade de compreender o universo borgeano à luz de alguma teoria determinada. A obra borgeana pede uma leitura de totalidade impossível. O leitor deve guiar-se por sua própria medida, pela memória que retém leituras anteriores, pela transubjetividade que movimenta a relação com o texto, pela imaginação, pelas referências externas de contexto, pelo senso crítico e teórico. A leitura sempre corre o risco de resvalar no absoluto subjetivismo; isso não acontecerá se o leitor construir um saber sobre a obra como um todo. Ainda que esse saber seja um saber geral, permite ao leitor conhecer os limites de sua leitura, adquirindo condições de estabelecer micro e macro relações e criar interpretações que não se desviem dos pontos de fuga do universo da obra; levando ainda em consideração que os supostos pontos de fuga objetivos não estão fixados para sempre, eles próprios também são dinâmicos. Esse é o desafio constante do leitor, e o exercício a que este breve livro convida. Narrativa e magia Um dos textos selecionados para compreender a poética é o ensaio El arte narrativo y la magia do livro Discussión (Borges, 1994a, p.226-231), que testemunha no mesmo espaço literário a importância da elaboração da narrativa e da leitura na construção do texto literário, tomando a narrativa como material potencialmente criador de várias leituras e tomando a leitura como atividade transformadora do material narrativo. Esse embaralhamento de leitura e narrativa se torna evidente neste ensaio, uma vez que é pela leitura de The Life and Death of Jason, de William Morris, e de Narrative of A. Gordon Pym, de Edgar Alan Poe, que Borges 14