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3.2. FESTIVAL DE SENSAÇÕES

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REFERÊNCIAS

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Analisando o uso da luz como catalisadora de sensações, ao longo dos primeiros dois capítulos e apresentado o contexto e o recorte das festas de techno, percebem-se paralelos, os quais foram a origem exata da inquietação em que resultou esse trabalho.

Parece loucura comparar a “profanidade” de uma festa techno com as experiências narradas anteriormente dentro de uma catedral gótica, por exemplo, onde o sagrado e a religiosidade são os focos centrais, mas pontos similares já foram explorados.

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O filósofo alemão Friedrich Nietzsche, traz no seu livro O Nascimento da Tragédia, o conceito de dualidade do apolíneo e o dionisíaco, o racional e o caos presente nas emoções e instintos, esses dois impulsos, praticamente opostos, existem lado a lado, geralmente em discórdia, mas instigam-se mutuamente para gerar frutos cada vez mais vigorosos. Para ele a união dos dois, origina o que chama de ”tragédia ática”, uma arte tida como mais fiel a realidade, por isso, suprema. O homem se relaciona intimamente com o mundo, constituindo um elo. Porém, o que ocorre atualmente é um afastamento dessa realidade que era tão vivenciada, especialmente pelos gregos, na época antiga. Nietzsche, ao escrever sobre o assunto, parece prever o que ocorreria com o homem da atualidade: o evitar da finitude, ao ignorar os elementos dionisíacos e valorizar apenas a racionalidade apolínea, o que impede esse homem de aceitar a realidade tal como ela é.

Deus Baco (Dionísio) por Michelangelo di Caravaggio, c. 1595, pintura retrata o deus do vinho e dos pazeres. Fonte: Museu Uffizi Apolo, enquanto deus da experiência onírica (do sonho), é um deus ilusório. A luz, quando em excesso, faz apenas cegar os olhos, enganar-nos. A experiência iluminada e aparentemente prudente e ordenada que se apresenta como verdadeira é nada, senão uma falsa realidade que ilude, a partir da racionalidade.

No resgate do dionisíaco, Nietzsche (1888) pede uma valorização da arte em detrimento do conhecimento. Embora a arte seja apenas uma cópia do mundo, as formas abstratas e mais reais do dionisíaco estão presentes neste, e podem ajudar a defini-lo e interpretá-lo de forma mais verdadeira.

O que se perde ao valorizar a individualização e a racionalidade apolíneas, é o próprio sentido de pertencimento e de valor, é o sair de si. Quando a arte se expressa apenas no sentido apolíneo, torna-se um instrumento dialético e moralizante, perdendo seu sentido enquanto manifestação própria da loucura da vida.

A arte apolínea valoriza a forma e a busca da racionalidade métrica e objetiva, o que se adequa às máximas socráticas de que apenas o saber é virtuoso e que a vida para ser bela, precisa ser inteligível, mas isso não é nada palpável se tratando de vida real, o mundo não é mundo sem as experiências emocionais, as hedonísticas da ordem da embriaguez e do prazer, uma arte sincera, não moralista, que não esconde todas as faces de uma sociedade, é a pura estética da verdade.

Na arquitetura isso é retratado eximiamente por Bernard Tschumi, no que chama de O Prazer da Arquitetura, o autor faz uma crítica ao funcionalismo e as atitudes puritanas do movimento moderno, de que, ao longo dos anos, qualquer arquiteto que procurasse sentir prazer na arquitetura era considerado um decadente. Mas porque isso deve ser considerado uma coisa tão negativa?

Para ele, por mais que exista prazer na racionalidade e na ordem, por exemplo, é possível achar uma construção grega bela, mas esse prazer está atrelado a geometria, uma certa “perfeição opressora”, ele decorre.

“ordem dórica ou coríntia, eixos e hierarquias, grelhas ou linhas reguladoras, tipos ou modelos, paredes ou lajes, e naturalmente, a gramática e a sintaxe do signo arquitetural se tornam pretextos para sofisticadas e agradáveis manipulações. Levadas ao extremo, essas manipulações tendem para uma poética de signos congelados, desvinculados da realidade e voltados para um prazer mental, gélido e sutil.” (TSCHUMI, 1978)

Percebendo isso conclui-se que, a necessidade da ordem não é justificativa para imitar ordens passadas. A arquitetura torna-se interessante quando domina a arte de perturbar ilusões, criando pontos de ruptura que podem começar e terminar a qualquer momento, assim como, quando se levada ao excesso, revela ao mesmo tempo os vestígios da razão e a experiência imediata do espaço.

Exceder os dogmas funcionalistas, os sistemas semióticos, os produtos formais das restrições sociais não é necessariamente uma questão de subversão, mas de preservação do que Tschumi chama de “capacidade erótica” da arquitetura, por meio da ruptura da forma que a maioria dos círculos conservadores esperam dela. A arquitetura do prazer se concentra, então, onde o conceito e a experiência coincidem, onde a cultura da arquitetura é eternamente desconstruída e as regras são transgredidas.

Nem mesmo a experiência religiosa está completamente isenta no “techno”, a junção da luz, música e comunidade presentes nessas festas é algo que ocorre em diversas religiões, inclusive cristãs, junção tal qual existe nesses contextos tanto tido como sagrados ou não.

As luzes dos vitrais numa catedral, o coral, o sermão do padre e a energia conjunta dos fiéis presentes, existe nessa união para criar uma experiência de transcendência, na tentativa de incitar um transe contemplativo.

C.G. Jung (1833) usa a missa católica como exemplo dessa busca pela transcendência através do rito sagrado, que essa busca durante o ofício litúrgico ultrapassa todas as barreiras de espaço e tempo, é um momento eterno onde o neófito recebe a “graça”, é influenciado, impressionado ou “consagrado” por sua participação ou apenas pela simples presença no ritual.

Fiéis buscam a transcendência espiritual através da missa católica Foto: Catholic Church England and Wales (Flickr)

A transcendência também pode ser atingida por outros meios, onde existem pessoas em um coletivo tomadas por uma única energia, adicionando um ou mais dos fatores citados , onde é possível atingir isso, mesmo num contexto mais profano, pagão, exemplo clássico é o êxtase dionisíaco presente nas bacanais, mas atingir esse estado não é tão fácil, por isso algumas pessoas se utilizam de aditivos, alteradores de consciência, para ajudar no processo; no caso das bacanais, o vinho, já nas festas contemporâneas, o Techno incluso, diversas outras drogas fazem parte da realidade.

Aldous Huxley (1954), no texto As portas da percepção, traz o uso recreacional de drogas nessa tentativa de transcender a individualidade autoconsciente, que, quando, por um motivo ou outro as pessoas não conseguem transcender por meio do culto religioso, das boas obras e da meditação, elas tendem a recorrer ao que chama de “substitutos químicos” da religião, ele cita a obra de Philippe de Félice, filósofo que traça um rico histórico da conexão imemorial entre a religião e o uso de drogas na frase “Em poisons sacrés, invresses divines” ( Venenos sagrados, embriaguezes divinas).

Nesse volume Huxley analisa, com riqueza de detalhes a experiência do uso da mescalina, substância presente no peiote, ele decorre então sobre as descobertas cientificas sobre essa substância, de que ela se assemelha profundamente ao andrenocromo, produto natural da decomposição da adrenalina, ou seja, cada ser humano é inteiramente capaz de sintetizar uma substância química que,

Índio Yanomani após inalar alucinógeno yãkoana para ritual xamânico Foto: Claudia Andujar

mesmo em pequenas doses, provoca alterações de consciência profundas e comprovadas cientificamente. Em conclusão, a capacidade de transcendência, de mudança de percepção, é inata ao homem e o uso das substâncias, surgem entre muitos outros fatores complexos, como um facilitador do processo, mas difere, ao mesmo tempo, de uma obrigatoriedade; o uso não é estritamente necessário para alcançar o desejado, seja em rituais ou em festas, mas para muitos ele existe, então seria enganoso e omisso da parte desse trabalho, como um estudo acadêmico, de não retratar essa face.

Tendo em mente a necessidade de ponderar o apolíneo e o dionisíaco, o racional e o emocional, para alcançar uma arte fiel a realidade e visto a similaridade das experiências transcendentais do sagrado e o profano, fica claro que as oposições se completam e que apesar de arriscado, o que antes parecia insano comparar, cria uma narrativa de sentido.

Outra sensação presente no “techno” tem origem em onde ele ocorre, o espaço do techno pode ser considerado sublime, de acordo com Edmund Burke em sua Investigação filosófica sobre a Origem de Nossas Ideias do Sublime e da Beleza, o sublime está em tudo que de alguma forma seja capaz de excitar idéias de dor e perigo ou que opere de uma forma similar ao horror, o assombro é o efeito do sublime de mais alto grau, já em contraposição, a admiração, reverência e respeito, por mais que despertem uma sensação de sublime, seria em menor grau.

“Por que tão poucas construções modernas tocam nossos sentimentos, quando qualquer casa anônima numa velha cidadezinha ou o mais despretensioso galpão de fazenda nos dá uma sensação de intimidade e prazer? Por que as fundações de pedra que descobrimos num campo de mato crescido, um celeiro desabado ou um hangar abandonado despertam nossa imaginação, enquanto as casas em que moramos parecem sufocar e reprimir nossos devaneios?” (PALLASMAA, 1986)

Tendo em vista esse ponto, a ideia do techno seria a revitalização desses espaços, naturalizando a presença neles, mas ao mesmo tempo tendo cuidado para não os remover dessa característica, para isso, pode-se adicionar outro princípio causador do sublime, a luz.

Burke considera que toda arquitetura, que tem como intuito produzir uma ideia de sublime, prefere utilizar do escuro e do sombrio, mas à noite, período quando a maior parte dessas

Os locais onde as festas ocorrem tendem a despertar essa noção do sublime, os espaços em degradação, galpões e fábricas abandonadas, não-lugares praticamente, são associados a uma preconcepção de perigo, asco, que a sociedade geralmente atribuí a esses lugares marginalizados.

Juhani Pallasmaa (1986), traz uma ideia similar ao fazer uma crítica ao modernismo e a essa arquitetura “limpa” no trecho do texto A geometria do sentimento:

Locais como fábricas abandonadas despertam a noção do sublime e frequentemente são ocupados para festas de techno Foto: Ender Lawrence (DeviantArt)

festas ocorre, a regra é invertida. Durante à noite, quanto mais um quarto estiver iluminado, maior será a paixão causada, então, uma iluminação de destaque, que difere grandemente do breu noturno exterior e que valorize o caráter visual e estético do espaço já sublime, em que o techno acontece, seria um agregador importante para a experiência num todo.

O tempo e o ritmo que a música eletrônica toca ressoa a racionalidade apolínea, que induz um transe religioso, as batidas ressoam em uma simplicidade fácil de compreender, que está atrelado as batidas presentes em ritos tradicionais de religiões de matrizes africanas ou até xamânicas, que promulgam o transe, por isso parecem tão naturais e familiares aos nossos ouvidos.

Festa de Techno Blum SP Fonte: Instagram (@blum.sp)

Festa de Techno Blum SP Fonte: Instagram (@blum.sp)

Esse “festival de sensações”, como o título implica, existe para criar uma experiência única ao usuário, sem um projeto de luminotécnica para o espaço não teria luz no techno e sem luz não há techno. A luz, como a música e as pessoas são partes essenciais, para o ritual da festa se completar.

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