"O Encontro das Estátuas"

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O Encontro das Estรกtuas de Antรณnio Augusto Pereira Marques

Montagem:


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Muitos desconhecem esta obra singela do Senhor Doutor Pereira Marques, médico-benemérito que foi na Guarda. Não me cansarei de a divulgar. Do Homem, Médico, Escritor, Jornalista e Poeta, brevemente falarei, numa próxima oportunidade. Nunca os “Senhores” da Guarda o souberam reconhecer e ao seu trabalho tão dedicado, atribuindo, pelo menos, o nome Doutor António Augusto Pereira Marques, a uma rua, a um largo, ou a uma simples viela… Que eu saiba, “O Encontro das Estátuas” foi pela primeira vez publicado no livro “A Guarda e os Amores da Ribeirinha”, de Virgílio Afonso (também ele Escritor, Poeta e Jornalista da nossa terra). ___________________________________________________________________________

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"O Encontro das Estátuas” de António Augusto Pereira Marques (*) Maio desflorido do ano desprimaverado de 1956. Noite muito concebível de invernada, de neve e luar na Guarda. Passando rente à célebre taberna de D. Jaime de Aguilar, seguindo a rua da Torre adiante, acaba de entrar na Praça Velha uma serenata. A diabólica ventania esfacela a poeira e mal deixa apreender os cantares. D. Sancho, mal acomodado ainda dentro da sua fresca estátua, sobressalta-se, com a mão direita leva a capa a espevitar os olhos ensonados enquanto na esquerda firma a espada, perfilando-se em alerta sobre o quadrado que lhe deram para calcadura. «Será sonho, serão moiros, será chuva, será gente? Ou cantares de amigo, ou cochichos do inimigo? • D. Sancho não sabe se há-de suspirar pela sua «Ribeirinha», se chamar pelo Mestre de Avis, seu fero companheiro de armas, o D. Gonçalo Viegas. • Mas não. Quem vem lá, quem avança «num andamento discreto, lento», são os grandes da Guarda, as estátuas do Dr. Francisco dos Prazeres, do Dr. Lopo de Carvalho e do poeta Augusto Gil. • El-Rei chegou, vão visitá-lo: Pe. Prazeres – (a Augusto Gil) que segue em frente, parecendo apostar a cortar entre as costas largas de D. Sancho e a Sé. Ó Gil, tu vais na lua? Olha que o homem já está virado para baixo... Augusto Gil – Bem sei, mas apetece-me parodiar a minha própria cantiga: Quando o regalo de presente nos for dado 3


é que é olhá-lo por detrás e por de lado e pela frente...» Dr. Lopo – Pois deixa-te agora de «cantigas de cigarra» e passemos à frente. Momentos passados já os três arqueiam vénias respeitosas diante de D. Sancho: Augusto Gil (a D. Sancho) – Vimos jubilosos apresentar homenagens a Vossa Majestade e cumprimentar o nosso colega. Podíamos ser quatro a vir, mas infelizmente quando por aí alguém lembrou nos jornais antecipou-se Côja, que merecia estátua o grande Bispo D. José Alves Matoso, a lembrança nem sequer tinha ocorrido a quem de direito e, por isso, a ideia não teve os aplausos seus. Pe. Prazeres – Viemos pois só os três, sem qualquer acompanhamento de povo porque, com uma noite destas, só estátuas se atrevem à rua. Dr. Lopo – Já lá dizia por experiência própria o nosso Dr. Paúl que nas noites de invernada na Guarda, só se encontravam cães, médicos e policias. Augusto Gil – Desgraçados tempos esses. Agora os cães, desde que a câmara deitou canil e lançou a rede desapareceram da circulação; os polícias, para seu descanso, admitem que a paz continua; e os médicos, esses agora, quanto mais apolíticos se digam mais finos políticos se revelam e mais andam na berlinda: por isso só já circulam em berlinda-automóvel. Pe. Prazeres – Tal como os meus colegas que, agora sim, salvam almas à velocidade de cem à hora. D. Sancho – As ironias deste mundo! Fica então o triste Povoador reduzido à camaradagem das três nobres estátuas! Mas, por isso mesmo, mais baratos se há-de estar pela vossa 4


visita este solitário recém-vindo. Pe. Prazeres – E Vossa Majestade chegou bem a esta sua terra? D. Sancho – Sim, para aqui me trouxeram á força, ou à forca por uma corda ao pescoço, para este clima que, vós o dizeis e eu já sabia de outiva, nem para cães é bom. Dr. Lopo – É no entanto, bom para tísicos. Há-os aí por cada canto... D. Sancho – Mas como não sou e nem pretendo ser tísico, não sabereis vós dizer-me porque é que me arrastaram para aqui a glorificar, como dizem, para uma terra que não fundei, que não pisei, que nem conhecia e que mais nada me deve do que o Foral como tantos outras Quintãs dos Matos, dos Sandes, dos Bastos, de todos os meus ricos homens? Pe. Prazeres (em à parte) – Foi por isso que o fizeram de costas tão largas... Augusto Gil (satisfazendo à interrogativa de El-Rei) – Coisas que acontecem aos poetas: eles, eu como vós, para revestirem de um bocadinho de arte as suas ingratidões à Musa, têm de roubar um pouco de verdade aos cantares. E então... «ai muito me tarda o meu amigo na Guarda». E o mundo acredita esquecido de que também havia uma D. Maria de Fornelos. E só por D. Sancho andar na lua com ela, é que mais perta estaria da Guarda... e mais longe da «Ribeirinha» a quem o Rei tardava... Pe. Prazeres – E afinal, o que já tardava era que Vossa Majestade viesse para a Guarda, até para protestaço da reverência que se deve à monarquia... D. Sancho – Sois gentis e bons companheiros. Mas dizei-me: e a vós quem vos perpetuou em estátua e porquê? Augusto Gil – Nessa maroteira de nos «pôr na rua» deve ter andado o dedo e a irreverência do consagrado escritor Nuno de 5


Montemor. Mas cá se fazem cá se pagam: tenho bem fundadas esperanças que também ele virá a padecer a nossa sorte, e sorte teremos nós na sua companhia, porque ele é espirituoso e mordaz. Pe. Prazeres (procurando completar a resposta à interrogativa de D. Sancho) – A Guarda teima em considerar-se feia e pobre e cegamente atribuir responsabilidades disso aos nativos: temlhes fobia. E assim, e dizem-lo mais por Vossa Majestade do que por nós, ela é sensível a quem, não tendo aqui nascido, chega a consagrar-lhe certo amor e alguma atenção. É sensível a quem lhe cantou baladas de neve, a quem lhe suavizara as dores, e a quem lhe proporcionou recolha para os sofrimentos a quem lhe deu cidadania como Vossa Majestade. D. Sancho – Estais a fazer crescer em mim uma grande simpatia por esta terra de gratidão, começo a sentir-me bem e a desejar ficar. Augusto Gil – E há-de ficar, mas não aí: melhor e mais alto. De resto, esses palmos de terra onde Vossa Majestade tem agora assento jamais permitiria deixar-se aquecer por qualquer, parecem terras do demo ou terras de ninguém... De nossa lembrança, esteve aí um coreto que era muito bem traçado como «chapéu de mandarim». Depois também lá espetaram um canudo, a que chamavam pluviómetro e que talvez quisessem que tivesse por missão atrair água para as bocas da cidade e para o negócio dos botiqueiros de líquidos. Eu próprio também já aí estive. E este nosso Dr. Prazeres igualmente chegou a estar destinado para esse lugar. D. Sancho – Vim então ocupar-vos o trono! Desgraça para mim! Augusto Gil – Não tenha Vossa majestade quaisquer preocupações por nós, que agora encontramo-nos instalados com todas as decências e honras nos melhores largos da cidade. D. Sancho – Ainda bem que estais satisfeitos com vossos poisos. Mas, atendei lá, porque é que na Guarda os pedestais das 6


estátuas e as simples memórias, é tudo em estilo de chaminé? Augusto Gil – Dizem que a chaminé fez moda. Dr. Lopo – Moda não. Será antes, caridade. Em terras de frio como esta, que seria de nós, pobres mortais, se não nos alçassem na boca de uma chaminé? Morríamos de novo concerteza... D. Sancho – Para mim então, a caridade foi maior, porque também me deram farta capa... Augusto Gil – Lá isso! A mim deram-me perturbante Musa com seu manto diáfano de fantasia... D. Sancho – Por isso estais em brasa para retirar. É pois do meu agrado fechar a audiência, mas antes que retireis dai-me um informe visto que não encontro a Repartição do Turismo para me documentar: Porque profetizais vós que este local ainda não é o meu definitivo? Augusto Gil – Porque Vossa majestade merece melhor perspectiva e ambiente mais condigno, numa Praça menos riscada «às três pancadas» como de resto é tudo agora cá na terra desde a intervenção da técnica... Dr. Lopo – Nem esta praça dá imponência a Vossa Majestade, nem a imponência da Vossa Estátua consegue encobrir a pobreza deste Largo. Pe. Prazeres – Que, com este fundo maravilhoso da Sé todo a descoberto e bem enquadrado, podia ser a maravilha das Praças de Província, a solene Praça do Granito. Augusto Gil – E então sim, o Largo e El-Rei seriam dignos um do outro. Pe. Prazeres – A oportunidade há-de vir, há-de voltar – que já aí andou mais de uma vez. Aguardemos os novos e nativos da 7


Guarda. Alguém será capaz um dia de olhar mais pela Guarda do que para si próprio. E então, como lhe compete, irá VossaMajestade ocupar esse centro desta Praça do nosso sonho e do nosso amor. D. Sancho – Pois se a minha vinda impõe tal solução, felicito-me por ter vindo. Augusto Gil – Tínhamos vindo afinal, fazer simples visita de cortesia e acabámos, nós os passados por nos preocupar com a grandeza futura da Guarda. Assim, com vosso consentimento vamos retirar, e bem contentes. D. Sancho – Pois sim. E olhai: eu, satisfeito fico. Porque agora vos digo, quando apareceu médico, padre e poeta, receei que tinha de haver-me com qualquer Sociedade Pró-Fundis que viesse no propósito de tratar da «minha saúde e do meu epitáfio»... Sois afinal, da Pró-Arte: podeis contar comigo. Fazem vénias de despedida e, no andamento discreto, os três Grandes vão saindo da Praça Velha, esperançados de que agora a espada forte de D. Sancho ficará a ser «mascote» da Guarda, duma Guarda de vistas largas, sem arcos de romaria de aldeia a tapar ricas artérias, nem bairros de residências semeados «à toa», nem ruas a entrar pelas janelas, nem cemitério de ingleses no melhor local da cidade, bem digna de melhor sorte; duma Guarda onde, finalmente, e para seu embelezamento comece a cortar-se a direito e sem dor, rijo e com saber, e com sabor. (*) Guarda, Junho de 1956 – Pereira Marques, médico na Guarda

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