Grande reportagem: A cultura do subsolo invade a sala de estar em 1960

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CONTRACULTURA


A CULTURA DO SUBSOLO INVADE A SALA DE ESTAR EM 1960 Depois que os Estados Unidos se envolveram na Guerra do Vietnã e o consumismo cresceu como consequência da industrialização, o movimento conhecido como Contracultura recrutou os jovens americanos, que deveriam defender sua nação, por um propósito irrecusável: curtir a juventude, usar drogas e praticar sexo livre. Eles não queriam perder seus melhores anos em uma guerra que mal entendiam e foram fieis a suas vontades, ao recusar tudo o que a sociedade proporcionava para criar uma nova ordem: a da desordem.

KIARA DOMIT VIEIRA

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bandeira americana, de faixas largas e estrelas luminosas, balançava sobre o berço da cultura do contra, onde a tecnocracia se desenvolveu forte e rapidamente, servindo como combustível para o início do espetáculo. Esse sistema de organização política e social, em que a especialidade domina as formas do conhecimento, obriga o homem a se adaptar a uma realidade mecânica, desprovida de qualquer impulso criativo. No meio dos vendavais marginais que assolavam as ruas de São Francisco em 1960, alguns nomes logo anunciaram a chegada de um forte furacão que virou mentes ao avesso, os fazendo questionarem seus direitos e imporem seus desejos. Proferindo discursos de sonhadores, soprando gaitas de bocas e lendo o melhor do beatnik ou ingerindo o mais refinado LSD, estiveram o pastor Martin Luther King, defensor dos direitos civis dos negros norte-americanos, que devido a seu ofício terminou assassinado; o cantor de Folk Bob Dylan, que passou a escrever canções com críticas à sociedade atual e o psicólogo Timothy Leary, que estudou e defendeu a legalização do ácido lisérgico (LSD) por toda a América. Os rebeldes, que compunham a prole dessa época, agitaram o suficiente para balançar a estrutura social do país e possibilitar uma nova visão sobre tudo. Essa foi a única, até então, parcela da história da humanidade a elevar música, revolução e psicodelismo, juntos e exacerbadamente, ao topo do limite. Alguns por aí pararam, outros simplesmente apagaram essa finíssima linha e encontraram a insanidade ou a morte. Foram milhares de jovens que se (des)organizaram, para lutar com flores e boas intenções, contestar

costumes, padrões, tradições e preconceitos. A batalha havia começado.

O ESTOPIM

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o fim da Segunda Guerra Mundial, uma região conhecida como Indochina, composta pelo Camboja, Laos e Vietnã, se encontrava sobre domínio japonês, apenas sonhando com o dia de sua independência. Mas com apoio dos comunistas, o líder chamado Ho Chi Minh formou a Liga Revolucionaria para Independência do Vietnã e iniciou combate contra os orientais. O processo de descolonização dessa região levou a uma nova luta, agora entre tropas francesas e guerrilheiros da Liga, que venceram e finalmente conquistaram a independência. Em 1954, a Conferência de Genebra reconheceu essa independência, mas outra medida estabeleceu a divisão do país em duas partes: era Vietnã do Norte governado por Ho Chin Minh, com sistema socialista e Vietnã do Sul, capitalista, sob o governo de Ngo Dinh-Diem. Com medo que o veterano Ho Chin Minh se reelegesse e pudesse influenciar outras nações a aderir seu comunismo, o presidente norte-americano, Lyndon Johnson, começou a colaborar com o Vietnã do Sul enviando armamento, dinheiro e conselheiros militares, o que fez a oposição criar a Frente Nacional de Libertação, apoiada pelo Vietnã do Norte, e o exército Vietcong. Cinco anos mais tarde, quando os vietcongues, inflamados em comunismo e nacionalismo, atacaram uma base norte-americana do Vietnã do Sul, iniciaram mais uma batalha que se estendeu no tempo. Mais cin-

co anos se passaram até os Estados Unidos interferirem diretamente no conflito, enviando seus soldados. Porém seus soldados não passavam de rapazes de mais ou menos 18 anos que escutavam Beatles e tinham os cabelos passados do ombro. Eles estavam sem a mínima vontade de participar da confusão e decidiram incomodar com sua recusa. Eram os filhos da geração baby boom, que além de representar os nascidos posteriormente à Segunda Guerra Mundial, quantificavam um aumento de natalidade nos Estados Unidos gigantesco. Foram os protagonistas de mudanças sociais e do grande rompimento cultural. Eles abandonaram o conservadorismo e aderiram novos valores. Eram os marginais da contracultura que se encontravam no olho do furacão, com tanta curiosidade pelo impossível que trouxe excentricidade e eternizou uma legião completamente mundana.

MATUSAEL E A ABSTRAÇÃO DA MENTE PELA PSICODELÍA Uma caçada nos bosques do misticismo

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uando a década pós-guerra de 1960 chegou de poeira baixa, pronta para criar suas histórias de calmaria e progresso, surgiram os hippies no bairro HaightAshburry de São Francisco, com o slogan flowerpower, metendo os pés na porta da esperança. Eles estavam loucos para formar uma guerrilha cultural no próprio sistema em que viviam. Preocupados em ampliar os conhecimentos sobre misticismo oriental, abusavam das drogas alucinógenas, que alteram a consciência e iniciavam a negação de valores morais e sociais que aprenderam

em casa. Estavam se atirando com a coragem do mais nobre paladino ao mundo da psicodelía. Juntos, sentiam estímulo pelo conhecimento e pelo livre pensar. Então se desfizeram das restrições e chocaram todo o mundo, para fomentar questionamentos e causar reflexões sobre a tradição vigente que habitava o solo americano. Nada do que foi feito ali, envolveu teorias ou planos prévios, eram simplesmente experimentações de um grande laboratório a céu aberto. Nesse tempo de revoluções ideológicas e de reprodução da vida social, eles começaram a usar a intuição no lugar da razão e contagiaram para além das fronteiras vermelha e azul. Logo chegaram ao nosso querido Brasil verde e amarelo trajado como movimento do Tropicalismo, que em meio à ditadura militar, teve sua parte musical muito bem representada pela MPB de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, entre outros, e também levou milhares de jovens a ruas para protestar. Depois que o vírus do corromper se espalhou, aqui e pelo mundo, a movimentação continuou presente no ar e refletiu em muitas culturas diferentes, como na que o paranaense Matusael costuma viver hoje, mais ou menos 50 anos depois.

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eto de um antigo delegado de União da Vitória, Matusael tem dreadloaks, mechas de cabelo trançado, presos no alto de sua cabeça até o comprimento da cintura, há mais de oito anos. Uma barba volumosa e crespa destacam os olhos claros que, vagarosamente, mexem-se pela órbita do maluco sentado logo à frente. Diz ser calmo e observador de detalhes. Fala pouco e pausadamente, sempre com um olhar parado em lugar nenhum,

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como se esperasse as respostas surgirem repentinamente, ali, na porta. Sorri entre uma conversa e outra, nas quais se pode ouvir sua voz rouca. Nasceu em 1983 na cidadela de Ponta Grossa, no centro do Paraná, pois União da Vitória, cidade de seus pais, também situada na Terra das Araucárias, prevista para o nascimento, sofria uma grande e famosa enchente. Após seu nascimento voltou para União da Vitória, lugar onde vive há 27 anos, junto com os pais, Daisy e José. Um dos lemas da sociedade alternativa era ligar-se, sintonizar-se e libertar-se. A frase, criada por Timothy Leary, o “pai” da contracultura, que se popularizou entre simpatizantes contraculturais, é também o título de uma foto de Matusa no Orkut. Na foto, ele está ajoelhado diante de cogumelos Psilocybecubensis, os cogumelos azuis e mágicos, provavelmente minutos antes de comê-los. Os pequenos fungos são usados por ele com o mesmo intuito que milhares de jovens usaram o LSD, entre outras drogas, em 1960. Era pela expansão da mente, pelo alcance da compreensão cósmica.

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uando o cientista suíço Albert Hoffman começou a pesquisar, em 1943, alguma substância que impedisse o sangramento excessivo após o parto, acreditou que teria sucesso no isolamento do princípio ativo de um fungo chamado ergô. Um dia, acidentalmente, derrubou em sua mão uma pequena quantidade do tal princípio e, ao voltar para casa de seu trabalho de bicicleta, sentiu como se estivesse em uma montanha russa, onde construções respiravam e rostos humanos tornaram-se máscaras disformes e coloridas. Essa foi, com certeza, a primeira viagem de LSD da história. Ficou encantado com os poderes daquele sintético, e depois de descartar seu uso como suspensão do sangramento acreditou que poderia usá-lo para curar alcoolismo ou disfunção sexual. Pobre Hoffman, que jamais imaginou sua descoberta como propulsora de um tempo explosivo e singular, onde todos se viam como carpinteiros de um novo universo. “Liberdade? “– diz Matusael entre uma pausa longa – “é difícil né? A gente vive num planeta em que precisamos ficar juntos. Mas as pessoas pensam diferente”. – pausa longa – “É difícil ter liberdade sem desrespeitar os outros. Um dia talvez”. Reprovou dois anos na vida escolar, um deles durante o terceiro ano do ensino médio, em que fazia

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no colégio Estadual Cid Gonzaga. E acha que no final das contas o ano perdido foi bom, pois foi tempo necessário para que a Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de União da Vitória (FAFIUV) iniciasse o curso de química, área que tinha interesse. “Se eu não tivesse reprovado, não ia saber o que fazer. Vai que largasse os estudos? Talvez nunca mais voltasse”. Enquanto fala, recostado na cadeira que está em frente à janela do quarto, cuida do incenso que volta e meia se apaga com o vento do terceiro andar. Depois se abaixa e procura algo pelo chão próximo à escrivaninha, que apoia um microscópio, livros e outras coisas, como vários maracás, um instrumento de origem indígena semelhante ao chocalho geralmente feito com caroço de frutas ou sementes. Encontra o que procura: um pequeno saco plástico azul farto de maconha. Retira pequenos pedaços da erva prensada, ainda falando, e começa o primeiro passo para se fazer um baseado. Solta os pedaços da erva ou “dechava” como se costuma dizer, enquanto conta como foi a primeira vez que “pitou” aquilo. Tinha 16 anos e começava a escutar bandas como Os Raimundos e Planet Hemp, que significa Planeta Cânhamo (nome da fibra que se obtém da Cannabis sativa, a maconha). Em alguns minutos o cigarro está pronto. Risca um fósforo e acende. Traga uma, duas, três vezes e, devagar, retoma o fluxo da conversa que fora interrompida. Depois da primeira vez que experimentou maconha, há doze anos em uma chácara banhada pela luz da lua, veio uma segunda, terceira e quarta vez. Entre uma delas, relembra do dia em que percebeu limiares da vida. Pessoas, conversas, ideias e manias atraíram sua atenção, de forma inédita. Durante esse momento, tudo que observava era motivo de grande reflexão, envolvendo questões fundamentais como quem somos e porque estamos aqui. - Um dia no clube, fiquei sentado em um canto e comecei a observar o jeito das pessoas que estavam ali. O jeito que as meninas andavam, usando a canga e aqueles biquínis, parecia que estavam desfilando. Tudo me pareceu muito ridículo. Elas eram fúteis, e os caras também”. A partir daquele dia, ele soube que havia sido tocado por algo novo que lhe concedia ver as coisas “além” do normal. Não queria voltar a ser como antes, pois seus valores foram transforma-

dos em algo que passou a carregar igualdade, humildade e senso crítico. - O cigarro apaga conforme a conversa se estende. Em silêncio, ele o reacende e mais uma vez, retoma a conversa. - Fui crescendo, ajudando minha mãe, fazendo serviço de banco na empresa despachante da nossa família, e me formei. Depois fiz a pósgraduação, também em química. Nesse período que passou na Fafiuv não cortou mais o cabelo e decidiu que não o pentearia novamente. Aos poucos, foi enrolando os fios entre si para que os dreads começassem a se formar. Ele é, sem dúvida, uma figura particular entre as outras. - As pessoas falam de mim, eu sei. E olham diferente também. Mas hoje aprendi a não ligar. Os caras falam e eu ignoro, senão não dá. Há pouco tempo juntou algum dinheiro com as aulas de química que dá e comprou um fusca, por menos de dois mil reais. Em um futuro breve, pretende fazer a carteira de habilitação para, então, poder rodas seus quilômetros em paz. Nos seus braços magros, carrega pulseiras feitas por si mesmo. Artesanalmente cruzados, os fios encerados de diversas cores que estão amarrados ali há tempos, demonstram a arte hippie do artista que desejou se presentear. Na cadeira em que está sentado, um fio amarrado horizontalmente na parte de trás do encosto segura outras pulseiras já começadas que esperam o dia de também estarem em algum braço. Aos 17 anos, tempos que costumava andar de skate, Matusael foi preso. “Era dia 1º de maio”, relembra. O motivo: carregava droga. Se lembra do policial que dava tapas e o chamava de vagabundo, e do seu pai, que precisou acordar no meio da madrugada para tirar o filho de dentro de uma cela. “Foi ali que eles descobriram tudo (sobre o uso de maconha). No começo não foi fácil, minha mãe gritou, chorou, mas passou. Hoje é sossegado”, conta ele. A bicicleta Caloi, modelo retrô, era, antes do fusca, a melhor maneira de andar pela cidade e também para além dela. Como durante o tempo em que frequentava o Instituto Xamânico Céu Porto União da Vitória. Tranquilamente percorrendo os cerca de 20 km do centro da cidade, pedalava sozinho até a chácara que oferece aos visitantes a bebida indígena ayahuasca. Esse chá, de coloração marrom escuro, azedo e amargo, é feito a partir da mistura de folha de jagube e raiz de chacrona, plantas típicas da região amazônica conside-

rada sagrada, que promete aprimoramento espiritual. Hoje, namora a menina Jessica, quase 10 anos mais jovem que ele. Por falta de dinheiro, desistiu do curso de mestrado que havia começado início de 2011, na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Agora é professor efetivo da Escola Estadual José de Anchieta, onde ensina química e física para os alunos do ensino fundamental.

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ssim como Leary e Aldous Huxley, autor do livro As Portas da Percepção e Céu e Inferno, que relatam grandes viagens alucinadas com a maestria de um escritor e experiência de um grande curioso, Matusael crê no poder de plantas e substâncias psicoativas. Seriam como ferramentas sublimes que oferecem a possibilidade de enxergar um mundo amplo, onde a fantasia e a complexidade beiram a sanidade do homem e trazem como recompensa respostas para a evolução espiritual. O antropólogo Carlos Castaneda, também é dono de uma grande obra sobre aprendizagem pelo uso de plantas de poder. No seu livro A Erva do Diabo, ele conta histórias e experiências que lhe foram concedidas por um “brujo Yagui”, o índio xamã mexicano chamado Don Juan. A obra resultou da tese de seu mestrado em antropologia, que perdeu o cientificismo acadêmico e rigoroso e ganhou corpo e vocabulário leve. Castanheda discorre em longas conversas e histórias que viveu durante cerca de cinco anos na pequena cidade de Sonora, no México, em 1961. O alimento da alma, a cura espiritual, a verdade. A experiência de ver e sentir coisas que, devido à vida agitada que se costuma levar, são esquecidas. As cores, os sons e o toque aguçam, é potência redobrada. Os detalhes passam a apresentar dezenas de significados que até então não existiam. A mente abre, a luz entra e a verdade é apresentada, pura e simplesmente. As coisas começam a fazer sentido. O corpo formiga, a visão fica turva e os olhos, fechados, enxergam luzes, brilhos, linhas, formas que se movem, cruzam, dançam, lhe atravessam e se desfazem como um chama que se apaga. Quem pratica o uso dessas plantas relata experiências com outras dimensões, contatos com ancestrais, o retorno ao momento da criação e a capacidade de compreender, perdoar e amar todo o universo. No quarto que vive, uma guitarra e dois violões fazem a decoração


e insinuam talento musical. Em um dos violões, antes encostados no canto, Matusa dedilha atencioso os hinários tradicionais do Santo Daime, outra manifestação religiosa parecida com a do Xamanismo que também acredita, enquanto Jéssica canta e sacode o maracá. Seu livro preferido, Retorno à Cultura Arcaica de Terence Mckenna, fica junto com dezenas de outros sobre uma mesa desprovida de qualquer tipo de organização. Os outros livros dali tem, em boa parte, o tema de exploração da mente e o uso de substâncias psicoativas. Sobre esse tipo de estudo, já ficou claro o grande interesse e curiosidade que tem. São objetivos que convergem com os de Keasy, o guia da viagem mais psicodélica que teve as estradas da América como companheira. Em plena guerra entre capitalismo e comunismo, a Guerra Fria, a Agência Central de Inteligência Americana (CIA) começou a fazer estudos promovendo o uso do LSD como controlador de mente, que “incapacitaria ou enlouqueceria” inimigos. Testes para o uso do ácido foram feitas pelo Laboratório Biomédico do Exército, que mal explicou o experimento. Logo os testes revelaram resultados desapontadores.

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ntre os jovens que participaram das pesquisas estava Ken Keasy, na época enfermeiro do Hospital do Exército e também escritor renomado, que se tornou conhecido pelo livro Um Estranho no Ninho. Ele não só gostou do efeito como decidiu compartilhar com todos seus amigos aquela belíssima doideira. Para ele, conseguir o ácido era fácil, e mais fácil ainda era levá-lo a todos os cantos do país. Após a experiência com LSD, Keasy largou a vida segura que levava e se incumbiu de disseminar a droga por toda a América do Norte, acreditando que se os psicodélicos representavam uma esperança real de enriquecimento da humanidade, deveriam estar ao alcance de todos. Keasy e seus amigos, carinhosamente conhecidos como Festivos Gozadores, sonharam um sonho veloz de conquistar o país com ideias de liberdade e psicodelía. Trajado como o velho barbado Tio Sam, que noutra época queria encher o exército de americanos novatos, a figura agora subia em um ônibus escolar, coberto com pinturas psicodélicas, tendo Neal Cassady como motorista. Partiram da cidade de Califórnia proporcionando testes de ácido a quem quisesse experimentar. O

jornalista Tom Wolfe, que acompanhou algumas viagens do grupo, relatou suas histórias no livro O Teste do Ácido do Refresco Elétrico. Noites regadas ao “refresco elétrico” eram embaladas pela música de bandas como Grateful Dead, onde nascia a subcultura que via na droga um meio de transcender, alcançar lugares que jamais imaginaram possíveis. Eles estavam transbordando a sensação de possibilidade, acreditando que por meio da droga alcançariam a evolução espiritual e um esplêndido sentimento de felicidade sem fim. Essas pessoas, conforme conta o jornalista americano Mikal Gilmore em seu livro Ponto Final, viviam no limiar do desconhecido, explorando como a experiência lisérgica poderia afetar a mente, a espiritualidade ou a comunidade, dispostos a aceitar qualquer destino a que esses caminhos levassem. Nesse tempo uma nova droga chamada STP, sigla para Serenidade, Tranquilidade e Paz, apareceu na área e intensificou o fim da grande era. Diferente do que o nome prometia, a droga mantinha efeito de alucinógeno por pelo menos três dias, uma experiência desagradável até para os mais malucos, que lotou os prontos-socorros de São Francisco. A partir desse momento uma linha de sanidade, talvez a última, rompeu-se nos cérebros juvenis, dando início ao que pode ter sido o maior erro: crer que existe semelhança entre homens experientes e disciplinados intelectualmente, como Huxley, e um menino de dezessete anos que aspira substâncias sintéticas até que suas sinapses queimem. No primeiro caso, temos uma mente especial buscando, experientemente, síntese cultural e, no segundo, um ser imaturo buscando prazer na deturpada e colorida visão de formas mágicas. Simplesmente recreação. Até mesmo Leary confessou, mais tarde, que as drogas nunca deveriam ter sido usadas sem algum tipo de acompanhamento ou preparação.

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m estudioso historiador americano, Theodore Roszak, percebeu que aplicadas em pessoas alienadas, as drogas psicodélicas tinham um efeito inverso ao que se esperava, elas diminuíam a consciência devido a fixação. E foi o que fez com que a maioria dos jovens se transformassem em viciados. Enganando a si mesmos, eles tentavam dar às drogas, e ao seu uso, o status de toda uma cultura. “Esses esforços fúteis e banais para transformar a parte marginal de uma cul-

tura em sua essência é decadente”, escreveu o autor em seu livro Contracultura. Roszak culpa Leary por basear aquele fascínio psicodélico da geração em um contexto altamente religioso. Essa relação entre drogas e o divino, que antes tinha sido descoberta por mentes muito mais dotadas, agora era distribuída a preço de banana por Leary a uma multidão. Em uma mistura encantadora de rock, luzes intermitentes e danças desvairadas. Para eles, a droga se reverteu em uma sabedoria para esotéricos, que defendiam com o fervor de religiosos. “Leary ensinou que usar tóxicos não era uma traquinagem juvenil, mas um rito sagrado de uma nova era. Assim, a “política do êxtase” tornou-se a onda do futuro, preparando-se por meios transversos para realizar uma revolução social”, afirma Roszak. Eles decidiram acreditar que o consumo do LSD mais a participação em grupos undergrounds era tudo o que precisavam para transformar uma sociedade. A revolução partia do seguinte: mude o modo predominante de consciência que você vai mudar o mundo. Mas eles foram muito ingênuos, pois brincavam com fogo, e fogo nunca deixou de queimar. Gilmore também mantem o pensamento nessa linha, quando escreve que as drogas foram realmente o que acabou com a Haight-Ashbury. “Enquanto os psicodélicos fizeram do bairro um paraíso para traficantes, peregrinos de olhar vidrado e jovens que largavam as escolas, as drogas também minaram o exuberante idealismo vigente na área, transformando o sonho em farsa”. Segundo o jornalista, os jovens não tinham mais que pedir permissão para ter suas escolhas e convicções. E esse novo ideal de liberdade também se transformou em uma licença para fazer “cagadas”, muitas vezes com sérias consequências. “Ficar chapado podia ser legal, mas a própria química da droga faz as pessoas usarem cada vez maiores quantidades e com mais frequência, o que pode ter efeitos horríveis”, afirma ele. Coube a “grande cruzada psicodélica” levar ao extremo sua desastrosa consequência, aclamando que salvação pessoal e revolução social podiam ser aprisionadas em uma cápsula. Eles podem ter pecado em sua cega devoção, mas pagaram a aposta perdida entregando paz. E na troca de dinheiro para conseguir mais drogas, se esqueceram dos princípios que haviam sido traçados no inicio da longa caminhada. Nem

todos saíram vivos dessa. Porém, em seu livro, Gilmore termina o raciocínio com a ressalva que somente alguém que esteve presente poderia conceder: “Mas isso não significa que a experiência psicodélica dos anos 1960 não tenha sido útil; o estado alucinatório teve um efeito extraordinário da criatividade da época [...]. Talvez tenha sido melhor que tudo tenha passado, embora poucas coisas, desde então, tenham sido tão boas”.

WANILTON E A CRIAÇÃO DE UMA IDEOLOGIA SUBVERSIVA Podem ouvir os ventos da mudança?

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uando Ronald Reagan se tornou o governador da Califórnia, disse que a área de Haight-Ashburry estava habitada por demônios e que seus moradores se vestiam como Tarzan e Jane. Porém o senso de justiça dos desertores estava tão inflado pelos alucinógenos, que ameaças desse tipo ao seu estilo de vida só fez com que enxergassem o horizonte da batalha. Era chegada a hora de mostrar ao sistema a quantidade de pessoas que estavam do lado hippie da história. Foi quando decidiram produzir um gigantesco evento musical e cultural, o Human Be In, reunindo os maiores ícones da época. Esperavam em torno de três mil pessoas, mas cerca de 20 mil apareceram. Entre eles, Leary e o poeta beat Allen Ginsberg, autor de O Uivo, que trazia como bagagem novas diretrizes de ser, de agir e a disposição enérgica de viver uma vida desprovida de tradições e restrições. Tudo era possível. O jornalista Gilmore, acredita que o encontro provou como os rebeldes eram numerosos, pacíficos e tinham um novo estado de espírito que criava raízes e tornava possível o sonho coletivo. A partir de então, a individualidade fora defendida com unhas e dentes, não no seu sentido psíquico do egoísmo, mas no sentido de liberdade espontânea, que garante opinião, comportamento e pensamento. A liberdade de não seguir o que está convencionado pela sociedade é algo que Wanilton prezou, e continua prezando, ao longo dos seus 27 anos. O teclado, o carro, o filho, a faculdade, a mulher amada, a reforma da casa, as bandas, o cigarro, o bar, o rock, o mestrado sobre nazi-fascismo no Sul do Brasil, as viagens, as bebidas e as aulas na faculdade e no

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ensino médio. Pensamentos que permeiam a cabeça do segundo filho de dona Alice, enquanto conversa com os amigos na porta de um bar. Um copo de cerveja na mão e um Marlboro aceso na outra. Nas conversas, fala baixo, entre risadas, somente o necessário e, preferencialmente, quando é perguntado. Sua tranquilidade e sutileza sugerem conhecimento, mas não aquele que precisa ser despejado até na mesa do boteco, em doses prolixas sobre a Queda da Bastilha ou a Metafísica de Aristóteles. Prefere escolher as palavras, as necessárias. Fala da vida simples e boa que leva, sem reclamações. Em 1984, nascia em União da Vitória o segundo filho da família Dudek. De corpo magro e cabelos loiros, o menino cresceu feliz, com nada diferente do que poderia ser considerado normal. “Éramos uma família comum, nos dávamos bem e acho que era feliz”, relata ele, que, mais tarde, abdicaria do conforto e da calmaria de uma família convencional para buscar suas respostas sobre a vida, o universo e tudo mais. Wanilton e o seu irmão mais velho, Elvis, sempre se deram muito bem e estiveram perto um do outro. Foi Elvis quem mostrou quão divertido o mundo se tornava quando as cordas de uma guitarra vibravam e as batidas ritmadas de uma bateria compunham uma bela sinfonia infernal. Para acompanhar, a bebida se mostrava mais atraente que as garotas, e as noites em claro pelas ruas de União da Vitória constituíram a vida que Wanilton carrega na lembrança. Pelo menos as coisas que lembra. Sem compromissos, preocupações ou disciplina, ele, o irmão e os amigos, de camiseta de banda, jaqueta de couro e cabelos compridos exploravam juntos a vida da ressaca, dos cigarros, dos clássicos do rock e das primeiras reflexões sobre justiça, liberdade, o certo, o errado e, afinal, sobre a porra da vida com tudo que ela nos oferece. A trilha sonora composta por Stones, Deep Purple, AC/ DC, entre outros, soava como uma espécie de meditação para roqueiros, regida pela instrumentação que quebra a coluna vertebral do bom senso, mas garante êxtase espiritual.

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iferente do tratamento que a juventude de Wanilton recebeu da mídia, sem a sensação de surpresa e desconcerto, a que cobriu grande parte dos eventos marginais dos anos 1960 ressaltaram os fatos como algo bizarro e inseriu suas causas em um contexto muitas vezes vazio. Por outro lado, a im-

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prensa underground, criada pelos próprios contraculturais, tiveram como principal experiência o San Francisco Oracle, do editor Allen Cohen. Com exageros na diagramação e com capas de art-noveau, tornou-se o mais famoso periódico hippie. Trazia títulos como Terremoto Jovem, A Era Aquariana, Psicodélicos, Flores e Guerra e A Politica do Ecstasy. Suas matérias tinham todos os traços do Novo Jornalismo, do mesmo modo que Truman Capote, Tom Wolfe, Hunter Thompson e Norman Mailer também estavam fazendo. O Oracle trazia matérias sobre libertação individual, uso proveitoso de drogas, poesia, entre outros assuntos quentes. No Brasil, Luis Carlos Maciel mantinha um discurso altamente marginal na coluna Underground, do jornal Pasquim. Wanilton concorda que seu jeito de ser e agir teve influências da “época de ouro”. Desde os 15 anos tem banda de rock, é tecladista, e um gosto musical refinado. Lembra-se do tempo em que se reunia com os amigos para beber, relaxar e ouvir as músicas de Pink Floyd e The Doors. Hoje, o homem com pequenos olhos castanhos e estatura mediana, classifica sua vida por fases, denominando a adolescência como a fase em que se juntava com os amigos para fazer barulho e não pensar em nada. Mas o tempo passou e as músicas mudaram, representando a mudança que ele também sofria. Começou a preferir as que continham letras e composições mais ricas e reflexivas. A partir de então descobriu, por meio da música, que o mundo não é um belo lugar para se viver e que problemas, principalmente sociais, são comuns. Formado em História pela Fafiuv, a mesma de Matusael, acredita que foi a curiosidade que o levou a escolher o curso. Tinha vontade de saber de onde vinham todos os problemas da sociedade, em como eles procederam e no que transformaram essa grande instituição. Ele sabia que se um dia pudesse alcançar a liberdade, teria que estudar, pois “é por meio do conhecimento que se compreende e amplia ideias para superar os próprios limites”. Porém não basta isso: “Liberdade é conseguir fazer o que se quer, ultrapassando suas próprias limitações. Mas infelizmente nunca será atingida, pois se hoje vivemos em uma sociedade com regras e leis, a liberdade de cada pessoa possui rédeas com caminhos já predefinidos”. Sua primeira banda, aos 15, foi a Mistral. O significado do nome revela o gosto por filosofia que os amigos

mantinham. Além de “vento vindo do norte na França que, devido sua mistificação, assustava os pescadores e marinheiros, também é nome de um poema de Nietzsche”, conta ele. No encarte do CD que conseguiram gravar, está impresso o poema, fruto do nome:

Ao Mistral (Canção Para Dançar) [...] Dancemos como trovadores, No meio de santos e de putas, A dança entre Deus e o mundo! Quem não sabe com os ventos Dançar, tropeça como um velho, Aquele que é hipócrita, Glorioso e com falsas virtudes, Que deixe nosso paraíso. [...] Friedrich Wilhelm Nietzsche Conheceu sua garota, Juliana, na faculdade, época em que trabalhava como motoboy. Durante esse tempo seus pais se separaram e ele foi morar sozinho. E acha que a independência veio bem a calhar nos anos de universitário, quando as festas e shows de rock se intensificaram. Juntos, os dois conseguiram seus diplomas e se tornaram profissionais. Tiveram um filho e iniciaram carreira, ambos como professores, ela de português e ele de história. Hoje, moram juntos, mas não são casados. Há mais de sete anos, moram em uma simpática casa que ainda está em reformas. Em uma sala clara, no fundo da construção, seus inúmeros livros e CDs compõem a prateleira metálica. Entre os CDs está um de seus primeiros, já quebrado, do AC/ DC. Na sala de aula Wanilton fala pouco e com objetividade, assim como no bar. Enquanto assiste a apresentação de trabalhos dos seus alunos, cruza as pernas, distrai-se com as conversas paralelas e ri das piadas. A camisa verde escura está vestida sobre a camiseta do AC/DC, deixando claro aos alunos que tipo de música costuma ouvir. Enquanto ensina Ética para o quarto ano de jornalismo do Centro Universitário de União da Vitória (Uniuv), lança pitadas de ironia e crítica sobre religião, estado e moral, demonstrando os pensamentos que juntou e construiu ao longo de sua vida. No final de semana, quando está prestes a subir no palco para dedilhar seu teclado com a banda, parece nervoso, movimentando-se pouco e com o boné perfeitamente encaixado na cabeça. O show começa. O copo com uísque, apoiado no canto do teclado aos poucos esvazia e dá ao músico a eletricidade necessária

para que sorria, sinta o som e, por fim, vire seu boné para trás. A partir de então, os movimentos se tornam frequentes e livres, assim como a música produzida pelos cinco rapazes. O velho rock’n’roll. Wanilton viajou diversas vezes em busca da adrenalina que os grandes shows de rock proporcionavam. Tem tatuado nas costas a figura do deus nórdico que carrega um poderoso martelo em sua mão, Thor, e no interior do braço um dragão. Se lembra da vez em que foi para Curitiba junto com os amigos assistir aos ingleses do Deep Purple, seus preferidos. Quando chegaram, souberam que o show havia sido cancelado de última hora, e o próximo seria somente em São Paulo. Bravos, cansados, mas ainda ansiosos para assistir ao show de seus ídolos, resolveram continuar a viagem de carro rumo à grande cidade. Em apenas um carro. Para que coubessem todos os fãs, alguns tiveram que ir dentro do portamalas, entre eles estava Wanilton, que garante ter valido a pena.

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jovem professor vê em Che Guevara sua grande inspiração e conta do desejo em viajar com sua Suzuki GS 500 pela América do Sul, “igual fez Che” quando decidiu viajar com seu amigo Alberto Granado em uma Norton 500, carinhosamente chamada de Poderosa. O objetivo era explorar um continente que só conheciam por livros sendo apenas “duas vidas que percorreram juntas um caminho, compartilhando as mesmas aspirações e os mesmos sonhos”. Essas são as palavras escritas por Ernesto Che Guevara, em 1952, no seu diário e que também estampam o fundo negro do início do filme Diários de Motocicleta, de Walter Sales, que retrata sua história real. Para ele, um filme bom e “perigoso”, é Na Natureza Selvagem (Into the Wild), dirigido por Sean Penn, em 2007. Ele conta a história verídica de Christopher McCandless, ou Alex Supertramp como se autonomeou. Um jovem rapaz que decidiu abandonar a casa e a família para viver uma vida selvagem, como nos livros que costumava ler de Thoreau e Tolstoi. Depois de percorrer os Estados Unidos, chega a seu destino final, o Alasca, onde morre por inanição. Christopher se tornou exemplo de asco contra uma sociedade altamente consumista, alienada e envolta em mentiras. Ele decidiu que não iria mais viver inserido nela.


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oszak se refere aos marginais como criadores de uma nova esquerda, onde haviam “atores em lugar de oradores, flores em lugar de panfletos, gozo em lugar de injúrias”. Eles não proporcionavam revolução, mas festivais revolucionários. E quando a música começou a conquistar os jovens e realmente tocar suas almas, o sistema pensou se não poderia transforma-la em um produto e ganhar dinheiro com isso. Talvez McCandless soubesse disso. Eles consumiam em grande escala, vender não seria difícil. E de fato, não foi. De todas as indústrias que explorava o universo contracultural, a música foi a mais promissora. O rock, em particular o acid rock, gerou um crescimento sem precedentes no mundo musical. E em 1968, a indústria da música faturou 100 milhões de dólares. Todo o desencadeamento dessas reações, desde o surgimento de um movimento de contestação até a sua padronização e industrialização, foi premeditada por Theodor W. Adorno há três décadas na Escola de Frankfurt, quando compreendeu que chegaria um momento em que seria interessante para o Estado fazer seu povo pensar que possuir identidade, personalidade e, acima de tudo, livre arbítrio, sem necessariamente concedê-los, seria interessante. Pelos jornais, música e cinema, a padronização da arte, dos meios de comunicação e da forma de pensar, partiu do campo da experimentação para o plano da repetição e da reprodução. A partir de então as músicas perderam sua áurea livremente sublevadora e passaram a soar como ritmo letrado, racionalmente elaborado para te fazerem memorizar com facilidade o refrão e comprar a obra na primeira loja de CDs que puder. Eis que a Industrialização Cultural surge, o que, segundo Adorno, não permitia ou admitia a produção de nada que não se assemelhe às “suas tábuas da lei”, e, sobretudo, nada que afastasse o seu “autorretrato”. Era o fim da originalidade e o início do atrofiamento da imaginação. A revolução industrial, que iniciou na Inglaterra, previa a capacidade de produzir mais rápido, em série, no mesmo padrão e gastando menos dinheiro. A partir do momento em que começamos a usar essa lógica de eficiência para produzir roupa, alimentos e máquinas, logo chegaríamos em uma outra área de produção do homem que é a cultura. Segundo o professor de filosofia da Fafiuv, Samon Noyama, isso tem a ver com

o fato da burguesia da Revolução Francesa ter assumido o poder, pois até então os artistas eram bancados por reis. E quando a monarquia caiu e os burgueses reinaram, a lógica passou a se basear no dinheiro. “Então é claro que eles vão buscar um processo que facilite a produção e que gere riqueza. A padronização dos bens de consumo padroniza também os gostos e preferencias do homem, mas acabam limitando suas experiências e visão de mundo”. E quando se começou a desenvolver técnicas para tornar esse processo mais eficiente, o campo artístico e cultural não escapou. “A obra de arte deixa de ter a pureza e a verdade para virar produto”. Assim, qualquer indústria absorve muito bem, tanto suas qualidades quanto seus problemas e acaba virando uma coisa que nunca se dá mal. “Essa é a lógica do capital, se beneficiar do seu problema”, diz ele. “A princípio, um sindicato que faz greve é ruim pra uma indústria, mas se for possível pra indústria se beneficiar desse sindicato ela vai fazer isso. Ela é um buraco negro que tenta transformar tudo numa coisa que beneficia seu funcionamento”. Temos como exemplo a famosa imagem de Che Guevara, originada da fotografia de Alberto Korda. “Até com o símbolo de resistência do processo capitalista que seria o Che Guevara você faz dinheiro, isso é que é indústria cultural. E isso não é conspiração, é real. A indústria elimina o adversário o absorvendo”, explica o professor.

EZEQUIEL E A MÚSICA PERIGOSA Letras que mal cabiam em uma só melodia “Meu nome é Sidney Westerfeld. Sou o dono desta velha estalagem em Monument, Estado de Nova Iorque. Estava aqui quando chegou a multidão. [...] Os jovens foram maravilhosos, não tenho reclamações. Era “senhor” para cá e para lá, “obrigado” isso e aquilo, ninguém pode se queixar deles. A coisa foi grande demais para o mundo, nunca se viu algo assim. E quando virem esse filme no cinema, verão algo fora do comum”. Esse é o início do documentário Woodstock, 3 Dias de Paz, Amor e Música, do diretor Michael Wadleigh, que traz aproximadamente quatro horas de imagens do maior festival contracultural. O Woodstock Music & Art Fair, que aconteceu entre os dias 15 e 18 de

agosto de 1969, na fazenda de Max Yasgur, fez a estrada estadual de Nova York ficar congestionada pela primeira vez. Com os ingressos esgotados em poucas horas, 18 dólares por pessoa garantiram que 186 mil fizessem parte do evento inesquecível. Porém, no dia, cerca de 500 mil estavam presentes, o que fez a água e alimento esgotarem rapidamente, algo que os organizadores Michael Lang e John P. Roberts não esperavam. Mas a má estrutura, o desconforto e o tempo ruim que assolou o vento não afastou o público, e o que os manteve lá? Jefferson Airplane, The Who, Janis Joplin e Jimmy Hendrix. Mesmo na situação que estavam a harmonia reinava e até a polícia dividia cigarros de maconha com o público. Ninguém se preocupava com o restante do mundo. Essa seria uma mensagem de paz que estraria para história. Anunciado como “Uma Exposição Aquariana: 3 Dias de Paz & Música”. Mais do que um concerto de rock de proporções gigantescas, o festival foi um espetáculo que mobilizou tantos jovens e por tanto tempo, que entre eles haveria de existir uma identidade, os unindo além deles mesmos. Era pela ideia. A música de Woodstock, segundo Mikal Gilmore, era um signo da época, de seus sonhos e de seus riscos, que alcançou o ápice no encerramento, quando Jimi Hendrix “virou do avesso o hino nacional americano, metamorfoseando-o de tal modo e tão oportunamente em uma convocação que isso tomou conta da América naquele verão”. Naquele exato momento, a música atravessou comércio e teoria, pois tinha um peso político e havia demarcado um idioma popular, encarnando um debate nacional que tinha o poder de convencer. Era a maneira e o motivo da composição que fez daqueles músicos instrumentos transmissores de pura arte, a arte para além do real e principalmente do comercial. É dessa forma que Ezequiel vê as coisas.

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brigado a crescer e se tornar, então, adulto. Pressionado a estudar, exercer uma profissão, ganhar dinheiro. Casar, comprar um carro e criar filhos. Ter bicho de estimação, um plano de saúde e viajar para a praia nas férias. A história é comum a uma porção de pessoas, mas ele mandou tudo isso para o inferno. Ezequiel não quis diploma, carro, esposa ou segurança financeira. Preferiu a simplicidade dos sábios e a riqueza da mente vinda com o co-

nhecimento atingido pelo esforço. “Ele (o conhecimento) não precisa ser comprado”, afirma. Despreza o mérito dado aos que necessitam reconhecimento, principalmente quando acompanhado pelo dinheiro, e dos otários que ainda acreditam que protesto e greve resolvem problemas. “Isso é coisa antiga, nunca deu certo, nem vai dar.” Partilha da seguinte opinião: quando as coisas não agradam, você muda, não reclama, isso não resolve. Enquanto enrola o tabaco no pedaço de seda, o homem moreno de cabelos desgrenhados, barbudo, olhos grandes e redondos, vestindo uma camisa xadrez aparentemente de segunda mão, serve a si mesmo uma dose de conhaque. São onze horas de uma quinta-feira de sol e a situação é tradicional. Ele está rodeado dos mais diversos instrumentos musicais, seus companheiros, dos quais arranha melodias há muitos anos. Durante a semana, Ezequiel passa o dia todo em sua escola de música, que fica ao lado da Fundação de Cultura de União da Vitória, na antiga Estação Ferroviária. O local, que é de trabalho, também serve de sala de estudos, enquanto toma suas doses e assiste aos DVDs no seu novo computador. Dali não sai nem para o almoçar, na maioria das vezes, pois prefere beber. “Beber me alimenta. Tenho uma irmã que sempre se alimentou certinho e foi até internada por desnutrição. Eu tomo uma cervejinha, e tô tranquilo”, diz ele com risadas. O cigarro acesso se sacode entre os lábios enquanto fala. A mesa, está abarrotada de pequenas coisas: origamis, palhetas, papéis, tabaco, isqueiros. Nas outras mesas, vários montes de papéis e revistas sobre música estão vivendo empilhados, até que voam ao chão por causa do vento e por ali ficam. A família de violões categoricamente enfileirados num dos cantos da grande sala dividida por repartições de madeira. Esse é seu lar. Ezequiel aprendeu a ler e escrever com a avó, ainda pequeno. Para ele, escola nunca foi importante, nem fez falta. “Não faz diferença você estar lá dentro ou aqui fora. O importante é ter a vontade de saber, querer ter o conhecimento. E para isso, tem os livros. Diploma é pra quem quer ter reconhecimento. Eu não quero. Acho que se você quiser dinheiro não deve ir para a escola, lá você deveria adquirir conhecimento”. E continua: “Daí o cara quer ter reconhecimento, quer mostrar para os outros

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que ele é melhor. De repente, você vê um cara que tem carro admirar o que tem um carro mais caro. Esse cara admira outro que tem uma fazenda, que admira outro que tem uma mansão, que vai admirar outro que seja milionário. É ridículo”. Aos três anos pegou do irmão uma flauta, que havia ganhado de sua mãe sem muita alegria. Quando os primeiros ruídos formaram música, a mãe se admirou com a tamanha desenvoltura do filho, mas não previu ali um músico boêmio extremamente desapegado da vida comum. A partir daquele dia, a música e o menino nunca se separaram. O que começou com sopros fracos de uma criança se tornou ao longo dos anos uma obsessão fazendo-o crer, assim como Nietzsche, que a vida sem música haveria de ser um erro. Juntos, ele e a música cresceram e se transformaram em algo que vai além de jeito e habilidade, é paixão pelo que se faz. O fã de Elis Regina e Raul Seixas nasceu na cidade de Ponta Grossa, que fica no estado do Paraná, e depois se mudou para Guarapuava. Quando adulto, veio para União da Vitória já envolvido com música e virou professor. Nunca sentiu vontade em servir ao exército, a pátria ou “o escambau” e conseguiu o que desejou, ao escapar do militarismo com algumas ajudinhas. Com críticas ácidas à sociedade capitalista e ao governo em que vive, Ezequiel brinca ao falar que não se sente comum, no sentido de não sentir semelhança entre si e os costumes vigentes. “Não sou comum, sou comunista”. Sua aparência, de fato, lembra um típico guerrilheiro comuna. Em seus dias, ensina música, estuda diversos teóricos e compõem pensamentos de um vagabundo iluminado. “O poder deveria inverter entende? Eles proibiram a droga, e as pessoas usaram mais. Falaram que ir pra escola era obrigatório, e as pessoas não quiseram mais ir. Por que não libera as drogas e proíbe a escola? Talvez funcione”. Enquanto conversa e justifica suas ideias, cita Nietzsche, Platão, Aristóteles e Baudelaire. Quando pergunto o que pensa sobre manifestações e reivindicações, ele escolhe a que acontecia na época, de professores estaduais que lutavam por um salário maior, para exemplificar, sem diplomacia alguma, sua firme opinião: “Não funcionam, e quem às adere são verdadeiros babacas. Quando você se propõe a fazer algo, tem que saber as condições que terá. Não adianta reclamar depois. Ou se

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não, como havia dito anteriormente, saia dali e ache algo que te satisfaça”. “Ser simples e humilde, querer compartilhar o conhecimento. É isso! O ser humano deveria estudar para se libertar e não para conseguir dinheiro! Fé, amor e liberdade são palavras que todo mundo acha que sabe, mas só acham. E além delas existe uma quarta que está acima da razão: a sensibilidade. Diferente de ser emotivo, ter sensibilidade é algo muito difícil, só os grandes gênios a tinham”. Cospe palavras e frases, que devagar formam fragmentos soltos que guarda no pensamento. Agora se refere aos desordeiros, inadequados, livres de espírito e inconformados. À ausência de repressão que carregam junto ao idealismo visionário. Tudo isso mais a sensibilidade, que também se fundiu com o ser, seria a essência infinita do cosmo, que por alguns foi nomeada “vontade de Deus”, mas isso pouco importa. Ela é a fonte de inspiração, das paixões, da sabedoria, do entusiasmo e da intuição. Essa mente sensível foi decodificada por algum milagre genético, por algum químico psicotrópico ou pela simples vontade da alma. Que usou dopamina para derrubar os ditadores da mente e libertou o cérebro da censura. E agora deixa a consciência exposta aos mais turbulentos mares do inconsciente, através dessa porta aberta onde luz divina não para de brilhar. A música na vida de Ezequiel vai muito além de entretenimento. Envolve trabalho, disciplina, estudo, amor e fidelidade. É preciso saber o que se quer fazer com ela. Saber como fazer e criar. Mas, antes de tudo, ser original, mesmo que em coisas pequenas. E isso se aplica a tudo. Para ele, o que é feito com excentricidade merece respeito, pois teve a força de não se corromper. “Como a flor de lótus”, diz ele, “que nasce em um lago contaminado, mas não se contamina. Esse é o grande músico. Ele toca porque ama música. Agradar a plateia tanto faz”.

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s cantores das bandas de acid rock de 1960, pelo contrário, tinham uma ligação tão intensa com seu público que se tornaram algo como sacerdotes de uma legião de desregrados. Eram eles quem compunham a trilha sonora das mais longas viagens ácidas. Mas ao mesmo tempo em que acontecia o Woodstock, outros lugares dos Estados Unidos sofriam assassinatos e os acusados eram sempre homens de cabelos compridos, os

hippies. Durante um show da banda inglesa Rolling Stones, o grupo de motoqueiros Hell Angels, contratados para fazer a segurança do show, matou violentamente um homem negro. Nesse momento, as coisas saíram dos trilhos, tomando um atalho diretamente para o inferno. Gente de todo o mundo chegavam aos montes na Haight-Asburry e se uniam a outras centenas sem dinheiro, nem meio de consegui-lo. Não tinham comida, nem abrigo, passando dias tomado drogas poderosíssimas. Foi quando o sonho começou desaparecer e a harmonia saiu de cena, dando lugar a assaltos e estupros. No Verão do Amor, o número de pessoas concentradas na área era de 100 mil. Começava o início do fim da época de ouro, com o sensacionalismo das mídias e o abuso de drogas em potencial, que fizeram o movimento declinar tão rápido quanto ascendeu. os que queiram, é possível ir para além de Woodstock como principal marco da música contracultural, e voltar a 1908. Quando um membro da Escola de Frankfurt, Arnold Schönberg, trouxe para a música clássica o inconformismo que habitava os corredores da sua mente e preenchia os lares da sua época. Ele criou o dodecafonismo, também conhecido como música atonal, que assim como na contracultura de 1960, foi fruto de um contexto histórico e que tinha como um dos objetivos, romper a tradição. Era o momento das críticas de Engels e Marx à filosofia idealista alemã, da Teoria da Evolução das Espécies de Darwin e do expressionismo da criação artística. O termo “dodecafônico” originou dos doze sons da escala cromática usada para composições musicais. Mas aqui, ela evita a repetição de cada nota antes que toda a série de sons seja tocada, impedindo um “campo magnético” tonal entre eles. Samon Noyama explica que, na história da música ocidental, as primeiras manifestações musicais eram bem espontâneas, mas não eram exatamente produções harmônicas ou organizadas. Não tinham ordem, nem um fio condutor. Com o tempo, o mundo começou a se tornar organizado, separado, classificado e administrado. E o campo da cultura, novamente, não se manteve intacta. Então a música passou a ter um parâmetro específico que é o tom. “A música atonal contesta uma característica específica que é essa tonalidade da música, que mesmo não sendo

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essencial, é um jeito de impor certa maneira de fazer música. Como a música atonal contesta essa característica que se tornou um hábito, que do ponto de vista do artista impede a criatividade, ela pode ser vista como um grande movimento de contracultura”, conta ele. Schönberg desejou criar um tipo de música que pudesse unir o homem com a natureza. O barulho do mundo externo, como carros, vozes e batidas, não é tonalizado, o mundo não é harmônico como a musica que ele produz. Ela é uma versão organizada e administrada da realidade. Para seu grande amigo, Adorno, a música de Schönberg contém a exigência essencial para qualquer obra de arte: a de oferecer formas inspiradas que não são encontradas no mundo real, pois só a alma pode constituir. Além disso, a atonalidade, para Adorno, tem em si algo selvagem, pois é uma música liberta do rigor e das convenções da tonalidade. Schönberg trouxe para a música um aspecto mais transparente e independente. Liberou a harmonia das inflexíveis séries harmônicas.

A CONTRACULTURA QUE DEIXOU MARCAS Eles perderam o controle? - Contracultura é um termo que surge depois do termo cultura. – Explica Noyama. – E cultura é produção humana que envolve qualquer coisa que se faça em diversos campos como arte, tecnologia e literatura, que diferenciam o homem dos outros animais. - A cultura – continua – tem um lado que é de criação e outro que é de repetição, do hábito e da naturalização. A contracultura seria um movimento que vem contestar fundamentalmente essa coisa de você transformar cultura em algo natural. É uma resistência a essa naturalização dos hábitos que não são próprios do homem, como o casamento”. A época que colocou o mundo às avessas segue surpreendendo e deixando dúvidas até hoje sobre como, em um período que não existia a globalização, foi possível disseminar uma ideia impregnada com o sentimento de liberdade, coragem e ousadia em diversos lugares do mundo. “É proibido proibir”, “Seja realista, peça pelo impossível”, “A luta continua!”.

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o livro Eros e Civilização, o filósofo e sociólogo alemão Herbert Marcuse, explana sua teoria de que a civilização des-


de o começo resultou de um conflito entre o Princípio do Prazer e o Princípio da Realidade, que são duas categorias da psicanálise freudiana. E que na sociedade industrial e pósindustrial, esse Princípio da Realidade passa a ser chamado Princípio de Desempenho, em que o trabalho deixa de ser o suficiente para sanar as necessidades básicas do homem e passa a ser visto como desempenho. Ou seja, ao mesmo tempo em que a tecnocracia de Roszac se intensifica, aumentam as frustações dos trabalhadores que não têm espaço para uma vida “não produtiva”. Mas o Princípio do Prazer não se acomoda nessa esfera do trabalho tedioso. Ele compreende o inconsciente, a estética e logo salta para fora desse pequeno cercado, pronto para vagar por tudo quanto puder. Marcuse acha possível que esse conflito, pelos que recusam a ordem do trabalho como desempenho, tenha anunciado seu próprio fim. E assim seriam os contraculturais, ao embarcar numa tentativa de harmonizar a vida e a arte, ou lutar por um “Princípio de Realidade não opressivo”. Eles queriam diminuir trabalho ao mesmo tempo em que o uniam a uma visão estética do mundo. Roszak explica que tinha desinteresse dos jovens por uma retórica clássica de radicalismo, que normalmente era baseada no Marxismo e no Leninismo. E que a aproximação ao misticismo, principalmente o oriental, era ligada a um estilo de vida que não apresentasse qualquer tipo de repressão. Na França, alunas eram proibidas de visitar o dormitório dos meninos nos colégios. A revolta diante dessa proibição foi um dos principais fatores que deu início a Rebelião Estudantil no país. Dali para frente, qualquer reação do governo seria recebido com afrontas e críticas. Pelas ruas, os estudantes cantavam o hino socialista “A Internacional” e levantavam faixas com o lema que se tornou símbolo da Revolução Francesa: “Liberté, Egalité, Fraternité” (Liberdade, Igualdade e Fraternidade). Eles queriam revolucionar. Os Estados Unidos tinha o Verão do Amor clamando “Make love, not War”, na França a Rebelião Estudantil mantinha um ideal na cabeça e um coquetel motolov na mão. A Tchecoslováquia vivia a Primavera de Praga e, no Brasil, a Passeata dos Cem Mil seguia com veemência até a Praça de Tiradentes gritando em uníssono “liberdade, liberdade”. Aos poucos, as manifestações ganharam força em outros lugares como Itália,

Alemanha e Inglaterra. Os Panteras Negras, grupo político armado americano que defendia o contra ataque ao racismo, verberava alto: “Não mais porcos em nossa comunidade / Não mais irmãos na prisão / Os porcos irão atingir o inferno / A revolução está chegando / É tempo de pegar sua arma. Fora aos porcos!“ Antes de 1960, as manifestações, na maioria, protestavam em torno de lutas de classes. Era o manifesto socialista e a luta pelos direitos dos trabalhadores que unia pessoas pelo fim da exploração do homem. E talvez o que mais tenha pasmado pais e mães durante a Contracultura tenha sido a temática defendida. Os marginais queriam saber sobre os direitos das mulheres, dos negros e dos homossexuais. Queriam a legalização das drogas, novamente, o fim da guerra e o equilíbrio ecológico.

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contracultura não foi um movimento propriamente anticapitalista, mesmo que carregue seus Ches e seus Marxs. Ela se manifestou contra a cultura estabelecida, cobrando uma adequação às mudanças na infraestrutura do mundo ocidental. Eles queriam ser o que o homem é quando ainda não foi corrompido pela sociedade, mas subestimaram a complexidade da vida simples. Não tinham entendimento suficiente para isso. Alguns desistiram, e outros persistem até hoje em comunidades alternativas, embrenhadas no meio do mato. Noyama acredita que o movimento hippie tenha sido o mais forte do século XX e talvez o único. - Não existe um movimento que consiga encantar tantas pessoas a ponto delas largarem suas convicções como se fez nessa época - diz ele. - E não é falta de criatividade, que estava ligada ao fato de a indústria absorver tudo, transformar tudo em moda. Essa geração posterior está mais acostumada ao mundo mastigado, padronizado.

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duardo Marinho é um artista de rua de São Paulo, que ficou conhecido no Brasil depois que alguns vídeos seus foram postados na internet. Em um deles, Eduardo conta do desinteresse que sente pela sociedade que o homem construiu, visando dinheiro, luxo e superioridade como prioridades na vida e de quando saiu de casa, largando os estudos para iniciar a busca por repostas que nenhum professor ou produto conseguiu lhe dar. É andarilho com prazer, artista

simples e contestador que vivenciou os últimos anos da contracultura no país. - Aprendi muita coisa com eles - afirma. Conta que ainda existiam filósofos e que chegou a ver e ouvir alguns. Não gostava de se deixar iludir e não gostava da mística deles. - Me pareciam forçadas. - Mas gostava das músicas, das comidas feitas em grupo nos trevos e nos festivais, nas ruínas em que se encontravam para dormir. Em comum, possui a vontade de pulverizar a economia, de que a agricultura seja orgânica, que as pessoas se contentem com o que precisam, sejam solidárias, que não exista miséria nem ignorância. - Que valha mais o conteúdo que a forma, enfim, que o respeito e o amor verdadeiro se desenvolvam no coração da humanidade para se criar um mundo menos injusto, mais igualitário, menos perverso e mais solidário. Certamente os jovens de 1960 abusaram do deslumbrante mundo que as drogas lhe mostravam e o sentimento de liberdade que os tomava. Pela diversão, muitos pagaram com a vida, outros sobrevivem para contar as histórias. Mas mais do que histórias, sobraram conquistas. Se a sociedade contemporânea transformou os velhos e conquistou novos valores, hoje institucionalizados, deve-se ao ideário contracultural, por chegar tão perto da liberdade quanto possível. No fim das contas, Eduardo acha que ela foi um gigantesco grito de alerta, de protesto, de contestação. Um grito que se transformou em fertilizante de reflexões pulverizado pela coletividade, brotando e dando frutos em cabeças pensantes, em terras férteis, ainda espalhadas pelo planeta com grande poder de contaminação. - Muitos, hoje, repetem propostas e comportamentos hippies, sem se darem conta. Ou sim, por escolha própria. Mesmo dentro do sistema, vivendo na forma convencional, vejo essa mentalidade infiltrada e dando seus resultados, ainda despercebidos e é bom que seja assim. Para Eduardo, o revolucionário é aquele que vive a revolução dentro de si, por amor à humanidade, em solidariedade plena, com humildade e firmeza, aprendendo para ensinar, ensinando para aprender. - Houve revolucionários em todos os tempos e não os que se dizem revolucionários, necessariamente. Isso se demonstra pelos sentimentos, pelos pensamentos, pelo caráter e, sobretudo, pelo comportamento cotidiano. Alguns vivem hoje longe dessas características traçadas por Eduar-

do, porém mantem a aparência contestadora, o que segundo Noyama é uma grande infelicidade. - Tem gente que coloca piercing, faz uma tatuagem ou beija uma pessoa do mesmo sexo e vê isso como ato revolucionário, mas não faz nada e possui uma vida completamente organizada e correta. - Para ele a mudança de hoje deveria acontecer dentro do âmbito das legislações. - Hoje não tem mais espaço só para manifestações, é preciso algo mais concreto. - Também é preciso mudar o horizonte e a sensibilização das crianças. - Tem que mudar a base sólida senão logo as pessoas esquecem. Se você não tiver uma sociedade preparada para receber a revolução, ela nunca vai funcionar. – termina ele. Eduardo comenta as manifestações que acontecem hoje pelo mundo, como as da Wall Street e de Washington e percebe nelas um sinal de maturidade. - Pela primeira vez se responsabiliza os bancos e as grandes empresas pela situação política e econômica mundial. - Para ele, a conscientização é impossível de ser contida, quando atinge uma escala mundial. Não dá pra prever o ritmo e a força da reação que virá, pois os poderosos se preparam desde sempre pra contestação de massas. Eles pretendem ter o controle e nós queremos que eles percam esse controle. Veremos. E talvez nunca experimentemos a liberdade, pelo menos em seu sentido mais pleno, pois o medo e a dor que sentimos, ou assistimos, já são o suficiente para nos fazer recuar alguns passos. Sendo assim, talvez ela seja somente um estado em que o homem ilusoriamente deseja atingir, sem saber, de fato, que é impossível. Mas se quiséssemos mesmo iniciar essa peregrinação utópica, que, segundo o escritor Eduardo Galeano, seria a visão do horizonte, o que te faz andar, é deixar a razão de lado, sem calcular as consequências, tal qual um bicho selvagem faria.

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