Ezequiel e a música perigosa: Letras que mal cabiam em uma só melodia “Meu nome é Sidney Westerfeld. Sou o dono desta velha estalagem em Monument, Estado de Nova Iorque. Estava aqui quando chegou a multidão. [...] Os jovens foram maravilhosos, não tenho reclamações. Era “senhor” para cá e para lá, “obrigado” isso e aquilo, ninguém pode se queixar deles. A coisa foi grande demais para o mundo, nunca se viu algo assim. E quando virem esse filme no cinema, verão algo fora do comum”. Esse é o início do documentário Woodstock, 3 Dias de Paz, Amor e Música, do diretor Michael Wadleigh, que traz aproximadamente quatro horas de imagens do maior festival contracultural. O Woodstock Music & Art Fair, que aconteceu entre os dias 15 e 18 de agosto de 1969, na fazenda de Max Yasgur, fez a estrada estadual de Nova York ficar congestionada pela primeira vez. Com os ingressos esgotados em poucas horas, 18 dólares por pessoa garantiram que 186 mil fizessem parte do evento inesquecível. Porém, no dia, cerca de 500 mil estavam presentes, o que fez a água e alimento esgotarem rapidamente, algo que os organizadores Michael Lang e John P. Roberts não esperavam. Mas a má estrutura, o desconforto e o tempo ruim que assolou, não afastaram o público, e o que os manteve lá? Jefferson Airplane, The Who, Janis Joplin e Jimmy Hendrix. Mesmo na situação que estavam a harmonia reinava e até a polícia dividia cigarros de maconha com o público. Ninguém se preocupava com o restante do mundo. Essa seria uma mensagem de paz que entraria para a história. Anunciado como “Uma Exposição Aquariana: 3 Dias de Paz & Música”. Mais do que um concerto de rock de proporções gigantescas, o festival foi um espetáculo que mobilizou tantos jovens e por tanto tempo, que entre eles haveria de existir uma identidade, unindo-os além deles mesmos. Era pela ideia. A música de Woodstock, segundo Mikal Gilmore, era um signo da época, de seus sonhos e de seus riscos, que alcançou o ápice no encerramento, quando Jimi Hendrix “virou do avesso o hino nacional americano, metamorfoseando-o de tal modo e tão oportunamente em uma convocação que isso tomou conta da América naquele verão”. Naquele exato momento, a música atravessou comércio e teoria, pois tinha um peso político e havia demarcado um idioma popular, encarnando um debate nacional que tinha o poder de convencer. Era a maneira e o motivo da composição que fez daqueles músicos instrumentos transmissores de pura arte, a arte para além do real e, principalmente, do comercial. É dessa forma que Ezequiel vê as coisas. Obrigado a crescer e a se tornar, então, adulto. Pressionado a estudar, exercer uma profissão, ganhar dinheiro. Casar, comprar um carro e criar filhos. Ter bicho de estimação, um plano de saúde e viajar para a praia nas férias. A história é comum a uma porção de pessoas, mas ele mandou tudo isso pro inferno. Ezequiel não quis diploma, carro, esposa ou segurança financeira. Preferiu a simplicidade dos sábios e a riqueza da mente, vinda com o conhecimento atingido pelo esforço. “Ele (o conhecimento) não precisa ser comprado”, afirma. Despreza o mérito dado aos que necessitam reconhecimento, principalmente, quando acompanhado pelo dinheiro, e dos otários que ainda acreditam que protesto e greve resolvem problemas. “Isso é coisa antiga, nunca deu certo, nem vai dar.”
Partilha da seguinte opinião: quando as coisas não agradam, você muda, não reclama, isso não resolve. Enquanto enrola o tabaco no pedaço de seda, o homem moreno de cabelos desgrenhados, barbudo, olhos grandes e redondos, vestindo uma camisa xadrez, aparentemente de segunda mão, serve a si mesmo uma dose de conhaque. São onze horas de uma quinta-feira de sol e a situação é tradicional. Ele está rodeado dos mais diversos instrumentos musicais, seus companheiros, dos quais arranca melodias há muitos anos. Durante a semana, Ezequiel passa o dia todo em sua escola de música, que fica ao lado da Fundação de Cultura de União da Vitória, na antiga Estação Ferroviária. O local, que é de trabalho, também serve de sala de estudos, enquanto toma suas doses e assiste aos DVDs no seu novo computador. Dali não sai nem para o almoçar, na maioria das vezes, pois prefere beber. “Beber me alimenta. Tenho uma irmã que sempre se alimentou certinho e foi até internada por desnutrição. Eu tomo uma cervejinha, e tô tranquilo”, diz ele com risadas. O cigarro aceso se sacode entre os lábios enquanto fala. A mesa está abarrotada de pequenas coisas: origamis, palhetas, papéis, tabaco, isqueiros. Nas outras mesas, vários montes de papéis e revistas sobre música estão vivendo empilhados, até que voem ao chão, por causa do vento e por ali ficam. A família de violões categoricamente enfileirados num dos cantos da grande sala dividida por repartições de madeira. Esse é seu lar. Ezequiel aprendeu a ler e escrever com a avó, ainda pequeno. Para ele, escola nunca foi importante, nem fez falta. “Não faz diferença você estar lá dentro ou aqui fora. O importante é ter a vontade de saber, querer ter o conhecimento. E para isso, tem os livros. Diploma é para quem quer ter reconhecimento. Eu não quero. Acho que se você quiser dinheiro não deve ir para a escola, lá você deveria adquirir conhecimento”. E continua: “Daí o cara quer ter reconhecimento, quer mostrar para os outros que ele é melhor. De repente, você vê um cara que tem carro admirar o que tem um carro mais caro. Esse cara admira outro que tem uma fazenda, que admira outro que tem uma mansão, que vai admirar outro que seja milionário. É ridículo”. Aos três anos pegou do irmão uma flauta, que havia ganhado de sua mãe, sem muita alegria. Quando os primeiros ruídos formaram música, a mãe se admirou com tamanha desenvoltura do filho, mas não previu ali um músico boêmio, extremamente desapegado da vida comum. A partir daquele dia, a música e o menino nunca se separaram. O que começou com sopros fracos de uma criança, tornou-se ao longo dos anos uma obsessão fazendo-o crer, assim como Nietzsche, que a vida sem música haveria de ser um erro. Juntos, ele e a música cresceram e se transformaram em algo que vai além de jeito e habilidade, é paixão pelo que se faz. O fã de Elis Regina e Raul Seixas nasceu na cidade de Ponta Grossa, que fica no Estado do Paraná, e depois se mudou para Guarapuava. Quando adulto, veio para União da Vitória, já envolvido com música e virou professor. Nunca sentiu vontade de servir ao exército, à pátria ou “o escambau” e conseguiu o que desejou, ao escapar do militarismo com algumas ajudinhas. Com críticas ácidas à sociedade capitalista e ao governo em que vive, Ezequiel brinca ao falar que não se sente comum, no sentido de não sentir semelhança entre si e os costumes vigentes. “Não sou comum, sou comunista”. Sua aparência, de fato, lembra um típico guerrilheiro comuna. Em seus dias, ensina música, estuda diversos teóricos e compõe pensamentos de um vagabundo iluminado. “O poder deveria inverter entende? Eles proibiram a droga, e as pessoas
usaram mais. Falaram que ir pra escola era obrigatório, e as pessoas não quiseram mais ir. Por que não liberam as drogas e proíbem a escola? Talvez funcione”. Enquanto conversa e justifica suas ideias, cita Nietzsche, Platão, Aristóteles e Baudelaire. Quando pergunto o que pensa sobre manifestações e reivindicações, ele escolhe a que acontecia na época, de professores estaduais que lutavam por um salário maior, para exemplificar, sem diplomacia alguma, sua firme opinião: “Não funcionam, e quem adere a elas são verdadeiros babacas. Quando você se propõe a fazer algo, tem que saber as condições que terá. Não adianta reclamar depois. Ou se não, como havia dito anteriormente, saia dali e ache algo que te satisfaça”. “Ser simples e humilde, querer compartilhar o conhecimento. É isso! O ser humano deveria estudar para se libertar e não para conseguir dinheiro! Fé, amor e liberdade são palavras que todo mundo acha que sabe, mas só acham. E além delas existe uma quarta que está acima da razão: a sensibilidade. Diferente de ser emotivo, ter sensibilidade é algo muito difícil, só os grandes gênios a tinham”. Cospe palavras e frases, que devagar formam fragmentos soltos que guarda no pensamento. A música na vida de Ezequiel vai muito além de entretenimento. Envolve trabalho, disciplina, estudo, amor e fidelidade. É preciso saber o que se quer fazer com ela. Saber como fazer e criar. Mas, antes de tudo, ser original, mesmo que em coisas pequenas. E isso se aplica a tudo. Para ele, o que é feito com excentricidade merece respeito, pois teve a força de não se corromper. “Como a flor de lótus”, diz ele, “que nasce em um lago contaminado, mas não se contamina. Esse é o grande músico. Ele toca porque ama música. Agradar a plateia tanto faz”. Os cantores das bandas de acid rock de 1960, pelo contrário, tinham uma ligação tão intensa com seu público, que se tornaram algo como sacerdotes de uma legião de desregrados. Eram eles que compunham a trilha sonora das mais longas viagens ácidas. Mas ao mesmo tempo em que acontecia o Woodstock, outros lugares dos Estados Unidos sofriam assassinatos e os acusados eram sempre homens de cabelos compridos, os hippies. Durante um show da banda inglesa Rolling Stones, o grupo de motoqueiros Hell Angels, contratados para fazer a segurança do show, matou violentamente um homem negro. Nesse momento, as coisas saíram dos trilhos, tomando um atalho diretamente para o inferno. Gente de todo o mundo chegava aos montes na Haight-Asburry e se uniam a outras centenas sem dinheiro, nem meio de consegui-lo. Não tinham comida, nem abrigo, passando dias tomando drogas poderosíssimas. Foi quando o sonho começou a desaparecer e a harmonia saiu de cena, dando lugar a assaltos e estupros. No Verão do Amor, o número de pessoas concentradas na área era de 100 mil. Começava o início do fim da época de ouro, com o sensacionalismo das mídias e o abuso de drogas em potencial, que fizeram o movimento declinar tão rápido quanto ascendeu.