Entrevista com Eduardo Marinho - 2011

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A Contracultura que deixou marcas: Eles perderam o controle? “Contracultura é um termo que surge depois do termo cultura – explica Noyama. – e cultura é produção humana que envolve qualquer coisa que se faça em diversos campos como arte, tecnologia e literatura, que diferenciam o homem dos outros animais”. – “A cultura – continua – tem um lado que é de criação e outro que é de repetição, do hábito e da naturalização. A contracultura seria um movimento que vem contestar fundamentalmente essa coisa de se transformar cultura em algo natural. É uma resistência a essa naturalização dos hábitos que não são próprios do homem, como o casamento”. Samon Noyama é professor do curso de filosofia em União da Vitória/PR. A época que colocou o mundo às avessas segue surpreendendo e deixando dúvidas até hoje, sobre como, em um período que não existia a globalização, foi possível disseminar uma ideia impregnada com o sentimento de liberdade, coragem e ousadia em diversos lugares do mundo. “É proibido proibir”, “Seja realista, peça pelo impossível”, “A luta continua!”. No livro Eros e Civilização, o filósofo e sociólogo alemão Herbert Marcuse, explana sua teoria de que a civilização, desde o começo, resultou de um conflito entre o Princípio do Prazer e o Princípio da Realidade, duas categorias da psicanálise freudiana. Na sociedade industrial e pósindustrial, esse Princípio da Realidade passa a ser chamado Princípio de Desempenho, em que o trabalho deixa de ser o suficiente para sanar as necessidades básicas do homem e passa a ser visto como desempenho. Ou seja, ao mesmo tempo em que a tecnocracia de Theodore Roszac, outro estudioso do tema, se intensifica, aumentam as frustrações dos trabalhadores que não têm espaço para uma vida “não produtiva”. Mas o Princípio do Prazer não se acomoda nessa esfera do trabalho tedioso. Ele compreende o inconsciente, a estética e logo salta para fora desse pequeno cercado, pronto para vagar por tudo quanto puder. Marcuse acha possível que esse conflito, pelos que recusam a ordem do trabalho como desempenho, tenha anunciado seu próprio fim. E assim seriam os contraculturais, ao embarcar numa tentativa de harmonizar a vida e a arte, ou lutar por um “Princípio de Realidade não opressivo”. Eles queriam diminuir trabalho, ao mesmo tempo em que o uniam a uma visão estética do mundo. Roszak explica que havia desinteresse dos jovens por uma retórica clássica de radicalismo, que normalmente era baseada no Marxismo e no Leninismo. E que a aproximação ao misticismo, principalmente o oriental, era ligada a um estilo de vida que não apresentasse qualquer tipo de repressão. Na França, alunas eram proibidas de visitar o dormitório dos meninos nos colégios. A revolta diante dessa proibição foi um dos principais fatores que deu início à Rebelião Estudantil no país. Dali para frente, qualquer reação do governo seria recebido com afrontas e críticas. Pelas ruas, os estudantes cantavam o hino socialista A Internacional e levantavam faixas com o lema que se tornou símbolo da Revolução Francesa: “Liberté, Egalité, Fraternité”. Eles queriam revolucionar. Os Estados Unidos tinha o Verão do Amor clamando “Make love, not War”, na França a Rebelião Estudantil mantinha um ideal na cabeça e um coquetel molotov na mão. A Tchecoslováquia vivia a Primavera de Praga e, no Brasil, a Passeata dos Cem Mil seguia com veemência até a Praça de Tiradentes, gritando em uníssono “liberdade, liberdade”. Aos poucos, as


manifestações ganharam força em outros lugares como Itália, Alemanha e Inglaterra. Os Panteras Negras, grupo político armado americano que defendia o contra-ataque ao racismo, verberava alto: “Não mais porcos em nossa comunidade / Não mais irmãos na prisão / Os porcos irão atingir o inferno / A revolução está chegando / É tempo de pegar sua arma. Fora aos porcos!“ Antes de 1960, as manifestações, na maioria, protestavam em torno de lutas de classes. Era o manifesto socialista e a luta pelos direitos dos trabalhadores que unia pessoas pelo fim da exploração do homem. E talvez o que mais tenha pasmado pais e mães durante a contracultura tenha sido a temática defendida. Os marginais queriam saber sobre os direitos das mulheres, dos negros e dos homossexuais. Queriam a legalização das drogas, novamente, o fim da guerra e o equilíbrio ecológico. Eles queriam ser o que o homem é quando ainda não foi corrompido pela sociedade, mas subestimaram a complexidade da vida simples. Não tinham entendimento suficiente para isso. Alguns desistiram, e outros persistem até hoje em comunidades alternativas, embrenhadas no meio do mato. Noyama acredita que o movimento hippie tenha sido o mais forte do século XX e talvez o único. “Não existe um movimento que consiga encantar tantas pessoas a ponto delas largarem suas convicções como se fez nessa época” - diz ele. “E não é falta de criatividade, que estava ligada ao fato de a indústria absorver tudo, transformar tudo em moda. Essa geração posterior está mais acostumada ao mundo mastigado, padronizado”. Eduardo Marinho é um artista de rua de São Paulo, que ficou conhecido no Brasil depois que alguns vídeos seus foram publicados na internet e pelo seu blog pessoal chamado http://observareabsorver.blogspot.com.br/. Em um dos vídeos disponíveis na rede, Eduardo conta do desinteresse que sente pela sociedade que o homem construiu, visando dinheiro, luxo e superioridade como prioridades na vida e de quando saiu de casa, largando os estudos para iniciar a busca por repostas que nenhum professor ou material conseguiu lhe dar. É andarilho com prazer, artista simples e contestador que vivenciou os últimos anos da contracultura no Brasil. “Aprendi muita coisa com eles” - afirma. Conta que ainda existiam filósofos e que chegou a ver e ouvir alguns. Não gostava de se deixar iludir e não gostava da mística deles. “Me pareciam forçadas”. Mas gostava das músicas, das comidas feitas em grupo, nos trevos e nos festivais, nas ruínas em que se encontravam para dormir. Em comum, possui a vontade de pulverizar a economia, de que a agricultura seja orgânica, que as pessoas se contentem com o que precisam, sejam solidárias, que não exista miséria nem ignorância. “Que valha mais o conteúdo que a forma, enfim, que o respeito e o amor verdadeiro se desenvolvam no coração da humanidade para se criar um mundo menos injusto, mais igualitário, menos perverso e mais solidário”. Certamente os jovens de 1960 abusaram do deslumbrante mundo que as drogas lhes mostravam e o sentimento de liberdade que os tomava. Pela diversão, muitos pagaram com a vida, outros sobrevivem para contar as histórias. Mas, mais do que histórias, sobraram conquistas. Se a sociedade contemporânea transformou os velhos e conquistou novos valores, hoje institucionalizados, deve-se ao ideário contracultural, por chegar tão perto da liberdade quanto possível. No fim das contas, Eduardo acha que ela foi um gigantesco grito de alerta, de protesto, de contestação. Um grito que se transformou em fertilizante de reflexões pulverizado pela coletividade, brotando e dando frutos em cabeças pensantes, em terras férteis, ainda espalhadas pelo planeta com grande poder de contaminação. “Muitos, hoje, repetem propostas e


comportamentos hippies, sem se darem conta. Ou sim, por escolha própria. Mesmo dentro do sistema, vivendo na forma convencional, vejo essa mentalidade infiltrada e dando seus resultados, ainda despercebidos e é bom que seja assim”, afirma. Para Eduardo, o revolucionário é aquele que vive a revolução dentro de si, por amor à humanidade, em solidariedade plena, com humildade e firmeza, aprendendo para ensinar, ensinando para aprender. - Houve revolucionários em todos os tempos e não os que se dizem revolucionários, necessariamente. Isso se demonstra pelos sentimentos, pelos pensamentos, pelo caráter e, sobretudo, pelo comportamento cotidiano. Alguns vivem hoje longe dessas características traçadas por Eduardo, porém mantêm a aparência contestadora, o que, segundo Noyama, é uma grande infelicidade. - Tem gente que coloca piercing, faz uma tatuagem ou beija uma pessoa do mesmo sexo e vê isso como ato revolucionário, mas não faz nada e possui uma vida completamente organizada e correta. - Para ele a mudança de hoje deveria acontecer dentro do âmbito das legislações. “Hoje não há mais espaço só para manifestações, é preciso algo mais concreto”. Também é preciso mudar o horizonte e a sensibilização das crianças. “Tem que mudar a base sólida senão logo as pessoas esquecem. Se você não tiver uma sociedade preparada para receber a revolução, ela nunca vai funcionar”, termina ele. Eduardo comenta as manifestações que acontecem hoje pelo mundo, como as da Wall Street e de Washington, que aconteceram há algum tempo, e percebe nelas um sinal de maturidade. “Pela primeira vez se responsabilizam os bancos e as grandes empresas pela situação política e econômica mundial”. Para ele, a conscientização é impossível de ser contida, quando atinge uma escala mundial. Não dá pra prever o ritmo e a força da reação que virá, pois os poderosos se preparam desde sempre pra contestação de massas. Eles pretendem ter o controle e nós queremos que eles percam esse controle. Veremos.


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