Wanilton e a criação de uma ideologia subversiva: Podem ouvir os ventos da mudança? Quando Ronald Reagan se tornou o governador da Califórnia, disse que a área de HaightAshburry estava habitada por demônios e que seus moradores se vestiam como Tarzan e Jane. Porém o senso de justiça dos desertores estava tão inflado pelos alucinógenos, que ameaças desse tipo ao seu estilo de vida só fez com que enxergassem o horizonte da batalha. Era chegada a hora de mostrar ao sistema a quantidade de pessoas que estavam do lado hippie da história. Foi quando decidiram produzir um gigantesco evento musical e cultural, o Human Be In, reunindo os maiores ícones da época. Esperavam em torno de três mil pessoas, mas cerca de 20 mil apareceram. Entre eles, Leary e o poeta beat Allen Ginsberg, autor de O Uivo, que trazia como bagagem novas diretrizes de ser, de agir e a disposição enérgica de viver uma vida desprovida de tradições e restrições. Tudo era possível. O jornalista Gilmore, acredita que o encontro provou como os rebeldes eram numerosos, pacíficos e tinham um novo estado de espírito que criava raízes e tornava possível o sonho coletivo. A partir de então, a individualidade fora defendida com unhas e dentes, não no sentido egoísta, mas no sentido de liberdade espontânea, que garante opinião, comportamento e pensamento. A liberdade de não seguir o que está convencionado pela sociedade é algo que Wanilton prezou, e continua prezando, ao longo dos seus 27 anos. O teclado, o carro, o filho, a faculdade, a esposa, a reforma da casa, as bandas, o cigarro, o bar, o rock, o mestrado sobre nazi-fascismo no Sul do Brasil, as viagens, as bebidas e as aulas na faculdade e no ensino médio. Pensamentos que permeiam a cabeça do segundo filho de dona Alice, enquanto conversa com os amigos na porta de um bar. Um copo de cerveja na mão e um Marlboro aceso na outra. Nas conversas, fala baixo, entre risadas, somente o necessário e, preferencialmente, quando é perguntado. Fala da vida simples e boa que leva, sem reclamações. Em 1984, nascia em União da Vitória o segundo filho da família Dudek. De corpo magro e cabelos loiros, o menino cresceu feliz, com nada diferente do que poderia ser considerado normal. “Éramos uma família comum, nos dávamos bem e acho que era feliz”, relata ele, que, mais tarde, abdicaria do conforto e da calmaria de uma família convencional para buscar suas respostas. Wanilton e o seu irmão mais velho, Elvis (ow yeah!), sempre se deram muito bem e estiveram perto um do outro. Foi Elvis quem mostrou quão divertido o mundo se tornava quando as cordas de uma guitarra vibravam e as batidas ritmadas de uma bateria compunham uma bela sinfonia. Para acompanhar, a bebida se mostrava mais atraente que as garotas, e as noites em claro pelas ruas de União da Vitória constituíram a vida que Wanilton carrega na lembrança. Pelo menos as coisas que lembra. Sem compromissos, preocupações ou disciplina, ele, o irmão e os amigos, de camiseta de banda, jaqueta de couro e cabelos compridos exploravam juntos a vida da ressaca, dos cigarros, dos clássicos do rock e das primeiras reflexões sobre justiça, liberdade, o certo, o errado e, afinal, sobre a vida com tudo que ela nos oferece. A trilha sonora composta por Stones, Deep Purple, AC/DC, entre outros, soava meditativa para os roqueiros, regida pela instrumentação que quebra a coluna vertebral do bom senso, mas garante êxtase espiritual. Diferente do tratamento que a juventude de Wanilton recebeu da mídia, sem a sensação de surpresa e desconcerto, a que cobriu grande parte dos eventos marginais dos anos 1960 ressaltaram os fatos como algo bizarro e inseriu suas causas em um contexto muitas vezes vazio. Por outro lado, a imprensa underground, criada pelos próprios contraculturais, tiveram como principal experiência o San Francisco Oracle, do editor Allen Cohen. Com exageros na diagramação e com capas de art-noveau, tornou-se o mais famoso periódico hippie. Trazia títulos como Terremoto Jovem, A Era Aquariana, Psicodélicos, Flores e Guerra e A Politica do Ecstasy. Suas matérias tinham todos os traços do Novo Jornalismo, do mesmo modo que Truman Capote, Tom
Wolfe, Hunter Thompson e Norman Mailer também estavam fazendo. O Oracle trazia matérias sobre libertação individual, uso proveitoso de drogas, poesia, entre outros assuntos quentes. No Brasil, Luis Carlos Maciel mantinha um discurso altamente marginal na coluna Underground, do jornal Pasquim. Wanilton concorda que seu jeito de ser e agir teve influências da “época de ouro”. Desde os 15 anos tem banda de rock, é tecladista, e um gosto musical refinado. Lembra-se do tempo em que se reunia com os amigos para beber, relaxar e ouvir as músicas do Pink Floyd e The Doors. Hoje, classifica sua vida por fases, denominando a adolescência como a fase em que se juntava com os amigos para fazer barulho e não pensar em nada. Mas o tempo passou e as músicas mudaram, representando a mudança que ele também sofria. Começou a preferir as que continham letras e composições mais ricas e reflexivas. A partir de então descobriu, por meio da música, que o mundo não é um belo lugar para se viver e que problemas, principalmente sociais, são comuns. Formado em História pela Fafiuv, a mesma de Matusael, acredita que foi a curiosidade que o levou a escolher o curso. Tinha vontade de saber de onde vinham todos os problemas da sociedade, em como eles procederam e no que transformaram essa grande instituição. Ele sabia que se um dia pudesse alcançar a liberdade, teria que estudar, pois “é por meio do conhecimento que se compreendem e ampliam ideias para superar os próprios limites”. Porém não basta isso: “Liberdade é conseguir fazer o que se quer, ultrapassando suas próprias limitações. Mas infelizmente nunca será atingida, pois se hoje vivemos em uma sociedade com regras e leis, a liberdade de cada pessoa possui rédeas com caminhos já predefinidos”. Sua primeira banda, aos 15, foi a Mistral. O significado do nome revela o gosto por filosofia que os amigos mantinham. Além de “vento vindo do norte na França que, devido sua mistificação, assustava os pescadores e marinheiros, também é nome de um poema de Nietzsche”, conta ele. No encarte do CD que conseguiram gravar, está impresso o poema, razão do nome. Há mais de sete anos, mora com sua esposa e um filho em uma casa ainda em reformas. Em uma sala clara, no fundo da construção, seus inúmeros livros e CDs compõem a prateleira metálica. Entre os CDs está um de seus primeiros, já quebrado, do AC/DC. Na sala de aula Wanilton fala pouco e com objetividade, assim como no bar. Enquanto assiste à apresentação de trabalhos dos seus alunos, cruza as pernas, distrai-se com as conversas paralelas e ri das piadas. A camisa verde escura está vestida sobre a camiseta do AC/DC, deixando claro aos alunos que tipo de música costuma ouvir. Enquanto ensina Ética para o quarto ano de jornalismo do Centro Universitário de União da Vitória (Uniuv), lança pitadas de ironia e crítica sobre religião, estado e moral, demonstrando os pensamentos que juntou e construiu ao longo de sua vida. No final de semana, quando está prestes a subir no palco para dedilhar seu teclado com a banda, parece nervoso, movimentando-se pouco e com o boné perfeitamente encaixado na cabeça. O show começa. O copo com uísque, apoiado no canto do teclado aos poucos esvazia e dá ao músico a eletricidade necessária para que sorria, sinta o som e, por fim, vire seu boné para trás. A partir de então, os movimentos se tornam frequentes e livres, assim como a música produzida pelos cinco rapazes. O velho rock’n’roll. Roszak se refere aos marginais como criadores de uma nova esquerda, em que haviam “atores em lugar de oradores, flores em lugar de panfletos, gozo em lugar de injúrias”. Eles não proporcionavam revolução, mas festivais revolucionários. E quando a música começou a conquistar os jovens e realmente tocar suas almas, o sistema pensou se não poderia transformá-la em um produto e ganhar dinheiro com isso. Talvez McCandless soubesse disso. Eles consumiam em grande escala, vender não seria difícil. E de fato, não foi. De todas as indústrias que explorava o universo contracultural, a música foi a mais promissora. O rock, em particular o acid rock, gerou um crescimento sem precedentes no mundo musical. E em 1968, a indústria da música faturou 100 milhões de dólares.
Todo o desencadeamento dessas reações, desde o surgimento de um movimento de contestação até a sua padronização e industrialização, foi premeditada por Theodor W. Adorno, há três décadas na Escola de Frankfurt, quando compreendeu que chegaria um momento em que seria interessante para o Estado fazer seu povo pensar que possuir identidade, personalidade e, acima de tudo, livre arbítrio, sem necessariamente concedê-los, seria interessante. Pelos jornais, música e cinema, a padronização da arte, dos meios de comunicação e da forma de pensar, partiu do campo da experimentação para o plano da repetição e da reprodução. A partir de então, as músicas perderam sua áurea livremente sublevadora e passaram a soar como ritmo letrado, racionalmente elaborado para fazerem memorizar com facilidade o refrão e comprar a obra na primeira loja de CDs que puder. Eis que a Industrialização Cultural surge, o que, segundo Adorno, não permitia ou admitia a produção de nada que não assemelhasse às “suas tábuas da lei”, e, sobretudo, nada que afastasse o seu “autorretrato”. Era o fim da originalidade e o início do atrofiamento da imaginação. O jovem professor vê em Che Guevara sua grande inspiração e conta do desejo em viajar com sua Suzuki GS 500 pela América do Sul, “igual fez Che” quando decidiu viajar com seu amigo Alberto Granado em uma Norton 500, carinhosamente chamada de Poderosa. O objetivo era explorar um continente que só conheciam por livros, sendo apenas “duas vidas que percorreram juntas um caminho, compartilhando as mesmas aspirações e os mesmos sonhos”. Essas são as palavras escritas por Ernesto Che Guevara, em 1952, no seu diário e que também compõe o início do filme ‘Diários de Motocicleta’, de Walter Sales, que retrata a história real. Para ele, um filme bom e “perigoso”, é Na Natureza Selvagem (Into the Wild), dirigido por Sean Penn, em 2007. Ele conta a história verídica de Christopher McCandless, ou Alex Supertramp como se autonomeou. Um jovem rapaz quena década de 1990, decidiu abandonar a casa e a família para viver uma vida selvagem, como nos livros que costumava ler de Thoreau e Tolstoi. Depois de percorrer os Estados Unidos, chega a seu destino final, o Alasca, onde morre por inanição. Christopher se tornou exemplo de asco contra uma sociedade altamente consumista, alienada e envolta em mentiras. Ele decidiu que não viveria mais inserido nela. A revolução industrial, que se iniciou na Inglaterra, previa a capacidade de produzir mais rápido, em série, no mesmo padrão e gastando menos dinheiro. A partir do momento em que começamos a usar essa lógica de eficiência para produzir roupa, alimentos e máquinas, logo chegaríamos a uma outra área de produção do homem que é a cultura. Segundo o professor de filosofia da Fafiuv, Samon Noyama, isso tem a ver com o fato de a burguesia da Revolução Francesa ter assumido o poder, pois até então os artistas eram bancados por reis. E quando a monarquia caiu e os burgueses reinaram, a lógica passou a se basear no dinheiro. “Então é claro que eles vão buscar um processo que facilite a produção e que gere riqueza. A padronização dos bens de consumo padroniza também os gostos e preferências do homem, mas acabam limitando suas experiências e visão de mundo”. Quando começaram a desenvolver técnicas para tornar esse processo mais eficiente, o campo artístico e cultural não escapou. “A obra de arte deixa de ter a pureza e a verdade para virar produto”. Assim, qualquer indústria absorve muito bem, tanto suas qualidades quanto seus problemas e vira uma coisa que nunca se dá mal. “Essa é a lógica do capital, se beneficiar do seu problema”, diz ele. “A princípio, um sindicato que faz greve é ruim para uma indústria, mas se for possível para indústria se beneficiar desse sindicato ela vai fazer isso. Ela é um buraco negro que tenta transformar tudo numa coisa que beneficia seu funcionamento”. Temos como exemplo a famosa imagem de Che Guevara, originada da fotografia de Alberto Korda. “Até com o símbolo de resistência do processo capitalista que seria o Che Guevara você faz dinheiro, isso é que é indústria cultural. E isso não é conspiração, é real. A indústria elimina o adversário o absorvendo”, explica o professor.