Abrahão Sanovicz e Paulo Bastos - parte 2

Page 1

MESTRES DA ARQUITETURA MODERNA PAULISTANA:

ABRAHÃO SANOVICZ E PAULO BASTOS UMA ANÁLISE COMPARATIVA DAS RESIDÊNCIAS DOS ARQUITETOS EM SÃO PAULO Parte 2

ELIS JORDÃO STROPA 2017 1


2


3


4


MESTRES DA ARQUITETURA MODERNA PAULISTANA:

ABRAHÃO SANOVICZ E PAULO BASTOS UMA ANÁLISE COMPARATIVA DAS RESIDÊNCIAS DOS ARQUITETOS EM SÃO PAULO

Processo: 2015/23726-2. Iniciação Científica Beneficiário: Elis Jordão Stropa Universidade de São Paulo. Curso de Graduação em Arquitetura e Urbanismo do IAU – USP São Carlos. Orientador: Prof. Dr. Paulo Yassuhide Fujioka

Elis Jordão Stropa Bolsista de Iniciação Científica São Carlos 08/03/2017

Paulo Yassuhide Fujioka Orientador São Carlos 08/03/2017

Instituto de Arquitetura e Urbanismo - USP São Carlos Relatório Final referente ao segundo semestre de pesquisa de bolsa de Iniciação Científica concedida pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP.

São Carlos, 08 de março de 20

5


Sumário 1. Introdução .............................................................................................................................. 8 2. Objetivos ............................................................................................................................... 14 3. Metodologia ......................................................................................................................... 15 4. Atividades Realizadas ........................................................................................................... 16 5. Resumo Relatório Parcial ...................................................................................................... 17 6. Visita e entrevistas................................................................................................................ 20 6.1. Entrevistas .................................................................................................................... 20 6.1.1. Nelson Xavier e Luciane Shoyama ..................................................................... 20 6.1.2. Leo Tomshinsky.................................................................................................. 25 6.1.3. Edson Elito ......................................................................................................... 26 6.1.4.Eduardo Sanovicz ................................................................................................ 28 6.2. Visita à Residência Abrahão Sanovicz........................................................................... 30 7. Resultados ............................................................................................................................ 38 7.1. Análise Contextual ........................................................................................................ 38 7.1.1. Localização e Período ........................................................................................ 38 7.1.2. Implantação ....................................................................................................... 41 7.1.4. Programa e Distribuição .................................................................................... 43 7.1.5. Planta, Cortes e Fachadas .................................................................................. 48 7.2 Análise Gráfica Comparativa ......................................................................................... 53 7.2.1. Identificação do lugar ........................................................................................ 54 7.2.2. Eixos ................................................................................................................... 56 7.2.3. Simetria e Equilíbrio ........................................................................................... 58 7.2.4. Planta e Corte .................................................................................................... 60 7.2.5. Modulação ......................................................................................................... 62 7.2.6. Insolação ............................................................................................................ 64 7.2.7. Materiais ............................................................................................................ 66 7.2.8. Circulação e Acessos .......................................................................................... 68 2


7.2.9. Continuidade Espacial ........................................................................................ 70 7.2.10. Transição Hierarquia e Núcleo ......................................................................... 72 7.2.11. Setores ............................................................................................................. 74 7.2.12. Estratificação ................................................................................................... 76 7.2.13. Geometria da Construção ................................................................................ 79 7.2.14. Elementos Básicos, com Mais de uma Função e Modificadores do Espaço .... 81 7.2.15. Campos Visuais ................................................................................................ 83 8. Considerações Finais............................................................................................................. 85 Bibliografia ................................................................................................................................ 96

Índice de Figuras Figura 2: Residência Abrahão Sanovicz - vista da rua. Fonte: da autora ................................................... 31 Figura 1: Residência Abrahão Sanovicz - vista do recuo frontal. Fonte: da autora .................................... 31 Figura 5: Residência Abrahão Sanovicz – varanda de entrada alterada. Fonte: da autora ....................... 32 Figura 4: Residência Abrahão Sanovicz - fachada do piso social. Fonte: da autora ................................... 32 Figura 3: Residência Abrahão Sanovicz - anteparo de concreto piso superior. Fonte: da autora .............. 32 Figura 6: Residência Abrahão Sanovicz - sala de estar sem lareira. Fonte: da autora ............................... 33 Figura 7: Residência Abrahão Sanovicz - sala de estar e entrada para a sala de brincar. Fonte: da autora .................................................................................................................................................................... 33 Figura 9: Residência Abrahão Sanovicz – sala de jantar. Fonte: da autora................................................ 34 Figura 8: Residência Abrahão Sanovicz - pé direito duplo na sala de jantar e pintura no concreto. Fonte: da autora .................................................................................................................................................... 34 Figura 10: Residência Abrahão Sanovicz - continuidade espacial da sala de jantar até a varanda da entrada. Fonte: da autora .......................................................................................................................... 34 Figura 11: Residência Abrahão Sanovicz - iluminação zenita no pé direito duplo. Fonte: da autora ........ 35 Figura 12: Residência Abrahão Sanovicz - parede construída no quarto de casal. Fonte: da autora......... 35 Figura 13: Residência Abrahão Sanovicz - janela na direção da escada. Fonte: da autora........................ 35 Figura 16: Residência Abrahão Sanovicz - descida na escada caracol para os fundos. Fonte: da autora .. 36 Figura 17: Residência Abrahão Sanovicz - vista do fundo do lote para a casa. Fonte: da autora .............. 36 Figura 14: Residência Abrahão Sanovicz - iluminação zenital interrompida na divisa com o quarto de casal. Fonte: da autora ............................................................................................................................... 36 Figura 15: Residência Abrahão Sanovicz - varanda interna. Fonte: da autora .......................................... 36

3


Figura 18: Residência Abrahão Sanovicz - andar social visto dos fundos. Fonte: da autora ...................... 37 Figura 20: Residência Abrahão Sanovicz – garagem. Fonte: da autora ..................................................... 37 Figura 19: Residência Abrahão Sanovicz - pilar sustentando a caixa. Fonte: da autora ............................ 37 Figura 21: Localização dos casos de estudo. Fonte: da autora .................................................................. 40 Figura 23: Implantação Residência Paulo Bastos. Fonte: da autora .......................................................... 41 Figura 22: Implantação Residência Abrahão Sanovicz. Fonte: da autora .................................................. 41 Figura 24: Análise geral das implantações. Fonte: da autora .................................................................... 42 Figura 25: Programa residência Abrahão Sanovicz. Fonte: da autora ....................................................... 45 Figura 26: Programa residência Paulo Bastos. Fonte: da Autora ............................................................... 46 Figura 27: Plantas pavimento inferior, térreo e pavimento superior Residência Abrahão Sanovicz. Fonte: Arquivo Arq (http://www.arquivo.arq.br/residencia-abrahao-sanovicz)................................................... 48 Figura 28: Cortes Residência Abrahão Sanovicz. Fonte: Arquivo Arq (http://www.arquivo.arq.br/residencia-abrahao-sanovicz)....................................................................... 49 Figura 29: Elevações residência Abrahão Sanovicz. Fonte: Arquivo Arq (http://www.arquivo.arq.br/residencia-abrahao-sanovicz)....................................................................... 50 Figura 30: Planta do térreo e do 1º pavimento Residência Paulo Bastos. Fonte: APBA Arquiteto Paulo Bastos e Associados (http://arquitetopaulobastos.com.br/projeto.php?id=7) .......................................... 51 Figura 31: Corte Residência Paulo Bastos. Fonte: APBA Arquiteto Paulo Bastos e Associados (http://arquitetopaulobastos.com.br/projeto.php?id=7) ........................................................................... 52 Figura 32: Elevações residência Paulo Bastos. Fonte: APBA Arquiteto Paulo Bastos e Associados (http://arquitetopaulobastos.com.br/projeto.php?id=7) ........................................................................... 52 Figura 33: Identificação do lugar – residência Abrahão Sanovicz. Fonte: da autora ................................. 55 Figura 34: Identificação do lugar – residência Paulo Bastos. Fonte: da autora ......................................... 55 Figura 35: Eixos - residência Abrahão Sanovicz. Fonte: da autora ............................................................. 57 Figura 36: Comparação entre as residências – eixos. Fonte: da autora ..................................................... 57 Figura 37: Simetria e Equilíbrio - residência Abrahão Sanovicz. Fonte: da autora ..................................... 58 Figura 38: Simetria e Equilíbrio - residência Paulo Bastos. Fonte: da autora ............................................. 59 Figura 39: Planta e Corte - residência Abrahão Sanovicz. Fonte: da autora .............................................. 60 Figura 40: Planta e Corte - residência Paulo Bastos. Fonte: da autora ...................................................... 61 Figura 41: Modulação - residência Abrahão Sanovicz. Fonte: da autora ................................................... 62 Figura 42: Modulação - residência Paulo Bastos. Fonte: da autora ........................................................... 63 Figura 43: Insolação – residência Abrahão Sanovicz. Fonte: da autora ..................................................... 64 Figura 44: Insolação – residência Paulo Bastos. Fonte: da autora ............................................................. 65 Figura 45: Materiais - residência Abrahão Sanovicz. Fonte: da autora ...................................................... 66 Figura 46: Materiais – residência Paulo Bastos. Fonte: da autora ............................................................. 67 Figura 47: Acessos e Circulação - residência Abrahão Sanovicz. Fonte: da autora .................................... 68 Figura 48: Comparação entre as residências - circulação e acessos. Fonte: da autora.............................. 69 Figura 49: Continuidade Espacial - residência Abrahão Sanovicz. Fonte: da autora .................................. 70

4


Figura 50: Continuidade Espacial - residência Paulo Bastos. Fonte: da autora .......................................... 71 Figura 51: Transição, hierarquia e núcleo - residência Abrahão Sanovicz. Fonte: da autora ..................... 72 Figura 52: Transição, hierarquia e núcleo – residência Paulo Bastos. Fonte: da autora ............................ 73 Figura 53: Setores – residência Abrahão Sanovicz. Fonte: da autora ........................................................ 74 Figura 54: Setores – residência Paulo Basto. Fonte: da autora .................................................................. 75 Figura 55: Estratificação - residência Abrahão Sanovicz. Fonte: da autora ............................................... 76 Figura 56: Estratificação - residência Paulo Bastos. Fonte: da autora ....................................................... 78 Figura 57: Geometria da Construção - residência Abrahão Sanovicz. Fonte: da autora ............................ 79 Figura 58: Geometria da construção – residência Paulo Bastos. Fonte: da autora.................................... 80 Figura 59: Eelementos básicos, com mais de uma função e modificadores do espaço – residência Paulo Bastos. Fonte: da autora ............................................................................................................................ 81 Figura 60: Eelementos básicos, com mais de uma função e modificadores do espaço – residência Paulo Bastos. Fonte: da autora ............................................................................................................................ 82 Figura 61: Campos visuais – residência Abrahão Sanovicz. Fonte: da autora ............................................ 83 Figura 62: Campos visuais – residência Paulo Bastos. Fonte: da autora .................................................... 84 Figura 63: Maison Citrohan le Weissenhof. Fonte: Fondation Le Corbusier (http://www.fondationlecorbusier.fr/corbuweb/morpheus.aspx?sysId= 13&IrisObjectId=5562&sysLanguage=en-en&itemPos=37&itemCount= 78&sys ParentId=64&sysParentName=) ................................................................................................................. 85 Figura 64: Corte da residência Taques Bittencourt. Fonte: Arquivo Arq (http://www.arquivo.arq.br/residencia-taques-bittencourt-ii?lightbox=image_1xv) ............................... 86 Figura 65: Residência Abrahão Sanovicz - prancha síntese 1. Fonte: da autora ........................................ 88 Figura 66: Residência Paulo Bastos - prancha síntese 1. Fonte: da autora ................................................ 89 Figura 67: Residência Abrahão Sanovicz - prancha síntese 2. Fonte: da autora ........................................ 90 Figura 68: Residência Paulo Bastos - prancha síntese 2. Fonte: da autora ................................................ 91

Índice de Tabelas Tabela 1: Cronograma de atividades. ......................................................................................................... 16 Tabela 2: Comparação das residências – dados gerais. Fonte: da autora ................................................. 39 Tabela 3: Comparação das residências – implantação. Fonte: da autora.................................................. 43 Tabela 4: Comparação das residências – programa, relações entre cômodo e disposição. Fonte: da autora ......................................................................................................................................................... 47 Tabela 5: Comparação entre as residências – áreas por setor. Fonte: da autora ...................................... 47

5


Resumo A produção dos arquitetos Paulo Bastos e Abrahão Sanovicz é consagrada no quadro da Arquitetura Moderna Brasileira, mas muito pouco lembrada atualmente – talvez porque ainda existe pouca pesquisa produzida acerca das obras destes arquitetos eminentes da chamada Escola Paulista, e que já ameaçam cair no esquecimento. Neste sentido, o projeto de pesquisa objetiva fazer uma análise comparativa das residências projetadas pelos arquitetos para eles mesmos, construídas na década de 1970 na cidade de São Paulo. As comparações devem: 1) considerar o contexto histórico da evolução da cidade de São Paulo no século XX na região em que as casas foram construídas (City Butantã e City Alto de Pinheiros); 2) analisar os projetos como expressão do partido da Escola Paulista, especialmente em relação aos aspectos do detalhamento dos projetos; 3) investigar os projetos através de análise gráfico-espacial sistemática das obras. Os procedimentos incluirão revisão bibliográfica do contexto histórico, da biografia dos arquitetos, da obra arquitetônica e dos processos de trabalho de cada um. O levantamento de campo dos casos de estudo inclui visitas técnicas a cada casa. Espera-se, com os resultados obtidos, contribuir para o debate sobre a Escola Paulista, seus arquitetos e suas práticas de projeto; prover subsídios para o resgate da prática projetual do detalhe arquitetônico por parte de arquitetos e das escolas de arquitetura; e lançar novas luzes sobre as obras de Sanovicz e Bastos.

Abstract The design work of Brazilian architects Paulo Bastos and Abrahão Sanovicz, representatives of the so-called Escola Paulista, is respectfully celebrated in the realm of Modern Brazilian Architecture, but nowadays their works are seldom mentioned within the current architectural debate in Brazil – maybe because there is no major scholarship on the subjects so far, apart a few fine, pioneering research work. Therefore, the architectural oeuvre of both architects might fall into oblivion. In this sense, this research project aims to produce a comparative analysis of the houses designed by each architect for themselves in São Paulo during the 1970s. This comparative analysis takes into account 1) the historical context of the urban growth of São Paulo in the 20th Century, particularly the garden neighbourhoods of City Butantã and City Alto de Pinheiros; 2) the study of both houses as expressions of the Escola Paulista’s architectural partii, particularly on the issue of architectural detail design; 3) investigating the house designs through graphic

6


and spatial analysis. These aims will be achieved by means of bibliography and scholarship review of the historical context, the biography and careers of both Sanovicz and Bastos, and the design methods of each architect. The fieldwork for the graphic and spatial analysis will include technical visits to each house. The resulting research will, hopefully, contribute to the ongoing debate regarding the Escola Paulista, its members and their design practices; contribute to a renewed approach to architectural detail design for architects and schools of architecture, and shed new lights to the design works of Sanovicz and Bastos.

Apresentação O relatório aqui apresentado é referente ao segundo semestre de pesquisa feita pela aluna Elis Jordão Stropa, graduanda do curso de Arquitetura e Urbanismo do Instituto de Arquitetura e Urbanismo de São Carlos (IAU-USP). Intitulada “MESTRES DA ARQUITETURA

MODERNA PAULISTANA: ABRAHÃO SANOVICZ E PAULO BASTOS – UMA ANÁLISE COMPARATIVA DAS RESIDÊNCIAS DOS ARQUITETOS EM SÃO PAULO”, a pesquisa foi outorgada com bolsa de iniciação científica da FAPESP e é orientada pelo Prof. Dr. Paulo Yassuhide Fujioka, integrando o conjunto de trabalhos do Núcleo de Apoio à Pesquisa em Estudos de Linguagem em Arquitetura e Cidade do IAU-USP (N.ELAC). O presente documento tem por objetivo apresentar e publicar os resultados das atividades realizadas durante toda a pesquisa (de março de 2016 a fevereiro de 2017). A primeira parte do relatório, referente ao primeiro semestre de bolsa, foi constituída do estudo do contexto histórico e das biografias dos arquitetos Abrahão Velvu Sanovicz e Paulo de Mello Bastos e tinha como finalidade compreender as forças que influenciaram os dois arquitetos no momento histórico do projeto de suas próprias residências em São Paulo. Os acontecimentos políticos e dinâmicas sociais, culturais econômicas e tecnológicas da época em que ambos se formaram na FAU e começaram a trabalhar contribuíram para o processo projetual e a obra arquitetônica destes arquitetos. Foi possível, a partir desse estudo, reunir um arcabouço teórico sólido para embasar a análise comparativa feita na segunda etapa da pesquisa. O relatório aqui apresentado diz respeito à conclusão da pesquisa, feita no segundo semestre, com a realização da análise comparativa entre as duas residências. Tal análise foi desenvolvida em diversas etapas, compreendendo primeiro uma análise de características básicas relativas ao contexto em que as obras foram feitas e a índices gerais como programa e implantação. Em seguida foi realizada uma análise comparativa gráfica por meio de diagramas 7


de autoria da autora, desenvolvidos com base no trabalho de autores como Ching, Clark e Pause, Unwin e Baker. Dessa forma, conseguiu-se uma análise comparativa detalhada e completa. Este trabalho pretende contribuir para o conjunto de pesquisas do grupo N.ELAC do IAU-USP no sentido de aprofundar as pesquisas no campo dos métodos projetuais dos arquitetos – a partir da análise comparativa arquitetônico-construtiva mencionada acima – levando-se em conta não apenas a análise gráfico-visual, mas a obra e ideias de dois profissionais extremamente competentes e que executaram obras de alta qualidade plástica e funcional. A análise dos casos de estudo também leva em consideração a importância do detalhamento projetual da construção e a análise de elementos sutis do contexto da obra a serem levados em consideração.

1. Introdução Na história da Arquitetura Moderna Brasileira, a obra de alguns profissionais destacase pela importância do detalhamento técnico para a qualidade do projeto arquitetônico, aspecto que vem sendo relativamente pouco valorizado no ensino de arquitetura atualmente. Da mesma forma, trajetórias de arquitetos consagrados de um passado ainda recente, como os arquitetos da Arquitetura Moderna Paulista, também chamada de Escola Paulista, passam ao largo da maior parte das salas de aula devido à pouca pesquisa e/ou divulgação realizada. Para efeito desta pesquisa, considera-se que a “Escola Paulista” seja formada pelos arquitetos cujas obras são listadas no compêndio Arquitetura Moderna Paulistana, de Eduardo Corona, Carlos A.C. Lemos e Alberto Xavier (1983), sejam aqueles influenciados pela obra dos arquitetos influenciados pelas ideias e projetos de João Batista Vilanova Artigas e Carlos Milan como Eduardo de Almeida, Paulo Mendes da Rocha, Miguel Juliano, Décio Tozzi, João Walter Toscano, Abrahão Sanovicz, Joaquim Guedes Sobrinho, Jon Maitrejean, Eduardo Corona, Jorge Wilheim, Pedro Paulo de Melo Saraiva, Paulo Bastos, Oswaldo Correa Gonçalves, Eduardo Kneese de Mello, Paulo de Camargo e Almeida, Ruy Ohtake (em sua fase inicial), Siegbert Zanettini (idem), Israel Sancovski e Jerônimo Bonilha Esteves, Ubyrajara Gilioli (sem contar Arthur Fajardo Netto, Armando Paoliello, não mencionados especificamente, mas com obras de características similares); bem como Oswaldo Arthur Bratke, Gregori Warchavchik, Rino Levi, Jacques Pilon, Lucjan Korngold, Giancarlo Palanti, Franz Heep, Salvador Candia, David Libeskind, Rodolpho Ortenblad (além de Hélio Duarte, Ernest Mange, Alberto Botti, Miguel Forte e Giancarlo Ciampaglia, Jacob Ruchti, não mencionados especificamente, mas com obras de características similares). 8


Desta forma, a pesquisa dos projetos arquitetônicos de alguns membros da Escola Paulista ainda é um vasto campo de pesquisa a ser explorado, tanto para a História da Arquitetura e do Urbanismo como o do estudo e análise do Projeto, inclusive do detalhe arquitetônico. Neste sentido, chamam atenção a obra dos arquitetos paulistanos Paulo Bastos e Abrahão Sanovicz, caracterizada pela síntese formal programa/espaço definida pelo partido arquitetônico, com materiais e estruturas aparentes; pelas aberturas generosas que buscavam romper os limites entre interior e exterior; e pelo detalhe bem resolvido integrado ao projeto, que não é somente pensado a posteriori. Abrahão Velvu Sanovicz (1933-1999) é lembrado, em alguns artigos e pesquisas, por projetos como o Iate Clube de Londrina (1959), escolas para o IPESP-Instituto de Previdência do Estado de São Paulo, vários conjuntos habitacionais de interesse social (incluindo o Pascoal Melantonio e o Celso dos Santos em Guarapiranga), os edifícios de apartamentos para a construtora FormaEspaço, o edifício residencial Abaeté, escolas para a FDE, a agência do BANESPA em Recife, o SENAC-Jundiaí e o SESC-Araraquara. Paulo de Mello Bastos (1936-2012) destacou-se não apenas como profissional de projeto, como também pela atuação em cargos públicos, incluindo passagens como conselheiro e presidente do CONDEPHAAT. Sempre lembrado pela produção prolífica de edifícios para fins escolares, casas unifamiliares, agências bancárias; e pelos projetos do Clube Paineiras do Morumbi e da antiga sede do II Exército (atual Comando Militar do Sudeste) no Ibirapuera; também coordenou o restauro da Catedral Metropolitana da Sé, entre outras obras de preservação do patrimônio histórico arquitetônico. Aprofundar a pesquisa sobre estes dois arquitetos é de grande relevância para o quadro da história da Arquitetura Moderna Paulista. Esta pesquisa de Iniciação Científica procura conjugar a linha de pesquisa do orientador sobre a Escola Paulista / Arquitetura Moderna Paulista com outra linha de investigação do orientador – como membro do N.ELac Núcleo de Apoio a Pesquisa para os Estudos de Linguagem em Arquitetura e Cidade da Universidade de São Paulo, baseado no IAU-USP São Carlos – de investigação dos processos de criação da arquitetura através da análise gráfica do projeto arquitetônico. Assim sendo, esta pesquisa de Iniciação Científica abordará de forma comparativa a obra dos arquitetos Abrahão Sanovicz e Paulo Bastos através da análise de caso de estudo de projeto de cada arquiteto, optando-se como casos de estudo as próprias residências dos arquitetos, projetadas por eles mesmos.

9


Muito se fala sobre a liberdade que o arquiteto adquire ao projetar sua própria residência, e isso porque nesse momento não precisa lidar com certas “barreiras”, que surgem quando projeta para um cliente. Ao fazer o projeto de sua própria casa, o arquiteto tem a oportunidade (muitas vezes única) de experimentar suas ideias sem empecilhos que não as normas de construção civil do município. O resultado dessa liberdade é uma experimentação formal, de programa, de partido e de soluções que pode ser considerada uma síntese das ideias do arquiteto. Embora tal solução de projeto se molde pelos determinantes históricos e urbanos de cada município (como a legislação de obra e uso do solo, o sítio disponível e seu entorno), a situação apresentada é a que mais se aproxima daquilo que se pode chamar de “ideal” para que o arquiteto possa pôr em prática suas reflexões sobre a habitação unifamiliar como tipologia. Esta pesquisa parte do geral para o particular, ou seja, da evolução da cidade, do contexto histórico urbano que envolve as residências de ambos os arquitetos, localizadas em dois bairros jardins da Companhia City: City Alto de Pinheiros (1925/1937 em diante) e City Butantã (1930 em diante). O partido arquitetônico da Escola Paulista considerava o projeto do geral para o particular, da cidade para o sítio, a leitura da paisagem urbana do entorno era essencial para as decisões de projeto. Neste sentido, é necessário situar a construção das duas obras no momento de expansão urbana de São Paulo no sentido oeste após a II Guerra Mundial, com a retificação do Rio Pinheiros, a construção da Cidade Universitária da USP e do Estádio do São Paulo Futebol Clube no Morumbi com projeto de Vilanova Artigas. Os terrenos disponíveis eram de dimensões generosas para um custo relativamente modesto na época, o que levou à compra feita por diversos jovens arquitetos de lotes nessa região nas décadas de 1950 e 1960, principalmente aqueles vinculados à USP. Dessa forma, os dois bairros adjacentes contêm vários exemplos relevantes da arquitetura residencial da Escola Paulista, incluindo exemplos de diversos arquitetos que construíram suas próprias casas no período 1970-76. Assim sendo, esta pesquisa propõe reunir e estudar os dados essenciais para efetuar uma leitura gráfico-espacial dos projetos das residências dos arquitetos Abrahão Sanovicz e Paulo Bastos, além de analisá-las de acordo com seu contexto histórico e urbano. O entendimento do processo de projeto desses arquitetos e o papel do “pensar o detalhe” em cada projeto será também um objeto de estudo, buscando-se entender como desenhar e redesenhar o detalhamento pode ser um fator decisivo para a forma final do projeto 10


arquitetônico. Com o entendimento do processo de projeto junto à leitura gráfico-espacial e

à análise histórica, pretende-se chegar a uma compreensão do processo de projeto destas casas, e verificar como a prática de projeto destes arquitetos consagrados, ainda tão pouco abordados na historiografia da arquitetura brasileira, tem muito a contribuir para o debate do ensino de Projeto e da produção atual.

1.1. Justificativa Muito da produção arquitetônica brasileira atual parece ser pensada como uma resolução puramente formal, que não se preocupa com o detalhamento, comumente considerado um aspecto unicamente técnico, que não contribui com a arquitetura. Isto contrasta totalmente com a visão dos arquitetos pioneiros do Movimento Moderno, particularmente no Brasil, que detalhavam até itens de esquadrias, marcenaria e serralheria (isso também devido à ausência de componentes adequados no mercado, na primeira metade do século XX), conforme mostram as pranchas de projeto executivo de profissionais como Rino Levi, Carlos Millan e Oswaldo Bratke no acervo de projetos da Biblioteca da FAUUSP. Entretanto, desde os anos 60 o ensino de arquitetura já não se empenha tanto em formar um profissional atento aos detalhes construtivos, parcialmente devido à supressão do debate acadêmico nos anos do Regime Militar, que também afastou muitos professores da universidade, como João Batista Vilanova Artigas, Paulo Mendes da Rocha e Jon Maitrejean. Graças aos depoimentos de ex-alunos ou colaboradores de Levi e Bratke, sabe-se como estes arquitetos e professores enfatizavam que o detalhamento exaustivo, claro e legível do projeto garantia ao arquiteto a execução da obra sem mal-entendidos ou interpretações equivocadas no canteiro, além de ser um documento das intenções da proposta. O descuido com esta prática pode ocasionar sérias dificuldades na execução das obras. Tanto Sanovicz como Bastos foram profissionais que não descuidavam do detalhamento do projeto. Nas casas que projetaram para suas famílias, entre os anos de 1970 e 1976, não foi diferente. O cuidado com o detalhe arquitetônico mostra esses arquitetos como portadores de um conhecimento técnico/executivo e uma capacidade de criação do detalhe que hoje é cada vez mais raro de ser encontrado. O projeto e construção de uma habitação unifamiliar sempre foi um campo muito rico de possibilidades para o arquiteto, ao envolver um leque de questões que vão dos anseios do cliente o partido, a funcionalidade e o genius loci. Desse modo, quando um arquiteto projeta sua própria casa, tem o mínimo de influências externas a seus próprios ideais, o que torna o

11


projeto uma oportunidade única, assegurada uma liberdade inusitada de expressão e experimentação de programa, partido, estrutura, conforto ambiental, paisagismo, etc. Objeto de publicação em revistas, livros e trabalhos acadêmicos, as residências dos arquitetos Abrahão Sanovicz e Paulo Bastos são referência também na carreira de ambos, e na História da Arquitetura Moderna Paulistana, justamente por constituir casos exemplares das considerações acima. Desta forma, enquanto pesquisa de Iniciação Científica, estas obras apresentam enorme potencial para o estudo de um momento muito rico do Movimento Moderno no Brasil (ZEIN, 2006, 2007, WOLF, 2003) – como exemplos impecáveis da Escola Paulista de vertente influenciada por Artigas e Millan, também definida como “brutalista” por pesquisadores como Ruth Verde Zein (ZEIN, 2006, 2007). Assim, também constituem ricos casos de estudo para a leitura e análise sistemática de projetos de arquitetura e da representação arquitetônica, dentro das questões expostas nos parágrafos acima. Por fim, esta pesquisa traz uma contribuição para campos ainda pouco estudados na historiografia da Arquitetura Moderna no Brasil: o da Residência do Arquiteto e das obras dos arquitetos Abrahão Sanovicz e Paulo Bastos, ainda relativamente pouco abordados academicamente. Esta pesquisa de Iniciação Científica faz parte de uma linha de IC desenvolvida pelo docente orientador de pesquisa no campo da Residência do Arquiteto no Movimento Moderno, baseado na rica tradição dos projetos de casas de arquitetos como os de Le Corbusier, Frank Lloyd Wright, Walter Gropius, Marcel Breuer, Mies van de Rohe, Alvar Aalto, até os contemporâneos Tadao Ando e Frank Gehry, passando por Gregori Warchavchik, Rino Levi, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy, João Batista Vilanova Artigas, Oswaldo Bratke, Lina Bo Bardi, Joaquim Guedes, Eduardo de Almeida, Marcos Acayaba, etc. O objetivo é não apenas levantar os casos de estudo dentro do domínio da Teoria e História da Arquitetura, como também analisar os projetos no sentido de entender como eles podem contribuir para a formação atual do arquiteto e para o debate e a prática da produção contemporânea – através das inovações técnicas e do rigor projetual. Outro ponto importante é a localização das casas nos bairros-jardim do Alto de Pinheiros e Butantã em São Paulo e a época de construção, na década de 1970, parte do processo de expansão urbana da cidade em direção oeste no pós-guerra. Tal contexto possibilita a aplicação de uma metodologia que permite inserir os dois casos de estudo no quadro urbanístico maior da história da metropolização de São Paulo no século XX.

12


Esta pesquisa constitui parte e aplicação de pesquisa do docente orientador no sentido de apresentar e discutir formas, métodos, critérios de leitura e análise dos desenhos de projetos de arquitetura, objetivando mostrar como o desenho técnico do projeto arquitetônico pode atuar como instrumento de percepção e interpretação da obra de arquitetura e das ideias do arquiteto. Desta forma, o objetivo da pesquisa também é investigar práticas e métodos de leitura e análise gráfica do projeto de arquitetura, não somente no sentido de entender o artefato arquitetônico, como profissional de projeto e canteiro, como também fazer desta sistemática de leitura do projeto e da obra um subsídio para a prática de projeto, na escola e na prática do ofício – na medida em que tal análise permite entender a espacialidade tectônica e o processo criativo de projeto, inclusive enquanto detalhe arquitetônico. O projeto de IC também está vinculado, através do orientador ao grupo de pesquisa N.ELac-USP Núcleo de Apoio a Pesquisa para os Estudos de Linguagem em Arquitetura e Cidade da Universidade de São Paulo, baseado no IAU-USP São Carlos, e deverá complementar as demais pesquisas que ocorrem nessa área. O estudo se revela importante para mostrar o desenho técnico do projeto arquitetônico como ferramenta de percepção e interpretação da obra de arquitetura e das ideias do arquiteto, contribuindo para o entendimento da espacialidade material e do desenvolvimento do projeto e da construção de modo. Tal contribuição é essencial para como subsídio e reflexão das decisões tanto do aspirante a arquiteto como do profissional de projeto.

13


2. Objetivos 2.1. Objetivos Gerais Efetuar a análise comparativa das residências dos arquitetos Abrahão Sanovicz e Paulo Bastos a partir do resgate de aspectos históricos, estudo gráficos dos projetos e identificação dos processos projetar e da importância do detalhe para o resultado final das obras. A análise comparativa das casas poderá ser o primeiro passo de uma pesquisa projetual mais ampla sobre a Escola Paulista, demonstrando uma riqueza e variedade inusitada de soluções de projeto por parte de seus arquitetos, que ultrapassaria os cânones estabelecidos pelos seus mestres fundadores como Artigas e Milan.

2.2. Objetivos Específicos 1) De modo a contribuir para o estudo da obra de Abrahão Sanovicz e Paulo Bastos e de identificar o método projetual de ambos, pretende-se compreender o contexto histórico da cidade de São Paulo na época em que ambas as residências foram projetadas e construídas e de como as condicionantes históricas possam ter influenciado (de modo similar ou diferente), os processos de trabalho e de criação desses arquitetos. 2) O projeto busca entender os fatores externos e internos que influenciaram as soluções de projeto de cada arquiteto para sua respectiva residência. Para tanto, deverá ser feito um estudo de cada uma das casas tendo em vista: seu contexto histórico e urbano; as estratégias de projeto características da Escola Paulista; e o papel do detalhamento em ambas as obras. Com o estudo de tais fatores será possível compreender os motivos de determinadas escolhas dos arquitetos e das qualidades espaciais e formais apresentadas por cada casa. 3) Deverá ser realizada uma leitura e análise gráfica de cada projeto de arquitetura, não somente no sentido de entender o artefato arquitetônico, mas também da atuação de seu autor como profissional de projeto e no próprio canteiro de obras. Na medida em que essa análise permite entender a espacialidade tectônica e o processo criativo de projeto (inclusive enquanto detalhe arquitetônico), a sistemática de leitura do projeto e da obra aqui desenvolvida poderá se tornar um subsídio para a prática de projeto, na escola e na prática do ofício, de modo a contribuir para a melhoria da qualidade da arquitetura contemporânea.

14


3. Metodologia Neste relatório descreve-se as atividades desenvolvidas na segunda etapa de trabalho. Apresenta-se inicialmente um resumo da primeira etapa, que consistiu no levantamento bibliográfico e documental sobre o contexto histórico dos casos de estudo e da biografia e carreira dos arquitetos Abrahão Sanovicz e Paulo Bastos. Em seguida, os resultados da segunda etapa, adquiridos a partir da realização de entrevistas, visitas técnicas às obras, leitura e análise de uma bibliografia sobre análise arquitetônica e elaboração de uma análise gráfica comparativa a partir dos desenhos técnicos das residências e de diagramas elaborados pela autora. Para a primeira etapa, as obras lidas e analisadas abordam história da arquitetura e da cidade de São Paulo (Bastos & Zein, 2010; Segawa, 1998; Bruand, 1997; Fujioka, 1996; Ottoni & Szmrecsanyi, 1997), mais especificamente sobre os aspectos e a formação da Escola Paulista (Cunha & Guerra, 2012; Vázquez Ramos, 2013; Bardi, 1950; Bastos & Zein, 2010; Segawa, 1998). Também foram feitas leituras de textos escritos na época dos debates e críticas sobre a arquitetura moderna (Artigas, 1952; Bardi, 1951), complementados por uma leitura aprofundada sobre o concurso e a construção de Brasília (Braga, 2010), que traz uma discussão dos contrapontos sobre a cidade, levando em conta não só os insucessos, mas também as qualidades da cidade. Foram também analisadas as biografias dos arquitetos estudados. Para a segunda etapa, a bibliografia incluiu autores que tratam da análise arquitetônica. Com base nos conhecimentos adquiridos com as leituras das bibliografias de ambas as etapas, foi feita uma leitura crítica e analítica da autora sobre os casos de estudo, e, a partir de tal leitura e das referências, finalmente foram elaborados diagramas que explicitassem uma análise gráfica comparativa, e que tiveram como base os trabalhos de Baker, Ching, Clark e Pause e Unwin. Os pontos de comparação desenvolvidos foram selecionados pela autora de acordo com a relevância que apresentavam para o entendimento das obras.

15


4. Atividades Realizadas O trabalho compreende seis atividades principais, desenvolvidas conforme o cronograma apresentado na tabela 1.

Fev/17

Jan/17

Dez/16

Nov/16

Out/16

Set/16

Ago/166

Jul/16

Jun/16

Mai/16

Abr/16

Atividades

Mar/16

Tabela 1: Cronograma de atividades.

Levantamento bibliográfico (histórico e documental) Levantamento bibliográfico (analítico) Análise preliminar dos projetos Leitura gráfica dos projetos Elaboração do relatório parcial Visitas técnicas e entrevistas Elaboração do relatório final Em cinza claro, atividades da primeira etapa; em cinza escuro, atividades da segunda etapa. Este relatório foi, assim, elaborado com base no levantamento bibliográfico sobre análise gráfica, e no exercício prático da elaboração de diagramas para a análise comparativa das casas e nas entrevistas realizadas. A maior parte da bibliografia lida foi definida por indicação do orientador Paulo Yassuhide Fujioka. Coube à pesquisadora a leitura dos textos indicados e o uso de tais referências para elaboração própria dos diagramas apresentados neste relatório. Os entrevistados foram contatados por meio do orientador, cabendo à orientanda a formulação das entrevistas sob seu auxílio. Para fins didáticos, os conteúdos foram abordados em blocos: resumo do relatório inicial, entrevistas e resultados. O primeiro bloco teve o objetivo de relembrar os temas abordados no primeiro relatório, a fim de deixar mais fácil seu relacionamento com as análises atuais. O segundo bloco é constituído pelas entrevistas e pela visita às casas, e tem o objetivo de elucidar fatos sobre as vidas dos arquitetos, seu trabalho no ateliê e sobre as casas em si, seus detalhes e métodos construtivos ou aspectos que não tenham ficado claros nas fotos e desenhos técnicos encontrados. O último bloco traz por fim os resultados gráficos e a análise comparativa feita pela autora com base na bibliografia estudada. 16


5. Resumo Relatório Parcial Resumidamente, o primeiro relatório desse estudo abordou os principais temas: 1) o contexto histórico da formação dos bairros jardim implantados pela Companhia City; 2) as dinâmicas culturais cada vez mais intensas que transportaram São Paulo para o centro dos debates nacionais sobre arte e arquitetura; e 3) as biografias dos dois arquitetos estudados, incluindo sua relação com os debates políticos nacionais. Retomaremos, a seguir os pontos mais importantes desses três temas para compreensão do contexto em que as casas foram projetadas e construídas. Em primeiro lugar, o loteamento dos bairros jardim feitos pela Companhia City ao longo da retificação do Rio Pinheiros foi feito com o objetivo de atender a uma clientela de classe média e alta bem informada. Como explicado no primeiro relatório, a Companhia City aproveitou apenas parcialmente os ideais da cidade jardim de Ebenezer Howard, aproveitando apenas os aspectos física, sem consolidar os valores humanos e de comunidade previstos por Howard. Desse modo, os bairros jardim paulistanos eram compostos por um sistema viário sinuoso, quadras não ortogonais, terrenos de formatos variados e ruas arborizadas. Além disso, a Companhia City implementou nesses bairros seu próprio regulamento com relação a recuos e área edificável, visando manter equilibradas as proporções entre áreas construídas e livres. Essa regulamentação própria do bairro, mais rígida que a do restante da capital, e os lotes de dimensões generosas também foram atrativos que serviram para valorizar esses bairros. Em segundo lugar, como consequência do acúmulo das riquezas da burguesia cafeeira, a gradativa conquista de São Paulo como capital cultural do Brasil entre as décadas de 1920 e 1940, tomando o lugar do Rio de Janeiro, contribuiu para a fundação de diversos museus na cidade, dentre os quais, muitos tinham suas próprias escolas de arte e design. A movimentação de estrangeiros na cidade também aumentou, incluindo a imigração de diversas celebridades para a capital. O Museu de Arte de São Paulo (MASP), fundado pelo casal italiano Lina Bo e Pietro Bardi em 1947, incluía em seu programa um curso de arte e design. O Museu de arte Moderna (MAM) também oferecia diversos cursos em sua Escola de Artesanato, entre os quais o de gravura, frequentado por Abrahão Sanovicz. Dentro dessa movimentação cultural, as faculdades de arquitetura também começaram a se formar. A Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP) surgiu em 1948 como um esforço de unir as duas vertentes do ensino de arquitetura representados pela Politécnica e pela Faculdade de Belas Artes. Em suma, era necessário 17


encontrar o equilíbrio entre técnica e arte no ensino dessa profissão, e logo a escola recém fundada já ganhava reconhecimento por sua qualidade. Foi pouco tempo depois de sua fundação que Abrahão Sanovicz e Paulo Bastos estudaram na escola. Em terceiro e último lugar, o relatório parcial tratou da biografia dos arquitetos por ordem de nascimento, primeiro Abrahão Sanoviz e depois Paulo Bastos. Em ambos os casos, buscou-se reunir elementos bibliográficos às atividades realizadas durante as respectivas carreiras de acordo com as fontes bibliográficas encontradas. Abrahão Velvu Sanovicz nasceu em 1933 na cidade de Santos, onde cresceu, frequentou o ginásio e trabalhou como desenhista em um escritório de arquitetura, cargo que frequentemente o fazia ir a São Paulo a fim de acompanhar as aprovações dos projetos junto ao Departamento de Engenharia Sanitária da Secretaria de Saúde do Estado. Quando estava na capital, fazia questão de frequentar museus, ampliando seu repertório artístico. Na década de 1950 mudou-se para São Paulo a fim de frequentar o curso de técnico em edificações na Escola Técnica Federal e se preparar para prestar o vestibular para o curso de arquitetura da FAU. Nesse período, cursou também a Escola de Artesanato do MAM, e ingressou na FAU em 1954, e durante toda a graduação preocupou-se com o estudo profundo da arquitetura, o que o levou a participar do Grupo de Estudos Folclóricos, onde também manteve vivo seu interesse pelo desenho, fazendo capas para as revistas do grupo publicadas pelo Grêmio Estudantil. Formado, passou seis meses estagiando no escritório de design de Marcelo Nizolli, em Milão, onde desenvolveu ainda mais suas habilidades no desenho de objetos, o que mais tarde influenciou o tratamento que o arquiteto deu a diversos projetos. Após seu retorno da Itália, lecionou na FAU até o ano de sua morte, 1999, e durante toda a vida contribuiu para a fundação e estruturação de diversos cursos de arquitetura, e principalmente para as disciplinas voltadas ao desenho e à concepção de formas. Paulo de Mello Bastos nasceu em 1936 no bairro do Brás em São Paulo, onde passou a infância. Durante a graduação na FAUUSP, estagiou no Escritório Técnico de Carlos Millan, onde conhece Joaquim Guedes. Bastos depois chegaria a ser coordenador do escritório de Millan. Formado em 1959, poucos anos depois decide abrir seu próprio escritório. Seu grande interesse pela educação fez com que o arquiteto se tornasse professor da FAU Mackenzie onde fazia questão de expor seus ideais políticos. Seu posicionamento fez com que fosse expulso da faculdade em 1968 por pressão do regime. Sua carreira foi repleta de obras públicas e concursos, incluindo o projeto para o Quartel-General do antigo II Exército em São Paulo e diversas escolas públicas. Mesmo sendo um profissional reconhecido e competente, foi preso em 1976, mas

18


obteve permissão para continuar trabalhando em sua cela, de onde projetou diversas agências bancárias. Bastos contribuiu na formação e estruturação de diversos cursos de arquitetura e lecionou ainda nas universidades de Santos e de São José dos Campos. A partir de 1986 participação na área do patrimônio aumenta com sua nomeação como conselheiro do CONDEPHAAT, onde foi gradativamente, ocupando diversos cargos. Ao longo desse percurso, seus principais trabalhos giraram em torno de poucas residências unifamiliares, projetos para educação formal e informal, como as já mencionadas escolas públicas ou seu projeto para o Espaço Criança. Sua preocupação com a dimensão educativa fazia com que até mesmo em seus projetos de restauro o arquiteto sempre buscava trazer também a questão educativa, com espaços dedicados a museus ou a própria exibição do prédio. Bastos faleceu em 2012 em função de complicações de um AVC.

19


6. Visita e entrevistas Como previsto no projeto de pesquisa, foram realizadas visitas técnicas e entrevistas. No entanto, não foi possível entrar na casa do arquiteto Paulo Bastos, devido à indisponibilidade da proprietária para acompanhar a visita. Em contrapartida, foi realizada uma visita à casa Roberto Milan, do arquiteto Carlos Milan, para quem Paulo Bastos trabalhou no início da carreira. Com a visita a essa casa, localizada no bairro Bitantan, foi possível observar diversas características também presentes na obra de Paulo Bastos devido à influência de Milan sobre o arquiteto. Apesar de a visita não estar prevista inicialmente, foi enriquecedora para a pesquisa, e permitiu o contato com soluções de modulação e fachada (principalmente nos quartos) também presentes na residência Paulo Bastos. As atividades realizadas descritas abaixo são: 1. Entrevista com os arquitetos Nelson Xavier e Luciane Shoyama, atuais sócios do escritório Arquiteto Paulo Bastos e Associados. 2. Entrevista com o arquiteto Leo Tomshinsky, amigo e colaborador de Abrahão Sanovicz. 3. Entrevista com o arquiteto Edson Jorge Elito, amigo e colaborador de Abrahão Sanovicz. 4. Entrevista com Eduardo Sanovicz, filho de Abrahão Sanovicz e atual morador da residência. 5. Visita à residência Abrahão Sanovicz.

6.1. Entrevistas As entrevistas se desenvolveram mais como conversas ou mesmo depoimentos do que propriamente um jogo de perguntas e resposta. Desse modo, o resultado obtido será aqui resumido e organizado em tópicos com a intenção de facilitar a compreensão dos assuntos abordados para que possam assim servir melhor aos objetivos deste estudo.

6.1.1. Nelson Xavier e Luciane Shoyama Sobre por onde Paulo Bastos começava a projetar Toda a geração da qual Paulo Bastos fazia parte eram discípulos de Vilanova Artigas (e isso, é claro, inclui Abrahão Sanovicz), sendo que todos os que estudaram na FAU haviam sido alunos dele, com isso em mente, quando se olha com atenção a residência Paulo Bastos, percebe-se que sua solução é a mesma da residência José Taques Bittencourt II de Artigas, no bairro Sumaré em São Paulo. Trata-se de uma solução simples que consiste de duas empenas 20


paralelas apoiadas sobre quatro colunas. Essa era, na verdade, uma solução amplamente adotada por esses arquitetos principalmente por conta das restrições dos lotes. Nos bairros jardim da Cia City, os terrenos eram relativamente estreitos (se comparados ao tamanho das casas que foram construídas neles), e mesmo com os recuos obrigatórios, os vizinhos ainda ficavam muito próximos, o que fazia com que a solução de se fechar as laterais e abrir a casa para a frente e para os fundos fosse muito adequada. No caso da implantação feita por Bastos, em especial, o lote foi um presente que Lucilene, sua esposa também arquiteta, ganhou dos pais, de modo que ele não teria escolhido a orientação do lote. Entretanto, o terreno onde a casa se implanta é constituído de dois lotes com orientações opostas, um na frente e o outro atrás. Não se sabe qual deles foi o que Lucilene ganhou, ou se ela ganhou os dois, ou mesmo se ela ganhou o de trás e eles compraram o da frente para construir a casa, ou se construíram a casa primeiro e compraram o de trás depois. Mas o fato curioso é que se a casa fosse implantada no lote de trás, o norte apontaria para a rua, e não para os fundos, de maneira que a solução das aberturas poderia ser completamente diferente. Mas de qualquer modo, os discípulos de Artigas estavam tinham todos uma forma comum de pensar, ou pelo menos de começar a pensar, e havia na época a ideia de que a cidade de São Paulo não era muito acolhedora, e que a casa deveria servir de refúgio. Além disso, havia uma tendência dos arquitetos modernos em contrariar as tradições burguesas, e isso incluía a organização dos cômodos da casa, por exemplo, a orientação da sala de estar para a rua e a colocação dos serviços nos fundos. Unindo todos esses fatores, o resultado seria colocar a área de estar voltada para os fundos do lote, o que de fato se observa nas casas de muitos destes arquitetos. Mas para isso interessava que o fundo do terreno tivesse uma boa orientação solar. De qualquer modo, essa solução, baseada tantos nos quatro apoios quanto no uso de seminíveis, foi muito explorada pelos arquitetos dessa geração. Dessa maneira, os projetos desses arquitetos formam uma unidade não só por conta da linguagem brutalista expressa pelos materiais, mas também pela correspondência das soluções adotadas por conta da grande influência que Artigas teve sobre eles. Com isso em mente, pode-se resumir o partido inicial adotado Paulo Bastos a partir da fala de Nelson Xavier: “A ideia é seguir o lote, estreito. E a ideia é se trabalhar com duas paredes, normalmente apoiadas, cada uma, em dois pilares, formando a tal da casa sobre quatro pilares (...) a partir do momento em que você tinha essas duas paredes paralelas estruturais, você podia trabalhar com lajes que venciam esse vão, da ordem de dez metros, dependendo da situação doze. E podia criar uma 21


ambiência interna que fazia com que os espaços se comunicassem. E que na verdade, eram articulados (porque os lotes eram compridos) normalmente por rampas ou então por escadas (...)” (Nelson Xavier em entrevista à autora, 07 de fevereiro de 2017). Sobre a liberdade de projeto sobre o “modelo” inicial Há uma ideia comum de que as casas sobre quatro colunas são “transportáveis”, entretanto, há casas como a de Paulo Bastos que estão firmemente ancoradas ao terreno. O que parece é que o partido inicial adotado foi essa estratégia por conta talvez de sua racionalidade e limpeza. A partir dela, o arquiteto começa a integrar os espaços e trabalhar os níveis, a estrutura inicial vai deixando de ser independente do solo. Dessa forma, o arquiteto se permite flexibilizar o modelo inicial de acordo com as necessidades encontradas ao longo do processo de projeto. O modelo idealizado da casa sobre quatro apoios não é, portanto, absoluto e imutável, tanto que diferentes arquitetos da Escola Paulista se apropriaram de maneiras distintas deste mesmo discurso, Paulo Bastos entre eles. Segundo Nelson Xavier: “(...) a partir desse ponto de partida todos eles foram, dentro das possibilidades de cada um e das características específicas, explorando esse modelo. Mas eles são muito interessantes nesse sentido, pelo fato de que eles trabalham essa coisa das paredes paralelas e estruturais, com as lajes nervuradas em alturas diferentes e uma coisa que por exemplo a própria rampa induzia, que era você trabalhar com meio pé direito. Ao mesmo tempo que isso garante internamente as comunicações entre os espaços, você fica com desníveis menores para vencer (...). Essas casas todas são do final da década de 60 e ao longo da década de 70 basicamente. Então isso foi muito explorado, e mesmo com o Artigas sendo mais velho, é dele já em 56 o primeiro modelo. E isso foi na verdade uma coisa que além de muito explorada, foi sendo enriquecida. Em cada projeto foram sendo agregadas aí novas possibilidades” (Nelson Xavier em entrevista à autora, 07 de fevereiro de 2017). Sobre a prisão de Paulo Bastos, seus motivos e suas consequências A alegação para a prisão de Paulo Bastos foi de que havia uma casa que os membros do Partido Comunista usavam para fazer reuniões e que estava alugada no nome do arquiteto. Sabe-se que Bastos era membro do PC e chegou inclusive a esconder Artigas em sua casa na época em que ele era perseguido, ou seja, o arquiteto era realmente ativo nas questões políticas 22


de sua época. Mas Bastos tinha certo reconhecimento devido a seu trabalho, de modo que a prisão pode ter sido um pouco abrandada por isso. Mesmo assim, foi julgado e teve que cumprir uma pena. Entretanto, a história de que Bastos foi preso no prédio em que ele próprio projetou é um mito. O arquiteto projetou o Quartel General do Exército no Ibirapuera, um prédio que não tinha nem acomodações para servir como prisão. Ele foi preso, na verdade, nas prisões localizadas no centro, talvez no DOPS ou local semelhante. Nelson Xavier e Luciane Shoyama não acreditam que a prisão tenha influenciado a arquitetura de Bastos, pelo menos não de forma negativa. Por mais que a prisão não tenha sido agradável, era minimamente suportável pelo fato de que todos os companheiros de prisão ali eram presos políticos, em sua maioria intelectuais. Isso significa que eram tratados com menos rigidez, podendo ter acesso a livros e inclusive conversar e discutir entre si. Os sócios consideram que Bastos sempre dispôs de ótimo humor, e após a prisão continuou a projetar da mesma forma que fazia antes. Nas palavras de Luciane Shoyama: “(...) isso não é presente. Na verdade, é o oposto. Então essa coisa de espaços amplos, livres e de uso coletivo, pra crianças está sempre presente na obra dele” (Luciane Shoyama em entrevista à autora, 07 de fevereiro de 2017). Sobre como Bastos continuou projetando mesmo preso Bastos não obteve uma autorização oficial para continuar trabalhando. O que ocorria, como já dito, é que ele e seus companheiros não sofriam uma prisão tão rígida a ponto de haver muitas restrições sobre o que podia entrar ou sair das celas, tanto que tinham acesso a livros e podia haver visitas em dias determinados. Desse modo, Bastos conseguiu que deixassem que ele tivesse uma pequena prancheta em sua cela, e que sua esposa lhe levasse alguns materiais e informações sobre os projetos encomendados para o escritório, que não havia sido fechado. Com isso, o arquiteto fazia croquis e elaborava os princípios dos projetos e enviava de volta para o escritório desenvolver. Sobre a personalidade do arquiteto Paulo Bastos e sua influência no trabalho com patrimônio e equipamentos escolares O trabalho de Paulo Bastos com patrimônio começa após seu cargo na presidência no CONDEPHAAT. De maneira geral, toda a carreira dele tem muito a ver com os acontecimentos de sua vida e mesmo com seu amadurecimento pessoal e profissional. Percebe-se que o arquiteto foi se transformando ao longo da vida, como é natural. Ele sempre trabalhou com arquitetura tendo em vista que se tratava de um produto cultural, logo, há um compromisso com a técnica do seu tempo, a sociedade etc. Até por conta disso, nunca trabalhou com mercado imobiliário, atendendo a poucos clientes particulares. Sua maior atuação foi ligada ao estado, 23


onde tinha maior liberdade de trabalhar e podia assumir a responsabilidade com os condicionantes da arquitetura do contexto. Dessa perspectiva, o trabalho com o patrimônio surge de forma natural na vida do arquiteto, também por conta de ser a especialidade de sua esposa Lucilene, que sempre trabalhou no CONDEPHAAT. Não havia muita demanda, na época, para se trabalhar como patrimônio, mas uma vez presidente do conselho, levou seu trabalho muito a sério, e depois do cago envolveu-se naturalmente com trabalhos de restauro. Assim, tinha uma postura muito firme sobre a importância de se preservar o patrimônio, e isso independentemente de crenças ou julgamentos pessoais, segundo Nelson Xavier: “independentemente da fé dele, pessoal, a igreja é parte da cultura do povo, é um produto. Não é porque isso é feio ou bonito e tal, dependendo do contexto em que ela está ela é importante e tem que ser preservada” (Nelson Xavier em entrevista à autora, 07 de fevereiro de 2017). Paulo Bastos tinha um ótimo humor, mas sempre estava sério. Não de maneira negativa, mas como quem levava assuntos do dia a dia para um patamar importante de discussão. Essa postura talvez se devesse à ampla visão que o arquiteto tinha sobre arquitetura, tanto que trabalhou com todo o tipo de projeto, desde residenciais unifamiliares até urbanos. A preocupação do arquiteto com a educação patrimonial se deu, dessa forma, tanto por conta dessa perspectiva global que tinha sobre arquitetura e da maneira que a entendia como produto cultural. Paulo Bastos sabia que o restauro era uma oportunidade de estudar a fundo o edifício, o que resultava em um enorme arcabouço de conhecimento que não deveria ser ignorado depois que servisse para o propósito do restauro. Desse modo, ele via no museu uma forma de servir à visitação do próprio espaço e também de guardar o material levantado e disponibilizá-lo para consulta pública. Sobre os revestimentos da alvenaria na casa de Paulo Bastos As paredes de tijolo parecem ter sido pintadas de branco desde o início, e isso se deveu ao fato de que a própria textura do material denunciava que se tratava do tijolo sem que fosse necessária também a cor. Essa medida deve ter sido adotada para que os ambientes não ficassem muito escuros, principalmente porque a laje sempre preservou a cor original dos blocos cerâmicos e das vigas de concreto, bem como as paredes de concreto laterais. As paredes curvas foram feitas de tijolo de barro e sempre foram revestidas com chapisco grosso e a cor ocre, que Bastos gostava muito. Era um ideal da época mostrar o concreto quando algo era feito dele, e acredita-se que Bastos não faria uma parede de concreto 24


com a finalidade de revestí-la posteriormente. Mas a cor e a textura não necessariamente foram empregadas para dar destaque às paredes, trata-se mais de uma forma de o arquiteto introduzir cor na residência, tanto que o ocre aparece também nas esquadrias dos quartos e nas portas.

6.1.2. Leo Tomshinsky Sobre o método projetual de Abrahão Sanovicz Abrahão Sanovicz sempre se preocupou muito com a questão construtiva e seus detalhes, mesmo antes do curso de design na Itália, e isso devido a sua formação anterior no curso técnico de construção, de modo que o detalhe construtivo já fazia parte de seu modo de projetar quando entrou na faculdade. Antigamente todos eles se preocupavam muito com a questão do detalhe, era uma geração que detalhava tudo e detalhava muito bem. Os detalhes de Sanovicz eram impecáveis e sempre levavam em conta a repetição. Não eram feitos, a maioria das vezes, para serem exclusivos e únicos. O pensamento industrial e a racionalização faziam, portanto, parte de sua maneira de pensar o projeto. Sobre a personalidade de Sanovicz Sanovicz era uma pessoa muito justa, autêntica, genuína, no sentido de sua interação com as pessoas a seu redor. Era alguém que dava muito valor aos colegas de trabalho, além de ser muito atencioso e paciente com seus alunos e em geral com quem estava começando a projetar, sempre explicando o que estava acontecendo. No geral, era uma pessoa muito generosa e que levava arquitetura muito a sério, quase como uma religião. Segundo Tomshisky: “Ele era um professor 24 horas por dia, sem ser chato, sem ser pedante” (Leo Tomshisnsky em entrevista à autora, 07 de fevereiro de 2017). Sobre as divisórias móveis e previsão d a mudança na residência Abrahão Sanovicz Tanto os quartos dos filhos quanto o quarto do casal são definidos por divisórias móveis ou por armários. No piso superior, apenas os dois banheiros são construídos com alvenaria. O que Sanovicz acreditava era que as necessidades seriam alteradas ao longo do tempo, e que a casa deveria poder mudar para acompanha-las.

25


6.1.3. Edson Elito Sobre a escolha do partido da residência Abrahão Sanovicz O partido adotado de se fazer uma casa sobre quatro pilares foi quase um capricho. Não era algo necessário até as últimas consequências, podia ter sido resolvida com outra solução. O próprio Sanovicz dizia que havia feito uma “caixa de fósforo sobre quatro pilares”. Tanto que os pilares não faceiam as empenas laterais, de maneira a destacar esse partido. E embora o arquiteto fosse contra qualquer tipo de retórica, essa solução acabou sendo um discurso afirmativo da Escola Paulista e do uso do concreto armado aparente. O próprio Sanovicz, depois dessa casa, disse que não faria mais uma casa totalmente de concreto, que apesar de ser um material muito correto estruturalmente e ter todas as vantagens de poder ser aplicado para fazer tudo, a caixa externa não precisava ser inteira estrutural, e nesse ponto houve certo exagero. É nítida a separação escalonada dos níveis por atividade, do estacionamento e serviços ao comum e ao íntimo. Há aspectos que curiosamente aludem à casa tradicional brasileira neste projeto nada tradicional. Debaixo dos pilotis, as dependências de empregada e a área de serviço estão bem separadas do restante da casa, por outro lado, o andar das áreas comuns inclui a cozinha, e todos os ambientes são integrados, tendo apenas a escada como elemento de separação que ainda assim não impede a continuidade do espaço. As salas de jantar e estar já ocuparam diversos lugares nessa planta, que já teve dois estares com a mesa de jantar na parte da frente. A configuração mais usada posteriormente foi com a mesa de jantar atrás da escada e a sala na parte da frente. Outro aspecto nada tradicional é a ausência de portas internas, inclusive nos banheiros (com única exceção do lavabo). A planta é claramente miesiana, com o mínimo de paredes, a cozinha em corredor junto ao lado. O arquiteto tinha o cuidado de tirar expressão plástica de tudo, até mesmo da caixa d’água. É interessante que a laje da cobertura e do pavimento superior é feita com vigas invertidas, e no pavimento superior o piso é feito com placas que cobrem o vão entre as vigas. Posteriormente pôde-se verificar que essa solução facilitou a adição do terceiro banheiro nesse andar, já que o espaço para a tubulação já existia. A solução dos quartos dispostos como “celas franciscanas” e dando todos para uma varanda comum que os liga ao banheiro e junto a um anteparo de concreto que os protege do excesso de sol lembra muito as soluções corbusianas.

26


Sobre o método projetual de Abrahão Sanovicz Pode-se dizer que o método projetual de Sanovicz consistia de muitos e pequenos croquis. Uma sequência de croquis que experimentavam soluções e eram usados para explicar suas ideias aos outros. O arquiteto começava o projeto pela resolução da planta, e conforme ela ia tomando forma, ele já imaginava como seria o volume que a envolveria e qual o material que seria utilizado. Mesmo que a parte funcional da planta fosse resolvida antes, inevitavelmente as demais soluções já iam sendo trabalhadas ao mesmo tempo. Por exemplo em sua própria casa, apesar de ter solucionado a planta primeiro, o arquiteto sabia desde o início que queria fazer uma casa sobre quatro pilares, e também sempre teve em mente a dimensão do design no objeto arquitetônico. É claro que a racionalidade construtiva do arquiteto está presente durante todo esse processo, já que cabe a ele conciliar a intenção inicial com a solução final. E Sanovicz em particular sempre deu grande importância à possibilidade de repetição seriada, então era muito comum que pensasse seus edifícios a partir de um módulo, o que muitas vezes contribuiu para que as plantas fossem flexíveis, como acontece em sua casa e no SESC Araraquara. Sobre o papel do detalhe nos projetos de Sanovicz A casa de Sanovicz, até mesmo por conta do partido, tem poucos detalhes construtivos e pode ser facilmente apresentada e muito bem explicada apenas por meio de plantas, cortes e apenas alguns detalhes. Nos projetos para os clientes, entretanto, os detalhes eram feitos para explicar cada canto. Segundo Elito “onde tivesse uma mão de obra executando alguma coisa, tinha o desenho daquilo” (Edson Elito em entrevista à autora, 08 de fevereiro de 2017). Ou seja, a obra inteira era desenhada e especificada até as dimensões da espessura de uma chapa. Na casa do próprio arquiteto, entretanto, a solução em si é simples e se resolve sozinha. Sobre como Sanovicz trata a arquitetura como objeto de design A casa do arquiteto é um objeto de design. Desde o partido adotado até o cuidado com as aberturas e com a ausência de esquadrias. Ao olhar a obra fica tão evidente a estrutura da caixa sobre pilares trabalhada por subtração e adição que a maquete parece até o protótipo de uma escultura. Nesse sentido, a postura do arquiteto quanto ao partido é firme e irredutível, e faz com que leve a cabo sua intensão de tratar a arquitetura como objeto de design. Sanovicz explora em sua casa a estética das aberturas, tanto que não utilizou caixilhos nela, visando radicalizar os rasgos e manter a noção de transparência, que não seria completa se tivesse um caixilho. Ele queria que a casa fosse a continuação da rua. Essa postura causou 27


diversos problemas com chuvas de vento, mas ela mostra que o arquiteto realmente dava muita importância à construção como objeto, o que também é uma postura bastante corbusiana. As aberturas menores também são dispostas com muito cuidado, pensando inclusive em como irão influenciar na percepção do espaço dentro da casa. Da mesma forma, os corrimões são mínimos, com apenas uma barra em cima e os montantes distribuídos, de modo que uma pessoa poderia passar por baixo dele facilmente. Tudo isso faz parte do tratamento da casa como objeto de design, e muitas dessas decisões só foram possíveis porque o cliente era o próprio arquiteto. A preocupação do arquiteto com a casa que faz para si vai além do que ele considera melhor para se viver, é também o que ele considera melhor para se mostrar, já que inevitavelmente ela se tornará um exemplo para os demais arquitetos, quase um artefato de exposição.

6.1.4.Eduardo Sanovicz Sobre a importância do desenho no projeto de Abrahão Sanovicz A residência levou cerca de entre seis e sete anos para ser projetada, e teve cerca de sete versões até chegar à definitiva, sendo que o terreno foi comprado em 1973, e a construção teve início em 1979, e a casa foi inaugurada em 1980. Sanovicz chegou à solução final a partir do desenvolvimento de diversos desenhos. Segundo seu filho Eduardo Sanovicz: “Eu acho interessante que ele sempre dizia que um dos exercícios mais interessantes do desenho é você chegar a uma solução simples para um problema complexo, e que isso era uma das coisas mais bonitas que a arquitetura permitia, mas que isso só se obtia desenhando. Meu pai sempre foi um defensor, assim, de uma maneira bastante enfática, radical, da prática do desenho” (Eduardo Sanovicz em entrevista à autora, 09 de fevereiro de 2017). Sobre como os filhos influenciaram o projeto original da residência Abrahão Sanovicz Quando a casa começou a ser construída, os três filhos de Sanovicz tinha 16, 17 e 19 anos. Por conta disso, o arquiteto não considerava que viveriam por muito mais tempo com ele. Desse modo, o projeto original, além da residência em si, possuía também uma edícula nos fundos do terreno, que possuía dois andares, sendo o debaixo uma espécie de grande salão e o de cima um conjunto de três suítes, uma para cada um dos filhos se por acaso o viessem visitar ocasionalmente. Entretanto, a edícula nunca foi construída por questões financeiras, e a solução 28


(já que os filhos ainda viveriam ali por alguns poucos anos) foi organizar a planta superior da casa de maneira a abrigar o casal e dos três filhos. Originalmente, entretanto, o plano era que o quarto do casal, no piso superior, fosse no lugar onde ficaram os três quartos, enquanto o cômodo na fachada sul seria uma espécie de ateliê para a esposa do arquiteto, Diva. Assim, diante da impossibilidade de construir as acomodações dos filhos na edícula, os planos que Sanovicz tinha de fazer uma casa para dois adultos e para a qual pudesse trazer parte ou a totalidade de seu escritório foram adiados por alguns anos. As soluções para organizar os cômodos no pavimento superior foram simples. A divisão dos três quartos dos filhos foi feita por meio de dois compensados de madeira fixos no chão e no teto. O espaço de cada quarto era suficiente apenas para uma cama e uma escrivaninha, e o armário era compartilhado pelos três, cada um com direito a três portas, e ficava no corredor, encostado no guardacorpo e de costas para o pé direito duplo. O quarto do casal também foi separado do pé-direito duplo por um armário encostado no guardacorpo, mas que não chegava até a parede, deixando o vão abaixo da claraboia livre. Cerca de dez anos depois, com todos os filhos fora de casa, Sanovicz finalmente pode organizar a casa como havia planejado desde o início. As divisórias dos três quartos foram retiradas e o espaço resultante se tornou o novo quarto do casal, enquanto o antigo quarto passou a abrigar as atividades da esposa. Sobre as alterações feitas por Eduardo Sanovicz na casa do pai Sanovicz acreditava que sua casa deveria se modificar para atender às diferentes demandas que os moradores poderiam ter ao longo da vida. O próprio arquiteto experimentos diferentes layouts durante os quase 20 anos em que viveu na casa. Já houve uma configuração em que o piso social possuía duas salas de estar, uma de cada lado da escada, e a sala de jantar ficava entre a varanda de entrada e a cozinha. Em outro momento, o espaço da segunda sala de estar, entre a escada e a varanda dos fundos, foi ocupado pelo escritório do arquiteto. Isso tudo além das alterações feitas no piso superior, feitas quando os três filhos saíram de casa. Após a morte do pai, a família de Eduardo levou algum tempo para se mudar para a casa, e só o fizeram após uma reforma no ano de 2002. Na época, tinham uma filha que já tinha saído de casa, outras duas meninas, uma delas bem pequena, e um menino a caminho. Assim, os tempos eram outros e as demandas muito distintas. Devido às novas necessidades, a maior parte das alterações feita pelo casal se deu no piso superior, com a construção em alvenaria das divisórias de dois quartos para os filhos e de mais um banheiro. Dessa forma, todos os quartos se tornaram suítes. Para tanto, a varanda atrás do anteparo de concreto foi diminuída. As portas 29


de vidro que separavam dentro e fora no segundo andar foram transferidas para a divisa com o pé direito duplo, junto ao parapeito. O espaço adjacente foi transformado em escritório. Também foi construída uma parede para isolar o quarto de casal do pé direito duplo e a iluminação zenital que ficava dentro do quarto do casal foi fechada. Todos os cômodos receberam portas. No andar social, houve a construção de mais um cômodo: uma sala de brincar para as crianças, que resultou no alargamento e encurtamento da varanda de entrada. Nessa mudança, entretanto, foi preservado todo o piso original da casa, que foi apenas realocado, já que a área que aumentou de piso de madeira foi a mesma que diminuiu de piso frio e vice-versa. Além disso, a lareira foi retirada, e a parede de concreto da sala ganhou uma pintura branca até a altura da laje do segundo andar. Todos os corrimãos da casa ganharam duas barras intermediárias que não existiam antes. No piso da garagem, a única mudança foi a ampliação da área de serviço e a construção de um cercado para os cães. O portão da entrada também foi trocado por um mais alto, e o muro de pedras da fachada ganhou uma cerca do mesmo material que o portão. Houve ainda algumas mudanças no telhado por conta da insuficiência da drenagem feita pela única calha do projeto original, e foram acrescentados novos tubos de queda. Mas a estrutura da casa está inteiramente preservada, e, como o próprio Eduardo disse, é muito fácil tirar tudo o que foi feito e voltar ao projeto original. O que interessa, no fim, é entender que a casa continua viva e atendendo às necessidades de seus moradores, e afinal, foi para isso que Abrahão Sanovicz a projetou, como uma caixa sobre quatro pilares que pudesse abrigar programas complexos e mutáveis na mais simples das soluções.

6.2. Visita à Residência Abrahão Sanovicz Por motivos de disponibilidade de dia e horário, a visita de campo ocorreu no mesmo dia da entrevista com Eduardo Sanovicz, entretanto, no período matutino, quando este não se encontrava em casa. A entrevista feita posteriormente ajudou a esclarecer muitas dúvidas, principalmente sobre as alterações e sobre como era a casa originalmente. As fotos apresentadas a seguir têm o objetivo de ilustrar o que já foi explicado sobre a residência.

30


Figura 2: Residência Abrahão Sanovicz - vista do recuo frontal. Fonte: da autora

Figura 1: Residência Abrahão Sanovicz - vista da rua. Fonte: da autora

31


Figura 5: Residência Abrahão Sanovicz - anteparo de concreto piso superior. Fonte: da autora

Figura 4: Residência Abrahão Sanovicz - fachada do piso social. Fonte: da autora

Figura 3: Residência Abrahão Sanovicz – varanda de entrada alterada. Fonte: da autora

32


Figura 6: Residência Abrahão Sanovicz - sala de estar sem lareira. Fonte: da autora

Figura 7: Residência Abrahão Sanovicz - sala de estar e entrada para a sala de brincar. Fonte: da autora

33


Figura 9: Residência Abrahão Sanovicz - pé direito duplo na sala de jantar e pintura no concreto. Fonte: da autora

Figura 10: Residência Abrahão Sanovicz continuidade espacial da sala de jantar até a varanda da entrada. Fonte: da autora

Figura 8: Residência Abrahão Sanovicz – sala de jantar. Fonte: da autora

34


Figura 12: Residência Abrahão Sanovicz - parede construída no quarto de casal. Fonte: da autora

Figura 11: Residência Abrahão Sanovicz - iluminação zenita no pé direito duplo. Fonte: da autora

Figura 13: Residência Abrahão Sanovicz - janela na direção da escada. Fonte: da autora

35


Figura 16: Residência Abrahão Sanovicz iluminação zenital interrompida na divisa com o quarto de casal. Fonte: da autora

Figura 17: Residência Abrahão Sanovicz - varanda interna. Fonte: da autora

Figura 14: Residência Abrahão Sanovicz - descida na escada caracol para os fundos. Fonte: da autora

Figura 15: Residência Abrahão Sanovicz - vista do fundo do lote para a casa. Fonte: da autora

36


Figura 18: Residência Abrahão Sanovicz - andar social visto dos fundos. Fonte: da autora

Figura 20: Residência Abrahão Sanovicz - pilar sustentando a caixa. Fonte: da autora

Figura 19: Residência Abrahão Sanovicz – garagem. Fonte: da autora

37


7. Resultados 7.1. Análise Contextual Entendeu-se que a primeira comparação a ser feita entre as duas residências estudadas deveria incluir índices essenciais para se entender os respectivos projetos. Tais índices básicos tratam do local e período de construção, das estratégias de implantação, do programa escolhido e, por fim, dos planos finais de projeto resultantes (plantas, cortes e fachadas). A partir da análise dos tópicos supracitados foi possível delinear as primeiras aproximações e distanciações entre as obras estudadas. Essa primeira análise também contribuiu para aprofundar o conhecimento sobre as obras de maneira a tornar os resultados da análise gráfica mais precisos e coerentes.

7.1.1. Localização e Período As residências de Abrahão Sanovicz e Paulo Bastos se localizam bastante próximas uma da outra se consideradas as dimensões da cidade de São Paulo, respectivamente nos bairros City Butantã e City Alto de Pinheiros. Tratam-se de loteamentos vizinhos separados apenas pelo rio Pinheiros e ambos fundados entre as décadas de 1920 e 1930 como empreendimentos da City of São Paulo Improvements and Freehold Land Company. Como apresentado anteriormente, os bairros da City possuíam regras próprias para a construção de suas residências, o que era um grande diferencial na época de sua fundação, já que as leis municipais de construção ainda não eram muito desenvolvidas. Entretanto, na década de 1970, período em que ambas as casas tiveram seus projetos executados e construção concluída, a regulamentação municipal já havia avançado, de modo que os arquitetos precisaram se atentar a elas para execução de seus projetos. Devido ao seu caráter de bairro nobre, ambos os loteamentos eram providos de terrenos generosos e ruas bem arborizadas. Sanovicz e Bastos aproveitaram-se dessas características para distribuir os espaços de maneira mais livre e mesclar dentro e fora por meio de grandes planos de vidro. Mas não foram apenas as características físicas e de caráter regulamentar que influenciaram as duas obras. Trata-se de um período em que a ditadura militar ainda era bastante forte, o que intensificou, não por acaso, algumas das soluções que a Escola Paulista já vinha empregando. Conforme se mostrará a seguir, muitos profissionais paulistas nesse período

38


têm soluções similares com relação a materialidade e distribuição. A influência da vertente arquitetônica “paulista” que havia tido início com Villanova Artigas, Carlos Milan e Oswaldo Bratke é evidente em ambas as residências analisadas, e aparece no uso de materiais em sua aparência natural, como o concreto e peças cerâmicas; na discussão sobre público e privado, por vezes abordado através da permeabilidade física ou da visão (como ocorre na FAU-USP e mesmo na residência de Abrahão Sanovicz) ou através da austeridade da fachada com relação à rua (como na casa de Paulo Bastos e de tantas outras residências construídas nesse período); abertura da área social para os fundos; separação entre área social e privada em dois níveis. Com relação à ditadura militar, Fernando Vázquez Ramos (2013, p. 7) explica como as casas de Artigas e de muitos outros arquitetos se tornam “introspectivas” como que em uma tentativa de proteger o interior da residência da realidade brutal do exterior. Essa estratégia é visível na casa de Paulo Bastos, construída em 1972. A casa de Abrahão Sanovicz, ao contrário, adota outra estratégia de oposição ao regime: ao invés de fechar e censurar, como este faz, ela se abre para a rua e exibe sua transparência de varanda a varanda. Além das diferentes posições com relação ao governo autoritário da época, há também uma mudança na organização do programa, com a colocação das áreas de serviço mais próximas à rua e o costume de voltar as áreas sociais para os fundos, além da eventual adoção de pátios internos. Tais características constam em muitas casas produzidas pela geração de arquitetos formada a partir dos anos 1950. Trata-se de uma mudança que acompanha as novas necessidades da sociedade, também com o surgimento de uma classe média que precisa de praticidade nas questões da lida com a casa, mesmo com a presença de uma empregada. Dados Gerais das Residências

Endereço Projeto Construção Idade do arquiteto entre projeto e conclusão da obra Área total construída

Residência Abrahão Sanovicz Residência Paulo Bastos R. Alexandre Marcondes R. Desemb. Joaquim Barbosa de Machado, nº 20 – City Burantã, Almeida, nº 364 – Alto de São Paulo – SP, Brasil Pinheiros, São Paulo – SP, Brasil 1973-1976 1970 1979-1980 1970-1972 46-47 anos

34-36 anos

Aprox. 390 m²

Aprox. 325 m²

Tabela 2: Comparação das residências – dados gerais. Fonte: da autora

39


Figura 21: Localização dos casos de estudo. Fonte: da autora

40


7.1.2. Implantação Analisar a implantação de uma obra arquitetônica é fundamental para entender como o arquiteto se porta diante das questões objetivas e subjetivas impostas pelo terreno, legislação, sociedade e cidade. Como apontado anteriormente, a existência de normas de construção que determinam recuos mínimos cria restrições para a liberdade de criação do arquiteto. Nos casos estudados, nota-se claramente o respeito a um recuo mínimo lateral e frontal, restrições provindas dos regulamentos da Companhia City. Também se observa a existência de um jardim ao fundo do lote, para o qual se voltam os planos de vidro. As conclusões que se tira dessas características varia de acordo com o comportamento da casa em relação a tais recuos.

Figura 23: Implantação Residência Abrahão Sanovicz. Fonte: da autora

Figura 22: Implantação Residência Paulo Bastos. Fonte: da autora

41


A análise da implantação também é fundamental para o entendimento do comportamento do arquiteto com relação à insolação. As estratégias tomadas em cada caso serão melhor analisadas mais à frente, o que se pretende nesse momento é criar um panorama geral com base na implantação existente. Diante disso, o que se observa é que as orientações são opostas, mas que mesmo assim ambas as casas têm a entrada paralela à rua e a implantação ortogonal seguindo o formato do lote.

Residência Abrahão Sanovicz

Residência Paulo Bastos

Figura 24: Análise geral das implantações. Fonte: da autora

42


Implantação das Residências Residência Abrahão Sanovicz Residência Paulo Bastos Recuos Laterais O recuo é estreito (entre 0,8 e 1m) e O recuo é mais largo (entre 2 e 2,2m) e não é previsto como elemento de não é previsto como elemento de paisagem nem de acesso. paisagem, apesar de possuir projeto de Janelas secundárias se voltam para jardim. Funciona como acesso para os os recuos laterais e não pretendem serviços e para os fundos da residência. um enquadramento da paisagem, De um lado, se volta para ele uma tendo papel unicamente funcional. empena cega, de outro, apenas a estreita janela da cozinha. Recuo Frontal É tratado com um acesso É tratado como o acesso ascendente descendente até a garagem e até a casa, sendo composto pela rampa ascendente para a entrada social por da garagem e para pedestre e por um meio de uma escada. A entrada generoso jardim que cobre toda a social se localiza a mais de 1,5m fachada dos serviços e deixa ainda mais acima do nível da rua e junto a um oculta a já discreta entrada de serviço jardim. lateral. Orientação O lote e a casa são orientados na O lote e a casa são orientados na direção noroeste (recebe insolação o direção sudoeste (recebe pouco sol dia todo na maior parte do ano e é durante o dia na maior parte do ano e é alvo do sol forte no fim da tarde). alvo do sol forte no fim da tarde). Os cômodos alocados nessa fachada Os cômodos alocados nessa fachada são de permanência (estar e não são de permanência (serviços e quartos). garagem). Tabela 3: Comparação das residências – implantação. Fonte: da autora

7.1.4. Programa e Distribuição O programa inicial pensado por Abrahão Sanovicz era o de uma casa para um casal, entretanto, como já visto, a configuração realizada, e publicada, foi uma com mais três quartos no piso superior. Considerando-se então as plantas publicadas, tanto da Residência de Sanovicz quanto da de Bastos, nota-se que os programas em si são bastante similares, sendo que quase não variam em quantidade ou denominação. A maior diferença entre os arquitetos está no tratamento que cada um dá a cada cômodo da casa, sua localização, orientação, facilidade de acesso etc. Em primeiro lugar, nota-se a diferença entre a postura dos dois arquitetos quanto à flexibilidade do programa. Enquanto Abrahão Sanovicz deixa clara sua intensão de realizar uma planta flexível e que pudesse ser facilmente alterada de acordo com as necessidades de cada momento da vida, os cômodos da casa de Paulo Bastos parecem muito mais fixos e permanentes, mesmo com a estrutura independente. Nota-se também diferentes atitudes dos arquitetos com relação aos serviços. Abrahão Sanovicz separa a cozinha da lavanderia e das dependências de empregada, enquanto o primeiro 43


fica junto às salas de jantar e de estar, os dois últimos ficam no nível de baixo, junto à garagem e escondidos das visitas que entram pela entrada social. Por outro lado, Paulo Bastos opta por integrar todos os serviços em um só bloco e o coloca logo na entrada da casa, de forma que fica bastante visível da rua, sendo que a entrada social, inclusive, fica bem no centro desse bloco, ao lado da garagem. Outra diferença está da localização da sala de jantar e de estar. Mesmo que a princípio não houvesse um layout fixo, a lareira da casa de Sanovicz indica que a sala de estar estaria localizada junto à entrada e a sala de jantar ou junto ao pano de vidro dos fundos, ou junto ao pano de vidro da frente, ao lado do estar, nesse caso a área dos fundos poderia abrigar uma outra sala. Bastos adota outra estratégia, colocando a sala de jantar como pavimento de entrada e a sala de estar meio nível abaixo. Mesmo com essa diferença, ambos se preocupam em manter o jantar o mais próximo da cozinha possível. Com o intuito de facilitar as análises gráficas que serão apresentadas a seguir, consideraremos que a sala de jantar da residência Abrahão Sanovicz ocupa o espaço entre a escada e a varanda dos fundos. A localização dos escritórios e dos lavabos em cada caso também é distinta. Em um primeiro momento, não há escritório na casa de Sanovicz, entretanto, a flexibilidade prevista pelo arquiteto fez com que este cômodo se apresentasse em diferentes locais ao longo dos anos, tanto no piso inferior quanto superior. Já na outra casa, o escritório é previsto no programa desde o início, e apesar de parcialmente reservado pela estante de livros, ainda é de fácil acesso e não é separado da sala por nenhuma barreira fixa. Em segundo lugar, o lavabo parece ter a intensão de servir a diferentes cômodos e propósitos em cada um dos casos, pois se em Sanovicz ele aparece entre a cozinha e o jantar, afim de apoiar as atividades que ali ocorrem, em Bastos ele está entre o escritório e o estar, e bastante distante do jantar, de modo que o uso é facilitado paras os dois primeiros cômodos. Um aspecto interessante quando se analisa o programa é a postura dos arquitetos com relação aos filhos. A planta de Abrahão Sanovicz mostra os quartos para os filhos como que separados por divisórias e sendo servidos por um único armário coletivo e um único banheiro sem portas. Fica clara, portanto a possibilidade de mudança do layout, principalmente quando levamos em conta que os filhos já estavam perto da idade de sair de casa quando esta foi construída. Além disso, o fato de esses quartos não encostarem na parede da fachada (deixando livre o corredor que leva ao banheiro) e, portanto, não terem janelas próprias (é necessário deixar uma porta aberta para permitir a ventilação e a insolação de cada quarto), deixa ainda mais evidente seu caráter provisório.

44


Paulo Bastos, por outro lado, construiu a casa ainda antes de ter todos os filhos, prevendo uma plante que pudesse servir às necessidades da família ainda por bastante tempo. Como filho único, o arquiteto enfatizava seu desejo de ter vários filhos e a importância que dava para a convivência entre eles. Os banheiros que servem os quartos também são bastante diferentes nas duas casas, o que pode ser facilmente explicado devido à demanda. Enquanto Abrahão Sanovicz tinha apenas três filhos, Bastos teve cinco, de modo que o número de equipamentos do banheiro deste foi duplicado para suprir as necessidades. Residência Abrahão Sanovicz Legenda: 1 - Garagem 2 - Área de Serviço 3 - Dependência de Empregada com Banheiro 4 - Cozinha 5 - Sala de Jantar 6 - Sala de Estar 7 - Lavabo 8 - Escritório 9 - Dormitórios 10 - Banheiro 11 - Suíte

Figura 25: Programa residência Abrahão Sanovicz. Fonte: da autora

45


Residência Paulo Bastos Legenda: 1 - Garagem 2 - Área de Serviço 3 - Dependência de Empregada com Banheiro 4 - Cozinha 5 - Sala de Jantar 6 - Sala de Estar 7 - Lavabo 8 - Escritório 9 - Dormitórios 10 - Banheiro 11 - Suíte

Figura 26: Programa residência Paulo Bastos. Fonte: da Autora

46


Programa das Residências Residência Abrahão Sanovicz Residência Paulo Bastos Quant Descrição Quant Descrição Dois carros enfileirados Dois carros lado a lado Garagem 1 Separada da entrada social, 1 Junto à porta de entrada, nível abaixo da rua nível acima da rua Organização linear Organização linear Área de Serviço 1 Localizada no subsolo, difícil 1 Localizada junto à cozinha, acesso fácil acesso Dependência de Localizada junto à área de Localizada junto à área de Empregada com 1 serviço no subsolo, difícil 1 serviço, difícil acesso Banheiro acesso Organização linear, funcional Organização linear, funcional tipo linha de produção como tipo linha de produção como Cozinha 1 1 no modelo moderno no modelo moderno Adjacente à sala de jantar Adjacente à sala de jantar Próximo à cozinha e ao jardim Sala de Jantar 1 Próximo à cozinha e à entrada 1 dos fundos Sala de Estar 1 Próximo à entrada 1 Próximo ao jardim dos fundos Lavabo 1 Entre a cozinha e o jantar 1 Entre o estar e o escritório Não consta na primeira Escritório 0 1 Junto ao estar, caráter social conformação da casa Piso superior, sem closet, Piso superior, com closet, Dormitórios 2 3 caráter provisório caráter fixo Serve aos dormitórios, Serve aos dormitórios, design Banheiro 1 1 contém 2 chuveiros, 2 simples lavatórios e 2 bacias Piso superior, mesmas Piso superior, maior que os Suíte 1 1 dimensões dos demais demais quartos, com closet quartos, com closet Tabela 4: Comparação das residências – programa, relações entre cômodo e disposição. Fonte: da autora

Áreas por Setor Residência Abrahão Sanovicz Residência Paulo Bastos Sala de jantar, salas de estar, Sala de jantar, sala de estar, Social varanda interna, lavabo, 103,60 m² jardim interno, escritório, 122,00 m² escada lavabo, escadas Cozinha, lavanderia, Cozinha, lavanderia, Serviço dependência de empregada 44,08 m² dependência de empregada 33,42 m² com banheiro com banheiro 4 dormitórios, 2 banheiros, 1 4 dormitórios, 3 closets, 2 Privado 94,68 m² 97,64 m² closet e circulação banheiros e circulação Externo Garagem e varandas 121,36 m² Garagem e varandas 71,80 m² Tabela 5: Comparação entre as residências – áreas por setor. Fonte: da autora

47


7.1.5. Planta, Cortes e Fachadas Residência Abrahão Sanovicz O projeto de desenvolve em três pavimentos, sendo o primeiro abaixo do nível da rua, contendo a área de serviços, dependência de empregada e garagem. O acesso à casa pode se dar no nível da rua ou pela escada helicoidal nos fundos da casa, que leva da garagem à sala. O pavimento em nível com a rua tem entrada a partir da varanda coberta para a área social da sala que reúne jantar e estar, separadas pelo volume da escada. A cozinha, no mesmo piso, fica adjacente ao lavabo, e separada das salas por uma parede. No piso superior, encontram-se distribuídos os três quartos, sendo uma suíte com closet e os outros dois quartos com saída para um banheiro em comum. A distribuição dos quartos no piso superior torna possível manter a sala de jantar com pé direito duplo. Pavimento inferior

Pavimento térreo

Pavimento superior

Figura 27: Plantas pavimento inferior, térreo e pavimento superior Residência Abrahão Sanovicz. Fonte: Arquivo Arq (http://www.arquivo.arq.br/residen cia-abrahao-sanovicz)

48


Ao analisar os cortes, percebe-se logo a relação de segregação dos pisos, que se sobrepõem de maneira a forçar uma locomoção vertical abrupta entre si. A elevação da fachada apresenta a residência à rua como um monobloco sóbrio de linhas ortogonais imponentes. Já as elevações apresentam as empenas quase cegas com suas aberturas desiguais que lhes conferem uma dinâmica planejada. Por fim, a elevação dos fundos revela uma fachada mais alta que a da frente, e com uma impressão maior de transparência devido à garagem sob pilotis e à varanda da suíte.

Figura 28: Cortes Residência Abrahão Sanovicz. Fonte: Arquivo Arq (http://www.arquivo.arq.br/residencia-abrahao-sanovicz)

A preocupação do arquiteto em tratar a residência como objeto de design é perceptível no cuidado que tem com a disposição e formato da caixa d’água, das escadas (interna e externa), da sacada do quarto do casal e das aberturas, que hora ocupam toda a fachada, rasgando o volume com uma fita de vidro do chão à laje, e hora são pequenas e interrompem as empenas em momentos determinados. A planta é inteiramente construída a partir de elementos ortogonais, sendo que a única exceção é a escada caracol aos fundos.

49


Figura 29: Elevações residência Abrahão Sanovicz. Fonte: Arquivo Arq (http://www.arquivo.arq.br/residencia-abrahao-sanovicz)

50


Residência Paulo Bastos

Figura 30: Planta do térreo e do 1º pavimento Residência Paulo Bastos. Fonte: APBA Arquiteto Paulo Bastos e Associados (http://arquitetopaulobastos.com.br/projeto.php?id=7)

A residência é separada em três seminíveis, sendo que o primeiro é elevado em relação à rua, e abriga a garagem ao lado da porta de entrada. Entra-se por um hall ao lado do jardim interno, e de lá se tem acesso às duas escadas, à sala de jantar, por onde se chega à cozinha, área de serviço e dependências de empregada, área que também pode ser acessada diretamente da rua, por meio de uma entrada de serviços. Um metro e meio abaixo do nível de entrada, encontra-se a sala de estar e o escritório, separados apenas por uma estante com prateleiras para ambos os lados. O volume do lavabo se destaca pela forma curva, e divide a fachada dos fundos em duas partes. O nível superior abriga os quartos, sendo que todos são voltados para os fundos e ligados na outra face por um corredor aberto, a partir do qual se enxerga o nível da entrada. As duas extremidades do corredor abrigam o banheiro da suíte e o banheiro dos outros quartos.

51


Figura 31: Corte Residência Paulo Bastos. Fonte: APBA Arquiteto Paulo Bastos e Associados (http://arquitetopaulobastos.com.br/projeto.php?id=7)

Percebe-se a partir do corte a unidade do volume da casa. A cobertura não é feita em laje plana, mas sim inclinada, que ascende da frente para o fundo da casa, proporcionando o pé direito necessário para a disposição dos dois níveis ao fundo. É perceptível a intenção do arquiteto de manter a fluidez entre os espaços, sendo que interior e exterior são integrados pelo jardim interno e pela fachada de vidro dos fundos e toda a casa pode ser vista a partir do hall de entrada. A fachada frontal não revela muito sobre o que ocorre no interior da casa, sendo sóbria e fechada. Já a fachada posterior, ao contrário, é muito reveladora, deixando clara a existência da área social no piso de baixo e dos quartos alocados em cima. Nota-se a similaridade da fachada posterior com a solução adotada na casa Roberto Millan pelo arquiteto Carlos Millan, com quem Paulo Bastos trabalhou no início de sua carreira. O cuidado do arquiteto com os detalhes é visível no tratamento de elementos pontuais, como é o caso do lavabo e da parede que abriga a mesa redonda da cozinha, que se encaixam dentro de volumes curvos que se destacam em meio à ortogonalidade da casa. O uso de anteparos de concreto como mobiliário, aproveitando a divisa com o jardim interno, por exemplo, contribuem também para a riqueza interior da casa.

Figura 32: Elevações residência Paulo Bastos. Fonte: APBA Arquiteto Paulo Bastos e Associados (http://arquitetopaulobastos.com.br/projeto.php?id=7)

52


7.2 Análise Gráfica Comparativa Para realização de uma análise gráfica capaz apresentar os dois projetos de maneira completa, além de possibilitar uma comparação ponto a ponto entre eles, foi necessário um estudo profundo sobre a análise da arquitetura a partir da visão de diversos autores. Dessa forma, a análise e a representação feita pela autora se baseou nas diferentes premissas dos autores lidos, tais como Baker (1989 e 1998), Ching (2008), Clark & Pause (1997) e Unwin (2013 e 2014). Além disso, a leitura do livro “A casa de Adão no paraíso” (Rykwert, 2003) foi importante para a compreensão de diversas facetas da ideia de “casa” ou da “cabana primitiva”. Este livro busca copilar diversas versões sobre qual a ideia primordial da casa, muitas das quais encontradas até hoje na arquitetura, inclusive nas duas residências modernas estudadas”. Com base nos estudos feitos, foram escolhidas as seguintes categorias para a comparação gráfica entre as residências: 1. Identificação do lugar 2. Eixos 3. Simetria e Equilíbrio 4. Planta e Corte 5. Modulação 6. Insolação 7. Materiais 8. Circulação e Acessos 9. Continuidade Espacial 10. Transição Hierarquia e Núcleo 11. Setores 12. Estratificação 13. Geometria da Construção 14. Elementos Básicos, Modificadores e com Mais de uma Função 15. Campos Visuais

53


7.2.1. Identificação do lugar Simon Unwin dedica o primeiro capítulo inteiro de “A análise da arquitetura” à identificação do lugar. O autor afirma que o “lugar” em si é uma consequência de estar no mundo, entendendo que “situar-nos é um requisito a priori para nossa existência” (Unwin, 2013, p. 24). Ele explica que “lugar” não possui uma definição, mas pode ser entendido a partir de passos, o primeiro dos quais: “‘Lugar’ é onde a mente toca o mundo” (Unwin, 2013, p. 27). A partir dessa afirmação, sabendo que “mente” é uma propriedade humana, entendemos que o lugar é o território sob o domínio ou ato humano, apropriado não apenas pelo seu corpo e presença física, mas por seu intelecto, sua percepção de espaço. Em seguida, esse lugar pode ser modificado por uma construção, por uma arquitetura, a qual estabelece a mediação entre seu morador e o mundo ao redor. Unwin ainda afirma que a identificação desses lugares e sua organização possibilita que se entenda o mundo, e tal identificação é feita por meio de um ato de “arquitetura”, que pode ser desde o mais primitivo até o mais complexo. Segundo Unwin, “podemos explorar e ilustrar melhor a ideia de que a identificação do lugar está no núcleo gerador da arquitetura” (Unwin, 2013, p. 22) . Essa exploração e ilustração é inconscientemente muito bem executada por Joseph Rykwert em “A casa de Adão no Paraíso”, onde por diversas vezes o autor caracteriza a identificação do lugar sem citá-la nesses termos. O livro, buscando as origens da concepção da “casa” a partir de vários autores, leva ao entendimento de que a identificação do lugar está sempre no primeiro ato de “construção” da cabana primitiva. Trata-se de uma delimitação entre o espaço conquistado e apropriado do espaço externo ao domínio do sujeito. É um ato involuntário, consequência da necessidade da construção de um abrigo. Os autores reunidos por Rykwert têm diferentes opiniões sobre qual seria o formato e o material da cabana primitiva, entretanto, em todos eles a identificação do lugar fica clara, podendo ser a presença de uma fogueira, de um mastro, de uma delimitação perimetral feita com pedras ou mesmo a implantação da cabana em si. Nas casas de Abrahão Sanovicz e de Paulo Bastos, a identificação do lugar acontece de maneiras distintas.

54


Residência Abrahão Sanovicz A

identificação

do

local

acontece aqui a partir de uma linha vertical que, como afirma Ching é utilizada desde as civilizações mais remotas para marcar uma posição no espaço, celebrar um acontecimento importante etc (Ching, 2008, p. 10). Em Figura 33: Identificação do lugar – residência Abrahão Sanovicz. Fonte: da autora

suma, um elemento retilíneo marca a presença humana no local, uma ação voluntária e inteligente que optou por

erguer marco. A casa se desenvolve em dois pavimentos acima do nível da rua, verticalidade que é acentuada pelo posicionamento da caixa d’água e pela noção de que há um andar abaixo. Residência Paulo Bastos

Figura 34: Identificação do lugar – residência Paulo Bastos. Fonte: da autora

O que ocorre nesse caso é a elevação da residência com relação ao nível da rua, o que coloca a obra em uma espécie de pedestal, mesmo que a construção em si seja discreta. Desse modo, o que indica o local da casa nesse caso é a rampa ascendente que dá acesso à entrada.

55


7.2.2. Eixos Pause e Clark utilizam eixos para a análise de simetria e equilíbrio das edificações abordadas em “Arquitectura – temas de composición”. Também encontramos essa estratégia em Ching, onde o autor considera o eixo “talvez o meio mais elementar de organizar formas e espaços na arquitetura” (Ching, 2008, p. 322). Baker também aborda de maneira direta e objetiva a análise da arquitetura com base em eixos (Baker, 1998, p. 10). De maneira um pouco diferente, Unwin mostra os eixos como ferramenta utilizada para análise de outras coisas, como das geometrias de construção, da geometria ideal ou da organização dos espaços, evidenciando paredes paralelas, diagonais, simetrias etc (Unwin, 2014, pp. 27-33; 133; 153-154; 185; 207). Para traçar os eixos das residências estudadas, procurou-se identificar as principais direções de construção da obra e os pontos determinantes de divisão de ambas. Dessa forma, encontrou-se um número diferente de eixos estruturais da forma em cada uma das plantas.

56


Residência Abrahão Sanovicz A planta é concebida dentro de um plano ortogonal com dois eixos bem definidos. Entretanto, sua disposição não resulta em partes simétricas em todas as direções. Enquanto o eixo horizontal corta a planta em partes iguais, o eixo vertical está deslocado para a Figura 35: Eixos - residência Abrahão Sanovicz. Fonte: da autora

direita.

Desse

contribuem

para

modo, a

os

eixos

percepção

do

equilíbrio e da simetria dessa planta claramente retangular. Residência Paulo Bastos Os eixos são dispostos a partir dos mesmos princípios da outra, mas nota-se aqui a presença de um segundo eixo vertical, de modo que a planta é dividida em seis quadrantes. Assim como a anterior, o eixo horizontal se encontra na metade da planta, e os eixos verticais são deslocados de acordo com as divisas importantes entre ambiente. Nota-se aqui

Figura 36: Comparação entre as residências – eixos. Fonte: da autora

maior

aproximação

entre

as

dimensões dos quadrantes do que na planta da outra casa, além de ficar clara relação forte com a forma quadrada.

57


7.2.3. Simetria e Equilíbrio Essa análise complementa o diagrama de eixos apresentado anteriormente e possibilita a visualização da solução do arquiteto sob a perspectiva da forma e de como ela induz ao observador a percepção do equilíbrio e da simetria. Residência Abrahão Sanovicz O eixo de simetria é horizontal, e a planta pode ser dividida em quatro quadrantes de tamanhos distintos, dois maiores e dois menores. O equilíbrio da planta não é uniforme, pois os retângulos maiores parecem comprimir os menores.

Figura 37: Simetria e Equilíbrio - residência Abrahão Sanovicz. Fonte: da autora

58


Residência Paulo Bastos O eixo de simetria é horizontal, e separa o desenho em dois trios de retângulos de tamanhos iguais, dispostos de acordo com as divisas da planta. Os seis retângulos evidenciam o equilíbrio uniforme e estático que o arquiteto atingiu nesse projeto.

Figura 38: Simetria e Equilíbrio - residência Paulo Bastos. Fonte: da autora

59


7.2.4. Planta e Corte É comum encontrar correspondências de solução entre planta e corte. Clark & Pause consideram que a análise de planta e corte revela a relação entre as dimensões vertical e horizontal a como as decisões em uma delas pode influenciar os resultados da outra.p. 219 Residência Abrahão Sanovicz A opção que o arquiteto faz por construir sua casa a partir de um monobloco de concreto apoiado sobre quatro pilares fica evidente nessa análise. Tanto em planta como em corte a se nota a unidade de um retângulo maior formado pelos retângulos menores. A mesma relação apresentada no diagrama de simetria e equilíbrio, em que os retângulos da esquerda parecem comprimir os da direita, aparece aqui em planta e em corte.

Figura 39: Planta e Corte - residência Abrahão Sanovicz. Fonte: da autora

60


Residência Paulo Bastos Fica clara a segmentação da planta e do corte em três partes. Isso ocorre devido a dois “limites” delineados pelo arquiteto primeiro pela locação do bloco de serviços e da garagem separando a entrada da casa da rua, e depois pelo desnível que, mesmo sendo permeável, não deixa de ser um divisor em planta e em corte.

Figura 40: Planta e Corte - residência Paulo Bastos. Fonte: da autora

61


7.2.5. Modulação O uso de um módulo para a composição da planta é uma estratégia muito comum entre os arquitetos modernos. A modulação traz vantagens construtivas como a racionalização da planta e da possibilidade de se usar pré-fabricação. Para além disso, a planta modular facilita possíveis reformas e mudanças de layout, visto que muitas peças podem ser reaproveitadas e rearranjadas de acordo com novas necessidades. Em particular na residência Abrahão Sanovicz, a modulação possibilitou que a grande maioria das peças originais de piso e vedação fossem aproveitadas mesmo com grandes alterações na planta. Residência Abrahão Sanovicz Não fica claro aqui se o módulo vem como gerador da planta ou sua divisão posterior. Ele corresponde à medida de cada duas placas dos planos de vidro, e poderia ser subdividido quantas vezes se desejasse. Suas proporções quase configuram um quadrado, mas ainda se trata de um retângulo.

Figura 41: Modulação - residência Abrahão Sanovicz. Fonte: da autora

62


Residência Paulo Bastos Assim como no caso anterior, o módulo retangular se aproxima muito a um quadrado apesar de não ter todos os lados iguais. Além disso, aqui também não é possível inferir se o módulo é ponto de partida ou consequência da planta, podendo ainda ser subdividido sem restrições. É possível que esse módulo tenha servido como guia dos traços básicos da planta, entretanto, nota-se a liberdade do arquiteto em não se prender a ele e adequar o desenho da planta às melhores soluções.

Figura 42: Modulação - residência Paulo Bastos. Fonte: da autora

63


7.2.6. Insolação A orientação de uma casa com relação ao sol é importante para o planejamento da iluminação natural que poderá ser aproveitada no projeto. A orientação do lote e da rua com relação ao norte é variada, de forma que se torna muito importante compreender as estratégias adotadas por cada arquiteto para balancear a planta induzida pela localização da rua com a planta que melhor se comporta frente ao trajeto do sol. Residência Abrahão Sanovicz O lote tem a frente voltada para noroeste, o que significa que a fachada da construção seria inevitavelmente atingida pela intensa insolação do poente. Como estratégia para combater o excesso de calor, vemos o arquiteto adotar um generoso beiral no térreo, sob o qual se encontra a varanda da entrada. No andar superior, os quartos dos filhos são protegidos por um corredor coberto, um corredor aberto e um anteparo de concreto com uma única abertura. Dessa forma, a luz natural penetra os quartos nos horários em que o sol está mais alto, enquanto é barrada pelo anteparo quanto este está se pondo. A fachada posterior da casa fica orientada para sudeste, de modo que a sala de jantar e o quarto do casal recebem uma insolação suava na parte da manhã. Desse modo, o arquiteto não se esforça em barrar o sol nessa orientação.

Figura 43: Insolação – residência Abrahão Sanovicz. Fonte: da autora

64


Residência Paulo Bastos Com a frente do lote orientada para sudoeste, o arquiteto não podia contar com uma boa insolação na fachada frontal. Desse modo, encontramos uma fachada com poucas aberturas. Os cômodos adjacentes a ela usufruem principalmente de uma iluminação zenital (a cozinha por meio de janelas altas orientada para noroeste e a sala de jantar pela cobertura transparente do próprio pátio interno). No piso superior, o arquiteto alocou todos os quatro quartos na fachada Nordeste, de modo que estes são iluminados na maior parte do dia. Embaixo, a sala de estar e o escritório estão na mesma orientação, mas são separados do quintal por uma varanda coberta, que proporciona uma boa sombra. Desse modo, a ocupação das áreas comuns é estimulada em detrimento das áreas privadas, já que tendem a manter uma temperatura mais amena.

Figura 44: Insolação – residência Paulo Bastos. Fonte: da autora

65


7.2.7. Materiais A materialidade de uma obra arquitetônica pode revelar seu posicionamento perante seu período de construção, mas além disso, ela também é ponto chave para a compreensão da ambiência criada para o sujeito que a habita. Nos casos estudados, encontramos forte associação entre os materiais utilizados e o movimento moderno. O concreto e o vidro aparecem como métodos construtivos associados a alta tecnologia durante todo o século XX. O tijolo, por sua vez, remete à arquitetura tradicional brasileira, e era um material muito apreciado por diversos arquitetos da Escola Paulista. O próprio Artigas o empregava como um elemento de antítese que denunciava a dependência do Brasil de seus elementos tradicionais frente ao desenvolvimentismo dos governos desde JK. Residência Abrahão Sanovicz A materialidade que mais chama atenção é a do concreto, que dá forma ao bloco singular que define a residência. Internamente, entretanto, o papel do vidro se torna mais evidente. Os dois planos transparentes do térreo são essenciais para a continuidade entre interior e exterior que é apresentada também no diagrama de campos visuais. O uso do tijolo não tem propósito de explorar sua materialidade, sendo que é usado para construção de divisórias internas e aparece sempre revestido e pintado, como acontece no caso da parede entre a cozinha e a área social.

Figura 45: Materiais - residência Abrahão Sanovicz. Fonte: da autora

66


Residência Paulo Bastos Diferentemente da outra residência, na casa de Paulo Bastos a alvenaria é visível logo da rua, enquanto as duas empenas de concreto ficam discretamente colocadas nas laterais. No interior, a materialidade do tijolo entra constantemente em contraste com a do concreto. Além dessas duas, ainda encontramos o revestimento amarelo e áspero usado pelo arquiteto para realçar os volumes as paredes curvas. A quarta materialidade que aparece é a do vidro, que, assim como no caso anterior, cria uma barreira transparente entre dentro e fora.

Figura 46: Materiais – residência Paulo Bastos. Fonte: da autora

67


7.2.8. Circulação e Acessos A análise da circulação e dos acessos de um edifício revela um pouco da experiência do visitante. Mapear a circulação pode mostrar se o arquiteto pensou em caminhos labirínticos ou diretos, o que pode influenciar na percepção do espaço. A localização dos acessos da residência é importante para o entendimento de sua relação com a rua e com o lote, além de expor a facilidade ou dificuldade de penetrar o edifício. Residência Abrahão Sanovicz A casa tem dois pontos de acesso, são eles a entrada principal, elevada com relação à rua, e a escada caracol que desce para garagem e jardim dos fundos. O primeiro, uma vez vencido o desnível, é mais amplo e convidativo, enquanto o segundo se caracteriza como um acesso secundário. A circulação dentro da residência é prevista de maneira direta e racional por meio de linhas ortogonais. Nota-se claramente uma circulação principal ao longo da parede da cozinha, a partir da qual saem outros caminhos que dão acesso a cada cômodo.

Figura 47: Acessos e Circulação - residência Abrahão Sanovicz. Fonte: da autora

68


Residência Paulo Bastos A partir do jardim dos fundos, os acessos são amplos e fáceis. O único acesso mais restrito é o de serviço, localizado fora da visão direta da rua no corredor lateral da casa. O acesso principal, apesar de direto e fácil está recuado sob a cobertura da garagem, o que lhe confere uma característica mais reservada. Quanto à circulação, nota-se que possui menos continuidade que a casa de Sanovicz. A circulação principal é direta e curta, levando da entrada à área social do semi-piso inferior. A partir dela têm origem as circulações secundárias que se desdobram para alcançar todos os cômodos.

Figura 48: Comparação entre as residências - circulação e acessos. Fonte: da autora

69


7.2.9. Continuidade Espacial Uma forte característica das obras da Escola Paulista é a preocupação dos arquitetos em criar espaços amplos e contínuos. Em muitos casos, a continuidade se dá desde a rua, como é o caso da FAU-USP, onde o térreo é totalmente aberto. Mas tal continuidade também pode se dar na vertical, com o uso de pés direitos mais altos com a vista livre para os andares que o acompanham, como também ocorre na FAU. A análise aqui presente tem o objetivo de tornar visível a continuidade espacial em ambas as residências, e como ela se dá tanto em planta quanto em corte. Residência Abrahão Sanovicz Aqui, a ausência de portas intensifica a continuidade espacial. O pavimento social é completamente permeável tanto pelo olhar quanto pelo corpo, e essa relação se dá desde o lado de fora, atravessando a casa de varanda a varanda até mesmo para o olhar de quem está na rua. Em corte, o pé direito duplo tem desempenho fundamental na continuidade espacial, contribuindo para a sensação de amplitude.

Figura 49: Continuidade Espacial - residência Abrahão Sanovicz. Fonte: da autora

70


Residência Paulo Bastos O bloco dos serviços e da garagem barram a continuidade espacial na casa de Paulo Bastos. Por outro lado, o espaço interno se integra com o externo por meio do pano de vidro da varanda. O pé direito mais alto no nível de entrada também contribui para a sensação de amplitude, sendo que o olhar chega facilmente ao pavimento dos quartos e ao pergolado sobre o pátio interno.

Figura 50: Continuidade Espacial - residência Paulo Bastos. Fonte: da autora

71


7.2.10. Transição Hierarquia e Núcleo Para Unwin “a experiência com a transição e a hierarquia em um espaço, bem como seu clímax dentro de um edifício (ou jardim, ou cidade) é uma das dimensões mais poderosas usadas pelos arquitetos para orquestrar a experiência humana” (Unwin, 2013, p. 208). Nos casos estudados, encontramos semelhanças quanto às áreas de transição, presentes nas áreas entre a casa e sua área externa. Como principais diferenças, encontramos a presença e ausência de núcleo (respectivamente em Bastos e Sanovicz). Residência Abrahão Sanovicz O que se observa na casa é a clara transição entre dentro e fora feita pelas áreas próximas aos planos de vidro das extremidades frontal e dos fundos. Na primeira, esse papel é desempenhado pela varanda externa, enquanto na segunda há uma faixa de piso frio entre a sala de jantar e o pano de vidro que funciona como mirante ou mesmo uma varanda interna, e que é acompanhada por uma claraboia que rasga toda a extensão da cobertura. A escada também é uma área de transição, não estabelecendo uma continuidade entre os ambientes que liga. A relação entre a área servente (cozinha) e as áreas servidas (salas de estar e de jantar) é equilibrada por sua disposição, sendo que o acesso das servidas para a servente é facilitado pelo seu caráter de corredor, com abertura em ambas as extremidades. Desse modo, o projeto dilui a hierarquia entre áreas servidas e serventes e não apresenta um núcleo organizador dos espaços, fato devido também à ideia de planta livre que Sanovicz explora nessa casa.

Figura 51: Transição, hierarquia e núcleo - residência Abrahão Sanovicz. Fonte: da autora

72


Residência Paulo Bastos A transição entre externo e interno também se faz presente nessa obra. Na fachada anterior, a rampa de entrada leva o visitante gradativamente a deixar a rua e adentrar na casa, efeito acentuada pela cobertura da garagem. Já na fachada posterior, o pano de vidro dá acesso à varanda dos fundos, que também desempenha o papel de área de transição entre ambiente interno e externo. A separação entre áreas serventes e servidas é clara, mas mesmo assim nota-se o cuidado em manter a cozinha próxima da sala de jantar. Ao contrário do que ocorre no caso anterior, o agrupamento dos serviços também é uma estratégia otimizadora, já que possibilita que diversas atividades ocorram ao mesmo tempo. O desnível entre os pisos, nesse caso, não representa ruptura entre dois ambientes, mesmo assim, as escadas ainda desempenham papel de áreas de transição. Apesar de integrarem as áreas servidas de maneira contínua, ainda criam uma ambiência de mudança entre dois níveis. Ao contrário do caso anterior, a residência é toda organizada ao redor de um núcleo: o jardim interno. Esse núcleo ganha importância a partir do momento em que todos os cômodos, e níveis têm sua disposição influenciada por ele. Trata-se, em suma, do ponto chave para entendimento do projeto.

Figura 52: Transição, hierarquia e núcleo – residência Paulo Bastos. Fonte: da autora

73


7.2.11. Setores Evidenciar os setores privado, social e de serviços leva a uma melhor compreensão sobre o raciocínio do arquiteto. A disposição de cada uma das partes, a relação entre elas e o fato de estarem dispostas cada uma em um único bloco ou dissipadas ao longo da construção são fatores que informam sobre as dinâmicas de convivência criadas no edifício. A setorização de ambas as casas só pode ser entendida em corte, como é o caso de grande parte das obras de diversos autores da Escola Paulista. É a partir do corte que melhor se pode compreender a distribuição de serviços, áreas comuns e privadas nos diferentes pisos e as relações que mantém entre si. Residência Abrahão Sanovicz Nota-se que o arquiteto instala as áreas de serviço em todo o andar inferior, onde aloca a garagem, as dependências de empregada e a lavanderia. Interessante ressaltar aqui o uso do tijolo na construção da dependência de empregada, o que sugere um cômodo temporário, que será removido de acordo com o desenvolvimento dos costumes de uma sociedade na qual a necessidade de uma empregada doméstica que mora com os patrões seria logo descartada. Com a locação desses serviços que ocupam muito espaço no andar menos nobre da residência, Sanovicz livra o térreo para poder distribuir nele as áreas comuns e a cozinha que, ainda sendo um serviço, depende de sua proximidade com a sala de jantar para funcionar com eficiência. O pé direito duplo da sala de jantar intensifica a percepção das dimensões da área de convivência. As áreas privadas localizadas no piso superior têm caráter bastante reservado, estando mais de 3m acima do térreo, e tendo o acesso vertical por meio de uma escada de dois lances, que quebra a visibilidade que sujeito tem de seu destino.

Figura 53: Setores – residência Abrahão Sanovicz. Fonte: da autora

74


Residência Paulo Bastos Os serviços são alocados por toda a faixa de entrada da casa, seguida pelas áreas comuns. Mesmo com essa disposição em faixas, o arquiteto teve o cuidado de manter a cozinha o mais próximo possível da sala de jantar, seguindo uma estratégia funcional. Assim como na outra residência, os cômodos privados são dispostos no andar superior. Mesmo separados e com o acesso claramente restrito e sua visão controlada por um anteparo de concreto, ainda se pode ver do térreo o corredor de distribuição dos quartos, de maneira que a impressão de permeabilidade do espaço permanece. Da mesma maneira, a fluidez entre o andar de entrada e o semipiso abaixo é intensificada e pela continuidade das áreas comuns e pela visão do jardim através do pano de vidro.

Figura 54: Setores – residência Paulo Basto. Fonte: da autora

75


7.2.12. Estratificação A estratificação de uma edificação é uma estratégia de organização do espaço a partir do estabelecimento das relações verticais entre suas camadas e da relação destas com o chão e com o céu. É, portanto, a relação dos cortes e elevações da obra com seu exterior e com seu interior. Se há uma tendência por parte de muitos arquitetos em dar ênfase às duas dimensões que conformam o plano, é porque a gravidade nos prende ao chão e nos obriga a movimentarnos dessa forma (Unwin, 2013, p. 193). Mas Simon Unwin, ilustra por meio de diversos projetos, como as relações verticais são importantes para compreender a riqueza arquitetônica de diversos projetos. Para Uniwin “a estratificação na arquitetura não se resume à organização do espaço; ela também inclui a orquestração sutil e marcante da experiência humana com relação ao solo, ao mundo subterrâneo e ao céu” (Unwin, 2013, p. 200). Desse modo, o que se tira da análise da estratificação é uma percepção que muitas vezes é ofuscada por se dar maior importância à planta baixa. Diversas análises aqui feitas têm como desenho base o corte das casas, essas análises informam o diagrama aqui presente e viceversa. O que se faz mais presente neste diagrama são as linhas de ascendência entre os pisos e sua relação com a setorização entre as áreas comuns e privadas já apresentadas anteriormente. Residência Abrahão Sanovicz Os diagramas deixam clara a separação entre os três pisos, bem como entre os setores comum e privado. Diante de tal segregação, a ligação entre os pisos é feita sempre por escadas

Figura 55: Estratificação - residência Abrahão Sanovicz. Fonte: da autora

76


cuja ascensão é direta e drástica. Fica também evidente o pé direito duplo junto à fachada dos fundos e a relação de mirante que estabelece com o exterior.

77


Residência Paulo Bastos Aqui o que fica mais claro é o uso do desnível na constituição das dinâmicas de fluxo da casa. A bifurcação vertical a partir do piso de entrada se dá de maneira suave, ligando suavemente este piso ao setor privado acima e à continuação do setor comum abaixo. Trata-se de uma estratégia que garante a fluidez do espaço, além de ancorar a residência à terra. A ascendência do sujeito até a entrada para sua posterior descida para o estar resulta em uma reaproximação com o chão que, junto ao pátio interno, resulta na sensação de que a casa se acomoda naturalmente ao terreno de tal forma que pertence a ele.

Figura 56: Estratificação - residência Paulo Bastos. Fonte: da autora

78


7.2.13. Geometria da Construção A análise da geometria de uma construção pode trazer informações diversas como o material e técnica construtivas, as atividades às quais um cômodo está destinado ou a experiência que se espera proporcionar ao sujeito. Residência Abrahão Sanovicz A geometria da construção aqui é simples, constituída de três paredes paralelas que organizam os espaços de forma linear dentro dos quatro pilares que são a estrutura de todo o monobloco. O uso de “paredes paralelas” é uma estratégia para a criação de um espaço que induza a travessia e o fluxo. Isso fica evidente na cozinha e no espaço de circulação criado ao longo da parede que a divide da área social. A presença da escada como elemento de separação entre as salas estabelece um obstáculo à passagem livre, que fica restrita à circulação citada. A combinação entre as paredes paralelas e o elemento de separação estabelece dois ambientes de permanência ligados pela circulação.

Figura 57: Geometria da Construção - residência Abrahão Sanovicz. Fonte: da autora

79


Residência Paulo Bastos Apesar de o princípio gerador da casa ser também as duas empenas paralelas apoiadas em quatro apoios, as paredes internas subdividem o espaço de forma a criar outras composições de espaço. As linhas de força encontradas têm, três configurações diferentes: o quadrado fechado, as disposições em “U” e em “L”. O quadrado fechado consiste em quatro paredes que delimitam um ambiente recluso e separado de seu exterior. O uso dessa estratégia nas dependências de serviço demonstra a intensão do arquiteto de manter clara a distinção entre essa área e o restante da casa. A conformação do ambiente em “U” remete a uma quase reclusão com uma única direção possível de fluxo, formato muito adequado à sala de jantar, local onde as refeições devem ser feitas em ambiente aconchegante e seguro. O escritório e a sala de estar estão apoiados em duas paredes que formam um “L”. Essa acomodação do espaço produz um ângulo aberto de visão e fluxo, de maneira que a dimensão total do ambiente é muito maior. Tal efeito é conseguido por conta do pano de vidro que separa esses ambientes do jardim, entretanto, no caso do escritório, a estante se torna um elemento de separação, o que faz com que esse ambiente seja mais recluso.

Figura 58: Geometria da construção – residência Paulo Bastos. Fonte: da autora

80


7.2.14. Elementos Básicos, com Mais de uma Função e Modificadores do Espaço Elementos básicos são aqueles que não influenciam o espaço em dimensões além da construtiva, ou seja, o papel que desempenham não vai além daquele previsto pela construção em si. Elementos com mais de uma função são aqueles que tem papel além do previsto apenas em dimensões construtivas, podendo servir como ponto de referência, apoio ou qualquer coisa que não seja seu papel estrutural. Elementos modificadores do espaço já têm uma influência muito mais subjetiva, pois, além de terem mais de uma função eles alteram a percepção do espaço, ou seja, se fossem diferentes (em tamanho, material etc), a percepção que o sujeito tem do espaço também seria outra. Residência Abrahão Sanovicz Como elementos básicos encontramos os pilares e as paredes divisórias internas. As paredes externas, por sua vez, têm mais de uma função, uma vez que além de desempenharem as funções de uma parede externa ainda servem para emoldurar os panos de vidro em ambas as extremidades, além de serem estruturais e conformarem todo o volume da residência. Já os planos de vidro em si e as varandas (externa e interna) são elementos modificadores do espaço, uma vez que têm papel fundamental na percepção do sujeito sobre as dimensões dos ambientes e os limites entre dentro e fora, que se mesclam.

Figura 59: Eelementos básicos, com mais de uma função e modificadores do espaço – residência Paulo Bastos. Fonte: da autora

81


Residência Paulo Bastos Os elementos básicos aqui são os estruturais e praticamente todas as paredes divisórias. Algumas divisórias, entretanto, apresentam mais de uma função, são elas as paredes curvas do lavabo e da copa, revestidas de amarelo. Estas paredes, além de dividir o espaço ainda funcionam como ponto de referência e atração do olhar, contribuindo para a orientação do sujeito dentro da residência. Como elementos modificadores do espaço encontramos, em primeiro lugar, o pátio interno. Trata-se de um elemento sem o qual toda a organização da residência perderia o sentido. A iluminação zenital que penetra toda a casa a partir da cobertura do jardim também modifica a percepção do espaço ao redor. Em segundo lugar, as escadas também são essenciais para a percepção do espaço. Sua localização, inclinação e justaposição são essenciais para compreender o desnível do terreno e para manter a continuidade entre os níveis, pelos quais se passeia de maneira suave. Por último, o pano de vidro e a varanda influenciam diretamente a percepção do espaço interno e externo da mesma maneira que ocorre na casa de Sanovicz.

Figura 60: Eelementos básicos, com mais de uma função e modificadores do espaço – residência Paulo Bastos. Fonte: da autora

82


7.2.15. Campos Visuais A análise de campos visuais permite identificar como a localização e o dimensionamento das aberturas estabelece o enquadramento da paisagem apreendida pelo sujeito. Quanto mais ampla a visão do exterior, mais diluída fica a percepção do limite entre dentro e fora. Ambas as residências possuem aberturas amplas que reforçam a ideia de permeabilidade. Residência Abrahão Sanovicz O diagrama deixa claro o papel dos planos de vidro nas extremidades do monobloco. Em conjunto com as paredes paralelas, esses planos transparentes acentuam a ideia de travessia. As outras aberturas são pequenas, e têm mais o papel de providenciar iluminação e ventilação do que de fornecer uma vista. No piso superior, a varanda do quarto de casal possibilita uma ampla visão do exterior, enquanto a visão do corredor que liga os quartos dos filhos ao banheiro é interrompida pelo anteparo de concreto, com uma única brecha onde este possui uma abertura.

Figura 61: Campos visuais – residência Abrahão Sanovicz. Fonte: da autora

83


Residência Paulo Bastos Os campos visuais mais amplos aqui são os da sala de estar e do escritório, voltados para a varanda e para o jardim dos fundos. Além destes, há campos visuais voltados ao jardim interno, que traz pare da natureza exterior para dentro da casa, criando uma paisagem visível a partir dos diversos níveis. A área de serviço e a cozinha são servidas por aberturas pequenas mais baixas que a altura dos olhos, providenciando iluminação e ventilação, mas possibilitando a vista somente a certa distância.

Figura 62: Campos visuais – residência Paulo Bastos. Fonte: da autora

84


8. Considerações Finais Diante de toda a análise feita, nota-se como são numerosos e complexos os fatores que aproximam e distanciam uma residência da outra. Desde o levantamento teórico e estudo das biografias até a determinação de quais diagramas seriam feitos e como representa-los, esse estudo passou por etapas de reunião bibliográfica e criação analítica baseada em diversos autores. O arcabouço teórico conquistado na primeira etapa dessa pesquisa possibilitou que se tivesse um conhecimento aprofundado sobre o contexto da formação dos arquitetos e da biografia de cada um. Desse modo, ao analisar os casos de estudo, nota-se logo sua relação com as “casas introspectivas” de Vilanova Artigas analisadas por Vazquez Ramos. Esse fator, associado diretamente ao regime militar em voga na época de projeto e construção dessas casas, é um dos principais fatores de aproximação dos projetos, culminando, em ambos, na criação de espaços internos generosos e grandes aberturas para os fundos do lote. Além dele, o brutalismo da Escola Paulista e a ortogonalidade das formas também se mostram evidentes em ambas as casas. Particularmente sobre a residência

Abrahão

Sanovicz,

nota-se a semelhança com a Maison Citrohan (1927), de Le Corbusier, parte do conjunto habitacional Weissenhofsiedlung da

exposição

Werkbund

em

do

Deutscher

Stuttgart.

Os

recortes no anteparo de concreto Figura 63: Maison Citrohan le Weissenhof. Fonte: Fondation Le Corbusier (http://www.fondationlecorbusier.fr/corbuweb/morpheus.aspx?sysId= 13&IrisObjectId=5562&sysLanguage=en-en&itemPos=37&itemCount= 78&sys ParentId=64&sysParentName=)

e nas empenas laterais, bem como os planos de vidro que

rasgam fachadas inteiras são correspondências claras entre as duas obras, como também é o pé direito mais alto em parte do térreo. Já a residência Paulo Bastos tem referências claras na casa José Taques Bittencourt de Villanova Artigas, mas também em outras similares projetadas pelo mesmo arquiteto, tendo como características mais marcantes o uso de um pátio e de seminíveis para a acomodação do programa. 85


Figura 64: Corte da residência Taques Bittencourt. Fonte: Arquivo Arq (http://www.arquivo.arq.br/residencia-taques-bittencourt-ii?lightbox=image_1xv)

Perante a análise realizada nesse estudo, fica mais claro o papel do “detalhe” na obra desses arquitetos. O detalhe não está apenas no desenho técnico e preciso do trilho de ume esquadria ou na especificação da maçaneta da porta, o detalhe mais importante de uma obra é desenvolvido gradativamente desde sua concepção inicial. As reentrâncias na empena lateral da casa de Paulo Bastos têm propósito claro de abrigar o mobiliário embutido da cozinha, sala de jantar e escritório, e o mesmo ocorre nos quartos, onde essa solução cria na fachada um jogo de volumes rico, pensado como consequência de uma solução funcional. Um simples detalhe de mobiliário que contribui para o acabamento final da fachada. Trata-se apenas de um dos diversos exemplos que podem ser encontrados nas residências de ambos os arquitetos estudados, cada traço da planta e do corte são pensados em todos os seus efeitos, em todas as dimensões. Outro ponto importante a ser destacado diz respeito ao princípio em comum que caracteriza as obras da Escola Paulista. Diversas obras de diferentes arquitetos são enquadradas pela historiografia como pertencentes a essa escola, mesmo que muitas vezes sejam bastante diferentes ou únicas. Entretanto, como pôde-se confirmar por meio das entrevistas, todas elas têm em comum uma maneira de projetar inaugurada por Artigas e consolidada na residência Taques Bittencourt II. Essa maneira de projetar vai muito além das paredes paralelas apoiadas em quatro pilares, sua dimensão de maior importância é o projeto em corte. O desenho do corte das obras da Escola Paulista é essencial para a compreensão completa da obra, e não é diferente para os dois casos de estudo abordados nessa pesquisa. As obras desses arquitetos não podem ser completamente entendidas apenas por sua planta, pois estabelecem relações verticais muito ricas entre seus pavimentos e mesmo com o exterior. Quando se pensa, por exemplo em uma planta de Mie Van der Rohe (como o pavilhão de Barcelona, por exemplo), as relações estabelecidas pelo arquiteto se dão todas no plano do pavimento, muito diferente do que ocorre, por exemplo, no prédio da FAU-USP, onde só é possível compreender a obra quando, além das plantas dos pisos, se tem também cortes.

86


A construção formal feita pelos arquitetos da Escola Paulista a partir do corte culmina muitas vezes em soluções diferentes, mas que possuem uma linguagem similar. Não raras vezes se observa um espaço em galeria onde o pé-direito é mais alto, muitas vezes acompanhado de alguma iluminação zenital. Na casa de Sanovicz esse espaço está entre a escada e a varanda dos fundos, onde hoje é a sala de jantar, enquanto na casa de Bastos é toda a faixa que vai da sala de jantar até o jardim interno. Há também uma ideia de abertura para a rua ou para o quintal, além da criação de um espaço fluido por toda a casa. No caso de Paulo Bastos, esse espaço se dá no interior e é aberto para os fundos, já no caso de Abrahão Sanovicz, a fluidez corta o piso social de varanda a varanda. Com todos esses fatores em mente, parece que a realização de uma análise e leitura gráfica se torna insuficiente para até desnecessária para analisar uma obra. Entretanto, o que ocorre é que apenas através de tal análise é possível chegar a uma compreensão global da obra. A análise de cada parte possibilita um aprofundamento em cada uma de suas características, o que é impossível em uma análise geral. O que a análise gráfica possibilitou nesse estudo foi a melhor compreensão das similaridades e diferenças das duas obras com relação a diversos aspectos. É possível, a partir da leitura atenta de cada diagrama, entender, em cada casa, quais elementos desempenham qual papel e por quê. Por exemplo a diferença no papel das escadas, que em Sanovicz aparece como elemento com mais de uma função e em Bastos como modificador do espaço. Esse tipo de conclusão só é possível em uma escala de variáveis reduzidas e resultados evidentes ao olhar como se consegue em uma análise gráfica. Outra leitura possibilitada pela análise gráfica é a partir de pranchas síntese que reúnam lado a lado os diferentes diagramas. A organização dos resultados em uma prancha síntese contribui para uma análise geral e simultânea das casas. Sendo assim, as pranchas apresentadas a seguir têm o objetivo de prover um panorama amplo para que uma análise generalizada seja feita e possibilitar, a partir disso, uma comparação sintética dos aspectos mais relevantes das residências.

87


Figura 65: Residência Abrahão Sanovicz - prancha síntese 1. Fonte: da autora

88


Figura 66: ResidĂŞncia Paulo Bastos - prancha sĂ­ntese 1. Fonte: da autora

89


Figura 67: Residência Abrahão Sanovicz - prancha síntese 2. Fonte: da autora

90


Figura 68: ResidĂŞncia Paulo Bastos - prancha sĂ­ntese 2. Fonte: da autora

91


Após destrinchar todas as características de cada uma das casas, pode-se chegar a uma síntese sobre os principais pontos em que elas se assemelham ou não. Com isso em mente, alguns tópicos ganham maior destaque na comparação entre as residências: Estratificação: o céu e o chão De maneira geral, um ponto que chama atenção é a relação estabelecidas pelas casas com o chão e com o céu. Segundo a perspectiva de Simon Unwin, a estratificação de uma obra é uma estratégia de organização do espaço que estabelece relações verticais tanto em seu interior quanto em seu exterior, e está mais ligada à experiência do sujeito do que à aparência da obra em si (Unwin, 2013, pp. 93-94). Desse modo, é possível que uma obra de arquitetura seja mais voltada ao céu ou ao chão dependendo das relações que estabelece a partir de sua estratificação, da maneira como organiza os espaços verticalmente e da maneira como guia a experiência do sujeito através da obra. Nesse sentido, a residência de Abrahão Sanovicz faz da área social um patamar elevado com relação ao nível mais baixo do terreno, quase como um mirante a partir do qual se tem a vista da cidade. Ao contrário, a residência de Paulo Bastos tem uma fluidez de espaços sociais descendentes, que dá a impressão de que se está penetrando no solo, sendo que a área social e a varanda do piso inferior estão em nível com o jardim dos fundos. Com isso, notamos uma diferença no trabalho dos arquitetos com relação ao exterior. Se por um lado ambos mesclam dentro e fora por meio dos planos de vidro que criam amplos campos de visão, por outro, os “exteriores” em questão são diferentes. O “exterior” de Sanovicz está à altura das copas das árvores, diz mais respeito ao céu do que à terra. Já o exterior de Bastos é a terra e o que nasce dela, o que está expresso também na colocação do jardim interno com sua iluminação zenital suave, que realça o chão sem chamar atenção para o céu, que se encontra distante acima do pergolado. A relação com a rua Sobre a relação com a rua, os arquitetos adotam estratégias muito distintas, sendo que na casa de Abrahão Sanovicz, o interior é todo visível até mesmo para um observador de fora da casa. A casa de Bastos, por sua vez, esconde do passante sua transparência e amplitude interna, e a fachada mostra uma posição de negação à rua, tanto pela restrição das aberturas quanto pela elevação da casa e pelo recuo da porta de entrada. 92


Na casa de Sanovicz, o piso da área social é distanciado da rua um pouco por meio da varanda coberta, que conforma uma área de transição entre dentro e fora, e pelo desnível de mais de um metro e meio com relação à rua. Mesmo assim, como possui planos de vidro em ambas as extremidades, é possível que até um observador de fora veja o que ocorre no interior de varanda a varanda. Dessa forma, a vida particular é facilmente devassada pelo olhar do passante, o que levou inclusive à posterior colocação de um portão alto e de uma cerca que o impedissem. Mas apesar de abrir toda a área social para a rua, a casa mantém a privacidade dos quartos voltados para essa fachada, que permanecem resguardados pelo anteparo de concreto no piso superior. Ao contrário, a casa de Bastos deixa clara sua oposição à rua por meio de um a fachada sóbria, com aberturas escassas e pequenas e de acesso distante por conta do desnível que coloca a residência como que sobre um pedestal. Dessa forma, a casa se volta para o interior e para os fundos, o que pode ser interpretado como uma estratégia para fazer dela um ambiente de acolhimento e liberdade alheio ao espaço público que era cerceado pelo Regime Militar na década de 1970, encaixando-se na teoria de Vázquez sobre as casas introspectivas de Villanova Artigas (Vázquez Ramos, 2013). Devido a tal postura, o arquiteto faz uso de um pátio interno com iluminação zenital para prover o respiro da sala de jantar e trazer para o interior da casa a natureza de fora. As generosas aberturas para os fundos também acentuam a sensação de acolhimento. Não se pode concluir exatamente por qual motivo as casas adotam posturas opostas, mas o estudo levantou fatores geográficos e históricos que podem ter sido motivadores para as soluções de cada um deles. Em primeiro lugar a posição do norte é quase oposta em cada um dos lotes. Na casa de Abrahão Sanovicz, ele está na direção da rua, favorecendo aberturas nessa orientação. Já na casa de Paulo Bastos, o norte está nos fundos da casa, e a orientação da rua é sudoeste, de modo que a estratégia mais racional é evitar aberturas nessa fachada. Em segundo lugar, há as questões políticas dos períodos em que as casas foram construídas. Paulo Bastos construiu sua casa no início da década de 1970, no ápice do poder do Regime Militar. Devido a sua intensa atuação política e à sensação geral da época com relação à insegurança do espaço público, faz sentido que o arquiteto tenha projetado sua casa como um local de refúgio e reclusão seguros a suas atividades. Ao contrário, a casa de Abrahão Sanovicz já foi construída em um período de abertura política nos anos 1980, em que 93


a ideia de uma casa aberta e sem segredos que contrariasse as tradições burguesas e a própria censura do Regime já podia ser usada novamente, principalmente por um arquiteto cuja atuação política não era comprometedora, que não realizaria reuniões ilegais e não esconderia presos políticos, como Bastos fez em sua residência. As relações espaciais Um forte ponto em comum entre as residências, como ocorre em boa parte das residências da Escola Paulista, é a preocupação em estabelecer as relações entre os espaços, tanto internos como externos, com exceção do espaço da rua no caso de Paulo Bastos. Na casa de Sanovicz, a sensação que se tem é de amplitude, causada pela fluidez entre todo o espaço da área comum, desta com o exterior e pelo pé direito duplo da sala de jantar. Na casa de Bastos, logo na entrada já se vê como o plano de vidro dos fundos estabelece uma relação de integração entre dentro e fora, acentuado pelo pátio interno. Toda a fachada da sala de estar se abre para o jardim. Internamente, as relações estabelecidas entre os cômodos são feitas por aberturas generosas que garantem a fluidez dos espaços. O pátio é um elemento de respiro no interior da casa, com uma iluminação zenital que serve à sala de jantar. A estratégia dos seminíveis possibilita uma dinâmica rica de circulação e não inibe a visão entre os diferentes patamares, ao contrário, contribui para manter a continuidade entre os espaços. O jogo de níveis criado é enriquecido pelo desenho de anteparos, paredes circulares e mobiliário no próprio concreto, que se apoiam no desnível e no pátio. Partido e produto As casas possuem uma mesma estratégia inicial que se bifurca em dois resultados distintos. Ambas partem do princípio das duas paredes paralelas sobre sustentadas por quatro pontos de apoio para organizar o ambiente interno a partir de lajes e divisórias. Mas enquanto Sanovicz chega a um resultado que mantém um monobloco sustentado simetricamente por quatro pilares, Bastos não se prende à homogeneidade da estrutura e dá prioridade à solução espacial em detrimento da estrutural. Dessa forma, na residência Abrahão Sanovicz, o tratamento da obra arquitetônica como objeto de design fica claro. O volume da edificação parece ter sido esculpido a partir de um monobloco de concreto com subtrações e adições que levassem em conta o produto como um todo, de modo que a unidade da forma e o cuidado com a locação e o dimensionamento de cada abertura são evidentes. Os 94


planos de vidro nas duas fachadas reforçam o cuidado estético que o arquiteto tem. Com isso, os detalhes da composição da forma aproximam a obra da formação em design que o arquiteto teve na Itália. A planta minimalista se resume às divisórias essenciais e não possui portas, sendo resolvida em poucos traços ortogonais. Enquanto isso, Paulo Bastos não se prende de maneira invariável ao partido inicial adotado, ao contrário, explora o layout dos espaços internos e dá maior importância a suas relações do que à homogeneidade da solução estrutural. Desse modo, vemos o pilar que deveria estar na empena noroeste à altura da cozinha ser substituído por paredes estruturais. Na mesma empena, o arquiteto desenha diversas reentrâncias para a acomodação de armários em diferentes cômodos, assim como ocorre nos quartos. A organização de toda a planta parece ser feita a partir do pátio interno, que também contribui para a sensação de amplitude. As divisórias internas são elaboradas, de modo que há paredes curvas e, diversas compartimentações no setor de serviços e uma área separada para os closets em três dos quatro quartos. Em compensação, nota-se que ambos os arquitetos buscam trabalhar com uma estrutura mínima e com a integração e fluidez de espaços na área social. Também é clara em ambos os casos a separação da área privada, colocada no nível mais alto das casas, mesmo que no caso de Bastos o corredor de distribuição dos quartos seja completamente visível da sala de jantar e da entrada.

Mesmo com os resultados obtidos nesse estudo, não se deve esperar que as conclusões aqui tomadas sejam únicas e suficientes. A reunião dos resultados desse estudo, pode sugerir diferentes interpretações sobre as semelhanças e diferenças existentes entre os casos de estudo, sendo que nenhuma delas pode ser considerada uma verdade absoluta que exclui as demais. A arquitetura, como qualquer outro campo da arte, tem dimensões subjetivas que não se submetem a regras exatas, de maneira que o tempo, o ponto de vista e o estudo sempre podem fazer com que novas visões sobre ela apareçam para complementar as visões anteriores. Todas essas verdades juntas interpretam e explicam a obra, e quanto mais verdades sobre uma obra existirem, mais rica será nossa compreensão sobre ela.

95


Bibliografia Acayaba, M. M., 2011. Residências em São Paulo, 1947-1975. São Paulo: Romano Guerra Editora. Artigas, J. B. V., 1952. Os caminhos da arquitetura moderna. Fundamentos. Baker, G. H., 1989. Design Strategies in Architecture: An Approach to the Analysis of Form. New York: Van Nostrand Reinhold. Baker, G. H., 1998. Le Corbusier: uma análise da forma. São Paulo: Martins Fontes. Bardi, L. B., 1950. Casas de Vilanova Artigas. Habitat, Volume 1, pp. 2-16. Bardi, L. B., 1951. Bela Criança. Habitat, Volume 2, p. 3. Bastos, M. A. J. & Zein, R. V., 2010. Brasil: Arquiteturas após 1950. São Paulo(SP): Editora Perspectiva. Braga, M., 2010. O concurso de Brasília: sete projetos para uma capital. São Paulo: Cosac Naify. Bruand, Y., 1997. Arquitetura Contemporânea no Brasil. São Paulo: Perspectiva. Ching, F. D. K., 2008. Arquitetura - forma, espaço e ordem. São Paulo: Martins Fontes. Clark, R. H. & Pause, M., 1997. Arquitectura: temas de composición. s.l.:Gustavo Gill. Cunha, M. C. & Guerra, A., 2012. Entre o pátio e o átrio. Vitruvius. Fujioka, P. Y., 1996. O Edifício Itália e a Arquitetura dos Edifícios de Escritórios em São Paulo, São Paulo: FAUUSP. Ottoni, D. A. B. & Szmrecsanyi, M. I. d. Q. F., 1997. Cidades jardins: a busca do equílibrio social e ambiental 1898-1998. 3ª Bienal de Arquitetura, São Paulo: FAUUSP. Rodrigues, P. H. d. C., 2008. A obra do arquiteto Paulo Bastos, São Paulo: FAU-USP. Rykwert, J., 2003. A casa de Adão no paraíso: a idéia da cabana primitiva na história da arquitetura. s.l.:Perspectiva. Sanovicz, A., 1997. Sistematização crítica da obra de arquitetura para obtenção do título de livre docência. São Paulo: FAU-USP.

96


Sanovicz, E., 2017. em entrevista à autora [Entrevista] (09 fevereiro 2017). Segawa, H., 1998. Arquiteturas no Brasil, 1900-1990. São Paulo: EDUSP. Silva, H. A. A., 2004. Abrahão Sanovicz: o projeto como pesquisa, São Paulo: FAUUSP. Unwin, S., 2013. A análise da arquitetura. Porto Alegre: Bookman. Unwin, S., 2014. Vinte edifícios que todo arquiteto deve compreender. São Paulo: Martins Fontes. Vázquez Ramos, F. G., 2013. Ética Brutalista na Arquitetura Introspectiva de Vilanova Artigas: 1966-1969. X Seminário Docomomo Brasil, Curitiba, s.n. Wolf, J., 2003. A Epifania de Abrahão: viver pelo desenho. aU, Março. Xavier, A., Lemos, C. & Corona, E., 1983. Arquitetura Moderna Paulistana. São Paulo: PINI.

97


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.