Machado de Assis
Arcaico
Machado de Assis
Arcaico Recife, Brasil
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Assis, Machado de L255s Contos Escolhidos/Machado de Assis; escolha de contos por Elizabeth Aguiar. − Recife: Arcaico, 2015. Contos retirados do site Domínio Público ISBN 978-85-01-07880-3
1. Ficção. − 2. Romance Brasileiro. − 3. Poesia. I. Aguiar, Elizabeth. II. Título.
CDD − 818.99153 08-0404 CDU − 811.111(41)-3
Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br> A Escola do Futuro da Universi dade de São Paulo
Edição de Referência: Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.
Edição referência: http://www2.uol.com.br/machadodeassis Publicado originalmente em Jornal das Famílias 1878
Edição referência: http://www2.uol.com.br/machadodeassis Publicado originalmente em O Cruzeiro 1878
Edição referência: http://www2.uol.com.br/machadodeassis Publicado originalmente em Jornal das Famílias 1876
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Carteira___________________________________09
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Cartomante________________________________13
A Causa Secreta______________________________21 A
Chave_____________________________________29
A Chinela Turca_______________________________45 A Desejada das Gentes_________________________55 A Ela________________________________________63 A Herança____________________________________67 A Mulher de Preto_____________________________75 Adão e Eva___________________________________99 Conto Alexandrino____________________________105 Dívida Extinta_______________________________113 Elogio da Vaidade____________________________131 Lágrimas de Xerxes___________________________137 O Anel de Polícrates___________________________143 O Astrólogo__________________________________151 Rélíquias da Casa Velha________________________159 Vidros Quebrados_____________________________231
A Carteira
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E REPENTE, Honório olhou para o chão e viu uma carteira. Abaixar-se, apanhá-la e guardá-la foi obra de alguns instantes. Ninguém o viu, salvo um homem que estava à porta de uma loja, e que, sem o conhecer, lhe disse rindo: – Olhe, se não dá por ela; perdia-a de uma vez. – É verdade, concordou Honório envergonhado.
Para avaliar a oportunidade desta carteira, é preciso saber que Honório tem de pagar amanhã uma dívida, quatrocentos e tantos mil-réis, e a carteira trazia o bojo recheado. A dívida não parece grande para um homem da posição de Honório, que advoga; mas todas as quantias são grandes ou pequenas, segundo as circunstâncias, e as dele não podiam ser piores. Gastos de família excessivos, a princípio por servir a parentes, e depois por agradar à mulher, que vivia aborrecida da solidão; baile daqui, jantar dali, chapéus, leques, tanta cousa mais, que não havia remédio senão ir descontando o futuro. Endividou-se. Começou pelas contas de lojas e armazéns; passou aos empréstimos, duzentos a um, trezentos a outro, quinhentos a outro, e tudo a crescer, e os bailes a darem-se, e os jantares a comerem-se, um turbilhão perpétuo, uma voragem. –Tu agora vais bem, não? dizia-lhe ultimamente o Gustavo C..., advogado e familiar da casa. –Agora vou, mentiu o Honório. A verdade é que ia mal. Poucas causas, de pequena monta, e constituintes remissos; por desgraça perdera ultimamente um processo, cm que fundara grandes esperanças. Não só recebeu pouco, mas até parece que ele lhe tirou alguma cousa à reputação jurídica; em todo caso, andavam mofinas nos jornais. D. Amélia não sabia nada; ele não contava nada à mulher, bons ou maus negócios. Não contava nada a ninguém. Fingia-se tão alegre como se nadasse em um mar de prosperidades. Quando o Gustavo, que ia todas as noites à casa dele, dizia uma ou duas pilhérias, ele respondia com três e quatro; e depois ia ouvir os trechos de música alemã, que D. Amélia tocava muito bem ao piano, e que o Gustavo escutava com indizível prazer, ou jogavam cartas, ou simplesmente falavam de política. Um dia, a mulher foi achá-lo dando muitos beijos à filha, criança de quatro anos, e viu-lhe os olhos molhados; ficou espantada, e perguntou-lhe o que era. – Nada, nada. Compreende-se que era o medo do futuro e o horror da miséria. Mas as esperanças voltavam com facilidade. A idéia de que os dias melhores tinham de vir dava-lhe conforto para a luta. Estava com, trinta e quatro anos; era o princípio da carreira: todos os princípios são difíceis. E toca a trabalhar, a esperar, a gastar, pedir fiado ou: emprestado, para pagar mal, e a más horas. A dívida urgente de hoje são uns malditos quatrocentos e tantos mil-réis de carros. Nunca demorou tanto a conta, nem ela cresceu tanto, como agora; e, a rigor, o credor não lhe punha a faca aos peitos; mas disse-lhe hoje uma palavra azeda, com um gesto mau, e Honório quer pagar-lhe hoje mesmo.
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Eram cinco horas da tarde. Tinha-se lembrado de ir a um agiota, mas voltou sem ousar pedir nada. Ao enfiar pela Rua. da Assembléia é que viu a carteira no chão, apanhou-a, meteu no bolso, e foi andando. Durante os primeiros minutos, Honório não pensou nada; foi andando, andando, andando, até o Largo da Carioca. No Largo parou alguns instantes, -- enfiou depois pela Rua da Carioca, mas voltou logo, e entrou na Rua Uruguaiana. Sem saber como, achou-se daí a pouco no Largo de S. Francisco de Paula; e ainda, sem saber como, entrou em um Café. Pediu alguma cousa e encostou-se à parede, olhando para fora. Tinha medo de abrir a carteira; podia não achar nada, apenas papéis e sem valor para ele. Ao mesmo tempo, e esta era a causa principal das reflexões, a consciência perguntava -lhe se podia utilizar-se do dinheiro que achasse. Não lhe perguntava com o ar de quem não sabe, mas antes com uma expressão irônica e de censura. Podia lançar mão do dinheiro, e ir pagar com ele a dívida? Eis o ponto. A consciência acabou por lhe dizer que não podia, que devia levar a carteira à polícia, ou anunciá-la; mas tão depressa acabava de lhe dizer isto, vinham os apuros da ocasião, e puxavam por ele, e convidavam-no a ir pagar a cocheira. Chegavam mesmo a dizer-lhe que, se fosse ele que a tivesse perdido, ninguém iria entregar-lha; insinuação que lhe deu ânimo. Tudo isso antes de abrir a carteira. Tirou-a do bolso, finalmente, mas com medo, quase às escondidas; abriu-a, e ficou trêmulo. Tinha dinheiro, muito dinheiro; não contou, mas viu duas notas de duzentos mil -réis, algumas de cinqüenta e vinte; calculou uns setecentos mil - réis ou mais; quando menos, seiscentos. Era a dívida paga; eram menos algumas despesas urgentes. Honório teve tentações de fechar os olhos, correr à cocheira, pagar, e, depois de paga a dívida, adeus; reconciliar-se-ia consigo. Fechou a carteira, e com medo de a perder, tornou a guardá-la. Mas daí a pouco tirou -a outra vez, e abriu-a, com vontade de contar o dinheiro. Contar para quê? era dele? Afinal venceu-se e contou: eram setecentos e trinta mil-réis. Honório teve um calafrio. Ninguém viu, ninguém soube; podia ser um lance da fortuna, a sua boa sorte, um anjo... Honório teve pena de não crer nos anjos... Mas por que não havia de crer neles? E voltava ao dinheiro, olhava, passava-o pelas mãos; depois, resolvia o contrário, não usar do acha- do, restituí-lo. Restituí-lo a quem? Tratou de ver se havia na carteira algum sinal. “Se houver um nome, uma indicação qualquer, não posso utilizar- me do dinheiro,” pensou ele. Esquadrinhou os bolsos da carteira. Achou cartas, que não abriu, bilhetinhos dobrados, que não leu, e por fim um cartão de visita; leu o nome; era do Gustavo. Mas então, a carteira?... Examinou-a por fora, e pareceu-lhe efetivamente do amigo. Voltou ao interior; achou mais dous cartões, mais três, mais cinco. Não havia duvidar; era dele. A descoberta entristeceu-o. Não podia ficar com o dinheiro, sem praticar um ato ilícito, e, naquele caso, doloroso ao seu coração porque era em dano de um amigo. Todo o castelo levantado esboroou-se como se fosse de cartas. Bebeu a última gota de café, sem reparar que estava frio. Saiu, e só então reparou que era quase noite. Caminhou para casa. Parece que a necessidade ainda lhe deu uns dous empurrões, mas ele resistiu.
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“Paciência, disse ele consigo; verei amanhã o que posso fazer.” Chegando a casa, já ali achou o Gustavo, um pouco preocupado e a própria D. Amélia o parecia também. Entrou rindo, e perguntou ao amigo se lhe faltava alguma cousa. – Nada. – Nada? – Por quê? – Mete a mão no bolso; não te falta nada? – Falta-me a carteira, disse o Gustavo sem meter a mão no bolso. Sabes se alguém a achou? – Achei-a eu, disse Honório entregando-lha. Gustavo pegou dela precipitadamente, e olhou desconfiado para o amigo. Esse olhar foi para Honório como um golpe de estilete; depois de tanta luta com a necessidade, era um triste prêmio. Sorriu amargamente; e, como o outro lhe perguntasse onde a achara, deu-lhe as explicações precisas. – Mas conheceste-a? – Não; achei os teus bilhetes de visita. Honório deu duas voltas, e foi mudar de toilette para o jantar. Então Gustavo sacou novamente a carteira, abriu-a, foi a um dos bolsos, tirou um dos bilhetinhos, que o outro não quis abrir nem ler, e estendeu-o a D. Amélia, que, ansiosa e trêmula, rasgou-o em trinta mil pedaços: era um bilhetinho de amor.
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A Cartomante
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amlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras.
— Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: “A senhora gosta de uma pessoa...” Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade... — Errou! interrompeu Camilo, rindo. — Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria... Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois... — Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa. — Onde é a casa? — Aqui perto, na Rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião. Descansa; eu não sou maluca. Camilo riu outra vez: — Tu crês deveras nessas cousas? perguntou-lhe. Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muita cousa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranqüila e satisfeita. Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se. Não queria arrancar-lhe as ilusões. Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento: limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando.
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Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada; Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-selisonjeado. A casa do encontro era na antiga Rua dos Barbonos, onde morava uma comprovinciana de Rita. Esta desceu pela Rua das Mangueiras, na direção de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda Velha, olhando de passagem para a casa da cartomante. Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela da província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo. — É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu marido é seu amigo, falava sempre do senhor. Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vinte e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição. Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor. Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela, era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di feminina: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; — ela mal, — ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de presente e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler no próprio coração, não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam. Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura, mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada
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fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas. Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato. Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou este pensamento: — a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo. Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era possível. — Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com as das cartas que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a... Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-se sombrio, falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tornar à casa deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de algum negócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar a suspeita ou denúncia. Mais valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram os meios de se corresponderem , em caso de necessidade, e separaram-se com lágrimas. No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela: “Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora.” Era mais de meio-dia. Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão, afigurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas cousas com a notícia da véspera. — Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, — repetia ele com os olhos no papel. Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa, Vilela indignado, pegando da pena e escrevendo o bilhete, certo de que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo: depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a idéia de recuar, e foi andando. De caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a idéia de estarem descobertos parecia-lhe cada vez mais verossímil; era natural uma denúncia anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser que Vilela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem motivo aparente, apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto.
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Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas, ou então, — o que era ainda pior, — eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. “Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora.” Ditas assim, pela voz do outro, tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da tarde. A comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, que chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo depois rejeitava a idéia, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na direção do Largo da Carioca, para entrar num tílburi. Chegou, entrou e mandou seguir a trote largo. “Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim...” Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava, e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da Rua da Guarda Velha, o tílburi teve de parar, a rua estava atravancada com uma carroça, que caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi, ficava a casa da cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada do indiferente Destino. Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era grande, extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe voltar à primeira travessa, e ir por outro caminho: ele respondeu que não, que esperasse. E inclinava-se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a idéia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça: — Anda! agora! empurra! vá! vá! Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos, pensava em outras cousas: mas a voz do marido sussurrava-lhe a orelhas as palavras da carta: “Vem, já, já...” E ele via as contorções do drama e tremia. A casa olhava para ele. As pernas queriam descer e entrar . Camilo achou-se diante de um longo véu opaco... pensou rapidamente no inexplicável de tantas cousas. A voz da mãe repetia-lhe uma porção de casos extraordinários: e a mesma frase do príncipe de Dinamarca reboava-lhe dentro: “Há mais cousas no céu e na terra do que sonha a filosofia... ” Que perdia ele, se... ? Deu por si na calçada, ao pé da porta: disse ao cocheiro que esperasse, e rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele não, viu nem sentiu nada. Trepou e bateu. Não aparecendo ninguém, teve idéia de descer; mas era tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, três pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultá-la, ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma janela, que dava para o telhado dos fundos. Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio.
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A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana, morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre a mesa, e disse-lhe: — Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto... Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo. — E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma cousa ou não... — A mim e a ela, explicou vivamente ele. A cartomante não sorriu: disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez das cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas. três vezes; depois começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos nela. curioso e ansioso. — As cartas dizem-me... Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável muita cautela: ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Rita... Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta. — A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por cima da mesa e apertando a da cartomante. Esta levantou-se, rindo. — Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato... E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se fosse a mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à cômoda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de dentes que desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Camilo, ansioso por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço. — Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer mandar buscar? — Pergunte ao seu coração, respondeu ela. Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante fuzilaram. O preço usual era dois mil-réis.
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— Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito dosenhor. Vá, vá, tranqüilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu... A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando, com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a escada que levava à rua, enquanto a cartomante, alegre com a paga, tornava acima, cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua estava livre. Entrou e seguiu a trote largo. Tudo lhe parecia agora melhor, as outras cousas traziam outro aspecto, o céu estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou pueris; recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram íntimos e familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que eram urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave e gravíssimo. — Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro. E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer cousa; parece que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se ignora vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as velhas crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro. Às vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as palavras secas e afirmativas, a exortação: — Vá, vá, ragazzo innamorato; e no fim, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz. A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável. Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceulhe Vilela. — Desculpa, não pude vir mais cedo; que há? Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: — ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensangüentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.
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A Causa Secreta
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arcia, em pé, mirava e estalava as unhas; Fortunato, na cadeira de balanço, ol hava para o tecto; Maria Luísa, perto da janela, concluía um trabalho de agulha. Havia já cinco minutos que nenhum deles dizia nada. Tinham falado do dia, que estivera excelente, — de Catumbi, onde morava o casal Fortunato, e de uma casa de saúde, que adiante se explicará. Como os três personagens aqui presentes estão agora mortos e enterrados, tempo é de contar a história sem rebuço.
Tinham falado também de outra cousa, além daquelas três, cousa tão feia e grave, que não lhes deixou muito gosto para tratar do dia, do bairro e da casa de saúde. Toda a conversação a este respeito foi constrangida. Agora mesmo, os dedos de Maria Luísa parecem ainda trêmulos, ao passo que há no rosto de Garcia uma expressão de severidade, que lhe não é habitual. Em verdade, o que se passou foi de tal natureza, que para fazê-lo entender é preciso remontar à origem da situação. Garcia tinha-se formado em medicina, no ano anterior, 1861. No de 1860, estando ainda na Escola, encontrou-se com Fortunato, pela primeira vez, à porta da Santa Casa; entrava, quando o outro saía. Fez-lhe impressão a figura; mas, ainda assim, tê-la-ia esquecido, se não fosse o segundo encontro, poucos dias depois. Morava na rua de D. Manoel. Uma de suas raras distrações era ir ao teatro de S. Januário, que ficava perto, entre essa rua e a praia; ia uma ou duas vezes por mês, e nunca achava acima de quarenta pessoas. Só os mais intrépidos ousavam estender os passos até aquele recanto da cidade. Uma noite, estando nas cadeiras, apareceu ali Fortunato, e sentou-se ao pé dele. A peça era um dramalhão, cosido a facadas, ouriçado de imprecações e remorsos; mas Fortunato ouvia -a com singular interesse. Nos lances dolorosos, a atenção dele redobrava, os olhos iam avidamente de um personagem a outro, a tal ponto que o estudante suspeitou haver na peça reminiscências pessoais do vizinho. No fim do drama, veio uma farsa; mas Fortunato não esperou por ela e saiu; Garcia saiu atrás dele. Fortunato foi pelo beco do Cotovelo, rua de S. José, até o largo da Carioca. Ia devagar, cabisbaixo, parando às vezes, para dar uma bengalada em algum cão que dormia; o cão ficava ganindo e ele ia andando. No largo da Carioca entrou num tílburi, e seguiu para os lados da praça da Constituição. Garcia voltou para casa sem saber mais nada. Decorreram algumas semanas. Uma noite, eram nove horas, estava em casa, quando ouviu rumor de vozes na escada; desceu logo do sótão, onde morava, ao primeiro andar, onde vivia um empregado do arsenal de guerra. Era este que alguns homens conduziam, escada acima, ensangüentado. O preto que o servia acudiu a abrir a porta; o homem gemia, as vozes eram confusas, a luz pouca. Deposto o ferido na cama, Garcia disse que era preciso chamar um médico. — Já aí vem um, acudiu alguém. Garcia olhou: era o próprio homem da Santa Casa e do teatro. Imaginou que seria parente ou amigo do ferido; mas rejeitou a suposição, desde que lhe ouvira perguntar se este tinha família ou pessoa próxima. Disse-lhe o preto que não, e ele assumiu a direção do serviço, pediu às pessoas estranhas que se retirassem, pagou aos carregadores, e deu as primeiras ordens.
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Sabendo que o Garcia era vizinho e estudante de medicina pediu-lhe que ficasse para ajudar o médico. Em seguida contou o que se passara. — Foi uma malta de capoeiras. Eu vinha do quartel de Moura, onde fui visitar um primo, quando ouvi um barulho muito grande, e logo depois um ajuntamento. Parece que eles feriram também a um sujeito que passava, e que entrou por um daqueles becos; mas eu só vi a este senhor, que atravessava a rua no momento em que um dos capoeiras, roçando por ele, meteu-lhe o punhal. Não caiu logo; disse onde morava e, como era a dois passos, achei melhor trazê-lo. — Conhecia-o antes? perguntou Garcia. — Não, nunca o vi. Quem é? — É um bom homem, empregado no arsenal de guerra. Chama-se Gouveia. — Não sei quem é. Médico e subdelegado vieram daí a pouco; fez-se o curativo, e tomaram-se as informações. O desconhecido declarou chamar-se Fortunato Gomes da Silveira, ser capitalista, solteiro, morador em Catumbi. A ferida foi reconhecida grave. Durante o curativo ajudado pelo estudante, Fortunato serviu de criado, segurando a bacia, a vela, os panos, sem perturbar nada, olhando friamente para o ferido, que gemia muito. No fim, entendeu-se particularmente com o médico, acompanhou-o até o patamar da escada, e reiterou ao subdelegado a declaração de estar pronto a auxiliar as pesquisas da polícia. Os dous saíram, ele e o estudante ficaram no quarto. Garcia estava atônito. Olhou para ele, viu-o sentar-se tranqüilamente, estirar as pernas, meter as mãos nas algibeiras das calças, e fitar os olhos no ferido. Os olhos eram claros, cor de chumbo, moviam-se devagar, e tinham a expressão dura, seca e fria. Cara magra e pálida; uma tira estreita de barba, por baixo do queixo, e de uma têmpora a outra, curta, ruiva e rara. Teria quarenta anos. De quando em quando, voltava-se para o estudante, e perguntava alguma coisa acerca do ferido; mas tornava logo a olhar para ele, enquanto o rapaz lhe dava a resposta. A sensação que o estudante recebia era de repulsa ao mesmo tempo que de curiosidade; não podia negar que estava assistindo a um ato de rara dedicação, e se era desinteressado como parecia, não havia mais que aceitar o coração humano como um poço de mistérios. Fortunato saiu pouco antes de uma hora; voltou nos dias seguintes, mas a cura fez-se depressa, e, antes de concluída, desapareceu sem dizer ao obsequiado onde morava. Foi o estudante que lhe deu as indicações do nome, rua e número. — Vou agradecer-lhe a esmola que me fez, logo que possa sair, disse o convalescente. Correu a Catumbi daí a seis dias. Fortunato recebeu-o constrangido, ouviu impaciente as palavras de agradecimento, deu-lhe uma resposta enfastiada e acabou batendo com as borlas do chambre no joelho. Gouveia, defronte dele, sentado e calado, alisava o chapéu com os dedos, levantando os olhos de quando em quando, sem achar mais nada que dizer. No fim de dez minutos, pediu licença para sair, e saiu. — Cuidado com os capoeiras! disse-lhe o dono da casa, rindo-se.
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O pobre-diabo saiu de lá mortificado, humilhado, mastigando a custo o desdém, forcejando por esquecê-lo, explicá-lo ou perdoá-lo, para que no coração só ficasse a memória do benefício; mas o esforço era vão. O ressentimento, hóspede novo e exclusivo, entrou e pôs fora o benefício, de tal modo que o desgraçado não teve mais que trepar à cabeça e refugiar-se ali como uma simples idéia. Foi assim que o próprio benfeitor insinuou a este homem o sentimento da ingratidão. Tudo isso assombrou o Garcia. Este moço possuía, em gérmen, a faculdade de decifrar os homens, de decompor os caracteres, tinha o amor da análise, e sentia o regalo, que dizia ser supremo, de penetrar muitas camadas morais, até apalpar o segredo de um organismo. Picado de curiosidade, lembrou-se de ir ter com o homem de Catumbi, mas advertiu que nem recebera dele o oferecimento formal da casa. Quando menos, era-lhe preciso um pretexto, e não achou nenhum. Tempos depois, estando já formado e morando na rua de Matacavalos, perto da do Conde, encontrou Fortunato em uma gôndola, encontrou-o ainda outras vezes, e a freqüência trouxe a familiaridade. Um dia Fortunato convidou-o a ir visitá-lo ali perto, em Catumbi. — Sabe que estou casado? — Não sabia. — Casei-me há quatro meses, podia dizer quatro dias. Vá jantar conosco domingo. — Domingo? — Não esteja forjando desculpas; não admito desculpas. Vá domingo. Garcia foi lá domingo. Fortunato deu-lhe um bom jantar, bons charutos e boa palestra, em companhia da senhora, que era interessante. A figura dele não mudara; os olhos eram as mesmas chapas de estanho, duras e frias; as outras feições não eram mais atraentes que dantes. Os obséquios, porém, se não resgatavam a natureza, davam alguma compensação, e não era pouco. Maria Luísa é que possuía ambos os feitiços, pessoa e modos. Era esbelta, airosa, olhos meigos e submissos; tinha vinte e cinco anos e parecia não passar de dezenove. Garcia, à segunda vez que lá foi, percebeu que entre eles havia alguma dissonância de caracteres, pouca ou nenhuma afinidade moral, e da parte da mulher para com o marido uns modos que transcendiam o respeito e confinavam na resignação e no temor. Um dia, estando os três juntos, perguntou Garcia a Maria Luísa se tivera notícia das circunstâncias em que ele conhecera o marido. — Não, respondeu a moça. — Vai ouvir uma ação bonita. — Não vale a pena, interrompeu Fortunato. — A senhora vai ver se vale a pena, insistiu o médico. Contou o caso da rua de D. Manoel. A moça ouviu-o espantada. Insensivelmente estendeu a mão e apertou o pulso ao marido, risonha e agradecida, como se acabasse de descobrir-lhe o coração. Fortunato sacudia os ombros, mas não ouvia com indiferença. No fim contou ele próprio a visita que o ferido lhe fez, com todos os pormenores da figura, dos gestos, das palavras atadas, dos silêncios, em suma, um estúrdio. E ria muito ao contá-la. Não era o riso da dobrez. A dobrez é evasiva e oblíqua; o riso dele era jovial e franco.
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“ Singular homem!” pensou Garcia. Maria Luísa ficou desconsolada com a zombaria do marido; mas o médico restituiu-lhe a satisfação anterior, voltando a referir a dedicação deste e as suas raras qualidades de enfermeiro; tão bom enfermeiro, concluiu ele, que, se algum dia fundar uma casa de saúde, irei convidá-lo. — Valeu? perguntou Fortunato. — Valeu o quê? — Vamos fundar uma casa de saúde? — Não valeu nada; estou brincando. — Podia-se fazer alguma cousa; e para o senhor, que começa a clínica, acho que seria bem bom. Tenho justamente uma casa que vai vagar, e serve. Garcia recusou nesse e no dia seguinte; mas a idéia tinha-se metido na cabeça ao outro, e não foi possível recuar mais. Na verdade, era uma boa estréia para ele, e podia vir a ser um bom negócio para ambos. Aceitou finalmente, daí a dias, e foi uma desilusão para Maria Luísa. Criatura nervosa e frágil, padecia só com a idéia de que o marido tivesse de viver em contato com enfermidades humanas, mas não ousou opor-se-lhe, e curvou a cabeça. O plano fez-se e cumpriu-se depressa. Verdade é que Fortunato não curou de mais nada, nem então, nem depois. Aberta a casa, foi ele o próprio administrador e chefe de enfermeiros, examinava tudo, ordenava tudo, compras e caldos, drogas e contas.
Garcia pôde então observar que a dedicação ao ferido da rua D. Manoel não era um caso fortuito, mas assentava na própria natureza deste homem. Via-o servir como nenhum dos fâmulos. Não recuava diante de nada, não conhecia moléstia aflitiva ou repelente, e estava sempre pronto para tudo, a qualquer hora do dia ou da noite. Toda a gente pasmava e aplaudia. Fortunato estudava, acompanhava as operações, e nenhum outro curava os cáusticos. — Tenho muita fé nos cáusticos, dizia ele. A comunhão dos interesses apertou os laços da intimidade. Garcia tornou-se familiar na casa; ali jantava quase todos os dias, ali observava a pessoa e a vida de Maria Luísa, cuja solidão moral era evidente. E a solidão como que lhe duplicava o encanto. Garcia começou a sentir que alguma coisa o agitava, quando ela aparecia, quando falava, quando trabalhava, calada, ao canto da janela, ou tocava ao piano umas músicas tristes. Manso e manso, entrou-lhe o amor no coração. Quando deu por ele, quis expeli-lo para que entre ele e Fortunato não houvesse outro laço que o da amizade; mas não pôde. Pôde apenas trancá-lo; Maria Luísa compreendeu ambas as coisas, a afeição e o silêncio, mas não se deu por achada. No começo de outubro deu-se um incidente que desvendou ainda mais aos olhos do médico a situação da moça. Fortunato metera-se a estudar anatomia e fisiologia, e ocupava-se nas horas vagas em rasgar e envenenar gatos e cães. Como os guinchos dos animais atordoavam os doentes, mudou o laboratório para casa, e a mulher, compleição nervosa, teve de os sofrer. Um dia, porém, não podendo mais, foi ter com o médico e pediu-lhe que, como cousa sua, alcançasse do marido a cessação de tais experiências.
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— Mas a senhora mesma... Maria Luísa acudiu, sorrindo: — Ele naturalmente achará que sou criança. O que eu queria é que o senhor, como médico, lhe dissesse que isso me faz mal; e creia que faz... Garcia alcançou prontamente que o outro acabasse com tais estudos. Se os foi fazer em outra parte, ninguém o soube, mas pode ser que sim. Maria Luísa agradeceu ao médico, tanto por ela como pelos animais, que não podia ver padecer. Tossia de quando em quando; Garcia perguntou-lhe se tinha alguma coisa, ela respondeu que nada. — Deixe ver o pulso. — Não tenho nada. Não deu o pulso, e retirou-se. Garcia ficou apreensivo. Cuidava, ao contrário, que ela podia ter alguma coisa, que era preciso observá-la e avisar o marido em tempo. Dois dias depois, — exatamente o dia em que os vemos agora, — Garcia foi lá jantar. Na sala disseramlhe que Fortunato estava no gabinete, e ele caminhou para ali; ia chegando à porta, no momento em que Maria Luísa saía aflita. — Que é? perguntou-lhe. — O rato! O rato! exclamou a moça sufocada e afastando-se. Garcia lembrou-se que na véspera ouvira ao Fortunado queixar-se de um rato, que lhe levara um papel importante; mas estava longe de esperar o que viu. Viu Fortunato sentado à mesa, que havia no centro do gabinete, e sobre a qual pusera um prato com espírito de vinho. O líquido flamejava. Entre o polegar e o índice da mão esquerda segurava um barbante, de cuja ponta pendia o rato atado pela cauda. Na direita tinha uma tesoura. No momento em que o Garcia entrou, Fortunato cortava ao rato uma das patas; em seguida desceu o infeliz até a chama, rápido, para não matá-lo, e dispôs-se a fazer o mesmo à terceira, pois já lhe havia cortado a primeira. Garcia estacou horrorizado. — Mate-o logo! disse-lhe. — Já vai. E com um sorriso único, reflexo de alma satisfeita, alguma coisa que traduzia a delícia íntima das sensações supremas, Fortunato cortou a terceira pata ao rato, e fez pela terceira vez o mesmo movimento até a chama. O miserável estorcia-se, guinchando, ensangüentado, chamuscado, e não acabava de morrer. Garcia desviou os olhos, depois voltou-os novamente, e estendeu a mão para impedir que o suplício continuasse, mas não chegou a fazê-lo, porque o diabo do homem impunha medo, com toda aquela serenidade radiosa da fisionomia. Faltava cortar a última pata; Fortunato cortou-a muito devagar, acompanhando a tesoura com os olhos; a pata caiu, e ele ficou olhando para o rato meio cadáver.
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Ao descê-lo pela quarta vez, até a chama, deu ainda mais rapidez ao gesto, para salvar, se pudesse, alguns farrapos de vida. Garcia, defronte, conseguia dominar a repugnância do espetáculo para fixar a cara do homem. Nem raiva, nem ódio; tão-somente um vasto prazer, quieto e profundo, como daria a outro a audição de uma bela sonata ou a vista de uma estátua divina, alguma coisa parecida com a pura sensação estética. Pareceu-lhe, e era verdade, que Fortunato havia-o inteiramente esquecido. Isto posto, não estaria fingindo, e devia ser aquilo mesmo. A chama ia morrendo, o rato podia ser que tivesse ainda um resíduo de vida, sombra de sombra; Fortunato aproveitou-o para cortar-lhe o focinho e pela última vez chegar a carne ao fogo. Afinal deixou cair o cadáver no prato, e arredou de si toda essa mistura de chamusco e sangue. Ao levantar-se deu com o médico e teve um sobressalto. Então, mostrou-se enraivecido contra o animal, que lhe comera o papel; mas a cólera evidentemente era fingida. “Castiga sem raiva”, pensou o médico, “pela necessidade de achar uma sensação de prazer, que só a dor alheia lhe pode dar: é o segredo deste homem”. Fortunato encareceu a importância do papel, a perda que lhe trazia, perda de tempo, é certo, mas o tempo agora era-lhe preciosíssimo. Garcia ouvia só, sem dizer nada, nem lhe dar crédito. Relembrava os atos dele, graves e leves, achava a mesma explicação para todos. Era a mesma troca das teclas da sensibilidade, um diletantismo sui generis, uma redução de Calígula. Quando Maria Luísa voltou ao gabinete, daí a pouco, o marido foi ter com ela, rindo, pegou-lhe nas mãos e falou-lhe mansamente: — Fracalhona! E voltando-se para o médico: — Há de crer que quase desmaiou? Maria Luísa defendeu-se a medo, disse que era nervosa e mulher; depois foi sentar-se à janela com as suas lãs e agulhas, e os dedos ainda trêmulos, tal qual a vimos no começo desta história. Hão de lembrar-se que, depois de terem falado de outras coisas, ficaram calados os três, o marido sentado e olhando para o teto, o médico estalando as unhas. Pouco depois foram jantar; mas o jantar não foi alegre. Maria Luísa cismava e tossia; o médico indagava de si mesmo se ela não estaria exposta a algum excesso na companhia de tal homem. Era apenas possível; mas o amor trocou-lhe a possibilidade em certeza; tremeu por ela e cuidou de os vigiar. Ela tossia, tossia, e não se passou muito tempo que a moléstia não tirasse a máscara. Era a tísica, velha dama insaciável, que chupa a vida toda, até deixar um bagaço de ossos. Fortunato recebeu a notícia como um golpe; amava deveras a mulher, a seu modo, estava acostumado com ela, custava-lhe perdê-la. Não poupou esforços, médicos, remédios, ares, todos os recursos e todos os paliativos. Mas foi tudo vão. A doença era mortal.
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Nos últimos dias, em presença dos tormentos supremos da moça, a índole do marido subjugou qualquer outra afeição. Não a deixou mais; fitou o olho baço e frio naquela decomposição lenta e dolorosa da vida, bebeu uma a uma as aflições da bela criatura, agora magra e transparente, devorada de febre e minada de morte. Egoísmo aspérrimo, faminto de sensações, não lhe perdoou um só minuto de agonia, nem lhos pagou com uma só lágrima, pública ou íntima. Só quando ela expirou, é que ele ficou aturdido. Voltando a si, viu que estava outra vez só. De noite, indo repousar uma parenta de Maria Luísa, que a ajudara a morrer, ficaram na sala Fortunato e Garcia, velando o cadáver, ambos pensativos; mas o próprio marido estava fatigado, o médico disselhe que repousasse um pouco. — Vá descansar, passe pelo sono uma hora ou duas: eu irei depois. Fortunato saiu, foi deitar-se no sofá da saleta contígua, e adormeceu logo. Vinte minutos depois acordou, quis dormir outra vez, cochilou alguns minutos, até que se levantou e voltou à sala. Caminhava nas pontas dos pés para não acordar a parenta, que dormia perto. Chegando à porta, estacou assombrado. Garcia tinha-se chegado ao cadáver, levantara o lenço e contemplara por alguns instantes as feições defuntas. Depois, como se a morte espiritualizasse tudo, inclinou-se e beijou-a na testa. Foi nesse momento que Fortunato chegou à porta. Estacou assombrado; não podia ser o beijo da amizade, podia ser o epílogo de um livro adúltero. Não tinha ciúmes, note-se; a natureza compô-lo de maneira que lhe não deu ciúmes nem inveja, mas dera-lhe vaidade, que não é menos cativa ao ressentimento. Olhou assombrado, mordendo os beiços. Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o cadáver; mas então não pôde mais. O beijo rebentou em soluços, e os olhos não puderam conter as lágrimas, que vieram em borbotões, lágrimas de amor calado, e irremediável desespero. Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranqüilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa.
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A Chave
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ão sei se lhes diga simplesmente que era de madrugada, ou se comece num tom mais poético: aurora, com seus róseos dedos... A maneira simples é o que melhor me conviria a mim, ao leitor, aos banhistas que estão agora na Praia do Flamengo — agora, isto é, no dia 7 de outubro de 1861, que é quando tem princípio este caso que lhes vou contar. Convinha-nos isto; mas há lá um certo velho, que me não leria, se eu me limitasse a dizer que vinha nascendo a madrugada, um velho que... degamos quem era o velho.
Imaginem os leitores um sujeito gordo, não muito gordo — calvo, de óculos, tranqüilo, tardo, meditativo. Tem sessenta anos: nasceu com o século. Traja asseadamente um vestuário da manhã; vê-se que é abastado ou exerce algum alto emprego na administração. Saúde de ferro. Disse já que era calvo; equivale a dizer que não usava cabeleira. Incidente sem valor, observará a leitora, que tem pressa. Ao que lhe replico que o incidente é grave, muito grave, extraordinariamente grave. A cabeleira devia ser o natural apêndice da cabeça do major Caldas, porque cabeleira traz ele no espírito, que também é calvo. Calvo é o espírito. O major Caldas cultivou as letras, desde 1821 até 1840 com um ardor verdadeiramente deplorável. Era poeta; compunha versos com presteza, retumbantes, cheios de adjetivos, cada qual mais calvo do que ele tinha de ficar em 1861. A primeira poesia foi dedicada a não sei que outro poeta, e continha em germe todas as odes e glosas que ele havia de produzir. Não compreendeu nunca o major Caldas que se pudesse fazer outra cousa que não glosas e odes de toda a casta, pindáricas ou horacianas, e também idílios piscatóricos, obras perfeitamente legítimas na aurora literária do major. Nunca para ele houve poesia que pudesse competir com a de um Dinis ou Pimentel Maldonado; era a sua cabeleira do espírito. Ora, é certo que o major Caldas, se eu dissesse que era de madrugada, dar-me-ia um muxoxo ou franziria a testa com desdém. — Madrugada! era de madrugada! murmuraria ele. Isto diz aí qualquer preta: — “nhanhã, era de madrugada...” Os jornais não dizem de outro modo; mas numa novela... Vá pois! A aurora, com seus dedos cor-de-rosa, vinha rompendo as cortinas do oriente, quando Marcelina levantou a cortina da barraca. A porta da barraca olhava justamente para o oriente, de modo que não há inverossimilhança em lhes dizer que essas duas auroras se contemplaram por um minuto. Um poeta arcádico chegaria a insinuar que a aurora celeste enrubesceu de despeito e raiva. Seria porém levar a poesia muito longe. Deixemos a do céu e venhamos à da terra. Lá está ela, à porta da barraca com as mãos cruzadas no peito, como quem tem frio; traja a roupa usual das banhistas, roupa que só dá elegância a quem já a tiver em subido grau. É o nosso caso. Assim, à meia-luz da manhã nascente, não sei se poderíamos vê-la de modo claro. Não; é impossível. Quem lhe examinaria agora aqueles olhos úmidos, como as conchas da praia, aquela boca pequenina, que parece um beijo perpétuo? Vede, porém, o talhe, a curva amorosa das cadeiras, o trecho de perna que aparece entre a barra da calça de flanela e o tornozelo; digo o tornozelo e não o sapato porque Marcelina não calça sapatos de banho. Costume ou vaidade? Pode ser costume; se for vaidade é explicável
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porque o sapato esconderia e mal os pés mais graciosos de todo o Flamengo, um par de pés finos, esguios, ligeiros. A cabeça também não leva coifa; tem os cabelos atados em parte, em parte trançados — tudo desleixadamente, mas de um desleixo voluntário e casquilho. Agora, que a luz está mais clara, podemos ver bem a expressão do rosto, É uma expressão singular de pomba e gato, de mimo e desconfiança. Há olhares dela que atraem, outros que distanciam — uns que inundam a gente, como um bálsamo, outros que penetram como uma lâmina. É desta última maneira que ela olha para um grupo de duas moças, que estão à porta de outra barraca, a falar com um sujeito. — Lambisgóias! murmura entre dentes. — Que é? pergunta o pai de Marcelina, o major Caldas, sentado ao pé da barraca, numa cadeira que o moleque lhe leva todas as manhãs. — Que é o quê? diz a moça. — Tu falaste alguma cousa. — Nada. — Estás com frio? — Algum. — Pois olha, a manhã está quente. — Onde está o José? O José apareceu logo; era o moleque que a acompanhava ao mar. Aparecido o José, Marcelina caminhou para o mar, com um desgarro de moça bonita e superior. Da outra barraca tinham já saído as duas moças, que lhe mereceram tão desdenhosa classificação; o rapaz que estava com elas também entrara no mar. Outras cabeças e bustos surgiram da água, como um grupo de delfins. Da praia alguns olhos, puramente curiosos, se estendiam aos banhistas ou cismavam puramente contemplando o petáculo das ondas que se dobravam e desdobravam — ou, como diria o major Caldas — as convulsões de Anfitrite. O major ficou sentado a ver a filha, com o Jornal do Commercio aberto sobre os joelhos; tinha já luz bastante para ler as notícias; mas não o fazia nunca antes de voltar a filha do banho. Isto por duas razões. Era a primeira a própria afeição de pai; apesar da confiança na destreza da filha, receava algum desastre. Era a segunda o gosto que lhe dava contemplar a graça e a habilidade com que Marcelina mergulhava, bracejava ou simplesmente boiava “como uma náiade”, acrescentava ele se falava disso a algum amigo. Acresce que o mar naquela manhã estava muito mais bravio que de costume; a ressaca era forte; os buracos da praia mais fundos; o medo afastava vários banhistas habituais. — Não te demores muito, disse o major, quando a filha entrou; toma cuidado. Marcelina era destemida; galgou a linha em que se dava a arrebentação, e surdiu fora muito naturalmente. O moleque, aliás bom nadador, não rematou a façanha com igual placidez; mas galgou também e foi surgir ao lado da sinhá-moça. — Hoje o bicho não está bom, ponderou um banhista ao lado de Marcelina, um homem maduro, de suíças, ar aposentado.
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— Parece que não, disse a moça; mas para mim é o mesmo. — O major continua a não gostar d’água salgada? perguntou uma senhora. — Diz que é militar de terra e não do mar, replicou Marcelina, mas eucreio que papai o que quer é ler o Jornal à vontade. — Podia vir lê-lo aqui, insinuou um rapaz de bigodes, dando uma grande risada de aplauso a si mesmo. Marcelina nem olhou para ele; mergulhou diante de uma onda, surdiu fora, com as mãos sacudiu os cabelos. O sol, que já então aparecera, alumiava-a nessa ocasião, ao passo que a onda, seguindo para a praia, deixava-lhe todo o busto fora de água. Foi assim que a viu, pela primeira vez, com os cabelos úmidos, e a flanela grudada ao busto — ao mais correto e virginal busto daquelas praias —, foi assim que pela primeira vez a viu o Bastinhos — o Luís Bastinhos —, que acabava de entrar no mar, para tomar o primeiro banho no Flamengo.
II A ocasião é a menos própria para apresentar-lhes o sr. Luís Bastinhos; a ocasião e o lugar. O vestuário então é impropriíssimo. Ao vê-lo agora, a meio-busto, nem se pode dizer que tenha vestuário de nenhuma espécie. Emerge-lhe a parte superior do corpo, boa musculatura, pele alva, mal coberta de alguma penugem. A cabeça é que não precisa dos arrebiques da civilização para dizer-se bonita. Não há cabeleireiro, nem óleo, nem pente, nem ferro que no-la ponham mais graciosa. Ao contrário, a pressão fisionômica de Luís Bastinhos acomoda-se melhor a esse desalinho agreste e marítimo. Talvez perca, quando se pentear. Quanto ao bigode, fino e curto, os pingos d’água que ora lhe escorrem não chegam a diminuí-lo; não chegam sequer a ver-se. O bigode persiste como dantes. Não o viu Marcelina, ou não reparou nele. O Luís Bastinhos é que a viu, e mal pôde disfarçar a admiração. O major Caldas, se os observasse, era capaz de casá-los, só para ter o gosto de dizer que unia uma náiade a um tritão. Nesse momento a náiade repara que o tritão tem os olhos fitos nela, e mergulha, depois mergulha outra vez, nada e bóia. Mas o tritão é teimoso, e não lhe tira os olhos de cima. “Que importuno!” diz ela consigo. — Olhem uma onda grande, brada um dos conhecidos de Marcelina. Todos se puseram em guarda, a onda enrolou alguns, mas passou sem maior dano. Outra veio e foi recebida com um alarido alegre; enfim veio uma mais forte, e assustou algumas senhoras. Marcelina riu-se delas. — Nada, dizia uma; salvemos o pêlo; o mar está ficando zangado. — Medrosa! acudiu Marcelina. — Pois sim... — Querem ver? continuou a filha do major. Vou mandar embora o moleque. — Não faça isso, D. Marcelina, acudiu o banhista de ar aposentado.
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— Não faço outra cousa. José, vai-te embora. — Mas, nhanhã... — Vai-te embora! O José ainda esteve alguns segundos, sem saber o que fizesse; mas, parece que entre desagradar ao pai ou à filha, achou mais arriscado desagradar à filha, e caminhou para terra. Os outros banhistas tentaram persuadir à moça que devia vir também, mas era tempo baldado. Marcelina tinha a obstinação de um enfant gâté. Lembraram alguns que ela nadava como um peixe, e resistira muita vez ao mar. — Mas o mar do Flamengo é o diabo, ponderou uma senhora. Os banhistas pouco a pouco foram deixando o mar. Do lado de terra, o major Caldas, de pé, ouvia impaciente a explicação do moleque, sem saber se o devolveria à água ou se cumpriria a vontade da filha; limitou-se a soltar palavras de enfado. — Santa Maria! exclamou de repente o José. — Que foi? disse o major. O José não lhe respondeu; atirou-se à água. O major olhou e não viu a filha. Efetivamente, a moça, vendo que no mar só ficava o desconhecido, nadou para terra, mas as ondas tinham-se sucedido com freqüência e impetuosidade. No lugar da arrebentação foi envolvida por uma; nesse momento é que o moleque a viu. — Minha filha! bradou o major. E corria desatinado pela areia, enquanto o moleque conscienciosamente buscava penetrar no mar. Mas era já empresa escabrosa; as ondas estavam altas, fortes e a arrebentação terrível. Outros banhistas acudiram também a salvar a filha do major; mas a dificuldade era só uma para todos. Caldas, ora implorava, ora ordenava ao moleque que lhe restituísse a filha. Enfim, José conseguiu entrar no mar. Mas já então lutava ali, junto ao funesto lugar, o desconhecido banhista que tanto aborrecera a filha do major. Este estremeceu de alegria, de esperança, quando viu que alguém forcejava por arrancar a moça da morte. Na verdade, o vulto de Marcelina apareceu nos braços do Luís Bastinhos; mas uma onda veio e os enrolou a ambos. Nova luta, novo esforço e desta vez definitivo triunfo. Luís Bastinhos chegou à praia arrastando consigo a moça. — Morta! exclamou o pai correndo a vê-la. Examinaram-na. — Não, desmaiada, apenas. Com efeito, Marcelina perdera os sentidos, mas não morrera. Deram-lhe os socorros médicos; ela voltou a si. O pai, singelamente alegre, apertou Luís Bastinhos ao coração. — Devo-lhe tudo! disse ele. — A sua felicidade me paga de sobra, tornou o moço. O major fitou-o alguns instantes; impressionara-o a resposta. Depois apertou-lhe a mão e ofereceu-lhe a casa. Luís Bastinhos retirou-se antes que Marcelina pudesse vê-lo.
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III Na verdade, se a leitora gosta de lances romanescos, aí fica um, com todo o valor das antigas novelas, e pode ser também que dos dramalhões antigos. Nada falta: o mar, o perigo, uma dama que se afoga, um desconhecido que a salva, um pai que passa da extrema aflição ao mais doce prazer da vida; eis aí com que marchar cerradamente a cinco atos maçudos e sangrentos, rematando tudo com a morte ou a loucura da heroína. Não temos cá nem uma cousa nem outra. A nossa Marcelina não morreu nem morre; douda pode ser que já fosse, mas de uma doidice branda, a doidice das moças em flor. Ao menos pareceu que tinha alguma cousa disso, quando naquele mesmo dia soube que fora salva pelo desconhecido. — Impossível! exclamou. — Por quê? — Foi ele deveras? — Pois então! Salvou-te com perigo da vida própria; houve um momento, em que eu cuidei que ambos vocês morriam enrolados na onda. — É a cousa mais natural do mundo, interveio a mãe; e não sei de que te espantas... Marcelina não podia, na verdade, explicar a causa do espanto; ela mesma não a sabia. Custava-lhe a crer que Luís Bastinhos a tivesse salvo, e isso só porque “embirrara com ele”. Ao mesmo tempo, pesavalhe o obséquio. Não quisera ter morrido; mas era melhor que outro a houvesse arrancado ao mar, não aquele homem, que afinal era um grande metediço. Marcelina esteve inclinada a crer que Luís Bastinhos encomendara o desastre para ter ocasião de a servir. Dous dias depois, Marcelina voltou ao mar, já pacificado dos seus furores de encomenda. Ao olhar para ele, teve uns ímpetos de Xerxes; fá-lo-ia castigar, se dispusesse de um bom e grande vergalho. Não tendo o vergalho, preferiu flagelá-lo com os seus próprios braços, e nadou nesse dia mais tempo e mais fora do que era costume, não obstante as recomendações do major. Levava naquilo um pouco, ou antes, muito amor-próprio: o desastre envergonhara-a. O Luís Bastinhos, que já lá estava no mar, travou conversação com a filha do major. Era a segunda vez que se viam, e a primeira que se falavam. — Soube que foi o senhor quem me ajudou... a levantar anteontem, disse Marcelina. O Luís Bastinhos sorriu mentalmente; e ia responder por uma simples afirmativa, quando Marcelina continuou: — Ajudou, não sei; eu creio que cheguei a perder os sentidos, e o senhor... sim... o senhor foi quem me salvou. Permite-me que lhe agradeça? concluiu ela, estendendo a mão. Luís Bastinhos estendeu a sua; e ali, entre duas ondas, tocaram-se os dedos do tritão e da náiade.
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— Hoje o mar está mais manso, disse ele. — Está. — A senhora nada bem. — Parece-lhe? — Perfeitamente. — Menos mal. E como para mostrar a sua arte, Marcelina entrou a nadar para fora, deixando Luís Bastinhos. Este, porém, ou por mostrar que também sabia a arte e que era destemido — ou por não privar a moça de pronto socorro, caso houvesse necessidade —, ou enfim (e este motivo pode ter sido o principal, se não único) — para vê-la sempre de mais perto —, lá foi na mesma esteira; dentro de pouco era uma espécie de aposta entre os dous. — Marcelina, disse-lhe o pai, quando ela voltou a terra, você hoje foi mais longe do que nunca. Não quero isso, ouviu? Marcelina levantou os ombros, mas obedeceu ao pai, cujo tom nessa ocasião era desusadamente ríspido. No dia seguinte, não foi tão longe a nadar; a conversar, porém, foi muito mais longe do que na véspera. Ela confessou ao Luís Bastinhos, ambos com a água até o pescoço, confessou que gostava muito de café com leite, que tinha vinte e um1 anos, que possuía reminiscências do Tamberlick, e que o banho do mar seria excelente, se não a obrigassem a acordar cedo. — Deita-se tarde, não é? perguntou o Luís Bastinhos. — Perto de meia-noite. — Oh! dorme pouco! — Muito pouco. — De dia dorme? — Às vezes. Luís Bastinhos confessou, pela sua parte, que se deitava cedo, muito cedo, desde que estava a banhos de mar. — Mas quando for ao teatro? — Nunca vou ao teatro. — Pois eu gosto muito. — Também eu; mas enquanto estiver a banhos... Foi neste ponto que entraram as reminiscências do Tamberlick, que Marcelina ouviu, quando criança; e daí ao João Caetano, e do João Caetano a não sei que outras reminiscências, que a um e a outro fez esquecer a higiene e a situação.
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IV Saiamos do mar que é tempo. A leitora pode desconfiar que o intento do autor é fazer um conto marítimo, a ponto de casar os dous heróis nos próprios “paços de Anfitrite”, como diria o major Caldas. Não; saiamos do mar. Já tens muita água, boa Marcelina. Too much of water hast thou, poor Ophelia! A diferença é que a pobre Ofélia lá ficou, ao passo que tu sais sã e salva, com a roupa de banho pegada ao corpo, um corpo grego, por Deus! e entras na barraca, e se alguma cousa ouves, não são as lágrimas dos teus, são os resmungos do major. Saiamos do mar. Um mês depois do último banho a que o leitor assistiu, já o Luís Bastinhos freqüentava a casa do major Caldas. O major afeiçoara-se-lhe deveras depois que ele lhe salvara a filha. Indagou quem era; soube que estava empregado numa repartição de Marinha, que seu pai, já agora morto, fora capitão-de-fragata e figurara na guerra contra Rosas. Soube mais que era moço bem reputado e decente. Tudo isto realçou a ação generosa e corajosa de Luís Bastinhos, e a intimidade começou, sem oposição da parte de Marcelina, que antes contribuiu para ela, com as suas melhores maneiras. Um mês era de sobra para arraigar no coração de Luís Bastinhos a planta do amor que havia germinado entre duas vagas do Flamengo. A planta cresceu, copou, bracejou ramos a um e outro lado, tomou o coração todo do rapaz, que não se lembrava jamais de haver gostado tanto de uma moça. Era o que ele dizia a um amigo de infância, seu atual confidente. — E ela? disse-lhe o amigo. — Ela... não sei. — Não sabes? — Não; creio que não gosta de mim, isto é, não digo que se aborreça comigo; trata-me muito bem, ri muito, mas não gosta... entendes? — Não te dá corda em suma, concluiu o Pimentel, que assim se chamava o amigo confidente. Já lhe disseste alguma cousa? — Não. — Por que não lhe falas? — Tenho receio... Ela pode zangar-se e fico obrigado a não voltar lá ou a freqüentar menos, e isso para mim seria o diabo. O Pimentel era uma espécie de filósofo prático, incapaz de suspirar dous minutos pela mais bela mulher do mundo, e menos ainda de compreender uma paixão como a do Luís Bastinhos. Sorriu, estendeulhe a mão em despedida, mas o Luís Bastinhos não consentiu na separação. Puxou-o, deu-lhe o braço, levou-o a um café. — Mas que diabo queres tu que te faça? perguntou o Pimentel sentando-se à mesa com ele. — Que me aconselhes.
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— O quê? — Não sei o quê, mas dize-me alguma cousa, replicou o namorado. Talvez convenha falar ao pai; que te parece? — Sem saber se ela gosta de ti? — Na verdade era imprudência, concordou o outro, coçando o queixo com a ponta do dedo índice; mas talvez goste... — Pois então... — Porque, eu te digo, ela não me trata mal; ao contrário, às vezes tem uns modos, umas cousas... mas não sei... O major esse gosta de mim. — Ah! — Gosta. — Pois aí tens, casa-te com o major. — Falemos sério. — Sério? repetiu o Pimentel debruçando-se sobre a mesa e encarando o outro. Aqui vai o mais sério que há no mundo; tu és um... digo? — Dize. — Tu és um bolas. Repetiam-se essas cenas regularmente, uma ou duas vezes, por semana. No fim delas o Luís Bastinhos prometia duas cousas a si mesmo: não dizermais nada ao Pimentel e ir fazer imediatamente a sua confissão a Marcelina; poucos dias depois ia confessar ao Pimentel que ainda não dissera nada a Marcelina. E o Pimentel abanava a cabeça e repetia o estribilho: — Tu és um bolas.
V Um dia assentou Luís Bastinhos que era vergonha dilatar por mais tempo a declaração de seus afetos; urgia clarear a situação. Ou era amado ou não; no primeiro caso, o silêncio era tolice; no segundo a tolice era a assiduidade. Tal foi a reflexão do namorado; tal foi a sua resolução. A ocasião era na verdade propícia. O pai ia passar a noite fora; a moça ficara com uma tia surda e sonolenta. Era o sol de Austerlitz; o nosso Bonaparte preparou a sua melhor tática. A fortuna deu-lhe até um grande auxiliar na própria moça, que estava triste; a tristeza podia dispor o coração a sentimentos benévolos, principalmente quando outro coração lhe dissesse que não duvidava beber na mesma taça da melancolia. Esta foi a primeira reflexão de Luís Bastinhos; a segunda foi diferente. — Por que estará ela triste? perguntou ele a si mesmo. E eis o dente do ciúme a trincar-lhe o coração, e o sangue a esfriar-lhe nas veias, e uma nuvem a cobrirlhe os olhos. Não era para menos o caso. Ninguém adivinharia nessa moça quieta e sombria, sentada a um canto do sofá, a ler as páginas de um romance, ninguém adivinharia nela a borboleta ágil e volúvel de todos os dias.
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Alguma cousa devia ser; talvez a mordesse algum besouro. E esse besouro não era decerto o Luís Bastinhos; foi o que este pensou e foi o que o entristeceu. Marcelina ergueu os ombros. — Alguma cousa que a incomoda, continuou ele. Um silêncio. — Não? — Talvez. — Pois bem, disse Luís Bastinhos com calor e animado por aquela meia confidência; pois bem, diga-me tudo, eu saberei ouvi-la e terei palavras de consolação para as suas dores. Marcelina olhou um pouco espantada para ele, mas a tristeza dominou outra vez e deixou-se estar calada alguns instantes: finalmente pôs-lhe a mão no braço, e disse que lhe agradecia muito o interesse que mostrava, mas que o motivo de tristeza era-o só para ela e não valia a pena contá-lo. Como Luís Bastinhos teimasse para saber o que era, contou a moça que lhe morrera, nessa manhã, o mico. Luís Bastinhos respirou à larga. Um mico! um simples mico! Era pueril o objeto, mas para quem o esperava terrível, antes assim. Ele entregou-se depois a toda a sorte de considerações próprias do caso, disse-lhe que não valia o bicho a pureza dos belos olhos da moça; e daí a escorregar uma insinuação de amor era um quase nada. Ia a fazê-lo: chegou o major. Oito dias depois houve em casa do major um sarau — “uma brincadeira” como disse o próprio major. Luís Bastinhos foi; estava porém arrufado com a moça: deixou-se ficar a um canto; não se falaram durante a noite inteira. — Marcelina, disse-lhe no dia seguinte o pai; acho que tratas às vezes mal o Bastinhos. Um homem que te salvou da morte. — Que morte? — Da morte na Praia do Flamengo. — Mas, papai, se a gente fosse a morrer de amores por todas as pessoas que nos salvam da morte... — Mas quem te fala nisso? digo que o tratas mal às vezes... — Às vezes, é possível. — Mas por quê? ele parece-me um bom rapaz. Nada mais lhe respondendo a filha, entrou o major a bater com a ponta do pé no chão, um pouco enfadado. Um pouco? talvez muito. Marcelina destruía-lhe as esperanças, reduzia-lhe a nada o projeto que ele acalentava desde algum tempo, — que era casar os dous; — casá-los ou uni-los pelos “doces laços do himeneu”, que todas foram as suas próprias expressões mentais. E vai a moça e destrói-lho. O major sentia-se velho, podia morrer, e quisera deixar a filha casada e bem casada. Onde achar melhor marido que o Luís Bastinhos?
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— Uma pérola, dizia ele a si mesmo. E enquanto ele ia forjando e desforjando esses projetos, Marcelina suspirava consigo mesma, e sem saber por que; mas suspirava. Também esta pensava na conveniência de casar e casar bem; mas nenhum homem lhe abrira deveras o coração. Quem sabe se a fechadura não servia a nenhuma chave? Quem teria a verdadeira chave do coração de Marcelina? Ela chegou a supor que fosse um bacharel da vizinhança, mas esse casou dentro de algum tempo; depois desconfiara que a chave estivesse em poder de um oficial de Marinha. Erro: o oficial não trazia chave consigo. Assim andou de ilusão em ilusão, e chegou à mesma tristeza do pai. Era fácil acabar com ela: era casar com o Bastinhos. Mas se o Bastinhos, o circunspecto, o melancólico, o taciturno Bastinhos não tinha a chave! Equivalia a recebê-lo à porta sem lhe dar entrada no coração.
VI Cerca de mês e meio depois fazia anos o major, que, animado pelo sarau precedente, quis comemorar com outro aquele dia. “Outra brincadeira, mas desta vez rija”, foram os próprios termos em que ele anunciou o caso ao Luís Bastinhos, alguns dias antes. Pode-se dizer e acreditar que a filha do major não teve outro pensamento desde que o pai lho comunicou também. Começou por encomendar um rico vestido, elegeu costureira, adotou corte, coligiu adornos, presidiu a toda essa grande obra doméstica. Jóias, flores, fitas, leques, rendas, tudo lhe passou pelas mãos, e pela memória e pelos sonhos. Sim, a primeira quadrilha foi dançada em sonhos, com um belo cavalheiro húngaro, vestido à moda nacional, cópia de uma gravura da Ilustração Francesa, que ela vira de manhã. Acordada, lastimou sinceramente que não fosse possível ao pai encomendar, de envolta com os perus da ceia, um ou dous cavalheiros húngaros — entre outros motivos porque eram valsadores intermináveis. E depois tão bonitos! — Sabem que eu pretendo dançar no dia 20? disse o major uma noite, em casa. — Você? retorquiu-lhe um amigo velho. — Eu. — Por que não? assentiu timidamente o Luís Bastinhos. — Justamente, continuou o major voltando-se para o salvador da filha. E o senhor há de ser o meu vis-àvis... — Eu? — Não dança? — Um pouco, retorquiu modestamente o moço. — Pois há de ser o meu vis-à-vis. Luís Bastinhos curvou-se como quem obedece a uma opressão; com a flexibilidade passiva do fatalismo. Se era necessário dançar, ele o faria, porque dançava como poucos, e obedecer ao velho era uma maneira de amar a moça.
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Ai dele! Marcelina olhou-o com tamanho desprezo, que se ele lhe apanha o olhar, não é impossível que de uma vez para sempre ali deixasse de pôr os pés. Mas não o viu; continuou a arredá-los dali bem poucas vezes. Os convites foram profusamente espalhados. O major Caldas fez o inventário de todas as suas relações, antigas e modernas, e não quis que nenhum camarão lhe escapasse pelas malhas: lançou uma rede fina e instante. Se ele não pensava em outra cousa o velho major! Era feliz; sentia-se poupado da adversidade, quando muitos outros companheiros vira cair, uns mortos, outros extenuados somente. A comemoração de seu aniversário tinha, portanto, uma significação mui alta e especial; e foi isso mesmo o que ele disse à filha e aos demais parentes. O Pimentel, que também fora convidado, sugeriu a Luís Bastinhos a idéia de dar um presente de anos ao major. — Já pensei nisso, retorquiu o amigo; mas não sei o que lhe dê. — Eu te digo. — Dize. — Dá-lhe um genro. — Um genro? — Sim, um noivo à filha; declara o teu amor e pede-a. Verás que, de todas as dádivas desse dia, essa será a melhor. Luís Bastinhos bateu palmas ao conselho do Pimentel. — É isso mesmo, disse ele; eu andava com a idéia em alguma jóia, mas... — Mas a melhor jóia és tu mesmo, concluiu o Pimentel. — Não digo tanto. — Mas pensas. — Pimentel! — E eu não penso outra cousa. Olha, se eu tivesse intimidade na casa, há muito tempo que estarias amarrado à pequena. Pode ser que ela não goste de ti; mas também é difícil a uma moça alegre e travessa gostar de um casmurro, como tu — que te sentas, defronte dela, com um ar solene e dramático, a dizer em todos os teus gestos: minha senhora, fui eu que a salvei da morte; deve rigorosamente entregarme a sua vida... Ela pensa decerto que estás fazendo um calembour de mau gosto e fecha-te a porta... Luís Bastinhos esteve calado alguns instantes. — Perdôo-te tudo, a troco do conselho que me deste; vou oferecer um genro ao major. Dessa vez, como de todas as outras, a promessa era maior do que a realidade; ele lá foi, lá tornou, nada fez. Iniciou duas ou três vezes uma declaração; chegou a entornar um ou dous olhares de amor, que não pareceram de todo feios à pequena; e, porque ela sorriu, ele desconfiou e desesperou. Qual! pensava consigo o rapaz; ela ama a outro com certeza.
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Veio enfim o dia, o grande dia. O major deu um pequeno jantar, em que figurou Luís Bastinhos; de noite reuniu uma parte dos convidados, porque nem todos lá puderam ir, e fizeram bem; a casa não dava para tanto. Ainda assim era muita gente reunida, muita e brilhante, e alegre, como alegre parecia e deveras estava o major. Não se disse nem se dirá dos brindes do major, à mesa do jantar; não podem inserir-se aqui todas as recordações clássicas do velho poeta de outros anos; seria não acabar mais. A única cousa que verdadeiramente se pode dizer é que o major declarou, à sobremesa, ser esse o dia mais venturoso de todos os seus longos anos, entre outros motivos, porque tinha gosto de ver ao pé de si o jovem salvador da filha. — Que idéia! murmurou a filha; e deu um imperceptível muxoxo. Luís Bastinhos aproveitou o ensejo. “Magnífico, disse ele consigo; depois do café, peço-lhe duas palavras em particular, e logo depois a filha.” Assim fez; tomado o café, pediu ao major uns cinco minutos de atenção. Caldas, um pouco vermelho de comoção e de champagne, declarou-lhe que até lhe daria cinco mil minutos, se tantos fossem precisos. Luís Bastinhos sorriu lisonjeado a essa deslocada insinuação; e, entrando no gabinete particular do major, foi sem mais preâmbulo ao fim da entrevista; pediu-lhe a filha em casamento. O major quis resguardar um pouco a dignidade paterna; mas era impossível. Sua alegria foi uma explosão. — Minha filha! bradou ele; mas... minha filha... ora essa... pois não!... Minha filha! E abria os braços e apertava com eles o jovem candidato, que, um pouco admirado do próprio atrevimento, chegou a perder o uso da voz. Mas a voz era, aliás, inútil, ao menos durante o primeiro quarto de hora, em que só falou o ambiciado sogro, com uma volubilidade sem limites. Cansou enfim, mas de um modo cruel. — Velhacos! disse ele; com que então... amam-se às escondidas... — Eu? — Pois quem? — Peço-lhe perdão, disse Luís Bastinhos; mas não sei... não tenho certeza... — Quê! não se correspondem?... — Não me tenho atrevido... O major abanou a cabeça com certo ar de irritação e lástima; pegou-lhe das mãos e fitou-o durante alguns segundos. — Tu és afinal de contas um pandorga, sim, um pandorga — disse ele, largando-lhe as mãos. Mas o gosto de os ver casados era tal, e tal a alegria daquele dia de anos, que o major sentiu a lástima converter-se em entusiasmo, a irritação em gosto, e tudo acabou em boas promessas. — Pois digo-te, que te hás de casar, concluiu ele; Marcelina é um anjo, tu outro, eu outro; tudo indica que nos devemos ligar por laços mais doces do que as simples relações da vida. Juro-te que serás o pai de meus netos...
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Jurava mal o major, porque daí a meia hora, quando ele chamou a filha ao gabinete, e lhe comunicou o pedido, recebeu desta a mais formal recusa; e por que insistisse em querer concedê-la ao rapaz, disselhe a moça que despediria o pretendente em plena sala, se lhe falassem mais em semelhante absurdo. Caldas que conhecia a filha não disse mais nada. Quando o pretendente lhe perguntou, daí a pouco, se devia considerar-se feliz, ele usou um expediente assaz enigmático: piscou-lhe o olho. Luís Bastinhos ficou radiante; ergueu-se às nuvens nas asas da felicidade. Durou pouco a felicidade; Marcelina não correspondia às promessas do major. Três ou quatro vezes chegara-se a ela Luís Bastinhos, com uma frase piegas na ponta da língua, e vira-se obrigado a engoli-la outra vez, porque a recepção de Marcelina não animava mais. Irritado, foi sentar-se ao canto de uma janela, com os olhos na lua, que estava esplêndida — uma verdadeira nesga de romantismo. Ali fez mil projetos trágicos, o suicídio, o assassinato, o incêndio, a revolução, a conflagração dos elementos; ali jurou que se vingaria de um modo exemplar. Como então soprasse uma brisa fresca, e ele a recebesse em primeira mão, à janela, acalmaram-se-lhe as idéias fúnebres e sangüíneas, e apenas lhe ficou um desejo de vingança de sala. Qual? Não sabia qual fosse; mas trouxe-lha enfim uma sobrinha do major. — Não dança? perguntou ela a Luís Bastinhos. — Eu? — O senhor. — Pois não, minha senhora. Levantou-se e deu-lhe o braço. — De maneira que, disse ela, já agora são as moças que tiram os homens para dançar? — Oh! não! protestou ele. As moças apenas ordenam aos homens o que devem fazer; e o homem que está no seu papel obedece sem discrepar. — Mesmo sem vontade? perguntou a prima de Marcelina. — Quem é que neste mundo pode não ter vontade de obedecer a uma dama? disse Luís Bastinhos com o seu ar mais piegas. Estava em pleno madrigal; iriam longe, porque a moça era das que saboreiam esse gênero de palestra. Entretanto, tinham dado o braço, e passeavam ao longo da sala, à espera da valsa, que se ia tocar. Deu sinal a valsa, os pares saíram, e começou o turbilhão. Não tardou muito que a sobrinha do major compreendesse que estava abraçada a um valsista emérito, a um verdadeiro modelo de valsistas. Que delicadeza! que segurança! que acerto de passos! Ela, que também valsava com muita regularidade e graça, entregou-se toda ao parceiro. E ei-los unidos, a voltearem rapidamente, leves como duas plumas, sem perder um compasso, sem discrepar uma linha. Pouco a pouco, esvaziando-se a arena, iam sendo os dous objeto exclusivo da atenção de todos. Não tardou que ficassem sós; e foi então que o sucesso se formou decisivo e lisonjeiro. Eles giravam e sentiam que eram o alvo da admiração geral; e ao senti-lo, criavam forças novas, e não cediam o campo a nenhum outro. Pararam com a música — Quer tomar alguma cousa? perguntou Luís Bastinhos com a mais adocicada de suas entonações.
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A moça aceitou um pouco de água; e enquanto andavam elogiavam um ao outro, com o maior calor do mundo. Nenhum desses elogios, porém, chegou ao do major, quando daí a pouco encontrou Luís Bastinhos. — Pois você estava com isso guardado! disse ele. — Isso quê? — Isso... esse talento que Deus concedeu a poucos... a bem raros. Sim, senhor; pode crer que é o rei da minha festa. E apertou-lhe muito as mãos, piscando o olho. Luís Bastinhos tinha já perdido toda a fé naquele jeito peculiar do major; recebeu-o com frieza. O sucesso entretanto fora grande; ele o sentiu nos olhares sorrateiros dos outros rapazes, nos gestos de desdém que eles faziam; foi a consagração última. — Com que então, só minha prima é que mereceu uma valsa! Luís Bastinhos estremeceu, ao ouvir esta palavra; voltou-se; deu com os olhos em Marcelina. A moça repetiu o dito, batendo-lhe com o leque no braço. Ele murmurou algumas palavras, que a história não conservou, aliás deviam ser notáveis, porque ele ficou vermelho como uma pitanga. Essa cor ainda se tornou mais viva, quando a moça, enfiando-lhe o braço, disse resolutamente: — Vamos a esta valsa... Tremia o rapaz de comoção; pareceu-lhe ver nos olhos da moça todas as promessas da bem-aventurança; entrou a compreender os piscados do major. — Então? disse Marcelina. — Vamos. — Ou está cansado? — Eu? que idéia. Não, não, não estou cansado. A outra valsa fora um primor; esta foi classificada entre os milagres. Os amadores confessaram francamente que nunca tinham visto um valsador como Luís Bastinhos. Era o impossível realizado; seria a pura arte dos arcanjos, se os arcanjos valsassem. Os mais invejosos tiveram de ceder alguma cousa à opinião da sala. O major chegou às raias do delírio. — Que me dizem a este rapaz? bradou ele a uma roda de senhoras. Ele faz tudo: nada como um peixe e valsa como um pião. Salvou-me a filha para valsar com ela. Marcelina não ouviu estas palavras do pai, ou perdoou-lhas. Estava toda entregue à admiração. Luís Bastinhos era até ali o melhor valsista que encontrara. Ela tinha vaidade e reputação de valsar bem; e achar um parceiro de tal força era a maior fortuna que podia acontecer a uma valsista. Disse-lho ela mesma, não sei se com a boca, se com os olhos, e ele epetiu-lhe a mesma idéia, e foram ratificar daí a pouco as suas impressões numa segunda valsa. Foi outro e maior sucesso.
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Parece que Marcelina valsou ainda uma vez com Luís Bastinhos, mas em sonhos, uma valsa interminável, numa planície, ao som de uma orquestra de diabos azuis e invisíveis. Foi assim que ela referiu o sonho, no dia seguinte, ao pai. — Já sei, disse este; esses diabos azuis e invisíveis deviam ser dous. — Dous? — Um padre e um sacristão... — Ora, papai! E foi um protesto tão gracioso, que o Luís Bastinhos, se o ouvisse e visse, mui provavelmente pediria repetição. Mas nem viu nem soube dele. De noite, indo lá, recebeu novos louvores, falaram do baile da véspera. O major confessou que era o melhor baile do ano; e dizendo-lhe a mesma cousa o Luís Bastinhos, declarou o major que o salvador da filha reunia o bom gosto ao talento coreográfico. — Mas por que não dá outra brincadeira, um pouco mais familiar? disse o Luís Bastinhos. O major piscou o olho e adotou a idéia. Marcelina exigiu de Luís Bastinhos que dançasse com ela a primeira valsa. — Todas, disse ele. — Todas? — Juro-lhe que todas. Marcelina abaixou os olhos e lembrou-se dos diabos azuis e invisíveis. eio a noite da “brincadeira”, e Luís Bastinhos cumpriu a promessa; valsaram ambos todas as valsas. Era quase um escândalo. A convicção geral é que o casamento estava próximo. Alguns dias depois, o major deu com os dous numa sala, ao pé de uma mesa, a folhearem um livro — um livro ou as mãos, porque as mãos de um e de outro estavam sobre o livro, juntas, e apertadas. Parece que também folheavam os olhos, com tanta atenção que não viram o major. O major quis sair, mas preferiu precipitar a situação. — Então que é isso? Estão valsando sem música? Estremeceram os dous e coraram muito, mas o major piscou o olho, e saiu. Luís Bastinhos aproveitou a circunstância para dizer à moça que o casamento era a verdadeira valsa social; idéia que ela aprovou e comunicou ao pai. — Sim, disse este, a melhor Terpsícore é Himeneu. Celebrou-se o casamento daí a dous meses. O Pimentel, que serviu de padrinho ao noivo, disse-lhe na igreja, que em certos casos era melhor valsar que nadar, e que a verdadeira chave do coração de Marcelina não era a gratidão mas a coreografia. Luís Bastinhos abanou a cabeça sorrindo; o major, supondo que eles o elogiavam em voz baixa, piscou o olho.
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A Chinela Turca
ede o bacharel Duarte. Acaba de compor o mais teso e correto laço de gravata que apareceu naquele ano de 1850, e anunciam-lhe a visita do major Lopo Alves. Notai que é de noite, e passa de nove horas. Duarte estremeceu, e tinha duas razões para isso. A primeira era ser o major, em qualquer ocasião, um dos mais enfadonhos sujeitos do tempo. A segunda é que ele preparava-se justamente para ir ver, em um baile, os mais finos cabelos loiros e os mais pensativos olhos azuis que este nosso clima, tão avaro deles, produzira. Datava de uma semana aquele namoro. Seu coração deixando-se prender entre duas valsas, confiou aos olhos, que eram castanhos, uma declaração em regra, que eles pontualmente transmitiram à moça, dez minutos antes da ceia, recebendo favorável resposta logo depois do chocolate. Três dias depois, estava a caminho a primeira carta, e pelo jeito que levavam as coisas não era de admirar que, antes do fim do ano, estivessem ambos a caminho da igreja. Nestas circunstâncias, a chegada de Lopo Alves era uma verdadeira calamidade. Velho amigo da família, companheiro de seu finado pai no exército, tinha jus o major a todos os respeitos. Impossível despedi-lo ou tratá-lo com frieza. Havia felizmente uma circunstância atenuante; o major era aparentado com Cecília, a moça dos olhos azuis; em caso de necessidade, era um voto seguro.
V
Duarte enfiou um chambre e dirigiu-se para a sala, onde Lopo Alves, com um rolo debaixo do braço e os olhos fitos no ar, parecia totalmente alheio à chegada do bacharel. — Que bom vento o trouxe a Catumbi a semelhante hora? perguntou Duarte, dando à voz uma expressão de prazer, aconselhada não menos pelo interesse que pelo bom-tom. — Não sei se o vento que me trouxe é bom ou mau, respondeu o major sorrindo por baixo do espesso bigode grisalho; sei que foi um vento rijo. Vai sair? — Vou ao Rio Comprido. — Já sei; vai à casa da viúva Meneses. Minha mulher e as pequenas já lá devem estar: eu irei mais tarde, se puder. Creio que é cedo, não? Lopo Alves tirou o relógio e viu que eram nove horas e meia. Passou a mão pelo bigode, levantou-se, deu alguns passos na sala, tornou a sentar-se e disse: — Dou-lhe uma notícia, que certamente não espera. Saiba que fiz... fiz um drama. — Um drama! exclamou o bacharel. — Que quer? Desde criança padeci destes achaques literários. O serviço militar não foi remédio que me curasse, foi um paliativo. A doença regressou com a força dos primeiros tempos. Já agora não há mais remédio senão deixá-la, e ir simplesmente ajudando a natureza. Duarte recordou -se de que efetivamente o major falava noutro tempo de alguns discursos inaugurais, duas ou três nênias e boa soma de artigos que escrevera acerca das campanhas do Rio da Prata. Havia
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porém muitos anos que Lopo Alves deixara em paz os generais platinos e os defuntos; nada fazia supor que a moléstia volvesse, sobretudo caracterizada por um drama. Esta circunstância explicá-la-ia o bacharel, se soubesse que Lopo Alves algumas semanas antes, assistira à representação de uma peça do gênero ultra-romântico, obra que lhe agradou muito e lhe sugeriu a idéia de afrontar as luzes do tablado. Não entrou o major nestas minuciosidades necessárias, e o bacharel ficou sem conhecer o motivo da explosão dramática do militar. Nem o soube, nem curou disso. Encareceu muito as faculdades mentais do major, manifestou calorosamente a ambição que nutria de o ver sair triunfante naquela estréia, prometeu que o recomendaria a alguns amigos que tinha no Correio Mercantil, e só estacou e empalideceu quando viu o major, trêmulo de bem-aventurança, abrir o rolo que trazia consigo. — Agradeço-lhe as suas boas intenções, disse Lopo Alves, e aceito o obséquio que me promete; antes dele, porém, desejo outro. Sei que é inteligente e lido; há de me dizer francamente o que pensa deste trabalho. Não lhe peço elogios, exijo franqueza e franqueza rude. Se achar que não é bom, diga-o sem rebuço.
Duarte procurou desviar aquele cálice de amargura; mas era difícil pedi-lo, e impossível alcançá-lo. Consultou melancolicamente o relógio, que marcava nove horas e cinqüenta e cinco minutos, enquanto o major folheava paternalmente as cento e oitenta folhas do manuscrito. - Isto vai depressa, disse Lopo Alves; eu sei o que são rapazes e o que são bailes. Descanse que ainda hoje dançará duas ou três valsas com ela, se a tem, ou com elas. Não acha melhor irmos para o seu gabinete? Era indiferente, para o bacharel, o lugar do suplício; acedeu ao desejo do hóspede. Este, com a liberdade que lhe davam as relações, disse ao moleque que não deixasse entrar ninguém. O algoz não queria testemunhas. A porta do gabinete fechou-se; Lopo Alves tomou lugar ao pé da mesa, tendo em frente o bacharel, que mergulhou o corpo e o desespero numa vasta poltrona de marroquim, resoluto a não dizer palavra para ir mais depressa ao termo. O drama dividia-se em sete quadros. Esta indicação produziu um calafrio no ouvinte. Nada havia de novo naquelas cento e oitenta páginas, senão a letra do autor. O mais eram os lances, os caracteres, as ficelles, e até o estilo dos mais acabados tipos do romantismo desgrenhado. Lopo Alves cuidava pôr por obra uma invenção, quando não fazia mais do que alinhavar as suas reminiscências. Noutra ocasião, a obra seria um bom passatempo. Havia logo no primeiro quadro, espécie de prólogo, uma criança roubada à família, um envenenamento, dois embuçados, a ponta de um punhal e quantidade de adjetivos não menos afiados que o punhal. No segundo quadro dava-se conta da morte de um dos embuçados, que devia ressuscitar no terceiro, para ser preso no quinto, e matar o tirano do sétimo. Além da morte aparente do embuçado, havia no segundo quadro o rapto da menina, já então moça de dezessete anos, um monólogo que parecia durar igual prazo, e o roubo de um testamento. Eram quase onze horas quando acabou a leitura deste segundo quadro. Duarte mal podia conter a cólera; era já impossível ir ao Rio Comprido. Não é fora de propósito conjeturar que, se o major expirasse naquele momento, Duarte agradecia a morte como um benefício da Providência. Os sentimentos do bacharel não faziam crer tamanha ferocidade; mas a leitura de um mau livro é capaz de produzir fenômenos ainda mais espantosos. Acresce que, enquanto aos olhos carnais do bacharel aparecia em toda a sua espessura a
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grenha de Lopo Alves, fugiam-lhe ao espírito os fios de ouro que ornavam a formosa cabeça de Cecília; via-a com os olhos azuis, a tez branca e rosada, o gesto delicado e gracioso, dominando todas as demais damas que deviam estar no salão da viúva Meneses. Via aquilo, e ouvia mentalmente a música, a palestra, o soar dos passos, e o ruge- ruge das sedas; enquanto a voz rouquenha e sensaborona de Lopo Alves ia desfiando os quadros e os diálogos, com a impassibilidade de uma grande convicção. Voava o tempo, e o ouvinte já não sabia a conta dos quadros. Meia-noite soara desde muito; o baile estava perdido. De repente, viu Duarte que o major enrolava outra vez o manuscrito, erguia-se, empertigavase, cravava nele uns olhos odientos e maus, e saía arrebatadamente do gabinete. Duarte quis chamá-lo, mas o pasmo tolhera-lhe a voz e os movimentos. Quando pôde dominar-se, ouviu o bater do tacão rijo e colérico do dramaturgo na pedra da calçada. Foi à janela; nada viu nem ouviu; autor e drama tinham desaparecido. — Por que não fêz ele isso a mais tempo? disse o rapaz suspirando. O suspiro mal teve tempo de abrir as asas e sair pela janela fora, em demanda do Rio Comprido, quando o moleque do bacharel veio anunciar-lhe a visita de um homem baixo e gordo. — A esta hora? exclamou Duarte. — A esta hora, repetiu o homem baixo e gordo, entrando na sala. A esta ou a qualquer hora, pode a polícia entrar na casa do cidadão, uma vez que se trata de um delito grave. — Um delito! — Creio que me conhece... — Não tenho essa honra. — Sou empregado na polícia. — Mas que tenho eu com o senhor? de que delito se trata? — Pouca coisa: um furto. O senhor é acusado de ter subtraído uma chinela turca. Aparentemente não vale nada ou vale pouco a tal chinela. Mas há chinela e chinela. Tudo depende das circunstâncias. O homem disse isto com um riso sarcástico, e cravando no bacharel uns olhos de inquisidor. Duarte não sabia sequer da existência do objeto roubado. Concluiu que havia equívoco de nome, e não se zangou com a injúria irrogada à sua pessoa, e de algum modo à sua classe, atribuindo-se-lhe a ratonice. Isto mesmo disse ao empregado da polícia, acrescentando que não era motivo, em todo caso, para incomodá-lo a semelhante hora. — Há de perdoar-me, disse o representante da autoridade. A chinela de que se trata vale algumas dezenas de contos de réis; é ornada de finíssimos diamantes, que a tornam singularmente preciosa. Não é turca só pela forma, mas também pela origem. A dona, que é uma de nossas patrícias mais viajeiras, esteve, há cerca de três anos no Egito, onde a comprou a um judeu. A história, que este aluno de Moisés referiu acerca daquele produto da indústria muçulmana, é verdadeiramente miraculosa, e, no meu sentir, perfeitamente mentirosa. Mas não vem ao caso dizê-la. O que importa saber é que ela foi roubada e que a polícia tem denúncia contra o senhor.
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Neste ponto do discurso, chegara-se o homem à janela; Duarte suspeitou que fosse um doido ou um ladrão. Não teve tempo de examinar a suspeita, porque dentro de alguns segundos, viu entrar cinco homens armados, que lhe lançaram as mãos e o levaram, escada abaixo, sem embargo dos gritos que soltava e dos movimentos desesperados que fazia. Na rua havia um carro, onde o meteram à força. Já lá estava o homem baixo e gordo, e mais um sujeito alto e magro, que o receberam e fizeram sentar no fundo do carro. Ouviu-se estalar o chicote do cocheiro e o carro partiu à desfilada. — Ah! ah! disse o homem gordo. Com que então pensava que podia impunemente furtar chinelas turcas, namorar moças louras, casar talvez com elas... e rir ainda por cima do gênero humano. Ouvindo aquela alusão à dama dos seus pensamentos, Duarte teve um calafrio. Tratava-se, ao que parecia, de algum desforço de rival suplantado. Ou a alusão seria casual e estranha à aventura? Duarte perdeuse num cipoal de conjeturas, enquanto o carro ia sempre andando a todo galope. No fim de algum tempo, arriscou uma observação. — Quaisquer que sejam os meus crimes, suponho que a polícia... — Nós não somos da polícia, interrompeu friamente o homem magro. — Ah! — Este cavalheiro e eu fazemos um par. Ele, o senhor e eu fazemos um terno. Ora, terno não é melhor que par; não é, não pode ser. Um casal é o ideal. Provavelmente não me entendeu? — Não, senhor. — Há de entender logo mais. Duarte resignou-se à espera, enfronhou-se no silêncio, derreou o corpo, e deixou correr o carro e a aventura. Obra de cinco minutos depois estacavam os cavalos. — Chegamos, disse o homem gordo. Dizendo isto, tirou um lenço da algibeira e ofereceu-o ao bacharel para que tapasse os olhos. Duarte recusou, mas o homem magro observou-lhe que era mais prudente obedecer que resistir. Não resistiu o bacharel; atou o lenço e apeou-se. Ouviu, daí a pouco, ranger uma porta; duas pessoas, - provavelmente as mesmas que o acompanharam no carro, - seguraram -lhe as mãos e o conduziram por uma infinidade de corredores e escadas. Andando, ouvia o bacharel algumas vozes desconhecidas, palavras soltas, frases truncadas. Afinal pararam; disseram-lhe que se sentasse e destapasse os olhos. Duarte obedeceu; mas ao desvendar-se, não viu ninguém mais. Era uma sala vasta, assaz iluminada, trastejada com elegância e opulência. Era talvez sobreposse a variedade dos adornos; contudo, a pessoa que os escolhera devia ter gosto apurado. Os bronzes, charões, tapetes, espelhos, - a cópia infinita de objetos que enchiam a sala, era tudo da melhor fábrica. A vista daquilo restituiu a serenidade de ânimo ao bacharel; não era provável que ali morassem ladrões. Reclinou-se o moço indolentemente na otomana... Na otomana! Esta circunstância trouxe à memória do rapaz o principio da aventura e o roubo da chinela. Alguns minutos de reflexão bastaram para ver que a tal chinela era já agora mais que problemática. Cavando mais fundo no terreno das conjeturas, pareceulhe achar uma explicação nova e definitiva. A chinela vinha a ser pura metáfora; tratava-se do coração
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de Cecília, que ele roubara, delito de que o queria punir o já imaginado rival. A isto deviam ligar-se naturalmente as palavras misteriosas do homem magro: o par é melhor que o terno; um casal é o ideal. — Há de ser isto, concluiu Duarte; mas quem será esse pretendente derrotado? Neste momento abriu-se uma porta do fundo da sala e negrejou a batina de um padre alvo e calvo. Duarte levantou-se, como por efeito de uma mola. O padre atravessou lentamente a sala, ao passar por ele deitou-lhe a bênção, e foi sair por outra porta rasgada na parede fronteira. O bacharel ficou sem movimento, a olhar para a porta, a olhar sem ver, estúpido de todos os sentidos. O inesperado daquela aparição baralhou totalmente as idéias anteriores a respeito da aventura. Não teve tempo, entretanto, de cogitar alguma nova explicação, porque a primeira porta foi de novo aberta e entrou por ela outra figura, desta vez o homem magro, que foi direito a ele e o convidou a segui-lo. Duarte não opôs resistência. Saíram por uma terceira porta, e, atravessados alguns corredores mais ou menos alumiados, foram dar a outra sala, que só o era por duas velas postas em castiçais de prata. Os castiçais estavam sobre uma mesa larga. Na cabeceira desta havia um homem velho que representava ter cinqüenta e cinco anos; era uma figura atlética, farta de cabelos na cabeça e na cara. — Conhece-me? perguntou o velho, logo que Duarte entrou na sala. — Não, senhor. — Nem é preciso. O que vamos fazer exclui absolutamente a necessidade de qualquer apresentação. Saberá em primeiro lugar que o roubo da chinela foi um simples pretexto... — Oh! decerto! interrompeu Duarte. — Um simples pretexto, continuou o velho, para trazê-lo a esta nossa casa. A chinela não foi roubada; nunca saiu das mãos da dona. João Rufino, vá buscar a chinela. O homem magro saiu, e o velho declarou ao bacharel que a famosa chinela não tinha nenhum diamante, nem fora comprada a nenhum judeu do Egito; era, porém, turca, segundo se lhe disse, e um milagre de pequenez. Duarte ouviu as explicações, e, reunindo todas as forças, perguntou resolutamente: — Mas, senhor, não me dirá de uma vez o que querem de mim e o que estou fazendo nesta casa? — Vai sabê-lo, respondeu tranqüilamente o velho. A porta abriu -se e apareceu o homem magro com a chinela na mão. Duarte, convidado a aproximar-se da luz, teve ocasião de verificar que a pequenez era realmente miraculosa. A chinela era de marroquim finíssimo; no assento do pé, estufado e forrado de seda cor azul, rutilavam duas letras bordadas a ouro. — Chinela de criança, não lhe parece? disse o velho. — Suponho que sim. — Pois supõe mal; é chinela de moça. — Será; nada tenho com isso. — Perdão! Tem muito, porque vai casar com a dona. — Casar! exclamou Duarte. — Nada menos. João Rufino, vá buscar a dona da chinela.
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Saiu o homem magro, e voltou logo depois. Assomando à porta, levantou o reposteiro e deu entrada a uma mulher, que caminhou para o centro da sala. Não era mulher, era uma sílfide, uma visão de poeta, uma criatura divina. Era loura; tinha os olhos azuis, como os de Cecília, extáticos, uns olhos que buscavam o céu ou pareciam viver dele. Os cabelos, deleixadamente penteados, faziam-lhe em volta da cabeça um como resplendor de santa; santa somente, não mártir, porque o sorriso que lhe desabrochava os lábios, era um sorriso de bem-aventurança, como raras vezes há de ter tido a terra. Um vestido branco, de finíssima cambraia, envolvia-lhe castamente o corpo, cujas formas aliás desenhava, pouco para os olhos, mas muito para a imaginação. Um rapaz, como o bacharel, não perde o sentimento da elegância, ainda em lances daqueles. Duarte, ao ver a moça, compôs o chambre, apalpou a gravata e fez uma cerimoniosa cortesia, a que ela correspondeu com tamanha gentileza e graça, que a aventura começou a parecer muito menos aterradora. — Meu caro doutor, esta é a noiva. A moça abaixou os olhos; Duarte respondeu que não tinha vontade de casar. — Três coisas vai o senhor fazer agora mesmo, continuou impassivelmente o velho: a primeira, é casar; a segunda, escrever o seu testamento; a terceira engolir droga do Levante... — Veneno! interrompeu Duarte. — Vulgarmente é esse o nome; eu dou-lhe outro: passaporte do céu. Duarte estava pálido e frio. Quis falar, não pôde; um gemido, sequer, não lhe saiu do peito. Rolaria ao chão, se não houvesse ali perto uma cadeira em que se deixou cair. — O senhor, continuou o velho, tem uma fortunazinha de cento e cinqüenta contos. Esta pérola será a sua herdeira universal. João Rufino, vá buscar o padre. O padre entrou, o mesmo padre calvo que abençoara o bacharel pouco antes; entrou e foi direto ao moço, engrolando sonolentamente um trecho de Neemias ou qualquer outro profeta menor; travou-lhe da mão e disse: — Levante-se! — Não! Não quero! Não me casarei! — E isto? disse da mesa o velho, apontando-lhe uma pistola. — Mas então é um assassinato? — É; a diferença está no gênero de morte: ou violenta com isto, ou suave com a droga. Escolha!
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Duarte suava e tremia. Quis levantar-se e não pôde. Os joelhos batiam um contra o outro. O padre chegou-se-lhe ao ouvido, e disse baixinho: — Quer fugir? — Oh! Sim! exclamou, não com os lábios, que podia ser ouvido, mas com os olhos em que pôs toda a vida que lhe restava. — Vê aquela janela? Está aberta; embaixo fica um jardim. Atire-se dali sem medo. — Oh! Padre! disse baixinho o bacharel. — Não sou padre, sou tenente do exército. Não diga nada. A janela estava apenas cerrada; via-se pela fresta uma nesga do céu, já meio claro. Duarte não hesitou, coligiu todas as forças, deu um pulo do lugar onde estava e atirou-se a Deus misericórdia por ali abaixo. Não era grande altura, a queda foi pequena; ergueu-se o moço rapidamente, mas o homem gordo, que estava no jardim, tomou-lhe o passo. — Que é isso? perguntou ele rindo. Duarte não respondeu, fechou os punhos, bateu com eles violentamente nos peitos do homem e deitou a correr pelo jardim fora. O homem não caiu; sentiu apenas um grande abalo; e, uma vez passada a impressão, seguiu no encalço do fugitivo. Começou então uma carreira vertiginosa. Duarte ia saltando cercas e muros, calcando canteiros, esbarrando árvores, que uma ou outra vez se lhe erguiam na frente. Escorria-lhe o suor em bica, alteava-se-lhe o peito, as forças iam a perder-se pouco a pouco; tinha uma das mãos feridas, a camisa salpicada do orvalho das folhas, duas vezes esteve a ponto de ser apanhado, o chambre pegara-se-lhe em uma cerca de espinhos. Enfim, cansado, ferido, ofegante, caiu nos degraus de pedra de uma casa, que havia no meio do último jardim que atravessara. Olhou para trás; não viu ninguém, o perseguidor não o acompanhara até ali. Podia vir, entretanto; Duarte ergueu-se a custo, subiu os quatro degraus que lhe faltavam, e entrou na casa, cuja porta, aberta, dava para uma sala pequena e baixa. Um homem que ali estava, lendo um número do Jornal do Comércio, pareceu não o ter visto entrar. Duarte caiu numa cadeira. Fitou os olhos no homem. Era o major Lopo Alves. O major, empunhando a folha, cujas dimensões iam-se tornando extremamente exíguas, exclamou repentinamente: — Anjo do céu, estás vingado! Fim do último quadro. Duarte olhou para ele, para a mesa, para as paredes, esfregou os olhos, respirou à larga. — Então! Que tal lhe pareceu? — Ah! excelente! Respondeu o bacharel, levantando-se. — Paixões fortes, não? — Fortíssimas. Que horas são? — Deram duas agora mesmo.
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Duarte acompanhou o major até à porta, respirou ainda uma vez, apalpou-se, foi até à janela. Ignora-se o que pensou durante os primeiros minutos; mas, a cabo de um quarto de hora, eis o que ele dizia consigo: — Ninfa, doce amiga, fantasia inquieta e fértil, tu me salvaste de uma ruim peça com um sonho original, substituíste-me o tédio por um pesadelo: foi um bom negócio. Um bom negócio e uma grave lição: provaste-me ainda uma vez que o melhor drama está no espectador e não no palco.
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A Desejada das Gentes
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H! CONSELHEIRO, aí começa a falar em verso. — Todos os homens devem ter uma lira no coração, — ou não sejam homens. Que a lira ressoe a toda a hora, nem por qualquer motivo, não o digo eu, mas de longe em longe, e por algumas reminiscências particulares... Sabe por que é que lhe pareço poeta, apesar das Ordenações do Reino e dos cabelos grisalhos? é porque vamos por esta Glória adiante, costeando aqui a Secretaria de Estrangeiros. . . Lá está o outeiro célebre. . . Adiante há uma casa..
— Vamos andando. — Vamos... Divina Quintília! Todas essas caras que aí passam são outras, mas falam-me daquele tempo, como se fossem as mesmas de outrora; é a lira que ressoa, e a imaginação faz o resto. Divina Quintília! — Chamava-se Quintília? Conheci de vista, quando andava na Escola de Medicina, uma linda moça com esse nome. Diziam que era a mais bela da cidade. — Há de ser a mesma, porque tinha essa fama. Magra e alta? — Isso. Que fim levou? — Morreu em 1859. Vinte de abril. Nunca me há de esquecer esse dia. Vou contar-lhe um caso interessante para mim, e creio que também para o senhor. Olhe, a casa era aquela... Morava com um tio, chefe de esquadra reformado, tinha outra casa no Cosme Velho. Quando conheci Quintília... Que idade pensa que teria, quando a conheci? — Se foi em 1855... — Em 1855. — Devia ter vinte anos. — Tinha trinta. — Trinta? — Trinta anos. Não os parecia, nem era nenhuma inimiga que lhe dava essa idade. Ela própria a confessava e até com afetação. Ao contrário, uma de suas amigas afirmava que Quintília não passa-va dos vinte e sete; mas como ambas tinham nascido no mesmo dia, dizia isso para diminuir-se a si própria. — Mau, nada de ironias; olhe que a ironia não faz boa cama com a saudade. — Que é a saudade senão uma ironia do tempo e da fortuna? Veja lá; começo a ficar sentencioso. Trinta anos; mas em verdade, não os parecia. Lembra-se bem que era magra e alta; tinha os olhos como eu então dizia, que pareciam cortados da capa da última noite, mas apesar de noturnos, sem mistérios nem abismos. A voz era brandíssima, um tanto apaulistada, a boca larga, e os dentes, quando ela simplesmente falava, davam-lhe à boca um ar de riso. Ria também, e foram os risos dela, de parceria com os olhos, que me doeram muito durante certo tempo. — Mas se os olhos não tinham mistérios... — Tanto não os tinham que cheguei ao ponto de supor que eram as portas abertas do castelo, e o riso o clarim que chamava os cavaleiros. Já a conhecíamos, eu e o meu companheiro de escritório, o João
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Nóbrega, ambos principiantes na advocacia, e íntimos como ninguém mais; mas nunca nos lembrou namorá-la. Ela andava então no galarim; era bela, rica, elegante, e da primeira roda. Mas um dia, no antigo Teatro Provisório entre dois atos dos Puritanos, estando eu num corredor, ouvi um grupo de moços que falavam dela, como de uma fortaleza inexpugnável. Dous confessaram haver tentado alguma cousa, mas sem fruto; e todos pasmavam do celibato da moça que lhes parecia sem explicação. E chalaceavam: um dizia que era promessa até ver se engordava primeiro; outro que estava esperando a segunda mocidade do tio para casar com ele; outro que provavelmente encomendara algum anjo ao porteiro do céu; trivialidades que me aborreceram muito, e da parte dos que confessavam tê-la cortejado ou amado, achei que era uma grosseria sem nome. No que eles estavam todos de acordo é que ela era extraordinariamente bela; aí foram entusiastas e sinceros. — Oh! ainda me lembro!... era muito bonita. — No dia seguinte, ao chegar ao escritório, entre duas causas que não vinham, contei ao Nóbrega a conversação da véspera. Nóbrega riu-se do caso, refletiu, e depois de dar alguns passos, parou diante de mim, olhando, calado. — Aposto que a namoras? perguntei-lhe. — Não, disse ele; nem tu? Pois lembrou-me uma cousa: vamos tentar o assalto à fortaleza? Que perdemos com isso? Nada, ou ela nos põe na rua, e já podemos esperá-lo, ou aceita um de nós, e tanto melhor para o outro que verá o seu amigo feliz. — Estás falando sério? — Muito sério. Nóbrega acrescentou que não era só a beleza dela que a fazia atraente. Note que ele tinha a presunção de ser espírito prático, mas era principalmente um sonhador que vivia lendo e construindo aparelhos sociais e políticos. Segundo ele, os tais rapazes do teatro evitavam falar dos bens da moça, que eram um dos feitiços dela, e uma das causas prováveis da desconsolação de uns e dos sarcasmos de todos. E dizia-me: — Escuta, nem divinizar o dinheiro, nem também bani-lo; não vamos crer que ele dá tudo, mas reconheçamos que dá alguma cousa e até muita cousa, — este relógio, por exemplo. Combatamos pela nossa Quintília, minha ou tua, mas provavelmente minha, porque sou mais bonito que tu. — Conselheiro, a confissão é grave, foi assim brincando...? — Foi assim brincando, cheirando ainda aos bancos da academia, que nos metemos em negócio de tanta ponderação, que podia acabar em nada, mas deu muito de si. Era um começo estouvado, quase um passatempo de crianças, sem a nota da sinceridade; mas o homem põe e a espécie dispõe. Conhecíamo-la, posto não tivéssemos encontros freqüentes; uma vez que nos dispusemos a uma ação comum, entrou um elemento novo na nossa vida, e dentro de um mês estávamos brigados. — Brigados? — Ou quase. Não tínhamos contado com ela, que nos enfeitiçou a ambos, violentamente. Em algumas semanas já pouco falávamos de Quintília, e com indiferença; tratávamos de enganar um ao outro e dissimular o que sentíamos. Foi assim que as nossas relações se dissolveram, no fim de seis meses, sem ódio, nem luta, nem demonstração externa, porque ainda nos falávamos, onde o acaso nos reunia; mas já então tínhamos banca separada. — Começo a ver uma pontinha do drama. . . — Tragédia, diga tragédia; porque daí a pouco tempo, ou por desengano verbal que ela lhe desse, ou por
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desespero de vencer, Nóbrega deixou-me só em campo. Arranjou uma nomeação de juiz municipal lá para os sertões da Bahia, onde definhou e morreu antes de acabar o quatriênio. E juro-lhe que não foi o inculcado espírito prático de Nóbrega que o separou de mim; ele, que tanto falara das vantagens do dinheiro, morreu apaixonado como um simples Werther. — Menos a pistola. —Também o veneno mata; e o amor de Quintília podia dizer-se alguma cousa parecido com isso, foi o que o matou, e o que ainda hoje me dói. . . Mas, vejo pelo seu dito que o estou aborrecendo.. . — Pelo amor de Deus. Juro-lhe que não; foi uma graçola que me escapou. Vamos adiante, conselheiro; ficou só em campo. — Quintília não deixava ninguém estar só em campo, — não digo por ela, mas pelos outros. Muitos vinham ali tomar um cálix de esperanças, e iam cear a outra parte. Ela não favorecia a um mais que a outro, mas era lhana, graciosa e tinha essa espécie de olhos derramados que não foram feitos para homens ciumentos. Tive ciúmes amargos e, às vezes, terríveis. Todo argueiro me parecia um cavaleiro, e todo cavaleiro um diabo. Afinal acostumei-me a ver que eram passageiros de um dia. Outros me metiam mais medo, eram os que vinham dentro da luva das amigas. Creio que houve duas ou três negociações dessas, mas sem resultado. Quintília declarou que nada faria sem consultar o tio, e o tio aconselhou a recusa, — cousa que ela sabia de antemão. O bom velho não gostava nunca da visita de homens, com receio de que a sobrinha escolhesse algum e casasse. Estava tão acostumado a trazê-la ao pé de si, como uma muleta da velha alma aleijada, que temia perdê-la inteiramente. — Não seria essa a causa da isenção sistemática da moça? — Vai ver que não. — O que noto é que o senhor era mais teimoso que os outros. . . — ... Iludido, a princípio, porque no meio de tantas candidaturas malogradas, Quintília preferia-me a todos os outros homens, e conversava comigo mais largamente e mais intimamente, a tal ponto que chegou a correr que nos casávamos. — Mas conversavam de quê? — De tudo o que ela não conversava com os outros; e era de fazer pasmar que uma pessoa tão amiga de bailes e passeios, de valsar e rir, fosse comigo tão severa e grave, tão diferente do que costumava ou parecia ser. — A razão é clara: achava a sua conversação menos insossa que a dos outros homens. — Obrigado; era mais profunda a causa da diferença, e a diferença ia-se acentuando com os tempos. Quando a vida cá embaixo a aborrecia muito, ia para o Cosme Velho, e ali as nossas conversações eram mais freqüentes e compridas. Não lhe posso dizer, nem o senhor compreenderia nada, o que foram as horas que ali passei, incorporando na minha vida toda a vida que jorrava dela. Muitas vezes quis dizerlhe o que sentia, mas as palavras tinham medo e ficavam no coração. Escrevi cartas sobre cartas; todas me pareciam frias, difusas, ou inchadas de estilo. Demais, ela não dava ensejo a nada, tinha um ar de velha amiga. No princípio de 1857 adoeceu meu pai em Itaboraí; corri a vê-lo, achei-o moribundo. Este fato reteve-me fora da Corte uns quatro meses. Voltei pelos fins de maio. Quintília recebeu-me triste da minha tristeza, e vi claramente que o meu luto passara aos olhos dela... — Mas que era isso senão amor?
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— Assim o cri, e dispus a minha vida para desposá-la. Nisto, adoeceu o tio gravemente. Quintília não ficava só, se ele morresse, porque, além dos muitos parentes espalhados que tinha, morava com ela agora, na casa da Rua do Catete, uma prima, D. Ana, viúva; mas, é certo que a afeição principal ia-se embora e nessa transição da vida presente à vida ulterior podia eu alcançar o que desejava. A moléstia do tio foi breve; ajudada da velhice, levou-o em duas sema-nas. Digo-lhe aqui que a morte dele lembrou-me a de meu pai, e a dor que então senti foi quase a mesma. Quintília viu-me padecer, compreendeu o duplo motivo, e, segundo me disse depois, estimou a coincidência do golpe, uma vez que tínhamos de o receber sem falta e tão breve. A palavra pareceu-me um convite matrimonial; dois meses depois cuidei de pedi-la em casamento. D. Ana ficara morando com ela e estavam no Cosme Velho. Fui ali, achei-as juntas no terraço, que ficava perto da montanha. Eram quatro horas da tarde de um domingo. D. Ana, que nos presumia namorados, deixou-nos o campo livre. — Enfim! — No terraço, lugar solitário, e posso dizer agreste, proferi a primeira palavra. O meu plano era justamente precipitar tudo, com medo de que, cinco minutos de conversa me tirassem as forças. Ainda assim, não sabe o que me custou; custaria menos uma batalha, e juro-lhe que não nasci para guerras. Mas aquela mulher magrinha e delicada impunha-se-me, como nenhuma outra, antes e depois... — E então? — Quintília adivinhara, pelo transtorno do meu rosto, o que lhe ia pedir, e deixou-me falar para preparar a resposta. A resposta foi interrogativa e negativa. Casar para quê? Era melhor que ficássemos amigos como dantes. Respondi-lhe que a amizade era, em mim, desde muito, a simples sentinela do amor; não podendo mais contê-lo, deixou que ele saísse. Quintília sorriu da metáfora, o que me doeu, e sem razão; ela, vendo o efeito, fez-se outra vez séria e tratou de persuadir-me de que era melhor não casar. — Estou velha, disse ela; vou em trinta e três anos. — Mas se eu a amo assim mesmo, repliquei, e disse-lhe uma porção de cousas, que não poderia repetir agora. Quintília refletiu um instante; depois insistiu nas relações de amizade; disse que, posto que mais moço que ela, tinha a gravidade de um homem mais velho e inspirava-lhe confiança como nenhum outro. Desesperançado, dei algumas passadas, depois sentei-me outra vez e narrei-lhe tudo. Ao saber da minha briga com o amigo e companheiro da academia, e a separação em que ficamos, sentiu-se, não sei se diga, magoada ou irritada. Censurou-nos a ambos, não valia a pena que chegássemos a tal ponto. — A senhora diz isso porque não sente a mesma cousa. — Mas então é um delírio? — Creio que sim; o que lhe afianço é que ainda agora, se fosse necessário, separar-me-ia dele uma e cem vezes; e creio poder afirmar-lhe que ele faria a mesma cousa. Aqui olhou ela espantada para mim, como se olha para uma pessoa cujas faculdades parecem transtornadas; depois abanou a cabeça, e repetiu que fora um erro; não valia a pena. — Fiquemos amigos, disse-me, estendendo a mão. — É impossível; pede-me cousa superior às minhas forças, nunca poderei ver na senhora uma simples amiga; não desejo impor-lhe nada; dir-lhe-ei até que nem mais insisto, porque não aceitaria outra resposta agora. Trocamos ainda algumas palavras, e retirei-me... Veja a minha mão. — Treme-lhe ainda...
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— E não lhe contei tudo. Não lhe digo aqui os aborrecimentos que tive, nem a dor e o despeito que me ficaram. Estava arrependido, zangado, devia ter provocado aquele desengano desde as primeiras semanas, mas a culpa foi da esperança, que é uma planta daninha, que me comeu o lugar de outras plantas melhores. No fim de cinco dias saí para Itaboraí, onde me chamaram alguns interesses do inventário de meu pai. Quando voltei, três semanas depois, achei em casa uma carta de Quintília. — Oh! — Abri-a alvoroçadamente: datava de quatro dias. Era longa; aludia aos últimos sucessos, e dizia cousas meigas e graves. Quintília afirmava ter esperado por mim todos os dias, não cuidando que eu levasse o egoísmo até não voltar lá mais, por isso escrevia-me, pedindo que fizesse dos meus sentimentos pessoais e sem eco uma página de história acabada; que ficasse só o amigo, e lá fosse ver a sua amiga. E concluía com estas singulares palavras: “Quer uma garantia? Juro-lhe que não casarei nunca.” Compreendi que um vínculo de simpatia moral nos ligava um ao outro; com a diferença que o que era em mim paixão específica, era nela uma simples eleição de caráter. Éramos dois sócios, que entravam no comércio da vida com diferente capital: eu, tudo o que possuía; ela, quase um óbolo. Respondi à carta dela nesse sentido; e declarei que era tal a minha obediência e o meu amor, que cedia, mas de má vontade, porque, depois do que se passara entre nós, ia sentir-me humilhado. Risquei a palavra ridículo, já escrita, para poder ir vê-la sem este vexame; bastava o outro. — Aposto que seguiu atrás da carta? É o que eu faria, porque essa moça, ou eu me engano ou estava morta por casar com o senhor. — Deixe a sua fisiologia usual; este caso é particularíssimo. — Deixe-me adivinhar o resto; o juramento era um anzol místico; depois, o senhor, que o recebera, podia desobrigá-la dele, uma vez que aproveitasse com a absolvição. Mas, enfim, correr à casa dele. — Não corri; fui dous dias depois. No intervalo, respondeu ela à minha carta com um bilhete carinhoso, que rematava com esta idéia: “não fale de humilhação, onde não houve público.” Fui, voltei uma e mais vezes e restabeleceram-se as nossas relações. Não se falou em nada; ao princípio, custou-me muito parecer o que era dantes; depois, o demônio da esperança veio pousar outra vez no meu coração; e, sem nada exprimir, cuidei que um dia, um dia tarde, ela viesse a casar comigo. E foi essa esperança que me retificou aos meus próprios olhos, na situação em que me achava. Os boatos de nosso casamento correram mundo. Chegaram aos nossos ouvidos; eu negava formalmente e sério; ela dava de ombros e ria. Foi essa fase da nossa vida a mais serena para mim, salvo um incidente curto, um diplomata austríaco ou não sei que, rapagão, elegante, ruivo, olhos grandes e atrativos, e fidalgo ainda por cima. Quintília mostrou-se-lhe tão graciosa, que ele cuidou estar aceito, e tratou de ir adiante. Creio que algum gesto meu, inconsciente, ou então um pouco da percepção fina que o céu lhe dera, levou depressa o desengano à legação austríaca. Pouco depois ela adoeceu; e foi então que a nossa intimidade cresceu de vulto. Ela, enquanto se tratava, resolveu não sair, e isso mesmo lhe disseram os médicos. Lá passava eu muitas horas diariamente. Ou elas tocavam, ou jogávamos os três, ou então lia-se alguma cousa; a maior parte das vezes conversávamos somente. Foi então que a estudei muito; escutando as suas leituras vi que os livros puramente amorosos achava-os incompreensíveis, e, se as paixões aí eram violentas, largava-os com tédio. Não falava assim por ignorante; tinha notícia vaga das paixões, e assistira a algumas alheias.
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— De que moléstia padecia? — Da espinha. Os médicos diziam que a moléstia não era talvez recente, e ia tocando o ponto melindroso. Chegamos assim a 1859. Desde março desse ano a moléstia agravou-se muito; teve uma pequena parada, mas para os fins do mês chegou ao estado desesperador. Nunca vi depois criatura mais enérgica diante da iminente catástrofe; estava então de uma magreza transparente, quase fluida; ria, ou antes, sorria apenas, e vendo que eu escondia as minhas lágrimas, apertava-me as mãos agradecida. Um dia, estando só com o médico, perguntou-lhe a verdade; ele ia mentir, ela disse-lhe que era inútil, que estava perdida. — Perdida, não, murmurou o médico. — Jura que não estou perdida? — Ele hesitou, ela agradeceu-lho. Uma vez certa que morria, ordenou o que prometera a si mesma. — Casou com o senhor, aposto? — Não me relembre essa triste cerimônia; ou antes, deixe-me relembrá-la, porque me traz algum alento do passado. Não aceitou recusas nem pedidos meus; casou comigo à beira da morte. Foi no dia 18 de abril de 1859. Passei os últimos dois dias, até 20 de abril ao pé da minha noiva moribunda, e abracei-a pela primeira vez feita cadáver. — Tudo isso é bem esquisito. — Não sei o que dirá a sua fisiologia. A minha, que é de profano, crê que aquela moça tinha ao casamento uma aversão puramente física. Casou meio defunta, às portas do nada. Chame-lhe monstro, se quer, mas acrescente divino.
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A Ela
Quem és tu que me atormentas Com teus prazenteiros sorrisos? Quem és tu que me apontas As portas dos paraísos? Imagem do céu és tu? És filha da divindade? Ou vens prender em teus cabelos A minha liberdade?
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ê V. Exa., Sr. presidente, que nesse tempo, o nobre deputado era inimigo de todas as leis opressoras. A assembléia tem visto como ele trata as leis do metro.”
Todo o resto do discurso foi assim. A minoria protestou. Luís Tinoco fez-se de todas as cores, e a sessão acabou em risada. No dia seguinte os jornais amigos de Luís Tinoco agradeceram ao adversário deste o triunfo que lhe proporcionou mostrando à província “uma antiga e brilhante face do talento do ilustre deputado”. Os que indecorosamente riram dos versos, foram condenados com estas poucas linhas: “Há dias um deputado governista disse que a situação era uma caravana de homens honestos e bons. É caravana, não há dúvida; vimos ontem os seus camelos”. Nem por isso, Luís Tinoco ficou mais consolado. As cartas ao Dr. Lemos começaram a escassear, até que de todo cessaram de aparecer. Decorreram assim silenciosos uns três anos, ao cabo dos quais o Dr. Lemos foi nomeado não sei para que cargo na província onde se achava Luís Tinoco. Partiu. Apenas empossado do cargo, tratou de procurar o ex-poeta, e pouco tempo gastou recebendo logo um convite dele para ir a um estabelecimento rural onde se achava. — Há de me chamar ingrato, não? disse Luís Tinoco, apenas viu assomar à porta de casa o Dr. Lemos. Mas não sou; contava ir vê-lo daqui a um ano; e se lhe não escrevi... Mas que tem doutor? está espantado? O Dr. Lemos estava efetivamente pasmado a olhar para a figura de Luís Tinoco. Era aquele o poeta dos Goivos e Camélias, o eloqüente deputado, o fogoso publicista? O que ele tinha diante de si era um honrado e pacato lavrador, ar e maneiras rústicas, sem o menor vestígio das atitudes melancólicas do poeta, do gesto arrebatado do trbuno, - uma transformação, uma criatura muito outra e muito melhor. Riram-se ambos, um da mudança, outro do espanto, pedindo o Dr. Lemos a Luís Tinoco lhe dissesse se era certo haver deixado a política, ou se aquilo eram apenas umas férias para renovar a alma. — Tudo lhe explicarei, doutor, mas há de ser depois de ter examinado a minha casa e minha roça, depois de lhe apresentar minha mulher e meus filhos...
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— Casado? — Há vinte meses. — E não me disse nada! — Ia este ano à corte e esperava surpreendê-lo... Que duas criancinhas as minhas... lindas como dois anjos. Saem à mãe, que é a flor da província. Oxalá pareçam também com ela nas qualidades de dona de casa; que atividade! que economia!...
Feita a apresentação, beijadas as crianças, examinado tudo, Luís Tinoco declarou ao Dr. Lemos que definitivamente deixara a política. — De vez? — De vez. — Mas que motivo? desgostos, naturalmente. — Não; descobri que não era fadado para grandes destinos. Um dia leram-me na assembléia alguns versos meus. Reconheci então quanto eram pífios os tais versos; e podendo vir mais tarde a olhar com a mesma lástima e igual arrependimento para as minhas obras políticas, arrepiei carreira e deixei a vida pública. Uma noite de reflexão e nada mais. — Pois teve ânimo?... — Tive, meu amigo, tive ânimo de pisar terreno sólido, em vez de patinhar nas ilusões dos primeiros dias. Eu era um ridículo poeta e talvez ainda mais ridículo orador. Minha vocação era esta. Com poucos anos mais estou rico. Ande agora beber o café que nos espera e feche a boca, que as moscas andam no ar.
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A Heranรงa
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enância tinha dois sobrinhos, Emílio e Marcos; o primeiro de vinte e oito, o segundo de trinta e quatro anos. Marcos era o seu mordomo, esposo, pai, filho, médico e capelão. Ele cuidava-lhe da casa e das contas, aturava os seus reumatismos e arrufos, ralhava-lhe às vezes, brandamente, obedecia-lhe sem murmúrio, cuidava-lhe da saúde e dava-lhe bons conselhos. Era um rapaz tranqüilo, medido, geralmente silencioso, pacato, avesso a mulheres, indiferente a teatros, a saraus. Não se irritava nunca, não teimava, parecia não ter opiniões nem simpatias. O único sentimento manifesto era a dedicação a D. Venância. Emílio era em muitos pontos o contraste de Marcos, seu irmão. Primeiramente, era um dândi, turbulento, frívolo, sedento de diversões, vivendo na rua e na casa dos outros, dans le monde. Tinha cóleras, que duravam o tempo das opiniões; minutos apenas. Era alegre, falador, expansivo, como um namorado de primeira mão. Gastava às mãos largas. Vivia duas horas por dia em casa do alfaiate, uma hora em casa do cabeleireiro, o resto do tempo na Rua do Ouvidor; salvo o tempo em que dormia em casa, que não era a mesma casa de D. Venância, e o pouco em que ia visitar a tia. Exteriormente era um elegante; interiormente era um bom rapaz, mas um verdadeiro bom rapaz. Não tinham pai nem mãe; Marcos era advogado; Emílio formara -se em medicina. Por um alto sentimento de humanidade, Emílio não exercia a profissão; o obituário conservava o termo médio usual. Mas, tendo um e outro herdado alguma coisa dos pais, Emílio mordia razoavelmente a parte da herança, que aliás o irmão administrava com muito zelo. Moravam juntos, mas tinham a casa dividida de maneira que não podiam tolher a liberdade um do outro. Às vezes passavam-se três ou quatro dias sem se verem; e é justo dizer que as saudades primeiro feriam Emílio do que ao irmão. Ao menos era ele quem, depois de larga ausência, se assim podemos chamar-lhe, entrava mais cedo para casa a esperar que Marcos viesse da casa de D. Venância. — Por que não foste à casa de titia? perguntava Marcos, logo que ele dizia estar a esperá-lo durante muito tempo. Emílio erguia os ombros, como rejeitando a idéia desse sacrifício voluntário. Depois, conversavam, riam um pouco; Emílio referia anedotas, fumava dois charutos, e só se levantava quando o outro confessava estar a cair de sono. Emílio, que não dormia antes das três ou quatro, nunca tinha sono; lançava mão de um romance francês e ia devorá-lo na cama até a hora habitual. Mas esse frívolo tinha ocasiões de seriedade; numa doença do irmão, velou-lhe longos dias à cabeceira, com uma dedicação verdadeiramente materna. Marcos sabia que ele o amava. Não amava, entretanto, a tia; se fosse mau, podia detestá-la; mas se não a detestava, confessava intimamente que ela o aborrecia. Marcos, quando o irmão repetia isso, tratava de o reduzir a melhor sentimento; e com tão boas razões que Emílio, não se atrevendo a contestá-lo e não querendo sair de sua opinião, recolhia-se a um eloqüente silêncio. Ora, D. Venância encontrava essa repulsa, talvez pelo excesso mesmo de seu afeto. Emílio era o predileto de seus sobrinhos; ela adorava-o. A melhor hora do dia era a que ele lhe destinava a ela. Na ausência falava de Emílio a propósito de qualquer coisa. Geralmente o rapaz ia à casa da tia, entre as duas e três horas; raras vezes à noite. Que alegria quando ele entrava! que afagos! que intermináveis carinhos!
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— Vem cá, ingrato, senta-te aqui ao pé da velha. Como passaste de ontem? — Bem, respondia Emílio sorrindo contrafeito. — Bem, arremedava a tia; diz aquilo como se não fosse verdade. E quem sabe mesmo? Tiveste alguma coisa? — Nada, não tive nada. — Pensei. D. Venância tranqüilizava-se; depois vinha um rosário de perguntas e outro de anedotas. No meio de umas e outras, se via algum gesto de incômodo no sobrinho, interrompia-se para perguntar se estava incomodado, se queria tomar alguma coisa. Mandava fechar as janelas de onde supunha que vinha ar; fazia-o trocar de cadeira, se lhe parecia que a que ele ocupava era menos cômoda. Esse excesso de cautelas e cuidados fatigavam o moço. Ele obedecia passivamente, falava pouco, ou o menos que lhe era possível. Quando resolvia sair, tornava-se perfidamente mais alegre e carinhoso, açucarava um cumprimento, punha-lhe mesmo alguma coisa do coração, e despedia-se. D. Venância, que ficava com essa impressão última, confirmava-se nos seus sentimentos a respeito de Emílio, a quem proclamava o primeiro sobrinho deste mundo. Pela sua parte, Emílio descia as escadas mais aliviado; e no coração, lá no mais fundo do coração, uma voz secreta sussurrava estas palavras cruéis: — Quer-me muito bem, mas é muito amoladora. A presença de Marcos era uma troca de papéis. A acariciada era ela. D. Venância tinha seus momentos de enfado e de zanga, gostava de ralhar, de bater no próximo. Sua alma era uma fonte de duas bicas, vertia mel por uma e vinagre pela outra. Sabia que o melhor meio de aturar menos, era não imitá-la. Calava-se, sorria, aprovava tudo, com uma docilidade exemplar. Outra vezes, conforme o assunto e a ocasião, reforçava os sentimentos pessimistas da tia, e ralhava, não com igual veemência, porque ele estava incapaz de a fingir, mas na conformidade das idéias dela. Presente a tudo, não esquecia, no meio de um discurso de D. Venância, de lhe acomodar melhor o banquinho dos pés. Sabia-lhe os hábitos, e ordenava as coisas de maneira que lhe não faltasse nada. Ele era a Providência de D. Venância e o seu pára-raios. De mês em mês prestava-lhe contas; e nessas ocasiões só uma alma forte podia resistir ao suplício. Cada aluguel trazia um discurso; cada obra nova ou conserto produzia objurgatória. Ao cabo, D. Venância não ficava com a menor idéia das contas, tão ocupada estava em desabafar o seu reumatismo; e Marcos, se quisesse afrouxar um pouco a consciência, podia dar às contas certa elasticidade. Não o fazia; era incapaz de o fazer. Quem dissesse que na dedicação de Marcos entrava um pouco de interesse, podia dormir com a consciência tranqüila, pois não caluniava ninguém. Havia afeto, mas não havia só isso. D. Venância possuía bons prédios, e tinha só três parentes. O terceiro parente era uma sobrinha, que morava com ela, moça de vinte anos, graciosa, doida por música e confeitos. D. Venância também a estimava muito, quase tanto como a Emílio. Meditava até casá-la antes de morrer; e só tinha dificuldade em achar um noivo digno da noiva. Um dia, no meio de uma conversa com Emílio, aconteceu-lhe dizer: — Quando te casares, adeus tia Venância! Esta palavra foi um raio de luz. — Casar! pensou ela, mas por que não com a Eugênia?
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Nessa noite não cuidou mentalmente de outras coisas. Marcos nunca a vira tão taciturna; chegou a supor que ela estivesse zangada com ele. D. Venância não disse, durante essa noite, mais de quarenta palavras. Olhava para Eugênia, lembrava-se de Emílio, e dizia consigo: — Mas como é que não lembrei disso há mais tempo? Nasceram um para o outro. São bonitos, bons, jovens. — Só se ela tiver algum namoro; mas quem seria? No dia seguinte sondou a moça; Eugênia, que não pensava em ninguém, disse francamente que trazia o coração como lho haviam dado. D. Venância exultou; riu-se muito; jantou mais do que de costume. Restava sondar Emílio no dia seguinte. Emílio respondeu a mesma coisa. — Deveras! exclamou a tia. — Pois então! — Não gostas de nenhuma moça? não tens nada em vista? — Nada. — Tanto melhor! tanto melhor! Emílio saiu aturdido e um pouco vexado. A pergunta, a insistência, a alegria, tudo aquilo tinha um ar pouco tranqüilizador para ele. — Quererá casar comigo? Não perdeu muito tempo em conjecturas. D. Venância, que, com os seus sessenta anos, receava qualquer surpresa da morte, apressara-se a falar diretamente à sobrinha. Era difícil; mas D. Venância passava por ter um gênio original, que é a coisa mais vantajosa que pode acontecer à gente, quando quer passar por cima de certas consideraeões. Perguntou diretamente a Eugênia se estimaria casar com Emílio; Eugênia, que nunca pensara em tal, respondeu que lhe era indiferente. — Indiferente só? perguntou D. Venância. — Posso casar. — Sem vontade, sem gosto, só por obedecer?... — Oh! não! — Velhaca! Confessa que gostas dele. Eugênia não se lembrara disso; mas respondeu com um sorriso e baixou os olhos, gesto que podia dizer muita coisa e nada. D. Venância interpretou-o como uma afirmativa, talvez porque ela preferia a afirmativa. Quanto a Eugênia, ficou abalada com a proposta da tia, mas não lhe durou muito o abalo; foi tocar música. De tarde pensou outra vez na conversa que tivera, começou a lembrar-se de Emílio, foi ver o retrato dele que havia no álbum. Realmente, entrou a parecer-lhe que gostava do moço. A tia, que o dizia, é porque o percebera. Que admira? Um rapaz bonito, elegante, distinto. Era isso; devia amá-lo; devia casar com ele.
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Emílio foi menos fácil de contentar-se. Quando a tia lhe deu a entender que havia uma pessoa que o amava, teve um sobressalto; quando lhe disse que era uma moça, teve outro. Céus! um romance! A imaginação de Emílio construiu logo vinte capítulos, cada qual mais cheio de luas e miosótis. Enfim, soube que se tratava de Eugênia. A noiva não era de desprezar; mas tinha o defeito de ser um santo de casa. — E escusas de fazer essa cara, disse D. Venância; eu já percebi que gostas dela. — Eu? — Não; hei de ser eu. — Mas, titia... — Deixa-te de partes! Já percebi. Não me zango; pelo contrário, aprovo e até desejo. Emílio quis recusar de uma só vez; mas era difícil; tomou a resolução de contemporizar. D. Venância, a muito custo, concedeu-lhe oito dias. — Oito dias! exclamou o sobrinho. — Em menos tempo fez Deus o mundo, redargüiu D. Venância sentenciosamente. Emílio sentiu que a coisa era um pouco dura de roer assim feita às pressas. Comunicou suas impressões ao irmão. Marcos aprovou a tia. — Também tu? — Também. A Eugênia é bonita, gosta de ti; titia faz gosto. Que mais queres? — Mas é que nunca pensei em semelhante coisa. — Pois pensa agora. Em oito dias pensarás nela e talvez acabes por gostar... Acabas com certeza. — Que maçada! — Não acho. — É porque não é contigo. — Se fosse era a mesma coisa. — Casavas? — No fim de oito dias. — Admiro-te. Custa-me a crer que um homem se case, assim como faz uma viagem a Vassouras. — O casamento é uma viagem a Vassouras; não custa mais nem menos. Marcos disse ainda outras coisas mais, no sentido de animar o irmão. Ele aprovava o casamento, não só porque Eugênia merecia, como porque era muito melhor que tudo ficasse em casa. Não interrompeu Emílio as suas visitas cotidianas; mas os dias passavam-se e ele não se sentia mais disposto ao casamento. No sétimo dia, despediu-se da tia e da prima, com uma cara lúgubre. — Qual! dizia Eugênia; ele não casa comigo. No oitavo dia, D. Venância recebeu uma carta de Emílio, pedindo-lhe muitos perdões, fazendo-lhe carícias sem fim, mas acabando por uma negativa franca. D. Venância ficou desconsolada; tinha feito nascer esperanças no coração da sobrinha, e não as podia realizar de nenhuma maneira. Chegou a ter um movimento de cólera contra o rapaz, mas arrependeu-se dele até morrer. Um sobrinho tão amável! que recusava com tão bons modos! Era pena que não aceitasse, mas se ele não amava, podia ela obrigá-lo ao casamento? Suas reflexões foram essas, tanto à sobrinha, que aliás não chorou, posto ficasse um pouco triste, como ao sobrinho Marcos, que só tarde soubera da recusa do irmão.
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— Aquilo é uma cabeça de vento! disse ele. D. Venância defendeu-o, como confessou que se acostumara à idéia de deixar Eugênia casada e bem casada. Enfim não se pode forçar os corações. Isso mesmo repetiu ela quando Emílio a foi ver daí a dias, um tanto envergonhado da recusa. Emílio, que esperava achá-la no mais agudo de seus reumatismos, achou-a risonha como de costume. Mas a recusa de Emílio não foi aceita tão filosoficamente pelo irmão. Marcos não achara a recusa, nem bonita nem prudente. Era um erro e uma tolice. Eugênia era uma noiva digna até de um sacrifício. Sim; tinha qualidades notáveis. Marcos atentou nelas. Viu que efetivamente a moça não valia o modo por que o irmão a tratara. A resignação com que aceitava a recusa era na verdade digna de respeito. Marcos simpatizou com esse proceder. Não menos lhe doeu a dor da tia, que não alcançava realizar o desejo de deixar Eugênia entregue a um bom marido. — Que bom marido não podia ser ele? Marcos seguiu esta idéia com alma, com afinco, com desejo de acertar. Sua solicitude dividiu-se entre Eugênia e D. Venância — o que era servir a D. Venância. Um dia entestou com o assunto... — Titia, disse ele, oferecendo-lhe torradinhas, eu desejava pedir-lhe um conselho. — Tu? Pois tu pedes conselhos, Marcos?... — Às vezes, redargüiu ele sorrindo. — Que é? — Se a prima Eugênia me aceitasse por marido, a senhora aprovava o casamento? D. Venância olhou para Eugênia espantada, Eugênia, não menos espantada do que ela, olhou para o primo. Este olhava para ambas. — Aprovava? repetiu ele. — Que dizes? disse a tia voltando-se para a moça. — Farei o que titia quiser, respondeu Eugênia olhando para o chão. — O que eu quiser, não, tornou D. Venância; mas confesso que aprovo, se for do teu gosto. — É? perguntou Marcos. — Não sei, murmurou a moça. A tia cortou a dificuldade dizendo que ela podia responder daí a quatro, seis ou oito dias. — Quinze ou trinta, acudiu Marcos; um ou mais meses. Meu desejo é que fosse logo, mas não desejo surpreender seu coração; prefiro que escolha com tranqüilidade. É assim que nossa boa tia deseja também... D. Venância aprovou as palavras de Marcos, e deu à sobrinha dois meses. Eugênia não disse sim nem não; mas no fim daquela semana declarou à tia que estava pronta a receber o primo por esposo.
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— Já! exclamou a tia, referindo-se à curteza do prazo da resposta. — Já! respondeu Eugênia, referindo-se à data do casamento. E D. Venância, que o percebeu pelo tom, riu-se muito e deu a notícia ao sobrinho. O casamento efetuou-se dai a um mês. As testemunhas foram D. Venância, Emílio e um amigo da casa. O irmão do noivo parecia satisfeito com o resultado. — Ao menos, dizia ele consigo, ficamos todos satisfeitos. Marcos ficou morando em casa, de modo que nem retirava a companhia de Eugênia nem a sua. D. Venância tinha assim uma vantagem mais. — Agora o que é preciso é casar o Emílio, dizia ela. — Por quê? perguntava Emílio. — Porque é preciso. Meteu-se-me isso na cabeça. Emílio não ficou mais amigo da casa depois do casamento. Continuava a lá ir o menos que podia. Com os anos, D. Venância ia ficando de uma ternura mais difícil de suportar, pensava ele. Para compensar a ausência de Emílio, tinha ela o zelo e a companhia de Eugênia e Marcos. Este era ainda o seu mestre e guia. Um dia adoeceu deveras a sra. D. Venância; esteve um mês de cama, durante o qual os dois sobrinhos casados não lhe saíram da cabeceira. Emílio ia vê-la, mas só fez quarto a última noite, quando ela ficara delirante. Antes disso ia vê-la, e saía de lá muito contra a vontade dela. — Onde está o Emílio? perguntava de quando em quando. — Já vem, diziam-lhe os outros. O remédio que Emílio lhe dava era bebido sem hesitação. Sorria até. — Pobre Emílio! vais perder tua tia. — Não diga isso. Ainda vamos dançar uma valsa. — No outro mundo, pode ser. A moléstia agravou-se; os médicos desenganaram a família. Mas antes do delírio, sua última palavra foi ainda uma lembrança a Emílio; e quem a ouviu foi Marcos que cabeceava de sono. Se quase não dormia! Emílio não estava presente quando ela expirou. Morreu, enfim, sem nada dizer de suas disposições testamentárias. Não era preciso; todos sabiam que ela tinha o testamento em poder de um velho amigo de seu marido. D. Venância nomeou Emílio seu herdeiro universal. Aos outros sobrinhos deixou um razoável legado. Marcos contava com uma divisão, em partes iguais, pelos três. Enganara-se, e filosofou muito sobre o caso. Que havia feito o irmão para merecer tamanha distinção? Nada; deixara-se amar apenas. D. Venância era a imagem da fortuna.
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A Mulher de Preto
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primeira vez que o Dr. Estêvão Soares falou ao deputado Meneses foi no Teatro Lírico no tempo da memorável luta entre lagruístas e chartonistas. Um amigo comum os apresentou ao outro. No fim da noite separaram-se oferecendo cada um deles os seus serviços e trocando os respectivos cartões de vísita. Só dous meses depois encontraram-se outra vez.
Estêvão Soares teve de ir à casa de um ministro de Estado para saber de uns papéis relativos a um parente da província, e aí encontrou o deputado Meneses, que acabava de ter uma conferência política. Houve sincero prazer em ambos encontrando-se pela segunda vez; e Meneses arrancou de Estêvão a promessa de que iria à casa dele daí a poucos dias. O ministro depressa despachou o jovem médico. Chegando ao corredor, Estêvão foi surpreendido com uma tremenda bátega d’água, que nesse momento caía, e começava a alagar a rua. O rapaz olhou a um e outro lado a ver se passava algum veículo vazio, mas procurou inutilmente; todos que passavam iam ocupados. Apenas à porta estava um coupé vazio à espera de alguém, que o rapaz supôs ser o deputado. Daí a alguns minutos desce com efeito o representante da nação, e admirou-se de ver o médico ainda à porta. — Que quer? disse-lhe Estêvão; a chuva impediu-me de sair; aqui fiquei a ver se passa um tílburi. — É natural que não passe, e nesse caso ofereço-lhe um lugar no meu coupé. Venha. — Perdão; mas é um incômodo... — Ora, incômodo ! É um prazer. Vou deixá-lo em casa. Onde mora? — Rua da Misericórdia n.°... — Bem, suba. Estêvão hesitou um pouco mas não podia deixar de subir sem ofender o digno homem que de tão boa vontade lhe fazia um obséquio. Subiram. Mas em vez de mandar o cocheiro para a Rua da Misericórdia, o deputado gritou: — João, para casa! E entrou. Estêvão olhou para ele admirado. — Já sei, disse-lhe Meneses; admira-se de ver que faltei à minha palavra; mas eu desejo apenas que fique conhecendo a minha casa a fim de lá voltar quanto antes.
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O coupé rolava já pela rua fora debaixo de uma chuva torrencial. Meneses foi o primeiro que rompeu o silêncio de alguns minutos, dizendo ao jovem amigo: — Espero que o romance da nossa amizade não termine no primeiro capítulo. Estêvão, que já reparara nas maneiras solícitas do deputado, ficou inteiramente pasmado quando lhe ouviu falar no romance da amizade. A razão era simples. O amigo que os havia apresentado no Teatro Lírico disse no dia seguinte: — Meneses é um misantropo, e um céptico; não crê em nada, nem estima ninguém. Na política como na sociedade faz um papel puramente negativo. Esta era a impressão com que Estêvão, apesar da simpatia que o arrastava, falou a segunda vez a Meneses, e admirava-se de tudo, das maneiras, das palavras, e do tom de afeto que elas pareciam revelar. À linguagem do deputado o jovem médico respondeu com igual franqueza. — Por que acabaremos no primeiro capítulo? perguntou ele; um amigo não é cousa que se despreze, acolhe-se como um presente dos deuses. — Dos deuses! disse Meneses rindo; já vejo que é pagão. — Alguma cousa, é verdade; mas no bom sentido, respondeu Estêvão rindo também. Minha vida assemelha-se um pouco à de Ulisses... — Tem ao menos uma Ítaca, sua pátria, e uma Penélope, sua esposa. — Nem uma nem outra. — Então entender-nos-emos. Dizendo isto o deputado voltou a cara para o outro lado, vendo a chuva que caía na vidraça da portinhola. Decorreram. dous ou três minutos, durante os quais Estêvão teve tempo de contemplar a seu gosto o companheiro de viagem. Meneses voltou-se e entrou em novo assunto. Quando o coupé entrou na Rua do Lavradio, Meneses disse ao médico: — Moro nesta rua; estamos perto de casa. Promete-me que há de vir ver-me algumas vezes? — Amanhã mesmo. — Bem. Como vai a sua clínica? — Apenas começo, disse Estêvão; trabalho pouco; mas espero fazer alguma cousa. — O seu companheiro, na noite em que mo apresentou, disse-me que o senhor é moço de muito merecimento. — Tenho vontade de fazer alguma cousa. Daí a dez minutos parava o coupé à porta de uma casa da Rua do Lavradio. Apearam-se os dous e subiram. Meneses mostrou a Estêvão o seu gabinete de trabalho, onde haviam duas longas estantes de livros.
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— É a minha família, disse o deputado mostrando os livros. História, filosofia, poesia... e alguns livros de política. Aqui estudo e trabalho. Quando cá vier é aqui que o hei de receber. Estêvão prometeu voltar no dia seguinte, e desceu para entrar no coupé que esperava por ele, e que o levou à Rua da Misericórdia. Entrando em casa Estêvão dizia consigo: “Onde está a misantropia daquele homem? As maneiras de misantropo são mais rudes do que as dele; salvo se ele, mais feliz do que Diógenes, achou em mim o homem que procurava.”
II Estêvão era o tipo do rapaz sério. Tinha talento, ambição e vontade de saber, três armas poderosas nas mãos de um homem que tenha consciência de si. Desde os dezesseis anos a sua vida foi um estudo constante, aturado e profundo. Destinado ao curso médico, Estêvão entrou na academia um pouco forçado, não queria desobedecer ao pai. A sua vocação era toda para as matemáticas. Que importa? disse ele ao saber da resolução paterna; estudarei a medicina e a matemática. Com efeito teve tempo para uma e outra cousa; teve tempo ainda para estudar a literatura, e as principais obras da antigüidade e contemporâneas eram-lhe tão familiares como os tratados de operações e de higiene. Para estudar tanto, foi-lhe preciso sacrificar uma parte da saúde. Estêvão aos vinte e quatro anos adquirira uma magreza, que não era a dos dezesseis; tinha a tez pálida e a cabeça pendia-lhe um pouco para a frente pelo longo hábito da leitura. Mas esses vestígios de uma longa aplicação intelectual não Ihe alteraram a regularidade e harmonia das feições, nem os olhos perderam nos livros o brilho e a expressão. Era além disso naturalmente elegante, não digo enfeitado, que é coisa diferente: era elegante nas maneiras, na atitude, no sorriso, no trajo, tudo mesclado de uma certa severidade que era o cunho do seu caráter. Podia-se notar-lhe muitas infrações ao código da moda; ninguém poderia dizer que ele faltasse nunca às boas regras do gentleman. Perdera os pais aos vinte anos, mas ficara-lhe bastante juízo para continuar sozinho a viagem do mundo. O estudo serviu-lhe de refúgio e bordão. Não sabia nada do que era o amor. Ocupara-se tanto com a cabeça que esquecera-se de que tinha um coração dentro do peito. Não se infira daqui que Estêvão fosse puramente um positivista. Pelo contrário, a alma dele possuía ainda em toda a plenitude da graça e da força as duas asas que a natureza lhe dera. Não raras vezes rompia ela do cárcere da carne para ir correr os espaços do céu, em busca de não sei que ideal mal definido, obscuro, incerto. Quando voltava desses êxtases, Estêvão curava-se deles enterrando-se nos volumes à cata de uma verdade científica. Newton era-lhe o antídoto de Goethe. Além disso, Estêvão tinha idéias singulares. Havia um padre, amigo dele, rapaz de trinta anos, da escola de Fénelon, que entrava com Telêmaco na ilha de Calipso. Ora, o padre dizia muitas vezes a Estêvão que só uma cousa lhe faltava para ser completo: era casar-se.
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— Quando você tiver, dizia-lhe, uma mulher amada e amante ao pé de si, será um homem feliz e completo. Dividirá então o tempo entre as duas cousas mais elevadas que a natureza deu ao homem, a inteligência e o coração. Nesse dia quero eu mesmo casá-lo... — Padre Luís, respondia Estêvão, faça-me então o serviço completo: traga-me a mulher e a bênção. O padre sorria-se ao ouvir a resposta do médico, e como o sorriso parecia a Estêvão uma nova pergunta, o médico continuava: — Se encontrar uma mulher tão completa como eu exijo, afirmo-lhe que me casarei. Dirá que as obras humanas são imperfeitas, e eu não contestarei, Padre Luís; mas nesse caso deixe-me caminhar só com as minhas imperfeições. Daqui engendrava-se sempre uma discussão, que se animava e crescia até o ponto em que Estêvão concluía por este modo:
— Padre Luís, uma menina que deixa as bonecas para ir decorar mecanicamente alguns livros mal escolhidos; que interrompe uma lição para ouvir contar uma cena de namoro; que em matéria de arte só conhece os figurinos parisienses; que deixa as calças para entrar no baile, e que antes de suspirar por um homem, examina-lhe a correção da gravata, e o apertado do botim; Padre Luís, esta menina pode vir a ser um esplêndido ornamento de salão e até uma fecunda mãe de família, mas nunca será uma mulher. Esta sentença de Estêvão tinha o defeito de certas regras absolutas. Por isso, o padre dizia-lhe sempre: — Tem você razão; mas eu não lhe digo que case com a regra; procure a exceção que há de encontrar e leve-a ao altar, onde eu estarei para os unir. Tais eram os sentimentos de Estêvão em relação ao amor e à mulher. A natureza dera-lhe em parte esses sentimentos, mas em parte adquiriu-os ele nos livros. Exigia a perfeição intelectual e moral de uma Heloísa; e partia da exceção para estabelecer uma regra. Era intolerante para os erros veniais. Não os reconhecia como tais. Não há erro venial, dizia ele, em matéria de costumes e de amor. Contribuíra para esta rigidez de ânimo o espetáculo da própria família de Estêvão. Até aos vinte anos foi ele testemunha do que era a santidade do amor mantido pela virtude doméstica. Sua mãe, que morrera com trinta e oito anos, amou o marido até os últimos dias, e poucos meses lhe sobreviveu. Estêvão soube que fora ardente e entusiástico o amor de seus pais, na estação do noivado, durante a manhã conjugal; conheceu-o assim por tradição; mas na tarde conjugal a que ele assistiu viu o amor calmo, solícito e confiante, cheio de dedicação e respeito, praticado como um culto; sem recriminações nem pesares, e tão profundo como no primeiro dia. Os pais de Estêvão morreram amados e felizes na tranqüila seriedade do dever. No ânímo de Estêvão, o amor que funda a família devia ser aquilo ou não seria nada. Era justiça; mas a intolerância de Estêvão começava na convicção que ele tinha de que com a dele morrera a última família, e fora com ela a derradeira tradição do amor.
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Que era preciso para derrubar todo este sistema, ainda que momentâneo? Uma cousa pequeníssima: um sorriso e dous olhos. Mas como esses dous olhos não apareciam, Estêvão entregava-se na maior parte do tempo aos seus estudos científicos, empregando as horas vagas em algumas distrações que o não prendiam por muito tempo. Morava só; tinha um escravo, da mesma idade que ele, e cria da casa do pai, - mais irmão do que escravo, na dedicação e no afeto. Recebia alguns amigos, a quem visitava de quando em quando de quando, entre os quais incluímos o jovem Padre Luís, a quem Estevão chamava - Platão de sotaina. Naturalmente bom e afetuoso, generoso e cavalheiresco, sem ódios nem rancores, entusiasta por todas as cousas boas e verdadeiras, tal era o Dr. Estevão Soares, aos vinte e quatro anos de idade. Do seu retrato físico já dissemos alguma cousa. Bastará acrescentar que tinha uma bela cabeça, coberta de bastos cabelos castanhos, dous olhos da mesma cor, vivos e observadores; a palidez do rosto fazia realçar o bigode naturalmente encaracolado. Era alto e tinha mãos admiráveis.
III Estêvão Soares visitou Meneses no dia seguinte. O deputado esperava-o, e recebeu-o como se fosse um amigo velho. Estêvão marcara a hora da visita, que impossibilitava a presença de Meneses na Camara; mas o deputado importou-se pouco com isso: não foi à Camara. Mas teve a delicadeza de o não dizer a Estevão. Meneses estava no gabinete quando o criado anunciou-lhe a chegada do médico. Foi recebê-lo à porta. — Pontual como um rei, disse-lhe alegremente. — Era dever. Lembro-lhe que não me esqueci. — E agradeço-lho. Sentaram-se os dous. — Agradeço-lhe porque eu receava sobretudo que me houvesse compreendido mal; e que os impulsos da minha simpatia não merecessem da sua parte nenhuma consideração... Estêvão ia protestar — Perdão, continuou Meneses, bem vejo que me enganei, e é por isso que lhe agradeço. Eu não sou rapaz; tenho 47 anos; e para a sua idade as relações de um homem como eu já não têm valor. — A velhice, quando é respeitável, deve ser respeitada; e amadas quando é amável. Mas V. Ex.a não é velho; tem os cabelos apenas grisalhos: pode-se dizer que está na segunda mocidade. — Parece-lhe isso... — Parece e é. — Seja como for, disse Meneses, a verdade é que podemos ser amigos. Quantos anos tem? — Olhe lá, podia ser meu filho. Tem seus pais vivos?
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— Morreram há quatro anos. — Lembra-me haver dito que era solteiro... — De maneira que os seus cuidados são todos para a ciência? — É a minha esposa. — Sim, a sua esposa intelectual; mas essa não basta a um homem como o senhor. . . Enfim, isso é com o tempo; está ainda moço. Durante este diálogo, Estevão contemplava e observava Meneses, em cujo rosto batia a claridade que entrava por uma das janelas. Era uma cabeça severa, cheia de cabelos já grisalhos, que lhe caíam em gracioso desalinho. Tinha os olhos negros e um pouco amortecidos; adivinhava-se porém que deviam ter sido vivos e ardentes. As suíças também grisalhas eram como as de lord Palmerston, segundo dizem as gravuras. Não tinha rugas de velhice; tinha uma ruga na testa, entre as sobrancelhas, indício de concentração de espírito, e não vestígio do tempo. A testa era alta, o queixo e as maçãs do rosto um pouco salientes. Adivinhava-se que devia ter sido formoso no tempo da primeira mocidade; e antevia-se já uma velhice imponente e augusta. Sorria de quando em quando; e o sorriso, embora aquele rosto não fosse de um ancião, produzia uma impressão singular; parecia um raio de lua no meio de uma velha ruína. Vi que o sorriso era amável, mas não era alegre. Todo aquele conjunto impressionava e atraía; Estêvão sentia-se cada vez mais arrastado para aquele homem, que o procurava, e lhe estendia a mão. A conversa continuou no tom afetuoso com que começara; a primeira entrevista da amizade é o oposto da primeira entrevista do amor; nesta a mudez é a grande eloqüência; naquela inspira-se e ganha-se a confiança, pela exposição franca dos sentimentos e das idéias. Não se falou de política. Estêvão aludiu de passagem às funções de Meneses, mas foi um verdadeiro incidente a que o deputado não prestou atenção. No fim de uma hora, Estêvão levantou-se para sair; tinha de ir ver um doente. — O motivo é sagrado; senão retinha-o. — Mas eu voltarei outras vezes. — Sem dúvida alguma, e eu irei vê-lo algumas vezes. Se no fim de quinze dias não se aborrecer... Olhe, venha de tarde; janta algumas vezes comigo; depois da Câmara estou completamente livre. Estêvão saiu prometendo tudo. Voltou lá, com efeito, e jantou duas vezes com o deputado, que também visitou Estêvão em casa; foram ao teatro juntos; relacionaram-se intimamente com as famílias conhecidas. No fim de um mês eram dous amigos velhos. Tinham observado reciprocamente o caráter e os sentimentos. Meneses gostava de ver a seriedade do médico e o seu bom senso, estimava-o com as suas intolerâncias, aplaudindo-lhe a generosa ambição que o dominava. Pela sua parte o médico via em Meneses um homem que sabia ligar a austeridade dos anos à amabilidade de cavalheiro, modesto nas suas maneiras, instruído, sentimental. Da misantropia anunciada não encontrou vestígios. É verdade que em algumas ocasiões Meneses parecia mais disposto a ouvir do que a falar; e então o olhar tornava-se-lhe sombrio e parado, como se em vez de ver os objetos exteriores, estivesse contemplando a sua própria consciência. Mas eram rápidos esses momentos, e Meneses voltava logo aos seus modos habituais.
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“Não é um misantropo, pensava então Estêvão; mas este homem tem um drama dentro de si.” A observação de Estêvão adquiriu certo caráter de verossimilhança quando uma noite em que se achavam no Teatro Lírico, Estêvão chamou a atenção de Meneses para uma mulher vestida de preto que se achava em um camarote da primeira ordem. — Não conheço aquela mulher, disse Estêvão. Sabe quem é? Meneses olhou para o camarote indicado, contemplou a mulher por alguns instantes e respondeu: — Não conheço. A conversa ficou aí; mas o médico reparou que a mulher duas vezes olhou para Meneses, e este duas vezes para ela, encontrando-se os olhos de ambos. No fim do espetáculo, os dous amigos dirigiram-se pelo corredor do lado em que estivera a mulher de preto. Estêvão teve apenas nova curiosidade, a curiosidade de artista: quis vê-la de perto. Mas a porta do camarote estava fechada. Teria já saído ou não? Era impossível sabê-lo. Meneses passou sem olhar. Ao chegarem ao patamar da escada que dá para o lado da Rua dos Ciganos, pararam os dous porque havia grande afluência de gente. Daí a pouco ouviuse passo apressado; Meneses voltou o rosto, e dando o braço a Estêvão desceu imediatamente, apesar da dificuldade. Estêvão compreendeu, mas nada viu. Pela sua parte, Meneses não deu sinal algum. Apenas se desembaraçaram da multidão, o deputado encetou uma alegre conversa com o médico. — Que efeito lhe faz, perguntou ele, quando passa no meio de tantas damas elegantes, aquela confusão de sedas e de perfumes? Estêvão respondeu distraidamente, e Meneses continuou a conversa no mesmo estilo; daí a cinco minutos a aventura do teatro tinha-se-lhe varrido da memória.
IV Um dia Estêvão Soares foi convidado para um baile em casa de um velho amigo de seu pai. A sociedade era luzida e numerosa; Estêvão, embora vivesse muito arredado, achou ali grande número de conhecidas. Não dançou; viu, conversou, riu um pouco e saiu. Mas ao entrar levava o coração livre; ao sair trouxe nele uma flecha, para falar a linguagem dos poetas da Arcádia; era a flecha do amor. Do amor? A falar a verdade não se pode dar este nome ao sentimento experimentado por Estêvão; não era ainda o amor, mas bem pode ser que viesse a sê-lo. Por enquanto era um sentimento de fascinação doce e branda; uma mulher que lá estava produzira nele a impressão que as fadas produziam nos príncipes errantes ou nas princesas perseguidas, segundo nos rezam os contos das velhas.
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A mulher em questão não era uma virgem; era uma viúva de trinta e quatro anos, bela como o dia, graciosa e terna. Estêvão via-a pela primeira vez; pelo menos não se lembrava daquelas feições. Conversou com ela durante meia hora, e tão encantado ficou com as maneiras, a voz, a beleza de Madalena, que ao chegar à casa não pôde dormir. Como verdadeiro médico que era, sentia em si os sintomas dessa hipertrofia do coração que se chama amor e procurou combater a enfermidade nascente. Leu algumas páginas de matemáticas, isto é, percorreu-as com os olhos; porque apenas começava a ler o espírito alheava do livro onde apenas ficavam os olhos: o espírito ia ter com a viúva. O cansaço foi mais feliz que Euclides: sobre a madrugada Estêvão Soares adormeceu. Mas sonhou com a viúva. Sonhou que a apertava em seus braços, que a cobria de beijos, que era seu esposo perante a Igreja e perante a sociedade. Quando acordou e lembrou-se do sonho, Estêvão sorriu. — Casar-me! disse ele. Era o que me faltava. Como poderia eu ser feliz com o espírito receoso e ambicioso que a natureza me deu? Acabemos com isto; nunca mais verei aquela mulher...e boa noite. Começou a vestir-se. Trouxeram -lhe o almoço; Estêvão comeu rapidamente, porque era tarde, e saiu para ir ver alguns doentes. Mas ao passar pela Rua do Conde lembrou-se que Madalena lhe dissera morar ali; mas aonde? A viúva disse-lhe o número; o médico porém estava tão embebido em ouvi-la falar que não o decorou. Queria e não queria; protestava esquecê-la, e contudo daria o que se lhe pedisse para saber o número da casa naquele momento. Como ninguém podia dizer-lhe, o rapaz tomou o partido de ir-se embora. No dia seguinte, porém, teve o cuidado de passar duas vezes pela Rua do Conde a ver se descobria a encantadora viúva. Não descobriu nada; mas quando ia tomar um tílburi e voltar para casa encontrou o amigo de seu pai em cuja casa encontrara Madalena. Estêvão já tinha pensado nele; mas imediatamente tirou dali o pensamento, porque ir perguntar-lhe onde morava a viúva era uma cousa que podia traí-lo. Estêvão já empregava o verbo trair. O homem em questão, depois de cumprimentar ao médico, e trocar com ele algumas palavras, disse-lhe que ia à casa de Madalena, e despediu-se. Estêvão estremeceu de satisfação. Acompanhou de longe o amigo e viu-o entrar em uma casa. “É ali” pensou ele. E afastou-se rapidamente.Quando entrou em casa achou uma carta para ele; a letra, que Ihe era desconhecida, estava traçada com elegância e cuidado: a carta recendia de sândalo. O médico rompeu o lacre. A carta dizia assim: Amanhã toma-se chá em minha casa. Se quiser vir passar algumas horas conosco dar-nos-á sumo prazer. Madalena C...
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Estêvão leu e releu o bilhete; teve idéia de levá-lo aos lábios, mas envergonhado diante de si próprio por uma idéia que lhe parecia de fraqueza, cheirou simplesmente o bilhete e meteu-o no bolso. Estêvão era um pouco fatalista. “Se eu não fosse àquele baile não conhecia esta mulher, não andava agora com estes cuidados, e tinha conjurado uma desgraça ou uma felicidade, porque ambas as cousas podem nascer deste encontro fortuito. Que será? Eis-me na dúvida de Hamleto. Devo ir à casa dela? A cortesia pede que vá. Devo ir; mas irei encouraçado contra tudo. É preciso romper com estas idéias, e continuar a vida tranqüila que tenho tido.” Estava nisto quando Meneses lhe entrou por casa. Vinha buscá-lo para jantar. Estêvão saiu com o deputado. Em caminho fez-lhe perguntas curiosas. Por exemplo: — Acredita no destino, meu amigo? Pensa que há um deus do bem e um deus do mal, em conflito travado sobre a vida do homem? — O destino é a vontade, respondia Meneses; cada homem faz o seu destino. — Mas enfim nós temos pressentimentos... Às vezes adivinhamos acontecimentos em que não tomamos parte; não lhe parece que é um deus benfazejo que no-los segreda? — Fala como um pagão; eu não creio em nada disso. Creio que tenho o estômago vazio, e o que melhor podemos fazer é jantar aqui mesmo no Hotel de Europa em vez de ir à Rua do Lavradio. Subiram ao Hotel de Europa. Ali haviam vários deputados que conversavam de política, e os quais se reuniram a Meneses. Estêvão ouvia e respondia, sem esquecer nunca a viúva, a carta e o sândalo. Assim, pois, davam-se contrastes singulares entre a conversa geral e o pensamento de Estêvão. Dizia por exemplo um deputado: — O governo é reator; as províncias não podem mais suportá-lo. Os princípios estão todos preteridos, na minha província foram demitidos alguns subdelegados pela circunstância única de serem meus parentes; meu cunhado, que era diretor das rendas, foi posto fora do lugar, e este deu-se a um peralta contraparente dos Valadares. Eu confesso que vou romper amanhã a oposição. Estêvão olhava para o deputado; mas no interior estava dizendo isto: “Com efeito, Madalena é bela, é admiravelmente bela. Tem uns olhos de matar. Os cabelos são lindíssimos: tudo nela é fascinador. Se pudesse ser minha mulher, eu seria feliz; mas quem sabe?. . . Contudo sinto que vou amá-la. Já é irresistível; é preciso amá-la; e ela? que quer dizer aquele convite? Amarme-á?” Estêvão embebera-se tanto nesta contemplação ideal, que, acontecendo perguntar-lhe um deputado se não achava a situação negra e carrancuda, Estêvão entregue ao seu pensamento respondeu: — É lindíssima !
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— Ah! disse o deputado, vejo que o senhor é ministerialista. Estêvão sorriu; mas Meneses franziu o sobrolho. Compreendera tudo.
V Quando saíram, o deputado disse ao médico: — Meu amigo, você é desleal comigo... — Por quê? perguntou Estêvão meio sério e meio risonho, não compreendendo a observação do deputado. — Sim, continuou Meneses; você esconde-me um segredo... — Eu? — É verdade: e um segredo de amor. — Ah!. .. disse Estêvão; por que diz isso? — Reparei há pouco que, ao passo que os mais conversavam em política, você pensava em uma mulher, e mulher... lindíssima... Estêvão compreendeu que estava descoberto; não negou. — É verdade, pensava em uma mulher. — E eu serei o último a saber? — Mas saber o quê? Não há amor, não há nada. Encontrei uma mulher que me impressionou e ainda agora me preocupa; mas é bem possível que não passe disto. Aí está. Éum capítulo interrompido; um romance que fica na primeira página. Eu lhe digo: há de me ser difícil amar. — Por quê? — Eu sei? custa-me a crer no amor. Meneses olhou fixamente para Estêvão, sorriu, abanou a cabeça e disse: — Olhe, deixe a descrença para os que já sofreram as decepções; o senhor está moço, não conhece ainda nada desse sentimento. Na sua idade ninguém é céptico ... Demais, se a mulher é bonita, eu aposto que daqui a pouco há de dizer-me o contrário. — Pode ser... respondeu Estêvão. E ao mesmo tempo entrou a pensar nas palavras de Meneses, palavras que ele comparava ao episódio do Teatro Lírico. Entretanto, Estêvão foi ao convite de Madalena. Preparou-se e perfumou-se como se fosse falar a uma noiva. Que sairia daquele encontro? Viria de lá livre ou cativo? Já seria amado? Estêvão não deixou de pensá-lo; aquele convite parecia-lhe uma prova irrecusável. O médico entrando num tílburi começou a formar vários castelos no ar. Enfim chegou à casa.
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VI Madalena estava na sala acompanhada de um filho. Ninguém mais. Eram nove horas e meia. — Viria eu cedo demais? perguntou ele à dona da casa. — O senhor nunca vem cedo. Estêvão inclinou-se. Madalena continuou: — Se me acha só, é porque, tendo enfermado um pouco, mandei desavisar as poucas pessoas que eu havia convidado. — Ah! mas eu não recebi... — Naturalmente; eu não lhe mandei dizer nada. Era a primeira vez que o convidava; não queria por modo algum arredar de casa um homem tão distinto.
Estas palavras de Madalena não valiam cousa alguma, nem mesmo como desculpa, porque a desculpa é fraquíssima. Estêvão compreendeu logo que havia algum motivo oculto. Seria o amor? Estêvão pensou que era, e doeu -se, porque, apesar de tudo, sonhara uma paixão mais reservada e menos precipitada. Não queria, embora lhe agradasse, ser objeto daquela preferência; e mais que tudo achava-se embaraçadíssimo diante de uma mulher a quem começava a amar, e que talvez o amasse. Que lhe diria? Era a primeira vez que o médico achava-se em tais apuros. Há toda a razão para supor que Estêvão naquele momento preferia estar cem léguas distante, e contudo, longe que estivesse pensaria nela. Madalena era excessivamente bela, embora mostrasse no rosto sinais de longo sofrimento. Era alta, cheia, tinha um belíssimo colo, magníficos braços, olhos castanhos e grandes, boca feita para ninho de amores. Naquele momento trajava um vestido preto. A cor preta ia-lhe muito bem. Estêvão contemplava aquela figura com amor e adoração; ouvia-a falar e sentia-se encantado e dominado por um sentimento que não podia explicar. Era um misto de amor e de receio. Madalena mostrou-se delicada e solícita. Falou no merecimento do rapaz e na sua nascente reputação, e instou com ele para que fosse algumas vezes visitá-la. Às 10 horas e meia serviu-se o chá na sala. Estêvão conservou-se lá até às 11 horas. Chegando à rua o médico estava completamente namorado. Madalena tinha-o atado no seu carro, e o pobre rapaz nem vontade tinha de quebrar o jugo. Caminhando para casa ia ele formando projetos: via-se casado com ela, amado e amante, causando inveja a todos, e mais que tudo feliz no seu interior. Quando chegou à casa, lembrou-se de escrever uma carta que mandaria no dia seguinte a Meneses. Escreveu cinco e rasgou-as todas. Afinal redigiu um simples bilhete nestes termos: Meu amigo. Você tem razão; na minha idade crê-se; eu creio e amo. Nunca o pensei; mas é verdade. Amo... Quer saber a quem? Hei de apresentá-lo em casa dela. Há de achá-la bonita. . . Se o é. . .!
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A carta dizia muitas cousas mais; era tudo, porém, uma glosa do mesmo mote. Estêvão voltou à casa de Madalena e as suas visitas começaram a ser regulares e assíduas. A viúva usava para com ele de tanta solicitude que não era possível duvidar do sentimento que a dirigia. Pelo menos Estêvão assim o pensava. Achava-se quase sempre só, e deliciava-se em ouvi-la. A intimidade começou a estabelecer-se. Logo na segunda visita, Estêvão falou-lhe em Meneses pedindo licença para apresentá-lo. A viúva disse que teria muito prazer em receber amigos de Estêvão; mas pedia-lhe que adiasse a apresentação. Todos os pedidos e todas as razões de Madalena eram dignas para o médico; não disse mais nada. Como era natural, ao passo que as visitas à viúva eram mais assíduas, as visitas ao amigo eram mais raras. Meneses não se queixou; compreendeu, e disse-o ao rapaz. — Não se desculpe, acrescentou o deputado; é natural; a amizade deve ceder o passo ao amor. O que eu quero é que seja feliz. Um dia Estêvão pediu ao amigo que lhe contasse o motivo que o tinha feito descrer do amor, e se algum grande infortúnio lhe havia acontecido. — Nada me aconteceu, disse Meneses.
Mas ao mesmo tempo, compreendendo que o médico merecia-lhe toda a confiança, e podia não acreditá-lo absolutamente, disse: — Por que negá-lo? Sim, aconteceu-me um grande infortúnio; amei também, mas não encontrei no amor as doçuras e a dignidade do sentimento; enfim, é um drama íntimo de que não quero falar: limite-se a pateá-lo.
VII — Quando quiser que eu lhe apresente o meu amigo Meneses... dizia Estêvão uma noite à viúva Madalena. — Ah! é verdade; um dia destes. Vejo que o senhor é amigo dele. — Somos amigos íntimos. — Verdadeiros? — Verdadeiros. Madalena sorriu; e como estava brincando com os cabelos do filho deu-lhe um beijo na testa. A criança riu alegremente e abraçou a mãe.
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A idéia de vir a ser pai honorário do pequeno apresentou-se ao espírito de Estêvão. Contemplou-o, chamou por ele, acariciou-o e deu-lhe um beijo no mesmo lugar em que pousaram os lábios de Madalena. Estêvão tocava piano, e às vezes executava algum pedaço de música a pedido de Madalena. Nessas e noutras distrações lá passavam as horas. O amor não adiantava um passo. Podiam ser ambos; duas crateras prestes a rebentar a lava; mas até então não davam o menor sinal de si. Esta situação incomodava o rapaz, acanhava-o, e fazia-o sofrer; mas quando ele pensava em dar um ataque decisivo, era exatamente quando se mostrava mais cobarde e poltrão Era o primeiro amor do rapaz: ele nem conhecia as palavras próprias desse sentimento. Um dia resolveu escrever à viúva. “É melhor, pensava ele; uma carta é eloqüente e tem a grande vantagem de deixar a gente longe.” Entrou para o gabinete e começou uma carta. Gastou nisso uma hora; cada frase ocupava-lhe muito tempo. Estêvão queria fugir à hipótese de ser classificado como tolo ou como sensual. Queria que a carta não respirasse sentimentos frívolos nem maus; queria revelar-se puro como era. Mas de que não dependem às vezes os acontecimentos? Estêvão estava relendo e emendando a carta quando lhe entrou por casa um rapazola que tinha intimidade com ele. Chamava-se Oliveira e passava por ser o primeiro janota do Rio de Janeiro. Entrou com um rolo de papel na mão. Estêvão escondeu rapidamente a carta. — Adeus, Estêvão! disse o recém-chegado. Estavas escrevendo algum libelo ou carta de namoro? — Nem uma nem outra cousa, respondeu Estêvão secamente. — Dou-te uma notícia. — Que é? — Entrei na literatura. — Ah! — É verdade, evenho ler-te a primeira comédia. — Deus me livre! disse Estêvão levantando-se. — Hás de ouvir, meu amigo; ao menos algumas cenas; dar-se-á caso que não me protejas nas letras? Anda cá; ao menos duas cenas. Sim? É pouca cousa. Estêvão sentou-se. O dramaturgo continuou: — Talvez prefiras ouvir a minha tragédia intitulada -- O Punhalde Bruto... — Não, não; prefiro a comédia: é menos sanguinária. Vamos lá. O Oliveira abriu o rolo, arranjou as folhas, tossiu e começou a ler o que se segue, com voz pausada e fanhosa: CENA I
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CÉSAR (entrando pela direita); JOÃO (pela esquerda) CÉSAR — Fechada! A sinhá já se levantou? JOÃO — Já, sim senhor; mas está incomodada. CÉSAR — O que tem? JOÃO — Tem... está mcomodada. CÉSAR — Já sei. (Consigo) “Os incômodos do Costume”. (A João) Qual é então o remédio hoje? JOÃO — O remédio? (Depois de uma pausa) Não sei. CÉSAR — Está bom, vai-te! CENA II CÉSAR, FREITAS (pela direita) CÉSAR — Bom dia. Sr. procurador . . . FREITAS — De causas perdidas. Só me ocupo em procurar as perdidas. Procurar o que se não perdeu é tolice. A minha constituinte? CÉSAR — Disse-me o João que está incomodada. FREITAS — Mesmo para V, S.a? CÉSAR — ( Sentando-se) Mesmo para mim. Por que me olha com esse olhar? Tem inveja? FREITAS — Não é inveja, é admiração! De ordinário ninguém corresponde ao nome que recebeu na pia; mas o Sr. César, benza-o Deus, não desmente que traz um nome significativo, e trata de ser nas págmas amorosas o que foi o outro nas batalhas campais. CÉSAR — Pois também os procuradores dizem cousas destas? FREITAS — De vez em quando. (Indo sentar- se) V. S.a admira-se? CÉSAR — ( Tirando charutos) Como não é de costume ... quer um charuto? FREITAS — Obrigado... Eu tomo rapé. (Tira a boceta) Quer uma pitada?
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CÉSAR — Obrigado. FREITAS — ( Sentando -se) Pois a causa da minha constituinte vai às mil maravilhas. A parte contrária requereu assinação de dez dias, mas eu vou... CÉSAR — Está bom, Sr. Freitas, eu dispenso o resto; ou então não me fale linguagem do foro. Em resumo, ela vence? FREITAS — Está claro. Tratando provar que... CÉSAR — Vence, é quanto basta. FREITAS — Pudera não vencer! Pois se eu ando nisto... CÉSAR — Tanto melhor! FREITAS — Ainda não me lembro de ter perdido uma só causa: isto é, já perdi uma, mas é porque nas vésperas de ganhar disse-me o constituinte que desejava perdê-la. Dito e feito. Provei o contrário do que já tinha provado, e perdi... ou antes, ganhei, porque perder assim é ganhar. CÉSAR — É a fênix dos procuradores. FREITAS — (Modestamente) São os seus bons olhos... CÉSAR — Mas a consciência? FREITAS — Quem é a consciência? CÉSAR — A consciência, a sua consciência? FREITAS — A minha consciência? Ah! essa também ganha. CÉSAR — (Levantando-se) Ah! também? . . . FREITAS — (O mesmo) Tem V. S.a alguma demandazinha? CÉSAR — Não, não, não tenho; mas, quando tiver, fique descansado, vou bater à sua porta... FREITAS — Sempre às ordens de V.S.a.
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VIII Estêvão interrompeu violentamente a leitura, o que desgostou bastante ao poeta novel. O pobre candidato às musas mal pôde balbuciar uma súplica; Estêvão mostrou-se surdo, e o mais que lhe concedeu foi ficar com a comédia para lê-la depois. Oliveira contentou-se com isso; mas não se retirou sem recitar-lhe de cor uma fala do protagonista da tragédia, em versos duros e compridos, dando-lhe por quebra uma estrofe de uma poesia lírica, no estilo do Djinns de Vítor Hugo. Enfim saiu. Entretanto havia passado o tempo. Estêvão releu a carta e quis ainda mandá-la; mas a interrupção do poeta fora proveitosa; relendo a carta, Estêvão achou-a fria e nula; a linguagem era ardente, mas não lhe correspondia ao fogo do coração. - É inútil, disse ele rasgando a carta em mil pedaços, a língua humana há de ser sempre impotente para exprimir certos afetos da alma; tudo aquilo era frio e diferente do que sinto. Estou condenado a não dizer nada ou a dizer mal. Ao pé dela não tenho forças, sinto-me fraco... Estêvão parou diante da janela que dava para a rua, no momento em que passava um antigo colega dele, com a mulher de braço, a mulher que era bonita, e com quem se casara um mês antes. Os dous iam alegres e felizes. Estêvão contemplou aquele quadro com adoração e tristeza. O casamento já não era para ele aquele impossível de que falava quando apenas tinha idéias e não sentimentos. Agora era uma ventura realizável. O casal que passara dera-lhe nova força. — É preciso acabar com isto, dizia ele; eu não posso deixar de ir àquela mulher e dizer-lhe que a amo, que a adoro, que desejo ser seu marido. Ela amar-me-á, se já me não ama: sim, ama-me. .. E começou a vestir-se. Quando calçava as luvas e lançava um olhar para o relógio, o criado trouxe-lhe uma carta. Era de Madalena. Espero, meu caro doutor, que não deixe de vir hoje; esperei-o ontem em vão. Desejo falar-lhe.
Estêvão acabou de ler este bilhete na escada, com tal pressa descia e tal urgência tinha de achar-se em casa da viúva. O que ele não queria era perder aquele assomo de coragem. Partiu. Quando chegou à casa de Madalena achava-se esta à janela. Recebeu-o - com a costumada afabilidade. Estêvão desculpou -se como pôde por não ter podido vir na véspera, acrescentando que só com desgosto do seu coração havia faltado.
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Que melhor ocasião do que era essa para lançar a bomba de uma declaração franca e apaixonada? Estêvão hesitou alguns segundos; mas tomando ânimo, ia continuar o período, quando a viúva lhe disse: — Estava ansiosa por vê-lo para comunicar-lhe uma cousa de certa importância, e que só a um homem de honra, como o senhor, se pode confiar. Estêvão empalideceu. — Sabe onde foi que eu o vi pela primeira vez? — No baile de ***. — Não; foi antes disso; foi no Teatro Lírico. — Ah! - Lá o vi com o seu amigo Meneses. — Fomos algumas vezes lá! Madalena entrou então em uma longa exposição, que o rapaz ouviu sem pestanejar, mas pálido e agitado por comoções íntimas. As últimas palavras da viúva foram estas: — Bem vê, senhor; cousas destas só uma grande alma pode ouvi-las. As pequenas não as compreendem. Se lhe mereço alguma cousa, e se esta confiança pode ser paga com um benefício, peço-lhe que faça o que lhe pedi. O médico passou a mão pelos olhos, e apenas murmurou: — Mas... Neste momento entrava na sala o filhinho de Madalena; a viúva levantou-se e trouxe-o pela mão até o lugar onde se achava Estêvão Soares. — Se não por mim, disse ela, ao menos por esta criança inocente! A criança, sem nada compreender, atirou-se aos braços de Estêvão. O moço deu-lhe um beijo na testa, e disse para a viúva: — Se hesitei não foi porque duvidasse do que a senhora acaba de contar-me; foi porque a missão é espinhosa; mas prometo que hei de cumpri-la.
IX Estêvão saiu da casa da viúva agitado por diversos sentimentos, com passo trêmulo e a vista turva. A conversa com a viúva fora um longo combate; a última promessa foi um golpe decisivo e mortal. Estêvão saía dali como um homem que acabava de matar as suas esperanças em flor; caminhava ao acaso, precisava de ar e queria meter-se em um quarto sombrio; quisera ao mesmo tempo estar solitário e no meio de imensa multidão.
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No caminho encontrou Oliveira, o poeta novel. Lembrou-se que a leitura da comédia impedira a remessa da carta, e portanto poupou-lhe um tristíssimo desengano. Estêvão involuntariamente abraçou o poeta com toda a efusão d’alma. Oliveira correspondeu ao abraço, e quando pôde desligar-se do médico, disselhe: — Obrigado, meu amigo; estas manifestações são muito honrosas para mim; sempre te conheci como um perfeito juiz literário, e a prova que acabas de dar-me é uma consolação e uma animação; consola-me do que tenho sofrido, anima-me para novos cometimentos. Se Torquato Tasso. . . Diante desta ameaça de discurso, e sobretudo vendo a interpretação do seu abraço, Estêvão resolveu-se a continuar caminho abandonando o poeta. — Adeus, tenho pressa. — Adeus, obrigado! Estêvão chegou à casa e atirou-se à cama. Ninguém o soube nunca, só as paredes do quarto foram testemunhas; mas a verdade é que Estêvão chorou lágrimas amargas. Enfim que lhe dissera Madalena e que exigira dele? A viúva não era viúva; era mulher de Meneses; viera do Norte meses antes do marido, que só veio como deputado; Meneses, que a amava doudamente, e que era amado com igual delírio, acusava-a de infidelidade; uma carta e um retrato eram os indícios; ela negou, mas explicou-se mal; o marido separou-se e mandou-a para o Rio de Janeiro. Madalena aceitou a situação com resignação e coragem: não murmurou nem pediu, cumpriu a ordem do marido. Todavia Madalena não era criminosa; o seu crime era uma aparência; estava condenada por fidelidade de honra. A carta e o retrato não lhe pertenciam; eram apenas um depósito imprudente e fatal. Madalena podia dizer tudo, mas era trair uma promessa; não quis; preferiu que a tempestade doméstica caísse unicamente sobre ela. Agora, porém, a necessidade do segredo expirara; Madalena recebeu do Norte uma carta em que a amiga, no leito da morte, pedia que inutilizasse a carta e o retrato, ou os restituísse ao homem que lhos dera. Esta carta era uma justificacão. Madalena podia mandar a carta ao marido, ou pedir-lhe uma entrevista; mas receava tudo; sabia que seria inútil, porque Meneses era extremamente severo. Vira o médico uma noite no teatro em companhia de seu marido; indagara e soube que eram amigos; pedia-lhe pois que fosse mediador entre os dous, que a salvasse e que reconstruísse uma família. Não era pois somente o amor de Estêvão que sofria; era também o seu amor-próprio. Estêvão facilmente compreendeu que não fora atraído àquela casa para outra cousa. É verdade que a carta só chegara na véspera; mas a carta apenas vinha apressar a resolução. Naturalmente Madalena pedir-lhe-ia, sem haver carta, algum serviço análogo àquele. Se se tratasse de qualquer outro homem, Estêvão recusaria o serviço que lhe pedia a viúva, mas tratavase do seu amigo, de um homem a quem ele devia estima e serviços de amizade. Aceitou, pois, a cruel missão.
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— Cumpra-se o destino, disse ele; hei de ir lançar a mulher que amo aos braços de outro; e por desgraça maior, em vez de gozar com este restabelecimento de concórdia doméstica, vejo-me na dura situação de amar a mulher do meu amigo, isto é, de fugir para longe . . . Estêvão não saiu mais de casa nesse dia. Quis escrever ao deputado contando-lhe tudo; mas pensou que o melhor era falar-lhe de viva voz. Embora lhe custasse mais, era de mais efeito para o desempenho da sua promessa. Adiou, porém, para o dia seguinte, ou antes para o mesmo dia, porque a noite não lhe interrompeu o tempo, visto que Estêvão não dormiu um minuto sequer.
X Levantou -se da cama o pobre namorado sem ter conseguido dormir. Vinha nascendo o sol. Quis ler os jornais e pediu-os. Já os ia pondo de lado, por haver acabado de ler, quando repentinamente viu o seu nome impresso no Jornal do Comércio. Era um artigo a pedido com o título de “Uma Obra-Prima.” Dizia o artigo: Temos o prazer de anunciar ao país o próximo aparecimento de uma excelente comédia, estréia de um jovem literato fluminense, de nome Antônio Carlos de Oliveira. Este robusto talento, por muito tempo incógnito, vai enfim entrar nos mares da publicidade, e para isso procurou logo ensaiar-se em uma obra de certo vulto. Consta- nos que o autor, solicitado por seus numerosos amigos, leu há dias a comédia em casa do Sr. Dr. Estêvão Soares, diante de um luzido auditório, que aplaudiu muito e profetizou no Sr. Oliveira um futuro Shakespeare. O Sr. Dr. Estêvão Soares levou a sua amabilidade a ponto de pedir a comédia para ler segunda vez, e ontem ao encontrar-se na rua com o Sr. Oliveira, de tal entusiasmo vinha possuído que o abraçou estreitamente, com grande pasmo dos numerosos transeuntes. Da parte de um juiz tão competente em matérias literárias este ato é honroso para o Sr. Oliveira. Estamos ansiosos por ler a peça do Sr. Oliveira, e ficamos certos de que ela fará fortuna de qualquer teatro. O AMIGO DAS LETRAS Estêvão, apesar dos sentimentos que o agitavam então, enfureceu-se com o artigo que acabava de ler. Não havia dúvida que o autor dele era o próprio autor da comédia. O abraço da véspera fora mal interpretado, e o poetastro aproveitava-o em seu favor. Se ao menos não falasse no nome de Estêvão, este poderia desculpar a vaidadezinha do escritor. Mas o nome ali estava como cúmplice da obra. Pondo de lado o Jornal do Comércio, Estêvão lembrou-se de protestar, e ia já escrever um artigo quando recebeu uma cartinha de Oliveira.
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Dizia a carta: Meu Estêvão. Lembrou-se um amigo meu de escrever alguma cousa a propósito da minha peça. Expliquei-lhe como se dera a leitura em tua casa, e disse-lhe como é que, apesar do vivo desejo que tinhas de ouvir lê-la, interrompeste-me para ir cuidar de um doente. Apesar de tudo isto, o meu referido amigo contou hoje no Jornal do Comércio a história alterando um pouco a verdade. Desculpa-o; é a linguagem da amizade e da benevolência. Ontem entrei para casa tão orgulhoso com o teu abraço que escrevi uma ode, e assim manifestou-se em mim a veia lírica, depois da cômica e da trágica. Aí te mando o rascunho; se não prestar, rasga-a. A carta tinha, por engano, a data da véspera. A ode era muito comprida; Estêvão nem a leu, atirou-a para um canto. A ode começava assim: Sai do teu monte, ó musa! Vem inspirar a lira do poeta; Enche de luz a minha fronte ousada, E mandemos aos evos, Nas asas de uma estrofe igente e altíssona, Do caro amigo o animador abraço! Não canto os altos feitos De Aquiles, nem traduzo os sons tremendos Dos rufos marciais enchendo os campos! Outro assunto me inspira. Não canto a espada que dá morte e campa; Canto o abraço que dá vida e glória!
XI Como havia prometido, Estêvão foi logo procurar o deputado Meneses. Em vez de ir direito ao fim, quis antes sondá-lo a respeito do seu passado. Era a primeira vez que o moço tocava em tal. Meneses não desconfiou, mas estranhou; mas tal confiança tinha nele que não recusou nada. — Sempre imaginei, dissera-lhe Estêvão, que há na sua vida um drama. E talvez engano meu, mas a verdade é que ainda não perdi a idéia.
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— Há, com efeito, um drama; mas um drama pateado. Não sorria; é assim. Que supõe então? — Não suponho nada. Imagino que.. — Pede dramas a um homem político? — Por que não? — Eu lhe digo. Sou político e não sou. Não entrei na vida pública por vocação; entrei como se entra em uma sepultura: para dormir melhor. Por que o fiz? A razão é o drama de que me fala. — Uma mulher, talvez... — Sim, uma mulher. — Talvez mesmo, disse Estêvão procurando sorrir, talvez uma esposa. Meneses estremeceu e olhou para o amigo, espantado e desconfiado. — Quem lho disse? — Pergunto. — Uma esposa, sim; mas não lhe direi mais nada. É a primeira pessoa que ouve tanta cousa de mim. Deixemos o passado que morreu: parce sepultis. — Conforme, disse Estêvão; e se eu pertencer a uma seita filosófica que pretenda ressuscitar os mortos, mesmo quando é um passado... — As suas palavras, ou querem dizer muito, ou nada. Qual é a sua intenção? — A minha intenção não é ressuscitar o passado unicamente; é repará-lo, é restaurá-lo em todo o seu esplendor, com toda a legitimidade do seu direito; o meu fim é dizer-lhe, meu caro amigo, que a mulher condenada é uma mulher inocente. Ouvindo estas palavras Meneses deu um pequeno grito. Depois levantando-se com rapidez pediu a Estêvão que lhe dissesse o que sabia e como sabia. Estêvão referiu tudo. Quando concluiu a sua narração, o deputado abanou a cabeça com aquele último sintoma de incredulidade que é ainda um eco das grandes catástrofes domésticas. Mas Estêvão ia armado contra as objeções do marido. Protestou energicamente pela defesa da mulher; instou pelo cumprimento do dever. A última resposta de Meneses foi esta: — Meu caro Estêvão, a mulher de César nem deve ser suspeitada. Acredito em tudo; mas o que está feito, está feito. — O princípio é cruel, meu amigo. — É fatal. Estêvão saiu. Ficando só, Meneses caiu em profunda meditação; ele acreditava em tudo, e amava a mulher; mas não acreditava que os belos dias pudessem voltar. Recusando, pensava ele, era ficar no túmulo em que tivera tão brando sono. Estêvão, porém, não desanimou. Quando entrou em casa, escreveu uma longa carta ao deputado exortando-o a que restaurasse a família um momento separada e desfeita. Estêvão era eloqüente; o coração de Meneses com pouco se contentava. Enfim, nesta missão diplomática, o médico houve-se com suprema habilidade. No fim de alguns dias dissipara-se a nuvem do passado, e o casal reunira-se.
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Como? Madalena soube das disposições de Meneses e recebeu o anúncio de uma visita de seu marido. Quando o deputado preparava-se para sair, vieram dizer-lhe que uma senhora o procurava. A senhora era Madalena. Meneses nem quis abraçá-la; ajoelhou-se-lhe aos pés. Tudo estava esquecido. Quiseram celebrar a reconciliação, e Estêvão foi convidado para lá passar o dia em companhia dos seus amigos, que lhe deviam a felicidade. Estêvão não foi. Mas no dia seguinte Meneses recebeu este bilhete: Desculpe, meu amigo, se não vou despedir-me pessoalmente. Sou obrigado a partir repentinamente para Minas. Voltarei daqui a alguns meses. Estimo que sejam felizes, e espero que não se esqueçam de mim. Meneses foi apressadamente à casa de Estêvão, e ainda o achou preparando as malas. Achou singular a viagem, e mais singular o bilhete; mas o médico não revelou por modo nenhum o verdadeiro motivo da sua partida. Quando Meneses voltou, comunicou à mulher as suas impressões; e perguntou se ela compreendia aquilo. — Não, respondeu Madalena. Mas tinha compreendido enfim. “Nobre alma!” disse ela consigo. Nada disse ao marido; nisso mostrava-se esposa solícita pela tranqüilidade conjugal; mas mostrava-se sobretudo mulher. Meneses não foi à Camara durante muitos dias, e no primeiro paquete seguiu para o Norte. A ausência transtornou algumas votações, e a sua partida logrou muitos cálculos. Mas o homem tem o direito de procurar a sua felicidade e a felicidade de Meneses era independente da política.
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Ad達o e Eva
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ma senhora de engenho, na Bahia, pelos anos de mil setecentos e tantos, tendo algumas pessoas íntimas à mesa, anunciou a um dos convivas, grande lambareiro, um certo doce particular. Ele quis logo saber o que era; a dona da casa chamou-lhe curioso. Não foi preciso mais; daí a pouco estavam todos discutindo a curiosidade, se era masculina ou feminina, e se a responsabilidade da perda do paraíso devia caber a Eva ou a Adão. As senhoras diziam que a Adão, os homens que a Eva, menos o juiz-de-fora, que não dizia nada, e Frei Bento, carmelita, que interrogado pela dona da casa, D. Leonor: — Eu, senhora minha, toco viola, respondeu sorrindo; e não mentia, porque era insigne na viola e na harpa, não menos que na teologia. Consultado, o juiz-de-fora respondeu que não havia matéria para opinião; porque as cousas no paraíso terrestre passaram-se de modo diferente do que está contado no primeiro livro do Pentateuco, que é apócrifo. Espanto geral, riso do carmelita que conhecia o juiz-de-fora como um dos mais piedosos sujeitos da cidade, e sabia que era também jovial e inventivo, e até amigo da pulha, uma vez que fosse curial e delicada; nas cousas graves, era gravíssimo. — Frei Bento, disse-lhe D. Leonor, faça calar o Sr. Veloso. — Não o faço calar, acudiu o frade, porque sei que de sua boca há de sair tudo com boa significação. — Mas a Escritura... ia dizendo o mestre-de-campo João Barbosa. — Deixemos em paz a Escritura, interrompeu o carmelita. Naturalmente, o Sr. Veloso conhece outros livros... — Conheço o autêntico, insistiu o juiz-de-fora, recebendo o prato de doce que D. Leonor lhe oferecia, e estou pronto a dizer o que sei, se não mandam o contrário. — Vá lá, diga. — Aqui está como as cousas se passaram. Em primeiro lugar, não foi Deus que criou o mundo, foi o Diabo... — Cruz! exclamaram as senhoras. — Não diga esse nome, pediu D. Leonor. — Sim, parece que... ia intervindo frei Bento. — Seja o Tinhoso. Foi o Tinhoso que criou o mundo; mas Deus, que lhe leu no pensamento, deixou-lhe as mãos livres, cuidando somente de corrigir ou atenuar a obra, a fim de que ao próprio mal não ficasse a desesperança da salvação ou do benefício. E a ação divina mostrou-se logo porque, tendo o Tinhoso criado as trevas, Deus criou a luz, e assim se fez o primeiro dia. No segundo dia, em que foram criadas as águas, nasceram as tempestades e os furacões; mas as brisas da tarde baixaram do pensamento divino. No terceiro dia foi feita a terra, e brotaram dela os vegetais, mas só os vegetais sem fruto nem flor, os espinhosos, as ervas que matam como a cicuta; Deus, porém, criou as árvores frutíferas e os vegetais que nutrem ou encantam. E tendo o Tinhoso cavado abismos e cavernas na terra, Deus fez o sol, a lua e as estrelas; tal foi a obra do quarto dia. No quinto foram criados os animais da terra, da água e do ar. Chegamos ao sexto dia, e aqui peço que redobrem de atenção. Não era preciso pedi-lo; toda a mesa olhava para ele, curiosa. Veloso continuou dizendo que no sexto dia foi criado o homem, e logo depois
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a mulher; ambos belos, mas sem alma, que o Tinhoso não podia dar, e só com ruins instintos. Deus infundiu-lhes a alma, com um sopro, e com outro os sentimentos nobres, puros e grandes. Nem parou nisso a misericórdia divina; fez brotar um jardim de delícias, e para ali os conduziu, investindo-os na posse de tudo. Um e outro caíram aos pés do Senhor, derramando lágrimas de gratidão. “Vivereis aqui”, disse-lhe o Senhor, “e comereis de todos os frutos, menos o desta árvore, que é a da ciência do Bem e do Mal.” Adão e Eva ouviram submissos; e ficando sós, olharam um para o outro, admirados; não pareciam os mesmos. Eva, antes que Deus lhe infundisse os bons sentimentos, cogitava de armar um laço a Adão, e Adão tinha ímpetos de espancá-la. Agora, porém, embebiam-se na contemplação um do outro, ou na vista da natureza, que era esplêndida. Nunca até então viram ares tão puros, nem águas tão frescas, nem flores tão lindas e cheirosas, nem o sol tinha para nenhuma outra parte as mesmas torrentes de claridade. E dando as mãos percorreram tudo, a rir muito, nos primeiros dias, porque até então não sabiam rir. Não tinham a sensação do tempo. Não sentiam o peso da ociosidade; viviam da contemplação. De tarde iam ver morrer o sol e nascer a lua, e contar as estrelas, e raramente chegavam a mil, dava-lhes o sono e dormiam como dous anjos. Naturalmente, o Tinhoso ficou danado quando soube do caso. Não podia ir ao paraíso, onde tudo lhe era avesso, nem chegaria a lutar com o Senhor; mas ouvindo um rumor no chão entre folhas secas, olhou e viu que era a serpente. Chamou-a alvoroçado. — Vem cá, serpe, fel rasteiro, peçonha das peçonhas, queres tu ser a embaixatriz de teu pai, para reaver as obras de teu pai? A serpente fez com a cauda um gesto vago, que parecia afirmativo; mas o Tinhoso deu-lhe a fala, e ela respondeu que sim, que iria onde ele a mandasse, — às estrelas, se lhe desse as asas da águia — ao mar, se lhe confiasse o segredo de respirar na água — ao fundo da terra, se lhe ensinasse o talento da formiga. E falava a maligna, falava à toa, sem parar, contente e pródiga da língua; mas o diabo interrompeu-a: — Nada disso, nem ao ar, nem ao mar, nem à terra, mas tão-somente ao jardim de delícias, onde estão vivendo Adão e Eva. — Adão e Eva? — Sim, Adão e Eva. — Duas belas criaturas que vimos andar há tempos, altas e direitas como palmeiras? — Justamente. — Oh! detesto-os. Adão e Eva? Não, não, manda-me a outro lugar. Detesto-os! Só a vista deles faz-me padecer muito. Não hás de querer que lhes faça mal... — É justamente para isso. — Deveras? Então vou; farei tudo o que quiseres, meu senhor e pai. Anda, dize depressa o que queres que faça. Que morda o calcanhar de Eva? Morderei... — Não, interrompeu o Tinhoso. Quero justamente o contrário. Há no jardim uma árvore, que é a da ciência do Bem e do Mal; eles não devem tocar nela, nem comer-lhe os frutos. Vai, entra, enrosca-te na árvore, e quando um deles ali passar, chama-o de mansinho, tira uma fruta e oferece-lhe, dizendo que é a mais saborosa fruta do mundo; se te responder que não, tu insistirás, dizendo que é bastante comê-la para conhecer o próprio segredo da vida. Vai, vai...
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— Vou; mas não falarei a Adão, falarei a Eva. Vou, vou. Que é o próprio segredo da vida, não? — Sim, o próprio segredo da vida. Vai, serpe das minhas entranhas, flor do mal, e se te saíres bem, juro que terás a melhor parte na criação, que é a parte humana, porque terás muito calcanhar de Eva que morder, muito sangue de Adão em que deitar o vírus do mal... Vai, vai, não te esqueças... Esquecer? Já levava tudo de cor. Foi, penetrou no paraíso, rastejou até a árvore do Bem e do Mal, enroscou-se e esperou. Eva apareceu daí a pouco, caminhando sozinha, esbelta, com a segurança de uma rainha que sabe que ninguém lhe arrancará a coroa. A serpente, mordida de inveja, ia chamar a peçonha à língua, mas advertiu que estava ali às ordens do Tinhoso, e, com a voz de mel, chamou-a. Eva estremeceu. — Quem me chama? — Sou eu, estou comendo desta fruta... — Desgraçada, é a árvore do Bem e do Mal! — Justamente. Conheço agora tudo, a origem das coisas e o enigma da vida. Anda, come e terás um grande poder na terra. — Não, pérfida! — Néscia! Para que recusas o resplendor dos tempos? Escuta-me, faze o que te digo, e serás legião, fundarás cidades, e chamar-te-ás Cleópatra, Dido, Semíramis; darás heróis do teu ventre, e serás Cornélia; ouvirás a voz do céu, e serás Débora; cantarás e serás Safo. E um dia, se Deus quiser descer à terra, escolherá as tuas entranhas, e chamar-te-ás Maria de Nazaré. Que mais queres tu? Realeza, poesia, divindade, tudo trocas por uma estulta obediência. Nem será só isso. Toda a natureza te fará bela e mais bela. Cores das folhas verdes, cores do céu azul, vivas ou pálidas, cores da noite, hão de refletir nos teus olhos. A mesma noite, de porfia com o sol, virá brincar nos teus cabelos. Os filhos do teu seio tecerão para ti as melhores vestiduras, comporão os mais finos aromas, e as aves te darão as suas plumas, e a terra as suas flores, tudo, tudo, tudo... Eva escutava impassível; Adão chegou, ouviu-os e confirmou a resposta de Eva; nada valia a perda do paraíso, nem a ciência, nem o poder, nenhuma outra ilusão da terra. Dizendo isto, deram as mãos um ao outro, e deixaram a serpente, que saiu pressurosa para dar conta ao Tinhoso. Deus, que ouvira tudo, disse a Gabriel: — Vai, arcanjo meu, desce ao paraíso terrestre, onde vivem Adão e Eva, e traze-os para a eterna bem-aventurança, que mereceram pela repulsa às instigações do Tinhoso. E logo o arcanjo, pondo na cabeça o elmo de diamante, que rutila como um milhar de sóis, rasgou instantaneamente os ares, chegou a Adão e Eva, e disse-lhes: — Salve, Adão e Eva. Vinde comigo para o paraíso, que merecestes pela repulsa às instigações do Tinhoso. Um e outro, atônitos e confusos, curvaram o colo em sinal de obediência; então Gabriel deu as mãos a ambos, e os três subiram até à estância eterna, onde miríades de anjos os esperavam, cantando: — Entrai, entrai. A terra que deixastes, fica entregue às obras do Tinhoso, aos animais ferozes e maléficos, às plantas daninhas e peçonhentas, ao ar impuro, à vida dos pântanos. Reinará nela a serpente que
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rasteja, babuja e morde, nenhuma criatura igual a vós porá entre tanta abominação a nota da esperança e da piedade. E foi assim que Adão e Eva entraram no céu, ao som de todas as cítaras, que uniam as suas notas em um hino aos dous egressos da criação... ... Tendo acabado de falar, o juiz-de-fora estendeu o prato a D. Leonor para que lhe desse mais doce, enquanto os outros convivas olhavam uns para os outros, embasbacados; em vez de explicação, ouviam uma narração enigmática, ou, pelo menos, sem sentido aparente. D. Leonor foi a primeira que falou: — Bem dizia eu que o Sr. Veloso estava logrando a gente. Não foi isso que lhe pedimos, nem nada disso aconteceu, não é, frei Bento? — Lá o saberá o Sr. juiz, respondeu o carmelita sorrindo. E o juiz-de-fora, levando à boca uma colher de doce: — Pensando bem, creio que nada disso aconteceu; mas também, D. Leonor, se tivesse acontecido, não estaríamos aqui saboreando este doce, que está, na verdade, uma cousa primorosa. É ainda aquela sua antiga doceira de Itapagipe?
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Conto Alexandrino
I No mar
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quê, meu caro Stroibus! Não, impossível. Nunca jamais ninguém acreditará que o sangue de rato, dado a beber a um homem, possa fazer do homem um ratoneiro.
— Em primeiro lugar, Pítias, tu omites uma condição: — é que o rato deve expirar debaixo do escalpelo, para que o sangue traga o seu princípio. Essa condição é essencial. Em segundo lugar, uma vez que me apontas o exemplo do rato, fica sabendo que já fiz com ele uma experiência, e cheguei a produzir um ladrão... — Ladrão autêntico? — Levou-me o manto, ao cabo de trinta dias, mas deixou-me a maior alegria do mundo: — a realidade da minha doutrina. Que perdi eu? um pouco de tecido grosso; e que lucrou o universo? a verdade imortal. Sim, meu caro Pítias; esta é a eterna verdade. Os elementos constitutivos do ratoneiro estão no sangue do rato, os do paciente no boi, os do arrojado na águia... — Os do sábio na coruja, interrompeu Pítias sorrindo. — Não; a coruja é apenas um emblema; mas a aranha, se pudéssemos transferi-la a um homem, daria a esse homem os rudimentos da geometria e o sentimento musical. Com um bando de cegonhas, andorinhas ou grous, faço- te de um caseiro um viajeiro. O princípio da fidelidade conjugal está no sangue da rola, o da enfatuação no dos pavões... Em suma, os deuses puseram nos bichos da terra, da água e do ar a essência de todos os sentimentos e capacidades humanas. Os animais são as letras soltas do alfabeto; o homem é a sintaxe. Esta é a minha filosofia recente; esta é a que vou divulgar na corte do grande Ptolomeu. Pítias sacudiu a cabeça, e fixou os olhos no mar. O navio singrava, em direitura a Alexandria, com essa carga preciosa de dois filósofos, que iam levar àquele regaço do saber os frutos da razão esclarecida. Eram amigos, viúvos e qüinquagenários. Cultivavam especialmente a metafísica, mas conheciam a física, a química, a medicina e a música; um deles, Stroibus, chegara a ser excelente anatomista, tendo lido muitas vezes os tratados do mestre Herófilo. Chipre era a pátria de ambos; mas, tão certo é que ninguém é profeta em sua terra, Chipre não dava o merecido respeito aos dois filósofos. Ao contrário, desdenhava -os; os garotos tocavam ao extremo de rir deles. Não foi esse, entretanto, o motivo que os levou a deixar a pátria. Um dia, Pítias, voltando de uma viagem, propôs ao amigo irem para Alexandria, onde as artes e as ciências eram grandemente honradas.
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Stroibus aderiu, e embarcaram. Só agora, depois de embarcados, é que o inventor da nova doutrina expô -la ao amigo, com todas as suas recentes cogitações e experiências. — Está feito, disse Pítias, levantando a cabeça, não afirmo nem nego nada. Vou estudar a doutrina, e se a achar verdadeira, proponho-me a desenvolvê-la e divulgá-la. — Viva Hélios! exclamou Stroibus. Posso contar que és meu discípulo.
II Experiência Os garotos alexandrinos não trataram os dois sábios com o escárnio dos garotos cipriotas. A terra era grave como a íbis pousada numa só pata, pensativa como a esfinge, circunspecta como as múmias, dura como as pirâmides; não tinha tempo nem maneira de rir. Cidade e corte, que desde muito tinham notícia dos nossos dois amigos, fizeram-lhes um recebimento régio, mostraram conhecer os seus escritos, discutiram as suas idéias, mandaram-lhes muitos presentes, papiros, crocodilos, zebras, púrpuras. Eles, porém, recusaram tudo, com simplicidade, dizendo que a filosofia bastava ao filósofo, e que o supérfluo era um dissolvente. Tão nobre resposta encheu de admiração tanto aos sábios como aos principais e à mesma plebe. E aliás, diziam os mais sagazes, que outra coisa se podia esperar de dois homens tão sublimes, que em seus magníficos tratados... — Temos coisa melhor do que esses tratados, interrompia Stroibus. Trago uma doutrina, que, em pouco, vai dominar o universo; cuido nada menos que em reconstituir os homens e os Estados, distribuindo os talentos e as virtudes. — Não é esse o ofício dos deuses? objetava um. — Eu violei o segredo dos deuses, acudia Stroibus. O homem é a sintaxe da natureza, eu descobri as leis da gramática divina... — Explica-te. — Mais tarde; deixa-me experimentar primeiro. Quando minha doutrina estiver completa, divulgá-la-ei como a maior riqueza que os homens jamais poderão receber de um homem. Imaginem a expectação pública e a curiosidade dos outros filósofos, embora incrédulos de que a verdade recente viesse aposentar as que eles mesmos possuíam. Entretanto, esperavam todos. Os dois hóspedes eram apontados na rua até pelas crianças. Um filho meditava trocar a avareza do pai, um pai a prodigalidade do filho, uma dama a frieza de um varão, um varão os desvarios de uma dama, porque o Egito, desde os Faraós até aos Lágides, era a terra de Putifar, da mulher de Putifar, da capa de José, e do resto. Stroibus tornou-se a esperança da cidade e do mundo. Pítias, tendo estudado a doutrina, foi ter com Stroibus, e disse-lhe: — Metafisicamente, a tua doutrina é um despropósito; mas estou pronto a admitir uma experiência, contando que seja decisiva. Para isto, meu caro Stroibus, há só um meio. Tu e eu, tanto pelo cultivo de razão
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como pela rigidez do caráter, somos o que há mais oposto ao vício do furto. Pois bem, se conseguires incutir-nos esse vício, não será preciso mais; se não conseguires nada (e pode crê-lo, porque é um absurdo) recuarás de semelhante doutrina, e tornarás às nossas velhas meditações. Stroibus aceitou a proposta. — O meu sacrifício é o mais penoso, disse ele, pois estou certo do resultado; mas que não merece a verdade? A verdade é imortal; o homem é um breve momento... Os ratos egípcios, se pudessem saber de um tal acordo, teriam imitado os primitivos hebreus, aceitando a fuga para o deserto, antes do que a nova filosofia. E podemos crer que seria um desastre. A ciência, como a guerra, tem necessidades imperiosas; e desde que a ignorância dos ratos, a sua fraqueza, a superioridade mental e física dos dois filósofos eram outras tantas vantagens na experiência que ia começar, cumpria não perder tão boa ocasião de saber se efetivamente o princípio das paixões e das virtudes humanas estava distribuído pelas várias espécies de animais, e se era possível transmiti-lo. Stroibus engaiolava os ratos; depois, um a um, ia-os sujeitando ao ferro. Primeiro, atava uma tira de pano no focinho do paciente; em seguida, os pés, finalmente, cingia com um cordel as pernas e o pescoço do animal à tábua da operação. Isto feito, dava o primeiro talho no peito, com vagar, e com vagar ia enterrando o ferro até tocar o coração, porque era opinião dele que a morte instantânea corrompia o sangue e retirava-lhe o princípio. Hábil anatomista, operava com uma firmeza digna do propósito científico. Outro, menos destro, interromperia muita vez a tarefa, porque as contorções de dor e de agonia tornavam difícil o meneio do escalpelo; mas essa era justamente a superioridade de Stroibus: tinha o pulso magistral e prático. Ao lado dele, Pítias aparava o sangue e ajudava a obra, já contendo os movimentos convulsivos do paciente, já espiando-lhe nos olhos o progresso da agonia. As observações que ambos faziam eram notadas em folhas de papiro; e assim ganhava a ciência de duas maneiras. Às vezes, por divergência de apreciação, eram obrigados a escalpelar maior número de ratos do que o necessário; mas não perdiam com isso, porque o sangue dos excedentes era conservado e ingerido depois. Um só desses casos mostrará a consciência com que eles procediam. Pítias observara que a retina do rato agonizante mudava de cor até chegar ao azul claro, ao passo que a observação de Stroibus dava a cor de canela como o tom final da morte. Estavam na última operação do dia; mas o ponto valia a pena, e, não obstante o cansaço, fizeram sucessivamente dezenove experiências sem resultado definitivo; Pítias insistia pela cor azul, e Stroibus pela cor de canela. O vigésimo rato esteve prestes a pô-los de acordo, mas Stroibus advertiu, com muita sagacidade, que a sua posição era agora diferente, retificou-a e escalpelaram mais vinte e cinco. Destes, o primeiro ainda os deixou em dúvida; mas os outros vinte e quatro provaram-lhes que a cor final não era canela nem azul, mas um lírio roxo, tirando a claro. A descrição exagerada das experimentações deu rebate à porção sentimental da cidade, e excitou a loqüela de alguns sofistas; mas o grave Stroibus (com brandura, para não agravar uma disposição própria da alma humana) respondeu que a verdade valia todos os ratos do universo, e não só os ratos, como os pavões, as cabras, os cães, os rouxinóis, etc.; que, em relação aos ratos, além de ganhar a ciência, ganhava a cidade, vendo diminuída a praga de um animal tão daninho; e, se a mesma consideração não
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se dava com outros animais, como, por exemplo, as rolas e os cães, que eles iam escalpelar daí a tempos, nem por isso os direitos da verdade eram menos imprescritíveis. A natureza não há de ser só a mesa de jantar, concluía em forma de aforismo, mas também a mesa da ciência. E continuavam a extrair o sangue e a bebê-lo. Não o bebiam puro, mas diluído em um cozimento de cinamomo, suco de acácia e bálsamo, que lhe tirava todo o sabor primitivo. As doses eram diárias e diminutas; tinham, portanto, de aguardar um longo prazo antes de produzido o efeito. Pítias, impaciente e incrédulo, mofava do amigo. — Então? nada? — Espera, dizia o outro, espera. Não se incute um vício como se cose um par de sandálias.
III Vitória Enfim, venceu Stroibus! A experiência provou a doutrina. E Pítias foi o primeiro que deu mostras da realidade do efeito, atribuindo-se umas três idéias ouvidas ao próprio Stroibus; este, em compensação, furtou-lhe quatro comparações e uma teoria dos ventos. Nada mais científico do que essas estréias. As idéias alheias, por isso mesmo que não foram compradas na esquina, trazem um certo ar comum; e é muito natural começar por elas antes de passar aos livros emprestados, às galinhas, aos papéis falsos, às províncias, etc. A própria denominação de plágio é um indício de que os homens compreendem a dificuldade de confundir esse embrião da ladroeira com a ladroeira formal. Duro é dizê-lo; mas a verdade é que eles deitaram ao Nilo a bagagem metafísica, e dentro de pouco estavam larápios acabados. Concertavam- se de véspera, e iam aos mantos, aos bronzes, às ânforas de vinho, às mercadorias do porto, às boas dracmas. Como furtassem sem estrépito, ninguém dava por eles; mas, ainda mesmo que os suspeitassem, como fazê-lo crer aos outros? Já então Ptolomeu coligira na biblioteca muitas riquezas e raridades; e, porque conviesse ordená-las, designou para isso cinco gramáticos e cinco filósofos, entre estes os nossos dois amigos. Estes últimos trabalharam com singular ardor, sendo os primeiros que entravam e os últimos que saíam, e ficando ali muitas noites, ao clarão da lâmpada, decifrando, coligindo, classificando. Ptolomeu, entusiasmado, meditava para eles os mais altos destinos. Ao cabo de algum tempo, começaram a notar-se faltas graves: — um exemplar de Homero, três rolos de manuscritos persas, dois de samaritanos, uma soberba coleção de cartas originais de Alexandre, cópias de leis atenienses, o 2º e o 3º livros da República de Platão, etc., etc. A autoridade pôs-se à espreita; mas a esperteza do rato, transferida a um organismo superior, era naturalmente maior, e os dois ilustres gatunos zombavam de espias e guardas. Chegaram ao ponto de estabelecer este preceito filosófico de não sair dali com as mãos vazias; traziam sempre alguma coisa, uma fábula, quando menos. Enfim, estando a sair um navio para Chipre, pediram licença a Ptolomeu, com promessa de voltar, coseram os livros dentro de couros de hipopótamo, puseram-lhes rótulos falsos, e trataram de fugir. Mas a inveja de outros filósofos não dormia; deu rebate às suspeitas dos magistrados, e descobriu-se o roubo. Stroibus e Pítias foram tidos
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por aventureiros, mascarados com os nomes daqueles dois varões ilustres; Ptolomeu entregou-os à justiça com ordem de os passar logo ao carrasco. Foi então que interveio Herófilo, inventor da anatomia.
IV Plus Ultra! — Senhor, disse ele a Ptolomeu, tenho-me limitado até agora escalpelar cadáveres. Mas o cadáver dáme a estrutura, não me dá a vida; dá-me os órgãos, não me dá as funções. Eu preciso das funções e da vida. — Que me dizes? redargüiu Ptolomeu. Queres estripar os ratos de Stroibus? — Não, senhor; não quero estripar os ratos. — Os cães? os gansos? as lebres?... — Nada; peço alguns homens vivos. — Vivos? não é possível... — Vou demonstrar que não só é possível, mas até legítimo e necessário. As prisões egípcias estão cheias de criminosos, e os criminosos ocupam, na escala humana, um grau muito inferior. Já não são cidadãos, nem mesmo se podem dizer homens, porque a razão e a virtude, que são os dois principais característicos humanos, eles os perderam, infringindo a lei e a moral. Além disso, uma vez que têm de expiar com a morte os seus crimes, não é justo que prestem algum serviço à verdade e à ciência? A verdade é imortal; ela vale não só todos os ratos, como todos os delinqüentes do universo. Ptolomeu achou o raciocínio exato, e ordenou que os criminosos fossem entregues a Herófilo e seus discípulos. O grande anatomista agradeceu tão insigne obséquio, e começou a escalpelar os réus. Grande foi o assombro do povo; mas, salvo alguns pedidos verbais, não houve nenhuma manifestação contra a medida. Herófilo repetia o que dissera a Ptolomeu, acrescentando que a sujeição dos réus à experiência anatômica era até um modo indireto de servir à moral, visto que o terror do escalpelo impediria a prática de muitos crimes.
Nenhum dos criminosos, ao deixar a prisão, suspeitava o destino científico que o esperava. Saíam um por um; às vezes dois a dois, ou três a três. Muitos deles, estendidos e atados à mesa da operação, não chegavam a desconfiar nada; imaginavam que era um novo gênero de execução sumária. Só quando os anatomistas definiam o objeto do estudo do dia, alçavam os ferros e davam os primeiros talhos, é que os desgraçados adquiriam a consciência da situação. Os que se lembravam de ter visto as experiências dos ratos, padeciam em dobro, porque a imaginação juntava à dor presente o espetáculo passado.
Para conciliar os interesses da ciência com os impulsos da piedade, os réus não eram escalpelados à vista uns dos outros, mas sucessivamente. Quando vinham aos dois ou aos três, não ficavam em lugar donde os que esperavam pudessem ouvir os gritos do paciente, embora os gritos fossem muitas vezes abafados
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por meio de aparelhos; mas se eram abafados, não eram suprimidos, e em certos casos, o próprio objeto da experiência exigia que a emissão da voz fosse franca. Às vezes as operações eram simultâneas; mas então faziam-se em lugares distanciados. Tinham sido escalpelados cerca de cinqüenta réus, quando chegou a vez de Stroibus e Pítias. Vieram buscá -los; eles supuseram que era para a morte judiciária, e encomendaram-se aos deuses. De caminho, furtaram uns figos, e explicaram o caso alegando que era um impulso da fome; adiante, porém, subtraíram uma flauta, e essa outra ação não a puderam explicar satisfatoriamente. Todavia, a astúcia do larápio é infinita, e Stroibus, para justificar a ação, tentou extrair algumas notas do instrumento, enchendo de compaixão as pessoas que os viam passar, e não ignoravam a sorte que iam ter. A notícia desses dois novos delitos foi narrada por Herófilo, e abalou a todos os seus discípulos. — Realmente, disse o mestre, é um caso extraordinário, um caso lindíssimo. Antes do principal, examinemos aqui o outro ponto... O ponto era saber se o nervo do latrocínio residia na palma da mão ou na extremidade dos dedos; problema esse sugerido por um dos discípulos. Stroibus foi o primeiro sujeito à operação. Compreendeu tudo, desde que entrou na sala; e, como a natureza humana tem uma parte ínfima, pediu-lhes humildemente que poupassem a vida a um filósofo. Mas Herófilo, com um grande poder de dialética, disse-lhe mais ou menos isto: — Ou és um aventureiro ou o verdadeiro Stroibus; no primeiro caso, tens aqui o único meio para resgatar o crime de iludir a um príncipe esclarecido, presta-te ao escalpelo; no segundo caso, não deves ignorar que a obrigação do filósofo é servir à filosofia, e que o corpo é nada em comparação com o entendimento. Dito isto, começaram pela experiência das mãos, que produziu ótimos resultados, coligidos em livros, que se perderam com a queda dos Ptolomeus. Também as mãos de Pítias foram rasgadas e minuciosamente examinadas. Os infelizes berravam, choravam, suplicavam; mas Herófilo dizia-lhes pacificamente que a obrigação do filósofo era servir à filosofia, e que para os fins da ciência, eles valiam ainda mais que os ratos, pois era melhor concluir do homem para o homem, e não do rato para o homem. E continuou a rasgá-los fibra por fibra, durante oito dias. No terceiro dia arrancaram-lhes os olhos, para desmentir praticamente uma teoria sobre a conformação interior do órgão. Não falo da extração do estômago de ambos, por se tratar de problemas relativamente secundários, e em todo caso estudados e resolvidos em cinco ou seis indivíduos escalpelados antes deles. Diziam os alexandrinos que os ratos celebraram esse caso aflitivo e doloroso com danças e festas, a que convidaram alguns cães, rolas, pavões e outros animais ameaçados de igual destino, e outrossim, que nenhum dos convidados aceitou o convite, por sugestão de um cachorro, que lhes disse melancolicamente: — “Século virá em que a mesma coisa nos aconteça”. Ao que retorquiu um rato: “Mas até lá, riamos!”
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DĂvida Extinta
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ue ele era um dos primeiros gamenhos de seu bairro e outros bairros adjacentes, é coisa que não sofre nem sofreu nunca a menor contestação. Podia ter competidores; teve-os; não lhe faltaram invejosos; mas a verdade, como o sol, acabou dissipando as nuvens e mostrando a face rutilante e divina, ou divinamente rutilante, como lhes parecer mais correntio e penteado. O estilo há de ir à feição do conto, que é singelo, nu, vulgar, não desses contos crespos e arrevesados com que autores de má sorte tomam o tempo e moem a paciência à gente cristã. Pois não! Eu não sei dizer coisas fabulosas e impossíveis, mas as que me passam pelos olhos, as que os leitores podem ver e terão visto. Olho, ouço e escrevo. E é por isso que não lhes pinto o meu gamenho de olhos derreados o fronte byroniana. De Byron é que ele não tinha nada, a não ser um volume truncado, vertido em prosa francesa, volume que ele lia e relia, a ver se extraía dele e da cabeça um recitativo à dama de seus pensamentos, que pela sua parte era a mais galante do bairro. O bairro era o espaço compreendido entre o Largo da Imperatriz e o cemitério dos Ingleses. A data... há uns vinte e cinco anos. O gamenho tinha por nome Anacleto Monteiro. Era nesse tempo um rapaz de vinte e três para vinte e quatro anos, com um princípio de barba e outro de bigode, rosto moreno, olhos de azeviche, cabelo castanho, grosso, farto e comprido, que ele arranjava em caracóis, à força de pente e banha e sobre o qual punha às tardes, o melhor de seus dois chapéus brancos. Anacleto Monteiro adorava o chapéu branco e as botas de verniz. Naquele tempo alguns gamenhos usavam umas botas de verniz de cano vermelho. Anacleto Monteiro adotou esse invento como a mais sublime das invenções do século. E tão gentil lhe parecia a idéia do cano vermelho, que nunca saía de casa sem levantar uma polegada às calças para que os olhos das damas não perdessem aquela circunstância da cor de crista de galo. As calças eram finas mas vistosas, o paletó esticado, a luva cor de canela ou de cinza, em harmonia com a gravata, que era cor de cinza ou de canela. Ponham-lhe uma bengala na mão e vê-lo-ão tal qual era, há vinte e cinco anos, o primeiro gamenho de seu bairro. Dizendo que era o primeiro não me refiro à elegância mas à audácia, que era verdadeiramente napoleônica. Anacleto Monteiro estava longe de competir com outros rapazes do tempo e do bairro, no capítulo da toilette e das maneiras; mas derrubava-os a todos no namoro. No namoro era um verdadeiro gênio. Namorava por necessidade, do mesmo modo que o pássaro canta; era índole, vocação, conformação do espírito. Que mérito ou que culpa há na mangabeira em dar mangas? Pois era a mesma coisa Anacleto Monteiro. — Este pelintra ainda me há de entrar em casa um dia com as costelas quebradas, dizia o tio a uma parenta; mas se ele pensa que chamarei médico, engana-se redondamente. Meto-lhe o côvado e meio de pano no corpo, isso sim! — Rapaziadas... objetava timidamente a parenta.
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— Qual, rapaziadas! desaforadas, é o que deve dizer. Não respeita nada nem ninguém; é só namorar. Tudo o que ganha é para aquilo, que a senhora vê; é para adamar-se, almiscarar-se, e lá vai ele! Ah! se ele não fosse filho daquela irmã, que Deus tem!... E o sr. Bento Fagundes consolava-se das extravagâncias do sobrinho inserindo no nariz duas onças de Paulo Cordeiro. — Deixai lá; mais dia menos dia, vem o casamento e sossega. — Qual casamento, qual carapuça! Pois como há de casar uma cabeça de vento que namora às quatro e às cinco? — Uma das cinco fisga-o... — Há de ser naturalmente a pior. — Isso lá, são desatinos. O que podemos ter por certo, é que ele não há de gastar a vida toda nisso... — Gasta, gasta... Olhe, o barbeiro é dessa opinião. — Deixe lá o barbeiro... Quer que lhe diga? Eu creio que, mais dia menos dia, ele está fisgado.... Já está. Há aí umas coisas que ouvi dizer na missa de domingo passado... — Que foi? — Umas coisas... — Diga. — Não digo. O que for aparecerá. Talvez tenhamos casamento mais breve do que pensa. — Sim? A sra. Leonarda fez um gesto de cabeça. O sr. Bento Fagundes esteve algum tempo a olhar as paredes; depois prorrompeu irado: — Mas, tanto pior! Ele não está em posição de casar. Salvo se a sujeita... E o orador concluía a frase esfregando o polegar no indicador, gesto que a sra. D. Leonarda correspondeu com outro derreando os cantos da boca, e abanando a cabeça da direita para a esquerda. — Pobre! traduziu o sr. Bento Fagundes. Olhe, se ele pensa que há de vir meter-me a mulher em casa, está muito enganado. Eu não fiz cinqüenta e quatro anos para sustentar família nova. Talvez ele pense que eu tenha mundos e fundos — Mundos, não digo, primo; mas fundos... — Fundos! os das gavetas. Aqui o sr. Bento Fagundes ia esfriando e desconversando, e a sra. D. Leonarda traçava o xale e despediase.
II Bento Fagundes da Purificação era boticário, na Rua da Saúde, desde antes de 1830. Em 1852, data do conto, tinha ele vinte e três anos de botica e um pecúlio, em que todos acreditavam, posto ninguém dissesse tê-lo visto. Aparentemente havia dois escravos, comprados no Valongo, quando esses eram ainda boçais e a preço módico. Vivia o sr. Bento Fagundes uma vida monótona e aborrecida como a chuva miúda. Raro saía da botica. Nos domingos havia um vizinho que o ia entreter ao gamão, jogo em que ele era emérito, porque era inalterável contra as pirraças da sorte, vantagem contra o adversário, que era irritadiço e frenético. Felizmente
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para as botijas do sr. Bento Fagundes, as coisas não se passavam como no soneto de Tolentino; o parceiro não atirava ao ar as tábulas, limitava-se a expectorar a cólera, derramar o rapé, assoar as orelhas, o queixo, a gravata, antes de atinar com o nariz. Às vezes acontecia brigar com o boticário e ficar mal com ele até o domingo seguinte; o gamão reconciliava-os: similia similibus curantur. Nos demais dias, o sr. Bento Fagundes vendia drogas, manipulava as cataplasmas, temperava e arredondava as pílulas. De manhã, lavado e enfronhado no rodaque de chita amarela, sentava-se em uma cadeira à porta, a ler o Jornal do Commercio, que lhe emprestava o padeiro da esquina. Não lhe escapava nada, desde os debates das câmaras até os anúncios teatrais, posto não fosse a espetáculos nem saísse nunca. Lia com igual pachorra todos os anúncios particulares. Os derradeiros minutos eram dados ao movimento do porto. Uma vez inteirado das coisas do dia, entregava-se todo aos misteres da farmácia. Esta vida tinha duas alterações durante o ano; uma na ocasião das festas do Espírito Santo, em que o sr. Bento Fagundes ia ver as barracas, em companhia dos três parentes que tinha; outra na ocasião da procissão de Corpus Christi. Salvo essas duas ocasiões, nunca mais vinha à cidade o sr. Bento Fagundes. Assim que, era todo ele uma regularidade de cronômetro; um gesto compassado e um ar soturno com o qual se parecia a botica, que era uma loja escura e melancólica. Claro é que um homem com tais hábitos longamente adquiridos mal poderia suportar a vida que levava o pintalegrete do sobrinho. Anacleto Monteiro não era só pintalegrete; trabalhava; tinha um emprego no Arsenal de Guerra; e só acabado o trabalho ou nos dias de férias, atirava-se às ruas da Saúde e adjacentes. Que ele passeasse uma vez ou outra, não lho contestava o tio; mas sempre, e de botas encarnadas, eis o escândalo. Daí a raiva, os ralhos, as explosões. E quem o obriga a alojá-lo na botica, dar-lhe casa, cama e mesa? O coração, leitora minha, o coração de Bento Fagundes que ainda se conservava mais puro do que suas drogas. Bento Fagundes tinha dois sobrinhos: o nosso Anacleto, que era filho de uma sua irmã muito querida, e Adriano Fagundes, filho de um irmão, a quem ele detestara enquanto vivo foi. Em Anacleto amava a lembrança da irmã; em Adriano as qualidades pessoais; amava-os igualmente, e talvez um poucochinho mais a Adriano do que ao outro. As boas qualidades deste eram mais conformes ao gênio do boticário. Primeiramente, não usava botas encarnadas, nem chapéu branco, nem luvas, nem qualquer outro distintivo de peraltice. Era um jarreta precoce. Não arruava, não ia a teatros, não gastava charutos. Tinha vinte e cinco anos e tomava rapé desde os vinte. Finalmente, apesar do convite que o tio lhe fez, nunca foi morar com ele; residia em casa sua, na Rua do Propósito. Bento Fagundes suspeitava que ele punha dinheiro de lado, suspeita que o tornava inda mais digno de apreço. Não havia entre os dois primos grande afeição; mas davam-se, encontravam-se freqüentes vezes ou em casa do tio, ou na casa de Adriano. Nem este podia suportar a peraltice de Anacleto, nem Anacleto o jarretismo de Adriano, e ambos tinham razão, porque cada um deles via as coisas através de suas próprias preferências, que é o que acontece aos demais homens; sem embargo, porém, desse abismo que entre os dois havia, davam-se e continuavam as relações da infância.
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O tio estimava vê-los mais ou menos unidos. Sua cólera a respeito de Anacleto, seus protestos de o não receber em casa quando ele casasse, eram protestos ao vento, era cólera de namorado. Por outro lado, a sequidão com que tratava Adriano era apenas uma crosta, uma aparência mentirosa. Como ficou dito, os dois rapazes eram as duas únicas afeições do velho farmacêutico, e a dor única e verdadeira que ele teria era se os visse inimigos. Vendo-os amigos, não pedia Bento Fagundes nada mais ao destino do que vê-los sãos, empregados e felizes. Eles e a sra. D. Leonarda eram seus únicos parentes; esta mesma veio a morrer antes dele, não lhe restando nos últimos dias mais do que Anacleto e Adriano, as meninas de seus olhos.
III Ora, é de saber que justamente no tempo em que a sra. D. Leonarda fez meia confidência ao boticário, era esta nada menos que verídica. Entre os dez ou doze namoros que o jovem Anacleto entretinha nessa ocasião, havia um que ameaçava internar-se pelos domínios conjugais. A donzela que assim queria cortar as asas ao volúvel Anacleto morava na Praia da Gamboa. Era um demoninho de olhos pretos, que é a cor infernal por excelência. Dizia-se na vizinhança que em matéria de namoro ela pedia meças ao sobrinho de Bento Fagundes. Devia ser assim, porque muita sola de sapato era gasta na referida praia, só por motivo dela, sem que nenhum dos pretendentes desanimasse, o que é prova de que se a boa menina lhes não respondia que sim, também lhes não dizia que não. Carlota era o nome desta volúvel criatura. Tinha perto de dezenove anos e não possuía dezenove mil-réis. Os pretendentes não olhavam a isso; gostavam dela pelos olhos, pela figura, por todas as graças que viam nela, e nada mais. As vizinhas, suas naturais competidoras, não podiam perdoar-lhe a espécie de monopólio que ela exercia em relação aos pintalegretes do bairro. Poucas eram as que prendiam algum deles e estes eram quase todos, não rapazes desenganados, mas precavidos, que depois de muito tempo, sem largar Carlota, iniciavam alguns namoros suplementares. Quando Anacleto Monteiro se dignou baixar os olhos a Carlota foi com a intenção feita de derrubar todos os pretendentes, fazer-se amado e romper o namoro, como era costume seu; restituiria as cartas, ficando com duas, e a trança de cabelo, escondendo alguns fios. Um domingo de tarde Anacleto Monteiro vestiu a melhor das roupas, empomadou-se, almiscarou-se, enfeitou-se, pôs na cabeça o mais alvo dos chapéus e saiu na direção da Gamboa. Um general não dispõe melhormente as suas tropas. A peleja era de honra; ele afiançara a alguns amigos, em uma loja de barbeiro, que deitaria ao chão todos os que pretendiam o coração da pequena; cumpria dirigir o ataque em regra. Nessa tarde houve só um reconhecimento, e completo. Ele passou, fitando na moça uns olhos lânguidos, depois intimativos, depois misteriosos. A vinte passos parou, olhando para o mar, tirou o lenço, chegou aos lábios, e guardou -o depois de o agitar um pouco em forma de adeus. Carlota, que percebera tudo, curvou muito o corpo, a brincar com um dos cachos. Usava cachos. Era uma de suas armas. No dia seguinte, prosseguiu no reconhecimento, mas então mais próximo à fortaleza. Anacleto passou duas ou três vezes pela porta, sorriu, contraiu as sobrancelhas, piscou um olho. Ela sorriu também mas sem olhar para ele, com um gesto muito disfarçado e gracioso. Ao cabo de quatro dias estavam esgotados estes preliminares amatórios, e Anacleto convencido de que podia empreender um ataque à viva força.
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A fortaleza pedia isso mesmo; a pontualidade com que o esperava à janela, o interesse com que o seguia, o sorriso que lhe guardava no canto do lábio, eram tudo sintomas de que a fortaleza estava prestes a render-se. Anacleto aventurou a primeira carta. A primeira carta de Anacleto era sempre a mesma. “ Duas páginas deste chavão insípido mas eficaz. Escrita a carta, dobrou-a, fechou-a em forma de laço, meteu-a no bolso e saiu. Passou; deixou cair a noite; voltou a passar e, cosendo-se com a parede e a rótula, deu-lhe a carta com uma arte só comparável à arte com que ela a recebeu. Carlota foi lê-la daí a alguns minutos. Leu-a, mas não escreveu logo a resposta. Era um de seus artifícios; nem escreveu a resposta, nem chegou à janela, nos dois dias posteriores. Anacleto foi às nuvens quando, no dia seguinte, ao passar-lhe pela porta não viu a deusa da Gamboa, como os rapazes lhe chamavam. Era a primeira que lhe resistia ao estilo e ao almíscar. Repetiu-se-lhe o caso no outro dia, e ele sentiu alguma coisa semelhante ao amor-próprio ofendido. — Ora dá-se! dizia ele consigo mesmo. Uma lambisgóia que... Daí, pode ser que esteja doente. É isso; está doente... Se pudesse saber alguma coisa! Mas como? Não indagou nada e esperou mais vinte e quatro horas; resolução acertada, porque, vinte e quatro horas depois, tinha ele a fortuna de ver a deusa, logo que apontou ao longe. — Lá está ela. Carlota tinha-o visto e olhava para o mar. Anacleto aproximou-se; ela fitou-o; trocaram uma chispa. Justamente ao passar pela rótula, Anacleto sussurrou com voz trêmula e puxada do coração: — Ingrata! Ao que ela retorquiu: — Às ave-marias. Não havia já para o sobrinho de Bento Fagundes comoções novas. O dito de Carlota não lhe fez ferver o sangue. Sentiu-se porém lisonjeado. A praça estava rendida. Logo depois das ave-marias voltou o petimetre, encostadinho à parede, a passo curto e demorado. Carlota deixou cair um papel, ele deixou cair o lenço e abaixou-se para apanhar o lenço e o papel. Quando ergueu a cabeça a moça tinha desaparecido. A carta era também um chavão. Carlota dizia sentir igual sentimento ao de Anacleto Monteiro, mas pedia-lhe que, se não fosse intenção dele amá-la deveras, melhor era deixá-la entregue à solidão e às lágrimas. Estas lágrimas, as mais hipotéticas do mundo, engoliu-as o sobrinho do boticário, porque era a primeira vez que lhe falavam delas logo na primeira epístola. Concluiu que o coração da pequena devia arder como um Vesúvio. A isto seguiu-se uma orgia de cartas e passeios, de lencinho na boca, e de paradas à porta. Antes de parar à porta, Anacleto Monteiro aventurou um aperto de mão, coisa fácil, porque ela não a tinha pendurado para outra coisa.
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Logo no dia seguinte passou; estiveram alguns instantes sem dizer nada; depois disseram ainda menos, porque falaram da lua e do calor. Foi só o intróito. Está provado que a lua é o caminho do coração. Não tardou que começassem a repetir de viva voz tudo o que tinham escrito nas cartas. Juras eternas, saudades, paixão invencível. No ponto agudo do casamento nenhum deles tocou, ela por modéstia, ele por prudência; e assim correram as duas primeiras semanas.
IV — Mas, deveras, você gosta de mim? — Céus! Por que me fazes essa pergunta? dizia pasmado Anacleto Monteiro. — Eu sei! Você é tão volúvel! — Volúvel, eu! — Sim, você. Já me avisaram a seu respeito. — Ah! — Já me disseram que você gasta o seu tempo a namorar, a enganar as moças, e depois... — Quem foi esse caluniador? — Foi uma pessoa que você não conhece. — Carlota, bem sabes que meu coração palpita por ti e somente por ti... Pelo contrário, você é que me parece não gostar nada... Não abane a cabeça; eu posso dar-lhe provas. — Provas! Venha uma. — Posso dar vinte. Em primeiro lugar, ainda não pude obter que você me desse um beijo. Que quer dizer isso, seria que você quer só passar o tempo? Carlota fez uma careta. — Que tem? que é? disse Anacleto Monteiro angustiado. — Nada; uma pontada. — Costumas ter isso? — Não, só ontem é que me apareceu... Há de ser a morte. — Não digas semelhante coisa! A dor passara e o beijo não viera. Anacleto Monteiro suspirava pelo beijo desde o sexto dia de palestra e Carlota com muita arte ia transferindo a dádiva para as calendas gregas. Naquela noite saiu dali Anacleto um pouco picado de despeito, que era já um princípio de amor sério. Caminhou pela praia adiante, sem reparar em um vulto que a trinta ou quarenta passos estivera a espreitá-lo; um vulto que ali ficou ainda por espaço de meia hora. Não reparou Anacleto, seguiu para casa e entrou zangado e melancólico. Fumou dez ou doze cigarros para distrair-se; leu duas ou três páginas do Carlos Magno; por fim deitou-se e só tarde conseguiu dormir. A figura de Carlota saía-lhe dos cigarros, das folhas do livro e de dentro dos lençóis. Na botica, logo que entrou, pareceu-lhe vê-la entre dois frascos de ipecacuanha. Começava a ser idéia fixa. Surgiu o dia seguinte. — Nada! é preciso cortar este negócio antes que vá mais longe, dizia ele consigo. Dizê-lo era fácil; cumpri-lo era um pouco mais duro. Ainda assim, teve Anacleto forças para não ir nessa tarde à Gamboa; mas
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tão cruel foi a noite, e tão longo o dia seguinte, que na outra tarde, ainda o sol ardia longe do poente, e já o sobrinho do boticário palmilhava pela praia adiante. Nestas negaças, neste ir e vir, zangar-se e reconciliar-se, perdia ele o tempo e perdia também a liberdade. O amor verdadeiro apoderou-se dele. As outras damas foram abandonadas aos demais pretendentes, que folgaram com a incompatibilidade moral de Anacleto Monteiro, por mais momentânea que ela fosse. Antes de ir adiante, importa explicar que nenhuma pessoa havia dito a Carlota o que ela alegou que lhe disseram; era um recurso de namorada, uma peta inocente. Anacleto, na qualidade de varão, engoliu a caraminhola. Os homens neste caso são uma verdadeira lástima. Desde que sentiu amar deveras, o sobrinho de Bento Fagundes pensou seriamente no casamento. Sua posição não era brilhante; mas nem a noiva exigira muito, nem seu coração tinha liberdade de refletir. Demais, havia para ele certa esperança nos xaropes do tio. Também ele cria que Bento Fagundes possuía algum pecúlio. Isto, o amor, a beleza de Carlota, a pobreza desta, eram motivos poderosos para levá-lo a falar desde logo no desenlace religioso. Uma noite aventurou o pedido. Carlota ouviu-o com palpites; mas sua resposta foi uma evasiva, um adiamento. — Mas por que não me responde já? dizia ele desconfiado. — Quero... — Diga. — Quero primeiro sondar mamãe. — Sua mãe não se oporá à nossa felicidade. — Creio que não; mas não desejo dar palavra sem estar certa de a poder cumprir. — Logo não me ama. — Que exageração! Anacleto mordeu a ponta do lenço. — Não me ama, gemeu ele. — Amo, sim. — Não! Se me amasse, outra seria sua resposta. Adeus, Carlota! Adeus para sempre! E deu alguns passos... Carlota não lhe respondeu nada. Deixou-se ficar à janela até que ele voltasse, o que não demorou muito. Anacleto voltou. — Jura que me ama? disse ele. — Juro. — Vou mais tranqüilo. Só desejo saber quando poderei obter sua resposta. — Dentro de uma semana; talvez antes. — Adeus! Desta vez o vulto que o espreitara em uma das noites anteriores, estava no mesmo lugar, e quando o viu afastar-se caminhou para ele. Caminhou e parou; olharam-se: foi um lance teatral. O vulto era Adriano. Vai o leitor vendo que o conto não se parece com outros de água morna. Neste há inclinação trágica.
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Um leitor atilado vê já ali uma espécie de fratricídio moral, um produto do destino antigo. Não é bem isto; mas podia ser. Adriano não sacou um punhal do bolso, nem Anacleto recorreu à espada, que aliás nem trazia nem possuía. Digo mais: Anacleto nem suspeitou nada. — Tu por aqui! — Ando a tomar fresco. — Tens razão; faz um calor! Os dois seguiram; falaram de várias coisas estranhas até chegarem à porta da casa de Adriano. Cinco minutos depois, Anacleto despedia-se. — Onde vais? — Para casa; são nove horas. — Podes dispensar alguns minutos? disse Adriano em tom sério. — Pois não. — Entra. Entraram. Anacleto ia meio intrigado, como dizem os franceses; o tom do primo, seus modos, tudo tinha um ar misterioso e aguçava a curiosidade. Adriano não o fez demorar muito, nem deu lugar a conjecturas. Logo que entraram, acendeu uma vela, convidou-o a sentar-se e falou por este modo: — Você gosta daquela moça? Anacleto estremeceu. — Que moça? perguntou ele depois de curto silêncio. — A Carlota. — A da Praia da Gamboa? — Sim. — Quem lhe disse isso? — Responda: gosta? — Creio que sim. — Mas... deveras? — Essa agora! — A pergunta é natural, disse Adriano com tranqüilidade. Você é conhecido por gostar de namorar umas e outras. Não há motivo de censura, porque assim fazem muitos rapazes. Por isso desejo saber se gosta deveras, ou se é um simples passatempo. Anacleto refletiu alguns instantes. — Desejava saber qual será sua conclusão em qualquer dos casos. — Simplíssima. No caso de ser passatempo, pedir-lhe-ei que não ande a iludir uma pobre moça que lhe não fez mal nenhum. Anacleto já estava sério. — E no caso de gostar deveras? disse ele. — Neste caso, dir-lhe-ei que também gosto dela deveras e que, sendo ambos competidores, poderemos
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resolver este conflito por algum modo. Anacleto Monteiro bateu com a bengala no chão e ergueu-se fazendo um arremesso, enquanto Adriano, pacificamente sentado, aguardava a resposta do primo. Este passeou de um lado para outro sem saber que lhe respondesse e desejoso de o deitar pela janela fora. O silêncio foi longo. Anacleto rompeu-o, detendo-se de súbito: — Mas não me dirá qual será o modo de resolver o conflito? disse ele. — Vários. — Vejamos, disse Anacleto, sentando-se de novo. — Primeiro: você desiste de a pretender; é o mais fácil e simples. Anacleto contentou-se com sorrir. — O segundo? — O segundo é retirar-me eu. — É o melhor. — É o impossível, nunca o farei. — Ah! então sou eu que devo retirar-me e deixá-lo... Na verdade! — Terceiro modo, continuou pacificamente Adriano: ela escolher entre ambos. — Isso é ridículo. — Justamente: é ridículo... E é por ser destes três modos, um ridículo e outro impossível, que eu lhe proponho o mais praticável dos três: sua retirada. Você tem namorado muitas sem casar; será mais uma. E eu, que não uso namorar, gostei desta e espero chegar ao casamento. Só então lembrou a Anacleto fazer-lhe a mais natural pergunta do mundo: — Mas tem você certeza de ser amado por ela? — Não. Anacleto não se pôde conter: levantou-se, soltou dois impropérios e dirigiu-se para a porta. O primo foi ter com ele. — Venha cá, disse; resolvamos primeiro este negócio. — Resolver o quê? — Quer então ficar mal comigo? Anacleto ergueu secamente os ombros. — Quer a luta? tornou o outro. Pois lutaremos, pelintra! — Não luto com jarretas! — Tolo! — Malcriado! — Sai daqui, pateta! — Saio, sim; mas não é por causa de seus berros, ouviu? — Gabola! — Grosseirão!
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Anacleto saiu; o primo soltou-lhe ainda um adjetivo através das persianas, a que ele respondeu com outro, e foi o último.
V Adriano, logo que ficou só, aplacou a cólera com uma pitada, monologou um pouco e refletiu longo tempo. De todas as injúrias que o primo lhe dissera, a que mais o impressionou foi o epíteto de jarreta, evidentemente cabido. Adriano viu-se ao espelho e concluiu que, efetivamente, uma gravata com menos voltas não lhe iria mal. A roupa, em vez de comprada em um adelo, podia ser mandada fazer por algum alfaiate. Só não sacrificou ao chapéu branco. O chapéu branco é a pacholice do vestuário, disse ele. Depois, lembrou-se de Carlota, de seus olhos negros, dos gestos de desdém que lhe fazia quando ele lhe cravava uns olhos mortos. Seu coração palpitava com uma força incrível; era amor, cólera, despeito, desejo de triunfar. O sono dessa noite foi entremeado de sonhos agradáveis e terríveis pesadelos. Um destes foi imenso. Adriano sonhou que o primo lhe arrancava os olhos com a ponta da bengala, depois de lhe pôr na cara o par de botas, em um dia de chuva miúda, testemunha desse espetáculo, que fazia lembrar os mais belos dias de Calígula; Carlota ria às gargalhadas. O pregão de uma quitandeira arrancou-o felizmente ao suplício; eram sete horas da manhã. Adriano não perdeu tempo. Logo nesse dia tratou de melhorar a toilette, abrindo um pouco os cordões da bolsa. A que não obriga o amor? Adriano encomendou umas calças menos irrisórias, um paletó mais sociável; muniu-se de outro chapéu; sacrificou os sapatos de dois mil e qui -nhentos. Quando estes utensílios lhe foram entregues, Adriano investiu denodadamente à Praia da Gamboa, aonde não fora desde a noite do último encontro com Anacleto. Pela sua parte, o primo não perdera tempo. Não receava a competência de Adriano Fagundes, mas tinha para si que se desforraria das pretensões deste, apressando o casamento. E conquanto nada receasse do outro, de quando em quando lhe soava no coração a palavra imperiosa do primo, e, incerto das predileções de Carlota, não sabia às vezes em que daria o duelo. Vendo-o triste e preocupado, o boticário lembrou-se das palavras da sra. D. Leonarda, e, como tinha grande afeto ao sobrinho, sentia cócegas de lhe dizer alguma coisa, de o interrogar a respeito da mudança que lhe notava. Não se atrevia. A sra. D. Leonarda, com quem conferenciou a tal respeito, acudiu logo: — Não lhe dizia eu? Não é nada; são amores. O rapaz está pelo beiço... — Pelo beiço de quem? perguntou Bento Fagundes. — Isso... não sei... ou... não posso dizer... Há de ser ali para os lados da Gamboa... Bento Fagundes não pôde obter mais. Continuou aborrecido. Anacleto Monteiro não voltava a ser o que era antes; ele temia alguma pretensão mal acertada, e pensava já em intervir, se fosse caso disso e valesse a pena. — Que tens tu, rapaz? Andas melancólico... — Não tenho nada; ando constipado; dizia Anacleto Monteiro sem atrever-se a encarar o tio.
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Metade dos motivos da constipação de Anacleto, já o leitor a conhece; a outra metade vou dizer-lha. Insistira o rapaz no casamento, Carlota continuava a negacear. A razão deste proceder explica-se dizendo que ela queria fazer-se rogada, prender mais fortemente o coração de Anacleto, despeitá-lo; e a razão da razão era que mais de uma vez prometera a mão, desde o primeiro dia, a sujeitos que não se lembravam mais de ir buscá-la. Carlota namorava desde os quinze anos e estava cansada de esperar um noivo. Agora, seu plano era despeitar o pretendente, certa de que os homens nada desejam mais ardentemente do que o amor que se lhes nega desde logo. Carlota era um principezinho de Metternich. Irritado com a recusa e o adiamento da moça, Anacleto cometeu um erro monumental: aventurou a idéia de que houvesse algum rival, e, negando-o ela, retorquiu o pascácio: — Tenho, tenho... Não há muitos dias escapei de me perder por sua causa. — Minha causa? — É verdade. Um bigorrilhas, que, por minha desgraça, é meu primo, espreitou-me uma noite inteira e depois foi provocar-me. — Sim? — Provocar-me, é verdade. Estivemos a ponto de pegar-nos. Ele escumava de raiva, chorava, rasgava-se, mas eu que lhe sou superior em tudo, não lhe dei trela e saí. — Ora essa! — Sabes o que me propôs? — Que foi? — Que eu desistisse de tua mão em favor dele. — Tolo! — Não achas? — Sem dúvida! — Juras-me que não é dele? — Juro! — Vou mais contente. Mas quando falarás a tua mãe? — Hoje; hoje ou amanhã. — Fala hoje mesmo. — Pode ser. Depois de um instante disse Carlota: — Mas eu nem me lembro de o ter visto! Que figura tem ele? — Um jarreta. E Anacleto Monteiro, com aquela ternura que a situação lhe metia na alma, descreveu a figura do primo, de quem Carlota se lembrou logo perfeitamente. Fisicamente, não ficou a moça lisonjeada; mas a idéia de ser loucamente amada, ainda por um jarreta, foi-lhe muito agradável ao coração. As mulheres são principalmente sensíveis. Demais, Anacleto Monteiro cometera erro crasso sobre erro crasso: além de referir a paixão do primo, exagerou-lhe os efeitos; e dizer a Carlota que um rapaz chorava por ela e se arrepelava era o mesmo que recomendar-lho à imaginação. Carlota pensou efetivamente no jarreta, cuja paixão lhe parecia, senão mais sincera pelo menos mais ardente que a do elegante. Tinha lido romances; gostava dos amores que saem do vulgar. A figura,
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porém, de Adriano, temperava cruelmente essas impressões. Quando lhe lembrava o trajo e o desalinho do rapaz, sentia-se algo vexada; mas, ao mesmo tempo, perguntava a si própria se o apuro de Anacleto não orçava pelo ridículo. As gravatas deste, se não eram amarrotadas como as de Adriano, eram vistosas demais. Ela não sabia ainda o nome do jarreta, mas já o nome de Anacleto lhe não parecia bonito. Estas imaginações de Carlota coincidiram com a pontualidade do alfaiate de Adriano, por modo que no dia seguinte ao da notícia que Anacleto lhe dera, viu Carlota aparecer o seu amador silencioso, melhormente encadernado. A moça estremeceu ao vê-lo e quando ele lhe passou pela porta, a olhar para ela, Carlota não retirou os olhos nem lhes deu má expressão. Adriano passou, olhou duas vezes para trás sem que ela saísse da janela. Longe disso! Estava tão encantada com a idéia de que aquele homem chorava por ela e se finava de amores, que ele lhe pareceu melhor do que estava. Ambos ficaram satisfeitos um do outro. Este é o ponto agudo da narração; repouse a leitora um instante e verá coisas espantosas.
VI Carlota está a duas amarras. Adriano declarou-se por meio de uma carta, em que lhe disse tudo o que sentia; a moça, vendo que os dois amadores eram parentes e sabiam mutuamente o que sentiam, receou escrever-lhe. Resolveu, porém, a fazê-lo, mudando um pouco a letra e esfriando a frase mais que pôde. Adriano ficou satisfeito com esse primeiro resultado, e insistiu com outra epístola, a que ela respondeu, e desde logo se estabeleceu ativa correspondência. Não deixou Anacleto de suspeitar alguma coisa. Primeiramente, viu a mudança que se operara nas roupas do primo; encontrou-o na praia algumas vezes; finalmente, Carlota parecia-lhe às vezes distraída; via-a menos; recebia menos cartas. — Dar-se-á caso que o pelintra...? pensou ele. E meditou uma vingança. Não atinou com ela, cogitou um suplício entre os maiores possíveis e não encontrou nenhum. Nenhum estava na altura de seus brios. Eu sinto dizer a verdade à leitora, se alguma simpatia lhe merece este namorado: Anacleto... tinha medo. De bom grado cederia todas as Carlotas do mundo se corresse algum risco corporal. Num momento de raiva era capaz de soltar algum impropério; era até capaz de fazer algum gesto de ameaça; chegaria até a um princípio de realização. Mas o medo dominaria logo. Ele tinha medo do primo. — Infame! dizia ele com os seus botões. Os botões, que não eram aliados ao primo nem tinham que ver com os interesses dele, mantinham-se com exemplar discrição. Anacleto Monteiro adotou a politica da defensiva. Era a única. Tratou de conservar as posições conquistadas, não sem tentar tomar de assalto o reduto matrimonial, reduto que forcejava por não cair. Os encontros dos dois na praia eram freqüentes; um empatava o outro. Adriano conseguira chegar-se à fala, mas o outro não o percebeu logo nos primeiros dias. Foi só ao cabo de uma semana que ele descobriu esse progresso do inimigo. Passou; viu um vulto à porta; atentou nele; era Adriano. — Meu Deus! exclamou Carlota. Aquele moço me conhece...
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— Já sei, replicou Adriano com pausa. Ele gosta da senhora. — Oh! mas eu... — Não se importe com isso; eu saberei ensiná-lo. — Pelo amor de Deus! — Descanse; é só se bulir comigo. Anacleto Monteiro afastava-se dali com a morte na alma e o cérebro em ebulição. Parou ao longe, disposto a esganar o primo, quando ele se aproximasse. Chegou a querer voltar, mas recuou diante da necessidade de um escândalo. Todo ele tremia de cólera. Encostou-se à parede, disposto a esperar até meia-noite, até o outro dia, se necessário fosse. Não era. Adriano, ao cabo de meia hora, despediu -se de Carlota e seguiu na mesma direção do primo. Este hesitou entre uma afronta e uma retirada; preferiu a primeira e esperou. Adriano veio a passo lento, encarou-o e seguiu. Anacleto ficou pregado à parede. No fim de cinco minutos recobrou todo o sangue, por haver ficado sem pinga dele, e foi para casa a passo lento e cauteloso. Naturalmente este episódio não podia ir além. Desenganado Anacleto por seus próprios olhos, não tinha mais que esperar. Assim foi por algumas horas. Anacleto recorreu à pena logo que chegou à casa, e numa carta longa e chorosa disse à namorada todas as queixas de seu coração. Carlota redigiu uma resposta em que lhe dizia que a pessoa com quem ela estivera falando da janela era visita de casa. Ele insistiu: ela ratificou as primeiras declarações até que três dias depois ocorreu em plena tarde, e em plena rua, um episódio que regozijou singularmente a vizinhança. Nessa tarde encontraram-se os dois perto da casa da namorada. Anacleto teve a infelicidade de um pigarro; conseqüentemente tossiu. A tosse pareceu escarninha a Adriano, que estacando o passo, disse-lhe uma injúria em alta voz. Anacleto teve a infelicidade de retorquir com outra. O sangue subiu à cabeça do primo, que lhe lançou a mão ao paletó. Nesta situação não há covardia que resista. Por mal dos pecados, Carlota apareceu à janela: a luta era inevitável. Há de desculpar o leitor se lhe dou esta cena de pugilato; mas, repare bem, e verá que ela é romântica, de um romântico baixo. Na Idade Média, as coisas não se passavam de outro modo. A diferença é que os cavaleiros lutavam com outras armas e outra solenidade, e a castelã era diferente de uma vulgar namoradeira. Mas só o quadro era outro; o fundo era o mesmo. A castelã da Gamboa assistiu à luta dos dois pretendentes meio penalizada, meio lisonjeada e meio remordida. Viu ir pelos ares o chapéu branco de Anacleto, desfazer-se-lhe a cabeleira, desarranjar-se-lhe a gravata. Adriano, por sua parte, recebia algum pontapé avulso do adversário e pagava-lho em bons cachaqões. Rolaram os dois por terra, no meio da gente que se juntava e que não podia ou não ousava separá-los; um gritava, outro bufava; os vadios riam, a poeira cercava-os a todos, como uma espécie de nuvem misteriosa. No fim de dez minutos, conseguiram os passantes separar os dois inimigos. Um e outro tinham sangue. Anacleto perdera um dente; Adriano recebera uma mordidela na face. Assim desfeitos, feridos, empoeirados, apanharam os chapéus e estiveram a ponto de travarem nova luta. Dois estranhos caridosos impediram a repetição e levaram-nos para casa.
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Carlota não pudera ver o resto; retirara-se para dentro, acusando-se a si própria. Foi dali rezar a uma imagem de Nossa Senhora, pedindo-lhe a reconciliação dos dois e prometendo não atender a mais nenhum deles para os não irritar um contra o outro. Ao mesmo tempo em que ela solicitava a reparação do mal que fizera, cada um deles jurava entre si matar o outro.
VII Aquele lance da Praia da Gamboa foi motivo das palestras do bairro durante alguns dias. A causa da luta foi logo conhecida; e, como é natural em tais casos, aos fatos reais vieram juntar-se muitas circunstâncias de pura imaginação. O principal é que os belos olhos de Carlota tinham tornado irreconciliáveis inimigos os dois primos. Haverá melhor anúncio do que este? Bento Fagundes soube do caso e do motivo. Pesaroso, quis reconciliar os rapazes, falou-lhes com autoridade e com brandura; mas nem um nem outro modo, nem conselhos nem pedidos, tiveram que fazer com eles. Cada um dos dois meditava a morte do outro, e só recuavam diante dos meios e da polícia. — Tio Bento, dizia Anacleto Monteiro; eu não poderei decentemente viver enquanto aquele mau coração palpitar... — Perdoa-lhe... — Não há perdão para semelhante monstro! Bento Fagundes ficara aflito, ia de um para outro, sem alcançar mais resultado com este que com aquele; caía-lhe o rosto, sombreava-se-lhe o espírito; terrível sintoma: o gamão foi posto de lado. Enquanto não punham em execução o plano trágico, cada um dos dois rivais lançou mão de outro, menos trágico e mais seguro: a calúnia. Anacleto escreveu a Carlota dizendo que Adriano, se se casasse com ela, pôr-lhe-ia às costas quatro filhos que já tinha de uma mulher íntima. Adriano denunciou o primo à namorada como um dos mais insignes beberrões da cidade. Carlota recebeu as cartas no mesmo dia, e não soube desde logo se devia crer ou não. Inclinou-se ao segundo alvitre, mas os dois rivais não ganharam com esta disposição da moça, porque, recusando dar crédito aos filhos de um e ao vinho do outro, acreditou somente que ambos tinham sentimentos morais singularmente rasteiros. — Creio que são dois peraltas, disse ela com seus colchetes. Esta foi a oração fúnebre dos dois namorados. Posto que ambos os primos calcassem o pó da Praia da Gamboa para ver a moça e disputá-la, perdiam o tempo, porque Carlota teimava em não aparecer. O caso irritou-os ainda mais um contra o outro, e por pouco não vieram de novo às mãos. Nisto interveio um terceiro namorado, que em poucos dias deu conta da mão, casando com a bela Carlota. Ocorreu o fato três semanas depois do duelo manual dos dois parentes. A notícia foi um pouco mais de combustível lançado na fogueira de ódios acesos entre eles; nenhum dos dois acusou Carlota ou o destino, mas o adversário.
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A morte da sra. D. Leonarda trouxe um intervalo às dissensões domésticas da casa de Bento Fagundes, cujos últimos dias eram assim bastante amargurados; mas foram apenas tréguas. O desgosto profundo, de mãos dadas com uma víscera inflamada, puseram o pobre boticário na cama um mês depois do casamento de Carlota e na sepultura cinqüenta dias mais tarde. A doença de Bento Fagundes foram novas tréguas e desta vez mais sinceras, porque a coisa era mais importante. Prostrado na cama, o boticário via os dois sobrinhos servirem-no com muita docilidade e brandura, mas via também que um abismo os separava eternamente. Esta dor era a que mais o pungia naquela ocasião. Quisera reconciliá-los, mas não tinha esperança de o conseguir. — Vou morrer, dizia ele a Anacleto Monteiro, e levo a maior mágoa... — Tio Bento, deixe-se de idéias negras. — Negras são, é verdade; bem negras, e assim... — Qual morrer! Há de ir comigo passar uns dias na Tijuca... — Contigo e o Adriano, dizia Bento Fagundes, cravando no sobrinho uns olhos perscrutadores. Aqui fechava-se o rosto de Anacleto, onde o ódio, só o ódio, transluzia com um reflexo infernal. Bento Fagundes suspirava. A Adriano dizia ele: — Sabes tu, meu rico Adriano, qual é a maior dor que eu levo para a sepultura? — Sepultura? interrompia Adriano. Falemos de coisas mais alegres — Sinto que morro. A dor maior que eu levo é que tu e Anacleto... — Não se exalte, tio Bento; pode fazer-lhe mal. Era inútil. Três dias antes de morrer, Bento Fagundes, vendo-os juntos no quarto, chamou-os e pediu-lhes que fizessem as pazes. Recusaram ambos; a princípio desconversando; depois abertamente. O boticário insistiu; travou da mão de um e de outro e uniu-as. Foi um simulacro. As mãos dos dois tremiam, e ambos ficaram lívidos de cólera. Entre eles, era tal o receio que nenhum ousava comer em casa de Bento Fagundes por medo de que o cozinheiro, peitado, lhes propinasse uma dose de arsênico. Não se falavam, é claro; não se olhavam; tremiam quando se achavam a sós e fugiam para evitar o escândalo de uma nova luta, a dois passos do enfermo. A moléstia era mortal. Bento Fagundes expirou entre os dois parentes. Estes o amortalharam silenciosamente, fizeram os convites, trataram do enterro, sem trocar a mínima palavra. Se a sra. D. Leonarda fosse viva teria ocasião de ver que não se enganava quando atribuía algumas economias ao velho boticário. O testamento foi a confissão pública. Bento Fagundes declarou possuir, no estabelecimento, escravos, prédios e não sei que títulos, uns trinta e oito contos. Seus herdeiros universais eram Anacleto e Adriano, últimos parentes. Havia, entretanto, uma cláusula no testamento, redigido um mês antes de morrer, que deu alguma coisa que falar no bairro. Dizia Bento Fagundes:
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Os ditos meus herdeiros universais, que por tais os declaro, serão obrigados a usufruir juntos os meus bens ou continuando o meu negócio da botica, ou estabelecendo qualquer outro, sem divisão da herança que passará dividida a seus filhos, se os houver, caso se recusem ao cumprimento desta minha última vontade. A cláusula era singular; era-o, mas toda a gente compreendeu que era um derradeiro esforço do finado para reconciliar os sobrinhos. — Trabalho perdido, dizia o barbeiro de Anacleto; eles estão como cão e gato. Esta opinião do barbeiro era a mais geral. Efetivamente, logo que ouviram ler semelhante cláusula, os dois herdeiros fizeram um gesto como protestando contra a idéia de uma reconciliação. Seus brios não consentiam nessa venalidade do mais nobre dos ódios. — Tinha que ver, dizia consigo Adriano, se eu consentia que um biltre... Ecoava Anacleto: — Um biltre daquele jaez reconciliado comigo! Não faltava mais nada! Ainda que fique a pedir esmolas... No segundo dia da leitura do testamento trataram ambos de pôr em ordem as coisas em casa de Bento Fagundes, cuja lembrança os enchia de exemplar piedade. A missa do sétimo dia foi concorrida. Ambos receberam os pêsames de todos, sem os darem um ao outro, sem trocarem uma palavra de saudade... — Que corações de ferro! dizia uma senhora indignada. Aconteceu, porém, que ao saírem da igreja, um tropeçasse no outro:. — Perdão! disse Adriano. — Não foi nada! acudiu Anacleto. No outro dia Anacleto escreveu ao primo: “Os dois foram juntos à casa do marmorista; trataram com ele; discutiram o preço; assentaram na redação do epitáfio, que lembrava, não só o morto, mas sobretudo os dois vivos. Saíram juntos; toda a vida do finado foi rememorada entre eles, com a mais ardente piedade. Um e outro lembraram-se da estima que ele sempre lhes tivera. Nesse dia jantaram juntos; um jantar fúnebre mas cordial. Dois meses depois chegaram à fala sobre a necessidade de obedecer ao desejo do morto, que devia ser sagrado, ” dizia Anacleto. Sacratíssimo, emendava Adriano. Quando se completaram cinco meses depois da morte do boticário, Carlota e o marido entraram em uma loja de fazendas, a comprar não sei quantos côvados de chita de algodão. Não repararam na firma social pintada na porta, mas ainda reparando, podiam eles atinar quem seriam Fagundes & Monteiro? Fagundes e Monteiro, a firma toda, estavam na loja e voltaram-se para servir a freguesa. Carlota empalideceu, mas dominou-se. Pediu o que queria com voz trêmula, e os dois apressaram-se a servi-la não sei se comovidos, mas em todo o caso corteses. — A senhora não acha melhor fazenda do que esta. — Pode ser... É muito cara? — Baratíssima, disse Fagundes: dois mil-réis...
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— É caro! — Podemos deixá-la por mil e oitocentos, acudiu Monteiro. — Mil e seiscentos, propôs o marido de Carlota. Os dois fizeram a careta do estilo e simularam uma hesitação, que não foi longa. — Vá, disseram eles. A fazenda foi medida e paga. Carlota, que não ousava encará-los, fez um leve gesto de cabeça e saiu com o marido. Ficaram silenciosos os primos por alguns instantes. Um dobrava a fazenda, enquanto o outro fechava o dinheiro na caixa. Interiormente estavam radiantes: tinham ganho seiscentos réis em côvado!
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Elogio da Vaidade
Logo que a Modéstia acabou de falar, com os olhos no chão, a Vaidade empertigou-se e disse:
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amas e cavalheiros, acabais de ouvir a mais chocha de todas as virtudes, a mais pêca, a mais estéril de quantas podem reger o coração dos homens; e ides ouvir a mais sublime delas, a mais fecunda, a mais sensível, a que pode dar maior cópia de venturas sem contraste. Que eu sou a Vaidade, classificada entre os vícios por alguns retóricos de profissão; mais na realidade, a primeira das virtudes. Não olheis para este gorro de guizos, nem para estes punhos carregados de braceletes, nem para estas cores variegadas com que me adorno. Não olheis, digo eu, se tendes o preconceito da Modéstia; mas se o não tendes, reparai bem que estes guizos e tudo mais, longe de ser uma casca ilusória e vã, são a mesma polpa do fruto da sabedoria; e reparai mais que vos chamo a todos, sem os biocos e meneios daquela senhora, minha mana e minha rival. Digo a todos, porque a todos cobiço, ou sejais formosos como Páris, ou feios como Tersites, gordos como Pança, magros como Quixote, varões e mulheres, grandes e pequenos, verdes e maduros, todos os que compondes este mundo, e haveis de compor o outro; a todos falo, como a galinha fala aos seus pintinhos, quando os convoca à refeição, a saber, com interesse, com graça, com amor. Porque nenhum, ou raro, poderá afirmar que eu o não tenha alçado ou consolado.
II Onde é que eu não entro? Onde é que eu não mando alguma coisa? Vou do salão do rico ao albergue do pobre, do palácio ao cortiço, da seda fina e roçagante ao algodão escasso e grosseiro. Faço exceções, é certo (infelizmente!) ; mas, em geral, tu que possuis, busca-me no encosto da tua otomana, entre as porcelanas da tua baixela, na portinhola da tua carruagem; que digo? busca-me em ti mesmo, nas tuas botas, na tua casaca, no teu bigode; busca-me no teu próprio coração. Tu, que não possuis nada, perscruta bem as dobras da tua estamenha, os recessos da tua velha arca; lá me acharás entre dois vermes famintos; ou ali, ou no fundo dos teus sapatos sem graxa, ou entre os fios da tua grenha sem óleo. Valeria a pena ter, se eu não realçasse os teres? Foi para escondê-lo ou mostrá-lo, que mandaste vir de tão longe esse vaso opulento? Foi para escondê-lo ou mostrá-lo, que encomendaste à melhor fábrica o tecido que te veste, a safira que te arreia, a carruagem que te leva? Foi para escondê-lo ou mostrá-lo, que ordenaste esse festim babilônico, e pediste ao pomar os melhores vinhos? E tu, que nada tens, por que aplicas o salário de uma semana ao jantar de uma hora, senão porque eu te possuo e te digo que alguma coisa deves parecer melhor do que és na realidade? Por que levas ao teu casamento um coche, tão rico e
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tão caro, como o do teu opulento vizinho, quando podias ir à igreja com teus pés? Por que compras essa jóia e esse chapéu? Por que talhas o teu vestido pelo padrão mais rebuscado, e por que te remiras ao espelho com amor, senão porque eu te consolo da tua miséria e do teu nada, dando-te a troco de um sacrifício grande benefício ainda maior?
III Quem é esse que aí vem, com os olhos no eterno azul? É um poeta; vem compondo alguma coisa; segue o vôo caprichoso da estrofe. — Deus te salve, Píndaro! Estremeceu; moveu a fronte, desabrochou em riso. Que é da inspiração? Fugiu-lhe; a estrofe perdeu-se entre as moitas; a rima esvaiu-se-lhe por entre os dedos da memória. Não importa; fiquei eu com ele — eu, a musa décima, e, portanto, o conjunto de todas as musas, pela regra dos doutores de Sganarello. Que ar beatífico! Que satisfação sem mescla! Quem dirá a esse homem que uma guerra ameaça levar um milhão de outros homens? Quem dirá que a seca devora uma porção do país? Nesta ocasião ele nada sabe, nada ouve. Ouve-me, ouve-se; eis tudo. Um homem caluniou-o há tempos; mas agora, ao voltar a esquina, dizem-lhe que o caluniador o elogiou. — Não me fales nesse maroto. — Elogiou-te; disse que és um poeta enorme. — Outros o têm dito, mas são homens de bem, e sinceros. Será ele sincero? — Confessa que não conhece poeta maior. — Peralta! Naturalmente arrependeu-se da injustiça que me fez Poeta enorme, disse ele? — O maior de todos. — Não creio. O maior? — O maior. — Não contestarei nunca os seus méritos; não sou como ele que me caluniou; isto é, não sei, disserammo. Diz-se tanta mentira! Tem gosto o maroto; é um pouco estouvado às vezes, mas tem gosto. Não contestarei nunca os seus méritos. Haverá pior coisa do que mesclar o ódio às opiniões? Que eu não lhe tenho ódio. Oh! nenhum ódio. É estouvado, mas imparcial. Uma semana depois, vê-lo-eis de braço com o outro, à mesa do café, à mesa do jogo, alegres, íntimos, perdoados. E quem embotou esse ódio velho, senão eu? Quem verteu o bálsamo do esquecimento nesses dois corações irreconciliáveis? Eu, a caluniada amiga do gênero humano. Dizem que o meu abraço dói. Calúnia, amados ouvintes! Não escureço a verdade; às vezes há no mel uma pontazinha de fel; mas como eu dissolvo tudo! Chamai aquele mesmo poeta, não Píndaro, mas Trissotin. Vê-lo-eis derrubar o carão, estremecer, rugir, morder-se, como os zoilos de Bocage. Desgosto, convenho, mas desgosto curto. Ele irá dali remirar-se nos próprios livros. A justiça que um atrevido lhe negou, não lha negarão as páginas dele. Oh! a mãe que gerou o filho, que o amamenta e acalenta, que põe nessa frágil criaturinha o mais puro de todos os amores, essa mãe é Medéia, se a compararmos àquele engenho, que se consola da injúria, relendo-se; porque se o amor de mãe é a mais elevada forma do altruísmo, o dele é a mais profunda forma de egoísmo, e só há uma coisa mais forte que o amor materno, é o amor de si próprio.
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IV Vede estoutro que palestra com um homem público. Palestra, disse eu? Não; é o outro que fala; ele nem fala, nem ouve. Os olhos entornam-se-lhe em roda, aos que passam, a espreitar se o vêem, se o admiram, se o invejam. Não corteja as palavras do outro; não lhes abre sequer as portas da atenção respeitosa. Ao contrário, parece ouvi-las com familiaridade, com indiferença, quase com enfado. Tu, que passas, dizes contigo: — São íntimos; o homem público é familiar deste cidadão; talvez parente. Quem lhe faz obter esse teu juízo, senão eu? Como eu vivo da opinião e para a opinião, dou àquele meu aluno as vantagens que resultam de uma boa opinião, isto é, dou-lhe tudo. Agora, contemplai aquele que tão apressadamente oferece o braço a uma senhora. Ela aceita-lho; quer seguir até a carruagem, e há muita gente na rua. Se a Modéstia animara o braço do cavalheiro, ele cumprira o seu dever de cortesania, com uma parcimônia de palavras, uma moderação de maneiras, assaz miseráveis. Mas quem lho anima sou eu, e é por isso que ele cuida menos de guiar à dama, do que de ser visto dos outros olhos. Por que não? Ela é bonita, graciosa, elegante; a firmeza com que assenta o pé é verdadeiramente senhoril. Vede como ele se inclina e bamboleia! Riu-se? Não vos iludais com aquele riso familiar, amplo, doméstico; ela disse apenas que o calor é grande. Mas é tão bom rir para os outros! é tão bom fazer supor uma intimidade elegante! Não deveríeis crer que me é vedada a sacristia? Decerto; e contudo, acho meio de lá penetrar, uma ou outra vez, às escondidas, até às meias roxas daquela grave dignidade, a ponto de lhe fazer esquecer as glórias do céu, pelas vanglórias da terra. Verto-lhe o meu óleo no coração, e ela sente-se melhor, mais excelsa, mais sublime do que esse outro ministro subalterno do altar, que ali vai queimar o puro incenso da fé. Por que não há de ser assim, se agora mesmo penetrou no santuário esta garrida matrona, ataviada das melhores fitas, para vir falar ao seu Criador? Que farfalhar! que voltear de cabeças! A antífona continua, a música não cessa; mas a matrona suplantou Jesus, na atenção dos ouvintes. Ei -la que dobra as curvas, abre o livro, compõe as rendas, murmura a oração, acomoda o leque. Traz no coração duas flores, a fé e eu; a celeste; colheu-a no catecismo, que lhe deram aos dez anos; a terrestre colheu-a no espelho, que lhe deram aos oito; são os seus dois Testamentos; e eu sou o mais antigo.
V Mas eu perderia o tempo, se me detivesse a mostrar um por um todos os meus súditos; perderia o tempo e o latim. Omnia vanitas. Para que citá-los, arrolá-los, se quase toda a terra me pertence? E digo quase, porque não há negar que há tristezas na terra e onde há tristezas aí governa a minha irmã bastarda, aquela que ali vedes com os olhos no chão. Mas a alegria sobrepuja o enfado e a alegria sou eu. Deus dá um anjo guardador a cada homem; a natureza dá-lhe outro, e esse outro é nem mais nem menos esta vossa criada, que recebe o homem no berço, para deixá-lo somente na cova. Que digo? Na eternidade; porque o arranco final da modéstia, que aí lês nesse testamento, essa recomendação de ser levado ao chão por quatro mendigos, essa cláusula sou eu que a inspiro e dito; última e genuína vitória do meu
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poder, que é imitar os meneios da outra. Oh! a outra! Que tem ela feito no mundo que valha a pena de ser citado? Foram as suas mãos que carregaram as pedras das Pirâmides? Foi a sua arte que entreteceu os louros de Temístocles? Que vale a charrua do seu Cincinato, ao pé do capelo do meu cardeal de Retz? Virtudes de cenóbios, são virtudes? Engenhos de gabinete, são engenhos? Traga-me ela uma lista de seus feitos, de seus heróis, de suas obras duradouras; traga -ma, e eu a suplantarei, mostrando-lhe que a vida, que a história, que os séculos nada são sem mim. Não vos deixeis cair na tentação da Modéstia: é a virtude dos pecos. Achareis decerto, algum filósofo, que vos louve, e pode ser que algum poeta, que vos cante. Mas, louvaminhas e cantarolas têm a existência e o efeito da flor que a Modéstia elegeu para emblema; cheiram bem, mas morrem depressa. Escasso é o prazer que dão, e ao cabo definhareis na soledade. Comigo é outra coisa: achareis, é verdade, algum filósofo que vos talhe na pele; algum frade que vos dirá que eu sou inimiga da boa consciência. Petas! Não sou inimiga da consciência, boa ou má; limito-me a substituí-la, quando a vejo em frangalhos; se é ainda nova, ponho-lhe diante de um espelho de cristal, vidro de aumento. Se vos parece preferível o narcótico da Modéstia, dizei-o; mas ficai certos de que excluireis do mundo o fervor, a alegria, a fraternidade. Ora, pois, cuido haver mostrado o que sou e o que ela é; e nisso mesmo revelei a minha sinceridade, porque disse tudo, sem vexame, nem reserva; fiz o meu próprio elogio, que é vitupério, segundo um antigo rifão; mas eu não faço caso de rifões. Vistes que sou a mãe da vida e do contentamento, o vinculo da sociabilidade, o conforto, o vigor, a ventura dos homens; alço a uns, realço a outros, e a todos amo; e quem é isto é tudo, e não se deixa vencer de quem não é nada. E reparai que nenhum grande vício se encobriu ainda comigo; ao contrário, quando Tartufo entra em casa de Órgon, dá um lenço a Dorina para que cubra os seios. A modéstia serve de conduta a seus intentos. E por que não seria assim, se ela ali está de olhos baixos, rosto caído, boca taciturna? Poderíeis afirmar que é Virgínia e não Locusta? Pode ser uma ou outra, porque ninguém lhe vê o coração. Mas comigo? Quem se pode enganar com este riso franco, irradiação do meu próprio ser; com esta face jovial, este rosto satisfeito, que um quase nada obumbra, que outro quase nada ilumina; estes olhos, que não se escondem, que se não esgueiram por entre as pálpebras, mas fitam serenamente o sol e as estrelas?
VI O quê? Credes que não é assim? Querem ver que perdi toda a minha retórica, e que ao cabo da pregação, deixo um auditório de relapsos? Céus! Dar-se -á caso que a minha rival vos arrebatasse outra vez? Todos o dirão ao ver a cara com que me escuta este cavalheiro; ao ver o desdém do leque daquela matrona. Uma levanta os ombros; outro ri de escárnio. Vejo ali um rapaz a fazer-me figas: outro abana tristemente a cabeça; e todas, todas as pálpebras parecem baixar, movidas por um sentimento único. Percebo, percebo! Tendes a volúpia suprema da vaidade, que é a vaidade da modéstia.
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Lรกgrimas de Xerxes
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UPONHAMOS (tudo é de supor) que Julieta e Romeu, antes que Frei Lourenço os casasse, travavam com ele este diálogo curioso: JULIETA. Uma só pessoa? FREI LOURENÇO. Sim, filha, e, logo que eu houver feito de vós ambos uma só pessoa, nenhum outro poder vos desligará mais. Andai, andai, vamos ao altar, que estão acendendo as velas... (Saem da cela e vão pelo corredor).
ROMEU. Para que velas? Abençoai-nos aqui mesmo. (Pára diante de uma janela). Para que altar e velas? O céu é o altar: não tarda que a mão dos anjos acenda ali as eternas estrelas; mas, ainda sem elas, o altar é este. A igreja está aberta; podem descobrir-nos. Eia, abençoai-nos aqui mesmo. FREI LOURENÇO. Não, vamos para a igreja; daqui a pouco estará tudo pronto. Curvarás a cabeça, filha minha, para que olhos estranhos, se alguns houver, não cheguem a reconhecer-te... ROMEU. Vã dissimulação; não há, em toda Verona, um talhe igual ao da minha bela Julieta, nenhuma outra dama chegaria a dar a mesma impressão que esta. Que impede que seja aqui? O altar não é mais que o céu. FREI LOURENÇO. Mais eficaz que o céu. ROMEU. Como? FREI LOURENÇO. Tudo o que ele abençoa perdura. As velas que lá verás arder hão de acabar antes dos noivos e do padre que os vai ligar; tenho-as visto morrer infinitas; mas as estrelas... ROMEU. Que tem? arderão ainda, nem ali nasceram senão para dar ao céu a mesma graça da terra. Sim, minha divina Julieta, a Via-Láctea é como o pó luminoso dos teus pensamentos, todas as pedrarias e claridades altas e remotas, tudo isso está aqui perto e resumido na tua pessoa, porque a lua plácida imita a tua indulgência, e Vênus, quando cintila, é com os fogos da tua imaginação. Aqui mesmo, padre. Que outra formalidade nos pedes tu? Nenhuma formalidade exterior, nenhum consentimento alheio. Nada mais que amor e vontade. O ódio de outros separa-nos, mas o nosso amor conjuga-nos. FREI LOURENÇO. Para sempre. JULIETA. Conjuga-nos, e para sempre. Que mais então? Vai a tua mão fazer com que parem todas as horas de uma vez. Em vão o sol passará de um céu a outro céu, e tornará a vir e tornará a ir, não levará consigo o tempo que fica a nossos pés como um tigre domado. Monge amigo, repete essa palavra amiga. FREI LOURENÇO. Para sempre. JULIETA. Para sempre! amor eterno! eterna vida! Juro-vos que não entendo outra língua senão essa. Juro-vos que não entendo a língua de minha mãe. FREI LOURENÇO. Pode ser que tua mãe não entendesse a língua da mãe dela. A vida é uma Babel, filha; cada um de nós vale por uma nação. ROMEU. Não aqui, padre; ela e eu somos duas províncias da mesma linguagem, que nos aliamos para dizer as mesmas orações, com o mesmo alfabeto e um só sentido. Nem há outro sentido que tenha al-
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gum valor na terra. Agora, quem nos ensinou essa linguagem divina não sei eu nem ela; foi talvez alguma estrela. Olhai, pode ser que fosse aquela primeira que começa a cintilar no espaço. JULIETA. Que mão celeste a terá acendido? Rafael, talvez, ou tu amado Romeu. Magnífica estrela, serás a estrela da minha vida, tu que marcas a hora do meu consórcio. Que nome tem ela, padre? FREI LOURENÇO. Não sei de astronomias, filha. JULIETA. Hás de saber por força. Tu conheces as letras divinas e humanas, as próprias ervas do chão, as que matam e as que curam. . . Dize, dize... FREI LOURENÇO. Eva eterna! JULIETA. Dize o nome dessa tocha celeste, que vai alumiar as minhas bodas, e casai-nos aqui mesmo. Os astros valem mais que as tochas da terra. FREI LOURENÇO. Valem menos. Que nome tem aquele? Não sei. A minha astronomia não é como a dos outros homens. (Depois de alguns instantes de reflexão) Eu sei o que me contaram os ventos que andam cá e lá, abaixo e acima, de um tempo a outro tempo, e sabem muito, porque são testemunhas de tudo. A dispersão não lhes tira a unidade, nem a inquietação a constância. ROMEU. E que vos disseram eles? FREI LOURENÇO. Cousas duras. Heródoto conta que Xerxes um dia chorou; mas não conta mais nada. Os ventos é que me disseram o resto, porque eles lá estavam ao pé do capitão, e recolheram tudo. . . Escutai; aí começam eles a agitar-se; ouviram-nos falar e murmuram... Uivai, amigos ventos, uivai como nos jovens dias das Termópilas. ROMEU. Mas que te disseram eles? Contai, contai depressa. JULIETA. Fala a gosto, nós te esperaremos. FREI LOURENÇO. Gentil criatura, aprende com ela, filho, aprende a tolerar as demasias de um velho lunático. O que é que me disseram? Melhor fora não repeti-lo; mas, se teimais em que vos case aqui mesmo, ao clarão das estrelas, dir-vos-ei a origem daquela, que parece governar todas as outras... Vamos, ainda é tempo, o altar espera-nos... Não? teimosos que sois... Contar-vos-ei o que me disseram os ventos, que lá estavam em torno de Xerxes, quando este vinha destruir a Hélade com tropas inumeráveis. As tropas marchavam diante dele, a poder de chicote, porque esse homem cru amava particularmente o chicote e empregava-o a miúdo, sem hesitação nem remorso. O próprio mar, quando ousou destruir a ponte que ele mandara construir, recebeu em castigo trezentas chicotadas. Era justo; mas para não ser somente justo, para ser também abominável, Xerxes ordenou que decapitassem a todos os que tinham construído a ponte e não souberam fazê-la imperecível. Chicote e espada; pancada e sangue. JULIETA. Oh! abominável! FREI LOURENÇO. Abominável, mas forte. Força vale alguma cousa; a prova é que o mar acabou aceitando o jugo do grande persa. Ora, um dia, à margem do Helesponto, curioso de contemplar as tropas que ali ajuntara, no mar e em terra, Xerxes trepou a um alto morro feitiço, donde espalhou as vistas para todos os lados. Calculai o orgulho que ele sentiu. Viu ali gente infinita, o melhor leite mungido à vaca asiática, centenas de milhares ao pé de centenas de milhares, várias armas, povos diversos, cores e vestiduras diferentes, mescladas, baralhadas, flecha e gládio, tiara e capacete, pêlo de cabra, pele de cavalo, pele de pantera, uma algazarra infinita de cousas. Viu e riu, farejava a vitória. Que outro poder viria contrastá-lo? Sentia-se indestrutível. E ficou a rir e a olhar com longos olhos ávidos e felizes, olhos de noivado, como os teus, moço amigo...
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ROMEU. Comparação falsa. O maior déspota do universo é um miserável escravo, se não governa os mais belos olhos femininos de Verona. E a prova é que, a despeito do poder, chorou. FREI LOURENÇO. Chorou, é certo, logo depois, tão depressa acabara de rir. A cara embruscou-se-lhe de repente, e as lágrimas saltaram-lhe grossas e irreprimíveis. Um tio do guerreiro, que ali estava, interrogou-o espantado; ele respondeu melancolicamente que chorava, considerando que de tantos milhares e milhares de homens que ali tinha diante de si, e às suas ordens, não existiria um só ao cabo de um século. Até aqui Heródoto, escutai agora os ventos. Os ventos ficaram atônitos. Estavam justamente perguntando uns aos outros se esse homem feito de ufania e rispidez teria nunca chorado em sua vida, e concluíam que não, que era impossível, que ele não conhecia mais que injustiça e crueldade, não a compaixão. E era a compaixão que ali vinha lacrimosa, era ela que soluçava na garganta do tirano... Então eles rugiram de assombro; depois pegaram das lágrimas de Xerxes. . . Que farias tu delas? ROMEU. Secá-las-ia, para que a piedade humana não ficasse desonrada. FREI LOURENÇO. Não fizeram isso; pegaram das lágrimas todas e deitaram a voar pelo espaço fora, bradando às considerações: Aqui estão! olhai! olhai! aqui estão os primeiros diamantes da alma bárbara! Todo o firmamento ficou alvoroçado; pode crer-se que, por um instante, a marcha das cousas parou. Nenhum astro queria acabar de crer nos ventos. Xerxes! Lágrimas de Xerxes eram impossíveis; tal planta não dava em tal rochedo. Mas ali estavam elas; eles as mostravam contando a sua curiosa história, o riso que servira de concha a essas pérolas, as palavras dele, e as constelações não tiveram remédio, e creram finalmente que o duro Xerxes houvesse chorado. Os planetas miraram longo tempo essas lágrimas inverossímeis; não havia negar que traziam o amargo da dor e o travo da melancolia. E quando pensaram que o coração que as brotara de si tinha particular amor ao estalido do chicote, deitaram um olhar oblíquo à terra, como perguntando de que contradições era ela feita. Um deles disse aos ventos que devolvessem as lágrimas ao bárbaro, para que as engolisse; mas os ventos responderam que não e detiveram-se para deliberar. Não cuideis que só os homens dissentem uns dos outros. JULIETA. Também os ventos? FREI LOURENÇO. Também eles. O Aquilão queria convertê-las em tempestades do mundo, violentas e destruidoras, como o homem que as gerara; mas os outros ventos não aceitaram a idéia. As tempestades passam ligeiras; eles queriam alguma cousa que tivesse perenidade, um rio, por exemplo, ou um mar novo; mas não combinaram nada e foram ter com o sol e a lua. Tu conheces a lua, filha. ROMEU. A lua é ela mesma; uma e outra são a plácida imagem da indulgência e do carinho; é o que eu te disse há pouco, meu bom confessor. JULIETA. Não, não creias nada do que ele disser, freire amigo; a lua é a minha rival, é a rival que alumia de longe o belo rosto do galhardo Romeu, que lhe dá um resplendor de opala, à noite, quando ele vem pela rua. . . FREI LOURENÇO. Terão ambos razão. A lua e Julieta podem ser a mesma pessoa, e é por isso que querem o mesmo homem. Mas, se a lua és tu, filha, deves saber o que ela disse ao vento. JULIETA. Nada, não me lembra nada. FREI LOURENÇO. Os ventos foram ter com ela, perguntaram-lhe o que fariam das lágrimas de Xerxes, e a resposta foi a mais piedosa do mundo. Cristalizemos essas lágrimas, disse a lua, e façamos delas uma estrela que brilhe por todos os séculos, com a claridade da compaixão, e onde vão residir todos aqueles que deixarem a terra, para achar ali a perpetuidade que lhes escapou.
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JULIETA. Sim, eu diria a mesma cousa. (Olhando pela janela) Lume eterno, berço de renovação, mundo do amor continuado e infinito, estávamos ouvindo a tua bela história. FREI LOURENÇO. Não, não, não. JULIETA. Não? FREI LOURENÇO. Não, porque os ventos foram também ao sol, e tu que conheces a lua, não conheces o sol, amiga minha. Os ventos levaram-lhe as lágrimas, contaram a origem delas e o conselho do astro da noite, e falaram da beleza que teria essa estrela nova e especial. O sol ouviu-os e redargüiu que sim, que cristalizassem as lágrimas e fizessem delas uma estrela, mas nem tal como o pedia a lua, nem para igual fim. Há de ser eterna e brilhante, disse ele, mas para a compaixão basta a mesma lua com a sua enjoada e dulcíssima poesia. Não; essa estrela feita das lágrimas que a brevidade da vida arrancou um dia ao orgulho humano ficará pendente do céu como o astro da ironia, luzirá cá de cima sobre todas as multidões que passam, cuidando não acabar mais e sobre todas as cousas construídas em desafio dos tempos. Onde as bodas cantarem a eternidade, ela fará descer um dos seus raios, lágrima de Xerxes, para escrever a palavra da extinção, breve, total, irremissível. Toda epifania receberá esta nota de sarcasmo. Não quero melancolias, que são rosas pálidas da lua e suas congêneres; — ironia, sim, uma dura boca, gelada e sardônica . . ROMEU. Como? Esse astro esplêndido. . . FREI LOURENÇO. Justamente, filho; e é por isso que o altar é melhor que o céu; no altar a benta vela arde depressa e morre às nossas vistas. JULIETA. Conto de ventos ! FREI LOURENÇO. Não, não. JULIETA. Ou ruim sonho de lunático. Velho lunático disseste há pouco; és isso mesmo. Vão sonho ruim, como os teus ventos, e o teu Xerxes, e as tuas lágrimas, e o teu sol, e toda essa dança de figuras imaginárias. FREI LOURENÇO. Filha minha. . . JULIETA. Padre meu, que não sabes que há, quando menos, uma cousa imortal, que é o meu amor, e ainda outra, que é o incomparável Romeu. Olha bem para ele; vê se há aqui um soldado de Xerxes. Não, não, não. Viva o meu amado, que não estava no Helesponto, nem escutou os desvarios dos ventos noturnos, como este frade, que é a um tempo amigo e inimigo. Sê só amigo, e casa-nos. Casa-nos onde quiseres, aqui ou além, diante das velas ou debaixo das estrelas, sejam elas de ironia ou de piedade; mas casa-nos, casa-nos, casa-nos...
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O Anel de PolĂcrates
A Lá vai o Xavier. Z Conhece o Xavier? A Há que anos! Era um nababo, rico, podre de rico, mas pródigo... Z Que rico? que pródigo? A
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ico e pródigo, digo-lhe eu. Bebia pérolas diluídas em néctar. Comia línguas de rouxinol. Nunca usou papel mata-borrão, por achá-lo vulgar e mercantil; empregava areia nas cartas, mas uma certa areia feita de pó de diamante. E mulheres! Nem toda a pompa de Salomão pode dar idéia do que era o Xavier nesse particular. Tinha um serralho: a linha grega, a tez romana, a exuberância turca, todas as perfeições de uma raça, todas as prendas de um clima, tudo era admitido no harém do Xavier. Um dia enamorou-se loucamente de uma senhora de alto coturno, e enviou-lhe de mimo três estrelas do Cruzeiro, que então contava sete, e não pense que o portador foi aí qualquer pé-rapado. Não, senhor. O portador foi um dos arcanjos de Milton, que o Xavier chamou na ocasião em que ele cortava o azul para levar a admiração dos homens ao seu velho pai inglês. Era assim o Xavier. Capeava os cigarros com um papel de cristal, obra finíssima, e, para acendê-los, trazia consigo uma caixinha de raios do sol. As colchas da cama eram nuvens purpúreas, e assim também a esteira que forrava o sofá de repouso, a poltrona da secretária e a rede. Sabe quem lhe fazia o café, de manhã? A Aurora, com aqueles mesmos dedos cor-de-rosa, que Homero lhe pôs. Pobre Xavier! Tudo o que o capricho e a riqueza podem dar, o raro, o esquisito, o maravilhoso, o indescritível, o inimaginável, tudo teve e devia ter, porque era um galhardo rapaz, e um bom coração. Ah! fortuna, fortuna! Onde estão agora as pérolas, os diamantes, as estrelas, as nuvens purpúreas? Tudo perdeu, tudo deixou ir por água abaixo; o néctar virou zurrapa, os coxins são a pedra dura da rua, não manda estrelas às senhoras, nem tem arcanjos às suas ordens ... Z Você está enganado. O Xavier? Esse Xavier há de ser outro. O Xavier nababo! Mas o Xavier que ali vai nunca teve mais de duzentos mil-réis mensais; é um homem poupado, sóbrio, deita-se com as galinhas, acorda com os galos, e não escreve cartas a namoradas, porque não as tem. Se alguma expede aos amigos é pelo correio. Não é mendigo, nunca foi nababo. A Creio; esse é o Xavier exterior. Mas nem só de pão vive o homem. Você fala de Marta, eu falo-lhe de Maria; falo do Xavier especulativo...
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Z Ah! - Mas ainda assim, não acho explicação; não me consta nada dele. Que livro, que poema, que quadro... A Desde quando o conhece? Z Há uns quinze anos. A Upa! Conheço-o há muito mais tempo, desde que ele estreou na rua do Ouvidor, em pleno marquês de Paraná. Era um endiabrado, um derramado, planeava todas as coisas possíveis, e até contrárias, um livro, um discurso, um medicamento, um jornal, um poema, um romance, uma história, um libelo político, uma viagem à Europa, outra ao sertão de Minas, outra à lua, em certo balão que inventara, uma candidatura política, e arqueologia, e filosofia, e teatro, etc., etc., etc. Era um saco de espantos. Quem conversava com ele sentia vertigens. Imagine uma cachoeira de idéias e imagens, qual mais original, qual mais bela, às vezes extravagante, às vezes sublime. Note que ele tinha a convicção dos seus mesmos inventos. Um dia, por exemplo, acordou com o plano de arrasar o morro do Castelo, a troco das riquezas que os jesuítas ali deixaram, segundo o povo crê. Calculou-as logo em mil contos, inventariou-as com muito cuidado, separou o que era moeda, mil contos, do que eram obras de arte e pedrarias; descreveu minuciosamente os objetos, deu-me dois tocheiros de ouro... Z Realmente...
A Ah! impagável! Quer saber de outra? Tinha lido as cartas do cônego Benigno, e resolveu ir logo ao sertão da Bahia, procurar a cidade misteriosa. Expôs-me o plano, descreveu-me a arquitetura provável da cidade, os templos, os palácios, gênero etrusco, os ritos, os vasos, as roupas, os costumes... Z Era então doido? A Originalão apenas. Odeio os carneiros de Panúrgio, dizia ele, citando Rabelais: Comme vous sçavez estre du mouton le naturel, tousjours suivre le premier, quelque part qu’il aille. Comparava a trivialidade a uma mesa redonda de hospedaria, e jurava que antes comer um mau bife em mesa separada. Z Entretanto, gostava da sociedade. A Gostava da sociedade, mas não amava os sócios. Um amigo nosso, o Pires, fez-lhe um dia esse reparo; e
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sabe o que é que ele respondeu? Respondeu com um apólogo, em que cada sócio figurava ser uma cuia d’água, e a sociedade uma banheira. - Ora, eu não posso lavar-me em cuias d’água, foi a sua conclusão. Z Nada modesto. Que lhe disse o Pires? A O Pires achou o apólogo tão bonito que o meteu numa comédia, daí a tempos. Engraçado é que o Xavier ouviu o apólogo no teatro, e aplaudiu-o muito, com entusiasmo; esquecera-se da paternidade; mas a voz do sangue... Isto leva-me à explicação da atual miséria do Xavier. Z É verdade, não sei como se possa explicar que um nababo... A Explica-se facilmente. Ele espalhava idéias à direita e à esquerda, como o céu chove, por uma necessidade física, e ainda por duas razões. A primeira é que era impaciente, não sofria a gestação indispensável à obra escrita. A segunda é que varria com os olhos uma linha tão vasta de coisas, que mal poderia fixar-se em qualquer delas. Se não tivesse o verbo fluente, morreria de congestão mental; a palavra era um derivativo. As páginas que então falava, os capítulos que lhe borbotavam da boca, só precisavam de uma arte de os imprimir no ar, e depois no papel, para serem páginas e capítulos excelentes, alguns admiráveis. Nem tudo era límpido; mas a porção límpida superava a porção turva, como a vigília de Homero paga os seus cochilos. Espalhava tudo, ao acaso, às mãos cheias, sem ver onde as sementes iam cair; algumas pegavam logo... Z Como a das cuias. A Como a das cuias. Mas, o semeador tinha a paixão das coisas belas, e, uma vez que a árvore fosse pomposa e verde, não lhe perguntava nunca pela semente sua mãe. Viveu assim longos anos, despendendo à toa, sem cálculo, sem fruto, de noite e de dia, na rua e em casa, um verdadeiro pródigo. Com tal regime, que era a ausência de regime, não admira que ficasse pobre e miserável. Meu amigo, a imaginação e o espírito têm limites; a não ser a famosa botelha dos saltimbancos e a credulidade dos homens, nada conheço inesgotável debaixo do sol. O Xavier não só perdeu as idéias que tinha, mas até exauriu a faculdade de as criar; ficou o que sabemos. Que moeda rara se lhe vê hoje nas mãos? que sestércio de Horácio? que dracma de Péricles? Nada. Gasta o seu lugar-comum, rafado das mãos dos outros, come à mesa redonda, fez-se trivial, chocho... Z Cuia, enfim. A Justamente: cuia.
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Z Pois muito me conta. Não sabia nada disso. Fico inteirado; adeus. A Vai a negócio? Z Vou a um negócio. A Dá-me dez minutos? Z Dou-lhe quinze. A Quero referir-lhe a passagem mais interessante da vida do Xavier. Aceite o meu braço, e vamos andando. Vai para a praça? Vamos juntos. Um caso interessantíssimo. Foi ali por 1869 ou 70, não me recordo; ele mesmo é que me contou. Tinha perdido tudo; trazia o cérebro gasto, chupado, estéril, sem a sombra de um conceito, de uma imagem, nada. Basta dizer que um dia chamou rosa a uma senhora, - “uma bonita rosa”; falava do luar saudoso, do sacerdócio da imprensa, dos jantares opíparos, sem acrescentar ao menos um relevo qualquer a toda essa chaparia de algibebe. Começara a ficar hipocondríaco; e, um dia, estando à janela, triste, desabusado das coisas, vendo-se chegado a nada, aconteceu passar na rua um taful a cavalo. De repente, o cavalo corcoveou, e o taful veio quase ao chão; mas sustentou-se, e meteu as esporas e o chicote no animal; este empina-se, ele teima; muita gente parada na rua e nas portas; no fim de dez minutos de luta, o cavalo cedeu e continuou a marcha. Os espectadores não se fartaram de admirar o garbo, a coragem, o sangue-frio, a arte do cavaleiro. Então o Xavier, consigo, imaginou que talvez o cavaleiro não tivesse ânimo nenhum; não quis cair diante de gente, e isso lhe deu a força de domar o cavalo. E daí veio uma idéia: comparou a vida a um cavalo xucro ou manhoso; e acrescentou sentenciosamente: Quem não for cavaleiro, que o pareça. Realmente, não era uma idéia extraordinária; mas a penúria do Xavier tocara a tal extremo, que esse cristal pareceu-lhe um diamante. Ele repetiu-a dez ou doze vezes, formulou-a de vários modos, ora na ordem natural, pondo primeiro a definição, depois o complemento; ora dando-lhe a marcha inversa, trocando palavras, medindo-as, etc.; e tão alegre, tão alegre como casa de pobre em dia de peru. De noite, sonhou que efetivamente montava um cavalo manhoso, que este pinoteava com ele e o sacudia a um brejo. Acordou triste; a manhã, que era de domingo e chuvosa, ainda mais o entristeceu; meteu-se a ler e a cismar. Então lembrou-se... Conhece o caso do anel de Polícrates? Z Francamente, não. A Nem eu; mas aqui vai o que me disse o Xavier. Polícrates governava a ilha de Samos. Era o rei mais feliz da terra; tão feliz, que começou a recear alguma viravolta da Fortuna, e, para aplacá-la antecipadamente,
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determinou fazer um grande sacrifício: deitar ao mar o anel precioso que, segundo alguns, lhe servia de sinete. Assim fez; mas a Fortuna andava tão apostada em cumulá-lo de obséquios, que o anel foi engolido por um peixe, o peixe pescado e mandado para a cozinha do rei, que assim voltou à posse do anel. Não afirmo nada a respeito desta anedota; foi ele quem me contou, citando Plínio, citando... Z Não ponha mais na carta. O Xavier naturalmente comparou a vida, não a um cavalo, mas... A Nada disso. Não é capaz de adivinhar o plano estrambótico do pobre-diabo. Experimentemos a fortuna, disse ele; vejamos se a minha idéia, lançada ao mar, pode tornar ao meu poder, como o anel de Polícrates, no bucho de algum peixe, ou se o meu caiporismo será tal, que nunca mais lhe ponha a mão.
Z Ora essa! A Não é estrambótico? Polícrates experimentara a felicidade; o Xavier quis tentar o caiporismo; intenções diversas, ação idêntica. Saiu de casa, encontrou um amigo, travou conversa, escolheu assunto, e acabou dizendo o que era a vida, um cavalo xucro ou manhoso, e quem não for cavaleiro que o pareça. Dita assim, esta frase era talvez fria; por isso o Xavier teve o cuidado de descrever primeiro a sua tristeza, o desconsolo dos anos, o malogro dos esforços, ou antes os efeitos da imprevidência, e quando o peixe ficou de boca aberta, digo, quando a comoção do amigo chegou ao cume, foi que ele lhe atirou o anel, e fugiu a meter-se em casa. Isto que lhe conto é natural, crê-se, não é impossível; mas agora começa a juntar-se à realidade uma alta dose de imaginação. Seja o que for, repito o que ele me disse. Cerca de três semanas depois, o Xavier jantava pacificamente no Leão de Ouro ou no Globo, não me lembro bem, e ouviu de outra mesa a mesma frase sua, talvez com a troca de um adjetivo. “Meu pobre anel, disse ele, eis-te enfim no peixe de Polícrates.” Mas a idéia bateu as asas e voou, sem que ele pudesse guardá-la na memória. Resignou-se. Dias depois, foi convidado a um baile: era um antigo companheiro dos tempos de rapaz, que celebrava a sua recente distinção nobiliária. O Xavier aceitou o convite, e foi ao baile, e ainda bem que foi, porque entre o sorvete e o chá ouviu de um grupo de pessoas que louvavam a carreira do barão, a sua vida próspera, rígida, modelo, ouviu comparar o barão a um cavaleiro emérito. Pasmo dos ouvintes, porque o barão não montava a cavalo. Mas o panegirista explicou que a vida não é mais do que um cavalo xucro ou manhoso, sobre o qual ou se há de ser cavaleiro ou parecê-lo, e o barão era-o excelente. “- Entra, meu querido anel, disse o Xavier, entra no dedo de Polícrates.” Mas de novo a idéia bateu as asas, sem querer ouvi-lo. Dias depois... Z Adivinho o resto: uma série de encontros e fugas do mesmo gênero. A Justo.
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Z Mas, enfim, apanhou-o um dia.
A Um dia só, e foi então que me contou o caso digno de memória. Tão contente que ele estava nesse dia! Jurou-me que ia escrever, a propósito disto, um conto fantástico, à maneira de Edgard Poe, uma página fulgurante, pontuada de mistérios, - são as suas próprias expressões; - e pediu-me que o fosse ver no dia seguinte. Fui; o anel fugira-lhe outra vez. “Meu caro A, disse-me ele, com um sorriso fino e sarcástico; tens em mim o Polícrates do caiporismo; nomeio-te meu ministro honorário e gratuito.” Daí em diante foi sempre a mesma coisa. Quando ele supunha pôr a mão em cima da idéia ela batia as asas, plás, plás, plás, e perdia-se no ar, como as figuras de um sonho. Outro peixe a engolia e trazia, e sempre o mesmo desenlace. Mas dos casos que ele me contou naquele dia, quero dizer-lhe três... Z Não posso; lá se vão os quinze minutos. A Conto-lhe só três. Um dia, o Xavier chegou a crer que podia enfim agarrar a fugitiva, e fincá-la perpetuamente no cérebro. Abriu um jornal de oposição, e leu estupefato estas palavras: “O ministério parece ignorar que a política é, como a vida, um cavalo xucro ou manhoso, e, não podendo ser bom cavaleiro, porque nunca o foi, devia ao menos parecer que o é.” - “Ah! enfim! exclamou o Xavier, cá estás engastado no bucho do peixe; já me não podes fugir.” Mas, em vão! a idéia fugia-lhe, sem deixar outro vestígio mais do que uma confusa reminiscência. Sombrio, desesperado, começou a andar, a andar, até que a noite caiu; passando por um teatro, entrou; muita gente, muitas luzes, muita alegria; o coração aquietou-se-lhe. Cúmulo de benefícios; era uma comédia do Pires, uma comédia nova. Sentou-se ao pé do autor, aplaudiu a obra com entusiasmo, com sincero amor de artista e de irmão. No segundo ato, cena VIII, estremeceu. “D. Eugênia, diz o galã a uma senhora, o cavalo pode ser comparado à vida, que é também um cavalo xucro ou manhoso; quem não for bom cavaleiro, deve cuidar de parecer que o é.” O autor, com o olhar tímido, espiava no rosto do Xavier o efeito daquela reflexão, enquanto o Xavier repetia a mesma súplica das outras vezes: - “Meu querido anel...” Z Et nunc et semper... Venha o último encontro, que são horas. A O último foi o primeiro. Já lhe disse que o Xavier transmitira a idéia a um amigo. Uma semana depois da comédia cai o amigo doente, com tal gravidade que em quatro dias estava à morte. O Xavier corre a vê-lo; e o infeliz ainda o pôde conhecer, estender-lhe a mão fria e trêmula, cravar-lhe um longo olhar baço da última hora, e, com a voz sumida, eco do sepulcro, soluçar-lhe: “Cá vou, meu caro Xavier, o cavalo xucro ou manhoso da vida deitou- me ao chão: se fui mau cavaleiro, não sei; mas forcejei por parecê-lo bom.” Não se ria; ele contou-me isto com lágrimas. Contou -me também que a idéia ainda esvoaçou alguns minutos sobre o cadáver, faiscando as belas asas de cristal, que ele cria ser diamante; depois estalou um risinho de escárnio, ingrato e parricida, e fugiu como das outras vezes, metendo-se no cérebro de alguns
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sujeitos, amigos da casa, que ali estavam, transidos de dor, e recolheram com saudade esse pio legado do defunto. Adeus.
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O Astr贸logo
unca houve talvez nesta boa cidade quem melhor empunhasse a vara de almotacé que o ativo e sagaz Custódio Marques, morador defronte da sacristia da Sé durante o curto vice-reinado do conde de Azambuja. Era homem de seus quarenta e cinco anos, cheio de corpo e de alma — a julgar pela atenção e fervor com que desempenhava o cargo, imposto pela vereança da terra e pelas leis do Estado. Os mercadores não tinham mais figadal inimigo do que esse olho da autoridade pública. As ruas não conheciam maior vigilante. Assim como uns nascem pastores e outros príncipes, Custódio Marques nascera almotacé; era a sua vocação e apostolado. Infelizmente, como todo o excesso é vicioso, Custódio Marques, ou por natureza, ou por hábito, transpôs a fronteira de suas atribuições, e passou do exame das medidas ao das vidas alheias, e tanto curava de pesos como de costumes. Dentro de poucos meses, tornou-se o maior indagador e sabedor do que se passava nas casas particulares com tanta exação e individuação, que, uma sua comadre, assídua devota do Rosário, apesar da fama longamente adquirida, teve de lhe ceder a primazia.
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— Mas, senhor compadre — dizia ela trespassando no alvo seio volumoso o seu lenço de algodão do tear de José Luís, à Rua da Vala; não, senhor compadre, justiça, justiça. Eu tinha presunção de me não escapar nada ou pouca coisa; mas confesso que você é muito mais fino do que eu. — E ainda não sei tudo o que queria, comadre Engrácia, replicou ele com modéstia; há, por exemplo, uma coisa que me quebra a cabeça há quinze dias. Pois olhe que não tenho perdido tempo! — O que é, compadre? — disse ela piscando-lhe os olhos de curiosidade e impaciência. Não é certamente o namoro do sargento-mor Fagundes com a irmã daquele mercador da Rua da Quitanda... — Isso é coisa velha e revelha, respondeu Custódio levantando os ombros com desdém. Se até o irmão da sujeita já deu pela coisa, e mandou dizer ao Fagundes que fosse cuidar dos filhos, se não queria apanhar uma sova de pau. Afinal, são lérias do mercador. Quem não sabe que a irmã vivia, ainda há pouco tempo... Cala-te, boca! — Diga, compadre! — Nada, não digo. É quase meio-dia, e o feijão lá está à minha espera. A razão dada pelo almotacé tinha só de verdadeira a coincidência cronológica. Era exato estar próxima a hora do jantar. Mas o verdadeiro motivo de interromper a conversa, que se passava à porta da casa da sra. Engrácia foi ter visto o nosso almotacé, ao longe, a esbelta figura do juiz de fora. Custódio Marques despediu-se da comadre e seguiu no encalço do juiz. Logo que se achou a umas oito braças dele, afrouxou o passo a assumiu o ar distraído que até então ninguém pudera imitar. Olhava para o chão, para o interior das lojas, para trás, para todos os lados, menos para a pessoa que era objeto da espionagem e contudo não a perdia de vista, não lhe escapava um único movimento. O juiz, entretanto, dirigia-se pela Rua da Mãe dos Homens abaixo até à Rua Direita, que era onde morava. Custódio Marques viu-o entrar em casa e retrocedeu para a rua. — Diabo! dizia ele consigo. Naturalmente, vinha de lá... se é que lá vai de dia... Mas onde?... Ficará para outra vez.
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O almotacé seguiu a passo rápido para casa, não sem parar alguns minutos nas esquinas, a varrer a rua transversal com o seu par de olhos de lince. Ali chegando, achou efetivamente o jantar na mesa, um jantar corretamente nacional, puro dos deliciosos galicismos que nos trouxe a civilização. Vieram para a mesa D. Esperança, filha do almotacé, e D. Joana da Purificação, sua irmã, a quem, por morte da mulher de Custódio Marques, coube a honra de reger a casa. Esperança possuía os mais belos olhos negros da cidade. Haveria cabelos mais lindos, boca mais graciosa, tez mais pura. Olhos, não; nesse particular, podia Esperança medir-se com os mais afamados da colônia. Eram pretos, grandes, rasgados; sobretudo tinham um certo jeito de despedir as setas, capaz de deitar abaixo o mais destro guerreiro. A tia, que a amava em extremo, trazia-a muito abençoada e coberta de mimos; servia-lhe de mãe, camareira e mestra; levava-a às igrejas e procissões, a todas as festas, quando porventura o irmão, por motivo do cargo oficial ou do cargo oficioso, não as podia acompanhar. Esperança beijou a mão do pai, que a contemplou com olhos cheios de ternura e projetos. Eram estes casá-la, e casá-la nada menos que com um sobrinho do juiz de fora, homem da nobreza da terra, e noivo muito ambicionado de solteiras e viúvas. O almotacé não alcançara até então enredar o moço nas graças da filha; mas forcejava por isso. Uma coisa o tranqüilizava: é que de suas pesquisas não colhera notícia de nenhuma pretensão amorosa da parte do rapaz. Era já muito não ter adversários que combater. Esperança, entretanto, fazia cálculos muito diferentes, e tratava igualmente de os pôr em execução. Seu coração, ao passo que se não rendia à nobreza do sobrinho do juiz, sentia notável inclinação para o filho do boticário José Mendes — o jovem Gervásio Mendes, com quem se carteava e palestrava à noite, à janela, quando o pai andava em suas indagações por fora, e a tia jogava a bisca com o sacristão da Sé. Esse namoro de uns quatro meses não tinha ares de ceder aos planos de Custódio Marques. Abençoada a filha, e comido o jantar, foi Custódio Marques cochilar a sesta durante meia hora. A tarde gastou-a ao gamão, na botica vizinha, cujo dono, mais insigne naquele jogo que no preparo das drogas, estatelava igualmente os parceiros e os fregueses. A diferença entre os dois é que para o boticário o gamão era um fim, e para o almotacé um meio. Os dedos corriam e o almotacé ia misturando os remoques próprios do jogo com mil perguntas, ora claras, ora disfarçadas, acerca das coisas que lhe convinha saber; o boticário não hesitava em lhe dar conta das novidades. Naquela tarde não havia nenhuma. Em compensação, havia um pedido. — Você, sr. Custódio, é que me podia fazer um grande favor, disse o boticário. — Qual? — Aquele negócio dos chãos da Lagoa. Sabe que o senado da Câmara embirra em os tomar para si, quando é positivo que pertencem a meu filho José. Se o juiz de fora quisesse, podia fazer muito neste negócio; e você que é tão íntimo dele... — Homem, amigo sou, disse Custódio Marques lisonjeado com as palavras do boticário; mas seu filho, deixe-me que lhe diga... sei tudo. — Tudo o quê? — Ora! Sei que quando o conde da Cunha tinha de organizar os terços de infantaria auxiliar, seu filho José, não alcançando a nomeação de oficial que desejava, e vendo-se ameaçado de ser alistado na tropa, foi lançar-se aos pés daquela mulher espanhola, que morou na Rua dos Ourives... Pois deveras não sabe?
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— Diga, diga sr. Custódio. — Lançou-se-lhe aos pés para lhe pedir proteção. A sujeita namorou-se dele; e, não lhe digo nada, foi ela quem lhe emprestou o dinheiro com que ele comprou um privilégio da redenção dos cativos, mediante o qual seu filho livrou-se da farda. — Que peralta! A mim disse-me ele que o cônego Vargas.. — Isto, sr. José Mendes, foi muito malvisto pelos poucos que o souberam. Um deles é o juiz de fora, que é homem severo, apesar... Custódio Marques engoliu o resto da frase, concluiu-a por outro modo, e saiu prometendo que, em todo caso, iria falar ao juiz. Efetivamente ao anoitecer lá estava em casa deste. O juiz de fora tratava o almotacé com particular distinção. Era ele o melhor remédio das suas melancolias, o mais serviçal sujeito para tudo quanto fosse de seu agrado. Logo que ele entrou, disse-lhe o dono da casa: — Ora, venha cá, sr. espião, porque me andou você hoje a acompanhar um longo pedaço de tempo? Custódio Marques empalideceu; mas foi rápida a impressão. — O que havia de ser? disse ele sorrindo. Aquilo... aquilo que eu lhe disse uma vez, há dias.. — Há dias? — Sim, senhor. Ando a ver se descubro uma coisa. V. S., que sempre gostou tanto de moças, é impossível que não tenha por aí alguma aventura... — Deveras? perguntou rindo o juiz de fora. — Há de haver alguma coisa; e eu hei de descobri-la. V. S. sabe se eu tenho faro para tais empresas. Só se me jurar que... — Não juro, que não é caso disso; mas posso tirar-te o trabalho da pesquisa. Vivo com recato, como todos sabem; tenho deveres de família... — Qual! tudo isso é nada quando um rosto bonito... que ele há de ser bonito por força; nem V. S. é pessoa que se deixe aí levar por qualquer figura... Eu verei o que há. Olhe, o que eu posso afiançar é que o que descobrir cá vai comigo para a sepultura. Nunca fui homem de dar com a língua nos dentes. O juiz de fora riu muito, e Custódio Marques passou daquele assunto para o do filho do boticário, mais por descargo de consciência que por verdadeiro interesse. Contudo, é força confessar que a vaidade de mostrar ao vizinho José Mendes que ele podia influir alguma coisa, sempre lhe afiou a língua um pouco mais do que queria. A conversa foi interrompida por um oficial que trazia ao juiz de fora um recado do conde de Azambuja. O magistrado leu a cartinha do vice-rei e empalideceu um pouco. Não escapou esta circunstância ao almotacé, cuja atenção encarapitou-se toda nos seus olhinhos vivos e perspicazes, enquanto o juiz dizia ao oficial que não tardaria em obedecer às ordens de S. Excia. — Alguma importunação, naturalmente, disse Custódio Marques com ar de quem queria ser discreto. São as obrigações do cargo; ninguém foge a elas. V. S. precisa de mim? — Não, sr. Custódio. — Se precisa, não tenha cerimônia. Bem sabe que eu nunca estou melhor do que ao seu serviço. Se quiser um recado qualquer... — Um recado? repetiu o magistrado como quem efetivamente precisava de mandar algum. — O que quiser; fale V. S., que há de ser logo obedecido.
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O juiz de fora refletiu um instante, e recusou. O almotacé não teve outro remédio senão deixar a companhia de seu amigo e protetor. Eram nove horas dadas. O juiz de fora preparou-se para acudir ao chamado do vice-rei; dois escravos, com lanternas, o precederam na rua, enquanto Custódio Marques volvia para casa, sem lanterna, apesar das instâncias do magistrado para que aceitasse uma. A lanterna era um obstáculo para o funcionário municipal. Se a iluminação pública, que só começou no vice-reinado do conde de Resende, fosse naquele tempo sujeita ao voto do povo, pode-se afirmar que o almotacé lhe seria contrário. A escuridão era uma das vantagens de Custódio Marques. Ele a aproveitava em escutar às portas ou surpreender as entrevistas dos namorados às janelas. Naquela noite, porém, mais que tudo o preocupava o chamado do vice -rei e a impressão que ele fez ao juiz de fora. Que seria? Custódio Marques ia cogitando nisso e pouco no resto da cidade. Ainda assim, pôde ouvir alguma coisa da conspiração de vários devotos do Rosário, em casa do barbeiro Matos, para derribar a atual mesa da Irmandade, e viu sair cinco ou seis indivíduos da casa de D. Emerenciana, à Rua da Quitanda, onde ele já havia descoberto que se jogava todas as noites. Um deles, pela fala, pareceu-lhe que era o filho de José Mendes. — Nisso é que se ocupa aquele peralta! dizia ele consigo. Mas enganava-se o almotacé. Justamente à hora em que da casa de D. Emerenciana saíam os tais sujeitos, despedia-se Gervásio Mendes da formosa Esperança, com que conversava à janela, desde às sete horas e meia. Gervásio queria prolongar a conversa, mas a filha do almotacé pediu-lhe instantemente que fosse, visto ser hora de voltar o pai. Além disso, a tia de Esperança, irritada com cinco ou seis capotes que lhe dera o sacristão, jurava pelas bentas setas do mártir padroeiro nunca mais pegar em cartas. Verdade é que o sacristão, filósofo e prático, baralhava as cartas com exemplar modéstia, e vencia o despeito de D. Joana, à força de lhe dizer que a fortuna anda e desanda, e que a partida seguinte bem lhe podia ser adversa. D. Joana entre as cartas e as setas escolheu o que lhe parecia ser menos mortífero. Gervásio cedeu também às rogativas de Esperança. — Sobretudo, dizia esta, não fiques zangado com papai por ele haver dito... — Oh! se tu souberes o que foi! interrompeu o filho do boticário. Foi uma calúnia, mas tão torpe que não te posso repetir. Estou certo de que o sr. Custódio Marques não a inventou; repetiu-a somente e fez mal. E foi por culpa dele que meu pai me ameaçou hoje com uma sova de pau. Pau, a mim! E por causa do sr. Custódio Marques! — Mas ele não te quer mal... — Eu sei lá! — Não quer, não, insistiu a moça com meiguice. — Pode ser que não; mas com os projetos que tem a teu respeito, se vier a saber que tu gostas de mim... E daí pode ser que tu mesma cedas e cases com o... — Eu! Nunca! Antes meter-me freira. — Juras? — Gervásio! Estalou um beijo que fez levantar a cabeça à tia Joana, e o sacristão explicou dizendo que lhe parecia o chiar de um grilo. O grilo arrancou-se, enfim, à companhia da gentil Esperança, e tinha já tempo de estar
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acomodado na sua alcova, quando Custódio Marques chegou à casa. Achou tudo em paz. D. Joana levantava a banca do jogo, o sacristão despedia-se, Esperança recolhera -se ao seu quarto. O almotacé encomendou-se aos santos de sua devoção, e dormiu na paz do Senhor. A palidez do juiz de fora não saiu, talvez, da cabeça do leitor; e, tanto como o almotacé, está ele curioso de saber a causa do fenômeno. A carta do vice-rei dizia respeito a negócio do Estado. Era lacônica; mas terminava com uma frase mortal para o magistrado: “ Se o juiz de fora fosse obrigado ao serviço extraordinário de que lhe falava o conde de Azambuja, interrompia-se um romance, começado cerca de dois meses antes, em que era protagonista uma interessante viuvinha de vinte e seis estios. Esta viuvinha era da província de Minas Gerais; descera da terra natal para entregar em mão do vice-rei uns papéis que queria submeter a Sua Majestade, e ficou presa nas maneiras obsequiosas do juiz de fora. Alugou casa perto do convento da Ajuda, e ali estava morando, a título de ver a Capital. O romance assumiu proporções grandes, complicou-se o enredo, avultaram as descrições e as peripécias, e a obra ameaçava estender-se a muitos volumes. Nestas circunstâncias exigir do magistrado que se alongasse da Capital algumas semanas, era exigir o mais difícil e aspérrimo. Imagine-se com que alma saiu dali o magistrado. Qual fosse o negócio de Estado que obrigou aquele chamado noturno, não sei eu, nem importa sabê-lo. O essencial é que durante três dias ninguém arrancou um sorriso aos lábios do magistrado, e que no terceiro dia volveu-lhe a alegria mais espontânea e viva, que até ali tivera. Adivinha-se que a necessidade da jornada desapareceu e que o romance não ficava truncado. O almotacé foi dos primeiros que viram esta mudança. Preocupado com a tristeza do juiz de fora, não menos o ficou ao vê-lo novamente satisfeito. — Não sei qual foi o motivo da tristeza de V. S., disse ele, mas espero mostrar-lhe quanto me alegro com vê-lo tornado às suas usuais venturas. Efetivamente, o almotacé tinha dito à filha que era necessário dar um mimo qualquer, de suas mãos, ao juiz de fora, com quem, se a fortuna a ajudasse, viria a ser aparentada. Custódio Marques não viu o golpe que a filha recebeu com esta palavra; exigia o cargo municipal que ele fosse dali a serviço, e foi, deixando a alma da menina doente de maior aflição. Entretanto, a alegria do juiz de fora era tal, e tão agudo se ia tornando o romance, que já o feliz magistrado observava menos as costumadas cautelas. Um dia, cerca das seis horas da tarde, passando o almotacé pela Rua da Ajuda, viu sair de uma casa, de nobre aparência, a venturosa figura do magistrado. Sua atenção encrespou as orelhas; e os olhos perspicazes faiscaram de contentamento. Haveria ali um fio? Logo que viu longe o juiz de fora, aproximou-se da casa, como farejando; dali foi à loja mais próxima, onde soube que na dita casa morava a interessante viúva mineira. A eleição de vereador ou um presente de quatrocentos africanos, não o contentaria mais. — Tenho o fio! dizia ele consigo. Resta-me ir ao fundo do labirinto.
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Daí em diante, não houve assunto que distraísse o espírito investigador do almotacé. De dia e de noite, vigiava a casa da Rua da Ajuda, com pertinácia e dissimulação raras; e tão feliz foi que, no fim de cinco dias, tinha certeza de tudo. Auxiliou-o nisso a indiscrição de alguns escravos. Uma vez sabedor da aventura, deu-se pressa em correr à casa do juiz de fora. — Ainda agora aparece! exclamou este logo que o viu entrar. — V. S. fez-me a honra de mandar chamar? — Há meia hora que andam dois emissários em sua procura. — Eu estava em serviço de V. S. — Como? — Não lhe dizia eu que havia de descobrir alguma coisa? perguntou o almotacé piscando os olhos. — Alguma coisa! — Sim, aquilo... V. S. sabe a que me refiro... Meteu-se-me em cabeça que V. S. não podia escapar-me. — Não compreendo. — Não compreende V. S. outra coisa, disse Custódio Marques deliciando-se com o repassar do ferro na curiosidade do protetor. — Mas, sr. Custódio, trata-se... —Trate-se do que se tratar; declaro a V. S. que sou de segredo, e por isso nada direi a ninguém. Que havia de haver algum bico d’ obra, era verdade; andei à espreita, e afinal descobri a moça ... a moça da Rua da Ajuda. — Sim? — É verdade. Fiz a descoberta há dois dias; mas não vim logo porque queria certificar-me bem. Agora, posso dizer-lh que ... sim, senhor ... aprovo. É muito bonita. —Andou então na investigação dos meus passos? — V. S. compreende que não há outra intenção... —Pois, senhor Custodio Marques, madei-o chamar por toda a parte, visto que há cerca de três quartos de hora tive notícia de que sua filha fugiu de casa... —O almotacé deu um pulo; seus dois olhinhos cresceram desmesuradamente; a boca, aberta, não ousava proferir uma só palavra. —Fugiu de casa, continuou o magistrado, segundo notícia que tenho, e creio que ... —Mas com quem? com quem? para onde? Articulou, enfim o almotacé. — Fugiu com o Gervásio Mendes. Vão na direção da Lagoa da Sentinela... — Sr. dr. Peço-lhe perdão, mas, bem sabe ... bem sabe ... — Vá, vá ... — Custódio Marques não atinava com o chapéu. Deu-lho o juiz de fora. —Corra... — Olhe a bengala! O almotacé recebeu a bengala. — Obrigado! Quem tal diria! Ah! nunca pensei... que minha filha, e aquele peralta... Deixe-os comigo... — Não perca tempo. — Vou... vou. — Mas, olhe cá, antes de ir. Um astrólogo contemplava os astros, com tamanha atenção, que caiu num poço. Uma velha da Trácia vendo-o cair, soltou esta exclamação: “Se ele não via o que lhe estava aos
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pés, para que havia de investigar o que lá fica tão em cima!” O almotacé compreenderia o apólogo, se pudesse ouvi-lo. Mas não ouviu nada. Desceu as escadas a quatro e quatro bufando como um touro. Il court encore.
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RelĂquias da Casa Velha
Advertência Uma casa tem muita vez as suas relíquias, lembranças de um dia ou de outro, da tristeza que passou, da felicidade que se perdeu. Supõe que o dono pense em as arejar e expor para teu e meu desenfado. Nem todas serão interessantes, não raras serão aborrecidas, mas, se o dono tiver cuidado, pode extrair uma dúzia delas que mereçam sair cá fora. Chama-lhe à minha vida uma casa, dá o nome de relíquias aos inéditos e impressos que aqui vão, idéias, histórias, críticas, diálogos, e verás explicados o livro e o título. Possivelmente não terão a mesma suposta fortuna daquela dúzia de outras, nem todas valerão a pena de sair cá fora. Depende da tua impressão, leitor amigo, como dependerá de ti a absolvição da má escolha. Machado de Assis A Carolina Querida, ao pé do leito derradeiro Em que descansas dessa longa vida, Aqui venho e virei, pobre querida, Trazer-te o coração do companheiro. Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro Que, a despeito de toda a humana lida, Fez a nossa existência apetecida E num recanto pôs um mundo inteiro. Trago-te flores – restos arrancados Da terra que nos viu passar unidos E ora mortos nos deixa e separados. Que eu, se tenho nos olhos malferidos Pensamentos de vida formulados, São pensamentos idos e vividos.
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PAI CONTRA MÃE
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escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dois pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras. O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também, à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado. Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se, entretanto. Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas comprado no Valongo1, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que seguiam para casa, não raros, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcasse aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando. Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha promessa: “gratificar-se- á generosamente”, — ou “receberá uma boa gratificação”. Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei contra quem o acoitasse. Ora, pegar escravos fugidos era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por ser instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega2, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem. 1
Cândido Neves, — em família, Candinho, — é a pessoa a quem se liga a história de uma fuga, cedeu à pobreza, quando adquiriu o ofício de pegar escravos fugidos. Tinha um defeito grave esse homem, não agüentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade; é o que ele chamava caiporismo3.
1 A Ladeira do Valongo, perto da atual Praça Mauá, era o local onde eram guardados e vendidos os escravos negros entrados no Rio de Janeiro depois da proibição do tráfico (1860), ou seja, contrabando humano. 2 Rendimento. 3
Má sorte, azar.
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Começou por querer aprender tipografia, mas viu cedo que era preciso algum tempo para compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o bastante; foi o que ele disse a si mesmo. O comércio chamou-lhe a atenção, era carreira boa. Com algum esforço entrou de caixeiro para um armarinho. A obrigação, porém, de atender e servir a todos feria-o na corda do orgulho, e ao cabo de cinco ou seis semanas estava na rua por sua vontade. Fiel de cartório, contínuo de uma repartição anexa ao Ministério do Império, carteiro e outros empregos foram deixados pouco depois de obtidos. Quando veio a paixão da moça Clara, não tinha ele mais que dívidas, ainda que poucas, porque morava com um primo, entalhador de ofício. Depois de várias tentativas para obter emprego, resolveu adotar o ofício do primo, de que aliás já tomara algumas lições. Não lhe custou apanhar outras, mas, querendo aprender depressa, aprendeu mal. Não fazia obras finas nem complicadas, apenas garras para sofás e relevos comuns para cadeiras. Queria ter em que trabalhar quando casasse, e o casamento não se demorou muito. Contava trinta anos. Clara vinte e dois. Ela era órfã, morava com uma tia, Mônica, e cosia com ela. Não cosia tanto que não namorasse o seu pouco, mas os namorados apenas queriam matar o tempo; não tinham outro empenho. Passavam às tardes, olhavam muito para ela, ela para eles, até que a noite a fazia recolher para a costura. O que ela notava é que nenhum deles lhe deixava saudades nem lhe acendia desejos. Talvez nem soubesse o nome de muitos. Queria casar, naturalmente. Era, como lhe dizia a tia, um pescar de caniço, a ver se o peixe pegava, mas o peixe passava de longe; algum que parasse, era só para andar à roda da isca, mirá-la, cheirá-la, deixá-la e ir a outras. O amor traz sobrescritos. Quando a moça viu Cândido Neves, sentiu que era este o possível marido, o marido verdadeiro e único. O encontro deu-se em um baile; tal foi — para lembrar o primeiro ofício do namorado, — tal foi a página inicial daquele livro, que tinha de sair mal composto e pior brochado. O casamento fez-se onze meses depois, e foi a mais bela festa das relações dos noivos. Amigas de Clara, menos por amizade que por inveja, tentaram arredá-la do passo que ia dar. Não negavam a gentileza do noivo, nem o amor que lhe tinha, nem ainda algumas virtudes; diziam que era dado em demasia a patuscadas. — Pois ainda bem, replicava a noiva; ao menos, não caso com defunto. — Não, defunto não; mas é que... Não diziam o que era. Tia Mônica, depois do casamento, na casa pobre onde eles se foram abrigar, falou-lhes uma vez nos filhos possíveis. Eles queriam um, um só, embora viesse agravar a necessidade. — Vocês, se tiverem um filho, morrem de fome, disse a tia à sobrinha. — Nossa Senhora nos dará de comer, acudiu Clara. Tia Mônica devia ter-lhes feito a advertência, ou ameaça, quando ele lhe foi pedir a mão da moça; mas também ela era amiga de patuscadas, e o casamento seria uma festa, como foi. A alegria era comum aos três. O casal ria a propósito de tudo. Os mesmos nomes eram objeto de trocados, Clara, Neves, Cândido; não davam que comer, mas davam que rir, e o riso digeria-se sem esforço. Ela cosia agora mais, ele saía a empreitadas de uma coisa e outra; não tinha emprego certo. Nem por isso abriam mão do filho.
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O filho é que, não sabendo daquele desejo específico, deixava-se estar escondido na eternidade. Um dia. porém, deu sinal de si a criança; varão ou fêmea, era o fruto abençoado que viria trazer ao casal a suspirada ventura. Tia Mônica ficou desorientada, Cândido e Clara riram dos seus sustos. — Deus nos há de ajudar, titia, insistia a futura mãe. A notícia correu de vizinha a vizinha. Não houve mais que espreitar a aurora do dia grande. A esposa trabalhava agora com mais vontade, e assim era preciso, uma vez que, além das costuras pagas, tinha de ir fazendo com retalhos o enxoval da criança. À força de pensar nela, vivia já com ela, media-lhe fraldas, cosia-lhe camisas. A porção era escassa, os intervalos longos. Tia Mônica ajudava, é certo, ainda que de má vontade. —Vocês verão a triste vida, suspirava ela. — Mas as outras crianças não nascem também? perguntou Clara. — Nascem, e acham sempre alguma coisa certa que comer, ainda que pouco... — Certa como? — Certa, um emprego, um ofício, uma ocupação, mas em que é que o pai dessa infeliz criatura que aí vem, gasta o tempo? Cândido Neves, logo que soube daquela advertência, foi ter com a tia, não áspero, mas muito menos manso que de costume, e lhe perguntou se já algum dia deixara de comer. — A senhora ainda não jejuou senão pela semana santa, e isso mesmo quando não quer jantar comigo. Nunca deixamos de ter o nosso bacalhau... — Bem sei, mas somos três. — Seremos quatro. — Não é a mesma coisa. — Que quer então que eu faça, além do que faço? — Alguma coisa mais certa. Veja o marceneiro da esquina, o homem do armarinho, o tipógrafo que casou sábado, todos têm um emprego certo... Não fique zangado; não digo que você seja vadio, mas a ocupação que escolheu, é vaga. Você passa semanas sem vintém. — Sim, mas lá vem uma noite que compensa tudo, até de sobra. Deus não me abandona, e preto fugido sabe que comigo não brinca; quase nenhum resiste, muitos entregam-se logo. Tinha glória nisto, falava da esperança como de capital seguro. Daí a pouco ria, e fazia rir à tia, que era naturalmente alegre, e previa uma patuscada no batizado. Cândido Neves perdera já o ofício de entalhador, como abrira mão de outros muitos, melhores ou piores. Pegar escravos fugidos trouxe-lhe um encanto novo. Não obrigava a estar longas horas sentado. Só exigia força, olho vivo, paciência, coragem e um pedaço de corda. Cândido Neves lia os anúncios, copiava-os, metia-os no bolso e saía às pesquisas. Tinha boa memória. Fixados os sinais e os costumes de um escravo fugido, gastava pouco tempo em achá-lo, segurá-lo, amarrá-lo e levá-lo. A força era muita, a agilidade também. Mais de uma vez, a uma esquina, conversando de coisas remotas, via passar um escravo como os outros, e descobria logo que ia fugido, quem era, o nome, o dono, a casa deste e a gratificação; inter-
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rompia a conversa e ia atrás do vicioso. Não o apanhava logo, espreitava lugar azado, e de um salto tinha a gratificação nas mãos. Nem sempre saía sem sangue, as unhas e os dentes do outro trabalhavam, mas geralmente ele os vencia sem o menor arranhão. Um dia os lucros entraram a escassear. Os escravos fugidos não vinham já, como dantes, meter-se nas mãos de Cândido Neves. Havia mãos novas e hábeis. Como o negócio crescesse, mais de um desempregado pegou em si e numa corda, foi aos jornais, copiou anúncios e deitou-se à caçada. No próprio bairro havia mais de um competidor. Quer dizer que as dívidas de Cândido Neves começaram de subir, sem aqueles pagamentos prontos ou quase prontos dos primeiros tempos. A vida fez-se difícil e dura. Comia-se fiado e mal; comia-se tarde. O senhorio mandava pelo aluguéis. Clara não tinha sequer tempo de remendar a roupa ao marido, tanta era a necessidade de coser para fora. Tia Mônica ajudava a sobrinha, naturalmente. Quando ele chegava à tarde, via-se-lhe pela cara que não trazia vintém. Jantava e saía outra vez, à cata de algum fugido. Já lhe sucedia, ainda que raro, enganar-se de pessoa, e pegar em escravo fiel que ia a serviço de seu senhor; tal era a cegueira da necessidade. Certa vez capturou um preto livre; desfez-se em desculpas, mas recebeu grande soma de murros que lhe deram os parentes do homem. — É o que lhe faltava! exclamou a tia Mônica, ao vê-lo entrar, e depois de ouvir narrar o equívoco e suas conseqüências. Deixe-se disso, Candinho; procure outra vida, outro emprego. Cândido quisera efetivamente fazer outra coisa, não pela razão do conselho, mas por simples gosto de trocar de ofício; seria um modo de mudar de pele ou de pessoa. O pior é que não achava à mão negócio que aprendesse depressa. A natureza ia andando, o feto crescia, até fazer-se pesado à mãe, antes de nascer. Chegou o oitavo mês, mês de angústias e necessidades, menos ainda que o nono, cuja narração dispenso também. Melhor é dizer somente os seus efeitos. Não podiam ser mais amargos. — Não, tia Mônica! bradou Candinho, recusando um conselho que me custa escrever, quanto mais ao pai ouvi-lo. Isso nunca! Foi na última semana do derradeiro mês que a tia Mônica deu ao casal o conselho de levar a criança que nascesse à Roda dos Enjeitados4. Em verdade, não podia haver palavra mais dura de tolerar a dois jovens pais que espreitavam a criança, para beijá-la, guardá-la, vê-la rir, crescer, engordar, pular... Enjeitar quê? enjeitar como? Candinho arregalou os olhos para a tia, e acabou dando um murro na mesa de jantar. A mesa, que era velha e desconjuntada, esteve quase a se desfazer inteiramente. Clara interveio. 2
— Titia não fala por mal, Candinho. — Por mal? replicou tia Mônica. Por mal ou por bem, seja o que for, digo que é o melhor que vocês podem fazer. Vocês devem tudo; a carne e o feijão vão faltando. Se não aparecer algum dinheiro, como é que a família há de aumentar? 4 A Roda dos Enjeitados era um local no Convento das Freiras da Ajuda (na atual Cinelândia), onde os recém-nascidos não desejados eram abandonados para que fossem recolhidos e criados pelas religiosas.
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E depois, há tempo; mais tarde, quando o senhor tiver a vida mais segura, os filhos que vierem serão recebidos com o mesmo cuidado que este ou maior. Este será bem criado, sem lhe faltar nada. Pois então a Roda é alguma praia ou monturo? Lá não se mata ninguém, ninguém morre à toa, enquanto que aqui é certo morrer, se viver à míngua. Enfim... Tia Mônica terminou a frase com um gesto de ombros, deu as costas e foi meter-se na alcova. Tinha já insinuado aquela solução, mas era a primeira vez que o fazia com tal franqueza e calor, — crueldade, se preferes. Clara estendeu a mão ao marido, como a amparar-lhe o ânimo; Cândido Neves fez uma careta, e chamou maluca à tia, em voz baixa. A ternura dos dois foi interrompida por alguém que batia à porta da rua. — Quem é? perguntou o marido. — Sou eu. Era o dono da casa, credor de três meses de aluguel, que vinha em pessoa ameaçar o inquilino. Este quis que ele entrasse. — Não é preciso... — Faça favor. O credor entrou e recusou sentar-se, deitou os olhos à mobília para ver se daria algo à penhora; achou que pouco. Vinha receber os aluguéis vencidos, não podia esperar mais; se dentro de cinco dias não fosse pago, pô-lo-ia na rua. Não havia trabalhado para regalo dos outros. Ao vê-lo, ninguém diria que era proprietário; mas a palavra supria o que faltava ao gesto, e o pobre Cândido Neves preferiu calar a retorquir. Fez uma inclinação de promessa e súplica ao mesmo tempo. O dono da casa não cedeu mais. — Cinco dias ou rua! repetiu, metendo a mão no ferrolho da porta e saindo. Candinho saiu por outro lado. Nesses lances não chegava nunca ao desespero, contava com algum empréstimo, não sabia como nem onde, mas contava. Demais, recorreu aos anúncios. Achou vários, alguns já velhos, mas em vão os buscava desde muito. Gastou algumas horas sem proveito, e tornou para casa. Ao fim de quatro dias, não achou recursos; lançou mão de empenhos, foi a pessoas amigas do proprietário, não alcançando mais que a ordem de mudança. A situação era aguda. Não achavam casa, nem contavam com pessoa que lhes emprestasse alguma; era ir para a rua. Não contavam com a tia. Tia Mônica teve arte de alcançar aposento para os três em casa de uma senhora velha e rica, que lhe prometeu emprestar os quartos baixos da casa, ao fundo da cocheira, para os lados de um pátio. Teve ainda a arte maior de não dizer nada aos dois, para que Cândido Neves, no desespero da crise, começasse por enjeitar o filho e acabasse alcançando algum meio seguro e regular de obter dinheiro; emendar a vida, em suma. Ouvia as queixas de Clara, sem as repetir, é certo, mas sem as consolar. No dia em que fossem obrigados a deixar a casa, fá-los-ia espantar com a notícia do obséquio e iriam dormir melhor do que cuidassem.
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Assim sucedeu. Postos fora da casa, passaram ao aposento de favor, e dois dias depois nasceu a criança. A alegria do pai foi enorme, e a tristeza também. Tia Mônica insistiu em dar a criança à Roda. “Se você não a quer levar, deixe isso comigo; eu vou à Rua dos Barbonos5.” Cândido Neves pediu que não, que esperasse, que ele mesmo a levaria. Notai que era um menino, e que ambos os pais desejavam justamente este sexo. Mal lhe deram algum leite; mas, como chovesse à noite, assentou o pai levá-lo à Roda na noite seguinte. Naquela reviu todas as suas notas de escravos fugidos . As gratificações pela maior parte eram promessas; algumas traziam a soma escrita e escassa. Uma, porém, subia a cem mil-réis. Tratava-se de uma mulata; vinham indicações de gesto e de vestido. Cândido Neves andara a pesquisá-la sem melhor fortuna, e abrira mão do negócio; imaginou que algum amante da escrava a houvesse recolhido. Agora, porém, a vista nova da quantia e a necessidade dela animaram Cândido Neves a fazer um grande esforço derradeiro. Saiu de manhã a ver e indagar pela Rua e Largo da Carioca, Rua do Parto e da Ajuda, onde ela parecia andar, segundo o anúncio. Não a achou; apenas um farmacêutico da Rua da Ajuda se lembrava de ter vendido uma onça de qualquer droga, três dias antes, à pessoa que tinha os sinais indicados. Cândido Neves parecia falar como dono da escrava, e agradeceu cortesmente a notícia. Não foi mais feliz com outros fugidos de gratificação incerta ou barata. Voltou para a triste casa que lhe haviam emprestado. Tia Mônica arranjara de si mesma a dieta para a recente mãe, e tinha já o menino para ser levado à Roda. O pai, não obstante o acordo feito, mal pôde esconder a dor do espetáculo. Não quis comer o que tia Mônica lhe guardara; não tinha fome, disse, e era verdade. Cogitou mil modos de ficar com o filho; nenhum prestava. Não podia esquecer o próprio albergue em que vivia. Consultou a mulher, que se mostrou resignada. Tia Mônica pintara-lhe a criação do menino; seria maior a miséria, podendo suceder que o filho achasse a morte sem recurso. Cândido Neves foi obrigado a cumprir a promessa; pediu à mulher que desse ao filho o resto do leite que ele beberia da mãe. Assim se fez; o pequeno adormeceu, o pai pegou dele, e saiu na direção da Rua dos Barbonos. Que pensasse mais de uma vez em voltar para casa com ele, é certo; não menos certo é que o agasalhava muito, que o beijava, que cobria o rosto para preservá-lo do sereno. Ao entrar na Rua da Guarda Velha, Cândido Neves começou a afrouxar o passo. — Hei de entregá-lo o mais tarde que puder, murmurou ele. 3
Mas não sendo a rua infinita ou sequer longa, viria a acabá-la; foi então que lhe ocorreu entrar por um dos becos que ligavam aquela à Rua da Ajuda. Chegou ao fim do beco e, indo a dobrar à direita, na direção do Largo da Ajuda, viu do lado oposto um vulto de mulher; era a mulata fugida. Não dou aqui a comoção de Cândido Neves por não podê-lo fazer com a intensidade real. Um adjetivo basta; digamos enorme. Descendo a mulher, desceu ele também; a poucos passos estava a farmácia onde obtivera a informação, que referi acima. Entrou, achou o farmacêutico, pediu-lhe a fineza de guardar a criança por um instante; viria buscá-la sem falta.
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Atual Rua Evaristo da Veiga.
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—Mas... Cândido Neves não lhe deu tempo de dizer nada; saiu rápido, atravessou a rua, até ao ponto em que pudesse pegar a mulher sem dar alarma. No extremo da rua, quando ela ia a descer a de S. José, Cândido Neves aproximou-se dela. Era a mesma, era a mulata fujona. — Arminda! bradou, conforme a nomeava o anúncio. Arminda voltou-se sem cuidar malícia. Foi só quando ele, tendo tirado o pedaço de corda da algibeira, pegou dos braços da escrava, que ela compreendeu e quis fugir. Era já impossível. Cândido Neves, com as mãos robustas, atava-lhe os pulsos e dizia que andasse. A escrava quis gritar, parece que chegou a soltar alguma voz mais alta que de costume, mas entendeu logo que ninguém viria libertá-la, ao contrário. Pediu então que a soltasse pelo amor de Deus. — Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe por amor dele que me solte; eu serei tua escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser. Me solte, meu senhor moço! — Siga! repetiu Cândido Neves. — Me solte! — Não quero demoras; siga! Houve aqui luta, porque a escrava, gemendo, arrastava-se a si e ao filho. Quem passava ou estava à porta de uma loja, compreendia o que era e naturalmente não acudia. Arminda ia alegando que o senhor era muito mau, e provavelmente a castigaria com açoites, — coisa que, no estado em que ela estava, seria pior de sentir. Com certeza, ele lhe mandaria dar açoites. — Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois? perguntou Cândido Neves. Não estava em maré de riso, por causa do filho que lá ficara na farmácia, à espera dele. Também é certo que não costumava dizer grandes coisas. Foi arrastando a escrava pela Rua dos Ourives, em direção à da Alfândega, onde residia o senhor. Na esquina desta a luta cresceu; a escrava pôs os pés à parede, recuou com grande esforço, inutilmente. O que alcançou foi, apesar de ser a casa próxima, gastar mais tempo em lá chegar do que devera. Chegou, enfim, arrastada, desesperada, arquejando. Ainda ali ajoelhou-se, mas em vão. O senhor estava em casa, acudiu ao chamado e ao rumor. — Aqui está a fujona, disse Cândido Neves. — É ela mesma. — Meu senhor! — Anda, entra... Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e tirou os cem mil-réis de gratificação. Cândido Neves guardou as duas notas de cinqüenta mil-réis, enquanto o senhor novamente dizia à escrava que entrasse. No chão, onde jazia, levada do medo e da dor, e após algum tempo de luta a escrava abortou.
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O fruto de algum tempo entrou sem vida neste mundo, entre os gemidos da mãe e os gestos de desespero do dono. Cândido Neves viu todo esse espetáculo. Não sabia que horas eram. Quaisquer que fossem, urgia correr à Rua da Ajuda, e foi o que ele fez sem querer conhecer as conseqüências do desastre. Quando lá chegou, viu o farmacêutico sozinho, sem o filho que lhe entregara. Quis esganá-lo. Felizmente, o farmacêutico explicou tudo a tempo; o menino estava lá dentro com a família, e ambos entraram. O pai recebeu o filho com a mesma fúria com que pegara a escrava fujona de há pouco, fúria diversa, naturalmente, fúria de amor. Agradeceu depressa e mal, e saiu às carreiras, não para a Roda dos Enjeitados, mas para a casa de empréstimo, com o filho e os cem mil-réis de gratificação. Tia Mônica, ouvida a explicação, perdoou a volta do pequeno, uma vez que trazia os cem mil-réis. Disse, é verdade, algumas palavras duras contra a escrava, por causa do aborto, além da fuga. Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas, verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto. —Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração.
MARIA CORA
I Uma noite, voltando para casa, trazia tanto sono que não dei corda ao relógio. Pode ser também que a vista de uma senhora que encontrei em casa do comendador T... contribuísse para aquele esquecimento; mas estas duas razões destroem-se. Cogitação tira o sono e o sono impede a cogitação; só uma das causas devia ser verdadeira. Ponhamos que nenhuma, e fiquemos no principal, que é o relógio parado, de manhã, quando me levantei, ouvindo dez horas no relógio da casa. Morava então (1893) em uma casa de pensão no Catete. Já por esse tempo este gênero de residência florescia no Rio de Janeiro. Aquela era pequena e tranqüila. Os quatrocentos contos de réis permitiamme casa exclusiva e própria; mas, em primeiro lugar, já eu ali residia quando os adquiri, por jogo de praça; em segundo lugar, era um solteirão de quarenta anos, tão afeito à vida de hospedaria que me seria impossível morar só. Casar não era menos impossível. Não é que me faltassem noivas. Desde os fins de 1891 mais de uma dama, — e não das menos belas, — olhou para mim com olhos brandos e amigos. Uma das filhas do comendador tratava-me com particular atenção. A nenhuma dei corda; o celibato era a minha alma, a minha vocação, o meu costume, a minha única ventura. Amaria de empreitada e por desfastio. Uma ou duas aventuras por ano bastavam a um coração meio inclinado ao ocaso e à noite. Talvez por isso dei alguma atenção à senhora que vi em casa do comendador, na véspera. Era uma criatura morena, robusta, vinte e oito a trinta anos, vestida de escuro; entrou às dez horas, acompanhada de uma tia velha. A recepção que lhe fizeram, foi mais cerimoniosa que as outras; era a primeira vez que ali ia. Eu era a terceira. Perguntei se era viúva. — Não; é casada.
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— Com quem? — Com um estancieiro do Rio Grande. — Chama-se? — Ele? Fonseca, ela Maria Cora. — O marido não veio com ela? — Está no Rio Grande. Não soube mais nada; mas a figura da dama interessou-me pelas graças físicas, que eram o oposto do que poderiam sonhar poetas românticos e artistas seráficos6. Conversei com ela alguns minutos, sobre coisas indiferentes, — mas suficientes para escutar-lhe a voz, que era musical, e saber que tinha opiniões republicanas. Vexou-me confessar que não as professava de espécie alguma; declarei-me vagamente pelo futuro do país. Quando ela falava, tinha um modo de 6 Relativo aos anjos, umedecer os beiços, não sei se casual, mas gracioso e picante. Creio que, vistas assim ao pé, as feições não eram tão corretas como pareciam a distância, mas eram mais suas, mais originais.
II De manhã tinha o relógio parado. Chegando à cidade, desci a Rua do Ouvidor, até à da Quitanda, e indo a voltar à direita, para ir ao escritório do meu advogado, lembrou-me ver que horas eram. Não me acudiu que o relógio estava parado. — Que maçada! exclamei. Felizmente, naquela mesma Rua da Quitanda, à esquerda, entre as do Ouvidor e Rosário, era a oficina onde eu comprara o relógio, e a cuja pêndula usava acertá-lo. Em vez de ir para um lado, fui para outro. Era apenas meia hora; dei corda ao relógio, acertei -o, troquei duas palavras com o oficial que estava ao balcão, e indo a sair, vi à porta de uma loja de novidades que ficava defronte, nem mais nem menos que a senhora de escuro que encontrara em casa do comendador. Cumprimentei-a, ela correspondeu depois de alguma hesitação, como se me não houvesse reconhecido logo, e depois seguiu pela Rua da Quitanda fora, ainda para o lado esquerdo. Como tivesse algum tempo ante mim (pouco menos de trinta minutos), dei-me a andar atrás de Maria Cora. 4
Não digo que uma força violenta me levasse já, mas não posso esconder que cedia a qualquer impulso de curiosidade e desejo; era também um resto da juventude passada. Na rua, andando, vestida de escuro, como na véspera, Maria Cora pareceu-me ainda melhor. Pisava forte, não apressada nem lenta, o bastante para deixar ver e admirar as belas formas, mui mais corretas que as linhas do rosto. Subiu a Rua do Hospício, até uma oficina de ocularista7, onde entrou e ficou dez minutos ou mais. Deixei-me estar a distância, fitando a porta disfarçadamente. Depois saiu, arrepiou caminho, e dobrou a Rua dos Ourives, até à do Rosário, por onde subiu até ao Largo da Sé; daí passou ao de S. Francisco de Paula.
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Relativo aos anjos. Fabricante de óculos.
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Todas essas reminiscências parecerão escusadas, senão aborrecíveis; a mim dão-me uma sensação intensa e particular, são os primeiros passos de uma carreira penosa e longa. Demais, vereis por aqui que ela evitava subir a Rua do Ouvidor, que todos e todas buscariam àquela ou a outra hora para ir ao Largo de S. Francisco de Paula. Foi atravessando o largo, na direção da Escola Politécnica, mas a meio caminho veio ter com ela um carro que estava parado defronte da Escola; meteu-se nele, e o carro partiu. A vida tem suas encruzilhadas, como outros caminhos da terra. Naquele momento achei-me diante de uma assaz complicada, mas não tive tempo de escolher direção, — nem tempo nem liberdade. Ainda agora não sei como é que me vi dentro de um tílburi8; é certo que me vi nele, dizendo ao cocheiro que fosse atrás do carro. Maria Cora morava no Engenho Velho; era uma boa casa, sólida, posto que antiga, dentro de uma chácara. Vi que morava ali, porque a tia estava a uma das janelas. Demais, saindo do carro, Maria Cora disse ao cocheiro (o meu tílburi ia passando adiante) que naquela semana não sairia mais, e que aparecesse segunda-feira ao meio-dia. Em seguida, entrou pela chácara, como dona dela, e parou a falar ao feitor, que lhe explicava alguma coisa com o gesto. Voltei depois que ela entrou em casa, e só muito abaixo é que me lembrou de ver as horas, era quase uma e meia. Vim a trote largo até à Rua da Quitanda, onde me apeei à porta do advogado. 5
— Pensei que não vinha, disse-me ele. — Desculpe, doutor, encontrei um amigo que me deu uma maçada. Não era a primeira vez que mentia na minha vida, nem seria a última.
III Fiz-me encontradiço com Maria Cora, na casa do comendador, primeiro, e depois em outras. Maria Cora não vivia absolutamente reclusa, dava alguns passeios e fazia visitas. Também recebia, mas sem dia certo, uma ou outra vez, e apenas cinco a seis pessoas da intimidade. O sentimento geral é que era pessoa de fortes sentimentos e austeros costumes. Acrescentai a isto o espírito, um espírito agudo, brilhante e viril. Capaz de resistências e fadigas, não menos que de violências e combates, era feita, como dizia um poeta que lá ia à casa dela, “de um pedaço de pampa9 e outro de pampeiro10 ”. A imagem era em verso e com rima, mas a mim só me ficou a idéia e o principal das palavras. Maria Cora gostava de ouvir definir-se assim, posto não andasse mostrando aquelas forças a cada passo, nem contando as suas memórias da adolescência. A tia é que contava algumas, com amor, para concluir que lhe saía a ela, que também fora assim na mocidade. A justiça pede que se diga que, ainda agora, apesar de doente, a tia era pessoa de muita vida e robustez. Com pouco, apaixonei-me pela sobrinha. Não me pesa confessá-lo, pois foi a ocasião da única página da minha vida que merece atenção particular. Vou narrá-la brevemente; não conto novela nem direi mentiras.
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Carro com duas rodas, dois assentos, capota e puxado por um só animal. Grande planície de vegetação rasteira, existente no Rio Grande do Sul, Argentina e Uruguai. Vento frio e seco que sopra na região dos pampas. O mesmo que minuano.
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Gostei de Maria Cora. Não lhe confiei logo o que sentia, mas é provável que ela o percebesse ou adivinhasse, como todas as mulheres. Se a descoberta ou adivinhação foi anterior à minha ida à casa do Engenho Velho, nem assim deveis censurá-la por me haver convidado a ir ali uma noite. Podia ser -lhe então indiferente a minha disposição moral; podia também gostar de se sentir querida, sem a menor idéia de retribuição. A verdade é que fui essa noite e tornei outras; a tia gostava de mim e dos meus modos. O poeta que lá ia, tagarela e tonto, disse uma vez que estava afinando a lira para o casamento da tia comigo. A tia riu-se; eu, que queria as boas graças dela, não podia deixar de rir também, e o caso foi matéria de conversação por uma semana; mas já então o meu amor à outra tinha atingido ao cume. Soube, pouco depois, que Maria Cora vivia separada do marido. Tinham casado oito anos antes, por verdadeira paixão. Viveram felizes cinco. Um dia, sobreveio uma aventura do marido que destruiu a paz do casal. João da Fonseca apaixonou-se por uma figura de circo, uma chilena que voava em cima do cavalo, Dolores, e deixou a estância para ir atrás dela. Voltou seis meses depois, curado do amor, mas curado à força, porque a aventureira se enamorou do redator de um jornal, que não tinha vintém, e por ele abandonou Fonseca e a sua prataria. A esposa tinha jurado não aceitar mais o esposo, e tal foi a declaração que lhe fez quando ele apareceu na estância. — Tudo está acabado entre nós; vamos desquitar-nos. João da Fonseca teve um primeiro gesto de acordo; era um quadragenário orgulhoso, para quem tal proposta era de si mesma uma ofensa. Durante uma noite tratou dos preparativos para o desquite; mas, na seguinte manhã, a vista das graças da esposa novamente o comoveram. Então, sem tom implorativo, antes como quem lhe perdoava, entendeu dizer-lhe que deixasse passar uns seis meses. Se ao fim de seis meses, persistisse o sentimento atual que inspirava a proposta do desquite, este se faria. Maria Cora não queria aceitar a emenda, mas a tia, que residia em Porto Alegre e fora passar algumas semanas na estância, interveio com boas palavras. Antes de três meses estavam reconciliados. — João, disse-lhe a mulher no dia seguinte ao da reconciliação, você deve ver que o meu amor é maior que o meu ciúme, mas fica entendido que este caso da nossa vida é único. Nem você me fará outra, nem eu lhe perdoarei nada mais.
João da Fonseca achava-se então em um renascimento do delírio conjugal; respondeu à mulher jurando tudo e mais alguma coisa. Aos quarenta anos, concluiu ele, não se fazem duas aventuras daquelas, e a minha foi de doer. Você verá, agora é para sempre. A vida recomeçou tão feliz, como dantes, — ele dizia que mais. Com efeito, a paixão da esposa era violenta, e o marido tornou a amá-la como outrora. Viveram assim dois anos. Ao fim desse tempo, os ardores do marido haviam diminuído, alguns amores passageiros vieram meter-se entre ambos. Maria Cora, ao contrário do que lhe dissera, perdoou essas faltas, que aliás não tiveram a extensão nem o vulto da aventura Dolores. Os desgostos, entretanto, apareceram e grandes. Houve cenas violentas. Ela parece que chegou mais de uma vez a ameaçar que se mataria; mas, posto não lhe faltasse o preciso ânimo, não fez tentativa nenhuma, a tal ponto lhe doía deixar a própria causa do mal, que era o marido. João da Fonseca percebeu isto mesmo, e acaso explorou a fascinação que exercia na mulher.
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Uma circunstância política veio complicar esta situação moral. João da Fonseca era pelo lado da revolução, dava-se com vários dos seus chefes, e pessoalmente detestava alguns dos contrários. Maria Cora, por laços de família, era adversa aos federalistas. Esta oposição de sentimentos não seria bastante para separá-los, nem se pode dizer que, por si mesma, azedasse a vida dos dois. Embora a mulher, ardente em tudo, não o fosse menos em condenar a revolução, chamando nomes crus aos seus chefes e oficiais; embora o marido, também excessivo, replicasse com igual ódio, os seus arrufos políticos apenas aumentariam os domésticos, e provavelmente não passariam dessa troca de conceitos, se uma nova Dolores, desta vez Prazeres, e não chilena nem saltimbanca, não revivesse os dias amargos de outro tempo. Prazeres era ligada ao partido da revolução, não só pelos sentimentos, como pelas relações da vida com um federalista. Eu a conheci pouco depois, era bela e airosa; João da Fonseca era também um homem gentil e sedutor. Podiam amar-se fortemente, e assim foi. Vieram incidentes, mais ou menos graves, até que um decisivo determinou a separação do casal. Já cuidavam disto desde algum tempo, mas a reconciliação não seria impossível, apesar da palavra de Maria Cora, graças à intervenção da tia; esta havia insinuado à sobrinha que residisse três ou quatro meses no Rio de Janeiro ou em S.Paulo. Sucedeu, porém, uma coisa triste de dizer. O marido, em um momento de desvario, ameaçou a mulher com o rebenque. Outra versão diz que ele tentara esganá-la. Quero crer que a verídica é a primeira, e que a segunda foi inventada para tirar à violência de João da Fonseca o que pudesse haver deprimente e vulgar. Maria Cora não disse mais uma só palavra ao marido. A separação foi imediata; a mulher veio com a tia para o Rio de Janeiro, depois de arranjados amigavelmente os interesses pecuniários. Demais, a tia era rica. João da Fonseca e Prazeres ficaram vivendo juntos uma vida de aventuras que não importa escrever aqui. Só uma coisa interessa diretamente à minha narração. Tempos depois da separação do casal, João da Fonseca estava alistado entre os revolucionários. A paixão política, posto que forte, não o levaria a pegar em armas, se não fosse uma espécie de desafio da parte de Prazeres; assim correu entre os amigos dele, mas ainda este ponto é obscuro. A versão é que ela, exasperada com o resultado de alguns combates, disse ao estancieiro que iria, disfarçada em homem, vestir farda de soldado e bater-se pela revolução. Era capaz disto; o amante disse-lhe que era uma loucura, ela acabou propondo-lhe que, nesse caso, fosse ele bater-se em vez dela; era uma grande prova de amor que lhe daria. — Não te tenho dado tantas? — Tem, sim; mas esta é a maior de todas, esta me fará cativa até à morte. — Então agora ainda não é até à morte? perguntou ele rindo. —Não. Pode ser que as coisas se passassem assim. Prazeres era, com efeito, uma mulher caprichosa e imperiosa, e sabia prender um homem por laços de ferro. O federalista, de quem se separou para acompanhar João da Fonseca, depois de fazer tudo para reavê-la, passou à campanha oriental, onde dizem que vive pobremente, encanecido e envelhecido vinte anos, sem querer saber de mulheres nem de política. João da Fonseca acabou cedendo; ela pediu para acompanhá-lo, e até bater-se, se fosse preciso; ele negoulho. A revolução triunfaria em breve, disse; vencidas as forças do governo, tornaria à estância, onde ela o esperaria.
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— Na estância, não, respondeu Prazeres; espero-te em Porto Alegre.
IV Não importa dizer o tempo que despendi nos inícios da minha paixão, mas não foi grande. A paixão cresceu rápida e forte. Afinal senti-me tão tomado dela que não pude mais guardá-la comigo, e resolvi declarar-lha uma noite; mas a tia, que usava cochilar desde as nove horas (acordava às quatro), daquela vez não pregou olho, e, ainda que o fizesse, é provável que eu não alcançasse falar; tinha a voz presa e na rua senti uma vertigem igual à que me deu a primeira paixão da minha vida. — Sr. Correia, não vá cair, disse a tia quando eu passei à varanda, despedindo-me. — Deixe estar, não caio. Passei mal a noite; não pude dormir mais de duas horas, aos pedaços, e antes das cinco estava em pé. — É preciso acabar com isto! exclamei. De fato, não parecia achar em Maria Cora mais que benevolência e perdão, mas era isso mesmo que a tornava apetecível. Todos os amores da minha vida tinham sido fáceis; em nenhum encontrei resistência, a nenhuma deixei com dor; alguma pena, é possível, e um pouco de recordação. Desta vez sentia-me tomado por ganchos de ferro. Maria Cora era toda vida; parece que, ao pé dela, as próprias cadeiras andavam e as figuras do tapete moviam os olhos. Põe nisso uma forte dose de meiguice e graça; finalmente, a ternura da tia fazia daquela criatura um anjo. É banal a comparação, mas não tenho outra. Resolvi cortar o mal pela raiz, não tornando ao Engenho Velho, e assim fiz por alguns dias largos, duas ou três semanas. Busquei distrair-me e esquecê-la, mas foi em vão. Comecei a sentir a ausência como de um bem querido; apesar disso, resisti e não tornei logo. Mas, crescendo a ausência, cresceu o mal, e enfim resolvi tornar lá uma noite. Ainda assim pode ser que não fosse, a não achar Maria Cora na mesma oficina da Rua da Quitanda, aonde eu fora acertar o relógio parado. — É freguês também? perguntou-me ao entrar. — Sou. — Vim acertar o meu. Mas, por que não tem aparecido? — É verdade, por que não voltou lá à casa? completou a tia. — Uns negócios, murmurei; mas, hoje mesmo contava ir lá. —Hoje não; vá amanhã, disse a sobrinha. Hoje vamos passar a noite fora. Pareceu-me ler naquela palavra um convite a amá-la de vez, assim como a primeira trouxera um tom que presumi ser de saudade. Realmente, no dia seguinte, fui ao Engenho Velho. Maria Cora acolheu-me com a mesma boa vontade de antes. O poeta lá estava e contou-me em verso os suspiros que a tia dera por mim. Entrei a freqüentá-las novamente e resolvi declarar tudo.
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Já acima disse que ela provavelmente percebera ou adivinhara o que eu sentia, como todas as mulheres; referi-me aos primeiros dias. Desta vez com certeza percebeu, nem por isso me repeliu. Ao contrário, parecia gostar de se ver querida, muito e bem. Pouco depois daquela noite escrevi-lhe uma carta e fui ao Engenho Velho. Achei-a um pouco retraída; a tia explicou-me que recebera notícias do Rio Grande que a afligiram. Não liguei isto ao casamento e busquei alegrá-la; apenas consegui vê-la cortês. Antes de sair, perto da varanda, entreguei-lhe a carta; ia a dizer-lhe: “Peço-lhe que leia”, mas a voz não saiu. Vi- a um pouco atrapalhada, e para evitar dizer o que melhor ia escrito, cumprimentei-a e enfiei pelo jardim. Pode imaginar-se a noite que passei, e o dia seguinte foi naturalmente igual, à medida que a outra noite vinha. Pois, ainda assim, não tornei à casa dela; resolvi esperar três ou quatro dias, não que ela me escrevesse logo, mas que pensasse nos termos da resposta. Que estes haviam de ser simpáticos, era certeza minha; as maneiras dela, nos últimos tempos, eram mais que afáveis, pareciam-me convidativas. Não cheguei, porém, aos quatro dias; mal pude esperar três. Na noite do terceiro fui ao Engenho Velho. Se disser que entrei trêmulo da primeira comoção, não minto. Achei-a ao piano, tocando para o poeta ouvir; a tia, na poltrona, pensava em não sei que, mas eu quase não a vi, tal a minha primeira alucinação. — Entre, Sr. Correia, disse esta; não caia em cima de mim. — Perdão... Maria Cora não interrompeu a música; ao ver-me chegar, disse: — Desculpe, se lhe não dou a mão, estou aqui servindo de musa a este senhor. Minutos depois, veio a mim, e estendeu-me a mão com tanta galhardia, que li nela a resposta, e estive quase a dar-lhe um agradecimento. Passaram-se alguns minutos, quinze ou vinte. Ao fim desse tempo, ela pretextou um livro, que estava em cima das músicas, e pediu-me para dizer se o conhecia; fomos ali ambos, e ela abriu-mo; entre as duas folhas estava um papel. — Na outra noite, quando aqui esteve, deu-me esta carta; não podia dizer-me o que tem dentro? — Não adivinha? — Posso errar na adivinhação. — É isso mesmo. — Bem, mas eu sou uma senhora casada, e nem por estar separada do meu marido deixo de estar casada. O senhor ama-me, não é? Suponha, pelo melhor, que eu também o amo; nem por isso deixo de estar casada. Dizendo isto, entregou-me a carta; não fora aberta. Se estivéssemos sós, é possível que eu lha lesse, mas a presença de estranhos impedia-me este recurso. Demais, era desnecessário; a resposta de Maria Cora era definitiva ou me pareceu tal. Peguei na carta. e antes de a guardar comigo: — Não quer então ler?
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— Não. — Nem para ver os termos? — Não. — Imagine que lhe proponho ir combater contra seu marido, matá-lo e voltar, disse eu cada vez mais tonto. —Propõe isto? — Imagine. — Não creio que ninguém me ame com tal força, concluiu sorrindo. Olhe, que estão reparando em nós. Dizendo isto, separou-se de mim, e foi ter com a tia e o poeta. Eu fiquei ainda alguns segundos com o livro na mão, como se deveras o examinasse, e afinal deixei-o. Vim sentar-me defronte dela. Os três conversavam de coisas do Rio Grande, de combates entre federalistas e legalistas, e da vária sorte deles. O que eu então senti não se escreve; pelo menos, não o escrevo eu, que não sou romancista. Foi uma espécie de vertigem, um delírio, uma cena pavorosa e lúcida, um combate e uma glória. Imaginei-me no campo, entre uns e outros, combatendo os federalistas, e afinal matando João da Fonseca, voltando e casando-me com a viúva. Maria Cora contribuía para esta visão sedutora; agora, que me recusara a carta, pareciame mais bela que nunca, e a isto acrescia que se não mostrava zangada nem ofendida, tratava-me com igual carinho que antes, creio até que maior. Disto podia sair uma impressão dupla e contrária, — uma de aquiescência tácita, outra de indiferença, mas eu só via a primeira, e saí de lá completamente louco. O que então resolvi foi realmente de louco. As palavras de Maria Cora: “Não creio que ninguém me ame com tal força” — soavam-me aos ouvidos, como um desafio. Pensei nelas toda a noite, e no dia seguinte fui ao Engenho Velho; logo que tive ocasião de jurar-lhe a prova, fi-lo. — Deixo tudo o que me interessa, a começar pela paz, com o único fim de lhe mostrar que a amo, e a quero só e santamente para mim. Vou combater a revolta. Maria Cora fez um gesto de deslumbramento. Daquela vez percebi que realmente gostava de mim, verdadeira paixão, e se fosse viúva, não casava com outro. Jurei novamente que ia para o sul. Ela, comovida, estendeu-me a mão. Estávamos em pleno romantismo. Quando eu nasci, os meus não acreditavam em outras provas de amor, e minha mãe contava-me os romances em versos de cavaleiros andantes que iam à Terra Santa libertar o sepulcro de Cristo por amor da fé e da sua dama. Estávamos em pleno romantismo.
V Fui para o sul. Os combates entre legalistas e revolucionários eram contínuos e sangrentos, e a notícia deles contribuiu a animar-me. Entretanto, como nenhuma paixão política me animava a entrar na luta, força é confessar que por um instante me senti abatido e hesitei. Não era medo da morte, podia ser amor da vida, que é um sinônimo; mas, uma ou outra coisa, não foi tal nem tamanha que fizesse durar por muito tempo a hesitação. Na cidade do Rio Grande encontrei um amigo, a quem eu por carta do Rio de Janeiro dissera muito reservadamente que ia lá por motivos políticos. Quis saber quais. — Naturalmente são reservados, respondi tentando sorrir.
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— Bem; mas uma coisa creio que posso saber, uma só, porque não sei absolutamente o que pense a tal respeito, nada havendo antes que me instrua. De que lado estás, legalistas ou revoltosos? — É boa! Se não fosse dos legalistas, não te mandaria dizer nada; viria às escondidas. — Vens com alguma comissão secreta do marechal? — Não. Não me arrancou então mais nada, mas eu não pude deixar de lhe confiar os meus projetos, ainda que sem os seus motivos. Quando ele soube que aqueles eram alistar-me entre os voluntários que combatiam a revolução, não pôde crer em mim, e talvez desconfiasse que efetivamente eu levava algum plano secreto do presidente. Nunca da minha parte ouviu nada que pudesse explicar semelhante passo. Entretanto, não perdeu tempo em despersuadir-me; pessoalmente era legalista e falava dos adversários com ódio e furor. Passado o espanto, aceitou o meu ato, tanto mais nobre quanto não era inspirado por sentimento de partido. Sobre isto disse-me muita palavra bela e heróica, própria a levantar o ânimo de quem já tivesse tendência para a luta. Eu não tinha nenhuma, fora das razões particulares; estas, porém, eram agora maiores.
Justamente acabava de receber uma carta da tia de Maria Cora, dando-me notícias delas, e recomendações da sobrinha, tudo com alguma generalidade e certa simpatia verdadeira. Fui a Porto Alegre, alistei-me e marchei para a campanha. Não disse a meu respeito nada que pudesse despertar a curiosidade de ninguém, mas era difícil encobrir a minha condição, a minha origem, a minha viagem com o plano de ir combater a revolução. Fez -se logo uma lenda a meu respeito. Eu era um republicano antigo, riquíssimo, entusiasta, disposto a dar pela República mil vidas, se as tivesse, e resoluto a não poupar a única. Deixei dizer isto e o mais, e fui. Como eu indagasse das forças revolucionárias com que estaria João da Fonseca, alguém quis ver nisto uma razão de ódio pessoal; também não faltou quem me supusesse espião dos rebeldes, que ia pôr-me em comunicação secreta com aquele. Pessoas que sabiam das relações dele com a Prazeres, imaginavam que era um antigo amante desta que se queria vingar dos amores dele. Todas aquelas suposições morreram, para só ficar a do meu entusiasmo político; a da minha espionagem ia-me prejudicando; felizmente, não passou de duas cabeças e de uma noite. Levava comigo um retrato de Maria Cora; alcançara-o dela mesmo, uma noite, pouco antes do meu embarque, com uma pequena dedicatória cerimoniosa. Já disse que estava em pleno romantismo; dado o primeiro passo, os outros vieram de si mesmos. E agora juntai a isto o amor-próprio, e compreendereis que de simples cidadão indiferente da capital saísse um guerreiro áspero da campanha rio-grandense. Nem por isso conto combates, nem escrevo para falar da revolução, que não teve nada comigo, por si mesma, senão pela ocasião que me dava, e por algum golpe que lhe desfechei na estreita área da minha ação. João da Fonseca era o meu rebelde. Depois de haver tomado parte no combate de Sarandi e Coxilha Negra, ouvi que o marido de Maria Cora fora morto, não sei em que recontro; mais tarde deram-me a notícia de estar com as forças de Gumercindo, e também que fora feito prisioneiro e seguira para Porto Alegre; mas ainda isto não era verdade. Disperso, com dois camaradas, encontrei um dia um regimento legal que ia em defesa da Encruzilhada, investida ultimamente por uma força dos federalistas; apresen-
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tei-me ao comandante e segui. Aí soube que João da Fonseca estava entre essa força; deram-me todos os sinais dele, contaram-me a história dos amores e a separação da mulher. A idéia de matá- lo no turbilhão de um combate tinha algo fantástico; nem eu sabia se tais duelos eram possíveis em semelhantes ocasiões, quando a força de cada homem tem de somar com a de toda uma força única e obediente a uma só direção. Também me pareceu, mais de uma vez, que ia cometer um crime pessoal, e a sensação que isto me dava, podeis crer que não era leve nem doce; mas a figura de Maria Cora abraçava-me e absolvia com uma bênção de felicidades. Atirei-me de vez. Não conhecia João da Fonseca; além dos sinais que me haviam dado, tinha de memória um retrato dele que vira no Engenho Velho; se as feições não estivessem mudadas, era provável que eu o reconhecesse entre muitos. Mas, ainda uma vez, seria este encontro possível? Os combates em que eu entrara, já me faziam desconfiar que não era fácil, ao menos. Não foi fácil nem breve. No combate da Encruzilhada creio que me houve com a necessária intrepidez e disciplina, e devo aqui notar que eu me ia acostumando à vida da guerra civil. Os ódios que ouvia, eram forças reais. De um lado e outro batiam-se com ardor, e a paixão que eu sentia nos meus ia-se pegando em mim. Já lera o meu nome em uma ordem do dia. e de viva voz recebera louvores, que comigo não pude deixar de achar justos, e ainda agora tais os declaro. Mas vamos ao principal, que é acabar com isto.
Naquele combate achei-me um tanto como o herói de Stendhal na batalha de Waterloo11 ; a diferença é que o espaço foi menor. Por isso, e também porque não me quero deter em coisas de recordação fácil, direi somente que tive ocasião de matar em pessoa a João da Fonseca. Verdade é que escapei de ser morto por ele. Ainda agora trago na testa a cicatriz que ele me deixou. O combate entre nós foi curto. Se não parecesse romanesco demais, eu diria que João da Fonseca adivinhara o motivo e previra o resultado da ação. Poucos minutos depois da luta pessoal, a um canto da vila, João da Fonseca caiu prostrado. Quis ainda lutar, e certamente lutou um pouco; eu é que não consenti na desforra, que podia ser a minha derrota, se é que raciocinei; creio que não. Tudo o que fiz foi cego pelo sangue em que o deixara banhado, e surdo pelo clamor e tumulto do combate. Matava-se, gritava-se, vencia-se; em pouco ficamos senhores do campo. Quando vi que João da Fonseca morrera deveras, voltei ao combate por instantes; a minha ebriedade cessara um pouco, e os motivos primários tornaram a dominar-me, como se fossem únicos. A figura de Maria Cora apareceu-me como um sorriso de aprovação e perdão; tudo foi rápido. 6
Haveis de ter lido que ali se apreenderam três ou quatro mulheres. Uma destas era a Prazeres. Quando, acabado tudo, a Prazeres viu o cadáver do amante, fez uma cena que me encheu de ódio e de inveja. Pegou em si e deitou-se a abraçá-lo; as lágrimas que verteu, as palavras que disse, fizeram rir a uns; a outros, se não enterneceram, deram algum sentimento de admiração.
11 Referência ao romance A cartuxa de Parma / La chartreuse de Parme, onde o protagonista Fabrizzio del Dongo, indo reunir -se às forças do imperador francês Napoleão Bonaparte, encontra-se, subitamente, no meio de uma correria de soldados não identificados, que no dia seguinte descobre ter sido a batalha de Waterloo, onde o imperador foi derrotado fragorosamente pelos seus inimigos.
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Eu, como digo, achei-me tomado de inveja e ódio, mas também esse duplo sentimento desapareceu para não ficar nem admiração; acabei rindo. Prazeres, depois de honrar com dor a morte do amante, ficou sendo a federalista que já era; não vestia farda, como dissera ao desafiar João da Fonseca, quis ser prisioneira com os rebeldes e seguir com eles. É claro que não deixei logo as forças, bati-me ainda algumas vezes, mas a razão principal dominou, e abri mão das armas. Durante o tempo em que estive alistado, só escrevi duas cartas a Maria Cora, uma pouco depois de encetar aquela vida nova, — outra depois do combate da Encruzilhada; nesta não lhe contei nada do marido, nem da morte, nem sequer que o vira.
Unicamente anunciei que era provável acabasse brevemente a guerra civil. Em nenhuma das duas fiz a menor alusão aos meus sentimentos nem ao motivo do meu ato; entretanto, para quem soubesse deles, a carta era significativa. Maria Cora só respondeu à primeira das cartas, com serenidade, mas não com isenção. Percebia-se, — ou percebia-o eu, — que, não prometendo nada, tudo agradecia, e, quando menos, admirava. Gratidão e admiração podiam encaminhá-la ao amor. Ainda não disse, — e não sei como diga este ponto, — que na Encruzilhada, depois da morte de João da Fonseca, tentei degolá-lo; mas nem queria fazê-lo, nem realmente o fiz. O meu objeto era ainda outro e romanesco. Perdoa-me tu, realista sincero, há nisto também um pouco de realidade, e foi o que pratiquei, de acordo com o estado da minha alma: o que fiz foi cortar-lhe um molho de cabelos. Era o recibo da morte que eu levaria à viúva.
VI Quando voltei ao Rio de Janeiro, tinham já passado muitos meses do combate da Encruzilhada. O meu nome figurou não só em partes oficiais como em telegramas e correspondências, por mais que eu buscasse esquivar-me ao ruído e desaparecer na sombra. Recebi cartas de felicitações e de indagações. Não vim logo para o Rio de Janeiro, note-se; podia ter aqui alguma festa; preferi ficar em S. Paulo. Um dia, sem ser esperado, meti-me na estrada de ferro e entrei na cidade. Fui para a casa de pensão do Catete. Não procurei logo Maria Cora. Pareceu-me até mais acertado que a notícia da minha vinda lhe chegasse pelos jornais. Não tinha pessoa que lhe falasse; vexava-me ir eu mesmo a alguma redação contar o meu regresso do Rio Grande; não era passageiro de mar, cujo nome viesse em lista nas folhas públicas. Passaram dois dias; no terceiro, abrindo uma destas, dei com o meu nome. Dizia-se ali que viera de S. Paulo e estivera nas lutas do Rio Grande, citavam-se os combates, tudo com adjetivos de louvor; enfim, que voltava à mesma pensão do Catete. Como eu só contara alguma coisa ao dono da casa, podia ser ele o autor das notas; disse-me que não. Entrei a receber visitas pessoais. Todas queriam saber tudo; eu pouco mais disse que nada. Entre os cartões, recebi dois de Maria Cora e da tia, com palavras de boas-vindas. Não era preciso mais; restava-me ir agradecer-lhes, e dispus-me a isso; mas, no próprio dia em que resolvi ir ao Engenho Ve-
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lho, tive uma sensação de... De quê? Expliquem, se podem, o acanhamento que me deu a lembrança do marido de Maria Cora, morto às minha mãos. A sensação que ia ter diante dela tolheu-me inteiramente. Sabendo-se qual foi o móvel principal da minha ação militar, mal se compreende aquela hesitação; mas, se considerares que, por mais que me defendesse do marido e o matasse para não morrer, ele era sempre o marido, terás entendido o mal-estar que me fez adiar a visita. Afinal, peguei em mim e fui à casa dela. Maria Cora estava de luto. Recebeu -me com bondade, e repetiu-me, como a tia, as felicitações escritas. Falamos da guerra civil, dos costumes do Rio Grande, um pouco de política, e mais nada. Não se disse de João da Fonseca. Ao sair de lá, perguntei a mim mesmo se Maria Cora estaria disposta a casar comigo. “Não me parece que recuse, embora não lhe ache maneiras especiais. Creio até que está menos afável que dantes... Terá mudado?” Pensei assim, vagamente. Atribuí a alteração ao estado moral da viuvez; era natural. E continuei a freqüentá-la, disposto a deixar passar a primeira fase do luto para lhe pedir formalmente a mão. Não tinha que fazer declarações novas; ela sabia tudo. Continuou a receber-me bem. Nenhuma pergunta me fez sobre o marido, a tia também não, e da própria revolução não se falou mais. Pela minha parte, tornando à situação anterior, busquei não perder tempo, fiz-me pretendente com todas as maneiras do ofício. Um dia, perguntei-lhe se pensava em tornar ao Rio Grande. — Por ora, não. — Mas irá? — É possível; não tenho plano nem prazo marcado; é possível. Eu, depois de algum silêncio, durante o qual olhava interrogativamente para ela, acabei por inquirir se antes de ir, caso fosse, não alteraria nada em sua vida. — A minha vida está tão alterada.. . Não me entendera; foi o que supus. Tratei de me explicar melhor, e escrevi uma carta em que lhe lembrava a entrega e a recusa da primeira e lhe pedia francamente a mão. Entreguei a carta, dois dias depois, com estas palavras: — Desta vez não recusará ler-me. Não recusou, aceitou a carta. Foi à saída, à porta da sala. Creio até que lhe vi certa comoção de bom agouro. Não me respondeu por escrito, como esperei. Passados três dias, estava tão ansioso que resolvi ir ao Engenho Velho. Em caminho imaginei tudo; que me recusasse, que me aceitasse, que me adiasse, e já me contentava com a última hipótese, se não houvesse de ser a segunda. Não a achei em casa; tinha ido passar alguns dias na Tijuca. Saí de lá aborrecido.
Pareceu -me que não queria absolutamente casar; mas então era mais simples dizê-lo ou escrevê-lo. Esta consideração trouxe-me esperanças novas.
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Tinha ainda presentes as palavras que me dissera, quando me devolveu a primeira carta, e eu lhe falei da minha paixão: ‘’Suponha que eu o amo; nem por isso deixo de ser uma senhora casada”. Era claro que então gostava de mim, e agora mesmo não havia razão decisiva para crer o contrário, embora a aparência fosse um tanto fria. Ultimamente, entrei a crer que ainda gostava, um pouco por vaidade, um pouco por simpatia, e não sei se por gratidão também; tive alguns vestígios disso. Não obstante, não me deu resposta à segunda carta. Ao voltar da Tijuca, vinha menos expansiva, acaso mais triste. Tive eu mesmo de lhe falar na matéria; a resposta foi que por ora, estava disposta a não casar. — Mas um dia ...? perguntei depois de algum silêncio. — Estarei velha. — Mas então... será muito tarde? — Meu marido pode não estar morto. Espantou-me esta objeção. — Mas a senhora está de luto. — Tal foi a notícia que li e me deram; pode não ser exata. Tenho visto desmentir outras que se reputavam certas. — Quer certeza absoluta? perguntei. Eu posso dá-la. Maria Cora empalideceu. Certeza. Certeza de quê? Queria que lhe contasse tudo, mas tudo. A situação era tão penosa para mim que não hesitei mais, e, depois de lhe dizer que era intenção minha não lhe contar nada, como não contara a ninguém, ia fazê-lo, unicamente para obedecer à intimação. E referi o combate, as suas fases todas, os riscos, as palavras, finalmente a morte de João da Fonseca. A ânsia com que me ouviu foi grande, e não menor o abatimento final. Ainda assim, dominou-se, e perguntou-me: — Jura que me não está enganando? — Para que a enganar? O que tenho feito é bastante para provar que sou sincero. Amanhã, trago-lhe outra prova, se é preciso mais alguma. Levei-lhe os cabelos que cortara ao cadáver. Contei-lhe, — e confesso que o meu fim foi irritá-la contra a memória do defunto, — contei-lhe o desespero da Prazeres. Descrevi essa mulher e as suas lágrimas. Maria Cora ouviu-me com os olhos grandes e perdidos; estava ainda com ciúmes. Quando lhe mostrei os cabelos do marido, atirou-se a eles, recebeu-os, beijou-os, chorando, chorando, chorando... Entendi melhor sair e sair para sempre. Dias depois recebi a resposta à minha carta; recusava casar. Na resposta havia uma palavra que é a única razão de escrever esta narrativa: “Compreende que eu não podia aceitar a mão do homem que, embora lealmente, matou meu marido”. Comparei-a àquela outra que me dissera antes, quando eu me propunha sair a combate, matá-lo e voltar: “Não creio que ninguém me ame com tal força”. E foi essa palavra que me levou à guerra. Maria Cora vive agora reclusa; de costume manda dizer uma missa por alma do marido, no aniversário do combate da Encruzilhada. Nunca mais a vi; e, coisa menos difícil, nunca mais esqueci de dar corda ao relógio. MARCHA FÚNEBRE O deputado Cordovil não podia pregar olho uma noite de agosto de 186... Viera cedo do Cassino Fluminense, depois da retirada do imperador, e durante o baile não tivera o mínimo incômodo moral nem
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físico. Ao contrário, a noite foi excelente, tão excelente que um inimigo seu, que padecia do coração, faleceu antes das dez horas, e a notícia chegou ao Cassino pouco depois das onze. Naturalmente concluis que ele ficou alegre com a morte do homem, espécie de vingança que os corações adversos e fracos tomam em falta de outra. Digo-te que concluis mal; não foi alegria, foi desabafo. A morte vinha de meses, era daquelas que não acabam mais, e moem, mordem, comem, trituram a pobre criatura humana. Cordovil sabia dos padecimentos do adversário. Alguns amigos, para o consolar de antigas injúrias, iam contar-lhe o que viam ou sabiam do enfermo, pregado a uma cadeira de braços, vivendo as noites horrivelmente, sem que as auroras lhe trouxessem esperanças, nem as tardes desenganos. Cordovil pagava-lhes com alguma palavra de compaixão, que o alvissareiro adotava, e repetia, e era mais sincera naquele que neste. Enfim acabara de padecer; daí o desabafo. Este sentimento pegava com a piedade humana. Cordovil, salvo em política, não gostava do mal alheio. Quando rezava, ao levantar da cama: “Padre Nosso, que estás no céu, santificado seja o teu nome, venha a nós o teu reino, seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu; o pão nosso de cada dia nos dá hoje; perdoa as nossas dívidas, como nós perdoamos aos nossos devedores”... não imitava um de seus amigos que rezava a mesma prece, sem todavia perdoar aos devedores, como dizia de língua; esse chegava a cobrar além do que eles lhe deviam, isto é, se ouvia maldizer de alguém, decorava tudo e mais alguma coisa e ia repeti-lo a outra parte. No dia seguinte, porém, a bela oração de Jesus tornava a sair dos lábios da véspera com a mesma caridade de ofício. Cordovil não ia nas águas desse amigo; perdoava deveras. Que entrasse no perdão um tantinho de preguiça, é possível, sem aliás ser evidente. Preguiça amamenta muita virtude. Sempre é alguma coisa minguar força à ação do mal. Não esqueça que o deputado só gostava do mal alheio em política, e o inimigo morto era inimigo pessoal. Quanto à causa da inimizade, não a sei eu, e o nome do homem acabou com a vida. — Coitado! descansou, disse Cordovil. Conversaram da longa doença do finado.Também falaram das várias mortes deste mundo, dizendo Cordovil que a todas preferia a de César, não por motivo do ferro, mas por inesperada e rápida. — Tu quoque12? perguntou-lhe um colega rindo. Ao que ele, apanhando a alusão, replicou: — Eu, se tivesse um filho, quisera morrer às mãos dele. O parricídio, estando fora do comum, faria a tragédia mais trágica. 7
Tudo foi assim alegre. Cordovil saiu do baile com sono, e foi cochilando no carro, apesar do mal calçado das ruas. Perto de casa, sentiu parar o carro e ouviu rumor de vozes. Era o caso de um defunto, que duas praças de polícia estavam levantando do chão. — Assassinado? perguntou ele ao lacaio, que descera da almofada para saber o que era. — Não sei, não, senhor. — Pergunta o que é. 12 Alusão à morte do general romano Júlio César, assassinado nas escadarias do Senado. A primeira punhalada foi dada por seu filho adotivo Brutus, ao qual César perguntou: “Até tu, Brutus?” (Quoque tu, Brutus?”)
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— Este moço sabe como foi, disse o lacaio, indicando um desconhecido, que falava a outros. O moço aproximou-se da portinhola, antes que o deputado recusasse ouvi-lo. Referiu-lhe então em poucas palavras o acidente a que assistira. — Vínhamos andando, ele adiante, eu atrás. Parece que assobiava uma polca. Indo a atravessar a rua para o lado do Mangue, vi que estacou o passo, a modo que torceu o corpo, não sei bem, e caiu sem sentidos. Um doutor, que chegou logo, descendo de um sobradinho, examinou o homem e disse que “morreu de repente”. Foi-se juntando gente, a patrulha levou muito tempo a chegar. Agora pegou dele. Quer ver o defunto? — Não, obrigado. Já se pode passar? — Pode. — Obrigado. Vamos, Domingos. Domingos trepou à almofada, o cocheiro tocou os animais, e o carro seguiu até à Rua de S. Cristóvão, onde morava Cordovil. Antes de chegar à casa , Cordovil foi pensando na morte do desconhecido. Em si mesma, era boa; comparada à do inimigo pessoal, excelente. Ia a assobiar, cuidando sabe Deus em que delícia passada ou em que esperança futura; revivia o que vivera, ou antevia o que podia viver, senão quando, a morte pegou da delícia ou da esperança, e lá se foi o homem ao eterno repouso. Morreu sem dor, ou, se alguma teve, foi acaso brevíssima, como um relâmpago que deixa a escuridão mais escura.
Então pôs o caso em si. Se lhe tem acontecido no Cassino a morte do Aterrado? Não seria dançando; os seus quarenta anos não dançavam. Podia até dizer que ele só dançou até aos vinte. Não era dado a moças, tivera um afeição única na vida, — aos vinte e cinco anos, casou e enviuvou ao cabo de cinco semanas para não casar mais. Não é que lhe faltassem noivas, — mormente depois de perder o avô, que lhe deixou duas fazendas. Vendeu-as ambas e passou a viver consigo, fez duas viagens à Europa, continuou a política e a sociedade. Ultimamente parecia enojado de uma e de outra, mas não tendo em que matar o tempo, não abriu mão delas. Chegou a ser ministro uma vez, creio que da Marinha, não passou de sete meses. Nem a pasta lhe deu glória, nem a demissão desgosto. Não era ambicioso, e mais puxava para a quietação que para o movimento. Mas se lhe tivesse sucedido morrer de repente no Cassino, ante uma valsa ou quadrilha, entre duas portas? Podia ser muito bem. Cordovil compôs de imaginação a cena, ele caído de bruços ou de costas, o prazer turbado, a dança interrompida... e dali podia ser que não; um pouco de espanto apenas, outro de susto, os homens animando as damas, a orquestra continuando por instantes a oposição do compasso e da confusão. Não faltariam braços que o levassem para um gabinete, já morto, totalmente morto. — Tal qual a morte de César, ia dizendo consigo. E logo emendou:
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— Não, melhor que ela; sem ameaça, nem armas, nem sangue, uma simples queda e o fim. Não sentiria nada. Cordovil deu consigo a rir ou a sorrir, alguma coisa que afastava o terror e deixava a sensação da liberdade. Em verdade, antes a morte assim que após longos dias ou longos meses e anos, como o adversário que perdera algumas horas antes. Nem era morrer; era um gesto de chapéu, que se perdia no ar com a própria mão e a alma que lhe dera movimento. Um cochilo e o sono eterno. Achava-lhe um só defeito, — o aparato. Essa morte no meio de um baile defronte do imperador, ao som de Strauss, contada, pintada, enfeitada nas folhas públicas, essa morte pareceria de encomenda. Paciência, uma vez que fosse repentina. Também pensou que podia ser na Câmara, no dia seguinte, ao começar o debate do orçamento. Tinha a palavra; já andava cheio de algarismos e citações. Não quis imaginar o caso, não valia a pena; mas o caso teimou e apareceu de si mesmo. O salão da Câmara, em vez do do Cassino, sem damas ou com poucas, nas tribunas. Vasto silêncio. Cordovil em pé começaria o discurso, depois de circular os olhos pela casa, fitar o ministro e fitar o presidente: “Releve-me a Câmara que lhe tome algum tempo, serei breve, buscarei ser justo...” Aqui uma nuvem lhe taparia os olhos, a língua pararia, o coração também, e ele cairia de golpe no chão. Câmara, galerias, tribunas ficariam assombradas. Muitos deputados correriam a erguê-lo; um, que era médico, verificaria a morte; não diria que fora de repente, como o do sobradinho do Aterrado, mas por outro estilo mais técnico. Os trabalhos seriam suspensos, depois de algumas palavras do presidente e escolha da comissão que acompanharia o finado ao cemitério ... Cordovil quis rir da circunstância de imaginar além da morte, o movimento e o saimento, as próprias notícias dos jornais, que ele leu de cor e depressa. Quis rir, mas preferia cochilar; os olhos é que, estando já perto de casa e da cama, não quiseram desperdiçar o sono, e ficaram arregalados. Então a morte, que ele imaginara pudesse ter sido no baile, antes de sair, ou no dia seguinte em plena sessão da Câmara, apareceu ali mesmo no carro. Supôs ele que, ao abrirem-lhe a portinhola, dessem com o seu cadáver. Sairia assim de uma noite ruidosa para outra pacífica, sem conversas, nem danças, nem encontros, sem espécie alguma de luta ou resistência. O estremeção que teve fez-lhe ver que não era verdade. Efetivamente, o carro entrou na chácara, estacou, e Domingos saltou da almofada para vir abrir-lhe a portinhola. Cordovil desceu com as pernas e a alma vivas, e entrou pela porta lateral, onde o aguardava com um castiçal e vela acesa o escravo Florindo. Subiu a escada, e os pés sentiam que os degraus eram deste mundo; se fossem do outro, desceriam naturalmente. Em cima, ao entrar no quarto, olhou para a cama; era a mesma dos sonos quietos e demorados. — Veio alguém? — Não, senhor, respondeu o escravo distraído, mas corrigiu logo: Veio, sim, senhor; veio aquele doutor que almoçou com meu senhor domingo passado. — Queria alguma coisa? — Disse que vinha dar a meu senhor uma boa notícia, e deixou este bilhete — que eu botei ao pé da cama. O bilhete referia a morte do inimigo; era de um dos amigos que usavam contar-lhe a marcha da moléstia. Quis ser o primeiro a anunciar o desenlace, um alegrão, com um abraço apertado. Enfim, morrera o patife. Não disse a coisa assim por esses termos claros, mas os que empregou vinham a dar neles, acres-
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cendo que não atribuiu esse único objeto à visita. Vinha passar a noite; só ali soube que Cordovil fora ao Cassino. Ia a sair, quando lhe lembrou a morte e pediu ao Florindo que lhe deixasse escrever duas linhas. Cordovil entendeu o significado, e ainda uma vez lhe doeu a agonia do outro. Fez um gesto de melancolia e exclamou a meia voz: — Coitado! Vivam as mortes súbitas! Florindo, se referisse o gesto e a frase ao doutor do bilhete, talvez o fizesse arrepender da canseira. Nem pensou nisso; ajudou o senhor a preparar-se para dormir, ouviu as últimas ordens e despediu-se. Cordovil deitou-se. — Ah! suspirou ele estirando o corpo cansado. Teve então uma idéia, a de amanhecer morto. Esta hipótese, a melhor de todas, porque o apanharia meio morto, trouxe consigo mil fantasias que lhe arredaram o sono dos olhos. Em parte, era a repetição das outras, a participação à Câmara, as palavras do presidente, comissão para o saimento, e o resto. Ouviu lástimas de amigos e de fâmulos, viu notícias impressas, todas lisonjeiras ou justas. Chegou a desconfiar que era já sonho. Não era. Chamou-se ao quarto, à cama, a si mesmo: estava acordado. A lamparina deu melhor corpo à realidade. Cordovil espancou as idéias fúnebres e esperou que as alegres tomassem conta dele e dançassem até cansá-lo. Tentou vencer uma visão com outra. Fez até uma coisa engenhosa, convocou os cinco sentidos, porque a memória de todos eles era aguda e fresca; foi assim evocando lances e rasgos longamente extintos. Gestos, cenas de sociedade e de família, panoramas, repassou muita coisa vista, com o aspecto do tempo diverso e remoto. Deixara de comer acepipes que outra vez lhe sabiam, como se estivesse agora a mastigá-los. Os ouvidos escutavam passos leves e pesados, cantos joviais e tristes, e palavras de todos os feitios. O tacto, o olfato, todos fizeram o seu ofício, durante um prazo que ele não calculou. Cuidou de dormir e cerrou bem os olhos. Não pôde, nem do lado direito, nem do esquerdo, de costas nem de bruços. Ergueu-se e foi ao relógio; eram três horas. Insensivelmente levou-o à orelha a ver se estava parado; estava andando, dera-lhe corda. Sim, tinha tempo de dormir um bom sono; deitou-se, cobriu a cabeça para não ver a luz. Ah! foi então que o sono tentou entrar, calado e surdo, todo cautelas, como seria a morte, se quisesse levá-lo de repente, para nunca mais. Cordovil cerrou os olhos com força, e fez mal, porque a força acentuou a vontade que tinha de dormir; cuidou de os afrouxar, e fez bem. O sono, que ia a recuar, tornou atrás, e veio estirar-se ao lado deles, passando -lhe aqueles braços leves e pesados, a um tempo, que tiram à pessoa todo movimento. Cordovil os sentia, e com os seus quis conchegá-los ainda mais... A imagem não é boa, mas não tenho outra à mão nem tempo de ir buscá-la. Digo só o resultado do gesto, que foi arredar o sono de si, tão aborrecido ficou este reformador de cansados. — Que terá ele hoje contra mim? perguntaria o sono, se falasse.
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Tu sabes que ele é mudo por essência. Quando parece que fala é o sonho que abre a boca à pessoa; ele não, ele é a pedra, e ainda a pedra fala, se lhe batem, como estão fazendo agora os calceteiros da minha rua. Cada pancada acorda na pedra um som, e a regularidade do gesto torna aquele som tão pontual que parece a alma de um relógio. Vozes de conversa ou de pregão, rodas de carro, passos de gente, uma janela batida pelo vento, nada dessas coisas que ora ouço, animava então a rua e a noite de Cordovil. Tudo era propício ao sono. Cordovil ia finalmente dormir, quando a idéia de amanhecer morto apareceu outra vez. O sono recuou e fugiu. Esta alternativa durou muito tempo. Sempre que o sono ia a grudar-lhe os olhos, a lembrança da morte os abria, até que ele sacudiu o lençol e saiu da cama. Abriu uma janela e encostou-se ao peitoril. O céu queria clarear, alguns vultos iam passando na rua, trabalhadores e mercadores que desciam para o centro da cidade. Cordovil sentiu um arrepio; não sabendo se era frio ou medo, foi vestir um camisão de chita, e voltou para a janela. Parece que era frio, porque não sentia mais nada. A gente continuava a passar, o céu a clarear, um assobio da estrada de ferro deu sinal de trem que ia partir. Homens e coisas vinham do descanso; o céu fazia economia de estrelas, apagando-as à medida que o sol ia chegando para o seu ofício. Tudo dava idéia de vida. Naturalmente a idéia da morte foi recuando e desapareceu de todo, enquanto o nosso homem, que suspirou por ela no Cassino, que a desejou para o dia seguinte na Câmara dos Deputados, que a encarou no carro, voltou-lhe as costas quando a viu entrar com o sono, seu irmão mais velho, — ou mais moço não sei. Quando veio a falecer, muitos anos depois, pediu e teve a morte, não súbita, mas vagarosa, a morte de um vinho filtrado, que sai impuro de uma garrafa para entrar purificado em outra; a borra iria; para o cemitério. Agora é que lhe via a filosofia; em ambas as garrafas era sempre o vinho que ia ficando, até passar inteiro e pingado para a segunda. Morte súbita não acabava de entender o que era.
UM CAPITÃO DE VOLUNTÁRIOS Indo a embarcar para a Europa, logo depois da proclamação da República, Simão de Castro fez inventário das cartas e apontamentos; rasgou tudo. Só lhe ficou a narração que ides ler; entregou-a a um amigo para imprimi-la quando ele estivesse barra fora. O amigo não cumpriu a recomendação por achar na história alguma coisa que podia ser penosa, e assim lho disse em carta. Simão respondeu que estava por tudo o que quisesse; não tendo vaidades literárias, pouco se lhe dava de vir ou não a público. Agora que os dois faleceram, e não há igual escrúpulo, dá-se o manuscrito ao prelo. Éramos dois, elas duas. Os dois íamos ali por visita, costume, desfastio, e finalmente por amizade. Fiquei amigo do dono da casa, ele meu amigo. As tardes, sobre o jantar, — jantava-se cedo em 1866, — ia ali fumar um charuto. O sol ainda entrava pela janela, onde se via um morro com casas em cima. A janela oposta dava para o mar. Não digo a rua nem o bairro; a cidade posso dizer que era o Rio de Janeiro. Ocultarei o nome do meu amigo, ponhamos uma letra, X... Ela, uma delas, chamava-se Maria.
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Quando eu entrava, já ele estava na cadeira de balanço. Os móveis da sala eram poucos, os ornatos raros, tudo simples. X... estendia-me a mão larga e forte; eu ia sentar-me ao pé da janela, olho na sala, olho na rua. Maria, ou já estava ou vinha de dentro. Éramos nada um para o outro; ligava-nos unicamente a afeição de X... Conversávamos; eu saía para casa ou ia passear, eles ficavam e iam dormir. Algumas vezes jogávamos cartas, às noites, e, para o fim do tempo, era ali que eu passava a maior parte destas. Tudo em X... me dominava. A figura primeiro. Ele robusto, eu franzino; a minha graça feminina, débil, desaparecia ao pé do garbo varonil dele, dos seus ombros largos, cadeiras largas, jarrete13 forte e o pé sólido que, andando, batia rijo no chão. Dai-me um bigode escasso e fino; vede nele as suíças longas, espessas e encaracoladas, e um dos seus gestos habituais, pensando ou escutando, era passar os dedos por elas, encaracolando-as sempre. Os olhos completavam a figura, não só por serem grandes e belos, mas porque riam mais e melhor que a boca. Depois da figura, a idade; X... era homem de quarenta anos, eu não passava dos vinte e quatro. Depois da idade, a vida; ele vivera muito, em outro meio, donde saíra a encafuar-se naquela casa, com aquela senhora, eu não vivera nada nem com pessoa alguma. Enfim, — e este rasgo é capital, — havia nele uma fibra castelhana, uma gota do sangue que circula nas páginas de Calderon14, uma atitude moral que posso comparar, sem depressão nem riso, à do herói de Cervantes15. Como se tinham amado? Datava de longe. Maria contava já vinte e sete anos, e parecia haver recebido alguma educação. Ouvi que o primeiro encontro fora em um baile de máscaras, no antigo Teatro Provisório. Ela trajava uma saia curta, e dançava ao som de um pandeiro. Tinha os pés admiráveis, e foram eles ou o seu destino a causa do amor de X... Nunca lhe perguntei a origem da aliança; sei só que ela tinha uma filha, que estava no colégio e não vinha à casa; a mãe é que ia vê-la. Verdadeiramente as nossas relações eram respeitosas, e o respeito ia ao ponto de aceitar a situação sem a examinar. Quando comecei a ir ali, não tinha ainda o emprego no banco. Só dois ou três meses depois é que entrei para este, e não interrompi as relações. Maria tocava piano; às vezes, ela e a amiga Raimunda conseguiam arrastar X... ao teatro; eu ia com eles. No fim, tomávamos chá em sala particular, e, uma ou outra vez, se havia lua, acabávamos a noite indo de carro a Botafogo. A estas festas não ia Barreto, que só mais tarde começou a freqüentar a casa. Entretanto, a bom companheiro, alegre e rumoroso. Uma noite, como saíssemos de lá, encaminhou a conversa para as duas mulheres, e convidou-me a namorá-las. — Tu escolhes uma, Simão, eu outra. Estremeci e parei. — Ou antes, eu já escolhi, continuou ele, escolhi a Raimunda. Gosto muito da Raimunda. Tu, escolhe a outra. — A Maria? — Pois que outra há de ser? 8
O alvoroço que me deu este tentador foi tal que não achei palavra de recusa, nem palavra nem gesto. Tudo me pareceu natural e necessário. 13
Parte da perna atrás do joelho.
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Calderon de la Barca, célebre escritor e dramaturgo espanhol do século XVII. Don Quixote de la Mancha.
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Sim, concordei em escolher Maria; era mais velha que eu três anos, mas tinha a idade conveniente para ensinar-me a amar. Está dito, Maria. Deitamo-nos às duas conquistas com ardor e tenacidade. Barreto não tinha que vencer muito; a eleita dele não trazia amores, mas até pouco antes padecera de uns que rompera contra a vontade, indo o amante casar com uma moça de Minas. Depressa se deixou consolar. Barreto um dia, estando eu a almoçar, veio anunciar-me que recebera uma carta dela, e mostrou-ma. — Estão entendidos? — Estamos. E vocês? — Eu não. — Então quando? — Deixa ver; eu te digo. Naquele dia fiquei meio vexado. Com efeito, apesar da melhor vontade deste mundo, não me atrevia a dizer a Maria os meus sentimentos. Não suponhas que era nenhuma paixão. Não tinha paixão, mas curiosidade. Quando a via esbelta e fresca, toda calor e vida, sentia-me tomado de uma força nova e misteriosa; mas, por um lado, não amara nunca, e, por outro, Maria era a companheira de meu amigo. Digo isto, não para explicar escrúpulos, mas unicamente para fazer compreender o meu acanhamento. Viviam juntos desde alguns anos, um para o outro. X... tinha confiança em mim, confiança absoluta, comunicava-me os seus negócios, contava-me coisas da vida passada. Apesar da desproporção da idade, éramos como estudantes do mesmo ano. Como entrasse a pensar mais constantemente em Maria, é provável que por algum gesto lhe houvesse descoberto o meu recente estado, certo é que, um dia, ao apertar-lhe a mão, senti que os dedos dela se demoravam mais entre os meus. Dois dias depois, indo ao correio, encontrei-a selando uma carta para a Bahia. Ainda não disse que era baiana? Era baiana. Ela é que me viu primeiro e me falou. Ajudei-lhe a pôr o selo e despedimo-nos. À porta ia a dizer alguma coisa, quando vi ante nós, parada, a figura de X... — Vim trazer a carta para mamãe, apressou-se ela em dizer. Despediu-se de nós e foi para casa; ele e eu tomamos outro rumo. X... aproveitou a ocasião para fazer muitos elogios de Maria. Sem entrar em minudências acerca da origem das relações, assegurou-me que fora uma grande paixão igual em ambos, e concluiu que tinha a vida feita. — Já agora não me caso; vivo maritalmente com ela, morrerei com ela. Tenho uma só pena, é ser obrigado a viver separado de minha mãe. Minha mãe sabe, disse-me ele parando. E continuou andando: sabe, e até já me fez uma alusão muito vaga e remota, mas que eu percebi. Consta-me que não desaprova; sabe que Maria é séria e boa, e uma vez que eu seja feliz, não exige mais nada. O casamento não me daria mais que isto... Disse muitas outras coisas, que eu fui ouvindo sem saber de mim; o coração batia-me rijo, e as pernas andavam frouxas. Não atinava com resposta idônea; alguma palavra que soltava, saía-me engasgada. Ao cabo de algum tempo, ele notou o meu estado e interpretou-o erradamente; supôs que as suas confidências me aborreciam, e disse-mo rindo. Contestei sério:
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— Ao contrário, ouço com interesse, e trata-se de pessoas de toda a consideração e respeito. Penso agora que cedia inconscientemente a uma necessidade de hipocrisia. A idade das paixões é confusa, e naquela situação não posso discernir bem os sentimentos e suas causas. Entretanto, não é fora de propósito que buscasse dissipar no ânimo de X... qualquer possível desconfiança. A verdade é que ele me ouviu agradecido. Os seus grandes olhos de criança envolveram-me todo, e quando nos despedimos, apertou-me a mão com energia. Creio até que lhe ouvi dizer: “Obrigado!” Não me separei dele aterrado, nem ferido de remorsos prévios. A primeira impressão da confidência esvaiu-se, ficou só a confidência, e senti crescer-me o alvoroço da curiosidade. X... falara-me de Maria como de pessoa casta e conjugal; nenhuma alusão às suas prendas físicas, mas a minha idade dispensava qualquer referência direta. Agora, na rua, via de cor a figura da moça, os seus gestos igualmente lânguidos e robustos, e cada vez me sentia mais fora de mim. Em casa escrevi-lhe uma carta longa e difusa, que rasguei meia hora depois, e fui jantar. Sobre o jantar fui à casa de X... Eram ave-marias. Ele estava na cadeira de balanço, eu sentei-me no lugar do costume, olho na sala, olho no morro. Maria apareceu tarde, depois das horas, e tão anojada16 que não tomou parte na conversação. Sentou-se e cochilou; depois tocou um pouco de piano e saiu da sala. — Maria acordou hoje com a mania de colher donativos para a guerra, disse-me ele. Já lhe fiz notar que nem todos quererão parecer que... Você sabe... A posição dela... Felizmente, a idéia há de passar; tem dessas fantasias... — E por que não? — Ora, porque não! E depois, a guerra do Paraguai, não digo que não seja como todas as guerras, mas palavra, não me entusiasma. A princípio, sim, quando o López tomou o Marquês de Olinda, fiquei indignado; logo depois perdi a impressão, e agora, francamente, acho que tínhamos feito muito melhor se nos aliássemos ao López contra os argentinos. — Eu não. Prefiro os argentinos. — Também gosto deles, mas, no interesse da nossa gente, era melhor ficar com o López. — Não; olhe, eu estive quase a alistar-me como voluntário da pátria. — Eu, nem que me fizessem coronel, não me alistava. Ele disse não sei que mais. Eu, como tinha a orelha afiada, à escuta dos pés de Maria, não respondi logo, nem claro, nem seguido; fui engrolando alguma palavra e sempre à escuta. Mas o diabo da moça não vinha; imaginei que estariam arrufados. Enfim, propus cartas, podíamos jogar uma partida de voltarete17. — Podemos, disse ele. 9
Passamos ao gabinete. X... pôs as cartas na mesa e foi chamar a amiga. Dali ouvi algumas frases sussurradas, mas só estas me chegaram claras:
16 Triste. 17 Jogo de cartas em que cada um dos três parceiros recebe nove cartas.
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— Vem! é só meia hora. — Que maçada! Estou doente. Maria apareceu no gabinete, bocejando. Disse-me que era só meia hora; tinha dormido mal, doía-lhe a cabeça e contava deitar-se cedo. Sentou-se enfastiada, e começamos a partida. Eu arrependia-me de haver rasgado a carta; lembrava-me alguns trechos dela, que diriam bem o meu estado, com o calor necessário a persuadi-la. Se a tenho conservado, entregava-lha agora; ela ia muita vez ao patamar da escada despedirse de mim e fechar a cancela. Nessa ocasião podia dar-lha; era uma solução da minha crise. Ao cabo de alguns minutos, X... levantou-se para ir buscar tabaco de uma caixa de folha-de-flandres, posta sobre a secretária. Maria fez então um gesto que não sei como diga nem pinte.
Ergueu as cartas à altura dos olhos para os tapar, voltou-os para mim que lhe ficava à esquerda, e arregalou-os tanto e com tal fogo e atração, que não sei como não entrei por eles. Tudo foi rápido. Quando ele voltou fazendo um cigarro, Maria tinha as cartas embaixo dos olhos, abertas em leque, fitando-as como se calculasse. Eu devia estar trêmulo; não obstante, calculava também, com a diferença de não poder falar. Ela disse então com placidez uma das palavras do jogo, passo ou licença. Jogamos cerca de uma hora. Maria, para o fim, cochilava literalmente, e foi o próprio X... que lhe disse que era melhor ir descansar. Despedi-me e passei ao corredor, onde tinha o chapéu e a bengala. Maria, à porta da sala, esperava que eu saísse e acompanhou-me até à cancela, para fechá-la. Antes que eu descesse, lançou-me um dos braços ao pescoço, chegou-me a si, colou-me os lábios nos lábios, onde eles me depositaram um beijo grande, rápido e surdo. Na mão senti alguma coisa. — Boa-noite, disse Maria fechando a cancela. Não sei como não caí. Desci atordoado, com o beijo na boca, os olhos nos dela, e a mão apertando instintivamente um objeto. Cuidei de me pôr longe. Na primeira rua, corri a um lampião, para ver o que trazia. Era um cartão de loja de fazendas, um anúncio, com isto escrito nas costas, a lápis: “Espere-me amanhã, na ponte das barcas de Niterói, à uma hora da tarde”. O meu alvoroço foi tamanho que durante os primeiros minutos não soube absolutamente o que fiz. Em verdade, as emoções eram demasiado grandes e numerosas, e tão de perto seguidas que eu mal podia saber de mim. Andei até ao Largo de S. Francisco de Paula. Tornei a ler o cartão; arrepiei caminho, novamente parei, e uma patrulha que estava perto, talvez desconfiou dos meus gestos. Felizmente, a despeito da comoção, tinha fome e fui cear ao Hotel dos Príncipes. Não dormi antes da madrugada; às seis horas estava em pé. A manhã foi lenta como as agonias lentas. Dez minutos antes de uma hora cheguei à ponte; já lá achei Maria, envolvida numa capa, e com um véu azul no rosto. Ia sair uma barca, entramos nela. O mar acolheu-nos bem. A hora era de poucos passageiros. Havia movimento de lanchas, de aves, e o céu luminoso parecia cantar a nossa primeira entrevista. O que dissemos foi tão de atropelo e confusão que não me ficou mais de meia dúzia de palavras, e delas nenhuma foi o nome de X... ou qualquer referência
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a ele. Sentíamos ambos que traíamos eu o meu amigo, ela o seu amigo e protetor. Mas, ainda que o não sentíssemos, não é provável que falássemos dele, tão pouco era o tempo para o nosso infinito. Maria apareceu -me então como nunca a vi nem suspeitara, falando de mim e de si, com a ternura possível naquele lugar público, mas toda a possível, não menos. As nossas mãos colavam-se, os nossos olhos comiam-se e os corações batiam provavelmente ao mesmo compasso rápido e rápido. Pelo menos foi a sensação com que me separei dela, após a viagem redonda a Niterói e S. Domingos. Convidei-a a desembarcar em ambos os pontos, mas recusou; na volta, lembrei-lhe que nos metêssemos numa caleça fechada: “Que idéia faria de mim?” perguntou-me com gesto de pudor que a transfigurou. E despedimonos com prazo dado, jurando-lhe que eu não deixaria de ir vê-los, à noite, como de costume. Como eu não tomei da pena para narrar a minha felicidade, deixo a parte deliciosa da aventura, com as suas entrevistas, cartas e palavras, e mais os sonhos e esperanças, as infinitas saudades e os renascentes desejos. Tais aventuras são como os almanaques, que, com todas as suas mudanças, hão de trazer os mesmos dias e meses, com os seus eternos nomes e santos. O nosso almanaque apenas durou um trimestre, sem quartos minguantes nem ocasos de sol. Maria era um modelo de graças finas, toda vida, toda movimento. Era baiana, como disse, fora educada no Rio Grande do Sul, na campanha, perto da fronteira. Quando lhe falei do seu primeiro encontro com X... no Teatro Provisório, dançando ao som de um pandeiro, disse-me que era verdade, fora ali vestida à castelhana e de máscara; e, como eu lhe pedisse a mesma coisa, menos a máscara, ou um simples lundu nosso, respondeu-me como quem recusa um perigo: — Você poderia ficar doido. — Mas X... não ficou doido. — Ainda hoje não está no seu juízo, replicou Maria rindo. Imagina que eu fazia isto só... E em pé, num maneio rápido, deu uma volta ao corpo, que me fez ferver o sangue. O trimestre acabou depressa, como os trimestres daquela casta. Maria faltou um dia à entrevista. Era tão pontual que fiquei tonto quando vi passar a hora. Cinco, dez, quinze minutos; depois vinte, depois trinta, depois quarenta... Não digo as vezes que andei de um lado para outro, na sala, no corredor, à espreita e à escuta, até que de todo passou a possibilidade de vir. Poupo a notícia do meu desespero, o tempo que rolei no chão, falando, gritando ou chorando. Quando cansei, escrevi-lhe uma longa carta; esperei que me escrevesse também, explicando a falta. Não mandei a carta, e à noite fui à casa deles. Maria pôde explicar-me a falta pelo receio de ser vista e acompanhada por alguém que a perseguia desde algum tempo. Com efeito, haviam-me já falado em não sei que vizinho que a cortejava com instância; uma vez disse-me que ele a seguira até à porta da minha casa. Acreditei na razão, e propus-lhe outro lugar de encontro, mas não lhe pareceu conveniente. Desta vez achou melhor suspendermos as nossas entrevistas, até fazer calar as suspeitas. Não sairia de casa. Não compreendi então que a principal verdade era ter cessado nela o ardor dos primeiros dias. Maria era outra, principalmente outra. E não podes imaginar o que vinha a ser essa bela criatura, que tinha em si o fogo e o gelo, e era mais quente e mais fria que ninguém.
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Quando me entrou a convicção de que tudo estava acabado, resolvi não voltar lá, mas nem por isso perdia a esperança; era para mim questão de esforço. A imaginação, que torna presentes os dias passados, faziame crer facilmente na possibilidade de restaurar as primeiras semanas. Ao cabo de cinco dias, voltei; não podia viver sem ela. X... recebeu-me com o seu grande riso infante, os olhos puros, a mão forte e sincera; perguntou a razão da minha ausência. Aleguei uma febrezinha, e, para explicar o enfadamento que eu não podia vencer, disse que ainda me doía a cabeça. Maria compreendeu tudo; nem por isso se mostrou meiga ou compassiva, e, à minha saída, não foi até ao corredor, como de costume. Tudo isto dobrou a minha angústia. A idéia de morrer entrou a passar-me pela cabeça; e, por uma simetria romântica, pensei em meter-me na barca de Niterói, que primeiro acolheu os nossos amores, e, no meio da baía, atirar-me ao mar. Não iniciei tal plano nem outro. Tendo encontrado casualmente o meu amigo Barreto, não vacilei em lhe dizer tudo; precisava de alguém para falar comigo mesmo. No fim pedilhe segredo; devia pedir-lhe especialmente que não contasse nada a Raimunda. Nessa mesma noite ela soube tudo. Raimunda era um espírito aventureiro, amigo de entrepresas e novidades. Não se lhe dava, talvez, de mim nem da outra, mas viu naquilo um lance, uma ocupação, e cuidou em reconciliar-nos; foi o que eu soube depois, e é o que dá lugar a este papel. Falou-lhe uma e mais vezes. Maria quis negar a princípio, acabou confessando tudo, dizendo-se arrependida da cabeçada que dera. Usaria provavelmente de circunlóquios e sinônimos, frases vagas e truncadas, alguma vez empregaria só gestos. O texto que aí fica é o da própria Raimunda, que me mandou chamar à casa dela e me referiu todos os seus esforços, contente de si mesma. — Mas não perca as esperanças, concluiu; eu disse-lhe que o senhor era capaz de matar-se. — E sou. — Pois não se mate por ora; espere. No dia seguinte vi nos jornais uma lista de cidadãos que, na véspera, tinham ido ao quartel-general apresentar-se como voluntários da pátria, e nela o nome de X..., com o posto de capitão. Não acreditei logo; mas eram os mesmos, na mesma ordem, e uma das folhas fazia referências à família de X..., ao pai, que fora oficial de marinha, e à figura esbelta e varonil do novo capitão; era ele mesmo. A minha primeira impressão foi de prazer; íamos ficar sós. Ela não iria de vivandeira para o sul. Depois, lembrou-me o que ele me disse acerca da guerra, e achei estranho o seu alistamento de voluntário, ainda que o amor dos atos generosos e a nota cavalheiresca do espírito de X... pudessem explicá-lo. Nem de coronel iria, disse-me, e agora aceitava o posto de capitão. Enfim, Maria; como é que ele, que tanto lhe queria, ia separar-se dela repentinamente, sem paixão forte que o levasse à guerra? Havia três semanas que eu não ia à casa deles. A notícia do alistamento justificava a minha visita imediata e dispensava-me de explicações. Almocei e fui. Compus um rosto ajustado à situação e entrei. X... veio à sala, depois de alguns minutos de espera. A cara desdizia das palavras; estas queriam ser alegres e leves, aquela era fechada e torva, além de pálida. Estendeu-me a mão, dizendo:
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— Então, vem ver o capitão de voluntários? — Venho ouvir o desmentido. — Que desmentido? É pura verdade. Não sei como isto foi, creio que as últimas notícias... Você por que não vem comigo? — Mas então é verdade? — É. Após alguns instantes de silêncio, meio sincero, por não saber realmente que dissesse, meio calculado, para persuadi-lo da minha consternação, murmurei que era melhor não ir, e falei-lhe na mãe. X... respondeu-me que a mãe aprovava; era viúva de militar. Fazia esforços para sorrir, mas a cara continuava a ser de pedra. Os olhos buscavam desviar-se, e geralmente não fitavam bem nem longo. Não conversamos muito; ele ergueu-se, alegando que ia liquidar um negócio, e pediu-me que voltasse a vê-lo. À porta, disse-me com algum esforço: — Venha jantar um dia destes, antes da minha partida. — Sim. — Olhe, venha jantar amanhã. — Amanhã? — Ou hoje, se quiser — Amanhã. Quis deixar lembranças a Maria; era natural e necessário, mas faltou-me o ânimo. Embaixo arrependime de o não ter feito. Recapitulei a conversação, achei-me atado e incerto; ele pareceu-me, além de frio, sobranceiro. Vagamente, senti alguma coisa mais. O seu aperto de mão tanto à entrada, como à saída, não me dera a sensação do costume. Na noite desse dia, Barreto veio ter comigo, atordoado com a notícia da manhã, e perguntando-me o que sabia; disse-lhe que nada. Contei-lhe a minha visita da manhã, a nossa conversação, sem as minhas suspeitas. — Pode ser engano, disse ele, depois de um instante — Engano? — Raimunda contou-me hoje que falara a Maria, que esta negara tudo a princípio, depois confessara, e recusara reatar as relações com você. — Já sei. — Sim, mas parece que da terceira vez foram pressentidas e ouvidas por ele, que estava na saleta ao pé. Maria correu a contar a Raimunda que ele mudara inteiramente; esta dispôs-se a sondá-lo, eu opus-me, até que li a notícia nos jornais. Vi-o na rua, andando: não tinha aquele gesto sereno de costume, mas o passo era forte. Fiquei aturdido com a notícia, que confirmava a minha impressão. Nem por isso deixei de ir lá jantar no dia seguinte. Barreto quis ir também; percebi que era com o fim único de estar comigo, e recusei.
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X... não dissera nada a Maria; achei-os na sala, e não me lembro de outra situação na vida em que me sentisse mais estranho a mim mesmo. Apertei-lhes a mão, sem olhar para ela. Creio que ela também desviou os olhos. Ele é que, com certeza, não nos observou; riscava um fósforo e acendia um cigarro. Ao jantar falou o mais naturalmente que pôde, ainda que frio. O rosto exprimia maior esforço que na véspera. Para explicar a possível alteração, disse-me que embarcaria no fim da semana, e que, à proporção que a hora ia chegando, sentia dificuldade em sair. — Mas é só até fora da barra; lá fora torno a ser o que sou, e na campanha, serei o que devo ser. Usava dessas palavras rígidas, alguma vez enfáticas. Notei que Maria trazia os olhos pisados, soube depois que chorara muito e tivera grande luta com ele, na véspera, para que não embarcasse. Só conhecera a resolução pelos jornais, prova de alguma coisa mais particular que o patriotismo. Não falou à mesa, e a dor podia explicar o silêncio, sem nenhuma outra causa de constrangimento pessoal. Ao contrário, X... procurava falar muito, contava os batalhões, os oficiais novos, as probabilidades de vitória, e referia anedotas e boatos, sem curar de ligação. Às vezes, queria rir; para o fim, disse que naturalmente voltaria general, mas ficou tão carrancudo depois deste gracejo, que não tentou outro. O jantar acabou frio; fumamos, ele ainda quis falar da guerra, mas o assunto estava exausto. Antes de sair, convidei-o a ir jantar comigo. — Não posso; todos os meus dias estão tomados. — Venha almoçar. — Também não posso. Faço uma coisa; na volta do Paraguai, o terceiro dia é seu. Creio ainda hoje que o fim desta última frase era indicar que os dois primeiros dias seriam da mãe e de Maria; assim, qualquer suspeita que eu tivesse dos motivos secretos da resolução, devia dissipar-se. Nem bastou isso; disse-me que escolhesse uma prenda em lembrança, um livro, por exemplo. Preferi o seu último retrato, fotografado a pedido da mãe, com a farda de capitão de voluntários. Por dissimulação, quis que assinasse; ele prontamente escreveu: “Ao seu leal amigo Simão de Castro oferece o capitão de voluntários da pátria X...” O mármore do rosto era mais duro, o olhar mais torvo; passou os dedos pelo bigode, com um gesto convulso, e despedimo-nos. No sábado embarcou. Deixou a Maria os recursos necessários para viver aqui, na Bahia, ou no Rio Grande do Sul; ela preferiu o Rio Grande, e partiu para lá, três semanas depois, a esperar que ele voltasse da guerra. Não a pude ver antes; fechara-me a porta, como já me havia fechado o rosto e o coração. Antes de um ano, soube-se que ele morrera em combate, no qual se houve com mais denodo que perícia. Ouvi contar que primeiro perdera um braço, e que provavelmente a vergonha de ficar aleijado o fez atirar-se contra as armas inimigas, como quem queria acabar de vez. Esta versão podia ser exata, porque ele tinha desvanecimento das belas formas; mas a causa foi complexa. Também me contaram que Maria, voltando do Rio Grande, morreu em Curitiba; outros dizem que foi acabar em Montevidéu. A filha não passou dos quinze anos.
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Eu cá fiquei entre os meus remorsos e saudades; depois, só remorsos; agora admiração apenas, uma admiração particular, que não é grande senão por me fazer sentir pequeno. Sim, eu não era capaz de praticar o que ele praticou. Nem efetivamente conheci ninguém que se parecesse com X... E por que teimar nesta letra? Chamemo-lo pelo nome que lhe deram na pia, Emílio, o meigo, o forte, o simples Emílio.
SUJE-SE, GORDO! Uma noite, há muitos anos, passeava eu com um amigo no terraço do Teatro de S. Pedro de Alcântara. Era entre o segundo e o terceiro ato da peça A sentença ou o Tribunal do júri. Só me ficou o título, e foi justamente o título que nos levou a falar da instituição e de um fato que nunca mais me esqueceu. — Fui sempre contrário ao júri, — disse-me aquele amigo, — não pela instituição em si, que é liberal, mas porque me repugna condenar alguém, e por aquele preceito do Evangelho: “Não queirais julgar, para que não sejais julgados”. Não obstante, servi duas vezes. O tribunal era então no antigo Aljube, fim da Rua dos Ourives, princípio da Ladeira da Conceição. Tal era o meu escrúpulo que, salvo dois, absolvi todos os réus. Com efeito, os crimes não me pareceram provados; um ou dois processos eram malfeitos. O primeiro réu que condenei, era um moço limpo, acusado de haver furtado certa quantia, não grande, antes pequena, com falsificação de um papel. Não negou o fato, nem podia fazê-lo, contestou que lhe coubesse a iniciativa ou inspiração do crime. Alguém, que não citava, foi que lhe lembrou esse modo de acudir a uma necessidade urgente; mas Deus, que via os corações, daria ao criminoso verdadeiro o merecido castigo. Disse isso sem ênfase, triste, a palavra surda. os olhos mortos, com tal palidez que metia pena; o promotor público achou nessa mesma cor do gesto a confissão do crime. Ao contrário, o defensor mostrou que o abatimento e a palidez significavam a lástima da inocência caluniada. Poucas vezes terei assistido a debate tão brilhante. O discurso do promotor foi curto, mas forte, indignado, com um tom que parecia ódio, e não era. A defesa, além do talento do advogado, tinha a circunstância de ser a estréia dele na tribuna. Parentes, colegas e amigos esperavam o primeiro discurso do rapaz, e não perderam na espera. O discurso foi admirável, e teria salvo o réu, se ele pudesse ser salvo, mas o crime metia-se pelos olhos dentro. O advogado morreu dois anos depois, em 1865. Quem sabe o que se perdeu nele! Eu, acredite, quando vejo morrer um moço de talento, sinto mais que quando morre um velho... Mas vamos ao que ia contando. Houve réplica do promotor e tréplica do defensor. O presidente do tribunal resumiu os debates, e, lidos os quesitos, foram entregues ao presidente do conselho, que era eu. Não digo o que se passou na sala secreta; além de ser secreto o que lá se passou, não interessa ao caso particular, que era melhor ficasse também calado, confesso. Cantarei depressa; o terceiro ato não tarda. Um dos jurados do conselho, cheio de corpo e ruivo, parecia mais que ninguém convencido do delito e do delinqüente. O processo foi examinado, os quesitos lidos, e as respostas dadas (onze votos contra um); só o jurado ruivo estava inquieto. No fim, como os votos assegurassem a condenação, ficou satisfeito, disse que seria um ato de fraqueza, ou coisa pior, a absolvição que lhe déssemos. Um dos jurados,
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certamente o que votara pela negativa, — proferiu algumas palavras de defesa do moço. O ruivo, — chamava-se Lopes, — replicou com aborrecimento: — Como, senhor? Mas o crime do réu está mais que provado. — Deixemos de debate, disse eu, e todos concordaram comigo. — Não estou debatendo, estou defendendo o meu voto, continuou Lopes. O crime está mais que provado. O sujeito nega, porque todo o réu nega, mas o certo é que ele cometeu a falsidade, e que falsidade! Tudo por uma miséria, duzentos mil-réis! Suje-se gordo! Quer sujar-se? Suje-se gordo! “Suje-se gordo!” Confesso-lhe que fiquei de boca aberta, não que entendesse a frase, ao contrário, nem a entendi nem a achei limpa, e foi por isso mesmo que fiquei de boca aberta. Afinal caminhei e bati à porta, abriram-nos, fui à mesa do juiz, dei as respostas do conselho e o réu saiu condenado. O advogado apelou; se a sentença foi confirmada ou a apelação aceita, não sei; perdi o negócio de vista. Quando saí do tribunal, vim pensando na frase do Lopes, e pareceu-me entendê-la. “Suje-se gordo!” era como se dissesse que o condenado era mais que ladrão, era um ladrão reles, um ladrão de nada. Achei esta explicação na esquina da Rua de S. Pedro; vinha ainda pela dos Ourives. Cheguei a desandar um pouco, a ver se descobria o Lopes para lhe apertar a mão; nem sombra de Lopes. No dia seguinte, lendo nos jornais os nossos nomes, dei com o nome todo dele; não valia a pena procurá-lo, nem me ficou de cor. Assim são as páginas da vida, como dizia meu filho quando fazia versos, e acrescentava que as páginas vão passando umas sobre outras, esquecidas apenas lidas. Rimava assim, mas não me lembra a forma dos versos. Em prosa disse-me ele, muito tempo depois, que eu não devia faltar ao júri, para o qual acabava de ser designado. Respondi-lhe que não compareceria, e citei o preceito evangélico; ele teimou, dizendo ser um dever de cidadão, um serviço gratuito, que ninguém que se prezasse podia negar ao seu país. Fui e julguei três processos. Um destes era de um empregado do Banco do Trabalho Honrado, o caixa, acusado de um desvio de dinheiro. Ouvira falar no caso, que os jornais deram sem grande minúcia, e aliás eu lia pouco as notícias de crimes. O acusado apareceu e foi sentar-se no famoso banco dos réus. Era um homem magro e ruivo. Fitei-o bem, e estremeci, pareceu-me ver o meu colega daquele julgamento de anos antes. Não poderia reconhecê-lo logo por estar agora magro, mas era a mesma cor dos cabelos e das barbas, o mesmo ar, e por fim a mesma voz e o mesmo nome: Lopes. — Como se chama? perguntou o presidente. — Antônio do Carmo Ribeiro Lopes. Já me não lembravam os três primeiros nomes, o quarto era o mesmo, e os outros sinais vieram confirmando as reminiscências; não me tardou reconhecer a pessoa exata daquele dia remoto. Digo-lhe aqui com verdade que todas essas circunstâncias me impediram de acompanhar atentamente o interrogatório, e muitas coisas me escaparam. Quando me dispus a ouvi-lo bem, estava quase no fim. Lopes negava com firmeza tudo o que lhe era perguntado, ou respondia de maneira que trazia uma complicação ao processo. Circulava os olhos sem medo nem ansiedade; não sei até se com uma pontinha de riso nos cantos da boca.
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Seguiu-se a leitura do processo. Era uma falsidade e um desvio de cento e dez contos de réis. Não lhe digo como se descobriu o crime nem o criminoso, por já ser tarde; a orquestra está afinando os instrumentos. O que lhe digo com certeza é que a leitura dos autos me impressionou muito, o inquérito, os documentos, a tentativa de fuga do caixa e uma série de circunstâncias agravantes; por fim o depoimento das testemunhas. Eu ouvia ler ou falar e olhava para o Lopes. Também ele ouvia, mas com o rosto alto, mirando o escrivão, o presidente, o teto e as pessoas que o iam julgar; entre elas eu. Quando olhou para mim não me reconheceu; fitou-me algum tempo e sorriu, como fazia aos outros. Todos esses gestos do homem serviram à acusação e à defesa, tal como serviram, tempos antes, os gestos contrários do outro acusado. O promotor achou neles a revelação clara do cinismo, o advogado mostrou que só a inocência e a certeza da absolvição podiam trazer aquela paz de espírito. Enquanto os dois oradores falavam, vim pensando na fatalidade de estar ali, no mesmo banco do outro, este homem que votara a condenação dele, e naturalmente repeti comigo o texto evangélico: “Não queirais julgar, para que não sejais julgados”. Confesso-lhe que mais de uma vez me senti frio. Não é que eu mesmo viesse a cometer algum desvio de dinheiro, mas podia, em ocasião de raiva, matar alguém ou ser caluniado de desfalque. Aquele que julgava outrora, era agora julgado também. Ao pé da palavra bíblica lembrou -me de repente a do mesmo Lopes: “Suje-se gordo!” Não imagina o sacudimento que me deu esta lembrança. Evoquei tudo o que contei agora, o discursinho que lhe ouvi na sala secreta, até àquelas palavras: “Suje-se gordo!” Vi que não era um ladrão reles, um ladrão de nada, sim de grande valor. O verbo é que definia duramente a ação. “Suje-se gordo!” Queria dizer que o homem não se devia levar a um ato daquela espécie sem a grossura da soma. A ninguém cabia sujar-se por quatro patacas. Quer sujar-se? Suje-se gordo! Idéias e palavras iam assim rolando na minha cabeça, sem eu dar pelo resumo dos debates que o presidente do tribunal fazia. Tinha acabado, leu os quesitos e recolhemo-nos à sala secreta. Posso dizer-lhe aqui em particular que votei afirmativamente, tão certo me pareceu o desvio dos cento e dez contos. Havia, entre outros documentos, uma carta de Lopes que fazia evidente o crime. Mas parece que nem todos leram com os mesmos olhos que eu. Votaram comigo dois jurados. Nove negaram a criminalidade do Lopes, a sentença de absolvição foi lavrada e lida, e o acusado saiu para a rua. A diferença da votação era tamanha que cheguei a duvidar comigo se teria acertado. Podia ser que não. Agora mesmo sinto uns repelões de consciência. Felizmente, se o Lopes não cometeu deveras o crime, não recebeu a pena do meu voto, e esta consideração acaba por me consolar do erro, mas os repelões voltam. O melhor de tudo é não julgar ninguém para não vir a ser julgado. Suje-se gordo! suje-se magro! suje-se como lhe parecer! o mais seguro é não julgar ninguém... Acabou a música, vamos para as nossas cadeiras. UMAS FÉRIAS Vieram dizer ao mestre-escola que alguém lhe queria falar. — Quem é? — Diz que meu senhor não o conhece, respondeu o preto. — Que entre.
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Houve um movimento geral de cabeças na direção da porta do corredor, por onde devia entrar a pessoa desconhecida. Éramos não sei quantos meninos na escola. Não tardou que aparecesse uma figura rude, tez queimada, cabelos compridos, sem sinal de pente, a roupa amarrotada, não me lembra bem a cor nem a fazenda, mas provavelmente era brim pardo. Todos ficaram esperando o que vinha dizer o homem, eu mais que ninguém, porque ele era meu tio, roceiro, morador em Guaratiba. Chamava-se tio Zeca. Tio Zeca foi ao mestre e falou-lhe baixo. O mestre fê-lo sentar, olhou para mim, e creio que lhe perguntou alguma coisa, porque tio Zeca entrou a falar demorado, muito explicativo. O mestre insistiu, ele respondeu, até que o mestre, voltando-se para mim, disse alto: — Sr. José Martins, pode sair. A minha sensação de prazer foi tal que venceu a de espanto. Tinha dez anos apenas, gostava de folgar, não gostava de aprender. Um chamado de casa, o próprio tio, irmão de meu pai, que chegara na véspera de Guaratiba, era naturalmente alguma festa, passeio, qualquer coisa. Corri a buscar o chapéu, meti o livro de leitura no bolso e desci as escadas da escola, um sobradinho da rua do Senado. No corredor beijei a mão a tio Zeca. Na rua fui andando ao pé dele, amiudando os passos, e levantando a cara. Ele não me dizia nada, eu não me atrevia a nenhuma pergunta. Pouco depois chegávamos ao colégio de minha irmã Felícia; disse-me que esperasse, entrou, subiu, desceram, e fomos os três caminho de casa. A minha alegria agora era maior. Certamente havia festa em casa, pois que íamos os dois, ela e eu; íamos na frente, trocando as nossas perguntas e conjecturas. Talvez anos de tio Zeca. Voltei a cara para ele; vinha com os olhos no chão, provavelmente para não cair. Fomos andando. Felícia era mais velha que eu um ano. Calçava sapato raso, atado ao peito do pé por duas fitas cruzadas, vindo acabar acima do tornozelo com laço. Eu, botins de cordovão18, já gastos. As calcinhas dela pegavam com a fita dos sapatos, as minhas calças, largas, caíam sobre o peito do pé; eram de chita. Uma ou outra vez parávamos, ela para admirar as bonecas à porta dos armarinhos, eu para ver, à porta das vendas, algum papagaio que descia e subia pela corrente de ferro atada ao pé. Geralmente, era meu conhecido, mas papagaio não cansa em tal idade. Tio Zeca é que nos tirava do espetáculo industrial ou natural, Andem, dizia ele em voz sumida. E nós andávamos, até que outra curiosidade nos fazia deter o passo, Entretanto, o principal era a festa que nos esperava em casa. 10
— Não creio que sejam anos de tio Zeca, disse-me Felícia. — Por quê? — Parece meio triste. — Triste, não, parece carrancudo. — Ou carrancudo. Quem faz anos tem a cara alegre. — Então serão anos de meu padrinho... — Ou de minha madrinha... — Mas por que é que mamãe nos mandou para a escola? — Talvez não soubesse. — Há de haver jantar grande...
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Couro de cabra curtido.
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— Com doce... — Talvez dancemos, Fizemos um acordo: podia ser festa, sem aniversário de ninguém. A sorte grande, por exemplo. Ocorreu-me também que podiam ser eleições. Meu padrinho era candidato a vereador; embora eu não soubesse bem o que era candidatura nem vereação, tanto ouvira falar em vitória próxima que a achei certa e ganha. Não sabia que a eleição era ao domingo, e o dia era sexta-feira. Imaginei bandas de música, vivas e palmas, e nós, meninos, pulando, rindo, comendo co-cadas. Talvez houvesse espetáculo à noite; fiquei meio tonto. Tinha ido uma vez ao teatro, e voltei dormindo, mas no dia seguinte estava tão contente que morria por lá tornar, posto não houvesse entendido nada do que ouvira. Vira muita cousa, isso sim, cadeiras ricas, tronos, lanças compridas, cenas que mudavam à vista, passando de uma sala a um bosque, e do bosque a uma rua. Depois, os personagens, todos príncipes. Era assim que chamávamos aos que vestiam calção de seda, sapato de fivela ou botas, espada, capa de veludo, gorra com pluma. Também houve bailado. As bailarinas e os bailarinos falavam com os pés e as mãos, trocando de posição e um sorriso constante na boca. Depois os gritos do público e as palmas... Já duas vezes escrevi palmas; é que as conhecia bem. Felícia, a quem comuniquei a possibilidade do espetáculo, não me pareceu gostar muito, mas também não recusou nada. Iria ao teatro. E quem sabe se não seria em casa, teatrinho de bonecos? Íamos nessas conjecturas, quando tio Zeca nos disse que esperássemos; tinha parado a conversar com um sujeito. Paramos, à espera. A idéia da festa, qualquer que fosse, continuou a agitar-nos, mais a mim que a ela. Imaginei trinta mil coisas, sem acabar nenhuma, tão precipitadas vinham, e tão confusas que não as distinguia; pode ser até que se repetissem. Felícia chamou a minha atenção para dois moleques de carapuça encarnada, que passavam carregando canas, — o que nos lembrou as noites de Santo Antônio e S. João, já lá idas. Então falei-lhe das fogueiras do nosso quintal, das bichas19 que queimamos, das rodinhas, das pistolas e das danças com outros meninos. Se houvesse agora a mesma coisa... Ah! lembrou-me que era ocasião de deitar à fogueira o livro da escola, e o dela também, com os pontos de costura que estava aprendendo. — Isso não, acudiu Felícia. — Eu queimava o meu livro. — Papai comprava outro. — Enquanto comprasse, eu ficava brincando em casa; aprender é muito aborrecido. Nisto estávamos, quando vimos tio Zeca e o desconhecido ao pé de nós. O desconhecido pegou-nos nos queixos e levantou-nos a cara para ele, fitou-nos com seriedade, deixou-nos e despediu-se. — Nove horas? Lá estarei, disse ele. 11
— Vamos, disse-nos tio Zeca. Quis perguntar-lhe quem era aquele homem, e até me pareceu conhecê-lo vagamente. Felícia também. Nenhum de nós acertava com a pessoa; mas a promessa de lá estar às nove horas dominou o resto. 19
No texto = tipo de buscapé (fogo-de-artifício) também conhecido por diabinho-maluco.
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Era festa, algum baile, conquanto às nove horas costumássemos ir para a cama. Naturalmente, por exceção, estaríamos acordados. Como chegássemos a um rego de lama, peguei da mão de Felícia, e transpusemo-lo de um salto, tão violento que quase me caiu o livro. Olhei para tio Zeca, a ver o efeito do gesto; vi-o abanar a cabeça com reprovação. Ri, ela sorriu, e fomos pela calçada adiante. Era o dia dos desconhecidos. Desta vez estavam em burros, e um dos dois era mulher. Vinham da roça. Tio Zeca foi ter com eles ao meio da rua, depois de dizer que esperássemos. Os animais pararam, creio que de si mesmos, por também conhecerem a tio Zeca, idéia que Felícia reprovou com o gesto, e que eu defendi rindo. Teria apenas meia convicção; tudo era folgar. Fosse como fosse, esperamos os dois, examinando o casal de roceiros. Eram ambos magros, a mulher mais que o marido, e também mais moça; ele tinha os cabelos grisalhos. Não ouvimos o que disseram, ele e tio Zeca; vimo-lo, sim, o marido olhar para nós com ar de curiosidade, e falar à mulher, que também nos deitou os olhos, agora com pena ou coisa parecida. Enfim apartaram-se, tio Zeca veio ter conosco e enfiamos para casa. A casa ficava na rua próxima, perto da esquina. Ao dobrarmos esta, vimos os portais da casa forrados de preto, — o que nos encheu de espanto. Instintivamente paramos e voltamos a cabeça para tio Zeca. Este veio a nós, deu a mão a cada um e ia a dizer alguma palavra que lhe ficou na garganta; andou, levando-nos consigo. Quando chegamos, as portas estavam meio cerradas. Não sei se lhes disse que era um armarinho. Na rua, curiosos. Nas janelas fronteiras e laterais, cabeças aglomeradas. Houve certo reboliço quando chegamos. É natural que eu tivesse a boca aberta, como Felícia. Tio Zeca empurrou uma das meias-portas, entramos os três, ele tornou a cerrá-la, meteu-se pelo corredor e fomos à sala de jantar e à alcova. Dentro, ao pé da cama, estava minha mãe com a cabeça entre as mãos. Sabendo da nossa chegada, ergueu-se de salto, veio abraçar-nos entre lágrimas, bradando: — Meus filhos, vosso pai morreu! A comoção foi grande, por mais que o confuso e o vago entorpecessem a consciência da notícia. Não tive forças para andar, e teria medo de o fazer. Morto como? morto por quê? Estas duas perguntas, se as meto aqui, é para dar seguimento à ação; naquele momento não perguntei nada a mim nem a ninguém. Ouvi as palavras de minha mãe, que se repetiam em mim, e os seus soluços que eram grandes. Ela pegou em nós e arrastou-nos para a cama, onde jazia o cadáver do marido; e fez-nos beijar-lhe a mão. Tão longe estava eu daquilo que, apesar de tudo, não entendera nada a princípio; a tristeza e o silêncio das pessoas que rodeavam a cama, ajudaram a explicar que meu pai morrera deveras. Não se tratava de um dia santo, com a sua folga e recreio, não era festa, não eram as horas breves ou longas, para a gente desfiar em casa, arredada dos castigos da escola. Que essa queda de um sonho tão bonito fizesse crescer a minha dor de filho não é coisa que possa afirmar ou negar; melhor é calar. O pai ali estava defunto, sem pulos, nem danças, nem risadas, nem bandas de música, coisas todas também defuntas. Se me houvessem dito à saída da escola por que é que me iam lá buscar, é claro que a alegria não houvera penetrado o coração, donde era agora expelida a punhadas. O enterro foi no dia seguinte às nove horas da manhã, e provavelmente lá estava aquele amigo de tio Zeca que despediu na rua, com a promessa de ir às nove horas. Não vi as cerimônias; alguns vultos, poucos,
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vestidos de preto, lembra-me que vi. Meu padrinho, dono de um trapiche20, lá estava, e a mulher também, que me levou a uma alcova dos fundos para me mostrar gravuras. Na ocasião da saída, ouvi os gritos de minha mãe, o rumor dos passos, algumas palavras abafadas de pessoas que pegavam nas alças do caixão, creio eu: — vire de lado, — mais à esquerda, — assim, segure bem...“ Depois, ao longe, o coche andando e as seges atrás dele... Lá iam meu pai e as férias! Uma dia de folga sem folguedo! Não, não foi um dia, mas oito, oito dias de nojo, durante os quais alguma vez me lembrei do colégio. Minha mãe chorava, cosendo o luto, entre duas visitas de pêsames. Eu também chorava; não via meu pai às horas do costume, não lhe ouvia as palavras à mesa ou ao balcão, nem as carícias que dizia aos pássaros. Que ele era muito amigo de pássaros, e tinha três ou quatro, em gaiolas. Minha mãe vivia calada. Quase que só falava às pessoas de fora. Foi assim que eu soube que meu pai morrera de apoplexia. Ouvi esta notícia muitas vezes; as visitas perguntavam pela causa da morte, e ela referia tudo, a hora, o gesto, a ocasião: tinha ido beber água, e enchia um copo, à janela da área. Tudo decorei, à força de ouvi-lo contar. Nem por isso os meninos do colégio deixavam de vir espiar para dentro da minha memória. Um deles chegou a perguntar-me quando é que eu voltaria. — Sábado, meu filho, disse minha mãe, quando lhe repeti a pergunta imaginada; a missa é sexta-feira. Talvez seja melhor voltar na segunda. — Antes sábado, emendei. — Pois sim, concordou. Não sorria; se pudesse, sorriria de gosto ao ver que eu queria voltar mais cedo à escola. Mas, sabendo que eu não gostava de aprender, como entenderia a emenda? Provavelmente, deu-lhe algum sentido superior, conselho do céu ou do marido. Em verdade, eu não folgava, se lerdes isto com o sentido de rir. Com o de descansar também não cabe, porque minha mãe fazia-me estudar, e, tanto como o estudo, aborrecia-me a atitude. Obrigado a estar sentado, com o livro nas mãos, a um canto ou à mesa, dava ao diabo o livro, a mesa e a cadeira. Usava um recurso que recomendo aos preguiçosos: deixava os olhos na página e abria a porta à imaginação. Corria a apanhar as flechas dos foguetes, a ouvir os realejos, a bailar com meninas, a cantar, a rir, a es-pancar de mentira ou de brincadeira, como for mais claro. Uma vez, como desse por mim a andar na sala sem ler, minha mãe repreendeu-me, e eu respondi que estava pensando em meu pai. A explicação fê-la chorar, e, para dizer tudo, não era totalmente mentira; tinha-me lembrado o último presentinho que ele me dera, e entrei a vê-lo com o mimo na mão. 12
Felícia vivia tão triste como eu, mas confesso a minha verdade, a causa principal não era a mesma. Gostava de brincar, mas não sentia a ausência do brinco, não se lhe dava de acompanhar a mãe, coser com ela, e uma vez fui achá-la a enxugar-lhe os olhos. Meio vexado, pensei em imitá-la, e meti a mão no bolso para tirar o lenço, saiu sem pesar. Creio que ao gesto não faltava só originalidade, mas sinceridade também. 20 Armazém.
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Não me censurem. Sincero fui longos dias calados e reclusos. Quis uma vez ir para o armarinho, que se abriu depois do enterro, onde o caixeiro continuou a servir. Conversaria com este, assistiria à venda de linhas e agulhas, à medição de fitas, iria à porta, à calçada, à esquina da rua... Minha mãe sufocou este sonho pouco depois dele nascer. Mal chegara ao balcão, mandou-me buscar pela escrava; lá fui para o interior da casa e para o estudo. Arrepelei-me, apertei os dedos à guisa de quem quer dar murro; não me lembro se chorei de raiva. O livro lembrou-me a escola, e a imagem da escola consolou-me. Já então lhe tinha grandes saudades. Via de longe as caras dos meninos, os nossos gestos de troça nos bancos, e os saltos à saída. Senti cair-me na cara uma daquelas bolinhas de papel com que espertávamos uns aos outros, e fiz a minha e atirei-a ao meu suposto espertador. A bolinha, como acontecia às vezes, foi cair na cabeça de terceiro, que se desforrou depressa. Alguns, mais tímidos, limitavam-se a fazer caretas. Não era folguedo franco, mas já me valia por ele. Aquele degredo que eu deixei tão alegremente com tio Zeca, parecia-me agora um céu remoto, e tinha medo de o perder. Nenhuma festa em casa, poucas palavras, raro movimento. Foi por esse tempo que eu desenhei a lápis maior número de gatos nas margens do livro de leitura; gatos e porcos. Não alegrava, mas distraía. A missa do sétimo dia restituiu-me à rua; no sábado não fui à escola, fui à casa de meu padrinho, onde pude falar um pouco mais, e no domingo estive à porta da loja. Não era alegria completa. A total alegria foi segunda-feira, na escola. Entrei vestido de preto, fui mirado com curiosidade, mas tão outro ao pé dos meus condiscípulos, que me esqueceram as férias sem gosto, e achei uma grande alegria sem férias.
EVOLUÇÃO Chamo-me Inácio; ele, Benedito. não digo o resto dos nossos nomes por um sentimento de compostura, que toda gente discreta apreciará. Inácio basta. Contentem-se com Benedito. Não é muito, mas é alguma coisa, e está com a filosofia de Julieta21: “Que valem nomes, perguntava ela ao namorado. A rosa, como quer que se lhe chame, terá sempre o mesmo cheiro.” Vamos ao cheiro do Benedito. E desde logo assentemos que ele era o menos Romeu deste mundo. Tinha quarenta e cinco anos, quando o conheci; não declaro em que tempo, porque tudo neste conto há de ser misterioso e truncado. Quarenta e cinco anos, e muitos cabelos pretos; para os que não o eram usava um processo químico, tão eficaz que se não lhe distinguiam os pretos dos outros — salvo ao levantar da cama; mas ao levantar da cama não aprecia a ninguém. Tudo mais era natural, pernas, braços, cabeça, olhos, roupa, sapatos, corrente do relógio e bengala. O próprio alfinete de diamante, que trazia na gravata, um dos mais lindos que tenho visto, era natural e legítimo; custou-lhe bom dinheiro; eu mesmo o vi comprar na casa do.... lá me ia escapando o nome do joalheiro; — fiquemos na Rua do Ouvidor. 13
Moralmente, era ele mesmo. Ninguém muda de caráter, e o do Benedito era bom, — ou para melhor dizer, pacato. Mas, intelectualmente, é que ele era menos original. Podemos compará-lo a uma hospedaria bem afreguesada, aonde iam ter idéias de toda parte e de toda sorte, que se sentavam à mesa com a família da casa. 21
Personagem da peça Romeu e Julieta, de Shakespeare.
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Às vezes, acontecia acharem-se ali duas pessoas inimigas, ou simplesmente antipáticas; ninguém brigava, o dono da casa impunha aos hóspedes a indulgência recíproca. Era assim que ele conseguia ajustar uma espécie de ateísmo vago com duas irmandades que fundou, não sei se na Gávea, na Tijuca ou no Engenho Velho. Usava assim, promiscuamente, a devoção, a irreligião e as meias de seda. Nunca lhe vi as meias, note-se; mas ele não tinha segredos para os amigos. Conhecemo-nos em viagem para Vassouras. Tínhamos deixado o trem e entrado na diligência que nos ia levar da estação à cidade. Trocamos algumas palavras, e não tardou conversarmos francamente, ao sabor das circunstâncias que nos impunham a convivência, antes mesmo de saber quem éramos. Naturalmente, o primeiro objeto foi o progresso que nos traziam as estradas de ferro. Benedito lembrava-se do tempo em que toda a jornada era feita às costas de burro. Contamos então algumas anedotas, falamos de alguns nomes, e ficamos de acordo em que as estradas de ferro eram uma condição de progresso do país. Quem nunca viajou não sabe o valor que tem uma dessas banalidades graves e sólidas para dissipar os tédios do caminho. O espírito areja-se, os próprios músculos recebem uma comunicação agradável, o sangue não salta, fica-se em paz com Deus e os homens. — Não serão os nossos filhos que verão todo este país cortado de estradas, disse ele. — Não, decerto. O senhor tem filhos? — Nenhum. — Nem eu. Não será ainda em cinqüenta anos; e, entretanto, é a nossa primeira necessidade. Eu comparo o Brasil a uma criança que está engatinhando; só começará a andar quando tiver muitas estradas de ferro. — Bonita idéia! exclamou Benedito faiscando-lhe os olhos. — Importa-me pouco que seja bonita, contanto que seja justa. — Bonita e justa, redargüiu ele com amabilidade. Sim, senhor, tem razão: — o Brasil está engatinhando; só começará a andar quando tiver muitas estradas de ferro. Chegamos a Vassouras; eu fui para a casa do juiz municipal, camarada antigo; ele demorou-se um dia e seguiu para o interior. Oito dias depois voltei ao Rio de Janeiro, mas sozinho. Uma semana mais tarde, voltou ele; encontramo-nos no teatro, conversamos muito e trocamos notícias; Benedito acabou convidando-me a ir almoçar com ele no dia seguinte. Fui; deu-me um almoço de príncipe, bons charutos e palestra animada. Notei que a conversa dele fazia mais efeito no meio da viagem – arejando o espírito e deixando a gente em paz com Deus e os homens; mas devo dizer que o almoço pode ter prejudicado o resto. Realmente era magnífico; e seria impertinência histórica pôr a mesa de Lúculo na casa de Platão22. Entre o café e o conhaque, disse-me ele, apoiando o cotovelo na borda da mesa, e olhando o charuto que ardia: 14
— Na minha viagem agora, achei ocasião de ver como o senhor tem razão com aquela idéia do Brasil engatinhando. — Ah! 22 Lúculo, político romano, e Platão, filósofo grego, não foram contemporâneos. O primeiro foi célebre pelos lautos jantares que oferecia aos seus convidados; o segundo escreveu o livro O banquete.
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— Sim, senhor; é justamente o que o senhor dizia na diligência de Vassouras. Só começaremos a andar quando tivermos muitas estradas de ferro. Não imagina como isso é verdade. E referiu muita coisa, observações relativas aos costumes do interior, dificuldades da vida, atraso, concordando, porém, nos bons sentimentos da população e nas aspirações de progresso. Infelizmente, o governo não correspondia às necessidades da pátria; parecia até interessado em mantê-la atrás das outras nações americanas. Mas era indispensável que nos persuadíssemos de que os princípios são tudo e os homens nada. Não se fazem os povos para os governos, mas os governos para os povos; e abyssus abyssum invocat. Depois foi mostrar-me outras salas. Eram todas alfaiadas23 com apuro. Mostrou-me as coleções de quadros, de moedas, de livros antigos, de selos, de armas; tinha espadas e floretes, mas confessou que não sabia esgrimir. Entre os quadros vi um lindo retrato de mulher; perguntei-lhe quem era. Benedito sorriu. — Não irei adiante, disse eu sorrindo também. — Não, não há que negar, acudiu ele; foi uma moça de quem gostei muito. Bonita, não? Não imagina a beleza que era.. Os lábios eram mesmo de carmim e as faces de rosa; tinha os olhos negros, cor da noite. E que dentes! verdadeiras pérolas. Um mimo da natureza. Em seguida, passamos ao gabinete. Era vasto, elegante, um pouco trivial, mas não lhe faltava nada. Tinha duas estantes, cheias de livros muito bem encadernados, um mapa-mundi, dois mapas do Brasil. A secretária era de ébano, obra fina; sobre ela, casualmente aberto, um almanaque de Laemmert. O tinteiro era de cristal, — “cristal de rocha”, disse-me ele, explicando o tinteiro, como explicava as outras coisas. Na sala contígua havia um órgão. Tocava órgão, e gostava muito de música, falou dela com entusiasmo, citando as óperas, os trechos melhores, e noticiou-me que, em pequeno, começara a aprender flauta; abandonou-a logo, — o que foi pena, concluiu, porque é, na verdade, um instrumento muito saudoso. Mostrou-me ainda outras salas, fomos ao jardim, que era esplêndido, tanto ajudava a arte à natureza, e tanto a natureza coroava a arte. Em rosas, por exemplo, (não há negar, disse-me ele, que é a rainha das flores) em rosas, tinha-as de toda casta e de todas as regiões. Saí encantado. Encontramo-nos algumas vezes, na rua, no teatro, em casa de amigos comuns, tive ocasião de apreciá-lo. Quatro meses depois fui à Europa, negócio que me obrigava a ausência de um ano; ele ficou cuidando da eleição; queria ser deputado. Fui eu mesmo que o induzi a isso, sem a menor intenção política, mas com o único fim de lhe ser agradável; mal comparando, era como se lhe elogiasse o corte do colete. Ele pegou da idéia, e apresentou-se. Um dia, atravessando uma rua de Paris, dei subitamente com o Benedito. 15
— Que é isto? exclamei. — Perdi a eleição, disse ele, e vim passear à Europa. — Não me deixou mais; viajamos juntos o resto do tempo. Confessou-me que a perda da eleição não lhe tirara a idéia de entrar no parlamento. Ao contrário, incitara-o mais. Falou-me de um grande plano. — Quero vê-lo ministro, disse-lhe.
23 Enfeitadas.
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Benedito não contava com esta palavra, o rosto iluminou-se-lhe; mas disfarçou depressa. — Não digo isso, respondeu. Quando, porém, seja ministro, creia que serei tão-somente ministro industrial. Estamos fartos de partidos: precisamos desenvolver as forças vivas do país, os seus grandes recursos. Lembra-se do que nós dizíamos nas diligências de Vassouras? O Brasil está engatinhando; só andará com estradas de ferro... — Tem razão, concordei um pouco espantado. E por que é que eu mesmo vim à Europa? Vim cuidar de uma estrada de ferro. Deixo as coisas arranjadas em Londres. — Sim? — Perfeitamente. Mostrei- lhe os papéis, ele viu-os deslumbrado. Como eu tivesse então recolhido alguns apontamentos, dados estatísticos, folhetos, relatórios, cópias de contratos, tudo referente a matérias industriais, e lhos mostrasse, Benedito declarou-me que ia também coligir algumas coisas daquelas. E, na verdade, vi-o andar por ministérios, bancos, associações, pedindo muitas notas e opúsculos, que amontoava nas malas; mas o ardor com que o fez, se foi intenso, foi curto; era de empréstimo. Benedito recolheu com muito mais gosto os anexins24 políticos e fórmulas parlamentares. Tinha na cabeça um vasto arsenal deles. Nas conversas comigo repetia-os muita vez, à laia de experiência; achava neles grande prestígio e valor inestimável. Muitos eram de tradição inglesa, e ele os preferia aos outros, como trazendo em si um pouco da Câmara dos Comuns. Saboreava-os tanto que eu não sei se ele aceitaria jamais a liberdade real sem aquele aparelho verbal; creio que não. Creio até que, se tivesse de optar, optaria por essas formas curtas, tão cômodas, algumas, lindas, outras sonoras, todas axiomáticas25, que não forçam a reflexão, preenchem os vazios, e deixam a gente em paz com Deus e os homens. Regressamos juntos; mas eu fiquei em Pernambuco, e tornei mais tarde a Londres, donde vim ao Rio de Janeiro, um ano depois. Já então Benedito era deputado. Fui visitá-lo; achei-o preparando o discurso de estréia. Mostrou -me alguns apontamentos, trechos de relatórios, livros de economia política, alguns com páginas marcadas por meio de tiras e papel rubricadas assim: 16
— Câmbio, Taxa das terras, Questão dos cereais em Inglaterra, Opinião de Stuart Mill, Erro de Thiers sobre caminhos de ferro, etc. Era sincero, minucioso e cálido. Falava-me daquelas coisas, como se acabasse de as descobrir, expondo-me tudo, ab ovo ; tinha a peito mostrar aos homens práticos da Câmara que também ele era prático. Em seguida, perguntou-me pela empresa; disse-lhe o que havia. — Dentro de dois anos conto inaugurar o primeiro trecho da estrada. — E os capitalistas ingleses? — Que tem? — Estão contentes, esperançados? — Muito; não imagina. Contei-lhe algumas particularidades técnicas, que ele ouviu distraidamente, ou porque a minha narração fosse em extremo complicada, ou por outro motivo.
24 Provérbios. 25 Diz-se do que se admite como verdadeiro, sem necessidade de demonstrá-lo.
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Quando acabei, disse-me que estimava ver-me entregue ao movimento industrial; era dele que precisávamos, e a este propósito fez-me o favor de ler o exórdio26 do discurso que devia proferir dali a dias.
Está ainda em borrão, explicou-me; mas as idéias capitais ficam. E começou: “No meio da agitação crescente dos espíritos, do alarido partidário que encobre as vozes dos legítimos interesses, permiti que alguém faça ouvir uma súplica da nação. Senhores, é tempo de cuidar, exclusivamente, — notai que digo exclusivamente, — dos melhoramentos materiais do país. Não desconheço o que se me pode replicar; dir-me-eis que uma nação não se compõe só de estômago para digerir, mas de cabeça para pensar e de coração para sentir. Respondo-vos que tudo isso não valerá nada ou pouco, se ela não tiver pernas para caminhar; e aqui repetirei o que, há alguns anos, dizia eu a um amigo, em viagem pelo interior: o Brasil é uma criança que engatinha; só começará a andar quando estiver cortado de estradas de ferro...” Não pude ouvir mais nada e fiquei pensativo. Mais que pensativo, fiquei assombrado, desvairado diante do abismo que a psicologia rasgava aos meus pés. Este homem é sincero, pensei comigo, está persuadido do que escreveu. E fui por aí abaixo até ver se achava a explicação dos trâmites por que passou aquela recordação da diligência de Vassouras. Achei (perdoem-me se há nisto enfatuação) achei ali mais um efeito da lei da evolução, tal como a definiu Spencer27 – Spencer ou Benedito, um deles. PÍLADES E ORESTES28 Quintanilha engendrou Gonçalves. Tal era a impressão que davam os dois juntos, não que se parecessem. Ao contrário, Quintanilha tinha o rosto redondo, Gonçalves comprido, o primeiro era baixo e moreno, o segundo alto e claro, e a expressão total divergia inteiramente. Acresce que eram quase da mesma idade. A idéia da paternidade nascia das maneiras com que o primeiro tratava o segundo; um pai não se desfaria mais em carinhos, cautelas e pensamentos. Tinham estudado juntos, morado juntos, e eram bacharéis do mesmo ano. Quintanilha não seguiu advocacia nem magistratura, meteu-se na política; mas, eleito deputado provincial em 187... cumpriu o prazo da legislatura e abandonou a carreira. Herdara os bens de um tio, que lhe davam de renda cerca de trinta contos de réis. Veio para o seu Gonçalves, que advogava no Rio de Janeiro. Posto que abastado, moço, amigo do seu único amigo, não se pode dizer que Quintanilha fosse inteiramente feliz, como vais ver. Ponho de lado o desgosto que lhe trouxe a herança com o ódio dos parentes; tal ódio foi que ele esteve prestes a abrir mão dela, e não o fez porque o amigo Gonçalves, que lhe dava idéias e conselhos, o convenceu de que semelhante ato seria rematada loucura. 17
— Que culpa tem você que merecesse mais a seu tio que os outros parentes? Não foi você que fez o testamento nem andou a bajular o defunto, como os outros. Se ele deixou tudo a você, é que o achou melhor que eles; fique-se com a fortuna, que é a vontade do morto, e não seja tolo. 26 27 28
Prefácio. Spencer (1820-1903), filósofo inglês. Personagens da mitologia grega, Orestes e Pílades são exemplo da amizade masculina inseparável.
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Quintanilha acabou concordando. Dos parentes alguns buscaram reconciliar-se com ele, mas o amigo mostrou-lhe a intenção recôndita dos tais, e Quintanilha não lhes abriu a porta. Um desses, ao vê-lo ligado com o antigo companheiro de estudos, bradava por toda a parte: — Aí está, deixa os parentes para se meter com estranhos; há de ver o fim que leva. Ao saber disto, Quintanilha correu a contá-lo a Gonçalves, indignado. Gonçalves sorriu, chamou-lhe tolo e aquietou-lhe o ânimo; não valia a pena irritar-se por ditinhos. — Uma só coisa desejo, continuou, é que nos separemos, para que não se diga... — Que não se diga o quê? É boa! Tinha de ser, se eu passava a escolher as minhas amizades conforme o capricho de alguns peraltas sem-vergonha! — Não fale assim, Quintanilha. Você é grosseiro com seus parentes. — Parentes do diabo que os leve! Pois eu hei de viver com as pessoas que me forem designadas por meia dúzia de velhacos que o que querem é comer-me o dinheiro? Não, Gonçalves; tudo o que você quiser, menos isso. Quem escolhe os meus amigos sou eu, é o meu coração. Ou você está... está aborrecido de mim? — Eu? tinha graça. — Pois então? — Mas é... — Não é tal! A vida que viviam os dois, era a mais unida deste mundo. Quintanilha acordava, pensava no outro, almoçava e ia ter com ele. Jantavam juntos, faziam alguma visita, passeavam ou acabavam a noite no teatro. Se Gonçalves tinha algum trabalho que fazer à noite, Quintanilha ia ajudá-lo como obrigação; dava busca aos textos de lei, marcava-os, copiava-os, carregava os livros. Gonçalves esquecia com facilidade, ora um recado, ora uma carta, sapatos, charutos, papéis. Quintanilha supria-lhe a memória. Às vezes, na Rua do Ouvidor, vendo passar as moças, Gonçalves lembrava-se de uns autos que deixara no escritório. Quintanilha voava a buscá-los e tornava com eles, tão contente que não se podia saber se eram autos, se a sorte grande; procurava-o ansiosamente com os olhos, corria, sorria, morria de fadiga. — São estes? — São; deixa ver, são estes mesmos. Dá cá. — Deixa, eu levo. A princípio, Gonçalves suspirava: Que maçada que dei a você! Quintanilha ria do suspiro com tão bom humor que o outro, para não o molestar, não se acusou de mais nada; concordou em receber os obséquios. Com o tempo, os obséquios ficaram sendo puro ofício. Gonçalves dizia ao outro: “Você hoje há de lembrar-me isto e aquilo”. E o outro decorava as recomendações, ou escrevia-as, se eram muitas. Algumas dependiam de horas; era de ver como o bom Quintanilha suspirava aflito, à espera que chegasse tal ou tal hora para ter o gosto de lembrar os negócios ao amigo. E levava-lhe as cartas e papéis, ia buscar as respostas, procurar as pessoas, esperá-las na estrada de ferro, fazia viagens ao interior.
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De si mesmo descobria-lhe bons charutos, bons jantares, bons espetáculos. Gonçalves já não tinha a liberdade de falar de um livro novo, ou somente caro, que não achasse um exemplar em casa. — Você é um perdulário, dizia-lhe em tom repreensivo. — Então gastar com letras e ciências é botar fora? É boa! concluía o outro. No fim do ano quis obrigá-lo a passar fora as férias. Gonçalves acabou aceitando, e o prazer que lhe deu com isto foi enorme. Subiram a Petrópolis. Na volta, serra abaixo, como falassem de pintura, Quintanilha advertiu que não tinham ainda uma tela com o retrato dos dois, e mandou fazê-la. Quando a levou ao amigo, este não pode deixar de lhe dizer que não prestava para nada. Quintanilha ficou sem voz. — É uma porcaria, insistiu Gonçalves. — Pois o pintor disse-me... — Você não entende de pintura, Quintanilha, e o pintor aproveitou a ocasião para meter a espiga. Pois isto é cara decente? Eu tenho este braço torto? — Que ladrão! — Não, ele não tem culpa, fez o seu negócio; você é que não tem o sentimento da arte, nem prática, e espichou-se29 redondamente. A intenção foi boa, creio... — Sim, a intenção foi boa. — E aposto que já pagou? — Já. Gonçalves abanou a cabeça, chamou-lhe ignorante e acabou rindo. Quintanilha, vexado e aborrecido, olhava para a tela, até que sacou de um canivete e rasgou-a de alto a baixo. Como se não bastasse esse gesto de vingança, devolveu a pintura ao artista com um bilhete em que lhe transmitiu alguns dos nomes recebidos e mais o de asno. A vida tem muitas de tais pagas. Demais, uma letra de Gonçalves que se venceu dali a dias e que este não pôde pagar, veio trazer ao espírito de Quintanilha uma diversão. Quase brigaram; a idéia de Gonçalves era reformar a letra; Quintanilha, que era o endossante, entendia não valer a pena pedir o favor por tão escassa quantia (um conto e quinhentos), ele emprestaria o valor da letra, e o outro que lhe pagasse, quando pudesse. Gonçalves não consentiu e fez-se a reforma. Quando, ao fim dela, a situação se repetiu, o mais que este admitiu foi aceitar uma letra de Quintanilha, com o mesmo juro. — Você não vê que me envergonha, Gonçalves? Pois eu hei de receber juro de você...? — Ou recebe, ou não fazemos nada. — Mas, meu querido... 18
Teve que concordar. A união dos dois era tal que uma senhora chamava-lhes os “casadinhos de fresco”, e um letrado, Pílades e Orestes. Eles riam, naturalmente, mas o riso de Quintanilha trazia alguma coisa parecida com lágrimas: era, nos olhos, uma ternura úmida.
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No texto: enganar-se.
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Outra diferença é que o sentimento de Quintanilha tinha uma nota de entusiasmo, que absolutamente faltava ao de Gonçalves; mas, entusiasmo não se inventa. É claro que o segundo era mais capaz de inspirá-lo ao primeiro do que este a ele. Em verdade, Quintanilha era mui sensível a qualquer distinção; uma palavra, um olhar bastava a acender-lhe o cérebro. Uma pancadinha no ombro ou no ventre, com o fim de aprová-lo ou só acentuar a intimidade, era para derretê-lo de prazer. Contava o gesto e as circunstâncias durante dois ou três dias. Não era raro vê-lo irritar-se, teimar, descompor os outros. Também era comum vê-lo rir-se; alguma vez o riso era universal, entornava-se-lhe da boca, dos olhos, da testa, dos braços, das pernas, todo ele era um riso único. Sem ter paixões, estava longe de ser apático. A letra sacada contra Gonçalves tinha o prazo de seis meses. No dia do vencimento, não só não pensou em cobrá-la, mas resolveu ir jantar a algum arrabalde para não ver o amigo, se fosse convidado à reforma. Gonçalves destruiu todo esse plano; logo cedo, foi levar-lhe o dinheiro. O primeiro gesto de Quintanilha foi recusá-lo, dizendo-lhe que o guardasse, podia precisar dele; o devedor teimou em pagar e pagou. Quintanilha acompanhava os atos de Gonçalves; via a constância do seu trabalho, o zelo que ele punha na defesa das demandas, e vivia cheio de admiração. Realmente, não era grande advogado, mas na medida das suas habilitações, era distinto. — Você por que não se casa? perguntou -lhe um dia; um advogado precisa casar. Gonçalves respondia rindo. Tinha uma tia, única parenta, a quem ele queria muito, e que lhe morreu, quando eles iam em trinta anos. Dias depois, dizia ao amigo: — Agora só me resta você. Quintanilha sentiu os olhos molhados, e não achou que lhe respondesse. Quando se lembrou de dizer que “iria até à morte” era tarde. Redobrou então de carinhos, e um dia acordou com a idéia de fazer testamento. Sem revelar nada ao outro, nomeou-o testamenteiro e herdeiro universal. — Guarde-me este papel, Gonçalves, disse-lhe entregando o testamento. Sinto-me forte, mas a morte é fácil, e não quero confiar a qualquer pessoa as minhas últimas vontades. Foi por esse tempo que sucedeu um caso que vou contar. Quintanilha tinha uma prima segunda, Camila, moça de vinte e dois anos, modesta, educada e bonita. Não era rica; o pai, João Bastos, era guarda-livros de uma casa de café. Haviam brigado por ocasião da herança; mas, Quintanilha foi ao enterro da mulher de João Bastos, e este ato de piedade novamente os ligou. João Bastos esqueceu facilmente alguns nomes crus que dissera ao primo, chamou-lhe outros nomes doces, e pediu-lhe que fosse jantar com ele. Quintanilha foi e tornou a ir. Ouviu ao primo o elogio da finada mulher; numa ocasião em que Camila os deixou a sós, João Bastos louvou as raras prendas da filha, que afirmava haver recebido integralmente a herança moral da mãe.
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— Não direi isto nunca à pequena, nem você lhe diga nada. É modesta, e, se começarmos a elogiá-la, pode perder-se. Assim, por exemplo, nunca lhe direi que é tão bonita como foi a mãe, quando tinha a idade dela; pode ficar vaidosa. Mas a verdade é que é mais, não lhe parece? Tem ainda o talento de tocar piano, que a mãe não possuía. Quando Camila voltou à sala de jantar, Quintanilha sentiu vontade de lhe descobrir tudo, conteve-se e piscou o olho ao primo. Quis ouvi-la ao piano; ela respondeu, cheia de melancolia: — Ainda não, há apenas um mês que mamãe faleceu, deixe passar mais tempo. Demais, eu toco mal. — Mal? — Muito mal. Quintanilha tornou a piscar o olho ao primo, e ponderou à moça que a prova de tocar bem ou mal só se dava ao piano. Quanto ao prazo, era certo que apenas passara um mês; todavia era também certo que a música é uma distração natural e elevada. Além disso, bastava tocar um pedaço triste. João Bastos aprovou este modo de ver e lembrou uma composição elegíaca. Camila abanou a cabeça. — Não, não, sempre é tocar piano; os vizinhos são capazes de inventar que eu toquei uma polca. Quintanilha achou graça e riu. Depois concordou e esperou que os três meses fossem passados. Até lá, viu a prima algumas vezes, sendo as três últimas visitas mais próximas e longas. O pai confessou que, ao princípio, não gostava muito daquelas músicas alemãs; com o tempo e o costume achou-lhes sabor. Chamava à filha “a minha alemãzinha”, apelido que foi adotado por Quintanilha, apenas modificado para o plural: “a nossa alemãzinha”. Pronomes possessivos dão intimidade; dentro em pouco, ela existia entre os três, — ou quatro, se contarmos Gonçalves, que ali foi apresentado pelo amigo; — mas fiquemos nos três. Que ele é coisa já farejada por ti, leitor sagaz. Quintanilha acabou gostando da moça. Como não, se Camila tinha uns longos olhos mortais? Não é que os pousasse muita vez nele, e, se o fazia, era com tal ou qual constrangimento, a princípio, como as crianças que obedecem sem vontade às ordens do mestre ou do pai; mas pousava-os, e eles eram tais que, ainda sem intenção, feriam de morte. Também sorria com freqüência e falava com graça. Ao piano, e por mais aborrecida que tocasse, tocava bem. Em suma, Camila não faria obra de impulso próprio, sem ser por isso menos feiticeira. Quintanilha descobriu um dia de manhã que sonhara com ela a noite toda, e à noite que pensara nela todo o dia, e concluiu da descoberta que a amava e era amado.
Tão tonto ficou que esteve prestes a imprimi -lo nas folhas públicas. Quando menos, quis dizê-lo ao amigo Gonçalves e correu ao escritório deste. A afeição de Quintanilha complicava-se de respeito e temor. Quase a abrir a boca, engoliu outra vez o segredo. Não ousou dizê-lo nesse dia nem no outro. Antes dissesse; talvez fosse tempo de vencer a campanha. Adiou a revelação por uma semana. Um dia foi jantar com o amigo, e, depois de muitas hesitações, disse-lhe tudo; amava a prima e era amado.
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— Você aprova, Gonçalves? Gonçalves empalideceu, — ou, pelo menos, ficou sério; nele a seriedade confundia-se com a palidez. Mas não; verdadeiramente ficou pálido. — Aprova? repetiu Quintanilha. Após alguns segundos, Gonçalves ia abrir a boca para responder, mas fechou-a de novo, e fitou os olhos “em ontem”, como ele mesmo dizia de si, quando os estendia ao longe. Em vão Quintanilha teimou em saber o que era, o que pensava, se aquele amor era asneira. Estava tão acostumado a ouvir-lhe este vocábulo que já lhe não doía nem afrontava, ainda em matéria tão melindrosa e pessoal. Gonçalves tornou a si daquela meditação, sacudiu os ombros, com ar desenganado, e murmurou esta palavra tão surdamente que o outro mal a pôde ouvir. — Não me pergunte nada; faça o que quiser. — Gonçalves, que é isso? perguntou Quintanilha, pegando-lhe nas mãos, assustado. Gonçalves soltou um grande suspiro, que, se tinha asas, ainda agora estará voando. Tal foi, sem esta forma paradoxal, a impressão de Quintanilha. O relógio da sala de jantar bateu oito horas, Gonçalves alegou que ia visitar um desembargador, e o outro despediu-se. Na rua, Quintanilha parou atordoado. Não acabava de entender aqueles gestos, aquele suspiro, aquela palidez, todo o efeito misterioso da notícia dos seus amores. Entrara e falara, disposto a ouvir do outro um ou mais daqueles epítetos costumados e amigos, idiota, crédulo, paspalhão, e não ouviu nenhum. Ao contrário, havia nos gestos de Gonçalves alguma coisa que pegava com o respeito. Não se lembrava de nada ao jantar, que pudesse tê-lo ofendido; foi só depois de lhe confiar o sentimento novo que trazia a respeito da prima que o amigo ficou acabrunhado. — Mas, não pode ser, pensava ele; o que é que Camila tem que não possa ser boa esposa? Nisto gastou, parado, defronte da casa, mais de meia hora. Advertiu então que Gonçalves não saíra. Esperou mais meia hora, nada. Quis entrar outra vez, abraçá-lo, interrogá-lo... Não teve forças; enfiou pela rua fora, desesperado. Chegou à casa de João Bastos, e não viu Camila; tinha-se recolhido, constipada. Queria justamente contar-lhe tudo, e aqui é preciso explicar que ele ainda não se havia declarado à prima. Os olhares da moça não fugiam dos seus; era tudo, e podia não passar de faceirice. Mas o lance não podia ser melhor para clarear a situação. Contando o que se passara com o amigo, tinha o ensejo de lhe fazer saber que a amava e ia pedi-la ao pai. Era uma consolação no meio daquela agonia; o acaso negou-lha, e Quintanilha saiu da casa, pior que entrara. Recolheu-se à sua. Não dormiu antes das duas horas da manhã, e não foi para repouso, senão para agitação maior e nova. Sonhou que ia a atravessar uma ponte velha e longa, entre duas montanhas, e a meio caminho viu surgir debaixo um vulto e fincar os pés defronte dele. Era Gonçalves. “Infame, disse este com os olhos acesos, por que me vens tirar a noiva do meu coração, a mulher que eu amo e é minha? Toma, toma logo o meu
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coração, é mais completo.” E com um gesto rápido abriu o peito, arrancou o coração e meteu-lho na boca. Quintanilha tentou pegar da víscera amiga e repô-la no peito de Gonçalves; foi impossível. Os queixos acabaram por fechá-la. Quis cuspi-la e foi pior; os dentes cravaram-se no coração. Quis falar, mas vá alguém falar com a boca cheia daquela maneira. Afinal o amigo ergueu os braços e estendeu-lhe as mãos com o gesto de maldição que ele vira nos melodramas, em dias de rapaz; logo depois, brotaram-lhe dos olhos duas imensas lágrimas, que encheram o vale de água, atirou-se abaixo e desapareceu. Quintanilha acordou sufocado. A ilusão do pesadelo era tal que ele ainda levou as mãos à boca, para arrancar de lá o coração do amigo. Achou a língua somente, esfregou os olhos e sentou-se. Onde estava? Que era? E a ponte? E o Gonçalves? Voltou a si de todo, compreendeu e novamente se deitou, para outra insônia, menor que a primeira, é certo; veio a dormir às quatro horas. De dia, rememorando toda a véspera, realidade e sonho, chegou à conclusão de que o amigo Gonçalves era seu rival, amava a prima dele, era talvez amado por ela... Sim, sim, podia ser. Quintanilha passou duas horas cruéis. Afinal pegou em si e foi ao escritório de Gonçalves, para saber tudo de uma vez; e, se fosse verdade, sim, se fosse verdade... Gonçalves redigia umas razões de embargo. Interrompeu-as para fitá-lo um instante, erguer-se, abrir o armário de ferro, onde guardava os papéis graves, tirar de lá o testamento de Quintanilha, e entregá-lo ao testador. — Que é isto? — Você vai mudar de estado, respondeu Gonçalves, sentando-se à mesa. Quintanilha sentiu-lhe lágrimas na voz; assim lhe pareceu, ao menos. Pediu-lhe que guardasse o testamento; era o seu depositário natural. Instou muito; só lhe respondia o som áspero da pena correndo no papel. Não corria bem a pena, a letra era tremida, as emendas mais numerosas que de costume, provavelmente as datas erradas. A consulta dos livros era feita com tal melancolia que entristecia o outro. Às vezes, parava tudo, pena e consulta, para só ficar o olhar fito “em ontem”. — Entendo, disse Quintanilha, ela será tua. — Ela quem? quis perguntar Gonçalves, mas já o amigo voava escada abaixo, como uma flecha, e ele continuou as suas razões de embargo. Não se adivinha todo o resto; basta saber o final. Nem se adivinha nem se crê; mas a alma humana é capaz de esforços grandes, no bem como no mal. Quintanilha fez outro testamento, legando tudo à prima, com a condição de desposar o amigo. Camila não aceitou o testamento, mas ficou tão contente, quando o amigo lhe falou das lágrimas do Gonçalves, que aceitou Gonçalves e as lágrimas. Então Quintanilha não achou melhor remédio que fazer terceiro testamento legando tudo ao amigo. O final da história foi dito em latim. Quintanilha serviu de testemunha ao noivo, e de padrinho aos dois primeiros filhos. Um dia em que, levando doces para os afilhados, atravessava a Praça Quinze de Novem-
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bro, recebeu uma bala revoltosa (1893) que o matou quase instantaneamente. Está enterrado no cemitério de S. João Batista; a sepultura é simples, a pedra tem um epitáfio que termina com esta pia frase: “Orai por ele!” É também o fecho da minha história. Orestes vive ainda, sem os remorsos do modelo grego30. Pílades é agora o personagem mudo de Sófocles31. Orai por ele!
ANEDOTA DO CABRIOLET — Cabriolet32 está aí, sim senhor, dizia o preto que viera à matriz de S. José chamar o vigário para sacramentar dois moribundos. A geração de hoje não viu a entrada e a saída do Cabriolet no Rio de Janeiro. Também não saberá do tempo em que o cab33 e o tílburi34 vieram para o rol dos nossos veículos de praça ou particulares. O cab durou pouco. O tílburi, anterior aos dois, promete ir à destruição da cidade. Quando esta acabar e entrarem os cavadores de ruínas, achar-se-á um parado, com o cavalo e o cocheiro em ossos esperando o freguês de costume. A paciência será a mesma de hoje, por mais que chova, a melancolia maior, como quer que brilhe o sol, porque juntará a própria atual à do espectro dos tempos. O arqueólogo dirá coisas raras sobre os três esqueletos. O Cabriolet não teve história; deixou apenas a anedota que vou dizer. — Dois! exclamou o sacristão. — Sim, senhor, dois, nhã Anunciada e nhô Pedrinho. Coitado de nhô Pedrinho! E nhã Anunciada, coitada! continuou o preto a gemer, andando de um lado para outro, aflito, fora de si. Alguém que leia isto com a alma turva de dúvidas, é natural que pergunte se o preto sentia deveras, ou se queria picar a curiosidade do coadjutor35 e do sacristão. Eu estou que tudo se pode combinar neste mundo, como no outro. Creio que ele sentia deveras; não descreio que ansiasse por dizer alguma história terrível. Em todo caso, nem o coadjutor nem o sacristão lhe perguntaram nada. Não é que o sacristão não fosse curioso. Em verdade, pouco mais era que isso. Trazia a paróquia de cor, sabia o nome às devotas, a vida delas, a dos maridos e a dos pais, as prendas e os recursos de cada uma, e o que comiam, e o que bebiam, e o que diziam, os vestidos e as virtudes, os dotes das solteiras, o comportamento das casadas, as saudades das viúvas. Pesquisava tudo; nos intervalos, ajudava a missa e o resto. Chamava-se João das Mercês, homem quarentão, pouca barba e grisalho, magro e meão36. 19
— Que Pedrinho e que Anunciada serão esses? dizia consigo, acompanhando o coadjutor. Embora ardesse por sabê-los, a presença do coadjutor impediria qualquer pergunta. Este ia tão calado e pio, caminhando para a porta da igreja, que era força mostrar o mesmo silêncio e piedade que ele. Assim foram andando. O Cabriolet esperava-os; o cocheiro desbarretou-se37, os vizinhos e alguns passantes ajoelharam-se, enquanto o padre e o sacristão entravam e o veículo enfiava pela Rua da Misericórdia. O preto desandou o caminho a passo largo. 35 36 37
Sacerdote adjunto a um pároco ou bispo. De porte médio. Tirar o chapéu.
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Que andem burros e pessoas na rua, e as nuvens no céu, se as há, e os pensamentos nas cabeças, se os têm. A do sacristão tinha-os vários e confusos. Não era acerca do Nosso-Pai, embora soubesse adorá-lo, nem da água-benta e do hissope38 que levava; também não era acerca da hora — oito e quarto da noite — aliás, o céu estava claro e a lua ia aparecendo. O próprio Cabriolet, que era novo na terra, e substituía neste caso a sege39, esse mesmo veículo não ocupava o cérebro todo de João das Mercês, a não ser na parte que pegava com nhô Pedrinho e nhá Anunciada. — Há de ser gente nova, ia pensando o sacristão, mas hóspede em alguma casa, decerto, porque não há casa vazia na praia, e o número é da do comendador Brito. Parentes, serão? Que parentes, se nunca ouvi...? Amigos, não sei; conhecidos, talvez, simples conhecidos. Mas então mandariam Cabriolet? Este mesmo preto é novo na casa; há de ser escravo de um dos moribundos, ou de ambos. Era assim que João das Mercês ia cogitando, e não foi por muito tempo. O Cabriolet parou à porta de um sobrado, justamente a casa do comendador Brito, José Martins de Brito. Já havia algumas pessoas embaixo com velas, o padre e o sacristão apearam -se e subiram a escada, acompanhados do comendador. A esposa deste, no patamar, beijou o anel ao padre. Gente grande, crianças, escravos, um burburinho surdo, meia claridade, e os dois moribundos à espera, cada um no seu quarto, ao fundo. Tudo se passou, como é de uso e regra, em tais ocasiões. Nhô Pedrinho foi absolvido e ungido, nhã Anunciada também, e o coadjutor despediu-se da casa para tornar à matriz com o sacristão. Este não se despediu do comendador sem lhe perguntar ao ouvido se os dois eram parentes seus. Não, não eram parentes, respondeu Brito; eram amigos de um sobrinho que vivia em Campinas; uma história terrível ... Os olhos de João das Mercês escutaram arregaladamente estas duas palavras, e disseram, sem falar, que viriam ouvir o resto – talvez naquela mesma noite. Tudo foi rápido, porque o padre descia a escada, era força ir com ele. Foi tão curta a moda do Cabriolet que este provavelmente não levou outro padre a moribundos. Ficou-lhe a anedota, que vou acabar já, tão escassa foi ela, uma anedota de nada. Não importa. Qualquer que fosse o tamanho ou a importância, era sempre uma fatia de vida para o sacristão, que ajudou o padre a guardar o pão sagrado, a despir a sobrepeliz 40, e a fazer tudo mais, antes de se despedir e sair. Saiu, enfim, a pé, rua acima, praia fora, até parar à porta do comendador. 20
Em caminho foi evocando toda a vida daquele homem, antes e depois da comenda. Compôs o negócio, que era fornecimento de navios, creio eu, a família, as festas dadas, os cargos paroquiais, comerciais e eleitorais, e daqui aos boatos e anedotas não houve mais que um passo ou dois. A grande memória de João das Mercês guardava todas as coisas, máximas e mínimas, com tal nitidez que pareciam da véspera, e tão completas que nem o próprio objeto delas era capaz de as repetir iguais. Sabia-as como PadreNosso, isto é, sem pensar nas palavras; ele rezava tal qual comia, mastigando a oração, que lhe saía dos queixos sem sentir. Se a regra mandasse rezar três dúzias de padre-nossos seguidamente, João das Mercês os diria sem contar. 38 39 40
Objeto para aspergir água-benta. Aspersório. Carruagem com duas rodas e um só assento, fechado com cortinas na parte dianteira. Veste branca, com rendas ou sem ela, que os padres usam sobre a batina.
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Tal era com as vidas alheias; amava sabê-las, pesquisava-as, decorava-as, e nunca mais lhe saíam da memória. Na paróquia todos lhe queriam bem, porque ele nem enredava nem maldizia. Tinha o amor da arte pela arte. Muita vez nem era preciso perguntar nada. José dizia-lhe a vida de Antônio e Antônio a de José. O que ele fazia era ratificar ou retificar um com outro, e os dois com Sancho, Sancho com Martinho, e vice-versa, todos com todos. Assim é que enchia as horas vagas, que eram muitas. Alguma vez, à própria missa, recordava uma anedota da véspera, e, a princípio, pedia perdão a Deus; deixou de lho pedir quando refletiu que não falhava uma só palavra ou gesto do santo sacrifício, tão consubstanciados os trazia em si. A anedota que então revivia por instantes era como a andorinha que atravessa uma paisagem. A paisagem fica sendo a mesma, e a água, se há água, murmura o mesmo som. Esta comparação, que era dele, valia mais do que ele pensava, porque a andorinha, ainda voando, faz parte da paisagem, e a anedota fazia nele parte da pessoa; era um dos seus atos de viver. Quando chegou à casa do comendador, tinha desfiado o rosário da vida deste, e entrou com o pé direito para não sair mal. Não pensou em sair cedo, por mais aflita que fosse a ocasião, e nisto a fortuna o ajudou. Brito estava na sala da frente, em conversa com a mulher, quando lhe vieram dizer que João das Mercês perguntava pelo estado dos moribundos. A esposa retirou-se da sala, o sacristão entrou pedindo desculpas e dizendo que era por pouco tempo; ia passando e lembrava-se de saber se os enfermos tinham ido para o céu – ou se ainda eram deste mundo. Tudo o que dissesse respeito ao comendador seria ouvido por ele com interesse. — Não morreram, nem sei se escaparão; quando menos, ela creio que morrerá, concluiu Brito. — Parecem bem mal. — Ela, principalmente; também é a que mais padece da febre. A febre os pegou aqui em nossa casa, logo que chegaram de Campinas, há dias. — Já estavam aqui? perguntou o sacristão, pasmado de não o saber. — Já; chegaram há quinze dias – ou quatorze. Vieram com o meu sobrinho Carlos e aqui apanharam a doença. Brito interrompeu o que ia dizendo; assim pareceu ao sacristão, que pôs no semblante toda a expressão de pessoa que espera o resto. Entretanto, como o outro estivesse a morder os beiços e a olhar para as paredes, não viu o gesto de espera, e ambos se detiveram calados. Brito acabou andando ao longo da sala, enquanto João das Mercês dizia consigo que havia alguma coisa mais que febre. A primeira idéia que lhe acudiu foi se os médicos teriam errado na doença ou no remédio; também pensou que podia ser outro mal escondido, a que deram o nome de febre para encobrir a verdade. Ia acompanhando com os olhos o comendador, enquanto este andava e desandava a sala toda, apagando os passos para não aborrecer mais os que estavam dentro. De lá vinha algum murmúrio de conversação, chamado, recado, porta que se abria ou fechava. Tudo isso era coisa nenhuma para quem tivesse outro cuidado; mas o nosso sacristão já agora não tinha mais que saber o que não sabia. Quando menos, a família dos enfermos, a posição, o atual estado, alguma página da vida deles, tudo era conhecer algo, por mais arredado que fosse da paróquia. — Ah! Exclamou Brito estacando o passo.
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Parecia haver nele o desejo impaciente de referir um caso — a “história terrível”, que anunciara ao sacristão, pouco antes; mas nem este ousava pedi-la nem aquele dizê-la, e o comendador pegou a andar outra vez.
João das Mercês sentou-se. Viu bem que em tal situação cumpria despedir-se com boas palavras de esperança ou de conforto, e voltar no dia seguinte; preferiu sentar-se e aguardar. Não viu na cara do outro nenhum sinal de reprovação do seu gesto; ao contrário, ele parou defronte e suspirou com grande cansaço. — Triste, sim, triste, concordou João das Mercês. Boas pessoas, não? — Iam casar. — Casar? Noivos um do outro? — Brito confirmou de cabeça. A nota era melancólica, mas não havia sinal da história terrível anunciada, e o sacristão esperou por ela. Observou consigo que era a primeira vez que ouvia alguma coisa de gente que absolutamente não conhecia. As caras, vistas há pouco, eram o único sinal dessas pessoas. Nem por isso se sentia menos curioso. Iam casar... Podia ser que a história terrível fosse isso mesmo. Em verdade, atacados de um mal na véspera de um bem, o mal devia ser terrível. Noivos e moribundos... Vieram trazer recado ao dono da casa; este pediu licença ao sacristão, tão depressa que nem deu tempo a que ele se despedisse e saísse. Correu para dentro, e lá ficou cinqüenta minutos. Ao cabo, chegou à sala um pranto sufocado; logo após, tornou o comendador. — Que lhe dizia eu, há pouco ? Quando menos, ela ia morrer; morreu. Brito disse isto sem lágrimas e quase sem tristeza. Conhecia a defunta de pouco tempo. As lágrimas, segundo referiu, eram do sobrinho de Campinas e de uma parenta da defunta, que morava em Mata-Porcos. Daí a supor que o sobrinho do comendador gostasse da noiva do moribundo foi um instante para o sacristão, mas não se lhe pegou a idéia por muito tempo; não era forçoso, e depois se ele próprio os acompanhara... Talvez fosse padrinho de casamento. Quis saber, e era natural, — o nome da defunta. O dono da casa — ou por não querer dar-lho, — ou porque outra idéia lhe tomasse agora a cabeça, — não declarou o nome da noiva, nem do noivo. Ambas as causas seriam. — Iam casar... — Deus a receberá em sua santa guarda, e a ele também, se vier a expirar, disse o sacristão cheio de melancolia. E esta palavra bastou a arrancar metade do segredo que parece ansiava por sair da boca do fornecedor de navios. Quando João das Mercês lhe viu a expressão dos olhos, o gesto com que o levou à janela, e o pedido que lhe fez de jurar, — jurou por todas as almas dos seus que ouviria e calaria tudo. Nem era homem de assoalhar as confidências alheias, mormente as de pessoas gradas e honradas como era o comendador. Ao que este se deu por satisfeito e animado, e então lhe confiou a primeira metade do segredo, a qual era que os dois noivos, criados juntos, vinham casar aqui quando souberam, pela parenta de Mata-Porcos, uma notícia abominável... — E foi...? precipitou-se em dizer João das Mercês, sentindo alguma hesitação no comendador. — Que eram irmãos.
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— Irmãos como? Irmãos de verdade? — De verdade; irmãos por parte de mãe. O pai é que não era o mesmo. A parenta não lhes disse tudo nem claro, mas jurou que era assim, e eles ficaram fulminados durante um dia ou mais... João das Mercês não ficou menos espantado que eles; dispôs-se a não sair dali sem saber o resto. Ouviu dez horas, ouviria todas as demais da noite, velaria o cadáver de um ou de ambos, uma vez que pudesse juntar mais esta página às outras da paróquia, embora não fosse da paróquia. — E vamos, vamos, foi então que a febre os tomou...? Brito cerrou os dentes para não dizer mais nada. Como, porém, o viessem chamar de dentro, acudiu depressa, e meia hora depois estava de volta, com a nova do segundo passamento. O choro, agora mais franco, posto que mais esperado, não havendo já de quem o esconder, trouxera a notícia ao sacristão. — Lá se foi o outro, o irmão, o noivo... que Deus lhes perdoe! Saiba agora tudo, meu amigo. Saiba que eles se queriam tanto que alguns dias depois de conhecido o impedimento natural e canônico do consórcio, pegaram de si e, fiados em serem apenas meios irmãos e não irmãos inteiros, meteram-se em um Cabriolet e fugiram de casa. Dado logo o alarma, alcançamos pegar o Cabriolet em caminho da Cidade Nova, e eles ficaram tão pungidos e vexados da captura que adoeceram de febre e acabam de morrer. Não se pode escrever o que sentiu o sacristão, ouvindo-lhe este caso. Guardou-o por algum tempo, com dificuldade. Soube os nomes das pessoas pelo obituário dos jornais, e combinou as circunstâncias ouvidas ao comendador com outras. Enfim, sem se ter por indiscreto, espalhou a história, só com esconder os nomes e contá-la a um amigo, que a passou a outro, este a outros, e todos a todos.
Fez mais; meteu-se-lhe em cabeça que o Cabriolet da fuga podia ser o mesmo dos últimos sacramentos; foi à cocheira, conversou familiarmente com um empregado, e descobriu que sim. Donde veio chamarse a esta página a “anedota do Cabriolet.”
PÁGINAS CRÍTICAS E COMEMORATIVAS GONÇALVES DIAS Discurso lido no Passeio Público, ao inaugurar-se o busto de Gonçalves Dias. Sr. Prefeito do Distrito Federal, A comissão que tomou a si erguer este monumento, incumbiu -me, como presidente da Academia Brasileira, de o entregar a V. Exa., como representante da cidade. O encargo é não somente honroso, mas particularmente agradável à Academia e a mim. Se eu houvesse de dizer tudo o que este busto exprime para nós, faria um discurso, e é justamente o que os autores da homenagem não devem querer neste momento. Conta Renan que, uma hora antes dos
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funerais de George Sand, quando alguns cogitavam no que convinha proferir à beira da sepultura, ouviuse no parque da defunta cantar um rouxinol. “Ah! eis o verdadeiro discurso!” disseram eles consigo. O mesmo seria aqui, se cantasse um sabiá. A ave do nosso grande poeta seria o melhor discurso da ocasião. Ela repetiria à alma de todos aquela canção do exílio que ensinou aos ouvidos da antiga mãe-pátria uma lição nova da língua de Camões. Não importa! A canção está em todos nós, com os outros cantos que ele veio espalhando pela vida e pelo mundo, e o som dos golpes de Itajubá, a piedade de I- Juca-Pirama, os suspiros de Moema, tudo o que os mais velhos ouviram na mocidade, depois os mais jovens, e daqui em diante ouvirão outros e outros, enquanto a língua que falamos for a língua dos nossos destinos. Dizem que os cariocas somos pouco dados aos jardins públicos. Talvez este busto emende o costume; mas, supondo que não, nem por isso perderão os que só vierem contemplar aquela fronte que meditou páginas tão magníficas. A solidão e o silêncio são asas robustas para os surtos do espírito. Quem vier a este canto do jardim entre o mar e a rua, achará o que se encontra nas capelas solitárias, uma voz interior, e dirá pelo rosário da memória as preces em verso que ele compôs e ensinou aos seus compatrícios. E desde já ficam as duas obras juntas. Uma responderá pela outra. Nem V. Exa., nem os seus sucessores consentirão que se destrua este abrigo de folhas verdes, ou se arranque daqui esse monumento de arte. Se alguém propuser arrasar um e mudar outro, para trazer utilidade ao terreno, por meio de uma avenida, ou coisa equivalente, o prefeito recusará a concessão, dizendo que este jardim, conservado por diversos regimes, está agora consagrado pela poesia, que é um regime só, universal, comum e perpétuo. Também pode declarar que a veneração dos seus grandes homens é uma virtude das cidades. E isto farão os prefeitos de todos os partidos, sem agravo do seu próprio, porque o poeta que ora celebramos, fiel à vocação, não teve outro partido que o de cantar maravilhosamente. Demais, se o caso for de utilidade, V. Exa. e os seus sucessores acharão aqui o mais útil remédio às agruras administrativas. Este busto consolará do trabalho acerbo e ingrato; ele dirá que há também uma prefeitura do espírito, cujo exercício não pede mais que o mudo bronze e a capacidade de ser ouvido no seu eterno silêncio. E repetirá a todos o nome de V. Exa., que o recebeu e o dos outros que porventura vierem contemplá-lo. Também aqui vinha, há muitos anos, desenfadar-se da véspera, sem outro encargo nem magistratura que os seus livros, o autor de Iracema. Se já estivesse aqui este busto, ele se consolaria da vida com a memória, e do tempo com a perenidade. Mas então só existiam as árvores. Bernardelli, que tinha de fundir o bronze de ambos, não povoara ainda as nossas praças com outras obras de artista ilustre. Olavo Bilac, que promoveu a subscrição de senhoras a que se deve esta obra, não afinara ainda pela lira de Gonçalves Dias a sua lira deliciosa. Aqui fica entregue o monumento a V. Exa., Sr. Prefeito, aqui onde ele deve estar, como outro exemplo da nossa unidade, ligando a pátria inteira no mesmo ponto em que a história, melhor que leis, pôs a cabeça da nação perto daquele gigante de pedras que o grande poeta cantou em versos másculos. UM LIVRO [Cenas da vida amazônica] Aqui está um livro que há de ser relido com apreço, com interesse, não raro com admiração. O autor que ocupa lugar eminente na crítica brasileira, também enveredou um dia pela novela, como Sainte-Beuve, que escreveu Volupté, antes de atingir o sumo grau na crítica francesa. Também há aqui um narrador e
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um observador, e há mais aquilo que não acharemos em Volupté, um paisagista e um miniaturista. Já era tempo de dar às Cenas da vida amazônica outra e melhor edição. Eu, que as reli, achei-lhes o mesmo sabor de outrora. Os que as lerem, pela primeira vez, dirão se o meu falar desmente as suas próprias impressões. Talvez achem comigo que o título é exato, sem dizer tudo. São efetivamente cenas daquela vida e daquele meio; sente-se que não podem ser de outra parte, que foram vistas e recolhidas diretamente. Mas não diz tudo o título. Três, ao menos, das quatro novelas em que se divide o livro, são pequenos dramas completos. Tais o Boto , o Crime do tapuio e a Sorte de Vicentina. O próprio Voluntário da pátria tem o drama na alma de tia Zeferina, desde a quietação na palhoça até aquele adeus que ela fica acenando na margem, não já ao filho, que a não pode ver, nem ela a ele, mas ao fumo do vapor que se perde ao longe no rio, como uma sombra. Em todos eles, os costumes locais e a natureza grande e rica, quando não é só áspera e dura, servem de quadro a sentimentos ingênuos, simples e alguma vez fortes. O Sr. José Veríssimo possui o dom da simpatia e da piedade. As suas principais figuras são as vítimas de um meio rude, como Benedita, Rosinha e Vicentina, ou ainda aquele José Tapuio, que confessa um crime não existente, com o único fim de salvar uma menina, ou de “fazê bem pra ela”, como diz o texto. Não se irritem os amigos da língua culta com a prosódia e a sintaxe de José Tapuio. Há dessas frases no livro, postas com arte e cabimento, a espaços, onde é preciso caracterizar melhor as pessoas. Há locuções da terra. Há a tecnologia dos usos e costumes. Ninguém esquece que está diante da vida amazônica, não toda, mas aquela que o Sr. José Veríssimo escolheu naturalmente para dar-nos a visão do contraste entre o meio e o homem. O contraste é grande. A floresta e a água envolvem e acabrunham a alma. A magnificência daquelas regiões chega a ser excessiva. Tudo é inumerável e imensurável. São milhões, milhares e centenas os seres que vão pelos rios e igarapés, que espiam entre a água e a terra, ou bramam e cantam na mata, em meio de um concerto de rumores, cóleras, delícias e mistérios. O Sr. José Veríssimo dá-nos a sensação daquela realidade. A descrição do caminho que leva ao povoado do Ereré, através do “coberto”, do “lavrado” e de um espaço sem nome, é das mais belas e acabadas do livro. Assim também a do Paru, ou antes a história do rio nas duas partes do ano, de verão e de inverno, um só lago intérmino ou muitos lagos grandes, as ilhas que nascem e desaparecem, com os aspectos vários do tempo e da margem. Não são descrições trazidas de acarreto. As pessoas das narrativas vão para ali continuar a ação começada. No Paru, como o tempo é de “salga”, a água é sulcada de canoas, a margem alastrada de barracas, o sussurro do trabalho humano espalha-se e cresce. Aí assistimos à morte trágica do pelintra de Óbidos, regatão de alguns dias, deixando uma triste moça defunta, amarela e magra. Adiante, por meio do “coberto” e do “lavrado”, vemos correr Vicentina, com a filha de alguns meses “escarranchada nos quadris”, fugindo à casa do marido, depois às onças, depois à solidão, que parece maior ali que em nenhuma parte; e ambas as cenas são das mais vivas do livro. Ao pé do trágico, o mesquinho, o comum, o quotidiano da existência e dos costumes, que o autor pinta breve ou minuciosamente. Os pequenos quadros sucedem-se, como o da Rua Bacuri, na cidade de Óbidos, à hora da sesta, ou no fim dela, quando “a natureza estira os braços num bocejo preguiçoso de quem deixa a rede”. A rede é o móvel principal das casas; ela serve ao sono, ao descanso, à pales-
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tra, à indolência. Se a casa é pobre, pouco mais há que ela; mas, pouco ou muito, podemos fiar-nos da veracidade do autor, que não perde o que seja um rasgo de costumes ou possa avivar a cor da realidade. Vimos o regatão41; veremos a benzedeira, a pintadeira de cuias, a mameluca, sem exclusão do jurado, do promotor, do presidente de província. Nem falta aqui a observação fina e aguda. Uma senhora, a quem a tia Zeferina, que a criou, recorre chorando para que faça soltar o filho, preso para voluntário (como diziam aqui no sul), ouve a mãe tapuia, tem sincera pena dela, promete que sim, fala do presidente da província, que é bom moço, do baile do dia 7 de setembro, em palácio, a que ela foi: “uma festa de estrondo; as senhoras estavam todas vestidas de verde e amarelo; muitas tinham mandado vir o vestido do Pará, mas foi tolice, porque em Manaus arranjava-se um vestido tão bom como no Pará; o dela, por exemplo, foi muito gabado... “ Já a tia Zeferina ouvira coisa análoga ao major Rabelo, seu compadre, quando lhe foi contar a prisão do filho, e ele rompeu furioso contra os adversários políticos. Todos os negócios pessoais se vão coçando assim naquela agonia errante. No Boto, é o próprio pai de Rosinha, que não escava muito as razões do abatimento mortal, da filha, “por andar atarefado com as eleições”. Que ele também há eleições no Amazonas; é o tempo da salga política, a quadra das barracas42 e dos regatões. Não nos dá um capítulo desses o Sr. José Veríssimo, naturalmente por lhe não ser necessário, mas a rivalidade da vila e do porto de Monte Alegre é um quadro vivo do que são raivas locais, os motivos que as acendem, a guerra que fazem e os ódios que ficam. Aqui basta a questão de saber se o correio morará no porto, embaixo, ou na vila em cima. E porque não há vitória sem foguetes, os foguetes vão contar às nuvens o despacho presidencial. A sessão do júri, no Crime do tapuio, é outro quadro finamente acabado. Tudo sem sombra de caricatura. O embarque dos voluntários é outro, mas aí a emoção discreta acompanha os movimentos mal ordenados dos homens. Nós os vimos desembarcar aqui, esses e outros, trôpegos e obedientes, marchando mal, mas enfim marchando seguros para a guerra que já lá vai. Em tão várias cenas e lances, o estilo do Sr. José Veríssimo (salvo nos Esbocetos , cuja estrutura é diferente) é já o estilo correntio e vernáculo dos seus escritos posteriores. Já então vemos o homem feito, de mão assentada, dominando a matéria. Há, a mais, uma nota de poesia, a graça e o vigor das imagens, que outra sorte de trabalhos nem sempre consentem. Aqui está a frente da casa do sítio em que Rosinha nasceu: “A palha da cobertura, não aparada, dava-lhe o aspecto alvar das crianças que trazem os cabelos caídos na testa”. No tempo da pesca emigram, não só os homens, mas também os cães e os urubus. Os cães são magros e famintos: “Cães magros, com as costelas salientes, como se houvessem engolido arcos de barris...” Os urubus pousam nas árvores, alguma vez baixam ao solo, andando “com o seu passo ritmado de anjos de procissão”. 21
A umas árvores que há na grande charneca43 do “coberto”, bastava mostrá-las por uma imagem curta e viva, “em posições retorcidas de entrevados”. Mas não se contenta o nosso autor de as dizer assim: em terra tal, tudo há de vibrar ao calor do sol: “Dir-se-ia que o sol, que abrasa aquelas paragens, obriga-as a tais contorções violentas e paralisa-as depois”... Há muitas dessas imagens originais e expressivas; melhor é lê-las ou relê-las intercaladas na narração e na descrição. 41 42 43
Na Amazônia, chama-se o comerciante ambulante, que se locomove através do rio. Na Amazônia, a casa do dono do seringal, que serve também de loja de mantimentos. Barracão. Terreno alagadiço.
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Chateaubriand, escrevendo em 1834 a Sainte-Beuve, justamente a propósito de Volupté, que acabava de sair do prelo, pergunta-lhe admirado como é que ele, René, não achara tantas outras. “Comment n’ai-je pas trouvé ces deux vieillards et ces deux enfants entre lesquels une révolution a passé...”, etc. Desculpe a pontinha de vaidade, é de Chateaubriand, e alguma coisa se há de perdoar ao gênio. Mas, em verdade, mais de um de nós outros poderíamos dizer com sinceridade e modéstia como é que nos não acudiram tais e tais imagens do nosso autor, pois que elas trazem a feição de coisas antes saídas do tinteiro que compostas no papel. Também é dado perguntar por que é que o Sr. José Veríssimo deixou logo um terreno que soube arrotear com fruto. Ele dirá, em uma nota, falando dos Esbocetos , que o fruto era da primeira mocidade. Vá que sim; mas as Cenas trazem outra experiência, e a boa terra não é esquecida, se se lhe encomenda alguma coisa com amor. Até lá, fiquem -nos estas Cenas da vida amazônica. Mais tarde algum crítico da escola do autor compulsará as suas páginas para restituir costumes extintos. Muito estará mudado. Onde José Tapuio lutou com a sicuriju44 até matá-la, outro homem estudará alguma nova força da natureza até reduzi-la ao doméstico. Coberto e lavrado darão melhor caminho às pessoas. Já agora, como disse nhá Miloca à mãe tapuia, os vestidos fazem-se tão bons em Manaus como em Belém. A política irá pelas tesouras da costureira, e a natureza agasalhará todas as artes, suas hóspedas. Tal crítico, se tiver o mesmo dom de análise do Sr. José Veríssimo, achará que um testemunho esclarecido é mais cabal que outro, e regalará os seus leitores dando-lhe este depoimento feito com emoção, com exação e com estilo. EDUARDO PRADO A última vez que vi Eduardo Prado foi na véspera de deixar o Rio de Janeiro para recolher a S. Paulo, dizem que com o gérmen do mal e da morte em si. Naquela ocasião era todo vida e saúde. Quem então me dissesse que ele ia também deixar o mundo, não me causaria espanto, porque a injustiça da natureza acostuma a gente aos seus golpes; mas, é certo que eu buscaria maneira de obter outras horas como aquela, em que me detivesse ao pé dele, para ouvi-lo e admirá-lo. Só falamos de arte. Ouvi-lhe notícias e impressões, senti-lhe o gosto apurado e a crítica superior, tudo envolvido naquele tom ameno e simples, que era um relevo mais aos seus dotes. Não tínhamos intimidade; faltou-nos tempo e a prática necessária. Antes daquela vez última, apenas falamos três ou quatro, o bastante para considerá-lo bem e cotejar o homem com o escritor. Eduardo Prado era dos que se deixam penetrar sem esforço e com prazer. O que agora li a seu respeito na primeira mocidade, na escola e nos últimos anos, referido por amigos que parecem não o esquecer mais, confirma a minha impressão pessoal. Aliás, os seus escritos mostravam bem o homem. Apanhava-se o sentimento da harmonia que ajustava nele a vida moral, intelectual e social. 22
Principalmente artista e pensador, possuía o divino horror à vulgaridade, ao lugar-comum e à declamação. Se entrasse na vida política, que apenas atravessou com a pena, em dias de luta, levaria para ela qualidades de primeira ordem, não contando o humour , tão diverso da chalaça e tão original nele. 44 O mesmo que sucuri, cobra gigantesca e não venenosa, que habita água doce, e se alimenta de pequenos mamíferos depois de esmigalhar-lhes os ossos. Diz-se que as maiores chegam a comer um bezerro inteiro.
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Mas a erudição e a história não menos que a arte, eram agora o seu maior encanto. Sabia bem todas as coisas que sabia. Naturalmente remontei comigo, durante aquela boa hora, e ainda depois dela, ao tempo das cartas de viagem que nos deu tão rica amostra de um grande talento que viria a crescer e subir. A matéria em si convidava ao egotismo, mas ele não padecia desse mal. Também faria correr o risco da repetição de coisas vistas e pintadas, que se não acha aqui. A faculdade de ver claro e largo, a arte de dizer originalmente a sensação pessoal, ele as possuía como os principais que hajam andado as terras ou rasgado os mares deste mundo. Invenção de estilo, observação aguda, erudição discreta e vasta, graça, poesia e imaginação produziram essas páginas vivas e saborosas. Aquela partida de Nápoles, sob um céu chuvoso e de chumbo, não se esquece. Relê-se com encanto essa explicação do tempo áspero, durante o qual o céu napolitano se recompõe, para começar novamente a ópera “com os coros de pescadores e as barcarolas, a música de luz e de azul”. Assim a África, assim todas as partes onde quer que este brasileiro levou a ânsia de ver homens e coisas, cidades e costumes, a natureza vária entre ruínas perpétuas, através de regiões remotas... Conta-se que ele chorou, quando morreu Eça de Queirós. Agora, que ambos são mortos, alguém que imaginasse e escrevesse o encontro das duas sombras, à maneira de Luciano, daria uma curiosa página de psicologia. As confabulações de tais espíritos são dignas de memória. Sterne escreveu que “um dia, conversando com Voltaire...” e imagina-se o que diriam eles. Imagina-se o que diriam, todas as noites, Stendhal e Byron, passeando no solitário foyer do Teatro Scala. Quando Montaigne ouvia as histórias que Amyot lhe ia contar, podemos ver a delícia de ambos e admitir que as visitas continuam no outro mundo. Assim se podia dizer do Eça e do Eduardo, por um texto que exprimisse o talento, o amor das coisas finas e belas, e, enfim, a grande simpatia que um inspirava ao outro. Quando me despedi de Eduardo Prado, naquele dia, vim perguntando a mim mesmo se teria vida bastante para ler e admirar as obras-primas que esse talentoso brasileiro levava no cérebro em gestação, ou em gérmen, e durante muitos anos viriam abastecer a nossa língua e a nossa terra. Seis dias depois, era ele que morria. Chamei injusta à natureza; bastaria dizer — indiferente. ANTÔNIO JOSÉ45 Um dia destes, relembrando uma passagem da tragédia que Magalhães46 consagrou à memória de Antônio José, adverti na resposta dada pelo judeu ao Conde de Ericeira, quando este lhe recomenda que imite Molière; o judeu responde que Molière escrevia para franceses e ele não. Será essa resposta a rigorosa expressão da verdade? Antônio José não se modelou, certamente, pelas obras do grande cômico, não cogitou jamais da simples pintura dos vícios e dos caracteres. Molière caminhou do Médico volante e dos Zelos de Barbouillé à Escola das mulheres e ao Tartufo; Antônio José não passou das Guerras do Alecrim e Manjerona, e, dado que tentasse fazê-lo, é certo que não poderia ir muito além. Não tinha centro apropriado, nem largas vistas; faltavam-lhe outros meios, outros intuitos; e, se porventura entrou em seu espírito reatar a tradição de Gil Vicente, levantando sobre os alicerces lançados por esse operário do século XVI as paredes de um teatro regular, convinha justamente não imitar nada, nem ninguém, não se fazer Molière, nem Plauto, ficar Antônio José; é a condição das obras vivas. 23
45 Antonio José da Silva, cognominado O Judeu (1705-1739), autor teatral nascido no Rio de Janeiro e falecido em Lisboa, queimado pela Inquisição. Foi um dos mais populares autores satíricos da língua portuguesa do século XVIII. 46 Antonio José ou O poeta e a Inquisição, peça de Gonçalves de Magalhães (1838).
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Interpretada desse modo, é exata e verdadeira a resposta que Magalhães põe na boca do judeu; mas só desse modo. O Anfitrião prova que o nosso poeta alguma coisa imitou e transplantou de Molière, a tal ponto que forçosamente o tinha diante de si, ou na banca de trabalho ou na memória; e, porque esta observação não haja sido feita, cuido que interessará, quando menos, a título de curiosidade literária. Ao mesmo tempo, direi o que me parece do escritor e da sua obra. E, antes de mais nada, ocorre ponderar que Antônio José goza de uma reputação sobre palavra. A fogueira de 18 de outubro de 1739 iluminou-lhe a figura de maneira que o puderam ver todos os olhos; a tragédia do Sr. Magalhães vulgarizou-o entre as nossas platéias de há 40 anos; mas só os estudiosos o terão lido, e nem todos, porque a tarefa exige constância e esforço, embora de certo modo os pague. Pode-se dizer, sem erro, que ele pertence à família dos poetas cômicos, qualquer que seja o grau de parentesco, — com a circunstância que era um desperdiçado, — trocava a boa moeda do cômico pelo cobre vulgar do burlesco. Mas, poeta — cômico era-o, e de boa veia; — mais decerto que Nicolau Luís, que lhe sucedeu na estima das platéias de Lisboa, mais ainda que Manuel de Figueiredo, cujas intenções literárias abafaram, talvez, a livre expansão do engenho, e que aliás escrevia de si mesmo que — “havendo-se enganado consigo em infinitas coisas, nunca se preocupou de que tinha graça”. Acresce que o fim trágico do judeu comunica às suas páginas alegres e juvenis um reflexo de simpática melancolia, que ainda mais nos convida a percorrê-las e estudá-las. A piedade não é decerto razão determinativa em pontos de crítica, e tal poetastro haverá que, sucumbindo a uma grande injustiça social, somente inspire compaixão sem desafiar a análise. Não é o caso de Antônio José; este mereceria por si só que o estudássemos, ainda despido das ocorrências trágicas que lhe circundam o nome. Nenhuma das comédias do judeu se pode dizer excelente e perfeita; há porém graus entre elas, e a todas sobreleva a das Guerras do Alecrim e Manjerona. Nesta, como nas demais, nota-se, decerto muita espontaneidade, viveza de diálogo, graça de estilo, variedade de situações, e certo conhecimento de cena; mas a alma de todas elas não é grande; vive-se ali de enredo e de aparato. Se ao poeta foi estranha a invenção dos caracteres e a pintura dos vícios, não menos o foi a transcrição dos costumes locais. Salvo o Alecrim e Manjerona, todas as suas peças são inteiramente alheias à sociedade e ao tempo; a Esopaida tem por base um assunto antigo; a Vida de D. Quixote põe em cena o personagem de Cervantes; as outras peças são todas mitológicas. Podiam estas, não obstante o rótulo, conter a pintura dos costumes e da sociedade cujo produto eram; mas, conquanto em tais composições influa muito o moderno, não se descobre nelas nenhuma intenção daquela natureza. Ao contrário, a intenção quase exclusiva do poeta era a galhofa, e tal galhofa que transcendia muita vez às raias da conveniência pública. Nenhuma de suas peças, — óperas é o nome clássico, — nenhuma é isenta de expressões baixas e até obscenas, com que ele, segundo lhe argüía um prelado, “chafurdou na imundície”. Tinha razão o prelado, mas não basta ter razão; cumpre saber tê-la. Ora, a baixeza e a obscenidade das locuções não eram novidade na cena portuguesa, nem na de outros países; e, deixando de ir agora a exemplos estranhos à nossa língua, basta lembrar que o Cioso, de Ferreira, do culto autor da Castro, foi dado por Figueiredo com a declaração de ter sido “expurgado segundo o melindre dos ouvidos do nosso século”. Gil Vicente, sem embargo de se representarem suas peças na corte de D. João III e D. Manuel, adubava-as às vezes de espécies que nos parecem hoje bem pouco esquisitas.
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As óperas do judeu eram dadas num teatro popular; não as ouvia a corte de D. João V, mas o povo e os burgueses de Lisboa, cujas orelhas não teriam ainda os melindres que mais tarde lhes atribuiu Figueiredo. A diferença entre Antônio José e os outros era afinal uma questão de quantidade; mas, se o tempo lho permitia e, com o tempo, a censura, que muito é que o poeta reincidisse? Não é isto escusá-lo, mas explicá-lo. Deixemos os trocados e equívocos, que são um chiste de mau gosto, mácula de estilo, que o poeta exagerou até à puerilidade, cedendo a si mesmo e ao riso das platéias. Outro defeito que se lhe argúi, é o tom guindado e os arrebiques de conceito, que se notam em muitas falas de certos personagens, os deuses, príncipes e heróis. Um de seus biógrafos, comparando o estilo de tais personagens com o dos criados e pessoas ínfimas, que são simples e naturais, supõe que houve no poeta intenção satírica, opinião que me parece carecer de fundamento, entre outras razões porque não há sempre aquela diferença de estilo, e não é raro falarem os principais personagens do mesmo modo natural e reto, que os de condição inferior. Guindam-se muita vez, mas era achaque do tempo e exageração na maneira de empregar o estilo nobre, porque havia então um estilo nobre; e, se o judeu teve alguma vez intenção satírica, arrebicando ou empolando a expressão, tal intenção foi somente literária e nenhuma outra. Que diremos dos anacronismos de linguagem? Esses são constantes e excessivos. Os dobrões de Alcmena, a alcunha de Alfacinha, dada a Anfitrião, Juno crismada em Felizarda, um criado antigo “de corpo à inglesa”, outro com “relógio de pendurucalhos”, deviam promover a gargalhada franca do povo. Esse fugir do meio e da ação para a realidade presente vai algumas vezes além, como na Esopaida, em que o herói, falando de sua vida, diz que anda em livros pelo mundo — “e agora me dizem que se está representando no Bairro-Alto”. Já na Vida de D. Quixote havia o poeta posto a mesma coisa na boca de Sancho, quando o cavaleiro, vendo um barco amarrado, pergunta ao escudeiro: — “Sabes onde estamos? — Sei bem. — Aonde? — No Bairro-Alto”. O judeu podia responder que tal sestro foi o de Regnard e o de Boursault, por exemplo, que pôs o seu Esopo a tomar café e meteu com ele esposas de tabeliães; podia citar muitos outros exemplos anteriores e contemporâneos, e a crítica se incumbiria de apontar os que vieram depois dele; mas não vale a pena. Venhamos ao Anfitrião. Um erudito escritor, o Sr. Teófilo Braga, supõe que a intenção do poeta, nessa comédia, foi pintar em Júpiter a pessoa de D. João V, suposição que detidamente examinei e me parece inteiramente gratuita. Cuido que o crítico faz de uma coincidência um propósito, e fundamenta a sua suspeita na possível analogia das aventuras do deus pagão e do rei cristão. A analogia podia ser um elemento de prova, mas desacompanhada de outras não faz chegar a nenhum resultado definitivo. Ora, basta ler o Anfitrião, basta comparar a situação do poeta e o tempo para varrer do espírito semelhante hipótese. Certo, não faltava audácia ao poeta; aí está, como exemplo, a definição da justiça, feita por Sancho, na Vida de D. Quixote; mas entre a generalidade desse trecho e a sátira pessoal do Anfitrião vai um abismo. Ocorre-me que do Anfitrião de Molière também se disse ser alusão a Luís XIV, com a diferença que em França não se atribuiu a Molière a intenção de ferir, mas de ser agradável ao rei, que lhe havia encomendado aquela apoteose de suas próprias aventuras, opinião esta que foi de todo condenada. Não, não há motivo para atribuir a Antônio José a intenção que lhe supõe o Sr. Teófilo Braga; e, se tal intenção existisse, o desenlace da comédia, quando Júpiter se declara acima da lei, viria a ser de um sarcasmo tão cru que não alcançaríamos compreendê-lo naquele século.
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Evidentemente, o judeu achou na aventura pagã o mesmo que lhe acharam Plauto, Molière e Camões, — um assunto prestadio às combinações cênicas, e, demais, singularmente próprio para as chufas do Bairro-Alto. Desnecessário é dizer os trâmites dessa travessura de Júpiter, que, namorado de Alcmena, toma a figura do marido e vai à casa dela, acompanhado de Mercúrio, que copia as feições de Sósias, criado de Anfitrião. O nosso poeta seguiu no principal a fábula que encontrou nos antecessores, fazendo -lhe todavia as alterações suscitadas pelo gosto próprio e das platéias. Assim, o Sósias de Plauto, de Molière e de Camões é na peça de Antônio José um Saramago. Não lhe mudou ele o essencial; trocando-lhe o nome, obedeceu ao sistema de dar aos criados nomes burlescos. O de Jasão, nos Encantos de Medéia, chama-se Sacatrapos; há nas outras óperas um Caranguejo, um Esfuziote, um Chichisbéu. São nomes, não valem mais que nomes. Nem Molière chamou Dandin ao principal personagem de uma de suas comédias senão para o caracterizar desde logo de um modo jovial; não pretendeu outra coisa. Contudo, a observação em relação a Antônio José tem o valor de um rasgo significativo. Cotejando o Anfitrião de Antônio José com os de seus antecessores, vê-se o que ele imitou dos modelos, e o que de sua casa introduziu. Já disse que no principal os seguiu a todos; mas nem sempre soube escolher, e darei disso um exemplo claro. Camões, que não sendo poeta cômico, era todavia homem de tato e gosto, corrigiu, antes de Molière, o desenlace do Anfitrião de Plauto. Na comédia deste, logo depois de explicar Júpiter os equívocos da situação e de anunciar ao marido de Alcmena que o filho desta é seu, mostra-se Anfitrião inteiramente satisfeito e glorioso com o desenlace. Camões suprimiu tão singular contentamento, e o mesmo fez Molière; — em ambos os poetas Anfitrião ouve silencioso as declarações do pai dos deuses, sem que Alcmena assista a elas. Antônio José não só não seguiu nessa parte os modelos recentes, mas até carregou a mão sobre o que imitou de Plauto. A alegria do seu Anfitrião e da sua Alcmena é tão franca, tamanho é o alvoroço dos dois esposos, que realmente chega a ofender as leis da verossimilhança, ainda tratando-se de um caso divino. Neste ponto Antônio José antes inadvertido do que obrigado do gosto público. Outro caso. Nas comédias anteriores não há nenhum lugar em que Alcmena veja ao mesmo tempo os dois Anfitriões, e isto não só era necessário para prolongar e justificar os equívocos, mas até o exigia a verossimilhança, porque, desde que Alcmena chegasse a ver juntos os dois exemplares exatos do marido, saía da boa fé que serve de fundamento à sua ilusão, para cair no maravilhoso e no inextricável. E é justamente o que acontece na comédia do judeu. Vamos agora ao que o judeu imitou diretamente de Molière. Há na comédia daquele um caráter, o de Cornucópia, mulher de Saramago, que não tem equivalente na de Plauto, nem na de Camões, e que só na de Molière existe. “Molière (é observação de La Harpe), fazendo de Cléanthis mulher de Sósias, inventou uma situação paralela à de Anfitrião e Alcmena, dando-lhe porém diferente aspecto; Cléanthis pertence ao número das esposas que, por serem honestas, cuidam ter o direito de ser insuportáveis. Ora bem, a situação e o caráter de Cléanthis transportou-os o judeu para o seu Anfitrião, e não se pode dizer encontro fortuito, senão deliberado propósito. Basta cotejá-los com espírito advertido; a diferença é de tom, de estilo; substancialmente, a invenção é a mesma; as próprias idéias reproduzem-se às vezes na obra do judeu. Assim, logo na cena em que Mercúrio transformado em Saramago (Sósias) encontra a mulher deste, achamos o traço comum aos dois poetas.
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Na comédia de Molière: CLÉANTHIS Regarde, traître, Amphytrion; Vois comme pour Alcmène il étale de flamme. Et rougis là-dessus du peu de passion
Que tu témoignes pour ta femme. MERCÚRIO Hé! mon Dieu! Cléanthis, ils sont encore amants. Il est certain âge ou tout passe; Et ce qui leur sied bien dans ces commencements, En nous, vieux mariés, aurait mauvaise grâce. Il nous ferait beau voir, attachés face à face. À pousser les beaux sentiments! CLÉANTHIS Mérites-tu, pendard, cet insigne bonheur De te voir pour épouse une femme d’honneur? MERCÚRIO Mon Dieu! tu n’es que trop honnête; Ce grand honneur ne me vaut rien. Ne sois point si femme de bien, Et me romps un peu moins la tête. Agora Antônio José: CORNUCÓPIA — Também nosso amo trazia bastante fome, e contudo está dizendo à nossa ama tanta coisa galantinha que faria derreter uma pedra. MERCÚRIO — Com que é o mesmo nossos amos do que nós? Eles casadinhos de um ano, e nós há um século? Eles senhores e rapazes, e nós velhos e moços? Eles dois jasmins e nós dois lagartos? E finalmente eles com amor, e nós, ou pelo menos eu, sem nenhum?
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CORNUCÓPIA — Ora, o certo é que pior é fazer festa a vilões ruins; por estas, que se tu conheceras a mulher que tens, que outra coisa fora; talvez que se eu fora alguma dessas bandeirinhas enfeitadas que me quiseras mais; porém a culpa tenho eu em não aceitar o que me davam nas tuas costas. MERCÚRIO — Pois ainda estás em tempo... Trata-se, como se vê, de um caráter e de uma situação integralmente transcritos, embora de outro jeito, cedendo o poeta aos seus hábitos literários, à sua índole e ao seu meio. Nem é somente na introdução do caráter de Cornucópia, e na situação dos dois personagens, que Antônio José revela ter diante de si ou na memória a peça de Molière, há ainda outro vestígio; há uma idéia na cena em que Júpiter se despede de Alcmena, — idéia que o judeu expressa deste modo:
ALCMENA — Este amor nasce da obrigação.
JÚPITER — Pois quisera que esta fineza nascera mais do teu amor que da tua obrigação.
ALCMENA — A obrigação de amar ao esposo supera toda a obrigação.
JÚPITER — Pois mais devera que me quiseras como a amante que como a esposo.
ALCMENA — Não sei fazer esta diferença, pois não posso amar-te como a esposa, sem que te ame como a amante. Na comédia de Molière: JÚPITER: En moi, belle et charmante Alcmène, Vous voyez un mari, vous voyez un amant; Mais l’amant seul me touche, à parler franchement; Et je sens près de vous que le mari me gêne. Cet amant, de vos voeux jaloux au dernier point, Souhaite qu’à lui seul votre amour s’abandonne. ALCMENA: Je ne sépare point ce qu’unissent les dieux; Et l’époux et l’amant me sont forte précieux. Se, neste ponto, já se não trata de uma situação, de um caráter novo, mas de uma idéia entrelaçada no diálogo, importa repetir que, ainda imitando ou recordando, o judeu se conserva fiel à sua fisionomia literária; pode ir buscar a especiaria alheia, mas há de ser para temperá-la com o molho da sua fábrica. Dessa inclinação ao baixo-cômico achamos outro exemplo na Esopaida, cujo assunto fora tratado, antes dele, por Boursault. O caráter tradicional de Esopo era pouco apropriado à comédia: é um moralista, um autor de apólogos, mas Boursault trouxe-o assim mesmo para a cena, único modo de lhe conservar a cor original. O Esopo de Antônio José parece antes um exemplar apurado daqueles lacaios argutos e atrevidos da comédia clássica; salvo dois ou três lugares, é outro gênero de Sacatrapos ou Chichisbéu; figura ali com agudezas e trocadilhos.
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Há destes extremamente bufões, como o da bacia das almas, e disso e de pouco mais se compõe a filosofia de Esopo. Não obstante essa cor geral, notam-se ali toques de bom cômico, embora leves e a espaços. Há também, e principalmente, a veia satírica, na cena que quase todos os seus biógrafos transcrevem, — a das teses dos filósofos, cena extremamente chistosa, e que o próprio Dinis, com toda a sua veia do Hissope e do Falso Heroísmo, não sei se chegaria a fazer mais acabada. Compare-se essa cena com a da invasão do Parnaso pelos maus poetas, na Vida de D. Quixote, e ver-se-á que havia no talento de Antônio José uma forte dose de sátira, — o que, de certa maneira, lhe diminuía a força cômica. Nessas duas peças é, aliás, sensível a habilidade teatral do poeta, que não tinha propriamente uma ação em nenhuma delas, e, não obstante, logrou condensar a vida dos episódios, manter a unidade do interesse e angariar o aplauso público. Acresce que o seu D. Quixote não tem o defeito capital do seu Esopo; o poeta soube dar-lhe alguns toques da ingenuidade sublime, que caracteriza o tipo de Cervantes: é o que se vê logo, na exposição, quando D. Quixote responde ao barbeiro acerca da armada que se prepara para combater o turco: — “Para que se cansam com tantas máquinas? diz ele. Eu lhes dera um bom arbítrio com que, em menos de uma hora, vençam quantas armadas e armadilhas o turco tiver”. É ocioso dizer que o arbítrio seria a cavalaria andante. De todas as comédias, porém, a que goza as honras da primazia, é a das Guerras do Alecrim e Manjerona, e com razão; é a mais acabada e a mais cômica. Tem o gosto do tempo, e até um ressaibo da maneira de Calderón47, que de si mesmo escrevia:
Es comedia de Don Pedro Calderón, donde ha de haber, Por fuerza, amante escondido Y rebozada mujer. Há ali com efeito mulheres rebuçadas e amantes escondidos, e tanta vida como nas peças de Calderón. Não trato aqui do fato que poderia ter dado lugar à obra do judeu, nem das dúvidas de Costa e Silva sobre se os dois ranchos do alecrim e da manjerona existiam antes da comédia, ou se esta os fez nascer; é investigação que não vale a pena de um minuto, e aliás o texto do poeta é claro. Em tudo se avantaja o Alecrim e Manjerona, até na linguagem, que é aí muito menos obscena que nas outras, diferença que se pode atribuir ao progresso do talento, porquanto já no Labirinto de Creta se dá o mesmo fenômeno. 24
Não direi, como Garrett, que essa peça teria hoje todo o valor de uma comédia histórica; mas assim mesmo, quem lhe vê as figuras, a século e meio de distância, parece contemplar uma gravura em que elas conservam as feições e o vestuário do tempo, — os namorados pobres, o velho avarento que arde por se ver livre das sobrinhas, e que, ao anunciarem-lhe a chegada do pretendente provinciano, manda deitar “mais um ovo nos espinafres”, D. Tibúrcio, as duas damas, o Semicúpio e a velha Fagundes, todo o pessoal da antiga farsa. 47
Calderón de la Barca, célebre autor teatral espanhol do século XVII.
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Superior às outras composições, como estilo e originalidade, não menos o é como viveza, graça e movimento: e, se a farsa domina, não é tanto que não apareça a comédia. Basta apontar, por exemplo, a cena da consulta médica, por ocasião do desastre de D. Tibúrcio, que é uma das melhores do teatro do judeu, e não ficaria vexada se a puséssemos ao lado das de Molière e Gil Vicente. Para não faltar nada, há também aforismos latinos, e até uma copla latina, digna de Molière. Podemos considerar o Alecrim e Manjerona como uma das melhores comédias do século XVIII. Ler o Alecrim e Manjerona, o Anfitrião, a Esopaida e o D. Quixote, é avaliar todo o poeta, com suas qualidades boas e más, com o jeito do seu espírito e influência do seu tempo. Nicolau Luís, Figueiredo, Dinis e Garção, no mesmo século, tiveram talvez mais intenção cômica do que Antônio José, mas os meios deste eram maiores, possuíam outra virtualidade, outra espontaneidade, outra abundância. Dirse-á que, se a Inquisição o deixara viver, Antônio José produziria alguma obra de esfera superior? Repito: não creio que ele subisse muito acima do Alecrim e Manjerona; iria talvez ao ponto de fazer alguma coisa parecida com o Avaro, mas não faria todo o Avaro. Agora, a século e meio de distância, podemos afirmar que Antônio José foi um destino decapitado. Qualquer que fosse a natureza do seu engenho, é fora de dúvida que o auto-de-fé em que ele pereceu, devorou com a mesma flama assaz de páginas alegres e vivazes. A prova de que o teatro poderia ainda esperar muito de Antônio José, está na comparação das obras dele com a vida dele. Era um cristão-novo48 , como tal suspeitado e perseguido; aos vinte e um anos padeceu um primeiro processo, e sabe-se que terríveis eram os processos inquisitoriais; basta dizer que o delinqüente revelou todos os seus cúmplices em judaísmo, com a maior franqueza e minuciosidade, o que se pode explicar pela tenra idade do poeta, mas também pelo terror que o tribunal infundia, não menos que pela exortação mansa com que os inquisidores extorquiam a confissão de todos os erros e a denúncia de todos os cúmplices, — sem prejuízo, aliás, do cárcere e da polé. Pois bem, não obstante os vestígios e as lembranças desse primeiro ato da Inquisição, não obstante o espetáculo do que padeciam os seus, as óperas de Antônio José trazem o sabor de uma mocidade imperturbavelmente feliz, a facécia grossa e petulante, tal como lha pedia o paladar das platéias, nenhum vislumbre do episódio trágico, salvo uns versos do Anfitrião que se crêem (e, quanto a mim, sem outro fundamento além da conjetura) como aplicáveis a ele mesmo. Mas ainda supondo que a conjetura tenha razão, admitindo mais que a alegoria da justiça na Vida de D. Quixote seja o resumo das queixas pessoais do poeta (suposição tão frágil como aquela), a verdade é que os sucessos da vida dele não influíram, não diminuíram a força nativa do talento, nem lhe torceram a natureza, que estava muito longe da hipocondria. Molière, que, se nem sempre teve flores no caminho, não conheceu o ínfimo dos padecimentos de Antônio José, foi o criador de Alceste; o nosso judeu, dado que tivesse a mesma intensidade de talento, não escolheria nunca o assunto do Misantropo. 25
Nisto, menos que em nenhuma outra coisa, imitaria ele o grande mestre. Não lhe fossem propor graves problemas, nem máximas profundas, nem os caracteres, nem as altas observações que formam o argumento das comédias de outra esfera, nem sobretudo as melancolias de Molière e Shakespeare. O nosso judeu era a farsa, a genuína farsa, sem outras pretensões, sem mais remotas vistas que os limites do seu bairro e do seu tempo.
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Chamavam-se assim os judeus ou maometanos convertidos à força ao cristianismo.
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Certo, eu posso hoje, à fina força, arrancar alguma idéia inicial das óperas do judeu; por exemplo, ao ver nos Encantos de Medéia a dedicação da feiticeira de Colchos, que trai os deveres filiais e põe todas as suas artes ao serviço de Jasão49, ao ponto de lhe entregar o velocino50 e ao ver que, apesar de tudo isto, o príncipe foge com Creusa, posso, digo eu, atribuir ao poeta a intenção de que o reconhecimento não é o caminho do amor e que um coração pode ser legitimamente ingrato. Seria lógico, seria bem deduzido da ação, mas não passaria de obra da crítica, inteiramente alheia à intenção do poeta, que achou no assunto uma farsa de tramóias e nada mais. Esta é a última conclusão que rigorosamente se pode tirar do poeta. Ele não imitou, não chegaria a imitar Molière, ainda que repetisse as transcrições que fez no Anfitrião; tinha originalidade, embora a influência das óperas italianas. Convenhamos que era um engenho sem disciplina, nem gosto, mas característico e pessoal. 26
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Este personagem aparece ora como Jason, ora como Iason. Preferimos Jasão, a grafia atual. O Velocino de Ouro era uma pele de carneiro dourada, segundo a lenda.
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Vidros Quebrados
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OMEM, cá para mim isto de casamentos são cousas talhadas no céu. É o que diz o povo, e diz bem. Não há acordo nem conveniência nem nada que faça um casamento, quando Deus não quer... — Um casamento bom, emendou um dos interlocutores. — Bom ou mau, insistiu o orador. Desde que é casamento é obra de Deus. Tenho em mim mesmo a prova. Se querem, conto-lhes... Ainda é cedo para o voltarete. Eu estou abarrotado...
Venâncio é o nome deste cavalheiro. Está abarrotado, porque ele e três amigos acabavam de jantar. As senhoras foram para a sala conversar do casamento de uma vizinha, moça teimosa como trinta diabos, que recusou todos os noivos que o pai lhe deu, e acabou desposando um namorado de cinco anos, escriturário no Tesouro. Foi à sobremesa que este negócio começou a ser objeto de palestra. Terminado o jantar, a companhia bifurcou-se; elas foram para a sala, eles para um gabinete, onde os esperava o voltarete habitual. Aí o Venâncio enunciou o princípio da origem divina dos matrimônios, princípio que o Leal, sócio da firma Leal & Cunha, corrigiu e limitou aos matrimônios bons. Os maus, segundo ele explicou daí a pouco, eram obra do diabo. — Vou dar-lhes a prova, continuou o Venâncio, desabotoando o colete e encostando o braço no peitoril da janela que abria para o jardim. Foi no tempo da Campestre... Ah! os bailes da Campestre! Tinha eu então vinte e dous anos. Namorei-me ali de uma moça de vinte, linda como o sol, filha da viúva Faria. A própria viúva, apesar dos cinqüenta feitos, ainda mostrava o que tinha sido. Vocês podem imaginar se me atirei ou não ao namoro... — Com a mãe? — Adeus! Se dizem tolices, calo-me. Atirei-me à filha; começamos o namoro logo na primeira noite; continuamos, correspondemo-nos; enfim, estávamos ali, estávamos apaixonados, em menos de quatro meses. Escrevi-lhe pedindo licença para falar à mãe; e, com efeito, dirigi uma carta à viúva, expondo os meus sentimentos, e dizendo que seria uma grande honra, se me admitisse na família. Respondeu-me oito dias depois que Cecília não podia casar tão cedo, mas que, ainda podendo, ela tinha outros projetos, e por isso sentia muito, e pedia-me desculpa. Imaginem como fiquei! Moço ainda, sangue na guelra, e demais apaixonado, quis ir à casa da viúva, fazer uma estralada, arrancar a moça, e fugir com ela. Afinal, sosseguei e escrevi a Cecília perguntando se consentia que a tirasse por justiça. Cecília respondeu-me que era bom ver primeiro se a mãe voltava atrás; não queria dar-lhe desgostos, mas jurava-me pela luz que a estava alumiando, que seria minha e só minha... Fiquei contente com a carta, e continuamos a correspondência. A viúva, certa da paixão da filha, fez o diabo. Começou por não ir mais à Campestre; trancou as janelas, não ia a parte nenhuma; mas nós escrevíamos um ao outro, e isso bastava. No fim de algum tempo, arranjei meio de vê-la, à noite, no quintal da casa. Pulava o muro de uma chácara vizinha, ajudado por uma boa preta da casa. A primeira cousa que a preta fazia era prender o cachorro; depois, dava-me o sinal, e ficava de vigia. Uma noite,
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porém, o cachorro soltou-se e veio a mim. A viúva acordou com o barulho, foi à janela dos fundos, e viu-me saltar o muro, fugindo. Supôs naturalmente que era um ladrão; mas no dia seguinte, começou a desconfiar do caso, meteu a escrava em confissão, e o demônio da negra pôs tudo em pratos limpos. A viúva partiu para a filha: — Cabeça-de-vento! peste! isto são cousas que se façam? foi isto que te ensinei? Deixa estar; tu me pagas, tão duro como osso! Peste! peste! A preta apanhou uma sova que não lhes digo nada: ficou em sangue. Que a tal mulherzinha era das arábias! Mandou chamar o irmão, que morava na Tijuca, um José Soares, que era então comandante do 6º batalhão da Guarda Nacional; mandou-o chamar, contou-lhe tudo, e pediu-lhe conselho. O irmão respondeu que o melhor era casar Cecília sem demora; mas a viúva observou que, antes de aparecer noivo, tinha medo que eu fizesse alguma, e por isso tencionava retirá-la de casa, e mandá-la para o convento da Ajuda; dava-se com as madres principais... Três dias depois, Cecília foi convidada pela mãe a aprontar-se, porque iam passar duas semanas na Tijuca. Ela acreditou, e mandou-me dizer tudo pela mesma preta, a quem eu jurei que daria a liberdade, se chegasse a casar com a sinhá-moça. Vestiu-se, pôs a roupa necessária no baú, e entraram no carro que as esperava. Mal se passaram cinco minutos, a mãe revelou tudo à filha; não ia levá-la para a Tijuca, mas para o convento, de onde sairia quando fosse tempo de casar. Cecília ficou desesperada. Chorou de raiva, bateu o pé, gritou, quebrou os vidros do carro, fez uma algazarra de mil diabos. Era um escândalo nas ruas por onde o carro ia passando. A mãe já lhe pedia pelo amor de Deus que sossegasse; mas era inútil. Cecília bradava, jurava que era asneira arranjar noivos e conventos; e ameaçava a mãe, dava socos em si mesma... Podem imaginar o que seria. Quando soube disto não fiquei menos desesperado. Mas, refletindo bem compreendi que a situação era melhor; Cecília não teria mais contemplação com a mãe, e eu podia tirá-la por justiça. Compreendi também que era negócio que não podia esfriar. Obtive o consentimento dela, e tratei dos papéis. Falei primeiro ao desembargador João Regadas, pessoa muito de bem, e que me conhecia desde pequeno. Combinamos que a moça seria depositada na casa dele. Cecília era agora a mais apressada; tinha medo que a mãe a fosse buscar, com um noivo de encomenda; andava aterrada, pensava em mordaças, cordas... Queria sair quanto antes. Tudo correu bem. Vocês não imaginam o furor da viúva, quando as freiras lhe mandaram dizer que Cecília tinha sido tirada por justiça. Correu à casa do desembargador, exigiu a filha, por bem ou por mal; era sua, ninguém tinha o direito de lhe botar a mão. A mulher do desembargador foi que a recebeu, e não sabia que dizer; o marido não estava em casa. Felizmente, chegaram os filhos, o Alberto, casado de dous meses, e o Jaime, viúvo, ambos advogados, que lhe fizeram ver a realidade das cousas; disseram-lhe que era tempo perdido, e que o melhor era consentir no casamento, e não armar escândalo. Fizeram-me boas ausências; tanto eles como a mãe afirmaram-lhe que eu, se não tinha posição nem família, era um rapaz sério e de futuro. Cecília foi chamada à sala, e não fraqueou: declarou que, ainda que o céu lhe caísse em cima, não cedia nada. A mãe saiu como uma cobra. Marcamos o dia do casamento. Meu pai, que estava então em Santos, deu-me por carta o seu consentimento, mas acrescentou que, antes de casar, fosse vê-lo; podia ser até que ele viesse comigo. Fui a Santos.
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Meu pai era um bom velho, muito amigo dos filhos, e muito sisudo também. No dia seguinte ao da minha chegada, fez-me um longo interrogatório acerca da família da noiva. Depois confessou que desaprovava o meu procedimento. — Andaste mal, Venâncio; nunca se deve desgostar uma mãe... — Mas se ela não queria? — Havia de querer, se fosses com bons modos e alguns empenhos. Devias falar a pessoa de tua amizade e da amizade da família. Esse mesmo desembargador podia fazer muito. O que acontece é que vais casar contra a vontade da tua sogra, separas a mãe da filha, e ensinaste a tua mulher a desobedecer. Enfim, Deus te faça feliz. Ela é bonita? — Muito bonita. — Tanto melhor. Pedi-lhe que viesse comigo, para assistir ao casamento. Relutou, mas acabou cedendo; impôs só a condição de esperar um mês. Escrevi para a corte, e esperei as quatro mais longas semanas da minha vida. Afinal chegou o dia, mas veio um desastre, que me atrapalhou tudo. Minha mãe deu uma queda, e feriu-se gravemente; sobreveio erisipela, febre, mais um mês de demora, e que demora! Não morreu, felizmente; logo que pôde viemos todos juntos para a corte, e hospedamo-nos no Hotel Pharoux; por sinal que assistiram, no mesmo dia, que era o 25 de março, à parada das tropas no Largo do Paço. Eu é que não me pude ter, corri a ver Cecília. Estava doente, recolhida ao quarto; foi a mulher do desembargador que me recebeu, mas tão fria que desconfiei. Voltei no dia seguinte, e a recepção foi ainda mais gelada. No terceiro dia, não pude mais e perguntei se Cecília teria feito as pazes com a mãe, e queria desfazer o casamento. Mastigou e não respondeu nada. De volta ao hotel, escrevi uma longa carta a Cecília; depois, rasguei-a, e escrevi outra, seca, mas suplicante, que me dissesse se deveras estava doente, ou se não queria mais casar. Responderam-me vocês? Assim me respondeu ela. — Tinha feito as pazes com a mãe? — Qual! Ia casar com o filho viúvo do desembargador, o tal que morava com o pai. Digam-me, se não é mesmo obra talhada no céu? — Mas as lágrimas, os vidros quebrados?... — Os vidros quebrados ficaram quebrados. Ela é que casou com o filho do depositário, daí a seis semanas... Realmente, se os casamentos não fossem talhados no céu, como se explicaria que uma moça, de casamento pronto, vendo pela primeira vez outro sujeito, casasse com ele, assim de pé para mão? É o que lhes digo. São cousas arranjadas por Deus. Mal comparado, é como no voltarete: eu tinha licença em paus, mas o filho do desembargador, que tinha outra em copas, preferiu e levou o bolo. — É boa! Vamos à espadilha.
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Uma coletânea composta de dezoito contos clássicos de Machado de Assis. Em seus contos verificam-se constantemente os conjuntos de temáticas: ironia e humor, tragédia e comicidade, a loucura, o desejo pela perfeição – não atingida, a dúvida, críticas as vaidades humanas entre outros. Por uma linha temos o lado psicológico das personagens, o que se passa em sua alma e por outra linha temos constantes diálogos que nos dão à sensação de estar escutando a fala das personagens, vendo as cenas e a observação de seu mundo exterior.