TERRORISMO DE ESTADO NA RÚSSIA: a guerra na Tchetchênia nos descaminhos da indústria da violência
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Robson Achiamé, editor Caixa Postal 50083 Rio de Janeiro/RJ – 20050-970 Telefax (0xx21) 2208-2979 letralivre@gbl.com.br www.achiame.net
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Ação Literária pela Autodeterminação dos Povos
TERRORISMO DE ESTADO NA RÚSSIA: a guerra na Tchetchênia nos descaminhos da indústria da violência
Rio de Janeiro
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SUMÁRIO Apresentação / 7 A região da Tchetchênia: aspectos socioculturais / 11 I. Dados geográficos e demográficos / 11 – Tchetchênia / 11 – Tchetchenos / 11 – Organização social e econômica / 11 – Idioma tchetcheno / 13 II. Moradia tradicional dos tchetchenos / 13 – Arquitetura medieval da Tchetchênia e da Inguchétia / 14 III. Apontamentos cronológicos das relações entre a Rússia e a Tchetchênia (séculos 16-19) / 16 Estado totalitário na União Soviética e seu legado na Rússia contemporânea / 19 I. Nota sobre a formação do Estado moscovita na Rússia czarista / 19 II. Levantes populares e revoluções no início do século 20 / 19 III. Poder estatal bolchevique e a elaboração do discurso ideológico comunista (centralização e expansionismo do poder) / 24 IV. O Estado totalitário na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS): militarização, repressão e russificação / 28 V. O fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e a formação da atual Federação Russa / 29 VI. A ascensão de Vladimir Putin ao poder presidencial da Rússia / 31 Terrorismo de Estado e a guerra na Tchetchênia / 35 I. Introdução / 35 II. Deportação do povo tchetcheno em 1944 / 36 III. A retomada dos movimentos pela autonomia política da Tchetchênia e os antecedentes da guerra (1990-94) / 37 IV. Conflito armado (1994-1996) – 1ª fase da guerra / 41 – Crimes de guerra na vila Samáchki / 48 V. Conflito armado (1999-????) – 2ª fase da guerra / 50 – Situação na região de Stavropol em 1999 / 50 – Daguestão – 1999 / 52 5
VI. Perdas da população civil durante as guerras na Tchetchênia / 53 VII. Perdas do exército da Federação Russa durante as guerras na Tchetchênia / 54 VIII. Depoimento de um oficial do exército russo / 55 IX. As condições sociais na Tchetchênia na atualidade: Tchetchênia e gueto / 56 Refugiados tchetchenos / 59 I. Introdução / 59 II. Migração forçada na região da Inguchétia / 59 III. Discriminação de tchetchenos em Moscou / 61 IV. Crescimento da xenofobia na Rússia. Discriminação de minorias étnicas / 62 Palavras no silêncio / 67 Pósfácio / 73 Anexos / 75 I. Cronologia das relações entre a Rússia e a Tchetchênia (séculos 20-21) / 77 II. As Tchekas: decretos, artigos e documentos oficiais / 84 III. Perseguição dos camponeses na União Soviética / 88 IV. In memoriam de Anna Politkóvskaia / 98 V. Pierm e a luta antimilitarista na Rússia contemporânea / 108 VI. Poesia popular tchetchena / 111
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APRESENTAÇÃO “–Sabe o que é que eu digo às pessoas quando me dizem que estão escrevendo livros contra a guerra? – Não sei. Que é que você diz, Harrison Starr? – Eu digo, por que é que, em vez disso, você não escreve um livro contra geleiras?” (Matadouro nº 5 ou A Cruzada das Crianças. Kurt Vonnegut Jr.) “Pero con todo, nunca, en ningún período de la vida de la humanidad, las gueras fueron la condición normal de la vida. Mientras los guereros se destruían entre sí, y los sacerdotes glorificaban estos homicidios, las masas populares proseguían llevando la vida cotidiana y haciendo su trabajo habitual de cada día. Y seguir esta vida de la masa, estudiar los métodos con cuya ayuda mantuvieron su organización social, basada en sus concepciones de la igualdad, de la ayuda mutua y del apoyo mutuo – es decir, su derecho común –, aun entonces, cuando estaban sometidos a la teocracia o aristocracia más brutal en el gobierno, estudiar esta faz del desarrollo de la humanidad es muy importante actualmente para una verdadera ciencia de la vida.” (El Apoyo Mutuo. Pedro Kropotkin)
Ficção científica e guerra são os temas principais do livro Matadouro nº 5 ou A Cruzada das Crianças, do escritor Kurt Vonnegut. Testemunha do massacre de milhares de pessoas no bombardeio sobre a cidade de Dresden, durante a Segunda Guerra Mundial, o personagem Billy Pilgrim percorre diversas falhas no espaço-tempo sideral após ser abduzido pelos tralfamadorianos – alienígenas que, dentre outras singularidades, não compreendem o significado de livre-arbítrio. Para aqueles estranhos seres, não se prestam explicações ou advertências sobre acontecimentos que podem ser realizados ou evitados: os acontecimentos simplesmente existem. Dessa maneira, Billy Pilgrim passa a aceitar passivamente todas as mazelas de sua existência e do mundo ao seu redor, reduzidas numa espécie de predestinação cósmica ou ainda, em suas palavras, coisas da vida. Mas a ficção científica desta concepção de história não reside apenas no romance do escritor. A provocativa interrogação de Harrison Starr corresponde ao sentimento de apatia e alienação generalizada observada na sociedade russa neste início de século 21, no contexto em que o genocídio do povo tchetcheno torna-se algo comum, coisas da vida. A principal motivação deste trabalho, intitulado TERRORISMO DE ESTADO NA RÚSSIA: a guerra na Tchetchênia nos descaminhos da 7
indústria da violência, é a tentativa de desfazer o silêncio de uma guerra que já vitimou centenas de milhares de pessoas, provocou uma das maiores ondas contemporâneas de refugiados na região e instaurou uma política de medo cotidiano de escala continental. E as dificuldades para construí-lo não foram poucas, uma vez que a perspectiva de análise autônoma e independente da questão exigiu uma atividade de pesquisa, incessante, realizada nas brechas de nosso tempo cotidiano e sem qualquer auxílio financeiro. Assim, entre o final do ano de 2004 e o início de 2006, reunimos e sintetizamos os diversos materiais recolhidos (livros, fotos, fanzines, jornais, revistas, documentos etc.) e as impressões subjetivas em ocasião da vivência de dois meses nas cidades de Moscou e São Petersburgo, além da vila rural de Priamukhino (Ï ð ÿ ì ó õ è í î). Também traduzimos diversos artigos e textos disponíveis em sítios eletrônicos, devidamente indicados nas notas de referência. Ao mesmo tempo, contamos com a colaboração de Lida Iussupova, representante da ONG Memorial na cidade de Grozny (Ãð î ç í û é), capital da Tchetchênia (×å÷íÿ), reconhecida ativista na luta em defesa dos direitos humanos de seu povo. Convidada pela Federação Internacional de Direitos Humanos a participar do IV Fórum Social Mundial, realizado no Brasil em janeiro de 2005, Lida nos relatou as atuais condições de vida dos tchetchenos, a história das guerras, a resistência de seu povo contra a violenta ditadura do Estado soviético e, atualmente, contra os crimes de guerra das tropas militares russas. Enfocamos basicamente quatro pontos cruciais do tema em questão. Primeiramente, compilamos alguns dados elementares sobre a região do Cáucaso setentrional e o povo tchetcheno: geografia, demografia, economia, sociedade, arquitetura e outros aspectos básicos para compreendermos um povo que incorpora em sua história a luta pelo direito ao autogoverno local e a resistência contra tentativas de dominação. Nesse sentido, citamos também os principais focos de conflito entre a Rússia e a Tchetchênia entre os séculos 16 e 19. Em seguida, buscando apresentar um ponto de vista sobre a atual situação política na Rússia e a origem da guerra na região da Tchetchênia em 1994, refazemos a trajetória de formação do Estado totalitário da União Soviética: os levantes populares russos do início do século 20 e sua apropriação ideológica pela ascensão do Partido Bolchevique ao poder após a Revolução de 1917; a militarização proveniente da industrialização bélica conjugada ao desmantelamento da vida campesina; a opção do Partido Comunista soviético pela economia capitalista de Estado, traduzida pela divisão do trabalho social; o processo de russificação e sufocamento das habilidades de auto-subsistência dos povos e comunidades tradicionais espalhados pelo continente. Salientamos a importância dessa abordagem 8
devido à herança latino-americana da mitificação da ideologia comunista, propagandeada intensificadamente durante a época da Guerra Fria (sob a égide falaciosa em que, para combater a política imperialista estadunidense, o “inimigo do meu inimigo é meu amigo”), e cujas conseqüências se revelam, ainda que anacronicamente, na tolerância e cumplicidade de alguns setores da sociedade em estabelecer vínculos políticos e econômicos com outras formas de imperialismos contemporâneos (como, por exemplo, o russo ou o chinês). Descrevemos, ao final desta parte, um breve panorama do fim da URSS e da atual ascensão de Vladimir Putin ao poder presidencial da Rússia. Na terceira parte do trabalho, apresentamos a evolução do conflito na região da Tchetchênia, principalmente a partir do advento da implosão da União Soviética, em 1991, e os conseqüentes movimentos emancipatórios observados em suas ex-Repúblicas. Procuramos caracterizar as diferenças fundamentais entre o primeiro período da guerra na Tchetchênia (1994-1996) – fundada na luta pela independência local e pela possibilidade de negociações entre representantes da Federação Russa e da Tchetchênia – e o segundo período da guerra (reiniciada em 1999) – dentro da perspectiva das ações terroristas de rebeldes tchetchenos e das medidas de controle e repressão da sociedade russa. Por outro lado, ambos os momentos do conflito resguardam semelhanças fundamentais: a população civil tomada como refém pelas forças militares, o aumento das dificuldades sociais na Tchetchênia e na Rússia, os horrores da guerra. É importante notar que a designação de “atentados terroristas” vincula-se a uma construção político-ideológica do governo russo, procurando deslegitimar as reivindicações de independência política da Tchetchênia. Por outro lado, as operações militares do exército russo na Tchetchênia, que causam a morte de civis, assim como os seqüestros, estupros, e outras formas de violência psicológica e torturas, não são considerados crimes de guerra, nem atos terroristas. Em decorrência direta de tal panorama, colocamos em seguida a problemática dos refugiados tchetchenos nas regiões da Federação Russa, principalmente nos territórios vizinhos (como a Inguchétia) e nas grandes cidades (como Moscou e São Petersburgo). Nesse sentido, o fortalecimento do nacionalismo russo aliado a discursos e práticas preconceituosas ou xenófobas (muitas vezes servindo de base ideológica para agressões físicas e psicológicas, linchamentos e assassinatos de indivíduos pertencentes a minorias étnicas) acentuam o genocídio em curso do povo tchetcheno. Colocamos nas considerações finais uma síntese do panorama da sociedade na Rússia contemporânea, centrada na política de medo cotidiano implementada pelo governo russo através da atualização dos mecanismos de repressão social e no papel crucial dos serviços e produtos da indústria da violência, objetivando o revigoramento de uma economia decadente: política e objetivos, aliás, absolutamente condizentes com as justificativas de guerra 9
propagadas pelos Estados Unidos na luta global contra o terrorismo. Por outro lado, destacamos movimentos organizados de resistência contra a guerra na Tchetchênia e contra a xenofobia. Nos anexos desta obra sistematizamos a cronologia das relações políticas e principais conflitos entre a Rússia e a Tchetchênia durante os séculos 20 e 21; traduzimos um texto referente à perseguição dos camponeses e outro sobre a criação da Tcheka (× Ê: tcherezvytcháinaia komíssiia), polícia bolchevique, e seus desdobramentos no desenvolvimento dos mecanismos de repressão estatal; relatamos a campanha antimilitarista em curso na cidade de Pierm; incluímos algumas fotos que integraram a exposição “Guerra e Paz na Rússia: cultura e resistência no século 21”, organizada em algumas cidades do Brasil durante o ano de 2005. Traduzimos um artigo de Anna Politkóvskaia, jornalista assassinada há um mês. Ao final, uma poesia popular tchetchena. Ressaltamos que este trabalho é dedicado a todos os que não consideram a guerra como algo inerente à História, nem se conformam passivamente perante violações de direitos humanos fundamentais e que, contrariamente a qualquer concepção de predestinação, acreditam nas atitudes individuais, ações coletivas, movimentos sociais e outras formas de manifestações para resistirmos aos fundamentalismos religiosos e doutrinas ideológicas, superando com lucidez nossa condição humana – e que isso não seja jamais visto como algo alienígena à nossa espécie. Ação Literária pela Autodeterminação dos Povos Novembro 2006 alautopovos@hotmail.com
Protesto em Moscou contra a guerra na Tchetchênia
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A Região da Tchetchênia: aspectos socioculturais I. Dados geográficos e demográficos1 Tchetchênia Território: 19300 km². Divisão administrativa: 12 regiões; seis cidades, quatro vilas urbanizadas, 165 vilas. Capital: cidade de Grozny (210.700 habitantes)2. Cidades principais: Chali (Ø à ë è) (40.350 habitantes), Urus-Martan (Óðóñ-Ì àðò à í) (39.980 habitantes), Gudermes (Ãóäåðì åñ) (33.750 habitantes), Argun (Àðãóí) (25.700 habitantes). Tchetchenos Autodenominação: notchkhiy Religião predominante: muçulmanos sunitas. Os povos vainatckhi3, que significa “nosso povo”, autodenominação dos tchetchenos, assim como de seus irmãos inguches, são moradores enraizados do Cáucaso Setentrional. São mencionados nas fontes armênias do século 7, sob o nome de nakhtchamat-ian. No Casaquistão, região para qual os tchetchenos e inguches foram deportados em 1944, ainda moram aproximadamente 32.000 tchetchenos. Há diásporas na Jordânia (5.000 pessoas) e nos Emirados Árabes (1.000 pessoas). Organização social e econômica A estrutura social das comunidades tradicionais na região da Tchetchênia e do Cáucaso Setentrional era formada por teipes, compostas por diversas famílias. Além disso, as teipes aceitavam outros agregados em sua composição social, provindos de outras regiões. __________ 1. Fonte: <<www.kavkaz.memo.ru/regionstext/chechnya>> (acessado em 10 de junho de 2006). 2. Dados demográficos referentes ao ano de 2002. 3. Dados de 1999. Fonte: idem.
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Nas teipes, constituídas por uma vila ou por um conjunto de vilas, as questões cotidianas referentes aos seus habitantes eram decididas nos conselhos, compostos pelos anciãos e, em alguns casos específicos, por outros representantes da comunidade. O Conselho dos conselhos legislava sobre questões que envolviam o coletivo das teipes. Formava-se, ainda, o Conselho Maior, congregando todos os povos das montanhas. No caso de guerra, escolhia-se um líder, a quem todos os habitantes juravam lealdade militar. A terra, as águas e os bosques pertenciam aos habitantes das vilas. As tarefas de subsistência eram realizadas pela própria comunidade, baseadas essencialmente na plantação de batata, milho e trigo, além das atividades pastoris. Pelas torres de pedra, a segurança da comunidade garantia-se através de atenta observação do território. Essa forma de organização social dos povos das montanhas se contrapunha às tentativas de estabelecimento de um Estado ou outras formas de hierarquização institucional. Tais características permaneceram, em parte, até o início da recente guerra na Tchetchênia4. * * * Na planície do Cáucaso Setentrional, as ocupações tradicionais são agricultura (milho, trigo, cevada, milho-miúdo) e criação de gado; nas regiões montanhosas – pastos e agricultura nos terraços. Indústria artesanal: confecção de burkas (roupa tradicional de pele), curtume, cerâmica, produção de armas e de jóias, trabalhos com madeira e pedra, mineração. Roupa tradicional masculina: tcherkesska, bechmet, charovary, burka e bachlyk. Cobertura para cabeça – papakha (gorro alto de pele), chapéu de feltro, solidéu bordado. Mulheres vestiam camisas longas – vermelhas, amarelas, verdes ou azuis e charovary; bechmet no inverno. Para cobrir a cabeça usavam lenço de seda ou de lã; calçavam – tchuviaki, botas, sapatos. Atualmente os moradores idosos preservam alguns elementos dos trajes nacionais. Comida tradicional: pratos de farinha de milho ou trigo – galuchki, sopas e mingaus variados, panquecas sem sal. Pratos lácteos populares – tvorog (espécie de ricota) com smetana e tvorog com manteiga derretida. Folclore: lendas, estórias, contos de fadas, canções. Tradições antigas de dança e música. Os instrumentos musicais mais comuns são tchondyrk __________ 4. A autoridade dos anciãos, por exemplo, está presente até os dias atuais, porém foi enfraquecida pelas operações militares – conforme Lida Iussupova, da ONG Memorial.
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(tipo de violino bilateral), detchigpondar (tipo de balalaika montanhesa), zurna, pandeiro e tambor5. Idioma tchetcheno6 O idioma tchetcheno é uma das línguas nakhsko-daguestãs (do Cáucaso oeste). É difundida principalmente na Tchetchênia e nas regiões de KhasavIurt (Õàñàâ-Þðò) e Novolákski (Íîâîëàêñê) do Daguestão, e também, na Inguchétia e na Geórgia; além disso, em menor grau, na Síria, na Jordânia e na Turquia. Há vários dialetos. A fonética da língua tchetchena possui um vocalismo complexo e um grande número de ditongos e tritongos. A língua literária tchetchena formou-se no século 20 na base do dialeto da região planície. A escrita em tchetcheno até 1925 funcionava com a grafia árabe, em 1925-1938 com grafia latina, e a partir de 1938 com grafia cirílica, usando um símbolo auxiliar: a letra I, e alguns dígrafos: (êõ, àü, òI etc.) e trígrafos (óüé). A partir de1991 houve tentativas de retorno à grafia latina. II. Moradia tradicional dos tchetchenos A natureza influenciou na formação dos povoados e das moradias na região da Tchetchênia. Há diferença entre os povoados das montanhas e da planície. Desde antigamente, o principal material de construção é a pedra, e os materiais secundários são madeira, barro e palha. Construindo as moradias nas fendas entre as montanhas, as pessoas erguiam as construções de tal maneira que permitisse a melhor defesa. Além disso, a escolha do lugar para o povoado foi influenciada pela proximidade dos pastos, da água e da boa terra. A terra era muito valorizada, por isso as casas foram construídas em cima das pedras, muitas vezes de difícil acesso. O tipo de moradia mais comum nos povoados montanhosos eram as casas de um andar com telhado chapado. Também existiam casas de dois andares e torres de defesa de três a cinco andares. Estas construções – casas para morar, torre e instalações auxiliares – formavam a fazenda. Dependendo do relevo das montanhas, estas fazendas tinham ocupação horizontal ou vertical. O povoado montanhoso parecia um conjunto desorganizado de construções. Não existiam ruas retas. A terra escassa era dividida entre as teipes. A teipe de muitas famílias tinha mais terra, e a de poucas famílias menos. Assim surgiam os quarteirões: geralmente, os moradores que tinham parentesco ocupavam determinado quarteirão. Cada povoado tinha invariavelmente uma praça onde o povo se __________ 5. Fonte: <<kavkaz.memo.ru/encyclopediatext/encyclopedia/id/407566.htm>> (acessado em 10 de junho de 2006). 6. Fonte: <<kavkaz.memo.ru/encyclopediatext/encyclopedia/id/591052.htm>> (acessado em 10 de junho de 2006).
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reunia e onde construíam a mesquita. O mesmo tipo de planejamento, posteriormente, foi transferido para os povoados da planície, que se estendiam ao longo dos rios ou das estradas, sendo mais populosos. Se os povoados das montanhas contavam, em média, 20 a 25 quintais, os da planície tinham 400 ou mais moradias. Nas planícies utilizavam outros materiais para a construção das casas. As paredes trançadas de galhos, eram rebocadas com barro e esterco fresco. Os telhados faziam com varas de madeira e com cascas de árvores por cima, cobertos com barro espremido por um instrumento especial para que não crescesse grama. A casa dividia-se em duas partes (quartos) que não se correspondiam entre si. Cada uma tinha sua saída para a rua. Um quarto pertencia ao dono da casa. Nele também eram recebidos os hóspedes. Outra parte pertencia à dona da casa e às crianças. A casa se aquecia com uma lareira específica que também servia de forno. Uma chaminé trançada, rebocada com barro, ficava um metro acima do chão. Embaixo da chaminé, em um suporte de barro, o fogo estava sempre acesso. Na chaminé penduravam uma corrente com gancho para as panelas. Havia poucos móveis: poltrona do dono da casa, mesa para refeição, bancos baixos. Dormiam geralmente no chão, usando colchões, esteiras, tapetes e cobertores guardados nas largas prateleiras ao longo do quarto. Ali também estavam baús e louça. Não havia janelas, mas ao chão faziam-se buracos quadrados que, à noite, eram fechados com madeira. Casas tipicamente russas feitas de tijolos ou troncos de madeira, com janelas e portas de entrada, com fornos de ferro e telhados de telha, aparecem na Tchetchênia no século 19, assim como as fábricas de produção de tijolos e telhas. Arquitetura medieval da Tchetchênia e da Inguchétia A arquitetura medieval da Tchetchênia e da Inguchétia é considerada um fenômeno peculiar e pouco estudado. Entre os monumentos arquitetônicos destacam-se altares pagãos, catedrais cristãs, criptas de famílias e, finalmente, as torres de defesa e de moradia. Durante muitos séculos os tchetchenos e os inguches viviam como vizinhos muito próximos nos territórios ao longo da principal cadeia de montanhas do Cáucaso, entre os atuais territórios da Ossétia e do Daguestão. A região do Cáucaso sempre foi uma encruzilhada da grande migração de povos, que se dirigiam do leste para oeste e do sul para o norte. Quando no baixo das montanhas passava uma onda de nômades, pelas montanhas subiam várias tribos. Os contatos culturais entre os povos das montanhas e o mundo exterior foram determinados por vários fatores, tais como as cara14
vanas da grande rota da seda, ou a chegada dos missionários cristãos. Sobrevivendo em condições extremamente difíceis, os vainakhi conseguiram criar uma arquitetura que, atualmente, nos impressiona com sua funcionalidade e expressão artística. Os vainakhi moravam em torres. Ao lado da torre da moradia construíam a torre de defesa – uma casa-fortaleza, tão comum no cotidiano dos homens livres na Europa medieval. Nas paredes de pedra também enterravam os mortos, pois a terra era escassa e a melhor terra servia para a agricultura. Assim, as torres e as criptas eram construídas em cima da parede. Para as criptas iam os doentes durante as epidemias periódicas. Os sobreviventes voltavam para casa. Nas principais trilhas colocavam os altares. Durante as festas, para estes lugares se dirigiam os habitantes vestidos de branco. Aqui pediam ao deus a colheita e a boa procriação. Após a reza, faziam-se sacrifícios e comilanças. Os pesquisadores enfocam duas ondas de construção ativa. O primeiro período – séculos 9 até 13 – se deve à chegada de missionários cristãos ao Cáucaso Setentrional. Exatamente nesse período aparecem as catedrais e as primeiras torres de defesa. No século 14 são construídas as torres para as criptas. Os arqueólogos datam da mesma época os altares preservados. O segundo período refere-se ao século 17, marcado pela proliferação da arma de fogo. As torres de defesa foram desmontadas e, do mesmo material, foram construídas as novas torres com as estreitas janelas para armas de fogo, ao invés de largas, próprias para o uso de arco e flecha. Isto foi provocado pelo apogeu do comércio de escravos promovido pelo Império Otomano ao longo de todo o Cáucaso Setentrional. Na Inguchétia foram preservadas três catedrais cristãs, não há mesquitas. Na Tchetchênia, pelo contrário, não há catedrais cristãs, mas foram preservadas as mesquitas. Somente no território tchetcheno podemos encontrar torres de defesa muito curiosas: a fenda vertical entre as montanhas coberta com uma parede com janelas para atirar; a entrada, muito alta, só era acessível por uma escada móvel guardada dentro da fortaleza. A engenhosa torre de defesa é uma edificação única. A base relativamente pequena é um quadrado (4,5m²), enquanto a altura das torres chega a ser de 25m a 30m. As paredes são íngremes. O topo da torre é coberto com um telhado em degraus, que por fora parece uma pirâmide. Dentro da torre, sobre seu segundo nível, arcos internos entrelaçados formam um telhado, cujos alçapões permitiam acesso aos níveis superiores, divididos por uma coberta de troncos de madeira. Os vainakhi não tinham escrita e, portanto, a história dessa arquitetura é reconstruída através da comparação com outros monumentos históricos de todo Cáucaso. Infelizmente, a preservação dos monumentos arquitetônicos medievais dos vainakhi encontra-se sob séria ameaça. Os povoados montanhosos fo15
ram abandonados pelos seus moradores há muito tempo. Sem reparo, as paredes estão sendo destruídas pelas chuvas ou enxurradas d’água, e parte das torres desabou. Hoje os pastores utilizam as torres para abrigo do rebanho. Ultimamente, somam-se às destruições causadas pelo tempo, as destruições causadas pela guerra. Por exemplo, as torres de defesa nos povoados Dere e Charoi, e a cripta no vale Targímskoe, foram destruídas por mísseis. Os túmulos das criptas foram vasculhados à procura de tesouros. Não existem dados exatos sobre o número de monumentos preservados. Estimativas de pesquisadores7 apontam para aproximadamente 1.500 construções na Tchetchênia e na Inguchétia. III. Apontamentos cronológicos das relações entre a Rússia e a Tchetchênia (séculos 16-19)8 Na segunda metade do século 16, a dominação de Ivan, o Terrível, se expande até a planície caucasiana, onde seus súditos encontram os tchetchenos – moradores da região – no leito do rio Sunja (Ñóíæà), perto do povoado Tchetchen-aul (×å÷åí-àóë). Daí a origem do nome atribuído ao povo tchetcheno pelos russos. Durante o século 17, período histórico também conhecido como “Tempos Tumultuosos”, no Cáucaso se estabelece o confronto entre os cossacos, homens livres fugidos da servidão e deslocados ao norte do rio Terek (Òåðåê), e os tchetchenos, situados nas planícies montanhosas. Os cossacos tornam-se “homens do Estado”, conquistando novos territórios para o Império Russo. Em 1739, a “linha fortalecida de Kizliar” é estabelecida, iniciando a luta do Império Russo contra os montanheses pelo controle das planícies montanhosas. Segundo Nikolai I, o czarismo objetivava “dominar os povos das montanhas ou o extermínio dos desobedientes”9. Após a conquista, os __________ 7. Kuzmin, Valentin Aleksandrovitch – arquiteto; arquiteto-chefe da República Inguchétia e Karatchaievo-Tcherkessia. Atualmente trabalha com a restauração da catedral do século 13 em Tkhabo-Ierdy na Inguchétia e da catedral do século 10 em Karatchaievo-Tcherkessia. Há mais de 20 anos trabalha com pesquisa e documentação sobre os monumentos arquitetônicos do Cáucaso setentrional. Il´iasov, Latcha Makhmudovitch – filólogo; publicou artigos sobre os monumentos antigos da Tchetchênia, que pesquisa e fotografa. Fez várias exposições fotográficas com apoio do Centro de pesquisa e popularização da cultura tchetchena “LAM” (Grozny). 8. Fonte: <<kavkaz.memo.ru/bookstext/books/id/612069.htm>> (acessado em 10 de junho de 2006). 9. Durante a tal chamada “pacificação do Cáucaso” muitos dos povos autóctones foram exterminados pelo Império Russo. Um dos exemplos é o extermínio e a deportação dos povos ubykhi e abzakh (que habitavam a costa do Mar Negro), cuja trágica história é descrita por Georges Dumézil em Documents anatoliens sur les langues et les traditions du Caucase. III. Nouvelles Études Oubykh. Paris: Institut d’Ethnologie: 1965.
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tchetchenos foram expulsos das terras férteis para as montanhas, fugiram para a Turquia, e suas moradias foram destruídas. A atual capital, Grozny, foi erguida sobre os escombros de antigas aldeias tchetchenas. Entre 1780 e 1859 os montanheses lutaram contra os colonizadores. O apogeu desta luta armada foi a guerra de Cáucaso (1817-1859). Contra os montanheses, comandados pelo imã Chamil, os russos mobilizaram mais tropas que contra Napoleão. Mesmo assim os moradores da Tchetchênia resistiam ao Império. Um correspondente militar escrevia para um jornal moscovita: “Na Tchetchênia só aquele lugar é nosso, onde estamos deslocados. Assim que a unidade militar se move, o lugar volta a ser dos rebeldes”. Muitos soldados russos, não querendo participar da colonização, desertavam e fugiam para a Tchetchênia, livre da servidão. No exército de Chamil eles até fundaram um regimento russo. Mas as forças nesta guerra foram demasiadamente desiguais. Após décadas de guerra sangrenta, o czarismo conseguiu conquistar os povos do Cáucaso e incluí-los no Império. 1739 Estabelecimento da “linha fortalecida de Kizliar”. 1785-1791 Levante dos montanheses sob comando do cheque tchetcheno Mansur (Uchurma), que uniu as tribos dos montanheses na luta contra o Império Russo. 1817 Avanço do exército russo para a parte montanhosa da Tchetchênia. Início da Guerra do Cáucaso (1817-1864). 1818 Fundação da fortaleza Grozny. 1834-1859 Guerra da Rússia contra o imã Chamil, que uniu várias tribos dos montanheses contra a intervenção dos russos. 26 de agosto de 1859 Tomada da última residência de Chamil, vila Gunib, pelo exército russo. Chamil torna-se prisioneiro. Fim da luta dos montanheses pela independência. 21 de maio de 1864 Data oficial do fim da Guerra do Cáucaso. O exército russo apaga o último foco da resistência no Cáucaso Oeste. 1869 A fortaleza Grozny é renomeada como cidade Grozny. 1877-1878 Levantes dos montanheses. Levante popular no Daguestão e na Tchetchênia contra o Império Russo em apoio aos fiéis turcos durante a guerra entre a Rússia e a Turquia.
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Torre medieval na TchetchĂŞnia
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Estado Totalitário na União Soviética e seu Legado na Rússia Contemporânea I. Nota sobre formação do Estado moscovita na Rússia czarista A rígida e hierarquizada sociedade feudal czarista russa foi consolidada através da articulação dos diversos principados desde meados do século 15, após a vitória de Ivan III sobre as hordas de tártaros-mongóis que assolaram e dominaram o território russo durante mais de um século. Após períodos de instabilidade e agudas disputas pelo poder, as estruturas político-administrativas czaristas modernas foram desenvolvidas durante o século 18, principalmente através das ações de Pedro I, o Grande, e Catarina II, a Grande. O primeiro censo demográfico realizado no Império Russo, em 1897, registrou quase 129 milhões de habitantes, dos quais 44,6% se declaravam russos. A parte européia da Rússia era habitada por 93,4 milhões de pessoas, sendo quase 10 milhões no Reino da Polônia10, e 2,6 milhões no principado da Finlândia. Concentravam-se cerca de 9,3 milhões na região do Cáucaso, 5,8 milhões na Sibéria e 7,6 milhões nas regiões da Ásia Central. Todos os habitantes do império foram divididos em classes: nobres (fidalgos), clero, comerciantes, pequenos-burgueses e camponeses, e cada uma dessas classes possuía seus direitos e obrigações fixados com exatidão11. II. Levantes populares e revoluções no início do século 20 Entre o final do século 19 e início do século 20 diversas movimentações populares ocupavam o contexto social do governo do Czar Nikolai II. A incapacidade e passividade do czarismo na resolução da situação política e a profunda crise econômica em que mergulhara a Rússia ocasionavam __________ 10. A Polônia integrava o território do Império Russo desde 1812. 11. Âåêà À.Â. Èñòîðèÿ Ðî ññèè. Ìí.: Õàðâåñò. Ì . : Àñò, 2003. Ñ.663 (VEKA, A.V. História da Rússia. Moscou: Ast, 2003).
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descontentamento social generalizado. Os camponeses, ao lado de trabalhadores concentrados nas grandes cidades e em Petersburgo (antiga capital do Império Russo), ocupavam papel central em tais movimentações. A situação de convulsão social aumentava vertiginosamente. Círculos e associações estudantis pregavam abertamente o anticzarismo, incitando sublevações e desobediência aos monarcas. Neste caso, a resposta da monarquia czarista russa foi proibir o funcionamento de tais organizações, através de decreto governamental (1884). Além disso, o governo passou a incorporar os estudantes insurrectos ao Exército Czarista – fato que agravou ainda mais os conflitos e culminou no assassinato do Ministro da Educação Bogolopov, em 1901. Após a crise da indústria têxtil, em 1899, e com o desencadeamento das lutas por melhorias das condições de trabalho nas regiões petrolíferas de Baku e Batum, em 1903 (com direta ressonância em outras lutas populares, como na Ucrânia), trabalhadores russos passam a se auto-organizar localmente e, pouco a pouco, grupos de oposição político-ideológica se fortaleciam: social-democratas, social-revolucionários, comunistas e anarquistas estendiam suas atividades, principalmente nas grandes cidades. A derrota da Rússia em guerra travada contra o Japão (1904) também colaborou para enfraquecer a legitimidade da monarquia. Com a intenção de desestruturar a oposição política, o governo czarista passa a criar organizações operárias, legalizadas para amenizar os protestos populares e demonstrar interesse e preocupação com as reivindicações dos trabalhadores. Nessas Seções Operárias infiltravam-se agentes governamentais, como Zubatov, em Moscou – rapidamente descoberto pelos operários que interromperam suas atividades –, ou padre Gapón, em São Petersburgo – cuja dissimulação propiciou duradouro convívio com trabalhadores naquelas organizações (proibidas a membros de partidos ou agrupamentos revolucionários). Gapón chegou a liderar as mobilizações na fábrica Putilov, inclusive conduzindo uma grandiosa marcha de trabalhadores ao Palácio do czar russo Nikolai II (em janeiro de 1905), para entregar pacificamente um manifesto com reivindicações trabalhistas: na emboscada, os soldados abrem fogo contra os manifestantes, indefensavelmente massacrados12. O ano de 1905, em especial, foi marcado por diversas lutas populares, como o nascimento do Soviet (Conselho) de Trabalhadores em São Petersburgo. Concebido por diversos trabalhadores que freqüentavam a casa de Vsevolod Mikháilovich (Volin), a idéia era criar um organismo permanente de reunião, uma espécie de comitê que acompanharia o desenrolar das __________ 12. Após o massacre, padre Gapón deixa a Rússia e após seu retorno, anos depois, é descoberto por trabalhadores e executado como traidor.
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movimentações populares na Rússia, servindo de vínculo entre os operários, e possibilitando a troca de informações sobre a situação geral, reunindo forças revolucionárias. Nomeado Soviet de Delegados Operários foi presidido por Georgi Nossar, considerado um “sem partido” pelos bolcheviques. Segundo os bolcheviques, o Conselho duplicava as tarefas da organização partidária, configurando-se como um agrupamento rival politicamente instituído pelos trabalhadores russos. Todavia, a motivação para a formação dos soviets pelos trabalhadores foi o desejo de agrupar e dirigir sua luta dispersa pelo território russo, e em nenhum caso a tomada do poder político. A transformação do caráter apartidário e autônomo da organização e dos objetivos do Conselho dá-se com a ascensão de Trotski à presidência do organismo que, enquanto menchevique13 e membro do POSDR (Partido Operário Social-democrata da Rússia), passa a vincular as ações políticas do Conselho às diretrizes de seu Partido. Outros Conselhos de Trabalhadores também organizavam-se pela Rússia, alguns até anteriores ao Conselho de Delegados Operários de São Petersburgo, como o caso dos Soviets de Ivanovo-Voznesensk (região industrial de Moscou). Criados a partir das greves de trabalhadores da indústria têxtil, suas reivindicações acerca do papel desses Conselhos no controle da gestão da produção fabril, bem como da forma autônoma de organização da luta operária, influenciaram outras mobilizações populares. Os ferroviários de Odessa, por exemplo, incorporaram os princípios políticos dos Conselhos, desencadeando uma série de greves na região. Com o intuito de aplacar tais movimentações, o ministro Trepov envia o navio encouraçado Potemkin (Ï î ò ¸ ì ê è í) para reprimir os movimentos revolucionários na cidade portuária de Odessa. No entanto, uma repentina sublevação dos marinheiros do encouraçado, impulsionada pelas péssimas condições de trabalho, ocasiona a tomada do navio e o fuzilamento dos comandantes – e os marinheiros se solidarizam com os trabalhadores daquela cidade, estimulando e fortalecendo os protestos na região, ao invés de reprimilos. O encouraçado Potemkim navega até o porto romeno de Constanta, evitando assim as violentas represálias das autoridades czaristas, porém ainda insuflando outras rebeliões de marinheiros, como nos encouraçados Ochakov e Rostilov. Ao mesmo tempo, soldados também descontentes com suas condições de trabalho se confraternizavam com movimentos grevistas em diversas cidades, como em Sevastopol. Pressionadas pela evolução das movimentações e levantes populares, as autoridades czaristas anunciam a criação da Duma (parlamento), no final de __________ 13. Tendência minoritária no Partido Comunista.
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1905, visando assegurar alguma legitimidade do poder monárquico e enfraquecer a intensidade das lutas dos trabalhadores. Por um lado, a criação do parlamento ofereceu mais tempo de poder ao governo czarista e, pelo outro, possibilitou a organização de novas associações profissionais, agrupamentos políticos e partidos – muitas vezes clandestinos. No verão de 1906 a Duma é dissolvida pelo Czar Nicolai II. Muitos deputados deixam a Rússia, e novos parlamentos são instituídos e dissolvidos seqüencialmente, até tornar-se um organismo do governo. Greves e motins ainda ecoaram na Rússia entre 1906 e 1916, assim como outras movimentações populares anticzaristas. Em 1907 é criada a Cruz Vermelha Anarquista (atual Cruz Negra), em apoio aos presos russos. Através de permanentes discussões e produções de jornais, indivíduos e grupos revolucionários multiplicavam suas atuações dentro e fora da Rússia. Pouco a pouco, a monarquia agonizava seu poder secular14. * * * Em 1917, novo estopim da revolta popular: trabalhadores em Petrogrado (ex-São Petersburgo) iniciam uma greve que, ultrapassando as reivindicações trabalhistas, exigem a saída imediata do czar (fevereiro de 1917)15. O Czar Nicolai II finalmente renuncia ao poder, e um governo temporário é formado pelos representantes dos partidos da burguesia até as eleições para a Assembléia Constituinte programadas para novembro. Os principais problemas observados em 1917 eram os conflitos da Primeira Guerra Mundial (iniciada em 1914), a péssima situação econômica da Rússia, a pobreza do povo e a urgência das reformas – principalmente da reforma agrária. Nas áreas rurais surgiam os conselhos e as uniões camponesas. Os conselhos se formavam segundo o princípio de delegação: as organizações de base enviavam seus delegados para o conselho maior, podendo revogar seus mandatos ou reelegê-los. Esse princípio funcionou sem regras fixas, e em acordo com cada especificidade local, até o final de 1917 (quando os bolcheviques começaram a impedir a reeleição dos delegados e passaram a reprimir os conselhos contrários à sua política). Os conselhos camponeses, apoiados pelos partidos de esquerda, insistiam na socialização da propriedade16. Os camponeses organizados em __________ 14. Informações extraídas e sintetizadas a partir da revista Tierra y Libertad. Periódico Anarquista, no 205, ago. 2005. Número monográfico: Ciem Años de la Revolución Rusa de 1905. 15. O texto a seguir é um breve resumo do ensaio Socialistas na Revolução Russa de 19171921. Autor: Aleksandr Chúbin. Moscou, 1999. 16. Ao contrário do programa de nacionalização realizado pelos bolcheviques após a tomada de poder, quando a terra passou a ser do Estado.
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obschinas17 e grupos de autogestão deveriam descobrir, criar e inventar novas formas coletivas de uso da terra, dependendo das especificidades locais: a terra passava a pertencer aos trabalhadores que nela viviam e trabalhavam; essas pessoas decidiriam as formas de exploração do solo e de organização da produção, da gestão, da divisão do trabalho etc. O mesmo deveria ocorrer com a indústria: as fábricas deveriam ser socializadas, e a distribuição dos produtos realizada pelas organizações de trabalhadores, e não pelo sistema estatal-burocrático. Estas questões foram discutidas e encaminhadas em forma de projetos de leis para o governo temporário no I Congresso dos Conselhos dos Deputados Camponeses (maio de 1917), o fórum mais representativo deste período18. Os participantes votaram a favor da transferência das terras dos latifundiários (pomieschiki) aos comitês de camponeses (comitês de terra) eleitos localmente; estes deveriam determinar as leis de uso do solo. Os camponeses, contrários à comercialização, exigiam a proibição dos negócios com a terra (compra/venda) até o fim de distribuição. Essa exigência virou medida temporária do governo em 17 de maio e foi aprovada definitivamente em julho. Outra importante mobilização foi a reunião do Congresso Pan-Russo de Deputados Operários e Soldados, em junho19. Foi decretado o direito às greves e dia de trabalho de oito horas (que na prática funcionava desde março). As eleições para a Assembléia Constituinte (AC) se aproximavam e podiam descarregar a tensa situação social que teve seu ápice em julho – em São Petersburgo, os operários, soldados e marinheiros saíram às ruas clamando “Todo poder aos conselhos!”. Em setembro, o ponto de vista de Lenin sobre a urgência da tomada armada do poder vence entre os dirigentes dos bolcheviques. Em outubro foi preparado o golpe. Era importante realizá-lo antes das eleições para a AC e apoiar-se na ala radical dos conselhos que se reuniam para o II Congresso. No II Congresso dos Deputados Camponeses, Operários e Soldados participaram cerca de metade dos conselhos que compuseram o I Congresso. Estavam representadas duas tendências principais: uma radical (bolcheviques e anarquistas) e outra moderada (bolcheviques moderados, socialistasrevolucionários de esquerda, mencheviques internacionalistas, líderes dos sindicatos de ferroviários Vikjel – Âèêæåëü). Lenin e seus correligionários exigiam a tomada do poder pelo partido bolchevique, porém a maioria dos __________ 17. Forma tradicional de organização dos camponeses russos. 18. Participaram 1.353 deputados, mais da metade foram eleitos pelo exército. 19. 1.080 deputados de 336 conselhos e 23 unidades militares.
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delegados considerava a proposta unipartidária uma ameaça de guerra civil e uma atitude reacionária. Para os deputados, o golpe de outubro deveria enveredar-se para a criação de um governo socialista multipartidário responsável perante os conselhos. Um dia antes do golpe foram proclamados os decretos sobre a paz (fim da guerra) e a terra (socialização). Em 24 de outubro, o governo temporário fecha a imprensa bolchevique e começa a mobilização militar. Os bolcheviques, que até então só aguardavam um pretexto para o golpe, iniciaram o levante. A população apoiou os bolcheviques considerando a atitude do governo uma ameaça à revolução e ao congresso que encontrava-se em funcionamento durante aqueles dias. Em 12 de novembro acontecem as eleições para a Assembléia Constituinte, representando grande decepção para os bolcheviques, que obtiveram apenas 22,5% dos votos (outros partidos socialistas obtiveram 57,2%; socialistas-revolucionários – 50,5%). Nesse contexto, os bolcheviques iniciaram as perseguições aos deputados logo após as eleições. Em Kaluga, cidade próxima a Moscou, uma manifestação em apoio à Assembléia foi atacada com tiros de fuzil. Em dezembro de 1917 é promulgado o decreto – mantido em segredo por sete anos – criando a Tcheka20 (polícia secreta bolchevique, futura NKVD e KGB). III. Poder estatal bolchevique e a elaboração do discurso ideológico comunista (centralização e expansionismo do poder) Em 05 de janeiro de 1918, no dia de abertura da Assembléia Constituinte, o Exército Vermelho dos bolcheviques massacra a manifestação dos operários e da intelligentsia que apoiava a reunião, causando a morte de 12 pessoas. A Assembléia Constituinte funcionou durante a noite inteira. A Rússia foi proclamada República Democrática Federal. Foi promulgado o “Decreto sobre a paz” (Äåêðåò î ìèðå) estabelecendo a retirada das tropas russas dos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial, e condenando as negociações unilaterais entre os bolcheviques e o governo da Alemanha. No dia seguinte, quando os deputados voltaram à reunião, as portas estavam trancadas: os bolcheviques haviam declarado a dissolução da Assembléia Constituinte e tomado o controle do prédio. Após isso, todos os outros partidos, anarquistas e grupos políticos autônomos foram excluídos do novo projeto de poder. __________ 20. Ao incluir no ANEXO II desta obra a tradução de alguns documentos da Tcheka, objetivamos a desmistificação de Josef Stalin como único responsável pelas estruturas totalitárias do Estado Soviético, assinalando o período leninista como precursor do terrorismo de Estado na URSS.
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O governo bolchevique congela a transferência das fábricas aos operários e elabora sua própria lei de uso das terras. Lenin exige a inclusão de parágrafo que concebe as fazendas estatais: kolkhoz (êî ëõî ç) – sonho agrário dos marxistas. Os camponeses foram massacrados pela fome, pois o Estado proibia a troca direta dos produtos entre o campo e a cidade (uma das exceções foi a organização econômica estruturada por camponeses na Ucrânia, burlando as leis bolcheviques). Os operários perderam o controle sobre a gestão da produção nas fábricas, dirigidas agora obrigatoriamente pelos comissários do povo (íàðîäíûå êîìèññàðû) do Partido Comunista bolchevique. Em março foi assinado o acordo de paz com a Alemanha nas condições exigidas pela Alemanha: a Rússia perdia os territórios da Polônia, parte do Cáucaso, países Bálticos e parte da Ucrânia, e além disso pagava indenizações. Na Ucrânia começa a guerra de guerrilha contra a ocupação alemã. As greves de trabalhadores continuavam na Rússia em 1918. Para contê-las, bolcheviques ocuparam as direções de sindicatos e conselhos, proibindo novas eleições. Contrariados, os operários recriam o sistema de representação, elegendo delegados aos conselhos e construindo forte oposição à ingerência estatal que abarcava todas as grandes fábricas de Petrogrado (cerca de 56 unidades), e que rapidamente se expandiu para outras cidades21. Entre os meses de maio a julho, o movimento de delegados operários organizou dezenas de greves e protestos contra o governo, muitos destes reprimidos violentamente – como os fuzilamentos de manifestantes nas periferias de Petrogrado, na cidade de Tula e na região dos Urais. Em 13 de maio de 1918 foram implementadas medidas para controlar a produção e distribuição de gêneros alimentícios, anulando a atuação dos conselhos: os órgãos locais de gestão popular foram transferidos para o controle dos comissariados do povo (vinculados ao Estado), e a autogestão foi substituída pela ditadura dos órgãos burocráticos. Nesse contexto eclode a guerra civil (1918-1922), repercutindo na formação dos primeiros elementos do processo de russificação do território. Diversas alianças entre bolcheviques e lideranças locais foram estabelecidas, uma vez que as tropas do Exército Vermelho (dirigido pelos bolcheviques, __________ 21. Os operários faziam uma avaliação severa do Estado “operário”: “Em 25 de outubro de 1917 o Partido Bolchevique apoiando-se em soldados e marinheiros armados derrubou o governo temporário e tomou o poder. Nós, operários de Petrogrado, em sua maioria aceitamos esse golpe promovido em nosso nome, mas sem nos consultar e sem nossa participação... Usando nosso nome executavam todos assinalados pelo novo poder como inimigos; nós aceitávamos a redução de nossas liberdades e nossos direitos, esperando a realização das promessas dadas pelo poder. Mas já se passaram quatro meses e vemos nossa fé humilhada, nossas esperanças esmagadas” (citado em Utopia no Poder. História da União Soviética Desde 1917 até Nossos Dias. Gueller M. Nekritch A L., 1986. p.56).
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apoiado por socialistas) não cobririam toda a enorme extensão territorial nos combates contra o Exército Branco (dirigido por antigos generais das forças imperiais russas22). Uma das mais célebres alianças neste processo realizase com as comunidades camponesas livres do comandante Nestor Makhno, na Ucrânia. Apesar das sucessivas vitórias das tropas de Makhno contra as forças do Exército Branco, resguardando assim a defesa de uma das mais estratégicas regiões soviéticas, o desenrolar dos acontecimentos não acompanha o mesmo triunfo: exigindo autonomia política local, e portanto, chocando-se violentamente contra os propósitos expansionistas bolcheviques, o exército de Makhno é atacado e sufocado pelo Exército Vermelho, após longa resistência23. A política de comunismo militar repercutiu em todo o continente. Paralelamente à guerra civil travada entre os exércitos Branco e Vermelho, seguiu-se então a repressão de movimentos populares contrários à monopolização e centralização do poder político na Rússia. Em 1919, o jornal Pravda24, convertia a máxima “Todo poder aos Sovietes” a “Todo poder às Tchekás”, indicando outro futuro para revolução popular russa de 1917. Continuava a guerra civil no Cáucaso Setentrional, no Turquistão e no Extremo Oriente. Em janeiro de 1921 explodiu o levante camponês na Sibéria Ocidental, influenciando extenso território. Em todos os lugares a população exigia o fim da expropriação dos produtos, a liberdade de comércio, o fim da ditadura bolchevique, a permissão da pequena propriedade. O levante dos marinheiros e operários em Kronstadt (Êðîíøòàäò)25 foi pico desse período de lutas. Tudo começou em Petrogrado com as manifestações operárias nos meses de fevereiro e março, apoiadas pelos marinheiros e soldados. A multidão libertou os operários grevistas que haviam sido presos. Em resposta, o Comitê de Petrogrado do Partido Comunista ordenou o fuzilamento dos manifestantes e proibiu todas as aglomerações de população sem prévia autorização. Essas notícias chegaram em Kronstadt e começaram os protestos. A maioria dos comunistas desta cidade apoiou a seguinte resolução da manifestação dos marinheiros e da população de 1o de março de 1921: “Devido ao fato de que os conselhos atuais não representam a vontade dos operários e dos camponeses, exigimos imediatamente eleger novos conselhos por voto secreto, e antes das eleições promover debates políticos entre todos os operários e camponeses”. A resolução exigia a liber__________ 22. O Exército Branco também foi apoiado pelas principais potências européias preocupadas com a possível influência da Revolução Russa em seus territórios. 23. Para aprofundar o assunto, ver Anarquia e Organização: plataforma de organização e outros escritos, coletânea de textos de Nestor Makhno, editada pelo Coletivo Editorial Anarquista Luta Libertária, em 2001. 24. Em russo, “Verdade”. 25. Cidade ao lado de Petrogrado, situada no Golfo da Finlândia, porto e base militar.
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dade de expressão para os partidos de esquerda e os anarquistas, a restituição de outras liberdades civis, a libertação dos presos políticos socialistas, a anulação dos privilégios dos comunistas e das estruturas da ditadura econômica dos bolcheviques. O governo declara o levante em Kronstadt ilegal, e logo após a fortaleza se rebela. Foi eleito um comitê militar-revolucionário, cuja maioria dos membros era apartidária. A principal idéia era estabelecer uma forma de poder baseada nos conselhos, porém sem a ditadura dos bolcheviques: “Todo poder aos conselhos e não aos partidos!”. Em Petrogrado e outras cidades continuavam as greves, e os operários declaravam seu apoio a Kronstadt. A ampliação do movimento até Petrogrado na ocasião do degelo de primavera podia transformar radicalmente a situação no país. Os insurgentes contavam com o avanço dos exércitos camponeses de Makhno (Ucrânia) e de Antonov (líder do levante camponês na Sibéria). No entanto, no dia 18 de março, o Exército Vermelho liderado por Leon Trotsky tomou a fortaleza e massacrou os insurgentes. Após o sufocamento dos levantes de 1921 foram proibidas as tendências políticas dentro do próprio Partido Comunista, como a Oposição Operária de Aleksandra Kollontai. As cooperativas e os conselhos dos operários e camponeses passam a ser dirigidos obrigatoriamente pelos bolcheviques. Inicia-se a perseguição sistemática de membros de outros partidos socialistas e anarquistas, com prisões em massa, exílios e assassinatos. Naquela conjuntura, povos de outras regiões também enfrentavam o processo de russificação e de estatização do território, cujo objetivo primordial consistia na reconquista dos territórios tornados independentes durante a guerra civil, tais como a Ucrânia, a Geórgia, a Armênia, e outros. Se inicialmente eram celebradas alianças bilaterais entre as lideranças regionais e o Exército Vermelho, posteriormente foram proibidas pelo governo central russo a independência diplomática e a autonomia militar dessas regiões, “processos concluídos em 1923-24, antes, por conseguinte, da época de Stalin. (...) Quanto a outras nacionalidades, procedeu-se à liquidação violenta das instâncias hostis à reunificação no quadro da URSS: socialismo pan-islâmico de Sultan Galiev, Poale Zion etc. Na realidade, os bolcheviques não tinham imaginado que, livres graças à Revolução, houvesse nações que renascessem como entidades próprias para, só forçadas, aceitarem juntar-se à República dos Sovietes” 26. Dessa maneira, a política leninista referente às etnias e nações privava os povos de quaisquer formas de desenvolvimento autônomo. Além disso, implementa-se uma política intervencionista e policialesca de dimensões continentais, semeando muitas vezes conflitos internos duradouros entre os __________ 26. Ferro, Marc. A Política das Nacionalidades do Regime Soviético. In: Nações e Nacionalismos. Cordellier, Serge (coord.). Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1995. p. 150.
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povos. A população russa observa o rápido enrijecimento das estruturas políticas. Com o monopólio do poder centralizado no Partido Comunista, os bolcheviques, vitoriosos na guerra civil e no combate a outras formas de oposição interna, iniciam o regime ditatorial sobre proletários e camponeses. Para isso, as tchekas assumiam cada vez mais as incumbências de vigilância, controle e punição cotidianas. E o Estado policial soviético inicia vertiginoso descaminho para a emolduração do Estado comunista bélico, ou seja, o impulso desenfreado à produção industrial de armamentos – que encontrará seu apogeu no período pós-Segunda Guerra Mundial. IV. O Estado totalitário na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS): militarização, repressão e russificação Após a criação da URSS em 30 de dezembro 1922, o processo de russificação e militarização no continente continuou abrupto e violento. Abrupto por interromper e subjugar povos e comunidades que, por séculos, desenvolviam suas diversas formas de autogovernos. Em poucos anos, esse exercício de autonomia social foi substituído pela heteronomia estatal soviética (tal processo não fora exclusividade das ações do Partido Comunista Soviético: em outros continentes, a formação e o desenvolvimento do Estado-nação caracterizou-se, essencialmente, pela usurpação das habilidades de autogoverno de comunidades tradicionais). Violento porque tais comunidades, descentralizadas e espalhadas pelo continente, experimentaram a força dos modernos mecanismos de repressão militar combinados com a força de persuasão dos modernos mecanismos de propaganda e marketing. A sobrevivência do modo de vida comunitário autônomo fora encurralado. A ingerência e dominação pelo Estado das atividades comunitárias essenciais ao autogoverno social, tradicionalmente exercidas pela própria comunidade e núcleos familiares, se materializou através do surgimento de especialistas do Partido Comunista: estes passaram a apontar a melhor maneira para administrar a sociedade, gerir a economia, educar, remediar pequenas enfermidades, fazer sexo, lavar roupas, praticar esportes, parir crianças e enterrar os mortos. Indicavam também a música da moda, explicavam os motivos das grandes guerras e das catástrofes humanas, enfim, retiravam da população civil as habilidades humanas de agir e emitir opiniões sobre a própria vida. Aos especialistas do Estado foi repassada a incumbência de gestão social. E a especialização da gestão social, por sua vez, nada mais é do que a radicalização da divisão do trabalho, processo capitalista iniciado com a Revolução Industrial, na Inglaterra, e globalizado através das grandes empresas transnacionais, na atualidade. 28
No caso do Estado soviético, a divisão do trabalho configurou-se na formação de uma classe social de gestores (dirigentes), empenhados em submeter a classe trabalhadora de camponeses e operários à nova ordem dita comunista. A operacionalização e implementação social dos mecanismos de lealdade aos dirigentes foram criados logo a partir das primeiras medidas de Lenin, principalmente na concepção da Tcheka – os administradores, policiais e funcionários do Partido cuidavam para que toda e qualquer deslealdade significasse ato contra-revolucionário. No que se refere ao papel dos professores, estes já contavam inicialmente com amplo apoio do aparato estatal escolar para universalizar o ensino obrigatório do idioma russo em todas as regiões da União Soviética. A nova ordem bolchevique procurava uniformizar, disciplinar e controlar a totalidade de centenas de povos que habitavam o extenso continente euro-asiático. Os conflitos decorrentes desse processo, acentuados pela morte de milhões de pessoas com as repressões stalinistas (como a deportação de tchetchenos e outros povos ordenada em 1944), estão na origem das recentes guerras travadas entre o governo russo e os povos de ex-repúblicas soviéticas em torno da questão da autonomia política. Assim, para compreendermos os conflitos atuais na Rússia provenientes da desintegração da URSS – como a guerra na Tchetchênia – percebemos que o processo de russificação, militarização e repressão constituiu a base das violações dos direitos humanos cometidos na época do governo imperialista da URSS. V. O fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e a formação da atual Federação Russa Apesar da longa duração do regime político totalitário da União Soviética, diversas lutas autônomas e autogestionárias colocavam em xeque o discurso ideológico comunista e a legitimidade do poder da burocracia estatal soviética. Foi principalmente através dessas lutas que os mitos da revolução russa e da inevitabilidade do Estado para a gestão da sociedade – tão propagandeado e alardeado pelos meios de comunicação da URSS e pelos representantes dos Partidos Comunistas – foram desmascarados. Destacamse os Conselhos Operários na Alemanha (1953) e na Hungria (1956); as Comunas de Shangai (1966), Praga (1968) e Gdansk (1980); a Gestão Operária na Itália (1968); a Guerra Civil Espanhola (1936) e as Comisiones Obreras na Espanha (1969); a Revolução dos Cravos e as Comissões de Trabalhadores em Portugal (1974); os processos de autogestão na Argélia (1962) e no Chile (início da década de 70); o controle operário da minas na Bolívia (anos 50); as ocupações de fábrica na Argentina (1973)27. __________ 27. Para um estudo mais aprofundado sobre tais lutas, ver As Lutas Autônomas e Autogestionárias, de Cláudio Nascimento (1986).
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Tais lutas objetivavam o autogoverno, e negavam a ingerência do Estado nas decisões políticas que pudessem interferir na organização social e econômica do cotidiano. Esses movimentos organizavam-se, essencialmente, através de assembléias populares e rotatividade de liderança, e não reconheciam a legitimidade dos chefes ou burocratas do Estado e dos sindicatos. Logo, a relação entre esses movimentos populares e a URSS foi invariavelmente tensa. O exército comunista soviético realizava constantes incursões contrárias a esta forma de organização das lutas, que pregavam o autogoverno local em detrimento da lealdade aos funcionários dos partidos comunistas. * * * No governo de Mikhail Gorbatchev (1984-1991), o capitalismo de Estado russo agonizava e seu sistema concorrente, o capitalismo de livre mercado, demonstrava-se mais eficaz. Em tal contexto, Gorbatchev inicia reformas políticas e econômicas, conhecidas mundialmente por Glasnost e Perestroika. Tais reformas redimensionavam os poderes político e econômico no país, visando a reestruturação e realocação dos gestores do Partido Comunista em esferas de poder do capital de livre mercado que começava a ocupar o cenário econômico. Paralelamente ao enfraquecimento do poder centralizado no Kremlin, diversas repúblicas soviéticas iniciaram movimentos pela independência política, brutalmente reprimidos por Gorbatchev. Na Geórgia uma manifestação popular foi massacrada pelo exército da URSS, causando a morte de 20 pessoas. As Repúblicas Bálticas (Letônia, Lituânia e Estônia) conquistam independência em 1991. Conflitos étnicos ressurgem em diversas regiões, como em Nagorny Karabakh, entre armênios e azeri. Em agosto de 1991, membros proeminentes do Comitê Central do Partido Comunista tentam derrubar Gorbatchev: o golpe fracassa após três dias, mas suscita manifestações populares e o fortalecimento de lideranças locais, como Bóris Ieltsin. Em dezembro, após a renúncia de M. Gorbatchev, Ieltsin assume o poder e anuncia a dissolução da URSS. A partir disso, diversos Estados Nacionais e Repúblicas autônomas são criados no território da antiga URSS, assim como a Federação Russa. Tal reestruturação política dá origem a uma série de incidentes e complicações. Em primeiro lugar, a população da URSS foi dividida entre 15 novos Estados e teve que optar pela nova cidadania. Assim, nem todo cidadão soviético obrigatoriamente tornar-se-ia cidadão da Federação Russa. Poderia optar pela cidadania relacionada à sua origem étnica, ou ainda, optar pela cidadania relacionada ao seu atual país de moradia ou trabalho. Nessa 30
divisão, russos não seriam necessariamente cidadãos da Federação Russa, assim como ucranianos, uzbeques, letões e todos os povos pertencentes a nações titulares de novos Estados. A anulação da antiga categoria cidadão soviético propiciou o crescimento de sentimentos e identidades nacionalistas submersos na época da URSS. Paralelamente à tal reestruturação política, o governo de Ieltsin apresentou à população o pacote de reformas democráticas que incluia os direitos e as liberdades civis (como, por exemplo, a liberdade de expressão e de religião), mas também a liberação de preços antigamente controlados pelo Estado. Com o surgimento da Federação Russa, uma parte da propriedade estatal foi privatizada, surgindo oligarcas. As pessoas rapidamente empobreceram e se sentiram livres de antiga pressão ideológica. Apareceram novos e importantes segmentos de economia – com o das drogas (a heroína foi rapidamente introduzida no mercado e a população jovem induzida ao consumo em massa). Este cenário permaneceu durante primeiros dois ou três anos após o nascimento da Federação Russa, mediado por formações armadas mafiosas que controlavam o mercado caótico. VI. A ascensão de Vladimir Putin ao poder presidencial da Rússia28 No verão de 1999, Vladímir Putin – funcionário do governo pouco conhecido pela população russa, mesmo ocupando importante posto na hierarquia da FSB29 (ex-KGB) – foi nomeado primeiro-ministro da Rússia. Durante os primeiros meses de seu mandato, a popularidade de Putin continuava completamente inexpressiva. Essa porcentagem aumentou com a retomada do conflito armado entre a Rússia e a Tchetchênia. A guerra se popularizou novamente após as inexplicáveis explosões de prédios residenciais em Buinaisk (Áóéíàéñê), Moscou (Ì î ñêâà) e Volgodonsk (Â îëãî ä î í ñ ê), no final de 1999. Antes das explosões, a população russa não demonstrava interesse com a nova onda de campanhas militares no Cáucaso, pois as notícias alarmantes desta região há tempo viraram rotina – a partir do outono de 1994 e do inverno de 1994-95, quando começou a primeira fase da atual guerra entre a Rússia e a Tchetchênia. As explosões dos prédios de moradia nas cidades russas indicavam para a população que, ao contrário da primeira fase do conflito, a guerra na Tchetchênia não estaria restrita ao Cáucaso setentrional, mas se estenderia a outras regiões da Rússia, inclusive às residências dos cidadãos comuns. __________ 28. Fonte: <<www.volia.nm.ru/read.htm>> (acessado em 10 de junho de 2006). Novembro 2004, no 21. Periodico libertário. 29. Serviço Federal de Segurança.
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Nessa situação, o então primeiro ministro Putin passou a desempenhar o papel de defensor absoluto da nação, chegando ao poder com o discurso de vencer o separatismo e o terrorismo. Porém, a partir desse momento, Putin passa a promover diversas medidas pouco relacionadas com a repressão ao separatismo e ao terrorismo, e muito mais diretamente vinculadas com a preparação de um regime rígido e autoritário. Os oligarcas que exerciam uma forte influência no governo de Ieltsin foram expulsos do país (Berezóvski, Gusínski, Abramóvitch) ou presos (como Khodorkóvski, ex-proprietário da grande companhia petrolífera Yukos). Os meios de comunicação – outrora vinculados exclusivamente à burocracia do PC soviético e que por um breve período conquistaram certa autonomia durante o governo de Ieltsin – sofreram nova intervenção estatal: jornalistas independentes do principal canal da televisão (NTV) foram demitidos, e perseguidos posteriormente em outros canais (como na TV6 e TVC). As ações da NTV foram adquiridas pela companhia parcialmente estatal Gazprom e por outras instituições do Estado. A censura na imprensa foi restabelecida, principalmente após o início da onda dos chamados “atentados terroristas” (explosões e tomadas de reféns) nas grandes cidades russas. Com as medidas governamentais voltadas para o controle dos meios de comunicação, poucos jornais e estações de rádio ainda conseguem veicular uma programação crítica ao governo. Após a tragédia na escola de Beslan (Áåñëàí)30, o governo aproveitou para anunciar uma urgente reforma nas estruturas políticas da Rússia apresentada como indispensável ao combate do terrorismo. Foi anunciada a mudança no sistema eleitoral, no qual foram proibidas candidaturas autônomas (ou apoiadas por um grupo independente de pessoas de certa localidade) para o Parlamento. As eleições para governadores foram anuladas – agora estes serão nomeados diretamente pelo Kremlin. Além disso, em 2004, o governo preparou um pacote de mais de 100 leis anti-sociais que, dentre outros aspectos, prevêem: a anulação de transporte gratuito para os aposentados; o cancelamento de distribuição gratuita de remédios para os doentes crônicos (por exemplo, para aqueles que sofrem de diabetes); a anulação de subsídios para as vítimas das repressões políticas, para portadores de necessidades especiais e para vítimas de catástrofes – inclusive para a população exposta à radiação na ocasião da explosão da usina nuclear de Tchernóbyl (×åðíîáûëü); a anulação de indexação de salários para aqueles que trabalham na região Setentrional da Rússia (costa do Oceano do Norte); a anulação de bolsas para os estudantes etc. __________ 30. No dia 1° de setembro de 2004, em uma escola pública em Beslan, capital da Ossétia do Norte, supostos terroristas tchetchenos fizeram reféns centenas de pessoas, na maioria crianças. O governo russo rejeitou qualquer possibilidade de negociação e no dia 3 de setembro o exército invadiu a escola: 335 pessoas morreram.
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* * * Utilizando o discurso propagandista sobre a necessidade da união nacional contra o terrorismo tchetcheno, o Kremlin reassumiu o monopólio do espaço público de discussão política na Rússia. Ao encontrar oposição política em qualquer esfera social, repentinamente surgia o terrorismo tchetcheno. No outono de 1999, quando o Kremlin objetivava eleger um funcionário desconhecido no país para o cargo da presidência, aconteceram as explosões dos prédios residenciais. Em 2002, por ocasião da tomada dos reféns durante o espetáculo teatral Nordost em Moscou, o governo aproveitou para asfixiar determinadamente os canais de televisão e restabelecer a censura. Antes da segunda eleição de Putin houve a explosão no metrô em Moscou. Após a tragédia em Beslan, houve a promulgação de leis e medidas anti-sociais. Aparentemente, o Kremlin não tem interesse em terminar a guerra na Tchetchênia. As operações militares revigoram a economia bélica e toda a indústria da violência na Rússia. As forças especiais da polícia (OMON) e os membros da FSB fazem estágio nas regiões de conflito, obtendo experiência incomparável: experiência para forjar falsas acusações, para seqüestrar, para torturar. E a guerra continua servindo de pretexto para a anulação das liberdades políticas e dos direitos econômicos da população, também camuflando a corrupção dos órgãos de segurança nacional. A guerra na Tchetchênia torna-se, assim, um mecanismo comum para o exercício e para a reprodução do poder.
Soldados do exército federal da Rússia em Grozny.
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34 Mercado de Grozny em 2002.
Terrorismo de Estado e a Guerra na Tchetchênia I. Introdução Os povos das montanhas do Cáucaso Setentrional – tchetchenos, inguches, ossetas, kabardinos, balkaros, karatchai, tcherkesse e outros – sempre representaram entraves para as tentativas imperialistas euro-asiáticas: resistiram aos expansionismos tártaro-mongol, turco-otomano, russo e soviético. A geografia auxilia nas estratégias de resistência. A região montanhosa dificulta o acesso para as tropas dos invasores, enquanto as formas seculares de auto-subsistência das comunidades tradicionais colaboram para a sobrevivência. Pastores nômades e agricultores, estes povos organizavam-se através de conselhos das comunidades e foram vistos como bárbaros e “atrasados” não só pelo Império Russo que tentou dominá-los durante a longa e sangrenta Guerra do Cáucaso (1817-1864), mas também pelos dirigentes da União Soviética que se opuseram à criação de uma República Autônoma dos Montanheses, logo após a revolução de 1917. Com a desintegração da URSS, a Tchetchênia novamente proclama a independência. Mas o poder imperial somente trocou de nome porque, em 1994, as tropas russas invadem a Tchetchênia. Começa a guerra, que dura até hoje – vitimando centenas de milhares pessoas31 e fazendo cerca de 500.000 refugiados. __________ 31. Folha de São Paulo, 27/06/2005. “Rússia. Vice-premiê tchetcheno diz que guerra matou 300.000. O vice-premiê tchetcheno Dukvakha Abdurakhmanov disse que cerca de 300.000 pessoas morreram na república separatista tchetchena na última década, nas duas guerras por que passou a região. A declaração foi no Daguestão, onde tentava convencer refugiados tchetchenos a voltar ao país”. Vale notar que segundo as ONG´s de defesa de direitos humanos não existem dados exatos sobre o número de mortos durante as duas guerras na Tchetchênia. Segundo os dados da ONG Memorial, durante a primeira guerra (1994-1996) morreram, no máximo, 50.000 pessoas civis; o Comitê Estatal de Estatística da Federação Russa calcula 30.000 a 40.000. A ONG Human Rights Watch estima que durante os primeiros nove meses da segunda guerra (1999-2000) morreram entre 6.500 e 10.400 civis. Estes são os únicos dados existentes e confiáveis, segundo a ONG Memorial (www.memo.ru). Aleksandr Tcherkassov, membro dessa ONG, escreveu sobre a questão em artigo Livro dos Números: Demografia, perdas entre a população civil e fluxos de migração em zona do conflito armado na República da Tchetchênia. Crítica das fontes, que pode ser encontrado no site.
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II. Deportação do povo tchetcheno em 1944 Após a derrocada do Império Czarista Russo, os povos do Cáucaso Setentrional se auto-organizam e criam a República dos Montanheses (19171918)32, governada pelo Conselho de representantes locais. Inicialmente, a República dos Montanheses apóia a revolução de 1917. No entanto, em 1920 ocorre o primeiro levante contra os bolcheviques – que procuravam instalar seu próprio governo na região e mudar a organização social dos montanheses. Cerca de 10.000 insurgentes (homens livres e sufistas, conhecidos como sectários de uma seita mística, panteísta, maometana) que proclamaram a Libertação Nacional e o Estado Charia (charia: justiça islâmica; leis e normas), declarando gazawat (guerra santa) são massacrados pelos 40.000 soldados do Exército Vermelho33. De acordo com a política nacional da URSS de russificação do continente, novas delimitações das fronteiras territoriais foram estabelecidas no Cáucaso. Em 1922, a República dos Montanheses é dissolvida pelo poder bolchevique, e são criadas repúblicas autônomas biétnicas ou monoétnicas. Os tchetchenos continuaram resistindo à política nacional da URSS, e as revoltas não cessavam. Em 1923, 10.000 montanheses são expulsos para a planície pelo Exército Vermelho. Após dois anos, Stalin ordena o desarmamento dos chefes da contra-revolução e do banditismo, realizando operações de limpeza e bombardeios aéreos nas vilas tchetchenas. Ao mesmo tempo, a coletivização das terras, implantada na Tchetchênia em 1929, trouxe conseqüências desastrosas para os povoados: devido à inexistência da propriedade privada (as terras, os bosques, as águas pertenciam às comunidades), a coletivização traduziu-se, na prática, pela desapropriação e estatização dos recursos naturais da região. Nas montanhas, o pastoreio, principal atividade de subsistência, foi condenado pela ideologia soviética devido ao nomadismo. Com a apropriação estatal das bases econômicas das comunidades e com a ingerência sobre o modo de vida tradicional, os tchetchenos se rebelaram novamente: ocuparam os centros de administração bolchevique nas cidades e nas vilas, queimando arquivos e prendendo chefes e representantes dos órgãos do governo. Estas ações foram qualificadas como “terroristas” pelo governo da URSS34. O Exército Vermelho invade a Tchetchênia e realiza grande campanha de repressão, seqüestrando e assassinando os líderes da resistência. A coletivização forçada ocasionou levantes __________ 32. Faziam parte da República: Tchetchênia, Inguchétia, Ossétia, Kabarda, Balkar e Karatchai. 33. Após este levante, Stalin, à época comissário do povo para as questões das nacionalidades, prometeu autonomia, soberania interna e independência para a República dos Montanheses que aceitou integrar a URSS nestas condições. 34. Os rebeldes exigiam do poder soviético: 1. Parar o confisco ilegal da propriedade campesina, ou seja, parar a coletivização. 2. Parar as prisões ilegais de camponeses. 3. Destituir os representantes da OGPU na Tchetchênia, substituindo-os por representantes tchetchenos da sociedade civil local. 4. Cancelar os julgamentos “populares” implementados por ordem do
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populares entre os anos de 1929 e 1932, sufocados através de violenta repressão do exército e do terror stalinista35. Mas as tradições de luta pela liberdade estavam bem vivas entre os tchetchenos, e a indignação popular cada vez mais forte resultou em outra revolta (1939). Desta vez os rebeldes não lutavam sob os dogmas islâmicos: a ideologia do movimento, liderado pelos representantes da intelligentsia, formados após revolução de 1917 (escritor Kh. Israilov, jurista M.Cheripov, irmão do perseguido líder dos bolcheviques tchetchenos, e outros), foi combater o imperialismo vermelho para uma libertação nacional. Os rebeldes expulsaram os representantes do stalinismo na maior parte das regiões montanhosas e proclamaram a criação do governo temporário popularrevolucionário da Tchetcheno-Inguchétia. A luta armada durou três anos, e somente em 1942, após diversos bombardeios aéreos, as tropas do NKVD conseguiram dominar o levante. Em 1944, o povo tchetcheno foi acusado de “colaboração em massa” com as tropas nazistas. A inverossímil colaboração foi, na realidade, um pretexto para a violenta repressão da luta armada dos tchetchenos contra o poder imperialista de Stalin. Tchetchenos e outros povos insubmissos foram deportados para a Sibéria e o Casaquistão36, e as Repúblicas da Tchetchênia e Inguchétia apagadas do mapa da URSS. Os povos massacrados começaram a recuperar seus direitos após a morte de Stalin, em 1954. No entanto, o retorno para a terra natal e a reabilitação das comunidades caucasianas encontraram diversos obstáculos, como uma economia local desestruturada, desemprego crônico e um território ocupado por moradores provindos de outras regiões. Mesmo assim, tchetchenos, inguches e outros povos do Cáucaso passaram a reconstruir suas formas econômicas tradicionais de subsistência e a se reorganizar social e politicamente. III. A retomada dos movimentos pela autonomia política da Tchetchênia e os antecedentes da guerra (1990-94)37 Diversos fatores colaboraram para o processo de intensificação dos movimentos pró-independência da Tchetchênia no final dos anos 80 e início __________ governo da URSS e restaurar os orgãos charia de justiça. 5. Restabelecer as decisões políticas do conselho tchetcheno de 1917-1918 e não permitir as interferências do poder central nas questões internas da Tchetchênia, ou seja, cumprir os acordos estabelecidos entre Stalin e os montanheses em 1921. 35. Somente no ano de 1932 foram reprimidas cerca de 35.000 pessoas. 36. Por ordem de Stalin, acusados de traição, foram deportados: tchetchenos, inguches, karatchai, kalmyks, balkary e tártaros da Criméia. Oficialmente, foram deportados 500.000 tchetchenos e inguches. 37. Texto baseado no artigo Apontamentos sobre as Relações Políticas entre a Federação Russa e a República Tchetchena. Fonte: <<www.memo.ru/hr/hotpoints/CHECHEN/ ITOGI/Index2.htm>>; em inglês: <<memo.ru/hr/hotpoints/chechen/checheng/czecz.htm>> (acessado em 10 de junho de 2006).
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dos anos 90. Primeiramente, para os tchetchenos, a questão de uma associação étnico-territorial possui significado histórico: a memória da guerra contra o Império Russo, a repressão stalinista e as deportações em massa são recordações de várias gerações. Por outro lado, tal processo foi facilitado pela eleição de Ieltsin para a presidência do Conselho Supremo da Federação Russa (FR), em junho de 1990, e o conseqüente enfraquecimento do poder soviético central representado por Gorbatchev. Ao utilizar os mesmos argumentos de Ieltsin, forças de oposição locais advogavam em favor da autonomia política dos territórios vizinhos à FR. O colapso e a desintegração da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), acentuados pelo despreparo do governo central de Gorbatchev em solucionar as demandas regionais pela autonomia dos territórios e repúblicas soviéticas, resultou em uma série de trágicos conflitos. Ieltsin empenhava-se em consolidar alianças com líderes locais, visando a “integridade territorial da Rússia em contraposição à integridade territorial da União Soviética”, em acordo com a teoria desenvolvida por seu principal assessor político Chakhrai38. Em outras palavras, a União Soviética estava fadada ao colapso político, porém tal colapso poderia ser utilizado para o fortalecimento da integridade e expansão territorial da Federação Russa. Esta teoria encontrou forte oposição em diversos locais. O Tatarstão logo manifestou interesse em desvincular-se da Federação Russa, ao contrário da República Socialista Autônoma Soviética Tchetcheno-Inguchétia (RSASTchI), aparentemente passiva a qualquer movimentação política. Desde 1983, a RSASTchI estava sob comando de Doku Zagaev, alto funcionário do Partido Comunista. Enquanto presidente do Conselho Supremo desta República, Zagaev assinou em 1990 uma declaração de soberania da República Tchetcheno-Inguchétia. No entanto, tal ato político em nada alterou as relações políticas entre a Tchetchênia-Inguchétia e autoridades da Federação Russa e da União Soviética. Foi formado um Comitê Executivo da República Tchetchena, presidido pelo Major-General Dzhokar Dudaev. Rapidamente, o Comitê transforma-se em fórum de disputas políticas entre a ala radical-nacionalista e a ala democrática liberal. O conflito político na Tchetchênia acentuou-se após a fracassada tentativa de golpe e aprofundamento da crise política na União Soviética, em agosto de 1991. Nessa conjuntura a República Tchetcheno-Inguchétia é dissolvida. E ainda que a Inguchétia tivesse se organizado enquanto uma república autônoma da Federação Russa, os tchetchenos reivindicavam uma República Tchetchena soberana. Tal decisão aumentou a instabilidade política na região, precipitando uma série de rupturas e divisões entre políticos tchetchenos. Ao mesmo tempo, a Federação Russa aumentou a intervenção __________ 38. Chefe do Comitê das Políticas Nacionais, a partir de março de 1992. Principal conselheiro de Ieltsin e um dos principais responsáveis pelo começo da guerra na Tchetchênia.
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política na Tchetchênia, exigindo o desarmamento de formações militares ilegais; as forças armadas soviéticas exigiriam a incorporação de todos os homens tchetchenos na Guarda Nacional, e a crise na região direcionou-se para um conflito armado. Em outubro de 1991, Boris Ieltsin impõe um ultimato aos líderes separatistas tchetchenos. No mesmo mês, Dudaev elege-se presidente da autoproclamada República Tchetchena Itchkeria. A União Soviética (o Conselho Supremo) recusa-se a reconhecer a validade da eleição. Enquanto isso, A. Arsenov torna-se líder do governo paralelo contra Dudaev na Tchetchênia. No início de 1992, a situação transformou-se abruptamente. A União Soviética entra em colapso e 15 Estados independentes são reconhecidos no território soviético. Dudaev alinha sua retórica anti-Rússia na arena internacional, buscando assim a independência política na Tchetchênia. Dudaev procurou, portanto, extrair o máximo de benefícios possíveis da instabilidade política, uma vez que o Kremlin se eximia de qualquer decisão radical em virtude de sua delicada situação: consolidou seu comando sobre as forças armadas regionais e assumiu o controle dos armamentos localizados no território tchetcheno. Sob olhares atentos do Kremlin, o problema na Tchetchênia foi adiado, inclusive devido à maior cobertura da mídia internacional em relação aos conflitos em Tatarstão. Apesar de tudo, os diálogos entre a Rússia e a Tchetchênia continuaram durante tal período. Negociadores russos e tchetchenos acordaram um comunicado conjunto para a resolução do conflito, incluindo aspectos políticos, legais, econômicos e de segurança pública. Todavia, no final de 1992, muitos vislumbraram nos acordos de ampla autonomia política de Tatarstão um modelo que poderia ser aplicado ou reivindicado na Tchetchênia39. A escalada do conflito estava perceptível na mobilização das forças armadas de ambos os lados, e o governo russo não mais ecoava no território tchetcheno. As negociações continuaram na primavera de 1993, e a separação tchetchena da Federação Russa configurava-se fato inegável, acentuada ainda pelo boicote ao referendo governamental russo realizado em abril. Posteriormente, Dudaev inviabiliza todas as estruturas tchetchenas vinculadas ao governo russo, procurando também monopolizar a produção (em declínio) de petróleo40. Tais ações políticas colocaram a Tchetchênia na linha direta de conflito com o governo russo. __________ 39. O Tatarstão e a Tchetchênia foram os dois únicos territórios que se recusaram a assinar o acordo para integração na Federação Russa em 31 de março de 1992. O Tatarstão, após longas negociações, assinou o acordo em 15 de fevereiro de 1994, entrando assim na Federação Russa e conseguindo alguma autonomia (Constituição própria, autonomia nas relações políticas e econômicas com outros Estados, direito de autodeterminação sobre as questões da propriedade, recursos naturais e terra). Assim, a Thetchênia ficou sozinha na luta pela independência entre os 89 territórios da Federação Russa. 40. O território da Tchetchênia está localizado no trajeto do oleoduto Baku-Novorossisk.
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Após os confrontos entre Ieltsin e a Câmara dos Deputados (DUMA) da Rússia, entre setembro e outubro de 1993, a política do Kremlin em relação à Tchetchênia assume contornos mais definidos. Em acordo com a constituição russa promulgada em 12 de dezembro de 1993, a República Tchetchena continua submetida à Federação Russa. Paradoxalmente, diversas lideranças políticas que trabalharam intensamente para a desintegração da União Soviética não hesitavam em defender a integridade da Rússia, devido principalmente a um possível “efeito dominó”, caso uma das regiões da Federação Russa conquistasse independência. Durante 1994, um número crescente de declarações e decisões contraditórias – tanto em Moscou como em Grozny – encaminham o problema político para um conflito bélico. A possibilidade de negociações diretas tornase gélida. Com o aumento de ataques tchetchenos, a mídia russa trabalha para construir uma imagem positiva do Conselho Provisório da República Tchetchena enquanto estrutura legislativa oposta ao não reconhecido “regime de Dudaev”. No outono, ao continuar o processo de mobilização e preparação das forças armadas, Moscou demonstrava claramente quais seriam as intenções com a administração tchetchena de Dudaev. Por outro lado, Dudaev continuava a transformação da Tchetchênia em um enclave armado. Jornalistas russos e representantes de organizações de direitos humanos foram expulsos da região. Antes do início das operações militares na Tchetchênia, ambos os lados ainda sustentavam certa esperança em alcançar algum compromisso de resolução, apesar das inconciliáveis posições nas negociações. Analisando o histórico das relações políticas entre as esferas governamentais da Federação Russa e a República Tchetchena, podemos concluir o seguinte: 1. A mudança do governo em Grozny consolidou-se no período entre agosto e novembro de 1991, apesar das legislações da RSFSR e da URSS; 2. A proclamação de um novo governo independente da República Tchetchena e a reivindicação de seus atributos políticos, militares e econômicos também conjecturou-se enquanto violação da constituição e legislação russas; 3. A tentativa forçada de reagrupar a Tchetchênia na estrutura legal da Rússia, em novembro de 1991, acarretou duvidosos resultados sociais: aos olhos de uma significante parte da sociedade tchetchena foram justificadas, dessa maneira, as ações ilegais de forças políticas e militares que lutavam pela independência da República Tchetchena; 4. Nem os diferentes elementos da política governamental da Rússia, nem o governo da República Tchetchena Itchkeria (comandada por Dudaev), possibilitaram passos realistas e significativos na solução da crise. 40
Nenhum dos governos utilizaram as ferramentas disponíveis para a procura de uma resolução para o conflito; 5. As ações militares secretas realizadas pelo governo da Rússia no território tchetcheno auxiliaram a consolidação de uma posição antagônica entre a sociedade tchetchena e os russos, limitando assim as possibilidades de uma resolução pacífica ao conflito; 6. A solução militar para a crise foi inadmissível e não pôde ser justificada por qualquer argumento político, militar ou moral. IV. Conflito armado (1994-1996) – 1a fase da guerra41 Durante as operações militares na Tchetchênia e regiões vizinhas, ambos os lados envolvidos no conflito utilizaram a população civil como escudos humanos e como reféns. Além disso, desde o início da guerra, o governo da Federação Russa declarava que soldados russos capturados eram “reféns” dos rebeldes tchetchenos. A utilização do termo “reféns” surgiu como resultado de uma cuidadosa elaboração político-ideológica. Autoridades russas negavam a existência do conflito (nacional ou internacional), reduzindo a situação de guerra a um processo de desarmamento de formações criminosas, assunto estritamente interno da Rússia. De acordo com posições oficiais, a situação dos prisioneiros e de detenções individuais enquadravam-se em um contexto criminal. Em outras palavras, os tchetchenos não recebiam tratamento de inimigos de guerra, mas de formações de grupos criminosos. Como resultado, soldados russos capturados por separatistas tchetchenos também estavam desprovidos da condição de prisioneiros42. Apresentamos alguns apontamentos centrais deste período da guerra, a seguir: Em 11 de dezembro de 1994 o presidente da Federação Russa Boris Ieltsin assina o decreto nº 2.169, referindo-se às “medidas de garantia de legitimidade, ordem e segurança social no território da República Tchetchena”. Os responsáveis pelas ações de desarmamento e liquidação das formações armadas, segundo tal decreto, teriam que agir regularmente por tempo indefinido. Ieltsin justifica-se publicamente, e explica os motivos do envio de tropas do exército federal para o território tchetcheno: “Nosso objetivo é achar uma solução política para o problema de uma das Repúblicas da Federação Russa – a República Tchetchena; proteger seus cidadãos do extremismo armado. Mas hoje em dia as negociações pacíficas e a liberdade de expressão estão sob ameaça de uma guerra civil. Para 12 de dezembro __________ 41. Fonte: <<www.memo.ru/hr/hotpoints/CHECHEN/ITOGI/Index1.htm>> (acessado em 10 de junho de 2006). 42. A condição de prisioneiro de guerra ou indivíduos detidos forçadamente possuiria algumas proteções legais.
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estão previstas negociações entre representantes da Rússia e da Tchetchênia, e precisamos garanti-las”. Além disso, aconselha a “todos os responsáveis pela restituição da ordem constitucional na República Tchetchena não utilizar violência contra a população civil”. Em seguida, tropas do Ministério de Defesa e do Ministério do Interior invadem o território da Tchetchênia por três diferentes direções: de Mozdok (Ì î çä î ê) (do norte através das regiões da Tchetchênia controladas pela oposição contra-Dudaev), de Vladikavkaz (Âëàäèêàâêàç) (do oeste, da Ossétia do Norte e da Inguchétia) e de Kizliar (Êèçëÿð) (do leste, do Daguestão). As tropas que se moviam do norte sem obstáculos passaram pelo território tchetcheno e chegaram até as vilas, situadas a 10 km de Grozny (capital da República), onde pela primeira vez encontraram a resistência armada. Aqui, perto de vilarejo Dolinski (Äîëèíñêèé), em 12 de dezembro, as tropas russas foram metralhadas pelo grupo comandado por Vakhi Arsanov: seis soldados foram mortos e 12 feridos; 10 unidades móveis foram incendiadas. As tropas acamparam na linha Dolinski – entre as vilas Pervomaiskaia (Ï å ð â î ì à é ñ ê à ÿ) e Petropavlovskaia (Ïåòðîïàâëîâñêàÿ). Os tiroteios foram iniciados. Nos dias seguintes, devido aos metralhamentos destas vilas por tropas russas, sucederam-se diversas mortes entre a população civil. Outra coluna de tropas russas que se movia do Daguestão foi parada no mesmo dia 11 de dezembro, antes de atravessar a fronteira da Tchetchênia, na região de Khassav-Yurt (Õàñà â - Þ ðò), onde moram principalmente os tchetchenos akkintsy. Multidões de moradores bloquearam as tropas, grupos de militares foram capturados e depois enviados para Grozny. Nesta direção as tropas russas não conseguiram invadir a Tchetchênia. As tropas que se moviam na Inguchétia também foram bloqueadas pela população civil e metralhadas perto da vila Barssuki (Áàðñóêè) (Inguchétia). Três tanques e quatro carros foram danificados. Não houve vítimas entre os militares. O exército revidou, causando mortes entre os civis. Helicópteros metralharam a vila Gazi-Yurt (Ãàçè-Þðò). E as tropas atravessaram o território de Inguchétia. Durante estes dias, cerca de 28 unidades móveis foram destruídas. Em 12 de dezembro esta coluna do exército federal foi metralhada da vila Assinóvskaia (Àñ è í î âñêàÿ) (Tchetchênia). Entre militares russos houve mortos e feridos; em resposta, a vila foi metralhada e houve mortes entre a população civil. A vila Assinóvskaia foi cercada. Perto da vila Novy Charoi (Í î â û é Ø à ð î é), uma multidão de moradores bloqueou a estrada (declarações dos funcionários do governo russo que os rebeldes armados mandaram a população sair na frente não correspondem à realidade). Assim, o avanço das tropas russas levaria inevitavelmente primeiro à necessidade de atirar contra pessoas desarmadas (ao que neste momento os soldados e os oficiais não estavam preparados), e depois ao confronto com os grupos de resistên42
cia organizados dentro de cada vilarejo – que possuíam armas automáticas, metralhadoras e granadas. Na região situada ao norte da vila Basmut (Áàñìóò) estavam baseadas as formações militares regulares da República Tchetchena Itchkeria (RTI), com armamento pesado. Como resultado, no oeste da Tchetchênia as forças federais se fixaram pela linha da fronteira da RTI na frente das vilas Samachki (Ñ à ìàøêè), Davydenko (Äàâûäåíêî ), Novy Charoi (Í î âàé Øàðîé), Atchkhoi Martan (À÷õî é Ì à ðòà í) e Bamut (Áàìóò). Aqui, temporariamente, se estabeleceu o regime de “nem guerra, nem paz”. Passados três dias, em 15 de dezembro, o chefe das Forças Armadas da Federação Russa general Gratchiov demitiu um grupo de oficiais de alto escalão que se negou a entrar com o exército na Tchetchênia e que exigiu “antes do começo de uma ampla operação militar que pode causar grandes perdas entre a população civil” a ordem por escrito emitida pelo chefe. O generalcoronel Mitiukhin foi nomeado o comandante da operação. No mesmo dia 15 de dezembro, em Grozny, começou a trabalhar o grupo de Sierguei Kovaliov, responsável pelos direitos humanos na Federação Russa. Faziam parte deste grupo os deputados da Câmara e um representante da ONG Memorial. Em 16 de dezembro o Conselho Superior da Federação Russa emitiu uma declaração aconselhando Ieltsin a parar imediatamente a operação militar e a entrada do exército, e começar as negociações. O chefe do governo da Rússia Tchernomyrdin declarou sua disponibilidade para encontrar Dudaev (no caso de desarmamento completo por parte deste). Ieltsin enviou para Dudaev um telegrama mandando entregar todas as armas, propondo o, cessar-fogo e encontrar seus representantes para assinar um documento oficial. Ieltsin também edita decreto que restabelece todos os órgãos russos do poder institucional no território tchetcheno. A partir de 18 de dezembro, a cidade de Grozny, capital da Tchetchênia, foi bombardeada. As bombas e os mísseis destruíam os bairros residenciais, onde não havia qualquer base militar, causando diversas mortes entre os civis. Apesar da afirmação de Ieltsin em 27 de dezembro proibindo os bombardeios da cidade, as forças aéreas continuaram lançando bombas e mísseis. Em dezembro as tropas federais passando pelo norte da vila Samachki, aproximaram-se de Grozny pelo norte e pelo oeste, deixando as regiões meridionais livres. Os corredores nestas regiões que ligam Grozny com as vilas vizinhas permitiram a fuga da população da capital durante bombardeios e batalhas. Em 19 de dezembro (data prevista pelo governo russo para o término da operação militar), o general Mitiukhin é afastado do comando, que foi oferecido ao general-coronel Vorobiov. Este negou-se a assumir o comando e posteriormente foi demitido do exército. O comando foi assumido pelo general Kvachnin. 43
Em 23 de dezembro a Câmara Estatal exigiu uma moratória imediata para as ações militares e o começo das negociações, e manifestou as condolescências aos parentes e aos amigos dos mortos. O Ministro das Relações Internacionais Kózyrev, numa ligação telefônica, pediu para responsável pelos direitos humanos da Federação Russa Sierguei Kovaliov perguntar para os dirigentes tchetchenos em que condições eles podiam entrar em negociações com Moscou. Kovaliov imediatamente entrou em contato com Dudaev que concordou num cessar-fogo imediato e em negociar todas as questões, incluindo o desarmamento. Não houve nenhuma reação de Moscou a essa declaração. Em 26 de dezembro o exército russo começou os bombardeios das vilas nas regiões rurais. Durante os três próximos dias foram bombardeadas mais de 40 vilas. No dia seguinte Ieltsin apareceu na televisão “justificando” o uso de forças armadas para solução do problema na Tchetchênia e falou do começo das negociações. Posteriormente, o então chefe da FSB (ex-KGB) Stepachin detalhou que não se tratava das negociações, mas de um ultimato. No dia 31 de dezembro as tropas russas começaram a invasão de Grozny. O plano do exército russo previa com quatro grupos realizar rápidas batalhas e se unir no centro da cidade. Por vários motivos, principalmente porque o lema da invasão foi atingir o resultado a qualquer custo, o exército teve muitas baixas... Mais de 25.000 civis morreram durante a tomada de Grozny, que durou várias semanas (até 6 de março 1995). No dia 17 de abril de 1995, um grupo de assistência da Organização para Segurança e Cooperação na Europa, comandado pelo diplomata húngaro István Diarmati, inicia seus trabalhos em Grozny. A continuidade das ações militares na Tchetchênia trouxe sérias conseqüências para o prestígio da Rússia na arena internacional. Um novo cessar-fogo foi acordado entre os dias 28 de abril e 12 de maio, após a assinatura de um decreto de Ieltsin sobre “Medidas suplementares para a normalização das condições na República Tchetchena”, visando garantir a reaproximação e participação de uma série de países nas comemorações do qüinquagésimo aniversário da vitória na Segunda Guerra Mundial. Apesar do período do cessar-fogo, forças federais continuavam as hostilidades e bombardeios nas pequenas vilas e, após 12 de maio, reiniciaram suas operações nas áreas urbanas e suburbanas. No início do mês de junho, o exército russo já havia tomado Grozny e as planícies na Tchetchênia, e ocupado importantes regiões nas montanhas, atravessando as trincheiras tchetchenas e dirigindo-se às fronteiras da Geórgia. A vitória parecia algo irreversível. Em 14 de junho, um grupo de combatentes sob o comando do líder da resistência armada tchetchena Chamil Bassaev captura 1.500 prisioneiros na cidade Budionnovsk (Áóä ¸ í î âñê), na região vizinha de Stavropol 44
(Ñòàâðîïîëü). Para iniciar as negociações, os combatentes exigiam um cessarfogo, enquanto mantinham os reféns no hospital municipal. No dia 17, aumentando a dramática situação dos habitantes locais, um destacamento de elite do Ministério do Interior e do Serviço de Segurança Federal conduz uma invasão mal-sucedida ao hospital, repleta de imprevistos ocorridos no conflito com os combatentes. Após a fracassada ação, negocia-se a liberação da maior parte dos reféns, sob a condição de imediata suspensão das operações militares na Tchetchênia e início de conversações de paz. Bassaev retorna à Tchetchênia utilizando reféns como “escudos humanos”. Em 19 de junho, em Grozny, iniciam-se as negociações entre representantes da Federação Russa e da República Tchetchena Itchkeria, com participação da Organização para Segurança e Cooperação na Europa. Os principais pontos de acordo são o desarmamento das tropas tchetchenas, a retirada do exército russo da região e a realização de eleições livres. Além disso, são estabelecidas trocas de prisioneiros de guerra, e permitido o retorno de combatentes tchetchenos às suas vilas. Porém, tais acordos, mediados por uma Comissão Especial de Observação (CEO), foram adiados/enfraquecidos devido à complexidade das negociações. Uma insignificante quantidade de armas foi recolhida dos combatentes tchetchenos, enquanto tropas russas retiraram-se para poucos quilômetros das vilas e das cidades. Em regiões isoladas, bombardeios aéreos e outras operações militares continuavam, assim como ataques às bases militares russas. Os trabalhos da Organização para Segurança e Cooperação na Europa esvaziam-se paulatinamente no mês de outubro, principalmente após o assassinato de um membro da CEO, o general russo Anatoli Romanov. A Federação Russa interrompe os diálogos com a administração tchetchena de Dudaev, reestruturando seus representantes na região e preparando a legitimação de eleições. Doku Zavgaev torna-se presidente da República Tchetchena, eleito em meio a um processo eleitoral fraudulento com diversas falsificações. As eleições não ocorrem em diversas cidades e regiões controladas pela administração da República Tchetchena Itchkeria. Na cidade de Gudermes, forças armadas do general Dudaev inviabilizam as eleições, ocasionando uma das mais sangrentas e destrutivas batalhas. Assim, em dezembro de 1995, os conflitos recomeçam. No início do ano de 1996, o coordenador da missão da Organização para Segurança e Cooperação na Europa, Tim Guldimann, reinicia os trabalhos diplomáticos na região. Aslan Maskhadov ordena que cessem todos os ataques contra a retaguarda das forças federais. Como resposta, o general russo Viacheslav Tikhomirov afirma “não reagir a qualquer declaração de bandidos”. Por outro lado, Dudaev afirma que não irá permitir um cessarfogo na Tchetchênia. 45
Em 9 de janeiro, um destacamento tchetcheno sob o comando de Salman Raduev ataca um aeroporto militar na cidade de Kisliar, no Daguestão, fazendo 1.500 reféns levados ao hospital municipal. Após as negociações, os reféns são libertados em maioria, e os combatentes retornam ao território tchetcheno com cerca de 100 reféns, utilizados como “escudos humanos”. Sem sucesso, as forças federais tentam bloquear a ação tchetchena em Pervomaiskoe (Ï å ð âî ì àéñêî å), bombardeando e destruindo completamente a vila. Durante os meses de fevereiro e março, o exército russo conduz repetidas operações de “limpeza” em diversas vilas, encontrando forte resistência das forças armadas da República Tchetchena Itchkeria. No dia 8 de março, um destacamento tchetcheno sob o comando de Ruslan Gelaev entra na cidade de Grozny, conseguindo o controle de uma significativa parte da cidade. Sofrendo várias perdas, o exército russo utiliza armas pesadas e helicópteros para a retomada completa da cidade, destruindo indiscriminadamente moradias residenciais. Após dois dias, o destacamento tchetcheno deixa Grozny, levando mais de 100 pessoas como reféns. Em abril, o ministro da justiça Valentin Kovalev sugere ao presidente da República Tchetchena Itchkeria, Dzhokar Dudaev, “comparecer voluntariamente a uma corte na Rússia, onde receberia julgamento com todas as garantias de proteção”. No entanto, na noite de 22 de abril, Dudaev é atingido por um míssel na vila de Gekhi-Chu (Ãåõè-×ó) e morre. Após um período de pesados conflitos, o exército russo anuncia a tomada de Bamut, a última vila sob controle de forças tchetchenas. No final de maio, em Moscou, Boris Ieltsin se reúne com uma delegação da República Tchetchena Itchkeria, encabeçada pelo sucessor de Dudaev, o vice-presidente Zelimkhan Iandarbiev. O acordo assinado prevê a “suspensão das batalhas, operações militares e medidas para regular o conflito armado na Tchetchênia”, além de troca de prisioneiros de guerra. Boris Ielstin congratula pessoalmente os soldados russos em Mozdok (Ì î ç ä î ê), na Ossétia do Norte, pela “vitória” na Guerra da Tchetchênia. Em uma aparente atmosfera pacífica são realizadas, em junho, as eleições presidenciais da Federação Russa. Apesar de inúmeros casos de violações, fraudes e falsificações, Boris Ieltsin é reeleito, indicando o general Aleksandar Lebed para o cargo de Secretário do Conselho de Segurança na Rússia. Lebed havia recebido 14,7% dos votos no primeiro turno das eleições presidenciais (ficando em terceiro lugar), defendendo uma plataforma de utilização de “meios enérgicos” para a resolução da crise na Tchetchênia. No mês posterior, a Rússia estabelece a permanência de todos os cercos e bloqueios militares em vilarejos onde não sejam observadas condições políticas normais. Além disso, anuncia um ultimato para os combatentes tchetchenos libertarem todos os prisioneiros. Dia 9 de julho as forças russas 46
bombardeiam a vila de Gekhi (Ãåõè), onde destacamentos tchetchenos estariam baseados. Em 10 de julho a vila de Makhkety (Ìàêõåòû) é cercada e bombardeada, causando grande destruição e numerosas mortes. Pronunciamentos nas mídias russas sugerem que as operações militares encontram-se fora do controle presidencial, porém Lebed sustenta que tais ações seriam precisos ataques aos destacamentos tchetchenos de Iandarbiev. Em 12 de julho, um bonde é explodido nas ruas de Moscou, matando 28 pessoas. As autoridades logo relacionam a ação com o conflito na Tchetchênia, e o prefeito da cidade, Yurii Luzhkov, ordena às forças policiais a inquirição de tchetchenos dispersos em Moscou pela “prestação de contas de tal ação”. As operações militares russas são reiniciadas em montanhas da região da Tchetchênia. Em 6 de agosto, forças armadas da República Tchetchena Itchkeria entram na cidade de Grozny. Nas primeiras horas do combate, as forças federais russas sofrem perdas significativas e surpreendem-se cercadas em suas bases, seus centros de comando e nos prédios administrativos no centro da cidade. Grozny encontrava-se praticamente sob o controle das unidades tchetchenas. A situação demandava uma ação decisiva, embora a possibilidade de uma catástrofe iminente não era reconhecida pelos comandantes militares russos, nem pelos burocratas de Moscou. No decorrer das batalhas, uma fracassada tentativa de reocupação da cidade aumenta o número de perdas no exército russo. Assim, as forças federais decidem bombardear Grozny com artilharia pesada, causando enorme tragédia entre a população civil que, nesse contexto, é forçada a abandonar a cidade. Em 11 de agosto, Lebed encontra Maskhadov na Tchetchênia. Os líderes concordam em resolver os problemas dentro de sete dias, visando um novo cessar-fogo e uma nova retirada das forças armadas russas. No entanto, dia 19, uma ordem direta de Ieltsin exige a retirada total das forças armadas da República Tchetchena Itchkeria dentro de 48 horas. Antes do prazo encerrado, reiniciam os bombardeios sobre Grozny. Mais uma vez, refugiados abandonam em massa a cidade, mesmo continuando sendo alvos dos ataques aéreos nas estradas. Nesse momento, a estimativa contava cerca de 500 soldados mortos, além de 2.000 mortos entre a população civil. Apesar do fato de que cerca de 220.000 refugiados tenham deixado a cidade, Grozny ainda possuia 50.000 habitantes. Lebed, chegando na Tchetchênia, declara que o problema do ultimato seria resolvido na manhã do dia 22 de agosto, “diretamente por considerações humanas e julgamentos serenos”. Naquele dia, Lebed e Maskhadov assinam um documento que enfrentava a separação dos dois lados oponentes, a retirada do exército e o controle conjunto de algumas regiões de Grozny. No dia 30 de agosto, em KhasavIurt, Lebed e Maskhadov assinam uma “Declaração conjunta” de princípios, na qual se empenhariam em continuar o processo de negociação, acordando 47
para o dia 31 de dezembro a data de assinatura de um acordo político entre Rússia e Tchetchênia. Em 31 de dezembro de 1996 está terminada a remoção de todas as tropas federais do território da Tchetchênia. Em janeiro de 1997 acontecem as eleições para a presidência da Tchetchênia. Entre 16 candidatos é eleito Aslan Maskhadov. Em 12 de maio, Moscou, Ieltsin e Maskhadov assinam acordo de paz e de princípios das relações entre a Federação Russa e a República Tchetchena Itchkeria. Crimes de guerra na vila Samáchki (7 e 8 de abril de 1995)43 No começo de abril de 1995 a vila Samáchki (Ñ à ì à ø ê è) foi invadida pelo exército russo. Os moradores, proibidos de abandonarem as casas, foram massacrados, seus lares incendiados, saqueados e destruídos. Os chefes da operação não foram responsabilizados, ninguém foi acusado e o governo russo se negou de assumir as mortes entre a população civil. Esta operação foi uma das primeiras ações de limpeza (“zatchístka”) promovidas pelo exército russo. Os representantes das ONG´s de direitos humanos conseguiram registrar os crimes dias após o massacre e levaram as acusações para a justiça da Federação Russa, mas nada foi provado, ninguém foi indenizado, ninguém foi julgado. A vila Samáchki está situada no oeste da parte planície da Tchetchênia, do lado da fronteira com a Inguchétia. A principal estrada da república que liga duas grandes cidades Grozny (capital) e Gudermes (Ãóäåðì åñ) com Nazran (Íàçðàíü), capital da Inguchétia passa a 4km da vila, alem da ferrovia que passa no meio da povoação. Antes da guerra em Samáchki moravam 14.600 pessoas; no período das operações militares dentro da vila havia 4.500/5.000 mil moradores, segundo os anciãos, e 5.000/6.000 mil segundo a administração. Havia três escolas. A maioria absoluta da população da vila é tchetchena, mas havia alguns moradores russos. Após a invasão do exército russo, em dezembro de 1994, em Samáchki foi estabelecido um regime de “nem paz, nem guerra”: situação comum em muitas povoações que foram cercadas pelas tropas russas, muitas vezes se encontrando no meio de fogo cruzado, mas preservando o cotidiano, na medida do possível, pois o exército não entrava na vila. __________ 43. Este texto é uma síntese do relatório sobre as violações de direitos humanos cometidas pelas tropas russas no início da primeira guerra. Texto na íntegra pode ser encontrado em: <<http://www.memo.ru/hr/hotpoints/CHECHEN/SAMASHKI/Sam-ru.htm>> (acessado em 10 de junho de 2006).
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A população foi acusada de esconder os guerrilheiros tchetchenos que se encontravam nos bosques próximos à povoação. Os anciãos entraram em negociações com os comandantes das tropas russas e garantiram a nãoparticipação da população no conflito armado. Mesmo assim o exército russo redigiu um ultimato aos anciãos exigindo a entrega de 264 fuzis, duas metralhadoras e um tanque (alegando que este foi visto na vila) e pedindo a passagem das tropas russas por meio da vila. No dia seguinte (7 de abril) o exército russo começou o bombardeio de um dos bairros da vila e a população começou a fugir. Os anciãos novamente se reuniram com chefes das tropas e insistiram na inexistência de armamentos dentro da vila, também pediram a permissão para os moradores se refugiarem. Foi dada a ordem de permitir a saída de moradores, mas, ao mesmo tempo, os bombardeios recomeçaram e a maior parte de população ficou com medo de sair. Mesmo assim cerca de 100 pessoas conseguiram fugir da vila antes do começo da operação, sendo que muitos homens jovens foram presos pelos militares que controlavam as saídas da vila. À noite do mesmo dia, a TV russa veiculou notícia de que os anciãos da vila Samáchki foram executados pelos guerrilheiros, acusados de facilitar a entrada das tropas russas na vila. Agência de notícias russa Interfax informou que os anciãos sobreviventes pediram ao exército russo ajuda para retirar os moradores da vila. Segundo as testemunhas e os próprios anciãos44, os carros que os levavam de volta a Samáchki após as negociações, foram metralhados pelo exército russo, ninguém foi ferido, nem morto. À tarde de 7 de abril, 350 soldados do exército russo começaram o ataque à vila que durou até a tarde do dia seguinte. Durante a operação morreram 16 soldados e 52 ficaram feridos. Durante esta operação morreram 103 moradores de vila Samáchki – homens, mulheres, muitos velhos. O mais jovem dos mortos tinha 15 anos, o mais velho 96. Estas pessoas morreram fuziladas dentro das próprias casas, que foram queimadas ou explodidas com granadas (200 casas foram destruídas). Alguns corpos foram queimados pelos soldados. As organizações humanitárias como Cruz Vermelha e Médicos sem Fronteiras foram proibidas de entrar na vila e prestar assistência médica aos feridos. O prédio da escola foi queimado. As ONG´s de direitos humanos e uma comissão parlamentar investigaram a operação, colheram depoimentos das vítimas, foram atrás dos presos, mas até hoje ninguém assumiu a responsabilidade por esse tipo de operação que se tornou comum durante o período das guerras. __________ 44. Os anciãos redigiram uma declaração desmentindo a informação da TV russa. Esta declaração foi apresentada numa conferência de imprensa organizada pela ONG Memorial. O governo russo e a administração da TV não se pronunciaram a respeito deste episódio.
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V. Conflito armado (1999 -????) – 2a fase da guerra Em 1999, o exército da Federação Russa novamente invade a tchetchênia e permanece no território até hoje. Após um ano de operações militares na região a guerra foi proclamada como vencida pela Rússia e atualmente “estão sendo apagados alguns focos de resistência” e promovidas as operações de “limpeza” (çà÷èñòêè). Na realidade, o conflito, muito longe de ser resolvido, espalha-se rapidamente pelo território do Cáucaso Setentrional (Inguchétia, Daguestão, Ossétia do Norte e ultimamente, Kabardino-Balkária). O êxodo dos refugiados durante esse período foi ainda maior, mas com sérios agravantes, como a proibição de cruzar as fronteiras da república (no começo da guerra somente um corredor foi aberto para a fuga da população e isso graças à atitude do presidente da vizinha Inguchétia que, na época, se negou a proibir a entrada de refugiados no seu território; esse corredor foi constantemente bombardeado), o encerramento dos acampamentos e a cogitação da volta, forçada e sob ameaças, para as casas destruídas. Em seguida apresentamos um breve histórico dos acontecimentos na região de Stavropol e no Daguestão que, ao lado das explosões de prédios residenciais em três cidades russas, serviram de pretexto para o recomeço da guerra na Tchetchênia. Situação na região de Stavropol em 1999 (antes do começo da segunda guerra)45 A população da região de Stavropol (Ñòàâðîïîëü) vinha sofrendo o impacto das ações de grupos criminosos baseados no território da Tchetchênia, tais como: seqüestro de pessoas visando o pagamento pela libertação; assaltos armados à polícia e ao exército nas regiões fronteiriças; roubo de gado, de transporte e de máquinas técnicas. Vale notar que esses grupos muitas vezes incluíam não somente tchetchenos, mas também russos e outros povos do Cáucaso setentrional. O território tchetcheno foi usado como região onde era possível se esconder, e esconder com facilidade as pessoas e os bens roubados. Desde 1995 até 1999 da região de Stavropol foram seqüestradas e estão desaparecidas mais de 200 pessoas. A situação mais alarmante era a da região de Kursk (Êóðñê), que se encontra justamente na fronteira com a República da Tchetchênia. Muitos __________ 45. Este texto é baseado na pesquisa realizada por um grupo da ONG Memorial em 21-29 de março de 1999. Fonte: <<www.memo.ru/hr/news/stawrop/stawr.htm>> (acessado em 10 de junho de 2006).
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dos seqüestrados eram parentes de donos de grandes empresas/comércios, que precisaram vender grande parte de suas propriedades para pagar aos seqüestradores. Esta situação era similar em outras regiões de Stavropol. Com freqüência, os seqüestros foram realizados pelos grupos armados sob encomenda. Perto do povoado Galiugáievskaia (Ãàëþãàåâñêàÿ), situado nas proximidades da fronteira, mais de 5.000ha estavam desocupados, pois os moradores tinham medo de trabalhar nesta região. Nela, grupos armados roubaram tratores e um ônibus. Certa vez um trator foi roubado junto com o operador, que foi libertado só após atravessar a fronteira. A parte leste da região de Kursk, que servia de pasto para os rebanhos de ovelhas, encontrava-se abandonada. Durante os últimos anos, grandes rebanhos foram levados para o território tchetcheno. Porém, segundo os entrevistados, muitas vezes os próprios moradores levavam os rebanhos para outro lado da fronteira, usando os casos de roubo pelos grupos armados como desculpa. A situação na região era tensa e abria espaço para as ações que violavam os direitos humanos, como formação de grupos armados ilegais pelos moradores da região, privações de livre movimentação e moradia de pessoas, aquisição e guarda ilegal de armamentos, assim como tomada de decisões pelos poderes locais que prejudicavam a ordem constitucional. A principal exigência dos entrevistados era a de fechamento da fronteira com a Tchetchênia e controle daqueles que a atravessavam. Assim como a atribuição de status de uma fronteira interestatal, ao invés de uma fronteira entre as regiões que fazem parte da mesma federação. A maioria concordava em estabelecimento de estado de sítio na região, mesmo demonstrando preocupações quanto à inevitável presença de tropas federais russas neste caso. Havia denúncias de abusos cometidos pelo exército federal russo deslocado na região para controlar o território. Uma jovem do povoado Galiugaievskaia foi violentamente estuprada, e morreu no dia 12 de outubro de 1998. Como todas as pistas indicavam para o exército, o processo foi levado adiante pela procuradoria militar. Ninguém foi acusado. Outro problema na região era a posição dos cossacos perante a situação. Muitos funcionários das organizações cossacas aumentaram e provocaram a xenofobia, o nacionalismo e a histeria em relação à moradia na região dos daguestãos, tchetchenos, inguches, islâmicos em geral e quaisquer pessoas não-eslavas e não-cristãs. Estas organizações almejavam a formação de grupos armados que “restabeleceriam a ordem” na região. A xenofobia e o nacionalismo dos cossacos, infelizmente, tiveram apoio de alguns funcionários do governo de Stavropol, que estavam prontos a estabelecer um regime de controle sobre a movimentação, a moradia e a 51
permanência de pessoas segundo os critérios étnicos, mesmo reconhecendo a ilegalidade de tais procedimentos. Em condições do aumento de tensão eles consideravam tais restrições inevitáveis. Apesar destas tensões, na região fronteiriça continuava o comércio de petróleo. Para a agricultura local o petróleo barato que vinha do território tchetcheno sob sistema de crédito representava, muitas vezes, a única alternativa para a continuação dos trabalhos. Na prática este petróleo de baixa qualidade era roubado e provinha das fábricas clandestinas. Daguestão – 199946 Região Novolákski: Em 5 de setembro de 1999, de manhã, os povoados da região Novolákski (Íîâîëàêñêèé) no Daguestão foram tomados por grupos armados vindos da Tchetchênia, sob o comando de Chamil Bassaev. Os militares e os policiais romperam o cerco, muitos deles foram capturados, e pelo menos seis soldados foram violentamente assassinados no povoado de Tukhtchar (Òóõ÷àð). Os combatentes perseguiram os funcionários da administração e da justiça, exerceram “requisições” das propriedades estatais e privadas. No território ocupado passaram a saquear as casas abandonadas. A população civil, inclusive tchetchenos akkintsy, moradores desta região com o apoio de quem contava Basaev, não apoiaram os combatentes e foram embora da região. Akkintsy dos povoados Akhar (Àõàð) e Chuchia (Ø ó ø è à), vizinhos da Tchetchênia, resistiram aos combatentes. Mesmo assim, as forças federais os acusaram de traidores. Em uma semana as tropas russas tiraram os combatentes do Daguestão. Os federais, após fortes bombardeios e metralhamentos, entraram nas vilas. Os grupos armados autônomos daguestãos e a polícia durante alguns dias não permitiam a volta dos tchetchenos akkintsy para suas casas. Durante estes dias os grupos autônomos roubaram e destruíram praticamente todas as casas dos akkintsy na região Novolákski; algumas das casas foram queimadas. Durante estas destruições os grupos paramilitares conseguiram superar em atrocidades os combatentes do Bassaev. Finalmente, os moradores conseguiram voltar para as casas, mas as relações entre os povos continuaram tensas. Zona Kadárskaia (Êàäàðñêàÿ): Na década de 1990, grupos de fundamentalistas islâmicos estabeleceram controle sobre os povoados Karamakhi (Êà ð à ìàõè) e Tchabanmakhi (×àáàíìàõè). __________ 46. Fonte: <<www.memo.ru/hr/news/rel0928.htm>> (acessado em 10 de junho de 2006).
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Apesar dos protestos da população nos povoados, fortaleceu-se um regime teocrático, que não obedecia ao poder republicano. As negociações (das quais não participaram os moradores) entre os representantes do governo do Daguestão, do poder federal e os “wahhabitas” (fundamentalistas islâmicos) fortaleceram as posições desses últimos na zona Kadárskaia. Em 1999, eles tinham o controle total sobre a população. Os representantes do poder laico foram expulsos. Foi estabelecido na região o julgamento charia. Quando as tropas federais começaram a operação militar nestes povoados, os moradores não foram avisados nem pelo poder federal, nem pelos wahhabitas. Após as primeiras bombas caírem, quase toda a população fugiu de suas casas. Os bens que os moradores poderiam salvar, caso fossem avisados, foram abandonados em casas destruídas durante os bombardeios, saqueadas pelas tropas federais e, muitas vezes, queimadas. Os moradores, que formaram os grupos autônomos de resistência, e que entraram no povoado Karamakhi após o exército, responsabilizam por esta ação as tropas especiais do Ministério do Interior. Foi registrado o caso de tortura e de homicídio violento de um combatente wahhabita, e também foram registrados casos de violação de cadáveres. Mesmo assim, em comparação com as operações análogas durante a guerra na Tchetchênia, a operação em Zona Kadárskaia foi mais positiva em aspectos humanos. A saída dos moradores não foi interditada, nem pelo exército nem pelos grupos armados, nem pelos wahhabitas. Durante o primeiro dia de batalha, os povoados não foram bombardeados com armamentos pesados. Isso permitiu minimizar as vítimas entre a população civil. VI. Perdas da população civil durante as guerras na Tchetchênia 10/12/2004 Os dados sobre as mortes e a migração de civis dentro da zona do conflito armado na Tchetchênia durante os últimos 10 anos são contraditórios e, em sua maioria, pouco confiáveis. O Estado russo não contabilizava os civis que morreram na Tchetchênia. Após a primeira guerra (1994-1996) o Comitê Estatal de Estatística procurou diversas ONG’s para a obtenção desses dados. A ONG Memorial calcula que, entre 1994 e 1996, foram mortos até 50.000 civis. No inverno de 19941995, durante a tomada de Grozny (capital da Tchetchênia), morreram de 25.000 a 29.000 pessoas. Não existem dados oficiais de perdas de população civil durante a segunda guerra na Tchetchênia (iniciada em 1999). A procuradoria diz que são 53
menos de 1.000 pessoas, enquanto as listas de nomes mostram números bem superiores. Avaliações das organizações de defesa de direitos humanos permitem afirmar que durante o período de operações militares intensas na Tchetchênia (outono de 1999 – primavera de 2000) morreram de 6.500 a 10.500 civis47. Durante o período “pacífico” – marcado por incursões guerrilheiras tchetchenas e, ao mesmo tempo, por “limpezas” e outras operações ofensivas do exército federal russo – morreram de 5.300 a 10.700 pessoas até o ano de 2004 48. Assim, a avaliação do número de mortos durante segunda guerra é de 10.000 a 20.000 civis, além de cerca de 5.000 pessoas desaparecidas. Os dados oficiais da Federação Russa sobre a população atual da República Tchetchênia são superestimados em 1.088.000 pessoas (outubro de 2002). Por outro lado, o Comitê Estatal de Estatística indica em seu anuário do ano de 2003 uma população tchetchena de 813.000 pessoas. VII. Perdas do exército da Federação Russa durante as guerras na Tchetchênia 10/12/2004 Durante a primeira guerra na Tchetchênia, as organizações de defesa de direitos humanos conseguiram estabelecer contato com ambas as partes envolvidas no conflito, participando diretamente na busca dos desaparecidos e na libertação dos presos. Em janeiro de 1997, o número de mortos do exército russo contabilizava 4.379 pessoas. Cerca de 600 pessoas contavam como desaparecidas, somadas ao mesmo número de desertores49. Tais dados correspondiam ao número de corpos não reconhecidos depositados na cidade de Rostov no Laboratório de Medicina Especializada nº 124, e ao número dos restos corporais não exumados encontrados no território da Tchetchênia. Sendo assim, o número total dos mortos por parte do exército russo durante a primeira guerra foi de até 6.000 pessoas. Dados oficiais indicam até 20.000 feridos. A partir desta guerra, o Ministério do Interior e o Exército russo passaram a publicar a lista dos nomes dos mortos. A comparação das listas oficiais com as listas dos Comitês das Mães dos Soldados, região por região, demonstrou que os dados das organizações não-governamentais superam os dados oficiais em 13%. Ou seja, as discrepâncias das listas oficiais não objetivavam apenas esconder os dados __________ 47. Dados da ONG Human Rights Watch. 48. Dados da ONG Memorial. 49. Informações mais detalhadas no livro Soldado Desconhecido da Guerra do Cáucaso, Moscou, 1997.
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sobre as mortes, mas ocultar a inexistência de trabalhos sistemáticos a respeito de cada caso particular (impedindo assim compensações para as famílias, indenizações etc). Muitos oficiais dedicados à devida identificação de mortos e desaparecidos foram expulsos do exército, como Viatcheslav Izmáilov e Vladímir Scherbakov. Durante a segunda guerra na Tchetchênia, as relações entre as ONGs e as forças militares envolvidas no conflito foram completamente diferentes. A procura dos presos e dos desaparecidos foi impossibilitada, e a contagem independente dos mortos não foi realizada. O Exército e o Ministério do Interior continuam publicando suas listas de mortos, e o Ministério de Defesa continua ocultando suas listas. Podemos supor que o número total de perdas do Exército russo na Tchetchênia durante a segunda guerra deve corresponder aproximadamente à primeira guerra. Impossível contestar ou confirmar os dados oficiais até o Estado não revelar os nomes de todas as pessoas mortas em sua causa. VIII. Depoimento de um oficial do exército russo “O termo esquadrão da morte apareceu no Brasil na década de 60. Assim se autonomeavam grupos de policiais que sob proteção de seus superiores iniciaram extrema repressão contra a criminalidade, executando suspeitos sem julgamento e sem investigação. Geralmente, as vítimas não eram grandes criminosos, mas assaltantes, ladrões de rua, mendigos. Posteriormente, os esquadrões da morte foram utilizados por governos na América Latina para reprimir oposições e movimentos de guerrilha”. (p.44)
ÇÄÅÑÜ ÆÈÂÓÒ ËÞÄÈ ×å÷íÿ: õðîíèêà íàñèëèÿ (“AQUI MORAM PESSOAS – Tchetchênia: crônica da violência”) Nos últimos anos, o termo “esquadrão da morte” tem sido utilizado na Tchetchênia para designar grupos de militares federais russos que seqüestram, interrogam, torturam e executam moradores suspeitos de “ligações criminosas”. Não há julgamento ou qualquer direito de defesa. Tal procedimento confirma-se através dos trabalhos de reconhecimento de corpos realizado na Tchetchênia por ONG´s, além de depoimentos dos próprios militares envolvidos nas operações de limpeza, assim como descrito no jornal Izvestia50: __________ 50. Retchkalov V. Homem de uma fenda da montanha diferente: Conversa dentro de um blindado com chefe do serviço secreto no caminho a Duba-Iurt, Tchetchênia// Notícias. 2003. 28 de março. (Ðå÷êàëîâ Â. ×åëîâåê èç äðóãîãî óùåëüÿ: Áåñåäà â áðîíåòðàíñïîðòåðå ñ í à÷àë ü í è êî ì ðàçâåä ê è ï î ä î ð î ãå íà Äóá à - Þ ðò\\ Èçâåñòèÿ. 2003. 28 ìàðòà).
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Oficial: Eles reclamam das limpezas, queixam-se de desaparecimentos dos parentes. Só que isso não acontece por acaso. Pessoas normais não somem na Tchetchênia. Somem monstros que devem ser exterminados, extintos. Jornalista: São vocês que seqüestram pessoas à noite e depois as exterminam? Oficial: Cerca de 30% delas são seqüestradas e mortas pelos próprios tchetchenos dentro do esquema de criminalidade, durante acertos de contas. Vinte por cento estão por conta dos extremistas, que exterminam colaboradores com o governo federal. E cerca de 50% somos nós que executamos. Com nossa justiça corrupta simplesmente não há outra saída. Se, seguindo as leis, encaminhamos os terroristas capturados para a prisão de inquérito “Chernokozovo”, rapidamente os parentes os compram de volta. Passamos a usar estes métodos quando os principais grupos dos extremistas foram exterminados. As tropas ficaram paradas. Vieram procuradores, começaram a fazer bobagens, como instituir a paz. Tudo deve ser confirmado com provas etc. Supomos que temos uma informação quente que determinada pessoa é um bandido, com os braços em sangue até os cotovelos. Vamos até ela com o procurador, mas na casa do sujeito não há nenhuma bala. Como vamos prendê-lo? Por isso exterminar os bandidos na calada da noite é o meio mais eficaz da guerra. Eles temem isso. E em nenhum lugar se sentem em casa. Nem nas montanhas, nem dentro das casas. Hoje não precisamos das grandes operações. Precisamos das operações noturnas, precisas, cirúrgicas. Os fora da lei podem ser combatidos somente fora da lei. Jornalista: Você gosta deste procedimento? Oficial: Não sempre. Com este negócio às vezes pessoas inocentes desaparecem. Pois os tchetchenos agora estão dividindo o poder e, acontece, denunciam uns aos outros. E quando nós ficamos sabendo da verdade já é tarde para consertar alguma coisa. A pessoa não existe mais. IX. As condições sociais na Tchetchênia na atualidade: Tchetchênia e gueto A infra-estrutura urbana da República Tchetchênia foi destruída com a guerra. O sistema de canalização da capital, Grozny, praticamente não funciona. A população das cidades procura comprar água trazida de outros lugares. Os moradores dos prédios carregam a água pelas escadas, pois os elevadores, na sua maioria, estão danificados. A calefação funciona em alguns edifícios, com diversas interrupções. A eletrificação é reconstruída lentamente: os moradores improvisam ligações clandestinas, criando situações de perigo para a vida e danificando aparelhos domésticos com descargas elétricas desreguladas. 56
As condições sanitárias estão em colapso. Apenas algumas avenidas centrais na cidade recebem limpeza adequada, enquanto nos demais locais acumula-se toneladas de lixo. No mercado central, ao lado das montanhas de entulho e outros detritos, comercializa-se carnes, verduras e frutas. O desemprego é um problema gravíssimo. O trabalho informal é realizado majoritariamente pela população: os trabalhadores nunca podem recorrer a alguma instância da justiça, pois não há contratos firmados. Sem documentos, os comerciantes são coagidos a pagar propina para a administração dos mercados. Além disso, são assaltados por grupos armados e uniformizados. Os mercados surgem espontaneamente: as mulheres ficam com suas barracas nos lugares mais cômodos para os fregueses. A administração da cidade, ao invés de combater a sujeira, prefere combater as vendedoras. No final de dezembro de 2003, o Ministério de Defesa e Ministério do Interior da Rússia fizeram a operação de “limpeza” no mercado central, destruindo e queimando as tendas e as barracas no território adjacente ao mercado central. Milhares de pessoas perderam emprego, os preços de alimentos subiram, especialmente os do pão. Os homens que possuem automóveis trabalham como taxistas clandestinos. O negócio mais lucrativo é extração e refinação de condensador de petróleo, atividade perigosa e extremamente prejudicial à saúde, assim como a coleta de metais e outros materiais nas fábricas abandonadas. Os coletores freqüentemente se explodem com minas, e são presa fácil para os bandidos armados. O sistema de saúde é caótico. Além do tratamento dos feridos e enfermos, as crianças precisam de sério acompanhamento para reabilitação psicológica, pois muitas vezes permanecem longos períodos escondidas nos porões, sem alimentação adequada. A falta de vagas para as crianças nas escolas é permanente. Não há condições adequadas para o ensino, nem instalações para os estudos (mesas e cadeiras), nem sequer materiais escolares: os pais são obrigados a providenciá-los no mercado, por conta própria. As crianças cegas não têm possibilidade de estudar, e somente 10% de crianças surdas-mudas estudam em escolas especializadas. As estradas e ruas são extremamente perigosas ao tráfego, sem qualquer obra de reparação. Os bloqueios móveis dos militares russos espalhamse e surgem em qualquer lugar e a qualquer hora do dia ou da noite. Na tentativa de furar esses bloqueios, muitos tchetchenos são capturados, interrogados, torturados e mortos. Esse é o caso de Magoriev Magomed, cuja perícia do corpo realizada pela ONG Memorial indicou marcas de tortura e sinais de execução sumária. Enterrado na Vila Atagui, seus parentes souberam disso só após duas semanas. Magomed e outro passageiro trafegavam pela rodovia na cidade de Gudermes, quando foram parados em um posto de bloqueio móvel dos federais russos. 57
Corpo de Magoriev Magomed após perícia realizada pela ONG Memorial, onde se constata marcas de tortura e execução sumária.
A população tchetchena está enclausurada em seu próprio território. De acordo com o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, “guetos e prisões são dois tipos de estratégia de “prender os indesejáveis ao chão”, de confinamento e imobilização. (...) Pode-se dizer que as prisões são guetos com muros, e os guetos são prisões sem muros. Diferem entre si principalmente no método pelo qual seus internos são mantidos no lugar e impedidos de fugir – mas eles são imobilizados, têm as rotas de fuga bloqueadas e mantidos firmemente no lugar nos dois casos”51. Dessa maneira, o resultado das recentes ações das tropas militares russas durante a guerra na Tchetchênia é a destruição da possibilidade de autogoverno comunitário naquela região, e o controle territorial da população na formação de um gueto.
__________ 51. BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p.109-10.
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Refugiados Tchetchenos I. Introdução A situação de vida insustentável em grandes cidades e povoados da Tchetchênia leva milhares de pessoas a fugir para as áreas rurais ou para os campos de refugiados nas repúblicas vizinhas. Estas alternativas não amenizam os problemas, pois as vilas rurais são constantemente alvo das operações de limpeza (bombardeios generalizados e prisões em massa) pelas tropas russas, enquanto a precariedade e a instabilidade da vida nos campos de refugiados não possibilita qualquer esperança para os tchetchenos. Alguns arriscam um novo destino nos grandes centros urbanos da Rússia – como Moscou ou São Petersburgo – encontrando xenofobia, preconceito e repressão da polícia: são eternos suspeitos de terrorismo. De acordo com os dados fornecidos por “Memorial” Human Rights Center e “Migration Rights” Network, em 2003, foram registrados 67.015 migrantes forçados tchetchenos na Rússia. As regiões da Inguchétia e de Stravopol constituem as áreas de maior concentração dos refugiados, devido à proximidade da Tchetchênia e à infra-estrutura encontrada nas estações temporárias de residência. O número de migrantes forçados tchetchenos diminuiu substancialmente em relação ao ano anterior. Segundo as organizações citadas, foram registrados 87.258 migrantes forçados no ano de 2002. Todavia, tais números representam a concessão oficial do status de migrante forçado pelo Estado russo. II. Migração forçada na região da Inguchétia Desde o verão de 2002, a ameaça de remoção dos refugiados tchetchenos de acampamentos na Inguchétia tornou-se uma inevitável realidade. Diversos métodos de forte pressão para que os migrantes forçados retornassem à Tchetchênia eram utilizados: ameaças, suspensão de ajuda humanitária, interrupções no fornecimento de gás e eletricidade, e até destruição dos acampamentos, como o acampamento “Iman”, na vila de Aki-Yurt (ÀêèÞ ðò). Pessoas foram levadas para a Tchetchênia em condições insustentáveis. 59
Número de Migrantes Forçados (MF) da Tchetchênia
Unidade Federativa Russa
Inguchétia 16.950 _________________________________________________________ Região de Stavropol 14.304 _________________________________________________________ Daguestão 6.162 _________________________________________________________ Região de Krasnodar 4.771 _________________________________________________________ Região de Rostov 3.692 _________________________________________________________ Ossétia do Norte – Alania 1.637 _________________________________________________________ Região de Voronej 1.520 _________________________________________________________ Região de Volgogrado 1.184 _________________________________________________________ Região de Astrakhan 1.184 _________________________________________________________ Karachaevo-Tcherkessia 1.084 _______________________________________________________ Moscou 1.006 _________________________________________________________ Região de Nizhegorod 891 _________________________________________________________ Região de Belgorod 625 _________________________________________________________ Região de Moscou 518 _________________________________________________________ São Petersburgo 468 _________________________________________________________ Região de São Petersburgo 383 _________________________________________________________ Outras regiões 10.636 _________________________________________________________ Total
67.015
Os perigos conseqüentes da falta de água, moradia, infra-estrutura e segurança ainda persistiam, enquanto foram consideradas insignificantes pelas autoridades russas. Somente após a intervenção da Comissão de Direitos Humanos da União Européia foi suspenso o retorno forçado de refugiados de acampamentos para a Tchetchênia. Em março de 2003, o presidente da República da Inguchétia Murat Zyazikov assegurou que não seriam permitidos retornos forçados de refugiados para a Tchetchênia. No entanto, tal política foi substituída por outras formas de persuasão, como supostas compensações por perdas e danos de moradias àqueles que voltassem para a Tchetchênia. Outro agravante para o retorno de refugiados refere-se aos novos locais de moradia predeterminados pelas autoridades. Muitas vezes, os prédios escolhidos já abrigavam novos moradores, gerando portanto o aumento do número de cidadãos desalojados na Tchetchênia – foi o caso da tentativa de remoção dos refugiados do acampamento “Bella” para a rua Chailkovsky, em Grozny. No verão de 2004, todos os acampamentos provisórios para refugiados na Inguchétia foram removidos. A maior parte dos refugiados foi compelida a retornar à Tchetchênia. Aqueles que conseguiram permanecer nos centros 60
de residência provisória (cerca de 10.000 pessoas) na Inguchétia se encontram, atualmente, vivendo sob péssimas condições habitacionais. Diversas razões sustentam a recusa dos refugiados em retornar à Tchetchênia, porém as principais alegações recaem sobre a absoluta falta de garantias de segurança e a destruição generalizada da infra-estrutura das vilas e cidades. III. Discriminação de tchetchenos em Moscou A captura de reféns no teatro de Moscou durante o espetáculo NordOst, em 2002, foi o início de uma nova campanha de perseguição de tchetchenos e outros “nativos caucasianos”, repetindo o mesmo cenário político conseqüente das explosões de prédios residenciais no outono de 1999 e da passagem subterrânea da Praça Pushkin no verão de 2000. As investigações dos crimes foram substituídas pela perseguição aleatória de cidadãos. O princípio de vingança e responsabilidade coletiva começou a ser implementada, mesmo que as perseguições recaíssem, até mesmo, sobre pessoas sem qualquer suspeita de terrorismo. A polícia passou a investigar todos os apartamentos aonde famílias tchetchenas residiam permanente ou temporariamente. Nenhum documento autorizando o direito legal para tais ações foi apresentado durante as inspeções. Requisitavam dos moradores, mesmo daqueles com registro residencial permanente, explicações por escrito sobre os propósitos da estada na cidade, e interrogavam sobre suas atividades no momento concomitante ao curso da ação de tomada do teatro. As inspeções eram acompanhadas por rudeza, insultos e ameaças de expulsão de Moscou. Muitos deles, primeiramente os mais jovens, eram levados de suas casas ou ruas para departamentos policiais, fotografados, retiradas impressões digitais e, muitas vezes, estatura e peso medidos. Caso houvesse questionamentos sobre a legitimidade da ação repressiva, como solicitações de documentos ou ordens judiciais, incriminações por porte de drogas e outras acusações poderiam ser falsificadas pela polícia. Crianças cujos pais não tinham adquirido registro residencial em Moscou eram expulsas da escola, reativando assim o item 5 das regras de registro na região de Moscou, abolido anteriormente pela justiça. Oficialmente, os inspetores estatais aconselhavam os pais a procurar uma nova escola em que o diretor se responsabilizasse pessoalmente pela matrícula das crianças. Ao mesmo tempo, nenhum registro de permanência era expedido nos Departamentos do Interior para cidadãos vindos da Tchetchênia. O registro de residência podia ser expedido para, no máximo, 10 dias de permanência. Freqüentemente, eram solicitadas fotografias adicionais e impressões digitais. 61
Mesmo sem nenhum documento oficial apontando tal procedimento, tornava-se óbvia uma orientação geral para interferências no registro de residentes da Tchetchênia em Moscou. Tal orientação desenvolveu-se paulatinamente, iniciada por detenções e investigações realizadas aleatoriamente e que, posteriormente, acabou assumindo formas mais violentas: proibição de ligações telefônicas para pessoas detidas, falsificações de boletins de ocorrência por porte ilegal de drogas e armas, acusações sobre ligações com terroristas. Os locais das prisões não encontravam-se disponíveis para parentes ou representantes de organizações não-governamentais, impossibilitando ações de defesa anteriores à consubstancialização das acusações. Esta campanha de perseguição foi reconhecida pela Procuradoria de Moscou no ano de 2000, em um encontro com representantes de organizações de defesa de direitos humanos. No entanto, tal campanha repetiu-se, desestabilizando a situação social em Moscou na medida em que generaliza o medo e cria um ambiente favorável à corrupção, ao abuso de autoridade, à xenofobia e ao racismo. IV. Crescimento da xenofobia na Rússia. Discriminação de minorias étnicas Nos últimos anos, as tendências nacionalistas têm crescido demasiadamente na Rússia. A xenofobia é dirigida essencialmente aos caucasianos, asiáticos, africanos e representantes de minorias étnicas. Os ataques de grupos de jovens extremistas (skinheads e outros grupos neonazistas) a pessoas com aparência não-eslava tornaram-se mais freqüentes. Muitas vezes esses ataques e espancamentos resultam em morte. O objetivo deste breve relato é analisar o que provoca a tensão na área das relações entre as nações e quais são os fatores que determinam a grave situação de altos níveis da intolerância étnica. Imediatamente após a explosão no metrô moscovita, em 6 de fevereiro de 2004, Putin acusou Aslan Maskhadov (então presidente da Tchetchênia) como sendo responsável por este ato: “O próprio ato de chamar às negociações com Maskhadov após realização dos crimes comprova a relação de Maskhadov com bandidos e terroristas. Nós não necessitamos destas comprovações. Sabemos certamente que Maskhadov e seus bandidos estão conectados a este terror”, proclamou o chefe de Estado para a NTV (um dos maiores canais da TV russa). Estas palavras foram pronunciadas não somente antecipando a decisão da corte judicial, mas antes de se saber os primeiros resultados das investigações, logo após a explosão. A partir deste pronunciamento do presidente, os órgãos da justiça promoveram ações que pouco estavam relacionadas com a investigação dos supostos atos terroristas. Nas últimas semanas de fevereiro de 2004 foi efetuada uma série de enquadramentos e aprisionamentos dos muçulmanos nas 62
mesquitas de Moscou. A operação foi nomeada de “turbilhão-antiterror”; os presos foram interrogados sobre o que eles fazem em Moscou. Segundo os órgãos do poder, foram detidos os “ideólogos do terrorismo”, que não participaram diretamente dos atos, mas seriam culpados em promover ideologia similar (pelas palavras do Chefe do Departamento de Segurança Pública do Ministério do Interior da Rússia). A idéia de controle sobre a ideologia foi proclamada em 12 de abril de 2004 pelo Vice-Procurador da Federação Russa Koliesnikov: “Temos que incriminar os pregadores do wahhabismo nas casas de rezas”. A posição do poder judiciário é similar. Assim, em abril de 2004, uma das cortes de Moscou contemplou o pedido do procurador de Moscou A. Zuiev de considerar como literatura extremista a obra do fundador do wahhabismo Mukammed ibn Suleiman at-Tamimi Livro da Unideidade. Agora este livro é proibido para distribuição no território da Federação Russa, o que significa que os seguidores de uma das correntes do islã tornam-se ilegais, independentemente de cometer ou não algum crime. Nos últimos tempos, as decisões das cortes abrem espaço para a expansão da xenofobia e das tendências nacionalistas, fortalecendo aqueles que cometem arbitrariedades na Tchetchênia. Infelizmente, tais decisões encontram apoio na maioria da população da Federação Russa. Encontramos um exemplo em um julgamento na cidade de Rostov-na-Donu (Ðîñòîâíà-Äîíó). O júri popular absolveu o grupo de reconhecimento militar sob comando do capitão Ulman. Este grupo de três oficiais e um sargento-mor, em janeiro de 2002, exterminou seis moradores da região de Chatoi (Øàòîé), na Tchetchênia. Porém, foram cometidas irregularidades durante a escolha dos membros do júri, o que possibilitou aos advogados de acusação recorrerem da decisão. O poder judiciário da região central da Rússia revela-se indulgente aos adeptos da ideologia do fascismo. Em fevereiro de 2004, a corte de Moscou condenou somente um dos participantes de um pogrom52 na feira em Iásenevo (Moscou), e decretou apenas dois anos de prisão condicional para outros dois envolvidos. O crime aconteceu quando os grupos fascistas atacaram os feirantes, na maioria caucasianos, para “comemorar” o aniversário de Hitler em 21 de abril de 2001: cerca de 150 jovens, gritando slogans nacionalistas, atacaram os vendedores, destruindo 30 barracas e ferindo 10 pessoas. Não há prazo previsto para o término do processo contra os assassinos de Massa Maioni, cidadão de Angola, refugiado na Rússia. Em 23 de agosto de 2001, em Moscou, às 17 horas, perto do centro de recepção de refugia__________ 52. Assim foram chamados os ataques que Centena Negra, grupo ultra-nacionalista da Rússia, fazia destruindo as vilas dos judeus, matando pessoas e incendiando as casas; esta palavra virou termo para a descrição dos ataques racistas e nacionalistas sobre os moradores.
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dos, um grupo de jovens de 15 a 17 anos, armados com garrafas quebradas e paus, atacou seis africanos. Pol Massa Maioni foi gravemente ferido; inconsciente, ele foi levado para hospital, onde morreu em 5 de setembro sem sair do coma. Ele deixou a mulher, cidadã da Rússia, e dois filhos pequenos. As ações dos assassinos de Massa Maioni foram classificadas como espancamentos que causaram a morte. Porém, os advogados de defesa dos assassinos, recorrendo da sentença, solicitaram uma nova investigação que, inesperadamente, “descobriu” que a morte de Pol fora causada por queda sobre o asfalto. Os autores da nova investigação negaram os resultados da primeira: procedimento ilegal porque só a corte tem este poder de decisão. Em conseqüência, a acusação foi substituída para vandalismo, nova versão apresentada no julgamento. Durante as audiências foi indicada uma terceira investigação que confirmou os resultados da primeira, mas a acusação permaneceu a mesma da segunda investigação, e os assassinos estão livres. A prefeitura de Moscou demonstra sua parcialidade em relação à posição de diferentes grupos da sociedade perante a guerra na Tchetchênia. Por exemplo, a manifestação organizada pelo movimento Ação contra os imigrantes ilegais, que conclamava “Limpar Moscou dos bandidos tchetchenos”, havia sido proibida após vários pedidos realizados pelos grupos de direitos humanos e antimilitaristas, proibida sob o pretexto de precisar tirar a neve do local... Quando a alegação da neve tornou-se incabível, esta manifestação xenófoba foi permitida. Por outro lado, quando as organizações sociais de Moscou entraram com pedido de realização de uma manifestação de luto para lembrar 60 anos da deportação dos tchetchenos e inguches pela ditadura stalinista, a prefeitura se negou a sequer analisar o pedido. Mesmo assim, a manifestação aconteceu, resumindo-se em levar as flores até a pedra memorial, que foi erguida na praça Lubianka em memória das vitimas das repressões da URSS. Os organizadores foram multados pela prefeitura de Moscou. Como na Rússia as manifestações podem acontecer somente após a permissão do Estado e o governo se outorga o poder de negar o direito dos cidadãos se manifestarem livremente, a prefeitura de Moscou proibiu durante cinco semanas os piquetes contra a guerra na Tchetchênia que vêm acontecendo no centro da cidade desde 1999, início da segunda fase da guerra. Esta omissão, e muitas vezes estímulo à xenofobia por parte do poder governamental, acarreta trágicas conseqüências, como crimes dos quais a mídia raramente noticia: – em Moscou, no dia 17 de julho de 2003, um refugiado do Azebaidjão, Magakian Artur Iurievitch, foi espancado por skinheads até a morte. O caso foi levado para justiça só após apelo da ONG Memorial para a procuradoria, mas a investigação praticamente não avançou; 64
– em setembro de 2003, em Ekaterinburgo (Åêàòåðèíáóðã), ao lado do Departamento do Interior, um grupo de jovens gritando slogans racistas espancou o jornalista negro da rede local de televisão Martin Adams. Durante o espancamento, nenhum funcionário da instituição “responsável” pela segurança pública prestou socorro; – no mesmo mês de setembro, na região de Stavropol, uma família de armênios foi assassinada. Pela manhã, o quintal da casa desta família foi invadido por três homens de máscaras, que atiraram na mulher e no filho, e o marido foi ferido por tiros e facadas; – em dezembro de 2003, em São Petersburgo, um estudante nanaets53 da Universidade Estatal de Leningrado, Serguei Beldy, foi atacado por pessoas vestidas de preto e morreu no hospital com ferimentos graves; – em 14 de janeiro de 2004, em Moscou, uma menina tadjique de 13 anos foi atacada durante passeio num dos parques da cidade. A amiga da menina, que tinha aparência eslava, foi solta. A menina foi encontrada com 19 feridas e passou por cirurgias no hospital. Ela morreu de insuficiência pulmonar após três semanas, pois havia ficado muitas horas jogada na neve após o ataque. Ao contrário do homicídio de outra menina tadjique em São Petersburgo, que foi muito comentado, no caso do crime de Moscou nem os pais, nem médicos quiseram apelar para a sociedade e mídia. Os pais temiam pela vida de outros filhos, e os médicos pela própria segurança – fatos tão alarmantes e sérios quanto o homicídio; – no final de fevereiro de 2004, em Omsk (Î ì ñ ê), skinheads espancaram a esportista buriata54 Darima Nimaeva, de 17 anos, que participava de um campeonato de arco e flecha. Ela foi atacada voltando para o hotel e ficou gravemente traumatizada; – em março de 2004, no centro da cidade de Kursk (Êóðñê), dois estudantes estrangeiros da faculdade de medicina foram violentamente espancados. Um deles, Guru Parab Kalimukhod, da Malásia, foi espancado por um grupo de jovens armados com paus. O outro, Vitkhitung Mudin Sing, do Sri Lanka, foi atacado perto do instituto por um grupo de adolescentes que o agrediram na cabeça com uma garrafa; este estudante foi internado no hospital com distúrbio neurológico; – no final de abril de 2004, em Kostroma (Êî ñòð îì à), um menino armênio de 11 anos foi atacado. As roupas do menino foram incendiadas. As pessoas na rua apagaram o fogo. Após alguns dias, foi noticiado na imprensa que, segundo a polícia da cidade, não foi um ataque de skinheads, mas um acidente durante brincadeira de crianças. Porém, logo após o crime, testemunhas afirmavam que o menino fora atacado por pessoas carecas vestidas de roupas pretas, parecidas com uniforme; __________ 53. Etnia da Rússia oriental. 54. Etnia da Rússia oriental, sul da Sibéria.
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– em 19 de junho de 2004, Nikolai Guirenko foi morto a tiros na porta de seu apartamento em São Petersburgo; Nikolai foi etnógrafo, chefe de comissão sobre os direitos de minorias étnicas da União de Cientistas de São Petersburgo, membro do projeto Campanha civil de resistência contra xenofobia, racismo, discriminação étnica e anti-semitismo na Federação Russa. Foi perito de processo jurídico do assassinato do azeri Mamedov (2002) e do julgamento do grupo extremista nacionalista Shultz-88. Nikolai estava-se preparando para ser perito em um caso similar na cidade de Velíki Novgorod; – três estudantes (dois peruanos e um espanhol) foram agredidos em 9 de outubro de 2005. Segundo a polícia, cerca de 20 jovens armados com paus, barras metálicas e navalhas atacaram os estudantes, à noite, na cidade russa de Voronezh (Âîðîíåæ) (500 km ao sul de Moscou), onde dezenas de estrangeiros foram assassinados na última década. O peruano Enrique Angelis Hurtado, de 18 anos, da Academia de Arquitetura de Voronezh, morreu por causa dos ferimentos sofridos; – em novembro de 2005, foi assassinado o músico e ativista político Timur Katcharava. Ele foi atacado por um grupo de neonazistas no centro de São Petersburgo. O assassinato aconteceu após um protesto contra a guerra na Tchetchênia, seguido de distribuição gratuita de comida para os moradores de rua (Food not Bombs). Timur tinha 20 anos, cursava o 4o ano de filosofia na Universidade Estatal de São Petersburgo, e tocava nas bandas “Sandinista!”55 e “Distress”. (www.stop-it.narod.ru – site em memória de Timur). Os casos são muitos e percebe-se que a onda de agressão que se expande pela Rússia não encontra obstáculos por parte do poder instituído. Pelo contrário, esta onda da xenofobia é usada com muita maestria pelo governo russo para a criação de uma “imagem do inimigo” – culpado de todas as desgraças da vida de hoje.
__________ 55. www.myspace.com/sandinistaxspbhc; www.voicehardcore.by.ru/sandinistatxt.htm – letras de Sandinista!
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Palavras no Silêncio – Você saberia me dizer como saio daqui? – perguntou Alice. – Depende de aonde você quer chegar, – respondeu o gato. CAROLL, L. Alice no País das Maravilhas.
A guerra na Tchetchênia parece se tornar um beco sem saída, aparentemente é uma situação de desespero. Para a população da pequena república no Cáucaso Setentrional, a presença das tropas do exército da Federação Russa – uma constante ameaça e causa de intermináveis violações de direitos humanos – tornou-se cotidiana, insuportável e odiada. Para grande parte dos cidadãos da Federação Russa essa guerra também tornouse cotidiana. Apesar de distante e longínqua, é um distúrbio que vem à tona com as explosões e tomadas de reféns, provocando ódio em relação aos supostos autores dessas tragédias. Paradoxalmente, está ausente o ódio à guerra em si, apresentada como uma guerra justa, aquela que deve ser vencida a qualquer custo, pois o inimigo surge exatamente como causador de muitos dos males que ameaçam a vida política, social e econômica do país. Enquanto isso, os interessados no fim das operações militares se vêem cercados por todos os lados, sem possibilidade de apelar a ninguém, vivendo num gueto dentro de uma guerra silenciada. Atualmente a guerra na Tchetchênia está sendo apresentada pelo governo da Federação Russa, para o país e para o exterior, como uma operação contraterrorista, um conflito interno (um dos agravantes mais sérios do uso dessa terminologia é a impossibilidade de julgar os crimes cometidos contra a população civil como crimes de guerra). A Federação Russa é membro do Conselho de Segurança da ONU e possui o direito de veto a qualquer decisão dessa entidade, então a questão da Tchetchênia não pode ser resolvida por meio dessa instituição. As organizações internacionais de defesa de direitos humanos em geral possuem enormes dificuldades em atuar na região do conflito devido às complicações criadas pelo governo da Rússia, restringindo-se aos trabalhos nos campos de refugiados fora da Tchetchênia e aos eventuais envios de mantimentos e medicamentos para a região. Os agentes dessas instituições correm sérios riscos ao permanecer na Tchetchênia, e freqüentemente são forçados a sair da região por causa das ameaças de seqüestros (no final de 2001, o coordenador do programa internacional Médicos sem Fronteiras, um dos estrangeiros mais atuantes na região, 67
foi seqüestrado, fato que forçou a saída de muitas entidades internacionais da Tchetchênia56). Além disso, foi aprovada no início de 2006 a lei que restringe o funcionamento das ONG’s internacionais no território da Rússia, dificultando o recebimento de financiamento do exterior pelas ONG’s russas. No começo de 2005, cinco refugiados tchetchenos, residentes na Europa, ganharam seus casos contra a Federação Russa na corte internacional de Estrasburgo. Para aqueles que permanecem dentro da Federação Russa, qualquer apelação à justiça parece ser perigosa (além de impossível de ganhar), e potencialmente causadora de novas ameaças e problemas mais sérios. A saída dos refugiados para a Europa e outros países, no presente momento, é rara e esporádica devido ao custo elevado dessa operação e às grandes implicações jurídicas, sem mencionar a hospitalidade bastante temerosa da comunidade internacional às vítimas dessa guerra. * * * Os conflitos atuais, como a guerra na Tchetchênia, têm sua origem na política nacional da União Soviética, assim o fenômeno da passividade (ou apatia?) social também deve provir dessa época e é necessário analisar os mecanismos de persistência de um sistema totalitário/ ditatorial. Quais são as estratégias totalitárias que permitem a continuidade da guerra na Tchetchênia e produzem os silêncios como respostas aos acontecimentos relacionados com o conflito e a situação política e econômica na Rússia? A mudez imposta pelo governo e as razões do silêncio da população perante a guerra que se tornou cotidiana, a reconstrução da imagem do inimigo, e a conseqüente política do medo cotidiano instaurada nos grandes centros urbanos da Rússia são os resquícios de um regime totalitário? Esta afirmação faz lembrar das palavras de Hanna Arendt: “... o país pode voltar ao totalitarismo da noite para o dia sem grandes convulsões...”57. Como a manutenção e a perpetuação do poder na URSS em grande parte era da responsabilidade do aparelho policial, basta lembrar que o atual presidente da Rússia foi alto membro da FSB (ex-KGB) antes de se eleger e que, durante os últimos 20 anos, não houve qualquer transformação nas estruturas de poder. Vale a pena prestar atenção aos fenômenos que confirmam a persistência de elementos de dominação herdados do totalitarismo: a criação de imagem de inimigo, culpado de todas as desgraças da sociedade; o resgate de __________ 56.<<http://www.caucase.fr/Revue_de_presse/Archives/Janvier2005/janv05_novaya1.htm>> (acessado em 11 de outubro de 2005). 57. ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: Anti-Semitismo, Imperialismo, Totalitarismo. Tradução Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 351.
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culto de personalidade, a idolatria do chefe do governo que percebe-se na Rússia de hoje58; a necessidade de uma guerra, de um conflito para a manutenção da ordem social; a constituição do cotidiano das grandes cidades na base do medo. Passados 15 anos desde a desintegração da URSS, podemos perceber que, em termos de poder, pouca coisa mudou: as elites governantes continuam sendo as mesmas e os mecanismos de domínio estão sendo resgatados da época anterior (cujo fim fora tão festejado um dia) e aplicados com eficiência. * * * Áåç ñëîâ - Sem palavras – esse foi o nome dado às manifestações organizadas pelo governo da Rússia para lembrar as vítimas da tomada de escola em Beslan (Ossétia do Norte) em 2004. No entanto, um ano após a tragédia, o que mais se esperava eram justamente as palavras e as declarações por parte do governo que explicariam o grande número de vítimas, a inexistência das investigações sobre a operação militar mal planejada, o descontamento das mães de Beslan (organizadas num comitê exigindo a renúncia do presidente Putin) – entre outros assuntos que estão sendo omitidos, silenciados, evitados de serem mencionados pelo poder. Essa mudez, o silêncio, são instrumentos políticos muito eficazes para manter a região do Cáucaso Setentrional dentro do cerco, no bloqueio de informação, pois assim o resto da população da Federação Russa continua vivendo em “paz”, enquanto a guerra continua. Acontece que, na situação atual, 10 anos após o começo da guerra na Tchetchênia59, falar sobre esse assunto se tornou inconveniente para muitos cidadãos russos, assim como para os principais canais da TV, para jornais, revistas, políticos e dirigentes russos, exceto nos casos extraordinários quando ocorre algo como em Beslan60. As palavras faltam quando há incerteza, ou medo de falar, ou o assunto encontra-se esgotado. Parece que no caso da Rússia são todas essas razões __________ 58. A multiplicação das imagens do presidente em todos os locais de Moscou (lojas, escritórios de todos os tipos, escolas, cafés, sem falar dos espaços públicos) e sua aparição diária nos noticiários da TV, qualquer que seja o assunto, foram dois fatos que fazem lembrar imediatamente da época soviética permeada pela idolatria aos governantes. 59. Expressão da mídia russa que, ao se referir ao conflito, paradoxalmente “esquece” da razão oficial deste – justamente a questão de pertencimento do território à Rússia, então, seguindo a lógica, a guerra seria na Rússia, já que a Tchetchênia faz parte da Federação Russa. 60. Vale salientar que durante a tomada da escola em Beslan a censura aos meios de comunicação não foi abolida. Pelo contrário, os canais de TV estatal omitiam as informações (reduziam o número de reféns, não informaram sobre o começo do ataque à escola, em 3 de setembro) e não divulgavam as exigências apresentadas ao governo russo pelo grupo que tomou os reféns (uma das principais exigências foi o fim das operações militares no território da Tchetchênia). Os jornalistas foram impedidos de viajarem para Beslan (como Anna Politkóvskaia, que foi envenenada durante a viagem).
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que mantêm as pessoas caladas. O medo de falar é aquele aprendido na escola, dentro de um sistema totalitário, e tão bem expresso pela sabedoria popular contando que “até as paredes possuem ouvidos” e divulgado amplamente nos cartazes de propaganda ideológica da década de 1930: “O tagarela é um achado para o espião”. E o assunto esgotado, fechado, na lógica do “já sei de tudo, não preciso de mais informação”, demonstra o sucesso e a conclusão do processo da construção da imagem de inimigo empreendido pelos governantes da Rússia no período da passagem da economia socialista planificada, ou capitalismo de Estado, para a economia de mercado “livre”, resultando na perda pela população dos poucos direitos sociais e econômicos advindos do regime anterior. Porém, no meio dessa mudez estonteante, há aqueles que têm o que dizer, que não têm medo de falar e que querem ser ouvidos. Encontramos essas vozes dissonantes, por exemplo, em duas ONG´s em Moscou – Comitê de Assistência Civil (Êî ìèòåò Ãðàæäàíñêî å ñ îäåéñòâèå)61 e Memorial (Ì å ì î ð è àë)62. Ambas as instituições surgiram com a desintegração da União Soviética e o começo de migrações e de êxodos de antigos cidadãos soviéticos na procura de novas velhas pátrias e na fuga dos primeiros conflitos territoriais63. Com o começo da guerra na Tchetchênia, estas ONG´s passaram a trabalhar com a defesa de direitos humanos na região do conflito e com os refugiados da guerra, seja nos acampamentos provisórios ou assentamentos, seja nos centros urbanos da Rússia64. Em Moscou e São Petersburgo encontramos diversos movimentos de resistência contra a guerra na Tchetchênia. Apesar das sérias dificuldades para a atuação política na Rússia – as manifestações acontecem somente após a permissão do Estado, e o governo se legitima o poder de negar o direito dos cidadãos de se manifestarem livremente – os movimentos sociais organizam piquetes antimilitaristas semanalmente. Em geral, participam dos protestos cidadãos comuns, grupos políticos organizados (partidos de oposição, anarquistas, coletivos autônomos etc) e ONG’s de direitos humanos65. __________ 61. Site: <<www.refugee.ru>>. 62. Site: <<www.memo.ru>>; em inglês: <<www.memo.ru/eng/index.htm>>. 63. A ONG “Memorial”, no primeiro momento, buscou resgatar a memória das vítimas de repressões políticas stalinistas e do período soviético em geral, mas com a eclosão do conflito em Nagorny Karabakh iniciou os trabalhos de monitoramento de violações de direitos humanos e de assistência jurídica aos primeiros refugiados. 64. Em Moscou, no Comitê da Assistência Civil, funciona uma pequena escola para os filhos de refugiados. 65. Participamos de alguns protestos em Moscou, logo após a explosão da escola em Beslan. Numa das principais praças da cidade, no fim da tarde, foram acesas as velas, abertas as faixas com as inscrições contra a guerra, contra o genocídio dos tchetchenos promovido pelo exército russo sob o comando do presidente Putin, contra o imperialismo, contra o terrorismo estatal
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Preocupados com o crescimento da intolerância e do preconceito étnico na Rússia, um coletivo antifascista de São Petersburgo edita a revista Tumbalalaika – Melodia Antifascista (Òóì á àëàëàéêà-Àíòèôàøèñòñêèé ì î ò è â)66 e promove seminários e discussões. O conteúdo das revistas é composto de matérias sobre a situação dos refugiados, dos ciganos e pequenos povos da Sibéria (minorias étnicas que sofrem muito preconceito, mesmo nas piadas), dos moradores de rua; retratam a resistência – desde a história da Segunda Guerra Mundial até as organizações contemporâneas como, por exemplo, a FARE (Futebol Contra o Racismo na Europa – Football Against Racism in Europe); com muita ironia e inteligência denunciam as práticas nacionalistas na Rússia de hoje, e fazem uma análise da produção cultural (filmes, livros, música) acerca da questão. Segundo os autores, a liberdade, o respeito à individualidade, o auto-respeito, a responsabilidade e o senso de humor derrotaram e sempre derrotarão todas as tentativas de estabelecer modos de vida e governos autoritários e totalitários. Outros grupos e coletivos antifascistas67 se organizam localmente e promovem ações simultâneas como, por exemplo, no dia 8 de maio (data em que se comemora a derrota do fascismo na Segunda Guerra Mundial). Em 2006, as manifestações denunciavam os assassinatos promovidos pelos neonazistas nos últimos dois anos e a conivência das autoridades frente aos crimes. Ao invés de investigá-los, o governo russo acaba incentivando os sentimentos xenófobos através da atual política nacionalista. Assim, os dois principais objetivos de luta antifascista na Rússia de hoje são: – a resistência às organizações nacionalistas, neonazistas e fascistas; esta resistência se dá através das manifestações e protestos nas ruas, ações culturais, impressão de materiais didáticos e revistas; – denúncia da política do governo Putin em relação à guerra na Tchetchênia, à discriminação das minorias étnicas e denúncia do discurso oficial (do governo e da grande mídia) claramente nacionalista (basta lembrar da inauguração de um novo feriado nacional – Dia da União Nacional quando em Moscou abertamente desfilaram grupos neonazistas portando símbolos fascistas e clamando “Uma Rússia para os russos” e Moscou para os moscovitas”). __________ que causou a morte de centenas de crianças. Foram distribuídos panfletos e os participantes trocaram idéias com as pessoas que passavam na praça. Muitos passavam direto, sem levantar os olhos, ou recusavam-se a receber os panfletos – o medo e a tensão em Moscou, capital do império russo, estão generalizados. Outros solidarizavam-se com a manifestação, conversavam, demonstravam interesse com a questão. 66. http://tumbalalaika.memo.ru 67. www.antifa.ru
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* * * A política de medo cotidiano implementada globalmente em nosso planeta – acentuada após os atentados políticos em 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos – tem dinamizado diversos segmentos econômicos ligados à indústria da violência. O fluxo de movimentação financeira proveniente da ampla cadeia produtiva desenvolvida através dessa indústria – produção de armamentos, serviços de “defesa” e segurança, soldados mercenários, financiamento de redes e atentados terroristas, diversificada produção cinematográfica e midiática etc – representa o mais fundamental segmento da economia capitalista na atualidade. A guerra na Tchetchênia e suas implicações nas recentes formas de vigilância e controle da sociedade russa também tem dinamizado os segmentos econômicos da indústria da violência naquele continente. As regiões de conflito configuram-se enquanto campos de treinamento para os novos soldados que ingressam nas forças armadas russas e, paralelamente, para os rebeldes cooptados pelas forças de resistência tchetchena. Em ambos os casos, os treinamentos oferecem oportunidades para a qualificação de combatentes estrangeiros. As vantagens e promoções de produtos militares oferecidos pela Federação Russa atraem um amplo e diversificado leque de consumidores – desde o Brasil (negociações para a aquisição de aviões militares Sukhoi), ou mesmo o governo venezuelano de Hugo Chavez (instalação de fábricas de fuzis Kaláchnikov, além de outros bilionários acordos com a indústria bélica russa), até o Estado de Israel. Esses novos produtos de segurança e de defesa oriundos das recentes pesquisas científico-militares sugerem para nosso modo de vida contemporâneo as receitas de liberdade e segurança. Nanotecnologia, controle biogenético, neuromarketing são apenas alguns exemplos das futuras inovações das grandes corporações para o controle da sociedade global no século XXI. O mais novo produto propagandeado é a pistola elétrica para imobilização instantânea de suspeitos de terrorismo. Mas a política de medo cotidiano não é novidade para a população russa, que já enfrentara outrora a paranóia do poder repressivo stalinista, as deportações e assassinatos em massa, a cultura da delação instaurada pelo PC soviético. A diferença é a mudança do alvo desta política de medo cotidiano. Se antes os agentes e espiões do livre mercado capitalista eram os inimigos, hoje as minorias étnicas parecem ser as responsáveis por toda a pobreza e falta de perspectiva na sociedade contemporânea: é necessário vigiá-las, julgá-las, caracterizá-las como potenciais suspeitos. Nesse sentido, a desigualdade social é camuflada pela diferença étnica. 72
Posfácio Os materiais históricos contemporâneos são importantíssimos para a compreensão e a análise dos tempos em que vivemos, queiramos ou não. Às vezes lamentamos que a história não é uma ciência exata, pois seria muito mais fácil aprender suas leis e fórmulas de uma vez por todas e não errar nunca mais. Mas a história é uma ciência humana e subjetiva (prostituta de qualquer poder) e por isso é preciso ter muito cuidado e ser objetivo, ter a posição política e a autoconsciência bem definidas e expressas. Precisamos compreender as origens de muitos acontecimentos trágicos, as causas históricas e os acasos, as rupturas esperadas e imprevistas do processo histórico. Tenho convicção de que nas disciplinas históricas há uma lei, como se fosse uma lei de desenvolvimento da sociedade, – quanto menos interesse em relação às ciências humanas há na sociedade, mais catástrofes sociais acontecem; quanto mais há negligência em relação a essas ciências, mais confusões e desastres. A condição mais importante da estabilidade da sociedade e do Estado é a autoconsciência social de seus membros. A história do século 20 demonstrou a infertilidade e o perigo de uma história “oficial” embasada na humilhação de outros povos, no desprezo e na inveja em relação aos outros países. A Rússia explorou até o final seus recursos com a revolução, que não levou a uma união nacional, mas a uma catástrofe, à morte de muitas pessoas. A revolução de outubro de 1917 não trouxe liberdade para ninguém; mais uma vez os povos foram obrigados a seguir uma política que a cada ano se tornava mais perversa em seus aspectos, tais como a coletivização, as repressões, a deportação, o extermínio: a política nacional da URSS. Lida Iussúpova (ONG Memorial de Grozny)
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Anexos
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Moradores da vila Keankhi (TcthetchĂŞnia, 2002).
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Anexo I – Cronologia das relações entre a Rússia e a Tchetchênia (séculos 20-21) 1914-1918 Participação dos regimentos tchetcheno e inguche na chamada “Divisão Selvagem” do exército russo durante a Primeira Guerra Mundial. 27 de fevereiro de 1917 Revolução de Fevereiro na Rússia. Fim da monarquia czarista. Março 1917 I Conselho dos montanheses em Vladikavkaz. Fundação da “União dos Montanheses do Cáucaso”. 25 de outubro 1917 Revolução de Outubro na Rússia, tomada do poder pelo partido dos bolcheviques. Os tchetchenos e os inguches são proibidos de participarem na “Divisão Selvagem”. 11 de maio de 1918 Proclamação da independência da República dos Montanheses. 1919-1920 Ações militares na Tchetchênia e na Inguchétia contra o exército do general Deníkin (Exército Branco). Parte dos vainakhi (autodenominação de tchetchenos e inguches) lutam ao lado dos bolcheviques contra cossacos do Exército Branco. Outra vertente lutava pela fé, sob comando do emir UzunKhadji, contra todos os não-islâmicos. 1920 Criação do alfabeto inguche com letras latinas. Março de 1920 Entrada de batalhões do Exército Vermelho em Grozny. Proclamação do poder soviético na Tchetchênia e na Inguchétia. 17 de novembro de 1920 Fundação da República Autônoma Soviética Socialista: anexação da Tchetchênia e da Inguchétia à Rússia Soviética.
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1922-1924, 1925, 1929-1930, 1932, 1933-1934, 1937-1939, 19401942 Levantes “anti-soviéticos” na Tchetchênia e na Inguchétia. Ações de repressão violenta do Exército Vermelho contra os rebeldes vainakhi. 1929 Início da coletivização em massa. Campanha contra as autoridades religiosas. 1934 Criação da região autônoma da Tchetchênia e da Inguchétia. 1934 Instituição de um único alfabeto tchetcheno-inguche, com grafia latina. 1936 A região autônoma da Tchetchênia e da Inguchétia é transformada em República Autônoma Soviética Socialista Tchetchênia-Inguchétia. 1937-1938 “Grande Terror” na Tchetchênia-Inguchétia. Milhares de pessoas são presas sob acusações políticas. 1938 Alfabeto tchetcheno-inguche é modificado para a grafia em cirílico. 23-27 de fevereiro de 1944 Deportação para a Ásia Central de tchetchenos e inguches. Início da luta de guerrilheiros contra os representantes do poder soviético, impedindo e paralisando as deportações. 07 de março de 1944 Decreto do Conselho Superior da URSS sobre a liquidação da República Autônoma Soviética Socialista Tchetchênia-Inguchétia. As casas dos deportados foram entregues aos migrantes. A deportação durou 13 anos. 09 de janeiro de 1957 Decreto do Conselho Superior da URSS sobre a restituição da República Autônoma Soviética Socialista Tchetchênia-Inguchétia. Início do retorno dos tchetchenos e dos inguches para suas terras.
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26-28 de agosto de 1958 Pogroms espontâneos contra os tchetchenos em Grozny. Multidão ocupa os prédios da administração no centro da cidade, que foram retomados após a entrada de regimentos do exército de outras regiões. 1958-1991 Tchetchenos e inguches que voltaram para as casas se viram frente à inexistência de vagas para o trabalho na indústria. Durante décadas, o desemprego e falta da terra (apesar da anexação das regiões ao norte do rio Terek) foram alguns dos problemas principais na região. Novembro de 1990 Primeiro conselho nacional tchetcheno. Eleição do Comitê do congresso do povo tchetcheno (ÎÊ×Í), chefiado pelo general soviético Djokhar Dudaev. Agosto de 1991 Direção do partido comunista da República Autônoma Soviética Socialista Tchetcheno-Inguchétia apóia os golpistas em Moscou (que objetivaram destituir o então líder da URSS Gorbatchev), resultando no enfraquecimento dos órgãos legítimos do poder na república. Em setembro o poder é tomado pelos radicais nacionalistas do Î Ê × Í . Divisão da Tchetchênia e da Inguchétia em duas repúblicas separadas. 27 de outubro de 1991 Eleição de Dudaev para a presidência e a proclamação da independência da Tchetchênia. 7 de julho de 1992 Retirada do exército soviético da Tchetchênia. 31 de outubro - 4 de novembro de 1992 Confrontos sangrentos na região de Prigorodnaia (Ï ð è ã î ð î ä í à ÿ), na Inguchétia: conflito entre os inguches e os ossetas. Os inguches são expulsos da Ossétia Setentrional. 26 de novembro 1994 Tentativa fracassada de tomada do poder em Grozny pela “oposição tchetchena” (organizada pelos serviços especiais dos militares russos). Os participantes são capturados. 29 de novembro de 1994 Ultimato de Ieltsin para o governo tchetcheno, exigindo a rendição. 79
11 de dezembro de 1994 Entrada das tropas russas na Tchetchênia. Início do primeiro período de guerra entre a Rússia e a Tchetchênia. 31 de dezembro de 1994 Início da ocupação de Grozny pelas tropas federais russas (até março de 1995). Abril de 1995 O exército russo estabelece o controle sobre a região planície da Tchetchênia. 7-8 de abril de 1995 “Limpeza” (zatchistka) da vila Samáchki pelas tropas federais. Mais de 100 moradores foram mortos durante a operação. Maio de 1995 Avanço das tropas federais russas para as regiões montanhosas da Tchetchênia. 14-20 de junho de 1995 O grupo de Chamil Bassaev faz 1.500 pessoas de reféns num hospital público em Budionovsk. Os reféns são soltos nas negociações. Em Grozny são iniciadas as negociações pacíficas entre as forças tchetchenas e russas. Reconhecimento do governo dos separatistas pelos russos. Cessar-fogo acordado por seis meses. 14 de dezembro de 1995 Rússia tenta a realização de eleições para “dirigente da República Tchetchênia”. Retomada de ações militares pelos separatistas. 09-18 de janeiro de 1996 Em Kizliar (Daguestão), tomada de mais de 1.500 reféns num aeroporto pelos grupos de Salman Raduev. Confrontos armados na vila Pervomaiskoe. 22 de abril de 1996 Assassinato do presidente da Tchetchênia Dudaev. O vice-presidente, Zelikhman Iandarbiev, assume o cargo no dia seguinte.
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06-21 de agosto de 1996 Grupos armados tchetchenos tomam o poder em Grozny. Confrontos na cidade. Negociações entre Aleksandr Lebed68 e Aslan Maskhadov. 31 de agosto de 1996 Aleksandr Lebed e Aslan Maskhadov assinam em Khasav-Iurt uma declaração conjunta sobre os princípios de relações entre a Federação Russa e República Tchetchênia. Fim do primeiro período de guerra. 31 de dezembro de 1996 Retirada das tropas russas da Tchetchênia. 27 de janeiro de 1997 Eleição de Maskhadov para a presidência. Governo da Rússia reconhece as eleições. 12 de maio 1997 No Kremlin, Maskhadov e Ieltsin assinam o acordo de paz e de princípios de relações entre a Federação Russa e República Tchetchena Itchkeria69. O poder político de Maskhadov é instável num país devastado. Em julho de 1998, em Gudermes, acontece um confronto entre os extremistas religiosos e as forças leais a Maskhadov. 1997-1999 Quase toda a população não-vainakhi abandona a Tchetchênia70. Agosto-setembro de 1999 Invasão de grupos extremistas da Tchetchênia no Daguestão, começo de ações militares. __________ 68. Aleksandr Lebed, general do exército russo, participou das eleições presidenciais de 1996 e obteve terceiro lugar (Ieltsin ficou em primeiro lugar, seguido de Ziugánov (Partido Comunista da Rússia)). Trocou seu apoio à candidatura de Ieltsin pelo posto de Secretário do Conselho da Segurança da Federação Russa. Exigiu a renúncia do chefe das Forças Armadas e insistiu na substituição do Ministro de Interior da Federação Russa, acusando os dois de se aproveitarem da guerra na Tchetchênia. A iniciativa de acordo de paz entre a Federação Russa e a Tchetchênia partiu dele. Foi demitido em outubro de mesmo ano (1996) acusado de colaborar com os rebeldes tchetchenos. 69. Em janeiro de 1994, Dudaev muda o nome do país para a República Tchetchena da Itchkeria. Itchkériia é um território que inclui somente duas regiões montanhosas no sul do país: Chatoi e Vedénski. Assim, Dudaev proclama a superioridade dos montanheses em relação aos habitantes da planície. 70. Esse abandono começou no final da década de 1980 e aumentou após a chegada dos separatistas ao poder, pois os moradores “falantes de russo” tornaram-se alvo das pressões criminais.
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Outubro de 1999 Entrada das tropas federais russas na Tchetchênia. Início do segundo período da guerra. Dezembro de 1999 - janeiro 2000 Bloqueada a tentativa de ocupação de Grozny pelas tropas federais. Bombardeios aéreos e fuzilamentos na cidade. Fevereiro de 2000 Retirada das tropas tchetchenas de Grozny para as montanhas. Bombardeios e batalhas nas vilas da região Oeste da Tchetchênia. Março de 2000 Fim das grandes operações militares na Tchetchênia. Junho de 2000 Ex-muftiyi (líder religioso islâmico) da Tchetchênia Akhmad Kadyrov é nomeado Chefe de administração da República Tchetchênia. Verão de 2000 Início de novas estratégias de guerra. Pelas forças tchetchenas, a tática de guerrilha e de ataques; pelas forças federais, as “limpezas” nas vilas, prisões e desaparecimento de pessoas. Outono de 2002 Tomada de reféns durante o espetáculo Nord-Ost no teatro de Moscou. A operação de resgate que utilizou gás químico resultou na morte de, pelo menos, 116 pessoas. 2003 Início da estratégia de “tchetchenização” do conflito pela Federação Russa, passando a utilizar forças militares formadas por tchetchenos e transferindo o poder para a administração tchetchena leal ao Kremlin. 05 de outubro de 2003 Akhmad Kadyrov é eleito presidente da República Tchetchênia, integrante da Federação Russa. As organizações de direitos humanos apontaram graves fraudes durante a eleição. 09 de maio de 2004 Akhmad Kadyrov é assassinado na Techetchênia. 82
29 de agosto de 2004 Alu Alkhanov é eleito presidente. 1º de setembro de 2004 No primeiro dia letivo, rebeldes tomam escola em Beslan (Ossétia do Norte), com mais de 1.000 reféns. As tropas russas invadem a escola e, no conflito, morrem mais de 350 pessoas, entre elas várias crianças. Abril de 2005 Assassinato de Maskhadov. 2006 No começo do ano foi aprovada a lei que restringe o funcionamento das ONG´s na Rússia, prejudicando a atuação de organizações independentes contrárias à guerra na Tchetchênia. Junho de 2006 Assassinato de Sadulaev, líder de rebeldes tchetchenos que havia substituído Maskhadov. Julho de 2006 Assassinato de Chamil Bassaev na véspera da reunião do G-8 em São Petersburgo. 7 de outubro de 2006 Assassinato do jornalista russa Anna Politkóvskaia, conhecida pelas publicações que denunciaram os crimes cometidos na Tchetchênia.
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Anexo II – As Tchekas: decretos, artigos e documentos oficiais Criada pelo decreto de 07 de dezembro de 1917 pelo Conselho dos Comissários do Povo, a Tcheka Pan-Russa de Luta contra a Sabotagem e a Contra-revolução71 multiplicou suas ações através das tchekas locais, cujas funções primordiais eram proceder detenções, interrogatórios, pesquisas e outras medidas relacionadas a resistências contra o poder bolchevique. Entre os anos de 1918 e 1921, uma série de decretos, artigos e documentos oficiais exemplificam alguns dos aspectos ideológicos do “comunismo” implementado pelos bolcheviques, alguns transcritos a seguir72: 1. Carta de V. I. Lenin a G. Zinoviev Assunto: Protesto de Lenin contra a suave ação repressiva da tcheka de Petrogrado sobre movimentos populares terroristas da cidade. Trecho: “Os terroristas vão nos considerar bodes loucos. A militarização está na ordem do dia. Havemos de estimular com energia o caráter de massas do terror contra os contra-revolucionários, especialmente em Petrogrado, onde o exemplo deve ser decisivo”. Data: 26 de junho de 1918 Fonte: V.I. Lenin, Obras (em russo), tomo 35, p. 275. 2. Decreto do Conselho dos Comissários do Povo sobre o terror vermelho Assunto: Segurança da retaguarda do exército garantida pelo terror Trecho: “É indispensável que, com a finalidade de reforçar a atividade da Tcheka Pan-Russa, integremos a esta o maior número possível de camaradas responsáveis do Partido. Pela mesma razão, a fim de proteger a República Soviética contra seus inimigos de classe, devemos exilá-los em campos de concentração. Todas as pessoas relacionadas com organizações da guarda branca, com complôs ou rebeliões, devem ser fuzilados”. Data: 05 de setembro de 1918 Fonte: Izvestia, nº 195, 1918. 3. Ordem nº 113 da Tcheka Pan-Russa às tchecas locais sobre as modificações e melhorias de seus métodos de trabalho Assunto: Nove pontos sobre os abusos e repressões generalizadas das tchekas locais e sobre a necessidade de ampliação e complexificação de suas atividades __________ 71. Tcheka: abreviação para Comissão especial – ×Ê: ×åðåçâû÷àéíàÿ Êî ìèññèÿ (lê-se tcherezvytcháinaia komíssiia). 72. Extraídos do texto: “Las tchecas: decretos, artigos e documentos oficiais”. In: El Terror Bajo Lenin. Baynac, Jacques. Os trechos escolhidos procuram representar o teor essencial dos documentos.
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Resumo do documento: “I. Não aterrorizar os pequenos-burgueses pacíficos; II. Oferecer possibilidades de trabalho aos pequenos-burgueses e socialistas; III. Deter o terror contra a população que não nos é hostil; IV. Prestar os cuidados máximos às estradas de ferro, estimulando deste modo sua reorganização; V. Não interpretar o Protocolo para a Defesa de 03 de dezembro de 1918 como uma restrição das atividades das tchekas, mas considerá-lo como um passo para que as tchekas realizem um trabalho mais complexo e delicado; VI. Recordar e ter sempre presente que o poder central mantém seu ponto-de-vista de luta implacável contra os verdadeiros inimigos, ainda que respeite os grupos que permanecem passivos na luta política; VII. O poder soviético central não compartilha com o ponto de vista daqueles que consideram esta política uma debilidade do regime contra tudo e contra todos; VIII. Criar uma forma colegiada de controle à Tcheka PanRussa que assegure a continuidade de funcionamento da tcheka local; IX. Levar adiante atividades e trabalhos comuns com o Comitê do Partido local”. Data: 19 de dezembro de 1918 Fonte: Sobre la Historia de la Checa Panrussa, Moscou, 1958. 4. Decreto do Comitê Executivo Central dos Sovietes sobre a supressão das tchekas distritais Assunto: Três proposições para a Tcheka Pan-Russa alcançar uma organização correta e mais racional de luta contra a contra-revolução e a sabotagem Resumo do documento: “I. Suprimir todas as tchekas distritais. Transferir todos os prisioneiros às tchekas das províncias apontando ao mesmo tempo as razões precisas do encarceramento; II. Integrar os membros das tchekas distritais nas tchekas de província; III. Prolongar a existência das tchekas distritais por razões justificadas”. Data: 24 de janeiro de 1919 Fonte: Izvestia, nº 16, 1919. 5. Nota de F. E. Dzerjinsky (chefe da Tcheka Pan-Russa) a Piatnitsky sobre a obrigação de formular a acusação no prazo de cinco dias após a detenção Transcrição: “Camarada Piatnitsky: É indispensável enviar uma circular a todas as seções e a todos os investigadores com o objetivo de indicar-lhes a necessidade de porte de ordem de prisão onde deve formular-se a acusação quando levada a cabo uma detenção. A cópia desta ordem deve encontrar-se na prisão junto ao expediente do detido, devendo ser comunicada no prazo de cinco dias após o momento de sua detenção. 85
F. Dzerjinsky. Data: 25 de abril de 1919 Fonte: Sobre la Historia de la Checa Panrussa, p. 276) 6. Nota de Dzerjinsky a Mesing, membro colegiado da Tcheka PanRussa, sobre a criação de grupos tchequistas junto aos dirigentes dos sindicatos: Assunto: Objetivo de atrair os trabalhadores às tchekas Trecho: “Considero que seria muito útil criar, junto à direção dos sindicatos, grupos de tchequistas – ou melhor, troikas73 – (dois entre eles, porém com nossa aprovação, e um dos nossos). A missão dessas troikas: a luta contra os abusos cometidos nos sindicatos”. Data: 18 de março de 1921 Fonte: Op. Cit., p. 436. 7. Ordem nº 186 (confidencial): Transcrição: “Tem chegado à Tcheka Pan-Russa certas informações segundo as quais as pessoas detidas por razões políticas, membros de diferentes partidos anti-soviéticos, encontram-se em certas ocasiões encarceradas em condições muito inadequadas e que em seus expedientes existem numerosas anomalias. A Tcheka Pan-Russa assinala que as pessoas acima mencionadas não devem ser consideradas como castigadas, mas sim exiladas provisoriamente da sociedade em interesse da revolução, e que as condições de seus internamentos não devem representar caráter punitivo”. Presidente da Tcheka Pan-Russa: F. Dzerjinsky. Administrador: G. Yagoda. Fonte: Latzis, Las checas, Moscú, 1921. 8. Ordem referente aos reféns Assunto: Ordem telegrafada referente à necessidade de repressão às permanentes conspirações na retaguarda do exército bolchevique – conspirações de socialistas-revolucionários de direita, e outros crápulas contra-revolucionários Trechos: “É necessário terminar imediatamente com este relaxamento e estes bons modos. Todos os socialistas-revolucionários conhecidos pelos sovietes locais devem ser detidos na região. Deve ser tomado um considerável número de reféns entre a burguesia e os oficiais. De maneira que, à menor tentativa de resistência, deve-se fuzilar em massa esses reféns. (...) __________ 73. Essas troikas (grupos de três pessoas) tornaram-se instituições que tinham o poder de julgar pessoas e até condenar à pena de morte (sem nenhum direito à defesa).
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Nem a menor vacilação, nem a menor indecisão da aplicação do terror de massas”. Fonte: “Periódico da Tcheka”, nº 01, p. 11. 22 de setembro de 1918. Os documentos, artigos e cartas acima selecionados podem nos clarificar os caminhos utilizados pelo poder bolchevique, pontualmente durante o período de liderança leninista, para a configuração dos primórdios do Estado policial soviético. Paralelamente à constante preocupação em impedir os abusos de autoridade e repressões deliberadas realizadas pelas tchekas locais, a Tcheka Pan-Russa não hesitava em estimular o terror em massa e a aproximação de suas atividades com outros órgãos estatais, como os Partidos Comunistas locais ou mesmo sindicatos.
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Anexo III – Perseguição dos camponeses na União Soviética74 1. Resistência dos camponeses: migrantes especiais e a repressão do poder Soviético Após a Revolução Russa, os bolcheviques adotaram o programa de reforma agrária dos socialistas-revolucionários, baseado essencialmente na distribuição de terra proporcionalmente ao número de integrantes de cada família de camponeses. O programa dos bolcheviques se baseava na nacionalização, ou seja, na transferência das terras para o Estado, enquanto os socialistas-revolucionários reivindicavam a socialização das terras pelos conselhos de camponeses – organizados nas comunidades para decidir coletivamente os princípios de distribuição e administração das fazendas. Com o começo da coletivização em massa dos kulaki (pequenos agricultores e fazendeiros)75, criou-se no país uma situação política alarmante. Durante a primeira etapa da coletivização (1927-1929) a resistência dos camponeses foi pouco perceptível, resumindo-se a atos episódicos de desobediência. Com a escalada da violência no final de 1929-1930, aumentaram os protestos e rapidamente radicalizaram-se os métodos e os meios de resistência: desde a recusa e agitações contrárias às kolkhoz (fazendas coletivas estatais) até o extermínio de gado, destruição de propriedade, ou terror contra os funcionários do partido e dos soviets, além de levantes armados em grupos. Esta situação explosiva foi descrita numa carta de circulação restrita do Comitê Central do Partido Comunista (02 de abril de 1930): “a situação pode resultar numa ampla onda de levantes camponeses; metade de nossos funcionários de base pode ser abatida pelos camponeses, a colheita será anulada, a construção das kolkhoz suspensa; a situação do país, interna e externa, encontra-se sob ameaça” 76. Nesse contexto, Stalin escreve a carta Vertigem dos alcances, amenizando os abusos administrativos. Mas os agricultores continuaram com as mesmas opções: kolkhoz, falência ou migração forçada e desapropriação (raskulatchivanie). O primeiro ato de resistência dos camponeses foi a matança do gado no inverno de 1929-30: a quantidade do gado nas aldeias diminuiu mais que durante a guerra civil de 1917-1922. Em algumas regiões os camponeses se rebelaram e foram combatidos pelo Exército Vermelho, comandado pelos __________ 74. Resumo da transcrição do texto de Viktor Kirillov extraído do site: www.memo.ru 75. A abrangência do termo kulaki pode referir-se tanto a agricultores inconformados com a intervenção estatal em sua produção até pequenos e médios fazendeiros. O termo acompanha as diversidades regionais, possuindo diversas atribuições e significados. Literalmente, em russo, significa punhos - êóëàêè . 76. Documentos depõem: Da História das Aldeias Antes e Durante a Coletivização. (19271932). Moscou, 1989. p. 390.
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heróis da guerra civil – desta vez, porém, o combate travou-se contra o povo soviético, ao invés do Exército Branco ou colaboracionistas. Na região das montanhas Urais, que dividem a Europa e a Ásia, registram-se vários exemplos de resistência camponesa à coletivização: levantes generalizados; espancamentos de ativistas das kolkhoz; o “levante bovino” na vila Krutoiarskaia, em março de 1930, e com a proliferação do movimento pela migração para o Extremo Oriente; panfletagem contra as kolkhoz e contra os soviets na vila Rutiajevo, perto da cidade de Pierm; levante armado na vila Achap em março de 193077. Mas como acontecia na prática a resistência contra as coletivizações? Podemos exemplificar através dos conflitos decorrentes do plano de deportação criado pela OGPU78 para os kulaki dos Urais (incluindo a região de Taguil), em fevereiro de 1930. O poder bolchevique considerava que a operação não resultaria em protestos e terminaria bem rápido. Mas os responsáveis pela deportação estavam equivocados. A violência gerara resistência. Os acontecimentos principais aconteceram em 07 e 08 de março de 1930 na vila Sévernaia (40 km de Taguil). As tentativas de deportação de três famílias de pequenos agricultores, cujos chefes já haviam sido presos anteriormente, resultaram em forte protesto de toda a vila. A multidão de camponeses encontrou os policiais com os gritos: “Chegaram os ladrões, estão levando pessoas honestas, não entregaremos nossos vizinhos à violência!”, conseguindo impedir a deportação das famílias. Na segunda tentativa, os policiais encontraram uma multidão de 300 pessoas. Ouviam-se gritos: “Não temos kulaki, eles nos alimentavam, não permitiremos deportação, vão embora para não perder suas cabeças!”. De ambos os lados houve disparos de tiros. Com dificuldades, os representantes do poder fugiram. Os camponeses, armados, cercaram a vila com pontos de vigilância. A casa do conselho da vila foi cercada e os representantes do partido comunista e policiais presos. Na terceira vez, os intrusos foram expulsos pela multidão de 400 pessoas aglomeradas após o badalar dos sinos. Após isso, o Comitê Regional do Partido Comunista dos bolcheviques entregou à vila uma nota, na qual as ações dos camponeses foram classificadas como um levante contra o poder. Isso assustou os camponeses, cessando assim a resistência organizada. Mais de 50 funcionários da OGPU e comunistas ocuparam a vila, prendendo 20 lideranças locais (condenados como membros de organizações anti-soviéticas) e deportando suas famílias79. __________ 77. Plotnikov I. E. Sobre Ritmo e Formas de Coletivização em Ural// História Nacional, 1994, no 3. p. 87. Ivanova M.A Resistência à Coletivização Forçada// Totalitarismo e Individualidade. p.91. 78. Osnovnóie Gosudárstvennoe Politítceiskoe Upravlénie Îñíîâíîå Ãîñóäàðñòâåííîå Ïîëèòè÷åñêîå Óïðàâëåíèå (Administração Politica Estatal). 79. Dados do arquivo estatal da Federação Russa: ÍÒÔ ÃÀÑÎ. Ô.Ð-21. Îï.1. Ä.1219. Ëë.65-67.
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A arbitrariedade da violência estatal forçava os camponeses aos levantes. Nas regiões de migração forçada surgiam milhares de bandos. Formavam-se células insurgentes ligadas aos bandos formados pelos pequenos agricultores fugitivos (que fugiam para não serem deportados) e outros presos políticos. As manifestações dos insurgentes foram as seguintes: “Pela nova ordem sem comunistas”; “Pelo comércio livre”; “Pela não entrega do pão ao Estado”; “Pela permanência do que produzimos em nosso local de produção” 80. Outro exemplo de resistência encontramos nas minas de Turin, na primavera de 1930. Mais de 600 pessoas se rebelaram contra a tentativa da OGPU de mandar os migrantes forçados temporariamente deslocados nas minas adiante para a taigá (floresta russa). Os rebeldes conseguiram parar o comboio e libertar os presos, conclamando: “Exigimos terra e pão, não nos levarão vivos para a taigá” 81. Os protestos dos camponeses contra a política de coletivização e migração forçada traduziam suas carcterísticas populares. As formas dos protestos eram variadas: declarações orais e por escrito, sabotagem, greves, fugas, divulgação de discursos e práticas antiestatais, violações sistemáticas das leis da ditadura, saques da propriedade estatal e luta armada. As fugas de migrantes forçados, faltas injustificadas ao trabalho, sabotagens, baixa produtividade no trabalho e outras formas de resistência ativa influenciaram as mudanças administrativas do exílio. Na segunda metade de 1931 foi adotada a retirada de crianças e jovens das famílias de migrantes forçados, visando à criação de “cidadãos novos”. A necessidade de quadros qualificados para o trabalho impulsionou novas formas de organização no trabalho – de artél à brigada, utilizando a competição socialista e o trabalho de vanguarda (udárniki), assim como premiações para superação de metas. Nos exílios, em 1930-1931, não havia escolas nem professores, e apenas as crianças de migrantes forçados que moravam junto à população local estudavam. Até a primavera de 1931, somente 15,5% de filhos de migrantes forçados estavam nas escolas. Os adultos e jovens podiam assistir somente aos cursos pagos de alfabetização e participar dos “espaços vermelhos” (lugares de propaganda política, geralmente, painéis com imagens de líderes, slogans políticos e pequena biblioteca). No entanto, em março de 1932, os dados oficiais soviéticos indicavam que 82,2% de filhos de migrantes forçados, de oito a 11 anos de idade, já freqüentavam as escolas. Além disso, várias bibliotecas, espaços vermelhos e oficinas (drama, coral, música, ateísmo, política) estavam funcionando. __________ 80. Bazarov A. Kulak e Agrokulak. Tcheliabinsk, 1991. p. 268. 81. Dados do arquivo estatal da Federação Russa: ÍÒÔ ÃÀÑÎ. Ô.Ð-21. Îï.1. Ä.1219. Ë.178
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Os órgãos de vigilância política sempre temiam o grande número de professores (cerca de 42,2% no ano de 1932), também migrantes forçados. Com urgência, por meio da mobilização de quadros pedagógicos na Ucrânia, Cáucaso Setentrional e Bielorússia, eles foram substituídos pelos “verdadeiros patriotas de seu próprio país” 82. Através da implementação deste sistema educacional (muitas vezes entrelaçado com intensa propaganda política), os filhos de migrantes forçados incorporavam a nova moral comunista soviética, que os induzia a considerar seus próprios pais como “inimigos do povo”. 2. Pequenos agricultores presos e deportados Em 30 de janeiro de 1930, o Comitê Central do Partido Comunista lança decreto “Sobre a liquidação de propriedade dos pequenos agricultores nas regiões de coletivização total”. Segundo este decreto, os pequenos agricultores foram classificados em três categorias: Primeira categoria – contra-revolucionários, organizadores de atos terroristas e de levantes; Segunda categoria – contra-revolucionários, pequenos agricultores mais ricos e semifazendeiros; Terceira categoria – pequenos agricultores. Chefes de famílias de pequenos agricultores da primeira categoria eram presos, e seus casos encaminhados para a análise do “grupo de três” (assinavam sentenças de morte ou prisão perpétua sem julgamento) da OGPU, de comitês regionais do PC e de procuradorias. Membros de famílias dos enquadrados na primeira categoria e os pequenos agricultores da segunda categoria foram retirados de sua terra e deportados para as regiões longínquas, residindo em povoados especiais. Agricultores da terceira categoria foram estabelecidos nas novas terras das regiões de onde provinham, fora das kolkhoz83. Neste decreto, havia a estimativa de quantidade de pequenos agricultores de primeira e segunda categorias por regiões:84 __________ 82. Sapójnikov A. G. Sobre a Localização e Vida de Migrantes Forçados na Região do Ural no Início de Década de 1930// História das Repressões na Região do Ural Durante o Poder Soviético. Iekaterinburg, 1994. p.89. 83. Ivnítski N.A. Coletvização e Raskultachivanie (começo de década de 19 30). Moscou: Mestre, 1996. p.68. Zemskov V.N. Deportação de Pequenos Agricultores na Década de 1930/ / Pesquisas Sociológicas. 1991, no 10. p.3. 84. Ivnítski N.A. Coletvização e Raskultachivanie (começo de década de 19 30). Moscou: Mestre, 1996. p. 69.
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Regiões
Primeira categoria
Segunda categoria
Médio Volga _____________________________________________________________ 3-4.000 8-10.000 Baixo Volga 4-6.000 _____________________________________________________________ 10-12.000 Cáucaso Setentrional e Daguestão 6-8.000 20.000 _____________________________________________________________ Região Central de Terra Preta 3-5.000 10-15.000 _____________________________________________________________ Sibéria 5-6.000 25.000 _____________________________________________________________ Ural 4-5.000 10-15.000 _____________________________________________________________ Casaquistão 5-6.000 10-15.000 _____________________________________________________________ Ucrânia 15.000 30-35.000 _____________________________________________________________ Belorússia 4-5.000 6-7.000 _____________________________________________________________
Deportação em 1930-193185 Origem da deportação
Quantidade de famílias deportadas
Ucrânia
63.720
Cáucaso Setentrional
38.404
Baixo Volga
30.933
Médio Volga
23.006
Região Central de Terra Preta
26.006
Destino da deportação
Quantidade de famílias
Região Setentrional Ural Sibéria Oeste Sibéria Leste Iacútia Região de Extremo Oriente
19.658 32.127 6.556 5.056 97 323
Ural Cáucaso Setentrional Região Setentrional Ural Casaquistão Região Setentrional Ural Sibéria Leste Casaquistão Região de Extremo Oriente Médio Volga Região Setentrional Ural Sibéria Leste Casaquistão Região de Extremo Oriente Iacútia
25.995 12.409 10.963 1.878 18.092 5.566 663 620 11.477 2.180 2.500 10.236 1.408 2.367 10.544 1.097 354
__________ 85. Zemskov V.N. Destino da Deportação de Pequenos Agricultores// História Nacional. 1994. no1. p. 118-120.
92
Origem da deportação
Quantidade de famílias deportadas
Destino da deportação
Quantidade de famílias
Região Setentrional Ural Região de Extremo Oriente Iacútia Região Stentrional Ural
4.763 9.113 1.561 287
Bielorússia
15.724
Criméia
4.325
Tatarstão
9.424
Ural Região de Extremo Oriente
7.810 1.614
Ural
28.394
26.854 1.540
Região de Níjni Nóvgorod
9.169
Região Oeste
7.308
Basquíria
12.820
Região Setentrional Região industrial de Ivánovo
3.061 3.655
Região de Moscou
10.831
Região de Leningrado
8.604
Região de Extremo Oriente Sibéria Oeste Sibéria Leste
2.922 52.091 16.068
Oriente Médio
6.944
Casaquistão Transcaucásia
6.765 870
Ural Região de Leningrado Região Setentrional Ural Casaquistão Região de Níjni Nóvgorod Ural Sibéria Oeste Sibéria Leste Basquíria Região Setentrional Ural Ural Sibéria Oeste Casaquistão Ural Sibéria Oeste Sibéria Leste Iacútia Região de Leningrado Região de Extremo Oriente Sibéria Oeste Sibéria Leste Casaquistão Caúcaso Setentrional Ucrânia Oriente Médio Casaquistão Casaquistão
1.553 2.772
2.471 5.201 50 1.497 7.308 5.305 1.515 6.000 3.061 3.655 3.112 4.729 2.972 337 1.269 929 725 5.344 2.922 52.091 16.068 159 2.213 3.444 1.128 6.765 870
Iagóda86, chefe da NKVD (Comitê do Povo para os Assuntos do Internos), escreve87 que durante a deportação dos camponeses das regiões da coletivização total em 1931, foram deportadas 162.962 famílias (787.241 pessoas) – 242.776 homens; 223.834 mulheres; 32.0731 crianças – número __________ 86. Chefe da NKVD até 1936 quando foi demitido e virou Comissário do Povo para as Comunicações. Depois foi preso. Após ele Iejov virou chefe do NKVD. NKVD e OGPU são dois nomes para o mesmo departamento. 87. Nota a Stalin, 1931.
93
que, somado com os deportados em 1930, totaliza em 240.757 famílias (cerca de 1.158.986 pessoas)88. Todavia, a quantidade de pequenos agricultores registrados no local de exílio é bem inferior à quantidade dos deportados89. Distribuição de migrantes especiais no final de 1931 90 Região
Família 130.067 s/dados 66.206 20.647 10.497 s/dados 33.098 9.841 2.073 3.520 13.811 1.449 8.140 s/dados
Ural Região Setentrional Sibéria Oeste Sibéria Leste Extremo Oriente Aldan Casaquistão Setentrional Casaquistão Meridional Oriente Médio Ucrânia Cáucaso Setentrional Região de Nijni Novgorod Região de Leningrado Médio Volga
Pessoas 54.0818 131.313 283.890 91.331 43.746 5.600 149.617 42.347 10.472 15.057 55.869 5.915 32.905 12.500
Aonde estariam 382.012 pessoas? Muitos morreram durante a deportação – com o frio, a fome, as infecções, sem comida e sem água potável. Muitos fugiram. Muitos foram encaminhados para os campos de concentração. A deportação de pequenos agricultores continuou em 1932-1933.
__________ 88. Ivnítski N.A. Coletvização e Raskultachivanie (começo de década de 1930). Moscou: Mestre, 1996. p.194. 89. Nota de Iagóda para Stalin, 04/01/1932. 90. Ivnítski N.A. Coletvização e Raskultachivanie (começo de década de 1930. Moscou: Mestre, 1996. p.242.
94
95
91.720 40.440
Sibéria Leste
Extremo Oriente
10.471 14.934 55.318
Oriente Médio
Ucrânia
Cáucaso Setentrional
5.660
217 140 1.890 35 423 116 683 37.978
27.799 3 303 28 840 392 6.240 71.236
2
988
296
240
1.707
841
968 4.426
1.307
9.398
4.292
10.283
5.068
3.260
74.235
11.163
4.780
2.613
147
3.010
-
2.847
11.799
1.688
82
2.553
6.771
17.937
6.911
25.076 73.764 9.590 7.627 330
4.841
3.314 5.281 134
4.254 1.445 8
1.090
411
1.090
211
2.845
704
4.156
1.867
17.600 12.244 2.024 10.606
5.397 10.336 755 359 864
961 6.897
909 4.228 1.830 4.532
380 1524 679 302
740 3.140
318 1.614
7.333
51.706
8.240 21.344 22.122
188
901
2.022
4.664 15.571
15.616 40.205 17.943
19.319
7.648
32.401
5.335
50.618
13.436
29.559
37.896
102.487
5.544
40.563
91.789
227.684
112.266
201.502 89.754 207.010 79.676 376.440 1.142.084
18.191
5.342
4.341
356
5.906
526
31.332
13827
15.154
1.150
7.750
9.659
35.602
16.833
91. Dados do arquivo estatal da Federação Russa: ÃÀÐÔ, ô.9479, îï.1, ä.89, ë.206.
__________
105
54
465
146
703
383
499
425
1.476
78
531
1.079
3.975
1.594
1317.022 1 8 .0 5 3
Basquíria
To t a l
4.136
32.288
Médio Volga
Região de Leningrado
5.888
41.669
Casaquistão Meridional
Região de Gorki
139.039
Casaquistão Setentrional
4.724
265.846
Aldan
120.509
Sibéria Oeste
Outras RegistraRegistra- Nasci- Recém- Captu- Outras Total de Total de razões dos em dos em mentos chegados rados de razões de chegada Mortes Fugas saídas de saída chegada fuga 01/1933 01/01/1932 10.107 35.533 32.645 97.005 24.724 154.374 365.539 1.964 16.922 484.380 6.540
Região Setentrional
Ural
Regiões
Dinâmica da quantidade de migrantes especiais em 193291
Dinâmica da quantidade de migrantes forçados em 1932-194092 Número de
1932
1933
1934
1935
1936
1937
1938
1939
1940
migrantes forçados Janeiro
1.317.022 1.142.084 1.072.546 973.693 1.017133 916.787 877.651 938.552 997.513
Dezembro 1.142.084 1.072.546 973.693 1.017.133 916.787 877.651 938.552 997.513 930.221
Os migrantes forçados, deportados em 1930-1931, foram isentos de impostos até 01 de janeiro de 1934. A partir desta data, a isenção foi abolida e todos passaram a pagar os impostos como qualquer cidadão comum. Os migrantes forçados não tinham direito de sindicalização, e o Estado retinha 5% do salário para a manutenção de campos de concentração (GULAG’s) e de campos de trabalho, onde morava a maioria de deportados (até agosto de 1931, o Estado retirava 25% do salário. A partir de fevereiro de 1932, houve um decréscimo para 15%)93. No período inicial da coletivização, todos os kulaki deportados não tinham direitos eleitorais. A partir de 1933, os filhos dos deportados que atingiam a maioridade começaram a votar, desde que bem comportados no trabalho. Até 1935, os adultos readquiriram seus direitos eleitorais somente em casos individuais, após cinco anos de deportação e apresentando características positivas no perfil comportamental e profissional. O decreto do Comitê Central do PC de 25 de janeiro de 1935 devolvia os direitos eleitorais para os migrantes forçados, mas não permitia a saída dos locais de deportação. Durante o período entre 1934-1938, 31.515 de pessoas foram libertadas na condição de “deportados injustamente”, enquanto 33.565 crianças foram transferidas para os orfanatos, as casas de parentes ou “sob responsabilidade de terceiros”. Milhares de pessoas foram libertadas devido ao ingresso para os estudos, casamento com não-migrantes, e outras razões. No início da Segunda Guerra Mundial (junho de 1941), os migrantes forçados não foram alistados no exército. No entanto, posteriormente, NKVD divulgou uma nota estimulando a libertação mais rápida de jovens deportados com seu respectivo encaminhamento para o exército. Em 1942, 50.000 membros de famílias dos kulaki foram alistados para servir no Exército __________ 92. Dados do arquivo estatal da Federação Russa: ÃÀÐÔ, ô.9479, îï.1, ä.89, ë.216. 93. Zemskov V.N. Deportação de Pequenos Agricultores na Década de 1930// Pesquisas Sociológicas. 1991, no 10. p.8-9; Zemskov V.N. Destino da Deportação de Pequenos Agricultores/ / História Nacional. 1994. no 1. p. 118.
96
Vermelho. A mobilização terminou em novembro de 1942 com 60.747 de migrantes forçados alistados94. Todos os alistados para o exército, junto com os membros de suas famílias, tinham os direitos civis devolvidos, e recebiam os passaportes de identificação e isenção de pagamento da taxa de 5% para o Estado95. Durante 1943, 102.520 de pessoas alistadas no exército e membros de famílias foram libertados dos campos de trabalho. Além disso, durante 19411943, mais 136.240 migrantes forçados obtiveram a liberdade (62.808 pessoas, em 1941; 63.113, em 1942; 10.319 pessoas, em janeiro-março de 1943)96. A partir de setembro de 1944 foi interrompida a retirada de 5% de salários dos “ex-kulaki”, utilizada para a administração e a vigilância de campos de trabalho. Os migrantes forçados passam a pagar todos os impostos e taxas previstos pelo Estado soviético. Após o término da guerra, os migrantes forçados passam a ser libertados em massa. Mesmo assim, o governo do país não apoiou a iniciativa do Ministério do Interior para a libertação de todos os ex-deportados. Em 1947, 481.186 pessoas continuavam nos locais de deportação; em 1948, 210.556 pessoas; em 1949, 124.585 pessoas; e em 1952, 28.009 pessoas97. Os pequenos agricultores foram totalmente libertados somente em 13 de agosto de 1954, após a morte de Stalin.
__________ 94. Dados do arquivo estatal da Federação Russa: ÃÀÐÔ, ô.9479, îï.1, ä.107, ë.74; ä.113, ë.215. 95. Dados do arquivo estatal da Federação Russa: ÃÀÐÔ, ô.9401, îï.12, ä.207 (á/ë). 96. Dados do arquivo estatal da Federação Russa: ÃÀÐÔ, ô.9479, îï.1, ä.140, ë.12. ÃÀÐÔ, ô.9479, îï.1, ä.89, ë.218; ä.139, ë.29. 97. Zemskov V.N. Destino da Deportação de Pequenos Agricultores// História Nacional. 1994. no 1. p. 138-142.
97
anexo IV
In memoriam de Anna Politkóvskaia Anna Politkóvskaia (1958-2006), jornalista russa, foi assassinada em 7 de outubro de 2006, em Moscou. Em sua memória e para que não cesse o trabalho por ela desenvolvido, decidimos traduzir este trecho de um dos livros da autora. O livro é sobre a guerra na Tchetchênia, e o conto é a denúncia das torturas realizadas pelo exército russo. Anna foi uma das poucas jornalistas que abertamente denunciava os crimes cometidos na Tchetchênia publicando artigos, escrevendo livros, entrando com as ações de denúncia na justiça. No dia da tomada de escola em Beslan, em 1° de setembro de 2004, a jornalista foi vítima de uma curiosa infeção intestinal depois de ter bebido um chá no avião que a levava de Moscou à capital da Ossétia do Norte. Recentemente, a jornalista investigava as causas que levaram à morte de reféns em Moscou (em 2002, durante o espetáculo Nord-Ost). Na mídia internacional comentaram muito o assassinato, porém pouco foi dito sobre o trabalho da jornalista; e este relato é um bom exemplo para pensarmos na situação que possibilitou o crime e em seus possíveis agentes.
UMA GUERRA ALHEIA OU A VIDA ATRÁS DA CANCELA. TCHETCHÊNIA98. Campo de concentração comercial Em janeiro de 2001, haviam trazido para a revista onde trabalho99 as reclamações __________ coletivas de 90 famílias de moradores de vilas de um bairro 98. O texto a seguir é a tradução de um dos contos (com pequenas reduções) que faz parte do livro de Anna Politkóvskaia, jornalista assassinada em Moscou há duas semanas (em 7 de outubro de 2006). Politkóvskaia, Anna. Uma Guerra Alheia ou a Vida atrás da Chancela. Tchetchênia. Moscou, 2002. Edição realizada com apoio de Departamento de Comissário Superior da ONU para os Refugiados e das Fundações Ford e Mott. Ïîëèòêîâñêàÿ, Àííà. ×óæàÿ âîéíà èëè æèçíü çà øëàãáàóìîì. ×å÷íß. Ìîñêâà, 2002. Èçäàíèå îñóùåñòâëåíî íà ñðåäñòâà Óïðàâëåíèÿ Âåðõîâíîãî êîìèññàðà ÎÎÍ ïî äåëàì áåæåíöåâ, ôîíäà Ôîðäà è ôîíäà Ìîòòà 99. Anna trabalhou na revista Novaia Gazeta (Jornal Novo) até a data de sua morte.
98
montanhês da Tchetchênia: de vilas Makhkiety, Tovzieni, Selmentgauzen e Khottúni. O texto era surpreendente, pois centenas de pessoas clamavam por uma deportação voluntária o mais rápido possível, e para qualquer local da Rússia, mas fora da Tchetchênia. As causas: fome permanente, frio insuportável, ausência de médicos, completo isolamento do resto do mundo. E como uma causa em especial: as cruéis incursões punitivas que vêm realizando nestas vilas os militares deslocados nos arredores da vila Khottúni. Os fatos pareceram tanto fantásticos, quanto clamorosos. Então, foi preciso ir para aquele lugar e verificar as informações. A viagem começou em 18 de fevereiro. Só que aconteceu o seguinte: toda esta estória montanhesa, qualquer que seja o ponto de vista, se desmonta em pedaços incompatíveis. De um lado, dezenas de relatos aterrorrizantes, inquisidores sobre as torturas realizadas pelos federais100; expressões faciais esquisitas e alienígenas daqueles que sofreram os abusos por parte dos militares (quando a mão que anota os relatos congela de horror ao ouvir as estórias reveladas)... E de repente, como um grande pedaço do mesmo mosaico: os mesmos relatos, só que desta vez ao vivo, e não mais relatados. Que já estão acontecendo comigo. Os quadrinhos que ganham a vida para confirmar tudo que fora ouvido. E já é para mim que estão dirigidos os gritos: “Parada! Pra frente!”. E um cara do FSB101 que mal tinha saído das fraldas em cargo de alferes aspirante, com um sorriso enjoativo herdado de seus ancestrais de profissão de 1937, no meu ouvido (e não mais ao meu relatador recente) suspira várias baboseiras e sujeiras: “Te fuzilar seria pouco... Você está piscando demais, então está mentindo...”. Primeiro quadrinho. À espera da prisão. Vakha, da vila Tovzieni, é um homem forte de cinqüenta anos. Hoje em dia, ele se ocupa de tarefas comunais, mas antes, na época da União Soviética, foi do serviço secreto de segurança e professor da escola local. Voluntariamente, Vakha recolhe as informações sobre as atrocidades cometidas pelo exército russo. Ele também é comandante de grupo de autodefesa da vila e vive esperando pela prisão. Vakha conta histórias curiosíssimas sobre a curta permanência de Bassaev e seu grupo na vila. Conta como toda a população da vila torcia pela prisão tão esperada deste homem... Bassaev e seu grupo estavam fracos. E __________ 100. Assim chamam na Tchetchênia os integrantes do exército da Federação Russa. 101. Serviço Federal de Segurança, a ex-KGB: a qual Anna se refere neste parágrafo lembrando das repressões da década de 1930.
99
era somente querer levá-los presos. Porém, o exército russo que rodeava a vila, de repente se afastou e ficou longe: justo durante o período da permanência de Bassaev no local. E ele se foi. Quer queiram acreditar, quer não. E assim que os bandidos foram embora para as montanhas, os militares passaram a prender e a torturar os moradores da vila que não tinham nenhuma conexão com Bassaev. Deixando livres aqueles que realmente estavam manchados de sangue. Pois na vila todos sabem tudo sobre todos. O resultado: centenas de mortos. Centenas de desaparecidos. A lista destas pessoas, Vakha guarda num esconderijo. Segundo quadrinho. Bundas gostosas. Issa mora em Selmentgauzen. No começo de fevereiro ele ficou preso em campo de concentração no território de uma unidade militar do exército da Rússia nos arredores da vila Khottúni. Sobre seu corpo apagavam os cigarros, arrancavam suas unhas, batiam nos rins com garrafas pet cheias d’água. Depois o jogaram num buraco que os milicos chamam de “banheira”. Este buraco estava cheio d’água (e era no inverno) e após jogar os tchetchenos lá, os militares, em seguida, jogavam os petardos que enchiam o espaço de fumaça. Issa sobreviveu. Mas nem todos conseguiram. Issa não estava sozinho neste buraco: estava com mais cinco pessoas. Os oficiais que os interrogavam diziam aos tchetchenos que eles têm bundas bonitas e os estupravam. E justificando tais ações diziam: “Suas mulheres não nos dão”. Agora os tchetchenos estuprados dizem que se vingar “pelas bundas gostosas” será a tarefa de suas vidas e dizem que “seria melhor nos fuzilar que...”. Issa não conseguiu se recuperar do choque. Ele foi liberado após pagamento de resgate juntado pela vila inteira. Antes de liberá-lo os militares ainda zombaram dos parentes que se reuniram na frente da guarita da zona do regimento tentando descobrir o destino daqueles que estavam presos nos buracos. A linha de produção de seqüestros e desaparecimentos sob nome de “caça aos bandidos” não acaba. Então, chegou a hora de deduzir o seguinte: a segunda guerra na Tchetchênia somente mudou o vetor dos crimes que estão sendo realizados. Nesta terra, aquilo que a “operação contra-terrorrista” teria que combater: os seqüestros desenfreados, a escravidão, o comércio de escravos e as 100
negociações de “mercadorias” vivas, – tudo isso é praticado pelos atuais donos de situação: pelos militares federais. Ou seja, pelos funcionários do Estado, em nome do Presidente e da Constituição da Federação Russa. Estamos sentados no único quarto minúsculo de Issa, onde só há o fogão e a tarimba. A família é muito pobre. A filha de Issa que tem quatro anos me olha horrorizada, sem piscar. Em seus olhos cinzas gigantes de medo, nos olhos deste ser magrinho e desnutrido me vejo como um urso que veio para devorá-la. A mulher de Issa explica: – Ela entende que você não é daqui, que você é igual àqueles que espancavam meu marido na frente dela. E o levaram. Terceiro quadrinho. Torturas com eletrochoque. Rozita da vila Tovziéni quase não mexe os lábios. Seus olhos se fixaram e olham para algum lugar dentro do próprio ser. Rozita não aparenta alguém vivo. Ela ainda tem dificuldades em andar: suas pernas e seus rins estão doendo. Um mês atrás Rozita teve que passar pelo campo de filtragem (como ela denomina o lugar) acusada de “acolher os combatentes”. Isto gritavam para ela os militares que a mandaram para o “campo”. Rozita já fez muitos anos. Ela tem muitos filhos e alguns netos. A neta menor, de três anos, que antes não falava russo, mas que viu como destrataram sua avó, agora grita as palavras em russo: “Deitada!” e “Pro chão!”. Rozita foi levada de casa na madrugada; a casa foi cercada e ela não teve muito tempo para arrumar as coisas. Ela foi jogada no buraco ajeitado para estes casos no território da unidade militar nos arredores da vila Khottúni. – Empurravam você? Pisoteavam você? – Sim, é comum por aqui. Mas que palavras são essas? “É comum...”. Com as pernas dobradas, Rozita ficou no buraco gelado, no chão de terra, durante 12 dias de janeiro. O soldado que vigiava o buraco ficou com pena e numa das noites lhe jogou um pedaço de carpete. – Coloquei por baixo de mim. O soldado, ele é um ser humano, – Rozita mexe com dificuldades seus lábios. “Seu” buraco não era muito profundo. Não mais de um metro e vinte. E foi feito de tal jeito que a pessoa se sentia desprotegida de frio no meio do inverno e das montanhas: não havia telhado e fazia frio 24h por dia. E não dava para ficar em pé, pois o buraco é coberto com uns troncos grandes que não dá para mover com a cabeça. E assim passaram os 12 dias: de cócoras ou sentada naquele pedaço de carpete. 101
Mas por quê? Rozita acabou não sabendo quem foi que ela “acolheu”. Nenhuma acusação foi apresentada a ela. Porém, ela foi interrogada três vezes. Os oficiais jovens que se apresentaram como funcionários de FSB, prendiam fios elétricos nas mãos da Rozita. Fios nus nos dedos de uma mão e da outra, conectados atrás do pescoço. – Sim, eu gritava muito. Confesso. Doía muito quando a corrente elétrica passava por mim. Mas o resto de tempo do interrogatório eu agüentei em silêncio. Eu tinha medo de irritá-los mais ainda. Os caras do FSB falavam: “Você está dançando mal. Temos que aumentar a voltagem”. E, de fato, aumentavam. De “dança” eles chamavam as convulsões do corpo de Rozita. E Rozita gritava mais e mais. – E o que eles queriam ao torturar? – Eles não haviam perguntado nada de específico. O “específico” fora discutido com os parentes de Rozita. Por meio de intermediários, os parentes receberam a ordem: procurar dinheiro para o resgate. E acrescentaram que seria melhor se apressar, pois Rozita não está suportando bem o buraco, ela é capaz de não agüentar. Primeiro, os militares pediram 5.000 dólares. Os moradores da vila (aqui, a comunidade inteira costuma juntar o dinheiro para os resgates) responderam que mesmo vendendo todas as propriedades seria impossível conseguir tal montante de dinheiro. E os militares foram compreensíveis, eles dividiram a soma por 10. Passado um dia, o dinheiro foi trazido. Rozita, quase sem conseguir andar, saiu para a liberdade, à guarita do deslocamento militar. E aí? O que nós temos? Quem é ela? A avó Rozita da vila Tovziéni? A combatente? Se não, por que ela foi presa? Se sim, por que foi liberada? E, em qualquer um dos casos, por que foi torturada? E por que ela foi usada como uma mercadoria “viva”? Há tantas perguntas sem respostas... As perguntas passam a ser retóricas. Está na hora de fazermos uma conclusão preliminar: no território de uma unidade militar, deslocada nos arredores da vila Khottúni da região Vedeno (onde estão deslocados o 45o Regimento Aerotransportado e 119o Regimento de Desembarque Aéreo do Ministério de Defesa, assim como as pequenas unidades do Ministério do Interior, da Justiça e do FSB) existe um verdadeiro campo de concentração, e ainda com uma vocação comercial.
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Quarto quadrinho. O adestrador dos porquinhos. O comandante do 45o Regimento Aerotransportado é um homem interessante e determinado. O coronel serviu no Afeganistão e na primeira guerra da Tchetchênia. Ele xinga a guerra, pensa alto sobre seus filhos que crescem com um pai ausente, e está pronto para terminar a “segunda guerra tchetchena” logo, o mais rápido possível, pois sente-se entediado com ela. ... Estamos passeando pelo regimento. O comandante mostra o refeitório, bem simpático para as condições de uma campanha militar no meio das montanhas. Ele me leva para o armazém lotado de carne em conserva e outros mantimentos: fato que, segundo ele, exclui por completo a possibilidade de seus soldados saquearem as vilas e roubar gado (ações apontadas por todos os moradores). O comandante me mostra os buracos, onde após as “limpezas”102 os tchetchenos ficam presos. O coronel é muito protetor e me segura pelo braço para que eu não escorregue no barro lamacento para um dos buracos de seis metros de profundidade. O buraco é exatamente assim como as testemunhas o descrevem. Três metros por três. Uma corda desce para o precipício escuro. Por esta corda saem para os interrogatórios. Apesar de um frio intenso, os buracos cheiram bem forte. Aqui é assim, os tchetchenos devem fazer suas necessidades debaixo de seus próprios pés. E continuar em pé no mesmo pedaço de terra. Ou sentar, caso tenha a vontade. O comandante sente um certo desconforto por tudo o que se passa e revela algo surpreendente: um dia veio para o regimento o próprio chefe de agrupamento, o general Baranov. Ele viu os tchetchenos presos no meio do campo e para que eles não interferissem na paisagem, mandou colocá-los nos buracos que, inicialmente, foram feitos para enterrar o lixo. Daí pra frente, esta prática tornou-se costumeira. O coronel foi sincero: – Colocamos aí somente os combatentes. Não colocaríamos aí as pessoas comuns... – Mas, neste caso, por quê soltam os presos? Por quê não são abertas os processos judiciais? Não os transferem para a procuradoria? – Não é nossa culpa, – pronuncia o coronel com uma voz trágica. As perguntas ficam suspensas no ar. __________ 102. Operações de limpeza (zatchistki): incursões de exército russo nas vilas tchetchenas, causas de mortes de civis, quando muitas pessoas vão presas sem nenhuma acusação e as casas são saqueadas e destruídas.
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O coronel não acha as palavras. Além de: – Olha, você sabe como funcionam as coisas... – Não, eu não sei. Nos despedimos. Quinto quadrinho. Provado pela própria experiência. Passaram-se dois minutos após a conversa com o coronel e fui presa. Foi assim: primeiro, os desconhecidos de uniformes militares durante mais de uma hora me ordenaram ficar parada no meio do campo. Depois veio um blindado com os militares armados e com um oficial de etimologia desconhecida. Prenderam-me, puseram-me no carro e fomos embora. “Teus documentos são falsos; teu Iastrjémbski ajuda Bassaev, e você é uma combatente”, – assim me disseram no local aonde fui trazida. Depois foram os interrogatórios demorados numa barraca. Sem registros. Sem acusação oficial e sem documentos. Os oficiais jovens, um após outro, sem distintivos me lembram que são de FSB e que seu único comandante é o próprio Pútin, presidente do país, fizeram-me compreender que a liberdade terminou: não se pode andar, não se pode telefonar, todos os objetos pessoais são postos na mesa. Prefiro omitir os detalhes mais repugnantes, pois são inconvenientes. No entanto, justamente estes detalhes (os carrascos não podiam adivinhar) serviram de principal confirmação de que tudo que os tchetchenos haviam me contado sobre as torturas e os sofrimentos não era mentira. As informações se confirmavam a cada hora que se passava. Periodicamente, os oficiais jovens foram substituídos por um de patente superior, de rosto moreno e olhos arregalados e tontos. Seu sobrenome era Durakov103, fazer o quê! De vez em quanto, Durakov mandava todo mundo embora da barraca, ligava uma musiquinha que considerava “lírica” e mencionava a solução feliz de nosso conflito, caso eu fosse um pouco mais “conciliadora”: acho que as explicações de como Durakov compreendia esta minha “conciliação” são desnecessárias. Os “jovens” que o substituíam eram mais perversos, eles “trabalhavam” meus pontos fracos: olhavam as fotos de meus filhos falando daquilo que teria que ser feito a eles “por causa da mamãe”... Finalmente, Durakov, que com freqüência rasgava a camisa com os gritos: “Eu derramo meu sangue nesta guerra!”, olhou para o relógio e me disse: “Vamos. Vou te fuzilar”. Levou-me da barraca, e já estava completamente escuro. Não dá para enxergar nada nesta terra privada de eletricidade. Andamos um pouco e __________ 103. Durak, em russo, significa “babaca”.
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ele pronunciou: ”Quem não se escondeu, não é culpa minha!”. E aí tudo se iluminou com os disparos da artilharia. O coronel ficou contente porque “funcionou” e que eu me agachei aterrorizada. Depois, ele me levou até uma peça reativa de artilharia “Grad” no momento de disparo programado: foi para isso que ele tinha verificado a hora. – Bem, vamos embora! E logo, da escuridão surgiu uma escada levando para baixo. “É a sauna. Dispa-se”. Ao perceber que não houve o efeito esperado ele ficou muito bravo: “Eu te entrego minha alma e você, sua praga combatente!!!” E acrescentou: “Lembra? Quem não se escondeu, não é culpa minha!”. Na sauna entrou mais um oficial do FSB (ele mesmo se apresentou desta maneira). O coronel reportou: “Não quer se lavar”. O oficial colocou as garrafas que trazia sobre a mesa e me levou para fora. E novamente ficamos andando pelo campo escuro e novamente tive que descer uma escada. Desta vez, foi uma casamata que me serviu de abrigo até minha libertação no dia 22 de fevereiro. Na parede estava um panfletinho: 119o Regimento de Desembarque Aéreo. E uma explicação: dezoito de seus integrantes são Heróis da Rússia. Trouxeram-me um chá. Tomei e fiquei tonta, as pernas ficaram bambas e tive que pedir para sair. Fiquei vomitando. Eu exigia: me apresentem uma acusação, façam um protocolo, me mandem para a prisão, aí os parentes poderão me trazer pasta e escova de dente. Não! Uma combatente! Se você trabalhasse para nós, você iria ter de tudo! Ao invés disso, você foi ver os buracos! Uma praga! Filha da mãe! Bassaev pagou por você a Iasrjembski. Iastrjembski pagou a teu chefe de redação. E o chefe de redação te enviou para cá. Oh, o horror da estupidez militar! Na manhã de 22 de fevereiro, na casamata, entrou um oficial e disse que seria meu acompanhante até Khankala104 e que estava com todos meus documentos e pertences que “serão entregues ao FSB”. Do lado do helicóptero que iria me transportar estava o próprio Durakov que se despediu de seguinte maneira: “Se eu pudesse, te fuzilaria”. Assim que a máquina pousou em Khankala, outros oficiais me pegaram. Estes eram da procuradoria militar de Grozny, e me sinto grata a eles por não precisar novamente ficar presa sob guarda dos funcionários do FSB que gravemente prejudicaram sua saúde psíquica durante a “operação contra__________ 104. Em Khankala, nas proximidades da capital, Grozny, encontra-se a maior base militar russa na Tchetchênia.
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terrorista”. Expliquei-me na procuradoria. Meu acompanhante também foi interrogado e revelou-se que além de minha credencial de jornalista N1258, de 12 de janeiro de 2001, emitida pelo ajudante do presidente da Federação Russa, Serguei Iastrjémbski, não havia mais nada. Pois é: o coronel estava mentindo. Não havia nada, nem fitas do gravador, nem filmes fotográficos – tudo foi roubado na unidade militar nos arredores da vila Khottúni. Escrevi uma declaração ao procurador do exército exigindo incriminação de meus seqüestradores e torturadores. Fiz isso sem muita esperança. Entreguei minha credencial ao procurador para a realização de uma investigação oficial sobre a falsidade ou não de um documento emitido pelo departamento do senhor Iastrjémbski. Também fiz exame de corpo de delito no hospital de Khankala com o intuito de evitar quaisquer insinuações futuras do FSB, que, aliás, começaram logo à noite. No jornal da noite, o senhor Zdanóvitch, chefe do centro de imprensa do FSB, declarou que segundo seus informantes a “jornalista Politkóvskaia usa entorpecentes e foi por isso que ela viu uns buracos nos lugares onde estes não existem; e que devido a esses fatos a jornalista foi encaminhada para os exames médicos”. O pesadelo acabou com o vôo para Mozdok. Daí, os membros do governo da República Tchetchênia e seu chefe Serguei Iliasov em pessoa, me transferiram rapidamente para Piatigórsk e de lá para Moscou. E foi assim que os pedaços desconexos desta história toda se compuseram em um todo. E chegou a hora de deduzirmos o seguinte.... Meus caros, tudo isso está se passando dentro de nosso próprio país. Neste exato momento de nossas vidas. Com a Constituição vigente e com sua garantia presente: o presidente Pútin que se declara “decidido e firme”. Com a procuradoria em funcionamento. Com os defensores de direitos humanos, oficiais e das ONG´s. Com o lorde grisalho e bonito105 cansado de viajar de Estrasburgo para a Tchetchênia... Mas está tudo aí: os buracos, os fios elétricos, as convulsões, os interrogatórios... E ninguém ousaria dizer que eu não tinha visto nada disso, ouvido ou sentido. Tudo foi provado pela própria experiência. Fevereiro de 2001 P.S. Curta adição de 2002. Os buracos usados para prisões e torturas nos territórios de unidades militares deslocadas na Tchetchênia há tempo não são novidade. Jogam neles os tchetchenos e os soldados que cometeram algum crime. Estes “buracos” já possuem uma descrição jurídica devido ao caso de Budanov, o comandante de 160o Regimento de Tanques, que seqüestrou e matou uma jovem __________ 105. Encarregado da defesa de direitos humanos da União Européia em 2001.
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tchetchena Elza Kungaeva. Faz parte deste caso a descrição do episódio do oficial Roman Bagreev que se negou de cumprir as ordens do comandante embriagado e foi parar num dos buracos, onde se encontravam alguns tchetchenos, prisioneiros ilegais. No entanto, Issa, Vakha e Rozita, testemunhas e vítimas destes buracos, há tempo foram fuzilados, logo após nosso encontro. Eles foram assassinados de maneira similar: vieram homens desconhecidos num blindado, conferiram o nome, e dispararam os Kalachnikov. Durakov subiu de cargo: a guerra possibilita as carreiras rápidas. Zdanóvitch virou general do FSB e está “infiltrado” na mídia independente: hoje em dia ele é vice do chefe de segundo canal da TV estatal. Andam dizendo que lá ele é responsável pela segurança de tudo!
Protesto em Pierm contra a indústria bélica (2004).
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Anexo V – Pierm e a luta antimilitarista na Rússia contemporânea Na cidade de Pierm (Ï å ð ì ü), região do Ural, cerca de 1.000 km a leste de Moscou, o movimento social organizado localmente, procura evitar a instalação de uma usina de incineração de mísseis nucleares. Grupos de ativistas, em conjunto com a população da cidade, procuram impedir a continuidade do programa de incineração de mísseis. Tal luta transcende à questão específica da usina, abarcando outros problemas derivados da gigantesca estrutura da indústria bélica russa. A usina escolhida para o programa de queima de mísseis situa-se em Zakamsk, um pequeno distrito da cidade de Pierm. Assim como as demais indústrias bélicas russas, a usina Zavod imieni Kirova (Kirovskii zavod) encontrou seu apogeu durante o período da corrida armamentista. Ainda hoje produz e testa os motores de mísseis balísticos. Todavia, após a dissolução da União Soviética no início dos anos 90, a usina incorporou outras atividades em sua cadeia produtiva. Através dos acordos internacionais de eliminação de armamentos nucleares, e com o aval do então governador de Pierm, Yuri Trutnev (atual ministro de recursos naturais do governo russo), a usina Kirovskii zavod incluiu a incineração de mísseis com combustível sólido no novo processo produtivo. O programa de destruição dos mísseis intercontinentais com combustível sólido em Pierm está sendo planejado há um ano e meio, visando utilização de quatro indústrias locais – Kirovskii zavod é a primeira delas. Kirovskii zavod (FGUP Perm Factory Mashinostroitel) foi licenciada para ser a primeira empresa russa de incineração dos mísseis com combustível sólido – SS-22 Scalpel, com raio de alcance de 10.000 km. Cada foguete pode carregar 20 ogivas nucleares de 550 toneladas (46 vezes mais potente que a bomba atômica lançada em Hiroshima). O programa de queima de mísseis está sendo viabilizado com fundos financeiros estadunidenses liberados a partir da legislação Lugar-Nunn, vigente há 13 anos. A verba é remetida para a empresa russa Mashinostroitel através da transnacional Washington Group International (http:// www.wgint.com/) que, atualmente, opera em 30 países e possui 26.000 empregados. Em 2003, Richard Lugar, membro do congresso dos EUA, visitou o complexo industrial de Pierm, acordando o início das atividades industriais bélicas junto ao governador local O. Tchirkunov. No procedimento utilizado para a queima dos mísseis, retira-se primeiramente a ogiva nuclear. Em seguida, os mísseis com combustível sólido (alojado dentro dos motores) e corpo ligeiramente radioativo são incinerados a uma temperatura média de 3.500 graus Celsius. Segundo especialistas russos e estadunidenses, dióxidos altamente tóxicos são liberados durante a incineração. Mesmo em poucas quantidades, tais dióxidos se acumulam 108
facilmente nas cadeias alimentares, contaminando organismos vivos e iniciando processos cancerígenos. Os dióxidos liberados são quimicamente estáveis, ou seja, indissolúveis organicamente durante décadas. Tecnologias seguras de reciclagem dos motores de mísseis com combustível sólido não existem. Além dos dióxidos que contaminam a atmosfera da cidade, a alta periculosidade da ferrovia que transporta os mísseis para a fábrica também representa outro agravante. Atravessando a cidade, os trilhos encontram-se em péssimas condições estruturais, ocasionando freqüentes acidentes. Em 14 de julho de 2004, por exemplo, um vagão de trem que transportava ácido hidroclórico descarrilou dos trilhos da ferrovia, a 400m da usina Kirovskii zavod. Apesar da ausência da análise estatal de impacto ambiental – pré-condição para o início de quaisquer atividades bélicas similares à incineração de mísseis balísticos –, a empresa russa Mashinostroitel já anunciou a construção de painéis de queima dos mísseis e um forno. Os projetos referentes aos fornos e ao galpão de estoque dos mísseis, que constituem apenas dois da dezena de itens infra-estruturais necessários para a execução do programa, foram qualificados de altamente vulneráveis e perigosos por analistas independentes consultados pela comunidade, neste caso professores doutores em química e biologia da Universidade Estatal de Pierm. Apesar das dificuldades para obter informações sobre os processos industriais do programa em curso, o diretor da usina Kirovskii zavod já confirmou a queima de sete mísseis SS-24 de 98 toneladas. A usina Kirovskii zavod, que em 2004 completou 70 anos, é rigidamente cercada e vigiada pelas forças armadas russas, impedindo tanto o acesso da população como também o conhecimento público das atividades industriais bélicas. Sua extensão ultrapassa 12km, e o contingente de trabalhadores do complexo industrial chega a dois terços dos 100.000 habitantes de Zakamsk (Çàêàìñê). As condições dos trabalhadores dessa usina não são menos aterradoras: salários atrasados há mais de três meses, constante ameaça de desemprego, pressões cotidianas para a manutenção do sigilo dos processos e atividades realizados no interior da fábrica, condições de trabalho altamente perigosas sem qualquer adicional por atividade de risco. Esse último aspecto do panorama trabalhista é reforçado pelo terror impregnado na comunidade advindo do estado de saúde dos trabalhadores aposentados, que apresentam quadros clínicos irreversíveis causados por contaminação. As estratégias de ação organizadas pela população, contrária à queima dos mísseis e foguetes em Pierm, estão impulsionadas pelo sucesso de protestos populares antecedentes. No início da década de 90, a população de Pierm conseguiu impedir a instalação do programa de queima de mísseis. 109
Adiando forçadamente as atividades industriais, o governo russo transferiu a realização do projeto para a cidade de Votkinsk (Âîòêèíñê), em uma usina situada a oito quilômetros desta cidade de 100.000 habitantes. Em 2001, manifestantes em Votkinsk pressionaram o governo local e também obstruíram a execução do programa. Assim, o governo russo obrigou-se a retornar para o governo de Pierm a responsabilidade pelo empreendimento bélico. O governo local já gastou a verba fornecida há sete anos pelo convênio russo-estadunidense que instituiu o programa de queima de mísseis. Pressionado pela possibilidade de investigações acerca do desvio da verba, o governo de Pierm utiliza recursos do orçamento público para a continuidade do projeto. Atualmente, a resistência contra o programa de queima de mísseis em Pierm possui amplo apoio popular, principalmente da comunidade de Zakamsk, além das ações de cinco grupos de ativistas que atuam na cidade: Movimento Resistência Anarco-Ecológica, União da Segurança Química, Movimento Autônomo de Moscou e outras cidades russas, Movimento contra a Violência de Ekaterinburgo, Guardiões do Arco-Íris. As estratégias de resistência utilizadas pela população de Pierm e pelos grupos de ativistas englobam uma gama muito variada de ações: acampamentos permanentes de protesto na frente da usina Kirovskii zavod, bloqueios de prédios da administração, panfletagem, reuniões públicas, performances teatrais, atos e manifestações. As audiências públicas discutem o programa de queima de mísseis. Em novembro de 2005, durante a queima de um dos mísseis, a unidade da fábrica que abrigava o forno explodiu. Segundo testemunhas, uma nuvem preta saiu da fábrica, e os moradores de Zakamsk sentiram dores na garganta e dificuldades para respirar. Porém, este acidente não interrompeu a operação, e nos dias posteriores os reatores foram queimados a céu aberto. O acidente foi reconhecido pelas autoridades russas. O ministro de defesa visitou a cidade, mas “não detectou nenhuma irregularidade”. Enquanto isso, a população de Zakamsk sofre agravamentos de doenças respiratórias. Em dezembro, a justiça declarou a queima uma atividade irregular e criminosa que viola as normas de segurança, preservação de meio ambiente e saúde pública. Porém, as queimas continuam.... Maiores informações: www.seu.ru (União pela segurança química); perm_lager@lists.mutualaid.org - lista de discussão sobre situação em Pierm.
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Anexo VI – Poesia popular tchetchena Três vezes davam o leite para a terra sorver E três vezes arrancavam o solo E só quando a terra negou-se a sorver Colocadas as primeiras pedras; Oito pedras gigantes que formariam as quinas da torre E cada pedra valia um touro e em peso – oito touros. Cada pedra doze touros carregavam Trincando seus cascos a tamanha força E cada pedra lapidavam por doze dias quatro lapidadores... Dos vários locais da montanha trouxeram pedaços de várias pedras que, juntados com massa, tornavam-se um todo indissolúvel. Primeiro andar está terminado Aqui nunca passa o dia Aqui os presos titilando correntes indagarão sobre o destino! Segundo andar O teto está feito e a corrente do forno está pendurada Aqui a família encurtará seus dias no caso da guerra Quarto andar Aqui ficarão os guardiões, revezando-se à janela. E os quarto lados do mundo vistos na palma da mão. Assim as pedras deitavam em uma fila após outra fila, Andar após andar crescia a torre. E assim no dia 360 terminou Iand o quinto andar! Aqui ficará o telhado leve como a luz Construído como um cone reto – ereto As pedras se deitam numa escada, Espremendo-se para cima E seladas por finas lascas de pedra. Está terminada a canção de trabalho e das pedras – É impossível estar mais acima: Sobre a cabeça as nuvens andam deslizando, o sol se põe. Atravessando Djerakh a torre lança sua sombra. Assim o dia 365 virou a última pedra.
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Campos de refugiados tchetchenos na InguchĂŠtia (2002)
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Imagens de Grozny
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Protestos contra a guerra
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Protestos contra a indĂşstria bĂŠlica em Pierm (2004)
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