A Tarde

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BAHIA EDITORA-COORDENADORA

Marlene Lopes

| BAHIA |

IRACEMA CHEQUER | AG. A TARDE | 13.9.07

SALVADOR, DOMINGO, 2/11/2008

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DENGUE Secretaria de Saúde de Ilhéus deu o resultado do Levantamento Rápido de Infestação pelo mosquito da dengue, realizado semana passada. Foram identificados criadouros em 2,9 casas num conjunto de 100 visitadas, índice duas vezes maior do que o recomendando pela OMS.

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LAPÃO ❚ Na cidade que nasceu sobre uma gruta, na região de Irecê, continua mistério sobre uma fenda que divide a praça ao meio

Realismo fantástico no sertão FOTOS FERNANDO VIVAS | 17|10|2008

EMANUELLA SOMBRA esombra@grupoatarde.com.br

Alheio ao bochincho, o radiestesista Arlindo Dourado, 54, segue uma trilha invisível à procura de lençol freático. O pêndulo de zinco em formato de ômega, segurado com as duas mãos, vai oscilando para baixo até parar, firme, feito um ímã atraído por uma força invisível debaixo do chão. “Aqui tem uma veia d’água”, diz para si mesmo. A multidão em redor ignora. Os tripés da câmera filmadora exercem um magnetismo maior. Lapão vai aparecer no Jornal Nacional. Um grupo de geólogos examina as fendas enquanto o microfone externo se esconde do enquadramento. “Schhhh. Silêncio! Assim não dá pra gravar!”, berra o repórter cinematográfico. Alguns caçoam com um muxoxo, a maioria respeita. A segunda tomada é com o fazendeiro que viu uma fenda de um palmo de largura dividir sua propriedade rural ao meio – assim, do dia para a noite. “Meu medo é que isso se afunde, se arrebente cada vez mais e a gente vá junto com o buraco”, diz, num roteiro pré-ensaiado. CEM ANOS– O texto pequeno do

Edelvira de Castro: “Quer que eu chegue mais perto do buraco?”

agricultor Gildásio Paiva, 54, o Dazão, protagoniza a versão editada, dois dias depois, em cadeia nacional. O teor apocalíptico vem de muito antes. Do terreno calcário de onde começou a brotar a erosão, as lendas começaram a germinar ainda por volta de 1900, duas décadas antes de Dias Gomes e Gabriel García Márquez descerem à Terra. Ali, uma espécie de realismo fantástico sertanejo foi fincando raiz. Lapão vai afundar daqui até sete

léguas, diziam as más línguas proféticas. A Macondo baiana cresceu em torno de uma gruta, hoje, cartão-postal da cidade. Com atuais 27 mil habitantes, civilizou-se no compasso das antenas parabólicas e lan houses, que já nem causam tanto frisson. Nas algarobas da praça mais antiga, a modernidade exerceu o poder do concreto e da motosserra. “Nesta rua, era cada pedra, cada árvore que você não via as casas do outro la-

Galvani continua extraindo água A utilização de poços artesianos no município de Lapão, a 500 km de Salvador, continua ilegal em três propriedades rurais que cedem água à mineradora Galvani, beneficiadora de fosfato para a produção de fertilizantes. Conforme A TARDE constatou há duas semanas, a empresa adquire, diariamente e desde abril passado, cerca de 1.740 m³ de água irregular de perfurações com outorga de agricultura. O volume dá para encher 3,7 piscinas semi-olímpicas por dia. A escassez hídrica no subsolo e a perfuração exagerada de poços, de acordo com o Instituto de Pesquisa Tecnológica de São Paulo (IPT), estão associadas às rachaduras que apareceram no chão e em residências locais. Lapão tem cerca de 60% de poços clandestinos segundo o Instituto de Gestão das Águas e Clima (Ingá). São 1.060 legalizados e cerca de 2 mil irregulares, média de um poço artesiano para cada 8,8 habitantes. Para o Ingá, o problema se estende a toda a microrregião de Irecê. “Houve um rebaixamento do lençol freático, mas, assim como

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Em outubro, a Companhia Baiana de Pesquisa Mineral (CBPM) e a Defesa Civil inspecionaram as rachaduras, e, com a ajuda de um geólogo do Instituto de Pesquisa Tecnológica (IPT), descobriu-se que a erosão geológica, natural em solo calcário, foi agravada pela ação antrópica. a seca, a penetração de água com as chuvas desta época do ano pode acelerar o processo de erosão natural em terrenos calcários”, alerta o geólogo Adalberto Azevedo, do IPT. De acordo com o especialista, que encaminhou relatório à Prefeitura Municipal de Lapão, um levantamento geofísi-

co poderá precisar quais as áreas atingidas, e se há risco de permanência de moradores naqueles locais. “Ainda assim, é uma área onde não há risco de colapso iminente”, tranqüiliza. Segundo Azevedo, foi recomendado aos poderes municipais mais controle no bombeamento dos poços, desde que não haja impacto junto à população dependente da agricultura. “Se a irrigação e a mineração forem interrompidas, o povo daquela região será o maior prejudicado; é preciso haver uma compatibilização de fatores”. Na última terça-feira o Ingá constatou infração cometida pela mineradora e multou a Galvani no valor de R$ 12 mil. De acordo com o diretor-geral do instituto, Júlio Rocha, se comprovada a persistência da irregularidade, a empresa poderá ser interditada. Em esclarecimento através de sua assessoria de comunicação, em São Paulo, a Galvani admitiu a continuidade do bombeamento da água, alegando que a interrupção no fornecimento hídrico carece de “um planejamento maior”.

Eunice Martins, 88 anos: “Essa história de que Lapão vai afundar eu conheço desde menina”

do”. Saudosista, Eunice Martins, 83, lembra a origem das lendas. “Essa história de que Lapão vai afundar eu conheço desde menina. O povo também contava que na seca as vacas entravam na gruta pra beber água e se escutava o chocalho lá longe, como se estivesse debaixo da terra”, conta. Madrugada de domingo, véspera das eleições municipais, a aposentada ouviu um estrondo. A poucos metros da Gruta do Lapão, o portão dos fundos se

tremeu como numa explosão. No dia seguinte, rachaduras cortavam uma rua inteira. Na ocasião, nem Eunice, nem quase ninguém, se deixou abalar. Um ano mais moça, Edelvira de Castro lembra que medo, mesmo, só sentiu quando pequena. “No passado, as pedras do Lapão fediam a enxofre e, se você amarrasse um objeto pesado num barbante e soltasse na água, percebia que havia uma correnteza por baixo. Eu lembro que caíram

duas pessoas lá dentro e nunca se acharam os corpos”. “Era um terror. Naquela época, eu morava numa fazenda e, quando falavam na tal Gruta do Lapão, a gente morria de medo”. Hoje, posar diante do abismo em torno do qual se afixaram bancos de madeira é tão corriqueiro quanto observar o movimento da porta de casa. “Quer que eu chegue mais perto do buraco?”, brinca, à procura do melhor ângulo da foto.


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