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escola de psicanรกlise dos fรณruns do campo lacaniano - brasil

Stylus revista de psicanรกlise

Stylus Rio de Janeiro

nยบ28 p.1-160

junho 2014


© 2014, Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (AFCL/EPFCL-Brasil) Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem permissão por escrito. Stylus Revista de Psicanálise É uma publicação semestral da Associação Fóruns do Campo Lacaniano/Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil. Rua Goethe, 66 – 2º andar. Botafogo. Rio de Janeiro, RJ Brasil. CEP 22281-020 - www.campolacaniano.com.br – revistastylus@yahoo.com.br Comissão de Gestão da afcl/epfcl-Brasil Conselho Editorial Diretora: Delma F. Gonçalves Ana Laura Prates Pacheco (EPFCL-São Paulo) Secretária: Andréa Milagres Andréa Fernandes (UFBA/EPFCL-Salvador) Tesoureira: Madalena Kfuri Ângela Diniz Costa (EPFCL-Belo Horizonte) Ângela Mucida (Newton Paiva/EPFCL-Belo Horizonte) Angélia Teixeira (UFBA/EPFCL-Salvador) Equipe de Publicação de Stylus Bernard Nominé (EPFCL-França) Ida Freitas (coordenadora) Clarice Gatto (FIOCRUZ/EPFCL-Rio de Janeiro) Angela Costa Conrado Ramos (PUC-SP/EPFCL-São Paulo) Conrado Ramos Christian Ingo Lentz Dunker (USP/EPFCL-São Paulo) Geísa Freitas Daniela Scheinkman-Chatelard (UNB/EPFCL-Brasília) Lia Carneiro Silveira Edson Saggese (IPUB/UFRJ-Rio de Janeiro) Luis Achilles R. Furtado Eliane Schermann (EPFCL – Rio de Janeiro e Petrópolis) Silvana Pessoa Elisabete Thamer (Doutora em filosofia Universidade de Paris IV - Sorbonne) Indexação Eugênia Correia (Psicanalista-Natal) Index Psi periódicos (BVS-Psi) Gabriel Lombardi (UBA/EPFCL-Buenos Aires) www.bvs.psi.org.br Graça Pamplona (EPFCL-Petrópolis) Helena Bicalho (USP/EPFCL-São Paulo) Editoração Eletrônica Henry Krutzen (Psicanalista/Natal) 113dc Design+Comunicação Kátia Botelho (PUC-MG/ EPFCL-Belo Horizonte) Luiz Andrade (UFPB/EPFCL-Paraíba) Tiragem Marie-Jean Sauret (U. Toulouse le Mirail-Toulouse) 500 exemplares Nina Araújo Leite (UNICAMP/Escola de Psicanálise de Campinas) Raul Albino Pacheco Filho (PUC-SP/EPFCL-São Paulo) Sonia Alberti (UERJ/EPFCL-Rio de Janeiro) Vera Pollo (PUC-RJ/UVA/EPFCL-Rio de Janeiro) FICHA CATALOGRÁFICA

STYLUS: revista de psicanálise, n. 28, junho de 2014 Rio de Janeiro: Associação Fóruns do Campo Lacaniano Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil - 17x24 cm Resumos em português e em inglês em todos os artigos. Periodicidade semestral. ISSN 1676-157X 1. Psicanálise. 2. Psicanalistas – Formação. 3. Psiquiatria social. 4. Psicanálise lacaniana. Psicanálise e arte. Psicanálise e literatura. Psicanálise e política. CDD: 50.195


sumário 07 editorial: Ida Freitas

conferência 13

Colette Soler: Desejo no singular, desejos no plural

ensaios 25 33 41

Ronaldo Torres: O Campo Lacaniano e o desejo Maria Helena Martinho: Mishima: entre o amor e o desejo Raul Pacheco: Dom Quixote, Sancho Pança, a errância do desejo e mais-além.

trabalho crítico com conceitos 51

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Ana Paula Lacorte Gianesi: A inexistência e a insensatez: hiância causal e o gozo do falasser Beatriz Elena Maya Restrepo: Relação entre sublimação e desejo Dominique Fingermann: Desejo e repetição Manel Rebollo: Desejo: dasein lacaniano Marcia Assis: Sobre o amor, o desejo e os parceiros

direção do tratamento 99

109 117

Silvia Lira Staccioli Castro: O importante papel do humor na direção da cura Luciana Guarreschi: As exigências do manejo transferencial e o desejo do analista Miriam Ximenes Pinho: Na vertigem da dor: o luto na zona entre os vivos e os mortos

entrevista 133

Colette Soler entrevistada por Dominique Fingermann

resenhas 141

Jairo Gerbase: A criança em nós

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contents 07 editorial: Ida Freitas

conference 13

Colette Soler: Desire in the singular, desires in the plural

essays 25 33 41

Ronaldo Torres: The Lacanian Field and the desire Maria Helena Martinho: Mishima: in between love and desire Raul Pacheco: Don Quixote, Sancho Panza, the wandering of the desire and far beyond

critical paper with the concepts 51

59 67 79 91

Ana Paula Lacorte Gianesi: Inexistence and foolishness: casual hiatus and jouissance of the speakbeing Beatriz Elena Maya Restrepo: Relationship between desire and sublimationy Dominique Fingermann: Desire and repetition Manel Rebollo: Desejo: dasein lacaniano Marcia Assis: About love, desire and partners

the direction of the treatment 99

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Silvia Lira Staccioli Castro: The important role of humor in the direct of the cure Luciana Guarreschi: The demands of the transferring maneuvering and the desire of analyst Miriam Ximenes Pinho: In the vertigo of the pain: mourning in the zone between the living and the dead

interview 132

Colette Soler interviewed by Dominique Fingermann

reviews 141

Jairo Gerbase: The child in us

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Editorial Quando os membros da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, em 2012, definiram como tema para o VIII Encontro Internacional da IF EPFCL “Os paradoxos do desejo”, pareceu a alguns, a princípio, que estaríamos optando por certo retrocesso no ensino de Lacan, um retorno ao campo lacaniano da linguagem sem, as implicações e avanços que as últimas formulações lacanianas do objeto a, do real, e do campo do gozo trouxeram à teoria e à prática analítica. No entanto, o que pudemos constatar ao longo desses dois anos de trabalho, tendo o desejo como tema principal de nossos estudos, pesquisas e transmissão, foi o quanto o conceito de desejo, seus paradoxos, suas errâncias, indeterminações e determinações, especialmente se situado numa perspectiva que vai além do Édipo, levando em conta a ausência de correspondência entre os sexos, mantém sua centralidade e atualidade. Isso se demonstrou no XIV Encontro Nacional da EPFCL – Brasil, ocorrido em Belo Horizonte em outubro de 2013, momento em que partilhamos o que desenvolvemos até aquele momento, sobre o tema “O desejo e suas errâncias”, que por isso dá o título para a Stylus 28, que traz em sua maioria, textos apresentados nesse encontro. Mais uma vez, nesse número de Stylus, contamos com a experiência, o rigor e a propriedade com que Colette Soler desenvolve e apresenta suas ideias a respeito da psicanálise de orientação lacaniana. Durante o referido encontro, Colette Soler realizou três conferências que iremos publicar, sendo a primeira no presente número de Stylus e as outras duas na Stylus 29. A primeira das três conferências, que abre os textos da Stylus 28, recebeu o título de “Desejo no singular e desejos no plural”, em que a autora desenvolve o tema a partir da bipartição do desejo em desejo com objeto e desejo sem objeto, desejo finito e desejo infinito, para mostrar as elaborações, ao longo de uma década, feitas por Lacan sobre o fundamento de que o desejo é produzido pela falta. Outra formulação importante que Soler comenta é a de que “o desejo é sempre desejo de outra coisa”, que é um desejo mais próximo ao wunsch, ao voto, à aspiração. E que a insatisfação característica dessa forma de expressão do desejo é muito destrutiva, na medida em que “esvazia o cotidiano de sua substância, em nome de uma vaga aspiração. Assim ele engendra a ineficácia, a inadaptação e, também, a dor”. O ponto central da Conferência “Desejo no singular e desejos no plural” está no destaque à evidência de que não há desejo que não vá em direção a um mais-de-gozar. Na seção Ensaios, estão dispostos três textos. Escolhemos, para abrir essa seção, o ensaio “O Campo Lacaniano e o desejo”, exatamente porque, fazendo jus

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FREITAS, Ida

ao título, o autor, Ronaldo Torres, ressalta a pertinência do retorno ao tema do desejo, demonstrando como Lacan, para além da dimensão clínica, ocupou-se em sustentar a psicanálise no mundo com base em seu próprio discurso. E perguntando-se sobre o que se transmite em um tratamento analítico, o autor articula ato, desejo e laço social. A seguir, Maria Helena Martinho recorre à literatura com muita propriedade, para expressar seus argumentos que versam sobre a divisão subjetiva entre amor e desejo. É assim que, por meio do romance do virtuoso escritor japonês Yukio Mishima, Confissões de uma máscara, a autora vai circunscrevendo a cada etapa da vida do escritor, já que esse é um romance autobiográfico, a presença da clivagem determinada a partir de seus investimentos libidinais, para demonstrar uma aproximação muito cara ao ensino de Lacan, entre o movimento pulsional do escritor, que passa do amor ao desejo, e a topologia da banda de Moebius. Encontramos no terceiro ensaio “Dom Quixote, Sancho Pança, a errância do desejo e mais-além”, de Raul Pacheco, que também recorre à passagens da literatura clássica para ilustrar seus argumentos, uma pergunta central em torno do que é passível de transformação na relação do sujeito com seu modo de gozo, para além da repetição do mesmo que a errância do desejo implica. Na seção Trabalho crítico com os conceitos, contamos com cinco artigos que, à maneira própria de cada autor, vão trazendo elementos importantes para a ampliação da reflexão em torno do desejo. Começamos com “A inexistência e a insensatez: hiância causal e o gozo do falasser”, que iniciando com um poema e concluindo com outro, procura em seu desenvolvimento demonstrar por meio de algumas formulações - chaves de Lacan, como o Real subverte o gozo fálico. A autora, Ana Paula Lacorte Gianesi articula de modo claro e consistente a práxis com a teoria, percorrendo um trajeto que vai do gozo fálico ao gozo não – todo por meio das categorias do necessário, contingente, possível e impossível. Em “Relação entre sublimação e desejo”, a autora opera uma revisão considerável do conceito de sublimação. Parte das noções de sublimação, desejo e saber referenciando-se ao seminário A ética, para se perguntar quais as possíveis relações e diferenças entre essas noções. Beatriz Elena Maya Restrepo apresenta e discute dois paradoxos: um relativo à sublimação e o outro ao desejo. Dominique Fingermann apresenta suas elaborações referentes às possíveis articulações entre os conceitos de Repetição e desejo, termos dispostos no título de seu artigo. Procede a seu desenvolvimento entre os conceitos em três tempos. No primeiro tempo por meio da pergunta: “Como a questão da repetição se apresentou na clínica do desejo tanto para Freud, quanto para Lacan?”. No segundo, demonstrando como “Lacan retomou a articulação topológica dos dois: o desejo como efeito da repetição e a repetição como efeito do dizer, ou seja, a repetição do

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Editorial

traço unário como efeito do Um-Dizer e causa do sentido do desejo, Um de sentido”. E no terceiro, fazendo coro aos autores em Stylus 28, que recorrem à literatura, confirmando a profunda afinidade da psicanálise com a arte, comenta alguns dos romances de Marguerite Duras, por considerar que “sua obra permite vislumbrar a articulação da ética da repetição com a extravagância do desejo: pas-de-deux”. No quarto artigo dessa seção, o autor parte do wunsch freudiano, percorrendo diversos momentos do ensino de Lacan para demonstrar sua tese presente no título “Desejo: Dasein lacaniano”. Distingue duas concepções do Dasein como “ser aí” e como Das Ein, “O Um”, o qual irá relacionar ao final da análise. Justifica o uso do termo heideggeriano, na sua concepção de interpretação, como o que localiza o desejo do sujeito em um instante precedente, depois do qual o sujeito já não está aí, a interpretação daseina do desejo do sujeito. Nesse trajeto, o autor procura localizar as várias maneiras com que Lacan situou o desejo nas dimensões imaginária, simbólica e real, relacionando-o aos quatro conceitos fundamentais, e também com os quatro discursos, fazendo uma aproximação do desejo com sua escritura. Rebollo finaliza seu desenvolvimento, destacando a função desejo do analista. “Sobre o amor, o desejo e os parceiros” é o artigo que conclui a seção Trabalho crítico com os conceitos, onde Marcia de Assis aposta nos efeitos de uma análise sobre a questão amorosa. A autora tece uma declinação do amor em sua relação com o desejo como respostas ao axioma “não há relação sexual”, partindo do amor em sua ignorância do desejo, passando pelo amor de transferência, enquanto condição e obstáculo do tratamento e chegando a um amor mais digno, aquele que não acredita no parceiro, porém o reconhece em sua “unicidade solitária”. A seção Direção do tratamento reúne mais três promissores artigos que apresentam precisas articulações da teoria com a práxis. Perguntando-se sobre o que Lacan quis demonstrar com as formulações em torno do conceito de transferência e seu manejo clínico, como a do fechamento do inconsciente como efeito do amor de transferência, e a respeito da função obturadora do objeto a, bem como ao apontar para a instalação do sujeito suposto saber, Luciana Guarreschi, que intitula seu trabalho de “As exigências do manejo transferencial e o desejo de analista” entrelaça fragmentos clínicos com a teorização da transferência, chegando à função do desejo do analista nesse percurso. Em “Na vertigem da dor: o luto na zona entre os vivos e os mortos”, Miriam Ximenes Pinho, baseada na singularidade de um caso clínico que traz a questão da elaboração psíquica do luto, recorre às obras de Freud, Lacan e Allouch sobre o tema, a fim de articular e extrair três aspectos envolvendo teoria e clínica do luto, que nomeia de “na vertigem da dor”, “o estatuto do morto” e “o luto entre o recordar e o repetir”. Encerramos essa seção com “O importante papel do humor na direção da cura”,

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FREITAS, Ida

em que a autora procura articular um caso clínico de um sujeito obsessivo, que padece da tirania superegoica, ao personagem Giovani Mazonni, interpretado no filme A família, sendo o humor o laço que amarra ficção e realidade psíquica. A Entrevista com Colette Soler aqui publicada, realizada por Dominique Fingermann, é consequência de uma solicitação da Comissão Científica do XIV Encontro Nacional da EPFCL – Brasil, “A causa do desejo e suas errâncias”. Na ocasião do encontro a entrevista foi publicada parcialmente no jornal O Estado de Minas, e consideramos oportuno apresentá-la na íntegra na Stylus 28, que tem como fio condutor o mesmo tema do referido encontro. Concluindo mais este número de Stylus, temos a satisfação de apresentar na seção Resenha, nas palavras de Jairo Gerbase, o livro A criança em nós e sua autora, a psicanalista Sonia Magalhães, que, ao reunir uma série de artigos referentes à psicanálise e criança, demonstra sua extensa contribuição à psicanálise e ao Campo Lacaniano, para a clínica com crianças. Esperamos, com os trabalhos aqui reunidos, oferecer ao leitor um caminho para redescoberta e atualização da noção de desejo no Campo Lacaniano. O próximo número da revista, Stylus 29, continuará abordando esse mesmo tema, e encontraremos, além de outros instigantes trabalhos, as segunda e terceira conferências pronunciadas em Belo Horizonte por Colette Soler, em outubro de 2013. Em nome da Equipe de Publicação de Stylus, desejo a todos boa leitura! Ida Freitas

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conferĂŞncia



Desejo no singular, desejos no plural Colette Soler Vou falar, hoje, aqui, em Belo Horizonte, sobre o tema “Desejo no singular, Desejos no plural”. É o título que escolhi. Farei primeiro um pequeno panorama para chegar ao que estou desenvolvendo mais, atualmente. Os paradoxos do desejo foram percebidos na Filosofia e na Literatura antes da Psicanálise. Mas, é ela, a Psicanálise, que permite dar conta do desejo. Esses paradoxos já estão presentes nas duas expressões de Freud que falam de um único desejo no singular, inconsciente, desconhecido, portanto, do sujeito e, além disso, indestrutível. Com Lacan, compreendemos que esses paradoxos têm sua lógica. E todos esses paradoxos provêm do seguinte: a causa do desejo não é o objeto do desejo. Em outros termos, o desejo enquanto tal, não tem objeto que lhe seja apropriado. Concretamente, há duas grandes formas do desejo: há desejos sem objeto – são os que erram, no sentido de errância, precisamente, e há os desejos com objeto, que são desejos de algo. Os primeiros portam a marca da infinitude. Os segundos, ao contrário, são os que Lacan (1962-63/2005) chamava, no Seminário 10: a angústia, de desejos finitos, ou seja, no sentido de fixados em um objeto preciso. Toda a questão é saber como é que esses desejos finitos se constroem. Se observarmos o ensino de Lacan, ele insistiu, no início, sobre a dimensão de infinitude do desejo. O desejo como simples voto, aspiração, que participa de uma vaga espera, sem objeto, e que inventa objetos imaginários sem consistência. É por isso que ele pôde dizer que o tédio, a prece, a vigília, são todos nomes do desejo. E até mesmo o nada é objeto do desejo. O fundamento estrutural desse desenvolvimento que agradou muito e continua, aliás, agradando, é simplesmente o fato de que o desejo é engendrado a partir da falta. E podemos seguir passo a passo as elaborações de Lacan sobre esse assunto: inicialmente, ele disse que o desejo é feito, negativamente, de linguagem; portanto, o desejo como efeito do significante, pelo fato de falarmos. Sobre esse ponto nós encontramos uma bela fórmula no texto A Direção do Tratamento (LACAN, 1958/1998): o desejo é trazido pela morte, isto é, ele é trazido pela morte que a linguagem veicula. Dessa forma, ele é um vetor que não sabe para onde vai. Um passo a mais no ensino de Lacan é sua conceitualização sobre o objeto a como causa do desejo. Causa do desejo, porque ele é o objeto que falta. A expres-

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SOLER , Colette

são que define o objeto a como objeto que falta se encontra em 1976 no Prefácio à edição inglesa do Seminário 11 (LACAN, 2003, p. 569). Em seguida, ele diz: “objeto subtraído pela operação de linguagem”; isso está no Seminário 10: a angústia. Depois ele diz, em Radiofonia, em 1970: “É o maior efeito da linguagem” (LACAN, 2003). Lacan elaborou por uma década o fundamento de falta no desejo e é esse fundamento de falta que determina a fenomenologia e a temporalidade do desejo, com seus paradoxos. O primeiro deles, poderíamos enunciá-lo: “o desejo é uma fênix”, ele renasce de suas cinzas, após cada satisfação. É o que fez, sem dúvida, com que fosse construída uma grande oposição entre o desejo sempre insatisfeito e o gozo, que é uma experiência de satisfação. Como dizia um comediante inglês – acho que é Bernard Shaw, mas não tenho certeza –, existem duas coisas terríveis na vida: não satisfazer seu desejo e satisfazê-lo. Em seguida, e isso também faz parte do paradoxo, a fórmula mais eminente do desejo: o “desejo de outra coisa”. Lacan falou muito sobre isso. Que é um desejo mais perto do Wunsch do que do Wille, mais perto do voto, da aspiração, do que da vontade. Temos muitos exemplos disso na literatura. Pensei em dois exemplos, mas não sei se vocês conhecem: O Deserto dos Tártaros1 e O Marinheiro de Gibraltar, de Marguerite Duras, dois romances onde se espera o que nunca vem. O desejo de outra coisa é muito deletério, destrutivo. O desejo de outra coisa recusa todos os objetos atuais, assim como a ação que o presente exigiria. Ele esvazia o cotidiano de sua substância, em nome de uma vaga aspiração. Assim ele engendra a ineficácia, a inadaptação e, também, a dor. Lacan dizia: “podemos querer não gozar, mas não podemos querer não desejar”. Pois querer não desejar o possivelmente desejável é uma forma de desejo. Mas é um desejo vazio. É claro que o neurótico, na sua estratégia, se serve desse paradoxo que consiste, em geral, em escolher mais o desejo insatisfeito do que o desejo satisfeito. E, mais precisamente, em suspender as satisfações para sustentar o desejo. Quer seja sob a forma de se furtar, do histérico, da mortificação, do obsessivo, ou do evitamento fóbico. E Lacan, na época em que exaltava o desejo, dizia que o neurótico não está tão mal colocado na escala humana, porque ele leva em conta os paradoxos do desejo. É um cumprimento feito ao neurótico. Depois ele mudou de ideia. Bom, todo esse desenvolvimento de Lacan, que eu resumo rapidamente, ele mesmo o corrigiu, ou melhor, o completou. É por isso que não basta dizer que o desejo é sua interpretação para se dispor da teoria lacaniana do desejo. Não posso seguir todo o seu trajeto, mas é um trajeto que permite colocar em evidência que não há desejo que não vá em direção a um mais-de-gozar, em direção a um gozo, 1

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que, no entanto, não o estanca. É o que significa a extraordinária fórmula de Lacan que qualificava o desejo como a “aporia encarnada”. Aporia é uma referência à linguagem e à causa linguageira, e o encarnada é uma referência ao que é vivo e à carne. No Seminário 11, Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise, Lacan (1964/2008, pp. 235-6) foi bastante explícito ao responder uma pergunta de Safouan: “compreenda”, diz ele, “que o objeto do desejo é o objeto causa e que esse objeto causa é o objeto da pulsão”. Lacan diz, ainda, que nem tudo do desejo é agido na pulsão. Há também desejos vazios, desejos loucos. Podemos dizer, então – eu não sigo todo o trajeto – que o desejo é um vetor infinito em razão da sua causa que não cessa de faltar. Mas, para cada um, o desejo fica dando voltas em um pequeno perímetro. Ou seja, o vetor infinito fica dando voltas sobre si mesmo. É isso que a fórmula da fantasia escreve: a fixação a um objeto que satisfaz, mas não preenche a hiância; um mais-de-gozar sempre indissociável de um menos. Bom, agora vou fazer uma pequena digressão. Eu penso que esquecemos facilmente dessa estrutura em todos os comentários que pululam hoje em dia sobre o capitalismo. Porque se fala, frequentemente, do capitalismo como o regime do gozo a qualquer preço. Às vezes podemos nos perguntar se a dimensão do desejo não desapareceria em nome de uma vontade de gozo. Não é a leitura de Lacan. E também isto não corresponde aos fatos. Na verdade, creio que é uma aberração falar isso da estrutura. É claro que é certo que o capitalismo oferece os pequenos mais-de-gozar de sua produção. E chega, mesmo, a impor sua tirania por toda sorte de procedimentos. Mas é justamente o oposto do que seria um gozo total, todo. Supondo que se soubesse o que é o gozo todo. Esses produtos do capitalismo que produzem as fixações podem chegar até a adição. Fala-se muito da adição aos objetos do capitalismo, mas eles são, assim como o objeto da fantasia, estritamente sinônimos de uma falta de gozo. Essa tese é explícita no texto de Lacan que se chama Radiofonia, quando ele nota que a regência da causa que é o mais-de-gozar, assinala, eu cito, a “sede da falta-de-gozar” (LACAN, 1970/2003, p. 434). É justamente o contrário do que as pessoas vêm dizendo por aí. Isso é o que diz Lacan. Vamos aos fatos. O que se vê nos fatos? Em todo lugar onde o capitalismo prospera, não há realmente nada que evoque que estão todos banhados no gozo. Mas, o que vemos? Depressão, morosidade, angústia, tédio, desvario, dispersão, impotência geral. Tantos afetos, que vocês poderiam me contestar: mas existem também figuras triunfantes do capitalismo. Por exemplo, do lado do successful, do sucesso, o que temos é a excitação competitiva que quando cessa, aí aparece a depressão. São todos esses afetos que indicam a presença indiscutível do fato de que em todo lugar onde consegue resolver as necessidades primárias de sobrevivência, o capitalismo faz arder o desejo de outra coisa. E isso é um desejo perigoso, como eu dizia antes.

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Bom, para a Psicanálise, o problema central não é qual é o bônus do capitalismo. Há um problema que se desdobra: é saber o que fixa o desejo em cada caso particular. E, especialmente, o desejo sexual. Porque quando se fala do desejo no discurso comum, a gente pensa logo em sexo. E o sexo não é uma forma indeterminada do desejo, ao contrário, é um desejo fixado. E muitas vezes sob condições muito precisas. Na Psicanálise trata-se de saber como esse desejo sexualmente fixado se instaura. É uma questão, porque os desejos agidos na pulsão, dos quais Lacan falava em 1964, esses desejos não conduzem ao parceiro sexual. Eis o problema. “A pulsão”, dizia Lacan, “é a realidade sexual do inconsciente”. Ou seja, é o gozo que resta para o falante. Porém, Lacan acrescentava: “essa é uma verdade insustentável”. Mas por que insustentável? Acho que é insustentável justamente porque a pulsão não conduz ao parceiro sexual, quer seja homo ou hetero, esse parceiro. As pulsões procuram, eventualmente, o objeto do lado do parceiro. Lacan dizia mesmo que ele só tem acesso ao corpo do parceiro pelas pulsões parciais, mas não são elas que conduzem ao corpo. Sabemos que as pulsões se satisfazem de inúmeras maneiras fora da relação com o parceiro sexual. Para começar, aquelas que se qualificavam de perversas na época clássica: voyeurismo, exibicionismo, sadismo etc. Porém, as pulsões se satisfazem, sobretudo, na deriva metonímica – termo de Lacan – da linguagem. Isso significa que elas se satisfazem bem além do erotismo, na política, na literatura, na arte... sem colocar em jogo o corpo a corpo com o casal. No fundo, podemos dizer, de outra forma, o fato de que as pulsões não conduzem ao parceiro. Lacan dizia, “vocês sabem, sem dúvida, que a pulsão é o eco no corpo do fato de haver um dizer”. É necessário precisar: há um dizer de oferta que parte do Outro. E, com efeito, o corpo responde a esse dizer. É isso que engendra as pulsões. Um dizer que demanda que a boca vá ingerir o alimento e então o corpo responde. Ou seja, ele repercute, responde, através da erogeneização da boca. A boca, que a partir de então, não será preenchida por alimento algum. No que concerne à pulsão oral, anal, escópica e invocante, todas vêm do dizer do Outro, mas não há nenhum dizer dirigido aos órgãos genitais, ao qual o corpo responderia, faria eco através da erogeneização genital. Daí a questão: afinal, o que leva à relação de corpo a corpo sexual, ao fato de existir um desejo sexual? Se não é a pulsão, devemos pensar que é o próprio desejo, que leva ao outro corpo. Mas, rumo a quê o desejo se dirige? Parece, às vezes, que ele se dirige ao parceiro, homem ou mulher. Mas, na verdade, ele se dirige ao mais-de-gozar que se aloja aí. E isso vale, inclusive, para a relação de corpo a corpo. O que Lacan formulou de forma simples e categórica, em Radiofonia: ele dizia que a relação tomada pelo sexo é como qualquer uma, articulada a partir do mais-de-gozar. Para o homem, isso supõe identificar o parceiro ao objeto a; e para a mulher, reduzi-lo ao falo, isto

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é, como o pênis reduzido ao órgão da detumescência, ou seja, ao inverso da sua função real. Eis o que ele diz acerca do que seria o parceiro de cada lado do sexo. Eu sublinho esse termo de redução. O desejo que se diz sexual parece conectar o desejante com o seu desejado, mas a grande descoberta da Psicanálise, com Lacan, é que o desejo só conecta o desejante ao objeto a. Por estrutura, então, o desejo não é sexual. Então, mesmo quando aproxima os corpos, ele não faz relação. Todo esse desenvolvimento, eu resumo aqui: na copulação dos corpos a que o desejo parece conduzir, o que está em jogo mesmo é o mais-de-gozar. Com tudo isso ainda não se sabe o que é necessário para que um desejo tome a forma de um desejo sexual. É necessário, é claro, a causa como objeto que falta, que procure um mais-de-gozar, mas não é uma condição suficiente, porque o mais-de-gozar tem outras formas além da forma sexuada. A questão é, portanto, muito simples e até crua. O que é necessário para que o desejo leve para a cama? À cama mais do que a outros lugares. À cama, mais do que ficar fazendo prospecção do continente, ou fazer a guerra, escalar uma montanha ou fazer carreira, procurar a novidade na ciência, ou o belo e o trash na arte... O que é preciso para que o outro corpo, notadamente o corpo do Outro sexo, vire causa de desejo, já que as pulsões não bastam? Quais são, então, as respostas possíveis da Psicanálise? As de Freud são conhecidas. Ele respondeu: “é preciso o Édipo com as identificações que produz e que no fundo permitem, mal ou bem, e apesar de todos os acidentes sintomáticos, ao menino ou à menina saber mais ou menos o que têm que fazer para abordar o outro sexo”. Esta é a primeira resposta de Freud, que desenvolvo, e Lacan a retoma com a Metáfora Paterna, em 1955. Ele reevoca em 1964 em Posição do Inconsciente (LACAN, 1998), e isso poderia querer dizer: é preciso o Nome-do-Pai. Bom, é um tema bastante extenso, mas eu gostaria de falar algumas palavras sobre a Metáfora Paterna. Antes de tudo, se trata de uma metáfora social que coloca o pai como o Outro da mãe. Pai e mãe é o par social, porém, ao mesmo tempo, é uma metáfora sexual. Se vocês estudaram esses textos sobre a metáfora em questão, viram que a operação dessa metáfora é fazer aparecer que o desejo da mãe, que é simbolizado pela sua ausência, ou seja, pelos seus vaivens – é indeterminado pela operação de metáfora; esse desejo da mãe se torna desejo determinado pelo falo, ou seja, um desejo fálico, que a partir daí pode ser endereçado àquele que não é privado do falo. Assim, a metáfora nos constrói um modelo de casal heterossexual, que era suposto orientar o desejo dos meninos e das meninas para a descendência, indicando aonde deveria ser encontrado o falo que lhe faltava. É preciso dizer que essa metáfora fazia do Nome-do-Pai a condição do casal heterossexual, dando a esse casal um status diferenciado daquele do laço social da família. Evidentemente, temos que nuançar um pouco e levar em conta as múl-

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tiplas advertências de Lacan, que insiste em dizer que o Nome-do-Pai não é o Pai. Isso deve ficar claro. Não é o chefe de família. Isso não impede que o próprio Lacan (1956-57/1995) no Seminário 4: a relação de objeto, no momento em que estava construindo a Metáfora Paterna utilizando a fobia, nos explique que o que faltou da função paterna do pequeno Hans foi o pai real, ou seja, aquele que come a mãe. Com isso, a gente apreende que a Metáfora Paterna é uma metáfora do casal heterossexual, construída sobre o modelo social. Nós vemos, logo, as dificuldades que se apresentam, imediatamente. Com essa metáfora, é impossível conceber a homossexualidade a não ser como anomalia. O que é um drama para os psicanalistas lacanianos que não conseguiram seguir Lacan até o fim. E mesmo para aqueles que não leram Freud suficientemente, já que Freud (1905/1996) desde 1915 em uma nota que acrescentou aos Três Ensaios Sobre a Sexualidade, dizia de forma extremamente categórica e embasada que a homossexualidade não é uma perversão, não é uma anomalia. Em geral, nenhuma escolha de objeto pode decidir qual a estrutura clínica. Por outro lado, como não perceber que essa metáfora está em perfeita continuidade com aquilo que o discurso do mestre faz desde que ele existe? Ou seja, conceber e organizar a relação entre os sexos como um laço social, no qual, como Lacan definiu, sempre há um termo que comanda o outro, como o mestre comanda o escravo. Temos casais homólogos a isso: o rei e a rainha, o esposo e a esposa. E, aliás, todo o vocabulário sobre o amor na literatura do século passado é um vocabulário de relações de dominação. E, às vezes, mesmo de relações de guerra, entre um que cede e outro que domina, mesmo que o papel possa ser intercambiado entre os dois. Por exemplo, no caso do amor cortês o poder é da dama. Portanto, foi crucial passar, como Lacan o fez, para além do Édipo, ou seja, para além da Metáfora Paterna, que tornava o casal heterossexual homem e mulher solidário com o casal social pai e mãe. Além disso, Lacan foi, não somente pluralizando o Nome-do-Pai. Ele traz o Nome-do-Pai, que é o pai que nomeia, o pai do nome. Essas teses, forçando um pouco, ainda poderiam estar de acordo com a Metáfora Paterna. A grande objeção consistente à Metáfora Paterna enquanto metáfora sexual é a fórmula “Não há relação sexual” que a gente repete, e temos que ver o que ela implica. Ela implica que não há laço social entre os corpos sexuados. Lacan (1974/2003) formula isso em Televisão, dizendo: “as histórias de amor” – ele fala de amores sexuados – “são clivadas dos laços sociais”. Ou seja, não basta o corpo a corpo para fazer laço social. A fórmula “Não há relação sexual” indica que o gozo, seja hetero ou homossexual – isso vale para ambos –, é ou bem gozo único, fálico, ou Outro Gozo. Mas em nenhum dos casos constitui relação entre eles. O “para além da metáfora”, então, é o fim da metáfora sexual. Mas esse “para

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além” tem um alcance mais geral. Implica também a própria concepção do inconsciente. A metáfora, que junto com a metonímia, é a estrutura fundamental da linguagem, é solidária do inconsciente que Lacan definiu como estruturado como uma linguagem. É o inconsciente tal como ele se decifra sob transferência. É, portanto, o inconsciente simbólico. Podemos mesmo dizer: o inconsciente tagarela. Lacan dedicou a ele mais de uma década de elaboração. É o inconsciente tal como podemos inferi-lo a partir da prática freudiana. No entanto, o inconsciente, na medida em que é efeito de linguagem – tese fundamental de Lacan –, esse inconsciente ex-siste fora da transferência, antes de qualquer decifração. Ou seja, ele existe desde sempre. Não é um discurso, não é simbólico, ignora a metáfora e metonímia. Lacan diz: “ele é saber”. Isto é: significante que afeta o corpo e que provém de alíngua. É um saber que engata, se engancha no corpo, que é o inconsciente real. Evidentemente que os efeitos desse inconsciente não esperaram por Lacan para serem conceitualizados, eles foram reconhecidos e nomeados na psicanálise freudiana. Os nomes freudianos do inconsciente real são: desejo – é o primeiro efeito real da linguagem –, pulsão, repetição e sintoma. Lacan condensa esse conjunto dizendo: “é um saber que despedaça o gozo, que o recorta e que produz as quedas das quais eu faço o objeto a, ou então, a causa primeira do desejo”. Àqueles que perguntam – que é uma pergunta que frequentemente escuto – “será que o inconsciente reinventado de Lacan suprime ou muda o desejo, e restaria somente a referência ao gozo?”, temos aqui a resposta: o saber inconsciente despedaça o gozo e recorta a causa do desejo, assim o desejo está inscrito no campo do gozo. Mas isso não resolve completamente a questão de como o desejo leva para a cama. Se não é a metáfora que leva à cama – que é o que acabei de mostrar a vocês –, Lacan finalmente dá outra resposta: “é o sintoma”. Mas não é o sintoma no sentido dos primeiros sintomas dos quais Freud falava. O sintoma no sentido que ele dá de que “o parceiro é o sintoma”. Depois que ele diz “parceiro objeto causa”, ele diz “parceiro sintoma”. Sintoma quer dizer: produto do inconsciente; produto do qual se goza. E – um ponto muito importante que acrescento – que se instala de maneira contingente, através de um encontro. Ou seja, não está programado pela estrutura. Bom, vou lembrar uma observação que Lacan fez nos Estados Unidos em 1975, a qual, creio eu, fazia eco a outra observação, de Freud, que dizia que toda capacidade erótica do sujeito proviria do laço com a mãe. Em 1975, Lacan diz aos americanos: “parece que é necessário ter tido uma mãe para amar as mulheres”. É engraçado, isso me surpreendeu, pois não evoca o pai. Quer dizer, não aparece nada da Metáfora Paterna. É claro que isso não é exatamente uma tese consistente, é apenas uma observação en passant. Mas, as observações de Lacan são raramente gratuitas. E, finalmente, isso parece que vai em par com sua última tese sobre o Édipo. Para além da Metáfora, para além do Édipo, o que há? O sintoma. Ele diz: “o casal

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edipiano, nada mais é do que sintoma”. O Édipo é um sintoma. Quer dizer que é uma modalidade de desejo e de gozo, mas uma modalidade entre outras possíveis, digamos, um tipo de sintoma. Porém, há outros. Vou terminar com uma frase em forma de pergunta: quem ousará dizer que um tipo de sintoma vale mais do que outro? Existe um Outro do Outro para dizer qual é o melhor? Tudo o que podemos tentar dizer, a partir da Psicanálise, é qual o destino que cada sintoma que o determina provoca no sujeito. Tradução: Antônio Quinet Transcrição e revisão: Pollyana Almeida, Marcus do Rio Teixeira e Caio Tavares Revisão final: Sonia Magalhães

referências bibliográficas FREUD, S. (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: Edição Standard Brasileira. Tradução sob direção de Jayme Salomão. Vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996. LACAN, J. (1956-57). O Seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995. __________. (1958). A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: LACAN, J. Escritos. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, pp. 591-652. __________. (1962-63). O Seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. __________. (1964). O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. LACAN, J. Posição do inconsciente. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, pp. 843-864. __________. (1970). Radiofonia. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, pp. 400-447. __________. (1974). Televisão. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, pp. 508-543. __________. (1977). Prefácio à edição inglesa do Seminário 11. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, pp. 567-569.

resumo

A autora intitula sua fala “Desejo no singular, desejos no plural”, uma vez que defende existirem duas formas de desejo: os sem objeto (desejos que erram) e aqueles com objeto (desejos de algo). Dentre estes, situa o desejo de outra coisa

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como destrutivo. Questiona se o capitalismo conduziria a uma exacerbação do gozo, lembrando os sinais de insatisfação. Segundo Soler, para a Psicanálise, o problema central é saber o que fixa o desejo em cada caso particular, o que leva à relação de corpo a corpo sexual, ao fato de existir um desejo sexual. Coloca em seguida as respostas de Freud e Lacan – o Édipo, para o primeiro, e a Metáfora Paterna, para o segundo – apontando para a impossibilidade de localizar o casal homossexual nessa lógica. Propõe outra resposta de Lacan: é o sintoma que leva à cama. Desse modo, a Metáfora Paterna e o Édipo são modalidades de desejo e de gozo, entre outras possíveis. Soler finaliza com o questionamento: quem ousará dizer que um tipo de sintoma vale mais do que outro? Existe um Outro do Outro para dizer qual é o melhor?

palavras-chave

Desejo; gozo; metáfora paterna; sintoma.

abstract

The author entitles her speech “Desire in the singular, desires in the plural” as she argues there are two ways of desiring: those without an object (desires which commit mistakes) and those with an object (desire for something). She places these last ones as destructive, approximating them to the Capitalist Discourse. According to Soler, for psychoanalysis, the main challenge is to establish what fixes the desire in each particular case, what takes to the sexual body to body relationship, to the fact of an existing sexual desire. In the sequence, she places Freud’s and Lacan’s answers – the Oedipus for the first, and the Paternal Metaphor for the latter – highlighting the impossibility of localizing in this logic the homosexual couple. The author also proposes another of Lacan’s answer: it is the symptom which directs it to bed. Thus, the Paternal Metaphor and the Oedipus are modalities of desire and jouissance, among other possible ones. Soler concludes with the questioning: Who will dare to say that a type of symptom is worth more than another? Is there an Other of the Other to tell who is best?

keywords

Desire; jouissance; paternal methaphor; symptom.

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ensaios



O Campo Lacaniano e o desejo Ronaldo Torres Inicio este texto ratificando a pertinência do relançamento da questão sobre o desejo que a Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano propôs para o trabalho no biênio 2013/14. Retomar o tema do desejo, esse termo fundador da experiência psicanalítica desde Freud, não parece algo que se possa fazer com trivialidade. Basta ver, rapidamente, como isso se apresentou de forma pouco simples desde o título dado ao Encontro Nacional de 2013 (Belo Horizonte) dos Fóruns do Campo Lacaniano no Brasil: “A causa do desejo e suas errâncias”. Por um lado, causa e por outro, errância. Causa e errância, mesmo que ambos relativos ao desejo, não são termos que possam se confundir, embora guardem relações entre si. Mais que isso, parece-me que entre a errância e a causa encontramos as coordenadas de um longo percurso que Lacan fez trilhar a noção de desejo, sempre em observação da clínica e sua direção, mas não só, pois também ocupado em sustentar a Psicanálise no mundo através de seu próprio discurso. Ou, poderíamos dizer, de forma mais afeita à nossa questão atual, sustentar a psicanálise com base no endereçamento que sua prática dá ao desejo. É esta vertente de sustentação da Psicanálise baseada em seu discurso que orienta o recorte que farei neste trabalho, buscando tratar mais detidamente a dimensão do laço que se liga de algumas maneiras à noção de desejo. Lacan trouxe avanços sensíveis sobre a estrutura do desejo que soube ler e resgatar em Freud. Lembremos que foi Freud quem fundou o desejo partindo de sua estrutura errante, marcada desde a experiência original com o Outro pela perda de objeto. Essa estrutura do inconsciente e o sujeito que é seu efeito são as formas de relação com a lei do desejo, essa lei que é a mesma do significante. Formas de relação que partem do desejo, mas que também se marcam como estratégias de negação da castração. Em determinado ponto importante de seu ensino, Lacan pôde formalizar como é a estrutura da fantasia que vem responder à castração do Outro através de uma montagem entre sujeito e objeto a, tomado enquanto objeto real da pulsão. Foi baseado nessa formalização que Lacan pôde propor a direção da cura pela travessia da fantasia, ato psicanalítico. O ato psicanalítico é correlato ao desejo do psicanalista. Um ato contrário à determinação do universal da estrutura simbólica, ao universal da lei, o que lhe dá contornos de uma margem de liberdade próxima ao real; causa. Assim, temos a errância derivada da lei e a causa enquanto ato. Neste sentido o ato seria o aconte-

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TORRES, Ronaldo

cimento de uma singularidade, ato de criação, causa de desejo. A estrutura do discurso do analista, proposta por Lacan parece demonstrar como tal singularidade pode ser encontrada no objeto a em função de causa como agente do discurso, articulado à escrita do furo no saber que o sustenta:

a S2

impossível

$ S1

Fig. 1: Discurso do analista

Pois trata-se, fundamentalmente, de uma escrita singular, uma resposta que pode se dar a cada vez a não relação sexual com a qual se consentiu operar na estrutura. Mas se isso configura um laço social, um laço que, por exemplo, sustenta uma análise, é porque se trata de um laço que implica transmissão. “O que se transmite em uma cura psicanalítica? A história do movimento psicanalítico o demonstra claramente: o que se transmite em uma cura psicanalítica é a própria psicanálise” (NOMINÉ, 2012, p. 223). Poderíamos desdobrar a afirmação do autor dizendo que o que se transmite é o discurso do analista. Todavia, que haja transmissão e singularidade no ato psicanalítico, conforma um paradoxo que só se observa no discurso do analista. Pois a genealogia que se pode ver presente na transmissão relativa ao discurso do mestre, transmissão pela via do Nome-do-Pai, em sua vertente de comando de gozo, que é transmissão de uma alienação própria à linguagem, não acontece na transmissão relativa ao discurso do analista. O que a Psicanálise transmite é sua estrutura de discurso, uma transmissão interessante, porque não é possível a ela se alienar nem sob a vertente positiva, nem negativa. Positivamente, porque o ato que atesta sua transmissão, o ato psicanalítico, é um ato de ruptura com a alienação. E negativamente, porque sua estrutura não oferece nada a que se possa se alienar. A hiância, o furo no saber, base da função de causa marcada pela escrita do S1 no lugar da produção, não se oferece, por sua estrutura, à alienação. Daí que o ato de final de análise seja um ato de ruptura com o Outro. Ato de solidão absoluta, mas que inaugura uma modalidade de laço social. Uma modalidade de laço social que não se estrutura por Um conjunto. Nem do Um da unificação (do universal como totalidade), nem do Um da unicidade (que funda o universal, o discurso do universo, pela via da repetição), mas do Um enquanto escrita da borda do furo no saber que faz litoral entre centro e ausência (LACAN, 1971/2003). Lacan quis insistir no fato de que o discurso do analista transmite algo, o que

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é também afirmar e procurar as razões dos efeitos desse discurso. O ato psicanalítico, enquanto passagem de analisante a analista, levou-o a formalizar um laço social afeito à Psicanálise e isso dirigiu a maneira pela qual quis que sua Escola se orientasse. Indagar-se sobre o que é uma escola de psicanalistas é também se perguntar o que é o laço social do discurso do analista, é colocar à prova o acontecimento de tal liame. É a partir dessa aposta que Lacan pretendeu fazer girar a Escola em torno do Passe e do Cartel na Proposição de 9 de outubro de 1967 (LACAN, 1967/2003). Tentar desenhar a borda sem garantias, como pôde fazer com seu ato contingencialmente. É assim que ele retoma o ato e o discurso, ou seja, o Ato de Fundação (1964) no Discurso na Escola Freudiana de Paris (LACAN, 1970a/2003, p. 267): 1 Mas se de fato estive só, sozinho ao fundar a Escola, tal como, ao enunciar esse ato, eu disse com audácia – “tão sozinho quanto sempre estive em minha relação com a causa psicanalítica” –, ter-me-ei nisso acreditado o único? Eu já não o era, a partir do momento em que um ao menos me seguisse o passo... Com todos vocês naquilo que faço sozinho, haverei eu de me afirmar isolado? Que tem esse passo, por ser dado sozinho, a ver com o ser o único, que se acredita ser ao segui-lo? Não me fiei eu na experiência analítica, isto é, naquilo que me chega de quem com ela se virou sozinho? Acreditasse eu ser o único a tê-la, nesse caso, para quem falaria? Antes, é por alguém ter a boca cheia da escuta, sendo a sua única, o que vez por outra serviria de mordaça. Não existe homossemia entre o “único” [Le seul] e “sozinho” [seul]. Minha solidão foi justamente aquilo a que renunciei ao fundar a Escola, e que tem ela a ver com aquela em que se sustenta o ato psicanalítico senão poder dispor de sua relação com este ato? Trata-se então, na aposta, daquilo que Lacan formulará logo depois como dizer do discurso do analista. Tal dizer ganha formalização mais precisa com as fórmulas da sexuação com as quais não trabalharemos aqui. Mas é partindo delas que Lacan consegue formular aquilo que denomina como campo do uniano. O uniano não se relaciona ao um da unificação ou da unicidade. Trata-se de uma forma de dizer aquilo que indica o bífido do gozo. O campo que Lacan desejou que fosse lacaniano. O campo do uniano se coloca pela não relação sexual entre os uns contáveis e o gozo que resta não contável, mas que pode ser cingido. É isso que separa o dito do dizer e que faz que este último esteja ligado ao que Lacan 1 O Discurso... foi redigido em dezembro de 1967, porém publicado em 1970, ampliado por um comentário. Faremos sua citação como de 1970, mas devemos guardar que ele é contemporâneo à Proposição...

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TORRES, Ronaldo

formula como “Y a d’l’un”, algo que não pode ser assimilado ao um da unificação (da totalização) e nem ao um do contável, dos ditos, mas que pode se dizer a partir da transmissão. Colette Soler diz que “Lacan o nomeia [o traço unário] de o Um da repetição. Ele insistiu em dizer que se trata do Um contável e daí advém o porquê Lacan recorreu aos problemas do incontável e a Cantor” (SOLER, 2011, p. 18). E logo depois neste texto diz que o um da repetição se distingue do um da totalidade e do “Um do ‘Y a d’l’un’ no sentido do um Um-dizer, do falasser” (SOLER, 2011, p. 18). A estrutura do campo lacaniano é, portanto, a estrutura do campo do gozo. Tomar o gozo como campo é uma passagem cujo fundamento é lógico, mas que também carrega importantes implicações éticas. Entendo que houve um esforço de Lacan em demonstrar como tal campo se constitui por uma não proporção lógica. Portanto, não se trata de uma espécie de campo que é preenchido por algo que se chama gozo, mas, antes, de que a lógica que o gozo implica na sua não univocidade constitui o próprio campo. A dimensão deste campo para Lacan é aberta por seu ato psicanalítico. Todavia isso não foi o bastante. Pois restava a Lacan construir a lógica do discurso para dar lugar ao ato que revela tal não-univocidade do gozo. Assim, o discurso do analista, que sustenta o ato psicanalítico, é o único discurso no qual o impossível, que se coloca para os quatro discursos, evidencia-se a partir de sua dominante, o objeto a. Com a teoria dos discursos, Lacan acabou por estabelecer uma estrutura que porta o real, mas que, ao mesmo tempo, possibilita formas distintas de relação com este impossível. Isso, segundo a maneira como entendo, faz que o campo do gozo fundamentado em uma lógica se revele, também, um campo de prática ética. Pois os discursos referem formas distintas de montagem em relação ao gozo. Fica evidente que o terreno primordial sobre o qual esta questão incide é a própria experiência psicanalítica; o analista sustenta a direção da cura por seu ato, pela estrutura do discurso do analista. Isso coloca no centro da questão a interpretação. Mas não é apenas sobre a clínica que as implicações éticas da lógica do discurso se manifestam. Devemos retomar que uma das questões que a teoria do ato psicanalítico de Lacan lhe deixou caminhava no sentido de indagar o que seria uma ética do laço social para além da realidade posta pela fantasia, para além, podemos dizer, do discurso do mestre. Pois como ele afirma em Radiofonia: “No discurso do mestre, é o mais-de-gozar que só satisfaz o sujeito ao sustentar a realidade unicamente pela fantasia” (LACAN, 1970b/2003, p. 445). Que as coletivizações não escapem ao empuxo do Um, esse Um da unificação que promete a relação sexual, que se lança pelo semblante de S1 como exceção, mas que se sustenta naquilo de fantasia que se repete nos ditos dos uns contáveis ao infinito, disso temos experiências suficientes. Porém, nossa experiência também nos dá provas de que o laço social não se sustenta exclusivamente por tal for-

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ma discursiva. A causa como furo do desejo, digo, o desejo enquanto furo, aquilo que Lacan buscou transmitir, dizer, com o desejo do discurso do analista, desejo de analista, ou também, transferência de trabalho, ato do psicanalista e outras invenções, está aí no coração de nossa experiência para se dizer. Entendo que Lacan, ao propor os pilares de sustentação de sua Escola baseado nos dispositivos do Passe e do Cartel, tenha indicado uma aposta radical na forma do laço social concernente ao discurso do analista. Pois não é que tais dispositivos sejam apenas formalizados por Lacan com base em uma estrutura que não dá lugar ao mestre e à fantasia; mas antes, que eles são propostos para que, a cada vez, o impossível do real possa se colocar como tal, verificando ou não o ato do psicanalista, ou seja, a destituição subjetiva e a travessia da fantasia. Daí a dimensão radical de aposta; uma sustentação de um campo a partir deste tipo de aposta diante da qual não há “valor verdade” verdadeiro, ou seja, uma aposta que tem o indecidível, quanto à verdade, em seu horizonte. Isso marca o campo do real assimilado a esta aposta. “Donde eu haver designado por Passe essa verificação da historisterização da análise, abstendo-me de impor este passe a todos, porque não há todos no caso, mas esparsos dispatados. Deixo-o à disposição daqueles que se arriscam a testemunhar da melhor maneira possível sobre a verdade mentirosa” (LACAN, 1976/2003, p. 569). Entendo que a transmissão concernente à Psicanálise seja, na realidade, a forma de apresentação do próprio laço social no qual o discurso do analista se sustenta. Se Lacan se referiu aos seus esforços relativos à lógica e à matemática para propor uma transmissão integral assimilada à Psicanálise (LACAN, 1972-73/1985, p. 161), foi porque fez equivocar este integral como campo do gozo, ou seja, a transmissão do discurso do analista se transmite integralmente, porque é a transmissão que se faz com o furo que Lacan denomina como impossível. É com base nisso que devemos retomar o que seja o desejo do analista.

referências bibliográficas LACAN, J. (1967). Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. pp. 248-264. __________. (1970a). Discurso na Escola Freudina de Paris. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. pp. 265-287. __________. (1970b). Radiofonia. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, pp. 400-447. __________. (1971). Lituraterra. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, pp. 15-25.

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TORRES, Ronaldo

__________. (1972-73). O Seminário, livro 20: mais ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. __________. (1976). Prefácio à edição inglesa do Seminário 11. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, pp. 567-569. NOMINÉ, B. A transmissão da psicanálise. Livro Zero: revista de psicanálise, 3, pp. 223-233, 2012. SOLER, C. Repetição e sintoma. Stylus: revista de psicanálise, 23, pp. 15-33, 2011.

resumo

O trabalho parte das diferenças entre errância e causa do desejo. Indica como o percurso de Lacan caminha no sentido de propor a causa enquanto ruptura com a lei do desejo e de como isso convoca ao ato psicanalítico enquanto resposta, travessia, de uma forma de gozo. Em seguida, toma a teoria dos discursos como um primeiro movimento de Lacan para abordar formas particulares de gozo, a partir dos laços que os discursos estabelecem, formando aquilo que designou como campo lacaniano. Há que se pensar sobre o estatuto do desejo afeito ao passe do ato e ao giro para o discurso do analista. Isso tem implicações diretas para a experiência clínica, mas não só. Diz também respeito à forma como Lacan decidiu apostar em sua Escola como lugar para se pôr à prova um laço tão específico como esse que se lança a partir do ato psicanalítico. A causa como furo do desejo, quer dizer, o desejo enquanto furo, aquilo que Lacan buscou transmitir, dizer, com o desejo do discurso do analista, desejo de analista, ou também, transferência de trabalho, ato do psicanalista e outras invenções, está aí no coração de nossa experiência para se dizer, transmitir.

palavras-chave

Desejo, causa, discurso do analista, laço social, transmissão.

abstract

The article indicates the difference between wandering and cause relating to desire. Lacan proposes the cause as rupture of law of desire and states the psychoanalytic act as a traverse of a form of jouissance. Then, takes the Lacan’s theory of discourse as a first movement to address particular forms of jouissance, from the bonds that discourses establish, forming what he termed as Lacanian field. We must think about the status of desire after the psychoanalytic act or the turn to the discourse of the analyst. This has direct implications for clinical experience, but not only. Also relates to how Lacan decided to bet in your School as a place to proof for such a specific bond like this comming from the psychoanalytic act. The cause of desire as a hole, what Lacan sought to convey as desire of the discourse of

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O Campo Lacaniano e o desejo

the analyst, desire of analyst, or also, transference of work, psychoanalytic act and other inventions of terms, is where the heart of our experience to say, to transmit.

keywords

Desire, cause, discourse of analyst, social bond, transmission.

recebido 07/02/2014

aprovado 10/04/2014

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Mishima: entre o amor e o desejo Maria Helena Martinho Yukio Mishima (1925-1970), o mais famoso dos autores nipônicos de sua época, declarou no catálogo da Exposição Yukio Mishima (Tóquio, 1970), aberta ao público dias antes de seu suicídio, que sua arte pode ser dividida em quatro grandes correntes, os rios: da Literatura, do Teatro, do Corpo e da Ação (KUSANO, 2006). Ao navegar nesses “rios”, Mishima constituiu polos de pureza e perfeição, dois absolutos – “o amor e o desejo”, “a carne e o espírito”, “o corpo e as palavras”, “a beleza e a feiura”, “a arte literária e a arte marcial” – por uma separação que exclui a mistura deles. Em compensação, ele quis unir esses polos contrários fazendo que se juntassem nos extremos. O próprio Mishima se dá conta de que há no eu uma “polaridade”. Minha mente concebeu um sistema que instalando dentro do eu dois elementos que fluíam alternadamente em direções opostas tinha a aparência de produzir um hiato cada vez mais amplo na personalidade [...] A assunção de uma polaridade dentro do eu e a aceitação da contradição e do choque – essa era a minha combinação (MISHIMA, 1968a, p. 48). Ao desvelar esse mistério, Mishima parece estar descrevendo o entrelaçamento de dois temas trabalhados por Freud: a “divisão do eu” e a noção de “desmentido” (Verleugnung), ilustrando o que Freud ressaltou sobre a conexão existente entre o “desmentido” e “o complexo de castração”. As confissões feitas por Yukio Mishima, em seu romance autobiográfico Confissões de uma máscara (1949), serão tomadas neste artigo para ilustrar como ele passa do amor ao desejo em um movimento circulante – tal qual em uma banda de Moebius – “como uma daquelas argolas feitas com um único giro numa folha de papel e cujas pontas são coladas depois. O que parecia ser o interior era o exterior, e o que parecia o exterior era o interior” (MISHIMA, 1949, p. 127). Nesse romance, Mishima confessa que em sua infância ele se divide entre o amor de sua avó e o desejo sexual por príncipes e soldados. Em sua juventude, ele se divide entre o amor espiritual por Sonoko – uma jovem de dezoito anos de idade, irmã de seu melhor amigo – e o desejo carnal, homossexual, por um colega

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MARTINHO, Maria Helena

de escola, chamado Omi. A clivagem que se desvela entre o amor e o desejo é subsumida pela clivagem da “carne e do espírito”. De um lado a “carne”, o desejo homossexual carnal, o desejo por aquilo que se imprime na masculinidade, força, ignorância, gestos rudes, fala descuidada; de outro, o espírito, tudo aquilo que é da ordem da intelectualidade, como o amor “espiritual”, a própria encarnação por coisas do espírito, por coisas eternas. O protagonista do romance descreve algumas impressões que em sua juventude Omi lhe causou: “O que realmente obtive dele foi uma definição precisa da perfeição da vida e da masculinidade, personificadas em suas sobrancelhas, testa, olhos, nariz, nuca, pescoço, a cor de sua pele, sua força” (MISHIMA, 1949, p. 48). Por causa de Omi ele nunca pôde amar uma pessoa intelectual, jamais se sentiu atraído por uma pessoa que usasse óculos. Por causa de Omi ele começou a amar a força, a ignorância, os gestos rudes, a fala descuidada. A carne não podia, de modo algum, ser maculada pelo intelecto. O desejo sexual se encontra marcado pela condição carnal, onde o intelecto não comparece, há uma cisão entre a carne e o espírito, há uma exigência que carne e espírito mantenham distância um do outro. “Assim que começava a compartilhar minha compreensão intelectual com uma pessoa que me atraísse, meu desejo por essa pessoa logo arrefecia. Não tinha a mais tênue ideia de que havia uma conexão entre amor e desejo sexual” (Ibid., p. 84). A “sensação carnal” que ele sentia por Omi não era causada apenas pela proeza de sua força, mas pela abundância de pelos nas axilas, estas se constituíram em um fetiche para ele. “Sem dúvida, foi a vista de pelos sob os braços de Omi que fez da axila um fetiche para mim” (Ibid., p. 61). Ele desejava se tornar “uma réplica de Omi” (Ibid., p. 64). Começou a procurar em seu corpo franzino o reflexo da suntuosa virilidade de Omi. Um dia descobriu à beira-mar, ao ver as próprias axilas, que os pelos exuberantes de Omi, objeto de sua cobiça, começaram a crescer em seu corpo. Um misterioso desejo sexual logo o invadiu e, tomando os pelos de suas axilas por objeto, sozinho pela primeira vez ao ar livre, se masturbou, como costumava dizer, se entregou ao seu “mau hábito”. Seu coração nunca fora tocado pela beleza de uma mulher. Sonoko parecia “o reflexo de uma alma imaculada e simples” (Ibid., p. 105). O amor por Sonoko tornou-se uma obrigação moral para ele, e de repente ele foi invadido pela ideia de que estava apaixonado pela moça. Contudo, uma voz interior zombou dele bombardeando-o de perguntas: É amor o que você sente por ela? Mas você sente desejo por mulheres? Já teve alguma vez o mais leve desejo de ver uma mulher nua? Já imaginou Sonoko nua? Durante o dia, você anda pela rua e não vê ninguém além de marinheiros e soldados. Quantos desses jovens você não despiu mentalmente ontem? (Ibid., p. 125).

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Mishima: entre o amor e o desejo

Pois foi justamente entre o desejo homossexual por Omi e o amor por Sonoko que se instaurou, segundo o próprio Mishima, um movimento circulante, uma banda de Moebius. O que ele sentia por Sonoko não tinha nada a ver com desejo. Contudo, o seu desejo sexual pelos rapazes o consumia. Para suportá-lo ele tinha que recorrer ao seu “mau hábito” até cinco vezes num dia. A excitação por um efebo limitava-se a mero desejo sexual. Minha alma ainda pertencia a Sonoko. Havia uma luta, uma ruptura entre carne e espírito. Para mim Sonoko aparecia como a encarnação do meu amor pela própria normalidade, meu amor por coisas do espírito, meu amor por coisas eternas (Ibid., p. 172). Dessa forma Mishima se dividia entre “a carne e o espírito”. Sonoko representava a encarnação do amor, coisas do espírito. Enquanto Omi, a encarnação do desejo, coisas da carne. A descoberta, na juventude, de seus gostos pederastas representa o momento constituído na cena com Omi. Ele começou a procurar em seu corpo franzino o reflexo da suntuosa virilidade de Omi; doravante gosta nos rapazes de um outro ele mesmo. Com Sonoko, a mulher idealizada, encarnação do seu amor por coisas eternas, Mishima reproduz o envolvimento de um amor embalsamado; identificado à avó, ele gosta em Sonoko “de sua alma imaculada e simples” (Ibid., p. 105), ele gosta de um outro ele mesmo, do neto que ele foi para sua avó. A divisão vivida por Mishima se assemelha àquela vivida por André Gide. Em sua infância, Gide se divide entre Juliette – a mãe do amor –, e tia Mathilde – a mãe do desejo. Em sua juventude essa divisão também se evidencia em dois polos: de um lado, Madeleine – sua prima, sua esposa, o objeto do amor, a mulher ideal, o anjo dessexualizado –, e do outro, o objeto do desejo, os pivetes, os menininhos de pele morena, sexualizados. Quando criança, o invólucro mortal que Gide havia conhecido no amor materno muda com a sedução salvadora da bela tia Mathilde, sedução esta que foi narcisicamente fundadora para Gide, lhe despertou o desejo. Mas, entre os dois lugares constituintes da cena originária, a subjetividade de Gide rejeitou aquela que fazia dele o objeto do desejo feminino para identificar-se com a sedutora. A descoberta, aos vinte e quatro anos, de seus gostos pederastas representa o momento constituído pela cena com a tia. Gide assume o desejo do qual ele foi objeto e que não pôde suportar, ficando para sempre e eternamente apaixonado pelo mesmo menino que fora por um instante nos braços da tia. Identificado à mãe do amor e do dever, ele doravante gosta em Madeleine de um outro ele mesmo, do filho que ele foi para sua mãe, frágil, objeto do amor que necessita de proteção contra o mal e contra a vida. Madeleine passa a ser a

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mulher idealizada, a ponto de se tornar a única; ele dedica-lhe um amor puro, infinito e imóvel. Vive com ela durante vinte anos, um casamento que nunca foi consumado. Madeleine não podia ser nem o objeto nem o agente de uma sedução que lhe dava horror. Gide se coloca numa dependência mortal em relação a Madeleine, o que o faz exclamar: “Você não tem como saber o que é o amor de um uranista. É qualquer coisa como um amor embalsamado” (GIDE apud LACAN, 1957-1958/1999, p. 271). Da mesma forma que Gide ficou submetido ao amor embalsamado de Madeleine, Mishima também ficou submetido a um amor embalsamado, o de sua avó. Estar entregue a essa avó era estar fadado à morte, condenado a permanecer prisioneiro desse amor. “Na idade de doze anos, eu tinha uma namorada sincera e apaixonada, de sessenta anos” (MISHIMA, 1949, p. 31). A perversão de Mishima não se deve ao fato de ele só poder desejar os meninos, mas ao fato de que ele constrói a mulher ideal, não castrada. Mishima tenta fazer A Mulher existir. Sua avó é “toda para ele” e Sonoko é a única do amor. Mishima tentou constituir dois polos de pureza e perfeição, dois absolutos. Ele perseguiu a solução da divisão do eu que se apresentava nas polaridades, mas o abismo que o dividia entre “o amor e o desejo” nunca se preencheu. Em um verdadeiro tratado sobre o corpo, uma obra-prima, intitulada Sol e aço (1968a), Mishima confessa: “Sou um que sempre só esteve interessado nos extremos do corpo e do espírito [...] Opostos conduzidos a seus extremos tendem a se assemelhar; e coisas separadas ao máximo, aumentando a distância entre elas, acabam por se aproximar” (Ibid., p. 89). Essa é uma verdadeira definição do desmentido. Mishima tentou aproximar a carne e espírito ao longo de toda a sua vida, mas [...] corpo e espírito nunca deram boa combinação. Eles nunca foram parecidos. Nunca experimentei na ação física nada que se assemelhasse à satisfação arrepiante e aterradora proporcionada pela aventura intelectual. Nem senti nunca na aventura intelectual o calor impessoal, a cálida escuridão da ação física [...] Em algum lugar deve haver um princípio maior onde os dois se encontrem e façam as pazes. Esse princípio maior, eu pensei, era a morte (Ibid., p. 90).

referências bibliográficas FREUD, S. (1912a). Sobre la más generalizada degradación de la vida amorosa (Contribuciones a la psicología del amor, II). In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 2004. v. 11, pp. 169-184. __________. (1912b). Contribuciones para un debate sobre el onanismo. In:

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Mishima: entre o amor e o desejo

Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 2004. v. 12, pp. 247-263. __________. (1914). Introducción del narcicismo. In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 2006. v. 14, pp. 65-98. __________. (1915). Pulsiones y destinos de pulsión. In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 2006. v. 14, pp. 105-134. __________. (1927). Fetichismo. In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 2004. v. 21, pp. 141-152. __________. (1940 [1938]). La escisión del yo en el proceso defensivo. In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 2004. v. 23, pp. 271-178. GIDE, A. (1902). O imoralista. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. __________. (1909). A porta estreita. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. __________. (1925). Os moedeiros falsos. São Paulo: Francisco Alves, 1985. __________. (1926). Se o grão não morre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. __________. (1929). A escola das mulheres. Porto Alegre: Livraria do Globo, [19--?]. KUSANO, D. Yukio Mishima: o homem de teatro e cinema. São Paulo: Perspectiva: Fundação Japão, 2006. LACAN, J. (1958). Juventude de Gide ou a letra e o desejo. In: Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998, pp. 749-775. __________. (1963). Kant com Sade. In: Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998, pp. 776-806. __________. (1957-1958). O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1999, 531p. __________. (1968-1969). O Seminário, livro 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2008. 412p. MISHIMA, Y. (1949). Confissões de uma máscara. São Paulo: Vertente, [19--?]. __________. (1956). O templo do pavilhão dourado. Rio de Janeiro: Rocco, 1988. __________. (1968a). Sol e aço. São Paulo: Brasiliense, 1985. __________. (1968b). Depois do banquete. Rio de Janeiro: Edinova, 1968. __________. (1969). Neve de primavera. Mar da fertilidade. São Paulo: Brasiliense, 1986. v. 1.

resumo

As confissões feitas por Yukio Mishima em seu romance autobiográfico Confissões de uma máscara (1949) são tomadas neste artigo para ilustrar como esse sujeito passa – tal qual em uma banda de Moebius – do amor ao desejo em um movimento circulante. Em sua infância ele se divide entre o amor de sua avó e o desejo sexual por príncipes e soldados. Em sua juventude, ele se divide entre o amor espiritual por Sonoko e o desejo carnal, homossexual, por Omi. A clivagem que se desvela entre o amor e o desejo é subsumida pela clivagem da “carne e do

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espírito”. De um lado a “carne”, o desejo homossexual carnal, o desejo por aquilo que se imprime na masculinidade, força, ignorância, gestos rudes, fala descuidada; de outro, o espírito, tudo aquilo que é da ordem da intelectualidade. Mishima tentou constituir dois polos de pureza e perfeição, dois absolutos, desmentindo, assim, a castração do Outro. Ele perseguiu a solução da divisão do eu que se apresentava nas polaridades, mas o abismo que o dividia entre “o amor e o desejo” nunca se preencheu.

palavras-chave

Perversão, amor, desejo.

abstract

The confessions made by Yukio Mishima in his autobiographical novel Confissões de uma máscara (1949), are included in this article to illustrate how this subject passes – just like in a Moebius band – the love to desire in a circulating motion. In his childhood he was divided between the love of his grandmother and sexual desire for princes and soldiers. In his youth, he was divided between the spiritual love for Sonoko and the carnal desire, homosexual, for Omi. The cleavage that unveils between love and desire is subsumed by the cleavage between “flesh and spirit”. On one side the “flesh”, the homosexual carnal desire, the desire for what is printed in masculinity, strength, ignorance, rude gestures, careless talk, on the other, the spirit, all that which is of the order of the intellectuality. Mishima tried to constitute two poles of purity and perfection, two absolute, belying the castration of the Other. He pursued the solution of division of the I which appeared in polarities, but the chasm that divided him between “love and desire” never filled. The confessions made by Yukio Mishima in his autobiographical novel “Confessions of a mask” (1949), are taken in this article to illustrate how this subject moves – just like in a Moebius band – from love to desire in a circling movement. In his childhood, he was divided between his grandmother’s love and the sexual desire for princes and soldiers. In his youth, he was divided between his spiritual love for Sonoko and the carnal homosexual desire for Omi. The cleavage that is unveiled between love and desire is subsumed by the cleavage of “flesh and spirit”. On one side, “flesh”, the carnal homosexual desire, the desire for what is imprinted in masculinity, strength, ignorance, rude gestures, careless talk, on the other, spirit, all that which is related to intellectuality. Mishima tried to constitute two poles of purity and perfection, two absolutes, denying, thus, the castration of the Other. He pursued the solution of division of the self, which presented itself in polarities, but the chasm that divided him between “love and desire” was never filled out.

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Mishima: entre o amor e o desejo

keywords

Perversion, love, desire.

recebido 11/02/2014

aprovado 15/03/2014

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Dom Quixote, Sancho Pança, a errância do desejo e mais-além Raul Pacheco Afirma Kojève, logo no início de sua Introdução à leitura de Hegel (1947/2002), que o homem, absorvido pelo objeto que contempla, só pode voltar a si mesmo por meio do desejo. Apenas o desejo pode transformar o ser, revelado a si mesmo por si mesmo, “em um objeto revelado a um sujeito, por um sujeito diferente do objeto oposto a ele”. Consequentemente, “é como seu desejo que o homem se constitui e se revela”. É também a partir do desejo que ele sai da passividade, inquieta-se e age sobre o mundo. Mas, para que haja “consciência-de-si” (Selbstbewusstsein) é mister que o desejo se dirija a um objeto não-natural e ultrapasse a realidade. Daí que “o desejo que se dirige a um outro desejo, considerado como desejo, vai criar, pela ação negadora e assimiladora que o satisfaz, um Eu essencialmente diferente do ‘Eu’ animal” (KOJÈVE, Ibid., p. 12). Sabemos: só pode ser desejo humano o desejo mediatizado pelo desejo de outro ser humano. É preciso que intervenha a demanda, com o incondicional de seu objeto (o amor), para que a perda da especificidade do objeto do instinto se traduza na condição absoluta a que o desejo eleva o seu objeto. Capturado nas malhas do significante – como ilustrado por Freud, com o joguinho do Fort-Da de seu netinho, e assinalado por Lacan, no Seminário 11 – “alguma coisinha do sujeito” se destaca e “é com seu objeto que a criança salta as fronteiras de seu domínio transformado em poço e que começa a encantação.” (LACAN, 1964/1988, p. 63). Da fenda produzida pela extração do objeto, a partir da operação automutiladora constituinte do sujeito, emerge o vetor pulsional que vai em busca dos objetos do mundo. Daí que, como já propunha Heidegger, o ser do Dasein não seja estático, mas sim ekstático, no sentido do verbo latino eksistere, de “dar um passo à frente, para fora” (TEIXEIRA, 2006, p. 23); ou seja, de insistir, de estender-se para fora e para além de si mesmo, ultrapassando-se. Porém, se o desejo escava no homem a cicatriz de sua eksistência e o ultrapassamento de si próprio, em direção aos objetos do mundo, sabemos que ele responde também pela sua errância, não como acontecimento transitório e fortuito, mas como componente essencial da sua abertura ao mundo. “O caminhar historial do homem é essencialmente errante. Isto se torna compreensível pelo caráter ontológico in-sistente e ek-sistente do homem” (BATISTA, 2005, p. 4).

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Erra aquele que busca o segredo do desejo humano nos entes do mundo com que este se encanta e distrai: aquilo que é da ordem do das Wohl da crítica kantiana à razão prática1. Por maior que seja a fascinação com as coisas do mundo, e a despeito da sua importância ou potência de sideração sobre o sujeito, ainda assim, por razões de compromisso da precisão terminológica com o que é de ordem estrutural, cumpre sempre grafar essas coisas do mundo com o cê minúsculo de tudo que a fantasia dispõe em sua tela para cobrir a janela do real: ou seja, os objetos que o sujeito vai encontrando no caminho da errância ditada pelo desejo. O desejo é a metonímia do discurso da demanda, e o nó do problema não é o encanto de cada novo objeto e sim a própria mudança de objetos, em si mesma. O verdadeiro segredo do desejo tem que ser procurado na forma que subjaz a essa distração, encanto, fascinação, errância: é na Coisa com cê maiúsculo (das Ding) que, é mister, ele seja procurado. É no ontológico, e não no ôntico, que a errância deve ser procurada, diria Heidegger, já que “a errância ocupa, no pensamento de Heidegger sobre a essência da verdade, o lugar antitético da ‘antiessência fundamental que se opõe à verdade essencial’” (BATISTA, 2005, p. 4)2. Isto mostra que nem sempre a Filosofia tem que se opor ao que a Psicanálise descobre em sua clínica. E quem poderia, na Literatura, melhor do que Dom Quixote, de Cervantes, oferecer uma alegoria para os paradoxos e a errância do desejo? Dom Quixote, o cavaleiro errante, e suas andanças na busca do amor de Dulcineia: o objeto de seu amor cortês. Dom Quixote, o cavaleiro da triste figura, montado no pangaré Rocinante e usando como capacete uma cuia para fazer a barba; criado por Cervantes para fazer ironia às ordenações do discurso do amo, em uma Espanha decadente e em crise e com uma Inquisição intolerante e violenta. A derrota da “Invencível Armada” em 1588 é apenas um dos muitos episódios que haviam feito a Espanha da passagem do século XVI para o XVII duvidar de si mesma (JERPHAGNON, 2009) e, como que para denunciar isto por antinomia, Dom Quixote só tem certezas. Dom Quixote, cuja importância para o questionamento do desejo não passou despercebida de Freud, que se dedicou a aprender o espanhol tendo como objetivo precípuo a leitura da obra em seu idioma original. Dom Quixote, que, embora louco, às vezes dá mostras, como no trecho a seguir, de conhecer os paradoxos do desejo e as contradições entre, de em lado, a realidade e a fantasia que a sustenta, e, de outro, o lócus recôndito e impossível da causa do desejo: – Não! – disse ele, acreditando sua imaginação e com voz que pudesse ser ouvida. – Não há de ter força a maior formosura da terra para que eu deixe de adorar 1 Veja-se o Seminário 7 (LACAN, 1959-1960/1988) e o texto Kant com Sade (LACAN, 1963/1988). 2 “A errância ‘é uma componente essencial da abertura do ser-aí”.(Id.)

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Dom Quixote, Sancho Pança, a errância do desejo e mais-além

a que tenho gravada e estampada no meio do coração e no mais escondido das entranhas, ora estejas, senhora minha, transformada em repolhuda lavradora, ora em ninfa do dourado Tejo. [...] Pois onde quer que seja és minha e onde quer que seja eu fui e hei de ser teu (CERVANTES [SAAVEDRA], 1615/2007, p. 557). Dom Quixote, o engenhoso fidalgo, cuja província, La Mancha, evoca para nós, analistas, a mancha do quadro Os embaixadores, de Holbein (um contemporâneo do mesmo século), estampada na capa do Seminário 11, e que remete ao objeto a como olhar. Olhar, como objeto real, que deve desaparecer do mesmo modo que o feixe de raios luminosos do experimento de Gelb e Goldstein, para que surjam as imagens dos objetos em seu estatuto de realidade. Como diz Lacan no Seminário 11, “em sua relação ao desejo, a realidade só aparece como marginal” (1964/1988, p. 105). Porém, se ao longo da obra Dom Quixote traça seu percurso errante, alienado na produção imaginária de suas loucas fantasias, no capítulo final do Segundo Livro recupera o juízo, desautorizando a desfaçatez de pseudointerpretações psicanalíticas aplicadas de qualidade duvidosa, que pudessem pretender limitar o alcance da obra a uma exemplificação da Verwerfung. Aí o encontramos na hora da morte, impotente e resignado: – Já não sou Dom Quixote de La Mancha, mas sim Alonso Quijano [...]. Já me são odiosas todas as histórias profanas de cavalaria andante; já conheço a minha nescidade e o perigo em que me pôs o tê-las lido; já por misericórdia de Deus e bem escarmentado, as abomino. [...] – Os contos, que até agora têm sido verdadeiros só em meu prejuízo – respondeu Dm Quixote – espero que a minha morte os mude, com o auxílio do céu, em meu proveito. Sinto senhores, que a morte vem correndo; deixem-se de burlas e tragam-me um padre a quem eu confesse e um tabelião que faça meu testamento (CERVANTES [SAAVEDRA], 1615/2005, p. 910). – As misericórdias, [...] são as que neste momento Deus teve comigo, sem as impedirem [...] os meus pecados. Tenho o juízo já livre e claro, sem as sombras caliginosas da ignorância com que o ofuscou a minha amarga e contínua leitura dos detestáveis livros das cavalarias. Já conheço os seus disparates e os seus embelecos e só me pesa ter chegado tão tarde este desengano, que já não me desse tempo para me emendar, lendo outros que fossem luz da alma. Sinto-me [...] à hora da morte; quereria passá-la de modo que mostrasse não ter sido tão má a minha vida, que deixasse renome de louco, pois, apesar de o ter sido, não quereria confirmar-se essa verdade expirando. Chama-me os meus bons amigos, o cura, o bacharel Sansão Carrasco, e mestre Nicolau, o barbeiro, que me quero confessar e fazer o meu testamento (Ibid., p. 909).

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E aqui quero dirigir o contexto alegórico de Dom Quixote para uma interrogação sobre o que pode fazer o percurso de uma análise em relação à errância constitutiva do ser humano e seu encantamento com os objetos do desejo. O objeto da pulsão é in-diferente, ainda que nele a pulsão encontre sua satisfação e ainda que Heidegger atribua ao homem (Dasein) a função de “pastor do ser”, encarregado de guardar e de cuidar de todas as coisas do mundo. Porém, embora o percurso de uma análise não se faça sem a massa de mira colocada sobre os objetos do desejo, o final de uma análise e o atravessamento da fantasia têm que contar com o que se encontra em outro lugar, que não nas coisas para as quais a Psicanálise reserva, como primeira letra, o cê minúsculo. Sem isso, erra o sujeito, mas erra também o analista, já que, como já disse Lacan, les non-dupes errent [os não-tolos também erram] e sua errância toma o lugar de [Freud], o Nome-do-Pai [le Nom-du-Père] (LACAN, 1973-1974). Em tudo que para o Dasein importa, em tudo em que ele investe sua libido, a Coisa encontrada que o move será sempre a mesma e exige a letra maiúscula para sua grafia: e é do real que essa causa provém. Como opera uma análise para fazer, desse circunvolucionar em torno – e afagar – do objeto do desejo, um mais-além do simples retorno do “mesmo” e um sinalizar na direção de alguma transformação efetiva do sujeito e de seu modo de gozo? Pensar-se que a Psicanálise opera pela simples subestimação das coisas do mundo com que o desejo humano se relaciona é um equívoco. É equivocado pensar-se que a in-diferença dos objetos pulsionais possa conduzir a uma des-valorização de tudo que cai, clareira que cada homem escava ao redor do lugar que ocupa no mundo. É verdade que na via de toda análise não existe objeto ou sentido que mereça o estatuto de sagrado e que, por essa condição, deva ser resguardado do questionamento mais radical. Não há o intocável que não possa ser eventualmente colocado em questão. Assim como por trás do fetiche de toda mercadoria, Marx descobre o equivalente geral e a mais-valia, por trás de todo objeto com que o ser humano se entretém (por trás de todo objeto da pulsão), Freud e Lacan descobrem o mais-de-gozar. Mas não nos enganemos: a Psicanálise não é uma prática de ascese, uma teologia negativa ou a apologia da resignação. Dom Quixote arrepende-se e renega a falsidade e mentira de suas fantasias, responsáveis por sua errância. Para Heidegger e também para a Psicanálise, o homem erra e move-se na errância porque isto lhe é ontologicamente constitutivo: ele “in-siste ek-sistindo, agindo inquietamente de um objeto para o outro na vida cotidiana e desviando-se do mistério – isto é o errar” (BATISTA, p. 3). Porém, abominar e “esquecer a errância, isto é, não levá-la a sério, é esquecer o esquecimento do mistério: a decisão enérgica pelo mistério se põe em marcha para a errância que se reconheceu como tal” (Ibid., p. 4). Lembra-nos Soler (1993/1995, pp. 102-103), que uma análise tem que despir o

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Dom Quixote, Sancho Pança, a errância do desejo e mais-além

sintoma de sua mentira significante e reduzi-lo a seu ser de gozo, pois a mentira é inerente à cadeia significante: uma vez que falamos, mentimos. Contudo, o falso do sintoma implicado pela “identificação ao sintoma” do final de análise não é a mentira que o acompanha ao longo das sucessivas declinações em seu trajeto: “não é o falsus com conotação de mentira, de oposto à verdade, mas do falsus com a conotação de caído, ou seja, o que fica para o deciframento de sua mentira, o que resta de idêntico a si mesmo”. Escreve Lacan em O aturdito: “falso, leva a uma ideia do real que eu diria ser verdadeira. Infelizmente, não é essa a palavra que convém ao real. Preferiríamos poder prová-la falsa, se com isso se entendesse ‘decaída’ (falsa), ou seja, escorregando dos braços do discurso que a estreita” (1973/2003, p. 478). No mesmo texto, ele afirma que só se atinge o fim de uma análise quando o analisante faz, do objeto a, o representante da representação de seu analista. Enquanto dura o seu luto pelo objeto a, ao qual ele reduziu seu analista, ele continua a causar seu desejo: mas “sobretudo maníaco-depressivamente” (Ibid., p. 489). Porém, não são a depressão e a morte, o que deve estar à espera no ponto final do percurso analítico. Falando a respeito da morte do Homem dos Ratos nas trincheiras da guerra mundial de 1914, Soler assinala que Lacan “percebe em algum lugar que Freud considera que essa morte não aconteceu por acaso e está correlacionada à análise” (1993/1995, p. 115). Teria sido a solução pela morte real, enquanto que uma análise levada a seu termo tem como solução a “identificação com o sintoma”. Para esse sujeito que não atravessou seu fantasma, a morte realizou a mortificação interna existente em seu fantasma; realizou o desejo impossível, com suas formas de gozo (...). Com a morte vem o fim das consequências e, nesse sentido, ela é um ato falho, um ato que não pode ser provado. Não há ‘passe’ para o cadáver, o falecido. A morte torna todo passe impossível” (Ibid., p. 116). A melhor alegoria para um Cervantes reconciliado com seu sintoma, no final da saga de Cervantes, – um mais-além da errância do desejo que não seja a morte ou a depressão – não é o Dom Quixote abatido, impotente e resignado, desculpando-se com seu companheiro por conduzi-lo a aventuras insensatas. É Sancho Pança, contestando-o e buscando conduzi-lo novamente ao entusiasmo, que melhor representa essa posição. Recuperemos esse diálogo: [Dom Quixote] – Perdoa-me, amigo, o haver dado ocasião de pareceres doido como eu, fazendo-te cair no erro, em que eu caí, de pensar que houve e há cavaleiros andantes no mundo. – Ai! – respondeu Sancho Pança, chorando – não morra Vossa Mercê, senhor meu amo, mas tome o meu conselho e viva muitos anos, porque a maior loucura que pode fazer um homem nesta vida é deixar-se morrer sem mais, sem

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PACHECO, Raul

ninguém nos matar, nem darem cabo de nós outras mãos que não sejam as da melancolia. Olhe, não me seja Vossa Mercê preguiçoso, levante-se dessa cama e vamos para o campo vestido de pastores, como combinamos. Talvez em alguma mata encontremos a senhora dona Dulcineia [...] (CERVANTES [SAAVEDRA], 1615/2005, pp. 912-913). Termino com o epitáfio aposto por Sansão Carrasco na sepultura de Dom Quixote: Jaz aqui o fidalgo forte, que a tanto extremo chegou. Valente, e de tal sorte, que a morte não triunfou, sobre sua vida, com sua morte. Teve a todo o mundo, em pouco, Foi o espantalho mais mouco, De um mundo em tal conjuntura, que acreditou ser sua ventura, morrer são e viver louco (CERVANTES [SAAVEDRA], 1615/2007, pp. 847).

referências bibliográficas BATISTA, João Bosco. (2005). A verdade do ser como alétheia e errância. Existência e arte: Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética e Artes, Universidade Federal de São João Del-Rei, ano 1, n. 1, jan./dez. 2005. Disponível em: <http://www.ufsj.edu.br/portal2-repositorio/File/existenciaearte/Edicoes/1_Edicao/A%20verdade%20do%20ser%20como%20Aletheia%20e%20Errancia%20Joao%20Bosco%20Batista.pdf>. [9 fev. 2014]. CERVANTES [SAAVEDRA], Miguel de (1615). D. Quixote de la Mancha (Segunda Parte). eBooksBrasil, 2005. Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/ eLibris/quixote2.html>. [9 fev. 2014]. CERVANTES [SAAVEDRA], Miguel de (1615). O engenhoso cavaleiro D. Quixote de la Mancha (Segundo Livro). São Paulo: Editora 34, 2007. JERPHAGNON, Thérèse (2009). Dom Quixote escapa da Inquisição. História Viva. São Paulo: Duetto, n. 1, set. 2009. KOJÈVE, Alexandre (1947). Introdução à leitura de Hegel. Rio de Janeiro: Contraponto/EDUERJ, 2002.

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Dom Quixote, Sancho Pança, a errância do desejo e mais-além

LACAN, JACQUES (1959-1960/1988). O seminário, livro 7: a ética da Psicanálise.. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. __________. (1963/1988). Kant com Sade. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. __________. (1964). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. __________. (1973). O aturdito. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. __________. (1973-1974). O seminário, livro 21: Les non-dupes errent. Disponível em: <http://www.valas.fr/IMG/pdf/S21_NON-DUPES---.pdf>. [9 fev. 2014]. SOLER, Colette. (1993). Variáveis do fim da análise. Campinas: Papirus, 1995. TEIXEIRA, Sônia Maria Platon. (2006). A noção de habitar na ontologia de Heidegger: mundanindade e quadratura. Dissertação (Mestrado de Filosofia) – Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2006.

resumo

O objetivo deste artigo é discorrer sobre a errância constitutiva do ser humano em seu encantamento com os objetos, circunscrevendo e explorando a interrogação sobre o que é que pode fazer desse circunvolucionar em torno – e afagar – do objeto do desejo um mais-além do simples retorno do “mesmo” e um sinalizar na direção de alguma transformação efetiva do sujeito e de seu modo de gozo. Algumas passagens do Dom Quixote, de Cervantes, oferecem o contexto alegórico apropriado para reflexões sobre o tema.

palavras-chave

Desejo, gozo, errância, causa, objeto.

abstract

The aim of this article is to discuss the constitutive wandering of the human being in his/her enchantment with the objects, marking and exploring the interrogation about what it is possible to do of this circling around – and fondling – of the object of the desire a far beyond of the simple return of the ‘same’ and a signaling towards some effective transformation of the subject and his/her way of jouissance. Some passages from Cervantes’ Don Quixote offer the appropriate allegorical context for reflections on the topic.

keywords

Desire, jouissance, wandering, cause, object.

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PACHECO, Raul

recebido 15/02/2014

aprovado 31/03/2014

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trabalho crĂ­tico com conceitos



A inexistência e a insensatez: hiância causal e o gozo do falasser Ana Paula Lacorte Gianesi Partirei de um poema-analisante, qual seja: [O vazio é um tempo, / Um tempo que parece, / Parece o nada] para pensar alguns pontos cruciais de nossa práxis. Lacan, algumas vezes, asseverou que o vazio não é o nada. Distinguir o nada e a inexistência me parece um passo em uma análise. Circunscrever a inexistência pode configurar-se um ato (contingente) que prova o impossível e, por isso mesmo, faz escrever a não relação sexual. O que não ocorre sem forçamento (forcing).1 Para isso é preciso tempo, operações e algumas voltas. Em Palavras sobre a histeria, de 1977, encontramos a afirmação de que nossa prática consiste em aproximarmo-nos de como operam as palavras. Lacan nos lembrava de que Freud já havia dito que há a maior relação entre as palavras e a sexualidade. A sexualidade está tomada em palavras. Aqui, localizamos o possível do gozo enquanto castração. Como sabemos, a castração permite e possibilita o gozo fálico. Estando o falo tomado por uma Bedeutung, significação sem necessidade de sentido. Genitivo neutro. Significante da falta que faz girar o desejo. Para o sujeito, um Outro não consistente propicia que a enunciação assuma a forma da demanda. Uma pergunta converge no nó do desejo e precipita a resposta fantasmática que, por sua vez, diverge para o significado do Outro e para a recusa (ou falta de resposta) do significante do Outro barrado, ou melhor, do significante da falta do Outro. Desejo e gozo distinguem-se e se articulam, muito embora seja preciso alguma reflexão sobre como se dão tais articulações. Interessante pensarmos que a apresentação da castração enquanto função que permite o gozo parece problematizar uma primeira concepção de Lacan: referente àquilo que recusaria o gozo para que o mesmo fosse atingido na “escala invertida da Lei do desejo” (LACAN, 1960/1998, p. 841). Se em princípio o gozo foi colocado fora do corpo, ele passou a ser no corpo. É justamente a linguagem que permite a diferença entre desejo e gozo, entre a falta e o mais-de-gozar. Entrementes, após as asserções de Lacan segundo as quais o significante está no gozo, mais precisamente enquanto sua causa (e ele retoma as quatro 1 Termo da lógica, referente a uma técnica proposta por Paul Cohen.

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GIANESI, Ana Paula Lacorte

causas aristotélicas para justificar sua afirmação), como recolocarmos as articulações entre desejo e gozo? Como poderíamos pensar as articulações entre desejo e corpo? Sigamos. Escrevemos: x = função da castração. O que isto quer dizer? Em seu Seminário 19, Lacan diz: “O que quer dizer é que aquilo que o Φx escreve tem como efeito não mais podermos dispor do conjunto dos significantes” (LACAN, 1971-72/2012, p. 33). Gozo fálico, gozo insensato. A insensatez do amor. Que você fez? O colorir do gozo fálico com o qual cada sujeito pretende se proteger da morte. Fez chorar de dor, o seu amor. Qualificação freudiana à identificação ao Pai (LACAN, 1976-77). Um amor tão delicado.2 Quantas canções que cantam o amor? Que cantarolam o desejo/ falta, o amor necessário e a insensatez gozosa? Qual tratamento possível a este gozo? Lacan nos propõe, clinicamente, um mais, ainda. No corpo. Ele nos indica uma divisão no campo do gozo: Gozo fálico, Outro gozo. Parte do princípio de que é como siginificantes que nos tornamos sexuados: Nós nos distinguimos. É por esta razão que coloco o x no lugar do furo que faço no significante. Coloco o x aí como variável aparente. O que quer dizer que, toda vez que eu lidar com esse significante sexual, isto é, com esse algo que se relaciona com o gozo, estarei lidando com Φx (LACAN, 1971-72/2012, p. 31). E toma cuidado ao enfatizar que Φx é uma função que não precisa ter sentido algum. “A significação de homem ou de mulher” será destacada “conforme o prosdiorismo escolhido” (Ibid., p. 54). Existe ou não existe – todo ou não-todo. A inscrição nos modos de gozo não se refere ao sentido. Igualmente merece nossa atenção que esta mesma função seja obstáculo à relação sexual. Φx é a um só tempo o que a relação do significante com o gozo produz e obstaculiza. Enquanto causa final, o significante realiza um “alto lá” ao gozo. E, ao mesmo tempo, ele o produz. A sexualidade tomada em palavras produz o gozar, o gozar de um corpo, inclusive. Conforme Lacan: “Gozar é usufruir de um corpo. Gozar é abraçá-lo, é estreitá-lo, é picá-lo em pedaços” (Ibid., p.31). A distinção no campo do gozo, que aponta um além do gozo fálico, parece também um mais além da divisão do sujeito do desejo. Um gozo sexual para além do falo. O que é consonante com a orientação feminizante de uma análise. Se a neurose se exibe precisamente com a questão: “Onde estou eu no dizer?” (Ibid., p. 89). Como uma resposta, pela impotência fantasmática, ao desejo do Outro que erra rasgando-se pelas demandas em re-petições infindas. De algo que 2 Insensatez, de Vinícius de Moraes e Tom Jobim.

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diz: porque não é isso! O quê? O que eu desejo! Como atravessá-lo? Como um desejo errante (insatisfeito, impossível ou cabreiro) pode decidir-se? Como um gozo paralisante, excessivo, pode dizer: satisfação! Pois bem, dizemos que a orientação pelo Real subverte o cálculo fálico. Lacan de fato apontou um passo àqueles que não saem daquilo que se passa do lado do pai. Será “do impossível como causa” que chegaremos a apontar o além do muro, afirmando “que o acesso à mulher é possível na sua indeterminação” (LACAN, 1971-72, lição de 12 de janeiro de 1972). Um passo em direção ao Outro gozo, além do falo. Por esse passo, por esse efeito, feminizante, Lacan pareceu apostar na possibilidade de um dizer que fosse interpretante (LACAN, 1971-72/2012, p. 226), uma aposta de Lacan inspirado por Pierce. Um dizer-signo. Esta aposta, de um dizer que produza um efeito de intradução (HARARI, 2004) ou de extrapolação dos significados. Seguir o fio do discurso analítico não tende para nada menos do que refraturar, encurvar, marcar com uma curvatura própria [...] aquilo que produz como tal a falha, a descontinuidade. Nosso recurso é, na alíngua, o que a fratura (LACAN, 1972-73/1985, p.61). O que fratura, o que claudica, o que descontinua: o próprio âmbito causal. A indeterminação da causa, o encontro faltoso que prova aquilo que não cessa de não se escrever. Podemos apontar as articulações clínicas entre o necessário, o contingente e o impossível (ou possível). Desassossegados com a indagação de Lacan sobre uma “apreensão experimentada da inexistência”. A inexistência, enquanto impossibilidade é possível. Para falarmos sobre a inexistência precisamos do vazio, do zero e do Um. Lacan perguntou-se “como a inexistência pode inexistir?”. Ela pode inexistir por meio do símbolo zero, propriamente o nada. E este sim, existe, o zero. O interessante é que ele diz que o vazio, enquanto aquilo que não comporta objeto algum, é o inexistente. O zero (símbolo) – nada – dá-lhe um nome. E, então, conta-se 1. Tem-se que o conceito = a zero dá um número diferente do que vem a ser o zero, ou seja, diferente daquele ao qual convém não à igualdade com o zero, mas o número zero. Zero como a extensão do conceito daquilo que não é idêntico a si. Não é uma questão de igualdade, mas sim de identidade. O zero é idêntico a 1. Desta feita, acompanhamos a seguinte afirmação: o 1 é o significante da inexistência (LACAN, 1971-72/2012). Lembremos algumas afirmações de Lacan sobre o S1, talvez enquanto produto do discurso do psicanalista, S índice 1. O S indica o Um podendo nada conter. A questão: o que há de Um em cada significante? Ou, ainda, o S1-letra enquanto

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uma função que não se predica ou qualifica, que é homóloga ao objeto a quanto ao ab-senso, mas que porta uma identidade de si a si. Pistas para o que mais tarde designará como identificação à letra do sinthoma. Zero idêntico a Um, os suportes da inexistência (propriamente o vazio). Lacan cuidou, entretanto, para que não caíssemos em posições inefáveis ou idealistas. “A inexistência só se produz na posteridade da qual surge primeiro a necessidade” (Ibid., p. 51). A necessidade material aponta/prova a inexistência. Entre necessidade e inexistência de fato adentramos no terreno da causa. A causa enquanto hiância que se produz a posteriori pela contingência/necessidade significante. A hiância causal pode ser abordada em sua articulação com o real e desdobrada em seus vetores, um que aponta o gozo, outro que indica o desejo. Penso que a causa pode propriamente articular desejo e gozo! Pois bem, se o desejo em seus circuitos é errante, sua causa é hiante! E a assunção da causa pode implicar, eticamente, o desejo do psicanalista. Desejo decidido. Não se trata do desejo puro da falta, mas de um desejo decidido que pode levar o amor para além dos limites da lei (do pai). Um desejo que se abre à pulsão, aos orifícios do corpo. Fenda, buraco, tropeço, surpresa, rachadura, vacilação, descontinuidade, eis alguns dos termos escolhidos por Lacan para referir-se à causa. Conforme nos propôs, a causa seria justamente uma função. E haveria, nesta função, uma hiância. Ele o disse, hiância causal e ainda acrescentou: a função de que se trata é uma função do impossível (LACAN, 1964). A causa, pertinente ao objeto real, objeto a, encontra-se, justamente, nos intervalos esburacados entre os significantes. Nos pontos fora-do-sentido que separam uma manifestação do inconsciente de seu sentido. A causa real, posta no objeto a, implica o vazio de sentido. Ainda Lacan: “Não é senão na medida em que o real é esvaziado de sentido que nós podemos apreendê-lo um pouco [...]”. E para enganchar alguma coisa, Lacan diz: “é a Lógica do Um que resta como ex-sistência” (LACAN, 1975-76, inédito, lição de 8 de março de 1977). Ou, antes: “Trata-se de saber não como surge o sentido, mas como é de um nó de sentido que surge o objeto [...] objeto pequeno a” (LACAN, 1971-72/2012, p. 85). Algumas operações se fazem necessárias. E a interpretação assume seu papel fundamental pela via do equívoco. Interpretação e forçamento. No Seminário De um Outro ao outro, Lacan afirmou: “Ir o mais longe possível na interpretação do campo do Outro como tal permite perceber sua falha numa série de níveis diferentes” (LACAN, 1968-69/2008, p. 82). Donde vem a dimensão do indecidível. S1 como o que se engancha alguma coisa, S2 como o que não se

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alcança. S2 como tendo duplo sentido para que S1 tome seu lugar (15). “Ir o mais longe possível”, eis um forçamento (forcing) que pode fazer S1 (esse Um) enganchar alguma coisa que não o sentido e S2, esse saber operar com as palavras, com o duplo sentido, com o equívoco, com o que trabalha em prol do gozo, um gozo-saber. Isso permite cavar um furo. Outra citação de Lacan: Se vocês são psicanalistas, vocês verão que é o forçamento por onde um psicanalista pode fazer ressoar outra coisa, outra coisa que o sentido [...] O sentido, isso tampona; mas com a ajuda daquilo que se chama escritura poética vocês podem ter a dimensão do que poderia ser a interpretação analítica [...] Não que toda poesia seja tal que a possamos imaginar pela escritura, pela escritura poética chinesa [...] é que eles cantarolam, é que eles modulam, é que há o que François Cheng enunciou diante de mim, a saber, um contraponto tônico, uma modulação que faz com que isso cantarole, porque da tonalidade à modulação há um deslizamento. Que vocês sejam inspirados por alguma coisa da ordem da poesia para intervir, é bem em direção a que vocês devem se voltar [...] se a linguística se soergue é na medida em que Roman Jakobson aborda francamente as questões de poética (LACAN, 1976-77, inédito, aula de 18 de abril de 1977). Se os estudos sobre a função poética (Jakobson) nos possibilitam bons debates acerca do fundamento do equívoco, de lalíngua e do poema analisante, o tonema nos traz a canção, o cantarolar, o modular... o tom, o som, o silêncio... as ressonâncias do corpo. A hesitação entre o som e o sentido, a queda do referente (próprios à função poética) e as modulações no corpo (da tonalidade). Não obstante, isso não passa sem a lógica, não passa sem a prova do impossível. Para fazer ressoar outra coisa que o sentido (como um golpe de sentido), para isso parece ser preciso um forçamento – forcing. Conforme Badiou propôs: o forçamento ao indecidível. O forçamento revela um indiscernível (ou inexistente), pois, como uma técnica, ele parte de uma operação na qual se obtém uma extensão por adjunção de uma parte indiscernível, uma parte genérica, que é desconhecida na situação, mas que existe. Mais ainda, não obstante desconhecida, é nomeada (BADIOU, 1996). Trata-se mesmo de uma operação sobre axiomas de determinada teoria dos conjuntos, e isto se dá por nomeação. Podemos forçar um axioma por Vazio (inexistente, indiscernível). O “sujeito passa à força num ponto em que a língua falha [...] aquilo para o que ele abre é uma des-medida, [...] porque o vazio foi convocado” (BADIOU, 1996, p. 335). Lembremos que a fantasia é um axioma para o neurótico. Daí que por forçamen-

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to um sujeito possa atravessar sua verdade mentirosa e articular “o indiscernível à decisão de um indecidível” (Ibid., p. 326). Segundo Badiou, o resultado mais importante da técnica do forçamento é que é possível forçar veridicidades sem que as mesmas sejam absolutas. O saber sobre a verdade (não-toda) que se sustenta a partir do discurso do psicanalista convoca o vazio (inexistência), prova o furo. A aposta de Lacan: ao forçarmos o inexistente, para que este possa inexistir, podemos fazer ressoar outra coisa... as modulações do corpo, os efeitos de furo. Ressoar outra coisa e viver a pulsão. Um desejo que se decide e faz do corpo “Encore”. Porque gozar de lalíngua produz seus efeitos, o savoir y faire é posto como responsabilidade. Responsabilidade sobre o gozo, o gozo (do falasser) que se refere à letra do sinthoma, este nosso necessário reduzido a uma função, sem qualidades – o enganche de alguma coisa. Algo de des-medido, que a desmaneira singular trata de inventar a cada vez. Da verdade à variedade do Sinthoma. Uma variedade do conhecer. Conhecer o som, o tom e o silêncio da voz. Como nos indica um grande poeta russo: “Conheça, pelo menos, os sons que outrora te foram caros” (Pushkin)

referências bibliográficas BADIOU, A. O Ser e o Evento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, 402p. HARARI, R. Intraducción del psicoanálisis – Acerca de L’insu..., de Lacan. Madrid: Edotorial Síntesis, 2004, 332 p. LACAN, J. (1960). Subversão do sujeito e dialética do desejo. In: LACAN, J. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, pp. 807-842. __________. (1964). O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Versão brasileira M. D. Magno. 2ª ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1985, 269p. __________. (1968-69). O Seminário, livro 16: De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, 412p. __________. (1971-72). O Seminário, livro 19: ... ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012, 249p. __________. (1971-72), O Seminário: ... ou pior, aula de 12 de janeiro de 1972, versão do Centre de Estudos do Recife. __________. (1972-73). O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, 201p. __________. (1976-77). O Seminário, livro 24: l’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre. Inédito. __________. (1977). Palavras sobre a Histeria. Inédito.

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A inexistência e a insensatez: hiância causal e o gozo do falasser

resumo

O texto parte de um poema-analisante, qual seja: [O vazio é um tempo, / Um tempo que parece, / Parece o nada.] para pensar alguns pontos cruciais da práxis psicanalítica. Lacan, algumas vezes, asseverou que o vazio não é o nada. Distinguir o nada e a inexistência parece um passo em uma análise. Circunscrever a inexistência pode configurar-se um ato (contingente) que prova o impossível e, por isso mesmo, faz escrever a não relação sexual. O que não ocorre sem forçamento: um forcing para fazer ressoar outra coisa que o sentido (neurótico). Para isso é preciso tempo, operações e algumas voltas. O forçamento revela o inexistente (propriamente o vazio). É possível, então, forçar o vazio para que este possa efetivamente inexistir e, desta feita, fazer ressoar as modulações do corpo e os efeitos de furo através dos quais cada sujeito (singular) poderá inventar.

palavras-chave

Vazio, nada, desejo, gozo, causa e forçamento.

abstract

The text departs from an analyzing-poem, that is: [The void is a time, / A time that seems, / Seems like nothing .] in order to reflect upon some crucial aspects of our praxis, Lacan has emphasized that the void is not the nothing. To distinguish the nothing from the inexistent seems a step in an analysis. To circumscribe the inexistence, it can be configured as an act (contingent) that proves the impossible and, for this very reason; it makes it write the non sexual relationship. This does not happen without forcing: forcing to make resonate something else. For this it is needed time, operations and some turns. Forcing reveals nonexistent (empty properly). You can then force the empty so that it can effectively inexistent and, this time, to echo modulations of the body and the effects of hole through which each subject (singular) can invent.

keywords

Void, nothing, desire, jouissance, cause and forcing.

recebido 15/02/2014

aprovado 28/03/2014

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Relação entre sublimação e desejo1 Beatriz Elena Maya Restrepo 1. A pergunta Ao final do Seminário 7, A ética da psicanálise, encontramos este parágrafo: Na definição da sublimação como satisfação sem recalque há, implícito ou explícito, passagem do não-saber ao saber, reconhecimento disto, que o desejo nada mais é do que a metonímia do discurso da demanda. É a mudança como tal. Insisto – essa relação propriamente metonímica de um significante ao outro que chamamos de desejo, não é o novo objeto, nem o objeto anterior, é a própria mudança de objeto em si (LACAN, 1959-60/2011, p. 352). Vemos estreitamente articuladas três noções: a sublimação, o desejo e o saber. É a referência à mudança que articula sublimação e desejo. Não se sabe muito bem se a mudança refere-se à sublimação, ao desejo ou a ambos, o que sugere uma pergunta: qual a relação estabelecida entre o desejo e a sublimação? E qual sua diferença?

2. Do desejo Desde a primeira lição do Seminário 7, Lacan fala do desejo como o que dá a gênese à dimensão ética; um desejo que se apoia no polimorfismo perverso e, sobretudo, em sua realização alucinatória, graças à perda original inaugurada pela linguagem e que se instaura como das Ding. Tendo situado nesse lugar a mãe, Freud falará do desejo incestuoso como fundamental, sobre o qual se funda a lei que dá origem à cultura. Depreende-se disso que a função do princípio do prazer seja “fazer com que o homem busque sempre aquilo que ele deve reencontrar, mas que não poderá atingir” (Ibid., p. 87). Situar a Coisa ou das Ding como mira do desejo é aproximar essa noção de desejo à de gozo; já que o desejo surge como um paradoxo, uma busca orientada por um objeto que nunca poderá ser alcançado, porque fazê-lo implicaria a morte, o campo da destruição absoluta. A mesma lei 1 Trabalho apresentado na jornada de encerramento sobre o Seminário 7, A ética da psicanálise, em 16 de março de 2013, no Fórum de Medelín.

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RESTREPO, Beatriz Elena Maya

que empurra a busca do desejo, se é reforçada para proibi-lo, traz consigo mais gozo e, do mesmo modo, quando se tenta obviar a lei indo em direção ao gozo, o que se encontra são obstáculos, isto é, “a transgressão no sentido do gozo só se efetiva apoiando-se no princípio contrário, sob as formas da Lei” (Ibid., p. 217). Por isso, o que se pode fazer é girar em círculos, obtendo uma satisfação curta. Aqui vai ficando claro aquilo que, sobre o desejo e o gozo, parecia ser um pouco confuso nesse seminário. Então, chega-se ao desejo pela interdição do gozo. Uma das formas de girar em círculos é aquela que permite a sublimação. Lacan introduz a realização humana a partir do desejo. Assim, faz uma exposição de princípios, situando a razão ou articulação significante, desde o início, como anterior ao sujeito; é depois disso que o homem situa suas necessidades, assim ele é capturado pelo campo do inconsciente que tem em sua estrutura uma spaltung, um buraco, uma divisão, ao redor da qual se organiza o desejo. Spaltung que, por sua vez, tem a ver com o gozo, porque esse campo, que é a mira do desejo, converte-se em algo central, escuro, inacessível, campo do gozo. O significante então, introduzindo a falta, inscreve o mortífero, mas, ao mesmo tempo, o espaço para o desejo, ou seja, há desejo porque há significante e falta.

3. Da sublimação Não é uma noção simples em Freud; é Lacan quem a esclarece ao longo de sua obra. Antes mesmo do Seminário 7, indaga em suas relações com a idealização, do mesmo modo, a situa como um processo imaginário de uma identificação do eu com o Outro (LACAN, 1956-57/1994). Mas não deixará as coisas assim. Lacan avança relacionando a sublimação com a letra como materialidade significante, especificamente na obra literária. Desde esse seminário, questiona o tratamento que Freud deu a essa noção; pergunta se, com Freud, é possível defini-la como uma atividade sexual enquanto está dessexualizada e prepara o terreno para aquilo que irá desenvolver no Seminário 7. Define a sublimação como a forma na qual se “escoa” o desejo e a relaciona com a pulsão descrita como o jogo significante. Termina Lacan (1958-59/inédito, p. 516 ), no Seminário 6, O desejo e sua interpretação: [...] que noção é esta se não podemos defini-la como a forma mesma na qual se escoa o desejo! Já que o que se lhes indica é justamente que ela pode esvaziar-se da pulsão sexual enquanto tal, ou mais exatamente que a noção mesma de pulsão, longe de confundir-se com a substância da relação sexual, é esta forma mesma que ela é: jogo de significante, fundamentalmente ela pode se reduzir a este puro jogo do significante. E é assim mesmo que podemos definir a sublimação. É este algo por qual, como já escrevi em algum lugar, podem equivaler-se o desejo e a letra.

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Relação entre sublimação e desejo

Desde este seminário Lacan tira a pulsão do plano biológico, ponto em que Freud tropeçava, fazendo-a equivalente à sublimação na relação ao significante, mas, além disso, nos diz que ali se escoa o desejo. Para Lacan, a sublimação tem a ver com a criação significante de um objeto que lhe permite “não evitar a Coisa como significante, mas representá-la na medida em que esse objeto é criado” (LACAN, 1959-60/2011, p. 151). Aqui, Heidegger, com sua conferência A Coisa, na qual fala do vaso como criação do vazio e do pleno, inspira Lacan. Uma criação a partir do nada, o que Lacan chama de ex nihilo. Nesse sentido, a criação permanente, a partir do nada, que é a sublimação, implica o movimento de mudança permanente que a caracteriza. É com sua aproximação em A ética da psicanálise, que empreende sua crítica contra esse tratamento socializante que foi dado à sublimação. Não é sem importância a razão disso, para dar-lhe um lugar central no objetivo deste seminário, no qual se faz indispensável essa noção, já que Freud a introduz como outra via do sentimento ético. Lacan detém-se minuciosamente nela e busca ver os progressos que o próprio Freud fez em Introdução ao narcisismo, texto em que inclui problemas ao interior de sua definição. A fim de esclarecê-la, recorreu à noção de das Ding e à de objeto. Entende das Ding, a Coisa, como um lugar em que se manifestam os primeiros esboços de organização psíquica a partir das Vorstellungrepresentanz, ou representantes da representação, objeto que orienta a tendência da pulsão e do desejo, o que determina seu circuito, diferente do objeto narcísico com o qual se engana sobre das Ding. Detenhamos-nos nessa expressão: enganar. Há uma pequena observação que Lacan faz sobre a anamorfose que nos orienta muito em relação à importância da obra de arte. Ele diz: “trata-se, de uma maneira analógica, ou anamórfica, de tornar a indicar que o que buscamos na ilusão é algo em que a ilusão, ela mesma, de algum modo transcende a si mesma, se destrói, mostrando que ela lá não está senão enquanto significante” (LACAN, 1959-60/2011, p. 170). Nota esclarecedora sobre a posição da arte; mais além do ilusório ou do imaginário, estaria a ordem significante, necessária à obtenção de prazer por via das facilitações das Vorstellungen freudianas, lidas por Lacan como moldura significante. Assim, a arte é uma via para a obtenção de prazer por meio da simbolização, não da repressão. É também o que lhe permite dar preeminência à arte poética. Por causa disso, Lacan introduz uma fórmula sobre a sublimação que enuncia da seguinte forma: “E a fórmula mais geral que lhes dou da sublimação é esta – ela eleva um objeto – e aqui não fugirei às ressonâncias de trocadilho que pode haver no emprego do termo que vou introudizir – à dignidade da Coisa” (Ibid., pp. 140-141). O paradigma disso é a dama do amor cortês, puro significante que representa a Coisa inacessível, velada, vazio central. Já vemos vislumbrar a tríade: Real, Sim-

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bólico, Imaginário, que se esclarecerá ao final de seu ensino, no Seminário 23, que os três registros enlaçam a obra de arte. Porém, no Seminário 7, é possível ver que o real seria esse vazio que se representará por um objeto imaginário. Se o que faz é representar, perde sua qualidade de objeto para ser um significante, de tal forma que os três registros se articulem. Esse exemplo permite esclarecer que a sublimação tem a ver com as satisfações da potência, isto é, a manutenção do desejo em perspectiva, pois a dama é proibida, tem caracteres despersonalizados e o objeto feminino está vazio de toda substância real. Ademais, tem uma função poética ou simbólica, é um puro significante. De sua análise sobre o fenômeno do amor cortês e da sublimação, Lacan pôde concluir que aquilo que o homem demanda é ser privado de algo. Esse algo seria a Coisa em si, o que permite deduzir que a sublimação tende a isto, a que apareça um limite em relação a das Ding. É dizer, o sujeito, em sua criação sublimatória, garante o desejo, e não o acesso ao gozo absoluto. Trata-se então de uma ética do desejo. Contudo, se não há acesso ao gozo absoluto, não se pode escapar do paradoxo que implica a satisfação. Vejamos como Lacan o enuncia: Ora, o paradoxo do que se pode chamar, na perspectiva do princípio do prazer, de o efeito do Vorlust, dos prazeres preliminares, é justamente que eles subsistem de encontro à direção do princípio do prazer. É na medida em que se sustenta o prazer de desejar, isto é, para dizer com todo o rigor, o prazer de experimentar um desprazer, que podemos falar da valorização sexual dos estados preliminares do ato do amor (1959-60/2011, p. 189). A partir disso, podemos inferir que o prazer está em manter o prazer de desejar, o que é equivalente a experimentar um desprazer. Trata-se do prazer no desprazer. Sabemos que a isso Lacan deu o nome de gozo, ou melhor, o próprio Freud. Contudo, vemos também uma aproximação da noção de sublimação com a de desejo. Nosso encontro internacional convida a falar dos paradoxos do desejo. Encontramos esboçado de maneira clara um deles: o desejo implica manter a tendência em perspectiva, o que traz consigo um desprazer, ou melhor, como dirá Lacan (1976-77/inédito), em outro seminário, muito mais tarde, “aquilo que a psicanálise chama de prazer, é padecer, sofrer o menos possível”. Até aqui, vemos claramente que tanto a pulsão quanto a sublimação e o desejo são colocados em marcha pela articulação significante, a qual, ao mesmo tempo, traz consigo a pulsão de morte. Lacan define como suspeita a noção freudiana de pulsão de morte, mas não diz que não exista, a situa como “uma sublimação criacionista” (LACAN, 1959-60/2011, p. 260). O que isso quer dizer? A meu ver, se a mira do gozo, que é o campo da destruição, é a Coisa, para onde tende o

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desejo pelo movimento pulsional, entenderíamos a pulsão de morte como uma vontade de destruição. Porém, na medida em que está ligada à ordem significante, também é uma vontade de criação a partir do nada, ex nihilo, por intermédio da sublimação. Essa vontade de criação é a que coloca limite ao objetivo do desejo, ou seja, à Coisa, o que estabelece uma relação estreita entre desejo e gozo. É neste ponto que a noção de criação faz-se inseparável da de sublimação, dado que é a partir do campo de destruição, que é das Ding, para o qual tende a pulsão, que se cria, pela via significante, como explicado anteriormente, algo que represente dito campo. É importante reiterar que, se o representa, está criando um limite no acesso a ele, já que não o aproxima ao campo inacessível, mas somente o representa, mais precisamente, o contorna. A fim de garantir a satisfação, deve haver uma destruição que dê lugar à criação de um novo objeto, ou seja, manter-se em estado de mudança, que é o que facilita a satisfação e o que caracteriza a criação sublimatória e, ao mesmo tempo, o desejo. No parágrafo que deu origem a meu trabalho, Lacan situa a sublimação como um saber. Mesmo que para decifrar essa frase seja necessário outro trabalho, podemos dizer algo a respeito. A manutenção da tendência, que é o que o sujeito persegue, só é possível se o gozo da Coisa é deixado como inacessível, isto é, se se introduz um limite que dará origem à ordem do desejo pela via dos objetos criados, os significantes, o que permite, no inconsciente, o reconhecimento da estrutura, do buraco enquanto contornado como limite. No ato da sublimação há então a manifestação de um saber: não há um objeto que satisfaça a pulsão, ou melhor, que a pulsão pode satisfazer-se medianamente, em seu trajeto mesmo. Se o objeto que se eleva à dignidade de Coisa é imaginário, operando como significante, temos a fórmula do fantasma, $ ◊ a, que seria a mola da sublimação e, ao mesmo tempo, o suporte do desejo. Sublima-se com as pulsões, dirá Lacan mais adiante (1968-69/2006). Fórmula que não somente articula a sublimação e o desejo, mas também a pulsão aos dois anteriores, dado que os objetos com os quais se engana sobre das Ding são os parciais da pulsão, que devem ser elevados, por intermédio da obra de arte, à dignidade da Coisa. Essa fórmula deve ser demonstrada, e para tanto Lacan refere que “para que o objeto se torne assim disponível é preciso que algo tenha ocorrido no nível da relação do objeto com o desejo” (LACAN, 1959-60/2011, p. 142). Assim, sublimação e desejo ficam absolutamente relacionados por intermédio do objeto. O que ocorreu no nível da relação do objeto com o desejo? A resposta temos muito depois, quando nos descreve o desejo como uma relação metonímica entre os significantes, sem levar em conta o novo objeto, e sim a mudança. Claramente, Lacan define o desejo como uma metonímia, uma busca metonímica na ordem significante, busca interminável que obriga a presença de inumeráveis objetos,

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mas não são esses propriamente os objetos do desejo, senão “a mudança”. É inacreditável que Lacan defina o objeto do desejo como a mudança de objeto; assim, poderíamos pensar que a sublimação é um meio para a manutenção do desejo. Contudo, dissemos anteriormente, que é desde aquilo que suporta ao desejo, isto é, o fantasma, que se cria, que se faz a sublimação. Então, voltando à nossa pergunta inicial, vemos despontar sua resposta, articulando não só o desejo e a sublimação, mas também esses dois à pulsão. Assim, poderíamos dizer que a sublimação é um saber-fazer-com a pulsão de morte, com o campo da destruição, colocando um limite que se prefigura como um contorno significante, o que implica sustentar o desejo, sem repressão. Dissemos que um dos paradigmas da sublimação é o amor cortês. Porém, foi com a arte que Lacan mais o vinculou ao longo de sua obra. Creio que é por isso que já não falará de sublimação, mas sim de arte e poesia, colocando-os como modelos para nosso ato. Por isso, chama a atenção que Lacan diga que a arte tem como mecanismo a repressão, urvedragun, quando, com Freud, sustentou que é sem repressão. A possível saída para isso é que não se pode confundir a repressão propriamente dita com a repressão originária, que seria estrutural, e as secundárias que estão determinadas por essa. Dito de outro modo, não haveria inconsciente sem repressão e, portanto, não haveria arte sem repressão. Agora demos um salto ao penúltimo seminário em que Lacan fala de sublimação. Refiro-me ao Seminário 16, De um Outro ao outro, no qual encontramos várias precisões que permitem esclarecer mais a noção que tratamos. O primeiro ponto é que Lacan assinale que não se sublima a pulsão, mas que se sublima com as pulsões, o que é bem diferente. O segundo ponto é que faça uma figura da Coisa como um vacúolo, imagem que lhe permite pensar a estrutura de borda da sublimação. O êxtimo interdito, centro do campo do gozo, entendido aqui como “tudo que provém da distribuição de gozo no corpo”. Porém, se se sublima com as pulsões e essas implicam o gozo sexual, a sublimação seria um gozo sexual. Trata-se da articulação da lógica e a corporeidade, uma lógica da defesa empurrada pelo princípio do prazer ou pela satisfação. Aqui, a importância da obra de arte estriba-se que ela, como objeto a, com suas distintas formas, oral, anal, escopofílico e o sadomasoquista, é dizer, a voz, o olhar, as fezes, vem ao interior do vacúolo ou coisa “fazer cócegas em seu interior”. Assim, a sublimação surge como um paradoxo diante do gozo porque, ao mesmo tempo que o transgride, coloca-lhe um limite, criando o campo do desejo; contrariamente ao neurótico que suspende o gozo, mas, ao mesmo tempo, de modo paradoxal, reforça-o. Ter clareza de que a sublimação implica o gozo sexual porque o que se alcança é a finalidade, ainda que não o objeto sexual, implica não desviá-la pelas vias da dessexualização. Por outro lado, no Seminário 14, Lacan (1967/inédito) situa a estrutura da su-

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blimação como partindo da falta e reproduzindo-a, o que implica que possamos relacioná-la com o desejo de final de análise, em que a falta brilha como produto. Ali mesmo, Lacan situa a sublimação não só na arte, mas também no próprio falar, experiência do ato analítico. Mas voltemos às relações que a sublimação tem com o saber, pois são centrais em minha proposta de pensar o final de análise, ou seja, o desejo do analista como um ato sublimatório por ser criador. A última intervenção de Lacan (1968-69/2006) sobre a sublimação, com exceção de uma no Seminário 20, Mais, ainda, é no Seminário 16. Na ocasião, articula sublimação e saber pela via de diferenciar a sublimação do sintoma, isto é, o neurótico não renuncia ao gozo que supõe ser o saber do sujeito suposto saber, um saber que está no Outro e, portanto, uma submissão ao gozo do Outro. O criador de arte, aquele que pode sublimar, estabelece, por sua vez, uma relação diferente com o saber. Assim, quem chega ao final da experiência, à consecução do desejo como desejo de analista, estabelece uma relação com o saber desprendido do , como possibilidade de um sentido, para enfrentar a estafa psicanalítica que o confronta com o real e com a possibilidade de saber-fazer-aí-com. Isso quer dizer que o artista não é neurótico ou deixa de sê-lo por sua arte? Pode ser qualquer tipo de estrutura, mas, em seu ato criador, comporta-se de maneira distinta da que se comporta fazendo sintoma. O importante é mostrar que o neurótico, em seu querer saber, comporta-se apagando a falta que o criador de arte desvela. Nos esforços de abolir o apagamento de seu ser, o que o neurótico faz é reforçá-lo, distinto de quem pode sublimar, já que se trata de um reconhecimento daquilo que ele é: não mais que falha do sentido. Para terminar, não confundo o desejo do analista com o artista, nem o inverso; não suponho que o artista seja um analista. Digo que o ato do artista é homólogo ao ato de final de análise. É por isso que Lacan nos convida a consultar os poetas para aprender com eles. Tradução: Maria Cláudia Formigoni Revisão: Conrado Ramos e Ida Freitas

referências bibliográficas LACAN, J. (1956-57). El Seminario, libro 4: La relación de objeto. Traducción de Enric Berenguer. Buenos Aires: Editorial Paidós, 1994, 438p. __________. (1958-59). El Seminario, libro 6: el deseo y su interpretación. Inédito. __________. (1959-60). El Seminario, libro 7: la ética. Traducción de Diana S.

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Rabinovich. Buenos Aires: Editorial Paidós, 2011, 350p. __________. (1967). El Seminario, libro 14: la lógica del fantasma. Inédito. __________. (1968-69). El Seminario, libro 16: De un Otro al otro. Traducción de Nora A. González. Buenos Aires: Editorial Paidós, 2006, 202p. __________. (1976-77). El Seminario, libro 24: l’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre. Inédito.

resumo

O presente trabalho orienta-se pelos ensinamentos de Jacques Lacan, especialmente pelo Seminário 7, A ética da psicanálise, para esclarecer as relações existentes entre a sublimação e o desejo, partindo da sublimação como um paradoxo diante do gozo: porque, ao mesmo tempo que o transgride, coloca-lhe um limite, criando o campo do desejo. Mas também assinalando a presença do desejo como outro paradoxo, já que exige manter a tendência em perspectiva, o que introduz certo mal-estar.

palavras-chave

Sublimação, gozo, desejo, paradoxo.

abstract

The present work is oriented by Jacques Lacan’s teachings, especially in the seminar seven, The Ethics of Psychoanalysis, to clarify the relations that exist between sublimation and desire, starting out from sublimation as a paradox in relation to jouissance, because at the same time that transgress it, it puts a limit creating the field of desire. But also indicating the presence of desire as another paradox since it requires to keep the tendency in perspective, which introduces a certain discontent.

keywords

Sublimation, jouissance, desire, paradox.

recebido 06/02/2014

aprovado 26/03/2014

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Desejo e Repetição Dominique Fingermann O convite para participar das primeiras Jornadas Conjuntas da América Latina Sul da IF-EPFCL “Posições do ser no desejo”, me permitiu desenvolver e compartilhar esta questão tão delicada, que é a relação do desejo com a repetição. Cada vez que dizia que estava trabalhando esta questão, respondiam um pouco constrangidos: “É mesmo? Que problema difícil!”, ou então precisavam: “Mas não seria melhor dizer repetição ou desejo?”. Estava traduzindo e trabalhando em meu seminário o curso de Colette Soler sobre a repetição (SOLER, 2010/2013), e parecia evidente a articulação da repetição com o desejo, tema do encontro “Os paradoxos do desejo”:1 a ponto de chegar à conclusão de que o paradoxo do desejo (entre menos e mais-gozar) era a repetição! Logo almejei precipitar a articulação do Dizer com o désir [desejo], e conectar o Dizer-do-Um com o desejo via a repetição “comemoração do gozo perdido!” (LACAN, 1969-70/1992, p. 73). Por ora trilharei um caminho mais lento de demonstração, desde o início da questão, e em três tempos: 1. Como a questão da repetição se apresentou na clínica do desejo tanto para Freud, quanto para Lacan; 2. Como Lacan retomou a articulação topológica dos dois: o desejo como efeito da repetição e a repetição como efeito do dizer, ou seja, a repetição do traço unário como efeito do Um-Dizer e causa do sentido do desejo, Um de sentido. Traço unário, Um-Dizer, e Um de sentido: três formas do Um para não dizer, talvez, três posições do ser... Talvez possamos emprestar d’alíngua francesa uma palavra única para condensar a dança dos três tempos do Um: Dizer – Repetição – Desejo: ENCORE! 3. Por fim, não posso deixar de convidar para essa dança do encore ninguém menos do que Marguerite Duras, que pelo afeto de sua “prática da letra” (LACAN, 1965/2003, p. 200) disparou meu interesse pelo enodamento do acontecimento, da repetição e do desejo. 1. Como a questão da repetição se apresentou na clínica do desejo tanto para Freud, quanto para Lacan? 1 Referência ao VIII Encontro Internacional da IF-EPCFL, que acontecerá de 25 a 27 de julho de 2014, no Palais des Congrès, em Paris.

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FINGERMANN, Dominique

Desejo e repetição são dois conceitos da Psicanálise que remetem à sua experiência própria e procedem da estrutura do sujeito tal como esta se desdobra na experiência da transferência. Desejo e repetição são dois conceitos forjados por Lacan na sua operação de releitura de Freud, que, obviamente, já tinha destacado essas duas dimensões da estrutura humana que fazem parte do alicerce dos operadores clínicos da Psicanálise, mas ele não tinha estabelecido rigorosamente os seus limites conceituais. Vale observar que, tanto um quanto o outro começaram a sua “práxis da teoria” desenvolvendo a questão/dimensão do desejo, e que ambos tiveram que produzir um salto na metade de seu caminho para enfocar a pulsão de morte, como princípio além do princípio de prazer no caso de Freud, e, no caso de Lacan, para demonstrar que se o desejo orienta a neurose e a estrutura, o que orienta a Psicanálise é o real. Foi a elaboração do fenômeno clínico da repetição que ocasionou tanto a virada freudiana de 1920 quanto a virada lacaniana de 1964. Tendo a pensar que esses giros na teoria têm a ver com a apreensão progressiva dos giros necessários numa análise, viradas que podemos chamar “momentos de passe” (FINGERMANN, 2007): quando o movimento do desejo topa com a repetição, e quando o final de análise se produz ao reconhecer o sintoma como a solução do singular e do laço possível. Vejamos como Lacan menciona essa virada na obra freudiana no Seminário 17, no capítulo “Saber, meio de gozo” (capítulo crucial para o desenvolvimento dos dez próximos anos de seu ensino): Aquilo que Freud – ao seguir o fio, o veio de sua experiência – foi levado a formular em um tempo segundo de sua enunciação, tem até mais importância, pois afinal, nada parecia obrigá-lo a isso no primeiro tempo, o da articulação do inconsciente. O inconsciente permite situar o desejo, eis o sentido do primeiro passo de Freud, já inteiramente não apenas implicado, mas propriamente articulado e desenvolvido na Traumdeutung. Isto para ele já está dado quando, em um segundo tempo, aberto por Além do princípio de prazer, afirma que devemos levar em consideração essa função que se chama como? – A repetição (LACAN, 1969-70/1992, p. 43).2 2 No original: “Ce qu’à suivre la veine, le fil de son expérience, Freud a été amené a formuler dans un temps second dans son énonciation n’en a que plus d’importance, puisque après tout, rien ne semblait l’imposer dans le premier temps, celui de l’articulation de l’inconscient. L’inconscient permet de situer le désir, c’est là le sens du premier pas de Freud, déjà tout entier non pas seulement impliqué, mais proprement articulé et développé dans la Traumdeutung. Cela est pour lui acquis quand, dans un second temps, celui qu’ouvre l’Au-delà du principe du plaisir, il articule que nous devons tenir compte de cette fonction qui s’appelle quoi ? – La répétition”.

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Desejo e Repetição

Na clínica, à primeira vista, o desejo indicaria o movimento e a procura do diferente, e a repetição conotaria a volta do mesmo. À primeira vista, portanto, uma análise iniciaria a sua peregrinação com o insuportável da repetição e abriria para o desejo: “não ceder em seu desejo”, ensina Lacan (1959-60/2008, p. 375).

No começo, havia o desejo Freud começou a história da Psicanálise com a consideração do sintoma como manifestação do retorno do recalcado, e daí deduziu o desejo e o inconsciente (que Colette Soler chega a nomear como “o inconsciente-desejo”). O sintoma surgiu e se qualificou, então, tanto quanto a angústia, pela sua relação com o desejo, enquanto solução de compromisso e substituto do desejo recalcado, reprimido, inter-dito. O desejo, portanto, apareceu incontornável desde os primeiros passos da metapsicologia freudiana para fundamentar os esboços do aparelho psíquico e orientar a interpretação do inconsciente (enquanto a repetição apareceu bem depois para localizar, nomear, um fenômeno que se apresentou como obstáculo ao tratamento analítico da neurose de transferência). Evidentemente, todos os conceitos freudianos da Psicanálise têm o desejo como referência: a transferência, a resistência, a interpretação, o recalque, o inconsciente, o Édipo, a pulsão, a histeria, a angústia, a sexualidade infantil etc. E o desejo “é a interpretação” de todas as formações do inconsciente, o sonho, lapso, sintoma, fantasma. No entanto, o desejo não é propriamente indicado como conceito referencial fundamental, e, inclusive, há três palavras diferentes que correspondem à palavra “desejo” na obra freudiana: Wunsch – Begierde – Lust, embora o conceito freudiano de libido, desde 1894, condense, de uma certa forma, o que denominamos como “desejo inconsciente”. “O desejo é o movimento”, anunciou Freud (1900/ s.d.) desde a Interpretação dos Sonhos: é o movimento que, a partir do traço mnêmico da primeira experiência de satisfação, enlaça o objeto suposto satisfazer a necessidade. As formações do inconsciente testemunham desse princípio de prazer que alicerça toda a aparelhagem psíquica. Partindo de uma “catexização alucinatória da lembrança de satisfação” (Ibid.), “nada senão o desejo pode colocar nosso aparelho anímico em ação” (Ibid.) e “colocar o aparelho em movimento”. O seu paradoxo principal é que ele seja indestrutível e invariante, condensando “o passado, o presente e o futuro são entrelaçados pelo fio do desejo que os une” (FREUD, 1908/ s.d.). Lacan colocou no primeiro plano da teoria analítica a noção de desejo descoberta por Freud. Influenciado pelo seu estudo de Hegel via Kojève, no período da guerra, podemos até dizer que Lacan virou lacaniano ao extrair de sua leitura de

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Freud (e de Hegel) a teoria do desejo. Mas é com Saussure que ele vai poder argumentar o paradoxo da sua “persistência indestrutível” (LACAN, 1955/1998, p. 57), e a sua teoria do desejo logo vai se tornar articulada e inseparável da teoria do sujeito extraída, decorrente da lógica do significante e da estrutura da linguagem. “É preciso tomar o desejo ao pé da letra” (LACAN, 1958/1998, p. 426), podemos ler em “A direção da cura e os princípios de seu poder”: “o desejo efetivamente está no sujeito pela condição, que lhe é imposta pela existência do discurso, de que ele faça sua necessidade passar pelos desfilamentos do significante” (Ibid., p. 634). Os Escritos testemunham essa primeira parte de seu ensino, que poderíamos chamar de “Subversão do sujeito e dialética do desejo”, emprestando o título do texto dos escritos de 1960 (publicado em 1966), e que funda a direção da cura e os princípios de seus poderes nas consequências da subversão do sujeito e da dialética do desejo, e de seus efeitos sobre o inconsciente-desejo (inconsciente-linguagem, inconsciente-fantasma). Assim se passaram mais de vinte anos do percurso de Lacan. A partir de 1967-1968, inicia-se a virada lacaniana, que se orienta desde o tratamento do gozo, os discursos, e o Real, que se destacou como conceito em 1964 em consequência da distinção feita por Lacan da repetição como conceito fundamental da Psicanálise.

A repetição Lacan indica que a repetição é o ponto de partida irredutível da novidade freudiana: “o ponto de partida irredutível da novidade freudiana, a saber: a repetição” (LACAN, 1966-67/inédito, Aula de 01/02/1967). Freud examina a repetição como um problema clínico desde 1914, mas só depois de sua virada conceitual encontrará, em 1920, sua articulação teórico-clínica, com o exorbitante e decisivo “Além do Princípio de Prazer”. A repetição encontra-se, então, localizada como trauma e pulsão de morte, justificando, assim, as versões “demoníacas” das suas manifestações na clínica psicanalítica, que obstaculizam o trabalho da transferência, e até mesmo produzem as piores “reações terapêuticas negativas”. Devemos, no entanto, a Freud, e desde então, uma definição mais lógica do que patológica, quando ele designa a pulsão de morte e a repetição que a manifesta como “algo que não se liga” (FREUD, 1900/ s.d.). De uma certa forma, este será o ponto de partida de Lacan quando, em 1964, ele inventa a repetição como conceito fundamental da Psicanálise, designando sua estrutura como “encontro falho do real” (LACAN, 1964/1988, p. 57). Ponto de partida (partição/corte) no ensino de Lacan que, doravante, nunca mais cessará de precisar a estrutura, ou seja, o sujeito como resposta do real.

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Assim, Lacan interessa-se primeiro pelo desejo como fundamental e decorrente da estrutura de linguagem; no entanto, é com a repetição que ele abre os Escritos, com seu famoso texto A Carta Roubada, extraído de seu segundo seminário, desdobramentos lógicos sobre a repetição que os avanços de 1964 vão contradizer radicalmente (“a repetição não é a volta dos signos” [Ibid., p. 56]). O conceito de repetição em Lacan vai sofrer diversas reviravoltas, acompanhando suas diferentes reconsiderações do que é o inconsciente. Mas também podemos dizer que são as várias reconsiderações do problema clínico da repetição que o obrigaram a distinguir o inconsciente-real do inconsciente-linguagem, ou ainda como diz Colette Soler, do inconsciente-desejo. O desejo se deduz do inconsciente-linguagem e é uma consequência da estrutura de linguagem. A dimensão do Real vai descentrar o desejo e, pelo contrário, enfatizar a importância da emergência lógica da repetição e a temporalidade subjetiva que ela inaugura, assim como ela abre o capítulo do campo lacaniano propriamente dito: o campo do gozo. Depois do giro do campo lacaniano, o que ocorre com o desejo? Vale observar, portanto, que se desejo e repetição foram diferenciados tanto por Freud quanto por Lacan, a partir de suas manifestações fenomênicas na clínica, Lacan não cessou de articulá-los até o fim de seus seminários. 2. Lacan retomou a articulação topológica dos dois desde sua experiência da clínica e dos desenvolvimentos necessários da teoria que a orienta. Não é explícito no Grafo do Desejo (porém evocado pelo sentido das flechas), mas é essa articulação topológica da repetição e do desejo que o toro mostra, desde o Seminário 9: pois são as voltas da demanda (a sua re-petitio) que permitem circunscrever, como efeito, a localização do desejo e sua causa. Articulação, enodamentos topológicos que ele apresentará com o “8 interior” (LACAN, 1966-67/inédito, Aula de 15/02/1967) no Seminário 14, “esse duplo enlace do traçado da repetição” (Ibid.). A repetição não é apenas uma manifestação, ela é a estrutura, o seu ponto de partida e de partição real. O desejo, como movimento, é uma consequência, um efeito de uma causa real, um “pas-de-sens” (passo de sentido) consequente do “pas-de-sens” (não sentido).

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A repetição é o necessário da estrutura que não cessa de escrever o real em jogo como impossível. É um encontro, diz Lacan em 1964, ou seja, contingência, pois é sempre de uma maneira imprevisível que se manifesta o real como encontro falho, com o “não há relação sexual”. A repetição, de fato, é sempre diferente. Topar com o encontro falho do real é sempre imprevisível, incalculável. Pas-de-sens (não sentido): é assim que ela se apresenta na clínica psicanalítica antes que a entrada na análise lhe convide para um pas-de-sens (passo de sentido), o equívoco do sujeito suposto saber e seu impasse programado: pas-de-deux. A repetição não cessa de escrever o Um que nunca alcança o dois da relação, ela “não se liga”, embora permita que ecoe na sua insistência irrevogável o “Y a d’l’Un” do real que ex-siste. A repetição faz diferença, ela dá notícia do Um que ex-siste: encontro sempre novo. O desejo, como efeito, se liga, se conecta, ele parece fazer laço com o outro, mas, de fato, é um objeto que ele enlaça, um objeto constrangido pela interpretação fantasmática: o princípio da monotonia e da mesmice. As errâncias do desejo parecem nunca se aventurar muito longe do cálculo fantasmático e do molde que ele configura para o “objeto a”. O desejo e sua modelagem fantasmática não salvam da repetição, tanto que, na experiência da psicanálise, a transferência, seu vetor e seu trabalho próprio não curam da repetição (SOLER, 2010/2013, p. 26). Pelo contrário, a sua demonstração (do impasse do sujeito-suposto-saber) produz o limite da série infinita, único caminho para, do impossível, deduzir a ex-sistência do real. Quem se procura no desejo, encontra aí as miragens da verdade que dão sentido, mas é na repetição que acha essa dimensão que Kierkegaard localiza como ética e que Lacan qualifica como “a diferença, a distinção, a unicidade” (LACAN, 1961-62/inédito, Aula de 06/12/1961), “lugar temporal” (LACAN, 1966-67/inédito, Aula de 22/02/1967) dirá ele no seminário da Lógica do Fantasma: É que Kierkegaard percebeu que a repetição tinha um alcance revelador. E é isso que pode interessar ao psicanalista, independentemente da concepção daquilo que for revelado. Para ele, a repetição tem uma implicação ontológica, ela revela algo do ser do sujeito. “A repetição é a palavra de ordem de toda concepção ética”, diz ele, e, aliás, quando encontra a repetição, segundo sua expressão, acrescenta: “sou novamente eu mesmo” (SOLER, 2010/2013, p. 48). Contudo, se a filosofia extrai dessa temporalidade paradoxal algo que volta, sempre atual e único, nunca passado, se a arte e a música usam seus recursos

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para produzir o mais novo e surpreendente, se a poesia joga com o seu ritmo para lançar mão da sua rima e da sua pulsação própria, na Psicanálise o fenômeno se apresenta quase sempre como um estraga prazer! Uma análise pode chegar até esse ponto de passe, e de extração de seu alcance ético, mais além que sua redundância patética. Podemos, portanto, articular o desejo como efeito da repetição e a repetição com efeito do dizer. Ou seja, a repetição do traço unário como efeito do Um-Dizer. Talvez uma palavra única poderia condensar os três tempos: Dizer – Repetição – Desejo: ENCORE! Mas seria preciso desdobrá-lo e enunciar assim: En-corps – Encore! – Encore?! No corpo: En-corps, o Dizer – Outra vez!: Encore!, a repetição – Mais ainda?!: Encore?!, o desejo. E talvez possamos avançar que o que enoda os três é algo de um acontecimento de corpo – do corpo: o sintoma. 3. Por fim, não posso deixar de convidar para a dança do encore: Marguerite Duras que, pelo afeto de sua prática da letra, disparou meu interesse pelo enodamento do acontecimento, da repetição e do desejo. A sua obra permite vislumbrar a articulação da ética da repetição com a extravagância do desejo: pas-de-deux. O marinheiro de Gilbraltar (1952), primeiro romance de Marguerite Duras ao qual tive acesso, é um exemplo paradigmático desse enlace do acontecimento, da repetição e do desejo. Foi um primeiro gancho para mim do “ravissement”, arrebatamento, “captura/deslumbramento” (LACAN, 1965/2003, p. 198) que a “prática da letra” de Marguerite Duras provoca em alguns, como Lacan, entre muitos outros. Le Marin de Gilbraltar (DURAS, 1952)3 é o nome do desejo feito causa, que propulsa Anna nos mares e continentes, à procura do instante de amor que o encontro com o marinheiro, na sua contingência radical, lhe proporcionou um belo dia em Xangai. O narrador da história interrompe um casamento “normal” e uma vida tediosa, no meio de uma viagem a Firenze, para acompanhá-la nessa perseguição zelosa da Itália até a África, passando pelos mares da Espanha. A miragem do encontro, sempre repetida nos portos e marinhas, não cessa de inscrever o não encontro necessário do “dois”, tão mirabolante. Vetorizada pelo desejo inalcançável, a travessia que zarpará nos mares azuis, 3 Há também uma versão cinematográfica do livro (1967) feita pelo diretor Tony Richardson, com Jeanne Moreau no elenco.

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verdes e negros, sempre recomeçados, não dispensa para Anna os seus repetidos corpos a corpos eróticos com qualquer um que pudesse lhe dar notícias da paixão perdida, nem mesmo desvalida o amor “verdadeiro” com o parceiro de viagem que tangencia a expedição toda. Esse romance do exílio amoroso encena os movimentos sucessivos de uma coreografia que alterna o langor e o vigor do desejo por um lado, e, por outro, tanto o fastio da repetição quanto o desconcerto das suas irrupções repentinas. Desejo e repetição se apresentam aqui no seu entrelaçamento estrutural e paradoxal. Mais do que errância, enquanto fuga ou deriva, é uma dança que Anna e seus parceiros (do desejo, do amor, e do corpo a corpo) piruetam: 1, 2, 3, 4 – 1, 2, 3, 4: Je te demande... de me refuser... ce que je t’offre... parce que c’est pas ça (“Eu te demando de me recusar o que te ofereço porque não é isso... não é isso” [LACAN, 1971-72/2011, p. 81]). É a dança que permite que o objeto do desejo vire e volte como causa, marcando o Um de repetição que evoca (invoca) o Um Dizer que ex-siste a todas as voltas. A poesia, tanto quanto o amor, presentifica também esse savoir-faire: entrelaçar, trançar o sentido e o sem-sentido, o Um e o Outro, encore, e en-corps. Mas, nada melhor do que a dança para produzir, encenar, fazer mostração, da alternância contrabalançada da repetição e do desejo: quem não lembra do trecho do balé Cafe Müller, de Pina Bausch,4 que Wim Wenders imortaliza em seu filme,5 no qual uma mulher precipita-se incansavelmente nos braços de um homem que a deixa cair, e ela, de novo, se precipita nos braços dele, que a deixa cair e, de novo... encore. Desejo e repetição são também os protagonistas do baile da embaixada da França em Calcutá, no qual Lol V. Stein se encontra, desaparecida, siderada, perante o desejo (desiderare) arrebatador de seu noivo Michael Richardson e Anne Marie Stretter. Desejo e repetição tramam a letra e a música de todos os romances, filmes e peças de Marguerite Duras. O baile é o lugar da dança e contradança do desejo e da repetição que conta India Song, longa-metragem de Marguerite Duras, de 1975.6 E o baile do desejo alucinante dos homens todos, que cada um por sua vez, enlaçam Anne Marie Stretter numa sequência atordoante de pas-de-deux: rumba, tango, ragtime, valsas, 1, 2, 3... pas-de-deux. Baile inesquecível, por causa da música de Carlos D’Alessio,7 do olhar de Lol V. 4 BAUSCH, Pina (1978). Cafe Müller. http://www.youtube.com/watch?v=3WLazG0bQPI. 5 WENDERS, Wim (2011). Pina. http://www.youtube.com/watch?v=CNuQVS7q7-A. 6 DURAS, Marguerite (1975). India Song, com Delphine Seyrig, Michel Lonsdale e Mathieu Carrière. http://www.youtube.com/watch?v=laUM85wOcPA. 7 Carlos D’Alessio (1935-1992) é o autor-compositor de toda a trilha sonora do filme. http://www. youtube.com/watch?v=t-emOQ1jBv8.

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Stein (a mesma do romance de 1964 [DURAS, 1964]) invisível, foracluída do baile e por causa do desejo aparelhado com o mais além do princípio de prazer. Às vezes, o baile silencia, com o adagio de um piano, com o rasgo do grito monstruoso do Vice-Consul (DURAS, 1965) e com o canto da mendiga laosiana, encantação

off -

contar

-

pas-de-deux.

referências bibliográficas DURAS, Marguerite. Le marin de Gilbraltar. Paris: Gallimard, 1952. DURAS, Marguerite. Le Ravissement de Lol V. Stein. Paris: Gallimard, 1964. DURAS, Marguerite. Le Vice-Consul. Paris: Gallimard, 1965. FINGERMANN, Dominique. O momento do passe. In: Revista Stylus (Amor, desejo e gozo), n. 14. Rio de Janeiro: AFCL, 2007, pp. 149-162. FREUD, Sigmund. (1900). A interpretação dos sonhos (Parte I e II). In: Edição Digital Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, s/d., v. IV e V. FREUD, Sigmund. (1908). Escritores criativos e devaneios. In: Edição Digital Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, s/d., v. IX. FREUD, Sigmund. (1920). Além do Princípio de Prazer. In: Edição Digital Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, s/d., v. XVIII. LACAN, Jacques. (1955). O Seminário sobre A carta roubada. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, pp. 13-67.

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FINGERMANN, Dominique

__________. (1958). A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, pp. 591-652. __________. (1959-60). O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. __________. (1961-62). Le Séminaire, livre 9: l’identification. inédito. __________. (1964). O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988. __________. (1965). Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, pp. 198-205. __________. (1966-67). Le Séminaire, livre 14: la logique du fantasme. Inédito. __________. (1969-70). O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992. __________. (1971-72). Le Séminaire, livre 19: ...ou pire. Paris: Seuil, 2011. SOLER, Colette. (2010). A Repetição na experiência analítica. São Paulo: Ed. Escuta, 2013.

resumo

Desejo e repetição são dois conceitos da Psicanálise que remetem à sua experiência própria e procedem da estrutura do sujeito tal como esta se desdobra na experiência da transferência. O presente trabalho se propõe desenvolver a articulação dos dois conceitos em três tempos: 1) Como a questão da repetição se apresentou na clínica do desejo tanto para Freud, quanto para Lacan?; 2) Como Lacan retomou a articulação topológica dos dois: o desejo como efeito da repetição e a repetição como efeito do dizer, ou seja, a repetição do traço unário como efeito do Um-Dizer e causa do sentido do desejo, Um de sentido; 3) Por fim, convidamos na dança do Encore Marguerite Duras, que pelo afeto de sua “prática da letra” (LACAN, 1965, p. 200) disparou meu interesse pelo enodamento do acontecimento, da repetição e do desejo.

palavras-chave

Desejo, repetição, dizer, Marguerite Duras.

abstract

Desire and repetition are two concepts from Psychoanalysis which allude to the subject’s own experience and come from his/her structure as much as this structure unfolds itself in the experience of transference. The work sets to develop the articulation of both concepts in three lines: 1) How has the question of repetition presented itself in the clinic of desire both for Freud and Lacan?; 2) How has Lacan

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returned to the topologic articulation of both (…): desire as an effect of repetition and repetition as an effect of the saying, that is, repetition of the unary trait as an effect of the One-Saying and cause of the meaning of desire; One of meaning; 3) Finally, we invited in the Encore Marguerite Duras dance, which for the affection of “practice of the letter” (LACAN, 1965, p.200) has triggered my interest in the enoding of happening, repetition, and desire.

keywords recebido 05/02/2014

aprovado 31/03/2014

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Desejo: dasein lacaniano Manel Rebollo Desde que Freud o anunciara como Wunsch, o desejo nunca cessou de deambular sob distintos nomes que deram algum novo sentido no qual se deter por um momento. Momento fecundo, porém evanescente, o suficiente para ter de buscar um novo termo, em uma perpétua e metonímica insatisfação conceitual. Begehren e Lust ofereceram novas acepções ao desejo na mesma obra freudiana: apetite, prazer, inclusive ânsia, destilam alguns dos sentidos associados, que nunca coagulam em uma significação “apropriada”. Disso se trata, de que o desejo nunca é verossímil na palavra, nunca é apropriado. Produto res(ul)tante da constituição do sujeito pelas operações da linguagem, alienação e separação, seu devir transita pelos espaços intersignificantes da alienação e é preparado nas subtrações de gozo arrancadas na separação: “Desventura do desejo nas sebes do gozo, espreitadas por um deus maligno” (LACAN, 1964/1998, p. 867). Esta citação bem que nos convoca ao conjuro castelhano: Lagarto! Lagarto!, anúncio de mau augúrio. O desejo, termo maior em Freud, atravessa cada um dos chamados quatro conceitos fundamentais da Psicanálise, como colocado por Lacan (1964/1990) em seu Seminário 11: inconsciente, repetição, pulsão e transferência. O desejo está metabolizado em cada um deles de forma distinta. Os quatro termos mencionados são outros tantos estados de ser, quatro distintos Dasein do desejo, multiplicidade concomitante à sua falta a ser. Lacan produz novos termos ao longo do recorrido de seu ensino, termos que guardam alguma característica do desejo, que matizam distintos aspectos. Alguns desses termos terão declínio certo, como Das Ding, A Coisa, que aponta ao real, o que em Freud viria a localizar-se como o corpo da mãe, esse obscuro objeto de desejo, o proibido, o tabu. Graças a Das Ding, Lacan consegue transmitirnos uma maior aproximação à sua ideia de Real, já então claramente distanciada da “realidade”, inclusive da “realidade psíquica” freudiana, situada entre o Simbólico e o Imaginário, circunscrita às voltas do fantasma. Cabe assinalar aqui que em seu Seminário 6, o desejo e sua interpretação, Lacan (1958-59/inédito) aborda o desejo conjugado ao fantasma e localizado entre a cadeia da enunciação e a cadeia do enunciado, e portanto, sua abordagem abunda entre os dois polos: do imaginário e do simbólico. No ano seguinte, em seu Seminário 7, a ética da psicanálise (LACAN, 1959-60/1991) incorpora Das Ding para dar conta do real,

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o que caiu como resto, não tratado no ano anterior. Produto da linguagem que se constitui em causa: causa do dizer, causa do discurso, causa do sujeito, então. Assim, a partir do desterro imanente à operação simbólica de constituição do falasser, isso empurra-o a uma tentativa vã de recobrar o ser que perdeu pela referida operação. “Fala, ser, fala”, e quanto mais fala para ser, mais se assenta sua falta a ser na palavra impotente que apenas pode formular demandas, aprofundando o abismo com o desejo. Em todo caso, ele lhe permite um paresser, um semblante de ser, sem o qual ficaria à mercê de Tanatos: o ser sem falta, ser-para-a-morte. Então, desejar se conjuga com a castração, um dos nomes freudianos, e sob seu mandato se exercita o recalque primário, original, Urverdrängung, que enuncia a constituição do sujeito na palavra, como concebeu Freud. Nessa estratégia se assenta a indestrutibilidade do desejo, seu caráter mais genuíno, no dizer de Freud. Indestrutível por ser ilocalizável, por esse Dasein que o coloca sempre no intervalo, na hiância, no fundamento, segundo a tradução da Amorrortu, com suas implicações de “lugar radicalmente anterior a tudo”. Tomo por um momento o termo heideggeriano, Dasein, para esclarecer que se trata de um segundo grau de “ser”, mais além da simples existência (Existenz), grau do ser que implica a consciência, consciência de si mesmo, e que portanto é somente atribuível ao humano. Quando Lacan faz uso deste termo, o faz, acredito, em seu “ser-aí”, para refutá -lo de raiz, pelo menos em dois sentidos. O primeiro deles, porque o “aí” do desejo é evanescente, está sempre em outra parte, e deste ponto de vista é incompatível com a ideia existencialista do ser. O segundo remete à qualidade da consciência, que para o sujeito que se ocupa da Psicanálise é absolutamente secundária com respeito ao que interessa ao ser: o inconsciente, o insu, o que nunca alcançará a consciência, nem sequer depois de uma análise levada a seu termo. O ser do desejo é, então, um “desser”, uma “falta a ser”, oposto ao Dasein. O que o avanço de uma psicanálise consegue para o sujeito não é a recuperação do ser, fim a que se prometeu e por cujo motivo iniciou o tratamento analítico, fazendo o analista depositário dessa expectativa. Trata-se de que ao final não há outra saída que renunciar a essa expectativa. É mais, há uma diminuição do ser, na medida em que opera uma considerável perda de gozo, condição, preço e tecido com o qual se tece o “novo desejo”, ainda que com os retalhos do velho. Então, caindo sob o recalque, um significante unário, não sabido, funda a dimensão do inconsciente, essa estrutura de linguagem que faz borda à falta relançadora em que se ampara o dizer do sujeito. Não somente seu dizer, mas também seu sintoma, que no fim é um dizer com um complemento de gozo, aquilo que não se disse. Entendo que com esta oposição entre gozo e significante, Lacan faz

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Desejo: dasein lacaniano

do desejo o motor de um e de outro. O sujeito, em sua vertente falasser, se faz porta-voz de uma enunciação que procura os enunciados, que o permite recorrer ao âmbito do simbólico. Porém, não tudo o que sua enunciação implica cabe no dito. Há outras duas modalidades de exercício da enunciação: o ato, sem objeto e sem Outro, porém, que por sua vez modifica o sujeito sob sua execução, forma mais “pura” de plasmar o ser desejante, ou bem a loquacidade do sintoma. Digo “modalidades de exercício da enunciação” para marcar a distância entre o enunciado e a enunciação, que Lacan desenvolve amplamente em seu Seminário 6 a partir do trabalho sobre o grafo do desejo. A enunciação, o dizer, opõe-se ao enunciado, ao dito. O sujeito sabe que diz, ainda que não saiba bem o que diz, pois em seu dito há um aspecto de enunciação que lhe escapa, e onde se situa seu desejo inconsciente. A operação analítica há de levar o sujeito a localizar-se em seu dizer, a conhecer a posição que tem com respeito ao enunciado, seu dito, nisso consiste a enunciação. Nesse seminário, Lacan define a interpretação como a ferramenta com que o analista leva o sujeito a fazer descender – no grafo – da linha da enunciação (entre S( ) e ($<>D) à linha do enunciado: entre s(A) e A. A interpretação deve tocar o dito em seu dizer, deve surpreender o sujeito como dizente de algo que supera o que tentava dizer. Nessa época, Lacan o apresenta como uma cruz de cadeias significantes: a da enunciação inconsciente e a do enunciado consciente. O analista deve dar conta dessa cruz, à espera da resposta do sujeito. Não se trata de acrescentar um enunciado por parte do analista, senão de tocar o dito onde houve interferência. Não é preciso dizer que o analisante faz eco de si mesmo e contribui à interpretação, porém é esta a aposta lacaniana: a interpretação é um efeito que se produz no sujeito, do contrário não é interpretação. E, nesse segundo caso, pode ser simplesmente uma invasão do discurso do sujeito por parte do dizer do analista, ou seja, uma intervenção do sujeito analista, e pela via de seu desejo. Esta era, com frequência, a prática com que Lacan se encontrava por parte de seus pares, e contra a qual se posicionava. A este respeito cabe assinalar a anedota acerca da análise do paciente de Ella Sharpe (1971) que Lacan comenta nesse mesmo seminário. A analista assinala que se trata de um paciente a quem nunca ouve chegar e em certa ocasião o ouve tossir antes de entrar. Considera que é um elemento novo, porém não o assinala porque entende que não está no momento da análise que permita fazer comentários acerca dos acontecimentos corporais, sem dar mais precisões de quando será o momento. Porém, é o próprio paciente quem indica que se deu conta de sua tossezinha e esclarece que isso deve significar algo, desenvolvendo a partir de suas associações toda uma trama que dará conta de certa posição fantasmática, e de um desejo de sair de cena, de não estar aí (Dasein), evitando a intervenção do outro.

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Quis fazer esse apontamento por várias razões: em primeiro lugar, por este desejo de “estar em outro lugar”, com suas conexões com o tema que nos ocupa – o lugar do desejo – e por outra parte pelo assinalamento de Lacan de que é o próprio sujeito que supõe uma significação na tossezinha, adiantando-se a analista. Evidencia-se, então, que na entrada em análise, que Lacan situa precisamente neste momento para o paciente de Ella Sharpe, depende do que acontece no próprio analisante, do que se formula como sujeito suposto saber, e cuja responsabilidade cai do lado do analisante. É o próprio paciente quem, contra toda suposição da analista – ainda não chegou o momento – assinala sua abertura ao inconsciente com este “isso deve significar algo”. Vemos o sujeito localizando-se em seu enunciado (a tosse) e, portanto, “descendendo” da linha da enunciação à linha do enunciado e dando logo a interpretação a partir de suas associações. O mais interessante, diz Lacan, é que a analista não havia assinalado essa eventualidade, que contradiz sua enunciação doutrinária. O momento de dar ou não a interpretação vem anunciado pela entrada em transferência. Antes da mesma, da suposição de um sujeito e um saber por parte do analisante, toda interpretação não é mais que dizer vão do analista, que não vai ressoar no dizer do analisante. Esta é a consideração do timing por parte de Lacan. É a interpretação que localiza o desejo do sujeito em um instante precedente, depois do qual o sujeito do desejo já não está aí. Por isso tomei o termo Dasein, para e(qui)vocar um ser-estar aí fugitivo. Podemos dizer que a interpretação daseina o desejo do sujeito. Dá a ele uma localização que não tinha antes desse efeito da interpretação, nem terá depois. Parece-me muito pertinente a menção de Lacan do “efeito” com referência à interpretação, pois lhe atribui consistência não ao dizer do analista, e sim ao que esse dizer produz no analisante. Somente se houver efeito haverá interpretação. Não podemos tomá-la como um “saber” acerca do desejo, um saber prévio que o analista anunciaria ao dar sua interpretação. Em todo caso, nos vem bem aqui a expressão “saber vão de um ser que se furta” (LACAN, 1968/2003, p. 260). Se há efeito de interpretação, este se manifesta do lado analisante como um saber, porém vão por sua imediata evanescência. Então, a interpretação é tão evanescente como o próprio desejo a que diz respeito, questão que o termo “efeito” recolhe fielmente. É tão somente um “efeito de interpretação”, um “efeito de saber” passageiro sobre o desejo. A modalidade de intervenção do analista a respeito da interpretação do desejo vai se tornando cada vez menos de saber e mais de som. Podemos dizer que o analista opera em seu ato resonhabliemente, e não tão razoavelmente como pretendia o didatismo de Ella Sharpe.4 4 N.T.: Mais adiante em seu texto, o autor explica o jogo homofônico que está fazendo.

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Desejo: dasein lacaniano

“É preciso tomar o desejo ao pé da letra” (LACAN, 1958/1998, p. 626) Esse conselho lacaniano, precoce em suas formulações, se produz em um tempo em que enfatiza a divisão entre letra e significante, e em que a escritura daria o contexto da palavra. O título de um escrito do ano anterior, “A instância da letra no inconsciente...” dá boa conta do dito. Não por acaso, em seu seminário O saber do psicanalista (1971-72/inédito) se refere a este escrito, a este título, para assinalar que o real é “o que não cessa de não se escrever”, e não “o que não cessa de não dizer-se”. Encontramos o precedente no próprio Freud, que nos ensinou a tomar o sonho como o texto do desejo, e a considerar também como parte do texto todas as notas marginais, constituídas pelos comentários do sonhador no momento em que relata seu enunciado. Conhecemos as vicissitudes nas referências à escritura, desde a Interpretação dos Sonhos (FREUD, 1900/1976) até a Uma nota sobre o bloco mágico (FREUD, 1925 [1924]/1976)5. Nesse pequeno artigo, Freud exalta as virtudes de um produto que acaba de ser comercializado na Inglaterra, que consiste em uma lousa que permite escrever e apagar sem fazer desaparecer totalmente o conteúdo escrito. A lousa é uma tabuleta de cera ou resina de cor escura, emoldurada com papelão; sobre ela há uma folha delgada, transparente. Aplicando uma punção sobre a lâmina, se consegue que a superfície do papel encerado pressione a cera sobre a tabuleta e seus traços escuros tornam visível a escritura. Separando de novo a folha, se consegue apagar o escrito, porém a inscrição sobre a cera permanece, ainda que não seja visível. De todo modo, as inscrições vindouras deformarão em algum grau o anteriormente escrito. Estas características permitem dar um modelo do aparato mnêmico, permitindo uma contínua armazenagem de novas inscrições sem perder as anteriores, embora se dê essa afetação do anteriormente escrito sobre o que virá mais adiante (efeito Nachträchlig, segundo Freud; après coup para Lacan). Derrida (1989) se baseou nesses trabalhos freudianos para documentar seu archiescritura como previa a palavra na constituição do inconsciente. Lacan (1971/2009, p. 84) nega tal precedência do escrito à palavra, a partir da simples definição da escritura como representação da palavra, sem restar importância à escritura em sua definição do inconsciente. A este respeito, cita a anedota de um paciente que em cinco minutos chamou sua mãe de “minha mulher” umas vinte vezes. Para Lacan não se trata de nada falho nessa palavra, mas sim de uma palavra lograda. Está escrito que sua mãe é sua mulher. Ou seja, em nível inconsciente, 5 A tradução melhor para pizarra é quadro-negro, lousa, porém no texto de Freud em português está traduzido por bloco mágico: “Uma nota sobre o bloco mágico” (1925[1924]).

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sua mãe ocupa para ele o lugar de sua esposa. Por isso diz, no mesmo seminário, que mais que um “lapsus linguae” se trata de um “lapsus calami”, atendendo ao cálamo, a cana com que se escreve na tabuleta romana, a “lousa não tão mágica” daquele tempo. Com esta metáfora, Lacan indica que um lapso linguae é um lapso de escritura, do que está escrito no inconsciente e que segue “insistindo” mediante sua letra. De todo modo, para fazer falar a escritura há que transformá-la em palavra. Aí Lacan diferencia claramente escritura e palavra: o escrito não se dirige ao Outro, a palavra, sim. Para afetar a escritura inconsciente é preciso supor um dizer, um sentido, no escrito, e isso nos leva ao algoritmo da transferência como questão preliminar para produzir um dito sobre o dizer, entendendo que o dizer é uma escritura no meio do dito, que não é evidente que vá ser localizada pelo sujeito. O relato do sonho exemplifica o fato: há um escrito no texto do sonho, sua enunciação, que é possível localizar fazendo do mesmo texto uma mensagem dirigida ao outro, o analista, para poder escutar, aprés coup, a mensagem mediante o que o Outro, o inconsciente, devolve ao sujeito que fala, “sua própria mensagem de forma invertida”. Poderíamos comentar esta operação a partir da perspectiva do “eu sei que ele sabe” (LACAN, 1976-77/inédito), sendo “ele sabe” uma fórmula do discurso do Outro, o inconsciente, l’insu que sait: isso fala em meu dito. Quando no Seminário 18, Lacan (1971/2009) aborda o tema da escritura, o faz colocando em convivência com o aspecto fônico da palavra. É uma época em que se aproxima da língua japonesa e assinala alguns aspectos que o estudo dessa língua lhe trouxe, como a afetação da escritura no desenvolvimento da própria língua. Um dos caracteres que assinala na escritura é que deverá ter em conta as distintas sonoridades de uma mesma letra conforme esteja escrita, como as cinco modalidades de pronunciar o i em chinês, por exemplo. Comenta, então, que a escritura serve para indicar o som que corresponde à palavra. Chegando até aqui, podemos colocar em relação a “instância da letra” no inconsciente com a intervenção fônica do analista, modulando o dito do analisante no que vem a ser a interpretação. Lacan sempre foi muito dado aos jogos homofônicos e os transladou muito rapidamente a seu ensino. Há uma espécie de “dizer moebiano” que permite produzir distintos efeitos de sentido, em função de como se leiam os dizeres. Um exemplo célebre é o título do seminário que não chegou a dar precisamente por sua expulsão da IPA: Les noms du père. Anos mais tarde, depois de anunciar repetidamente que nunca daria esse seminário, ditou seu seminário Les non-dupes errent (LACAN, 1973-74/inédito). Nesta homofonia entre dois enunciados de escritura distinta e de sentidos também distintos, se escutam diferentes efeitos segundo o sujeito intérprete, mais além de seu “saber”, pois ressoa em seu dizer, afetando a isso que Lacan disse acerca do sonho: uma enunciação – escrita – no

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interior do enunciado. Chamo “dizer moebiano” por recolher a noção de “unilateralidade” da banda e o efeito que produz: percorrendo-a somente uma vez por inteiro, parece que se percorre duas faces. Assim, Les non-dupes errent evoca e inclui Les noms du père. Posteriormente, teremos um exemplo para mim mais sugestivo, como L’insu que sait de l’Une-bévue s’aile à mourre (LACAN, 1976-77/inédito), título a ser dividido em três fragmentos de distintas combinações possíveis. Assim, em L’insu que sait se escuta L’insuccès, fundando no fracasso do enunciado inconsciente sua permanência como não saber que sabe. Em L’Une-bévue ressoa L’Unbewusst, nome freudiano do inconsciente, e em s’aile à mourre podemos ouvir c’est l’amour. A diversidade de “saberes” que se conjugam nesse percurso moebiano de uma mesma tira fônica é muito mais rica em conteúdo que uma grande conferência sobre o tema, e ademais se acrescenta o benefício de tocar a cada um, segundo seu Insu, em um ou outro sentido, ou seja, em uma ou outra verdade mentirosa. Entendo que este é o modelo que Lacan propõe à interpretação: fazer escutar, na caixa de ressonância do sujeito, o escrito do desejo. Não como saber, e sim como murmúrio [resón]. Podemos dizer que a interpretação opera reson-hable-miente mais que razoavelmente. Nesta modalidade de interpretação, se exercita a metáfora segundo o modelo do chiste, tão bem explicado por Lacan (1957-58/1999) em O Seminário 5: As formações do inconsciente com um precioso jogo homofônico: O pas de sens. O efeito de chiste, de transmissão, se produz por uma queda de sentido ao emergir um novo sentido no segundo tempo do chiste. O intervalo produz um efeito de sem sentido (pas de sens) que se revela como um passo de sentido (pas de sens), a um novo sentido. O exemplo é o do milionário a que um grupo de pessoas trata com obséquio, comentando alguém com seu interlocutor “como adoram ao bezerro de ouro!”. Ao que este responderia: “Não te parece um tanto mais velho para bezerro?”. O passo de enfatizar o ouro do “bezerro” a enfatizar sua idade é o que levaria ao efeito e o afetado do riso, sempre que haja, isto sim, certa cumplicidade em nível inconsciente.

Agente, semblante, desejo Uma das últimas acepções do desejo no ensino de Lacan é quando se situa no lugar superior esquerdo de sua escritura dos discursos: os quadropodos ou tetrapedos, como ele disse preferir chamá-los para usar termos bastardos, de pai latino e mãe grega ou vice-versa, em seu inesgotável brincar com as línguas. O termo mais usado em seu Seminário 17 (LACAN, 1969-70/1992), para esta localização é o de “agente”, pois é quem opera. No discurso do mestre é o S1, o

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mandato do mestre; no discurso universitário, o S2, ou seja, o saber – que por sua vez, funciona como mandato –; no discurso do sujeito histérico se trata do $, o sujeito dividido; e no discurso do analista é o objeto a. Creio que o termo agente é bastante preciso e fácil de entender. Porém, Lacan não se detém aí. Usa o termo semblante para esse mesmo lugar, e se somente o menciona explicitamente a respeito de alguns dos discursos, podemos tentar extrapolá-los aos demais. Assim, no discurso do analista o a é um semblante, pois o analista não é o objeto a em causa, somente se presta como semblante, convergindo este entre o simbólico e o imaginário, excluindo-se o real. Creio que no discurso universitário podemos afirmar também que o S2 é um semblante, pois os saberes vão se constituindo ao longo da história, segundo o estado do sintoma que afeta a um grupo. O saber que comanda nossa Europa merkelizada não é o mesmo da Itália fascista ou do Maio francês. Acerca deste último, Lacan se referiu bastante em Vincennes, sugerindo que propor a revolução é simplesmente voltar ao mesmo lugar, solicitar outro mestre. No discurso do mestre, o S1 é um semblante? E o é, o $ no discurso da histérica? Deixo estas perguntas. Passemos ao desejo. No discurso do analista, o desejo está efetivamente a cargo do analista. Aqui me parece evidente a coincidência entre agente, semblante e desejo. Não há análise a não ser que se coloque em jogo o desejo do analista por meio de seu ato. A transferência, o sujeito suposto saber, corre a cargo do analisante, e é algo necessário para que o discurso analítico se desdobre, porém não é suficiente, e isto exige o desejo do analista. No discurso universitário, podemos pensar que o “desejo de saber” comanda. Há que saber, e o escravo, que astude, forma passiva, particípio do suposto verbo astuder – uma nova astúcia de Lacan – se faz objeto desse desejo de saber. Quem detém a função de ensinar é quem deseja saber, porém não o saber como objeto que satisfaria esse desejo, senão saber como causa do desejo. O saber é causa desse discurso, e nesta medida causa e desejo seriam sinônimos. No discurso do mestre é o S1 quem causa. A operação de linguagem, a introdução do significante, coloca os sujeitos para obedecer à linguagem, fazendo um discurso. Com lalíngua se constitui o fundo de armário a partir do qual poderá surgir o inconsciente estruturado como uma linguagem, os vestidos do parlêtre.6 Parece-me adequado assinalar aqui que lalíngua se apresenta em Lacan como um lapso que se refere a Lalande (LACAN, 1971-72/inédito, aula de 4 de novembro de 1972), o “Vocabulário crítico da filosofia”. Podemos, com isso, dar alguma volta acerca da relação do sujeito com o saber e com o que não sabe. Certamente aí se 6 Parlêtre, em francês, inclui fale, parece e ser.

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separam as águas entre a concepção filosófica e a psicanalítica. Lacan mesmo o menciona no contexto de seu lapso. Portanto, se trata de lalíngua, e não de Lalande – entendido como compêndio dos saberes filosóficos – poderíamos concluir. Por último, o discurso do sujeito histérico. Certo, o desejo do sujeito é o que o comanda, é seu agente. Esse desejo que Lacan define como “desejo de fazer desejar”, e que tanto saber produz. Mediante o mesmo, colocado originalmente na figura de Sócrates, sujeito histérico por excelência, ao Mestre se instilou o desejo de saber, e isso produz uma mudança de discurso e uma mudança no discurso do mestre.

Desejo do analista Agora ainda uma linha para um termo lacaniano que se assenta plenamente no desejo: o desejo do analista. É considerado produto genuíno de uma análise e causa de outras possíveis análises. O passe, procedimento inventado por Lacan, prova transmissível do desejo do analista de seu promotor, pretende dar conta desse desejo particular, como prova de que “há analista” em quem levou uma análise a seu termo. Desejo aqui citar um fragmento dessas mesmas “Entretiens de Sainte-Anne”: O passe é o que proponho a quem se dedicou o bastante para expor-se com fim somente de informação sobre um ponto delicado: que é completamente a-normal – objeto a normal – que alguém que faz uma psicanálise queira ser psicanalista. Faz falta uma espécie de aberração que vale a pena oferecer... para saber por que alguém que sabe o que é a psicanálise por sua didática, ainda queira ser psicanalista (LACAN, 1971-72/inédito, aula de 01 de junho). Uma aposta para remitir esta “aberração” à concepção aristotélica do desejo como fora do campo do humano. Creio, nesse ponto preciso do “desejo do analista”, Lacan não deixa de ser um tanto nicomáqueo. E, para finalizar, quero tomar brevemente a outra face moebiana do Dasein, o Das Ein: O Um. O desejo constitui o indestrutível do sujeito por fazê-lo Um, e é o Um que o faz resistente ao Outro e ao Dois, os dois termos que podemos colocar como opostos significantes ao Um. É certo que a análise costuma iniciar-se sob os auspícios do Um da unidade. Um deseja unificar-se, e também deseja alcançar o Dois da relação sexual. Porém, também é certo que outro Um, este já não uniano, mas singular, para cada-um, é o que resiste no desejo, que obstaculiza o Um unificador, e que se imporá, no melhor dos casos, ao fim da análise.

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Há Um, disse-nos Lacan, e por isso não há Outro nem por fim, relação sexual. Este é o Das Ein que nos coloca ao final de uma análise: o desejo. Para mim, o interesse deste percurso é o de sustentar que, se bem “desejo” é um conceito freudiano, e se bem é equivalente em Lacan, ou seja, o conceito genuinamente lacaniano é o de “gozo”, este último deve muito ao primeiro, e não esgota, com todos seus desenvolvimentos, a vigência do desejo no ensino de Lacan. Lacan não somente vai mais além de Freud, com todos os desenvolvimentos conceituais e terminológicos que chega a produzir, bem como abandona esse termo, pois os tentáculos do termo freudiano seguem abraçando mais além do que o próprio Freud escreveu sobre o mesmo. Entendo, então, o desejo como a pedra angular de todo o edifício psicanalítico, e se Lacan, em seus últimos anos em Caracas, se confessou freudiano, algo se deve ao indestrutível desse desejo, seu impressionante valor conceitual. O que implica que aqueles, convocados pelo mesmo Lacan, nós, que nos dizemos lacanianos, o somos à custa de comungar com a primazia do desejo: Das Ein em nossa formação. Tradução: Andréa Brunetto Revisão: Conrado Ramos e Ida Freitas

referências bibliográficas DERRIDA, Jacques. La escritura y La diferencia. Barcelona: Anthropos, 1989. FREUD, S. (1900). A interpretação dos sonhos. ESB. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976. FREUD, S. (1925[1924]). Uma nota sobre o bloco mágico. ESB. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976. LACAN, J. (1957-58). O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. __________. (1958). A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1998, pp. 591-652. __________. (1958-59). O Seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação. Inédito. __________. (1959-60). O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991. __________. (1964). Do Trieb de Freud e do desejo do analista. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1998, pp. 865-868. __________. (1964). O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990. __________. (1968). Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In: LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,

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2003, pp. 248-264. LACAN, J. O Seminário, livro 17: o avesso da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992. LACAN, Jacques. (1971). O Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009. __________. (1971/72). O saber do psicanalista. Inédito. __________. (1973-74). O Seminário, livro XXI: les non-dupes errent. Inédito. LACAN, Jacques. (1976-77). O Seminário, livro 24: l’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre. Inédito. SHARPE, Ella. Análise dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda. 1971.

resumo

O autor parte do Wunsch freudiano, percorrendo diversos momentos do ensino de Lacan para demonstrar sua tese presente no título “Desejo: Dasein lacaniano”. Distingue duas concepções do Dasein como “ser aí” e como Das Ein, “O Um” o qual irá relacionar ao final da análise. Justifica o uso do termo heideggeriano na sua concepção de interpretação como o que localiza o desejo do sujeito em um instante precedente, depois do qual o sujeito já não está aí, a interpretação daseina do desejo do sujeito. Nesse trajeto, o autor procura localizar as várias maneiras que Lacan situou o desejo nas dimensões imaginária, simbólica e real, relacionando-o aos quatro conceitos fundamentais, assim como com os quatro discursos, fazendo uma aproximação do desejo com sua escritura. Rebollo finaliza seu desenvolvimento, destacando a função desejo do analista.

palavras-chave

Desejo, desejo do analista, enunciação, semblante, Um.

abstract

The author departs from the Freudian Wunsch, privileging several moments of Lacan’s teaching to demonstrate his thesis in the work Desire: Lacanian Dasein. He distinguishes two conceptions of the Dasein such as “being there” and Das Ein, “The One”, which will relate to the conclusion of the analysis. He justifies the use of the Heideggerian term, in its conception of interpretation like the one that locates the subject’s desire in a previous moment, after which the subject is no longer there, the daseina interpretation of the subject’s desire. In this trajectory, the author tries to find the several ways Lacan has placed the desire in the imaginary, symbolic, and real dimensions, relating it to the four key concepts, as well as the four discourses, in the approximation of the desire with his scripture. Rebollo concludes his thought, highlighting the function desire of the analyst.

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keywords

Desire, analyst’s desire, enunciation, likeness, One.

recebido 04/02/2014

aprovado 05/04/2014

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Sobre o amor, o desejo e os parceiros Marcia Assis Introdução Não há relação sexual: eis o impossível que não cessa de não se escrever. Porém, há “uma relação de amor possível que, desta vez, reconhece o outro” (SOLER, 2012, p. 183). O trecho citado, recortado de Lacan, o inconsciente reinventado, foi o elemento provocador, instigando esta elaboração. O capítulo O amor e o Real nos faz pensar sobre os efeitos da análise diante da questão amorosa. Sendo o amor uma paixão amiga da ignorância, que não quer saber nada disso, aposta-se na mudança, considerando-se que a experiência analítica desvela o real irredutível da castração. O gozo não é ligante por si só. No nível do gozo não há par. Impossível escrever o dois do sexo. Mas há o par da fantasia, esteio do desejo. Ressalto, no entanto, que o desejo não comporta uma relação subjetiva simples com o objeto, tal como representado pelo losango no matema da fantasia. No seminário A angústia, Lacan propôs ler este matema da seguinte maneira: $ desejo de a (1962-63/2005, p. 59). Eis o casal que se apresenta no nível do desejo, $ em suas relações possíveis com o objeto a mais-de-gozar. Isto envolve um gozo, certamente, o gozo fálico ao redor do qual tudo gira, segundo o que se demonstra na experiência analítica, justamente por ser tal gozo obstáculo. Faço referência ao seminário Mais Ainda, onde Lacan explicita que o gozo fálico obstaculiza o homem gozar do corpo da mulher, pois do que ele goza é do gozo do órgão (1972-73/ 1985, p. 15). Ou seja, “o gozo enquanto sexual, é fálico, quer dizer, ele não se relaciona ao Outro como tal” (Ibid., p. 18).

O amor ignorante do desejo Do que se trata no amor? Será que é fazer um só? Estas são questões trazidas por Lacan no seminário citado acima, às quais acrescento mais uma: qual é o par no nível do amor? O amor é sempre recíproco, pois “o amor demanda o amor” (Ibid., p. 12). “Amar é querer ser amado” (1964/1988, p. 239), afirmativa de Lacan que denuncia a essência narcísica do amor, salientada desde Freud. Eis a baixeza do amor, revelada por Alcibíades em sua busca pelo agalma (LACAN, 1964/1998, p. 867).

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ASSIS, Marcia

Ainda no Seminário 20 (op. cit., p. 12), ao falar sobre o amor, Lacan nos diz ser este uma paixão ignorante do desejo, impotente e recíproco, pois “ignora que é apenas o desejo de ser Um, que nos conduz ao impossível de estabelecer a relação dos dois sexos” (Ibid., p. 14). Para ilustrar este impossível, Lacan recorreu ao paradoxo de Zenão, onde Aquiles só pode ultrapassar a tartaruga e não em(par) elhar-se a ela. Eis o dito para o que concerne ao gozo sexual: de Dois não se faz Um. Esse Um só se aguenta pela via do significante. O gozo é solitário. Os corpos copulam porque as palavras copulam. “Um corpo, isso se goza. Isso se goza por corporizá-lo de maneira significante” (LACAN, 1972-73/1985, p. 35). A linguagem é obstáculo ao gozo pleno. Este é da ordem do impossível ao ser falante. Resta o gozo limitado, castrado, gozo ferido. Entre os seres falantes, o ato de amor é a perversão polimorfa do macho, ou seja, sendo falante, aquele que se vê macho aborda a mulher, no entanto, o que ele aborda é o objeto a, causa de seu desejo. Não há acesso ao Outro a não ser pela via das pulsões parciais. É em revolver esses objetos para neles resgatar, restaurar em si sua perda original, que se empenha a atividade pulsional (LACAN, 1964/1998, p. 863). Porém, os corpos que gozam, solitariamente, vêm a se atrair eletivamente. Sem esquecer que há reciprocidade entre o amar e o ser amado, pressupondo um par. No entanto, que par é este? Haverá outro par que não seja o da fantasia, se o parceiro do sujeito não é o Outro, mas o que vem substituir-se a ele na forma de causa de desejo, forma a-sexuada? Dito de outro modo, o objeto que causa o desejo não é nenhum parceiro em particular, apenas a contrapartida do sujeito na fantasia. O que nos leva a reafirmar que o amor é enganador, pois ele mente sobre o verdadeiro parceiro. Soler enfatiza este ponto, o parceiro do casal é sempre o lugar-tenente do verdadeiro parceiro: Dante só obtém de Beatriz um batimento de cílios, um olhar, objeto de sua fantasia (SOLER, 2012, p. 186). Tal exemplo diz o que vale em Beatriz, invólucro do objeto a mais-de-gozar, mas não diz por que Beatriz e não Julieta. O verdadeiro parceiro, o objeto a, não tem nome, nem imagem. “Ele é causa de angústia, justamente por ser anônimo e desconhecido” (Ibid., p. 170). Ele causa o desejo, mas como indeterminado. A causa faz desejar, lança o vetor, deixando o alvo em branco, quer dizer, não diz sobre o desejável, sobre o parceiro eleito, de onde extrair o mais-de-gozar visado. Soler nos convida à releitura do seminário A angústia (op. cit.) para alcançarmos a distinção estabelecida por Lacan entre o objeto a como pura causa de desejo e o objeto a passado ao campo do Outro, quando um investimento é transferido para objetos historizados, vestidos com as imagens e os significantes do discurso. A fantasia, portanto, é o produto desta transfusão de a para o campo do Outro. Mais tarde, no seminário Mais ainda, Lacan referese à imagem como vestimenta que envolve o objeto a, causa de desejo, afirmando que o amor se dirige ao semblante (op. cit., p. 125).

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Sobre o amor, o desejo e os parceiros

Ao objeto tornado alvo do desejo, Soler irá designá-lo objeto sintoma. Aí se encontra o que Lacan enunciou como modelo do pai que apresenta o exemplo de uma solução para a indeterminação do desejo, sendo a condição de superação de angústia, pois há para ele um a assegurado, fixado. Portanto, um pai é a figura de uma solução sintomática que aponta a via da suplência, a partir de seu sintoma. Ele pode ter outros sintomas, mas é por esse que ele traz a função de enodar o ICSR à verdade da fantasia, com seu dizer de nomeação. Só há amor por um nome e só há superação da angústia quando o Outro é nomeado. Cito Lacan, no seminário A angústia (op. cit., p. 366). Melhor tradução de tais frases, encontrei no verso “Teadoro, Teodora”, do poeta Manuel Bandeira, inventor do verbo teadorar.1 Duas afirmativas se esclarecem: o sintoma supre a ausência da relação sexual e a segunda, enunciada no seminário Mais ainda: “O que vem em suplência à relação sexual é precisamente o amor” (op. cit., p. 62). A passagem ao espaço do Outro é o que fundamenta a transferência, considera Soler, que afirma ser o SsS (no qual o objeto está latente) um outro nome ao que Lacan denominou campo do Outro. “O que faz da análise uma aventura singular é a busca do agalma no campo do Outro” (1962-63/2005, p. 366).

O amor de transferência: condição e obstáculo do tratamento É pela via do amor que a análise opera, sabemos disso desde Freud (1915[1914] /1986), que não duvidava da autenticidade deste amor, ainda que não recíproco. Também Lacan não duvidou, chegando a afirmar que sua formulação sobre o SsS mostra que a transferência não se distingue do amor, pois “aquele a quem eu suponho o saber, eu o amo” (1972-73/1985, p. 91), sendo, portanto, condição do tratamento por ser um amor que se dirige ao saber. No entanto, em sua vertente resistente obstaculiza o processo analítico, ao não querer saber nada disso. No Seminário 10, apresenta o amor de transferência como um amor presente no real (op. cit., p. 122), alertando que nada alcançaremos a respeito do conceito de transferência, se ignorarmos que ela também é consequência desse amor presente, ressaltando a questão central da transferência, sobre o que falta ao sujeito, pois é a partir da falta que ele ama. No seminário A transferência (1960-61/1992), Lacan buscou o Banquete de Platão para nos mostrar do que se trata na transferência, que não pode ser apreendida fora do registro indicado como o lugar de a, o objeto mais-de-gozar, o agalma, na relação

1 Referência ao poema Neologismo, de Manuel Bandeira.

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de desejo.2 “Mesmo que o sujeito não o saiba, já é no outro que o pequeno a funciona” (Ibid., p. 194). Este é um efeito legítimo e irredutível da situação transferencial. Lacan já nos alertara no Seminário A Angústia (op. cit., p. 170), para a função do desejo no plano do amor; ele intervém no amor, sendo seu pivô essencial, porém o desejo não diz respeito ao objeto amado. O analista, aquele que passou pela experiência, sabe sobre a função do desejo e do objeto-causa. Ele sabe sobre o segredo chocante do funcionamento do desejo, dissimulado pelo amor de transferência, em sua versão resistência: o Outro se reduz ao objeto a. Desejar o Outro nunca é senão desejar o a (Ibid., p. 198). O desejo aiza o parceiro.3

Um amor mais digno Soler (2012, p. 188) se refere ao termo empregado por Lacan em Carta aos Italianos: “amor mais digno” (1973/2003), ao qualificar que a análise não é sem efeito sobre o amor. Portanto, podemos apostar que uma análise orientada para o real possa fazer surgir um amor mais digno, aquele que não acredita no parceiro, uma forma de sintoma socializante. A Psicanálise não o prescreve. Este amor ateu, menos tagarela, pode acontecer, pois a análise é capaz de provocar mudança, mas o bom encontro, ela não pode prometer, embora possa criar as condições de possibilidade, ao provocar as des-identificações, liberando o sujeito das restrições que a repetição impunha. A análise revela que o amor é repetitivo, sempre a mesma decepção, ao esperar um efeito de ser. E o amor repetitivo trabalha na direção da conformidade. Porém, há escolhas discordantes que não obedecem nem ao ideal, nem à fantasia. Lacan afirma no seminário Mais ainda que o reconhecimento de sujeito a sujeito, onde sujeito é apenas efeito do saber inconsciente, é a maneira pela qual a relação dita sexual para de não se escrever (op. cit., p. 198). Ponto de suspensão, contingência, instante “infinito enquanto dura”.4 Momento em que nosso desejo estende a mão para a acha ardente e, da chama, por um instante, outra mão se estende para nós, bem como seu desejo. O termo reconhecimento indica a função nova que o amor assume, revelar a presença e os efeitos do inconsciente real (SOLER, 2012). Índice não de uma intersubjetividade, mas de um inter-reconhecimento entre dois falasseres que trazem, cada qual, as marcas de seu exílio, pois quem fala só tem a ver com a solidão, no que diz respeito ao impossível da relação sexual. Dois falasseres, duas disparidades desejantes. Afinidade que não faz identificação, nem traz uma identidade. A partir 2 Lacan faz uma equivalência entre agalma e objetos parciais no Seminário A transferência. 3 Expressão de Lacan, utilizada no Seminário A angústia. 4 Referência ao poema Soneto de Fidelidade, de Vinícius de Moraes.

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Sobre o amor, o desejo e os parceiros

de tais considerações, talvez se possa alcançar a frase que instigou esta produção: uma relação de amor possível, que desta vez reconhece o outro, unicidade solitária. O amor é posto à prova ao se defrontar com o impossível. Diante da impossibilidade, pode surgir a relação de amor possível, alternativa ao amor que visa ao complemento de ser, ao cessar os amores com a verdade e a miragem de completude, uma vez consentida a sorte de falasser.

referências bibliográficas FREUD, S. (1914). Puntualizaciones sobre el amor de transferencia. Obras Completas de Sigmund Freud. Tradução de José Luis Etcheverry. Buenos Aires: Amorrortu Editores, vol. XII, 1986, pp. 159-174. LACAN, J. (1960-61). O Seminário, livro 8: a transferência. Tradução de Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992. 386p. __________. (1962-63). O seminário, livro 10: a angústia. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. 367p. __________. (1964). Posição do inconsciente. In: LACAN, J. Escritos. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, pp. 843-864. __________. (1964). Do “Trieb” de Freud e do desejo do psicanalista. In: LACAN, J. Escritos. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, pp. 865-868. __________. (1964). O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Versão brasileira de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. 269p. __________. (1972-73). O Seminário, livro 20: mais ainda. Versão brasileira de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. 201p. __________. (1973). Nota italiana. In: LACAN, J. Outros escritos. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, pp. 311-315. SOLER, C. Lacan, o inconsciente reinventado. Tradução Procópio Abreu. Rio de Janeiro: Cia. de Freud, 2012. 234p.

resumo

O presente trabalho traz as articulações entre amor e desejo e, partindo do princípio que no nível do gozo não há par, aponta o parceiro do desejo e a parceria amorosa, enquanto apresenta o amor em três versões: o amor paixão ignorante do desejo, que mente sobre o verdadeiro parceiro; o amor de transferência, condição e obstáculo da análise; e o amor mais digno, que não acredita no parceiro mas reconhece o outro como unicidade solitária.

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ASSIS, Marcia

palavras-chave

Amor, desejo, gozo, objeto a.

abstract

the present work discusses the articulations between love and desire and, departing from the principle that, at the level of jouissance there is no pairing, it points out the partner of the desire and the love partnership while it presents love in three versions: love as passion, ignorant of desire, which lies about the true partner, love of transference, condition and obstacle to the analysis, and the more dignified love, which does not believe in the partner, but acknowledges the other as solitary uniqueness.

keywords

Love, desire, jouissance, object a.

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direção do tratamento



O importante papel do humor na direção da cura

O importante papel do humor na direção da cura Silvia Lira Staccioli Castro Gostaríamos de apresentá-los a um personagem muito interessante chamado Giovanni Manzoni. Saiu dos livros e tomou vida em um filme intitulado A família, dirigido e produzido pelo francês Luc Besson, com produção executiva de Martin Scorsese. Grande parte de seu carisma se deve à bela atuação de Robert De Niro, um brilhante ator que soube encenar as nuances desse ex-mafioso, protegido das ameaças de morte pelo FBI. Dizemos nuances porque ele nos faz rir em diversas situações grotescas em que percebemos o seu cuidado em disfarçar o que fizera de errado, como quando espancou severamente um sujeito que o deixara irado numa circunstância banal do dia a dia. Preocupado com as consequências de seu ato, levou-o ao hospital e não o deixou no quarto sozinho por nenhum momento. Enquanto o sujeito descansava na maca todo quebrado, o médico explicava a Manzoni as inúmeras lesões ocorridas e o indagava como aquilo havia acontecido. O espanto de De Niro diante da gravidade das fraturas, e a alternância do tipo de olhar, ora simpático, dirigido ao doutor, e, ora ameaçador, endereçado àquele homem, causa gargalhada nos telespectadores. Assim, Giovanni Manzoni é um homem dividido entre o impulso de praticar o mal, isto é, em dar vazão ao seu ódio, e o dever de proteger a sua amada esposa e seus queridos filhos adolescentes. Uma vez tendo delatado parentes e amigos em Nova Iorque e assim evitado sua prisão, ganhara como prêmio a liberdade. Fora levado dos Estados Unidos para a França, a fim de que ninguém o reconhecesse, mudança essa financiada pela Polícia Federal americana. Dessa forma, fora instalado com a família numa casa, curiosamente sem número, e, ao seu lado, moravam os policiais responsáveis em vigiá-lo. O humor negro norteia o enredo desde o início, e logo observamos que havia mais uma pessoa no carro, além de Manzoni, sua esposa e seu casal de filhos, mais exatamente, um corpo no porta-malas. Num flashback, ficamos sabendo de quem se tratava a vítima, um mero vendedor de frutos do mar, que ousou querer lhe empurrar lagostas estragadas. De madrugada, enquanto sua família cochilava, Manzoni pegou uma pá e se pôs a cavar um buraco para enterrar o sujeito morto no quintal. Ao seu lado, se colocou seu amado cachorro de estimação, com quem Giovanni Manzoni é um

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CASTRO, Silvia Lira Staccioli

verdadeiro doce, e de quem ele acusava vir o cheiro podre, sentido pela família, durante a viagem para o novo endereço de residência. Nos primeiros dias, Manzoni ficava recluso em casa, não chegava nem a tirar o pijama. Tentava parecer o menos suspeito possível. Entretanto, um vizinho de porta, muito curioso com o morador recém-chegado, enquanto cuidava do jardim, procurou perguntar-lhe sobre sua profissão. Decide dizer que é um escritor aposentado, imbuído de um novo projeto. Surpreso com sua própria resposta, Giovanni se vê disposto a escrever suas memórias, que passam a ser narradas no filme. Por meio de sua história de vida, começamos a entender como esta peculiar família americana de origem italiana foi parar ali naquele vilarejo e mais, do que ela é capaz. Aqui, neste ponto do trabalho, devemos fazer uma pausa na discussão sobre esse personagem a fim de retomar os comentários de Kupermann (2003) sobre o humor, mais propriamente sobre o efeito psíquico da piada. O autor afirmou que esta permite a manifestação das pulsões sexuais e agressivas inibidas pelo recalque. Aliás, essa foi uma lição aprendida com Freud (1905/1996) no início da construção de seu arcabouço teórico; o chiste tem o poder de abrir fontes de prazer que, de outra forma, seriam inacessíveis. Sendo assim, uma vez suspensa a inibição, obtém-se uma cota de satisfação. E, este é justamente o efeito que o filme A família provoca. Rimos diante da dificuldade de Giovanni em se manter do lado do bem, e de toda a sua tentativa, inúmeras vezes em vão, de controlar a raiva. Tem uma cena hilária em que, estando à frente de um churrasco oferecido em sua casa, numa política de boa vizinhança, por estar sendo inquerido sobre a forma de preparar a churrasqueira, se vê golpeando todos aqueles franceses intrometidos. No lugar de agir como um frio assassino, Giovanni sorri e retoma o preparo dos hambúrgueres. O que mais nos chama a atenção na produção cinematográfica não é o contraste entre o pragmatismo americano e o secularismo europeu do Velho Mundo, presente na tela, destacado pelos críticos, nem o erotismo da Lolita virgem encarnada por sua filha adolescente, que seduz seu introspectivo professor, conforme indicam alguns cinéfilos; mas a reprodução do que ocorre em alguns sujeitos que ficam à mercê do ódio que emana de si. Giovanni não é apenas um criminoso, mas um sedutor escritor e um personagem muito inteligente e carismático, que, em muitos momentos, deixa-se levar pela emoção da raiva. Tanto é cruel em certas ocasiões, como amoroso em outras. Curiosamente, ocorre uma cena no filme, na qual a realidade e a fantasia se misturam. Manzoni é convidado na condição de escritor de ficção para um evento importante numa cidade vizinha, um debate sobre um filme, cuja cópia não chega à cidade, e é substituída por outro, justamente sobre a máfia. Trata-se de Os bons companheiros, do qual o próprio De Niro faz parte, dirigido por Martin

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O importante papel do humor na direção da cura

Scorsese. Quem o acompanha ao evento é o chefe do grupo de policiais, responsável por sua guarda, interpretado por Tommy Lee Jones. Após a exibição do filme, Manzoni toma a palavra e traça um perfil psicológico dos gangsters retratados na tela. Associa algumas marcas do passado de um mafioso, de quem teria pesquisado a história familiar, com sua impulsividade e brutalidade contumaz na idade adulta. O diretor nos leva a crer que ao tecer seus comentários, Manzoni faz uma verdadeira catarse, relembrando seus traumas infantis; assim, ao final do evento é ovacionado. Já o telespectador fica com a certeza de que mais uma vez podemos utilizar a expressão “Freud explica”. E o policial do FBI, perplexo com tamanha desenvoltura e exibicionismo de Manzoni, decide que aquela seria a última noite da família na Normandia. Afinal, seria impossível a partir dali mantê-lo no anonimato. Daí em diante, ocorre uma série de eventos que culminam no final do filme, que nos furtamos a descrever, para não estragar a surpresa de quem não o assistiu. A graça dessa produção está na humanização de seus protagonistas, cuja divisão subjetiva fica evidenciada, de tal forma, que não se vê na tela um perverso, ou, para usarmos um sinônimo carregado de estigma, um carrasco, como Anthony Hopkins em O silêncio dos inocentes, por exemplo. A comédia dá o tom das cenas de brutalidade. Elas são mostradas ora em câmera rápida, ora recortadas, às vezes em ordem invertida, o que nos poupa de um possível voyeurismo. Giovanni Manzoni não é um homem mau, que não sabe amar sua esposa ou seus filhos. Sim, é destemperado, raivoso, impulsivo, mas também tem um lado adorável. A sua esposa também nos seduz com sua inocência a despeito de suas atitudes criminosas. Por isso, talvez, tenham escolhido Michelle Pfeiffer para fazer este papel. Embora muitos anos tenham se passado desde que surgiu em Hollywood, continua com um semblante angelical, de menina. Quando não está aprontando, seria esta a palavra cabível, pois esta remete à brincadeira (ali, nada pode ser levado tão a sério), é uma dona de casa prendada, uma mãe dedicada a seus filhos, grata aos policiais que estão ali para cuidar de suas vidas. Estranhamente, sente-se próxima deles, cativa uma íntima amizade. Sempre vai até a casa da dupla, levar uma apetitosa macarronada, momento em que aproveita para tomar um café e conversar. Ela é, ainda, uma católica praticante, que vai à igreja no meio do dia. Notamos ser ainda difícil, nos dias de hoje, para nós, psicanalistas, lidarmos com comportamentos transgressores, que pervertem a lei. Quando perguntam onde é o ambulatório público no qual trabalho e respondo que é na Polícia Militar, dentro de um batalhão, as pessoas fazem o seguinte comentário: “deve ser pesado, né?”. A que se referem? A essa face sádica que pode ser acentuada em alguns sujeitos? Estão se referindo ao traço perverso que imaginam ser facilmente identificado nos policiais militares de forma geral?

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CASTRO, Silvia Lira Staccioli

Na clínica, temos de suspender as balizas do asco, da vergonha e da moral, que a cultura nos impõe. Simplesmente, não podemos reagir como o padre, outro personagem interessante na película, que se colocou a escutar a Sra. Manzoni no confessionário, encorajando-a a se abrir e dias depois, expulsou-a da igreja, chocado com o que ouvira. A violência produzida pelos Manzoni assusta por ser brutal, contudo nos faz rir da forma como é retratada pelo diretor e produtor. Igualmente, por meio do humor, foi conduzida a análise com um paciente, que se apresentou nas primeiras entrevistas deprimido, habitado por muita angústia, culpado e atormentado por ideias suicidas. Freud (1927/1996) nos ensinou que o humor retira a severidade do supereu, que na neurose obsessiva é cruel e espezinha o eu. Tem a função de consolar esta instância, protegendo-a do sofrimento. Retomando mais uma vez Kupermann (2003), ele mostrou ser o supereu, em sua qualidade afável, modificado pelo riso, por se bendizer a vida, um contraponto em relação ao supereu cruel e sádico, que nos manda gozar. Esse paciente, de aproximadamente 45 anos, chegou a tentar o suicídio quando tinha 18 anos. Usou drogas, vindo a perder a medida do quanto podia consumir; e chegou a ter uma overdose. Falava nas sessões sobre uma impulsividade atroz que o colocava em situações de risco constantemente. Reproduzia em sua mente cenas de duelo, estava sempre situado entre o matar e o morrer. Notava que, de alguma maneira, antecipava a morte; aliás, se via morrendo. Enfim, habitualmente, sua mente era invadida por pensamentos recorrentes, em que se imaginava envolvido em acidentes trágicos e fatais. Sabemos o quanto o obsessivo se ocupa com suas fantasias, que “podem assumir, em alguns sujeitos, uma forma realmente invasiva, absorvente, cativante, capaz de tragar pedaços inteiros de sua vida psíquica, de sua vivência, de suas ocupações mentais” (LACAN, 1957-1958/1999, p. 423). Para Lacan, a morte não deve ser localizada no adversário, que o obsessivo insiste em desafiar. Afinal de contas, esse outro com quem joga é sempre ele mesmo. A morte deve ser colocada pelo analista, em relação ao obsessivo, no lado do Outro, que é sua testemunha ocular, que observa e atesta os golpes por ele sofridos, para aí afirmar: “Decididamente – como é dito em algum lugar no delírio de Schreber –, ele é um durão” (LACAN, Ibid., p. 433). Quando Igor esbarrava em alguma dificuldade cotidiana, como quando era provocado no trânsito, por exemplo, era tomado pela raiva, e então ficava cego em relação à razão. “O peito chega a arder”, disse uma vez. Nessas circunstâncias, os pensamentos destrutivos se iniciavam. Ora dirigidos ao outro e ora a ele mesmo. Um dia, disse em análise: “Eu me descontrolo completamente. Não sei usar o bom termo”. Estranhei a expressão por ele empregada. “Teria querido dizer meio-

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termo?”, me perguntei. Estava aí presente um ato falho da maior importância. Então lhe devolvi o ato dizendo simplesmente: “Você está querendo dizer que usa o mau termo? Que o mal se sobressai?”. Sem hesitar, o paciente afirmou ser exatamente essa a questão; de certa forma, sentindo-se aliviado por poder ser tão sincero. Esta foi a chave para que ele começasse a associar: “Diante de situações bobas, eu perco a cabeça. Sinto um verdadeiro ódio, uma vontade louca de fazer mal ao outro”, afirmou. Perde a cabeça porque, ao atuar de forma sádica, goza. Igor se deu conta de que muito habitualmente buscava esse gozo a contrabando. Chegava a ligar para os colegas “para comprar o bagulho dos outros”, se oferecia para ficar neste lugar. Imbuído do sentimento sádico, já viveu cenas que remetem ao próprio Giovanni Manzoni. Certa vez, Igor veio a mim, desesperado, por ter desferido vários golpes de faca na poltrona de sua casa, após discutir com sua ex-mulher. Ela sabia muito bem como atingi-lo, tirando-o do sério. Em vez de censurá-lo, me vi gargalhando diante de tamanho desatino. Pedi que ele repetisse a história a fim de que eu pudesse entender o que havia acontecido. Então, ele mesmo se viu rindo. Em outra situação, em que seu time de futebol teve uma importante vitória, deu tiros para o alto, acertando o lustre da varanda, destruindo-o. Só depois se dera conta de que na casa havia o filho de seu amigo recém-nascido. Com o decorrer da análise, passou a temer suas próprias reações. Teve como estratégia isolar-se, evitando ambientes e situações que pudessem despertar alguma atuação sua. Para dar uma ideia da gravidade de seu sintoma, podemos destacar uma ocasião vivida em sua adolescência. Estava conversando com alguns amigos na varanda da casa de um deles, quando repentinamente, ao fazerem um comentário sem graça, que foi recebido como uma grande humilhação, Igor arrancou com os dentes a cabeça de uma galinha. Será que é possível acreditar em tal disparate? Embora tenha protagonizado cenas bárbaras, difíceis de imaginar, como esta acima descrita, Igor é um homem educado, articulado e inteligente; amoroso com sua família. Como bem marcou Gazzola (2002), quando o obsessivo obtém um gozo perverso, ele estranha sua satisfação libidinal, não se reconhece neste ato. Esse é um gozo estrangeiro, vindo de fora. Ao contrário do perverso, o obsessivo se divide e se angustia, pois é atormentado pelos escrúpulos e pelos valores morais. Ao ouvir seus relatos de crise, não poderia censurá-lo, condenando-o a se punir ainda mais. Notava que vinha culpado, sentindo-se derrotado, a cada sessão. Espontaneamente, encontrei uma forma de fazê-lo enxergar o exagero e o nonsense de suas atitudes. Por outro lado, questionei o fato de nunca ter sido punido por seus atos, “como saíra ileso diante de tantas transgressões cometidas?”, perguntava a mim e a ele. Talvez as pessoas se sentissem tão ameaçadas por sua figura, que

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não ousavam procurar a polícia. Não ter sido pego manteve-o preso na compulsão à repetição. É certo que pagou um alto preço pelo sintoma, já que se afastou de sua família e amigos e entrou numa aguda depressão. Até porque perdeu tudo que acumulou ao longo dos anos de trabalho. Inconscientemente, parece ter se imposto uma pena. Pena perpétua. Freud (1924/1996) nos mostrou que a pulsão sádica se alterna com a pulsão masoquista. Neste caso clínico, esta tese fica comprovada. Igor costuma se sabotar profissional e emocionalmente. Certa vez, ao se dirigir a um compromisso profissional importante, mudou de caminho muitas vezes e, inexplicavelmente, não conseguiu chegar ao endereço marcado, caindo depois num choro copioso, do qual afirmava desconhecer a origem. A sua compulsão às drogas, ao sexo, à aniquilação do outro, o tornava um mero marionete, um sujeito aprisionado ao seu sintoma. Obviamente, não podemos desconsiderar a existência de uma grande dose de masoquismo, pois depois de liberar seus impulsos agressivos, deprimia-se assolado pela culpa e pelo julgamento de seu juiz cruel – supereu. Lacan (1957-1958/1999) ressaltou as “proezas” do obsessivo; ele impõe a si mesmo uma miríade de duras tarefas, diríamos penosas, das quais obtém sucesso, pois é exatamente o que busca. Há um caráter fictício nessas “proezas”, que evocam as fantasias sádicas. Quando falava de sua infância, dizia ter sido um menino mentiroso, dissimulado e cínico. Nunca sofreu abuso físico ou de outra ordem. A mãe sempre foi carinhosa com ele, pronta a atendê-lo em seus caprichos. O pai era firme, bastava olhar para os filhos para que o respeitassem. Como eram quatro irmãos homens, às vezes se agrediam fisicamente. Sentia-se o mais feio de todos. Sabe a ordem de preferência de sua mãe pelos filhos e que não ocupa nem o primeiro e nem o segundo lugar. Cresceu à sombra do primogênito, um gênio, que soube ganhar a vida honestamente de forma a ter um rico patrimônio. O seu pai encarnava a figura do homem humilhado, fracassado, que precisou do trabalho da esposa para sobreviver. Foi demitido do emprego por não ter concordado em entrar num esquema corrupto que prejudicava a empresa. Assim, ficou com a honra e a verdade, mas desempregado. Nunca mais encontrou outra ocupação. Igor sempre traz para a sessão a dúvida de ceder ao dinheiro fácil, resiste em aceitar os convites que sempre estão chegando. Em nome de sua filha, do pai que quer ser para ela, evita o caminho mais curto e tortuoso. A analista está ali no consultório para lembrá-lo de seu amor por ela. No início do tratamento, se perguntou por que havia se mantido tão distante desde o seu nascimento. No momento em que a barriga de sua esposa começara a ficar evidenciada, havia se afastado fisicamente dela, evitando ter relações sexuais. Chegou a ficar impotente.

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O importante papel do humor na direção da cura

Sabemos o horror que sentem alguns homens de transar com a mulher no estado de gravidez, fruto do receio de poderem fazer mal ao feto, ou até por realizarem desta forma algum desejo incestuoso de copular com a mãe. Por último, entrou numa situação tão sinistra, que não convém mencionar aqui, em que sua vida e a de sua família corriam risco. E não podia contar a ninguém, além de alguns de seus pares, este segredo. Então, decidiu sair de casa. Culpava-se pelo fim do casamento. Entretanto, em análise, chegou à conclusão de que muitos problemas do casal surgiram em função, não só de seus segredo e mentiras, mas do difícil temperamento de sua mulher, desafiador e provocante. Como toda histérica, queria destituir o homem eleito fálico, humilhá-lo e mostrar-se mais poderosa. A análise permitiu que acedesse ao desejo pela planejada e amada filha, que parecia necessitar, aos seus olhos neuróticos, somente da mãe. Fixando-se na figura deste pai que almeja ser para ela, correto e responsável, e temendo deixá-la órfã precocemente, está podendo se salvar dos mandos do supereu. Atualmente, o paciente está mais avisado quanto ao gozo, que atos movidos pelo ódio podem lhe provocar e o quanto a raiva pode ser destrutiva. Por essa razão, concluiu a respeito de seu sintoma: “É estranho, doutora. Quando extravaso esse ódio, sinto como se fosse a própria sensação do que ocorre no sexo, o próprio gozo”. Nesta afirmação, o caráter libidinal das atuações do paciente fica evidenciado, podemos aludir à sua fantasia perversa infantil, a qual ainda tem de ser, por ele, atravessada. Afinal, não se trata de pura pulsão de morte, como dito anteriormente, a pulsão sexual, isto é, a pulsão de vida, está sempre amalgamada à pulsão de morte. Para finalizar, Igor ainda tem um longo caminho de análise para vir a decantar esse gozo consistente. Houve alguns avanços como o fato de ter sustentado o seu desejo, que por muito tempo mostrou-se vacilante, pela mulher amada, que achava que seria desaprovada pela família, por ser uma pessoa que frequentava sua casa, quando era casada. Iniciou um namoro com ela, alguém que não esperava que Igor ocupasse o lugar do homem corajoso, valentão e esbanjador, ao contrário de sua ex-mulher. Para ela, podia se apresentar castrado, “duro” e triste. Estar num relacionamento sério, lidando com os obstáculos surgidos aos poucos, como é próprio de toda relação, foi fruto de sua análise. Voltar a frequentar a casa dos seus pais também. Durante bastante tempo acreditava ser impossível ter uma vida a três: ele, uma mulher e sua filha. Não podia ser pai e homem ao mesmo tempo? Pois o pai tem de ser morto, castrado, impotente? Depois de muitas sessões, vem conseguindo incluir sua filha nas saídas com sua namorada. A análise também o fez perceber que ele próprio se castigava pelos erros cometidos no passado. É claro que Igor vem descortinando a castração, descobrindo que não há saída, senão se submeter a ela. A ele só resta prosseguir com suas sessões.

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CASTRO, Silvia Lira Staccioli

referências bibliográficas CASTRO, S.L.S. Aspectos teóricos e clínicos da perversão. Dissertação de mestrado– Faculdade de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004. 87f. FREUD, S. (1905). Os chistes e sua relação com o inconsciente. ESB, v. VIII, Rio de Janeiro: Imago, 1996. __________. (1908). Notas sobre um caso de neurose obsessiva. ESB, v. X, Rio de Janeiro: Imago, 1996. __________. (1924). O problema econômico do masoquismo. ESB, v. XIX, Rio de Janeiro: Imago, 1996. __________. (1927). O humor. ESB, v. XXI, Rio de Janeiro: Imago, 1996. KUPERMANN, D. Ousar rir: humor, criação e psicanálise. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. GAZZOLA, L. R. Estratégias na neurose obsessiva. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. LACAN, J. (1957-58). O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. __________. (1963). Kant com Sade. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, pp. 776-803. MELMAN, C. A neurose obsessiva. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004.

resumo

O artigo tem como objetivo destacar a importância do humor na direção da cura. Aprendemos com Freud (1927/1996) que este protege a instância do eu do sofrimento perpetrado pelas críticas severas do supereu. Fazer rir é aludir à face afável do supereu, em contraponto à sua face cruel. Dentro desta perspectiva, foi conduzido um caso de um sujeito obsessivo que se encontrava à mercê de seu ódio e, consequentemente, de seu descontrole emocional. Com frequência, atuava de forma violenta e desmedida como o personagem Giovanni Manzoni, nascido na literatura e que ganhou vida nas telas do cinema recentemente. Assim como Manzoni, Igor é um sujeito dividido subjetivamente entre a consciência moral e a obediência aos ditames maléficos superegoicos. Sofre se dá vazão à sua ira, pelas desastrosas consequências indesejadas e sofre se as inibe, pois então, tem até sintomas físicos como dores no peito, enjoos e desmaios. Assim, só resta a Igor a seguinte saída, prosseguir com sua análise.

palavras-chave

Neurose obsessiva, humor, supereu, violência, gozo.

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O importante papel do humor na direção da cura

abstract

The objective of the article is to highlight the importance of humor in the direction of the cure. We have learned from Freud (1927/1996) that humor is able to protect the ego from the suffering caused by the severe criticism by the superego. To make the patient laugh means to allude to the superego’s friendly facet, as opposed to its merciless one. Under such a perspective, it was conducted a case of an obsessive patient who had been subjected of his hatred, and, consequently, to his emotional lack of control. Very frequently, he acted in a violent and unlimited way just like Giovanni Manzoni, a character from literature who recently came to life in the big screen. Thus, such as Manzoni, Igor is a subjectively divided subject between moral consciousness and obedience to the malefic super egotistical orders. On one hand, he suffers if he allows himself to be guided by his rage, by the unwanted and disastrous consequences. On the other hand, he suffers if he inhibits them, once he presents even physical symptoms like chest pains, nausea, and faintness. So, Igor is finally left with the following choice, to go on with his treatment.

keywords

Obsessive neurosis, humor, superego, violence, jouissance.

recebido 11/02/2014

aprovado 30/03/2014

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As exigências do manejo transferencial e o desejo de analista Luciana Guarreschi “A arte de escutar equivale quase à de bem dizer” (LACAN, 1964, p. 119). Interessa-me neste texto tentar colher, com base em um caso clínico, o que Lacan (1964/1988) chamou de fechamento do inconsciente como efeito do amor de transferência e da função obturadora do objeto a, bem como apontar para a instalação do sujeito suposto saber. Para tal, utilizarei citações diversas de Lacan, entrecortadas, coladas e mescladas aos fragmentos de um caso clínico. Lacan (1964/1988) dizia que o uso natural de expressões de linguagem implica a topologia envolvente em que o sujeito se reconhece quando fala espontaneamente. Opto então, não por narrar a história de M., mas por mapear seus significantes tentando localizar aí onde ela se faz reconhecer e onde delimita seu lugar na família e no mundo: herpes, pai quebrado e doente, comida aos montes, mãe como irmã, pai como filho, irmão como companheiro, irmã malcriada, relacionamentos que terminam sempre ao completar três meses, sem emprego, playboy, difícil acordar, ansiedade, pânico, psiquiatras... Significantes agrupados pela fantasia do sujeito, montando seu romance familiar. O conteúdo importa pouco, fato é que o tempo passou, algo caiu e não cola mais. Chega-se à análise com um pedido: cola pra mim? Dizia ela, em sua primeira entrevista: “Tinha um sonho de casar, ter seis filhos, não tenho mais”. Atenção ao verbo no imperfeito – “tinha” e à negação “não tenho mais”. Verbo imperfeito, em sua definição, expressa o passado inacabado, um processo anterior ao momento em que se fala, mas que durou um tempo no passado, ou ainda, um fato habitual, diário. Portanto, ele não indica a certeza de um fato acontecido, sendo assim chamado este tempo verbal de pretérito imperfeito, pois não se refere a um conceito situado perfeitamente num contexto de passado. Ou seja, algo que não passou. Quanto à negação, sirvo-me de Lacan: “Mas o que pode significar não desejar? Toda a experiência analítica nos testemunha que não querer desejar, e desejar, são a mesma coisa” (Ibid., p. 222). E assim, com um vácuo de significação,

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GUARRESCHI, Luciana

entre um verbo imperfeito e uma negação, pode-se começar uma análise. Para tal, o outro sentado à frente do paciente, não pode recusar-se à significação, afinal é a isso que ele é suposto saber. (Ibid., p. 239).

Primeiro tempo Uma abertura do inconsciente, por que não dizê-lo, freudiano. Os mecanismos da estrutura da linguagem, substituições, condensações e deslocamentos, rebatizados metáfora e metonímia por Lacan, já se apresentam na primeira sessão. Entre abundantes atos falhos, o nome da analista se transfere para o de três Fabianas. Aliás, esse é o primeiro uso que Freud dá à transferência, um deslocamento de palavra. Palavra transferida de um lugar da fala a outro, de um lugar onde ela é esperada a outro, inesperado. Sigo a pista deixada por essa enunciação e temos: a primeira Fabiana, uma dentista “superlegal”, a segunda uma grande amiga da irmã e a terceira uma amiga de infância. Vemos aqui a vertente imaginária da transferência – aquela onde o analista é rapidamente incluído na série de experiências afetivas passadas do paciente. É desta primeira vinculação que poderá se produzir o amor de transferência. Tal vinculação se faz pelos significantes que envolvem o analista e ilustra a máxima lacaniana de que não se pode separar o analista da manifestação do inconsciente, posto que ele é seu destinatário (Ibid., p. 121). O que fazer então com o que é dado, destinado, assim tão gratuitamente, pelo paciente? Lacan aponta o valor inestimável da confiança que é depositada no analista. O que o analista faz a partir desta confiança, a partir desse amor? Ele deve apontar, dirigir, indicar, encaminhar esse amor para o saber. O paciente, via de regra, chega com a suspeita de que há algo que lhe escapa, que ele não sabe e que há um Outro que saberia. Mas, no entanto, no momento do encontro, o amor se interpõe, tapeando a busca inicial do sujeito, ficando a cargo do analista a recuperação dessa busca. Colocá-lo de volta no caminho, utilizar-se desse amor para a produção de um saber. Mas que saber é esse que M. imputa ao Outro? Saber que só pode ser de uma ordem, a mesma que Lacan aponta no Banquete: O momento essencial, inicial, da ação do analista, é aquele em que é dito que Sócrates jamais pretendeu nada saber, senão o que diz respeito a Eros, quer dizer, ao desejo (Ibid., p. 219). Pois, se há um caminho que se deixa entrever, ou ainda entredizer, no mapeamento significante do qual a análise se ocupa, esse caminho é o do desejo. É assim

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As exigências do manejo transferencial e o desejo de analista

que o sujeito poderá localizar-se implicado nas mazelas de sua vida, nas escolhas que fez atravessado por um desejo cuja causa se desconhece, mas que pode engendrar uma busca pelo saber. Onde mais pode se ler isso nas sessões de M.? No enredo do encaminhamento e por meio do que diz Lacan “tudo que anima, o de que fala toda enunciação, é o desejo.” (Ibid., p. 134). M. é encaminhada por um conhecido, diz ela: “encontrei-o em uma festa, ficamos amigos” e avisa: “mas ele não me pegou!”. Que frase é essa? Ela arremata: “por que ele é todo pegador”. Muitas sessões depois, acrescentará: “sou pegadora”. Lacan nos adverte quanto a isto: “ele, o paciente, retém certos elementos para que o analista não vá muito depressa. Pois aquele que pode ser enganado também pode enganar-se” (Ibid., p. 221). Sem problemas, é perfeitamente possível encontrar algo da dimensão da verdade ao se enganar, e isto serve para ambos.

Segundo tempo Segunda sessão: “pensei em não vir”, diz. Logo depois, emendando uma frase a outra: “a Fabiana não tem nada a ver”. Dá suas explicações sobre os atos falhos cometidos na primeira sessão: “é tipo dislexia, leio errado, minha mãe também é assim”. Ponto. Não quer brincar de associar. Nas formações do inconsciente algo de uma significação se insinua, na qual o sujeito hesita em se reconhecer. Resistência? Sim, por um lado, aquele que Freud apontava sob o nome de “resistência do recalcamento”, que nada mais é do que uma dificuldade de entrar em contato com o material significante. Por outro lado, não, pois ao vir falar que não quer falar, não escapa à fala. Mas, poderíamos ver aí já o efeito de transferência? O amor? E amar, como indicou Freud é, essencialmente, querer ser amado. Esse efeito afasta a revelação da verdade do desejo inconsciente, freudianamente falando. Mas, paradoxalmente, é por meio do mesmo que se poderá tocar algo dessa verdade. O amor leva o enigma para longe, mas também manda buscar, trazendo-o pela mão. As relações amorosas da família de M. se dão pelas “doenças/crises”, e é assim que se fazem amar e é assim que ela começa a se apresentar à análise, sempre em vias de “ficar pior”. Diz Lacan: “estamos presos em esperar esse efeito de transferência para poder interpretar e, ao mesmo tempo, sabemos que ele fecha o sujeito ao efeito de nossa interpretação.” (Ibid., p. 239). O analista segue tentando, por meio dos cortes, trazer à tona o que está soterrado pela fala cotidiana, tal qual indicou Augusto Massi (http:// www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1709201115.htm) sobre o trabalho do poeta: a poesia, discretamente indica que o ouvido do poeta pode desocupar outras falas. Não sei muito bem como fazem os poetas, mas os analistas, supostos saber partir ao encontro do tal desejo inconsciente, deveriam contar com o que Lacan (Op.

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cit., p. 222) chamou de desejo de analista. Sabemos de cor e salteado a definição de desejo de analista, não é puro, é desejo de obter a diferença absoluta etc. Mas, como funciona? Quando funciona, é claro. Encontrei-me com algo que me possibilitou entrever algo desse funcionamento. É assim, diz Lacan: Será que não há, reproduzido aqui (na análise), o elemento de alienação que lhes designei no fundamento do sujeito como tal? E o que não é nem levantado nem a ser levantado, pois a experiência analítica nos mostra que é de ver funcionar toda uma cadeia no nível do desejo do Outro que o desejo do sujeito se constitui (Ibid., p. 223). É preciso essa primeira alienação, pois ao ver funcionar toda uma cadeia no nível do desejo do Outro, o desejo do sujeito se constitui. Isso me possibilitou uma aproximação acerca do desejo de analista em sua função dita “operador”. Ou seja, contra a inércia da transferência – a ferramenta é o desejo de analista. Uma tentativa, diz ela: “termino meus relacionamentos sempre em três meses”. Ensaiando uma articulação simbólica, aponto o início, indicando uma localização outra do sujeito, onde ele não se vê, dizendo: “será que eles começam?”. Corte. Quinze dias depois um “ficante” vira namorado. Neste momento, a libido se desloca um pouco impondo novas circunstâncias ao trabalho analítico, que, no entanto, segue. Ao mesmo tempo, sua vida começa a fazer outros, pequenos, movimentos. Arruma algum trabalho, deixa a arrumação da casa um pouco de lado... E não é assim o amor? Assujeitado ao desejo do outro, tentando enganá-lo dessa sujeição, fazemonos amar por ele, propondo essa falsidade essencial que é o amor. (Ibid., p. 240). As entrevistas seguem, com demandas diversas. Atrasos, esquecimento do pagamento, bocejos, surdez: “o que você disse? Não escutei.”. Numa sessão, esquece o dinheiro e reclama, “custava me organizar?”. E, questionada sobre o esquecimento, explica-se: “Acho que essas coisas é falta de desorganização!”. Como? Ela escuta, diz: “Não! É organização...”. No movimento de trazê-la ao que escapou, ela: “hum... me saboto...? Não, não”. Tampando rapidamente e brigando “comigo” se eu insinuasse algo. Isso aconteceu muitas, muitas e muitas vezes. Penso que há alguns para os quais a experiência da clivagem é sentida com mais horror. O sujeito paralisa perante o que escuta de si e diz não! Isso não! Impossível! A possibilidade de escutar o ato falho é interrompida por um julgamento antecipado acerca do que se desconhece e que, de imediato, é tido como negativo. Mas, não nos esqueçamos do amor, parece que este também impedia que ela se mostrasse assim... Tão dividida, digamos. Cabe aqui um apontamento sobre o título do texto – exigências de manejo transferencial – pois não foram poucas as sessões que M. vinha para brigar, onde

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o “amódio” da transferência imaginária ficava patente. Neste momento, segui uma pista errada, entendendo esse movimento como fechamento do inconsciente = a resistência, o que me levou a tentar precisar melhor esses conceitos e, consequentemente, a escrita deste texto. Bom, o inconsciente fala. Mas essa fala não é homogênea, contínua. Diz Lacan: “O que é ôntico, na função do inconsciente, é a fenda por onde esse algo é por um instante trazido à luz – por um instante, pois o segundo tempo, que é de fechamento, dá a essa apreensão um caráter evanescente” (Ibid., p. 35). Freud disse que o inconsciente não conhece contradição, nem a função do tempo, porém o tempo que ele desconhece é o das horas, do passado, do presente. Lacan introduz a noção de tempo lógico, um batimento, um pulsar, uma hiância. Nessas descontinuidades insinua-se a posição fantasmática do sujeito. Diz ele: “Podemos conceber o fechamento do inconsciente pela incidência de algo que desempenha o papel obturador – o objeto a, chupado, aspirado, ao orifício da nassa” (Ibid., p. 138). Esse “meio-tempo”, essa pulsação, essa alternância de sucção, acima de tudo temporal, é dada pela função encobridora do objeto. Ao analista cabe tentar reabri-lo, num acordar às avessas com o discurso do paciente, mantendo o ritmo, zelando pela “presentificação dessa esquize do sujeito realizada aqui, efetivamente, na presença (do analista)” (Ibid., p. 126). Quanto à resistência, “é sempre resistência do analista”. Gosto da dica de Colette Soler, quando diz que não há contratransferência, antes, o problema consiste em ir contra a transferência. Trata-se então de manejá-la, tarefa do analista, nem sempre muito fácil de cumprir.

Outros tempos A antiga surdez cede lugar a um princípio de escuta, M. me diz: “a frase ‘será que eles começam’ que você disse não sai da minha cabeça”. A pulsação do inconsciente brinca de par ou ímpar com as intervenções do analista no discurso do paciente. Abre-se uma nova série de associações, nestas tentarei demonstrar a particularização da transferência, ou ainda o endereçamento de uma questão ao Sujeito Suposto Saber. SSS, eis o denominador comum que Lacan extrai das três formulações freudianas sobre a transferência. Sendo como sugestão, repetição ou resistência, a transferência é sempre consequência de uma fala, como tal dirigida a alguém, alguém no lugar de Outro, lugar do saber. Pouco tempo depois de relatar a frase infiltrada na sua cabeça, M. vem com um anel simples na mão direita, e como nunca usava adereços, tal objeto reluzia em seu dedo. Questionada sobre do que se tratava, sua resposta incluiu uma lembran-

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ça envolvendo alguns novos significantes, dentre eles “solitário” e “aliança”. Na sessão seguinte, um sonho. Nele, pedia à mãe para não se mudar de cidade, falava para ela não ir. Conta o sonho e pergunta: “por que você me perguntou sobre a aliança?”. Pergunta prontamente devolvida, ela responde: “achei que você falou que eu queria casar e eu não queria não. Era uma aliança comigo mesma”. Retomo então o “solitário”, ela diz: “um solitário é um anel com diamantes, mas é também de ser uma pessoa só”. A intervenção foi sublinhar o só, numa tentativa de fazer aparecer a conjunção-disjunção entre o enunciado e o ato de enunciar, entre o que se diz e o que se pode ouvir do que de fato se disse. Após esses desdobramentos, uma queixa se impõe: “não consigo mais ficar sozinha! – em casa não dá”. Baseada em fatos circunstanciais de sua vida, esse é o sentido que dá a essa queixa: muitas pessoas à minha volta, logo, não posso ficar sozinha. Bom, sabemos que o laço que une o significante ao significado é arbitrário em relação ao significado, com o qual não tem nenhum laço natural na realidade. Assim, interrogo sua frase, repetindo-a, acentuando o sozinha e o “casá não dá!”. Ela responde questionando-me: “como vou ficar sozinha morando com alguém? É isso que eu vim te perguntar”. E ainda: “eu preciso ficar sozinha com alguém perto, é isso que eu preciso fazer aqui”. Resposta de analista: divã. Poderíamos dizer que houve aí uma entrada em análise? Sua fala parecia indicar que sim, a partir do significante da transferência, solitário, abriu-se um ponto de interrogação, um lugar vazio, deixando entrever um impasse: ou sou sozinha ou sou colada a alguém. O significante da transferência, um significante qualquer, não é tão qualquer assim, trata-se de um traço que se encontra o mais próximo possível do vazio onde reina o objeto da fantasia fundamental. Seria preciso uma análise, e tempo, para ultrapassar esse impasse. M. vem mais duas sessões, não vem a mais duas e volta para dizer que não viria mais. Tentarei rever agora estas duas últimas sessões antes das “faltas”. Seguem-se crises de angústia, tonturas e os efeitos de amor e ódio da transferência imaginária – “só queria uma mãe e você não me dá carinho!”, e ainda: “já falei que te odeio?”. A abstinência por parte do analista faz que o sujeito tente evocar seu amor. Diz ainda “não consigo viver sozinha, quero ter alguém para contar, que não vai te abandonar”. Deslizamento do me para te, não ouvido à época, mas onde se anuncia sua repetição, todos seus ex-namorados, e foram muitos, foram “abandonados” por ela. Precisão lacaniana: para o lado do recalcado não há resistência alguma, há apenas tendência a repetir-se (LACAN, 1954/1985). Quanto às tonturas e vertigens, a imagem que o sujeito tem de si vacila, “a pegadora” só quer ser pega no colo. Lacan diz: “o sujeito experimenta, por exemplo, reações de decepção, mal-estar, vertigem, em seu próprio corpo, em relação à imagem ideal que tem dele” (LACAN, 1957-58/1999, p. 473).

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São sessões em que a cada acontecimento narrado se poderia ouvir um apelo desesperado “não faz um, não faz um, não faz um” ou ainda “só há um, um, um”. Dentre outras falas, queixa-se do namorado, “desligado como o irmão”, e diante da marcação do par ligado/desligado, diz: “Não quero ser desligada. Vou continuar casada com meu irmão. Vou ficar sozinha!”. Digo: já se está, encerrando a sessão. O desvelamento abrupto do buraco que há, e que de fato sempre houve, na relação com o Outro, foi demais. Ah... O bem dizer... Tentando cernir o que poderia ter ocorrido, encontro com Lacan: Vemos que se trata de atingir, nessa linha, um esclarecimento das relações do sujeito com a demanda, que revela que toda relação com essa demanda é fundamentalmente inadequada para permitir que o sujeito tenha acesso à realidade efetiva do efeito que o significante tem nele, isto é, que se coloque no nível do complexo de castração (LACAN, 1957-58/1999, p. 434, grifo nosso). Para quem ainda demandava o fazer Um amoroso, o “já se está” talvez tenha sido opaco e angustiante demais. Quando volta, duas semanas depois, está decidida a parar o tratamento. Afinal, a sua questão sobre como se ligar ao Outro, a partir da não relação e do desamparo radical, a qual estamos sujeitos, continuava sem resposta e o “já se está” não foi lá muito encorajador para a construção de um saber sobre parcerias possíveis, as que incluíssem a solitária. Bom, acabei encontrando, ao final, o que tentava abordar no início. Abertura e fechamento. Pulsação temporal que acompanha todo o tratamento, e onde o momento de fechar não “poderia” ser o momento de parada, mas impulso para outro pulso, relançamento de dados na aposta analítica, não infinitamente, mas até que a busca de sentido se esvazie e a construção de um singular sobre a falta de si possa amarrar de maneira menos sofrível o caminhar da vida. Mas, a despeito do cuidado do analista, que se encontra a favor do sujeito, ainda que contra seus caprichos, há aqueles que saem antes do fim do filme. E assim ela deixa a sessão: “bom, acho que não preciso ficar até o fim”.

referências bibliográficas LACAN, J. (1964). O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988. __________. (1957-58). O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.

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__________. (1954-55). O Seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. MASSI, A. Estilo tardio exibe radicalidade de Francisco Alvim. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1709201115.htm. Acesso em: 21 de março de 2014.

resumo

Baseado em fragmentos de um caso clínico, o presente artigo pretende discorrer sobre a instauração do sujeito suposto saber, bem como delimitar o que Lacan (1964) designou como fechamento do inconsciente. Efeito do amor de transferência e da função de obturadora do objeto a, o fechamento do inconsciente é o lugar onde o analista é suposto saber operar, via desejo de analista, a reabertura do inconsciente, a cada vez, sustentando o ato constituinte do sujeito, sua causa hiante.

palavras-chave

Transferência, sujeito suposto saber, desejo de analista.

abstract

From fragments of clinical case, the present article intends to discuss the settlement of the subject supposed to know, therefore limit what Lacan (1964) designated as closing of the unconscious. Effects of the transference of love and the function of object-obstructing, the closing of the unconscious it’s where the analyst is supposed to operate, by the analyst’s desire, the reopening of the unconscious every time, sustaining the constituent act of the subject, your gaping cause.

keywords

Transference, subject supposed to know, analyst’s desire.

recebido 18/01/2014

aprovado 22/03/2014

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Na vertigem da dor: o luto na zona entre os vivos e os mortos1, 2 Miriam Ximenes Pinho É estranho, sem dúvida, não habitar mais a terra, abandonar os hábitos apenas aprendidos, às rosas e as outras coisas singularmente promissoras não atribuir mais o sentido do vir-a-ser humano; o que se era, entre mãos trêmulas, medrosas, não mais o ser [...] – Os vivos cometem o grande erro de distinguir demasiado bem. Os anjos (dizem) muitas vezes não sabem se caminham entre vivos ou mortos. Rainer Maria Rilke, Elegias de Duíno, 2001 O poeta nos adverte que os mortos não desaparecem por completo, são os vivos que, por equívoco, separam em demasia o mundo dos vivos e dos mortos. Diante de uma perda inconsolável, os (sobre)viventes assemelham-se aos anjos por vagarem em uma zona de liminaridade, sem distinguirem ou talvez sem se importarem se estão entre os vivos ou os mortos. Em A transitoriedade, Freud (1916/2010) escreveu que o luto pela perda de algo que amamos ou admiramos “é um grande enigma, um desses fenômenos que em si não são explicados, mas a que se relacionam outras coisas obscuras” (p. 250). Em geral, nossa atitude cultural-convencional diante da morte não é franca: por um lado, sustentamos que a “morte é o desfecho necessário de toda a vida” e por outro, manifestamos “a inconfundível tendência de pôr a morte de lado [...]. 1 A versão final deste trabalho deve muito à supervisão precisa e generosa de Conrado Ramos e à Rede Clínica do Fórum do Campo Lacaniano-SP que concedeu a oportunidade de apresentar e discutir este caso com seus participantes. A todos meus agradecimentos. 2 Uma versão breve desse material foi apresentada no VII Encontro Internacional da IF-EPFCL, Rio de Janeiro, 2012. Alguns dos temas aqui abordados fazem parte da pesquisa de doutorado da autora, em andamento no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Projeto financiado no Brasil pelo CNPq – Processo no 143405/2011-0. O estágio doutoral foi financiado pela CAPES e realizado na Université Paris 13Nord, França – Processo no 6142-13-3/2013.

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Procuramos reduzi-la ao silêncio” (FREUD, 1915/2010, p. 230). Tendemos a tratar seus assuntos como se fossem de natureza fortuita em vez de inevitável daí o total colapso que sofremos quando morre alguém que nos é precioso. Até meados do século XIX, de tão frequente, a morte constituía-se familiar, conforme o historiador Philippe Ariès. Desde então assistimos a uma revolução brutal nas atitudes e representações coletivas tradicionais diante da finitude nas culturas cristãs ocidentais. A morte “se tornou selvagem”3 (ARIÈS, 1981, p. 31): Os homens passaram a se calar sobre a própria morte que se tornou vergonhosa e objeto de tabu, e junto com ela as manifestações públicas de luto. Em contrapartida, nem bem o interdito se impunha e já surgiram violações. A morte tornou-se loquaz por meio da proliferação do discurso de especialistas (antropólogos, historiadores, psicólogos...) dispostos a reinvesti-la: “Expulsa da sociedade, a morte volta pela janela: volta tão depressa como desaparecera” (Ibid., p. 613). É na efervescência desse movimento que, nas últimas décadas, as questões referentes ao luto retornam com força no campo psicanalítico diante da necessidade de se reconsiderar as versões em voga. A instigante obra Erótica do luto no tempo da morte seca, de Jean Allouch, lançada em 1994, ilustra bem esse esforço. Além de reproblematizar a questão do luto na teoria freudiana, Allouch, apoiado no ensinamento de Lacan, propõe uma versão outra do luto, mas não sem antes visitar o debate que expõe a selvageria da morte no contemporâneo e seus efeitos para a vicissitude de um luto. A partir da singularidade de um caso clínico nos arriscaremos a adentrar no “enigma do luto” e em suas “coisas obscuras”. Do caso, pretendemos extrair três fios – nomeados “a vertigem da dor”, “o estatuto do morto” e “o luto entre o recordar e o repetir” – que servirão de condutores para a escrita e ajudarão a ilustrar e articular algumas proposições acerca do luto em Freud, Lacan e Allouch. Entretanto, ressaltamos que esta escrita visa menos esclarecer as “coisas obscuras” que cercam o luto do que contribuir, em seus impasses, para a sua problematização clínica e teórica. Uma mulher que chamaremos Walkiria justificou sua vinda ao atendimento por causa de suas frequentes explosões de ira no trabalho. No entanto, fragmentos narrativos giravam em torno de outra “causa”. Lacan (1964/2008) assinalou que

3 Antropólogos (Geoffrey Gorer, Edgar Morin, Louis-Vincent Thomas...) e historiadores (Philippe Ariès, Michele Vovelle...) se esforçaram em mostrar as mudanças que transformaram as representações e atitudes coletivas diante da morte a partir, notadamente do século XX. “Morte interdita”, “morte tabu”, “morte selvagem”, “morte pornográfica” são alguns dos termos cunhados por esses autores que reconheceram nessa nova atitude dois traços principais: a privatização da morte, antes um fato social e público, e a rejeição ou supressão do luto. Não exploraremos esse debate; aos interessados, recomendamos consultar as obras dos autores supracitados.

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“só existe causa para o que manca”, isto é, que entre a causa e seus efeitos há sempre uma hiância, uma oscilação, um quê de indeterminação (p. 29). E qual era a “causa” que “causava” Walkiria? A morte abrupta do esposo que tornou a sua vida, dali por diante, uma “meia-vida” (sic) suspensa na zona entre a vida e a morte.4 O dia do trágico acidente, como haveria de prevê-lo? “Era um dia como os outros, ele queria que eu fosse com ele, mas eu tinha outros planos.” Pega de surpresa, Walkiria “não esperava” que ele viesse a falecer. Mas “a pior parte foi fazer o reconhecimento do corpo”. Na falta de outros parentes, coube a ela atestar a sua morte. Diante de sua dor inconsolável, amigos lhe recomendaram ir à igreja, posto que “lhe faria bem rezar”. Mas em vez de orações para o descanso eterno da alma do falecido, o que ela buscava mesmo era “uma resposta sobre o porquê de tudo aquilo”. Sem essas respostas, abandonou a igreja e os amigos. No trabalho foi-lhe sugerido realizar uma “consulta espiritual” na qual foi identificado que “o espírito do morto ainda estava ao seu lado e essa era a fonte da energia que pesava sobre ela”. Era necessário “fazê-lo partir para ajudá-la”. Abandonou imediatamente a consulta e demitiu-se do trabalho, ficou “desesperada, não queria que ele partisse!”. Um ano após o acidente, foi surpreendida por uma mensagem que pedia o seu comparecimento para fins de re-confirmação da morte perante o sistema previdenciário. Mas o que lhe ocorreu, em uma arrebatadora alegria, foi ler na mensagem a possibilidade de um reencontro: “Será que ele está vivo? Foi encontrado?”. Demorou um tempo para perceber o equívoco. Alguns anos após a perda do “primeiro marido” (sic) conheceu o “segundo marido” (sic) que a encantou por ser “parecido com o primeiro”. Porém, logo constatou que quando se trata de repetição, por mais que se esforce, a segunda vez só pode ser segunda, jamais a primeira. Pensa em se separar, pois vive a “comparar o segundo com o primeiro”. O “segundo”, sabendo-se secundário, quer acertar as coisas, legalizar a união. Walkiria reage, ou melhor, mostra-se “eriçada” [straüben] – como diria Freud5 – diante da ameaça de deixar de ser a mulher do “primeiro” e abandonar o seu sobrenome e pensão. O mesmo eriçamento aparece no trabalho onde 4 Cf. Lacan a respeito da lúgubre Antígona: “Com efeito, há muito tempo que ela [Antígona] nos dissera que já estava no reino dos mortos, mas desta vez a coisa é consagrada no fato. Seu suplício vai constituir em ser trancada, suspensa, na zona entre a vida e a morte [...]” (LACAN, 19591960/2008, p. 330). 5 Cf as notas de Jean Allouch (2004) sobre a palavra sträuben [eriçar, plissar, opor, irritar, erguer, recusar...] usada por Freud em alguns textos, incluindo Luto e melancolia. Nesse último aparece traduzida por “oposição”: “O exame da realidade mostrou que o objeto amado não mais existe [...] isso desperta uma compreensível oposição [sträuben] ” (FREUD, 1917/2010, p. 173, grifo nosso).

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se mostra frequentemente intolerante e irritada. Na fenda da causa, algo da ordem de uma recusa, de uma espera, retém Walkiria em uma zona liminar: “Depois que ele morreu tudo na minha vida ficou pela metade. A vida ficou interrompida, não porque eu quis, mas porque isso aconteceu. Não consigo terminar as coisas. Penso, às vezes, que eu poderia ter ido com ele e morrido junto”.

Na vertigem da dor: o caráter absoluto do objeto desaparecido Em Luto e melancolia, Freud (1917/2010) considera o luto, de forma geral, uma “reação à perda de uma pessoa amada ou de uma abstração que ocupou seu lugar, como a pátria, liberdade, um ideal etc.” (p. 172). O “luto profundo”, continua Freud, comporta “doloroso abatimento, a perda de interesse pelo mundo externo [...] e o afastamento de toda a atividade que não se ligue à memória do falecido” (Ibid. p. 173). É como se, com o ser perdido, tivessem sido enterradas “todas as nossas esperanças, ambições, alegrias; ficamos inconsoláveis e nos recusamos a substituir aquele que perdemos. Nós nos comportamos como os Asra, que ‘morrem, quando morrem aqueles que amam’” (FREUD, 1915/2010, p. 231). A inibição e restrição do Eu exprimem uma exclusiva e dolorosa devoção ao luto que faz o mundo parecer “pobre e vazio” (FREUD, 1917/2010, p. 176). Em Walkiria encontramos ainda esse traço de devoção e de inibição em que pouco resta para outros interesses, “dez anos se passaram, mas para mim é como se fossem apenas dez minutos”. Freud (1917/2010) qualificou de doloroso o estado de ânimo do luto. Mas demorou alguns anos para que pudesse explicar a economia da dor que o acompanha. Em Inibições, sintoma e angústia, Freud (1926/1980) apresenta uma analogia entre a dor física e o “sentimento de perda de objeto” (p. 194). Na dor física há uma concentração elevada de investimento narcísico em um ponto do corpo. Se esse investimento continua a aumentar, tende a esvaziar o Eu. Da mesma forma, um objeto amado que falta concentra uma contínua intensificação do investimento de anseio propiciado pela impossibilidade de apaziguamento mediante satisfação, uma vez que o objeto não responde mais. No seminário O desejo e sua interpretação, Lacan (1958-1959/2013) propõe que uma das características mais evidentes da experiência do luto é que o sujeito mergulha “na vertigem da dor” e se encontra em uma certa relação com o objeto desaparecido que, exatamente por faltar, assume um caráter “absoluto” (p. 397). Lacan evoca em Hamlet a cena em que Laertes salta no túmulo e abraça a irmã morta para ilustrar do modo o mais manifesto possível que a inacessibilidade do objeto do desejo o torna mais irresistível ainda: “Laertes salta no túmulo [de Ofélia], e,

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fora de si, abraça o objeto cujo desaparecimento é a causa dessa dor. Desse modo manifesta que o objeto se encontra tendo uma existência tanto mais absoluta porquanto não corresponde mais a nada que seja (Ibid., p. 397). De outra forma, acompanhando o comentário de Allouch (2004) sobre esse seminário, é justamente o fato de “não corresponder mais a nada que seja que dá ao objeto seu estatuto de objeto do desejo” (p. 274). O caráter absoluto do objeto está vinculado à sua não-existência. Essa nota de Lacan está para além da questão da morte real que faz luto, pois diz respeito à própria estrutura dos fundamentos do desejo que é da ordem de uma impossibilidade, impossibilidade no objeto do desejo. O objeto se constitui libidinalmente na fantasia a partir dessa não-correspondência com “a nada que seja”. Isto é, diante da falta absoluta, sem objeto correspondente, o sujeito ampara-se em algo – a partir da cadeia significante – para construir esse objeto como absoluto. É aí que um pequeno outro se torna objeto de desejo, presença ilusória do objeto absoluto e por isso mesmo, condenado a priori ao desapontamento e castração, como bem apontou Garcia-Roza (1986): “Procuramos das Ding, mas encontramos die Sache” (p. 43). Segundo Allouch (2004), existem casos em que a morte de um ser querido parece abrir esta via de acesso à impossibilidade do objeto de tal forma que o morto advém como Erômenos – objeto impossível – enquanto que o enlutado se vê transformado, brutal e repentinamente, em Erastes, isto é, desejante. Walkiria, assim como tantos outros enlutados – mergulhados na dor de uma perda intolerável – acaba por crer nessa correspondência possível entre o objeto de seu desejo, o morto, e o objeto absoluto que é “fundamentalmente perdido, não por ter havido uma perda primeira, mas justamente por ele ser um objeto sem correspondência” (p. 274). Nesse momento de seu ensino, Lacan (1958-1959/2013) destacou que a perda de um “ser essencial” abriria um “furo no real” que produziria uma desordem tal em que nada menos que a totalidade de elementos significantes seria convocada para dar conta desse rombo aberto na existência (p. 397). Allouch (2004) lê o “furo no real” como uma metáfora que permite a Lacan ressaltar que a impossibilidade do objeto – objeto impossível, objeto furo no real – funciona topologicamente como um lugar que possibilita ao sujeito despejar todas as imagens e significantes postos em jogo no trabalho de luto. Entretanto, tudo o que for despejado nesse furo – ainda que seja o próprio enlutado nos casos de suicídio, como aponta Allouch – jamais será capaz de preenchê-lo, da mesma forma que ao objeto absoluto não há nada que corresponda. A peregrinação de Walkiria em “busca de respostas” ilustra bem esse apelo à intervenção “total, maciça do inferno até o céu de todo o jogo simbólico” (LACAN, 1959-60/2013, p. 398). Uma busca frenética por elementos que possam dar conta da desordem criada “em razão da insuficiência de todos os elementos significantes a

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fazer frente ao furo criado na existência [...] ao redor do mínimo luto” (Ibid., p. 399). Allouch (2004), em sua versão do luto, destacou que um de seus traços marcantes no contemporâneo é que “o enlutado está habitado pelo ser que ele perdeu”. Amparado na leitura de Ariès, ele considera que o atual asselvajamento que cerca o fim da vida teve por efeito um desconhecimento quase sistemático da morte de tal modo que “cada um se acha habitado não tanto pela ‘questão da morte’, mas bem mais concreta e ‘insabidamente’, por seus mortos” (p. 318). O tabu que cerca a morte no Ocidente – paralelo ao declínio da certeza nas crenças religiosas e ao desaparecimento de referências normativas evidentes, tais como os tradicionais ritos fúnebres e seu caráter público – culminou com o atual desamparo diante da morte tomada agora como perda definitiva. No passado, o luto podia ser bem mais regrado no contexto cristão, porque o homem podia se fiar na crença da imortalidade da alma e em Deus, o grande Outro da garantia, que continha as cartas do destino. A morte não era a separação definitiva, havia para o enlutado um além onde o morto poderia ser localizado e reencontrado (ALLOUCH, 2004). No tempo da morte seca6 – sem público, sem ritos, sem lágrimas – os mortos de um sujeito vão junto a ele tomando consistência, muitos nem sequer se dão conta de que estão de luto, pois a “a fila anda”, sugere o ditado popular. Porém, o que encontramos na clínica é que esses mortos silenciados insistem em retornar quer seja na forma de sintomas ou no sufocamento desses. Em Walkiria encontramos essa consistência que faz de seu morto uma presença mais viva que os vivos. A sombra do falecido cai-lhe como “uma energia pesada” da qual parece extrair a confirmação de que o marido morto continua ao seu lado. Ao manter um luto infindável sob a égide de uma energia pesada, visaria dar consistência a essa relação? Há ainda a assombrá-la a última fala do marido antes do acidente. A frase repercute tal qual um convite enigmático: “Ele queria que eu fosse com ele...”. Caberia indagar se Walkiria não estaria identificada a essa frase casual elevada a significante do desejo do morto. Estaria ela, com sua meia-vida, atendendo ao seu último pedido? Sentir-se-ia culpada por não ter ido? Se tivesse ido, poderia tê-lo salvo, evitado o acidente? Ou ainda morrido junto? Seria essa asserção que estaria por trás do fazer-se de morta?

O estatuto do morto: de desaparecido a inexistente Para Freud (1917/2010), a função do luto consistiria em realizar o trabalho – trabalho de luto – de retirar toda a libido investida no objeto desaparecido. 6 Tempo da “morte selvagem” para Ariès, “tempo da morte seca” para Allouch.

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Uma forte e “compreensível oposição [sträuben]” dificulta esta operação que só é cumprida aos poucos com grande dispêndio de tempo e energia de investimento. Em um primeiro momento, há um embate entre o exame da realidade que traz o veredicto de que o objeto amado não existe mais e a tentativa de se prolongar a existência do objeto perdido no psiquismo. Freud enfatizou o caráter de detalhe na operação de desligamento dos investimentos libidinais em que uma a uma as lembranças e expectativas ligadas ao objeto são evocadas e superinvestidas para fazer valer “o mandamento da realidade”. Mas existem casos em que a oposição pode ser tão intensa, que se produz um afastamento da realidade e um apego ao objeto mediante uma “psicose alucinatória de desejo”. Mas em geral prevalece o respeito à realidade, mesmo que sua solicitação só possa ser cumprida aos poucos. Lacan (1958-1959/2013) por sua vez, com seu furo no real, propôs um parentesco do luto com a psicose. O luto realizaria uma operação inversa ao mecanismo da foraclusão [verwerfung]: “[...] O luto, que é uma perda verdadeira, intolerável ao ser humano, provoca nele um furo no real. A relação de que se trata é inversa daquela que exponho diante de vocês sob o nome de verwerfung quando eu vos digo que aquilo que é rejeitado no simbólico reaparece no real” (p. 356). Entretanto, Allouch (2004) recomenda cautela com o termo “inversão” de que fala Lacan. Sugere que esse teria um sentido aproximativo, já que não se trata de uma imagem invertida (como no espelho) ou de uma proposição inversa, mas de uma operação, tal como a foraclusão, em três dimensões, simbólico, imaginário e real. O luto se realizaria nessas três dimensões: “os fenômenos do luto não seriam retorno no real do que terá sido foracluído do simbólico e sim apelo ao simbólico e ao imaginário provocado pela abertura de um furo no real” (p. 368). Dito de outro modo, se inversão há, deve ser tomada “no sentido de uma permutação termo a termo: o furo simbólico com retorno no real seria inverso do furo real com apelo ao simbólico (p. 277)”. O parentesco do luto com a psicose ajuda a explicar os fenômenos que causam tanto estranhamento no luto: os relatos de um “quase-encontro” com o morto, os fenômenos corporais, as loucuras coletivas presentes nas crenças no sobrenatural. Em Walkiria encontramos que uma mensagem recebida no caixa de um banco fez vacilar, por um breve, mas significativo instante, “o mandamento da realidade”, um ano após ter atestado a realidade do cadáver. Com frequência ouvem-se relatos em que o enlutado depara-se com “sinais” que acredita terem sido enviados pelo morto ou mesmo acredita tê-lo visto um dia na rua e que com entusiasmo precipitou-se nesta inesperada possibilidade de reencontro. Uma experiência que “sobrevém de modo tão exterior ao sujeito quanto à alucinação, ou o automatismo mental, ou até a excitação sexual” (Ibid., p. 71). Para Allouch (2004), essas experiências dão testemunho de que a “realidade”

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do cadáver por si só não garante a sua inexistência. A inexistência só será admitida, e pode ser que não o seja, no fim do luto. No início, o morto ocuparia o estatuto de “desaparecido”, isto é, alguém que ainda pode retornar ou reaparecer em qualquer lugar ou a qualquer hora. O luto é a operação que pode subverter o estatuto do morto que de desaparecido adviria inexistente, isto é, um ser que possivelmente deixaria de surpreender os (sobre)viventes com suas aparições, como um fantasma.

O luto entre o recordar e o repetir Walkiria anunciou no início da primeira entrevista que era viúva e o marido havia se acidentado, mas que sobre esse assunto não gostava de falar, por essa razão havia se afastado de todos aqueles que o conheciam assim como evitava fazer novos amigos. Após esse encontro, Walkiria desapareceu, surgindo, sem avisar, algumas semanas depois. Veio silenciosa, como alguém que cautelosamente espera. As poucas palavras lançadas diziam respeito à sua irritação no trabalho. À terceira entrevista deu início com a seguinte declaração: “não aconteceu nada durante a semana e não me lembro de nada do que falei na semana anterior. Não pensei em nada... e não tenho nada para contar...”. Sua presença muda evocava esses seres liminares presentes-mas-ausentes, nem-vivos-nem-mortos: “Não falo e não tenho o que falar”. Na tentativa de abrir a cadeia associativa, a analista indagou se ela sempre havia sido assim: “na época do primeiro marido eu era alegre, gostava de sair, tinha vários amigos. Fechei-me depois da morte dele”. As circunstâncias da morte foram então recordadas em seus detalhes, a pedido da analista. Na sequência dessa entrevista, Walkiria faltou. Veio uma vez mais apenas para anunciar que estava encerrando o atendimento. Para a analista deixou a confirmação daquilo que Freud já havia testemunhado: quando se trata da clínica, só recordar não resolve. No início de seu trabalho clínico, Freud (1910/1980) mantinha o foco no momento da formação do sintoma e se esforçava por reproduzir os meios pelos quais os fatos traumáticos esquecidos pudessem ser recordados. A recordação, viabilizada pelo método catártico, visava suprimir o sintoma preenchendo as lacunas de memória. O sintoma neurótico foi comparado ao monumento histórico cuja função seria a de perpetuar a memória de um acontecimento importante. Os neuróticos seriam aqueles que “não só recordam acontecimentos dolorosos que se deram há muito tempo, como ainda se prendem a eles emocionalmente” (p. 19). A doença de Ana O., Freud interpretou como sendo a manifestação do luto por seu pai, uma fixação à sua memória e os seus sintomas “poderiam ser considerados

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como simples sinais mnêmicos da doença e da morte dele” (Ibid., p. 19). Em Repetir, recordar, elaborar, Freud (1914/1980) destacou as mudanças na técnica, propondo uma distinção entre recordação [erinnerung] e repetição [wiederholung]. Enquanto mantinha-se focado no trabalho de recordar, ele percebeu a presença de uma forte resistência a dificultar a recordação. A repetição surgia quando algo esquecido não podia ser recordado e se expressava pela atuação, ou seja, era reproduzido “não como lembrança, mas como ação” (p. 196). Do arsenal de seu passado, o sujeito retirava “as armas com que se defendia contra o progresso do tratamento” e, ao mesmo tempo, invocava da vida atual um fragmento que daria a essa vivência a forte impressão de “algo real e contemporâneo” (p. 198). A repetição nesse sentido não se reduzia a uma mera reprodução, pois apontava o retorno diferencial de algo pela ação. Porém, em seu estudo sobre o luto, Freud (1917/2010) deixou de lado a repetição para destacar o trabalho de recordação, a via elaborativa, por excelência, do luto. Posição compreensível uma vez que Freud anuncia desde o primeiro parágrafo do texto que o luto é um estado normal e por essa razão serviria de parâmetro de comparação para a melancolia, quadro patológico. No luto, diz ele, “nada é inconsciente na perda” (p. 175). O trabalho de luto freudiano é orientado para o relembrar em sua ancoragem imaginária, isto é, um trabalho que ocorre no Eu.7 Freud não aproximou o luto da repetição. No caso Walkiria localizamos, ao menos no que é possível localizar em poucos encontros, uma recusa de um “trabalho de luto” à maneira clássica do recordar. No lugar deixado vazio pela recordação elaborativa, surgiam atuações “eriçadas” no relacionamento com os amigos, com o parceiro atual, colegas de trabalho e por fim, com a analista. Parecia pouco ou talvez nada interessada em evocar seu morto em reminiscências do passado e dar a ele um destino psíquico, uma sobrevivência em lembranças. Havia uma tentativa insistente de invocar, conjurar o morto no aqui e agora da repetição. Uma repetição que se esforça por ser uma reprodução do mesmo que, no entanto, encontra a cada vez a falta, a impossibilidade de fazer da segunda vez o retorno da primeira. As tentativas de reencontrar o “primeiro marido” tropeçam sempre nessa impossibilidade uma vez que este não deixa de morrer a cada vez que falta ao evanescente encontro marcado. Lacan (1964/2008) retomou a repetição freudiana para destacar nela a função do real. Para tanto, recorreu à noção de causa acidental concebida por Aristóteles 7 Quanto a esse ponto, remeto o leitor à dissertação de Sandra Berta, particularmente ao capítulo “Luto: entre imaginário e o simbólico”. In: BERTA, Sandra Letícia. O exílio: vicissitudes do luto. Reflexões sobre o exílio político dos argentinos (1976-1983). 2007. Dissertação (mestrado em Psicologia Clínica). Universidade de São Paulo.

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nos termos de tyche e automaton. Automaton está relacionada à rede dos significantes e seu insistente retorno, enquanto que tyche é traduzida por “encontro do real”, “de um encontro marcado, ao qual somos sempre chamados, com um real que escapole” (p. 59). A tyche não se relaciona nem com a rememoração e nem com o retorno dos signos, mas com a repetição enquanto encontro do real, encontro impossível, “o encontro enquanto que podendo faltar, enquanto essencialmente é encontro faltoso” (Ibid., p. 60). Lacan destacou que a repetição é algo que se produz como por acaso, isto é, algo que o sujeito tropeça a todo instante, mas que atribui um caráter fortuito, acidental. Algo desse encontro do real mostra-se na cena em que Walkiria descreve como tendo sido “a pior parte”: o vertiginoso instante em que teve que fazer o reconhecimento do corpo e proclamar a sua morte ante a visão atroz do cadáver. Uma visão que lhe veio como uma batida, um knock out8 ante o corpo morto, visão da morte. Podemos indagar sobre a possibilidade de Walkiria ainda se encontrar paralisada no horror de reconhecimento do corpo, reconhecimento da morte. Se “a repetição envolve o impossível de pensar e o impossível de dizer” (FINK, 1997, p. 241), a série de repetições localizadas no caso – os “tropeços” quer sejam na igreja, no caixa do banco ou no centro espírita – atualizam o encontro com a representação faltosa, o “encontro com o perdido” (BERTA, 2010, p. 58). Porém, “o perdido” não é “o primeiro marido” – este serve na medida em que se porta como um representante que envelopa ou veste, por assim dizer, o referente ausente ou não-representado, a morte. Diante do horror de ter que (re)conhecer o impossível, talvez uma saída encontrada tenha sido a de apagar as confirmações da morte. Mas ao preço de ficar presa no curto-circuito do reconhecimento-horror-não-reconhecimento. Presa na vertigem da repetição que a faz sair correndo, deixando “as coisas pela metade”. Posição que, por um lado, preserva a sua não-separação do morto, sua não-morte, mas que por outro, faz da repetição de reconhecimento o encontro do real. A sua ida a análise também encontrou seu lugar na série de repetições. Walkiria, em sua primeira fala, fez saber à analista sobre a sua devastadora condição de viúva, ao mesmo tempo em que a advertia que disso nada queria falar ou saber. A analista, ao apostar em um trabalho de luto orientado para a lembrança, ignorou a advertência, pedindo-lhe que se recordasse do objeto perdido. Porém, em tal pedido o que Walkiria localizou foi a possibilidade de repetição, repetição do reconhecimento que a fez responder em ação suprimindo-se da cena, mais uma vez. Lacan (1964/2008) faz a seguinte observação a respeito das relações entre repeti8 Tomado em seu sentido literal de “bater para fora”.

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ção e rememoração: “Vejamos então como o Wiederholen [repetição] se introduz. Wiederholen tem relação com Erinnerung, a rememoração. O sujeito em sua casa, a rememorialização da biografia, tudo isso só marcha até um certo limite, que se chama o real” (p. 55). Se a repetição toca o real, o “indizível” e o “impensável”, o recordar-se fica por princípio inviável. O convite “ouça-me, sou uma viúva” aparece indissociável da advertência “não me deixe falar disso” ou “não posso pensar/lembrar-me disso”. De modo que, outra direção possível para esse caso poderia ter sido a de marcar as sutilezas da tyche, isto é, marcar a série de repetições que pareciam se produzir como por acaso. Ir atrás desse “tropeção, esse fisgamento, que reencontramos a todo instante” (Ibid., p. 60). Há de se levar em conta que Walkiria abandonou precocemente o atendimento de forma que algumas considerações aqui tecidas devem ser cuidadosamente tomadas em seu valor especulativo. Da vida anterior ao casamento, por exemplo, nada foi dito, portanto, fica-se sem saber em que medida esse luto, ao qual tanto se apega, não estaria atualizando outro(s). Ou ainda de que forma a cena traumática encontra apoio na sua fantasia e que medida de gozo ela extrai de seu lugar na cena. O diagnóstico também permanece como uma questão em aberto. Para Walkiria, o acidente que levou seu esposo assumiu não um valor fortuito, mas de verdade absoluta, causa de todas as suas causas: “Depois que ele morreu tudo na minha vida ficou pela metade [...] não porque eu quis, mas porque isso aconteceu”. Berta (2010), em seu estudo sobre o trauma, ressaltou a relação solidária entre tyche e automaton. Um encontro casual das duas séries que pode ter o efeito de gerar uma vinculação inesperada entre uma causa acidental [tyche] e a série causal do sujeito, isto é, o retorno dos signos [automaton]. De outro modo, a autora ajuda a esclarecer que um encontro por mais brutal que seja não consegue assumir um estatuto de verdade absoluta sem que haja uma participação subjetiva, “sem que o sujeito do inconsciente acuse recibo dessa ruptura, entendendo esse acusar recibo na resposta subjetiva, seja pela via da fantasia, ou pela via do sintoma” (p. 64). Ao deixar as coisas pela metade, Walkiria segue em souffrance (LACAN, 1964/2008, p. 60), isto é, em sofrimento, paciência, espera de algo indeterminado. Retida em uma zona intermediária é do Outro que espera a senha para saber sobre o sexo e a morte: “eu queria uma resposta sobre o porquê de tudo aquilo”. Na última vez em que veio, declarou: “não gosto de vir aqui, não me sinto bem quando falo, o atendimento não está me ajudando”. Se do Outro a resposta não vem, talvez ela mesma então responda se pretendendo morta enquanto aguarda ser surpreendida pelo reencontro... só não se sabe mais se com o vivo ou com o morto...

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referências bibliográficas ALLOUCH, J. Erótica do luto no tempo da morte seca. Tradução de Procopio Abreu. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004. 407p. ARIÈS, P. O homem diante da morte. Tradução de Luiza Ribeiro. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981. 670p. BERTA, S.L. Do trauma ao troumatismo. Stylus: Revista de Psicanálise, n. 21, dezembro de 2010, pp. 57-70. FINK, B. A causa real da repetição. In: Feldstein, R; Fink, B; Jaanus, M (orgs). Para ler o seminário 11, de Lacan. Tradução Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, pp. 239-245. FREUD, S. (1910). Cinco lições de psicanálise. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1980. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 11, pp. 3-51). __________. (1914). Repetir, recordar, elaborar (novas recomendações sobre a técnica da psicanálise). Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1980. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 12, pp. 191-203). __________. (1915). Considerações atuais sobre a guerra e a morte. In: __________. Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1917). Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, pp. 209-246. _________. (1916). A transitoriedade. In: __________. Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1917). Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, pp. 247-252. _________. (1917). Luto e melancolia. In: __________. Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1917). Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, pp. 170-194. __________. (1926). Inibições, sintomas e ansiedade. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1980. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. 20, pp. 95-198). GARCIA-ROZA, L. A. Acaso e repetição em psicanálise: uma introdução à teoria das pulsões. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986. 128p. LACAN, J. (1958-1959). Le séminaire, livre 6: le désir et son interprétation. Paris: Champ Freudien, 2013. 618p. _________. (1959-1960). O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. 387p. _________. (1964). O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. 279p.

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Na vertigem da dor: o luto na zona entre os vivos e os mortos

resumo

Freud considerou o luto “um grande enigma, um desses fenômenos a que se relacionam outras coisas obscuras”. A partir da singularidade de um caso clínico nos arriscaremos a adentrar no enigma do luto e em suas obscuridades. Do caso, pretendemos extrair três fios – nomeados “na vertigem da dor”, “o estatuto do morto” e “o luto entre o recordar e o repetir” – que servirão de condutores para a escrita e ajudarão a ilustrar e articular algumas proposições acerca do luto em Freud, Lacan e Jean Allouch. Uma escrita que visa menos esclarecer as “coisas obscuras” que cercam o luto do que contribuir, em seus impasses, para a sua problematização clínica e teórica.

palavras-chave

Luto, direção do tratamento, Psicanálise.

abstract

Freud considered mourning “a great enigma, one of those phenomena which relate to other obscure things.” Departing from the singularity of a clinical case, we risk entering the mourning enigma as well as well as its obscurities. From the case, we intend to extract three strands – listed as “in the vertigo of the pain”, “the statute of the dead”, and “mourning in between recalling and repeating” – which will serve the purpose of leading into the writing, and also help illustrate and articulate some propositions on mourning in Freud, Lacan, and Jean Allouch. A writing process which aims at less clarifying the “obscure things” that surround mourning than contributing, in its impasses, to its clinical and theoretical questioning.

keywords

Mourning, treatment direction, Psychoanalysis.

recebido 24/01/13

aprovado 20/03/2014

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entrevista



Entrevista com Colette Soler

Entrevista com Colette Soler por Dominique Fingermann O desejo em questão Por ocasião do XIV Encontro Nacional da EPFCL-Brasil – A causa do desejo e suas errâncias, a Comissão Científica (coordenada por Angela Mucida) solicitou a Dominique Fingermann que realizasse uma entrevista com Colette Soler sobre o tema do Encontro Nacional. A entrevista foi publicada parcialmente no jornal O Estado de Minas, e aqui a apresentamos na íntegra.

Dominique Fingermann: O desejo está no âmago da descoberta do inconsciente e da Psicanálise... O desejo é a primeira palavra; seria ele a última palavra do inconsciente e da Psicanálise? Colette Soler: É simples: no princípio da Psicanálise, o desejo foi a primeira e a única palavra da interpretação freudiana. No fim, com Lacan, ele permanece, mas não mais sozinho.

Dominique Fingermann: A Psicanálise, a Filosofia e a Publicidade também partem do princípio de que o desejo procede da falta. É possível, contudo, separar o desejo do gozo e da satisfação? Colette Soler: O gozo e a satisfação são muito diferentes. O primeiro supõe o corpo; o segunda é um fenômeno do sujeito que tem esse corpo. O gozo, muito frequentemente, não satisfaz; ele tem mesmo, muitas vezes, um parentesco com a dor – desarmônica e insatisfatória –, e isso porque ele não faz laço com o Outro, ele separa mesmo. Quanto ao desejo, ele é, por definição, insatisfeito, falta-degozar, já que sua causa é aquilo que Freud chamava de objeto originariamente perdido, e Lacan, de objeto a – enquanto ele falta. É possível, porém, o que é algo complexo, gozar da falta-de-gozar – esta é uma das fórmulas do masoquismo dadas por Lacan.

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FINGERMANN, Dominique

Dominique Fingermann: O complexo de Édipo, no princípio do desejo inconsciente – tão contestado nos anos 1970 – permanece atual? Ele corresponde às novas configurações familiares contemporâneas? Colette Soler: Não. O complexo de Édipo, tal como Freud o introduziu, não é mais atual, é apenas uma historinha, como diz Lacan. Digamos que ele seja o romance familiar da Psicanálise. Muito cedo, Lacan promoveu não um antiÉdipo, mas um “mais além do Édipo”, que não o contestava, mas que o repensava, sem sacrificar a questão crucial, que era saber o que, para os falantes, funciona como princípio de orientação da libido e, portanto, de seus possíveis laços sociais. Pois é preciso compreender bem que, por definição, o desejo que se funda a partir de uma falta estrutural – efeito de linguagem – é orientado para o gozo. Ele visa a um gozo que o fixe sem, todavia, estancá-lo. É preciso acabar com a oposição binária “desejo/gozo”. Com certeza, é possível gozar sem desejar, e até mesmo desejar sem gozar (a não ser que se trate de simples gozo da falta); todo desejo, porém, vai na direção de um complemento de sua falta. Será que estamos percebendo que quando postulamos “não há relação sexual”, que repetimos com tanta frequência, recusamos de fato o universal da função paterna no que diz respeito à orientação dos desejos sexuados? Essa constatação recusa particularmente a metáfora do pai, que o próprio Lacan produziu. Desenvolvi esse tema há bastante tempo e retomei-o em meu livro Lacan, o inconsciente reinventado (Cia de Freud, 2012). Com essa metáfora, Lacan fazia explicitamente do Pai um significante que, no Outro, era o significante do Outro, da lei do Outro. Rapidamente, porém, ele concluiu, às avessas, que “não há Outro do Outro” – o Outro é barrado e não responde sobre a questão do gozo. Donde a questão de saber o que é que preside, para cada um, as vias de seu próprio desejo. Pode ser o modelo paterno, mas trata-se, então, apenas de uma solução entre outras possíveis – donde a fórmula que diz que a função do Pai é uma versão de sintoma: père version [pai-versão/perversão]. Mais geralmente, a fantasia é uma montagem pela qual o desejo se articula com o objeto a, sem passar necessariamente pelo modelo da função paterna, e a metonímia que vale para o desejo é tanto metonímia do mais-gozar quanto metonímia da falta. Neste ponto, Lacan, com seu mais além do Édipo, antecipou, e de forma impressionante, as evoluções do século, dando aos analistas os primeiros instrumentos conceituais que permitem pensar o estado atual da sociedade.

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Entrevista com Colette Soler

Dominique Fingermann: O que a Psicanálise poderia dizer sobre as novas configurações familiares desde os casamentos, adoções e educação das crianças por parceiros de mesmo sexo? Colette Soler: Sobre esse tipo de questão o psicanalista pode apenas “constatar”, dizia Lacan. O que quer dizer que, se se argumenta a favor ou contra, segundo a opinião de cada um, não se pode fazer isso em nome da Psicanálise. O que é certo, contudo – na orientação lacaniana, com o mais além do Édipo conceitualizado por Lacan –, é que a função Pai é disjunta da estrutura da família tradicional.

Dominique Fingermann: O que se pode dizer sobre a sexualidade infantil hoje? A criança é um perverso polimorfo? Colette Soler: A sexualidade infantil é hoje aquilo que ela foi no tempo de Freud. Ao descrevê-la daquela forma, Freud produziu um passo subversivo, cujo alcance vai bem além da criança. É agora admitido que os gozos ditos sexuais da criança não sejam nada mais do que aqueles das pulsões parciais, ligadas ao próprio corpo e às suas zonas erógenas. Restava concluir, como Lacan aí insistiu, que não é a criança que é perversa polimorfa, mas o gozo em si próprio – e não somente na criança –, ligado como é à captura da linguagem sobre o corpo, e ao defeito correlativo da relação sexual. Sobre este aspecto, como diz Lacan, o adulto e a criança estão em pé de igualdade. Não que uma criança seja um adulto; a diferença, porém, está em outro lugar – se é que existem adultos...

Dominique Fingermann: Lacan relaciona as patologias com as modalidades de desejo: desejo insatisfeito da histérica, desejo impossível do obsessivo, desejo prevenido do fóbico e desejo masoquista do perverso. Os seres humanos são todos doentes de desejo? Como situar a psicose com relação ao desejo? Colette Soler: O desejo, qualquer que seja a sua forma, não é uma patologia, mesmo se os sujeitos se queixam dele. O que pode fazer com que se suponha isso é que as formas sendo mais ou menos conformes às normas do discurso social, o desejo em si mesmo é mais ou menos dissidente com relação ao que chamamos de normalité [normalidade] – “nor-mâle” [normal/nor-macho], diz Lacan, construída pelo discurso, que visa fabricar, digamos, desejo ou gozos-padrão. O psicanalista não pode entrar nessa “caça às diferenças”, que está a cada vez mais

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se expandindo, em nome de uma falsa universalidade, que produz apenas homogeneidade e mesmice. A questão do desejo na psicose é outra coisa. Ela propicia mostrar como uma doutrina mal ajustada pode levar a ignorar os fatos clínicos. Partindo do postulado de que é necessário o pai para engendrar o desejo, com a angústia de castração, vimos analistas concluírem que a psicose excluía o desejo, e até mesmo a angústia. Mas, se olharmos as figuras mais eminentes da psicose, como sustentar que lhes falta desejo? É preciso, antes, rever o conceito de desejo, como estou convidando – vocês estão percebendo, creio eu. Com relação à angústia, se ela viesse do Pai, então as mais fortes, como as do melancólico, se tornariam impensáveis.

Dominique Fingermann: Você nos convida, portanto, a rever o conceito de desejo, que não seria mais, então, somente um efeito da castração, mas uma causa do falante, e até mesmo da fala? Colette Soler: Sim. É a linguagem que engendra a causa do desejo, não o Pai, que tem outra função, que é antes a de apresentar uma versão de desejo e de gozo. É por isso que Lacan diz père-version [pai-versão/perversão], versão na direção do Pai.

Dominique Fingermann: O mundo contemporâneo sofre pelo desejo ou pelos desregramentos do gozo? “Tudo é possível, tudo é permitido” no século XXI. Seria este o fim do desejo? Colette Soler: Você parece supor que os mais-gozar oferecidos pelo capitalismo satisfazem – o que não é o caso. Vejamos o que acontece de fato: tudo é permitido, e transformamos os desejos em direitos! tudo é possível, nós tentamos isso!, e na land of plenty o clamor da insatisfação do desejo sobe na porporção dos bônus de gozo.

Dominique Fingermann: O fim do ensino de Lacan permite ainda afirmar “o desejo é o desejo do Outro”? As consequências do ensino de Lacan no fim e a localização do inconsciente real mudam algo no desejo? Colette Soler: O desejo é desejo do Outro significava que o desejo, em sua diferença para com a necessidade, é um efeito de operação da linguagem, a qual

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Entrevista com Colette Soler

esvazia o real, faz furo ali. Neste sentido, o Outro como lugar da linguagem é a condição do desejo, e é possível dizer, como faz Lacan, “eu desejo enquanto Outro”, porque a linguagem é incorporada. Mas, se falarmos daquilo que orienta o desejo de cada falante – a única coisa que interessa ao psicanalista –, então o desejo não é desejo do Outro – como havia dito ao responder sua segunda pergunta. A concepção do desejo e seu lugar na estrutura não pararam de mudar no ensino de Lacan que, a cada etapa, reconfigura todas as noções analíticas. Recusar a metáfora era já mudar algo ali, como disse. Propor a concepção do objeto era um outro passo. Referir-se ao inconsciente real, à alíngua e ao enodamento borromeano pelo sinthoma é um outro passo, sim. Que deve ser elucidado. Foi o que comecei a fazer em meu livro Lacan, o inconsciente reinventado.

Tradução: Cícero Alberto de Andrade Oliveira Revisão: Dominique Fingermann

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resenhas



Resenha do Livro A criança em nós Jairo Gerbase Sobre a autora e seu livro A autora é impossível de adjetivar. Qualquer qualificativo que se lhe ajunte fica aquém de seu nome próprio. Perguntei a Nicômaco qual a virtude que estaria à sua altura, mas não obtive resposta. A excelência de seus atos, a vontade de fazer bem feito, na justa medida, é o seu traço unário. Coragem, honra, fidelidade, disciplina, lealdade, hospitalidade, laboriosidade, independência, perseverança, prudência, justiça, fortaleza, temperança, humildade e generosidade são excelências que Sonia Magalhães tem em abundância. É nossa Antígona, na medida em que ela também não cede de seu desejo. Sonia é ainda uma pessoa de seu tempo, atualizada, contemporânea. No encontro de Joinville, um colega me perguntou: quem é aquela senhora da Bahia? Eu lhe perguntei: que senhora? Ele respondeu: aquela senhora high-tech? Eu disse: é Sonia Magalhães. Todo mundo se impressiona com sua vitalidade, sua energia, sua disposição para o trabalho e para a vida. Eu diria, contrariando Aristóteles, não que ela seja imortal, mas que é eterna. Sonia não sonha com a ausência de tempo, como o comum dos mortais, ela conhece a eternidade. O livro é uma coleção dos seus melhores artigos ao longo de três décadas. Tive o privilégio de testemunhar passo a passo sua fabricação. Nosso debate sempre foi profícuo porque ela não parava de avançar suas hipóteses. Ora me dizia: o significante do Outro barrado, segundo Lacan, é o segredo da psicanálise. Outra hora me dizia: a relação entre a psicanálise e a criança não pode ser prepositiva: psicanálise de crianças, psicanálise com crianças; este liame deve ser lógico, da ordem da conjunção: psicanálise e criança. Um campo inteiro passou a adotar essa orientação. De outra feita me disse: a tese de Lacan sobre a criança é a de que não existe adulto, é a tese da criança generalizada. E se identificou a tal ponto com esta tese, durante anos, que chegou a escolhê-la, com a aprovação de seus editores, como título de seu livro. Porém, por ser extremamente criativa, alguém que desliza facilmente pela equivocidade do significante, de súbito lhe caiu no colo a expressão: “A criança em nós”, que conserva em si a tese da criança generalizada, a tese da criança no adulto, a tese lacaniana e rortyana segundo a qual o sujeito não tem idade, não se desenvolve, não amadurece nem envelhece, e ajunta a tese

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GERBASE, Jairo

maior do campo lacaniano, a do RSI, do Real, do Simbólico e do Imaginário. A criança em nós explora o duplo sentido do pronome e do nó borromeano. E como cai bem quando se mostra o nó e se vê no seu centro o objeto a criança! Eu lhe pedi os artigos selecionados para o livro, de modo a fazer uma leitura, ainda que dinâmica, a fim de poder dizer ao menos uma frase sobre cada um, mas ela recusou-se, dizendo-me que não seria preciso, que seria muito cansativo para meus olhos. Eu insisti e ela consentiu em enviar alguns, creio que um de cada seção do livro. Desse modo, pude reler agora um artigo intitulado “A causa humana por excelência”, que trata do mito segundo o qual o amor é a tensão para fazer ex-sistir o Um, a forma épica de dizer o impossível, de fazer ex-sistir a relação biunívoca no Real. Reli outro, “Novas velhas histórias”, título que ela diz ter tomado emprestado de Rosa, onde se notará que a autora não apenas sabe ler as histórias ditas infantis, como conhece Perrault, Andersen, Grimm. Desta vez, ela lê “Chapeuzinho vermelho”, de Perrault, à luz de “Fita verde no cabelo”, de Rosa e de “Chapeuzinho amarelo”, de Buarque, em que o lobo é anagrama de bolo. Destaca que o predicado, o gozo oral do conto, está indicado no verbo comer e que os significantes vermelho, verde e amarelo são signos do perigo, da angústia. Neste bloco espero encontrar a maioria das estórias que ela nos conta em cada uma de suas palestras: La Moitié-de-Poulet, do primeiro livro de leitura de Lacan, João sortudo, O patinho feio, entre outros. O terceiro artigo que reli chama-se “A fobia é isso”. Como disse há pouco, a autora sempre avança, desta vez para dizer que há coragem na fobia, que a fobia é o isso, uma plataforma giratória, um pai, que é preventiva, o brasão da castração, poesia viva, metáfora. Ismigou é uma ilustração clínica da lavra da autora, que serve para demonstrar onde é que os analistas têm medo. Reler é um ato recomendado por Borges (a quem tenho reservas de citar depois que descobri que ele apelidou Freud de Procusto, no prefácio a “O diabo enamorado”, de Cazotte) no conto “Utopia de um homem que está cansado”, integrante de O livro de areia. Seu interlocutor exclama: rapaz, sua biblioteca é maravilhosa, quantos livros tem aqui? Borges responde: dois mil. Seu interlocutor replica: dois mil? Quer dizer que você já leu dois mil livros? Borges responde: não, só li seis. O interlocutor: seis? Só seis? Sim, retruca Borges, o importante é reler. Reli outro artigo cujo título é: “Quando se cala uma criança”. Trata-se do infanticídio, ilustrado em um caso clínico, não na dimensão do corpo, da substância extensa, mas na do significante, na diz-mensão da substância gozante. A criança não fala na presença de estranhos, do não familiar. Os desenhos da criança mostram a evolução da análise de maneira cristalina, como é laborioso levar uma criança a fazer a travessia da posição de objeto à posição de sujeito na sua relação com os pais. Em “A respeito do evanescimento do mundo infantil”, a autora examina o conceito de amnésia infantil, sua importância em uma análise, a ponto de

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Resenha do Livro A criança que vive em nós

poder afirmar que há três questões cruciais postas à psicanálise: o que é um pai, o que quer a mulher e o que é uma criança. Neste artigo ela avança um pouco mais no esclarecimento da tese sobre a criança generalizada, chegando a afirmar que o que entendemos por “a criança em nós” releva da amnésia infantil, ou seja, quando falamos da criança no adulto, queremos dizer que o evanescimento do mundo infantil é apenas semblante, tal como se pode imaginarizar com o recurso do bloco mágico. Continuei a reler desta vez o artigo sobre “A transitoriedade e o bem-dizer”, que trata da utopia da imortalidade, do desejo de eternidade ou da tristeza diante do que é perecível, que a autora atualiza no conceito de nostalgia diante da incompletude, do furo ou do universo mórbido da falta. O sentimento de cansaço (Levinas), de lassidão moral (Spinoza), de desamparo (Freud) que daí advém, a autora propõe tratar com o bem-dizer (Lacan). Ainda reli “Um dom raro e precioso”, texto sobre o humor, que traz a engraçadíssima fábula fabulosa da lagartixa de Millôr, que gostaria de copiar e colar aqui, mas que desisti para deixar ao leitor deste livro o viço de ler o artigo original. E, por último, reli “Sua majestade, o bebê?”, um texto sobre o narcisismo primário, de Freud, que contracena com “A mão que segura o berço”, de Tchéckov, em que a autora retorna à sua tese maior, a da criança generalizada, sobre a qual Lacan, citando Malraux, disse: “Acabei acreditando que não existe gente grande”, tese que, segundo a autora, aponta para o sujeito que não tem responsabilidade pelo seu gozo. Eu sou impressionado com tamanha erudição da autora.

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Orientações Editoriais é um periódico semestral da ESCOLA DE PSICANÁLISE DOS FÓRUNS DO CAMPO LACANIANO – BRASIL e se propõe a publicar artigos inéditos das comunidades brasileiras e internacionais do Campo Lacaniano, e os artigos de outros colegas que orientam sua leitura da Psicanálise principalmente pelos textos de Sigmund Freud e Jacques Lacan. A Revista aceita artigos provenientes de outros campos de saber (a Arte, a Ciência, a Matemática, a Filosofia, a Topologia, a Linguística, a Música, a Literatura etc.) que tomam a Psicanálise como eixo de suas conexões reflexivas. Aos manuscritos encaminhados para publicação recomendam-se as seguintes Orientações Editoriais. Serão aceitos trabalhos em inglês, francês e/ou espanhol. Se aceitos, serão traduzidos para o português. Todos os trabalhos enviados para publicação serão submetidos à apreciação de, no mínimo, dois pareceristas, membros do Conselho Editorial de Stylus (CES). A Equipe de Publicação de Stylus (EPS) poderá fazer uso de consultores ad hoc, a seu critério e do CES, omitida a identidade dos autores. Os autores serão notificados da aceitação ou não dos artigos. Os originais não serão devolvidos. O texto considerado aceito será publicado na íntegra. Os artigos assinados expressam a opinião de seus autores. A EPS avaliará a pertinência da quantidade de textos que irão compor cada número de Stylus, de modo a zelar pelo propósito desta revista: promover o debate a respeito da Psicanálise e suas conexões com os outros discursos.

Fluxo de avaliação dos artigos: 1. Recebimento do texto por e-mail pelos membros da EPS de acordo com a data divulgada na rede-afcl@yahoogrupos.com.br e na if-epfcl@champlacanien.net 2. Distribuição para parecer. 3. Encaminhamento do parecer para a reunião da EPS para decisão final. 4. Informação para o autor: se recusado, se aprovado ou se necessita de reformulação (neste caso, é definido um prazo de vinte dias, findo o qual o artigo é desconsiderado, caso o autor não o reformule apropriadamente). 5. Após a aprovação o autor deverá enviar à EPS no prazo de sete dias úteis um e-mail contendo um arquivo de seu texto, definido para impressão. 6. Direitos autorais: a aprovação dos textos implica a cessão imediata e sem ônus dos direitos autorais de publicação nesta revista, a qual terá exclusividade

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de publicá-los em primeira mão. O autor continuará a deter os direitos autorais para publicações posteriores. 7. Publicação. Nota: não haverá banco de arquivos para os números seguintes. O autor que desejar publicar deverá encaminhar seu texto a cada número de Stylus.

Serão aceitos trabalhos para as seguintes seções: Artigos: análise de um tema proposto, levando ao questionamento e/ou a novas elaborações (aproximadamente 12 laudas ou 25.200 caracteres, incluindo referências bibliográficas e notas). Ensaios: apresentação e discussão a partir da experiência psicanalítica de problemas cruciais da Psicanálise no que estes concernem à transmissão da Psicanálise (aproximadamente 15 laudas ou 31.500 caracteres, incluindo referências bibliográficas e notas). Resenhas: resenha crítica de livros ou teses de mestrado ou doutorado, cujo conteúdo se articule ou seja de interesse da Psicanálise (aproximadamente 60 linhas (3.600 caracteres). Entrevistas: entrevista que aborde temas de psicanálise ou afins à Psicanálise (aproximadamente 10 laudas ou 21.000 caracteres, incluindo referências bibliográficas e notas). Stylus possui as seguintes seções: ensaios, trabalho crítico com os conceitos, direção do tratamento, entrevista e resenhas; cabendo a EPS decidir sobre a inserção dos textos selecionados no corpo da revista.

Apresentação dos Manuscritos: Formatação: Os artigos devem ser digitados em Word for Windows, versão 6.0 ou superior, com extensão (.doc), em fonte Times New Roman, tamanho 12, em folha de formato A4, com espaçamento 1,5 entre linhas, margens superior, inferior e laterais de 2 cm. Ilustrações: o número de figuras (quadros, gráficos, imagens, esquemas) deverá ser mínimo (máximo de 5 por artigo, salvo exceções, que deverão ser justificadas por escrito pelo autor e avalizadas pela EPS) e devem vir separadamente em arquivo JPEG nomeados Fig. 1, Fig. 2 e indicadas no corpo do texto o local dessas Fig. 1, Fig. 2., sucessivamente. As ilustrações devem trazer abaixo um título ou legenda com a indicação da fonte, quando houver.

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Resumo / Abstract: todos os trabalhos (artigos, entrevistas) deverão conter um resumo na língua vernåcula e um abstract em língua inglesa contendo de 100 a 200 palavras. Deverão trazer tambÊm um mínimo de três e um måximo de cinco palavras-chave (português) e keywords (inglês) e a tradução do título do trabalho. As resenhas necessitam apenas das palavras-chave e keywords.

Envio dos manuscritos: Ao enviar o artigo para a revista, o autor compromete-se a nĂŁo o encaminhar para outro(s) veĂ­culo(s) de publicação, pelo prazo de seis meses, a contar da data do envio. Preferencialmente, as propostas de publicação devem ser enviadas via internet, como anexo, para o e-mail revistastylus@yahoo.com . Alternativamente, podem ser enviadas em mĂ­dia digital, acompanhadas de trĂŞs cĂłpias impressas, para o seguinte endereço: FĂłrum do Campo Lacaniano –SĂŁo Paulo Revista Stylus: Revista de PsicanĂĄlise da Associação de FĂłruns do Campo Lacaniano Brasil Rua Lisboa, 1163. CEP 05413-001 – Pinheiros (SĂŁo Paulo – SP) Os artigos devem conter os seguintes elementos:

Normas para publicação: t 1SJNFJSB MBVEB DPOUFOEP BQFOBT P UĂ“UVMP EP BSUJHP OPNF T EP T BVUPS FT EBdos do(s) autor(es) [titulação, filiação institucional e referĂŞncias acadĂŞmicas e profissionais, em 10 linhas, no mĂĄximo] e endereço completo (com e-mail). t %FNBJT MBVEBT OVNFSBEBT DPOTFDVUJWBNFOUF B QBSUJS EF VN SFQFUJOEP P tĂ­tulo, sem o(s) nome(s) do(s) autor(es), e contendo o texto da publicação. t /P DBTP EF JOWFTUJHBĂŽĂœFT EFTFOWPMWJNFOUPT UFĂ˜SJDPT SFMBUPT EF QFTRVJTBT EFbates e entrevistas, deve ser incluĂ­do um resumo de no mĂĄximo trezentas palavras, ao final, na mesma lĂ­ngua do trabalho, acompanhado de palavras-chave (no mĂ­nimo trĂŞs e no mĂĄximo sete). ApĂłs esse resumo, deve-se incluir tambĂŠm uma tradução do mesmo, em inglĂŞs (abstract), acompanhada da tradução do tĂ­tulo e das palavras-chave. t /P DBTP EF FOUSFWJTUB EFWFN TFS JODMVĂ“EPT BP Ä•OBM PT TFHVJOUFT EBEPT EBUB da entrevista, nome do entrevistador, nome do entrevistado e dados completos

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de identificação de ambos (titulação, filiação institucional e referĂŞncias acadĂŞmicas e profissionais). Opcionalmente, podem ser incluĂ­dos dados relevantes sobre o contexto em que foi realizada a entrevista. t /P DBTP EF SFTFOIBT EFWF TF JODMVJS BP Ä•OBM B SFGFSĂ?ODJB DPNQMFUB EB PCSB resenhada. As ilustraçþes devem ter seu lugar indicado no texto e devem ser enviadas tambĂŠm em anexos separados, em formato de arquivo JEPG. Devem ser nomeadas Fig. 1, Fig. 2, sucessivamente, podendo ainda ter um tĂ­tulo sugestivo do seu conteĂşdo.

Sobre citaçþes e referências bibliogråficas: Indicamos a NBR 6023 da Associação Brasileira das Normas TÊcnicas, lançada em 2002, disponível nos seguintes endereços eletrônicos, ambos oriundos do sítio (http://www.ip.usp.br/portal/) da Biblioteca Dante Moreira Leite, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo: Citaçþes: (http://www.ip.usp.br/portal/images/stories/manuais/citacoesabnt.pdf) Referências bibliogråficas: (http://www.ip.usp.br/portal/images/stories/manuais/ normalizacaodereferenciasabnt.pdf)

Citaçþes no texto: As citaçþes diretas (ou textuais) devem reproduzir fielmente as palavras do autor ou o trecho do texto utilizado. Exemplo: Dessa maneira, Quinet (1991, p. 87) adverte que “nĂŁo hĂĄ duas pessoas que lidem com o dinheiro da mesma forma.â€? JĂĄ as citaçþes diretas (ou textuais) que excederem trĂŞs linhas devem vir em parĂĄgrafo separado, com recuo de quatro cm da margem esquerda (alĂŠm do parĂĄgrafo de 1,25cm) com letra menor do que a do texto e sem utilização de aspas. Os tĂ­tulos de textos citados devem vir em itĂĄlico (sem aspas), os nomes e sobrenomes em formato normal (Lacan, Freud). Exemplo: Freud (1910, p. 130) em As perspectivas futuras da terapĂŞutica psicanalĂ­tica, destaca um aspecto importante: Agora que um considerĂĄvel nĂşmero de pessoas estĂĄ praticando a psicanĂĄlise e, reciprocamente, trocando observaçþes, notamos que nenhum psicanalista avança alĂŠm do quanto permitam seus prĂłprios complexos e resistĂŞncias internas; e, em consequĂŞncia, requeremos que ele deva iniciar sua atividade por uma autoanĂĄlise e levĂĄ-la, de modo contĂ­nuo, cada vez mais profundamente, enquanto esteja realizando suas observaçþes sobre seus pacientes. Qualquer um que falhe em

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produzir resultados numa autoanálise desse tipo deve desistir, imediatamente, de qualquer ideia de tornar-se capaz de tratar pacientes pela análise. As citações indiretas devem contar as ideias daquele que escreve o texto, mas também devem referendar as ideais originais do autor citado, em letras maiúsculas. Exemplo: Lacan sempre deixou claro sua posição sobre os psicanalistas que se acomodavam frente aos mecanismos institucionais das escolas psicanalíticas daquela época, com suas burocracias e rituais questionáveis (LACAN, 1956). As citações de obras antigas e reeditadas devem ser feitas da seguinte maneira: Kraepelin (1899/1999). No caso de citação de artigo de autoria múltipla, as normas são as seguintes: A) até três autores – o sobrenome de todos os autores é mencionado em todas as citações, por exemplo: (Alberti e Elia, 2000). B) de quatro a seis autores – o sobrenome de todos os autores é citado na primeira citação, como acima. Da segunda citação em diante só o sobrenome do primeiro autor é mencionado, como abaixo (Alberti, et al, 2009, p. 122). C) Mais de seis autores – no texto, desde a primeira citação, somente o sobrenome do primeiro autor é mencionado, mas nas referências bibliográficas os nomes de todos os autores devem ser relacionados. Quando houver repetição da obra citada na sequência deve vir indicado Ibid., p. (página citada). Quando houver citação da obra já citada, porém fora da sequência da nota, deve vir indicado o nome da obra em itálico, op. cit., p. (Kant com Sade, op. cit., p. 781). Caso a fonte seja um website ou página eletrônica, deve-se explicitar o endereço eletrônico de acesso, entre parentêses, após a informação, (http://www.campolacanianosp.com.br/).

Notas de rodapé: As notas não bibliográficas, indicações, observações ou aditamentos ao texto feitos pelo autor ou editor, devem ser reduzidas a um mínimo indispensável, ordenadas por algarismos arábicos e organizadas como nota de rodapé, ao final da página em questão.

Referências Bibliográficas: Os títulos de livros, periódicos, relatórios, teses e trabalhos apresentados em

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congressos devem ser colocados em itálico. O sobrenome do(s) autor(es) deve vir em caixa alta, seguido do prenome abreviado. Livros, livro de coleção: 1.1 LACAN, J. (1955) A coisa freudiana. In:______. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. pp. 402-437 1.2 FREUD, S. (1920). Além do princípio de prazer. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 18, pp. 17-88). 1.3 LACAN, J. (1960-61) O seminário – livro 8: A transferência. Tradução de Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Zahar, 1992. 386p. 1.4 Lacan, J. O seminário: A Identificação (1961-1962): aula de 21 de março de 1962. Inédito. 1.5 Lacan, J. O seminário: Ato psicanalítico (1967-1968): aula de 27 de março de 1968. (Versão brasileira fora do comércio). 1.6. Lacan, J. Le séminaire: Le sinthome (1975-1976). Paris: Association freudienne internationale, 1997. (Publication hors commerce). Obs. O destaque é para o título do livro e não para o título do capítulo. Quando se referencia várias obras do mesmo autor, substitui-se o nome do autor por um traço equivalente a seis espaços. Capítulo de Livro: Foucault, Michel. Du bon usage de la liberté. In: Foucault, M. Histoire de la folie à l’âge classique (p.440-482). Paris: Gallimard, 1972. Artigo em periódico científico ou revista: Quinet, Antonio. A histeria e o olhar. Falo. Salvador, n.1, pp. 29-33, 1987. Obras antigas com reedição em data posterior: Alighieri, Dante. Tutte le opere. Roma: Newton, 1993. (Originalmente publicado em 1321). Teses e dissertações: Teixeira, A. A teoria dos quatro discursos: uma elaboração formalizada da clínica psicanalítica. Rio de Janeiro, 2001. 250 f. Dissertação. (Mestrado em Teoria Psicanalítica) – Instituto de Psicologia. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001. Relatório técnico: Barros de Oliveira, Maria Helena. Política Nacional de Saúde do Trabalhador. (Relatório Nº). Rio de Janeiro. CNPq, 1992. Trabalho apresentado em congresso e publicado em anais: Pamplona, Gra-

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ça. Psicanálise: uma profissão? Regulamentável? Questões Lacanianas. Trabalho apresentado no Colóquio Internacional Lacan no Século. 2001 Odisseia Lacaniana, I, 2001, abril; Rio de Janeiro, Brasil. Obra no prelo: No lugar da data deverá constar (No prelo). Autoria institucional: American Psychiatric Association. DSM-III-R, Diagnostic and statistical manual of mental disorder (3rd edition revised.) Washington, DC: Author, 1998. CD Room – Gatto, Clarice. Perspectiva interdisciplinar e atenção em Saúde Coletiva. Anais do VI Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva. Salvador: ABRASCO, 2000. CD-ROM. Home Page: Gerbase, Jairo. Sintoma e tempo: aula de 14 de maio de 1999. Disponível em: www.campopsicanalitico.com.br. Acesso em: 10 de julho de 2002. Fontes eletrônicas: FINGERMANN, D. A análise dos analistas. Jornal de psicanálise, São Paulo, v. 41, n. 74, jun. 2008. Disponível em <http://pepsic.bvsalud. org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-58352008000100008&lng=pt&nr m=iso>. Acesso em 08 abr. 2011. Outras dúvidas poderão ser sanadas consultando-se a versão original da ABNT 6023, como dito anteriormente, ou eventualmente endereçadas à Equipe de Publicação da Revista Stylus (EPS) para o e-mail revistastylus@yahoo.com.br

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Sobre autores e tradutores Ana Paula Lacorte Gianesi Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (EPFCL) e do FCL São Paulo. Doutora em Psicologia Clínica pelo IPUSP End: R. Haroldo Gurgel, 167. Butantã, São Paulo – SP. Email: anapaulagianesi@yahoo.com.br.

Andréa Brunetto Psicanalista, AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, membro do Ágora Instituto Lacaniano de Campo Grande, membro do Fórum de Campo Grande. Autora de Psicanálise e educação: sobre Hefesto, Édipo e outros desamparados dos dias de hoje e Sobre amores e exílios. Na fronteira da psicanálise com a literatura (Escuta) E-mail: brunetto@terra.com.br

Antonio Quinet Psicanalista, Doutor em Filosofia pela Universidade de Paris VII (Vincennes), Professor do Mestrado de Psicanálise Saúde e Sociedade (UVA). AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Fórum Rio de Janeiro. Dramaturgo e Diretor da Cia. Inconsciente em Cena (RJ). É autor, entre outros, de As 4+1 condições da análise (JZE), A descoberta do inconsciente (JZE), Teoria e clínica da psicose (Forense Universitária). Um olhar a mais (JZE), A lição de Charcot (JZE), Os Outros em Lacan (JZE) E-mail: quinet@openlink.com.br

Beatriz Elena Maya Restrepo Professora de cátedra, departamento de psicanálise Universidade de Antioquia Psicanalista A.M.E. da Escola dos Foros do Campo Lacaniano. Magister Universidade de Antioquia. Publicações: Poesia e psicanálise: um deciframento do bem-dizer. Vários artigos em revistas de psicanálise. Rua 10 No. 30-160 ed. Rosedal ap. 612 E-mail: belemare@une.net.co

Cícero Alberto de Andrade Oliveira Graduado em Letras (Português/Francês) pela FFLCH-USP. Mestre em Língua e Literatura Francesa pela mesma instituição. E-mail: ciceralb@gmail.com

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Colette Soler Doutora em Psicologia (Paris VII). AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – França. Professora de FCCL – Paris. Autora de vários livros, entre os quais Psicanálise na Civilização (Contra Capa), O que dizia Lacan das mulheres (JZE), edição bilíngue do Caderno Stylus 1: O corpo falante, O inconsciente. Que é isso? (Annablume), Lacan, o inconsciente revisitado (Cia de Freud), Declinações da Angústia (Escuta), Seminário de leitura de texto: A angústia, de Jacques Lacan (Escuta), A repetição na experiência analítica, (Escuta). E-mail: solc@wanadoo.fr

Dominique Fingermann Psicóloga. Psicanalista. AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano Brasil | Fórum São Paulo. Coautora de Por causa do pior (Iluminuras). E-mail: dfingermann@terra.com.br

Jairo Gerbase Psiquiatra. Psicanalista. AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil | Fórum Salvador. Membro da Associação Científica Campo Psicanalítico – Salvador. Autor de Comédias Familiares, Paradigmas da psicanálise e A hipótese lacaniana. Organizador de O saber do psicanalista e Avatares do supereu. E-mail: : jsgerbase@icloud.com

Luciana Guarreschi Psicóloga. Membro do Fórum São Paulo. Rua Arthur de Azevedo 255, Pinheiros, São Paulo. E-mail: guareschi.lu@gmail.com

Marcia de Assis Psicanalista, membro da IF-EPFCL, Fórum Rio de Janeiro e Fórum Niterói, atual coordenadora do FICL-Niterói. E-mail: marcia.assis@gmail.com

Manel Rebollo Licenciado em psicologia pela Universidade de Barcelona. Especialista em Psicologia Clínica. AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Fórum Psicoanalítico Tarragona. Mestre em Antropologia da Medicina e Saúde Internacional pela Universidade Rovira i Virgili. Docente de Formações Clínicas do Campo Lacaniano – Seminário de Psicanálise de Terragona. Unió 46, 1º andar. 43001 Tarragona, Espanha. E-mail: mrebollo@spt.cat

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Maria Claudia Formigoni Psicóloga e Mestre em Psicologia Social pela PUC-SP. Especialista em Psicologia Clínica também pela PUC-SP. Especialista em Psicologia Hospitalar pelo HC-FMUSP. E-mail: mclaudiaformigoni@yahoo.com.br

Maria Helena Martinho

Doutora e Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Psicanálise do IP/UERJ. Professora dos Cursos de Doutorado e de Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade da UVA. Professora e Supervisora Clínica do Curso de Especialização em Psicanálise da UVA. Professora e Supervisora Clínica do Curso de Especialização em Psicologia Clínica da PUC – Rio. Coordenadora e Supervisora Clínica do SPA/UVA. Psicanalista Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil. Psicanalista Membro do Colegiado de Formações Clínicas do Campo Lacaniano – Rio de Janeiro. Rua Gildásio Amado 55, sala 909 – Barra da Tijuca. 22631-020. Rio de Janeiro/RJ. Tel.: 21 2494 8505/ 999253636. E-mail: mhmartinho@yahoo.com.br

Miriam Ximenez Pinho Psicanalista. Doutoranda do Núcleo de Pesquisa Psicanálise e Política do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestrado em Ciências (Universidade Federal de São Paulo, 2009). Analista participante das Formações Clínicas e da Rede Clínica do Fórum do Campo Lacaniano-São Paulo (FCL/SP). E-mail: miriampinho@yahoo.com

Raul Pacheco Professor Titular da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), atuando no Curso de Psicologia e no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social, onde coordena o Núcleo de Pesquisa, Psicanálise e Sociedade (inscrito no Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil – CNPq). Psicólogo com graduação pela PUC-SP e Mestrado e Doutorado pelo Instituto de Psicologia da USP. AME dos Fóruns do Campo Lacaniano (EPFCL – Brasil) e da Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano (Fórum de São Paulo). E-mail: raulpachecofilho@uol.com.br

Ronaldo Torres Psicanalista. Membro do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo. Mestre e Doutor pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. R. Haroldo Gurgel, 167. Butantã - São Paulo Capital E-mail: ronaldotorrescl@gmail.com

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Silvia Lira Staciolli Castro Doutora em psicologia clínica (PUC-Rio – 2009); Mestre em psicologia clínica (PUC-Rio – 2003); Psicóloga militar do corpo de saúde da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (desde 2002); Psicanalista participante da FCCL-Rio; Endereço: Estrada dos Três Rios 1173 – Sala 406 – Jacarepaguá – Rio de Janeiro – RJ - CEP: 22745-004 E-mail: silviastaccioli@gmail.com

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stylus, m. 1. (Em geral) Instrumento formado de haste pontiaguda. 2. (Em especial) Estilo, ponteiro de ferro, de osso ou marfim, com uma extremidade afiada em ponta, que servia para escrever em tabuinhas enceradas, e com a outra extremidade chata, para raspar (apagar) o que se tinha escrito / / stilum vertere in tabulis, Cic., apagar (servindo-se da parte chata do estilo). 3. Composição escrita, escrito. 4. Maneira de escrever, estilo. 5. Obra literária. 6. Nome de outros utensílios: a) Sonda usada na agricultura; b) Barra de ferro ou estaca pontiaguda cravada no chão para nela se espetarem os inimigos quando atacam as linhas contrárias.

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Pareceristas do número 27 Ângela Diniz Costa (EPFCL – Belo Horizonte) Ângela Mucida (Newton Paiva / EPFCL – Belo Horizonte) Conrado Ramos (PUC – SP/ EPFCL – São Paulo) Daniela Sheinkman Chatelard ( UNB / EPFCL – Brasília) Kátia Botelho ( PUC – MG / EPFCL – Belo Horizonte) Luis Achilles Rodrigues Furtado (UFC – Sobral/ EPFCL) Marcus do Rio Teixeira (Editor Ágalma / Campo Psicanalítico – Salvador) Silvana Pessoa (EPFCL –São Paulo) Sonia Borges (EPFCL – Rio de Janeiro)



O desejo, desde seu aparecimento, sua origem, manifesta-se nesse intervalo, nessa abertura que separa a articulação pura e simples, liguageira da fala, disso que marca que o sujeito realiza aí algo de si mesmo que não tem alcance, sentido, senão em relação a sua emissão da fala, e é propriamente falando que a linguagem chama seu ser. É entre os avatares da demanda e naquilo em que esses avatares o tomaram, e por outro lado essa exigência de reconhecimento pelo Outro, que neste caso se pode chamar exigência de amor, em que se situa um horizonte de ser para o sujeito, tratando-se de saber se o sujeito, sim ou não, pode atingi-lo. É nesse intervalo, nessa abertura, que se situa uma experiência que é a do desejo, que é primeiramente apreendida como sendo aquela do desejo do Outro e no interior da qual o sujeito tem que situar seu próprio desejo. Seu próprio desejo como tal não pode se situar senão nesse espaço . JACQUES LACAN O SEMINÁRIO, LIVRO 6, O DESEJO E SUA INTERPRETAÇÃO ( 1958-59)

A causa do desejo e suas errâncias I

ISSN 1676-157X junho 2014 nO 28

“O que chamo ceder de seu desejo

JACQUES LACAN O SEMINÁRIO, LIVRO 7, A ÉTICA DA PSICANÁLISE ( 1959-60) A castração significa que é preciso que o gozo seja recusado, para que possa ser atingido na escala invertida da Lei do desejo JACQUES LACAN SUBVERSÃO DO SUJEITO E DIALÉTICA DO DESEJO NO INCONSCIENTE FREUDIANO (1960) Para todo ser falante, a causa do desejo é estritamente, quanto à estrutura, equivalente, se posso dizer, à sua dobradura, quer dizer, ao que chamei sua divisão de sujeito. É o que nos explica que, por tanto tempo, o sujeito tenha podido crer que o mundo sabia tanto quanto ele. O mundo é simétrico ao sujeito, o mundo disso que chamei da ultima vez de pensamento e o equivalente a imagem em espelho, do pensado. É por isso mesmo que nada houve senão fantasia quanto ao conhecimento, até o advento da ciência mais moderna .

s t y l u s

Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano ‒ Brasil

stylus R E V I S TA

DE PSICANÁLISE

ISSN 1676-157X

JACQUES LACAN O SEMINÁRIO, LIVRO 20, M AIS, AINDA ( 1972 ‒ 73)

epfcl brasil

28 junho 2014

A causa do desejo e suas errâncias I


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