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escola de psicanรกlise dos fรณruns do campo lacaniano - brasil

Stylus revista de psicanรกlise

Stylus Rio de Janeiro

nยบ34 p.1-184

agosto 2017


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Catalogação: Luciene Costa – Bibliotecária CRB/7 – 6044

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sumário 07 editorial: Joseane Garcia conferência (bilíngue) 11 Colette Soler: Nouvelle économie du narcissisme 27 Colette Soler: Nova economia do narcisismo (versão em português de Maria Vitoria Bittencourt) ensaio 45 Raul Albino Pacheco Filho: Os sujeitos tornaram-se perversos no capitalismo contemporâneo? trabalho crítico com os conceitos 59 Brendali Dias: De que maneira o discurso do analista possibilita fazer furo no discurso capitalista? 75 Maria Claudia Formigoni: Segregação, infância generalizada e alegria: questões para a psicanálise 83 Soraya Carvalho: Medicina baseada em evidências x psicanálise baseada na ex-sistência 93 Andréa Hortélio Fernandes: O ensino e a transmissão da psicanálise 103 Leonardo Pimentel: A força assertória dos valores sexuais 111 Maria Vitoria Bittencourt: Psicanálise x Religião: que triunfo? direção do tratamento 119 Silvana Pessoa: A palavra e o seu poder de cura: a palavra como fármaco 129 Sheila Abramovitch: Sexo, gênero. Sintoma e sinthoma espaço escola 139 Vera Iaconelli: AEscola 145 Beatriz Helena Martins de Almeida: As letras têm nomes: nome próprio e nomeação 155 Glaucia Nagem: NOMES. NOME. N.O.M.E. Considerações sobre o nome e a transmissão no seminário O sinthoma resenha 165 Bela Malvina Szajdenfisz: Desarrazoadas: devastação e êxtase, de Elisabeth da Rocha Miranda

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contents 07 editorial: Joseane Garcia conferência (Bilingual) 11 Colette Soler: Nouvelle économie du narcissisme 27 Colette Soler: New economics of narcissism (Portuguese version by Maria Vitoria Bittencourt) essays 45 Raul Albino Pacheco Filho: Have subjects become perverse in contemporary capitalism? critical paperwith the concepts 59 Brendali Dias: In what way does the analyst discourse make a hole in capitalist discourse? 75 Maria Claudia Formigoni: Segregation, generalized childhood and joy: questions for psychoanalysis 83 Soraya Carvalho: Evidence-based medicine x psychoanalysis based on exsistence 93 Andréa Hortélio Fernandes: The teaching and transmission of psychoanalysis 103 Leonardo Pimentel: The assertive force of sexual values 111 Maria Vitoria Bittencourt: Psychoanalysis x Religion: what triumph? the direction of the treatment 119 Silvana Pessoa: The word and its healing power: the word as a drug 129 Sheila Abramovitch: Sex, gender. Symptom, sinthome school context 139 Vera Iaconelli: The school 145 Beatriz Helena Martins de Almeida: Letters have names: proper name and nomination 155 Glaucia Nagem: NAMES. NAME. NAME. Considerations on name and transmission at seminar The sinthome resenha 165 Bela Malvina Szajdenfisz: Desarrazoadas: devastação e êxtase, by Elisabeth da Rocha Miranda

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Editorial Stylus é um dos dispositivos de transmissão da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano-Brasil. Tal como seu nome, todo autor desta revista, ao seu estilo, escreve com o propósito de transmitir a sua experiência da psicanálise no campo lacaniano. Lacan avisa que é apenas pelo estilo que se pode transmitir algo para aqueles que desejam ser analistas. Stylus 34 vem mais light, menor no seu tamanho, mas não na sua potência de transmissão. A atual Equipe de Publicação (2016-2018) pretende que a revista circule internacionalmente e faça laço com outras línguas, outros Fóruns. Portanto, a partir desta edição, Stylus contará com textos bilíngues, textos que serão disponibilizados na sua língua de origem e uma versão para o português, ou um texto em português que poderá ser disponibilizado em outra língua. Sendo assim, a conferência de Colette Soler, proferida no último Encontro Nacional da EPFCL-Brasil na cidade de São Paulo, foi traduzida para o português, mas será apresentada também em francês, o que permitirá ao leitor se confrontar com o texto original e tirar suas próprias consequências dessa leitura. Nesta conferência, intitulada A nova economia do narcisismo, não é o fenômeno atual do selfie a ser discutido, mas o lugar do narcisismo e da consistência imaginária do eu a partir da consideração lacaniana da equivalência das três consistências – Imaginário, Simbólico e Real. Uma nova economia do narcisismo é proposta, em que a dimensão do imaginário é ampliada com a inclusão do objeto a. Soler se pergunta o que isso mudaria na clínica psicanalítica, pergunta que, sem dúvida, formaliza um dos problemas cruciais para a psicanálise, tema desta edição. As questões cruciais para a psicanálise não são apenas aquelas que crucificam a psicanálise, tal como “O Édipo está ultrapassado?”, nem somente questões que se configuram na atualidade, tal como as novas sintomatologias. É claro que um analista deve se ocupar das questões de sua época, mas seu ato não pode depender dos acontecimentos sociais ou culturais, porque o ato do analista é um ato discursivo que justamente apresenta a possibilidade de fazer girar outros discursos, e não ser absorvido por eles. Nesta direção, Raul Albino Pacheco Filho abre a seção Ensaio questionando se Os sujeitos tornaram-se perversos no capitalismo contemporâneo. Para muitos autores, a perversão é usada para explicar os aspectos da sociedade capitalista contemporânea, mas Pacheco Filho não concorda e rebate essa ideia, apoiando-se na perversão de ordem estrutural do falante, na estrutura clínica e no regime de gozo fundado sobre a rejeição da castração. Sua aposta é que o discurso do analista pode fazer algum enfrentamento ao discurso capitalista e sobre efeitos dele nos laços sociais.

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Em seguida, na seção Trabalho crítico com os conceitos, Brendali Dias e Maria Claudia Formigoni também discutem sobre o discurso capitalista; a primeira, pensando de que maneira o discurso do analista pode furar esse discurso; e a segunda, apontando a segregação como uma consequência da aliança do discurso científico com o capitalismo. Ainda nesta seção, Soraya Carvalho faz um contraponto entre a medicina e a psicanálise, ressaltando que o dispositivo do passe é a evidência da psicanálise. Andréa Hortélio Fernandes traz o tema do ensino da psicanálise na universidade a partir de Freud, atualizando o debate com Lacan. Leonardo Pimentel, em seu rigoroso texto, propõe uma discussão sobre a ideia lacaniana de valor sexual, assentando seu argumento no conceito de semblante. E Maria Vitoria Bittencourt articula a relação entre psicanálise e religião, e seus efeitos para o conceito de sintoma como real, tentando dar uma resposta política à prática dos psicanalistas. Em Direção do Tratamento, dois problemas cruciais são tratados: as novas descobertas das neurociências, que levam Silvana Pessoa a fazer uma articulação com a palavra como fármaco, e a questão de gênero, que Sheila Abramovitch apresenta pelo viés da clínica. Na seção Espaço Escola, Vera Iaconelli, que já contou na Stylus anterior o seu passe, traz agora o seu testemunho sobre o pós-passe, a passagem do privado e protegido do dispositivo do passe ao escancarado da transmissão pública dentro do Fórum e da Escola. O texto de Iaconelli revela que a nomeação de analista por meio do passe é um dos problemas cruciais para psicanálise. Ainda nesta seção, Beatriz Almeida e Glaucia Nagem trabalham o nome próprio para discutir a nomeação do AE e do AME no âmbito da Escola. Na seção Resenha, Bela Malvina Szajdenfisz apresenta o original livro de Elisabeth da Rocha Miranda, Desarrazoadas, que faz um estudo avançado sobre o gozo feminino, lançando a hipótese de que o sujeito neurótico, ao ocupar a posição feminina, experimenta o gozo Outro e pode apresentar fenômenos próximos aos da psicose, uma loucura “sem-razão”. Enfim, artigos e argumentos que se debruçam em problemas cruciais para a psicanálise, mas que, nesse mesmo ato, afirmam o lugar do discurso analítico no mundo! Em nome da atual Equipe de Publicação de Stylus desejo a todos uma boa leitura! Joseane Garcia Rio, julho de 2017

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conferência (bilíngue)



Nouvelle économie du narcissisme Colette Soler Ne croyez pas que mon titre provienne du fait j’ai attrapé le virus de la nouveauté à tout prix qui caractérise notre époque, ce n’est pas du tout le cas, je n’aime pas vraiment cette épidémie. Ce que je suis en train de travailler sur ce thème provient de deux sources. D’abord le sentiment, que j’ai depuis longtemps, que ce que l’on a retenu de l’enseignement de Lacan qui provient essentiellement d’avant les années 1965, ne permet ni de penser ni de faire face aux évolutions de l’époque à tous les niveaux, celui des mœurs, des structures sociales, des instruments techno-scientifiques. Autrement dit, le sentiment que les instruments théoriques de la pratique des analystes aujourd’hui ne sont pas à l’heure de ce début de siècle. Mais pas non plus plus à l’heure de Lacan, car comment ignorer que lui-même a opéré des changements de perspectives considérables ? Ce changement est majeur concernant le narcissisme. Il l’a mis d’abord au compte de l’imaginaire, c’est notoire, mais d’un imaginaire subordonné à la chaîne du symbolique. Mais à partir de 1973, à longueur de leçons, il serine que les trois consistances – Imaginaire, Symbolique et Réel – sont équivalentes et non subordonnées l’une à l’autre, comme il l’avait d’abord affirmé. Eh bien, j’en conclus non seulement qu’il faut saisir les raisons de ce changement qui n’est pas arbitraire, mais surtout qu’il faut repenser, en tous cas mettre à jour, tout ce qu’il a développé sur la base de cette première thèse d’un Symbolique langagier qui ordonne, et donc subordonne, tout ce qui se présente dans l’imaginaire, au premier rang de quoi se placent et le narcissisme et la consistance imaginaire du Moi, en contraste avec la division propre au sujet du signifiant. Regardez les schémas L et R, le texte sur Schebert, et le graphe du désir, c’est limpide, ils déplient tous, visualisent et topologisent ce postulat de ce que j’avais appelé naguère, en suivant ces élaborations, « l’image serve » d’un symbolique souverain. De fait, après Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse, Lacan (1953/1966) a subordonné l’imaginaire du miroir au symbolique du langage, tout comme le signifié est subordonné au signifiant. Du coup, il a souligné que la présence de l’Autre, grand A, conditionne même le fait que l’enfant se reconnaisse et s’aime dans son image. Quand, avec le nœud borroméen, il se ravise, il récuse cette subordination quand il martèle que les trois consistances sont autonomes et équivalentes, comment ne pas se demander ce que ça change sur le plan clinique et analytique ? Voyez l’enjeu. Avant tout d’examen, on peut poser la question: comment, si l’imaginaire n’est pas subordonné, peut-on continuer à penser que le narcissisme du moi soit réductible par le symbolique, et qu’une analyse, en construisant le Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 34 p.11-26 agosto 2017

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sujet divisé du signifiant, réduise les prétentions narcissiques ? L’enjeu analytique est de taille, aussi bien que la conception que l’on se fait de l’homme, que Lacan écrira LOM, à partir de son hypothèse qui définit la structure – non la structure de langage, mais la structure comme « l’effet de langage »sur le vivant. Qu’est-ce que ça change, d’abord, à la conception de ce qui est au cœur de l’imaginaire et dont il est parti, à savoir la fonction du miroir, et ensuite au champ des significations qui appartiennent au registre de l’imaginaire ordonné par le symbolique comme le signifié est subordonné au signifiant ? Qu’est-ce qu’un imaginaire autonome, et quelle est la différence entre subordination et nouage éventuel dans le nœud borroméen?

L’enjeu du miroir L’enjeu pour Lacan et pour le sujet. Je pars du début, et de l’évidence : le miroir est premier. Pour marquer les bornes du parcours de Lacan, je souligne immédiatement que cette formule, je la construit sur le modèle d’une autre, qui dit dans le Conférence sur Joyce (LACAN, 1975a/2001), l’SKbeau est premier. Dans l’enseignement de Lacan non seulement le stade du miroir se place dans ses antécédents, mais, en outre, selon sa thèse, pour l’enfant, il est également premier. Il est même, j’y reviendrai, d’avant le sujet. Après la thèse sur Aimé et sa psychose, Le stade du miroir (LACAN, 1949/1966) est son texte majeur, jamais remis en cause, quoique complété et remanié – je laisse de côté le texte sur la famille (LACAN, 1938/2001) qui lui avait été demandé par Henri Vallon. Or, je remarque que dans ce texte du stade du miroir, manquent deux grandes références que l’on pourrait y attendre: ni Narcisse, celui du mythe, ni surtout Freud, ne sont évoqués. Qu’est-ce que ça indique ? Ça nous met, je pense, sur la piste de la question implicite qui sous-tend le texte de Lacan. Pas de lecture d’un texte théorique, qu’il soit de philosophie ou de psychanalyse, qui n’ait à extraire la question à laquelle le texte s’attaque. Pour introduire le narcissisme, de Freud (1914/1985), tout comme le mythe de Narcisse, d’ailleurs s’attaquaient à la question du placement de la libido érotique, ce que l’on nomme investissement des objets, ou relation d’objet, notion célèbre dans la psychanalyse à l’arrivée de Lacan, d’ailleurs. La question sous-jacente au stade du miroir est un peu décalée par rapport à cette problématique, et elle est plus large. Certes, dans ce stade, l’image devient le premier objet, on peut donc y voir un stade de la libido, mais cet amour de l’image est déterminée par autre chose, à savoir sa fonction identitaire: elle est constituante d’une première strate de l’identité. De là on peut dire ce qu’est la question fondamentale, implicite, à laquelle répond le stade du miroir : elle est de savoir comment l’enfant d’homme, qui est un petit organisme, un petit animal, devient un humain socialisé et socialisable. C’est une autre question que celle de Freud, qui présuppose l’humanité de l’enfant comme donnée. Mais c’était aussi la 12

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question des psychologues de l’époque, Wallon notamment, qui avait demandé à Lacan son article sur la famille, tous étaient préoccupés au fond par l’avènement à l’humain socialisé ou socialisable proprement dit. D’où l’intérêt passionné pour les enfants sauvages. Lacan est sur cet axe, qui est de son temps. L’identification est là reconnue comme l’instrument premier de la socialisation. Qu’est-ce qui fonde l’importance, voire la nécessité, de cette première identification chez le petit d’homme ? Il fallait bien que Lacan se pose cette question, puisque l’image y a une fonction autre que chez l’animal, qui ne touche apparemment ni à la survie ni à la reproduction. Dans sa thèse la plus générale et la plus connue, mais postérieure, Lacan répond : l’identification est nécessitée par l’effet manque à être du sujet que produit le langage. Mais pour le petit, qui n’use pas encore de lalangue – le langage c’est ça, l’usage de lalangue –, ça ne peut pas être le cas. Et Lacan de chercher une autre cause et de se référer à une cause réelle, à savoir aux effets de la prématuration de la naissance chez l’animal humain, avec le morcellement des fonctions vitales qui s’ensuit durant les premières années, et qu’il suppose produire un vécu « d’insuffisance », que l’identification au Un de l’image, « orthopédique de sa totalité » (LACAN, 1949/1966, p. 100), résoudrait, en anticipant la solution qui ne viendra en fait que par la maturation du système nerveux. À vrai dire, rien n’indique ce malaise chez le petit, c’est plutôt le contraire. Freud (1914/1985) est plus convainquant quand au tout début de Pour introduire le narcissisme, il pose que ce qui précède l’unité du moi, c’est non pas un douloureux sentiment d’insuffisance répercutant l’immaturité des fonctions adaptatives, mais un auto-érotisme que l’on peut dire heureux, satisfait, le plaisir prélevé sur le corps propre en dérivation des fonctions vitales, multiples certes, mais dont le morcellement n’est pas synonyme de malaise vital tant que la demande de l’Autre ne s’en mêle pas. La psychanalyse rencontre certes les fantasmes et angoisses du corps morcelé, mais chez des analysants adultes ou enfants dont l’unité du moi est déjà établie. On ne voit pas d’ailleurs comment il pourrait y avoir une conscience de morcellement sans une conscience d’unité, puisqu’elles sont relatives l’une à l’autre. Lacan d’ailleurs n’a pas manquéplus tard de railler sa construction et de se gausser de son appel à la prématuration, au moment où il avait mis en évidence le vrai principe du corps morcelé, qui n’est pas la prématuration, mais le signifiant. L’identité par identification, est évidemmentune identité aliénée faite d’un premier semblant. Lacan aura-t-il suffisamment insisté sur ce trait de l’aliénation à l’image et de l’aspiration correspondante à s’en libérer de cette aliénation, avec l’espoir que ce soit possible. Cet espoir qui a sévi dans la psychanalyse lacanienne dès le début, encouragée par Lacan construisant, son opposition entre la gonfle narcissique du moi et le sujet divisé du signifiant. Notez qu’avec cette identification scopique, le projeteur de Lacan est dirigé, curieusement, sur ce qu’il y a de plus étranger à l’inconscient, à savoir le registre de ce qui se voit. Il fallait bien que Lacan ait une autre question pressante pour qu’il

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en soit ainsi. Il précise que cette image est « le seuil du visible », qui ouvre donc le registre scopique, noyau de tout paraître. Là, il s’agit bien de voir, et il emprunte non à Freud, mais à l’éthologie qui a établi ce qui n’est nullement un mythe, mais une fonction vitale, bien réelle, de l’image visuellement perçue chez l’animal. Quelle est cette fonction chez l’animal? D’abord,une fonction de transmission entre les générations animales de rien moins que le savoir instinctuel. Ce savoir instinctuel opère sur deux plans. Il est nécessaire d’abord pourla survie – le poussin ne picore que s’il a vu la poule picorer –, ensuite il intervient dans ce qui assure la reproduction de l’espèce, qui ne va pas sans les rituels de la parade visuelle, et l’épinoche ne se reproduit pas sans une image de l’espèce, mais la sienne dans le miroir fait aussi bien que celle d’un congénère. Pour l’enfant, à la différence de l’animal, l’image ne sert ni la survie, qui est assurée par l’Autre du fait de la prématuration, ni le sexe, qui ne vient que plus tard. Sa fonction est d’identification, elle offre le noyau de l’amour de soi, lidido et identité fusionnant à cette occasion sur l’image du corps propre. Et ceci bien avant toute problématique sexuée. Elle précède diachroniquement non lalangue, qui est un bain d’origine, mais l’acquisition du langage. Il s’agit de l’enfant qui ne parle pas encore, Lacan le souligne. Rien dans tout ça qui évoque l’inconscient, c’est tout de même frappant ! C’est dans les suites de ce stade du miroir, dans un deuxième temps, que dans La causalité psychique, Lacan (1949/1966) repense l’inconscient freudien. Il le fait à partir de cette fonction de l’image, seuil du monde visible, préalablement avérée expérimentalement par l’observation, pas par la parole – et l’observation, c’est un autre point d’ancrage dans la pensée scientifique que celui de Freud, c’est l’ancrage expérimental – et il avance un inconscient-imago, fait d’imago originaires. Lesquelles celles des premières relations expérimentées dans le contexte des premières années, un inconscient fait des premières marques sociales donc, en outre un set d’images fixes, qui, par leur fixité, sont d’ailleurs déjà voisines du signifiant. Cette mise en suspens de la question de l’inconscient se conçoit, car dans cette phase du miroir, le sujet n’a pas encore fait « entrée dans le Réel » (LACAN, 1960b/1996, p. 655). Il s’agit d’une phase d’avant le sujet. L’expression d’avant le sujet peut surprendre, car nous sommes habitués à direavec Lacan que, avant même de naître, le petit d’homme est sujet pour l’Autre. Oui il «fait sujet dans le dire des parents» (LACAN, 1972/2001, p. 460), et c’est un dommage à priori dit Lacan dans L’étourdit. A priori bien sûr, puisque les effets dommageables de ce dire sont programmés d’avant même que le petit ne vienne à l’existence, et indépendamment de ce que seront ses caractéristiques propres, notamment quant au sexe, selon qu’il sera garçon ou fille. Qu’il naisse hermaphrodite pour voir, s’exclame Lacan ! Cependant, il faut faire la différence entre être sujet dans le dire de l’Autre et être sujet « dans le réel ». Je cite : « Il faut qu’au besoin […] s’ajoute la demande pour que le sujet […] fasse son entrée dans le réel, cependant que le besoin devient pulsion » (LACAN, 1960b/1996, p. 655). 14

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Il n’entre dans le réel, i.e. ne sort de l’Autre, qu’avec la demande articulée comme première forme d’un dynamisme libidinale induit non par l’image spéculaire du transitivisme, mais par le langage générateur à la fois du sujet et des pulsions. Le transitivisme, lui, est plus une confusion des images qu’un ordre entre les images, et c’est le langage évidemment qui va infuser rétroactivement dans l’image le statut du un différentiel propre au signifiant.

Un autre narcissisme Quelle est, ou quelles sont, le(s) fonction(s) pour le sujet de ce narcissisme de l’image tel qu’on l’aperçoit dans cette première élaboration? On m’a parlé d’une très jolie phrase d’Oscar Wilde, disant « l’amour de soi est un amour qui dure toute la vie » (WILDE, 1993, p. 239), plus fiable donc que les autres. Ça vaut la peine de s’y arrêter. La première que j’ai soulignée est une fonction identitaire. L’enfant se reconnaît dans cette image. Évidemment, toute fonction identitaire suppose du Un, ici c’est le un de la gestalt de l’image, précédant le un du signifiant. Alors, le narcissisme, si on doit donner une définition simple, c’est, dès le mythe, l’amour de soi-même, d’un soi-même identifié par l’unité de cette image, indépendamment de ses autres caractéristiques, et notamment de sa beauté, seule compte son unité gestaltique dans l’accent mis par Lacan. Comme tout amour, il comporte une dimension d’idéalisation, qui va vers ces variantes de l’idéalisation, que sont la surévaluation, la vanité, l’infatuation. Il « se croit », le petit narcisse. Ça frôle parfois la folie, le délire mégalomaniaque, c’est son côté dérisoire et à chaque fois surprenant quand on constate combien, par exemple, l’auto-évaluation satisfaite peut se cacher, même derrière ce qui se présente comme un manque de confiance en soi, spécialement chez les femmes. Je n’insiste pas plus, c’est un des ressorts tragicomiques de la vie sociale, mais je veux souligner autre chose. D’abord, que le narcissisme de cette phase, c’est de l’amour, pas du désir, pas de la pulsion, et l’introduction de ces deux dimensions dans l’expérience obligera Lacan à repenser ou à complexifier la notion. J’ai marqué la différence avec Freud qui, lui, dès le départ, place le narcissisme au niveau d’un avatar du désir sexuel et des pulsions. Mais Lacan l’a dit, quand on aime il n’est pas question de sexe. C’est donc au fond un soi-même encore très incomplet le narcissisme du miroir, de l’amour de son image, car il y a en chacun quelque chose qui se préfère à son image. J’ai dit que la question de Lacan venant de son travail sur les psychotiques, était celle de la socialisation de l’enfant. Or dès1949, Lacan fait de l’identification narcissique, paradoxalement par rapport à l’idée que l’on s’en fait, la matrice de la première fonction socialisante, on ne le souligne pas assez. Il a établit une continuité

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entre l’image du corps propre et l’image du semblable, c’est connu, et la fonction qu’il attribue à l’identification transférée au semblable, est explicite. Ecrits (LACAN, 1949/1966, p. 101): j’abrège les citations « le stade du miroir inaugure par l’identification à l’imago du semblable [...] la dialectique qui, dès lors lie le je à des situations socialement élaborées », et il évoque ensuite « une médiation par le désir de l’autre » sans majuscule, médiation constituante des objets du désir. C’était déjà prêter au transitivisme narcissique une fonction qui va bien au-delà de la contemplation de l’image, qui y inclut le désir même, en tout cas les appétences des parlants, qui en un mot fait paradoxalement du narcissisme un des principes du social. Je suis frappée cependant du contraste avec le mythe, qui ne dit pas tout à fait la même chose que la psychanalyse. En effet, dès les premiers pas du mythe d’où vient le terme, Narcisse se situe d’être, hors relation. On connaît le noyau du l’hystoire rapporté par Ovide. Narcisse (1992) au départ, c’est le chasseur solitaire, indifférent, totalement insensible aux charmes des nymphes que sa beauté captive, notamment à ceux de la nymphe Écho. On pourrait gloser sur son nom qui fait d’elle un reflet sonore et pas visuel. Narcisse donc est un autosuffisant, aujourd’hui on dirait a narcissistic personality, Freud dirait peut-être narcissisme primaire, jusqu’à ce que Némésis, la vengeance, ne lui fasse, pour son malheur, rencontrer son propre reflet dans l’eau, qui, dès lors, le captive et devient son unique objet. Le voilà donc entré enrelation avec l’image qui entame son autosuffisance, et qui est un objet mortellement inaccessible. Vous voyez l’inversion. Par contre, ce que le mythe implique, c’est que l’on n’a pas attendu la psychanalyse pour percevoir qu’il y a du mortifère dans l’image, mais surtout savoir que la position hétérosexuelle de la libido est sujette à des ratés. Puisqu’au fond avec la faute de Narcisse dans le mythe, c’est dans sa non relation à l’autre sexe, et pas au semblable qui, lui, n’est pas sexué. Le mythe, avec cette rencontre de l’image du corps propre, illustre au fond ce que je peux appeler une sorte de malédiction de l’image, mais, plus encore, une malédiction de la relation. Pour Narcisse cette image libidinalisée se substitue à la proie qui était jusque-là la cause, voire l’objet de son désir de chasseur, désir séparateur, qui le soustrayait de la libido hétérosexuelle, qui donc le mettait à l’abri de l’autre malédiction, celle sur le sexe. Le stade du miroir de Lacan relaye en partie cette dimension de malédiction de l’image, mais positive, par contre, sa fonction socialisante de relation au semblable. Ce décalage ne peut pas être sans rapport avec les menaces qui pesaient déjà sur les liens sociaux à l’époque de Lacan, bien autrement qu’à l’époque de la cité grecque. Aujourd’hui le narcissisme de l’image a pris une dimension inimaginable, et inimaginablement active, par rapport au passé même récent. On assiste à une véritable culture de l’image – pensez à la pratique des selfie (on a le miroir dans la poche), et toutes les techniques actuelles de fabrication des corps imaginaires, avec les normes en usage de la silhouette d’abord, avec l’industrie de la mode qui

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le recouvre, de la chirurgie esthétique qui le transforme, mais aussi de la nourriture qui lui donne son volume. Sans oublier les pratiques de marquage à visée distinctive, qui vont des tatouages jusqu’au body art. On n’en finirait pas d’énumérer, avec les nouveaux pouvoirs de manipulation de l’image dûs à la technique, la valeur nouvelle que le sujet d’aujourd’hui confère à leur image prise comme un indexe d’identité. Une identité qui se montre, qui s’offre à être vue, en marge donc de ce qui ne peut pas se voir du sujet. Les psychanalystes, qui ont affaire aux sujets en tant qu’ils parlent et pas en tant qu’ils se montrent, ont tendance à dénoncer ces nouveaux faits de civilisation. Pourtant, il ne faut pas oublier que, de toujours, les paradoxes de l’identité ont trouvé leur ressort, pour l’essentiel, dans la disjonction entre l’être réel, et le paraître, le paraître qui se dédouble entre le paraître de l’image, le paraître photographique en quelque sorte, et ce qui apparaît de non-photographique dans la signification par le biais symbolique, à savoir des idéaux que Freud dit du moi, et que Lacan dit de l’Autre majuscule, grand I de grand A, I(A) qui décident, entre autre chose, de la valeur des images. Voir le graphe du désir. Cette disjonction du réel et du paraître n’est pas une découverte de la psychanalyse, et pas non plus aliénation des individus dans le paraître. « Je est un autre », la formule est connue d’avant. Et n’est-ce pas un grand thème de l’analysant ? D’un côté, il s’interroge pour détecter comment il est vu, ce qu’on lui « renvoie » comme il dit, et de l’autre, il proteste, « je ne suis pas ce que vous croyez » – là encore, j’emprunte au discours commun à la petite histoire de celle que l’on prend pour une coquette et qui s’insurge, s’inscrivant donc en faux, mais qui, d’un autre côté, s’évertue pour coïncider avec l’image idéale qui, pourtant, lui donne le sentiment d’être dépossédée d’elle-même. Il y a donc pas seulement ce qui se voit, mais ce qui ne se voit pas, à savoir comment l’autre me voit, et j’ai mis l’accent sur le fait que Lacan utilise, en 1960, l’expression «narcissisme du désir» distinct du « narcissisme de l’ego », qui est, dit-il, son prototype. C’est dans Propos pour un congrès sur la sexualité féminine (LACAN, 1960a/1996). Qu’est-ce qu’un narcissisme du désir ? C’est un narcissisme qui, comme celui de l’ego, a une fonction identitaire, c’est pourquoi celui-ci en est le prototype, mais avec le désir on introduit le registre du sexe où justement manque ce qui ferait l’identité homme/femme. Ce narcissisme du désir, il l’introduit dans un paragraphesur les femmes, où il pose que ce qui détermine la frigidité, l’identification à « l’étalon phallique ». Ça consiste à ériger, au niveau du paraître, le signification du phallus, qui de sa nature est refoulé, et dont le refoulement a pour effet de projeter toutes les manifestations du sexe dans le paraître. Ce n’est pas le paraître de la simple image scopique, du selfie, c’est la paraître de la parade et de la mascarade, tout le jeu de la comédie des sexes, pour convoquer, dans le paraître, ce qui ne se voit pas. Ce qui y fait unité identifiante au final, ce n’est pas l’image-là, mais un signifiant, le phallus, signifiant du manque, et, avec

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lui, un imaginaire élargi jusqu’à inclure, outre la forme du corps, l’ensemble des significations du sexe dans le discours. Le miroir n’est plus alors simplement une surface physique propre à renvoyer un reflet visuel, c’est, comme je m’étais exprimée naguère, un « miroir parlant ». Celui que Lacan figure dans son schéma optique. « Miroir, dis-moi si je suis la plus belle?».Un miroir supposé savoir, donc. Supposé savoir, bien sûr, ce qui échappe à ma vue, mais, plus largement, ce qui échappe à toute vue possible et qui n’est pas du registre de la vision, et qui est de savoir comment l’Autre me regarde, autrement dit, que suis-je pour lui ? Là, s’ouvre un autre chapître des malheurs de Narcisse: celui de sa non suffisance.

Les malheurs de Narcisse Narcisse, il est loin d’être autosuffisant, il est à la merci du miroir, sous le double aspect que j’ai dit. Aux deux niveaux de l’image qui se montre, que du désir qui ne se voit pas, ne s’énonce pas, mais qui n’apparaît pas moins, car il s’entend dans la parole, et se perçoit dans l’action. Le miroir qu’est l’Autre présentifié par les autres, met paradoxalement le petit narcisse du stade du miroir à la merci de l’inconnu, car il subordonne la relation à l’image primaire, à la relation à l’Autre barré, dont Saint Augustin, dans sa fameuse phrase, avait déjà pris la dimension. Il faudrait donc ouvrir le chapître des malheurs de ce Narcisse qui, aliéné déjà à une image qui n’est pas lui, est en outre paradoxalement enchaîné à un regard hétérotopique – bien loin d’être autosuffisant. Ce regard peut être de partout et de nulle part, car que serait une image que nul ne verrait ou une signification qui ne serait pour personne ? Pas étonnant que l’on ait inventé un dieu qui voit tout, les images et leur au-delà de signification et de sens. Pas étonnant non plus que l’on rêve parfois, à l’inverse, du manteau d’invisibilité, fantasme sans doute propice au voyeur et autres ruses des perversités, mais propice d’abord à la soustraction qui libèrerait. Pas étonnant, enfin, que l’on se batte, que l’on s’évertue pour s’assurer de la possession d’une image qui ne dépend pas de moi, car sa valeur vient l’Autre, et dont je peux être dépossédé, et qui donc fait passion, entre autre, envie et jalousie. Pas étonnant, enfin, et plus essentiel, que l’on aspire à ce qui permettrait une séparation. Toute la question étant de savoir s’il y a un narcissisme de séparation possible, et quel serait son instrument si ce n’est ni l’image, ni le désir qui, eux, assujettissent à l’autre, sans majuscule, ou à l’Autre, avec majuscule.

Narcisse et autrui En effet à quelle relation au semblable préside le narcissisme dont j’ai souligné qu’il est la matrice première du social, à quel relation préside-t-il dans son aspiration à, disons « se faire beau »? Beau pour l’œil de quelque autre, sans majus-

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cule. C’est la tactique du « m’as-tu-vu » ? Cette formule, avec ces deux pronoms personnels, dont Lacan a tellement fait cas, inclut la nécessaire dimension relationnelle du narcissisme, et indique bien la dépendance de Narcisse. Le selfie et remarquable à cet égard. Le sujet se trouve assez intéressant pour se mirer dans un vrai miroir, mais il lui faut ensuite envoyer le selfie à quelques autres pour se mirer dans l’œil de ces autres. Sur l’île déserte le selfie ne serait pas d’un grand secours, on le pressent, et c’est pourquoi on ne dit pas « n’oubliez pas votre miroir », mais on demande « quel livre emporteriez vous sur l’île? », parce que le miroir de l’Autre est un miroir verbal, qui n’exige pas la présence du corps. Pas de Narcisse hors d’une relation de séduction en tous cas. Le personnage du séducteur ou de la séductrice n’a pas bonne presse, mais c’est parce qu’on confond avec l’infidèle, Don Juan, ou l’aguicheuse. Pourtant, c’est une forme de la demande la séduction, et l’analysant n’y échappe pas; loin de là, dans sa parole transférentielle, que fait-il, sinon « manœuvrer » le miroir de l’Autre pour paraître aimable et se trouver aimable du même coup. Quoi de mieux que l’expérience du transfert pour s’assurer que l’amour de soi se soutient de l’amour reçu de l’Autre ? Du coup, avec l’autre pan de la relation à autrui c’est… la compétition. « Miroir, dit-moi si je suis la plus belle », parce qu’il ne suffit pas d’être belle, mais la plus belle. Encore, n’est-ce pas le propre des femmes. À ce niveau, les passions primaires font rage, l’envie qui enrage de recevoir moins, encore Saint Augustin, la jalousie qui fulmine et se morfond d’être exclue d’un lien d’amour, réel ou supposé, la rivalité qui combat avec la volonté de l’emporter. Je trouve assez inutile d’en faire des gorges chaudes et de déplorer ces vilaines passions, la religion chrétienne y suffit, pas besoin de la psychanalyse pour ça. Par contre, on ne devrait pas oublier que la forme la plus éminente de la compétition, c’est l’émulation dans laquelle l’affirmation de soi est moins destructrice de l’autre que… productrice, puisqu’il en sort les œuvres de la civilisation, ces productions qui émerveillaient tellement Freud, qu’il a rebaptisé cette fécondité du terme de sublimation. Lacan, à la fin de son enseignement, en a rabattu sur cette sublimation, et d’un mot : l’escabeau.

Un autre narcissisme L’escabeau redéfinit le narcissisme, c’est l’instrument d’un narcissisme actif, combattant et producteur. C’est, donc, plus que de l’amour de soi, c’est l’affirmation de soi, éventuellement par le biais de l’offre à la civilisation. Dit plus à ras de l’expérience, l’escabeau, c’est ce avec quoi chacun tente de se faire valoir pour séduire l’œil de l’autre. Que l’image soit le premier véhicule de cette identification narcissique indique pour l’humain une prévalence du visible, dont la question est de savoir jusqu’où elle s’égale à la prévalence du sonore du langage. Dans la diachronique des dites phases du développement, nous nous sommes habitués

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à ordonner les registres pulsionnels, qui apparaissent en même temps que le sujet dans le réel, en commençant par l’oral et l’anal, qui correspondent aux deux objets de la demande de l’Autre, et ensuite le regard et la voix, objets du désir de l’Autre dont sa présence fait signe. Mais, au fond, voix et regard sont là d’origine, ils ne suivent pas diachroniquement le nourrissage et l’éducation des sphincters; l’enfant en est enveloppé dès sa naissance, car on lui parle, et on le regarde dès le premier moment de sa vie, le petit nouveau né. Cette prééminence du scopique avancée dans le miroir a été comme voilée par l’élargissement de la catégorie de l’imaginaire. A partir de L’instance de la lettre, Lacan (1957/1966) identifie l’imaginaire au signifié de la chaîne du langage, ce qui le fait dépendre fondamentalement d’autre chose que du visible – ça le fait dépendre du signifiantet, du coup, la fonction de l’image spéculaire a été éclipsée par le champ du signifié, par la signification et par le sens. Mais jusqu’où l’œil qui voit, le visible donc, dépend-t-il du signifiant ? L’image du miroir, qui est d’avant le sujet, est le seuil du monde visible, disait Lacan dans son texte de 1949. L’incidence propre du visible est restée comme une question en attente, avec la promotion, par Lacan, d’un imaginaire homologué au signifié de la chaîne signifiant. C’est cet imaginaire-là qui est subordonné à la chaîne du signifiant, tout comme la signification du phallus, signifiant du manque était posé dans cette première construction comme subordonné au signifiant du père. Mais la question se repose quand Lacan affirme que l’imaginaire n’est pas subordonné. Je vais y revenir. Le premier instrument de l’escabeau, c’est l’image visible, mais les instruments sont multiples. Outre l’image arrangée dont je parlais, et ce sont aussi toutes les performances d’exception dans tous les domaines de la culture, à commencer par l’agriculture, mais aussi la science, les jeux du sport, et bien sûr l’art. Démonstration éminente par Joyce, mais s’il est une exception ce n’est pas parce qu’il a réussi à se faire un escabeau, mais par la manière de le faire. Comme dans mon Lacan lecteur de Joyce (2015). L’escabeau est le propre du « parlêtre », et il « est premier » selon Lacan, je l’ai déjà évoqué. Il reprend le narcissisme du miroir, mais il y ajoute cet autre narcissisme de l’invention. L’escabeau, c’est le miroir repensé et complété avec le narcissisme du désir, voire de la jouissance. Si vous avez des doutes remettez sur le chantier les deux premières pages de la 2e Conférence Joyce le symptôme (1975a/2001) datée d’après le séminaire Le sinthome (1975-76/2005). Je dis chantier, car ça se lit non seulement mot à mot, mais phonème par phonème, et chacun de ces phonèmes étant écrits néologiquement, pour montrer que c’est la lettre graphique qui décide du sens à donner du son, comme le montre les diverses écritures du mot escabeau. Avec escabeau, même si vous ne parlez pas français, vous entendez trois sons, trois phonèmes qui dans nos langues n’ont pas de sens, et selon l’écriture leur sens change. Hessecabeau, le « h » est une lettre muette, ne s’entend pas, mais évoque le « h » de homme, tandis que le « esses »

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évoque le verbe « être ». Ou encore, « SKbeau », avec deux lettres alphabétiques, hors sens dans nos langues. Une seule équivoque graphique manque, notez-le, celle qui jouerait sur l’écriture du son « beau », qui pourrait s’écrire simplement de deux lettres alphabétiques. « b-a-ba », apprend-on à l’école primaire, « b-o-bo », hors sens. Cette omission indique que Lacan a voulu garder la référence au côté scopique que comporte l’écriture « b, e, a u », « beau », pour désigner la belle forme du miroir dont il était parti 20 ans avant, celle que l’homme adore, comme il le dit, et c’est explicite quand il écrit « hissecroibeau », où on entend résonner le narcissisme de l’image. Mais l’écriture « hissecroibeau » ajoute autre chose. Elle injecte le verbe se hisser – « oh hisse » dit-on en français, pour signifier l’effort qu’il faut pour hisser son image ou son nom de quelques degrés. Peut-on mieux dire la face laborieuse du narcissisme qui, loin de seulement se contempler, doit s’évertuer, ne pas se contenter du donné des images, mais se faire producteur en quelque chose. Et Lacan de l’expliciter : « LOM se lomellise à qui mieux mieux » (LACAN, 1975a/2001, p. 560); se lomelliser est néologique, n’existe pas en français, mais dit que l’homme, pour être homme, doit travailler à « se faire » homme. Pourquoi ça ? On ne sache pas en effet que dans le règne animal il y ait aucun équivalent que pour être tigre par exemple il faille se « tigrisser ». LOM doit se lomelliser parce qu’il vit de l’être (= vide l’être). Voilà, revenu, un thème des débuts, constante, c’est la parole qui introduit la question de l’être et qui du même mouvement le creuse d’un manque. C’est cet effet de la parole qui conditionne la nécessité de l’escabeau, le fait que la question de l’être soit posée pour le parlant. L’escabeau est donc le propre de l’homme, pas une caractéristique de seulement quelques-uns, et il est premier, commençant avec le miroir, mais allant au-delà, jusqu’à la promotion du nom. L’escabeau pour tous, mais quandmême, tous les escabeaux ne se valent pas du point de vue de la socialisation. Tout dépend des moyens et des produits. Y a-t-il des figures de l’anti-escabeau. Celui qui a renoncé, par principe ou par accident, celui qui se désiste, qui renonce à se lomelliser. À voir en chaque cas, mais souvent trompeur. La preuve par la mégalomanie mélancolique: le sujet crie très fort qu’il ne vaut rien, mais tout aussi fort que nul ne l’égale à cet égard. Il se lomellise de sa nullité inégalable, et ce n’est pas à confondre avec les affects du manque d’auto-estime, comme on dit. Le manque d’auto-estime n’a pas plus de pouvoir causal que la plupart des affects, c’est patent, spécialement chez les femmes, qui souvent attestent de cet affect d’insuffisance et du sentiment de manque, voire d’impuissance, et ceci, d’autant plus qu’elles sont plus engagées dans la compétition phallique – autre nom de la compétition narcissique, mais qui, cependant, on le constate, ne quittent pas pour autant la table du jeu, voire emporte la mise – quoiqu’en tremblant, elles nous l’assurent souvent. Là, on les croit, mais à demi, car ce n’est qu’une mi-vérité, puisque la Vérité ne peut que se mi-dire.

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Les trois narcissismes Pour ce qui est des moyens, j’ai évoqué, après le narcissisme de l’image, le narcissisme du désir, et puis il y a aussi celui de la jouissance. Ça en fait trois. Lacan a introduit le narcissisme du désir à propos de la relation entre les sexes, comme ce qui permet au fond de « se croire », homme ou femme, et ça passe par le mode de relation au phallus qui, évidemment, suppose la parole. On peut élargir sa définition. Le narcissisme du désir, ça consiste à s’identifier à ce qui vous pousse dans la vie, sans que vous sachiez bien en général ce qui vous pousse – c’est ça le désir, et sa forme la plus remarquable, c’est de « ne pas céder sur son désir », autrement dit, de tenir ferme sur votre être de désir, aussi opaque, voire déviant soit-il. Vous voyez l’ironie de l’histoire des analystes, car c’est justement ce que depuis le séminaire L’éthique de la psychanalyse (LACAN, 1959-60/1986), nous idéalisons comme le contraire du narcissisme. Or, Antigone, qui ne cède pas, c’est le narcissisme du sujet, autre façon de dire celui du désir, et, de fait, pour ce qui est de se faire un escabeau dans la mémoire des hommes, elle y a réussi, au prix de sacrifier tout ce qui relève des agréments de la vie. Et après le séminaire sur l’éthique, nous avons idéalisé avec Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse (LACAN, 1964/1990), « la différence absolue » de fin d’analyse. Mais la différence absolue, c’est l’absolu de l’affirmation de soi, et sanctionnée par le désir de l’autre, l’analyste. Bref, que l’on ait pu continuer à dire après tout ça – ou à laisser entendre – qu’une analyse, d’une façon ou d’une autre, devait promouvoir un au-delà de l’aspiration à faire valoir son être propre, définition élargie que je retiens pour le narcissisme, faire valoir son être propre, relève d’une dénégation collective impressionnante, signe sans doute du refus de savoir que Lacan a diagnostiqué chez les analystes (LACAN, 1975b/2001). Quand Lacan continuant d’avancer a évoqué « l’identification au symptôme », et là, il s’agit de jouissance, ajoutant, en outre, que c’est plutôt court, quand il a parlé des unarités désassorties, là il y a eu, je ne dirais pas un réveil, mais au moins une inquiétude chez les analystes spécifiquement quant à l’ordre social, et aux relations à autrui. En effet, ce pas introduit une radicalisation. Jusque-là, on pouvait méconnaître la menace que le narcissisme fait peser sur le lien social, carle désir étant désir de l’autre, le narcissisme du désir n’était pas forcément si asocial que cela. Avec le narcissisme de la jouissance, qui consiste à ne pas céder sur l’affirmation de sa modalité de jouissance et à s’y identifier – autrement dit, ne pas céder sur la préférence que chacun porte à la sienne propre –, eh bien, les choses changent, car la jouissance, contrairement au désir, n’est pas déterminée par l’Autre, le lieu du langage, mais par les accidents de la conjonction entre lalangue et le corps. J’ai personnellement déjà beaucoup insisté sur ce point,

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alors question: quid du pouvoir analytique de la parole de vérité toujours mi-dite sur les fixions de jouissance ? Quid des sujets produits par l’analyse venue à sa fin ? Ne pourraient-ils pas être ces sujets identifiés à leur jouissance des sur-narcisses, cette fois aussi autosuffisants que Narcisse avant qu’il n’ait rencontré son image ? Et quid de leur lien social, puisque la jouissance n’est pas liante ? Ce serait oublier que l’autosuffisance est impossible à qui parle comme tel, or même le narcissisme de l’escabeau vient de la parole. Le résultat, c’est qu’il n’y a pas moyen de se lomelliser tout seul. C’est ce que j’ai commencé à dire à Medellin1. La jouissance relève du «Y a de l’Un», certes, mais dès lors que l’escabeau est premier et inévitable, il lui faut une cour comme au roi soleil lui-même. Pas moyen de se faire un escabeau sans l’autre. Le «m’as-tu-vu» donne à voir, c’est le paradigme du lien inter-narcissique, mais il y a d’autres façons; Joyce, comme on sait, est plutôt un « m’as-tu-lu »? Le comment est, donc, à étudier en chaque cas, pour les petites vies minuscules qui ont aussi leur escabeau, autant que pour les plus prééminentes. Tout ceci pour dire que la question des liens sociaux, au-delà du déclin des discours hiérarchisants, est ouverte. C’est le premier point. Cette révision suppose que l’on cesse d’opposer pulsions et narcissisme, comme on le fait généralement au nom de ceci que les pulsions quêtent quelque chose du côté de l’autre, sans majuscule, tandis que le narcissisme ne sortirait pas de son périmètre imaginaire. L’escabeau est plus que la construction d’image de soi, ce n’est pas simplement la statue érigée que Lacan évoquait au début, il n’est pas donné d’avance, il faut se le faire. Comment le « se faire » de la pulsion (puisque c’est la formule par laquelle Lacan définit la pulsion) contribue-t-il à l’érection de l’escabeau est évidemment une question. Si, comme le dit Lacan, LOM, il fait payer une dîme à l’autre, c’est bien qu’il sort du périmètre de son image scopique, et les pulsions, si vous m’avez suivie, sont à inclure dans ce narcissisme élargi, tout autant qu’elles le sont d’ailleurs dans l’amour en général et dans toutes relation d’objet. « En toi plus que toi » disait la fin du Séminaire XI (LACAN, 1964/1990), eh bien, avec le narcissisme de l’escabeau, il faut ajouter « en moi, plus que moi ». Autrement dit, c’est un narcissisme qui doit compter avec l’objet a, l’invisible comme je l’appelle, qui manque à toute jouissance. L’image est première, mais pour le parlant elle est chasuble, enveloppe de l’objet soustrait, et ça s’applique à l’image de soi aussi bien qu’à celle de l’autre. Reste la question de l’autonomie de l’imaginaire avancée avec le nœud borroméen, elle engage celle de l’autonomie du visible, puisque l’image scopique en est 1

Référence au IXe Rendez-vous de l’Internationale des Forums et Ve Rencontre de l’École de

Psychanalyse des Forums du Champ Lacanien, qui a eu lieu du 14 au 17 juillet 2016 à Medellín (Colombie).

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le noyau. Qu’est-ce qui conduit Lacan à récuser la subordination de l’imaginaire au symbolique ? C’est sa redéfinition du symbolique, disons de l’inconscient, elle est explicite, « contrairement à ce que j’ai dit », l’inconscient n’est pas une chaîne signifiant. Qu’est-il ? Une série, pas une chaîne, mais une suite numérique, une suite de signifiantsqui sont autant d’unités numériques, chacune solidaire de l’objet a qui manque. Ce changement de définition tient à ce que Lacan, s’étant interrogé au-delà de la chaîne de la parole sur la relation du sujet au signifiant (sujet entré dans le réel), a produit la formule toujours répétée, le signifiant est « ce qui représente le sujet » pour un autre signifiant. Eh bien, l’inconscient ce sont les signifiantsqui ne représentent pas le sujet, qui viennent de lalangue et qui affectent son corps. Ce sont les élaboration de D’un Autre à l’autre (LACAN, 1968-69/2006) et des textes périphériques, où il formule l’inconscient est un « savoir sans sujet ». Je ne rappelle succinctement ce virage que pour indiquer qu’il fonde le changement d’affirmation sur l’ancienne idée d’une subordination de l’imagináire à la chaîne, et qu’il repose donc la question du poids de l’image en elle-même. J’ai laissé la question en suspens, mais je crois qu’elle était là pour Lacan. J’en veux pour preuve les développements de 1964 sur l’œil et le regard dans le Séminaire XI (LACAN, 1964/1990) à l’occasion de la mort de Merleau Ponty. Il l’élabore de façon nouvelle, et quand il note que nous sommes des êtres regardés, que le monde est omni voyeur, ce n’est pas pour affirmer une paranoïa généralisée, mais bien une prévalence spécifique du registre du visible, et ouvrir la question de sa relation à la division du sujet. Mais au-delà même du sémináire Le sinthome, Lacan (1975-76/2005), curieusement, repose la question: pourquoi l’homme est-il si infatué à son image ? Je dis curieusement, car on pourrait penser qu’il avait la réponse. Il en a donné deux, je l’ai dit, celle de la prématuration, puis celle de la division du sujet, de l’objet qui manque à la complétude et que l’image recouvre. Qu’il repose la question me laisse à penser que ces réponses-là ne lui paraissaient pas encore suffisantes. Ce point importe, car il a un enjeu : celui de l’évaluation des variantes de l’escabeau.

Références bibliographiques FREUD, S. (1914) Introducción del narcisismo. In: Obras Completas de Sigmund Freud. Buenos Aires: Amorrortu, 1985, v. 14. LACAN, J. (1938) Les complexes familiaux dans la formation de l’individu. Essai d’analyse d’une fonction en psychologie. In: Autres écrits. Paris: Seuil, 2001. . (1946) Propos sur la causalité psychique. In: Ecrits. Paris: Seuil, 1966. . (1949) Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Je. In: Ecrits. Paris: Seuil, 1966.

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. (1953) Fonction et champ de la parole et du langage enpsychanalyse. In: Ecrits. Paris: Seuil, 1966. . (1957) L’instance de la lettre dans l’inconscient ou la raison depuis Freud. In: Ecrits. Paris: Seuil, 1966. . (1958) La direction de la cure et les principes de son pouvoir. In: Ecrits. Paris: Seuil, 1966. . (1959-60) Le séminaire, livre 7: l’éthique de la psychanalyse. Paris: Seuil, 1986. . (1960a) Propos directifs pour un congrès sur la sexualité féminine. Ecrits. Paris: Seuil, 1966. . (1960b) Remarque sur le rapport de Daniel Lagache: “psychanalyse et structure de la personnalité”. In: Ecrits. Paris: Seuil, 1966. . (1964) Le séminaire, livre XI: les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse. Paris: Seuil, 1990. . (1968-69) Le séminaire, livre XVI: d’un Autre à l’autre. Paris: Seuil, 2006. . (1972) L’étourdit. In: Autres écrits. Paris: Seuil, 2001. . (1975a) Joyce, le Symptôme. In: Autres écrits. Paris: Seuil, 2001. . (1975b) Introduction à l’édition allemande d’un premier volume des Écrits. In: Autres écrits. Paris: Seuil, 2001. . (1975-76) Le séminaire, livre XXIII: le sinthome. Paris: Seuil, 2005. OVÍDIO. Les Métamorphoses. Paris: Gallimard, 1992. SOLER, C. Lacan, lecteur de Joyce. Paris: PUF, 2015. WILDE, O. Collected works of Oscar Wilde. London: Routledge, 1993.

Nouvelle économie du narcissisme New economics of narcissism résumé Ce texte indique un renouvellement du concept de narcissisme des changements introduits par Lacan, les trottoirs dans l’avènement de la théorie du nœud borroméen. Pour cela, l’auteur montre comment l’enregistrement imaginaire a été examiné par Lacan à sa subordination à la symbolique. Reprise du stade du miroir, qui souligne les conséquences de cette nouvelle interprétation du concept de narcissisme, établissant trois narcissismes: l’image, le désir et le plaisir. Ainsi, l’auteur propose une nouvelle économie du narcissisme à travers le mythe de Narcisse, relectures d’une étude sur l’escabeau, où la dimension de l’imagination est élargie avec l’inclusion de l’objet. Cette conception a un impact considérable sur la question des liens sociaux aujourd’hui.

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mots-clĂŠs: Narcissisme; stade du miroir; imaginaire; escabeau.

abstract This text indicates a renewal of the concept of narcissism as of the changes introduced by Lacan, based on the advent of the Borromean node theory. For this, the author demonstrates how the imaginary record was reviewed by Lacan regarding its subordination to the symbolic. Resuming the Mirror Stage, she points out the consequences of this new reading on the concept of narcissism, establishing three narcissisms: the ones of image, desire and joy. Thus, the author proposes a new economy of narcissism through the re-reading of the myth of Narcissus, of a study on the stool, in which the imaginary dimension is enlarged with the inclusion of the object a. This conception has considerable effects on the issue of current social ties.

keywords: Narcissism; mirror stage; imaginary; escabeau.

Recebido: 30/05/2017

Aprovado: 01/07/2017

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Nova economia do narcisismo Colette Soler Não acreditem que meu título venha do fato de que peguei o vírus da novidade a qualquer preço, o que caracteriza nossa época. Não é absolutamente o caso, pois não gosto realmente dessa epidemia. Estou trabalhando sobre esse tema a partir de duas fontes. Primeiramente, faz muito tempo que tenho impressão de que aquilo que retivemos do ensino de Lacan, essencialmente antes dos anos 1965, não permite pensar nem responder às evoluções da época em todos os níveis – dos costumes, das estruturas sociais, dos instrumentos técnico-científicos. Dito de outra maneira, acho que os instrumentos teóricos da prática dos analistas não são atuais neste início de século. Tampouco são atuais quanto a Lacan, pois como ignorar que ele mesmo operou mudanças de perspectivas consideráveis? Essa mudança é considerável no que concerne o narcisismo. Primeiro, colocou-o por conta do imaginário, isso é notório, mas um imaginário subordinado à cadeia do simbólico. Porém, a partir de 1973, ao longo de suas lições, ele repetiu continuamente que as três consistências – Imaginário, Simbólico e Real – são equivalentes e não subordinadas umas às outras, como antes havia afirmado.Pois bem, concluí que não somente é preciso apreender as razões dessas mudanças, que não são arbitrárias, mas, sobretudo, é preciso repensar, em todo caso tornar atual, tudo aquilo que desenvolveu sobre a base dessa primeira tese de um simbólico relativo à linguagem que ordena e, portanto, subordina tudo o que se apresenta no imaginário, em primeira posição o lugar do narcisismo e da consistência imaginária do eu, em contraste com a divisão própria do sujeito do significante.Observem os esquemas L e R, o texto sobre Schreber e o grafo do desejo, são límpidos: todos eles desdobram, visualizam e topologizam esse postulado que, seguindo essas elaborações, chamei anteriormente de “imagem serva” de um simbólico soberano. De fato, após Função e Campo da Fala e da Linguagem, Lacan (1953/1998) subordinou o imaginário do espelho ao simbólico da linguagem, assim como o significado é subordinado ao significante. Em consequência disso, sublinhou que a presença do Outro, grande Outro, condiciona mesmo o fato de a criança se reconhecer e se amar na sua imagem. Quando, com o nó borromeano, ele reconsidera e recusa essa subordinação, quando martela que as três consistências são autônomas e equivalentes, como não se perguntar o que isso muda no plano clínico e analítico? Vejam o que está em jogo. Antes de qualquer exame, podemos colocar a questão: se o imaginário não é subordinado ao simbólico, como poderemos continuar a pensar que o narcisismo do eu seja redutível pelo simbólico e que uma análise,

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ao construir o sujeito dividido do significante, reduzirá as pretensões narcísicas? O desafio analítico é muito importante tanto quanto a concepção que se faz do homem, que Lacan vai escrever UOM, a partir de sua hipótese que define a estrutura, não a estrutura da linguagem, mas a estrutura dita “efeito da linguagem” sobre o ser vivo. O que isso muda? Primeiramente, na concepção daquilo que está no cerne do imaginário, do qual Lacan partiu, ou seja, a função do espelho, e, em seguida, no campo das significações que pertencem ao registro do imaginário ordenado pelo simbólico, como o significado é subordinado ao significante. O que é um imaginário autônomo e qual a diferença entre subordinação e enodamento eventual no nó borromeano?

O que está no jogo do espelho O que está em jogo para Lacan e para o sujeito? Parto do início e da evidência: o espelho é primeiro. Para marcar as balizas do percurso de Lacan, sublinho imediatamente que construí essa fórmula a partir do modelo de uma outra que se encontra na “Conferência sobre Joyce” (LACAN, 1975a/2003): o SKbelo1 é primeiro. No ensino de Lacan, não somente o estádio do espelho se situa em seus antecedentes, mas, além disso, segundo sua tese, ele é igualmente primeiro para a criança. Ele é mesmo anterior ao sujeito. Vou retomar isso. Depois da tese sobre Aimé e sua psicose, O estádio do espelho (LACAN, 1949/1998) é seu texto principal, jamais colocado em causa, embora completado e remanejado – deixo de lado o texto sobre a família (LACAN, 1938/2003), um pedido de Henri Wallon. Ora, chamo a atenção que, no texto do estádio do espelho faltam duas grandes referências que poderíamos esperar, pois nem Narciso, o mito, e, sobretudo, nem Freud são evocados. O que será que isso indica? Penso que isso nos coloca na pista de uma questão implícita que subentende o texto de Lacan. Não há leitura de um texto teórico, que seja de filosofia ou de psicanálise, de que não se possa extrair a questão que o texto procura resolver. Aliás, Sobre o narcisismo: uma introdução, de Freud (1914/1985), assim como o mito de Narciso, vêm resolver a questão do posicionamento da libido erótica, o que chamamos de investimento dos objetos ou relação de objeto, noção célebre da psicanálise no início de Lacan. A questão subjacente ao estádio do espelho é um tanto defasada em relação a essa problemática, sendo mais ampla. Certamente neste estádio, a imagem se torna o primeiro objeto; então podemos ver aí um estádio da libido, porém esse amor da imagem é determinado por outra coisa, a saber, a função identitária: ela é constituinte de um primeiro estrato da identidade. Daí podemos dizer o que

1 No original, SKbeau, jogo de palavra com o termo escabeau, que é traduzido por escabelo em português. Cf. Joyce, o Sintoma. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 560. 28

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é a questão fundamental, implícita, à qual responde o estádio do espelho: saber como a criança, que é um pequeno organismo, um pequeno animal, se torna um humano socializado e socializável. É outra questão distinta daquela de Freud, que pressupõe a humanidade da criança como dada. Mas era também a questão dos psicólogos da época, especialmente Wallon, que havia pedido a Lacan seu artigo sobre a família, pois, no fundo, todos estavam preocupados com o advento do humano socializado ou socializável propriamente dito. Daí o interesse apaixonado pelas crianças selvagens. Lacan estava nesse eixo que era do seu tempo. Aqui a identificação é reconhecida como o instrumento primeiro da socialização. O que será que funda a importância, e até mesmo a necessidade dessa primeira identificação no pequeno homem? Era preciso que Lacan colocasse essa questão, visto que a imagem tem aí uma função distinta no animal, que aparentemente não toca nem à sobrevivência nem à reprodução. Em sua tese mais geral e a mais conhecida, embora posterior, Lacan responde: a identificação é necessitada pelo efeito da falta-a-ser do sujeito que a linguagem produz. Mas para a criança que ainda não usa lalíngua – a linguagem é isso, o uso da lalíngua – não pode ser o caso. Lacan vai procurar outra causa e se referir a uma causa real, ou seja, aos efeitos da prematuração do nascimento no animal humano, com o despedaçamento das funções vitais que ocorre nos primeiros anos, e que ele supõe produzir uma experiência de “insuficiência” que a identificação ao Um da imagem, “ortopédica em sua totalidade” (LACAN, 1949/1998, p. 100), resolveria, antecipando a solução que só virá de fato pela maturação do sistema nervoso. Para dizer a verdade, nada indica esse mal-estar na criança, é o contrário. Freud (1914/1985) é mais convincente quando, no início do texto Sobre o narcisismo: uma introdução, coloca que o que precede a unidade do eu não é um doloroso sentimento de insuficiência repercutindo a imaturidade das funções adaptativas, mas um autoerotismo que pode se dizer feliz, satisfeito, o prazer obtido no próprio corpo, em derivação das funções vitais, certamente múltiplas, mas cujo despedaçamento não é sinônimo de mal-estar vital, desde que a demanda do Outro não venha se misturar. A psicanálise encontra certamente as fantasias e as angústias do corpo despedaçado, porém em analisantes, adultos ou crianças, cuja unidade do eu já está estabelecida. Aliás, não vemos como poderia ter aí uma consciência do despedaçamento sem uma consciência da unidade, pois são relativas uma à outra. Mais tarde, Lacan não deixou de zombar de sua construção e de brincar de seu apelo à prematuração, no momento em que colocou em evidência que o verdadeiro princípio do corpo despedaçado não é a prematuração, mas o significante. A identidade pela identificação evidentemente é uma identidade alienada, feita de um primeiro semblante. Lacan insistiu suficientemente sobre esse traço da alienação à imagem e da aspiração correspondente de se liberar dessa alienação, com a esperança de que isso fosse possível. Essa esperança surtiu efeitos devasta-

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dores na psicanálise lacaniana em seu início, encorajada por Lacan ao construir a oposição entre a enfatuação narcísica do eu e o sujeito dividido do significante. Com essa identificação escópica, notem que o projetor de Lacan é dirigido, curiosamente, sobre o que há de mais estrangeiro ao inconsciente, ou seja, o registro daquilo que se vê. Era preciso que Lacan tivesse uma outra questão insistente para ser assim. Ele especifica que essa imagem é o “limiar do visível” que abre assim o registro escópico, núcleo de todo parecer. Aqui se trata de ver, e Lacan não toma de Freud, mas da etologia que estabeleceu o que não é absolutamente um mito, mas uma função vital, bem real, da imagem visualmente percebida no animal. Qual será sua função no animal? Primeiramente, uma função de transmissão entre as gerações animais de nada menos que o saber instintual. Esse saber instintual opera em dois planos. Ele é necessário primeiramente para a sobrevivência – o pinto só cisca quando vê a galinha ciscar – em seguida intervém naquilo que assegura a reprodução da espécie, que vai junto com os rituais da parada visual; e o peixinho de rio não se reproduz sem a imagem da espécie, porém a sua imagem no espelho funciona tão bem quanto a de um congênere. Para a criança, diferentemente do animal, a imagem não serve nem à sobrevivência, que é assegurada pelo Outro devido à prematuração;nem ao sexo, que só vem mais tarde. Sua função é de identificação, fornecendo o núcleo do amor de si, da libido e da identidade fusionando nessa ocasião com a imagem do próprio corpo. E isso muito antes de toda problemática sexuada. Ela precede diacronicamente não a lalíngua, que é um banho de origem, mas a aquisição da linguagem. Trata-se da criança que ainda não fala, Lacan sublinha esse ponto. Nada disso evoca o inconsciente, o que é surpreendente! É somente na sequência desse estádio do espelho, num segundo tempo, em A causalidade psíquica, que Lacan (1946/1998) repensa o inconsciente freudiano. Faz isso a partir da função da imagem, limiar do mundo visível, previamente verificada de modo experimental pela observação, não pela fala – e a observação é um outro ponto de amarração no pensamento científico, distinto de Freud, a amarração experimental – e avança um inconsciente-imago, feito de imago originárias, aquelas das primeiras relações experimentadas no contexto dos primeiros anos. Portanto,um inconsciente feito das primeiras marcas sociais, além de um set de imagens fixas que, em razão de sua fixidez, já são vizinhas do significante. Essa colocação em suspenso da questão do inconsciente se concebe, pois nessa fase do espelho, o sujeito ainda não fez sua “entrada no real” (LACAN, 1960b/1998, p. 661). Trata-se de uma fase anterior ao sujeito. A expressão anterior ao sujeito pode surpreender, pois estamos habituados a dizer, com Lacan, que antes mesmo de nascer a criança é sujeito para o Outro. Sim, “fazer dele sujeito no dizer de seus pais” (LACAN, 1972/2003, p. 460), diz Lacan em O aturdito, e é um prejuízo a priori. Certamente a priori visto que os efeitos prejudiciais desse dizer são pro-

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gramados antes mesmo de a criança existir e independentemente do que serão suas próprias características, especialmente quanto ao sexo, quer seja menino ou menina. Que nasça hermafrodita para ver, exclama Lacan! No entanto, é preciso fazer a diferença entre ser sujeito do dizer de Outro e ser sujeito “no real”. Cito: “É preciso que à necessidade [...] venha somar-se a demanda, para que o sujeito [...] faça sua entrada no real, enquanto a necessidade transforma-se em pulsão [...]” (LACAN, 1960b/1998, p. 661). Ele só entra no real, ou seja, sai do Outro, com a demanda articulada como primeira forma de um dinamismo libidinal induzido não pela imagem especular do transitivismo, mas pela linguagem, geradora ao mesmo tempo do sujeito e das pulsões. O transitivismo é mais uma confusão de imagens do que uma ordem entre as imagens, e é a linguagem evidentemente que vai infundir retroativamente na imagem o estatuto de um diferencial próprio ao significante.

Um outro narcisismo Quais serão as funções para o sujeito desse narcisismo da imagem tal como percebemos nessa primeira elaboração? Falaram-me de uma frase muito bonita de Oscar Wilde: “o amor de si é um amor que dura toda a vida” (WILDE, 1993, p. 239), portanto mais confiável que os outros. Vale a pena pensar nisso. A primeira função que sublinhei é uma função identitária. A criança se reconhece nessa imagem. Evidentemente, toda função identitária supõe o Um, aqui é o Um da Gestalt da imagem, precedendo o Um do significante. Então, o narcisismo, se devemos lhe dar uma definição simples a partir do mito, é o amor de si mesmo, um si mesmo identificado pela unidade dessa imagem, independentemente de suas outras características, e especialmente de sua beleza, só contando sua unidade gestáltica, como acentuou Lacan. Como todo amor comporta uma dimensão de idealização, indo até suas variantes de idealização: a superestimação, a vaidade, a enfatuação. Ele “se acha”, o pequeno narciso. Às vezes isso beira a loucura; o delírio megalomaníaco é seu lado derrisório, e cada vez é surpreendente quando se constata, por exemplo, o quanto a autoavaliação satisfeita pode até se esconder atrás daquilo que se apresenta como uma falta de confiança em si, especialmente nas mulheres. Não vou insistir mais, é um dos motores tragicômicos da vida social, mas quero sublinhar outra coisa. Primeiramente, o narcisismo dessa fase é do amor, não do desejo, nem da pulsão; e a introdução dessas duas dimensões na experiência vai obrigar Lacan a repensar ou a tornar complexa essa noção. Marquei a diferença com Freud que, desde o início, situa o narcisismo no nível de um avatar do desejo sexual e das pulsões. Mas Lacan disse que, quando se ama, não tem nada a ver com o sexo. Então, no fundo, o narcisismo do espelho, o amor de sua imagem, é em si mesmo ainda muito incompleto, pois em cada um existe algo que se prefere à sua imagem. Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 34 p.27-42 agosto 2017

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Disse que a questão de Lacan, advinda de seu trabalho sobre os psicóticos, era a socialização da criança. Ora, desde 1949, Lacan faz da identificação narcísica, paradoxalmente em relação à ideia que fazemos disso, a matriz da primeira função socializante, não o sublinhamos bastante sobre isso. Ele estabeleceu uma continuidade entre a imagem do corpo próprio e a imagem do semelhante;isso é conhecido, e a função que atribui à identificação transferida ao semelhante é explícita. Vejam nos Escritos (LACAN, 1949/1998, p. 101) – vou resumir as citações: “o estádio do espelho inaugura, pela identificação com a imago do semelhante [...] a dialética que desde então liga o eu a situações socialmente elaboradas”, e evoca em seguida “uma mediatização pelo desejo do outro”, sem maiúscula, mediatização constituinte dos objetos do desejo. Já estava atribuindo ao transitivismo narcísico uma função que vai além da contemplação da imagem, e que inclui aí o desejo mesmo, em todo caso os apetites dos falantes que, numa só palavra, faz paradoxalmente do narcisismo um dos princípios do social. Entretanto, fico espantada com o contraste com o mito que não diz absolutamente a mesma coisa do que a psicanálise. Com efeito, desde os primeiros passos do mito, origem do termo, Narciso se situa fora da relação. Conhecemos o núcleo da hystória relatada por Ovídio. No início, Narciso (1992) é um caçador solitário, indiferente, totalmente insensível aos charmes das ninfas que sua beleza cativa, especialmente à ninfa Eco. Poderíamos comentar sobre seu nome que faz dela um reflexo sonoro e não visual. Então, Narciso é autossuficiente, hoje diríamos a narcissistic personality, e Freud diria talvez narcisismo primário, até que Nêmesis, a vingança, o faça encontrar, para sua infelicidade, seu próprio reflexo na água, sendo desde logo cativado por ela, tornando-se seu único objeto. Ele entra, então, em relação com a imagem que dá um golpe em sua autossuficiência, um objeto mortalmente inacessível. Vejam a inversão. Por outro lado, o mito implica que não esperamos pela psicanálise para perceber o que há de mortífero na imagem, mas, sobretudo, saber que a posição heterossexual da libido é sujeita a fracassos. Pois, no fundo, o erro de Narciso no mito é sua não relação com o outro sexo e não com o semelhante, que não é sexuado. O mito, com esse encontro da imagem do corpo próprio, ilustra o que posso chamar de uma espécie de maldição da imagem, ou, mais ainda, uma maldição da relação. Para Narciso, essa imagem libidinalizada se substitui à presa que até então era sua causa, até mesmo o objeto de seu desejo de caçador, desejo separador que o subtraía da libido heterossexual, o colocava ao abrigo de outra maldição, aquela do sexo. O estádio do espelho de Lacan substitui em parte essa dimensão da maldição da imagem, mas de outro lado positiva sua função socializante de relação ao semelhante. Essa defasagem tem relação com as ameaças que pesavam nos laços sociais na época de Lacan, bem diferente da época da pólis grega. Hoje, o narcisismo da imagem tomou uma dimensão inimaginável, e inimaginavelmente ativa em relação ao passado recente. Assistimos a uma verdadeira cultura 32

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da imagem, pensem na prática do selfie (temos o espelho no bolso) e todas as técnicas atuais de fabricação dos corpos imaginários, primeiramente com as normas em uso da silhueta, com a indústria da moda que o recobre, a cirurgia estética que o transforma, mas também a nutrição que lhe dá volume. Sem esquecer das práticas de marcação do corpo de objetivo distintivo, que vão das tatuagens até o body art. Não se pode parar de enumerar, com os novos poderes de manipulação da imagem graças à técnica, o valor novo que o sujeito hoje confere à sua imagem tomada como um índice de identidade. Uma identidade que se mostra, que se oferece a ser vista, à margem do que não se pode ver do sujeito. Os psicanalistas que lidam com sujeitos que falam e não se mostram têm tendência a denunciar esses novos fatos da civilização. No entanto, é preciso não esquecer que, desde sempre, os paradoxos da identidade encontraram seu motor essencial na disjunção entre o ser real e o parecer, o parecer que se desdobra entre parecer da imagem, o parecer fotográfico de certa maneira, e o que aparece de não fotográfico na significação pela via simbólica, ou seja, os ideais do eu de Freud e do Outro maiúsculo de Lacan, grande I do Grande A –I(A) – que decidem, entre outras coisas, do valor das imagens. Vejam o grafo do desejo. Essa disjunção do real e do parecer não é uma descoberta da psicanálise, nem tampouco alienação dos indivíduos no parecer. “Eu é um outro”, fórmula conhecida anteriormente. E não será um grande tema do analisante? De um lado, se interroga para detectar como é visto, o que “acham dele”, e de outro lado protesta “não sou o que você pensa – aqui tomo emprestado do discurso comum a pequena história daquela que acham que é uma coquete e que se insurge, desmentindo isso, mas de outro lado se esforça em coincidir com a imagem ideal que, no entanto, lhe dá o sentimento de ser despossuída de si mesma. Assim, não há somente o que se vê, mas aquilo que não se vê, ou seja, como o outro me vê. Sublinhei o fato de que Lacan utiliza, em 1960, a expressão “narcisismo do desejo” (LACAN, 1960a/1998, p. 742), distinto do “narcisismo do ego”, que é seu protótipo, diz Lacan em Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade feminina. O que é “narcisismo do desejo”? É um narcisismo que, como aquele do ego, tem uma função identitária. Eis porque esse último é o protótipo. Mas, com o desejo introduzimos o registro do sexo onde justamente falta o que faria a identidade homem-mulher. Lacan introduz esse narcisismo do desejo num parágrafo sobre as mulheres, onde coloca que, o que determina a frigidez é a identificação ao “padrão fálico”. Isso consiste em erigir ao nível do parecer o significado do falo, que de natureza é recalcado, e cujo recalque tem como efeito de projetar todas as manifestações do sexo no parecer. Não é o parecer da simples imagem escópica, do selfie, é o parecer da ostentação e da mascarada, todo o jogo da comédia dos sexos, para convocar no parecer aquilo que não se vê. O que faz aqui unidade identificadora no final não é a imagem, mas um significante, o falo, significante da falta e com ele um imaginário ampliado até incluir, além da forma do corpo, o conjunto das significações do sexo no discurso. Logo, o espelho não é mais Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 34 p.27-42 agosto 2017

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simplesmente uma superfície física própria a devolver um reflexo visual, como me expressei faz tempo, é um “ espelho falante”. Aquele que Lacan figura em seu esquema ótico. “Espelho, diga-me se sou a mais bela?” Portanto, é um espelho suposto saber. Certamente suposto saber o que escapa à minha vista, e mais amplamente, o que escapa a toda vista possível e que não pertence ao registro da visão, mas de saber como o Outro me olha, ou seja, “o que sou para ele?”. Aqui se abre um outro capítulo da infelicidade de Narciso: aquela de sua não suficiência.

As infelicidades de Narciso Narciso está longe de ser autossuficiente, está à mercê do espelho, sob o duplo aspecto que já disse. Nos dois níveis, o da imagem que se mostra e do desejo que não se vê, não se enuncia, mas que aparece bem, pois ele se escuta na fala e se percebe na ação. O espelho é o Outro que se torna presente pelos outros, e paradoxalmente coloca o pequeno Narciso do estádio do espelho à mercê do desconhecido, pois subordina a relação à imagem primária, à relação ao Outro barrado, que Santo Agostinho, na sua famosa frase, já tinha tomado a dimensão. Então, seria preciso abrir o capítulo das infelicidades de Narciso que, desde já alienado a uma imagem que não é ele, além disso é encadeado a um olhar heterotópico – bem longe de ser autossuficiente. Esse olhar pode estar em todo lugar e em nenhum lugar, pois o que seria uma imagem que ninguém veria ou uma significação que não seria de ninguém? Não é surpreendente que um Deus foi inventado que vê tudo, as imagens e para além de sua significação e de seu sentido. Não é surpreendente também que, às vezes, se sonhe com o contrário, o manto de invisibilidade, fantasia, sem dúvida, propícia ao voyeur e outras astúcias da perversidade, mas propícia primeiramente à subtração que o liberaria. Não é surpreendente, enfim, que se batalhe, que se esforce tanto para se assegurar da possessão de uma imagem que não depende de mim, pois seu valor vem do Outro e do qual posso ser despossuído, e que, no entanto, produz a paixão, entre outras a inveja e o ciúme. Por fim, não é surpreendente, e mais essencial, que se aspire ao que permitiria uma separação. Toda a questão é saber se há um narcisismo de separação possível e qual seria seu instrumento se não é a imagem, nem o desejo, pois estes se sujeitam ao outro, sem maiúscula, ou ao Outro, com maiúscula.

Narciso e os outros Com efeito, qual seria a relação ao semelhante que o narcisismo preside, do qual sublinhei que é a matéria-prima do social? Que relação preside em sua aspiração a, digamos “se fazer belo?” Belo para o olho de qualquer outro, sem maiúscula. É a tática do “você me viu?” Essa fórmula com dois pronomes pessoais, que Lacan apreciava tanto, inclui a necessária dimensão relacional do narcisismo e indica bem 34

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a dependência de Narciso. Neste aspecto, o selfie é notável. O sujeito se acha bem interessante para se mirar num verdadeiro espelho, mas em seguida é preciso enviar o selfie a alguns outros para se mirar no olho desses outros. Numa ilha deserta, o selfie não teria nenhuma utilidade, podemos pressentir, e é por isso que não dizemos “não esqueça do espelho”, mas se pergunta “que livro levaria para a ilha?”, porque o espelho do Outro é um espelho verbal que não exige a presença do corpo. Não há Narciso fora de uma relação de sedução em todo caso. O personagem do sedutor ou da sedutora não tem boa reputação, mas é porque confundimos com o infiel, Don Juan, ou a provocante. Apesar disso, a sedução é uma forma de demanda, e o analisante não escapa disso, muito pelo contrário, na sua fala transferencial só faz “manobrar” o espelho do Outro para parecer amável e, por conseguinte, se achar amável. O que será melhor do que a experiência da transferência para se assegurar que o amor de si se sustenta do amor recebido do Outro? Por conseguinte, o outro lado da relação aos outros é a competição. “Espelho diga-me se sou a mais bela”, pois não basta ser bela, mas a mais bela. Isso é próprio das mulheres. Nesse nível as paixões primárias se inflamam, a inveja enfurece de receber menos, ainda Santo Agostinho, o ciúme fulmina e lamenta de ser excluído de um laço de amor, real ou suposto, a rivalidade combate com a vontade de vencer. Acho bastante inútil ridicularizar e deplorar essas paixões malvadas, basta a religião cristã, para isso não precisa da psicanálise. Por outro lado, não deveríamos esquecer que a forma mais eminente de competição é a emulação na qual a afirmação de si é menos destruidora do outro que produtora, pois podem brotar obras da civilização, essas produções que tanto encantavam Freud rebatizando essa fecundidade do termo de sublimação. Lacan, no final de seu ensino, acabou aceitando essa sublimação e com uma palavra: escabelo.

Um outro narcisismo O escabelo redefine o narcisismo, é o instrumento de um narcisismo ativo, combatente e produtor; portanto, é mais do que o amor de si, é a afirmação de si, eventualmente pela via da oferta à civilização. No nível da experiência, o escabelo é aquilo com que cada um tenta se fazer valer para seduzir o olho do outro. Que a imagem seja o primeiro veículo dessa identificação narcísica indica uma prevalência do visível para o humano, a questão é saber até onde ela se iguala à prevalência do sonoro da linguagem. Na diacronia das ditas fases do desenvolvimento nos habituamos a ordenar os registros pulsionais, que aparecem ao mesmo tempo em que o sujeito no real, começando pelo oral e o anal, que correspondem aos dois objetos da demanda do Outro; e em seguida o olhar e a voz, objetos do desejo do Outro, cuja presença faz signo. Mas, no fundo, voz e olhar estão desde a origem; eles não seguem diacronicamente a nutrição e a educação dos esfíncteres.

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A criança é envolvida neles desde o nascimento, pois falamos com ele, olhamos para ele desde o primeiro momento da vida do recém-nascido. Essa preeminência do escópico avançada no espelho foi como velada pelo alargamento da categoria do imaginário. A partir de A instância da letra, Lacan (1957/1998) identifica o imaginário ao significado da cadeia da linguagem, o que faz com que dependa fundamentalmente de outra coisa do que do visível, isso faz com que dependa do significante e, por consequência, a função da imagem especular foi eclipsada pelo campo do significado, pela significação e pelo sentido. Mas, até onde o olho que vê, portanto, o visível, depende do significante? A imagem do espelho, que se situa antes do sujeito, é o limiar do mundo visível, dizia Lacan em seu texto de 1949. A incidência própria do visível ficou como uma questão na expectativa com a promoção por Lacan de um imaginário homologado ao significado da cadeia significante. É esse imaginário que é subordinado à cadeia do significante, assim como a significação do falo, significante da falta, era colocado nessa primeira construção como subordinado ao significante do pai. Mas a questão é recolocada quando Lacan afirma que o imaginário não é subordinado. Vou voltar a isso. O primeiro instrumento do escabelo é a imagem visível, mas os instrumentos são múltiplos. Além da imagem ajeitada da qual falei, são também todas as performances de exceção em todos os domínios da cultura, a começar pela agricultura, mas também a ciência, os jogos esportivos e certamente a arte. Demonstração eminente de Joyce, mas se ele é uma exceção, não é porque conseguiu se fazer um escabelo, mas pela maneira como o fez, como estabeleci em meu livro Lacan, leitor de Joyce (2015). O escabelo é próprio do falasser e ele “é primeiro”, segundo Lacan, já falei sobre isso. Ele retoma o narcisismo do espelho, mas acrescenta esse outro narcisismo da invenção. O escabelo é o espelho repensado e completado com o narcisismo do desejo, ou mesmo do gozo. Se vocês têm dúvidas, retomem o trabalho sobre as duas primeiras páginas da 2ª conferência Joyce, o Sintoma (1975a/2003), a partir do seminário O sinthoma (197576/2007). Digo retomar o trabalho, pois isso se lê não somente palavra por palavra, mas fonema por fonema, e cada um desses fonemas sendo escritos neologicamente, mostra que é a letra gráfica que decide do sentido a dar ao som, como se mostra nas diversas escritas da palavra escabelo. Com escabelo, mesmo se não falam francês, vocês escutam três sons, três fonemas que não têm sentido em nossas línguas e, conforme a escrita, o sentido muda. Em Hescabelo (Hessecabeau), a letra h é muda, não se escuta, porém, evoca o h de homem, enquanto os “s” evocam o verbo ser. Ou ainda, SKbelo (SKbeau) com duas letras alfabéticas, fora do sentido em nossas línguas. Falta só um equívoco gráfico, vejam isso, aquele que jogaria sobre a escrita do som “beau”2 que poderia se escrever simplesmente com duas letras alfabéticas

2 Em francês beau (belo) tem o som /Bo/. 36

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– b-a-bá, se aprende na escola – b, o, bo, fora do sentido. Essa omissão indica que Lacan quis guardar a referência ao lado escópico que comporta a escrita b,e,a,u, beau (b,e,l,o, belo) para designar a bela forma do espelho de onde partiu vinte anos antes, aquela que o homem adora, como ele diz, e é explícito quando escreve Helessecrêbelo (hissecroibeau), em que escutamos ressoar o narcisismo da imagem. Mas a escrita Helessecrêbelo (hissecroibeau) acrescenta outra coisa. Ela injeta o verbo hisser –“oh hisse”, se diz em francês para significar o esforço que é preciso para elevar sua imagem ou seu nome de alguns degraus. Não se poderia dizer melhor a face laboriosa do narcisismo que, longe de somente se contemplar, deve se esforçar e não se contentar com as imagens, mas se fazer produtor em alguma coisa. Lacan explicita: “UOM seumaniza à larga” (LACAN, 1975a/2003, p. 560).3 Seumanizar (se lomelliser) é neológico, não existe em francês, mas diz que o homem, para ser homem, deve trabalhar a “se fazer” homem. Por que isso? Com efeito, não se sabe se no reino animal existe algum equivalente que, para ser tigre, por exemplo, precise se “tigrilizar”. UOM deve se seumanizar (se lomelliser) porque ele vive do ser (= esvazia o ser).4 Eis um tema do início que retorna, constante: é a fala que introduz a questão do ser e que, no mesmo movimento, cava nele uma falta. É este efeito da fala que condiciona a necessidade do escabelo, o fato de colocar a questão do ser para o falante. O escabelo, portanto, é próprio do homem, e não uma característica somente de alguns; e ele é primeiro, começando com o espelho, mas indo para além até a promoção do nome. O escabelo é para todos, mas, apesar disso, todos os escabelos não valem a mesma coisa do ponto de vista da socialização. Tudo depende dos meios e dos produtos. Existem figuras do antiescabelo. Aquele que renunciou, por princípio ou por acidente; aquele que desistiu, que renunciou a se sehumanizar (se homelliser). É preciso ver em cada caso, o que muitas vezes pode ser enganador. A prova disso temos na megalomania melancólica: o sujeito grita bem forte que não vale nada, mas também bem forte que ninguém se iguala a ele nesse aspecto. Ele seumaniza (se lomellise) de sua nulidade inigualável que não pode se confundir com os afetos da falta de autoestima, como se diz. A falta de autoestima não tem mais poder causal do que a maioria dos afetos, isso é patente; especialmente nas mulheres, que muitas vezes atestam desse afeto de insuficiência e do sentimento de falta, ou mesmo de impotência, ainda mais quando são engajadas na competição fálica, outro nome da competição narcísica. Mas, enquanto isso, constatamos que não deixam a mesa do jogo, e mesmo ganham a aposta – embora tremendo, nos asseguram disso muitas vezes. Aqui, acreditamos nelas pela metade, pois é uma meia-verdade já que a Verdade só pode se meio-dizer. 3 Em francês : “LOM se lomellise à qui mieux mieux” 4 Aqui, trata-se de um jogo de palavras que têm o mesmo som: vit de l’être (vive o ser)e vide l’être (esvazia o ser). (N. do T.) Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 34 p.27-42 agosto 2017

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Os três narcisismos No que diz respeito aos meios que evoquei, depois do narcisismo da imagem e o narcisismo do desejo, existe também o do gozo. Isso faz três. Lacan introduziu o narcisismo do desejo a propósito da relação entre os sexos, como aquilo que permite, no fundo, de “se crer” homem ou mulher, e isso passa pelo modo de relação ao falo que evidentemente supõe a fala. Podemos ampliar sua definição. O narcisismo do desejo consiste em se identificar aquilo que empurra você na vida, geralmente sem saber o que empurra, é isso o desejo. Sua forma mais notável é “não ceder sobre seu desejo”, ou seja, ficar firme sobre seu ser de desejo, também opaco, mesmo que seja desviante. Vejam a ironia da história dos analistas, pois é justamente o que idealizamos como o contrário do narcisismo depois do seminário A ética da psicanálise (LACAN, 1959-60/2008). Ora, Antígona, que não cede, é o narcisismo do sujeito, outra maneira de dizer aquele do desejo, e de fato, no que concerne de se fazer um escabelo na memória dos homens, ela conseguiu, pagando o preço de sacrificar todos os atrativos da vida. E depois desse seminário, com Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (LACAN, 1964/1985), idealizamos “a diferença absoluta” do fim de análise. Mas a diferença absoluta é o absoluto da afirmação de si e sancionada pelo desejo do outro, o analista. Em resumo, depois disso tudo, continuar a dizer ou a deixar entender que uma análise, de uma maneira ou de outra, devia promover um para além da aspiração a fazer valer seu próprio ser, definição ampliada que retenho para o narcisismo, fazer valer seu próprio ser, é consequência de uma denegação coletiva impressionante, signo, sem dúvida, da recusa de saber, o que Lacan diagnosticou nos analistas (LACAN, 1975b/2003). Quando Lacan, continuando seu avanço, evocou a “identificação ao sintoma”, em que se trata de gozo, além de acrescentar que é um tanto sucinto, quando falou das unaridades disparatadas, houve, eu não diria um despertar, mas ao menos uma inquietude nos analistas especificamente quanto à ordem social e às relações aos outros. Com efeito, esse passo introduz uma radicalização. Até aqui podíamos desconhecer a ameaça que o narcisismo faz pesar sobre o laço social, pois o desejo, sendo desejo do outro, o narcisismo do desejo não era tão associal assim. Com o narcisismo do gozo, que consiste em não ceder sobre a afirmação de sua modalidade de gozo e a se identificar, ou seja, não ceder sobre a preferência que cada um tem à sua própria; pois bem, as coisas mudam, pois o gozo, contrariamente ao desejo, não é determinado pelo Outro, o lugar da linguagem, mas pelos acidentes da conjunção entre lalíngua e o corpo. Eu, pessoalmente, já insisti bastante sobre esse ponto. Então, vem a questão: o que pensar do poder analítico da fala de verdade, sempre meia-dita sobre as fixões de gozo? O

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que pensar dos sujeitos produzidos pela análise que chegou ao fim? Não poderiam esses sujeitos identificados ao seu gozo ser uns sobre-narcisos, dessa vez tão autossuficientes quanto Narciso antes de encontrar sua imagem? E o que pensar do laço social, pois o gozo não enlaça? Seria esquecer que a autossuficiência é impossível a quem fala como tal; ora, mesmo o narcisismo do escabelo vem da fala. O resultado é que não há meio de se seumanizar (se lomelliser) sozinho. Foi o que comecei a falar em Medellín. Certamente o gozo depende do “Existe o UM”, mas desde que o escabelo é primeiro e inevitável, precisa de uma corte como a do rei Sol. Não há meio de se fazer um escabelo sem o outro. O “você me viu?” se dá a ver, é o paradigma do laço internarcísico, mas existem outros modos, como sabemos, pois Joyce é mais “você me leu?”. Então, esses modos têm que ser estudados em cada caso, para as pequenas vidas minúsculas que também têm seu escabelo, assim como para os mais preeminentes. Tudo isso para dizer que a questão dos laços sociais, para além do declínio dos discursos que hierarquizam, está aberta. Esse é o primeiro ponto. Essa revisão supõe que cessemos de opor pulsões e narcisismo, como geralmente se faz, considerando que as pulsões buscam algo do lado do outro, sem maiúscula, enquanto o narcisismo não sairia de seu perímetro imaginário. O escabelo é mais do que a construção da imagem de si, não é simplesmente a estátua erigida que Lacan evocava no seu início; ele não é dado antecipadamente, é preciso se fazê-lo. Como o “se fazer” da pulsão, fórmula de Lacan para a definição da pulsão, poderia contribuir à ereção do escabelo, é evidentemente uma questão. Se, como disse Lacan, LOM faz pagar um dízimo ao outro, é porque sai do perímetro de sua imagem escópica, e, se vocês me seguiram, as pulsões devem ser incluídas nesse narcisismo ampliado, tanto quanto elas são no amor em geral e em todas as relações de objeto. “Em ti mais do que ti”, dizia no fim do Seminário 11 (LACAN, 1964/1985). Pois bem, com o narcisismo do escabelo é preciso acrescentar “em mim mais do que mim”. Dito de outra maneira, é um narcisismo que deve contar com o objeto a, o invisível como eu o chamo, que falta a todo gozo. A imagem é primeira, mas para o falante ela é casulo, envelope do objeto subtraído, e isso se aplica à imagem de si tanto quanto à do outro. Fica a questão da autonomia do imaginário. Avançando com o nó borromeano, ela engaja a autonomia do visível, pois a imagem escópica é seu núcleo. O que será que faz Lacan recusar a subordinação do imaginário ao simbólico? É sua redefinição do simbólico, digamos do inconsciente, que é explícita “contrariamente ao que disse”, o inconsciente não é uma cadeia significante. Ele é uma série, e não uma cadeia, mas uma série numérica, uma série de significantes que são igualmente unidades numéricas, cada uma solidária do objeto a que falta. Essa mudança da definição se deve a Lacan que, se interrogando para além da cadeia

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da fala sobre a relação do sujeito ao significante (sujeito que entrou no real), produziu a fórmula sempre repetida, o significante é o que “representa o sujeito para um outro significante”. Pois bem, o inconsciente são os significantes que não representam o sujeito, que vêm da lalíngua e que afetam seu corpo. São elaborações de De um Outro ao outro (LACAN, 1968-69/2008) e de textos periféricos em que formula o inconsciente é um “saber sem sujeito”. Estou lembrando sucintamente essa guinada para indicar que ele funda a mudança de afirmação sobre a ideia antiga de uma subordinação do imaginário à cadeia e que recoloca a questão do peso da imagem nela mesma. Deixei a questão em suspenso, mas acho que já estava presente para Lacan. Tenho como prova os desenvolvimentos de 1964 sobre o olho e o olhar no Seminário 11 (LACAN, 1964/1985) na ocasião da morte de Merleau Ponty. Ele a elabora de uma maneira nova, e quando nota que somos todos seres olhados, que o mundo é oni-voyeur (omni voyeur),5 não é para afirmar uma paranoia generalizada, mas uma prevalência específica do registro do visível e abrir a questão de sua relação com a divisão do sujeito. Mas além do seminário O sinthoma, curiosamente Lacan (1975-76/2007) retoma a questão: porque o homem é tão enfatuado de sua imagem? Digo curiosamente, pois poderíamos pensar que tinha a resposta. Ele deu duas, como disse, a da prematuração, e depois a da divisão do sujeito, do objeto que falta à completude que a imagem recobre. Que retome a questão me leva a pensar que essas respostas não lhe pareciam suficientes. Esse ponto importa, pois algo está em jogo: aquele da avaliação das variantes do escabelo. Tradução: Maria Vitoria Bittencourt

Referências bibliográficas FREUD, S. (1914) Introducción del narcisismo. In: Obras Completas de Sigmund Freud. Buenos Aires: Amorrortu, 1985. v. 14. LACAN, J. (1938) Os complexos familiares na formação do indivíduo. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. . (1946) Formulações sobre a causalidade psíquica. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. . (1949) O estádio do espelho como formador da função do eu. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. . (1953) Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. 5 Oni é um prefixo latino que significa todo. 40

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. (1957) A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. . (1958) A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. . (1959-60) O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. . (1960a) Diretrizes para um Congresso sobre a sexualidade feminina. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. . (1960b) Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: Psicanálise e estrutura da personalidade. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. . (1964) O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. . (1968-69) O seminário, livro 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. . (1972) O aturdito. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. . (1975a) Joyce, o Sintoma. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. . (1975b) Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. . (1975-76) O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. OVÍDIO. Les métamorphoses. Paris: Gallimard, 1992. SOLER, C. Lacan, lecteur de Joyce. Paris: PUF, 2015. WILDE, O. Collected works of Oscar Wilde. London: Routledge, 1993.

Nova economia do narcisismo New economics of narcissism resumo Este texto indica uma renovação do conceito de narcisismo a partir das mudanças introduzidas por Lacan, calcadas no advento da teoria do nó borromeano. Para isso, a autora demonstra como o registro imaginário foi revisto por Lacan quanto à sua subordinação ao simbólico. Retomando o Estádio do Espelho, aponta quais as consequências dessa nova leitura sobre o conceito de narcisismo, estabelecendo três narcisismos: da imagem, do desejo e do gozo. Assim, a autora propõe uma nova economia do narcisismo por meio da releitura do mito de Narciso, de um estudo sobre o escabelo, em que a dimensão do imaginário é ampliada com a inclusão do objeto a. Essa concepção tem efeitos consideráveis para a questão dos laços sociais em atualidade.

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palavras-chave: Narcisismo; estรกdio do espelho; imaginรกrio; escabelo.

abstract This text indicates a renewal of the concept of narcissism as of the changes introduced by Lacan, based on the advent of the Borromean node theory. For this, the author demonstrates how the imaginary record was reviewed by Lacan regarding its subordination to the symbolic. Resuming the Mirror Stage, she points out the consequences of this new reading on the concept of narcissism, establishing three narcissisms: the ones of image, desire and joy. Thus, the author proposes a new economy of narcissism through the re-reading of the myth of Narcissus, of a study on the stool, in which the imaginary dimension is enlarged with the inclusion of the object a. This conception has considerable effects on the issue of current social ties.

keywords: Narcissism; mirror stage; imaginary; escabeau.

Recebido: 30/05/2017

Aprovado: 01/07/2017

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ensaio



Os sujeitos tornaram-se perversos no capitalismo contemporâneo?1 Raul Albino Pacheco Filho Adjetivada de várias maneiras, a noção de perversão tornou-se recurso comum para muitos autores explanarem teoricamente sobre aspectos da sociedade capitalista contemporânea. Perversão ordinária, perversão generalizada, perversão comum, perversão narcisista, perversão de transferência, perversão bipolar, perversão do laço social, montagem perversa e sociabilidade perversa são alguns dos termos na literatura psicanalítica, das ciências sociais, ou da mídia, articulados a temas como: ausência de limites, desaparecimento do sujeito do inconsciente, queda do simbólico, banalização das relações sexuais, declínio da função paterna, final das ideologias, eliminação do Outro na economia psíquica, escárnio pelos valores, crise das figuras de autoridade, debilidade do corpo social, empobrecimento subjetivo. Seria teórica e conceitualmente legítimo supor que se trata de uma migração maciça de sujeitos para o que o pensamento freudiano-lacaniano formalizou como estrutura clínica perversa? A estrutura perversa seria um sintoma da sociedade capitalista? Pretendo fundamentar uma resposta inequivocamente negativa a essas questões, apoiando-me na distinção entre as seguintes noções: •

• •

a perversão estrutural do falante, de seu gozo e pulsão: “toda sexualidade humana é perversa, se acompanhamos bem o que Freud diz” (LACAN, 1975-76/2007, p. 149); a estrutura clínica perversa, como uma “escolha” do sujeito para lidar com a falta (castração) do Outro; um regime de gozo (estrutura de um discurso) não fundado sobre a renúncia ao gozo, mas sim sobre a rejeição da castração: “a mais-valia é a causa do desejo do qual uma economia faz seu princípio: o da produção insaciável da falta-de-gozar [manque-à-jouir]” (LACAN, 1970/2003, p. 434).

1 Uma versão condensada deste trabalho foi apresentada com o título “Há disseminação da perversão no capitalismo contemporâneo?” no XVII Encontro Nacional da Escola de Psicanálise do Campo Lacaniano EPFCL – Brasil 2016 (“Problemas cruciais para a Psicanálise na atualidade”), realizado em novembro de 2016, em São Paulo (SP).

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A perversão estrutural do falante Sobre a perversão estrutural do falante, lembro que, em “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, Freud (1905/1974) traz a concepção da perversão polimorfa da sexualidade infantil, já que esta se manifesta por meio das pulsões parciais. Mas não sem esclarecer que algo de perverso se estende também pela vida sexual do adulto: “a extraordinária difusão das perversões força-nos a supor que tampouco a predisposição às perversões é uma particularidade rara, mas deve, antes, fazer parte da constituição que passa por normal” (Ibid., p. 104). A normalidade seria, portanto, o fruto do recalcamento de certas pulsões parciais e componentes das disposições infantis, “bem como da subordinação dos demais à primazia das zonas genitais” (Ibid., p. 172). E as fantasias inconscientes dos neuróticos teriam conteúdo similar às ações dos perversos, levando à conclusão de que o essencial da diferença entre eles seria o recalque das inclinações perversas, nos neuróticos. “Portanto, os sintomas se formariam, em parte, às expensas da sexualidade anormal; a neurose é, por assim dizer, o negativo da perversão” (Ibid., p. 101). Porém, seria apressado (e equivocado) pretender-se que Freud traçava fronteiras nítidas e estanques entre uma sexualidade, que seria dita normal; e outra, que seria entendida como perversa: A experiência cotidiana mostrou que a maioria dessas transgressões, no mínimo as menos graves dentre elas, são um componente que raramente falta na vida sexual das pessoas sadias e que é por elas julgado como qualquer outra intimidade. Quando as circunstâncias são favoráveis, também as pessoas normais podem substituir durante um bom tempo o alvo sexual normal por uma dessas perversões, ou arranjar-lhes um lugar ao lado dele. Em nenhuma pessoa sadia falta algum acréscimo ao alvo sexual normal que se possa chamar de perverso, e essa universalidade basta, por si só, para mostrar quão imprópria é a utilização reprobatória da palavra perversão. Justamente no campo da vida sexual é que se tropeça com dificuldades peculiares e realmente insolúveis, quando se quer traçar uma fronteira nítida entre o que é mera variação dentro da amplitude do fisiológico e o que constitui sintomas patológicos (Ibid., p. 98). Abordando os avanços trazidos por Lacan em relação a Freud, Soler (2009) fala do que seria uma acepção de “perversão generalizada” que não implicaria a ideia de uma época histórica em que todos estariam migrando para a estrutura clínica perversa. Não há acesso ao parceiro sexual senão pelas pulsões parciais, o que faz com que o gozo do ato sexual seja o mesmo do sintoma, sempre perverso, fragmentário e insuficiente: o que Lacan expressa com a máxima “não há relação sexual”.

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A distinção nítida entre os sexos encontrada no nível biológico contrastaria radicalmente com “a ambiguidade que persiste quanto a tudo que se possa inscrever dessa relação no nível do significante”, o que tem, como consequência, que: No nível do sujeito, não há reconhecimento como tal do macho pela fêmea nem da fêmea pelo macho. [...] A tal ponto que, se na teoria se produzem diversos pares de opostos, ativo/passivo, voyeur/visto etc., nunca é promovida como fundamental nenhuma oposição que designe o par macho/fêmea (LACAN, 1968-69/2008, p. 309). O êxito do ato sexual produz o insucesso da relação sexual, e tornar-se um ser de linguagem implica uma perda de gozo e a subversão das dotações instintuais como motor do movimento da vida; esta passa a ser governada pelas pulsões (sempre parciais), pelo desejo, objeto e gozo (sempre falta-a-ser). Cito alguns versos de Chico Buarque, em Soneto: Por que me descobriste no abandono Com que tortura me arrancaste um beijo Por que me incendiaste de desejo Quando eu estava bem, morta de sono? De que romance antigo me roubaste Com que raio de luz me iluminaste Por que não me deixaste adormecida E me deixaste só, com que saída? A sexualidade humana é um drama, e como no inconsciente o homem nada sabe da mulher e a mulher nada sabe do homem, “no falo, se resume o ponto de mito em que o sexual se torna paixão do significante” (LACAN, 1970/2003, p. 410). A “maldição sobre o sexo”, afirmada em Televisão (LACAN, 1974/2003), mal/dicção, deriva-se de que o inconsciente não dispõe de dois significantes, um correspondente ao homem e outro à mulher, para dizer o sexual: apenas o significante fálico. Aí está a fonte de todos os desencontros e a origem de todas as confusões. Cito Barthes (1981): Dis-cursus é, originalmente, a ação de correr para todo lado, são idas e vindas, ‘démarches’, ‘intrigas’. O enamorado não para de correr, na sua cabeça, de empreender novas diligências e de intrigar contra si mesmo. Seu discurso só existe através de lufadas de linguagem, que lhe vêm no decorrer de circunstâncias ínfimas, aleatórias (p. 1).

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A linguagem é uma pele: esfrego minha linguagem no outro. É como se eu tivesse palavras ao invés de dedos, ou dedos na ponta das palavras. Minha linguagem treme de desejo (p. 64).

A estrutura clínica perversa Em O fetichismo (1927/1974), Freud abandona o simplismo da fórmula da neurose como o negativo da perversão, apresenta o fetiche como paradigma da estrutura clínica da perversão e mostra que sua complexidade nada fica a dever à da construção da fantasia do neurótico. Ambos visam manter distância da castração, diferindo nas vias utilizadas. Acompanhando essa pista freudiana, Lacan, no Seminário 7 (1959-60/2008) e em Kant com Sade (1963/1998), reitera que a diferença entre o neurótico e o perverso não se resolve por uma oposição simples entre presença e ausência da fantasia; mas aponta uma diferença entre ambos, com a conhecida formulação do giro de 90º no esquema da fantasia.

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Figura 1: Esquema da fantasia do herói sadeano (fantasia do perverso) Fonte: LACAN, J. (1963) Kant com Sade. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 786.

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Figura 2: Esquema referente a Sade (fantasia do neurótico) Fonte: LACAN, J. (1963) Kant com Sade. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 790.

Em sua tese Perversão: um fazer gozar (2011), Martinho esclarece essa diferença, mostrando que Lacan refuta a suposição de uma falsa simetria entre sádico e masoquista, que os alocaria em polos opostos: um como o que provoca e o outro como o que busca sofrimento. “A delegação que Sade faz a todos, em sua República, do direito ao gozo, não se traduz em nosso grafo por nenhuma reversão de simetria num eixo ou centro qualquer, mas apenas por uma rotação de um quarto de círculo” (LACAN, 1963/1998, p. 789). Lacan distingue o matema da fantasia do herói sadeano (protótipo da perversão) do matema que diz respeito à fantasia do próprio Sade, “porque na vida real Sade não era um sádico [...]. Lacan deixa transparecer a sua hipótese quanto à estrutura de Sade: em sua vida, Sade não era um perverso, mas um neurótico” (MARTINHO, 2011, p. 115). No Seminário 16, Lacan (1968-69/2008) busca, para o real do gozo do falante, uma solução mais apropriada do que os empréstimos à termodinâmica, com que Freud tentou dar conta do “além do princípio do prazer”. E teoriza a função mais-de-gozar do objeto a a partir de uma homologia com a mais-valia de Marx. Isso lhe permite avançar ainda mais na formalização das estruturas e dos tipos clínicos, aí incluída a diferença entre o neurótico e o perverso. O perverso é aquele que zela pelo gozo do Outro e se consagra a tamponar seu buraco. Ou seja, como defensor da “fé”, ele busca “a restituição do objeto a ao campo do A. [...] É a estrutura do sujeito para quem a referência da castração, isto é, o fato de a mulher se distinguir por não ter o falo, é tamponada, mascarada, preenchida pela operação misteriosa do objeto a” (Ibid., p. 283). Portanto, o fundamental na estrutura clínica perversa é a função de um “suplemento” que, no nível do Outro interrogue o que lhe falte e o ofereça.

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Já o neurótico não elude o que falta ao Outro no nível da própria lógica. O significado do A, como marcado por sua falha lógica, exprime-se completamente. Porém, carrega a nostalgia de uma suposta relação anterior de pseudocompletude com a mãe, em uma ilusão retroativa do paraíso perdido de um narcisismo primário que, de fato, nunca existiu. O que não impede sua busca incessante, tentando reencontrar “uma relação, não de suplemento, mas de complemento no Um”. (Ibid., p. 252). Ele pretende ser o Um no campo do Outro.

Uma estrutura discursiva sem barreira do gozo: o discurso capitalista Agora quero abordar o que acontece a partir da confluência do regime de gozo perverso estrutural do falante (aludido no item a), com o aparelhamento de gozo a que ele é submetido pelo discurso dominante em nossa época histórica: o discurso capitalista (assinalado no item c). Um discurso, que, ao mesmo tempo, sustenta e é sustentado por: • • •

uma estrutura particular das relações de produção (capitalistas); uma estrutura particular de relações de valor entre as coisas: a generalização da forma-mercadoria; suas consequências: a substituição da fetichização das relações entre os humanos falantes pela fetichização das relações entre os objetos mercadorias (ou latusas, como falava Lacan) e as transformações que isto implicou para a ordenação do gozo dos sujeitos.

Note-se que aqui estabeleço uma interlocução entre Marx e Lacan. Repito aqui o que falei no IX Encontro Internacional dos Fóruns e da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (IF-EPFCL).2 A disseminação da forma-mercadoria cria o que Marx denominou fetichismo da mercadoria, que adere aos produtos do trabalho humano tão logo eles circulam como mercadorias: uma relação social entre humanos, que assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Os produtos do trabalho humano parecem dotados de vida própria. Relacionam-se, uns com os outros, e com os humanos, como se fossem entidades cuja natureza essencial se fundamentaria somente nas conexões estabelecidas entre eles mesmos. Digamos que a forma-mercadoria “transforma a realidade social numa selva de espelhos, cada objeto contemplando especularmente, no outro, a es-

2 Apresentação “A teoria do valor e o laço ‘associal’ no capitalismo: homologias entre Marx e Lacan”, no IX Encontro Internacional dos Fóruns e da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (IF-EPFCL), realizado em julho de 2016, em Medellín (Colômbia). 50

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sência abstrata de si mesmo” (EAGLETON, 1993, p. 270). Instaura-se uma lógica do mercado e uma hegemonia do consumo insaciável de mercadorias, em que, capturados em uma grande rede descentrada de desejo, “os indivíduos surgem como meros reflexos passageiros” (EAGLETON, 1998, pp. 127-128). É isso que produz o que já se chamou de “laço associal” do discurso capitalista (BOUSSEYROUX, 2012). Retomo algumas considerações sobre a mutação do regime de gozo, sob o capitalismo, que apresentei em um texto publicado em outro lugar (PACHECO FILHO, 2015). Há sempre uma “barreira do gozo” entre o lugar da produção e o lugar da verdade, nos discursos, como mostra Lacan no Seminário 17: “Há aqui, com efeito, no andar inferior, uma barreira”.

Figura 3 Fonte: LACAN, J. (1969-70) O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992, p. 101.

A barreira cuja denominação está imediatamente ao alcance da nossa mão é, no nível do discurso do mestre, o gozo – na medida em que está interditado, interditado em seu fundo. Catam-se as migalhas de gozo [...] (LACAN, 1969-70/1992, p. 101). A barreira do gozo também pode ser assinalada pelas setas dos matemas: Discurso do Mestre

Discurso Universitário

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Discurso da Histérica

Discurso Analista

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¯ Figura 4: Os 4 discursos

Fonte: LACAN, J. (1972) Du discours psychanalytique. In: Lacan in Italia. Roma: Salamandra, 1984, p. 32.

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PACHECO FILHO, Raul Albino

É sempre possível partir-se de qualquer um dos quatro “lugares” e, por meio das setas, fazer um percurso que chegue aos lugares correspondentes ao agente, ao outro e à produção: há sempre um circuito possível para esses lugares, por meio das setas. Mas nunca é possível chegar-se ao lugar da verdade, partindo-se de qualquer dos outros lugares.

Figura 5: Lugares nos discursos Fonte: PACHECO FILHO, R. A. Lugares nos discursos (Adaptação de Lacan), 2017.

Mas existe algo no discurso capitalista que o diferencia dos demais. Refiro-me à inexistência dessa “barreira do gozo”, designada por Lacan como sendo a “impotência” necessária à estrutura de cada discurso.

Figura 6: Discurso do Capitalista Fonte: LACAN, J. (1972). Du discours psychanalytique. In: Lacan in Italia. Roma: Salamandra, 1984, p. 32.

Observe-se as setas dos matemas para notar que, no caso do discurso capitalista, o lugar da verdade tornou-se acessível, na medida em que, do lugar da produção, pode-se chegar ao lugar do agente pela seta diagonal que ascende inclinando-se para a esquerda. E daí é possível chegar-se ao lugar da verdade, pela seta vertical da esquerda, que desce até o lugar da verdade.

Figura 7: Matemas com setas Fonte: PACHECO FILHO, R. A. Matema do discurso capitalista, 2017.

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Os sujeitos tornaram-se perversos no capitalismo contemporâneo?

Lacan trata disso no Seminário 17, ao referir-se “ao que Marx demonstrou [...] no que se refere à produção, e que ele chama mais-valia, e não mais-de-gozar” (LACAN, 1969-70/1992, p. 169): Alguma coisa mudou no discurso do mestre a partir de certo momento da história. Não vamos esquentar a cabeça para saber se foi por causa de Lutero, ou de Calvino, ou de não sei que tráfico de navios em torno de Gênova, ou no mar Mediterrâneo, ou alhures, pois o importante é que, a partir de certo dia, o mais-de-gozar se conta, se contabiliza, se totaliza. Aí começa o que se chama de acumulação de capital. Vocês não sentem, em relação ao que enunciei há pouco sobre a impotência fazendo a junção entre o mais-de-gozar e a verdade do mestre, que aqui o passo ganha? [...] A mais-valia se junta ao capital – sem problemas, é homogêneo, estamos aí nos valores. Aliás, todos nós nadamos nisso no abençoado tempo em que vivemos. O que há de chocante, e que não parece ser visto, é que a partir daquele momento o significante-mestre, por terem sido dissipadas as nuvens da impotência, aparece como mais inatacável, justamente na sua impossibilidade. Onde está ele? Como nomeá-lo? Como discerni-lo, a não ser, evidentemente, por seus efeitos mortíferos? Denunciar o imperialismo? Mas como pará-lo, esse mecanismo tão pequeno? (Ibid., p. 169). O sujeito mergulhado no discurso capitalista, e mais propriamente, no que tem sido denominado “imperativo de gozo” da sociedade de consumo – consumo dos objetos que a ciência moderna permite fabricar –, permanece cativo das mercadorias, porque, na substituição metonímica frenética dos objetos colocados no lugar do mais-de-gozar, ele nunca se interroga sobre: a fantasia de que a mercadoria possa dar conta absoluta (e sem falta) do seu desejo e gozo; a origem da programação social que articula o objeto mais-de-gozar às mercadorias, domesticando sua pulsão nos limites da circunvolução incessante em torno das mesmas. No avesso do discurso do analista, orientado pela experiência do inconsciente e do núcleo do real, nosso sujeito mergulhado no discurso capitalista é aquele que nada quer saber da experiência da castração e do impossível. Lembra-nos Soler (2009) que o próprio exercício das pulsões parciais já inclui um efeito de castração (limitação do gozo), que não se deve ao Pai e à sua lei, mas apenas à perda da via original, da natureza e dos instintos: isso está incluído na perversão estrutural de todo falante. Ao incluírem a impotência e a castração, todos os discursos veiculam uma convocatória compatível com essa inacessibilidade estrutural da verdade e do gozo pleno. Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 34 p.45-56 agosto 2017

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PACHECO FILHO, Raul Albino

Todos, menos um: o discurso capitalista, que diz Lacan no seminário O saber do psicanalista (1971-72/inédito), distingue-se pela rejeição (Verwerfung). Rejeição para fora de todos os campos do simbólico: “rejeição de quê? Da castração”. Devido a isso, esse discurso “deixa de lado o que chamaremos, simplesmente, as coisas do amor” (Ibid., Aula de 06/01/1972). Isso não transforma todos em perversos, nem viabiliza o gozo pleno, mas produz uma incoerência conflitiva entre: o regime de gozo acessível aos sujeitos, em função de sua condição estrutural de seres falantes (o “mal-estar na civilização”); a ordenação de gozo do capitalismo, pelo discurso nele dominante. A isso podemos chamar, talvez, o “mal-estar no capitalismo”. O que não recomenda uma nostalgia de volta ao passado e aos braços do amo antigo, já que, enquanto os caranguejos andam de lado, os reacionários engatam a marcha a ré e os assustados têm medo de sair do lugar, os interessados no progresso civilizatório têm muita curiosidade pelo que poderia ser encontrado adiante!

Referências bibliográficas BARTHES, R. Fragmentos de um discurso amoroso. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2. ed., 1981. BOUSSEYROUX, M. Práticas do impossível e teoria dos discursos. A Peste: Revista de Psicanálise e Sociedade, São Paulo, v. 4, n. 1/2, jan./jun./jul./dez. 2012, pp. 183-194. EAGLETON, T. A ideologia da estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993. . As ilusões do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. FREUD, S. (1905) Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. 7. . (1906) Minhas teses sobre o papel da sexualidade na etiologia das neuroses. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. 7. . (1927) O fetichismo. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. 21. LACAN, J. (1959-60). O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. . (1963) Kant com Sade. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. . (1968-69) O seminário, livro 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. . (1969-70) O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. . (1970) Radiofonia. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. 54

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Os sujeitos tornaram-se perversos no capitalismo contemporâneo?

. (1971-72) O saber do psicanalista. Disponível em: http://lacanempdf.blogspot.com.br/2016/09/livros-de-lacan_19.html. Acesso em: 13 maio 2017. Inédito. . (1974) Televisão. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. . (1975-76) O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2007. MARTINHO, M. H. C. Perversão: um fazer gozar. Tese (Doutorado em Psicanálise) – Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011. PACHECO FILHO, R. A. Compra um Mercedes Benz pra mim? Psicologia Revista, São Paulo, v. 24, n. 1, 2015. pp. 15-44. . Do mel ao fel: metamorfoses da estratégia de gozo em Roman Polanski. Stylus: Revista de Psicanálise, Rio de Janeiro, n. 32, jun. 2016, 2010, pp. 163-177. SOLER, C. (2009) La perversion généralisée. La clinique lacanienne, v. 16, n. 2. pp.117-131. Disponível em: www.cairn.info/revue-la-clinique-lacanienne-2009-2-page-117.htm. Acesso em: 13 maio 2017.

Os sujeitos tornaram-se perversos no capitalismo contemporâneo? Have subjects become perverse in contemporary capitalism? resumo Adjetivada de diversas maneiras, a noção psicanalítica de perversão tornou-se um recurso comum utilizado por diferentes autores para se referir e para explanar teoricamente a respeito de aspectos observados na sociedade capitalista contemporânea. Este artigo questiona se seria teoricamente razoável e conceitualmente legítimo supor que se trata de uma migração maciça de sujeitos para aquilo que o pensamento freudiano e lacaniano formalizou como sendo a estrutura clínica perversa. A perversão seria um sintoma da sociedade capitalista? A resposta negativa a esta questão apoia-se na distinção entre: a) a noção de uma perversão estrutural do falante, de seu gozo e da pulsão: “toda sexualidade humana é perversa”; b) a noção de estrutura clínica perversa, como uma “escolha” do sujeito para lidar com a falta (castração) do Outro; e c) a noção de um regime de gozo (um discurso) não fundado sobre a renúncia ao gozo.

palavras-chave: Psicanálise; perversão; discurso capitalista; mais-de-gozar.

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abstract Addressed in various ways, the psychoanalytic notion of perversion has become a common resource used by different authors to refer to and explain theoretically the aspects observed in the contemporary capitalist society. This article questions whether it would be theoretically reasonable and conceptually legitimate to assume that it is a massive migration of subjects to what the Freudian and Lacanian thought has formalized as the perverse clinical structure. Could perversion be a symptom of the capitalist society? The negative answer to this question is based on the distinction among: a) the notion of a structural perversion of the speaker, of their enjoyment and drive: “all human sexuality is perverse”; b) the notion of the perverse clinical structure as a “choice” of the subject to deal with the lack (castration) of the Other; and c) the notion of a regime of enjoyment (a discourse) not founded on the renunciation of enjoyment.

keywords: Psychoanalysis; perversion; capitalist discourse; surplus-jouissance.

Recebido: 17/05/2017

Aprovado: 12/06/2017

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trabalho crĂ­tico com os conceitos



De que maneira o discurso do analista possibilita fazer furo no discurso capitalista? Brendali Dias Buscaremos, neste trabalho, desenvolver alguns pontos sobre a questão “por que o discurso do analista pode fazer furo no discurso capitalista?”, a partir da teoria dos quatro discursos de Lacan (1969-70/1992), desenvolvida em seu seminário 17, O avesso da psicanálise, quando formaliza quatro discursos apresentados pelo sujeito no laço social: o discurso do mestre (DM), o discurso da histérica (DH), o discurso do analista (DA) e o discurso universitário (DU).1 Para formalizar os discursos, Lacan (1969-70/1992) recorre às três profissões impossíveis apontadas por Freud (1925/1976): “governar”, associado ao discurso do mestre; “educar”, associado ao discurso universitário; e “psicanalisar” ou “curar”, associado ao discurso do analista. A essas três impossibilidades propostas por Freud, Lacan somará uma quarta para formalizar o quarto discurso; trata-se de “fazer desejar”, associado ao discurso histérico. Lacan formaliza esses quatro discursos por meio de matemas que demonstram as formas possíveis de discursos, apontando o processo de estruturação dos modos de ordenamento de gozo do sujeito no laço social – pois é impossível ordenar todo o gozo – a partir da lógica do inconsciente. Posteriormente, Lacan (1972/inédito) profere mais um discurso, o discurso capitalista (DC), como uma variação do discurso do mestre. Se os quatro discursos representam quatro formas de ordenamento de gozo no laço social, no DC essa variação representa, ao contrário dos quatro discursos, uma ruptura dos laços sociais em sua formalização matêmica. Em função dessa ruptura, Lacan o aponta como um discurso astucioso, demonstrando uma forma de gozo específica do sujeito no capitalismo. Levando em conta a importância da montagem dos discursos, apresentaremos em seguida a maneira como Lacan esquematizou a estrutura dos matemas.

1 Em alguns momentos deste trabalho utilizaremos siglas para designar os discursos da seguinte maneira: DM para discurso do mestre; DH para discurso histérico, DA para discurso do analista, DU para discurso universitário e DC para o discurso capitalista.

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DIAS, Brendali

Sobre os lugares fixos e as letras nos matemas dos quatro discursos Na construção dos matemas dos quatro discursos (DM, DH, DA e DU), Lacan coloca quatro lugares fixos: 1.

2. 3. 4.

O lugar do agente é o lugar dominante do discurso. Segundo Lacan (196970/1992), “a palavra dominante não implica a dominância no sentido de que essa dominância especificaria o discurso do mestre. Digamos que se pode dar, por exemplo, segundo os discursos, diferentes substâncias a essa dominante” (Ibid., p. 41). Ou seja, a dominante tem uma função diferente em cada um dos quatro discursos; O lugar do outro é o lugar de dominado no discurso; O lugar da verdade é o lugar que sustenta o agente do discurso, verdade esta sempre parcial; O lugar da produção é o resultado, é o que o discurso produz. Além dos quatro lugares fixos, Lacan propõe quatro letras que ocupam os diferentes lugares fixos nos discursos. São elas:

1. 2. 3. 4.

S1 – Significante mestre, representante da lei que marca a incompletude e que dá origem à rede de significantes; S2 – Saber; – Sujeito barrado, representando o sujeito dividido pelo inconsciente e, consequentemente, marcado pela falta; a – Para tratar do objeto a nos quatro discursos, Lacan faz uma homologia deste com o conceito de mais-valia de Marx, nomeando-o como “a-mais-de-gozar”.

Lacan localiza essa homologia apontando que se a mais-valia é tempo de trabalho pelo qual o trabalhador não é remunerado e jamais terá acesso – pois quem tem acesso a essa parte é o capitalista –, o a-mais-de-gozar é colocado nos discursos como perda de gozo, uma extorsão de gozo pelo fato de o sujeito estar submetido à linguagem, por ser impossível tudo simbolizar. Uma perda à qual nenhum ser falante tem acesso, mas que fica para o real que divide o sujeito. Diferente dos lugares fixos, as letras se deslocam e ocupam esses lugares em diferentes posições nos discursos. Por sua vez, o discurso capitalista apresenta uma estrutura fundamentalmente diferente dos outros quatro discursos. Comecemos pelos matemas dos quatro discursos e sua estrutura.

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De que maneira o discurso do analista possibilita fazer furo no discurso capitalista?

Uma estrutura para quatro discursos A estrutura dos quatro discursos é sempre acompanhada da impossibilidade de não poderem se realizar plenamente. Essa impossibilidade sustenta a impotência da relação entre a produção e a verdade nos quatro discursos. Vejamos a figura abaixo:

Figura 1: Estrutura dos quatro discursos adaptada de Bousseyroux. Fonte: BOUSSEYROUX, M. Práticas do impossível e teoria dos discursos. In: A Peste: Revista de Psicanálise e Sociedade, Edição Eletrônica, v. 4, n. 1, pp. 99-112, jan./jun., São Paulo, 2012. Disponível em: file:///C:/Users/brend/Downloads/22108-56768-1-SM.pdf, p. 104.

Essa figura apresenta os lugares fixos, localiza a impossibilidade (como apontado pelo vetor horizontal superior entre o agente e o outro) representando que o outro não responde à demanda do agente de forma total, e localiza também a impotência (como mostram as barras verticais [//] na parte inferior do matema) representando que não há relação entre a produção e a verdade. Essas representações estruturam e orientam a lógica dos matemas dos quatro discursos formalizados por Lacan (1969-70/1992). A impossibilidade é aquilo que o outro não consegue responder plenamente sobre a demanda do agente, ou seja, governa-se por meio do DM, faz-se desejar por meio do DH, psicanalisa-se por meio do DA e educa-se por meio do DU, mas nenhuma destas realizações é plena. Lacan (1969-70/1992) nos dirá que “quanto mais a procura de vocês envereda pelo lado da verdade, mais vão sustentar o poder dos impossíveis” (Ibid., p. 179). Esta citação de Lacan nos autoriza a tratar também da impotência nos quatro discursos, pois se a impossibilidade é aquilo que o outro não consegue responder plenamente à demanda do agente, esse poder dos impossíveis é o que sustenta a impotência da relação entre a produção e a verdade, pois a produção discursiva não dá conta da verdade em função deste poder.

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Sendo assim, em qualquer dos quatro discursos, nas diferentes posições que as letras ocupam nos lugares fixos, não há potência discursiva capaz de produzir relação entre produção e verdade do discurso. Vejamos com Silveira (2013, p. 2): A impotência será relacionada com a parte inferior dos discursos, especificamente com um lugar que resulta do trabalho, ou seja, a sua produção, em relação àquilo que ocupa o lugar da verdade. Aquilo que o discurso produz é impotente em mostrar a verdade deste mesmo discurso, não há relação entre a produção e a verdade. Ao nos atermos às Figuras 2, 3, 4 e 5, que se apresentarão daqui por diante, observaremos que os matemas dos quatro discursos possibilitam que os elementos (S1, S2, , ) girem em torno dos lugares fixos. Cada giro culminará em um novo discurso, tendo como regra que os giros só podem ocorrer no sentido horário e/ou anti-horário, fazendo com que, mesmo que giremos nos discursos infinitamente, não estabeleceremos mais do que quatro discursos. Agora, aplicaremos essa estrutura nos quatro discursos para demonstrar em cada um deles a impossibilidade e a impotência da relação entre a verdade e a produção. Comecemos pelo discurso do mestre.

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Figura 2: Discurso do Mestre Fonte: LACAN, J. (1972) Du discours psychanalytique. In: Lacan in Italia. Roma: Salamandra, 1984, p. 32.

No DM, a impossibilidade entre o S1 (agente) e o S2 (outro) consiste da impossibilidade de o significante mestre (S1) dominar completamente o saber do outro (S2), ou seja, não há completude em governar, remetendo à impossibilidade de governar apontada por Freud. Sua impotência está no fato de que o objeto de sua produção não dá conta da verdade do sujeito. O que a produção revela neste discurso é uma perda de gozo a enquanto mais-de-gozar, apontando a impotência da relação entre a produção e a verdade que completaria o sujeito ( ). Vamos agora ao discurso histérico, segue o matema:

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De que maneira o discurso do analista possibilita fazer furo no discurso capitalista?

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Figura 3: Discurso Histérico Fonte: LACAN, J. (1972) Du discours psychanalytique. In: Lacan in Italia. Roma: Salamandra, 1984, p. 32.

No discurso histérico, a impossibilidade consiste de que o , agente do discurso, demanda um saber do mestre para dar conta de sua falta, mas não aceita a resposta produzida pelo outro, S1. Assim, neste discurso, o sujeito demanda um saber que dê conta de sua falta, mas a produção do outro, enquanto lei, não é capaz de tamponá-la. A impotência no discurso histérico está no fato de que a produção do outro, S2 enquanto lei, não tem relação com a verdade da falta histérica (a), é um saber que deixa intacta sua falta (a-mais-de-gozar), apontando a impotência da relação entre a produção e a verdade que suturaria o objeto a. Assim, a histérica é perita em atuar este discurso, ou seja, a histérica não se sente representada pelo saber do outro, mantendo seu desejo de desejo insatisfeito. É por isso que todo sujeito em análise precisa histerizar seu discurso, sendo este o modo de preservar seu lugar de sujeito. Agora o discurso do analista.Segue o matema:

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¯ Figura 4: Discurso do Analista Fonte: LACAN, J. (1972) Du discours psychanalytique. In: Lacan in Italia. Roma: Salamandra, 1984, p. 32.

No DA, a impossibilidade se dá pelo fato de que a demanda do agente – sendo o analista enquanto objeto a causa de desejo do analisante e ao mesmo tempo como a-mais-de-gozar, pois ele perde gozo – não exclui a necessidade de gozo do sujeito. Ou seja, o sujeito não pode ser curado de seu gozo, este é o impossível de curar a que Freud se refere. Pois, se o gozo pleno é impossível, sem um pouco de gozo a vida também é impossível, daí Lacan (1960/1998) dizer que “o gozo é aquilo cuja falta tornaria vão o universo” (p. 834).

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A impotência no DA se dá pelo fato de que a produção de uma lei do desejo, (S1), pelo , não dá conta da verdade que sustenta o analista sobre a falta de saber sobre o desejo do sujeito. Isto é, apesar de o sujeito ter que produzir ele mesmo um saber, sua verdade será sempre uma verdade não toda, mantendo o $ entre o desejo e o gozo. Assim, não é possível produzir uma lei do desejo que dê conta do saber sobre a falta que instaura a castração, já que o objeto a-mais-de-gozar é faltoso por essência e eternamente. Não há lei do desejo que se relacione com a verdade do saber S2. Portanto, o gozo se intromete fazendo com que o analisante produza algo sobre sua própria verdade não toda, que sempre conduz o $ a uma nova verdade não toda, que é representada pelo deslizamento dos significantes na parte inferior do DA. Vamos ao discurso universitário, segue o matema:

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¯ Figura 5: Discurso Universitário Fonte: LACAN, J. (1972) Du discours psychanalytique. In: Lacan in Italia. Roma: Salamandra, 1984, p. 32.

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A impossibilidade no DU está no fato de que o S2 – enquanto agente – propõe uma falta de saber ao sujeito que vai além de sua falta estrutural, impondo um saber para produzir um sujeito adequado aos ditames sociais. Sua principal diferença do discurso do mestre é que o discurso universitário tira do sujeito o saber-fazer, pois a ciência, ao criar os meios de produção, faz com que o saber-fazer do sujeito não faça sentido de subsistência para ele – o que culmina no capitalismo de produção. A impotência no DU se trata de que não há relação entre o produzido pelo discurso e a verdade da lei, representada pelo S1. Essa produção não se realiza plenamente, porque há o sintoma à revelia do sujeito, o que não o permite adequar-se a este saber imposto, impondo a falta de relação entre a produção do sujeito e a verdade do discurso enquanto lei. Vemos assim que os quatro discursos apresentam uma impossibilidade e uma impotência, e que em nenhum deles a verdade é tocada. Isso é estrutural nos quatro discursos. Mesmo assim, não paramos de repetir as tentativas de fazer os discursos apresentarem uma verdade, sem sucesso, mas uma necessidade para a manutenção dos laços sociais. É o advento da psicanálise que possibilita Lacan (1969-70/1992) construir a emergência dos discursos a partir da história e com isso observar a impossibilidade de ultrapassar a rocha da castração. Portanto, de ultrapassar a impossibilidade da completude que nos detém, por sustentar a impotência do encontro da produ-

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De que maneira o discurso do analista possibilita fazer furo no discurso capitalista?

ção com a verdade em qualquer um dos quatro discursos e consequentemente da eliminação da castração, por tratar-se do real em jogo, real este que é impossível. Mas Lacan não para por aí, a emergência da passagem do capitalismo de produção para o capitalismo de consumo leva-o a propor mais um discurso, o discurso capitalista, indicando-o como sendo uma variação do discurso do mestre. Trataremos agora as questões de sua estrutura em separado dos quatro discursos.

A estrutura do discurso capitalista e sua diferença fundamental em relação à estrutura dos quatro discursos Trataremos essas questões separadas no DC, pois nelas reside toda a diferença estrutural fundamental entre esse discurso e os quatro já apresentados. Essas diferenças dizem respeito à impossibilidade e à impotência do encontro da produção com a verdade. O que se vê no discurso capitalista é o desaparecimento da impossibilidade e a permissão do encontro do sujeito com a verdade, diferenças que representam a ruptura dos laços sociais, por colocarem o objeto entre o sujeito e o outro. Importante notar que já foi acrescentada a posição das letras nos lugares fixos, uma vez que só há uma representação do discurso capitalista na estrutura, vejamos a figura:

Figura 6: Estrutura do Discurso Capitalista adaptada de Bousseyroux Fonte: BOUSSEYROUX, M. Práticas do impossível e teoria dos discursos. In: A Peste: Revista de Psicanálise e Sociedade, Edição Eletrônica, v. 4, n. 1, pp. 99-112, jan./jun., São Paulo, 2012. Disponível em:file:///C:/Users/brend/Downloads/22108-56768-1-SM.pdf, p. 105.

Observemos que neste discurso, o vetor e as letras do lado esquerdo do matema sofrem uma inversão em relação à estrutura dos quatro discursos; além disso, é quebrada a regra de que as letras só girariam no sentido horário e/ou anti-horário. Com a inversão do vetor e das letras, além do sujeito, passa a ter acesso direto à verdade, perdendo a relação com o outro e entrando no curto-circuito do DC. Nesse curto-circuito o objeto a fica entre o agente ( ) e o outro ( ), impossibili-

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tando o laço social permitido nos quatro discursos, razão pela qual Lacan (1972/ inédito) lhe confere o adjetivo de discurso astucioso. Afinal, foi o que se fez de mais astucioso como discurso. [...] uma pequena inversão simplesmente entre o S1 e o … que é o sujeito… basta para que isso ande como sobre rodinhas, não poderia andar melhor, mas, justamente, anda rápido demais, se consome, se consome tão bem que se consuma. O fato é que o DC governa – e governa, digamos, mantendo uma mestria astuciosa. Porém, não é possível estar preso a ele o tempo todo, como aponta sua representação estrutural, ou seja, no capitalismo o sujeito não prescinde dos quatro discursos. É digno de nota apontar que os avanços tecnológicos e midiáticos conquistados graças ao capitalismo são centrais para impulsionar seu funcionamento. Isto se dá ao se instigar a eliminação da castração, o que faz com que o sujeito busque superar os limites de suas buscas e aspirações de consumo como fantasia de completude, intensificando o individualismo e prometendo ao sujeito que ele será completo se mantiver o laço com o objeto de consumo. A consequência disso é a renúncia ao laço social. Gostaríamos de apontar ainda que, diferente dos autores que colocam que o DC representa o declínio do pai, afirmamos que ele representa um pai ainda mais severo, pois propõe um imperativo de gozo direcionado para os limites do consumo. Isto, segundo Pacheco Filho (2009, pp. 154-155), implica “uma aceleração da tendência totalitária à alienação, em escala sem precedentes nas demais formas históricas de sociedade”. Trata-se de uma aceleração que intensifica a angústia para além do necessário, pois com as ofertas incessantes o sujeito se angustia também incessantemente. Vamos às diferenças fundamentais dos quatro discursos em relação ao discurso capitalista. Segue a Figura 7, que julgamos necessária a título de comparação, pois ela aponta a variação que ocorre entre o DM e o DC e os argumentos que fazem notar a diferença estrutural:

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De que maneira o discurso do analista possibilita fazer furo no discurso capitalista?

Figura 7: Estrutura dos quatro discursos com o Discurso do Mestre adaptada de Bousseyroux Fonte: BOUSSEYROUX, M. Práticas do impossível e teoria dos discursos. In: A Peste: Revista de Psicanálise e Sociedade, Edição Eletrônica, v. 4, n. 1, p. 99-112, jan./jun., São Paulo, 2012. Disponível em:file:///C:/Users/brend/Downloads/22108-56768-1-SM.pdf, p. 104.

O discurso do mestre na estrutura dos quatro discursos localiza, como já vimos, uma impossibilidade e uma impotência da relação entre produção e verdade (//), representações que estruturam e orientam a lógica dos quatro discursos de Lacan. Nela, há uma regra de que as letras só podem girar no sentido horário ou anti-horário, possibilitando a existência de apenas quatro discursos.

Figura 8: Estrutura do matema do Discurso Capitalista adaptada de Bousseyroux Fonte: BOUSSEYROUX, M. Práticas do impossível e teoria dos discursos. In: A Peste: Revista de Psicanálise e Sociedade, Edição Eletrônica, v. 4, n. 1, p. 183-194, jan./jun., São Paulo, 2012. Disponível em: file:///C:/Users/brend/Downloads/22108-56768-1-SM.pdf, p. 106.

Na estrutura do discurso capitalista, a variação se dá pela inversão das letras do lado esquerdo do matema em relação ao matema do discurso do mestre, levando à quebra da regra de que as letras só podem girar no sentido horário ou anti-horário. Há também a inversão do vetor esquerdo que passa a apontar para a verdade, tornando-a potente. É um discurso em curto-circuito que representa a ruptura dos laços sociais, pois se perde a relação do agente com o outro, relação que passa a ser mediada pelo objeto a. Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 34 p.59-73 agosto 2017

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Observando as figuras comparativamente, temos que, no discurso do mestre, a verdade, enquanto velada, reflete a inexistência de um Outro que seja capaz de produzir uma verdade. Esta verdade é, portanto, faltante, o que pode ser representado pela construção lógica de Lacan que diz da falta de significante do Outro, S( ), pois a impossibilidade e a impotência denunciam a perda de gozo do Outro nos quatro discursos. Vejamos com Lacan (1960/1998, p. 827): Partamos da concepção do Outro como significante. Qualquer enunciado de autoridade não tem nele outra garantia senão a sua própria, pois lhe é inútil procurar por esta num outro significante, que de modo algum pode aparecer fora deste lugar. É o que formulamos ao dizer que não existe metalinguagem que possa ser falada, ou, mais aforisticamente, que não há Outro do Outro. Ou seja, a impossibilidade, a impotência e o velamento da verdade nos discursos demonstram que não há Outro do Outro. A impotência do encontro do sujeito com a verdade é inerente ao ser falante, é justamente por estar submetido à linguagem que ele busca essa verdade como garantia, é também por estar submetido à linguagem que lhe é garantido se dar com a impotência de obtê-la. No entanto, a estrutura do discurso capitalista apresenta essas diferenças estruturais fundamentais: simula o encontro do sujeito com a verdade do discurso e coloca o objeto entre o sujeito e o outro. Essas diferenças fundamentais promovem a ruptura dos laços sociais. Há uma polêmica entre os autores da psicanálise lacaniana; alguns acreditam que o discurso capitalista é um discurso de fato, outros acreditam que ele não seja. Não destacaremos aqui a polêmica existente entre os autores, dada a falta de espaço para tanto, mas se apostarmos na proposta de Lacan (1972/inédito) de que o DC é uma variação do DM, podemos questionar se o DC é de fato um discurso. Isso se soma ao fato de que o DC representa a ruptura dos laços sociais. Se concordarmos com Lacan (1969-70/1992) quando ele diz que discurso é ordenador de gozo e promotor de laço social, como pensar no DC como um discurso se ele desfaz tal laço? Há ainda o fato de que o DC só é necessário na sociedade desde que ela se tornou capitalista e não será mais necessário se a sociedade capitalista se extinguir, enquanto que os outros quatro discursos são trans-históricos e estão presentes em todas as formas de sociedade desde que haja ser falante. Pelas razões apontadas acima, concordamos com os autores que acreditam que o discurso capitalista não é um discurso, inclusive ainda porque, se ele está em curto-circuito, como pode o sujeito passear pelos outros discursos? Não havendo espaço para mais reflexões sobre essa questão e longe de esgotá-la, paramos por aqui. Lacan (1972/inédito) aponta que é possível fazer furo no discurso capitalista a partir do manejo da transferência pelo analista na clínica. Mas como fazer furo no discurso capitalista na clínica? É o que veremos no próximo tópico. 68

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De que maneira o discurso do analista possibilita fazer furo no discurso capitalista?

A política do discurso do analista e sua clínica É importante apontar que nenhuma cultura de nenhuma época se fixa em nenhuma dessas quatro formas discursivas, qualquer que seja seu modo de funcionamento. Essas quatro formas discursivas giram nas formas de funcionamento das culturas em todas as épocas; sendo assim, não se pode conceber a história como uma sucessão de discursos. Porém, como aponta Castro (2009, p. 3), “não obstante, é perfeitamente possível associar determinados fenômenos históricos a determinados discursos, e também conceber mudanças de hegemonia entre os discursos”. Assim, ao longo da história nota-se que o discurso do mestre predominou no feudalismo, o discurso histérico foi predominante na época da inquisição com a queima das bruxas, o discurso universitário e o discurso capitalista são predominantes na atualidade e o discurso do analista é predominante, não numa época, mas na clínica psicanalítica. Vemos que os discursos predominantes hoje são os que mais se contrapõem à política do discurso do analista, que é a política do objeto a causa de desejo, dado que o discurso universitário busca a coisificação do sujeito; e o discurso capitalista busca a ruptura dos laços sociais e ambos são derivados do discurso do mestre. Sendo o DU o que permite o desenvolvimento da ciência e o DC um discurso astucioso ou discurso do mestre moderno que busca obturar os laços sociais, porém, como aponta Lacan (1972/inédito) sobre o DC, ele “não é menos destinado ao furo”. Sendo assim, como aponta Quinet (2012), temos os discursos de dominação – que são o discurso do mestre, discurso de entrada na linguagem; o discurso universitário ou discurso do mestre moderno; e o discurso capitalista como uma variação do discurso do mestre. E temos os discursos de avesso da dominação – o discurso histérico que preserva a posição de sujeito e o discurso do analista que escuta a demanda histérica, mas sem respondê-la, possibilitando o mapeamento de seu desejo a partir da não resposta. Agora tratemos a questão central do texto: de que maneira o discurso do analista possibilita fazer furo no discurso capitalista? Como já foi dito, a estrutura dos quatro discursos é a mesma, pois todos comportam a impossibilidade de realização plena e a impotência de não estabelecerem relação entre a produção e a verdade. Então, onde reside a diferença fundamental? Aliás, é essa diferença que faz toda diferença na maneira em que o discurso do analista pode fazer furo no discurso capitalista do ponto de vista clínico. A diferença do discurso do analista é que sua direção conta com o real impossível e, como aponta Silveira (2013), “é, portanto, um discurso que começa colocando o real em uma posição privilegiada”, que poderíamos dizer, na direção de uma falta de saber do Outro, já que a posição do analista é de objeto a causa de desejo, posição que os outros discursos não tomam. Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 34 p.59-73 agosto 2017

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Mesmo o discurso histérico – que busca manter sua posição de sujeito ao recusar as respostas encaminhadas pelo mestre sobre sua demanda – só pode rastrear seu desejo se encontrar pela frente o discurso do analista. O discurso da histérica é muito importante, porque é com ele que Lacan (1969-70/1992) desenha o discurso do analista; mas sem encontrar-se com o discurso do analista, ele nada pode enquanto resistência ao discurso capitalista. Ao contrário, alimenta-o fazendo a ciência produzir objetos para dar conta das demandas histéricas. Sendo assim, dos quatro discursos, o único que pode fazer furo no discurso capitalista é o discurso do analista, pois ele é o único que inclui o real como impossível de saída. Essa é a diferença fundamental entre o discurso do analista e os outros três discursos (DM, DH e DU). Um discurso que parta do real como impossível, parte de saída do pressuposto da incompletude. Ele busca não ficar dando voltas inúteis e coloca o pior em pauta e por isso possibilita fazer furo no DC, que ao contrário, quer tamponar a dor de existir inerente à falta inexorável ao ser falante. Na “Conferência de Milão”, Lacan (1972/inédito) diz que o discurso do analista implica um “pequenino melhor uso do significante Um” e embora tenha qualificado o DC como um discurso astucioso, afirma que ele não é menos destinado ao furo, como já foi dito. Ou seja, sua lei é tão decadente quanto a de qualquer outro discurso, e, portanto, tão questionável quanto. Mas de que maneira é possível fazer furo no discurso capitalista do ponto de vista clínico? Alguns desdobramentos são possíveis a partir dessa questão. Primeiro, é importante que fique claro que o discurso do analista não pode ser tomado de um ponto de vista ideológico como único discurso admissível. Quinet (2009) nos alerta de que “há racismo do discurso como laço social na medida em que não é aceita a diferença de gozos [...]. Aceitar a diversidade do gozo, suas múltiplas modalidades, é uma indicação ética que deve orientar nossa política. De outro modo cairíamos no racismo dos discursos da dominação” (pp.48-49), ou seja, o discurso do analista não é um discurso que se pretende único. Lacan (1969-70/1992, p. 178) aponta que o discurso do analista tem sua incidência política a partir da seguinte pergunta: “De que saber se faz a lei?”. Essa pergunta coloca em xeque a verdade da lei, inclusive da lei do próprio discurso do analista. Lacan aponta que onde há verdade, não há preocupação com a verdade;é somente na medida em que se questiona a verdade que algo novo pode se produzir. Ele afirma ainda que “o efeito de verdade é apenas uma queda de saber”, denunciando que uma verdade última não existe, por sempre poder ser questionada, portanto é uma queda que faz produzir. E como o discurso do analista sai deste enrosco? Começando pelo fato de que é função do analista provocar no sujeito uma descrença sobre a lei que o aliena, e no momento, a lei que o aliena é a do capitalismo. Se o sujeito pode girar nos quatro discursos é porque seu desejo se revela no sintoma à sua revelia. 70

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De que maneira o discurso do analista possibilita fazer furo no discurso capitalista?

Quando o analista se coloca em sua função de objeto a causa desejo, ele dá voz ao sujeito que, em associação livre, revela seu sintoma e rastreia seu desejo. Ou seja, colocar o desejo do sujeito em causa em vez de tamponá-lo ou de buscar a eliminação do sintoma é o que permite alguma liberdade do sujeito em relação à sua alienação estrutural ao discurso do mestre. Essa margem de liberdade pode furar não só o totalitarismo do discurso capitalista, mas qualquer tipo de totalitarismo que aparece também nos outros discursos. Para finalizar, cabe um apontamento importante. Trata-se da responsabilidade do sujeito no sistema capitalista que o aliena. Sobre essa questão, Pacheco Filho (2009, p. 155) aponta que é responsabilidade do psicanalista “cuidar para que ele [o sujeito] não fique de fora também nas considerações críticas sobre o capitalismo, elucidando de que maneira ele (o sujeito) também participa e tem responsabilidade na sua própria alienação ao laço social capitalista e na aceleração de sua tendência totalitária”. Isso é realizado pelo analista quando ele intervém na fala do analisante questionando os clichês apresentados pelo discurso capitalista que aparecerem para o sujeito como verdades acabadas, pois são essas verdades acabadas que engabelam o sujeito e fazem com que ele não busque as saídas que são possíveis. A subjetividade do analista é construída no sistema capitalista, por isso é importante também nosso constante questionamento sobre nosso fazer, para que não fiquemos na posição de responder aos mandos do capitalismo e assim possamos furá-lo e manejar a transferência de nossos analisantes para que eles possam fazer o mesmo.

Referências bibliográficas BOUSSEYROUX, M. Práticas do impossível e teoria dos discursos. A Peste: Revista de Psicanálise e Sociedade, Edição Eletrônica, v. 4, n. 1, jan./jun., São Paulo, 2012, pp. 183-194. Disponível em: file:///C:/Users/brend/Downloads/2210856768-1-SM.pdf. Acesso em: 20 agosto 2015. CASTRO, J. C. L. Capitalismo e discurso da universidade: Marx com Lacan. Anais do VI Colóquio Internacional Marx e Engels, Campinas (SP). 2009. Disponível em: http://www.ifch.unicamp.br/formulario_cemarx/selecao/2009/trabalhos/ capitalismo-e-discurso-da-universidade-marx-com-lacan.pdf. Acesso em: 20 agosto 2015. DIAS, B. O discurso do analista pode implicar alguma forma de resistência ao discurso capitalista? Sobre a dimensão política da psicanálise freudo-lacaniana. Tese (Doutorado em Psicologia Social) – Instituto de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2016.

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FREUD, S. (1925) Prefácio à Juventude desorientada, de Aichhorn. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. 19. LACAN, J. (1960) Subversão do sujeito e dialética do desejo. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. . (1969-70) O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. . (1972) Du discours psychanalytique – conférence à l’université de Milan. Milão. Inédito. PACHECO FILHO, R. A. A praga do capitalismo e a peste da Psicanálise. A Peste: Revista de Psicanálise e Sociedade, São Paulo, v. 1, n. 1, jan./jun., 2009, pp. 143-163. QUINET, A. A estranheza da psicanálise – A Escola de Lacan e seus analistas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. . Os Outros em Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2012. SILVEIRA, P. D. A impossibilidade e a impotência nos discursos. Tempo Freudiano. 2013. Disponível em: http://www.tempofreudiano.com.br/index.php/a-impossibilidade-e-a-impotencia-nos-discursos/. Acesso em: 01 setembro 2014.

De que maneira o discurso do analista possibilita fazer furo no discurso capitalista? In what way does the analyst discourse make a hole in capitalist discourse? resumo Existem diferenças fundamentais entre a estrutura dos quatro discursos e a estrutura do discurso capitalista. Essas diferenças estruturais dizem respeito à impossibilidade, à impotência e à verdade nos discursos, e tais diferenças levam à ruptura dos laços sociais no discurso capitalista. Existe ainda uma diferença fundamental entre o discurso do analista e os outros três discursos, ainda que a estrutura dos quatro discursos seja a mesma. Este artigo tem o objetivo de demonstrar as diferenças estruturais dos quatro discursos em relação à estrutura do discurso capitalista e a diferença fundamental entre o discurso do analista e os outros três discursos, tecendo comentários sobre por que o discurso do analista pode fazer furo no discurso capitalista na clínica.

palavras-chave: Lacan; quatro discursos; impossibilidade; impotência; verdade; furo.

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De que maneira o discurso do analista possibilita fazer furo no discurso capitalista?

abstract There are fundamental differences among the structure of the four discourses and the structure of the capitalist discourse. These structural differences refer to the impossibility, the impotence and the truth in the discourses and such differences lead to the disruption of the social bonds in the capitalist discourse. There is still one fundamental difference among the analyst discourse and the other three discourses, even though the structure of the four discourses is the same. This article aims to demonstrate the structural differences among the four discourses concerning the structure of the capitalist discourse and the fundamental difference among the discourse of the analyst and the other three discourses, commenting on why the analyst discourse can make a hole on the capitalist discourse and its consequences to the clinic.

keywords: Lacan; four discourses; impossibility, impotence, truth, hole.

Recebido: 22/05/2017

Aprovado: 19/06/2017

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Segregação, infância generalizada e alegria: questões para a psicanálise Maria Claudia Formigoni Em 22 de outubro de 1967, em Paris, Lacan encerrou uma jornada sobre as psicoses da criança, organizada por Maud Mannoni. Convidado a falar sobre psicose, crianças e instituições de atendimento, ele foi muito além disso1. Há cinquenta anos, Lacan já assinalara uma questão que, hoje em dia, muito nos concerne. Trata-se de uma “subversão sem precedentes” (LACAN, 1967/2003, p. 361) relacionada à estreita aliança entre discurso científico e capitalista, responsável pela universalização e homogeneização dos indivíduos. A incidência de tais discursos faz com que, na era do capitalismo, o sujeito barrado – aquele que é pura diferença, marcado por uma divisão e incompletude – fique de fora. Há uma tentativa de suturá-lo. Isso não é sem consequências. Essa subversão inédita, também apontava Lacan em 1967, leva ao “problema mais intenso de nossa época, na medida em que ela foi a primeira a sentir o novo questionamento de todas as estruturas sociais pelo progresso da ciência” (Ibid., p. 360) e com o qual “teremos que lidar, e sempre de maneira mais premente” (Ibid): a segregação. Podemos considerar que a segregação responde àquilo que há de sintomático na estrutura social. O sintomático da sociedade ataca e, como contra-ataque, surgem os efeitos de segregação. Mas o que seria esse sintomático da estrutura social? A aliança estreita entre o discurso científico e o capitalista fez com que os indivíduos fossem reduzidos a objetos de saber. Quem sabe a respeito deles é um Outro que vocifera conhecimentos, palavras de ordem e respostas que, além de prometerem aniquilar as angústias e conquistar o almejado bem-estar, serviriam igualmente a todos. Trata-se de saberes totalizantes que encerram o sujeito em conjuntos fechados – a criança, o homossexual, o velho, o refugiado, a mulher... –deixando de fora sua singularidade. Anulam-se as diferenças, apagam-se as subjetividades e instala-se uma – suposta – paridade. Junta-se, uniformiza-se e propõem-se aos sujeitos: 1 A fala por ele proferida está publicada em Outros escritos (2003) sob o título Alocução sobre as psicoses da criança (LACAN, 1967/2003, pp. 359-368).

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[...] ideais individuais que tendem a se reduzir a um plano de assimilação cada vez mais horizontal […]. Numa civilização em que o ideal individualista foi alçado a um grau de afirmação até então desconhecido, os indivíduos descobrem-se tendendo para um estado em que pensam, sentem, fazem e amam exatamente as mesmas coisas nas mesmas horas, em porções do espaço estritamente equivalentes (LACAN, 1950/1998, p. 146). O discurso que hoje nos domina vocifera a paridade e impõe o gozo como economia. Vende a ilusão de uma possível completude – via gadgets, falsos objetos a produzidos pelo capitalismo – e de uma realização individual. Instaura, via consumo e produção, a insaciável falta a gozar. Exclui o ser-para-o-sexo e, consequentemente, o sujeito barrado. Como afirma Colette Soler (2015b), a universalização trazida pela ciência vai bem com o individualismo promovido pelo capitalismo, que reduz cada um a não ser mais que um entre outros, sem distinção. As sociedades passam a ser compostas por massas humanas, isto é, agregados de unidades individuais em que a disparidade é eliminada e às quais se promete acesso ao objeto de gozo. Quanto a essa especificidade da sociedade contemporânea, Lacan explica e questiona: Os homens estão enveredando por uma época que chamamos planetária, na qual se informarão por algo que surge da destruição de uma antiga ordem social, que eu simbolizaria pelo Império, tal como sua sombra perfilou-se por muito tempo numa grande civilização, para ser substituída por algo bem diverso e que de modo algum tem o mesmo sentido – os imperialismos, cuja questão é a seguinte: como fazer para que massas humanas fadadas ao mesmo espaço, não apenas geográfico, mas também, ocasionalmente, familiar, se mantenham separadas? (LACAN, 1967/2003, pp. 360-361). Sabemos que a entrada na linguagem é castradora e implica limite ao gozo. Aquele objeto suposto proporcionar a completude fica para sempre perdido, irrecuperável, permitindo justamente que se possa fazer laço. Nesse sentido, não há como ser cumprida a promessa feita pelo discurso capitalista no que se refere ao par complementar sujeito/objeto, à oferta da possibilidade de cada um estabelecer uma relação direta com determinado objeto, concretizando, de certa forma, a fantasia. Conforme assinala Askofaré (2009b), todo sujeito é um excluído do gozo, é um exilado da relação sexual. A disparidade é, então, característica estrutural dos seres falantes. Não é algo contingente como veiculam ciência e capitalismo, mas algo essencial ao sujeito e imprescindível ao laço social, já que tem função de

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enlaçamento. Não se trata, portanto, de erradicar a exclusão, e sim de “acolher os ‘excluídos’ naquilo que eles têm de mais singular” (Ibid., p. 407). A “subversão sem precedentes” – caracterizada pelo empuxo à paridade e por tentar deixar de fora a castração – afeta os laços sociais. Um ordenamento coletivo sustentado no laço opõe-se à paridade. O laço social tem como característica inerente instaurar o não todos iguais. Não é possível, portanto, fazer laço sem incluir a disparidade. Isso é o que permite dizer, portanto, que o capitalismo desfaz os laços sociais. Quando esses se desfazem, resta somente a massa humana. Não há um ordenamento que deixa lugar para as verdades individuais e que permite viver juntos pela linguagem ao preço de uma disparidade de princípio. “Descobrimos que à medida que desaparecem as desigualdades significantes que fundam o laço social, a paridade crescente, idealizada […] não reduz nem as violências nem as relações de força […] simplesmente as desregula” (SOLER, 2015a, pp. 22-23). A segregação é, assim, consequência direta da degradação dos laços sociais. Lacan, ainda em seu discurso de encerramento da jornada em Paris, anuncia que um dos sinais da entrada de um mundo inteiro no caminho da segregação é a “criança generalizada” (LACAN, 1967/2003, p. 367). Nessa formulação, complementada com a inusitada afirmação de que “não existe gente grande” (Ibid., p. 367), há uma alusão à paridade – todos crianças, todos iguais. Anula-se a distinção entre adultos e crianças, rompendo a disparidade inerente ao laço entre ambos. Com a expressão “criança generalizada”, Lacan, considerando o posicionamento estrutural da criança como objeto de gozo do Outro, também alude à posição de objeto em que o homem contemporâneo é colocado pelo discurso da ciência e do capitalismo. O ser humano é “reduzido a objeto da ciência e a corpo biológico […] Lacan prevê como sintoma a indústria de comércio de órgãos que se desenvolveria, como de fato ocorreu” (PRATES PACHECO, 2012, p. 26). Vivemos na era da infância generalizada, e a segregação surge como efeito. Efeito esse que é uma tentativa de dar tratamento à anulação das diferenças via separação espacial como forma de preservar lugares distintos. Contudo, a lógica que rege esse tratamento espacial se sustenta em um reconhecimento da diferença que, por concentrar e generalizar, favorece o surgimento de fenômenos como a misoginia, a dita criança tirana, o preconceito racial, entre outros. Eis aí, como alerta Prates Pacheco (Ibid., pp. 27-28), um ponto importante a ser considerado, pois diz respeito à segregação. Etimologicamente, o verbo segregar deriva do latim segregare, que significa separar, apartar, afastar, isolar. O substantivo correspondente segregatio, onis, deu em português segregação. Assim, se há na segregação um

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isolamento, um afastamento, há por outro lado um reconhecimento da diferença que pode, entretanto, ser tomado como justificativa para uma valorização negativa, para o abuso do poder e a dominação, e para a discriminação no pior sentido. Resta-nos, então, uma pergunta: o que podem, a psicanálise e os psicanalistas, diante de problemas tão cruciais? Não há dúvidas de que não se deve ceder ao capitalismo e à ciência. É preciso, sim, subverter tais discursos para fazer valer a inexistência da relação sexual, o ser-para-o-sexo. O discurso analítico “pode suscitar um desejo outro, ou sustentar os desejos outros [...]. Sustentar um outro desejo é uma forma não de fazer barra – somos todos presos ao discurso capitalista –, mas de subtrair alguma coisa desse discurso” (SOLER, 2011a, p. 65). Psicanalistas que se debruçam sobre essa questão, como Askofaré (2009a), Soler (2011b) e Quinet (2009), apontam o amor como uma possível via para fazer frente à segregação e subtrair algo do discurso capitalista. No amor, a castração está em jogo. Servimo-nos dela e também a colocamos a serviço do outro. Além disso, o amor, por ser um limite ao narcisismo, permite aceitar as limitações impostas ao gozo. Sustentar os caminhos do amor via discurso analítico pode ser, portanto, uma forma de furar a ciência e o capitalismo, atenuando seus efeitos. Além do discurso analítico e do amor – que pela transferência se dirige ao saber –, Lacan sinaliza aos analistas mais um modo de enfrentarmos, por meio de nossa prática e posicionamento, o mal-estar da civilização atual. Os indícios disso parecem estar em duas passagens de Alocução sobre as psicoses da criança (1967/2003). Transcrevo-as: Mas estaremos nós à altura do que parecemos, pela subversão freudiana, ser convocados a carregar – o ser-para-o sexo? Não parecemos muito valentes para manter essa posição. Nem tampouco muito alegres (Ibid., pp. 362-363). [...] por que, provavelmente, Freud sentiu que era seu dever reintroduzir sua medida na ética através do gozo? E acaso não é tentar agir com vocês como com aqueles de quem essa é a lei, desde então, vou deixá-los com esta pergunta: que alegria encontramos nós naquilo que constitui nosso trabalho? (Ibid., p.367). Lacan, nesses questionamentos, faz referência a algo muito importante: o gozo como medida ética. Vimos que o capitalismo se opõe a isso. Por prometer a restituição de uma condição essencial aos sujeitos, promove a suposta existência de

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um gozo que seria ilimitado. Assim, o mais-de-gozar, a falta a gozar, torna-se causa geral do desejo e motor que anima a economia subjetiva – e não só essa. O capitalismo veicula também a ideia de que os gozos são iguais e podem ser distribuídos de forma equivalente. A causa analítica, por sua vez, como diz Quinet (2009, pp. 36-37), “não apregoa a justiça distributiva do gozo, pois este não pode ser repartido […] O gozo distribuído equitativamente levaria cada um ao direito de gozar sobre o outro – o gozo para todos – […] com a abolição do particular de cada um”. As consequências dessa abolição sabemos bem quais são. Por isso, é fundamental ter o gozo como ética e sustentar a castração como forma de permitir que cada um responda, singularmente, à inexistência da relação sexual. Essa questão é, sem dúvida, fundamental. Contudo, quero destacar algo mais que Lacan assinala nesses trechos transcritos e que, para mim, também deve marcar a tarefa do analista e é efeito da incidência do próprio discurso analítico. Trata-se da alegria. Mas por que, afinal, seria válido pensar que a alegria pode ajudar os analistas na sua tarefa de sustentar o ser-para-o-sexo e, assim, buscar fazer frente aos efeitos danosos da ciência e do capitalismo? Formulemos os primeiros passos de uma tentativa de resposta a esse questionamento. Lacan (1967/2003, p. 361), baseando-se em Dante, diz que a tristeza é o maior dos pecados. Refere ser alegre e se divertir com aquilo que faz. A tristeza, em suas palavras, “não é um estado de espírito, é simplesmente uma falha moral, […] um pecado, o que significa, uma covardia moral, que só é situado, em última instância, a partir […] do dever de bem dizer, ou de se referenciar no inconsciente” (LACAN, 1973/2003, p. 524). Considera a tristeza índice de uma relação frouxa com o desejo e sinal do imperativo de gozo. Do lado oposto à tristeza, Lacan situa o gaio saber (gay sçavoir). De modo resumido, podemos dizer que esse saber tem seu fundamento na falta estrutural chamada desejo e é considerado uma virtude. Trata-se de uma virtude ética, pois consiste “não em compreender, fisgar [piquer] no sentido, mas em roçá-lo tão de perto quanto se possa, sem que ele sirva de cola para essa virtude, para isso gozar com o deciframento, o que implica que o gaio issaber, no final, faça dele apenas a queda” (Ibid., p. 525). Tal virtude seria uma maneira de reinscrever o desejo, de dar lugar ao singular, modificando a posição de exclusão e de dejeto sustentada pela ciência e pelo capitalismo – e também pela fantasia neurótica. Aposta-se que, com isso, a particularidade de gozo seja acolhida e que os sujeitos possam ser contados um a um, descolando-se das vociferações homogeneizantes advindas dos discursos que dominam nossa época. Como afirma Soler (2011b), tristeza e gaio saber são dois afetos que se referem à relação com o saber inconsciente, conforme esse seja recusado ou, ao contrário, decifrado palavra a palavra. Aquele que “tenha a valentia de se deixar enganar [se

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faire dupe] por suas letras ou seus signos a fim de tolerar o sentido sempre fugidio ao em vez de se satisfazer com ele” (Ibid., p. 71) pode experimentar o júbilo proporcionado pela queda da alienação do sujeito ao significante do Outro. A alegria do saber é consequência da passagem do não sentido ao não sentido gozado, um gozo sentido no corpo. Essa passagem é essencial, porque produz um ganho sobre o sintoma ao preservar uma parte de real – índice da disparidade fundamental – que não se deixa encobrir pelos imperativos veiculados. Assim, fica mais claro porque é o discurso do analista e, por que não, também a alegria, que podem subverter o discurso capitalista. Pessoa (2012) nos lembra que a passagem do não sentido ao não sentido gozado é uma vitória do real e que, por isso, causa desordem. Assinala que “experimentar alegria nessa vitória é uma questão de opção. Uma opção do psicanalista, estritamente relativa ao seu discurso, pois, nos outros, essa desordem é coisa a se evitar a qualquer preço”. Optar pela alegria permitiria, portanto, ser criança de outro modo que não aquele imposto pelo capitalismo. Ser alegre marca a passagem da criança enquanto sendo gozada, objeto de gozo do Outro – todos enquanto objetos de gozo da ciência – para uma posição de poder gozar disso. Optemos, então, por freude2 como fez Lacan. Trabalhemos com (a) alegria!

Referências bibliográficas ASKOFARÉ, S. (2009a) Aspectos da segregação. A Peste: Revista de Psicanálise e Sociedade, v.1, n. 2, jul./dez., 2009, pp. 345-354. . (2009b) O jogo da exclusão. A Peste: Revista de Psicanálise e Sociedade, v.1, n. 2, jul./dez., 2009, pp. 401-407. LACAN, J. (1950) Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia. In: Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. . (1967) Alocuções sobre as psicoses da criança. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. . (1973) Televisão. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. PESSOA, S. (2012) O riso: expressão de um saber, uma vitória do real. Disponível em: https://lacaneando.com.br/o-riso-expressao-de-um-saber-uma-vitoria-do-real/. Acesso em: 10 maio 2016. PRATES PACHECO, A. L. (2012) Infância e autismo: entre a segregação e a concentração. A Peste: Revista de Psicanálise e Sociedade, v.4, n. 1 e 2, jan./jun./ jul./dez. 2012, pp. 23-32.

2 Em alemão, “alegria”.

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Segregação, infância generalizada e alegria: questões para a psicanálise

QUINET, A. A estranheza da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. SOLER, C. (2011a) O discurso capitalista. Stylus: Revista de Psicanálise, n. 22, mai. 2011, Rio de Janeiro, pp. 55-68. . (2011b) Los afectos lacanianos. Buenos Aires: Letra Viva, 2011. . (2015a) Lo que queda de la infancia. Buenos Aires: Letra Viva, 2015. . (2015b) ¿Qué es lo que hace lazo? Medellín: Asociación Foro del Campo Lacaniano de Medellín, 2015.

Segregação, infância generalizada e alegria: questões para a psicanálise Segregation, generalized childhood and joy: questions for psychoanalysis resumo Há cinquenta anos, Lacan já assinalava uma questão que ainda hoje nos concerne. Trata-se de uma “subversão sem precedentes” relacionada à estreita aliança entre o discurso científico e o capitalista, responsável pela universalização e homogeneização dos indivíduos. Isso teria como efeito a infância generalizada, que, segundo Lacan, assinala a entrada do mundo na era da segregação. Mas por quê? Qual a relação entre infância generalizada e segregação? Como pensar a posição do analista diante desses efeitos danosos do discurso capitalista? E a alegria, como se relaciona a essas questões? A autora considera estas questões cruciais para a psicanálise.

palavras-chave: Lacan; discurso do capitalista; segregação; infância generalizada; alegria.

abstract Fifty years ago, Lacan was already pointing out an issue that still concerns us today. It is an “unprecedented subversion” related to the close alliance between scientific and capitalist discourse responsible for the universalization and homogenization of the individuals. This would have, as effect, the general childhood, which, according to Lacan, marks the entrance of the world into the segregation era. But why? What is the relationship between generalized childhood and segregation? How can we think of the analyst’s position upon these damaging effects of capitalist discourse? How does joy relate to that? The author considers these issues crucial to psychoanalysis.

keywords: Lacan; capitalist discourse; segregation; generalized childhood; joy.

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FORMIGONI, Maria Claudia

Recebido: 24/05/2017

Aprovado: 12/06/2017

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Medicina baseada em evidência x psicanálise baseada na ex-sistência Soraya Carvalho Em um mundo orientado pelo discurso capitalista, onde o sofrimento é, muitas vezes, uma mercadoria, responsável pela geração de novos bens de consumo, qual o lugar da psicanálise? Como não ceder da ética do bem-dizer do real, que lhe é própria, ao imperativo do bem-estar da lógica do capital? Enfim, como os analistas devem se situar no discurso do seu tempo sem sucumbir às demandas impostas pela política desse discurso? O que a psicanálise tem a ver com isso? Dentro de um contexto em que o sucesso é contabilizado pela mais-valia dos resultados e dos objetos, em que a visada da cura se restringe a psicoterapias breves e eficazes, isso constitui um problema crucial para a psicanálise visto que, como frisou Lacan em A Terceira (1974a/2002, p. 49), ela não tem sucesso por não livrar o falasser do sintoma nem do real?

Medicina baseada em evidências – MBE O modelo biotecnicista da medicina contemporânea adota como regra a eficácia do tratamento, critério fundamentado em uma metodologia denominada de medicina baseada em evidências (MBE). Derivada da epidemiologia clínica anglo-saxônica, a MBE surgiu na década de 90, com o propósito de diminuir a distância entre o conhecimento científico e sua aplicação clínica. Em linhas gerais, a MBE pretende objetivar a medicina, ao modo positivista, por meio do estudo de procedimentos utilizados na prática médica, dos quais extrai informações de eficácias diagnósticas e terapêuticas já comprovadas em estudos publicados, submetendo-os a tratamentos estatísticos e gerando guidelines ou manuais de apoio a decisões diagnósticas (NOVAES, 1999).

Evidências A ambição de objetividade no conhecimento científico fez de Descartes um dos precursores da ciência moderna. Seus pressupostos e regras criados há 400 anos continuam influenciando o modo de conceber a ciência na atualidade. Em seu

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CARVALHO, Soraya

Discurso do método, Descartes desenvolveu alguns princípios, dentre eles, o princípio das evidências, segundo o qual, evidências são as “ideias claras e distintas”, aquelas igualmente concebidas por todos, independentemente dos sentidos. Dessa maneira, ele elaborou a regra da evidência, que considera verdadeiro apenas o que é evidente, tornando a evidência o ideal de exatidão da ciência (GERBASE, 2008, pp.9-15). Fundamentada na lógica cartesiana, a MBE postula que para um método ser eficaz e científico, suas ideias têm que ser evidentes. Que evidências científicas podem comprovar a eficácia do método da associação livre ou os conceitos psicanalíticos de inconsciente, desejo, real, sintoma, gozo? A psicanálise pode ser avaliada a partir desse critério? A eficácia de uma terapêutica também pode ser medida pela sua capacidade de fazer o sujeito retornar o mais rapidamente possível ao trabalho. Por essa perspectiva, é possível afirmar que este é um critério determinado pelas leis de mercado; portanto, norteado pelo discurso capitalista, e a psicanálise, por sua vez, não está imune aos efeitos produzidos por essas leis. Isso quer dizer que, se a eficácia é medida por parâmetros objetivos, replicáveis e transmissíveis, o método psicanalítico vem sendo considerado ineficaz por gerar resultados desprovidos de evidências, tornando-se, por isso, alvo de duras críticas. Críticas que ecoam nos diversos contextos clínicos em que a psicanálise é frequentemente contraindicada para o tratamento de diversas sintomatologias. Embora não existam estudos que comprovem sua ineficácia, considerá-la obsoleta virou uma regra, uma verdadeira (e)vidência científica.

A psicanálise é uma ciência? A preocupação de incluir a psicanálise no escopo da ciência está presente em Freud desde o seu Projeto para uma psicologia científica, de 1895: “a finalidade deste projeto é estruturar uma psicologia que seja uma ciência natural [...]” (FREUD, 1895/1996, p. 395). Ao longo de sua obra, Freud tentou dar a prova da cientificidade da psicanálise por meio da metodologia de investigação dos processos psíquicos. Ele compreendia a psicanálise como uma ciência, ou para ser mais preciso, como uma Ciência da Natureza, Naturwissenchaft (FREUD, 1933/1996), como a Química, a Física, a Fisiologia, (FREUD, 1940/1996, p. 227), na qual o indivíduo pode representar toda a classe à qual pertence por conter em si todas as características da sua espécie, diferentemente da Ciência do Espírito, Geisteswissenschaft, na qual cada objeto tem individualidade própria não dedutível a uma classe. Desta forma, enquanto as Ciências do Espírito estavam sujeitas a interpretações baseadas em juízos de valor, as Ciências da Natureza baseavam-se em um juízo da realidade e propunham a reflexão neutra e racional dos dados coletados (MEZAN, 2007). Com Lacan não é diferente. De acordo com seu artigo Respostas a estudantes de filosofia (1966b/2003, p. 218), uma ciência é definida pelo seu objeto, e “o objeto da psicanálise não é o homem; é aquilo que lhe falta – não uma falta absoluta, mas a fal84

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ta de um objeto...”. O objeto da psicanálise é o objeto a, produto da divisão do sujeito (LACAN, 1965/1998, p. 877), que, por sua vez, é produto da divisão significante. Por outro lado, ao admitir a existência do inconsciente, a psicanálise provocou uma subversão no cogito cartesiano, deslocando a supremacia do sujeito da razão, do “penso, logo sou”, para o sujeito do inconsciente, do “penso, lá onde não sou” ou “sou, lá onde não penso”. Em A ciência e a verdade, vemos Lacan afirmar que, por mais paradoxal que possa parecer, o sujeito da psicanálise é o mesmo sujeito da ciência; isto porque, seja na ciência ou na psicanálise, a verdade se coloca como causa, e o saber, posto em prática (LACAN, 1965/1998, p. 884). Entretanto, da verdade como causa, a ciência não “quer-saber-nada”, o que Lacan identificou como a Verwerfung da ciência (Ibid., p. 889), simplesmente porque nela, “[...] a verdade [...]deve ser reconhecida sob o aspecto da causa formal”, enquanto que “[...] a psicanálise acentua seu aspecto de causa material”. Essa causa material é o significante, justamente o que deve qualificar a originalidade da psicanálise na ciência (Ibid., p.890). Em um dos seus últimos seminários, o Livro 24, Lacan (1976-77, inédito) reavaliou a relação da psicanálise com a ciência: A psicanálise não é uma ciência. Não tem estatuto de ciência, não pode senão aguardá-lo, esperá-lo. É um delírio – um delírio do qual se aguarda que traga uma ciência. Podemos esperar muito tempo! Não há progresso, e o que se espera não é necessariamente o que se recolhe. É um delírio científico, mas isso não quer dizer que jamais a prática analítica trará uma ciência. Esta ciência tem tanto menos chances de amadurecer quanto é antinômica e que, pelo uso que fazemos dela, sabemos que há relações entre a ciência e a lógica. Retoma a questão no seminário seguinte, O momento de concluir (LACAN, 1977-78/inédito): O que tenho a lhes dizer, é que a psicanálise é para ser levada a sério, apesar de que não é uma ciência. Não é mesmo uma ciência de jeito nenhum. Pois, o mais enfadonho, como mostrou superabundantemente o assim chamado Karl Popper, não é uma ciência porque é irrefutável. É uma prática, uma prática que durará o que durar. É uma prática de tagarelice. E Lacan (1974b/2004) chega a afirmar em entrevista a Emilio Granzotto: que “a única ciência verdadeira, séria, a ser seguida é a ficção científica”, pois a ciência oficial, em cujos laboratórios estão seus altares, avança às cegas. Propõe, ain-

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CARVALHO, Soraya

da, acrescentar às três tarefas impossíveis citadas por Freud – governar, educar e exercer a psicanálise – uma quarta, a ciência. E sobre a psicanálise, complementa: Eu a defino como sintoma – revelador do mal-estar da civilização na qual vivemos. Certo, não é uma filosofia. [...] A psicanálise também não é uma fé, e não me agrada chamá-la de ciência. Digamos que é uma prática e que ela se ocupa do que não está funcionando. Terrivelmente difícil porque ela pretende introduzir na vida do dia a dia o impossível, o imaginário. Ela obteve alguns resultados até o presente, mas ainda não tem regras e se presta a toda sorte de equívocos. A ciência, tanto quanto a psicanálise, visa a um saber no real. A diferença é que na psicanálise, enquanto o real em questão diz respeito ao a-sexo, ao que não se escreve, isto é, à impossibilidade da relação; na ciência, o real em jogo aponta para um saber que se escreve e que rejeita as singularidades (SOLER, 2009, p. 187). Portanto, o Discurso da Ciência não apenas foraclui o sujeito, mas também a verdade na medida em que a verdade não é a exatidão, mas o singular. Em suma, ainda que a psicanálise e a ciência se ocupem com o real: ali onde a ciência propõe a consciência, a psicanálise apresenta o inconsciente; onde a ciência só admite a certeza, a psicanálise responde com a dúvida; onde a ciência foraclui o sujeito, a psicanálise o presentifica em sua divisão e falta; onde a ciência propõe um saber completo, a psicanálise aponta para um saber não todo; e ali onde a ciência se empenha em uma obstinada busca da verdade absoluta, a psicanálise denuncia a verdade mentirosa.

A psicanálise baseada na ex-sistência – PBEx A MBE defende que a medicina deve buscar objetividade e respaldo científico, orientando suas ações por evidências, quer dizer, por “verdades científicas”, extraídas do estudo de práticas bem-sucedidas submetidas a generalizações. Em outras palavras, a clínica do um é determinada pela lógica do todo. Contrariamente, a psicanálise se orienta pela lógica do um a um, pela especificidade do falasser. E, se a ideia do inconsciente pode ser generalizada, é pelo fato de que ele está posto para todos, mas a forma como cada um se serve dele é particular. O ideal de cientificidade na medicina não somente exclui o sujeito que sofre, não levando em conta sua participação na formação do seu sintoma, como também aquele que o trata. A clínica psicanalítica, por sua vez, considera os efeitos do significante no corpo, bem como a responsabilidade do sujeito pelo seu sofrimento, e a do analista, pela condução ética da transferência no tratamento. A descoberta do inconsciente levou Freud à criação de um método de cura pela palavra, a talking cure, mas apesar de todos os seus esforços, ele não conseguiu de86

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monstrar “cientificamente” a eficácia do seu método nem de sua teoria. Lacan tomou para si esta tarefa: para saber se a psicanálise funciona, é necessário, antes, saber o que é o homem. O homem ou falasser tem uma estrutura de linguagem, e “a estrutura é o real que vem à luz na linguagem” (LACAN, 1972/2003, p. 477). Isso quer dizer que, se o inconsciente é estruturado como uma linguagem, a linguagem é a estrutura e o falasser está submetido aos seus efeitos. Se estrutura quer dizer linguagem e a estrutura se inscreve no real, o real é um efeito de discurso (LACAN, 1966c/2003, p. 231). Por isso, para a psicanálise, a estrutura se engancha no ponto em que o simbólico e o imaginário tomam corpo. Se o corpo é um efeito de linguagem e se a linguagem é a estrutura, a estrutura é o efeito da linguagem sobre o corpo. O homem não pensa com a alma, ele pensa porque uma estrutura, a de linguagem, recorta o seu corpo, corpo que nada tem a ver com a anatomia, como a histérica o testemunha; essa cisalha chega à alma com o sintoma obsessivo: pensamento com o qual a alma fica embaraçada, não sabe o que fazer (LACAN, 1973a/2003, p. 511). No Seminário 21, Lacan defendeu a tese de que “há saber no real”, e o saber no real está na ex-sistência, porque ele “insiste de fora e é perturbador” (LACAN, 1973-74/2016, p. 235). Complementou, ainda, que “[...] o inconsciente é alguma coisa no real” (Ibid., p. 237). Se a ciência e a psicanálise estão em busca da verdade e no discurso analítico a verdade está no lugar do saber, saber que é furado, inconsciente, real, para a psicanálise, a verdade é não toda. Em 1976, no Prefácio à edição inglesa do Seminário 11, Lacan concluiu que “se a psicanálise ex-siste, o inconsciente é o real” (LACAN, 1976/2003, p. 567). E é na experiência analítica, experiência estruturada como um discurso que se faz pela escrita, “[...] é apenas aí, que alguma coisa pode testemunhar o real” (LACAN, 1973-74/2016, p. 237), real que só se pode ter acesso pela letra (LACAN, 1974a/2002, p. 68). Ora, dizer que “há saber no real” significa que há um saber não articulado, inconsciente, puramente significante, que quando articulado a outro significante pode produzir um sentido equivocado, e isso faz sintomas. O sintoma, para a psicanálise, é uma formação do inconsciente, portanto, uma formação de significantes, razão pela qual a realidade não participa da sua formação (GERBASE, 2011, p. 19). A matriz sintomática depende de um encontro do real, ou, mais precisamente, de um encontro contingente com um significante de alíngua. O desencadeamento do sintoma resulta de um encontro com algo impossível de ser dito e que convoca o saber de alíngua. Enquanto ser de linguagem, o falasser se embaraça diante da falta de um significante que nomeie o Outro gozo, o real, que se inscreve no que Lacan denominou de ex-sistência. Para fazer suplência a essa falta, o sujeito faz sintoma, o modo de gozar do seu inconsciente. Afirmar que o sintoma é um even-

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to do real significa dizer que ele “é o efeito de um enunciado impossível de dizer” (GERBASE, 2010, pp.139-140). E é mesmo por isso que a psicanálise é a clínica do real, o que levou Lacan a afirmar que o que foi feito pela fala deve ser desfeito pela fala (LACAN, 1977/2000). Mas como demonstrar a eficácia analítica se ela é uma prática de linguagem que opera com os equívocos do significante? Como demonstrar a eficácia de uma análise cuja ética é a “práxis de sua teoria”, teoria que não pode ser tomada como modelo e uma práxis que se produz à medida das ocorrências? Lacan sempre esteve atento aos efeitos terapêuticos e didáticos produzidos em uma análise. Por isso, em 1967, ele propôs o passe, um dispositivo capaz de recolher esses efeitos, ali onde o analisante pode dar testemunho dos problemas cruciais da psicanálise (LACAN, 1966a/2003, p. 249).

MBE x PBEx A clínica psicanalítica não se baseia em evidências da realidade, mas na ex-sistência do real. E se o real é o impossível, sua eficácia não pode ser aferida pelos critérios da MBE, incapazes de avaliar a mudança na posição de gozo que o falasser ocupa no Outro, ao sair da impotência à impossibilidade e fazer do sintoma uma invenção. Entretanto, ainda que a MBE almeje unificar e padronizar o conhecimento para transmiti-lo, e que a psicanálise não permita tal objetividade, Lacan não deixou de se preocupar com a transmissão. Na Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola, Lacan apresentou o dispositivo do passe, com o objetivo de interrogar a análise do analista, de pôr à prova o fim de uma análise por meio da passagem de analisante a analista e as consequências do ato, pela emergência do desejo do analista. Em 1976, ele (LACAN, 1976/2003, p. 568) acrescentou ao passe um meio de “pôr à prova a historização da análise”. E no passe, historizar-se “de si mesmo”, como esclareceu Soler em Conferência no Brasil (SOLER, 2016), é historizar não a própria vida, mas a própria análise, isto é, historizar o processo analítico. Por isso, a Escola proposta por Lacan seria o lugar capaz de “sustentar o desejo que é preciso para resistir às seduções adversas do discurso contemporâneo e manter [...] as finalidades próprias da psicanálise” (SOLER, 2012, p. 220). Lugar do analista pôr à prova, junto à comunidade analítica, como ele “orienta a direção da cura, enquanto contribui para a elaboração contínua dos conceitos” (FINGERMANN, 2016, p. 58), contribuindo para o saber, sem o que, segundo Lacan, (1973b/2003, p. 314) “não há chance de que a análise continue a dar dividendos ao mercado”. Por esta razão, Fingermann (2017) propõe “enfrentar com ética e tática a ciência e o capital que pretende obsoletar a psicanálise”. Mas por que Lacan foi tão criterioso ao criar o dispositivo do passe, com uma série que inclui passantes, passadores, cartel do passe, AMEs? Pode-se pensar que a criação

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do dispositivo do passe seria não somente uma resposta de Lacan à IPA, mas uma estratégia para fazer frente a uma lógica biopositivista que estava por vir? Seria o passe a evidência da psicanálise? Que evidências esse dispositivo pode dar e a quem? Para um campo ser ciência, ele precisa ter um método, um campo teórico e um objeto. A psicanálise dispõe de teoria e método que já duram mais de um século. A ciência positivista não alcança a psicanálise, porque ela não pode ser verificada objetivamente, por ser uma ciência do particular. E, mais do que uma ciência, a psicanálise é uma experiência. Se a psicanálise é ciência, é uma ciência do real e o passe, um dispositivo que evidencia a ciência do real, da ex-sistência. Lacan (1965/1998, p. 891) acreditava que o primeiro obstáculo à comprovação do valor científico da psicanálise devia-se ao fato de a comunicação dos seus resultados ficar restrita ao setting analítico ou, com a criação de sua Escola, à comunidade de analistas. Na ciência, ao contrário, o saber é comunicado, porém, a forma lógica atribuída a esse saber termina por suturar o sujeito nele implicado. Considerando que o testemunho do passe seja uma forma de comunicar os resultados e o processo de uma análise, o dispositivo do passe poderia ser um meio de superar esse obstáculo. Entretanto, por mais criterioso que seja esse dispositivo, seria ele capaz de tornar as ideias psicanalíticas evidentes fora dessa comunidade? Evidência é indício, traço, sinal, prova, fundamento, comprovação, demonstração de que ali houve uma análise. Como comprovar a eficácia de uma experiência a partir de um dispositivo que visa verificar o real, o equívoco, a letra de gozo, o sem-sentido, a não ser por aqueles que passaram por ela? Se o passe é uma evidência da psicanálise, seria uma evidência restrita à comunidade de analistas. E se assim for, seria isto um problema crucial para a psicanálise na contemporaneidade?

Referências bibliográficas FINGERMANN, D. A (de)formação do analista – As condições do ato psicanalítico. São Paulo: Escuta, 2016. . Conferência: A (de)formação do analista – As condições do ato psicanalítico. Em Debate de Análise, Campo Psicanalítico de Salvador, 2017. Inédito. FREUD, S. (1895) Projeto para uma psicologia científica. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 1. . (1933) A questão de uma Weltanschaung. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. 12 . (1940) Esboço de psicanálise. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. 23 GERBASE, J. Os paradigmas da psicanálise. Salvador: Associação Científica Campo Psicanalítico, 2008, pp. 9-83.

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CARVALHO, Soraya

. Entrevista de Ida Freitas com Jairo Gerbase. Stylus: Revista de Psicanálise. Rio de Janeiro: Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, n. 20, 2010, pp. 139-145. . A hipótese de Lacan. Salvador: Associação Científica Campo Psicanalítico, 2011, p. 19. LACAN, J. (1965) A ciência e a verdade. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. . (1966a) Problemas cruciais da psicanálise. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. . (1966b) Respostas a estudantes de filosofia. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. . (1966c) Pequeno discurso no ORTF (Office de Radiodiffusion Television Française). In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. . (1967) Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. . (1972) O aturdito. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. . (1973-74) O seminário, livro 21: os não todos vagueiam. Salvador: Publicação não comercial do Espaço Mœbius, 2016. . (1973a) Televisão. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. . (1973b) Nota Italiana. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. . (1974a) A Terceira. Cadernos Lacan, volume 2. Porto Alegre: Publicação interna da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, 2002. . (1974b) Entrevista a Emilio Granzotto para a Revista Panorama. Magazine Litéraire, 2004. Disponível em: http://www.campopsicanalitico.com. br/media/1072/entrevista-1974-magazine-litteraire.pdf. Acesso em: 11 junho 2016. . (1976) Prefácio à edição inglesa do Seminário 11. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. . (1976-77) O seminário, livro 24: l’insu-que-sait de l’une-bévue s’aile a mourre. Aula de 11/01/1977. Disponível em: http://www.campopsicanalitico. com.br/media/1068/efeitos-de-significantes.pdf. Acesso em: 11 junho 2016. . (1977-78). O seminário, livro 25: o momento de concluir. Aula de 15/11/1977. Disponível em: http://www.campopsicanalitico.com.br/ media/1044/a-tagarelice-comentario.pdf. Acesso em: 11 junho 2017. MEZAN, R. Que tipo de ciência é, afinal, a Psicanálise? Nat. hum., São Paulo, v. 9, n. 2, pp. 319-59, dez. 2007. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.

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Medicina baseada em evidência x psicanálise baseada na ex-sistência

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Medicina baseada em evidência x psicanálise baseada na ex-sistência Evidence-based medicine x psychoanalysis based on ex-sistence resumo O modelo biotecnicista da medicina contemporânea adota como critério a eficácia do tratamento, regra fundamentada na medicina baseada em evidências (MBE). A eficácia terapêutica é determinada pelas leis de mercado, norteadas pelo discurso capitalista, e a psicanálise não escapa dos seus efeitos. Se a eficácia é medida por critérios objetivos, replicáveis e transmissíveis, a psicanálise vem sofrendo violentas críticas, acusada de ser ineficaz e de produzir resultados carentes de evidências. Este artigo tem como objetivo esclarecer que a psicanálise não é uma clínica baseada nas evidências da realidade, mas na ex-sistência do real. E se real é o impossível, sua eficácia não pode ser aferida pelos critérios da MBE. Como comprovar a eficácia de uma experiência a partir de um dispositivo que visa verificar o real, o equívoco, a letra de gozo, o sem-sentido, a não ser por aqueles que passaram por ela? Seria o dispositivo do passe a evidência da psicanálise?

palavras-chave: Psicanálise; medicina baseada em evidências (MBE); ex-sistência; dispositivo do passe.

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CARVALHO, Soraya

abstract The biotechnical model of contemporary medicine adopts as criterion the effectiveness of the treatment, based on evidence-based medicine (EBM). Therapeutic efficacy is determined by market laws, guided by the capitalist discourse, and psychoanalysis does not escape its effects. If efficacy is measured by objective, replicable and transmissible criteria, psychoanalysis has come under severe criticism, accused of being ineffective and producing results that lack evidence. This article aims to clarify that psychoanalysis is not a clinical practice based on the evidences of reality, but on the ex-existence of the real. And if the real is the impossible, its effectiveness cannot be measured by the EBM criteria. How to prove the efficacy of an experience from a procedure that seeks to verify the real, the misconception, the letter of jouissance, the nonsense, if not by those who have been through it? Is the institutional procedure of the Pass the evidence of psychoanalysis?

keywords: Psychoanalysis; evidence-based medicine (EBM); ex-existence; procedure of the pass.

Recebido: 24/05/2017

Aprovado: 06/06/2017

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O ensino e a transmissão da psicanálise1 Andréa Hortélio Fernandes O ensino e a transmissão da psicanálise fizeram parte dos questionamentos de Freud e Lacan ao longo de suas produções teórico-clínicas, e ainda hoje relançam questões cruciais para a psicanálise, em especial, no que diz respeito a como seria possível transmitir o que há de real na experiência psicanalítica. Cinco lições de psicanálise (1910) é um testemunho disso, por se tratar de publicação escrita das cinco conferências proferidas por Freud na Clark University de Manchester, em Massachusetts. Freud aceita o convite do professor Stanley Hall para proferir palestras durante o 20o aniversário da universidade, que acontece em agosto de 1909. Numa carta a Jung, Freud comenta que o convite traz a “promessa de uma forte estimulação da psicoterapia entre eles” (FREUD; JUNG, 1906-1914/1992, p. 294). Ele comenta ainda que o convite o honrava muito, e declara que “nós teremos muito o que falar sobre essa viagem e suas consequências para a nossa causa” (Ibid.). Durante muitos anos, a psicanálise esteve ausente das publicações científicas alemãs, ou mesmo foi objeto de crítica. Freud teve a preocupação de expandir a psicanálise para além do circuito alemão e judaico, e assim demonstrou muita satisfação com a receptividade da parte de Jung, que era suíço e protestante. Jung, além de Ferenczi, acompanha Freud na viagem aos EUA. Durante sua estadia nos EUA, Freud e seus companheiros de viagem vão pela primeira vez ao cinema, e ao avistarem a Estátua da Liberdade, Freud teria proferido a frase: “Eles não sabem que lhes estamos trazendo a peste!” (FREUD apud LACAN, 1956/1998, p. 404). Lacan afirma que ouviu de Jung esta frase como tendo sido proferida por Freud: “É assim que o dito de Freud a Jung, de cuja boca ouvi, quando ambos convidados da Universidade Clark avistaram o porto de Nova York e a célebre estátua que ilumina o universo” (Ibid.). Esta frase carrega um chiste, cuja interpretação pode ser articulada às questões relativas ao ensino e à transmissão da psicanálise. Lacan cita Nêmesis, deusa da mitologia grega, que tem o atributo da vingança e era chamada “a inevitável”, para dizer que a frase proferida por Freud, com ironia, teria um efeito de chiste “ao apanhar seu autor na cilada”. Neste caso, a Nêmesis “só precisou tomá-lo ao pé da letra do seu dito”. E aí Lacan adverte: “seria de se temer que ela juntasse a ele 1 Texto apresentado no Seminário Espaço-Escola do Fórum Salvador em 2016.

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uma passagem de volta na primeira classe” (Ibid.). Poderíamos tomar o inevitável como o real enquanto impossível que não cessa de não se escrever e convocar novas associações que vieram a ser elaboradas por Freud ao regressar dos EUA? Se algo dessa ordem se passou, podemos examinar os traços desde a discussão sobre os possíveis temas das conferências nos EUA. Jung propôs que Freud falasse sobre os sonhos; já Jones recomendou que ele tratasse de assuntos mais amplos. Após refletir, e levando em consideração a carta-convite de Stanley Hall, que lhe solicitava uma exposição de “informações mais generalizadas sobre a psicanálise”, Freud considera “que os americanos pudessem considerar pouco prático o assunto dos sonhos” (CHINALLI, 2010, p. 4). Havia muito, Freud já tinha declarado que os sonhos eram a via régia de acesso ao inconsciente; porém, prefere abordar a psicanálise de modo mais “prático” na América, e isso repercutirá nos ecos que a psicanálise terá por lá e está relacionado à transmissão e ao ensino da psicanálise. Sobre isso é interessante lembrar que Lacan, em 1956, declarara a necessidade de um retorno a Freud “para demonstrar o que a psicanálise não é e, [ ...], buscar o meio de recolocar em vigor aquilo que não cessou de sustentá-la em seu próprio desvio” (LACAN, 1956/1998, p. 404). Retomar aquilo que sustentou a psicanálise no seu próprio desvio estaria atrelado ao tratamento dado ao real pela clínica psicanalítica. Desde os primórdios da psicanálise, Freud constatou a ineficácia da sugestão na prática analítica. Para tratar o real faz-se necessário manter vivo o discurso analítico, como consta da Carta de Princípios da Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano2, para que, de fato, cada analista possa conduzir tratamentos se apoiando e reinventando, com o estilo próprio, as recomendações feitas por Freud (FREUD, 1912/1974). Nesse sentido, cabe então voltarmos ao texto Sobre o ensino da psicanálise na universidade (1918), no qual é discutida a introdução da psicanálise no currículo médico. O título húngaro do texto é “Deve a psicanálise ser ensinada na universidade?”. Segundo nota do editor, este artigo parece ter sido escrito para tratar as reformas na educação médica e, além de Freud, outros autores teriam feito artigos sobre esse tema. A inclusão da psicanálise no currículo dos estudantes de medicina de Budapeste teria provocado “uma considerável agitação” (FREUD, 1918/1974, p. 215). Freud vai tecer alguns comentários sobre o tema e sustentar certas condições para o ensino e a transmissão da psicanálise na universidade. “A inclusão da psicanálise no currículo universitário seria, sem dúvida, olhada com satisfação por todo psicanalista”, diz Freud (1918/1974, p. 216). Ao mesmo tempo, ele faz a ressalva de que o psicanalista pode prescindir completamente da universidade sem qualquer prejuízo para si mesmo. Freud apresenta o tripé da formação continuada do psicanalista: teoria que pode ser obtida na literatura especializada e nos encontros das sociedades psicanalíticas que dão provas de como

2 http://www.champlacanien.net/public/4/ifCharte.php?language=4&menu=1 94

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a formação é continuada. A experiência prática seria adquirida na análise pessoal e nos tratamentos que possam levar a cabo sob supervisão “com membros mais experimentados dessas sociedades” (Ibid., p. 215). Freud traz uma frase contundente acerca das sociedades de psicanálise, que merece atualização: “o fato de que uma organização desta natureza existe, deve-se, na verdade, à exclusão da psicanálise das universidades” (Ibid., p. 215). Em 1918, e ainda nos dias atuais, a discussão sobre a inclusão da psicanálise na universidade está atrelada a como incorporar a psicanálise à estrutura universitária, tendo o cuidado de manter vivo o discurso analítico em meio aos outros discursos, sobretudo o discurso da universidade e do mestre. Freud (1918/1974) diz que a psicanálise poderia proporcionar uma preparação para o estudo da psiquiatria. Hoje, podemos afirmar que o fato de a psicanálise ser ensinada na universidade pode colaborar para a despatologização da psiquiatria, pautada pelos manuais de classificação das doenças mentais. Freud já atentava para a evidência de que a psiquiatria era ensinada de forma exclusivamente descritiva, e assim ensinava “o estudante a reconhecer uma série de entidades patológicas, capacitando-o a distinguir quais são as incuráveis e quais são perigosas para a comunidade” (Ibid., p. 218). O diagnóstico e o tratamento psiquiátrico voltam a ser tema de discussão em 1957, no texto A psicanálise e seu ensino, de Lacan. Ele declara que ao tratar a questão “O que a psicanálise nos ensina, como ensiná-lo?”, não pretendeu dar uma ilustração do seu modo de ensino, mas sim retomar os princípios norteadores da psicanálise. Tal cuidado deve estar presente tanto no ensino como na transmissão da psicanálise na atualidade; se assim não acontecer, corre-se o risco de atingir a psicanálise na sua essência. Portanto, o ensino não deve almejar dar conta da formação teórica excluindo o que é transmitido pela análise pessoal. Para falar sobre a psicanálise e seu ensino, Lacan enfocará o conceito de sintoma para a psicanálise. O sintoma psicanalisável, seja ele normal ou patológico, distingue-se não apenas do índice diagnóstico, mas de qualquer forma apreensível de pura expressividade, por se sustentar numa estrutura idêntica à estrutura da linguagem. E com isso não nos referimos a uma estrutura a ser situada numa pretensa semiologia generalizada (LACAN, 1957/1998, p. 445). Sobre a despatologização no tratamento do sintoma pela psicanálise, Freud, em 1918, já chamava atenção de que a aplicação do método da psicanálise “não está de modo algum confinada ao campo dos distúrbios psicológicos, mas estende-se à solução de problemas da arte, da filosofia e da religião” (FREUD, 1918/1974, p. 217), problemas inerentes ao ser falante, portanto. Logo, não é necessário à psicanálise estar circunscrita ao saber da medicina ou da semiologia psiquiátrica. De fato, é na interlocução com as artes, a filosofia e a religião que podemos elencar o

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interesse científico da pesquisa em psicanálise. E isso será defendido por Freud ao escrever o texto A análise leiga: Não consideramos absolutamente conveniente para a psicanálise ser engolida pela medicina e encontrar seu último repouso num livro de psiquiatria sob a epígrafe “Métodos de Tratamento”, juntamente com procedimentos tais como sugestão hipnótica, autossugestão e a persuasão – que, nascidas da nossa ignorância, têm de agradecer a indolência e a covardia da humanidade por seus efeitos efêmeros. Ela merece um destino melhor e espero que o encontre (FREUD, 1926a/1974, p. 280). Em 1918, a inclusão do ensino da psicanálise por meio de aulas teóricas, “ministradas de forma dogmática e crítica” (FREUD, 1918/1974, p. 216), se mostrou como sendo uma oportunidade muito restrita de capacitar os estudantes de medicina a praticarem a psicanálise. Elas seriam a possibilidade de aprender algo sobre a psicanálise. Para fins de pesquisa, Freud defendeu que os professores deveriam ter acesso a um ambulatório onde seria possível demonstrar que o método e o tratamento psicanalítico coincidem, e daí surgiria uma pesquisa a partir da psicanálise, a partir da clínica, e nesse sentido, o ensino tenderia a uma transmissão a partir da experiência clínica da psicanálise. Tal ponto faz parte das recomendações aos praticantes da psicanálise desde Freud, quando ele ressaltou que a psicanálise pessoal é, em si, didática. Tanto, que ele não fazia recomendações de leituras de textos psicanalíticos para seus pacientes; em contrapartida sustentava que a experiência pessoal da psicanálise era capaz de transmitir o que há de mais amplo e valioso da literatura psicanalítica (FREUD, 1912/1974). Isso aponta para o que Lacan irá desenvolver ao formular que a psicanálise é em si didática, seja a psicanálise pessoal condição necessária, mas não suficiente para tornar-se analista, seja também a condução de análises sob supervisão. O ensino da psicanálise volta a ser tema de interesse de Lacan (1970/2003) no texto Alocução sobre o ensino, em que indaga o que acontece ao discurso do analista se cair nas malhas do ensino. Ele diz que está em seus princípios não esperar nada do fato de seu discurso ser tomado como um ensino. Neste ponto ele está, assim como Freud, fazendo uma crítica ao ensino doutrinário da psicanálise, já que a formação do analista é tributária de um saber fazer com o inconsciente, e isso se dá na experiência clínica. Nesta perspectiva, ele vai examinar o lugar ocupado pelo saber nos quatro discursos. Lacan começa afirmando que “um ensino não significa que com ele vocês tenham aprendido alguma coisa, que dele resulte um saber” (LACAN, 1970/2003, p. 303). Lacan afirma seu espanto “de que a todo instante tenha parecido evidente que o ensino era a transmissão de um saber, tornando-se por horizonte o pêndulo

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que vai e vem entre aquele que ensina e o ensinado” (Ibid., p. 304), aí ele faz menção ao professor e ao aluno. Quanto ao binômio professor-aluno, Lacan declara que encontramos seu corolário na relação médico-paciente, ativo-passivo, o informativo e o entrópico. Lacan adverte que “pode ser que o ensino seja feito para estabelecer uma barreira ao saber” (Ibid.). Isto já tinha sido destacado por Freud ao reconhecer que a literatura psicanalítica podia fomentar a resistência dos analisantes. Partindo disso, Lacan sustenta que cada um só pode ser ensinado à medida do seu saber; quanto ao professor, Lacan lembra que “já faz um tempão que todos sabem que isso é para eu me instruir” (Ibid., p. 303). No que diz respeito ao ensino da psicanálise, Lacan questiona o que vem a ser analisado: isso se ensina? Por meio dos discursos, Lacan vai identificar como o professor pode ser efeito do seu ensino. Ele localiza esse efeito no lugar do do discurso do mestre.

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“O professor se produz no nível do sujeito, tal como o articulamos com o significante que o representa para outro significante” (Ibid., p. 305), mas deixa um resto que aponta para um saber não todo que pode circular do professor para o aluno, do aluno para o professor. Esse resto, em vez de despertar o horror de saber, deve causar o desejo de saber. Contudo, neste discurso, estando o saber no lugar do outro, faz com que o sujeito seja destituído do seu saber pelo saber do outro. É assim que opera o cientificismo e o empirismo: o saber está no pesquisador, no cientista, que tem o saber do sujeito como objeto de pesquisa. Um exemplo seriam as entrevistas dirigidas, que tentam formular perguntas que tornem evidente aquilo que o pesquisador precisa escutar do sujeito entrevistado. De todo modo, o objeto a como resto, como produção deste discurso, revela o impossível da educação, pois o ensino guarda em si algo irredutível, não atingindo a completude, e é o que pode relançar o desejo de saber. O discurso do mestre, como discurso do inconsciente, revela a operação de alienação ao significante. Ao estar alienado aos significantes do Outro, o sujeito pode ser foracluído pelo saber do mestre e da universidade. Em contraponto, o manejo da transferência convoca o analista a manejar com a suposição de saber a ele dirigida, advertido de que não possui o saber sobre o analisante. A suposição de saber é dirigida ao inconsciente, condição para que uma análise se dê graças ao manejo da transferência suportado pelo desejo do analista.

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O saber, vindo ao lugar do agente, é o quarto de volta que institui o discurso da universidade.

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“O saber serve de agente, [...] por se revelar como ensino. O ensino é o saber descaracterizado pelo lugar que ele impera” (Ibid., p. 306), pois para a psicanálise é o não saber que engendra o saber. Isto porque o inconsciente, entendido como um saber não sabido, toma o sintoma como o que convoca sentido. Já no discurso da universidade, o saber é colocado como a Suma, como a totalidade de algo, como o mais alto grau do saber acumulado, o que o faz equivaler à soma e aos gradus universitários. Nesse discurso o sujeito comparece com sua própria divisão ao se prestar ao serviço do saber como agente; isso promove a divisão subjetiva do sujeito, que faz sintoma. Sintomas tão comumente presentes durante as teses e mestrados, em que o sujeito pode, em alguns casos, ser um compilador de uma teoria. Lacan traz então a frase contundente e atual: “o sono do saber gera monstros, na verdade civilizados” (Ibid., p. 303). Contrariamente ao discurso do analista no qual o saber inconsciente está no lugar da verdade, no discurso da universidade os significantes-mestres (S1) que sustentam o saber universitário estão no lugar da verdade. Lacan conclui que “para chegar ao ensino, o saber deve, por algum aspecto, ser um saber de mestre, ter algum significante-mestre que constitua sua verdade” (Ibid., p. 307). O discurso muda de figura se o saber é uma produção do “próprio significante-mestre, em posição de ser interrogado pelo sujeito elevado a agente”. Estamos então falando do discurso da histérica, $ → S1/ a → S2. Lacan diz que “sem dúvida, isso é criar um enigma” (Ibid., p. 307). Por isso a importância da histerização do discurso na entrada em análise e na transmissão da psicanálise. Desta forma, a transmissão da psicanálise pode ir mais além do seu ensino quando parte de questões cruciais colocadas pelo real próprio à clínica.

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O saber chega ao lugar da verdade pela meia-volta construída pelo discurso, que tem a distribuição oposta à do discurso do mestre sendo, portanto, seu avesso. Temos, então, o discurso do analista.

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Lacan diz que pela relação do saber com a verdade adquire verdade aquilo que se produz de significantes-mestres no discurso analítico. Ao pedirmos que o analisante associe livremente, fica claro que não se trata de algo a ser ensinado, mas a ser manejado pela transferência. Lacan destaca que o “saber faz a verdade” do discurso do analista, e nem por isso a análise como didática dispensa o analista da hipoteca do saber, uma dívida para com o saber inconsciente e para com a psicanálise. Isto pode ser articulado à formação continuada do psicanalista que só se autoriza por si mesmo, mas não sem os outros, não sem a exposição daquilo que faz ao conduzir análises e quando se dedica à elaboração continuada da teoria psicanalítica a partir das questões trazidas pela clínica. A experiência do passe é primorosa quanto a isto, pois ela seria em si uma tentativa de transmissão na qual “o passante toma seu próprio caso clínico, seu percurso de análise, como lugar que abriga um saber. Isso é o que o anima a trabalhar sobre sua própria experiência” (NOMINÉ, 2016, p. 43). Tal fato mostra a aposta que Lacan fez no passe, pois ao longo de sua obra ele se questionou sobre o ensino e a transmissão da psicanálise como também no que o passe poderia contribuir para fazer avançar a psicanálise. Para Lacan, cada psicanalista é forçado a reinventar a psicanálise, e isso toca o desejo de psicanálise tal como foi discutido no Encontro Internacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano em Medellín, em 2016. Nesta perspectiva é muito pertinente a afirmação de Nominé de que é preciso “que cada psicanalista reinvente o modo com o qual a psicanálise pode durar a partir do que conseguiu tirar (de sua experiência) por ter sido, por um tempo psicanalisante” (LACAN apud NOMINÉ, 2016, p. 43). É importante retomar a necessidade de a psicanálise em intensão e em extensão funcionar como “um casal inseparável” – Un couple inséparable – título do trabalho de Martine Mènes, em Medellín, sobre a formação do analista. Nominé retoma este ponto ao abordar o fato de que, em certa época, entre os analistas se defendia que a transferência de trabalho seria o desenlace da transferência. A transferência de trabalho Nominé define como: [...] o que se transmite ao final da cura é o trabalho e se transmite do analista para o analisante que, ao final da cura, já não necessita da presença do analista para continuar seu trabalho de analisante. [...]. Trata-se, antes, de se apoiar em seu próprio trabalho fundado na transferência estabelecida em seu percurso na análise (NOMINÉ, 2016, p. 44).

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Para concluir, a retomada por Lacan da frase em que Freud afirmou que levava a peste aos americanos e poderia estar trazendo-a consigo na bagagem de volta, sem o saber, pode ser associada ao ensino e à transmissão da psicanálise. Freud, ao concordar que os americanos poderiam julgar menos “prático” o tema dos sonhos, promoveu certo abalo no seu desejo de psicanálise, o que culminou com uma tentativa de passar um tom tranquilizador do inconsciente. Mais tarde, ele vai reconsiderar a aceitação de suas ideias nos EUA, numa entrevista concedida ao jornalista George Viereck: Tenho receio da minha popularidade nos EUA. O interesse americano pela psicanálise não se aprofunda. A popularização leva à aceitação superficial sem estudo sério... A América foi o primeiro país a reconhecer-me oficialmente. A Clark University concedeu-me um diploma honorário quando eu ainda era ignorado na Europa. Entretanto, a América fez poucas contribuições originais à psicanálise (FREUD, 1926b/ s./d.). Lacan não cede ao seu desejo de psicanálise e conclui o texto Alocução sobre o ensino dizendo que “ao se oferecer ao ensino, o discurso psicanalítico leva o psicanalista à posição do psicanalisante, isto é, a não produzir nada que possa dominar, malgrado a aparência, a não ser a título de sintoma” (LACAN, 1970/2003, p. 310). É desta forma que ele pode transmitir algo sustentado pelo real do sintoma próprio à experiência da psicanálise como atesta o discurso da histérica.

Referências bibliográficas CARTA DE PRINCÍPIOS DA INTERNACIONAL DOS FÓRUNS DO CAMPO LACANIANO. Disponível em: http://www.champlacanien.net/public/4/ ifCharte.php?language=4&menu=1. Acesso em: 10 abril 2016. CHINALLI, M. A chegada da peste: cem anos da viagem de Freud aos EUA (19092009). Arquivo Maravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 4, n. 7, out. 2010, p. 4. FREUD, S.; JUNG, C. (1906-1914) Correspondance 1906-1914. Paris: Gallimard, 1992. FREUD, S. (1912) Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. 12. . (1918) Sobre o ensino da psicanálise na universidade. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. 17.

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. (1926a) A análise leiga. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. 20. . (1926b) O valor da vida – entrevista rara de Freud. Disponível em: http://www.sedes.org.br/Departamentos/Formacao_Psicanalise/ActoFalho9/ entrevista_com_freude.htm, s/d. Acesso em: 10 abril 2016. LACAN, J. (1956) A coisa freudiana. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. . (1957) A psicanálise e seu ensino. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. . (1964) Ato de fundação. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. . (1970) Alocução sobre o ensino. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. NOMINÉ, B. Desenlace da transferência. Stylus: Revista de Psicanálise, n. 32. Rio de Janeiro: Associação Fóruns do Campo Lacaniano, 2016, pp. 37-45.

O ensino e a transmissão da psicanálise The teaching and transmission of psychoanalysis resumo O artigo examina o ensino e a transmissão da psicanálise partindo da visita de Freud a Clark University e as impressões dele do interesse americano pela psicanálise. Discute o ensino da psicanálise na universidade a partir do texto de Freud sobre o ensino da psicanálise na universidade de 1918 e atualiza o debate com Lacan, tomando o texto Alocução sobre o ensino como chave de leitura. A especificidade da psicanálise é ressaltada pelo lugar que o saber ocupa nos quatro discursos tendo por perspectiva defender que a transmissão da psicanálise tem por suporte o real próprio à experiência da psicanálise tal qual a posição do objeto a no discurso da histérica.

palavras-chave: Psicanálise; ensino; transmissão; saber; real.

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abstract The article examines the teaching and transmission of psychoanalysis as of Freud’s visit to Clark University and his impressions on the American interest in psychoanalysis. The text discusses the teaching of psychoanalysis in the university from Freud’s text on the teaching of psychoanalysis at the University of 1918 and updates the debate with Lacan, taking the text Address on teaching as a key to reading. The specificity of psychoanalysis is emphasized by the place that knowledge occupies in the four discourses, whose perspective is to defend that the transmission of psychoanalysis is supported by the real itself to the experience of psychoanalysis, such as the position of the object a in the discourse of the hysteric.

keywords: Psychoanalysis; teaching; transmission; knowledge; real.

Recebido: 24/05/2017

Aprovado: 02/07/2017

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A força assertórica dos valores sexuais Leonardo Pimentel Lacan se considerava um autor cristalino. Esta é uma ideia um tanto curiosa. Seu estilo excêntrico, laborioso e, por vezes, de um gongorismo árduo, provocou no meio psicanalítico a criação de um dialeto bem particular com seus aforismos próprios, comumente repetidos em bloco. Em vez desta direção sintética, tomaremos uma analítica. Gostaríamos de propor aqui alguns desdobramentos a partir de uma breve passagem que data de 1971, da terceira aula do seminário… ou pior. Nela, Lacan (1971-72/2011, p. 39) se exprime assim: “O homem, a mulher, é isto que chamamos de valores sexuais. Que exista, de início, o homem e a mulher é um negócio de linguagem”. Não é de se admirar que, com a obscuridade dos símbolos matemáticos que se seguem e com as complicadas ilações lacanianas, esta seja uma passagem pouco comentada. Entretanto, acreditamos que a partir dela possamos compreender melhor a tese de que os lados quânticos são posições no discurso, e também retirar daí uma preciosa articulação a respeito do caráter das identidades sexuadas. À primeira vista, poderíamos relacionar os valores sexuais ao gênero gramatical dos substantivos, ao fato de que na língua francesa – e na portuguesa – existem dois, e apenas dois gêneros.1 Lacan (1971-72/2011) chega a indicá-lo quando afirma que estes são valores “recebidos” a partir de todo idioma. É nítido que a língua portuguesa promove uma separação simbólica de dois lugares; o português herdou este modo de classificação do latim vulgar, de quem é filho. Gênero, em latim genus, quer dizer “classe” e não tem, a princípio, nenhuma conotação sexual, como se pode ver nas línguas com um só gênero, como o persa. Este gênero gramatical nada tem a ver com o gênero sexual simbólico, isto é, com a ideia de uma classificação especificamente sexual para os seres, pois mesmo nas línguas com um só gênero, como o estoniano, um substantivo pode ser acompanhado ou modificado por um determinante masculino ou feminino, criando assim uma separação mais evidente do objeto referido. O estoniano, que possui apenas o gênero neutro, conta com certos nomes de profissões formados por sufixação: do verbo ōpetama (“ensinar”), forma-se ōpetaja (“professor/a”). Contudo, como demonstram alguns linguistas (HELLINGER; MOTSCHENBACHER, 1 Segundo a gramática francesa: “Todo substantivo possui um gênero inerente, masculino ou feminino” (RIEGEL; PELLAT; RIOUL, 2009, p. 274). Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 34 p.103-109 agosto 2017

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2015), neste idioma ainda persiste uma derivação indicativa de gênero, como no caso da palavra kuningatar (rainha), formada por sufixação,-tar, a partir do substantivo kuningas (rei). Os valores recebidos pela língua são independentes do gênero gramatical, e podem, ou não, se expressar por meio dele. Mesmo que em estoniano os substantivos possam ter gênero sem identificação sexual, ainda assim existem os substantivos mees e naine, “homem” e “mulher”, como pontos de ancoramento referencial. Contudo, para além da disjunção entre os morfemas de gênero da língua e os sexos, gostaríamos de chamar a atenção para a seguinte pergunta: por que Lacan chama “homem” e “mulher” justamente de valores? Avançaremos uma hipótese, uma relação com a lógica. Mas antes, precisamos situar a posição de Lacan a respeito da diferença sexual. No início dos anos 70, ela está centrada na ideia dos semblantes sexuais. Repitamos o que Lacan disse no Seminário, livro 18: “O caráter essencial [dos sexos…] não tem nada a ver nem com um nível celular, seja ele cromossômico ou não, nem com um nível orgânico […], é, a saber, um nível etológico. Este nível é propriamente aquele de um semblante” (LACAN, 1971/2007, p. 32). A noção de semblante é bem espinhosa, e para não usar e abusar do lacanês, retomaremos seu exemplo paradigmático, segundo Lacan: o arco-íris. Ele é, mais propriamente, um fenômeno visual. O arco-íris não existe na realidade objetiva, sendo um produto da conjunção dos raios refratados nas pequenas gotas de água (Figura 1). Se pudéssemos ver abaixo do horizonte, descobriríamos que ele não é um arco, mas um círculo, a borda de um cone que tem em seu centro o observador. Isto implica que cada pessoa vê um arco-íris diferente, ali onde não há nada. Ele é uma formação retiniana que, por afetar outros observadores próximos, cria a impressão de um arco-íris único na realidade externa, mas seu referente não existe. Esta é a caracterização lacaniana do semblante.

Figura 1: Formação retiniana do arco-íris Fonte: PIMENTEL, L. Formação retiniana do arco-íris, 2017.

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A força assertórica dos valores sexuais

Também não existe referente para o sexo. Diz Lacan (1970/2003, p. 206): “No inconsciente; o homem não sabe nada da mulher, nem a mulher do homem”. Além disso, nem os sujeitos sabem o que é ser homem ou mulher, e os divãs estão repletos desta pergunta histérica. Há muito, Freud (1933/2011) se rendera ao fato de que a psicanálise não podia trazer nenhum conteúdo novo para estes termos; e, na tentativa de buscá-lo, o sentido de “homem” e “mulher”, acabou esvaziando-os de todo o conteúdo cultural que tinham herdado, pois não se tratava da anatomia, da polaridade sexual, das identificações edípicas e nem mesmo das escolhas objetais. Como não se sabe nada sobre o ser homem e o ser mulher, restou aos falantes apenas o parasser, neologismo criado por Lacan (1971-72/2011) a partir do verbo “parecer”, modificado pelo prefixo grego παρά, que significa “ao lado”. Vejam o caso de “paramédico”, ele é uma pessoa que certamente pode ajudar caso haja um acidente, mas ele não é um médico, ele é o que está à côté, algo que não é exatamente aquilo. O parasser evoca a incognoscibilidade do ser, já que este foi perdido pela entrada na linguagem. A linguagem, ao fazer emergir o sujeito, causou a perda de seu referente ontológico; as confusões metafísicas estão aí como testemunhas disso. Não há o referente para a sexualidade, a psicanálise atesta que ela se apresenta sem tropismos naturais, cheia de suturas sintomáticas; sendo, na verdade, uma construção fantasística diferente para cada sujeito. O semblante sexual é um parasser: uma formação subjetiva diante da falta de referência, assim como o arco-íris. Não existe o ser completamente desenvolvido sexualmente, em sua plena genitalidade heteronormativa, portador de uma identidade essencialmente biológica. Cada falasser se constitui com suas pulsões particulares, parciais, e com seus desencontros diante dos objetos; esta é a única sexualidade possível. Os semblantes sexuais, por estarem sempre à côté, remetem à impossibilidade de definição última do ser homem e do ser mulher. Lacan estava às voltas com isso nos anos 70. Este é um prólogo necessário, pois tentaremos articular esta falta de referente do semblante sexual com alguns conceitos da lógica fregeana. Gottlob Frege foi outro autor “cristalino”. Inclusive, acredita-se que o insucesso junto aos seus contemporâneos tenha sido resultado da sua labiríntica Conceitografia, texto que introduz novas formas gráficas de representação para enunciados lógicos (Figura 2). Este texto, junto com suas outras conceitualizações filosóficas, influenciou Lacan profundamente. Dentre elas, salientaremos uma em específico, a crítica de Frege à teoria correspondencista da verdade, da qual emana sua noção de “valor”.

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Figura 2: Representação para enunciados lógicos Fonte: FREGE, W. (1879). Begriffschrift: Selections. In: The Frege reader. Oxford: Blackwell Publishing, 1997, p. 63.

A lógica era a ciência da verdade, para Aristóteles (2010), era a arte de produzir resultados verdadeiros. O grande problema que atormentou – e ainda atormenta – os filósofos é justamente saber como definir a verdade. A teoria correspondencista defende que a verdade é caracterizada pela coaptação dos enunciados à realidade; isto quer dizer que uma proposição é verdadeira quando corresponde a um fato real. A afirmação “a neve é branca” é verdade, porque existe a neve, e ela é branca. A correspondência, portanto, pressupõe uma imanência ontológica dos fatos. O problema levantado por Frege é o seguinte: como avaliar esta correspondência? Como descobrir, por exemplo, se uma cédula de dinheiro é verdadeira? Os mais ingênuos diriam: basta compará-la a uma que seja autêntica. Mas como determinaríamos a autenticidade desta, sem compará-la a uma terceira? Este é, portanto, um processo infinito; a verificação da conformidade desencadeia um circuito de correspondências sem fim, pois qualquer referência à verdade exige uma definição prévia de verdade. E, assim, Frege (1997) chega à conclusão de que a verdade é indefinível, o que é bem lacaniano. Frege se recusa veementemente a qualquer resposta de cunho metafísico e toma a verdade como um valor, um valor referido à força assertiva de uma sentença. Isto significa que é a própria asserção, a própria afirmação, que carrega o valor de verdade para uma determinada relação. Em Conceitografia, seu texto mais conhecido, vocês podem se deparar com o seguinte diagrama:

Figura 3: Representação genérica de uma asserção universal Fonte: FREGE, W. (1879). Begriffschrift: Selections. In: The Frege reader. Oxford: Blackwell Publishing, 1997, p. 71.

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A força assertórica dos valores sexuais

Esta é a forma gráfica que Frege assume para a representação genérica de uma asserção universal. Ela se decompõe em duas partes: a primeira é a linha horizontal, chamada de “traço de conteúdo”, que exprime o conteúdo conceitual de um juízo. Na proposição universal “todo homem é mortal”, o conteúdo conceitual é “ser mortal”. A segunda parte é o traço vertical, chamado de “traço de juízo”. Nesta conhecida proposição, “todo homem é mortal”, o juízo está implícito e pode ser formulado como: “É verdade que… todo homem é mortal”. É a afirmação contida no traço de juízo que confere a uma proposição seu valor de verdade. Mas se vocês o acham desnecessário, pois é evidente que os homens são mortais, considerem o exemplo: “todo centauro tem seis membros”. A não ser que alguém afirme isto, seria bem difícil se assegurar da morfologia de um ser mitológico. A verdade está fora de qualquer referência ao mundo dos sentidos; fazer uma asserção pressupõe infundi-la de verdade. Por isso, Frege (1997) considera a verdade como um ato de discurso e como um conceito sui generis, o que significa, literalmente, “de seu próprio gênero”. O que Freud e Lacan afirmam a cada momento, a cada reformulação teórica, com todos os movimentos dialéticos que foram necessários, é que os gêneros, os sexos, são tão indefiníveis quanto à verdade. Homem e mulher não possuem um referente, sendo irremediavelmente separados da assunção biológica e dos constrangimentos socioculturais. Toda a questão dos sexos fica, então, referida ao discurso, referida à bipartição sexual empregada no mundo simbólico. Só existem dois valores sexuais: homem ou mulher, do mesmo modo como só existem dois valores veritativos: falso ou verdadeiro. E, ao tomar a asserção como forma de conceder verdade à posição sexuada, não nos referimos a uma afirmação consciente, vocálica, disso. Não é dizer “sou homem” ou “sou mulher”. A força assertórica dos valores sexuais está na tomada de posição inconsciente no discurso, definida pela posição subjetiva diante da castração. Os “homens” seriam aqueles submetidos integralmente à norma fálica, enquanto que as “mulheres” conservariam uma partição en plus, a mais (LACAN, 1972-73/1975). É o que Lacan escreve em suas fórmulas quânticas, em que se encontram as “únicas definições possíveis da parte dita homem ou dita mulher para aquele que se encontra na posição de habitar a linguagem” (LACAN, 1972-73/1975, p. 74). Os enunciados lógicos que compõem as tábuas da sexuação são definições que não possuem ancoramento ontológico, nem anatômico, para a diferença dos sexos, pois são herdeiros da falta de referente introduzida com a noção de semblante. Assim, seu único esteio seria o destino do falasser em ter que, a partir de sua relação com a castração, asseverar a semiverdade de seu parasser sexual.

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Referências bibliográficas ARISTÓTELES. Órganon. São Paulo: Edipro, 2010. DESCARTES, R. Météores. In: Œuvres complètes. Paris: Gallimard, 2009, v. 3. FREGE, W. (1879). Begriffschrift: Selections. In: The Frege reader. Oxford: Blackwell Publishing, 1997. . The Frege reader. Oxford: Blackwell Publishing, 1997. FREUD, S. (1933). 33ª conferência. La feminilidad. In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 2011, v. 22. HELLINGER, M.; MOTSCHENBACHER, H. Gender across languages. Filadélfia, 2015, v. 4. LACAN, J. (1969-70). Le séminaire, livre 17: l’envers de la psychanalyse. Paris: Éditions du Seuil, 1991. . (1970) Radiofonia. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. . (1971). Le séminaire, livre 18: d’un discours qui ne serait pas du semblant. Paris: Éditions du Seuil, 2007. . (1971-72). Le séminaire, livre 19: …ou pire. Paris: Éditions du Seuil, 2011. . (1972-73). Le séminaire, livre 20: encore. Paris: Éditions du Seuil, 1975. RIEGEL, M.; PELLAT, J.-C.; RIOUL, R. Grammaire méthodique du français. Paris: PUF, 2009.

A força assertórica dos valores sexuais The assertive force of sexual values resumo A psicanálise trouxe significantes questões relacionadas à diferença sexual e às posições sexuadas ao longo de sua história. Em 1933, Freud chega à incrível conclusão de que é impossível conceder significados novos e acabados para os termos “homem” e “mulher”. E nos anos 70, Lacan aprofunda esta posição definindo-os como valores, valores sexuais. Esta caracterização não é óbvia, indo além do mero sentido de “possibilidades”, porque está diretamente ligada à ideia de Gottlob Frege a respeito dos valores veritativos. Portanto, o autor propõe uma discussão sobre a ideia lógica de valor em comparação à ideia lacaniana de valor sexual; e para tanto, assenta seu argumento no conceito de semblante.

palavras-chave: Lacan; Frege; valor; sexualidade; semblante.

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A força assertórica dos valores sexuais

abstract Psychoanalysis has brought significant issues pertaining sexual difference and sexual positions throughout its history. In 1933, Freud comes to the astounding conclusion that it is impossible to give new and thorough meanings to the terms “man” and “woman”. And in the 70s, Lacan will further this position by defining them as values, sexual values. This characterization is not obvious, going beyond the meaning of “possibilities”, because it is directly linked to Gottlob Frege’s idea of truth value. Therefore, the author proposes a discussion about the logic idea of value in comparison to the lacanian idea of sexual value; and to do so, he bases his argument on the concept of semblant.

keywords: Lacan; Frege; value; sexuality; semblant.

Recebido: 25/05/2017

Aprovado: 21/06/2017

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Psicanálise x Religião: que triunfo?1 Maria Vitoria Bittencourt Na atualidade, a religião está presente em vários campos da sociedade, tais como apolítica, os meios de comunicação, a educação, e ainda outros. Este fenômeno chega ao ponto de representantes de certas crenças ou igrejas ocuparem funções políticas significativas e, o que é pior, lançando mão de argumentos religiosos para fundamentar propostas de mudanças constitucionais! Em nosso ambiente político-cultural busca-se homogeneizar psicanálise e religião até nas livrarias, onde livros de esoterismo se tornaram vizinhos de estantes de livros de psicanálise. Não se trata de um fenômeno exclusivamente nacional, pois o encontramos também na França. Algumas religiões procuram absorver os conceitos da psicanálise para propor uma terapia e uma formação ditas psicanalíticas! Pergunto-me, então, se poderíamos afirmar que Lacan tinha razão ao anunciar, em 1974, o triunfo da religião (LACAN, 1974/2005). No ano anterior, em Televisão, ele já preconizava as consequências funestas do retorno da religião: “Deus, recuperando a força, acabaria por ex-sistir, o que não pressagia nada melhor do que um retorno de seu passado funesto” (LACAN, 1973/2003, p. 533). Freud foi um pouco otimista, ao prever que a ciência tomaria o lugar da religião. Uma ilusão. Sua concepção sobre a religião se fundamentava na ideologia cientificista, pois, para ele, o desenvolvimento da ciência teria como efeito o declínio da religião. Como os sábios de sua época, ele acreditava que a ciência dissiparia a paixão pela ignorância que caracteriza a religião, ou seja, seu obscurantismo. Tratava-se, a seu ver, de uma ilusão indispensável à civilização, um freio para o sentimento de culpa gerado pelo assassinato do pai, evitando desta maneira que os humanos se trucidassem por qualquer motivo. Para Freud, a religião pertence à dimensão do privado, em particular, do neurótico obsessivo, sendo considerada uma experiência subjetiva que permite suportar o peso da vida. Ele a situa ao lado dos sedativos, que, naquela época, já eram o ópio do povo. Segundo Freud, o sujeito religioso é suscetível de ser analisado em termos edipianos, pois se encontra completamente submetido à vontade do Deus-Pai (FREUD, 1928/1974, p. 200). 1 Trabalho apresentado no XVII Encontro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil em São Paulo, 2016 –“Problemas cruciais para a Psicanálise na atualidade”.

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A posição de Lacan em relação à religião é diametralmente oposta à de Freud. Em seu diagnóstico, trata-se de um “triunfo da religião”, pois a ciência e seu discurso não conseguiram eliminar a prática religiosa, muito pelo contrário, fortaleceram sua produção. Em sua conferência A terceira, Lacan afirma que “se a psicanálise tiver êxito [...] nos livrando tanto do real quanto do sintoma (como o faz a religião) [...] ela se apagará de ser somente um sintoma esquecido” (LACAN, 1974, inédito). Mas sua posição é paradoxal, pois em 1974, na Conferência de Imprensa em Roma, ele declara que a religião “é infatigável” (LACAN, 1974/2005, p. 79) e que a psicanálise não sobreviverá, a não ser que fracasse na sua função, podendo assim perdurar como uma necessidade. A sobrevivência da psicanálise depende de seu fracasso, isto é, depende do seu fracasso em responder à demanda de reduzir o sintoma e o real. Caso contrário, ela poderá desaparecer. Esses termos bélicos, pronunciados em Roma, evocam uma luta contra a religião dita por ele “a verdadeira”, ou seja, a religião católica romana, que fabricou a encarnação: o verbo se faz carne na pessoa do filho de Deus. No mistério da eucaristia, o corpo e o sangue do Cristo não são simples representações, o que explica a eficácia da religião no reforço da fantasia de imortalidade para os sujeitos. Mas o comentário de Lacan não se atém à religião católica romana, pois concerne também o que chamou de “falsas religiões”, e estas são numerosas. Podemos considerar que algumas religiões cristãs importaram tais concepções, localizando-as em uma encenação da encarnação, desta vez do diabo, ilustrada nos rituais exorcistas, eventualmente transmitidos pela televisão. Mas o que está em jogo na luta entre a religião e a psicanálise? Tudo gira em torno do sintoma, do sentido e do real, que podemos articular à psicanálise, à religião e à ciência. A religião triunfará graças ao inesgotável acervo de sentido, ou melhor, inesgotável fábrica de sentido para todos os fenômenos, um sentido que vem tamponar a falha do saber, S( ). Diferentemente de como ele procede em A ciência e a verdade (1965), a questão de Lacan em 1974 não é a estrutura da religião, mas sua função fundamental: produzir sentido, isto é, proteger-nos do real. Porém, esse real não é mais o da natureza, mas aquele que a ciência produz cada vez mais. E, no que se refere ao sentido, eles conhecem um bocado. São capazes de dar um sentido realmente a qualquer coisa. Um sentido à vida humana, por exemplo. São formados nisso. Desde o começo, tudo o que é religião consiste em dar um sentido às coisas que outrora eram as coisas naturais. [...] E a religião vai dar um sentido às coisas mais curiosas, aquelas pelas quais os próprios cientistas começam a sentir uma ponta de angústia. A religião vai encontrar para isso sentidos truculentos (LACAN, 1974/2005, p. 80). O real em questão, Lacan o define como “o real que poderia muito bem desembestar, sobretudo desde que ele tem o apoio do discurso científico” (LACAN, 1974, iné112

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dito). Segundo Colette Soler, nesse momento Lacan não se refere ao real do impossível da relação sexual, mas ao real da vida das bactérias, traficadas em laboratórios, razão da angústia dos cientistas (SOLER 2005-2006, inédito, aula de 24/04/2006). Esse real é aquele que Lacan escreve como a terceira rodela do nó borromeano, autônomo em relação ao simbólico e ao imaginário, ou seja, o real fora-do-simbólico. Colette Soler sustenta essa ideia ao indicar que em A terceira, “estranhamente, Lacan escreve as ciências da vida, não na rodela do simbólico, não na intersecção entre simbólico e real, mas na intersecção onde escreve o gozo Outro, fora do simbólico” (Ibid.). Trata-se do “real real” das bactérias, pois o real da não relação sexual implica um impossível a dizer, por isso é condicionado pela linguagem. Vemos assim que se produz uma nova aliança entre a religião e a ciência, a partir da qual a religião produz os sentidos “truculentos”. Tivemos o testemunho disso em um trecho do livro de Marcelo Crivella, atual prefeito do Rio, que explicava como toda doença tem uma causa, um vírus ou uma bactéria, definida como uma força do diabo. Por esse motivo, só pode ser tratada pelo poder divino. Sentido mais truculento... impossível! Não podemos negar que a psicanálise também tem uma aliança com a religião. Freud recusou essa aliança ao elaborar uma teoria da religião, em seu texto Atos obsessivos e práticas religiosas (1907/1974) e, mais radicalmente, em O futuro de uma ilusão (1927/1974) e Moisés e o monoteísmo (1939/1974). Quanto a Lacan, a religião é um tema constante em seu ensino, principalmente no que se refere à “verdadeira religião”. Ao inscrever a prática psicanalítica na função da fala no campo da linguagem, Lacan (1953/1998) atribui todos os seus efeitos ao simbólico, ou seja, à ordem que articula, para cada sujeito, a linguagem e o parentesco. O Nome-do-Pai, termo altamente vinculado à religião católica, é localizado por ele no centro do simbólico, pois “a atribuição da procriação ao pai só pode ser efeito de um significante puro, de um reconhecimento, não do pai real, mas daquilo que a religião nos ensinou a invocar como o Nome-do-Pai” (LACAN, 1966/1998, p. 562). Nesse sentido, podemos constatar que a teoria do pai em Lacan induziu muitos analistas ao culto do pai, num retorno a posições religiosas em que alguns se tornaram guardiões da ordem familiar, pregando contra o casamento dos homossexuais e a adoção de crianças por eles. Eis o retorno funesto da religião na psicanálise. No Seminário, livro 11, Lacan (1964/1973) colocou em questão o desejo de Freud, como o “pecado original da psicanálise”, que trouxe consequências funestas na formação da instituição psicanalítica estruturada como uma igreja, o verdadeiro “drama da organização dos psicanalistas” (LACAN, 1964/1973, p. 211). Tivemos uma versão mais recente dessa aliança na Escola que se definia como uma “seita boa”. Mais adiante, no Seminário livro 17: O avesso da psicanálise

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(1969-70/1992), Lacan prolonga a crítica ao pai freudiano e sua solução paterna, introduzindo uma nova economia, aquela do gozo. Finalmente, com a pluralização dos nomes do pai e a teoria dos nós borromeanos, Lacan extrai da psicanálise toda conotação religiosa. Voltando ao triunfo da religião anunciado por Lacan, podemos indagar como a psicanálise pode preservar sua prática nesse contexto. Lacan nos dá várias indicações nos textos acima citados. Antes de mais nada, deve-se levar em conta a afirmação de Lacan: “Chamo de sintoma o que vem do real. Quer dizer que isso se apresenta como um peixinho cuja boca voraz só fecha ao colocar o sentido entre os dentes” (LACAN, 1974, inédito). Essa imagem de Lacan do “peixinho voraz” é uma maneira de ilustrar o fato de que, ao encontrar o real, o ser falante tenta lhe dar um sentido, faz apelo ao sentido. Quando se interroga o sentido da existência, é o peixinho voraz que tenta dar sentido a algo que está fora-do-sentido. Nesse ponto, o real em questão é o da não existência da relação sexual, que engendra o sintoma. Quando se trata da construção de um delírio, a psicose ilustra bem o encontro com o real fora-do-sentido, e demonstra como, no ser falante, o real recorre ao sentido. A entrada em análise apresenta essa mesma operação, pois é, antes de mais nada, uma demanda de sentido a partir do encontro do sujeito com um significante sem sentido. Por isso, Lacan comenta que as “religiões falsas” acolhem os indivíduos que sofrem, ofertando-lhes pela via da sugestão um sentido miraculoso, cujo efeito terapêutico é inegável. Lévi-Strauss demonstrou a eficácia simbólica de várias práticas religiosas. Porém, não se sabe por quanto tempo ela funciona, pois se trata de um deslocamento infinito, que não toca na causa do sintoma. Quando Lacan aborda o sentido do sintoma, ele lembra que Freud definiu o sentido sexual do sintoma como satisfação substitutiva. “O sintoma tem um sentido que só se interpreta corretamente [...] em função das primeiras experiências sexuais, na medida em que encontra [...] a realidade sexual” (LACAN, 1975/1985, p. 12). Lacan acrescenta duas alternativas que resultam da prática da interpretação do sentido: ou o sintoma prolifera ou ele morre. “O sentido do sintoma não é aquele com o qual nós o alimentamos para sua proliferação ou extinção, o sentido do sintoma é o real” (LACAN, 1974, inédito). Já o dissemos, é o real da não existência da relação sexual que engendra o sintoma. A psicanálise, como a prática da fala, pode operar com o real, sob a condição de não se reduzir o sintoma ao sentido. Isso requer a interpretação pelo equívoco e, com ela, a anulação de qualquer inclinação religiosa. Para concluir: no que tange à religião, que resposta devem dar os analistas para alcançar a subjetividade de sua época? Ainda em A terceira, Lacan (1974) parece atribuir uma “missão dos analistas” nos seguintes termos: “[...] que seja do real de que depende o analista nos anos que virão, [...] não é de forma alguma do analista

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que depende o advento do real. O analista tem por missão detê-lo” (Ibid., inédito). Deter o sentido religioso com o qual se alimenta o sintoma poderia ser dito “o triunfo do sintoma”? Ousamos dizer que ao fracasso da psicanálise corresponde o triunfo do sintoma, ou seja, se a psicanálise se reduzir a uma prática do sentido, fracassa em responder à demanda de reduzir o sintoma. Se, por outro lado, a psicanálise operar com o sintoma em sua dimensão real, definido por Lacan como o modo em que cada sujeito goza do seu inconsciente, sustentando-o em sua existência de ser falante, eis o triunfo do sintoma. A missão do analista seria, então, uma política do sintoma, a manutenção de um certo respeito pela função do sintoma, essencial para a subsistência de um sujeito em seu destino singular.

Referências bibliográficas FREUD, S. (1907) Atos obsessivos e práticas religiosas. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. 9. . (1927) O futuro de uma ilusão. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. 21. . (1928) Uma experiência religiosa. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. 21. . (1939) Moisés e o monoteísmo. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. 23. LACAN, J. (1953) Função e campo da fala e da linguagem. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. . (1964) Le séminaire, livre XI: les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse. Paris: Seuil, 1973. . (1965) A ciência e a verdade. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. . (1966). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. . (1969-70) O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. . (1973) Televisão. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. . (1974) Le triomphe de la religion. Paris: Editions du Seuil, 2005. . (1974) A terceira. Cadernos Lacan, v. 2. Circulação interna da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, março de 2002, pp. 39-71. Inédito. . (1975) Conférence à Genève sur le symptôme, Bloc Notes de psychanalyse n. 5, Genebra, 1985. SOLER, C. (2005-2006) La troisième de Jacques Lacan. Séminaire de lecture de texte, Collège clinique de Paris. Inédito.

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BITTENCOURT, Maria Vitoria

Psicanálise x Religião: que triunfo? Psychoanalysis x Religion: what triumph? resumo O presente artigo pretende levantar uma questão de um dos problemas cruciais da Psicanálise na atualidade: a presença da religião em nossa sociedade. A partir de afirmações de Lacan em 1974, em que anuncia o triunfo da religião, assim como de suas elaborações em seu texto A terceira, esse trabalho procura examinar o fundamento dessa posição de Lacan assim como as consequências para a clínica psicanalítica. Trata-se de articular a relação entre psicanálise e religião e seus efeitos para o conceito de sintoma como real, tentando dar uma resposta política à prática dos psicanalistas: deter o sentido “religioso” que alimenta o sintoma.

palavras-chave: Psicanálise; religião; sintoma; sentido; real.

abstract The present article intends to bring up a matter of one of the crucial problems of Psychoanalysis in our present time: the presence of religion in our society. From Lacan’s assertions in 1974, announcing the triumph of religion, and the elaborations in his text La troisième, this work seeks to examine the basis of Lacan’s position, as well as the consequences to the psychoanalytic clinic. Its purpose is to discuss the relation between psychoanalysis and religion and the effects to the concept of symptom as real, trying to give a political answer to the psychoanalysis practice: to detain the “religious” sense that nourishes the symptom.

keywords: Psychoanalysis, religion; symptom; meaning; real.

Recebido: 24/05/2017

Aprovado: 22/06/2017

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direção do tratamento



A palavra e o seu poder de cura: a palavra como fármaco Silvana Pessoa É sabido que o conceito de cura em psicanálise, por meio da fala, não implica total remissão de sintomas, mas sim uma transformação, uma nova forma de enlaçar, um afrouxamento do nó da neurose, um savoir-y-faire com o sintoma, ou, dizendo de outro modo, a identificação com o sintoma, naquilo que há de mais próprio em cada um. Desta forma, parece-me crucial tratar neste ensaio de um tema crucial, qual seja: a palavra como fármaco, haja vista que, dentre os que nos procuram em sofrimento para fazer uma análise, há pessoas que se curam. Mas como? Cabe aos psicanalistas investigarem e tentarem responder. Esta é uma pergunta muito recorrente para os que iniciam uma clínica. Escuto-a no divã, vinda de alguns, e de alguns outros que acompanho em supervisões. Afirmações sensacionais do tipo: “Não sei bem o que estou fazendo, mas é fato que alguma coisa está acontecendo”. Sim, está, e o que está acontecendo? Pergunta importante que jamais deveria nos abandonar, pois se somos pesquisadores neste campo, não deveríamos recuar diante da práxis da teoria; e a psicanálise não terá vida longa, certamente, se os analistas não souberem para onde aponta a direção da cura e se não questionarem o que fazem – e nestes me incluo. Como disse Lacan diversas vezes em seus seminários, trata-se de saber como é que se sussurra ao sujeito que se tem em análise alguma coisa que tem como efeito curá-lo? Ele diz que essa é uma questão de experiência, na qual desempenha um papel que ele chamou de sujeito suposto saber. “O sujeito suposto saber é alguém que sabe. Ele sabe o truque, já que falei de trucagem” (LACAN, 1953/1998, p. 274). Sabe-se que as respostas nas diferentes escolas serão sempre distintas quanto a este e muitos outros pontos, e por aqui, no campo lacaniano, serão muitas também, e tudo bem! Para tratar desta questão, encontrei uma interlocução interessante entre Elisabeth Thamer, psicanalista brasileira radicada na França, que escreveu uma tese (2008) sobre o estatuto sofístico da psicanálise, e Jairo Gerbase, que trata da hipótese da cura pela palavra em seu último livro Atos de fala (2015). Ambos, Gerbase e Thamer, aproximam Freud e Lacan dos sofistas e dos enunciados performativos de John Austin (1962), filósofo inglês, discutido no livro de Barbara Casin (2012). Enunciados que fazem ser o que é dito e que podem atuar como fármaco. Nossos colegas, Thamer e Gerbase, estão de acordo em muitos pontos e em desacordo em alguns outros. Destaco aqui dois pontos, pois podem nos interessar neste ensaio. Inicia Jairo: Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 34 p.119-128 agosto 2017

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PESSOA, Silvana

Devo procurar o efeito terapêutico da fala na própria fala e não no locutor nem no referente. Devo considerar que a fala tem efeito a partir do que ele mesmo diz em análise. Thamer, diferentemente, pensa que o efeito terapêutico tem um efeito efêmero se não contar com a presença e a intervenção do analista, e que é preciso que o analista opere para que uma cura possa alcançar efeito definitivo de mudança do sujeito (GERBASE, 2015, p. 89). Para Thamer, apenas a fala do analisando sob transferência é ato performativo, o que Gerbase não concorda. Cito-o: Não é porque o sentido de uma interpretação tem efeitos que o analista detenha a verdade, pois os efeitos de uma interpretação são incalculáveis. Há um saber que não pensa, não calcula, não julga, mas trabalha para o gozo. [...]. Não é a palavra que sai da boca do analista que cura; não é a palavra que sai da boca do analisando que cura; é a fala que cura, certas palavras curam. De um lado a palavra é um significante da identificação; de outro é um significante da interpretação. Por um lado, a fala é um significante que faz sintoma, por outro é um significante que desfaz sintoma (Ibid., p. 91). Para ele a direção da cura implica encontrar um enunciado performativo, um significante singular da nominação de cada sujeito, que desfaça o sintoma, um enunciado performativo que venha dissolver o sintoma pelo dito. Este é o primeiro ponto. O segundo ponto é que para Thamer o ato não é um dito nem um dizer, não é uma ação, nem um fazer, logo não é performativo, nem performance. Para ela o ato é construído por Lacan para evidenciar que nem tudo é linguagem, e postula que ele escolheu a palavra ato para ultrapassar o limite da interpretação. Gerbase argumenta que essa hipótese defendida na sua tese é um equívoco e justifica: “No universo do falasser tudo é linguagem. Linguagem é tudo do universo simbólico, não apenas a fala, a linguagem falada, mas a cor, a imagem e é mesmo essa ideia que temos do significante. [...] neste sentido, ato é linguagem, [...], repetir é agir, é linguagem” (GERBASE, 2015, p. 50). Debate interessante e necessário no nosso campo, um campo profícuo de pesquisa cujo modelo é o chiste. [...] com um jogo de palavras se realiza o gozo de rir. Da mesma maneira com o sonho. Um jogo de palavras se realiza o gozo de dormir. Igualmente com o lapso, com um jogo de palavras se realiza o gozo de se envergonhar. Finalmente, com o sintoma, com um jogo de palavras se realiza o gozo de sofrer. Eis o que Lacan denominou como formações do inconsciente e o modo de operar com elas, ou seja, a prática da psicanálise foi definida

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como talking cure, chimney sweeping, catarse, sugestão e persuasão, léxicos freudianos ou tagarelice, prática de bavardage, [léxicos lacanianos] que implicam que as palavras têm consequência (Ibid., pp. 10-11). Se a fala funda um fato – mesmo quando ela ordena, roga ou insulta –, esse fato pode ser: somatizar, temer, sofrer, ou seja, modos de dizer em ato (Ibid., p. 11), e foi Freud quem inventou um método para tratar disso. Se há falas venenos que fazem sintomas, fazem as pessoas se sentirem mal, diminuídas, humilhadas, há falas remédios, que desfazem sintomas, que modificam estados de espírito, que podem deixar alguém alegre e saltitante, precisamos saber operar com elas. Os sofistas praticavam a equivocação muito bem, pois entendiam a fala como demiúrgica, por fazerem existir o mundo a partir das palavras e tinham habilidade de tratá-las pelo equívoco ou entender as suas propriedades transformativas, por exemplo, transformar o adjetivo redondo em um adjetivo substantivado, como redondeza sem referente. Seja por essas propriedades transformativas, dos adjetivos substantivados sem referente (redondeza, besteira, prudência etc.), qualquer fala performativa, ou atos de fala, pode ser considerado fármaco ou veneno pelos seus efeitos; logo, aquilo que escutamos, desde sempre, ou desde a infância, é determinante para “compor” o que somos. Dizendo de outro modo, quando do enlace da palavra com o corpo algo se esboça, isso produzirá efeitos, para o melhor e para o pior. O significante é performativo (quando dizer é fazer), ele afeta o corpo, ele faz “o nó que somos nós”. Jamais se saberá precisamente quando isto se dá, pois para que a palavra tenha essa dimensão contingente, performativa, equívoca, que se inscreve em necessidade no sintoma, ela precisa ser inesperada, não calculada, contingente. Todavia, também se pode dizer que ela acontece na hora do traumatismo, no encontro com o furo (SOLER, 2010). De qualquer modo, jamais se saberá o que se fará daquilo que se diz, nem o que se transmite; é possível constatar apenas os efeitos do traumatismo, deste encontro, para agir com a mesma velocidade da língua, utilizando os seus mesmos recursos, pois “a psique humana é uma hierarquia entrelaçada em que acontecem várias voltas estranhas” (HOFSTADER, 1997). Extraímos disso duas importantes questões: 1) se é do enlaçamento da palavra com o corpo que algo se esboça, temos duas categorias: palavra e corpo. Por outro lado, se dissermos que a palavra é corpo, temos uma só e mesma coisa. 2) o que cura é a fala endereçada ao analista ou o que cura são os enunciados performativos com as suas características? Perguntas importantes, que nos levam ao conceito de moterialismo, e, para dar conta deste intento, partirei de uma paródia. Os cristãos repetem nos seus cultos dominicais, não necessariamente com fervor, o credo que implica uma topologia trina: “creio em Deus pai, todo-poderoso; criador do céu e da terra e em seu Filho e no Espírito Santo”. O psicanalista poderia recitar um outro, que não deixa de implicar também uma trindade, qual seja: Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 34 p.119-128 agosto 2017

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“creio no Real, que diz a verdade, mas não fala; no Simbólico, que diz a mentira, mas que passa a verdade quando fala e fala muito e no Imaginário que tem sempre razão, pois é sustentado pela consciência, no ‘eu sei’, que sustenta o falso”. Desta maneira, Lacan enunciou, numa aula de 15/02/1977, o conteúdo de A carta roubada, que não se sabe qual é, mas não importa, pois o que conta é o reconhecimento desse saber que sustenta o jogador. Um saber que não implica a verdade ou a falsidade, mas que implica o reconhecimento da MOTerialidade, um prematuro encontro da palavra com o corpo, um tipo de mais-de-gozar, que leva a dizer “isso é alguém”, ou seja, um enlaçamento particular do RSI, um nó borromeano, logo uma posição da primeira questão, palavra enlaçada num corpo. Na Conferência em Genebra sobre o Sintoma, Lacan (1975/inédito) diz deste enlaçamento assim: “pelo modo como a alíngua foi falada e também ouvida por tal e qual na sua particularidade, que alguma coisa em seguida reaparecerá nos sonhos, em todo tipo de tropeços, em todas as espécies de modo de dizer, em que reside a tomada do inconsciente, o que faz com que cada um não tenha encontrado outros modos de sustentar a não ser o que há pouco chamei sintoma”. Sintoma que ata os três registros: Real, Simbólico e Imaginário. Os princípios da moterialidade, como enlaçamento definido em 1975, estão presentes desde 1947, quando Lacan afirma, em Formulações sobre a causalidade psíquica, que “a linguagem do homem, esse instrumento da sua mentira, é atravessada de ponta a ponta pelo problema da sua verdade” e que “a palavra [mot] não é signo, mas nó de significação. Uma palavra pode designar muitas coisas além do objeto; pode ser uma coisa por metáfora, uma outra por trocadilho” (Ibid., p. 167). Logo, palavra sempre equivoca enlaçada em um nó. No texto Função e campo (1953/1998) temos um belo exemplo das múltiplas possibilidades de sentido das palavras e como elas identificam cada um dos seres: os devas, os homens e os assuras. Estes três grupos, ao terminarem seu noviciado com Prajapati, pediram que este lhes falasse, e, o deus do trovão disse simplesmente: “Da”. E o que se fez ouvir? Para os devas, submissão; para os homens, dom, e para os assuras, perdão. “Da, da, da”. Submissão, dom, perdão. “Vós me ouvistes”, concluiu o deus hindu. Não importa o significado do “Da”, ou o conteúdo da carta, quando o jogador sabe a regra do jogo, sabe o truque. Toda linguagem é equívoca, matéria, substância-gozante, corpo – entendo aqui a justa defesa de Gerbase – e não estímulos substitutivos que se utilizam no lugar de coisas, um organon, como define Aristóteles, palavras com sentidos unívocos, pautadas pelo princípio da não contradição. Neste ponto, entendo que posso dizer que a palavra é corpo e que ela, enlaçada num corpo, faz nó, faz sintoma, faz o que somos. Resta ainda o exame da palavra e do seu poder de cura, da palavra como fármaco. Freud (1891/1979) sacou este funcionamento, essa regra do jogo, essa trucagem desde seu primeiro ensaio a Interpretação das afasias, e Lacan o referendou em 122

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Função e campo dizendo que “a técnica não pode ser aprendida, nem corretamente aplicada quando se desconhece os conceitos que a fundamentam” (LACAN, 1953/1998, p. 274). Quais sejam? Os recursos da língua: a materialidade das palavras, dos sons, a função poética, ou seja, mais a forma como transmitimos (combinação das palavras, pronúncias, efeitos sonoros e rítmicos) do que a função referencial ou denotativa (o assunto ou o conteúdo de uma informação). Difícil apreender este funcionamento, principalmente porque os analisantes trazem as narrativas, usam muito mais a função denotativa, visam transmitir um contexto, uma situação, tentam fazer prosa e esquecem que falar é compor versos, fazer uso de pausas, ritmos e tons. Mas se os analistas lacanianos não reconhecerem o “credo”, que se extrai do RSI, o nó próprio de cada um, este “tipo de mais-de-gozar, que leva a dizer ‘isso é alguém’, estar-se-á num caminho longe de chegar a um material dialético talvez mais ativo que a carne do partido” (LACAN, 1970/2003, p. 413). Arrisco a dizer que alguns neurologistas já reconhecem este material dialético. Eles entendem que muitos aspectos de nossos processos cognitivos, disposição para aprendizagem e memória se baseiam em inferências inconscientes, em processos que ocorrem sem que tenhamos consciência deles. Eles constatam como alguns tipos de experiências repetidas ficam codificadas na memória procedural (KANDEL, 2009, p. 405). Para mostrar o que tento transmitir com este trabalho, de como a linguagem (palavras, sons, cores, imagens) afeta o corpo, tratarei de um caso – tal como fez Freud com Schreber –, de um testemunho publicado em umlivro intitulado Em busca da memória, escrito por um neurocientista, Nobel em 2000, Eric Kandel, e também da sua fala no documentário Em busca da memória.1 Vamos ao caso. Neste documentário, Kandel, um neurocientista vienense naturalizado americano, visita lugares da sua infância e rememora fatos mais traumáticos. Ele explica com isso como a interação com outros ou as lembranças de fatos podem mudar a nossa estrutura cerebral, principalmente numa psicoterapia, em que experiências passadas podem ser revividas de outro lugar, numa idade mais velha e num ambiente mais protegido. Ele demonstra como experiências vividas com mais intensidade transformam os estímulos bioquímicos nas células, fortalecem a memória de longa duração e a aprendizagem. O que é possível concluir após ler o livro e assistir ao documentário é que há influência do vivido naquilo que somos, e que nós, psicanalistas, precisamos ainda fazer mais um esforço para demonstrar que essas experiências são de linguagem, pois é a linguagem que faz a coisa, ela que está disponível, seja em experiências

1 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=afZ5MFc2whE. A referência começa do ponto 29:26” do vídeo, onde Kendal diz: “let’s get inside” até 58:12” quando diz: “I am going swiming”.

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sensoriais, cheiro ou cor (olhar ou voz), ela tem corpo, ela muda o corpo; e a MATERIAlidade do ser humano deve ser procurada na propriedade desse corpo que é falar, que é fazer uso do significante, assim o humano aprende e se torna aquilo que é. Foi por isso que Lacan denominou de parlêtre, que em português costuma-se a traduzir por falasser. A substância do falasser é a fala. Fazendo metalíngua, Lacan traduziu o dazain heideggeriano por être l’a, ser o a. Desse modo, ele reuniu fala e objeto para poder definir a materialidade do ser, não como consistência imaginária, mas como consistência lógica (GERBASE, 2015, p. 42). Por isso se dá importância aos recursos da língua e da poesia, e até mesmo a ideia de que as palavras são corpo, quem sabe, para promover cadeias e sinapses como se vê no videodocumentário. Arrisco dizer que vi ali a mostração de uma “moterialidade gozada” (SOLER, 2010, p. 25), em que a palavra é corpo, corpo sutil, mas corpo, e a linguagem, campo. Destaco algumas falas de analisandos para interrogar as questões postas neste ensaio. 1) alguém no divã diz, ao falar sobre efeitos da sua análise: “algo destravou quando você disse um dia, num tom moderado, ‘é preciso falar’; enquanto que na análise anterior, eu pensava, mas não falava”. Será que dá para inferir com essa passagem que o tom utilizado pelo analista, mais do que o enunciado, liberou a fala para que ela mesma operasse como fármaco?; 2) Alguém, no início de uma sessão, diz: “me deu branco!”, e prossegue dizendo: “Em algum momento algo deslocou aqui na minha posição, aconteceu uma disjunção – a fala não é fala, mas efeito de fala... não sei nomear o que aconteceu aqui... sei que deu uma volta. Ter me aproximado da morte, mesmo que seja a de um outro, teve uma dimensão de beleza, de fugacidade. Talvez por isso o branco do início da sessão”. Seria aqui a própria fala e o silêncio entre as palavras enunciadas que atuaram como fármaco?; 3) “Quando me descolo do outro ou do que as pessoas me demandam, sinto que o dispêndio de energia muda. Mas, às vezes, caio no mesmo padrão, um certo gozo masoquista, e vejo que mais uma vez estou me sacrificando”. Seria aqui um funcionamento, o gozo masoquista, que fica registrado no sistema nervoso, tal como uma “moterialidade gozada”? Mais um exemplo desta moterialidade, que faz pensar, pode ser extraído do caso em questão. As lembranças de Kandel no documentário, relatadas com riso ou lágrimas – principalmente quando escuta música ou quando lembra da atrocidade feita por “pessoas refinadas” contra os judeus – aproximam-se do afeto de perda (do brinquedo) e da dor (pelo desaparecimento de pessoas queridas), mesmo que a sua história seja boa (foi bem acolhido nos Estados Unidos, tem uma família amorosa, realizou-se no trabalho). No entanto, esse afeto, que não cessa de se escrever, esse encontro prematuro com o corpo, que levou Kandel a “fazer o seu nó”, o seu sintoma, aquilo que lhe é mais próprio, pode levá-lo a ter uma constante curiosidade pelo entrelaçamento da mente com o corpo, da psicologia com

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as neurociências e com a biologia molecular. O sintoma, aqui entendido como resultado desta marca mnêmica, uma memória permanente, que foi construída sobre um primeiro significante originário, a perda (a subtração súbita do carro azul), mas que também se liga à falta estrutural, o significante do trauma que não tem nenhuma espécie de sentido. O significante do trauma é um S(A), um significante que não é um significante incluso no Outro, que se fixou nas contingências dos encontros de gozo. Ora, em si mesmo ele não tem nenhuma espécie de sentido, ele [Lacan] vai, aliás, renomeá-lo. Traço Unário; e teria sido preciso dizer desde já que ele era do inconsciente real, salvo que Lacan postulava, então, que ele fazia cadeia com os significantes da demanda. Está, portanto, bem certo que mesmo enquanto ele afirmava o inconsciente estruturado como uma cadeia, Lacan postulava sua ancoragem na moterialidade de um significante fora de sentido, aquele mesmo que o dedo apontado da Direção da cura [...] designava (SOLER, 2010, pp. 29-30 – chave nossa). O sinthoma – este extraído ao final da direção da cura já estava desde o início – é o seu nó, seu nome próprio, seu poema, haja vista que o maior interesse de Kandel foi fazer o entrelaçamento da psicologia com a neurociência, foi dar continuidade ao trabalho de Freud. Ele nunca conseguiu se curar da dor da perda do carrinho azul, retirado dele de forma estúpida, mas conseguiu transformar a dor, numa estúpida e talvez divertida existência. Ele achou a sua forma de enfrentar e se divertir na vida. O livro e o documentário em questão tiveram um fim, e as análises também terão. Mas resta uma questão: se na direção do tratamento o analista opera pelo sentido ou significação, não sem levar em conta o real, o sem-sentido em jogo em cada atendimento, como fazer com que o final de uma análise não seja tão difícil e utópico, especialmente para os que conhecem ou praticam a psicanálise, essa constante balança entre verdade e real, entre o gozo do sentido e o gozo daquilo que o tampona e que faz ali como que um contrapeso? Trago uma referência que me orienta nesta questão. Ora, a análise, inconsciente real ou não, opera por e no nível do dizer. Em outras palavras, nós somos poema, ou seja, sinthoma, o sintoma-letra aí estando incluído, mas não identificável, a não ser a título hipotético. É isso que a referência final à poesia implica. Somente ali onde o poeta faz cálculo do equívoco para produzir um dizer que lhe seja próprio, o dizer de seu poema; pois bem, o analista não pode fazer igual, ele não pode calcular sua interpretação, a verdade sendo tão incalculável quanto o real. Ele vai

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ali, portanto, a esmo, “todos os lances são permitidos”. Além disso, ele tem que lidar com um poema que não é o seu, e que ele não conhece, mas que lhe pedem, eventualmente, para corrigir. Então, para levar em conta esse poema como real, sinthoma, ele se utiliza, em seu dizer, de um outro real, o da alíngua e de seus equívocos, os quais podem jogar contra o gozar do poema, já que é por eles que o poema se fez. Não obstante, remanejar o poema – isto é, o nó – não é, necessariamente, corrigir o gozo opaco, nem encontrar a palavra do real. A análise é o que faz verdade, mas está excluído que ela faça verdade do real. Então, retificar o poema é amarrar de outra forma, por nó [épissure] – sutura, diz Lacan –, e isso consiste, antes, a mudar não o núcleo opaco ininterpretável, do qual tudo indica que ele permanece opaco, mas a balança entre verdade e real, entre o gozo do sentido e o gozo daquilo que o tampona e que faz ali como que um contrapeso. É por essa razão que Lacan não disse que, no passe, vinha-se testemunhar do real, mas da verdade mentirosa. Não se testemunha do real tampouco quanto não se interpreta dele, dado que testemunhar dele ou interpretá-lo seria fazê-lo passar à verdade. Aliás, podemos constatar que a partir de 1975-1976, todas as elaborações de Lacan consistem em explorar modificações possíveis do enodamento sob o efeito do dizer analítico, esse dizer que não é o do analista, é o que resulta dos efeitos do equívoco interpretativo sobre o dizer analisante. Sua morte põe ali um termo, sem dúvida, prematuro, em que o momento de concluir que fica em suspenso deixa um certo sentimento de algo inacabado (Ibid., s/n). Explorar modificações possíveis do enodamento sob o efeito do dizer analítico, a trucagem que o analista opera e que resulta dos efeitos do equívoco interpretativo sobre o dizer do analisante, a palavra como fármaco; eis o que me parece importante pesquisar e apontar neste nosso campo, na nossa clínica, num encontro que trata dos problemas cruciais da atualidade, cuja medicalização tem sido muito utilizada para tratar de problemas dos seres falantes.

Referências bibliográficas AUSTIN, J. How to do things with words? Cambridge: Harvard University Press, 1962. CASIN, B. Jacques le shophiste Lacan, logos e psychanalise. Paris: Epel Editions, 2012. GERBASE, J. Atos de fala. Salvador: Associação Científica Campo Psicanalítico, 2015. HOFSTADER, D. Godel, Escher e Bach: laços eternos. Lisboa: Gradiva Portugal, 1979. KANDEL. E. Em busca da memória. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

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LACAN, J. (1953) Função e campo da fala e da linguagem. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. . (1972-73) O seminário, livro 20: mais ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. . (1970) Radiofonia. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. . (1975) Conferência em Genebra sobre o sintoma. Disponível em: http:// www.campopsicanalitico.com.br/media/1065/conferencia-em-genebra-sobre-o-sintoma.pdf. Acesso em: 25 maio 2017. . (1976-77) L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre. Disponível em: http://www.campopsicanalitico.com.br. Acesso em: 25 maio 2017. SOLER, C. Uma interpretação que leve em conta o real. In: Stylus: Revista de Psicanálise, n. 24. Rio de Janeiro, 2010. THAMER E. Lacan e a Sofística: sobre o estatuto sofístico da psicanálise. Tese (Doutorado - École Doctorale “Concept et language”) - Universidade de Paris – Sorbonne, Paris, 2015. VERDIGLIONE, A. Matemática do inconsciente. In: FREUD, S. (1891). A interpretação das afasias. Lisboa: Edições 70, 1979.

A palavra e o seu poder de cura: a palavra como fármaco The word and its healing power: the word as a drug resumo Esse artigo tenta investigar como, pela operação do significante, há pessoas que se curam, mesmo que o analista não seja possuído pelo desejo de curar. Para responder esta questão, a autora trabalha o conceito de moterialismo, da palavra como fármaco, e faz uma articulação disso com as novas descobertas das neurociências, particularmente desenvolvidas pelo neurocientista Eric Kandel. Esse ensaio defende que o sujeito suposto saber é alguém que sabe o truque de como se cura uma neurose sem o uso de medicações, mas que para isso é necessário que este esteja referenciado pelos conceitos que a fundamentam, ou seja, os recursos da língua: a materialidade das palavras, dos sons, a função poética, ou seja, mais a forma como transmitimos (combinação das palavras, pronúncias, efeitos sonoros e rítmicos) do que a função referencial ou denotativa (o assunto ou o conteúdo de uma informação).

palavras-chave: Lacan; neurociência; moterialismo, palavra, fármaco.

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abstract This article tries to investigate in what manner, by the operation of the signifier, there are people who cure themselves, even though the analyst is not possessed by the desire to cure. To answer this question, the author works on the concept of moterialism, the word as a drug, and articulates this with the new discoveries by the neurosciences, particularly those developed by neuroscientist Eric Kendal. This essay defends that the analyst is someone who knows the trick of how to cure a neurosis without the use of medications. In order to do this, it is necessary that the analyst is referenced by the nature of the language - the materiality of words, the sounds, the poetic function, the way people communicate (combination of words, pronunciations, sound and rhythmic effects) more than by the referential or denotative function of their speech (the subject or content of a piece of information).

keywords: Lacan; neuroscience; moterialism; word; drug.

Recebido: 23/05/2017

Aprovado: 27/06/2017

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Sexo, gênero. Sintoma e sinthoma Sheila Abramovitch O tema do transexualismo encontra-se em destaque em nossa sociedade, e na clínica psicanalítica começam a chegar sujeitos que também nos endereçam essa questão. Como a psicanálise pode contribuir para o estudo do transexualismo? Sexo e gênero, sintoma e sinthoma serão cotejados no percurso deste texto. Apresento dois exemplos, nos quais sujeitos, em cuja certidão de nascimento estava escrito “sexo feminino”, diziam sentir-se do sexo masculino – João Nery e Julia. Transexualismo é um termo criado pelo endocrinologista alemão-americano Harry Benjamim, que em 1953, sob o olhar da clínica médica, estabelece limites e marcadores verificáveis e diferenciados entre travestis, trans e homossexuais. Propõe o alívio do sofrimento moral por meio de tratamentos com hormônios e uma experiência no socius com o sexo proposto. Caso o desejo persista, a cirurgia para redesignação de sexo é indicada (BENJAMIM, 1953). Para Lacan, entretanto,“o transexualismo consiste, precisamente, num desejo muito enérgico de passar, seja por que meio for, para o sexo oposto, nem que seja submetendo-se a uma operação, quando se está do lado masculino” (LACAN, 1971a/2009, p. 30). Refere, também, à paixão do transexual de “querer forçar pela cirurgia o discurso sexual, que, na medida em que é impossível, é a passagem do real” (LACAN, 1971b/2012, p.17). Chamamos a atenção, nessas passagens, para o fato de a medicina nomear de “transexuais masculinos” os sujeitos que autodesignam de “transmulheres”; vê-se então que, no discurso médico, o nome se refere ao sexo anterior à operação de transição, enquanto que no discurso dos próprios sujeitos, o significante indica o assim chamado “sexo psíquico”, alma ou gênero, conforme o laço social em que esteja implicado. Na atualidade, a mudança de sexo é amparada pelo discurso da ciência. Como nos diz Catherine Millot, “não há transexual sem cirurgião e nem sem endocrinologista” (MILLOT, 1992, p. 17). Como o sexo biológico nem sempre coincide com o sexo psíquico de um sujeito, já que a natureza não é tão caprichosa assim, gens nunca determinaram e nem foram limite para o gozo sexual. Mas se a medicina pode mudar o corpo biológico do ser falante, ela não pode ignorar a problemática em torno da identidade sexual; deveria levar em conta a distinção entre a escolha de gozo de um sujeito, que o leva a dizer-se “homem” ou “mulher”, e sua escolha de objeto/parceiro sexual, que será dita hetero ou homo. Nos seres falantes, as escolhas sexuais não são da ordem das identidades, mas das identificações, ou seja, são condicionadas pelos ditos do Outro simbólico, levando, por vezes, a mudanças no corpo próprio e à busca por reconhecimento social.

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ABRAMOVITCH, Sheila

Para pensarmos a demanda de uma menina querer tornar-se menino, recorro a Freud em A dissolução do complexo de Édipo, em que recupera o dito de Napoleão Bonaparte “a geografia é o destino”, criando a polêmica frase “a anatomia é o destino” (FREUD, 1924/1996, p. 197). Entendemos destino, com Lacan (1973/1998), como o Outro da linguagem, portador de significantes e engendrando a escolha forçada do sujeito. Freud aponta no texto acima para o limite do corpo real e propõe saídas para o complexo edipiano na menina, determinadas pela inveja do pênis. Para Freud (1924/1996) todos os seres humanos, independentemente do sexo a que pertençam, desenvolvem complexo de Édipo, supereu e latência. Ele se pergunta, contudo, sobre as particularidades da fase fálica e do complexo de castração nas meninas, pois elas se sentem injustiçadas, quando comparam seu órgão genital com o de um menino, advindo-lhes o “fundamento para inferioridade” (Ibid., pp. 197-198). Em A diferença anatômica entre os sexos, Freud retoma o termo “complexo de masculinidade”, de Van Ophuijsen, para sinalizar que a menina pode ter dificuldades no caminho em direção à feminilidade, inclusive a ilusão, aos moldes de uma fantasia inconsciente, de que algum dia ainda obterá um pênis: “Ela o viu, sabe que não o tem e quer tê-lo” (1925/1996, p. 281). Por isso, poderá assemelhar-se a um homem na vida adulta, o que será “motivo para ações estranhas e doutra maneira inexplicáveis” (Ibid., p. 281). A menina pode, ainda, “recusar o fato de ser castrada, enrijecer-se na convicção de que realmente possui um pênis e subsequentemente ser compelida a comportar-se como se fosse um homem” (FREUD, 1925/1996, p. 282). Freud acrescenta que o mecanismo de Verleugnung, desmentido da castração, comum nas crianças, é possível de ser encontrado nas mulheres maduras. Contudo, neste caso, pode significar o começo de uma psicose. À guisa de ilustração, trazemos João Nery, autonomeado o primeiro transexual do Brasil, que, com uma laçada, reinventa um lugar para si no mundo ao construir um sinthoma, pois, para ele, ser um transhomem faz nó. Ele dedica sua autobiografia Viagem Solitária – Memórias de um transexual 30 anos depois (NERY, 2011) a todos aqueles que se reinventam. Narra sua infância triste e confusa, por nascer menino num corpo de menina. Desde muito cedo, esse drama se apresenta como uma vivência de discordância do sujeito com sua própria imagem corporal diante do espelho. Todos o viam como menina, mas, segundo ele, isso era um engano. Adorava as brincadeiras dos garotos, sonhava ser um super-herói, se casar com uma princesa e ser pai. Chamado de Maria-homem, em determinado Natal pedira uma roupa de cowboy, cheia de franjas e duas pistolas. E, ao apagar as velas de oito anos, fez um pedido: “quero ser um menino como os outros” (NERY, 2011, p. 35). Para fugir desse mal-estar refugia-se na fantasia. Assim, seria reconhecido e sobreviveria. Nery diz que:

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Sexo, gênero. Sintoma e sinthoma

[...] devido a esta absurda defasagem entre minha autoimagem e a que faziam de mim, descobri, quase que instintivamente, que na fantasia estaria a gratificação de ser reconhecido. Considero essa solução a balsa salva-vidas com a qual consegui sobreviver a tantos desencontros... moldei-a de uma forma que podia adaptá-la àrealidade (Ibid., pp. 35-36). Quando chamado de “ela”, o pensamento transformava imediatamente em “ele”. Criou os personagens Zé, Zeca e Zico para poder brincar com a irmã e com a prima, podendo, dessa forma, ser tratado no masculino. Esses personagens eram três viúvos, que não tinham esposas, mas possuíam muitas bonecas-filhos. Trabalhavam como empregados domésticos e agradavam aos patrões. Assim sentia-se útil, já que em sua casa as crianças eram pouco ouvidas. Namorou algumas moças, mas ao olhar-se no espelho horrorizava-se ao pensar que tudo estava fora do lugar, “o que sobrava em cima, faltava embaixo”. Achava-se um aleijão e puxava o clitóris com força para ver se aumentava de tamanho. De sua história sabemos que é o único filho homem entre quatro irmãs. “O pai aviador, brincalhão; e a mãe, professora, seca, econômica e coerente na educação” (Ibid., p. 29). A adolescência “transtornada”, iniciada com a “monstruação” (Ibid., p. 14) e o crescimento dos seios, fez com que João ousasse fazer mastectomia radical. Começa, assim, a história de um homem trans operado no Brasil. João afirmava que nascera mulher, mas sentia-se aprisionado num corpo estranho, desde sempre. Abriu mão da profissão de psicólogo e professor, perdendo emprego e status, além de ir de encontro à sua família. Ele diz que ocorreu um erro na sua pessoa (NERY, 1984), não era Joana, mas João. Uma vida repleta de dramas, incompreensões e de muitas lutas enfrentadas. Durante a ditadura militar, submeteu-se à primeira cirurgia. Naquela época, as clínicas e os hospitais não estavam habilitados a realizá-la, e os médicos que a faziam eram considerados mutiladores e cassados. A busca incessante por documentos e por uma identidade social masculina acompanhou sua luta, e não o abandonou jamais (NERY, 2011). Segundo a teoria lacaniana, são os desencontros com o real que causam as marcas do sexual. Nenhum sentido ou objeto pode satisfazer a pulsão, pois o sexual é o ponto cego do simbólico. Apesar de a pulsão dispor de maneiras variadas de situar mulheres e homens, nenhum objeto será capaz de satisfazê-la (LACAN, 1962-63/2005). Passemos agora para o exemplo clínico. Julia, adolescente de doze anos, comparece ao consultório após tentativa de suicídio. Tomara medicamentos encontrados no armário de sua mãe. Segundo relato dos pais, encontrava-se deprimida, em tratamento psiquiátrico, e haviam notado, também, que se cortava nos braços e nas pernas. Julia é filha caçula e tem um irmão dez anos mais velho. Moça tímida, contou-me, sussurrando, logo na primeira entrevista, que “não se sentia menina e desejava se tornar um menino”. Estava apressada para voltar para casa e concluir um trabalho

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escolar sobre o livro Werther, de Goethe. Indagada sobre o desfecho do livro – suicídio do protagonista por um amor não correspondido –, limitou-se a responder que gostara muito da leitura, não associando nada à sua própria história. Mas o que antecedeu à tentativa de suicídio e levou Julia a esse extremo? A jovem, já em análise, revela não ter suportado representar, na escola, o papel da Julieta, de Shakespeare: “Isso foi demais, era muita feminilidade!”. Na tentativa de encontrar um significante que a represente, entre séries de TV, livros e músicas, toma emprestado a figura da Julieta – tentativa de identificação com um objeto amável pelo Outro materno, a de ser menina e feminina. Mas não suportou estar nesse lugar, o que a levou ao ponto de ruptura. Fã da série Game of Thrones e da banda de rock AC/DC, tem discussões com sua mãe, por esta considerar suas escolhas mórbidas e incomuns. Julia alega que, apesar de serem imersas em obscurantismo, são poéticas, e não entende o porquê de tantas brigas. Em seu status do whatsApp se apresenta assim: “Aqui mora um vampiro”, e acrescenta uma figurinha de uma seringa pingando gotas de sangue. Julia fala da mãe com raiva, pelo fato de ela a impedir de andar sozinha ou de se encontrar com amigos, mas ela é a quem recorre quando tem enxaqueca, TPM e até desmaios. Relata, em uma determinada sessão, ter sonhado com um arco-íris: “Meu corpo não me pertence”, diz. “Como eu achei que isso era real? Agora não quero mais! Estou cheia de fazer o que os outros querem de mim!”. Começou, então, a usar roupas masculinas e a retirar as insígnias femininas de seu corpo, como brincos e colares. Foi então que surgiu umdesejo irresistível de cortar o cabelo bem curtinho: “O cabelo comprido me incomoda, não gosto dessa coisa na nuca, dá muito calor!”. Para amenizar o clima de tensão, gerado pela insistência em usar seu cabelo à la garçon, sugere aos pais uma viagem diferente. Uma viagem do tipo easy rider, sem roteiro, decidindo-se a cada momento o próximo destino. “Pura armação!”, diz. Descobre, durante o caminho, que já estava tudo previamente determinado, as rotas, as cidades, os hotéis e restaurantes, e conclui que sempre a fizeram de boba. Desiste, então, de escolher por seu próprio desejo e volta a se deprimir. A posição de boba aparece na transferência ao não querer saber o quanto me paga, no trocar os dias das sessões e, às vezes, pedir para eu repetir o que falo. Em seguida à viagem, sua mãe me pede uma sessão conjunta. Preocupada com a tristeza da filha, pede o meu testemunho para aceitar a escolha de Julia cortar o cabelo, pois esta dependeria também da sua aprovação. Julia olha para a mãe e lhe diz: “Precisei aumentar o volume ao máximo para você poder me ouvir?” A mãe concorda e impõe-lhe uma condição: que Julia conte ao pai sua ideia de mudar sua aparência. “Ele não é um idiota! Não pode ficar de fora!” Julia fala nas sessões seguintes do quanto não quer decepcionar seu pai, e lembra de brigas que ouvia entre ele e seu irmão, por causa de dinheiro. Julia não quer perder o lugar privilegiado no desejo paterno – sua xodó –, por isso, diz que “não briga, não discute... não fala”. 132

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A partir do corte de cabelo, iniciam-se as transformações de Julia: o cabelo longo e bonito dá vez ao “taradinho”, as roupas largas e disformes substituem as coladinhas, e o seu semblante se torna o de um menininho. Decidiu não fazer mais o que os outros queriam dela. Chega! Muda seu status no WhatsApp para be what you are (seja o que você é) e faz uma atuação. Deixa a análise, dizendo que não a ouço e me troca por um homem: “analista homem é melhor que mulher”, disse-me. Vemos aí uma reivindicação fálica por parte de Julia; demanda à mãe algo que ela não pode lhe dar, assim como a analista, suposto saber furado e que também é castrada. A analista não pode sustentar o lugar idealizado pela paciente, de que homem é melhor do que mulher. Ao perceber que a analista tampouco poderia responder à sua reivindicação fálica, faz um acting out interrompendo a análise. Lacan vem ao nosso encontro ao dizer que o sujeito, em suas constantes tentativas de se adaptar ao real, faz amarrações e desamarraçōes, enlaces e desenlaces (LACAN, 1974-75/2007). A diferença sexual, contudo, é um dado da estrutura do ser falante, uma vez que o discurso, com os seus significantes, determina o sexo do sujeito. Desde o nascimento, ser menino ou menina, já está escrito no corpo, por meio dos efeitos da linguagem sobre as identificações e escolhas objetais do sujeito, o que não permite que essas escolhas sejam livres, pois a criança já é falada, muito antes de ela nascer, já é “um polo de atributos, eis o que é o sujeito antes de seu nascimento” (LACAN, 1960/1998, p. 659). Ao aforismo freudiano “a anatomia é o destino”, podemos acrescentar os desenvolvimentos do Seminário 23 de Lacan, acerca do movimento da pulsão que, ao tentar contornar o objeto a, vai transformando o mal-estar do sintoma em um sinthoma particular, sua singularidade-sintoma (LACAN, 1974-75/2007). A oportunidade de novos laços traz a expressão da sexualidade, pois o gozo sexual é “solidário a um semblante”(LACAN, 1971a/2009, p. 33), mas pode haver desencontros na formação da imagem corporal e dificuldades para se fazer esse semblante. Isso aponta para algo ocorrido no estádio do espelho, algo que vacila “como uma identificação, no sentido pleno que a análise atribui a esse termo, ou seja, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem” (LACAN, 1949/1998, p. 97). Concluindo, podemos dizer que a psicanálise pode contribuir no estudo da transexualidade com a ética de bem dizer o sintoma e o analista com sua falta-a-ser. Vimos no caso de Julia que tornar-se menino é sintoma, defesa contra a castração e apelo ao Outro do amor, apontando para a estrutura histérica. Para João, entretanto, a transexualidade é um sinthoma; nova amarração ao erro do nó borromeano, solução que criou para estar melhor no mundo, de maneira menos sofrida. Então, tornar-se homem parece cumprir funções diferentes nos dois exemplos trabalhados. Apesar da singularidade de cada um deles, ambos mostraram que o sexo biológico não coincide com o gênero escolhido pelo sujeito, pois, embora tenham nascido biologicamente mulheres, desejavam ser homens, apesar de suas estruturas clínicas diferentes. Terminamos com o Poema oblíquo, de João Nery (2012): Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 34 p.129-135 agosto 2017

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é madrugada mas não há madrugada a noite há muito não dorme venderam-na como se vendem estrelas mortas e sexos usados. e carnes. e deuses. e almas de homens.

Referências bibliográficas BENJAMIN, H. (1953) The transsexual phenomenon. New York: Julian Press, 1966. Disponível em: http://www.symposion.com/ijt/benjamin/index.htm. Acesso em: 26 junho 2017. FREUD, S. (1924) A dissolução do complexo de Édipo. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. 19. . (1925) Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. 19. LACAN, J. (1949) O estádio do espelho como formador da função do eu. In: Escrito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. . (1956-77). O seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995. . (1959-60). O seminário livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. . (1960). Observações sobre o relatório de Daniel Lagache. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. . (1962-63) O seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. . (1971a) O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. . (1971b) O seminário, livro 19: ...ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2012. . (1973) O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. . (1974-75) O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. MILLOT, C. Extrasexo: ensaios sobre o transexualismo. São Paulo: Escuta, 1992. NERY, J. Erro de pessoa. Rio de Janeiro: Record, 1984. . Viagem solitária – Memórias de um transexual 30 anos depois. São Paulo: Leya, 2011.

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Sexo, gênero. Sintoma e sinthoma

. Poema oblíquo. Disponível em: http://revista.benfazeja.com. br/2012/10/poemas-de-joao-nery.html. Acesso em: 26 junho 2017.

Sexo, gênero. Sintoma e sinthoma Sex, gender. Symptom, sinthome resumo Atualmente, ciência e tecnologia unidas podem mudar o corpo do ser falante – gênero –, produzindo criaturas capazes de realizar escolhas objetais com Freud, ou modalidades de gozo em Lacan, antes impedidas por sua biologia. A pulsão ao tentar contornar o objeto a vai enredando a trama do sujeito, transformandoo mal-estar do sintoma em um sinthoma particular. A autora apresenta o caso de uma adolescente de doze anos, que diz “não se sentir uma menina e quer ser um menino”. Apresenta, também, em contraponto, o caso do primeiro homem trans brasileiro, que com uma laçada reinventa um lugar para si no mundo, com a expressão de seu sinthoma.

palavras-chave: Psicanálise; transexualidade; sintoma; sinthoma.

abstract Currently, science and technology together can change the body of the speaker – gender –producing creatures capable of object choices in Freud or enjoyment modalities in Lacan, impeded by their biology before.The drive, trying to outline the object a, will tangle the plot of the subject, turning the malaise symptom into a particular sinthome. The author presents the case of a twelve-year-old girl who says she “does not feel like a girl and wants to be a boy”. It also presents, in counterpoint, the case of the first Brazilian transman, who in a loop reinvents a place for himself in the world, with the expression of his sinthome.

keywords: Psychoanalysis; transexuality; symptom; sinthome.

Recebido: 24/05/2017

Aprovado: 02/07/2017

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espaรงo escola



AEscola Vera Iaconelli A análise lacaniana teve efeitos profundos na minha escuta clínica. Fui em busca de saber sobre isto que me afetava como analisante, embora fosse membro de uma instituição um tanto fóbica em relação a Lacan. Sendo minha analista integrante do Fórum do Campo Lacaniano, fica claro que a escolha que fiz por entrar no Fórum, dentre as muitas instituições que existem em São Paulo voltadas ao estudo de Lacan, se deu na esteira desta transferência analítica. Assim que cheguei ao Fórum-SP, espaço do qual confesso, esperava uma certa sisudez, surpreendi-me com o acolhimento. Comecei a frequentar os Módulos de Leitura, e a condução dos encontros revelava que se tratava de um engajamento mútuo, não cabendo o lugar passivo do aluno à espera do papai-sabe-tudo. Nos encontrávamos diante dos textos de Freud e Lacan, numa proposta que implicava uma leitura literal, verdadeiro mãos à obra ao pé da letra. Reconheci que diante da riqueza infinda da obra desses autores, cabia compartilhar no laço solidário que se formava ali, a busca insistente pela formalização de nossas experiências. Logo na chegada sou informada de um imperdível Café Cartel. Cheguei de novata nesta atividade, na qual se sentavam lado a lado para ler seus textos, recém-formados e autores reconhecidos falando de suas inquietações nos cartéis, seja lá o que fosse um cartel. O clima era de mostra o seu, que eu mostro o meu... Debatia-me com a questão: quando é que eu vou aprender esta coisa!? Resposta que me dou hoje: nunca! Porque não se trata de a prender, mas de deixar deslizar seus efeitos. De quebrar a cabeça na intelecção de um conceito para colocar no papel, ao mesmo tempo em que a escuta já mudou. Não se espera saber o que é o amor para sair amando, mas tentar dizer o que é o amor produz a ciência, a arte, a religião. Sigamos dizendo e amando, ainda que não o possamos prender, sigamos fazendo nossa ciência e arte, mas não religião, no sentido do dogma e da mestria. Conto este pequeno trajeto para explicar que logo me senti como alguém de dentro do Fórum, compartilhando questões e reconhecendo as mudanças na escuta, o deleite com as descobertas, as frustrações e a insistência. Assídua e entusiasmada. Ao final de minha análise, aciono o dispositivo do passe, e sou pega de surpresa nas entrevistas iniciais com o fato de que sou considerada de fora, pois participante e não membro de Fórum ou de Escola. De fora como? A transmissão é uma questão para mim, sendo a psicanálise em extensão tão empolgante, quanto em intensão. E havia adorado que, naquela terça-feira gorda de Carnaval, recém-chegada do impacto estético de Inhotim (MG) tenha recebido um telefonema de Colette Soler dizendo que havia acontecido a transmissão de Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 34 p.139-144 agosto 2017

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uma análise e que eu estava convidada a falar sobre isso em Medellín. Na mesma frase, ela me informava que eu tinha sido nomeada AE. Ato contínuo, recebo parabéns por vários e-mails. Ao encontrar com as pessoas, reconheço olhares de alegria, mas também de preocupação. Basicamente neste começo não estava entendendo nada. Credito este primeiro espanto à passagem do privado e protegido do dispositivo do passe ao escancarado da transmissão pública dentro do Fórum. Comecei a ficar preocupada. Não haviam meus colegas passado pelo mesmo antes de mim? Não. Fiquei bem chocada com esta informação. De repente, havia uma expectativa sobre mim, de produzir, de transmitir, de aceitar convites e uma curiosidade sobre o que seria um AE, afinal. Também tenho esta curiosidade. Uma conhecida da terapia corporal me interpela: soube que você venceu um concurso dificílimo! Ao que respondi, sim! De beleza. A nomeação de AE me deu acesso a um mundo paralelo do campo de gozo dentro da Escola. Temi pela perda da relação que tinha até então com o Fórum, de entusiasmo e descoberta.

Uma comunidade de experiência O passe se refere à Escola, mas o Fórum orbita em volta dele, criando um campo de desafios e tensões, como vim a descobrir depois da nomeação. É claro que não faltaram informações desde as entrevistas de acolhimento, sobre a estrutura do Fórum e da Escola. Mas não se trata de ter acesso a um “organograma da instituição”, mas do que faz questão na relação entre Fórum e Escola, de se perguntar quem transmite, o que, para quem e onde. A transmissão é contingencial e fruto de uma aposta, cujos efeitos só se darão a saber a posteriori. Tentamos, atentamos e encaramos as tentações. As fantasias sobre o que seria o final de uma análise para alguns, a apreensão sobre o que eu levaria a público para outros, e ainda, o desejo de prevenir efeitos imaginários de disputas fálicas eram visíveis e chegavam para mim como mensagens confusas. Nunca tinha sido convidada para tantos “cafezinhos” e “bater um papinho”. Segundo Dunker (2014, pp. 69-70): Por meio dele (o dispositivo do passe) uma experiência privada, idiossincrática e culturalmente específica de tratamento pode ser publicamente reconhecida, nomeada e inscrita institucionalmente. A nomeação como AE (Analista de Escola) é um evento de considerável falicização, mas ela seria compensada pela orientação para a transferência de trabalho, para a crítica do funcionamento da escola e para a desconstrução dos sintomas identificatórios convencionais, gerados pelo conflito fálico entre analistas.

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AEscola

A “incompreensão” dos efeitos não era ingenuidade de minha parte, mas suposição de saber dirigida à instituição, que considero como resto transferencial de minha análise. Descubro só depois que o Fórum era suposto por mim como lugar de exceção das projeções narcísicas, com seu detector de bombas do imaginário na admissão de seus integrantes. Tendo como correlata a ilusão de que eu estaria imune a estes efeitos; como se o fim da análise revelasse um atestado de garantia contra efeitos imaginários e suposições de saber. Como se houvesse garantia da garantia. Só que não. Diante do che vuoi? que eu formulava no Outro, o Fórum se apresentava como boneco de Olinda, desfilando em pleno carnaval, me fazendo correr o risco de esquecer dos carnavalescos, cada um com sua fantasia, com seus trapos e brilhos e suas singulares formulações do real e do gozo. Mas se tem algo que uma análise pode alcançar ao seu final é a rápida mudança de direção no circuito infernal da demanda, a cada vez que ele se organiza, ainda que não possamos dele nos “vacinar”, posto que o grafo do desejo/sujeito permanece operando, enquanto houver desejo/sujeito. Então, o mal-estar se apresentava não para ser encoberto e disfarçado, como nas instituições regidas por outros discursos que não o do analista, para voltar sintomaticamente em atuações grotescas, mas para ser escutado e promover outras voltas. Basicamente: trabalho a realizar, analisar. Primeiro, me perguntava: mas se se trata de uma cadeia de eventos de uma transmissão, por que a nomeação de um? Pois se temos: os AMEs, que indicam os passadores; os entrevistadores, que acolhem o pedido e acionam o dispositivo; os passadores sorteados; o passante; o cartel do passe, não seria o caso de simplesmente convidar estas pessoas a falarem que acontecimento se deu nesta transmissão? Ficar com a primeira parte do telefonema: – Vera, gostaríamos que falasse em Medellín sobre o percurso de sua análise. Ao que responderia: – Com muito prazer, madame Soler. Mas não era só isso. Ao final desta cadeia de eventos, temos o mais importante e que justifica a existência do dispositivo: os efeitos que a nomeação têm sobre a comunidade psicanalítica que à sua volta orbita. Efeitos que criam a Escola, pois ela é o movimento que se dá em volta mesmo deste furo. Nesse processo, à medida que testemunho para a Escola do que se trata meu percurso singular, que pouco dirá dos que estão por vir ou dos que me antecederam, vou recolhendo o próprio conceito de Escola, cujos efeitos imaginários estão para serem escutados e encarados, posto que o fim de análise não erradica o sujeito de suas mazelas, mas o posiciona diante de sua inevitável condição. Ainda com Dunker (Ibid., p. 67): “Analista de Escola é exatamente a função daquele que deve fazer a crítica e concorrer para a superação dos impasses institucionais que acompanham a transmissão da psicanálise em uma dada comunidade”.

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Dou-me conta que o lugar do AE, de dar sustentação ao desejo de analista em ato dentro da Escola, implica no que Dunker chamou de um “complemento da ética da convicção, expressa pelo desejo do psicanalista, na ética da responsabilidade, atinente ao seu compromisso com a transmissão” (Ibid.). Daí, entendo que a passagem ao espaço público da transmissão ultrapassa o ato inaugural que aciona o dispositivo em direção à assunção de uma responsabilidade, ou seja, por definição: responder ao próprio ato. Tomar para si as questões sobre a formação, a transmissão e o fim da análise é uma das bases do pertencimento à Escola, que impregna todo o campo do Fórum. Reconheço hoje que foi isso que fez me sentir inserida dentro da Escola desde o começo, pois são questões que compartilho como “simples” participante. Bom, então quais efeitos recolho no só-depois, até aqui? Que ao ser nomeada, se dou provas da possibilidade de transmitir a outros o percurso de minha análise pelo dispositivo do passe, redobro a aposta, mas também redobro a prova, pois a nomeação, ao passar ao público, causa. Que a nomeação de um, no singular, põe a comunidade psicanalítica também à prova, pois escancara as fantasias de reconhecimento fálico e de bloco indiferenciado. Que se existe um certo efeito “carnaval” em volta do AE, é porque este “carnaval” existe em volta da Escola, lugar para o qual se transfere um saber sobre a psicanálise, mas também sobre o inconsciente de cada um. Como se Escola pudesse responder quem somos. Nesse sentido, a fala de Colette Soler no XVIII Encontro Nacional em São Paulo, sobre o paradoxo do passante, cuja análise chegou ao fim, demandar uma resposta à Escola, na forma de nomeação, é uma questão crucial. A nomeação do AE encerra uma resposta, sim ou não, é ou não é, ou um produto, resíduo das operações internas que na Escola circulam? Resultado de uma massa crítica, expressão sugerida por Dominique Fingermann nesse mesmo Encontro, de trabalho que chega a seu ponto de transbordamento? Não seria este o sentido de dejeto a que o AE se presta ser? O AE condensa em sua nomeação esta fantasia, imanta o mal-estar. Conforme descreve Lacan ao comentar a posição do AE no grafo da Escola como sendo S(A) e aplicar esta letra ao AE resta E, de Escola e Épreuve. Segundo Quinet (2009, p. 120), ao comentar esta passagem: Épreuve também significa adversidade, provação, indicando que a Escola não é apenas local de bem-estar, já que acolhe o mal-estar da civilização – seu rebotalho, o objeto a – para que haja chance de o discurso do analista aí ocupar um lugar na circulação dos discursos. Neste sentido, percebo que o AE expõe, com seu testemunho singular, aquilo que sustenta a comunidade de experiência, ao mesmo tempo em que obriga que

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se trabalhe incessantemente os efeitos de bloco, que a falta de uma nomeação no singular poderia mascarar. O AE, ao sustentar o furo do saber sobre a análise, se empenha em permitir que a transferência analítica, que a Escola promove ou herda, venha a dar lugar à transferência de trabalho, contingencialmente. E que a nomeação de AE, em vez de sustentar consistências, com sorte pode fazer borda neste furo, como indica o jogo com iniciais de seu nome em português: AEscola.

Referências bibliográficas DUNKER, C.I. L. ; KYRILLOS NETO, F. Conflito entre psicanalistas e impasses fálicos da brasilidade. In: Stylus: Revista de Psicanálise, n. 29. Rio de Janeiro: AFCL, 2010, pp. 67-84. QUINET, A. A estranheza da psicanálise: a Escola de Lacan e seus analistas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. SOLER, C. A experiência do passe e o desejo do analista. Conferência proferida no XVIII Encontro Nacional dos Fóruns do Campo Lacaniano, São Paulo, 14 de novembro 2016.

AEscola The School resumo A autora busca discutir alguns efeitos recolhidos em decorrência da sua nomeação como Analista de Escola e o trabalho, que retorna para Escola, na tentativa de elaborá-los. Discute a inevitabilidade dos efeitos imaginários decorrentes de qualquer nomeação dentro de uma instituição e a função do AE de problematizá-los, devolvendo para a comunidade os ecos de sua mensagem.

palavras-chave: Psicanálise; Escola; Analista de Escola; nomeação.

abstract The author of this text aims to discuss some effects collected as a result of her appointment as School Analyst and the work, which returns to the School, in an attempt to elaborate them. The article tackles the inevitability of the imaginary effects arising from any appointment within an institution and the role of the SA to problematize them by returning the echoes of their message to the community.

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IACONELLI, Vera

keywords: Psychoanalysis; School; School Analyst; appointment.

Recebido: 23/05/2017

Aprovado: 04/06/2017

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As letras têm nomes: nome próprio e nomeação Beatriz Helena Martins de Almeida A meio caminhar de nossa vida fui me encontrar em uma selva escura: estava a reta minha via perdida. […] Tomamos esse caminho escondido ele e eu, para voltar ao claro mundo e, sem repouso mais algum consentido, subimos, ele primo e eu segundo, até surgir-nos essas coisas belas, que o céu conduz, por um vazio rotundo saímos por ali, a rever estrelas. Dante Alighieri

Sobre o sentido e a referência em Frege Para introduzir a questão, vamos apresentar alguns pressupostos fregeanos sobre a noção de nome próprio. Para Frege (1892, p. 116), um nome próprio é um sinal que deve designar ou se referir a um objeto determinado, de um modo determinado.“Um nome próprio deve ter pelo menos um sentido, […] senão ele será apenas uma mera sequência vazia de sons”, deve ter um sentido e uma referência, que designe ou nomeie um objeto. “Assim, o nome próprio se relaciona, mediante o sentido, e só mediante o sentido, com o objeto”. Em contrapartida, o nome comum que Frege prefere chamar de “termo conceitual” também deve ter um sentido e deve ter uma referência; no entanto, a referência do nome comum deve ser um conceito. Assim, nome próprio refere-se a objeto enquanto nome comum refere-se a conceito. Portanto, se um nome próprio não pode designar um conceito, não pode exercer a função de predicado. Essa questão da não predicação é fundamental para a concepção de nome próprio em psicanálise. Para Frege, o nome próprio é um sinal que tem como referente um objeto que tem valor de verdade (Bedeutung), e pode apresentar-se de modos diferentes, ou seja, pode abarcar variados sentidos. O Sentido (Sinn) para Frege são os modos de apresentação do mesmo objeto. Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 34 p.145-154 agosto 2017

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DE ALMEIDA, Beatriz Helena Martins

Frege nos oferece como exemplo de nome próprio Vênus, que pode apresentar-se de modos diferentes, com variados sentidos: por exemplo, como estrela da manhã ou como estrela da tarde entre outros, tendo como referência o mesmo objeto – um corpo celeste. Uma curiosidade é que isso nos permite entender porque Lacan (1971/2009, p. 16) diz, no seminário De um discurso que não fosse semblante, que o referente passeia, já que o mesmo planeta, enquanto corpo celeste, de manhã está em uma posição e à tarde, em outra. O objeto como referente também passeia nos giros de discurso, ora na posição da verdade, do Outro, do produto ou do semblante. Ainda com Frege, em relação ao nome próprio, numa sentença o “é” “tem a função do sinal aritmético de igualdade; ele exprime uma identidade” (FREGE, 1892, p. 91). Assim, a estrela matutina é Vênus. Joyce é o sinthoma. O sinthoma é o nome de identidade do falasser. A propriedade de identidade que participa do nome próprio é fundamental para pensar o nome de identidade do sinthoma no final de uma análise. A partir desses pressupostos fregeanos, podemos inferir que a noção de nome próprio em Lacan articula-se ao objeto e não à cadeia significante, sendo, portanto, solidário à noção de letra.

Acerca do traço unário como letra No seminário O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, Lacan (195455/1985, p. 174) formula que “o objeto humano se constitui sempre por intermédio de uma primeira perda. Nada de fecundo ocorre para o homem a não ser por intermédio de uma perda do objeto”. Nesse momento do ensino de Lacan, pode-se mesmo dizer que o simbólico funda a existência, nada há a não ser que seja nomeado. Diz Lacan: É nesta percepção que é evocada para o homem, a todo instante, sua unidade ideal, que, como tal, nunca é atingida e que a todo instante lhe escapa. O objeto, para ele, nunca é definitivamente o derradeiro objeto. Mas este se apresenta, então, como um objeto do qual o homem está irremediavelmente separado, e que lhe mostra a figura mesma de sua deiscência dentro do mundo – objeto que por essência o destrói, o angustia, que não pode alcançar, no qual não pode verdadeiramente encontrar sua reconciliação, sua aderência ao mundo, sua complementaridade perfeita no plano do desejo (Ibid., p. 211). O traço unário constitui-se como a marca do apagamento do objeto, enquanto inexoravelmente perdido. É pela noção do traço unário que é possível passar da 146

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As letras têm nomes: nome próprio e nomeação

imagem à identificação simbólica. O traço, enquanto S1, constitui o sujeito como menos 1 e o faz a cada volta da repetição buscar a pura diferença, mais uma volta, mais uma volta, repetindo o traço enquanto apagamento do objeto. A cada volta é o número de sua repetição que é apagado. Vejamos como Dunker (2002) sintetiza essa operação: Em primeiro lugar há a operação de rastro. O rastro é “o que o objeto deixa enquanto ele se vai” […]. Ele indica algo que não está lá. É o signo de uma ausência, como as pegadas de Sexta-feira. […] Se um rastro que é negado materialmente não é mais um rastro, torna-se um traço ou uma letra. […] O traço é, finalmente, equiparável a uma forma material compatível com a representação coisa e com a ideia de traço mnêmico visual. Em um terceiro tempo temos a negação do traço operada pela barra, aqui sim congruente com o recalcamento propriamente dito. Chegamos então ao significante. […] O traço se articula pela estrutura da escrita, o significante se articula pela estrutura da língua. […] O traço, como elemento legível, deve mostrar ao sujeito o suporte insensato de seu sintoma. O traço, como S1, comparece como significante puro, não ligado a outro significante; funciona como um significante no Real; portanto, tem valor de letra, letra que se escreve, se fixa. É só no terceiro tempo quando da negação do traço operada pela barra, que temos a constituição do sujeito evanescente nos intervalos da cadeia significante. Gostaria de ressaltar, no caminho que percorremos neste texto, como vão se articulando as noções de objeto, rastro, traço, letra, S1. Um como traço unário. Um como mais uma volta. Um como número de repetição. Um de identidade. O traço unário não pode ser nomeado, pois é pura diferença. Os sintomas, por identificação ao traço, são singularizantes. O traço unário não tem uma função unificadora, mas sim uma função distintiva. A letra é o suporte material do significante. O sujeito só inventa o significante a partir de alguma coisa que já estava lá para ser lida. Assim o traço unário faz a escrita do sintoma.

Nome próprio como nome do objeto Lacan (1954-55/1985, p. 215) diz que: A palavra, a palavra que nomeia, é o idêntico. Não é à distinção espacial do objeto, sempre pronta a dissolver-se numa identificação ao sujeito, que a palavra responde, mas sim à sua dimensão temporal. O objeto num instante constituído como uma aparência do sujeito humano, um duplo dele mesmo,

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apresenta, entretanto, uma certa permanência de aspecto através do tempo, que não é indefinidamente durável, já que todos os objetos são perecíveis. Esta aparência, que perdura um certo tempo, só é estritamente reconhecível por intermédio do nome. O nome é o tempo do objeto. […] A juntura está aí, a surgição da dimensão do simbólico em relação ao imaginário. Podemos dizer que o nome é o tempo do objeto na medida em que lhe confere ex-sistência. Lacan no seminário A identificação (1961-62/inédito, lição de 20/12/1961) revisita os linguistas acerca do nome próprio. Para Russell: “um nome próprio é […] uma palavra para designar as coisas particulares como tais, fora de toda descrição” (Ibid.). Para Mill: “se alguma coisa é um nome próprio, é porque não é o sentido do objeto que ele traz consigo, mas algo que é da ordem de uma marca aplicada de alguma maneira ao objeto” (Ibid.). Gardner “observa que não é tanto a ausência de sentido que importa no uso do nome próprio. […] O que causa o uso do nome próprio […] é que o acento em seu emprego é posto não sobre o sentido, mas sobre o som enquanto distintivo” (Ibid.). Designação de um particular, marca e som distintivo. Lacan define o nome próprio pela relação da emissão nomeadora com algo que é da ordem da letra, que, portanto, se escreve. Lacan no seminário O sinthoma (1975-76/2007, p. 141) afirma que “a escrita […] vem de um lugar diferente daquele do significante”, articulando a escrita não ao significante, mas ao traço unário. Acompanhemos Lacan (1961-62/inédito, lição de 20/12/1961), do traço à escrita: O que vemos [sob] esta etiqueta de ideograma é algo que se apresenta como, de fato, muito próximo de uma imagem, mas que se torna ideograma na medida em que perde, em que se apaga cada vez mais este caráter de imagem. […] Pois são, de fato, traços que saem de algo que, em sua essência, é figurativo, e é por isso que se crê que é ideograma, mas é um figurativo apagado […]. O que fica é algo da ordem daquele traço unário enquanto funciona como distintivo, enquanto pode […] desempenhar o papel de marca. A característica do nome próprio é sempre mais ou menos ligada a este traço de sua ligação, não ao som, mas à escrita. […] O que distingue um nome próprio […] é que de uma língua para outra isso se conserva em sua estrutura, sua estrutura sonora; […] e isso em razão da afinidade justamente do nome próprio com a marca, com a designação direta do significante com o objeto, […] do nascimento do significante a partir daquilo de que ele é o signo. 148

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As letras têm nomes: nome próprio e nomeação

O exemplo de Champollion torna flagrante a dimensão da letra no que se refere à noção de nome próprio. Champollion conseguiu decifrar nos hieróglifos da Pedra de Roseta os nomes do faraó Ptolomeu e de sua esposa, Cleópatra, pois sendo nomes estrangeiros, imaginou que não poderiam estar grafados como ideogramas, mas que estariam escritos como eram pronunciados, como letras. Lacan diz que o traço surge do objeto, e que retém do objeto sua unicidade, escrita como signo. O S1 faz signo do objeto. Nas palavras de Lacan: “a função da escrita, a função do signo enquanto ele mesmo se lê como um objeto. É um fato que as letras têm nomes” (Ibid., lição de 10/01/1962). E assim, nos diz Lacan no seminário Problemas cruciais para a psicanálise (1964-65 inédito, lição de 06/01/1965) que é no “nível do material significante que se produzem as substituições, os deslizamentos, os passes de mágica, os escamoteamentos com os quais temos a ver quando estamos na via, no traço da determinação do sintoma e de seu desenlace”. Signorelli, Sigmund, signans (assinatura), signatum (selado). Lacan (197576/2007, p. 64) demonstra que o sig de Signorelli é o signans de Sigmund Freud, que é o lugar de seu desejo, o verdadeiro lugar de sua identificação, que se encontra colocado no ponto cego do olho que não cessa de olhá-lo. Aqui se evidencia a relação do nome com o objeto pulsional. Lacan (1964-65/inédito, lição de 06/01/1965) esclarece que: A partir daí definiremos o nome próprio como alguma coisa que intervém na nominação de um objeto, em razão das virtudes próprias de sua sonoridade […]. Por outro lado, no momento em que me apresento a vocês, Jacques Lacan, isso já elimina que eu seja um Rockfeller […] ou o conde de Paris! Já um certo número de referências vêm imediatamente com o nome próprio. […] Dizer que um nome próprio, em suma, é sem significação, é alguma coisa de grosseiramente errada! Lacan não reduz o nome próprio como designando o “exemplar único”, por meio de suas particularidades, mas sim na medida em que o indivíduo como insubstituível, pode faltar, mediante o fato de que seu nome próprio visa ao recobrimento de uma falta.“O nome próprio é uma função volante, […] ele é feito para preencher os buracos, para lhe dar sua obturação, para lhe dar seu fechamento, para lhe dar uma falsa aparência de sutura” (Ibid.).

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Nome próprio como nome de identidade do sinthoma Soler (2009) diz que“existe uma tese em psicanálise segundo a qual o sintoma é o nome da identidade do sujeito, seu verdadeiro nome próprio. […] Vemos que se trata de completar o patronímico com um traço que identifique uma singularidade que permita alcançar […] o Um da identidade”. Soler usa como exemplo Joyce, o artista, ou ainda Joyce, o sinthoma, também o Homem dos Ratos. Para Soler, O nome próprio designa o que de um ser não está identificado e não é identificável pelo significante. […] Resta então um x. O nome próprio não é precisamente um significante que representa o sujeito, mas índice do que há nele de “impensável”, daquilo que é dele, mas não passa no significante, […] de modo que o nome próprio é nome da coisa e não do sujeito. […] O nome do sintoma é um verdadeiro nome de identidade, pois nomeia a partir de uma e apenas uma singularidade. […] O nome de renome consegue […] indexar juntos uma existência e seus traços de unicidade, enodando o patronímico à singularidade distinta. […] Lacan […] nomeia sintoma […] a função que enoda e mantém juntos corpo, gozo e inconsciente. Renomear-se, então, tem sempre uma função borromeana, por meio da qual um sujeito assina com sua assinatura infalsificável (Ibid.). Um nome se decanta de uma análise como condensador de gozo, porque marca e nomeia a vida pulsional do falasser, evidencia-se assim a passagem que Lacan faz do sujeito ao falasser. De modo contingencial, no percurso de uma análise algo é cingido do ser do sujeito. No final recolhe-se o que está desde o início: lalíngua. Ao desfiar a cadeia significante, pode o nome próprio tocar o vazio enquanto significância. O nome próprio do sinthoma no final de análise enoda o que é da ordem do objeto, escrevendo de maneira contingente o traço, enquanto marca que faz o estilo. Cessa de não se escrever. Diz Lacan (1975-76/2007, p. 141) “devido ao nó borromeano, dei outro suporte a esse traço unário. […] eu o escrevo RI. São as iniciais de reta infinita. A reta infinita é o sinthoma. A reta infinita […] é o mais simples suporte do furo”. Numa análise, escreve-se contingencialmente a letra de seu sinthoma como assinatura, nome próprio que marca uma singularidade e promove laço, novo amor. Como diz Soler (2009), “o dizer de nominação tem função borromeana”. Isso porque numa análise trata-se de desatar para enlaçar de modo inédito conforme as contingências.

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O traço no Discurso do Analista

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Lacan (1976-77/inédito, lição de 10/05/1977) no seminário L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre diz “que o S1 não representa o S2, isto é, do Outro. O S1 e o S2 são muito precisamente o que eu designo pelo A barrado do qual eu fiz, ele próprio um significante S(A). É bem assim que se apresenta o famoso inconsciente; esse inconsciente é […] impossível de apreender”. Esse inconsciente é o inconsciente Real que se escreve como S(A) para evidenciar que não há relação sexual. Evidenciamento, que em francês se escreve évidemment que equivoca com esvaziamento. Retomando a noção de nome próprio em Frege e em Lacan, podemos concluir da escrita do Discurso do Analista, que o S1 no lugar da produção refere-se ao Um da Identidade. Há do Um, e tem estatuto de letra, já que se encontra radicalmente disjunto de S2 e, consequentemente o saber apresenta-se como furo no lugar da verdade.

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¯ Figura 1: Discurso do Analista Fonte: LACAN, Jacques. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992, p. 161.

Lacan demonstra que no Discurso do Analista a ligação entre S1 e S2 está rompida. Se o sujeito é o que um significante representa para outro significante, a notação do Discurso do Analista revela a destituição do sujeito ao final de uma análise e a consequente dissolução da transferência ao Outro. No lugar do semblante está o objeto a como causa. No lugar da verdade está o S2 como insabido. No lugar da produção está o S1 como significante sozinho, um significante no Real,que funciona como letra idêntica a si mesma. No lugar do trabalho talvez possamos escrever o parlêtre enquanto ser parasitado por lalíngua, destituído do Outro. E assim resta o Um fora do sentido. O Um como Um dizer. Um dizer que não há relação sexual. Um dizer que nomeia. O sinthoma, como nome próprio de identidade, permite enodar algo de Real ao laço social Imaginário Simbólico.

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Figura 2 Fonte: LACAN, J. (1975-760 O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p. 21.

Algumas considerações sobre nomeação na Escola Lacan (1976-77/inédito) começa o seminário L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre retomando a identificação ao traço unário, que foi tema de seu seminário A identificação, quinze anos antes. Renova a crítica ao final de análise como identificação ao analista praticada pelas análises didáticas no seio da IPA. Pergunta-se, então, se o final de análise seria “identificar-se ao seu inconsciente”, o que refuta, pois o inconsciente resta, para concluir que trata-se de identificação ao sintoma, “savoir y faire com seu sintoma está aí o fim da análise” (Ibid., lição de 16/11/1976). Retomando a noção de nome próprio em Frege, Lacan utiliza as letras RSI para se nomear, RSI, a heresia lacaniana, lembrando que RSI já estava lá desde 1954: Fundar um nome próprio é uma coisa que faz sobressair um pouquinho o nome próprio de vocês. O único nome próprio em tudo isso é o meu. A extensão de Lacan ao Simbólico, ao Imaginário e ao Real […] há datas, eu enunciei o Simbólico, o Imaginário e o Real em 54, eu intitulei uma conferência inaugural com estes três nomes tornados, em suma, por mim, o que Frege chama nome próprio (Ibid.). Na lição de 11 de janeiro de 1977, Lacan joga com a expressão l’âme-à-tiers (alma em terços) referindo-se ao nó borromeano Real, Simbólico e Imaginário. L’âme à tiers faz homofonia com à la matière, matéria que refere-se à letra como suporte material do significante e com âme: AME.1 Assim, é pela letra que baseamos as nomeações no âmbito da Escola. AE2 e AME são letras, e podem ser tomadas como funções. Como letras, estão referi1 Analista Membro de Escola. 2 Analista de Escola.

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das ao traço, ao traço unário, e não ao significante. Radicalmente, espera-se que cada AE, cada AME, seja Um, em seu estilo, proveniente do traço que faz marca, e lhe confere um nome no bojo da Escola. Diz Lacan, pela lógica do não todo: “o único traço comum, o traço que eu disse unário, ele se conforta do Um. Há do Um. Eu o repeti há pouco para dizer que há do Um e nada do outro” (Ibid., lição de 10/05/1977). Única garantia de varité, neologismo que conjuga verdade e variedade, que garante o reconhecimento das singularidades, como marca de diferença absoluta dos analistas que participam de uma experiência de Escola. Um. Mais-um. Mais-um... AE e AME como letras não admitem predicação, o que decide pela nomeação – seja pela transmissão no dispositivo do passe ou seja pela indicação e reconhecimento de alguns outros – só pode ser cingido no um a um da experiência, portanto de maneira contingencial; quando acontece, faz-se avançar a psicanálise um tiquê a mais. Em boa hora.

Referências bibliográficas DUNKER, C. I. L. Uso clínico da noção de traço unário. Revista Acheronta, 2002. Disponível em: http://www.acheronta.org/acheronta18/dunker.htm. Acesso em: 29 maio 2017. FREGE, G. Lógica e filosofia da linguagem. São Paulo: Cultrix, 1978. LACAN, J. (1954-55) O seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. . (1961-62) O seminário: a identificação. Inédito. . (1964-65) O seminário, livro 12: problemas cruciais para a psicanálise. Inédito. . (1971) O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. . (1975-76) O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. . (1976-77) O seminário: l’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre. Inédito. SOLER, C. Os nomes da identidade. 2009. Disponível em: http://www.uva.br/trivium/ edicao1/conferencia/os-nomes-da-identidade.pdf. Acesso em: 29 maio 2017.

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As letras têm nomes: nome próprio e nomeação Letters have names: proper name and nomination resumo Este artigo procura estabelecer uma relação entre nome próprio, traço unário, objeto, letra e sinthoma, num recorrido de alguns seminários de Lacan, desde o Seminário 2, passando pelos Seminários 9, 12, 23 e 24, articulados à teoria do nome próprio em Frege. Conclui que o nome próprio do sinthoma no final de uma análise pode enodar o que é da ordem do objeto, escrevendo de maneira contingente o traço, enquanto marca, que cessa de não se escrever. Buscou-se articular, também, algumas considerações acerca do discurso de analista e das nomeações no âmbito da Escola.

palavras-chave: Lacan;nome próprio; objeto; letra; traço unário; sinthoma.

abstract By going through some of Lacan’s seminars, especially Seminars 2, 9, 12, 23 and 24, this article aims to establish a correlation among proper name, unary trait, object, letter and sinthome, articulated to Frege’s theory of the proper name. As a conclusion, it is established that the proper name of the sinthome in the end of an analysis can knot the object by writing in a contingent manner the trait as a mark that ceases from not writing itself. It also tries to articulate some considerations about the analyst discourse and the appointments within the School.

keywords: Lacan; proper name, object, letter, unary trait, sinthome.

Recebido: 25/05/2017

Aprovado: 21/06/2017

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NOMES. NOME. N.O.M.E. Considerações sobre o nome e a transmissão no seminário O sinthoma Glaucia Nagem Nome e transmissão: Um não é o outro. Um não é sem o outro. Um não se sobrepõe ao outro. Um. Outro. (A autora) Nome e transmissão podem ser a designação para duas formigas na banda de Mœbius. E as duas poderiam cantarolar o apólogo deste texto, produzido a partir da orientação das discussões no Espaço Escola do FCL-SP1. Nome, nomear, transmitir são questões que acompanham Lacan desde cedo em suas voltas. O que ele nos diz sobre isso no Seminário 23? O que ele aprendeu com Joyce a esse respeito? Bousseyroux nos diz a respeito do RSI que: [...] com o enodamento RSI o objeto a mudou de estatuto: ele não consiste mais como superfície, ele ex-siste, como ponto de coinçagem do nó. O fato é também que o sintoma toma o passo sobre o fantasma para dar conta do fim da análise, a separação final se definindo mais pela identificação ao sintoma. O fato é ainda que o inconsciente muda também de estatuto: a princípio igual ao sintoma, Lacan terminará por apresentá-lo, em 10 de outubro 1978 em Saint-Anne, como real, rodela do real à qual a rodela do simbólico impõe a lei (BOUSSEYROUX, 2001, p. 255)2. 1 Espaço Escola é uma reunião mensal onde os temas ligados à Escola e suas instâncias são discutidos com os delegados que são membros de Escola. 2 Tradução livre de: “avec le noage R.S.I. l’objet a change de statut: il ne consiste plus comme surface, il ex-siste, como point de coincement du noeud. Le fait est aussi que le symptôme prend le pas sur le fantasme pour rendre compte de la fin de l’analyse, la separation finale se définssant davantage par Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 34 p.155-161 agosto 2017

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NAGEM, Glaucia

E ainda, se acompanharmos Soler em seu livro Lacan Leitor de Joyce, a autora ressalta que sintoma e sinthoma soam do mesmo modo, afirmando que, com essas palavras, Lacan joga com o equívoco do som e da grafia (SOLER, 2015, p. 9). Joyce também o faz em suas obras, de Ulysses até Finnegans Wake. De forma que acompanhamos a construção, em 1972, desse lugar privilegiado do som, juntamente com a aposta de que os registros se enodam, desenodam e reenodam de modos variados. Para acompanharmos o Seminário 23, é imprescindível ler e reler as construções joyceanas. Nelas, a questão dos nomes é muito importante, sendo largamente explorada pelo autor. Ressaltarei o trabalho feito por ele em um pré-escrito, ou ur-livro, que foi utilizado na construção de Finnegans Wake. Trata-se de Finns Hotel, em que Joyce, de acordo com alguns comentadores, está fomentando e se abastecendo para a criação do Finnegans. Em sua introdução ao livro, Danis Rose comenta: “Os ur-livros são como enzimas, que lhe catalisam a criatividade” (ROSE, 2014, p. 17), e ainda nos indica que, de todos os contos, o principal é aquele que conta como o pai ganhou o nome de Earwicker. Intitulado “Homem comum em fim”, neste conto o som é convocado diversas vezes nas construções de palavras e principalmente dos nomes. Ouçamos Joyce: No que concerne à gênese do agnome de Harold ou Humphrey Coxon e descartando-se de uma vez por todas as teorias de fontes mais antigas que o ligavam a ancestrais pivotais tais que os Glue, os Gravy e os Earwicker de Sidham em Hundred of Manhood ou o proclamavam descendentes de vikings [...]. A sua majestade, que era, ou fingia ser, perceptivelmente de vista longa desde a mais tenra infância e estava querendo inquirir o que houvera causado que se escavasse a estrada tanto assim, pedindo alternativamente, que se lho dissera se acaso não eram paternoste e silverdoctors iscas mais na moda para armadilhas de lagostas, o franconesto Haromphreyld respondeu em tons seguros mui similarmente com destemido cenho: Ná, samaguestá, queu só tarra pegano sas porra sas tisurinhas queis chama irwik.[...]. – Santossada, como fumaria audivelmente nosso rubro irmão de Chuvenbaldes se soubera que temos por bailio um canceleiro que reveza de cão seleiro além ainda de earwikar! (JOYCE, 2014, pp. 107-108).

l’identification au symtôme. Le fait est encore que l’inconscient change aussi de statut: d’abord égalé au simbolique Lacan finira par le présenter, le 10 octubre 1978 à Sainte-Anne, comme réel, rond du réel auquel de rond du symbolique ‘impose la loi’”.

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NOMES. NOME. N.O.M.E. Considerações sobre o nome e a transmissão no seminário O sinthoma

Vale a pena ler o texto inteiro, mas trago apenas alguns recortes para que se tenha a escuta de que o nome desse personagem desliza e desloca os sentidos pelos sons. É um texto extremamente sonoro e claramente ligado ao tratamento dado por Joyce ao texto de Finnegans Wake. Nesses trechos que assinalo podemos observar como o som do nome desse pai desliza: Earwicker – ear (orelha) – wicker (vime) – wicked: malvado. Um nome, vários sons, sentidos variados. Essa multiplicidade oferecida pela obra de Joyce a Lacan está ligada ao N.O.M.E. Explico-me: pelo que acompanhamos na obra lacaniana desde seus primeiros seminários a questão do fim de análise está em jogo. Em suas construções nos anos 70, vemos no final de uma análise algo do nome se multiplicar para além do sentido cristalizado do sintoma do início dessa análise. Se o sintoma que nos chega é um embaraçado de significações: “Sou isso para o Outro”, no fim temos a redução desses sentidos àquilo que poderia ser o puro som que se lança ao ab-sens. Um passo de sentido que tem a seu favor o que Joyce nos apresenta: os sons.

Nomes – Nome – N.O.M.E. Mas sabemos que essa não é uma passagem direta.O sujeito é falado com os vários nomes que se associam a ele como atributos,para noutro passo fazer seu nome próprio. Ele passa dos nomes ao nome próprio. Esse nome próprio por si obtura o furo, posto que pode cristalizar-se como significação. No entanto, fazer-se um nome que não sejam os atributos que lhes são oferecidos em seu nascimento não é o fim de uma análise, mas um tempo. Dos nomes-atributos do início: “sou isso para o outro”, passando pela questão “o que sou para o outro”, o nome próprio entra no jogo pela obturação que ele faz nessa dialética. Acompanhamos como o ser e o pensar se dissociam nas construções de Lacan, e ainda, que a colagem deles traz consequências sérias nos laços do falasser. A preocupação de Lacan, desde o início, estava em perguntar o que é uma análise e qual o seu fim. “Seu fim” no sentido amplo que pode ter este termo, qual seja, o término e a direção. Para chegar a isso ele faz várias voltas em seus seminários: desde a mudança de posição do espelho plano quando trabalha seus espelhos, passando pelos cortes sobre as superfícies topológicas, até chegar, no Seminário 23, a um novo passo. Soler (2015) aponta que o inconsciente em Lacan vai do inconsciente romance ao real da letra. Isso não é sem consequências para a questão do nome e do final da análise. Todo o romance que encontramos no Seminário 12 sobre o nome-sintoma-fantasma de “POOR (d) J’ e-LI”mesmo que escrito com sons e letras, está baseado em um inconsciente escorado na história papaimamãe. Temos com isso uma proximidade com os nomesintomas freudianos, cuja leitura carregava uma gama de histórias.

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Com sua literatura, Joyce oferece a Lacan um diagnóstico original. Nos diz Soler que “‘Joyce, o sintoma’ não é uma interpretação da obra joyceana, mas um diagnóstico original do que Lacan nomeia, como o faz o próprio Joyce, ‘o artífice’. O diagnóstico de uma unicidade, o contrário de um tipo, portanto. Diagnóstico de uma ‘diferença absoluta’, o único digno de um psicanalista” (SOLER, 2015, p. 17). Joyce, o sintoma, não nomeia uma patologia, mas uma solução. Joyce se nomeia na medida em que lança seu nome para além do nome do pai. Ele vai além, forja algo único, um nome com o qual os universitários se ocupariam por pelo menos um século! Lacan inicia o Seminário 23 com a questão do nome e da nomeação: “Deus não nomeia as bactérias!” (LACAN, 1975-76/2007). Ora, ainda assim elas estão lá. A referência ao livro do Gênesis não é à toa; neste livro vemos uma sequência que começa na criação, passa pela nomeação e termina na reduplicação dessa nomeação. A invenção é mínima: o Céu, a Terra, a Luz. E a partir desse mínimo a criação passa a ser nomeada3. Adão, o Falasser, nomeia os animais, e em seu falatório “reduplica a criação divina” (BOUSSERAUX, 2001, p. 14). A tal serpente entra empostada para furar essa história do falasser, sendo auxiliada por nada menos que uma mulher. Já de saída, Lacan nos apresenta a questão da criação e do nomear. Um e outro não se misturam na criação disso que não precisa ter nome para existir, mas que precisa se reduplicar com o nome para que ex-sista. Reduplicar, fazer-se nomes. E desses nomes forjar um que lhe seja próprio. Mas a virada esperada em uma análise vai na direção de ouvir do nome não mais o sentido e a significação, mas a diferença absoluta. Contar-se um a partir do n.o.m.e. que, feito letra, pode abrir-se e fazer novos laços. O próprio manejo que Lacan fará com “Sintoma – Sinn toma – Saint Thomas – Saint homme” (SOLER, 2015) faz aparecer a multiplicidade dos equívocos da escuta da sonoridade, da qual o inconsciente “saber falar” é indissociável. Temos aí um deslizamento livre do sentido. O nome que lhe é próprio, eis o que Joyce valoriza à custa do pai. Foi a esse nome que ele quis que fosse prestada aquela homenagem que ele mesmo recusou a quem quer que fosse. Dessa forma, pode-se dizer que o nome próprio faz tudo o que podepara se fazer mais que o S1, o significante do mestre, que se dirige rumo ao S que convoquei com o índice pequeno 2, aquele em torno do qual se acumula o que concerne ao saber. 3 Sobre esse tema, cf. o texto Plus loin que l’inconscient. In: BOUSSEYROUX, M. op. cit.

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NOMES. NOME. N.O.M.E. Considerações sobre o nome e a transmissão no seminário O sinthoma

[...] O fato que possamos colocar assim um monte de nomes implica apenas o seguinte – fazer entrar o nome próprio no âmbito do nome comum. [...] Vous devez en avoir votre claque. [claque: cansado e palma], e mesmo seu jaclaque, uma vez que lhe acrescentei um han como uma espécie de suspiro de alívio que experimento por ter percorrido hoje esse caminho. Reduzo, assim, meu nome próprio ao nome mais comum (LACAN, 1975-76/2007, pp. 86-87). O nome próprio não tem qualquer significado aparente a não ser em sua reduplicação nos significados que lhes são associados pelo Outro. Mas Lacan liga seu nome ao som, e com isso traz um novo significado: “Jaclaque han”. O “han” que ele cita aparece em outro momento, quando ele escreve o “Il n’y pas” como um som, “hihanpa”. Sobre isso, ainda com Soler, temos a indicação preciosa de que “não é o sentido que conta, mas a música, o ritmo, que justamente deixa seu lugar ao enigma da enunciação”. Assim, se dos nomes se passa ao nome próprio, Joyce ensina que o nome próprio pode se reduzir ao som: N.O.M.E.

Ecos no Espaço Escola Algumas questões do Espaço Escola onde essas articulações foram discutidas: o nome próprio obtura e não diz nada além da novela familiar; ao dizer dele fazemos história, romance. Uma análise passa por isso: quem deu o nome.De onde vem. Mas o fim de uma análise pressupõe ir para além desse romance. Fazer do Nome, Letra. Letra sintoma que reenoda borromeanamente deixando cada registro em seu lugar. A nomeação passa por esse fim da letra sinthoma que se transmite pelo que resta, pelo que fica como marca rasgada – estilo. Por que esse tema em nosso Espaço Escola? Sofremos com a fixidez criada pelo apego aos nomesenquanto lugares dados pelo outro, confundindo-se assim a dimensão do nome próprio à do nome-sinthoma. Temos os reflexosdessa fixidez que imperam e podem se traduzir como poder. É um ponto frágil, um calcanhar de aquiles dos laços que precisamos manter e cultivar entre os esparsos disparatados. O nome-sinthoma é justamente esse singular que recolhemose que nos faz esparsos disparatados. Não faz Um. O que se espera de uma Escola é a possibilidade de Uns, em suas soluções únicas, enlaçarem-se nessa diferença. Laços talvez impossíveis, se tentarmos fazê-los homogêneos. A nomeação dada pelo passe dura um tempo limitado, evitando assim uma fixidez. Quais os efeitos nos laços quando um nome se fixa indefinidamente? Diferente do passe, a designação dos AMEs4 não tem um tempo determinado. Poderia essa 4 Analista Membro de Escola definido na Proposição de 9 de outubro de 1967 como “O AME, ou analista membro de Escola, constituído simplesmente pelo fato de a Escola o reconhecer como psicanalista que comprovou sua capacidade”. Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 34 p.155-161 agosto 2017

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nomeação ter algum tratamento para não se cristalizar como casta? Manter o gradus5 em vez da hierarquia é o desafio de nossa Escola. E talvez, o tratamento joyceano possa ser a dica para tratarmos apenas os sons: A.M.E. e não cristalizar no imperativo: Ame.

Referências bibliográficas BOUSSEYROUX, M. Lacan le Borroméen. Toulouse: Érès, 2001. CAMPOS, A. e H. de. Panaroma do Finnegans Wake. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2001. JOYCE, J. Finn’s Hotel. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. . Ulysses. Nova Iorque: Dover Publications, 2009 LACAN, J. (1975-76) O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. . (1964-65) O seminário, livro 12: problemas cruciais para a psicanálise. Inédito. ROSE, D. .i.’.o.l. In: JOYCE, J. Finn’s Hotel. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. SOLER, C. Lacan, Lecteur de Joyce. Paris: PUF, 2015.

5 Gradus é uma proposta de Lacan para os problemas causados pela hierarquia também em seu texto Proposição de 9 de outubro de 1967. É um conceito ligado à música no que diz respeito ao contraponto.

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NOMES. NOME. N.O.M.E. Considerações sobre o nome e a transmissão no seminário O sinthoma

NOMES. NOME. N.O.M.E. Considerações sobre o nome e a transmissão no seminário O sinthoma NAMES. NAME. N.A.M.E. Considerations on name and transmission at seminar The sinthome resumo O presente texto visa apontar os paralelos entre Lacan e James Joyce no que concerne à passagem do processo de nomeação em direção ao nome próprio durante a análise. Partindo dos recortes feitos por Michel Bousseyroux, de um lado; e Colette Soler, de outro, pretende-se indicar o lugar, no “último Lacan”, do nome como diferença absoluta, assim como a mudança teórica do autor em relação ao sint(h)oma. Ainda ao fim, serão apresentados alguns ecos dessa teorização sobre a nomeação em meio à dinâmica da nomeação na Escola.

palavras-chave: Nomeação; nome próprio; sintoma; sinthoma; Escola.

abstract The present text aims to point out the parallels between Lacan and James Joyce in what concerns the passage from the process of nomination to the proper name during psychoanalysis. From the views of Michel Bousseyroux, on one end, and Colette Soler, on the other end, we intend to indicate the place, in the “last Lacan”, of the proper name as absolute difference, as well as the theoretical change of the author in regard of the sint(h)ome. At the end, some of the echoes of this theorization about the nomination among the dynamics of the naming at the School will be presented.

keywords: Nomination; proper name; symptom; sinthome; School.

Recebido: 21/05/2017

Aprovado: 21/06/2017

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resenha



Resenha do livro Desarrazoadas: devastação e êxtase Bela Malvina Szajdenfisz O livro de Elisabeth da Rocha Miranda, Desarrazoadas: devastação e êxtase, é resultado de seu doutoramento no programa de Pesquisa e Clínica em Psicanálise, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Ele versa sobre o estudo do gozo no feminino e parte de um trabalho audacioso de pesquisa que busca alicerçar teoricamente manifestações clínicas e seus efeitos em torno do feminino e o gozo que lhe é próprio. Ao conduzir uma análise, que tratamento dar ao que escapa ao sintoma, à cifra de gozo fálico presente na compulsão à repetição? Que tratamento dar ao que não está de todo cifrado, ao que ultrapassa o próprio sujeito na posição feminina e que produz efeitos devastadores para ele e para aqueles que o cercam? Este é o questionamento que a conduziu ao trabalho de pesquisa sobre o tema. Em sua proposta de pesquisa, Beth, como é chamada em nosso meio, lança a hipótese de que o sujeito, ao ocupar a posição feminina na estrutura neurótica, experimenta o gozo Outro, nesse lugar de S(A), e pode apresentar fenômenos de uma vivência fora do falo, fenômenos esses similares aos da psicose, uma espécie de loucura sem sê-la, de “sem-razão”, significante que lhe serviu de inspiração para compor o título do livro. Em sua apresentação, Antonio Quinet ressalta ser a pesquisa de Beth bem interessante, não só por seus avanços teóricos, ao abordar a última parte do ensino de Lacan, como também pela variedade de exemplos da literatura e de sua clínica, seguidos de consistentes referências lacanianas em torno do tema. Essa fecunda produção trouxe como resultado um texto polifônico em que topologia, lógica, poesia e clínica psicanalítica apresentam, em sua partitura textual, diferentes variações em torno do furo do Outro (MIRANDA, 2017, p. 9). Quinet reconhece, como grande contribuição, a investigação apurada sobre o gozo Outro e suas diversas manifestações expressas nos modos como o gozo feminino incide na subjetividade. Beth inicia seu livro com Maria, uma jovem detrinta anos, que não consegue fazer o luto pela perda do amor de sua vida. Há mulheres como Maria, diz a autora, que chegam à análise tomadas por uma estranheza, ora com sensações de extrema felicidade, ora com um grande mal-estar. São loucas, exageradas, excessivas, alucinadas, histéricas, desviadas, desvairadas ou delirantes. Algo as ultrapassa, causando enigma para os outros e para elas mesmas (Ibid., p. 11). A autora procura também elencar figuras como ao de Anna O., paciente de Breuer, de Madeleine, paciente de Pierre Janet, além de Camille Claudel e Rodin, e das muitas Marias Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 34 p.165-169 agosto 2017

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SZAJDENFISZ, Bela Malvina

de Florbela Espanca. Com isso, ela anuncia a polêmica no diagnóstico diferencial entre histeria e psicose, originada na loucura que diz respeito aos desatinos e à vacilação da mulher entre a norma fálica e o lado não todo fálico. Em seguida, serve-se dos Estudos sobre a histeria (1893-95) em que Freud descreve a similaridade dos desarrazoamentos aos fenômenos psicóticos tanto na histeria quanto nos estados delirantes de obsessivos graves, das Neuropsicoses de defesa (1894) em que ele aborda a questão da perda da realidade na neurose, uma aparente liberdade paradoxal à própria loucura, ponto limite de toda autonomia para o sujeito do inconsciente. Com ensinamentos de Lacan sobre a loucura, em Formulações sobre a causalidade psíquica (1946) e Alocução sobre as psicoses da criança (1967), e de Freud, com Luto e melancolia (1917), Beth refere-se ao sujeito melancólico fora do registro fálico, imerso na estrutura psicótica, mas também aponta para o neurótico em seus estados de loucura, quando “se depara com a verdade de ser um puro objeto caído do Outro” (p.13). Apoia-se em textos freudianos, como A organização genital infantil (1923), A dissolução do complexo de Édipo (1924) e A feminilidade (1933), para mostrar como Lacan chega à formalização do feminino como heterogêneo, múltiplo e irredutível ao Um fálico. Reforça a castração materna como condutora do sujeito a escolher sua posição sexuada, masculina ou feminina, via aberta por Freud em torno da lógica fálica, o que vai possibilitar a Lacan postular a posição feminina como não toda fálica, justamente em resposta ao gozo feminino. Afirma que estar na posição feminina é um dos efeitos decorrentes da sexuação dos sujeitos homens e mulheres. Conclui, assim, que “considerar-se homem ou mulher é um ato do discurso, um ato simbólico que produz uma marca de gozo, um furo no corpo que coincidirá ou não com o sexo anatômico” (MIRANDA, 2017, p. 17). Seria a experiência do gozo feminino possível a todos? E a experiência do gozo místico? Santa Tereza e São João da Cruz, ambos místicos, teriam experimentado o êxtase do gozo místico da mesma forma? Seria a loucura histérica uma demonstração dos efeitos devastadores causados pelo gozo Outro ou uma defesa contra eles? Se o gozo suplementar feminino é decorrente da relação da mulher com o S(A),com o Outro do significante enquanto faltoso ou com o fora da norma fálica, então toda mulher, uma vez situada, poderia alucinar? Quais seriam os efeitos dessa posição na clínica? (Ibid., p. 19).

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Resenha do livro Desarrazoadas: devastação e êxtase

Foram estas as questõesque instigaram Beth em sua pesquisa sobre o gozo na subjetividade, quer suplementar, feminino ou místico e que a incitaram a buscar responder com alicerces teóricos em Freud e Lacan, articulados à clínica e à literatura. Nos cinco capítulos que integram a obra, a ética da psicanálise se faz presente, sobretudo nos relatos de casos clínicos, dos quais destaco o de Tereza – a prometida, jovem de treze anos que, em sua autoflagelação, goza falicamente e, em seus êxtases na capela em sacrifício à Santa Terezinha, experimenta um gozo Outro que é depois substituído pela loucura decorrente do encontro sexual com um rapaz que conhecera na igreja, numa aproximação do gozo feminino ao místico, ambos fora do falo. Beth desenvolve a falta fálica na mulher partindo da definição de Lacan em A significação do falo, que ora transcrevo: Na doutrina freudiana, o falo não é uma fantasia, caso se deva entender por isso um efeito imaginário. Tampouco é, como tal, um objeto (parcial, interno, bom, mal etc.), na medida em que esse termo tende a prezar a realidade implicada numa relação. E é menos ainda o órgão, pênis ou clitóris, que ele simboliza. E não foi sem razão que Freud extraiu-lhe a referência do simulacro que ele era para os antigos. Pois o falo é um significante [...] [que] levanta [...] o véu daquela que ele mantinha envolta em mistérios (LACAN, 1958/1998, pp. 696-697). O destaque a este fragmento coloca o falo no lugar de um impossível de representação e marca, na concepção freudiana, a falta fálica na mulher como sendo aquela que não tem o falo. Uma leitura lacaniana do postulado freudiano da primazia fálica repagina o falo como um “significante”, definindo-o como possível para todo ser da fala e também para o que está fora do registro, o enigmático dark continent feminino de Freud que Lacan teorizou como sendo a não toda. A descoberta da falta fálica abre o caminho para o desejo, mas não para a feminilidade, pois a mulher, ainda que passe pela castração, não garante seu estatuto de mulher, apenas se inscreve na norma fálica. Como fazer-se mulher, então? Na histeria, o complexo de virilidade e a identificação ao pai são defesas contra a castração, o que leva a observar que, se por um lado a dissimetria entre o complexo de Édipo da menina e do menino situa-se no registro do simbólico, por outro, não há significante que diga A mulher. Destaco deste capítulo o caso de uma histérica que, em busca de sua verdade para a questão “sou homem ou mulher?”, questiona sua suposta “homossexualidade”. Ao explicar a razão pela qual, embora preferindo homens, sente-se algumas vezes atraída por mulheres, ela diz:

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SZAJDENFISZ, Bela Malvina

O que me interessa na mulher é a beleza, não uma beleza convencional, mas uma beleza que instiga e que não se apreende. A mulher é para mim como um quadro, um ponto de inapreensível, um texto que me causa, como diz meu pai, a mulher é feita de surpresas (MIRANDA, 2017, p. 74). A clínica da histeria revela uma espécie de loucura própria às mulheres que, por não saberem transitar do lugar de objeto a nas fórmulas de sexuação – situado do lado não todo – para o lugar de sujeito dividido do lado todo fálico – referido ao Falo simbólico –, quando se veem ultrapassadas em seu gozo, caem e aí se abismam em um gozo Outro. Beth traz passagens belíssimas da literatura e da clínica psicanalítica para falar do gozo feminino. Ao observar que o não todo fálico pode apresentar-se como um ponto intransponível no trabalho de decifração do sintoma, ela insiste em seu questionamento: “Que destino dar, então, à vivência do gozo Outro que ultrapassa o sujeito e, na maioria das vezes, é uma experiência devastadora?” (MIRANDA, 2017, p. 99). Assinala a não equivalência entre as posições masculina e feminina nos seus modos de gozo, em que o gozo feminino difere do gozo masculino, e marca a dissimetria entre os parceiros dos dois sexos: “Para um homem, a mulher é sintoma, desde que ele a situe no gozo fálico. Para uma mulher, todavia, um homem pode ser também uma aflição e até mesmo uma devastação. Quando esta se instala, deixa de haver laço possível entre um homem e uma mulher” (Ibid., p.100). Seus testemunhos da presença angustiante da alteridade do feminino, da não toda fálica, da pregnância da devastação entre mães e filhas, da ex-sistência que cada mulher traz consigo e da presença do Outro sexo, seja na Literatura com Madame Sévigné – a mais bela epistológrafa da homossexualidade feminina, ou na escultura, com Camille Claudel na erotomania, atestam um registro fiel da mulher naquilo que lhe escapa. Para finalizar, Beth se aprofunda no tema que a conduziu à pesquisa com um trabalho denso sobre o gozo feminino e a teoria da compacidade, para concluir com a loucura feminina e o gozo místico em Santa Tereza d’Ávila e em Hadewijch D’Anvers. O admirável trabalho de pesquisa feito por Elisabeth da Rocha Miranda, muito bem fundamentado, com ricos exemplos clínicos que atravessam quase toda a obra, referenciais teóricos consistentes, é uma leitura que traz muitas novidades, principalmente no que se refere às fórmulas da sexuação, apontadas muito apropriadamente por Antonio Quinet na apresentação da obra, o que a coloca como um livro importante e necessário para aqueles que se dispuserem a mergulhar neste tema.

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Resenha do livro Desarrazoadas: devastação e êxtase

Referências bibliográficas FREUD, S. (1894) As neuropsicoses de defesa. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. 2. . (1893-95) Estudos sobre a histeria. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. 2. . (1917) Luto e melancolia. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. 1. . (1923) A organização genital infantil. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,1976, v. 19. . (1924) A dissolução do complexo de Édipo. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. 19. . (1933) A feminilidade. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. 22. LACAN, J. (1946) Formulações sobre a causalidade psíquica. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. . (1967) Alocução sobre as psicoses da criança. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. MIRANDA, E. R. Desarrazoadas: devastação e êxtase. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2017.

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Sobre autores e tradutores Andréa Hortélio Fernandes Psicóloga. Psicanalista, AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano-Brasil, membro do Campo Psicanalítico de Salvador. Pós-doutora em Psicologia Clínica e Cultura pela UNB e doutora em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise (Paris VII). Professora Associada do Instituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia, membro do GT: Psicanálise, Política e Clínica da Associação Nacional de Pesquisadores e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP). Pesquisadora do CNPq. E-mail: ahfernandes03@gmail.com

Beatriz Helena Martins de Almeida Psicóloga. Psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. Coordenadora da Rede de Pesquisa sobre As Psicoses do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo. Coordenadora, professora e supervisora clínica do Curso de Formação em Acompanhamento Terapêutico do Instituto A Casa. E-mail: almeidabia@gmail.com

Bela Malvina Szajdenfisz Psicanalista, membro do Fórum do Campo Lacaniano do Rio de Janeiro e de Formações Clínicas do Campo Lacaniano-RJ, mestre em Psicologia da Educação pela FGV-RJ e em Psicanálise, Saúde e Sociedade pela UVA-RJ. Licenciada em Psicologia e Letras. E-mail: bmal.trp@terra.com.br

Brendali Dias Psicóloga. Psicanalista, membro do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo. Doutora e mestre em Psicologia Social pela PUC-SP. E-mail:brendalidias@hotmail.com

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Colette Soler Psicanalista, AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano-França. Formada por Jacques Lacan, está na origem dos Fóruns do Campo Lacaniano e sua Escola. Doutora em Psicologia (Paris VII), é autora de vários livros, dentre os quais: Psicanálise na civilização (Contracapa), O que Lacan dizia das mulheres (Jorge Zahar), O inconsciente a céu aberto na psicose (Jorge Zahar), Lacan, o inconsciente revisitado (Cia de Freud), Declinações da angústia (Escuta), Seminário de leitura de texto: A angústia, de Jacques Lacan (Escuta) e Lacan, leitor de Freud (PUF). E-mail: solc@wanadoo.fr

Glaucia Nagem de Souza Psicóloga. Psicanalista, membro do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo. Artista plástica. E-mail: glaucia.nagem@uol.com.br

Leonardo Pimentel Psicólogo. Psicanalista, membro do Fórum do Campo Lacaniano do Rio de Janeiro. Doutorando em Psicanálise pela UERJ. E-mail: leonardoptl@icloud.com

Maria Claudia Formigoni Psicóloga. Psicanalista, membro do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo. Mestre em Psicologia Social pela PUC-SP. Especialista em Psicologia Hospitalar pelo HC-FMUSP. E-mail: mclaudiaformigoni@gmail.com

Maria Vitoria Bittencourt Psicóloga. Psicanalista, AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano-Brasil e do Fórum do Campo Lacaniano do Rio de Janeiro, membro do Colegiado de Formações Clínicas do Campo Lacaniano-RJ. Mestrado do Champ Freudien, Université Paris VIII. Graduada em Psicologia Clínica, Sorbonne-Paris. E-mail: mariavitoriabittencourt@gmail.com

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Raul Albino Pacheco Filho Psicólogo. Psicanalista, AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano-Brasil, membro do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo, onde coordena a Rede de Pesquisa Psicanálise e Saúde Pública. Doutor e mestre pelo Instituto de Psicologia da USP. Professor Titular da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde da PUC-SP, atuando no Curso de Psicologia e no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social, onde coordena o Núcleo de Pesquisa Psicanálise e Sociedade. E-mail: raulpachecofilho@uol.com.br

Sheila Abramovitch Psiquiatra. Psicanalista, membro da Escola dos Fóruns do Campo Lacaniano-Brasil, membro do Fórum do Campo Lacaniano do Rio de Janeiro, membro do Colegiado de Formações Clínicas do Campo Lacaniano-RJ. Doutora em Medicina pela UERJ. Chefe do Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência do Hospital Universitário Pedro Ernesto (UERJ). Professora da Faculdade de Ciências Médicas da UERJ e do Curso de Especialização em Psicologia Clínica da PUC-RJ. E-mail:sheila_abramo@hotmail.com

Silvana Pessoa Psicanalista, AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano-Brasil, membro do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo e membro Honorário do Campo Psicanalítico – Salvador. Mestre em Educação pela USP. Autora de diversos artigos em revistas nacionais e internacionais sobre a práxis e a teoria psicanalítica em intensão e extensão. E-mail: silvanapessoa@uol.com.br

Soraya Carvalho Psicóloga, especialista em Psicologia Hospitalar e psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano-Fórum Salvador. Membro da Associação Científica Campo Psicanalítico de Salvador; membro-fundador e membro da diretoria da ABEPS – Associação Brasileira de Estudo e Prevenção do Suicídio; membro do GT de Suicídio da ULAPSI – União Latino-americana das Entidades de Psicologia; membro da ASULAC – Associação de Suicidologia da América Latina e Caribe. Idealizadora e Coordenadora do NEPS – Núcleo de Estudo e Prevenção do Suicídio. Autora do livro A morte pode esperar? Clínica psicanalítica do suicídio, e organizadora do livro O inconsciente e o corpo do ser falante. E-mail: soraya-carvalho@uol.com.br Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 34 p.171-174 agosto 2017

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Vera Iaconelli Psicóloga. Psicanalista, AE da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano-Brasil, membro do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo. Doutora e mestre em Psicologia pela USP. Diretora do Instituto Gerar. E-mail: vera.iaco@gmail.com

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Orientações Editoriais Stylus é um periódico semestral da ESCOLA DE PSICANÁLISE DOS FÓRUNS DO CAMPO LACANIANO – BRASIL e se propõe a publicar artigos inéditos das comunidades brasileiras e internacionais do Campo Lacaniano, e os artigos de outros colegas que orientam sua leitura da psicanálise, principalmente pelos textos de Sigmund Freud e Jacques Lacan. Revista que aceita artigos provenientes de outros campos de saber (a arte, a ciência, a matemática, a filosofia, a topologia, a linguística, a música, a literatura etc.) que tomam a psicanálise como eixo de suas conexões reflexivas. Aos manuscritos encaminhados para publicação, recomendam-se as seguintes Orientações Editoriais. Serão aceitos trabalhos em inglês, francês e/ou espanhol. Se aceitos, serão traduzidos para o português. Todos os trabalhos enviados para publicação serão submetidos à apreciação de, no mínimo, dois pareceristas, membros do Conselho Editorial de Stylus (CES). A Equipe de Publicação de Stylus (EPS) poderá fazer uso de consultores ad hoc, a seu critério e do CES, omitida a identidade dos autores. Os autores serão notificados da aceitação ou não dos artigos. Os originais não serão devolvidos. O texto considerado aceito será publicado na íntegra. Os artigos assinados expressam a opinião de seus autores. A EPS avaliará a pertinência da quantidade de textos que irão compor cada número de Stylus, de modo a zelar pelo propósito dessa revista: promover o debate a respeito da psicanálise e suas conexões com os outros discursos.

Fluxo de avaliação dos artigos: 1.) Recebimento do texto por e-mail pelos membros da EPS de acordo com a data divulgada na rede-epfclbrasil@googlegroups.com, na if-epfcl@champlacanien.net e na página do Facebook da revista (/Revista-Stylus) 2.) Distribuição para parecer. 3.) Encaminhamento do parecer para a reunião da EPS para decisão final. 4.) Informação para o autor: se recusado, se aprovado ou se necessita de reformulação (neste caso, é definido um prazo de dez dias, findo o qual o artigo é desconsiderado, caso o autor não o reformule apropriadamente). 5.) Após a aprovação o autor deverá enviar à EPS no prazo de cinco dias úteis um e-mail contendo um arquivo de seu texto, definido para impressão. 6.) Publicação. Nota: não haverá banco de arquivos para os números seguintes. O autor que desejar publicar deverá encaminhar seu texto a cada número de Stylus.

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Direitos autorais: A aprovação dos textos implica a cessão imediata e sem ônus dos direitos autorais de publicação nesta revista, a qual terá exclusividade de publicá-los em primeira mão. O autor continuará a deter os direitos autorais para publicações posteriores.

Serão aceitos trabalhos para as seguintes seções: Conferências: conferências proferidas sobre temas psicanalíticos ou de interesse da psicanálise no âmbito dos Fóruns do Campo Lacaniano em Diagonais Epistêmicas e outras atividades, nas Universidades, nos Encontros da EPFCL Nacionais e Internacionais. As conferências proferidas oralmente serão transcritas. Artigos: análise de um tema proposto, levando ao questionamento e/ou a novas elaborações (aproximadamente 12 laudas ou 25.200 caracteres, incluindo referências bibliográficas e notas). Ensaios: apresentação e discussão a partir da experiência psicanalítica de problemas cruciais da psicanálise no que estes concernem à transmissão da psicanálise. Expressão mais subjetiva das escolhas discursivas e, portanto, podendo apresentar conclusão mais original (aproximadamente de 05 laudas ou 9.000 caracteres até 15 laudas ou 31.000 caracteres, incluindo referências bibliográficas e notas). Resenhas: resenha crítica ou descritiva de livros, filmes, peças teatrais ou teses de mestrado ou doutorado, cujo conteúdo se articule ou seja de interesse da psicanálise (aproximadamente de 02 a 05 laudas, entre 3.000 e 9.000 caracteres). Entrevistas: entrevista que aborde temas de psicanálise ou afins à psicanálise (aproximadamente 10 laudas ou 21.000 caracteres, incluindo referências bibliográficas e notas). Stylus possui as seguintes seções: conferência, ensaios, trabalho crítico com os conceitos, direção do tratamento, espaço escola, entrevista e resenhas e letras; cabendo à EPS decidir sobre a inserção dos textos selecionados no corpo da revista.

Envio dos manuscritos: Ao enviar o artigo para a revista, o autor compromete-se a não o encaminhar para outro(s) veículo(s) de publicação, pelo prazo de seis meses, a contar da data do envio. As propostas de publicação devem ser enviadas via internet, como anexo, para o e-mail revistastylus@yahoo.com.br.

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Apresentação dos manuscritos: Formatação: Os artigos devem ser digitados em Word for Windows, versão 6.0 ou superior, com extensão (.doc), em fonte Times New Roman, tamanho 12, em folha de formato A4, com espaçamento 1,5 entre linhas, margens superior, inferior e laterais de 2 cm. Ilustrações: o número de figuras (quadros, gráficos, imagens, esquemas) deverá ser mínimo (máximo de 5 por artigo, salvo exceções, que deverão ser justificadas por escrito pelo autor e avalizadas pela EPS). As figuras devem vir separadamente em arquivo JPEG nomeados Fig. 1, Fig. 2 e indicadas no corpo do texto o local dessas Fig. 1, Fig. 2., sucessivamente. As ilustrações devem trazer abaixo um título ou legenda com a indicação da fonte, quando houver.

Normas para publicação: • Primeira lauda contendo apenas o título do artigo, nome(s) do(s) autor(es), dados do(s) autor(es) [titulação, filiação institucional e referências acadêmicas e profissionais, em 10 linhas, no máximo] e endereço completo (com e-mail). • Demais laudas, numeradas consecutivamente a partir de 1 (um), repetindo o título, sem o(s) nome(s) do(s) autor(es), e contendo o texto da publicação. • No caso de investigações/desenvolvimentos teóricos, relatos de pesquisas, debates e entrevistas, deve ser incluído um resumo de no máximo trezentas palavras, ao final, na mesma língua do trabalho, acompanhado de palavras-chave (no mínimo três e no máximo cinco). Após esse resumo, deve-se incluir também uma tradução do mesmo, em inglês (abstract), acompanhada da tradução do título e das palavras-chave (abstract) • No caso de entrevista, devem ser incluídos, ao final, os seguintes dados: data da entrevista, nome do entrevistador, nome do entrevistado e dados completos de identificação de ambos (titulação, filiação institucional e referências acadêmicas e profissionais). Opcionalmente, podem ser incluídos dados relevantes sobre o contexto em que foi realizada a entrevista. • No caso de resenhas, deve-se incluir, ao final, a referência completa da obra resenhada.

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Sobre citações e referências bibliográficas: Indicamos a NBR 6023 da Associação Brasileira das Normas Técnicas, lançada em 2002, disponível nos seguintes endereços eletrônicos, ambos oriundos do sítio (http://www.ip.usp.br/portal/) da Biblioteca Dante Moreira Leite, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo: Citações: http://www.ip.usp.br/portal/images/stories/manuais/citacoesabnt.pdf. Referências bibliográficas: http://www.ip.usp.br/portal/images/stories/manuais/normalizacaodereferenciasabnt.pdf.

Citações no texto: 1. 2. 3.

4. 5.

As citações diretas (ou textuais) devem reproduzir fielmente as palavras do autor ou o trecho do texto utilizado. Exemplo: Dessa maneira, Quinet (1991, p. 87) adverte que “não há duas pessoas que lidem com o dinheiro da mesma forma”. As citações diretas (ou textuais) que excederem três linhas devem vir em parágrafo separado, com recuo de 4 cm da margem esquerda (além do parágrafo de 1,25cm) em fonte Times New Roman, tamanho 10 e sem utilização de aspas. Os títulos de textos citados devem vir em itálico (sem aspas), os nomes e sobrenomes em formato normal (Lacan, Freud). Exemplo: Freud (1910, p. 130) em As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica, destaca um aspecto importante: Agora que um considerável número de pessoas está praticando a psicanálise e, reciprocamente, trocando observações, notamos que nenhum psicanalista avança além do quanto permitam seus próprios complexos e resistências internas; e, em consequência, requeremos que ele deva iniciar sua atividade por uma autoanálise e levá-la, de modo contínuo, cada vez mais profundamente, enquanto esteja realizando suas observações sobre seus pacientes. Qualquer um que falhe em produzir resultados numa autoanálise desse tipo deve desistir, imediatamente, de qualquer ideia de tornar-se capaz de tratar pacientes pela análise.

6.

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Exemplo: Freud (1910, p. 130) em As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica, destaca um aspecto importante:

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7.

As citações indiretas devem conter as ideias daquele que escreve o texto, mas também devem referendar as ideias originais do autor citado, em letras maiúsculas. 8. Exemplo: Lacan sempre deixou claro sua posição sobre os psicanalistas que se acomodavam frente aos mecanismos institucionais das escolas psicanalíticas daquela época, com suas burocracias e rituais questionáveis (LACAN, 1956/1998). 9. As citações de obras antigas e reeditadas devem ser feitas da seguinte maneira: Kraepelin (1899/1999). 10. No caso de citação de artigo de autoria múltipla, as normas são as seguintes: A) até três autores – o sobrenome de todos os autores é mencionado em todas as citações, por exemplo: (ALBERTI e ELIA, 2000). B) de quatro a seis autores – o sobrenome de todos os autores é citado na primeira citação, como acima. Da segunda citação em diante só o sobrenome do primeiro autor é mencionado, como abaixo (ALBERTI et al, 2009, p. 122). C) mais de seis autores – no texto, desde a primeira citação, somente o sobrenome do primeiro autor é mencionado, mas nas referências bibliográficas os nomes de todos os autores devem ser relacionados. 11. Quando houver repetição da obra citada na sequência deve vir indicado Ibid., p. (página citada.). 12. Caso a fonte seja um website ou página eletrônica, deve-se explicitar o endereço eletrônico de acesso, após a informação, (http://www. campolacanianosp.com.br/).

Notas de rodapé: As notas não bibliográficas, indicações, observações ou aditamentos ao texto feitos pelo autor ou editor, devem ser em fonte Times New Roman, tamanho 10, ordenadas por algarismos arábicos e organizadas como nota de rodapé, ao final da página em questão.

Referências Bibliográficas: Os títulos de livros, periódicos, relatórios, teses e trabalhos apresentados em congressos devem ser colocados em itálico. O destaque é para o título do livro e não para o título do capítulo. Quando se referencia várias obras do mesmo autor, substitui-se o nome do autor por um traço equivalente a oito espaços. O sobrenome do(s) autor(es) deve vir em caixa alta, seguido do prenome abreviado.

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Livros, livro de coleção: FREUD, S. (1920) Além do princípio de prazer. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987, v. 18. LACAN, J. (1955) A coisa freudiana. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. pp. 402-437. LACAN, J. (1960-61) O seminário, livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. LACAN, J. (1961-62) O seminário, livro 9: a identificação. Aula de 21 de março de 1962. Inédito. LACAN, J. (1969-70). Le séminaire, livre 17: l’envers de la psychanalyse. Paris: Éditions du Seuil, 1991. Capítulo de Livro: Foucault, M. Du bon usage de la liberté. In: Histoire de la folie à l’âge classique. Paris: Gallimard, 1972, pp. 440-482. Um autor com várias obras: se os vários documentos de um mesmo autor tiverem a mesma data de publicação, faz-se a distinção pelo acréscimo de letras minúsculas, em ordem alfabética, após a data, conforme as referências:

LACAN, J. (1955-56a). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da

psicose. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. ______. (1955-56b) O seminário, livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. Artigo em periódico científico ou revista: COUTINHO JORGE, M. A. Do amor ao gozo: uma leitura do “Bate-se numa criança”. Revista Marraio: O mal-estar na infância II, n. 13. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2007, pp. 35-54. Teses e dissertações: DA ROCHA MIRANDA, E. O gozo no feminino. Rio de Janeiro, 2011. 355 f. Tese. (Doutorado em Psicanálise) – Instituto de Psicologia. Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011. Relatório técnico: BARROS DE OLIVEIRA, M. H. Política Nacional de Saúde do Trabalhador. (Relatório Nº). Rio de Janeiro. CNPq, 1992.

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Trabalho apresentado em congresso e publicado em anais: QUINET, A. A heteridade de Lacan. Trabalho apresentado na Conferência Internacional sobre Lacan no século. Odisseia lacaniana, I, 2001, abril; Rio de Janeiro, Brasil. Obra no prelo: No lugar da data deverá constar (No prelo). Autoria institucional: American Psychiatric Association. DSM-III-R, Diagnostic and statistical manual of mental disorder (3rd edition revised.) Washington, DC: Author, 1998. CD: FUKS, B. Transmissão: psicanálise, história e escrita. Anais do III Congresso Nacional de Psicanálise da UFC e do X Encontro de Psicanálise da UFC. Fortaleza: MACROMEDIA, 2005. CD-ROM. Fontes eletrônicas: VALAS, P. A prática clínica de Jacques Lacan. Aula de 16 de setembro de 2012. Disponível em: http://www.valas.fr/Patrick-Valas-La-pratique-clinique-de-Jacques-Lacan-transcriptions-videos-et-audios-du-seminaire-2012-2013,154. Acesso em: 28 abr. 2017. Outras dúvidas poderão ser sanadas consultando-se a versão original da ABNT 6023, como dito anteriormente, ou eventualmente endereçadas à Equipe de Publicação da Revista Stylus (EPS) para o e-mail revistastylus@yahoo.com.br

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