Stylus 33

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ISSN 1676-157X novembro 2016 no 33

Escolade depsicanálise Psicanálise dos dos fóruns Fóruns do escola doCampo campoLacaniano lacaniano– -Brasil brasil

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d e psic a n á lise

Stylus

revista de psicanálise

Psicanálisenº33e atualidade p.1-312 novembro 2016

Stylus Rio de Janeiro


escola de psicanálise dos fóruns do campo lacaniano - brasil

Stylus revista de psicanálise

Stylus Rio de Janeiro

nº33

p.1-312

novembro 2016


© 2016, Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (AFCL/EPFCL-Brasil) Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem permissão por escrito. Stylus – Revista de Psicanálise É uma publicação semestral da Associação Fóruns do Campo Lacaniano/Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil. Rua Goethe, 66 – 2o andar. Botafogo. Rio de Janeiro, RJ – Brasil CEP 22281-020 – www.campolacaniano.com.br – revistastylus@yahoo.com.br Comissão de Gestão da AFCL/EPFCL-Brasil

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FICHA CATALOGRÁFICA STYLUS: revista de psicanálise, n. 33, novembro de 2016 Rio de Janeiro: Associação Fóruns do Campo Lacaniano Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil – 17x24 cm Resumos em português e em inglês em todos os artigos. Periodicidade semestral. ISSN 1676-157X 1. Psicanálise. 2. Psicanalistas – Formação. 3. Psiquiatria social. 4. Psicanálise lacaniana. Psicanálise e arte. Psicanálise e literatura. Psicanálise e política. CDD: 50.195


sumário 07 editorial: Dominique Fingermann conferência 11 Ronaldo Torres: Problemas cruciais para a formação do analista na atualidade: O sujeito suposto saber em questão direção do tratamento 31 Colette Soler: O Um totalmente só e seus laços 45 Esther Maynart Pereira Mikowski e Daniel Menezes Coelho: Manejo clínico e as produções de saber na cultura como destinos da pulsão de saber 59 Sandra Berta: A atualidade da clínica 67 Sol Aparicio: A análise é o que se espera de um analista ensaio 79 Frédéric Pellion: A propósito dos discursos atualidade do laço social 103 David Bernard: Lacan e a modernidade 111 Marc Strauss: O sofrimento do sujeito contemporâneo 119 Christian Ingo Lenz Dunker: Psicanálise e contemporaneidade: Novas formas de vida? 139 Fabiano Chagas Rabêlo: A essência fugaz do brilho da falta 153 Patrick Barillot: Sair do discurso capitalista? atualidade e sexo 165 Sonia Alberti e Barbara Zenicola: Diante do muro 177 Vera Pollo: Transexualidade e transgêneros: O gozo sexual da falante 191 Antonio Quinet: Homofobias psicanalíticas na psicologização do Édipo 201 Raul Albino Pacheco Filho: Ditadura e homossexualidades: Discurso e sintoma psiquiatria na atualidade 217 Paulo Bueno: Sujeito do inconsciente e sujeito de direito: Ponto de conjunção ou de disjunção na interlocução da psicanálise com a saúde mental? 227 Nelson da Silva Júnior: Epistemologia psiquiátrica e marketing farmacêutico: Novos modos de subjetivação 241 Jamile Luz Morais: O transtorno bipolar, o discurso capitalista e suas implicações na clínica psicanalítica

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espaço escola 255 Vera Iaconelli: Dos confins de uma análise 261 Dominique Fingermann: Ensino e Saber resenhas 277 Vera Pollo: Édipo ao pé da letra, de Antonio Quinet 281 Mayla Di Martino: Mal-estar, sofrimento e sintoma, de Christian Dunker letras 291 Luís Vaz de Camões: Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades 293 Bertolt Brecht: Nada é impossível de mudar

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contents 07 editorial: Dominique Fingermann conference 11 Ronaldo Torres: Crucial problems to the formation of the analyst in actuality: The subject supposed to know in question the direction of the treatment 31 Colette Soler: The totally lonely and its bonds 45 Esther Maynart Pereira Mikowski and Daniel Menezes Coelho: Clinical management and knowledge productions in the culture as destinies of the drive to know 59 Sandra Berta: The actuality of the clinic 67 Sol Aparicio: Analysis is what is expected from a psychoanalyst essays 79 Frédéric Pellion: About the discourses contemporary social bond 103 David Bernard: Lacan and modernity 111 Marc Strauss: The suffering of the contemporary individual 119 Christian Ingo Lenz Dunker: Psychoanalysis and contemporaneity: New ways of life? 139 Fabiano Chagas Rabêlo: The fleeting essence of the shine of emptiness 153 Patrick Barillot: To abandon the capitalist discourse? sex and actuality 165 Sonia Alberti e Barbara Zenicola: In front of the wall 177 Vera Pollo: Transsexuality and transgender: The sexual enjoyment of talking being 191 Antonio Quinet: Psychoanalytical homophobias in the ‘psychologization’ of Oedipus 201 Raul Albino Pacheco Filho: Dictatorship and homosexualities: Discourse and symptom actuality of psychiatry 217 Paulo Bueno: Subject of the unconscious and law subject: Conjunction or disjunction point in the dialogue of psychoanalysis with the mental health? 227 Nelson da Silva Júnior: Psychiatric epistemology and pharmaceutical marketing: new modes of subjectivation Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 33 p.1-9 novembro 2016

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241 Jamile Luz Morais: Bipolar disorder, the Capitalist Discourse and its implications in the psychoanalytical practice school context 255 Vera Iaconelli: From the confines of an analysis 261 Dominique Fingermann: Education and knowledge review 277 Vera Pollo: Édipo ao pé da letra, from Antonio Quinet 281 Mayla Di Martino: Mal estar, sofrimento e sintoma, from Christian Dunker letters 291 Luís Vaz de Camões: Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades 293 Bertolt Brecht: Nada é impossível de mudar

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Editorial Responsabilidade do discurso do psicanalista na atualidade “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, dizia o poeta (que vocês encontrarão na seção Letras de Stylus 33), Camões, junto com Brecht, que do sussurro ao grito usam as letras para despertar o desejo que os tempos bem poderiam fazer cochilar. Mudam-se os tempos, mas e a psicanálise? Ela deveria mudar, ou deveras emuda-se? “Psicanalista, mais um esforço para ser contemporâneo!” É comum ouvirmos entre nós: o Discurso do Psicanalista é incompatível com o Discurso do Capitalista; o sujeito da modernidade que possibilitou o “acontecimento Freud” já não seria mais condizente com o sujeito do mundo contemporâneo. Os tempos que correm, a maquinação da ciência com o mercado conspiram para não nos deixar psicanalisar tranquilamente como outrora. Os textos presentes na seção Direção do tratamento, comprovam a “Atualidade da clínica” (Sandra Berta) e a manutenção do Discurso Analítico a despeito dos tempos aflitos pela proliferação dos mais-de-gozar. Assim, desde sempre “A análise é o tratamento que se espera de um analista” (Sol Aparicio), e para sempre almejará que a heresia do “Um totalmente só” consiga inventar e sustentar um laço (Colette Soler). Com a finalidade de esclarecer a construção lacaniana dos quatro ou cinco discursos como laços possíveis, Ensaio, propõe um longo estudo sistemático, “A propósito dos discursos” (Frédéric Pellion). Lembremos do alerta de Lacan em “Função e campo da fala e da linguagem” (1953), que almeja proteger a prática da psicanálise de sua obsolescência: “Que antes renuncie a isso, portanto, quem não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época”. Consequentemente, Stylus 33 indaga seriamente, em três capítulos, se os problemas cruciais da psicanálise na atualidade consistiriam em uma questão de adequação ou inadequação do psicanalista ao discurso contemporâneo (ou seja, à modalidade de tratamento do gozo que o século XXI oferece). Atualidade do laço social apresenta cinco trabalhos que, a partir das pistas abertas por Lacan, examinam as consequências do chamado Discurso capitalista, seus efeitos sobre os laços sociais e a dor de existir: “Lacan e a modernidade” (David Bernard), “O sofrimento do sujeito contemporâneo” (Marc Strauss), “A essência fugaz do brilho da falta” (Fabiano Chagas Rabêlo), “Psicanálise e contemporaneidade” (Christian Dunker). “Sair do discurso capitalista?” (Patrick Barillot) coloca em questão o que se tornou um clichê lacaniano: o fato de a psicanálise permitir uma saída do discurso capitalista.

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No capítulo Atualidade do sexo, quatro autores – Sonia Alberti, Antonio Quinet, Vera Pollo e Raul Pacheco – se empenham, mais uma vez, em “colocar os pingos nos is” no que diz respeito à questão da sexuação a partir dos avanços lacanianos, e precisam como a “maldição sobre o sexo” permite, no entanto, abordar a complexa e atual questão do gênero. Psiquiatria na atualidade: haveria, enfim, uma possibilidade de diálogo entre psicanálise e psiquiatria? Paulo Bueno, Nelson da Silva Jr. e Jamile Luz Morais perseguem, contudo, esta interlocução. De qualquer forma, e sobremaneira, o problema crucial da psicanálise na atualidade é a manutenção de sua posição atópica (a posição do inconsciente) e a perseverança da subversão topológica de seu laço ao avesso do bom senso e da moral do mundo. O problema crucial da psicanálise permanece sendo a formação do analista capaz de inventar a radicalidade de seu ato ímpar, do qual ele precisa dar prova. A prova de analista é o seu estilo, a sua distinção, a sua resposta singular, seu sinthoma dirá Lacan, isto é, sua resposta à “não relação sexual”. Em sua Conferência, “Problemas cruciais para a formação do analista na atualidade: O sujeito suposto saber em questão”, Ronaldo Torres foca precisamente o problema lógico e ético que a história da psicanálise se empenhou em “tratar”, “para que a psicanálise se torne um ato por vir ainda”. No Espaço Escola, Vera Iaconelli, AE recentemente nomeada na EPFCL, apresenta um testemunho de sua trilha até o fim de sua experiência, e Dominique Fingermann aborda a questão da transmissão possível/impossível, cotejando a articulação entre ensino e saber. Por fim, Vera Pollo e Mayla Di Martino, nos brindam com as Resenhas dos últimos livros de Antonio Quinet e Christian Dunker. “Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar” (Bertolt Brecht). Dominique Fingermann

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conferência



Problemas cruciais para a formação do analista na atualidade: O sujeito suposto saber em questão1 Ronaldo Torres Elegi para minha fala aqui, para essa conversa com vocês, o “sujeito suposto saber em questão” que, como Ida Freitas mencionou, é uma passagem do Seminário 15 de Lacan, O ato psicanalítico (LACAN, 1967-68/inédito). Pretendo desenvolvê-la e veremos como isso acontece ao longo de minha fala, fala que, como sabem, sempre precisa de certa coragem para começar, mas que nunca se sabe como vai acabar. Começo, então, por aquilo que o tema proposto suscitou, a forma como a proposta foi formulada: “Problemas cruciais para a formação do analista na atualidade”. Provocado por isso, recolhi três vértices deste tema para pensar, e trouxe alguns apontamentos que me ocorreram, só para iniciar o debate. Primeiramente, os problemas cruciais. Como sabem, não é exatamente uma expressão conceitual de Lacan, pois ele não a trabalhou como um conceito. Embora não seja uma expressão conceitual, é interessante notar que Lacan a usou em passagens importantes. Por exemplo, a passagem que considero bastante relevante, e penso que de fato o seja, em que ele se refere a essa expressão quando fala exatamente do Analista da Escola (AE), na “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”. Não sei se lembram deste trecho, mas ele diz assim: Analista da escola a quem se imputa estar entre os que podem dar testemunho dos problemas cruciais nos pontos nodais em que se acham eles no tocante à análise, especialmente na medida em que eles próprios estão investidos nessa tarefa ou, pelo menos, sempre em vias de resolvê-los (LACAN, 1967a/2003, p. 249, grifos nossos). “Investidos nessa tarefa”, isto é, a do tratamento dos problemas cruciais. Em seguida, ele diz: “Esse lugar implica que se queira ocupá-lo. Só se pode estar nele por 1 Conferência pronunciada em 03/06/2016 na ocasião da Diagonal Epistêmica do Fórum do Campo Lacaniano de Salvador.

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tê-lo demandado de fato senão formalmente” (Ibid.). Ressalto também esse queira, queira ocupá-lo. E, na linha seguinte, ele trata exatamente sobre a questão da formação: “Que a escola pode garantir a relação do analista com a formação, que ela dispensa, portanto, está estabelecido” (Ibid.). Este é o primeiro recorte que trago. Essa expressão também aparece, evidentemente, em alguns pontos do seminário Problemas cruciais para a psicanálise, o Seminário 12; e ali ela está vinculada ao que Lacan chama de “posições subjetivas do ser” – é o caso, por exemplo, da aula 23, mais para o final do seminário, e aparece também vinculada à questão do ser, do ser relacionado ao sujeito, no começo do resumo desse seminário que está em Outros escritos: Que o ser do sujeito é fendido, Freud só fez redizê-lo de todas as formas, depois de descobrir que o inconsciente só se traduz em nós de linguagem, que tem, pois, um ser de sujeito (LACAN, 1966/2003, p. 206). Queria então, de forma preliminar, extrair esses três pontos relativos a esse recorte dos problemas cruciais, que são: 1. A articulação com a experiência analítica levada a seu termo e a aposta da transmissibilidade disso como o pilar da Escola, falando dessa referência ao AE e da experiência do passe; 2. O aspecto relativo ao desejo nesse queira, que ele queira ocupá-lo, que deixo em suspenso por enquanto; 3. A articulação ao ser do sujeito no Seminário 12. Retomarei isso mais à frente, mas lembro que, como a sucessão indica, o Seminário 12 vem depois do 11, que é, por assim dizer, o “primeiro” seminário lacaniano. Alguns interpretam que os primeiros dez seminários teriam sido a incursão formidável, extremamente importante, de Lacan nos grandes temas freudianos, e que o Seminário 11 seria o primeiro seminário lacaniano. Digo isso, porque o seminário é marcado como um ato. Lacan o inicia falando sobre a excomunhão, e 1964 é o ano em que ele funda a Escola Freudiana (Ato de fundação), e também para indicar, desde já, por que falaremos mais adiante sobre isso, um percurso importante, que existe entre o Seminário 11 e o Seminário 15. Além desses primeiros apontamentos sobre os problemas cruciais, gostaria de fazer um comentário mais geral sobre essa expressão. Porque, tenho a impressão de que Lacan assumiu uma posição permanente de tomar os problemas cruciais para tratá-los, posição que ele tomou diante da prática psicanalítica e dos problemas que se apresentavam para ele clinicamente. A obra de Lacan – na experiência que tenho com ela, a cada vez que a leio e volto a estudá-la – me transmite como 12

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ele está se virando com as questões que se lhe apresentam. Claro, muitas delas são teóricas, questões de diálogo com diversas disciplinas, diversos campos do saber, mas fundamentalmente, trata-se de um percurso de tratamento de questões clínicas que surgiam para ele. Isso é um aspecto importante de transmissão. Muitas vezes, toma-se a obra lacaniana como uma obra hermética, ou uma espécie de doutrina da revelação, como se ali houvesse um saber fechado que apenas alguns iniciados pudessem acessar. Parece-me, contudo, ser exatamente o contrário. Penso que, nesse sentido, há um “jogo de inversão” em Lacan, que ele promovia principalmente em seus Seminários – os Escritos têm um estatuto um pouco diferente. Nos Seminários ele reunia uma porção de pessoas para ouvi-lo falar e é claro que ali havia uma transmissão dos problemas, das questões de que ele tratava, dos fundamentos da psicanálise. Porém, no final das contas, quem estava tratando as questões como psicanalista clínico, fica muito claro que era ele. Lacan queria ali trabalhar certas questões que se lhe apresentavam teoricamente, mas a partir da clínica. Faço esse comentário lateral, porque isso tem muito a ver com a formação. É muito diferente pensarmos em uma formação que venha por uma transmissão de um saber dado, um saber posto, e em uma transmissão que seria de uma experiência, também relativa ao saber, claro, mas que traz muito presente o que poderíamos chamar de furo no saber. É isso que movimenta e que não se trata de não saber. Lacan também é muito enfático sobre isso na “Proposição”. Vocês devem se lembrar de que há essa ressalva que ele faz. Ele diz que “o analista só se autoriza de si”, mas logo em seguida, indica que não se trata de saber que nada sabe, pois o que se trata é o que ele tem de saber. Essa transmissão, a partir do saber e seu furo, entretanto, não é simples, porque não responde a uma genealogia. Outra maneira de dizer isso é que ela não se transmite por alienação. Passemos, então, ao segundo vértice do tema, problemas cruciais na formação. Lacan percorreu um longo caminho para propor, de forma concisa, para fazer uma “redução”, vamos dizer assim, um bem-dizer aquilo que chamou de junção, que se coloca, entre outras coisas, como base para a formação do analista. Aquilo que ele chamou de junção entre psicanálise em intensão e psicanálise em extensão: Para introduzi-los nisso, eu me apoiarei nos dois movimentos da junção, o que chamarei neste arrazoado, respectivamente, de psicanálise em extensão, ou seja, tudo o que resume a função de nossa escola como presentificadora da psicanálise no mundo e psicanálise em intensão, ou seja, a didática, como não fazendo mais do que preparar operadores para ela (LACAN, 1967a/2003, p. 251).

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Essa junção parece portar a propriedade de certos espaços topológicos, que são espaços unilaterais, como a Banda de Mœbius, por exemplo. Se tomarmos qualquer ponto na única face que há nela, teremos esse único ponto em uma única face, mas ele também pode ser um ponto para um corte que pode funcionar como uma passagem para outro espaço topológico, com outras propriedades. Por exemplo, uma fita bilateral que pode gerar uma esfera. Então, ele é junção e também ponto de corte. Outra maneira de se aproximar disso é a partir da teoria dos conjuntos e da lógica da linguagem. A lógica de Port Royal, por exemplo, Lacan a cita diversas vezes; trata isso como compreensão – o mesmo que intensão – e extensão de um conceito. Todo conceito teria uma intensão e uma extensão. A compreensão (ou a intensão) é o conjunto dos elementos que compõem o conceito. A extensão, por sua vez, é o conjunto dos objetos que recaem sob o conceito. Tomemos os números primos: sua compreensão é a dos números naturais, divisíveis por si e por um; já sua extensão são todos os objetos que recaem sob esse conceito (isto é, 1, 2, 3, 5, 7, 11...), o que revela, inclusive, tratar-se de um conjunto infinito. Vale ressaltar aí a presença da infinitização, que não é necessariamente referente à extensão, mas que, às vezes, se realiza nela, dessa maneira, por exemplo. Vemos, então, que ao se tomar um conceito é possível desdobrar sua intensão e sua extensão. Há outras noções, formas convergentes a essas dimensões, como a conotação e a denotação, por exemplo, ou mesmo o sentido e a referência tal como Frege teorizou. Entendo que Lacan pretendeu seguir com as noções de intensão e extensão algo que pôde extrair da orientação freudiana. Aproximando-nos, então, da questão da formação, notamos que, por um lado, Freud cuidou atentamente desse aspecto na própria experiência psicanalítica. Ele sabia conjugar, na análise de analistas que conduzia, momentos de supervisão e de instrução teórica. Mas, por outro lado, ele se ocupava, em outros dispositivos, de um trabalho em torno do saber psicanalítico, cuidando da formação de psicanalistas dedicados a pensar e desenvolver a psicanálise. É o que podemos atestar em seu engajamento institucional permanente (conferir, por exemplo, as Atas das reuniões da Sociedade Psicanalítica de Viena); um compromisso que, talvez possamos referir, como uma coletivização em relação ao saber, um trabalho coletivo em relação ao saber. Nosso ponto de articulação central nesse encontro é a noção de saber. Além de se colocar na experiência de certa coletivização a seu redor, ele está naquilo que faz da psicanálise uma experiência original. A grande subversão freudiana, como sabem, foi exatamente reconhecer, nas manifestações nas quais só se reconhecia desrazão e loucura, as formações do inconsciente. Freud propôs que ali havia razão, havia saber: eis o ponto fundamental da subversão freudiana. Lacan pôde avançar ao distinguir saber e conhecimento e, com essa distinção, afirmar o saber

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inconsciente como um fundamento para a psicanálise. Uma das formas de se falar sobre o que é a experiência psicanalítica, a experiência clínica, é dizer que ela é um percurso do sujeito suposto saber. Tomarei, então, o saber em sua relação com o sujeito em conjunto com esse ponto de articulação entre a intensão e a extensão para pensar algumas coisas sobre a questão da formação. À primeira vista (voltaremos a isso posteriormente), parece haver um descompasso entre os termos, se tomarmos esse ponto de articulação entre a intensão e a extensão: se por um lado a psicanálise em intensão é proposta por Lacan a partir de uma finitude, aquilo que ele chama de destituição, uma destituição subjetiva, o mesmo não acontece no caso da extensão articulada à formação. Há, evidentemente, um aspecto extremamente importante para a formação na destituição, mas ela não representa tudo o que é da ordem da formação. Questionei-me, como, então, enodar destituição e formação, já que são termos que designam operações distintas. A formação diz respeito à Bildung, ligada à cultura como ideia do cultivo ao longo do tempo (uma das figuras freudianas que ilustram isso é a drenagem do Zuiderzee,2 um trabalho de civilização, de cultivo). Passemos, então, ao terceiro e último vértice dessa parte preliminar, a questão da atualidade. Problemas cruciais para a formação do psicanalista na atualidade. Isso remete a uma das formas pelas quais Lacan define a transferência: a transferência é a atualização da realidade do inconsciente – atualização como mise en acte, “colocação em ato”. A transferência, portanto, é a colocação em ato da realidade do inconsciente, sua atualização. Obviamente, atualidade evoca uma referência ao tempo presente, mas trata-se de um termo muito feliz e preciso por conter a marca da colocação em ato no presente de algo que é anterior na estrutura. Dispomos do trabalho extremamente precioso de Lacan, ao falar dos conceitos fundamentais da psicanálise no Seminário 11, de distinguir transferência de repetição a partir da relação entre automaton e tiquê. Temos a atualização da cadeia na qual o significante nunca se repete, por seu valor ser sempre relativo à sua posição (que é sempre única na cadeia) e que é dado por sua diferença, uma diferença relativa. No entanto, ele atualiza também a perda de objeto, condição dessa operação. Lacan percebe que é fundamental fazer essa distinção, daquilo que ele trata como repetição, que retorna sempre ao mesmo lugar, o real como encontro, acidente, não necessário. Necessário é um termo que vem da lógica modal e Lacan o define depois como aquilo que não cessa de se escrever. Daí que o acidente, 2 Referência ao Golfo de Zuiderzee, nos Países Baixos, uma das planícies com lagos de água doce que se ligam ao Mar do Norte por um dos braços do rio Reno. Em razão das constantes cheias, que ocasionavam enchentes, por volta do ano 400, os habitantes da região construíram diques, que lhes permitiram refugiar-se durante as cheias e aproveitar as terras para a agricultura (N. do A.)

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diferentemente, seja aquilo que retorna sempre ao mesmo lugar. Trata-se de uma ideia contraintuitiva, porque aquilo que retorna sempre ao mesmo lugar, que vem como acidente, não é necessário – é por isso, aliás, que é repetição, porque guarda essa mesmidade daquilo que não é assimilável, que não tem representante. Lacan retoma isso na “Proposição”, quando diz que “existe um real em jogo na própria formação do analista. Afirmamos que as sociedades existentes fundam-se neste real” (LACAN, 1967a/2003, p. 249). Há, portanto, uma posição advertida em não se confundir atualidade com novidade. A reflexão e debate sobre o que há de novo, nos tempos presentes, é tanto mais relevante quanto se leva em conta o que se atualiza da estrutura e o real que se coloca em jogo. Cito: Conheço bem a patologia das associações e sei perfeitamente que, a miúdo, nos grandes grupos políticos, sociais e científicos reina a megalomania pueril, a vaidade, o respeito às fórmulas vazias, à obediência cega e o interesse pessoal em lugar de um trabalho consciencioso consagrado ao bem comum. As associações, tanto em seu princípio quanto em sua estrutura, conservam certas características da família. Existe o presidente, o pai, cujas declarações são indiscutíveis, e cuja autoridade é intangível. Os restantes responsáveis, os irmãos mais velhos, que tratam os mais novos com altivez e severidade, rodeando o pai de lisonjas, porém dispostos a derrocá-lo para ocupar seu lugar. Enquanto a grande massa dos membros, parte dela segue cegamente ao chefe e outra parte escuta a um e outro agitador, ao mesmo tempo em que considera o êxito dos mais velhos com aversão e inveja e tenta suplantá-los para receber os favores do pai (FERENCZI apud COTET, 2004, p. 74). Talvez muitos de vocês a conheçam. Essa citação é de Sándor Ferenczi. Tem 106 anos e foi proferida no congresso de Nuremberg, que fundou a IPA. Ferenczi é considerado importante na fundação da IPA, não se opunha a ela, mas, como podemos observar, “estava prenhe de atualidade”. Podemos também pensar na situação política atual no Brasil: embora haja um apelo discursivo sobre a novidade, não há aspectos novos a serem comemorados na atualidade. Ao contrário, o atual não é novo. Podemos também tomar “Situação da psicanálise em 1956”, um texto formidável de Lacan e importante para as considerações sobre a formação. As críticas que ele faz ali têm esse mesmo sentido, essa mesma advertência, assim como o próprio texto da dissolução da Escola.

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Problemas cruciais para a formação do analista na atualidade: O sujeito suposto saber em questão

A questão para o sujeito, e portanto para a psicanálise, segue articulada, não exatamente ao novo, mas àquilo que ele “conhece bem”. “Conhecer bem” é uma expressão de Lacan que se refere ao sintoma – ele a utiliza no Seminário 24, dizendo que o sintoma é aquilo que ele conhece bem, que o sujeito conhece bem, conhece de melhor, aquilo que se reproduz em sua vida, que o fixa em inibição, sintoma e angústia (pelo menos é assim que se inicia uma nova análise, o início de uma análise de alguém, quando a pessoa nos procura). E talvez, depois de um percurso, possa haver algo de novo. De novo também é um significante equívoco. Quando brincamos com uma criança, ouvimos: de novo, de novo, de novo, não quer parar. Depois da experiência psicanalítica pode vir essa nova razão enquanto ato psicanalítico. Lacan se referiu a isso, ao articular o ato analítico ao novo discurso numa passagem do Seminário 20, na qual faz referência a Rimbaud, no poema, “A uma razão”: Sua cabeça se vira, um novo amor. Sua cabeça se volta, um novo amor. Passo a desenvolver, agora, uma proposta central a partir desses pontos. Pretendo indicar como a formação do analista depende de um laço social, portanto de um discurso. Um laço social original. E que esse discurso, no que toca à formação, se coloca em intensão e extensão, mesmo que guarde, entre essas instâncias, diferenças. Além disso, apontar como esse discurso tem relação direta com o lugar do saber, o lugar que o saber tem nesse laço. Gosto da maneira como o Bernard Nominé, em uma passagem por São Paulo,3 iniciou a conferência dizendo assim: “O que se transmite em uma cura psicanalítica é a própria psicanálise”. Claro! Não foi por outra razão que Lacan afirmou que qualquer análise é uma análise didática, já que a análise produz um analista. Da mesma forma como localizou o fim da análise na passagem de analisante a analista. Porém, como já indicamos, a psicanálise em intensão não é tudo o que entra em jogo quando falamos em formação do analista. Lacan inverte a intuição sobre o tempo quando afirma que o fim é condição de um começo. Foi a isso que chegou quando formulou que o ato analítico é a passagem de analisante a analista, uma inversão do tempo. Porque o analista que está no fim, ele sustenta uma análise, o começo e o percurso de outra análise. Esse é o laço da psicanálise em intensão. 3 Referência à conferência “A transmissão da psicanálise”, proferida durante a Jornada de Encerramento do Fórum do Campo Lacaniano em São Paulo em 03/12/2011 (N. do A.)

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Mas o que é essa passagem? O que está implicado nessa passagem? Abordo esse tema, porque me parece que ele nos indica as questões que levaram Lacan a se debruçar sobre o laço no que diz respeito à extensão. Essa passagem, esse passe, é a resposta em ato ao impasse ao qual a análise levou o sujeito. É esse impasse a que Lacan faz referência quando anuncia “o sujeito suposto saber posto em questão”. Como já mencionei, Lacan chegou a uma formulação bastante contundente sobre isso. O passe desse impasse é a destituição subjetiva ou, de outra forma, e essa forma é mais próxima à chave que escolhi para trabalhar hoje, a queda do sujeito suposto saber. Por exemplo, ele afirma no Seminário 15: A transferência, eu a restaurei em sua forma completa ao reportá-la ao sujeito suposto saber. O final de análise consiste na queda do sujeito suposto saber e sua redução ao advento desse objeto a (LACAN, 1967-68/inédito). Ou em outra passagem, diz: A questão é: o que se torna o sujeito suposto saber? Vou lhes dizer que, em princípio, o psicanalista sabe o que ele se torna, seguramente ele cai. (Ibid.) Em seguida, Lacan fala do des-ser, enquanto objeto a que atinge o sujeito suposto saber. Aproveitarei, então, essa referência ao des-ser articulado com aquilo que atinge o sujeito suposto saber, nesse ponto do passe, o passe como essa passagem. Tomarei isso como um “gancho” para voltar àquilo que falei antes sobre os problemas cruciais, no Seminário 12. Ele ali falava das posições subjetivas do ser e, nesse momento, retoma o des-ser. Mas por que, no Seminário 12, Lacan se interrogava sobre o ser se ele já havia assentado a psicanálise sobre a falta-a-ser, essa marca do sujeito? O sujeito do significante é o sujeito sem qualidades, falta-a-ser. O significante não confere um ser ao sujeito. Lacan havia trabalhado bem isso, que é tão importante para a experiência, fundamental, por ser o que sustenta a associação livre e faz o sujeito deslizar na cadeia significante, sujeito suposto saber. Aliás, este é outro conceito que Lacan desenvolveu muito bem na “Proposição”, sobre o que é a posição do sujeito suposto saber. Ele diz ali: “um sujeito não supõe nada. Ele é suposto. Suposto pelo significante que o representa para outro significante” (LACAN, 1967a/2003, p. 253). Suposto ao saber, subposto ao saber, portanto. Voltando à questão do ser e do des-ser, Lacan se deu conta de que, se havia essa posição evanescente do sujeito na cadeia, havia outra também, que o fixava, que o fazia retornar sempre ao mesmo lugar – do trauma à fantasia, como escreveu

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no Seminário 11, ponto do real. Também no Seminário 11, ele afirma a psicanálise como uma práxis: “O que é uma práxis? É o termo mais amplo para designar uma ação realizada pelo homem que o põe em condição de tratar o real pelo simbólico” (LACAN, 1964/1985, p. 14). E, mais à frente, “Nenhuma praxis mais que a análise é orientada para aquilo que no coração da experiência é o núcleo do real” (Ibid., p. 55). São passagens bem conhecidas e importantes do Seminário 11. Uma das formas que Lacan buscou para abordar o registro do real na experiência psicanalítica foi a retomada do ser, uma grande subversão que ele faz sobre a longa tradição do ser. Lacan nos propõe um ser sem essência, um ser inessencial, um ponto êxtimo ao sujeito, do qual ele começa a falar no Seminário 7: A ética da psicanálise. A primeira aproximação importante de Lacan sobre essa noção do real vem de das Ding. Trata-se, para ele, de um problema crucial dar resposta à incidência do ser no sujeito. Entendo isso como um movimento que vai do Seminário 7 ao Seminário 15, ou seja, um longo percurso – sete ou oito anos de trabalho buscando bem dizer sobre isso. Se afirmo que vai até o Seminário 15 é porque nele aparentemente Lacan chega a uma resposta, uma solução a partir da própria ideia do ato analítico. Não é por acaso que ele propõe um seminário sobre o ato psicanalítico em 1967-68, logo após tratar da lógica da fantasia (que se debruça sobre a estrutura lógica da fantasia), propondo na sequência esse passe, essa passagem, como travessia da fantasia. A montagem da fantasia fundamental é a resposta do sujeito à falta do Outro. A falta do Outro sexo, como Lacan dirá logo em seguida, no Seminário 16. Na realidade, ali ele não fala sobre a falta do Outro sexo, mas é o primeiro seminário em que está dito, afirmado: não há relação sexual. Ele já havia dito nos seminários 14 e 15 que não havia ato sexual, e depois retoma essa afirmação numa passagem do Seminário 16, dizendo algo como “ato sexual há, o que não há é relação (proporção) sexual”. Considero o Seminário 16 muito importante, pois também é aquele no qual, na primeira ou segunda aula, Lacan afirma que a “estrutura é o real”. Não há relação sexual, porque ela não pode ser escrita. Podemos apenas escrever a não relação sexual. Aliás, é importante também comentar como Lacan dá um tratamento muito rigoroso a essa noção do impossível, como o impossível de se escrever. Lembrei-me agora que no Seminário 23: O sintoma, ele afirma que o fato de não ter conseguido ainda fazer um nó de quatro não significa que este seja impossível. Só é impossível se for provado que é impossível – ou seja, é preciso dar a prova do impossível, o que é algo bastante distinto. A fantasia é uma tentativa de escrever a relação sexual, mas escreve apenas a relação entre o sujeito e o objeto. Usei a referência ao des-ser para falar da falta-a-ser e do ser na experiência do sujeito suposto saber e seu impasse. Mas, ao final das contas, qual que é o impasse? Qual o impasse do sujeito suposto saber?

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Lacan propõe que ao final das contas há... o final das contas. Não há mais contas, pois a infinitização da cadeia, outra maneira de se dizer isso, a suposição do sujeito à cadeia, figura maior da transferência, como Lacan diz, leva ao limite da fantasia, da fantasia fundamental. Um dos nomes para isso é construção da fantasia. A cadeia não deixa de ser infinita, mas deixa evidente que o sujeito retorna sempre ao mesmo lugar da fantasia, ou seja, acaba a conta. A conta pode continuar, mas ela sempre vai voltar ao mesmo lugar. A fantasia se evidencia, torna-se uma evidência. Por que me parece importante resgatar essas ideias? Porque a ideia de que o passe em si, o ato, não é operação oriunda do saber equivale a dizer que ele não virá do Outro, já que o saber é uma relação de alienação do sujeito ao Outro da linguagem. E também não virá pelo sujeito, já que sua posição é a que se construiu em relação ao Outro na fantasia. Essa é uma proposta bastante contundente de Lacan, a de que o ato psicanalítico é sem Outro e sem sujeito, o que leva a indicar que é um rompimento com as coordenadas simbólicas. E ele propõe que a agência desse passe seja referente ao objeto a, quando este pode passar à função causa e não à função de resposta à falta do Outro. Outra maneira de dizer isso (e Lacan sempre usou esse recurso, de dizer coisas de várias maneiras distintas) é indicar que esse ato faz um furo no saber, a partir do ponto em que a infinitização do saber não precisa, no sentido de não ser necessária, ser respondida e sustentada pela fantasia fundamental. Há, portanto, uma solidão absoluta e singularidade no ato. A partir daí, podemos seguir o que ele afirma na “Proposição”: “O analista só se autoriza de si”. Porque não se autoriza do Outro. Essa rápida (e necessariamente incompleta) digressão sobre o percurso da análise é importante para tratar nosso tema da formação. Porque assim que Lacan chega a essas formulações sobre o ato, ele se dá conta de que a solidão absoluta do ato coloca questões a ele próprio: o que é uma estrutura sem sujeito? Nesse ponto de suspensão do ato, o que é uma estrutura sem Outro? O que é a transferência depois do ato, já que uma das maneiras que ele definiu conceitualmente a transferência foi com o sujeito suposto saber? Ao final das contas, o que é o próprio inconsciente a partir de então? E talvez, a maior questão de todas, o que é dirigir uma análise a esse fim, um fim no qual encontramos exatamente aquilo que, neste ponto, não se articula, não se dialetiza, não faz laço? Remeto vocês aqui algumas passagens em que ele fala sobre o horror ao ato. E também, o que é isso que permite que se dirija uma análise? Neste caso, a pergunta é pelo lado oposto: o que é isso que permite que se dirija uma análise a partir do ato, se o consideramos como aquilo que não faz laço, porque é sem sujeito, é sem Outro, sua agência é a agência do objeto?

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Lacan começa, então, a indicar novas noções que conhecemos: “um saber sem sujeito”, fala que aparece no próprio Seminário 15, “saber real, estrutura real, inconsciente real”. Ele diz, no “Resumo do Ato analítico”, presente nos Outros escritos: “que haja inconsciente, significa que há um saber sem sujeito” (LACAN, 1969/2003, p. 372). Há uma mudança então. Há uma operação de passagem do sujeito suposto saber para um saber sem sujeito. Que haja inconsciente (digamos, agora, real) significa que há um saber sem sujeito. E também o Outro, nessa nova acepção, enquanto Outro sexo, e as questões relativas ao gozo feminino. Foi o que me ocorreu quando Ida Freitas me perguntou sobre o título dessa conferência, quando já refletia acerca dessa participação aqui. Mas quando ela me indagou sobre o título, pensei em uma passagem, também do Seminário 15, em que Lacan afirma: Conviria saber onde se situam as coisas, por exemplo, quanto ao que constitui o gozo feminino. Está bem claro que é deixado completamente fora do campo. Por que é que falo inicialmente do gozo feminino? (LACAN, 1967-68/inédito, Aula de 21/02/1968). Ele se pergunta, e responde: “Ora, talvez para precisar já algo do sujeito suposto saber em questão” (Ibid.). Lacan, então, a partir do momento em que chega à formulação do passe clínico, do ato psicanalítico, entende a importância de dizer esse ato, o ato psicanalítico: “Se é um ato e foi precisamente daí que partimos desde o ano passado [se referindo ao Seminário A lógica da fantasia], é algo que nos levanta a questão de articulá-lo” (Ibid., Aula de 28/02/1968). Observem os problemas cruciais se colocando para Lacan. A experiência o levou a propor esse tipo de operação, um ato psicanalítico. Mas, em seguida, ele se propõe outra tarefa, outro compromisso clínico, o de dizer esse ato, articulá-lo – o que é legítimo e, mais ainda, o que implica a consequência de ato, na medida em que o ato é, por sua própria dimensão, um dizer. Lacan retoma, então, a noção de discurso, que é uma referência antiga para ele (debate com muitas disciplinas), porém para tratar da questão do laço. Que tipo de laço é esse? Diz ele, também no Seminário 15: Assim, as coisas se passam e isso evidencia que todo discurso produz atos como efeitos. Se houvesse apenas a dimensão do discurso, isso deveria propagar-se mais rápido. Justamente, o que é preciso destacar, é que salta aos olhos que esse discurso, que é o meu, tem essa dimensão de ato, no momento em que falo de ato. Pensando bem, esse é o único motivo da presença das pessoas que estão aqui (Ibid., Aula de 24/01/1968).

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E prossegue: “Não estamos no plano de prestações de serviços universitários. Não posso lhes oferecer nada em troca de suas presenças, o que os diverte é que vocês sentem que algo se passa” (Ibid.). E, ao final do seminário, ele coloca isso como uma espécie de compromisso do analista: É justamente o que acabo de levantar, a saber, o da consistência de um discurso. É justamente porque o analista, até agora, não sabe sustentar o discurso de sua posição, que ele faz qualquer outro. Ele faz esse tipo de ensinamento que é como todos os ensinamentos, embora o seu não devesse parecer em nada com os outros, como nada de outro. Ensinará tudo, não importa o que, salvo a psicanálise se não souber sustentar o discurso de sua posição (Ibid., Aula de 27/03/1968). Hoje, evidentemente, nos encontramos em posição que permite acompanhar a obra de Lacan e notar como a teoria dos discursos surgiu como resposta às questões levantadas pelo ato psicanalítico. Mas considero importante a maneira como isso também está posto em ato por Lacan no discurso. Refiro-me aqui ao “Discurso na Escola Freudiana de Paris”, redigido em dezembro de 1967, portanto, dois meses após a “Proposição”. Ali, Lacan retoma seu “Ato de fundação”, de 1964: Mas se de fato estive só, sozinho ao fundar a escola, tal como, ao enunciar este ato eu disse com audácia, tão sozinho quanto sempre estive em minha relação com a causa psicanalítica, ter-me-ei nisso acreditado o único, eu já não o era, a partir do momento em que um ao menos me seguisse o passo e não por acaso aquele cujas dádivas atuais interrogo. Com todos vocês naquilo que faço sozinho, haverei eu de me afirmar isolado? Que tem esse passo, por ser dado sozinho, a ver com ser o único que se acredita ser ao segui-lo? Não me fiei eu na experiência analítica, isto é, naquilo que me chega de quem com ela se virou sozinho? Acreditasse eu ser o único a tê-la nesse caso, para quem falaria? Antes, é por alguém ter a boca cheia da escuta sendo a sua única o que vez por outra lhe servia de mordaça. Não existe homossemia entre o único (le seul) e sozinho (seul). Minha solidão foi justamente aquilo ao que renunciei ao fundar a escola. E que tem ela a ver com aquela em que se sustenta o ato psicanalítico senão poder dispor de sua relação com este ato? (LACAN, 1967b/2003, p. 267). Bom, não me estenderei sobre a teoria dos discursos, mas com ela Lacan pôde construir o avesso do discurso do inconsciente, ao qual chamou prevalentemente

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de “Discurso do Mestre”. Ele indicou algumas vezes que o discurso do mestre é o discurso do inconsciente, e pôde construir o avesso do discurso do mestre, ao qual chamou de “Discurso do Analista”. Parece estranho dizer que o Discurso do Analista é o avesso do discurso do inconsciente. Mas vejamos: o Discurso do Mestre é discurso do inconsciente, porque formaliza a estrutura do sujeito suposto saber. Se tomarmos o patamar de cima, o infinito da cadeia significante que supõe um sujeito e se sustenta pela fantasia, sendo o objeto a a produção: Discurso do Mestre

ó¯ô O duplo giro, os dois quartos de volta que Lacan propõe é outra forma de dizer das duas operações da análise que, incrivelmente, foram propostas desde 1946 – algo notável, estranho até, se considerarmos que seu ensino apresentou mudanças significativas ao longo de seu percurso. Ele propõe, entre o Discurso do Mestre e o Discurso do Analista, a histerização do discurso como um giro, e depois outro giro para o discurso do analista. Eis as duas operações: o instante de ver e o momento de concluir, que encerram um tempo de compreender; que, perfazem o tempo de compreender. Lacan formulou esses conceitos de outras formas, como quando fala das operações de alienação e separação, tomadas como tempos de uma análise, ou a partir dos termos retificação subjetiva e destituição subjetiva, ou ainda, entrada em análise e fim de análise, que podem ser localizados também no quadrângulo do ato psicanalítico nos Seminários 14 e 15. No Discurso do Analista, temos o a no lugar de agente, tal como ele já havia formulado antes da Teoria dos Discursos. Lacan já havia tratado disso no Seminário 15, ao dizer que nesse passe, no passe clínico, a agência era do objeto a como função de causa, e o S1 como a produção desse significante extraordinário, significante fora de série. Gosto do texto de Jairo Gerbase, que está em Hipótese lacaniana (2011), em que ele fala do inconsciente real. Parece-me que ali ele trata dessa ideia do significante fora de série – se não me engano é o significante água, que aparece a partir de um sonho, um fragmento clínico; essa ideia de Lacan já havia sido trabalhada em um momento posterior, do “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11”, de que quando uma formação do inconsciente já não tem sentido algum, temos a certeza de estar no inconsciente. O significante real. Há uma passagem de Jairo Gerbase na qual ele afirma que “o inconsciente não suporta a amizade” (GERBASE, 2011, p. 32). Pare-

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ce-me um modo interessante de tratar esse ponto do real, do significante real. E da forma como entendo, o significante da falta do Outro, talvez outra maneira de dizer desse significante fora de série seria aquilo que faz borda no furo do saber, onde a verdade dá lugar ao saber furado. O saber furado no lugar da verdade. Entendo que Lacan tenha buscado formalizar no discurso do analista um laço social que fosse afeito ao ato analítico, e considero realmente notável que ele tenha proposto a estrutura formal da Escola a partir do passe e do cartel, que são dispositivos que realmente verificam esses termos e esses lugares. E são dispositivos que derivam do psicanalista. Ele é muito claro no início da “Proposição”, abrindo-a dizendo: “Vamos tratar de estruturas asseguradas na psicanálise e garantir sua efetivação no psicanalista” (LACAN, 1967a/2003, p. 248). É do psicanalista que ele passa um bom tempo falando até a conhecida passagem: “o analista só se autoriza de si mesmo”. Portanto, trata-se de uma aposta de Lacan, uma aposta que, acredito, não precisa ser a única para esse tipo de laço, mas que se dirige para que as transferências possam se apresentar a partir de outra estrutura, outro discurso. Recapitulando, retomei duas formas de se referir à transferência: sujeito suposto saber e atualização da realidade do inconsciente, duas formas conceituais com que Lacan abordou a transferência. Talvez possamos contar com essa segunda para pensar outro laço. Depois da queda do sujeito suposto saber, depois de uma destituição dessa apresentação da transferência, talvez possamos contar com essa outra apresentação, da atualização da realidade do inconsciente, mas talvez não mais na vertente simbólica que isso toca, e talvez, como atualização do real do inconsciente no discurso do analista. Daí a ideia do avesso. Isso para retomar a vertente do infinito, porque fazia essa diferenciação quando falei de destituição e formação. Na destituição há uma posição finita, ao passo que na formação é importante que não haja, que ela continue fazendo laço – o nosso laço entre analistas, o laço de cada psicanalista com sua própria formação e o laço com as pessoas que se aproximam, que buscam formação. Lacan deu um nome para isso: transferência de trabalho. Ele não tratou muito disso. Então temos essas formas de se referir sobre a transferência: “atualização da realidade do inconsciente”, “sujeito suposto saber” e, depois, aparece esse dizer sobre a transferência de trabalho, essa forma de atualização. Se pensarmos em usar essa maneira de se referir à transferência, como uma atualização do real do inconsciente, considero importante pensá-la como “um a cada vez”, não pelo modo do necessário, mas talvez do contingente, aquilo que ele definiu como o que cessa de não se escrever. E, de fato, nossa experiência coletiva demonstra que não há garantias sobre isso. Se há alguma coisa do analítico, do discurso do analista no laço social, e acredito que há, isso não é realmente da ordem do necessário.

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O que me faz pensar sobre uma instabilidade do discurso do analista, e parece-me que esta é uma questão a ser mais bem elaborada, talvez um trabalho coletivo. O discurso do analista, talvez, seja um discurso instável. Os fracassos no passe, no dispositivo do passe, parecem atestar isso. Claro que os passes que não são autenticados atestam esse modo da contingência, e é importante que o passe não seja do campo do necessário (ele tem essa vertente do fracasso que faz as coisas andarem). Mas há também os fracassos e disfuncionamentos que, acredito, são de outro matiz. Não só o passe, há outros movimentos também, movimentos relativos às transferências que buscam mantê-las sobre a estrutura do sujeito suposto saber, colonizações de transferências, algumas vezes. O sujeito suposto saber não é o fim: é importante colocá-lo em questão, ele não é posto como fim. Talvez seja uma tarefa fazer da infinitização, de certo modo do infinito, a partir de uma finitização, de um finito, de um ato, passar a outro tipo de infinito, a outro tipo de laço. Talvez esse infinito tenha a ver com as nossas formações como analistas, e talvez tenha sido um dos exercícios que Lacan tentou praticar. Trouxe essas reflexões para vocês para pensarmos que foi um desses exercícios, um desses problemas cruciais, que incomodaram essa figura inquieta que era Jacques Lacan e que o levou a tratar o discurso do analista, enfim, como uma aposta.

referências bibliográficas COTET, S. “Uma sexta psicanálise de Freud: o caso Ferenczi” In: Ornicar 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. GERBASE, J. (2011). A hipótese lacaniana. Salvador: Campo Psicanalítico. LACAN, J. (1964). O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1985.                   . (1964-65). O seminário, livro 12: Os problemas cruciais da psicanálise. Publicação interna CEF, 2008.                   . (1967a). “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.                   . (1967b). “Discurso na Escola Freudiana de Paris” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.                   . (1967-68). Seminário, livro 15: O ato psicanalítico, inédito.                   . (1968). “Resumo do seminário O ato psicanalítico” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.

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resumo: O conferencista examina neste trabalho as questões relativas à formação do analista na atualidade. Retoma o lugar de relevo dado à formação por Freud e Lacan, indicando o próprio campo da experiência analítica como núcleo dessa operação. Revigora o uso comum do termo “atualidade”, retomando sua presença fundamental na clínica psicanalítica a partir da transferência, tal como proposta por Lacan enquanto “colocação em ato da realidade do inconsciente”. É nesse mesmo escopo, ligado à transferência, que insere a noção de saber como centro de sua apresentação, discutindo como a experiência analítica acontece como percurso do sujeito suposto saber e, ao final, como destituição subjetiva contingente. Debate em seguida as dimensões infinita e finita articuladas à posição do sujeito em relação ao saber. O trabalho traz, então, a contribuição de refletir sobre a formação do analista enquanto operação relativa ao laço social próprio ao discurso do analista (teoria dos quatro discursos) e trata de sua apresentação naquilo que Lacan denominou psicanálise em extensão.

palavras-chave: Formação; atualidade; saber; transferência; discurso.

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abstract: In this work, the speaker examines issues related to the preparation of the analyst in actuality. He recapitulates the important emphasis placed on education by Freud and Lacan, indicating the field of analytical experience itself and the core of this operation. He strengthens the common use of the term “actuality”, highlighting its fundamental presence in the psychoanalytical clinic from the transference as also proposed by Lacan in the condition of “the placement in an act of the reality of the unconscious.” It is in such a scope, connected to the transference, that the notion of knowing is inserted as the trajectory of the subject supposed to know and, at the end, as a contingent subjective contribution. Later on, the work debates the finite and infinite dimensions articulated to the subject’s position in relation to knowledge. The text then brings the contribution of reflecting about the analyst’s preparation as an operation connected to the social bond typical of the discourse of the analyst (the theory of the four discourses) and handles its presentation in what Lacan has coined psychoanalysis in extension.

keywords: Preparation; current times; knowledge; transference; discourse.

recebido: 25/08/2016

aprovado: 12/09/2016

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direção do tratamento



O Um totalmente só e seus laços1 Colette Soler Para introduzir os trabalhos sobre o nosso tema “Enlaces e desenlaces”, gostaria de proceder a uma atualização daquilo que Lacan permite avançar, propriamente, sobre o estado atual dos laços sociais. Ele produziu seus quatro discursos em 1970, justamente no momento em que os dois discursos que regem a ordem social, o do mestre e o da universidade, sofriam, na França e na Europa em geral, um questionamento profundo. No entanto, ele não parou em 1970, e vou lhes trazer minhas últimas elaborações sobre o que veio depois.

Estado da questão É bem conhecida a última grande sentença pronunciada por Lacan acerca das consequências do inconsciente que fala, não sem linguagem, todos nós a conhecemos: Há Um [Ya d’l’un]. Inclusive, ele acrescentou depois: “e nada além disso” [et rien d’autre]. Creio que é desse ponto que é preciso retomar, a partir do zero, toda a questão do laço social. Ela nos ocupa na medida em que preocupa o conjunto do corpo social desta nossa época de individualismo triunfante no capitalismo, no fundo, porém, cabe a nós a responsabilidade de ter o que dizer sobre a questão do laço social, pois somos os únicos a poder dizer qual é a parte que o inconsciente dos seres falantes, com seus efeitos, desempenha aí. O famoso “Há Um” faz contrapeso ao “Não há” [y a pas] da relação sexual. Eis, então, que Lacan – que já havia admoestado seu mundo com o tema: é preciso fazer o sujeito apreender que ele não é Um, mas fendido pelo significante e dividido pelo objeto – martela, daí em diante, que somos “Unaridades” –, um neologismo. Com os psicanalistas, conhece-se preferencialmente os “esparsos disparatados”, que gostamos de lembrar, mas é a mesma coisa. Além disso, ele acrescenta que este Um se sabe totalmente só, dor da solidão, portanto. Tais são as últimas fórmulas do “inventário” (LACAN, 1975a/2003, p. 561) que Lacan fez das consequências do inconsciente “inventado” (LACAN, 1975b/inédito) por Freud. O 1 Trabalho apresentado durante o IX Encontro da IF-EPFCL em Medellín, em 15 de julho de 2016.

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SOLER, Colette

indivíduo, e o indivíduo é um corpo, este indivíduo marcado por um inconsciente, por ele renomeado como falasser, é um proletário, “ele não tem nada com que fazer laço social” (LACAN, 1974/1975). Eis o que parece convergir para o grande clamor da nossa época, que alardeia a precariedade crescente dos laços, o fora de discurso de um capitalismo abusivo que atomiza os grupos sociais até este resíduo que é o indivíduo em sua solidão. Derrelição, angústia, pânico. O Eros freudiano, o princípio de união, está em crise, não resta dúvida. Há, contudo, um certo paradoxo, e me surpreende que não se chame atenção para isso. Com efeito, “Um totalmente [tout] só” ou não, individualismo do capitalismo ou não, os laços individuais são múltiplos e proliferam mais do que nunca, graças justamente às novas técnicas de conexão que a ciência torna possíveis e que nos permitem vencer o tempo e as distâncias. Constata-se o que, sem exagero, podemos designar como um novo vício de contato com os semelhantes. Ele tem se generalizado e ultrapassa muito o aspecto utilitário – no entanto, bem real – dessas novas técnicas. Digo vício, adição [addiction], mas por que não falar de uma angústia da “desconexão”? É como se o isolamento tivesse se tornado o maior risco, e a exclusão do grupo uma fantasmagoria. Mesmo os psicanalistas supostamente mais cultos não podem deixar de se reagrupar. Parto daí. “Há Um”, mas também há laços. Daí a questão que coloquei em meu “Prelúdio”:2 será que, apesar de Freud, haveria uma pulsão gregária no ser humano? Em todo caso, esta velha questão do século passado aparentemente adquiriu uma nova pertinência. Todavia, com Lacan, não podemos convocar este instinto gregário, já que somos desnaturalizados, sem instinto. Tampouco podemos nos contentar em voltar à velha hipótese rousseauísta de um laço que seria necessário às exigências de sobrevivência em meio hostil, a que Peter Sloterdijk deu uma rejuvenescida, procurando encontrar seus indícios até na arquitetura. Com efeito, sabe-se que a forma da bolha, onde nos sustentamos a dois ou com alguns, tem certo sucesso. Duas questões partem daí: em que esses laços tradicionais do século XXI se distinguem dos laços das épocas pré-capitalistas, que, na verdade, eram diferentes daqueles que designei hoje com os termos “contato”, “conexão”, “vizinhança”, “encontro”, “troca” e alguns outros mais, e que têm em comum o fato de não serem instituídos e de nunca implicarem a duração no tempo? Ainda mais essencial é essa outra questão: o que é que está no princípio desses laços, por mais movediços que sejam? Concebemos facilmente a necessidade do “Um totalmente só” de servir-se dos semelhantes como se fosse um invólucro protetor nas tribulações da vida – como se diz, “a união faz a força”. Mas esta finalidade não diz o que possibilita o laço. É preciso postular que o “Há Um” implica 2 Referência ao texto “Questions de méthode”, publicado como prelúdio preparatório ao IX Encontro Internacional da IF-EPFCL, na Colômbia, disponível <em epfcl-medellin2016.net> [Acesso em 06/10/2016] (N. do T.) 32

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em uma necessidade de ligação com outros Uns. Qual? O que é que permite às Unaridades sair do seu perímetro corporal, e para qual resultado social?

Novos laços Quanto à primeira questão, admite-se com facilidade a tese segundo a qual o capitalismo tem efeitos disruptivos sobre os laços sociais. Eu própria já desenvolvi bastante este tema. Mas observo que não é qualquer laço que o capitalismo deteriora, mas apenas os laços dos discursos, cuja estrutura Lacan construiu. Ora, todos os discursos estabelecem uma ordem. Temos uma tendência a idealizar estes laços, e até mesmo a lamentar seu declínio, mas todos funcionam sobre uma disparidade fundamental entre os indivíduos que são apalavrados nestes discursos. Isso é verdade para os quatro discursos que Lacan construiu, e dois deles, o discurso do mestre e o da universidade, chegam até a promover a disparidade em hierarquia de poderes instituídos que regulam a realidade social e econômica. Estes discursos ofendem, portanto, se é que posso utilizar esse termo, o ideal de paridade que reina em nosso tempo e que vai muito além do ideal de igualdade de direitos. E não esqueçamos que tais discursos estão longe de excluir as segregações, e que há inclusive o que Lacan designou como um “racismo dos discursos em exercício”. Aliás, essas ordens discursivas, no passado e recentemente, têm suscitado grandes revoltas, grandes indignações, diversos movimentos de liberação, notadamente, dos povos e das mulheres, denúncia dos mestres do poder e dos semblantes de saber. Até mais do que isso, pois a psicanálise surgiu como sintoma, reação contra a alienação e a padronização dos indivíduos que tais discursos programam. Hoje, objetamos a isso com uma exigência de paridade em todas as coisas, entre homens e mulheres, hetero e homo, sexuado e trans, entre a criança e o adulto, o louco e o não louco, o normal e o anormal, e agora, inclusive, em determinadas esferas, convida-se o animal e se pleiteia os direitos paritários de toda criatura viva. É certo que podemos criticar, ironizar, e inclusive considerar, como algumas pessoas fazem, que a paridade é um flagelo; mas, o que quer que se diga, nada impede que essa exigência esteja crescendo por toda parte e, além disso, seja transformada em lei – o que é essencial. Ainda assim, talvez seja necessário que eu precise que a paridade não exclui as diferenças individuais, ela só exige a mesmidade no que tange aos direitos. Não seria correto colocá-la no princípio das segregações ou das discriminações. Estas, em sua intolerância, visam outra coisa, as diferenças culturais, linguísticas, geográficas e, seguramente, as diferenças sexuais entre os seres, todas as diferenças que determinam o que se deve chamar de “gostos”, ou seja, as escolhas de gozo. Elas vêm crescendo em nossa atualidade, com o desenvolvimento das xenofobias,

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os movimentos de extrema direita que apregoam o retorno à pátria, ao solo, e até à raça. A exigência de paridade dos direitos conduz, antes, ao contrário, e o resultado é que, em nossos regimes de individualismo democrático, é certo que se quer o laço, mas é preciso que ele seja paritário em todos os lugares, na sociedade, na família, e até mesmo entre os sexos. E sequer posso dizer que se gostaria que cada um estivesse fazendo par com cada um, cada uma com cada uma, pois vocês sabem que já foi declarada a guerra à gramática e aos pronomes masculinos e femininos, principalmente nos Estados Unidos. Na estrutura dos discursos, a escrita pode fazer crer que o enlace vem simplesmente da linguagem, do laço entre os significantes – S1, S2–, mas é um erro, o laço social, segundo Lacan, não vem apenas da linguagem na qual se enodam os significantes, ele provém do fato de que um dos quatro termos ligados à estrutura da linguagem – S1, S2, $ ou a –, vem no lugar que é dito do semblante. Em um laço de paridade, não há lugar do semblante, é um laço tão disjunto da ordem social que ele trabalha, de dentro, a própria ordem. Poderia multiplicar os exemplos que indicam essa mudança em marcha em todos os níveis, político, familiar, sexual, pois são uma legião, vê-se que até mesmo a democracia representativa, que não recusa a hierarquia do poder, mas que o delega, está sendo cada vez mais contestada. Não é por acaso que este Há Um que tem a ver com a estrutura do falante, portanto, que sempre esteve aí, só foi formulado por Lacan no fim do século passado, pois é o momento em que ele se realiza no capitalismo, sob a forma do resíduo derradeiro dos desenlaces, ou seja, o indivíduo. Qualifiquei-o de narcínico para condensar narcisismo e cinismo, e designar aquele que, fazendo de si uma causa de seu próprio gozo, só pode competir com seus pares em matéria de narcinismo. Em geral, denunciamos esse individualismo, ele parece acompanhar a extensão do capitalismo, e isso nos preocupa. Quid, com ele, daquilo que Lacan nomeava “ternura humana”, todas essas aspirações tocantes a ser cercado de afeto, de calor, e a também doar presença, solicitude, compreensão, empatia? Quid desta economia do cotidiano pacífico, de todas essas coisas compartilhadas que fazem a alegria de viver, as belas fotos, as boas lembranças, e que fazem brilhar até mesmo as menores vidas, as mais minúsculas, como as nomeia o escritor francês Pierre Michon.3 Não esqueço, entretanto, que Lacan voltou a nos prometer, em “A terceira”, um destino de Kant com Sade, destino que ele tinha definido, dez anos antes, como o sacrifício, e até mais do que isso, o assassinato de, cito, “tudo que é o objeto de amor em sua ternura humana” (LACAN, 1964/1988, p. 260). Preocupação, portanto. Isso nos deixa aflitos. Todavia, com ou sem tranquilidade, procuremos nos esclarecer, é urgente que voltemos a refletir sobre o que impulsiona os narcínicos ao gregarismo, pois é fato que eles se enlaçam, até mesmo se aglutinam. Para 3 Referência ao livro Vies minuscules, de Pierre Michon (Paris, Gallimard, 1996) (N. do T.)

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atualizar a questão do laço social neste contexto, é preciso, então, dizer qual pode ser a libido que dá liga entre os Uns totalmente sós, em que cada um se encontra, ou tende a encontrar-se, em parceria com todos os outros. Será que podemos invocar o amor com tudo o que ele sempre implica de identificação participativa? Não creio, não que ele não exista, mas porque é um afeto que, como qualquer outro afeto, é um efeito, efeito da estrutura e, portanto, ele próprio clama por explicação. Fui obrigada a concluir, para minha própria surpresa, que é justamente o próprio Há Um que, longe de programar a autossuficiência narcísica, impele em direção ao laço.

Qual Um? “Há Um” é simétrico ao “não há”, mas concluiríamos muito apressadamente se imaginássemos que este “há” é homogêneo ao “não há.” O que não há é um certo gozo que promoveria o encontro dos dois sexos. O que há é algo diferente de simplesmente o seu contrário. Detenho-me, então, um instante neste Um, pois ele não é simples. Não simples, pelo que me lembro de Parmênides, no que diz respeito à filosofia, e de Frege com Cantor, no que tem a ver com a matemática. Então, entre os diversos Uns que podemos enumerar, qual é este Um da psicanálise? Podemos dizer, inicialmente, o que ele não é. Não é o Um da ciência, sem o qual nenhuma constância é inscritível, tampouco o Um do semblante de discurso. Para nós, leitores de Lacan, a partir do seminário ...Ou pior, não é também o um diferencial do entre dois significantes de onde o sujeito é suposto, nem a colocação em série dos uns diferenciais na repetição, nem sequer aqueles que se prestam à combinatória pulsional. Não desenvolverei aqui cada uma dessas afirmações. Este Um do “Há Um” estaria mais próximo da mônada de Leibnitz (LACAN, 1971-72/inédito, Aula de 19/01/1972), diz Lacan, a qual parece justamente evocar uma unidade como autossuficiente, mas Lacan conclui, por fim, a esse respeito: “não o chamemos mais de mônada, mas de Um-dizer” [Un-dire], que ele escreve com hífen. Este Um-dizer é o Um “superior ao sujeito”, que faz de cada sujeito um conjunto, com todos seus uns que acabo de evocar, sendo cada conjunto único em seu gênero. Este Um-dizer é, portanto, a posição da Unaridade singular de cada falante. Uma espécie de narcisismo superior, não especular, mas nodal. Como este Um-dizer se sabe totalmente só, se não porque o que se diz são apenas os Uns dos gozos insuficientes fálico ou pulsional? O Um-dizer, joguemos com o equívoco do hífen, é dizer Um, o dizer único de cada um, mas, por outro lado, ele só diz os Uns de gozo, dos gozos que gosto de chamar de gozos órfãos – e não há outros gozos, quer isto agrade ou não aos místicos. É a partir deste Um-dizer do Um de gozo que, em uma análise, e somente em uma análise, demonstra-se o “não há” do gozo a dois. Alhures, fora da análise, o “não há” só é experimentado como encontro

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falho. Este “Há Um” não é tanto o grito da solidão, cujo pathos é inútil convocar, mas a insistência do dizer a cada vez singular da maldição sobre o sexo. O fato de que o Um de gozo, que cada indivíduo corporal é, seja posto por um Um... de dizer muda tudo quanto ao laço social, pois o dizer “onde se situa a exsistência” não pode funcionar por si só. O Um de gozo, acontecimento de corpo, é autista, o Um-dizer, outro acontecimento, não pode sê-lo, ele não é autossuficiente, ele precisa de um outro, que reconheça o Um que ele afirma ser – o que, no entanto, não anuncia o diálogo. Isso é tão verdadeiro, que se aplica até mesmo ao dizer de deus. “No princípio estava o verbo”, diz-se, e o verbo é o Um-dizer espermático do ser supremo em perfeição. Mas, por mais supremo que seja, convém pensar que ele devia sentir-se um pouco só em sua perfeição, para ter querido engendrar esta testemunha imperfeita que é o homem. O dizer [dire] faz di-eure [dieu/dire], diz Lacan, mas o que é um deus sem criatura? Sobre esta questão do Um-dizer não sem outro, provam-no os textos mais tardios de Lacan. Depois de ter introduzido o nó bo, e no momento em que ele rebatiza o inconsciente freudiano com o termo de falasser, e define este inconsciente como um “saber enquanto falado”, ele propõe que este UOM, escrito com três letras, cuja grafia não explico por falta de tempo, que UOM então, tem um corpo, mas ele não o é. Ele apenas indica como este UOM se constitui – refiro-me aqui à segunda conferência sobre Joyce – entre a phonétique [fonética], com ph do fonema em francês, e o faunétique [faunético] com au de “fauno”, o sátiro dos bosques, espécie de corpo da libido (LACAN, 1975a/2003, p. 565). Em outras palavras, ele se fabrica a partir da conjunção, os elementos de lalíngua que o marcam, e do imaginário do corpo. UOM é, então, um ser primariamente social, ele não o seria sem o que o impregnou de lalígua. É por isso que Lacan precisa que UOM vive do ser [vit de l’être], verbo viver [vivre], e que ele também esvazia o ser [vide l’être], verbo esvaziar [vider]. Fórmula que faz o derradeiro eco ao que ele tinha colocado na origem, como a falta a ser do sujeito. Ele falasser [parlêtre] por natureza, UOM, ele fala ser [parle être], escrito com duas palavras e, ao mesmo tempo, ele se faunetiza, ele se crê belo e até se eleva, ó leva, em direção ao belo. UOM não é a totalidade do indivíduo, assim como o saber “enquanto falado” não é todo o saber. No ensino de Lacan, depois de 1976, UOM é uma condensação do que ele desenvolveu inicialmente como dois opostos, de um lado o sujeito efeito da linguagem, do outro, o eu com sua imagem, e que em UOM fazem apenas um. Consequentemente, compreende-se que, por mais narciso que ele seja, é-lhe necessário, em virtude do ser esvaziado, se “uomanizar” (loméliser), mais um neologismo para dizer esforçar-se. Com efeito, constata-se que ele se ativa para ser, ser homem, e é incitado a isso, “seja um homem, meu filho”, e ele não pede outra coisa. “Uomanizar-se”, eis uma nova maneira de designar o que era dito de forma

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diferente nos séculos anteriores, com os termos ambição e amor próprio, em outras palavras, atualmente se diz, seguindo a moda, ele se faz um “escabelo”. Este escabelo, Lacan o introduziu a propósito de Joyce, mas é válido para cada um dos UOMS. O escabelo, ele é não apenas o primeiro, é esta a sua tese, mas, isso é que é essencial, ele é “determinado”, o que significa causado pelo fato de que UOM é falasser, fala ser. Para UOM falasser, esvaziado de ser, é preciso, necessidade primeira, um escabelo. Um escabelo que possa ser dito identitário, pois serve para instituí-lo em seu próprio ser. Sem dúvida, isso não é de hoje, mas ele não pode mais fazê-lo segundo as vias traçadas pelos discursos convencionais, doravante é-lhe necessário inventar seu próprio meio de se distinguir – e isto se liga à ciência e ao capitalismo. E quando os selfies se difundem de forma compulsiva nas redes ...dos pares, não é evidente que a imagem permaneça sendo o meio mais simples, embora não o mais fecundo, que, reduzido o escabelo, se reduz à questão “será que é belo [est-ce cas beau]? Ou “será que é cão? [est-ce cabot]?”.4 Observem que o escabelo do falasser, produzido por Lacan, chega no exato momento em que, na sociedade, se começa a falar de “elevador social”, outro instrumento de elevação, e em que tudo no discurso lhes incita a serem combativamente vocês mesmos. É uma espécie de novo conceito lacaniano que condensa o registro do narcisismo como afirmação de si, afirmação de sua unaridade, e o destino das pulsões que tinha o nome de sublimação. A postura ereta, digamos a estátua narcísica de Lacan no início, pois bem, o escabelo a eleva “à dignidade da coisa”, fórmula pela qual ele definia a sublimação no seminário A ética da psicanálise, e o que é elevado à dignidade da coisa, “lugar dos gozos”, torna-se objeto a ser gozado. Por meio do escabelo, um falasser se propõe como objeto a ser gozado. Para Freud, a sublimação estava ligada ao laço social, cultural, supunha-se que suas obras satisfaziam o público de sua época, sem recusa. Lacan opôs-se inicialmente a essa incidência do público, mas voltou atrás com o escabelo. Com efeito, não há escabelo de Um-dizer de UOM sem público que consinta nele e que até o aplauda, em uma só palavra, que se satisfaça com ele. Quando não há mais Outro supremo que tudo vê, resta a inevitável aspiração de fazer valer seu próprio ser. Por isso os analistas acolhem uma dupla aspiração: de um lado, ser visto, ouvido, enfim, ser reconhecido, não ser apenas um entre outros, no meio dos pares, mas algo que se distinga, notório se possível, em algo e para alguns, em suma, não anônimo, algumas vezes até nomeado, e para a eternidade, quando se é Joyce; de outro lado, a aspiração contrária, conformista, a de poder ser “igual a todo mundo”. E não as vemos efetivamente ardendo, com uma virulência e uma generalização, ambas recentes? O escabelo é a mola, não apenas de muitas performances civilizacio4 O termo cabot permite, entre outras, as traduções de “cão” e “cabotino”; mas, nos dois casos, perde-se o jogo homofônico do original em francês (N. do T.)

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nais, mas daquilo que, a despeito de todo o individualismo, necessita o laço. Não há chance, portanto, de que estes laços desapareçam – a não ser que modifiquem a antiga realidade hierarquizada. Em primeiro lugar, porque os escabelos do Umdizer entram inevitavelmente em competição, e o que se espera é a intranquilidade generalizada. Em seguida, porque não há garantia de que os escabelos durem, se a precariedade está programada e não há lugares predeterminados. Enfim, porque há também sentimentos como efeitos: de um lado, o amor, reconhecimento entre dois saberes falados, com toda a sua paleta da paixão à amizade, e à philia; do outro, o ódio, que não é sua face invertida, o qual, da sua vindita, visa precisamente a ex-sistência do dizer. Então, ela terá um belo futuro. Intranquilidade, precariedade, paixões, isso ainda não diz com o que se realiza este tipo de laço. Seria preciso abrir o capítulo das diversidades, mas, no primeiro escalão dos meios, encontra-se o corpo que UOM tem, porque é falasser. O que chamamos de indivíduo é a soma de UOM-falasser com o corpo que ele tem, que lhe serve, e não apenas para gozar carnalmente, pois ele pode utilizá-lo para o escabelo. É seu primeiro capital identitário, seu corpo. Apenas algumas observações sobre este ponto. Quando falta o ordenamento das diferenças pelo lugar do semblante próprio aos discursos, restam apenas as diferenças de fato, ou seja, as desigualdades da natureza e da história, as graças e as desgraças dos acasos do nascimento que nada pode anular, mas que todos podem ser instrumentalizados para o escabelo. Ora, este regime dos escabelos dos Um-dizer por tempo de paridade muda fundamentalmente tudo o que já se disse sobre a ordem simbólica das trocas na linha estruturalista de Lévi-Strauss, que Lacan seguiu durante certo período. Ele produz até uma extraordinária inversão do que repetimos para o sujeito, ou seja, que ele está em dívida, uma dívida simbólica. Bem, é preciso ler o que Lacan escreve acerca deste UOM-falasser que tem um corpo, é exatamente o contrário. E ele, lembrem-se, que disse que nas estruturas elementares do parentesco as mulheres estão na posição de objetos de troca, mesmo se isto as desagrada, acrescentava ele, por fim, acabou nos dizendo que não é nada disso, o que desta vez deveria agradar às mulheres: UOM, no sentido genérico, serve-se do seu corpo para pagar um “dízimo”, em outras palavras, ele não é um devedor, é o outro que lhe deve. Cito, “ter um corpo não quer dizer nada, se não fizer todos os outros pagarem o dízimo por isso” (LACAN, 1975a/2003, p. 563). É ele então, é UOM que exige que os outros paguem, que todos paguem. Como entender isso? O que é este écot, sem h e com um t,5 no sentido da cota -parte que todos os outros devem pagar? 5 A autora se refere à diferença entre écho (eco) e écot, que significa, como ela diz em seguida, a cota a ser paga individualmente quando se é convidado para um almoço ou jantar por adesão. (N. do T.)

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Lacan evoca os irmãos mendicantes como precursores – mais uma referência medieval depois do dízimo. Essa referência, creio, está aí para marcar que isso não vem do capitalismo. No caso deles, era um dízimo de alimento, eles recorriam ao público para a sua subsistência. E não diremos que Lacan não estava em dia [à l’heure] com a época. Será que a biopolítica não é a versão capitalista dos irmãos mendicantes, na qual o Estado, como representante do coletivo, encarrega-se, atribui-se inclusive o dever de “sustentar”, de alimentar, de fazer subsistir, até mesmo os corpos deslocados pelas guerras ou pela fome – problema muito atual? Vejam a interessante evolução dos EUA que, em consequência de sua história, orgulham-se de nada esperar do poder do Estado, mas que, pouco a pouco, não sem virulentas lutas políticas, acabam chegando nas políticas ditas assistenciais. Ao contrário, nessa mesma biopolítica, cada um tem direitos, e exige distribuição do que lhe é necessário para viver e que lhe é devido. Aliás, o ideal comunista do século passado com seu “para cada um, conforme suas necessidades” era, de fato, um ideal biopolítico. Não fazemos objeções a essa biopolítica, claro, gostaríamos inclusive que ela tivesse um pouco mais de êxito, acentuo apenas a inversão da temática da dívida, é uma inversão de fato, passou a ser realidade, nem temos certeza de que ela seja acompanhada pela “gratidão”, tão cara à Melanie Klein. Ela clama, creio eu, por um aggiornamento de urgência da parte dos psicanalistas que se queixam precisamente de constatar o que Lacan, por sua vez, explica, a saber, que os sujeitos têm cada vez mais uma aparente falta de culpa e um excesso de reivindicação vitimada. No nível dos escabelos, não se trata de sustentar [faire vivre] no sentido da subsistência, mas no da diferença personalizada. Um dízimo para a identidade, sexual ou não, dízimo do olhar, da escuta, da admiração, do reconhecimento, sem os quais não há escabelo. Quem paga o dízimo do qual subsistem os escabelos do Um-dizer de UOM, senão os torcedores, os admiradores, em suma, todos que se deixam seduzir e que oferecem paixão, olhares, aplausos, interesse, ao desportista, ao bailarino, ao artista, e hoje em dia até ao cientista e, como sempre, ao parceiro sexual? Creio que os psicanalistas muitas vezes gostariam que acontecesse o mesmo com eles. Para o escabelo, é preciso fãs – privilegio este termo porque ele vem de “fanático”. Aliás, foi assim que, em 1969, Lacan reformulou a estrutura da massa nazista: uma multiplicidade que paga o dízimo de um olhar ao Um maiúsculo (LACAN, 1968-69/2008, p. 316-326). É uma estrutura diferente daquela que foi descrita por Freud, pois, como veem, o objeto aí não está do mesmo lado. De forma ainda mais geral, e sem necessidade de talentos específicos, cada um, em sua pequena bolha familiar ou profissional, espera um “mínimo vital”, uma espécie de “subsídio universal” de reconhecimento por parte dos pares e parentes. São os escabelos minúsculos das “vidas minúsculas”, como as nomeia um escri-

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tor francês, Pierre Michon. Mas, no fundo, a relação “anaclítica”, tal como desenvolvida em De um Outro ao outro, esta relação que consideramos uma fusão, algumas vezes até mesmo a perversão moderna (sic), será que ela não poderia ser repensada a partir do tal dízimo? No entanto, não se deveria acreditar que os pagantes não se beneficiem com isso, os fãs, aqueles que pagam o dízimo, ponto a ser desenvolvido posteriormente, evoco apenas a identificação participativa que satisfaz o fã sem nenhum esforço – sobre esse ponto, escutemos comentadores esportivos, é edificante de tanta ingenuidade; há também a comunhão de massa na qual os pares de Unaridades que vibram em uma admiração compartilhada, sentem-se subitamente menos sozinhos – gregarismo da emoção instantânea; e às vezes também – mais um tema a ser desenvolvido –, esses fãs recebem em troco o fetiche de um autógrafo, ou de um objeto qualquer, ou simplesmente um olhar de soslaio, e isto será guardado nos anais das famílias. O dia em que me encontrei com...o corpo do Um, Marlon Brando, Marilyn [Monroe], [Charles] de Gaulle, e até....o papa. É que não estamos mais na aurora da ciência, com que Lacan sonhava às vezes, em que três compadres com desejo de saber poderiam ocupar-se da matemática sem que ninguém fosse informado, já que o Outro maiúsculo dessas épocas, o silêncio e o anonimato ainda não se tinham tornado aniquiladores. É bem evidente e atualmente claro que, nas demandas de análise, os sintomas daqueles que chamo de “feridos6 do escabelo” disputam-no com os sintomas dos “feridos do amor”, mais antigos e mais conhecidos, até mesmo seculares. Este tipo de laço, observem, restaura uma disparidade na paridade, disparidade conquistada pelos uns, aceita pelos outros, mas a sorte fica por conta do acaso. Ele supõe duas classes, no sentido lógico do termo, a dos que recebem e a dos que pagam, mais instáveis, em que cada um, a seu turno, pode estar à mercê dos consignatários. Eventualmente, então, ele transforma UOM que percebe o dízimo em ...mendigo. Então, ele tende a generalizar, para a sociedade como um todo, a precariedade que, por estrutura, funciona no campo dos amores sexuados, ou seja, o domínio da Tyché, do encontro epifânico, “clivado” dos laços estabelecidos, e, se por ventura vier a faltar o escabelo sem igual, advém a depressão – não a angústia. Testemunham-no, por exemplo, os fins patéticos de muitos grandes atores viciados em álcool e em barbitúricos, passado o tempo em que se encontravam no ápice do escabelo, e também os inevitáveis problemas de reciclagem daqueles que não desaparecem inteiramente, isso sem falar nas aposentadorias sempre problemáticas dos escabelos que qualifiquei de minúsculos. Então, qual o destino da análise? 6 No original: éclopés de l’escabeau admitiria também as traduções de: mancos do escabelo; mutilados do escabelo; aleijados do escabelo; coxos do escabelo, e ainda, talvez, sofredores do escabelo. (N. do T.)

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A escabelostração e seus sintomas Quanto aos analistas, eles são pagos, de forma clara e em dinheiro, justamente porque não podem se apresentar como os artistas da interpretação, e seu ato, o ato analítico, exclui o escabelo. Não há dízimo para eles. Pergunto-me se não é esta a razão profunda do fascínio, e até da inveja dos analistas, por estes campeões de escabelo que são os artistas. De todo modo, na medida em que eles operam nas análises, Lacan lhes promete nada menos que a castração do escabelo. É o que ele já tinha formulado, com outros termos, dizendo que o analista é o rebotalho da operação analítica. Na entrada de uma análise, a transferência, o agalma do SsS, sem o qual não haveria “desejo de psicanálise”, e ele tem a aparência de ser um escabelo para o analista, penso que está na base de muitas ambições de se tornar analista, mas Freud já advertia que sua ambição não era esta, e Lacan anunciava a queda programada, escabelostração, diz ele, por neologismo. Não há como evitar. É por isso que ele perguntava como é possível que ainda se queira ser analista quando se fez uma verdadeira análise. Enquanto se referia às estruturas de discurso, Lacan dizia que os analistas não se encaixam em nenhum discurso, mas, em um mundo em que os laços provêm cada vez mais da necessidade dos escabelos identitários – o que ainda se acentuará, pois estamos em um momento de transição –, em um mundo onde cada um busca o que tem de diferente de seus pares, e sempre procura tirar vantagem, como está situado o analista? Para Freud, o homem era um animal de horda, para o Lacan dos anos 1970, o falante é um animal de discurso, porém, depois de 1976, UOM é um animal de escabelo. Trata-se, evidentemente, de um processo em curso. O Discurso do Mestre não desaparece, ele se fragmenta, se localiza, fabrica células, enquanto os liames de escabelo se estendem de modo quase instersticial. Aos analisantes, sob condição de que os analistas não imaginem que uma análise deve des-identificar, como se falava em determinada época, aos analisantes, então, prometer-lhes uma identidade de “diferença absoluta” por meio do sintoma, isto é, uma diferença não correlacionada aos pares, em outros termos, antes prometer-lhes a singularidade que separa do que a particularidade que integra em uma das duas classes do laço de escabelo – classe no sentido lógico – isso, sem dúvida, vale a pena. A análise lhes será cada vez mais necessária, como dizia Lacan em 1974, ainda mais porque o laço analista-analisante, em si mesmo, independentemente dos resultados que dele se espere, tem uma estrutura que é aquela dos pares em competição ou em comunhão, e, por não ter precariedades, constitui, sobretudo, um refúgio, pois, se ele é uma ordem, é uma ordem a serviço do analisante, e finalmente a famosa “Idenficação ao sintoma” pode ser um fim um pouco abreviado, como dizia Lacan, mas não deixa de ser uma arma poderosa nas competições da vida.

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Mas, é muito diferente para os analistas, aqueles que, aliás, tem o dever de sustentar o ato. Vejam o que lhes acontece em nosso momento da história: sobre os escombros dos laços tradicionais hierárquicos, quando os novos laços se sustentam entre os pares a partir dos escabelos dos uns totalmente sós, seria o analista o único a estar privado de escabelo? É o que Lacan já havia formulado com outras palavras, dizendo que o analista é o rebotalho da operação analítica. Já havia comentado isso, enfatizando que, assim como o puro amor qualificado de “sem retribuição” pela mística francesa Madame Guyon, o ato do analista é um ato “sem retribuição”, na medida em que seus efeitos, digamos inclusive seu ganho, quando há, é exclusivamente do analisante. E um ato sem retribuição só pode ser um ato anticapitalista, como já tinha observado. Agora compreendo melhor a comparação com o santo, ainda mais por que só há santo “por não o querer ser”, este é também, talvez, o caso do analista. No tempo em que havia santos, aqueles do mundo cristão, únicos de que fala Lacan, os escabelos dos religiosos passavam pelas vias canônicas e isso não mudou, ao passo que, antes de ser canonizado, o santo se situava por meio da “evasão”, assim como o herético, ou seja, pela escolha de uma via singular. Antes de ser um santo, ele era, então, mais o que atualmente se chama de marginal, até mesmo um delinquente um pouco suspeito. Em seu ato, o analista também ex-siste ao regime do escabelo, ele se isenta disso. No fundo do desejo que lhe é próprio, o um, o santo renuncia às pompas e à carne, o outro, o analista, ao escabelo. A diferença, certamente, é que os santos, embora às vezes criassem ordens, não se agrupavam entre santos. Não surpreende que o grupo dos analistas, e todo o mundo midiático em que eles circulam em nome da presença da psicanálise, seja o lugar eleito pela obscenidade dos diversos sintomas de compensação que assinalam o quanto a escabelostração prometida pelo ato é intolerável para os analistas. E não é difícil ver como se reestabelecem os escabelos da transferência com suas competições. Passo adiante. É certo que poderíamos reescrever no mesmo tom de sarcasmo “Situação da psicanálise”... em 2016, portanto, cinquenta anos depois, mas seria inútil, como sempre o são os panfletos e, além disso, não haveria razão para tanto – é este o ponto. Por outro lado, será que a Escola escapa disso? Não o creio, a partir do momento em que outorgamos uma Garantia – termo diante do qual Lacan não recuava, até mesmo quando falamos em garantia sobre o fundo de não garantia – fabricamos degraus de escabelo – e não há como voltar atrás. Outrossim, com esta prática que não existia na Escola de Lacan, e que consiste em convidar o AE para falar para seus membros, não é então a Escola que paga o dízimo do interesse consentido? Se o Um que se sabe totalmente só não pode estar ligado a não ser pelo dízimo, em outras palavras, se o escabelo é necessário ao Um-dizer do UOM-falasser, ele vem do real, o real da não relação, e deve-se, antes, fazê-lo entrar no que Lacan

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O Um totalmente só e seus laços

chamou de “o saber do psicanalista”. Existe o direito de cidadania, pois ele é uma das consequências do “muro da linguagem”, precisamente, a consequência deste saber falado que é o inconsciente que engrena no corpo. Acrescento que nenhum dos problemas do grupo dos analistas, ou mesmo da Escola, pode ser pensado e orientado senão nesta base. Era assim que Lacan o entendia, quando distinguia os escabelos da hierarquia e do gradus – seria preciso desenvolver este ponto – e quando, pelo menos no final, no momento em que promove este termo, longe de denunciar os outros escabelos, ele se faz parceiro deles, evocando o seu próprio escabelo, este que ele se fez, ao introduzir na psicanálise as três dimensões do imaginário, do simbólico e do real, que desembocaram neste nó primário do UOM com seus escabelos, quer utilizem ou não o corpo para isso. Tradução: Vera Pollo Revisão da tradução: Cícero Oliveira

referências bibliográficas LACAN, J. (1964). O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988. _________. (1968-69). O seminário, livro 16: De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. _________. (1974). “La troisième” In: Lettres de l’École freudienne. EFP: Paris, 1975, n° 16, pp. 177-203. _________. (1975a). “Joyce, O Sintoma” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. _________. (1975b). “Conferência de Genebra sobre o sintoma”, inédito (Conferência pronunciada em 04/10/1975 no Centro Raymond de Saussure).

resumo: A autora retoma as fórmulas mais tardias do ensino de Lacan para indagar o estado atual dos laços sociais. Ressalta que, a partir de um certo momento, o “Há Um” começa a fazer contrapeso ao “não há” da relação sexual e Lacan insiste em dizer que somos Unaridades. Segundo ele, o resíduo último dos desenlaces é o indivíduo, o qual se define como “o Um de gozo que procede de Um-dizer não sem outro”. Nos tempos atuais, a exigência de paridade está em todas as coisas, muito além da paridade homem-mulher ou hetero-homo. E o escabelo, que está na origem das performances civilizacionais, é o que nos mobiliza em direção aos

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SOLER, Colette

laços, apesar de todo individualismo. Este regime dos escabelos muda fundamentalmente tudo o que se disse até agora sobre a ordem das trocas na linha estruturalista de Lévi-Strauss, que Lacan seguiu durante algum tempo. UOM é um animal de escabelo ou, em outras palavras, o escabelo é exigido pelo Um-dizer do UOM-falasser. Ele vem do real e cabe aos analistas fazê-lo entrar no que Lacan chamou de “o saber do psicanalista.”

palavras-chave: Laço social; Unaridades; escabelo; UOM-falasser.

abstract: The author goes back to the latest formulae of Lacan’s teaching with the objective of questioning the current state of social bonds. She highlights that, from a certain moment on, the “There is One” begins to counterbalance the “There is not” of the sexual relationship and Lacan insists on saying that we are Uniraties. According to him, the last residue of the outcome is the individual who define him/ herself as “The One of jouissance which derives from One-saying no without the other”. Currently, the demand for parity is present in everything, much beyond the parity man-woman or hetero-homo. And the escabeau, which lies in the origin of the civilizing performances, is what moves us towards the bonds, despite all individualism. This regime of the escabeau fundamentally changes everything that was said so far about the order of the changes in Lévi-Strauss’ structuralist line, adopted by Lacan for some time. LOM is an animal of escabeau or, said in other words, the escabeau is requited by the One-saying of the LOM-parlêtre. It comes from the real and it is up to the analysts to have enter what Lacan has called the “psychoanalyst’s knowledge.”

keywords: Social bond; Uniraties; escabeau; LOM-parlêtre.

recebido: 04/08/2016

aprovado: 12/09/2016

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Manejo clínico e as produções de saber na cultura como destinos da pulsão de saber Daniel Menezes Coelho e Esther Maynart Pereira Mikowski Em 1915, Freud incluiu nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905/1996) um tópico dedicado ao problema das pesquisas sexuais infantis. O tópico é aberto com a descrição de uma pulsão de saber, que se ativaria nas crianças entre três e cinco anos, sendo responsável por engajá-las na via de tais pesquisas. É interessante notar que, para Freud, elas não poderiam ser classificadas em dependência exclusiva da pulsão sexual. A pulsão de saber seria composta, de um lado pela forma sublimada da pulsão de dominação, e de outro, pela pulsão escópica. Em consequência, a curiosidade da criança é impulsionada em direção das questões da sua origem e da diferença sexual, e embora seja recalcada com o fracasso das investigações sexuais infantis, retorna colocando o sujeito adulto às voltas com as mesmas questões não respondidas, ainda que tais questões sejam colocadas de outro modo. São as novas perguntas que o levam a fazer certas escolhas e a se colocar no laço social. Portanto, a curiosidade infantil, embora fracasse, não cessa em manter o sujeito em posição de desejar saber. É pulsional e, por isso mesmo, repete-se e atualiza-se. Na obra de Freud, encontramos o manejo clínico e as produções de saber na cultura como destinos dessa pulsão. Neste trabalho, destacamos os textos de Freud sobre a cultura e ciência, bem como os artigos sobre a técnica pela sua relação direta com a pulsão de saber.

Sobre a ilusão que alimenta Partiremos de “O futuro de uma ilusão” (FREUD 1927/1996), texto que marca o início de um importante debate na obra de Freud. O texto, por um lado, toma o problema da cultura como modo de vida próprio ao humano; e por outro, as diferenças profundas na concepção dessa cultura (logo, no modo de vida próprio ao humano) se a tomamos a partir da ciência ou da religião, como modos de conhecimento e de pensamento. Assim, no início do texto Freud definirá o que entende por cultura a

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COELHO, Daniel Menezes e MIKOWSKI, Esther Maynart Pereira

partir de dois aspectos: o conhecimento e a capacidade do homem de controlar e de utilizar a natureza para seu próprio uso; a regulamentação das relações humanas, pois o homem é também seu inimigo. Por isso, instituições e ordens regulamentam a vida em sociedade, já que os impulsos hostis tendem à aniquilação. A civilização parece ter sido imposta por uma minoria por meio de poder e coerção. Nesse caso, diante de uma massa hostil, líderes ou minorias passaram a controlar a partir da influência. Portanto, duas características humanas surgem como responsáveis pelo ordenamento da civilização: os homens não são espontaneamente dispostos ao trabalho, e os argumentos não valem nada diante das paixões. Assim, proibição, privação e frustração estão intimamente ligadas. A primeira é justamente o que funda a civilização, separando o homem da natureza; e a segunda é sua consequência, relacionada a grupos específicos. Por fim, a frustração é a não satisfação pulsional resultante. Considerando que todos compartilhariam de desejos pulsionais que são recalcados, a saber, ânsia de matar, incesto e canibalismo, o homem acha-se às voltas com essas proibições civilizatórias e encontra outras formas de satisfazer a pulsão agressiva como mentira, fraude ou até avareza. Já a arte é privilégio de poucos, que usufruem dessa atividade para conseguir satisfações substitutivas (Ibid, p. 13). Em seguida, Freud demonstra como as ideias religiosas surgiram da mesma necessidade de realizações satisfatórias. Na medida em que as forças da natureza mostram-se como forças do Destino, o desamparo fez o homem ansiar pelo pai e pelos deuses, como forças da Providência: Foi precisamente por causa dos perigos com que a natureza nos ameaça que nos reunimos e criamos a civilização, a qual, entre outras coisas, se destina a tornar possível nossa vida comunal, pois a principal missão da civilização, sua raison d’être real, é nos defender contra natureza (Ibid., p. 24). Elementos como a terra, a água, as tempestades, as doenças e o enigma da morte escapam do controle humano e, por vezes, impõem sentimentos de fraqueza e desamparo. A civilização, então, não se detém na defesa do homem contra a natureza, mas também o defenderá contra tais sentimentos: a autoestima ameaçada demanda consolo; a vida e o universo pedem para ser libertados dos seus terrores; a sua curiosidade pede resposta. Coube aos deuses, das mais diversas religiões, amparar o sofrimento humano decorrente do desamparo que, por conseguinte, favoreceu novas ideias e preceitos para combatê-lo. Assim, as ideias religiosas são ensinamentos e afirmativas sobre os fatos e condições da realidade exterior ou interior que visam excluir a hesitação e o desamparo do homem, de modo a influenciá-lo. A ideia de um pai protetor e censor é transposta da experiência infantil à religião.

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Diante disso, um meio pelo qual a religião tenta contornar os anseios do homem é a proibição e o leva a atribuir a Deus os regulamentos e preceitos que obedece. Para Freud, responsabiliza-se a Deus para não lidar diretamente com seu próprio desejo, em vez de compreender que certos preceitos servem aos seus próprios interesses. Por exemplo, reconhecer que não matar o próximo é de interesse comunitário poderia levar à reconciliação com a própria civilização. Antes de tudo, é não se responsabilizar pelo desejo que precedeu o regulamento. A proibição de pensar acompanha essa mesma lógica, o que coloca proibição e recalque muito próximos. Mesmo que as ideias religiosas tenham contribuído com a civilização e influenciem bastante o pensamento humano, não deram conta de dominar as pulsões. As perguntas dos homens, herdeiras da curiosidade infantil, não são respondidas a partir da experiência e, portanto, para Freud as respostas ou explicações não devem ser consideradas meros erros, ou seja, algo que nos remeta ao problema dos limites da cognição. Na verdade, são ilusões, ou seja, são produzidas a partir do desejo, e a partir desse desejo adquirem valor de verdade para quem as toma para si. Desse modo, a religião pôde satisfazer o desejo de saber, mas não completamente: a experiência e o pensamento contradizem o saber religioso, e acabam por tornarem-se, nesse quadro, perigos para a própria experiência de satisfação proporcionada pelo saber religioso. Sob tais condições, é preciso proibir experiências e pensamentos. Estamos, assim, bem longe do problema cognitivo do erro. Trata-se, no que Freud propõe, de um problema de satisfação pulsional. A religião oferece algo que apraz, e sua contrapartida é a crença e o não questionamento. Por outro lado, Freud defende que a ciência não é uma ilusão, pois dá provas do conhecimento alcançado sobre o mundo e a realidade. O trabalho científico pode atingir esse conhecimento por meio de investigações, progressos, revoluções e mesmo refutações que visam à verdade. A ciência se encontra jovem, exitosa em alguns campos e, em outros, ainda obstinada a explorar. Seu método de satisfação do desejo difere imensamente daquele da religião, pois ela exclui o mecanismo pelo qual a religião protege o saber com que seu desejo se satisfaz. Na ciência, em todo caso, na ciência que Freud defende, tudo pode ser questionado, tudo pode ser pensado. A ciência de Freud toma aquilo que a contradiz como motor de seu próprio progresso, e não como objeto de interdição. A tese freudiana aponta para uma civilização tanto construída como amparada nessas ilusões e uma ciência que nasce para questioná-las. Há uma aproximação importante feita por Freud entre a religião e o não saber da criança, diante dos enigmas infantis, pois o engano produzido pelo adulto favorece as teorias sexuais infantis. A ilusão proporcionada pelas teorias infantis, se consideradas desse modo, difere-se das ilusões da religião pelo efeito externo, impositivo, pois as primeiras

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nascem da própria experiência, diferente das demais que, mesmo herdeiras de um complexo infantil, são experiências coletivas. A partir do que levanta nesse trabalho, Freud propõe uma educação para a realidade. Durante o texto, percebemos crítica à educação, em virtude do seu alinhamento à religião e sua tentativa de controlar a sexualidade. Por isso, se no futuro o homem conseguir se desfazer das amarras das ilusões e puder suportar a vida e as crueldades da realidade, assim como dar conta do seu desejo insatisfeito, a educação será para a realidade, inclusive aquela do desejo impossível. Freud afasta a tese segundo a qual isso produziria sofrimento e paralisia, mediante a perda da satisfação obtida pela ilusão. Nosso conhecimento científico mitiga o sentimento de desamparo e nos autoriza a ter esperanças no futuro. Sublinhemos que a posição crítica de Freud às religiões não se explica meramente pelas ilusões provocadas, mas principalmente pelas restrições que as acompanham. Na medida em que Freud, otimista, acredita que no futuro não haverá nem neurose ou religião, a aposta é a razão e a experiência ofertadas pela ciência, pois “a humanidade superará essa fase neurótica, tal como muitas crianças evolvem de suas neuroses semelhantes” (Ibid., p. 61).

As conquistas da civilização O célebre texto “Mal-estar na civilização” (FREUD, 1930/2010) continua o debate estabelecido em “O futuro de uma ilusão”. Nele, Freud reafirma sua concepção sobre a cultura, como “a inteira soma das realizações e instituições que afastam a nossa vida daquela de nossos antepassados animais e que servem para dois fins: a proteção do homem contra a natureza e a regulamentação dos vínculos dos homens entre si” (Ibid., p. 48). O objeto principal do texto será uma investigação sobre os limites da cultura, seus pontos de “mal-estar”. Se a civilização nos protege dos perigos da natureza, ao mesmo tempo impõe a necessidade de renunciar à satisfação pulsional. Ao retomar a teoria das pulsões, Freud demonstra que, para escapar das intempéries da cultura, o sujeito conta com desvios da meta e com a investigação, seja na ciência ou nos interesses em geral. O querer saber apontado no final demonstra que a produção de saber e de conhecimento do sujeito sobre si e sobre a cultura seria um destino pulsional, como sustentamos. Nesse quesito, estão contemplados tanto o conhecimento decorrente da educação, controladora da pulsão em essência, como a ciência enquanto prática legitimada, ou com qualquer outro campo de investigação. Ao retomar o problema da religião, anteriormente abordado, eleva-a à direta oposição à ciência e à arte, ao mesmo tempo que pode, por vezes, substituí-las. No entanto, essas últimas podem ser vias de suportar os sofrimentos, na medida em que o desvio pulsional, a sublimação, opera um deslocamento libidinal para essas e outras atividades. 48

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Visão de mundo e a produção de conhecimento Em “Acerca de uma visão de mundo” (FREUD, 1933/2010), retoma-se mais uma vez o debate sobre o conhecimento. Ali, sustenta-se que “visão de mundo é uma construção intelectual que, a partir de uma hipótese geral soluciona de forma unitária todos os problemas de nossa existência, na qual, portanto, nenhuma questão fica aberta, e tudo que nos concerne tem seu lugar definido” (Ibid., p. 321). Essas informações nos mostram o rigor e o cuidado de Freud com o tema, e mesmo que insista em seu conhecimento restrito, consegue ser preciso ao demonstrar o risco dos sistemas1 que defendem um conceito único de vida e de mundo. Tal uniformidade não dá espaço a questionamentos, a novas produções ou a indagações. A princípio, o propósito do texto parece ser o de questionar se a psicanálise tem uma visão de mundo, o que é logo solucionado, já que a psicanálise é inadequada para criar uma visão de mundo própria, mas enquanto pertencente à ciência, compartilha da sua visão. Cabe a esta última a pesquisa, cujo objetivo é a produção de conhecimento, que deve ser checado e comprovado. Muito embora a psicanálise e a psicologia tenham incluído a psique e o intelecto na investigação científica, o saber produzido não é reconhecido como científico. Por consequência, o que está em questão é que a ilusão nascida para lidar com os desejos humanos não pode competir com a verdade promovida pela ciência. Não por esta verdade refutar um erro, pois as ilusões não tratam disso, mas principalmente pela experiência com a própria realidade que a ciência promove. Esse é um ponto-chave do texto freudiano, embora sua crítica recaia fortemente sobre a religião, colocando-a como maior inimiga da ciência, como já podia ser lido em “O futuro de uma ilusão”. Freud retoma assim o argumento da proibição do questionamento na religião. Lembra que houve um tempo sem religião e sem deuses, o animismo, em que espíritos semelhantes aos homens, chamados demônios, amedrontavam os homens, e como não havia um ser supremo para pedir proteção, defendiam-se com atividades como a magia. Por causa disso, Freud aponta que naquela época os seres humanos eram mais confiantes. Apesar de não haver dados exatos sobre a passagem do animismo para a religião, lembra que o totemismo, entre outras reviravoltas, trouxe a ética. As exigências éticas, por sua vez, se condicionadas à obediência divina, colocam a humanidade em perigo. Tal retomada histórica serviu para expor como o próprio desenvolvimento do que chama espírito científico passou a questionar a religião e suas teorias escassamente comprobatórias, exceto pela fé humana, como os milagres ou a própria criação do universo. A psicanálise, 1 Nomeamos como sistema o conjunto das áreas abordadas por Freud para discutir o tema: arte, religião, filosofia, anarquismo e marxismo.

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por sua vez, pôde apontar que as origens de tais ilusões estão nos desejos e necessidades experimentadas no desamparo infantil. A partir disso, conclui que os conteúdos de verdade da religião podem ser desconsiderados, pois são “tentativas de lidar com o mundo sensorial, em que estamos colocados, por meio do mundo de desejos que desenvolvemos em nós, em razão de necessidades biológicas e psicológicas” (Ibid., p. 335). Freud aponta que se poderia objetar que a religião não poderia ser objeto de investigação da ciência por sua origem divina, por sua concepção sublime e por estar distante da compreensão humana. Contra essa objeção, aponta-se para os efeitos da religião sobre o homem e, essencialmente, o modo como opera no seu pensamento. Ou melhor, como lhe restringe o pensamento e não permite ser questionada, pois sua origem é divina. Então, a crítica se concentra no que Freud nomeia como invasão do pensamento científico pela religião, ou seja, quando esta se propõe a controlar o pensamento do homem, bem como sua possibilidade de questionar e produzir novos conhecimentos. O pensamento científico não difere do pensamento comum, porém, tem traços específicos, interessa-se por coisas que podem não ser palpáveis e úteis, mantém distância de individualismos e afetos, é rigoroso, cria novas percepções, isola suas descobertas segundo as variáveis do experimento ou investigação, utiliza-se de meios pouco cotidianos, tem como objetivo a verdade. A ciência, por ser relativamente nova se comparada à existência da humanidade, Freud aposta num longo caminho para que ela possa substituir os efeitos da ilusão religiosa. O debate em torno da oposição entre ciência e religião toma corpo e coloca a psicanálise como êxtima2 dessa discussão, pois desde que está incluída na ciência, no que diz respeito a uma visão de mundo, impõe à ciência que considere a realidade de algo que ela metodicamente esforçava-se em eliminar como fonte de erro: o desejo. Se há “realidade psíquica”, tese fundamental que sustenta a clínica psicanalítica, o próprio conceito de realidade deve ser questionado. A política do desejo e da necessidade também está presente no debate, como ponto importante nas consequências das ilusões que também são alternativas ao sofrimento humano. De um lado, parecem satisfazer o desejo, na medida em que o tamponam e, de outro, fazem pensar que há sempre um escape que o coloca para funcionar de outro modo. Freud faz uma distinção entre saber e ilusão, sendo que esta é sempre guiada pelos afetos e pela própria religião. Se a visão religiosa de mundo é determinada pela vivência da infância, é herdeira da relação entre a criança e a instância parental que lhe deu carinho, proteção, segurança e o instruiu a aceitar restrições do seu desejo. 2 Tomamos emprestado o neologismo criado por Lacan para tratar de algo do sujeito que ao mesmo tempo lhe é íntimo e exterior, algo “como sendo esse lugar central, essa exterioridade íntima, essa extimidade, que é a Coisa” (LACAN, 1959-60/1991, p. 173), grifo nosso.

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O texto freudiano valoriza a produção do saber própria do sujeito, seja da ciência ou do inconsciente, em detrimento de estruturas totalizantes como a religião. Deste modo, se o indivíduo é tomado por essas estruturas, podemos considerar que sua pulsão de saber é recalcada ou mesmo desviada em sintomas que respondem a isso. Assim, a produção de conhecimento é um destino da pulsão de saber, na medida em que o próprio processo civilizatório, para se constituir, precisou dar contornos àqueles impulsos infantis. Conforme o exposto, se a psicanálise não produz uma resposta unitária nem soluciona os problemas da existência humana ao deixar abertas essas questões, e se tanto é parte da ciência como compartilha sua visão de mundo, concluímos que há uma produção de saber da psicanálise. Este saber é eminentemente clínico, apoiado robustamente na realidade do desejo observado na clínica, que serve de motor a todo o debate em torno da cultura e do conhecimento que acompanhamos até aqui.

Manejo clínico na direção do tratamento Ao propor uma clínica psicanalítica baseada no inconsciente para tratar do sofrimento humano diante do recalque, Freud criou uma técnica que comporta de um lado um analista opaco e disposto a escutar, de outro um paciente que deve falar sem censuras da sua história e da sua dor. Ao longo de sua obra, percebemos uma passagem da imposição do saber do analista, presente na sugestão, para um saber do paciente via transferência. Em seus artigos sobre a técnica, conseguimos identificar essa passagem. Em “Dinâmica da transferência” (FREUD, 1912/2010a), Freud aproxima a resistência à transferência, delimitando que não é preciso desprezar a primeira, pois é útil no manejo da outra. No início da prática, Freud ignorou os efeitos favoráveis da resistência à análise, no entanto, passou a tomá-la como meio eficaz de reconhecer a transferência: “o mecanismo da transferência é explicado se o referimos à prontidão da libido, que permaneceu de posse de imagos infantis, mas só chegamos ao reconhecimento de seu papel na terapia se abordamos os seus vínculos com a resistência” (Ibid., p. 141). Outro aspecto dinâmico da transferência é a ambivalência das inclinações afetivas que pode se submeter à resistência. Não apenas afetos tomados como positivos podem se efetuar, mas também negativos. Há uma outra ambivalência em questão: a luta entre o intelecto e as pulsões. Apesar da recomendação de dizer tudo que lhe vier à mente, o paciente por vezes escolhe palavras ou afetos para se expressar, o que dificulta o acesso aos conteúdos recalcados. O efeito das pulsões sobre a história do paciente, seus afetos e suas lembranças encontram empecilhos para vir à tona. O analista deve conduzir o tratamento para que essa luta de forças possa cumprir sua função de cura no campo da transferência.

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Em “Recomendações ao médico que pratica a psicanálise” (FREUD, 1912/2010b), é recomendada a distinção entre o tratamento e o rigor científico, mesmo que se considere a análise como um trabalho de investigação dos processos inconscientes, de resolução “do enigma da neurose” (Ibid., p. 161) e que um dos seus méritos seja coincidência entre pesquisa e tratamento. A pesquisa do inconsciente com fins de tratamento e de comprovação de uma hipótese é o que justifica tal recomendação. Afinal, se o tratamento ainda não foi concluído, a atenção do analista estará comprometida com a expectativa dos êxitos de sua conclusão quando tomada pela pesquisa com fins científicos. Ressalta-se neste ponto que o rigor científico não está a serviço dos efeitos e reviravoltas possíveis em uma análise. Destaca-se ainda o exercício do analista em ser opaco, servindo de espelho ao paciente. Ao não se dispor como pessoa, por meio de seus defeitos, de seus conflitos e de sua história, evita o risco do mal uso da transferência e sua futura dissolução. O tratamento por sugestão pode vir a sucumbir às possibilidades de acesso às resistências, de modo que o paciente permaneça falando do que já sabe, sem se atrever a dar voz ao inconsciente – ao que não sabe. Em “O início do tratamento” (FREUD, 1913/2010, p. 179), lemos: O paciente costuma apreender como uma privação a situação que lhe é imposta e se revolta contra ela, em particular se o impulso de olhar (o voyeurismo) tem papel significativo em sua neurose. Mas eu insisto nessa medida, que tem o propósito e o resultado de impedir a inadvertida intromissão da transferência nos pensamentos espontâneos do paciente, de isolar a transferência e fazer que no devido tempo ela se destaque nitidamente como resistência. Quanto a isso, sublinhamos que a privação do olhar promovida pelo uso do divã impulsiona a pesquisa do sujeito a retornar ao ponto em que, na entrada do período de latência, ela teria fracassado. Assim, a mesma resistência expressa a partir do momento em que o sujeito perde a imagem do analista pode ser lida como a transferência desse fracasso inaugural da latência, repetida no interior da análise. Mais adiante, adverte que somente depois de estabelecida a transferência é que devem ser feitas as comunicações do analista sobre o processo analítico e suas interpretações das resistências, sob o risco de serem tomadas por meras informações intelectuais desprovidas de afeto. O saber é próprio a cada sujeito e, por isso, o analisando deve buscá-lo por si, investindo aí o seu próprio desejo. Assim, é preciso insistir na diferença, dentro da análise, entre o saber do paciente e o saber do analista. Por intermédio de um exemplo clínico (Ibid., p. 189),

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Freud insiste que a imposição do saber de outrem não favorece a cura, pelo contrário, propicia o aumento das resistências, impedindo o acesso ao saber inconsciente. Freud atribuiu ao tratamento por hipnose o mérito de ter revelado que os efeitos da análise só podem ser buscados se forem genuinamente operados pelo próprio analisando. Por acerto e erro, Freud parece ter concluído que é preciso ponderar o que importa em uma análise. Nem sempre a elucidação dos fatos é o que o analisando deseja saber, pois é preciso que a construção se dê no espaço propiciado pela transferência e essa possa favorecer o próprio sujeito a encontrar o saber inconsciente. Assim “um saber consciente com o não saber” (Ibid., p. 190), quando conjugado, possibilita o acesso aos processos psíquicos inconscientes. Encontramos ainda indicações de que há uma força motriz da pulsão que diminui com o avanço do tratamento. Há um jogo de forças para que o mesmo aconteça, inclusive o sofrimento do analisando e seu desejo são pontos de partida. Se o sofrimento do homem advém dos conflitos pulsionais, percebe-se que tal força é incapaz de eliminar os sintomas, pois desconhece os caminhos que a conduziram e não é força suficiente para superar as resistências. É pela transferência que esse desconhecimento e falta de força podem ser superados. Já em “Recordar, repetir e elaborar”, “preencher lacunas da recordação” e superar as resistências do recalque são objetivos da análise (FREUD, 1914/2010, p. 195). O essencial, portanto, é fazer emergir as lembranças infantis que foram modificadas por lembranças encobridoras, além de fantasias e sentimentos da vida infantil que foram esquecidos. Para Freud, o paciente atua para não recordar, repetindo sem saber as experiências infantis. Ao dominar a resistências, diminuem as chances de atuar como repetição. Podemos extrair da leitura de “Observações sobre o amor de transferência” (FREUD, 1915/2010) a dimensão do poder do analista diante desse amor. Em alguns momentos, Freud insiste que, ao responder, o analista pode dominar o paciente e seus impulsos, comprometer o sucesso terapêutico e manipulá-lo a partir de seus próprios afetos. Na medida em que se mantém o amor ao analista, o amor ao saber sustenta a investigação analítica sobre o inconsciente e é o analisando que pode dominá-lo genuinamente. Em “A questão da análise leiga” (FREUD, 1926/1996), ao retomar aspectos da técnica psicanalítica, lembra que o desejo ambivalente do paciente em se curar está diretamente relacionado com a resistência. Por conseguinte, a relação afetiva que se estabelece com o analista tem a mesma natureza da paixão. Esse amor também se caracteriza pela noção de compulsão à repetição e pode vir a se instalar como neurose de transferência, atuando como resistência. Assim, o analisando repete experiências ou lembranças infantis ao se apaixonar pelo analista e este deve manejar a transferência, sem recuar diante do amor e da resistência.

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Uma construção, por fim “Construções em análise” é um dos últimos trabalhos de Freud (1937/1996), em que ele defende a análise como uma construção composta por fragmentos incluídos pouco a pouco, ora quando o analista faz uma comunicação a respeito do que foi dito em associação livre pelo paciente, ora quando este elabora. Compara o trabalho psicanalítico ao dos arqueólogos que cavam objetos destruídos para compreender a história. A diferença é que o material inconsciente, embora possa se apresentar fragmentado, é vivo na memória quando o paciente recorda alguma experiência ou sentimento recalcado, diferente dos achados arqueológicos que estão destruídos. A diferença colocada entre interpretação e construção é que a primeira se restringe a um material específico, como sonho ou associação; a outra remonta toda a história que não é recuperada de uma vez, mas gradualmente até o término da análise. Freud lembra que não é possível garantir veracidade às construções e, por isso, se suas construções tiverem efeitos quer dizer que funcionaram, mesmo que o analista cometa equívocos. Se o paciente as aceita ou nega não quer dizer que corresponde à sua verdade psíquica, pois pode variar conforme o tipo de transferência estabelecida. Outros indícios a posteriori confirmam a construção. É interessante notar que Freud coloca o analista em questão na análise, inclusive seu saber sobre o analisando. Entendemos que o texto trata da construção do saber na análise, instituído com base nas recordações das experiências infantis que se tornam vívidas com o processo. E mais, um saber também do lado do analista que faz apostas a cada nova resistência interpretada ou comunicação realizada. Sendo assim, a compulsão de repetir do paciente apontado nos artigos da técnica pode ser transposta para a compulsão à repetição da pulsão. Ora, se a compulsão de repetir visa aumentar as resistências, portanto, proteger as lembranças recalcadas, a análise não implica um desvio pulsional? A pulsão de saber fracassada, e em parte recalcada na infância, retorna ao operar uma busca de respostas que, na análise, dão mais sentido aos sintomas. O que sustentamos é que tanto nas discussões epistemológicas em torno da cultura, quanto nas discussões clínicas, destaca-se da obra freudiana um saber inconsciente do sujeito que busca respostas para suas as questões fundamentais tanto na vida cotidiana como na clínica. O analista, na sua prática, produz saber: a psicanálise é, ao mesmo tempo, tratamento e pesquisa, e as discussões sobre a ciência e a religião acabam por colocar a própria pesquisa como obrigação ética do analista, em sua participação na cultura. Ao mesmo tempo, a teoria da técnica aponta que o analista deve abster-se desse saber, de modo que o analisando possa retornar ao ponto de fracasso de suas pesquisas sexuais infantis, a partir de onde poderá relançar seu próprio desejo de saber.

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Manejo clínico e as produções de saber na cultura como destinos da pulsão de saber

Considerar uma pulsão de saber própria do sujeito é reconhecê-la por meio do que Freud propôs como interesses da psicanálise, ou seja, a cultura e a clínica. Seu aparecimento na primeira infância se perpetua, como demonstramos, e é notada nas buscas incessantes dos homens por novas perguntas. Assim, construções de saber são realizadas pelo homem durante sua existência, tanto individualmente quanto como civilização. É dessa forma que, no pós-escrito “Autobiografia”, Freud (1925/2011, p. 137) justificará a inflexão cada vez maior de sua obra clínica em direção à cultura: Cada vez mais claramente percebi que os acontecimentos da história da humanidade, as interações entre natureza humana, evolução cultural e aqueles precipitados de experiências primevas (dos quais a religião é o maior representante) são apenas o reflexo dos conflitos dinâmicos do Eu, Id e Supereu que a psicanálise estuda no ser humano individual, os mesmos processos, repetidos num cenário mais amplo. A pulsão de saber resiste ao tempo, à história e à evolução cultural; é intrínseca ao homem e o coloca em movimento, que podemos entender cíclico, pois a cada nova resposta, surgem novas perguntas, novos acontecimentos e até novos conflitos. A explicação é que as perguntas fundamentais sobre a origem e sobre o sexo não cessam. São recolocadas sempre para cada um, como experiência subjetiva das questões sobre sua própria origem e seu próprio sexo. Concluímos, deste modo, que a psicanálise, seja em sua vertente de produção teórica, seja em sua vertente de prática clínica, promove uma nova inflexão quanto às relações do sujeito com o saber, na medida em que revela aí o papel do desejo.

referências bibliográficas FREUD, S. (1905). “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud – v. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996, pp. 119-217.                   . (1927). “O futuro de uma ilusão” In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud – v. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996, pp. 13-63.                   . (1912a). “A dinâmica da transferência” In: Obras completas de Sigmund Freud – v. X. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2010, pp. 133-146.                   . (1912b). “Recomendações ao médico que pratica a psicanálise” In: Obras completas de Sigmund Freud – v. X. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2010, pp. 147-162.

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COELHO, Daniel Menezes e MIKOWSKI, Esther Maynart Pereira

. (1913). “Sobre o início do tratamento” In: Obras completas de Sigmund Freud – v. X. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2010, pp. 163-192.                   . (1914). “Recordar, repetir e elaborar” In: Obras completas de Sigmund Freud – v. X. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2010, pp. 193-209.                   . (1915). “Observações sobre o amor de transferência” In: Obras completas de Sigmund Freud – v. X. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2010, pp. 210-218.                   . (1930). “Mal-estar na civilização” In: Obras completas de Sigmund Freud – v. XVIII. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2010, pp. 13-122.                   . (1933). “Acerca de uma visão de mundo” In: Obras completas de Sigmund Freud – v. XVIII. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2010, pp. 321-354.                   . (1925). “Autobiografia” In: Obras completas de Sigmund Freud – v. XVI Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2011, pp. 75-167.                   . (1937). “Construções em análise” In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud – v. XXIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996 pp. 275-287.                   . (1926). “A análise leiga” In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud – v. XX. Rio de Janeiro: Imago, 1996, pp. 175-248. LACAN, J. (1959-60). O seminário, livro 7: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1991.

resumo: O tema deste trabalho é o manejo da técnica psicanalítica e as produções de saber na Cultura na obra freudiana. Nossa hipótese é que ambos são destinos da pulsão de saber, apontada por Freud em “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”. O objetivo foi revisar textos sobre a técnica, publicados entre 1910 e 1915, e textos sobre cultura de 1927 a 1933 para verificar como Freud trabalhou o saber em torno desses temas. Encontramos tanto nos textos tardios sobre a cultura como nos artigos sobre a técnica o caráter investigativo do sujeito. A pesquisa nos leva a destacar, na obra freudiana, uma nova inflexão quanto às relações entre o sujeito e o saber, na medida em que revela aí o papel do desejo.

palavras-chave: Pulsão de saber; cultura; produção de saber; manejo clínico.

abstract: This theme of this study is the management of the psychoanalytical technique

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Manejo clínico e as produções de saber na cultura como destinos da pulsão de saber

and the productions of knowledge within Culture in Freudian works. Our hypothesis here is that both of them are destinies of the drive to know, pointed out by Freud in “Three essays on the Theory of Sexuality.” The objective was to review texts about technique, published between 1910 and 1915, and others on culture between 1927 and 1933 in order to verify how Freud discussed knowledge within these themes. In both the later texts about culture and in the articles about technique, we have come across the subject’s investigative character. Thus, it is our understanding that psychoanalysis research provides evidence of a subject knowing in the practice and in the culture, which makes the drive to know very operative in Freud’s work.

keywords: Drive to know; culture; knowledge production; clinic management.

recebido: 25/08/2016

aprovado: 12/09/2016

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Atualidade da clínica Sandra Berta Como conduzir as análises? Esta é uma pergunta que se renova para cada praticante da psicanálise. Atualmente, no campo lacaniano, temos falado insistentemente sobre o final de análise. Ocupados com a questão do fim e do passe, temos priorizado esse tempo do final. Isto tem várias razões, porém a mais importante, em minha opinião, refere-se ao fato de pensarmos o final de análise que Lacan nos aportou ao longo de seu ensino incluindo o enodamento do real, o simbólico e o imaginário, sem priorizar um registro sobre qualquer outro. Quando nos referimos a uma clínica em direção ao real não devemos confundir que o registro do real estaria em posição de prioridade, mas que o real é a estrutura a ser entendida com RSI∑ (real, simbólico, imaginário e o sinthoma). A pergunta sobre condução das análises não perde a atualidade. Ela é permanentemente atual, se me permitem a expressão paradoxal, e faz eco com a (de) formação permanente do analista. Privilegio aqui a afirmação de Lacan no Seminário Le sinthome, quando indica que o analista é parceiro sinthoma. Cito Lacan: “Penso que o psicanalista somente pode conceber-se como um sinthoma. A psicanálise não é um sinthome, o psicanalista sim” (LACAN, 1975-76/2006, p. 133). Precisamente o sinthoma é o que permite manter enodados Real, Simbólico e Imaginário, possibilitando as finezas dos campos de gozo e a sustentação de um desejo que não seja anônimo para o analisante no decorrer da sua análise. Lembro que no Seminário RSI, a esse quarto que enoda RSI Lacan lhe dera a função de nominação. O pai do nome tendo essa função de enodamento e nominação do simbólico, do imaginário e do real. Em 1975-76 é a função sinthoma que é convocada por Lacan para indicar o que opera do analista em cada cura. Ele o sublinha: a psicanálise não é o sintoma, o psicanalista é parceiro sinthoma. Aqui, a questão refere certamente à ética na direção da cura. Refere, então, à disposição do analista, ao fato de como o desejo do analista e sua presença se colocam na cena clínica. É preciso tempo para se fazer ao sinthoma e à letra do sintoma, que temos que diferenciar. Evoco com isto o que Lacan dizia: é preciso tempo para se fazer ao ser. É preciso tempo para se fazer à nominação, poderíamos acrescentar. Esta formulação é o dever ético do analista. Ele próprio, tendo feito sua experiência, deve saber fazer aí com a textura e a tessitura que o enodamento borromeano promove. É a razão pela qual Lacan disse que o psicanalista, pela interpretação, faz os cortes, as suturas e os empalmes do

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BERTA, Sandra

nó. Isto não é possível sem a sustentação até onde seja necessário (como categoria modal) da transferência, o que significa dizer: do sujeito suposto saber por meio da palavra. Digamos aqui que a palavra deve ser entendida entre o dito e o dizer que é existencial aos ditos. Portanto, a pergunta com a qual iniciei este texto traz à baila outra: como operam as palavras? Se disso sabemos, poderemos avançar um pouco mais até dizer que se a psicanálise é uma prática linguageira, o psicanalista deve se fazer a essa prática que não lhe é estrangeira. Ele só pode fazê-lo com e pelas palavras, porque o falasser tem como substância a moterialité1... das pulsões. Nesse sentido ele não é poeta, embora possa com eles eventualmente se orientar. Mas ele deve, pela função sinthoma, fazer operar as palavras além do sentido e de seu gozo particular (gozo-sentido, escrito entre o simbólico e o imaginário) para produzir a escrita da letra fora sentido. No que diz respeito a como operar com as palavras, no Seminário 24, L’insu..., Lacan se refere ao forcing. Esse termo, ele o toma da matemática, acompanhando as pesquisas de seu amigo e interlocutor René Thom, sobre sua teoria morfogenética que ele nomeara como Teoria das Catástrofes. O forcing da materialidade significante – que enodada ao ato da fala se enuncia moterialité – é uma indicação de Lacan para referir-se ao significante novo e ao corte no pan-simbolismo que a construção da fantasia promove. Isso se produz pelo que opera do psicanalista e que indefectivelmente causa, no dizer analisante, a dimensão do enigma. A interpretação pelo equívoco se apoia nesta articulação proposta por Lacan nos seus últimos seminários. Perde-se o inconsciente freudiano? De modo algum, porque o simbólico está aí operando sua relação ao real e ao imaginário. Porém, do sintoma freudiano onde se coloca em jogo a substituição e que refere ao envelope formal do sintoma para o sintoma como letra de gozo e o sinthoma proposto por Lacan a partir do enodamento RSI, não podemos já contornar ou mesmo burlar o caráter de mudança que a clínica propõe. O simbólico terá sua relação ao sinthoma a partir do enodamento das consistências. Entre eles não há relação se não se considera dito enodamento borromeano. O acento na direção do tratamento se transmuta de “fazer consciente o inconsciente” – trabalho caro ao analisante quando, pela retificação subjetiva, aposta ao sujeito suposto saber – para um trabalho que não se exime da “poiética violência” – como escrevera Roberto Harari (2001, p. 55) – que força o significante a se fazer novo a cada vez.

1 Moterialité: jogo homofônico entre “mot”, palavra; e “matérialité”, materialidade. Na Conferência de Genebra, pela primeira vez Lacan se refere a esse neologismo: “É, se me permitem empregar pela primeira vez esse termo, nesse motérialisme onde reside a tomada do inconsciente – quero dizer que é o que faz com que cada um não tenha encontrado outros modos de sustentar a não ser o que há pouco chamei o sintoma” (BERTA, 2015, p. 211).

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Atualidade da clínica

O inconsciente surpreende, mesmo se o sintoma aliado ao fantasma quer lhe fazer dizer sempre o mesmo. Estar à disposição dessa surpresa não é algo novo. Isso já estava presente com Freud. A questão colocada não é fazer do forcing pura técnica, mas saber que o inconsciente não é apenas elucubração e que pode escrever algo novo. A moterialité do inconsciente é neológica, lembra Colette Soler (2015, p. 151) no seu livro Lacan, lecteur de Joyce. Dito de outro modo, e como propus em 2015 em Buenos Aires, numa análise temos que passar da novela familiar para o novelo fonemático. E isso não vai sem a operância do psicanalista. Nessa ocasião me perguntaram sobre o efeito sinthomal, seja no final de análise, seja na direção de cada caso clínico. Disse lá que para mim uma das consequências do final de análise e do passe fora de pôr em questão a clínica. Sabemos o quanto Lacan insistira sobre isso. Todavia, não se trata de uma insistência, mas de um desafio que teve um marco prioritário: sua excomunhão da IPA e sua pergunta, a considerar como forcing: como viver a pulsão após a travessia da fantasia? Isso não quer dizer como cada um vai viver sua vida – embora poderíamos contemplar essa opção –, mas como cada psicanalista fará com esse estado de urgência que se lhe impõe ao saber que entre RSI não há relação e que isso se lhe impõe a cada vez, assim como se impõe a fala, ou seja: a fala imposta com a qual há de se fazer o falasser. Como diz Colette Soler no seu seminário Que es lo que hace lazo?, a clínica borromeana considera o dizer como sinthoma, uma vez que o dizer se impõe clinicamente, isto sendo indiscutível, uma vez que o nó borromeano é convocado para dar conta dos efeitos de uma experiência linguageira e uma vez que para que haja palavra é necessário que haja do dizer. “O inconsciente, saber falado, ele mesmo vem de lalangue, mas supõe ainda o dizer” (SOLER, 2011-12/2015, p. 157). Neste mesmo sentido, acompanhando Jean-Claude Milner, podemos afirmar que “Esclarecer a relação de lalangue com a língua tangencia, então, a ética” (MILNER, 2012, p. 23). Ética do psicanalista que incide no dizer analisante indicando que se a linguagem é a designação de uma elucubração de saber, a língua, cada língua, carrega no seu bojo a dimensão do impossível de dizer. Isso fala, o inconsciente é um saber sem sujeito onde o insabido faz sua dança, ou, se quiserem, sua ópera prima. Mas é não todizante e por isso nessa poiética violência caberá ao analista operar para que o analisante produza sua língua, intraduzível porque singular, porque inédita. Nesse percurso o inconsciente também cessa de se escrever como elucubração e possibilita a escrita dessa letra que não se diz. Lacan refere a isto em vários dos seus seminários, mas indico aqui o que afirmara em L’insu, em particular na aula de 18/04/1977:

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BERTA, Sandra

Eu sou, evidentemente um psicanalista já muito vivido, mas é verdade que o psicanalista, no ponto em que cheguei, depende da leitura que ele faz de seu analisante, daquilo que o analisante lhe diz em termos próprios [...] aquilo que seu analisante crê lhe dizer, isso quer dizer que tudo o que o analista escuta não pode ser tomado – como a gente se exprime – ao pé da letra. Eu disse a tendência que essa letra – da qual esse pé indica a pega ao solo, o que é uma metáfora, uma metáfora pobre (piètre), o que combina bem com é (pied) – a tendência que essa letra tem para alcançar o real. É..., é seu afazer. O real, na minha notação, sendo aquilo que é impossível de se alcançar, aquilo que o analisante, ao analista em questão, crê dizer, não tem nada a ver – e disso Freud se apercebeu – não tem nada a ver com a verdade. Entretanto, é preciso dizer que crer já é alguma coisa que... que existe (LACAN, 1977/inédito, Aula de 18/04/1977). Crer dizer a verdade, falar vizinho do verdadeiro, cria uma vizinhança com o Real. Pergunto-me se aqui não poderíamos pensar a noção de vizinhança, no sentido matemático. Pablo Amster no seu livro A matemática no ensino de Lacan nos explica que a ideia de vizinhança considera a função de homeomorfismo (bijetiva, contínua e as invariantes topológicas) a qual preserva a estrutura do espaço. Com isto, ele define e diferencia o conjunto aberto e o conjunto fechado (AMSTER, 2002, p, 17 e ss). Será então que o verdadeiro que o analisante crê dizer e que ele ignora não nos permitiria pensar como se avança além da verdade? Será que por aí, sendo um conjunto aberto o campo de forças não permite que o forcing ganhe operância? Precisamente e porque a seguir – Lacan se refere à lalangue – convoca-nos a ouvir o equívoco, ele diz como fez dessa noção índice do real: ferrer, faire – real, convocando a ler no que se escuta o fazer real, o ferrar no sentido de selar, pôr ferros. Quer dizer, fazer da lalangue não toda, isto que faz real. E por essa razão o delírio freudiano teria sido o nódulo traumático. Não há nenhum nódulo, mas apenas um furo. Porque o trauma é o furo (trou), e nesse furo a pulsão turbilhona. Então, l’outra cena (l’autre scène) é obscena (obscène), quer dizer, é a obscenidade que enquadra a cena fantasmática em resposta ao traumático, ao trou. O significante em sua novação é, ao mesmo tempo, de-novo e novo. Ele conta com a invenção e com a variété (entre a verdade e as varidades) do sintoma. Nessa prática de palavra que é a psicanálise, a lalangue se alonga (e-langue) e se estica; se dobra e faz do inconsciente um saber pelo qual o analisante diz a variété de seu sintoma no que ele crê dizer, vizinho ao verdadeiro. Nisso ele pode sonhar, porque dorme. Contudo, para Lacan o despertar é o real à tiquê. E é nesse despertar que ele localiza o forcing. O despertar é o real que se escreve à força. Se a verdade desperta ou não, isso depende do tom com que ela se diga. A poiética violência se evoca no contraponto tônico, na sua modulação. Aí o forcing permite fazer 62

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Atualidade da clínica

soar outra coisa, outra coisa que o sentido olímpico. Isto significa dizer que, pelo forcing, o que soa e consoa é a fonação da lalangue, sua jaculação, e pode permitir ir além do gozo-sentido. Como se faz uma contrapsicanálise, uma psicanálise que vai contra a psicanálise do sentido (da hermenêutica)? Estão dadas as coordenadas nesses anos: chiffronnage, dobradura, forçamento da moterialité da palavra. Concluo com um aporte que nos traz Colette Soler no seu livro Lacan, lecteur de Joyce. Nesse aporte ela lê Lacan nos anos 1970 no que diz respeito ao sinthoma e ao dizer. “O sinthoma é a dit-mensão do dizer e especificamente do dizer que nomeia” (SOLER, 2015, p. 151). Sublinha com isto a dimensão do dizer e do desejo propondo o neologismo diresir (dire et désir). Esse desejo do analista que está em causa na sua função sinthomal, que do lado do analista convoca o dizer apofântico, esse dizer da função sinthoma evoca e provoca o dizer do analisante. O psicanalista nesta função deve ter a delicadeza de acompanhar, sem apressar, o trabalho analisante. Fazer produzir a letra do sintoma (sem h), isso leva tempo. Deixo aberta aqui a pergunta pela incidência da nominação na análise. Dito de outro modo: o que nomeia a função sintoma do analista? Tenho uma suspeita sobre essa nominação que transmite o “não há relação sexual”. Essa suspeita diz respeito ao final de análise – e em particular para aqueles que praticam a psicanálise – uma vez que considero que não é suficiente que o analisante tope com a “não relação” e que se precipite por esse encontro contingencial para sua saída, mas que saiba fazer aí com isso. Algo da nomeação sinthomal (analista – sinthoma) deve transmitir, deve ter o ar que transmita que se pode prescindir do pai com a condição de se servir dele. Talvez seja esse um modo de indicar o que se transmite do ato psicanalítico e do desejo do analista com o qual não há identificação, porque isto é singular e individual. Sustentar esse tempo do final de análise, isso também depende dessa função-sinthoma. E sabemos que este é um tema controverso e atual. Penso que isso pode afetar a clínica, nas suas dificuldades e na delicadeza que ela exige hoje.

referências bibliográficas BERTA, S. “Efeitos de um dizer na clínica e na Escola” In: Wunsch 15, jan. 2016. <http://www.champlacanien.net/public/docu/4/wunsch15.pdf>. HARARI, R. “La pulsión es turbulenta como el lenguaje” In: Ensayos del Psicoanálisis caótico. Barcelona: Des Serbal. Ed., 2004. LACAN, J. (1968). “Introduction de Scilicet au titre de la Revue de l’École Freudienne de Paris”. <http://www.ecole-lacanienne.net/bibliotheque.php>.                   . (1972-73). O seminário, livro 20: Mais ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

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BERTA, Sandra

. (1975) “Joyce, el Sintoma” In: El seminario, libro 23: El sinthome. Buenos Aires: Paidós, 2006, pp. 159-166.                   . (1975-76). O seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.                   . (1975-76) El seminario, libro 23: El sinthome. Buenos Aires: Paidós, 2006.                   . (1976-77). O seminário, livro 24: L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre. <http://www.ecole-lacanienne.net/bibliotheque.php>.                   . (1977). Palabras sobre la histeria (27/02/1977), Bruselas. <http://www. ecole-lacanienne.net/bibliotheque.php>. MILNER, J.-C. O amor da língua. São Paulo: Unicamp. Ed. 1987. SOLER, C. Lacan, l’inconscient réinventé. Paris: Presses Universitaires de France, 2009.                   . Qué es lo que hace lazo? Curso ditado no Colégio Clínico de Paris, 2011-12. Medellín, Colômbia: Associação dos Fóruns do Campo Lacaniano, 2015.                   . Lacan, lecteur de Joyce. Paris: Presses Universitaires de France, 2015.

resumo: Este texto trabalha a questão da direção do tratamento e o final da análise. Considerando as formulações de Jacques Lacan nos seus últimos seminários, em particular sua proposição do analista-sinthoma, visa diferenciar o alcance da sua proposta e as consequências na clínica e na Escola. A clínica psicanalítica se funda na palavra, sua materialidade (moterialité), visando ultrapassar o sentido dado pela ficção neurótica e levanta, para o que opera do psicanalista, questões sobre a nominação e a função do sinthoma.

palavras-chave: Psicanálise; analista-sinthoma; dizer; nominação.

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Atualidade da clínica

abstract: This text deals with the issue of the direction of the treatment and the conclusion of the analysis. Considering Jacques Lacan’s formulations in his last seminars, in particular, his proposition of the analyst-sinthome, the paper aims to differentiate the scope of his proposal and the consequences in clinical treatments and the school. The psychoanalytic clinic is founded on the word, its materiality (moterialité), in order to overcome the meaning of neurotic fiction and raise, for what operates from the analyst, questions about the nomination and the function of the sinthome.

keywords: Psychoanalysis; analyst-sinthome; saying; naming.

recebido: 15/08/2016

aprovado: 12/09/2016

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A análise é o que se espera de um psicanalista1 Sol Aparicio O texto de apresentação destas jornadas conclui com o enunciado de um anseio que compartilho: “que a psicanálise seja possível para as gerações futuras”, e, logo em seguida, precisa oportunamente: “que já estão aqui”. É certo que o futuro se encontrará ainda “verde”, imaturo a cada momento acabado. Quanto mais presente estou no que estou, mais me aproximo do que está por vir. A relação do sujeito com o tempo e com seu tempo é algo que a experiência psicanalítica modifica de maneira decisiva. (Lembro que esse foi o tema de uma das Jornadas Europeias do Campo Lacaniano organizadas pelo Fórum de Madrid na década passada). Essa conclusão, que sem dúvida representa para os analistas um desafio cotidiano, expressa um modo de relação com o tempo e com os tempos que nos remete à ética própria do discurso analítico. O oportuno “que já estão aqui” vem nos dizer que, para que a psicanálise seja possível para as gerações futuras, temos que fazê-la presente aqui e agora. O que supõe que saibamos o que ela é. Algo menos fácil do que possa parecer, pois realmente saber isso, cabalmente, implica um saber não sabido que deve ser traduzido em ato. Vai-se sabendo, diria eu, o que a psicanálise é. Vai-se sabendo na medida em que se vai praticando-a e na medida em que a análise deixou algo aberto. Penso no que disse uma vez, em 2011, durante a homenagem a Lacan organizada por nossa Escola, seu discípulo Jean Oury, psiquiatra e psicanalista, célebre na França: “a análise é um processo aberto”. Com efeito, o que no sujeito se transforma com a experiência do inconsciente, experiência na qual consiste uma análise, deixa aberto algo que a prolonga, que permite que se prolongue, algo aberto de onde brota aquilo a que Lacan, em um dado momento, propôs chamar “desejo (de saber)”, com o “de saber” (LACAN, 1968-69/2008, p. 266) entre parênteses porque se trata simplesmente do desejo inconsciente propriamente dito. Pergunto-me se quando Lacan se dizia sujeito do discurso psicanalítico não se referia a isso, a esse vínculo estreito, íntimo com a experiência analítica que, uma vez iniciado, se prolonga orientando de maneira definitiva o curso posterior da existência. 1 Trabalho apresentado nas XVI Jornadas dos Colégios Clínicos do Campo Lacaniano – Laço social e sintoma (Madrid, 28/04/2016)

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APARICIO, Sol

Todo leitor de Lacan já pôde se dar conta de que ao longo do seu ensino, sua maneira de entender e conceber a psicanálise foi se modificando conforme iam avançando em sua experiência como analista, sua reflexão sobre a psicanálise e a permanente exigência de formulá-la em termos que permitissem dar conta dela, não só dentro, mas também fora do campo da psicanálise. O que a psicanálise é hoje para nós e também o que ela não é, o que deixou de ser, se deve, em grande parte, à obra de Lacan. Gostaria de falar disso um pouco aqui hoje, de modo inevitavelmente resumido.

“A análise é o que se espera de um psicanalista” Das múltiplas definições que Lacan pôde dar, esta frase, espécie de obviedade que não deixa de ter humor, talvez seja a mais certeira. É o tipo de resposta contundente que se dá a quem faz uma pergunta inoportuna, impertinente, para que não se continue perguntando, dando como certo que deveria sabê-lo, ou, inclusive, que já se sabe, talvez sem saber que se sabe, em que mais vale não evitá-lo para que ele possa descobri-lo por si só. Há nessas palavras um convite para “pensar a psicanálise”. Imagino que Lacan gostava dessa frase, porque entre 1955 e 1970 ele a repetiu em ao menos três ocasiões.2 Com ela, fazia alusão à especificidade da psicanálise como a formação que exige o poder operar em nome próprio, deslocava a possibilidade de dizer o que é a psicanálise fazendo-a depender do que é um psicanalista. Porém, como este não é senão o resultado de uma análise, voltamos à pergunta inicial. Começarei colocando-a em relação com uma frase posterior que remete explicitamente ao que a psicanálise não é: na prática psicanalítica não se trata de “ terapeutizar o psíquico”. De que se trata, então? A análise é uma prática, repetia Lacan. Uma prática da palavra cuja particularidade é que ela ocorre sob transferência. E como a transferência é um fenômeno essencialmente vinculado ao desejo, essa particularidade significa privilegiar o lugar central que o desejo ocupa na transferência. Recordemos que Freud falava mais de pulsão, de libido, de voto, esse Wunsch alemão que Lacan situava entre demanda e desejo. O conceito de desejo, ainda que, com razão, o consideremos freudiano, Lacan o tomou emprestado de Espinoza. Ao privilegiá-lo, Lacan colocou em relevo, com uma deliberada ênfase, a correspondência, a coerência existente entre a psicanálise de Freud e a ética de Espinoza. (Abro parêntese para assinalar que acaba de ser publicada em francês uma Correspondência entre Espinoza e Freud. São dezesseis longas cartas trocadas entre ambos, no final de suas vidas, em que eles se questionam e discutem so2 Cf. “Variantes do tratamento padrão” (Escritos), O seminário O ato analítico e O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. 68

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A análise é o que se espera de um psicanalista

bre suas respectivas doutrinas e compartilham, entre outras coisas, o entusiasmo pelo Colóquio dos Cachorros (1613) de Cervantes. O desejo intervém na “operação” que cada analista tem que realizar com cada um daqueles que vêm se consultar com ele. Lacan frequentemente se referia à “operação analítica”. Costuma-se falar de operações matemáticas, lógicas, cirúrgicas e inclusive militares; trata-se sempre de uma ação que obedece a certas regras a fim de obter um resultado específico. Ao dizer que a análise é uma operação, estamos dizendo tudo isso e, ao mesmo tempo, indicando que a responsabilidade cabe ao analista. A operação que é lhe confiada consiste, segundo Lacan, em “uma conversão ética radical, aquela que introduz o sujeito na ordem do desejo” (LACAN, 1965-66/inédito, Aula de 05/05/1965). Quando, pela primeira vez na história da psicanálise, Lacan empreendeu a tarefa de estabelecer, a partir da experiência freudiana, uma “ética da psicanálise”, uma ética que respondesse ao único imperativo formulado por Freud, “onde o isso estava, deve advir o eu” demonstrou que a ética da psicanálise é uma é uma ética do desejo. Mais adiante, definiu a ética relativa ao discurso analítico como um “dever de bem dizer ou de encontrar-se no inconsciente, na estrutura”, o que não se faz sem o desejo (de saber). Este dever de bem dizer corresponde primeiro ao analista, é a condição para que ele possa operar a conversão radical citada acima. A análise é, pois, uma prática cuja operação essencial é de ordem ética. Desde o início dos estudos freudianos, a análise foi uma prática particular cujo recurso à palavra sob transferência a distingue das demais. Vivemos (graças a ou por causa da ciência e do capitalismo) na época da comunicação, da proliferação dos chamados meios de comunicação de massa, época caracterizada por uma abundância e profusão de palavras que contrasta com o uso discreto que dela se faz em análise. Muito embora seja certo que o analisante fale e diga muitas coisas, não é menos certo que ele recebe, da parte de seu analista, respostas concisas lacônicas, escassas. Esse traço de discrição, próprio da interpretação analítica, a opõe de maneira evidente à mania contemporânea de interpretar e dar sentido a tudo que ocorre, mania que se deve ao que Lacan qualificava como psicologismo. O analista me parece hoje o único que sabe se abster de interpretar. (Algo nada surpreendente, visto que reconhecendo o poder e o alcance da palavra, a análise ensina a falar e a calar). “Não se deve intervir a não ser de maneira sóbria e, de preferência, eficaz”, disse Lacan durante uma conferência dada à imprensa,3 precisamente, recordando que convidava os analistas a serem “rigorosos”.

3 Entrevista concecida por Jacques Lacan à Agence Centrale de Presse de Paris, em 29/10/1974, por ocasião da conferência “A terceira”, que foi proferida em Roma.

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Este rigor nada tem a ver com a severidade, não é nada além de outro modo de nomear o dever de bem dizer. É uma exigência, tanto ética quanto lógica, que orienta o modus operandi do analista, sua maneira de proceder.4 A ela podemos dizer que responde a distinção estabelecida no começo e sempre mantida por Lacan, como uma bússola entre o simbólico, o imaginário e o real. Se a interpretação analítica distingue-se das outras, das interpretações que poderíamos chamar de subjetivistas, fundadas na inveterada tendência humana a “abundar no sentido”, é porque leva em conta o real, o “fora de sentido”. Para não correr o risco de que a interpretação careça de efeito de incidência no sintoma, é preciso que o analista “renove o sentido”, dizia Lacan (1971-72a/2011, Aula de 17/05/1972), porque o sentido não faz senão “alimentar” o sintoma (LACAN, 1974/inédito), nutri-lo. Às vezes, acontece de atendermos pessoas que se apresentam interpretando sem cessar tudo o que fazem e que lhes acontece. Fica difícil para elas entrar em análise. Antes que possa surgir qualquer autêntica pergunta, o sujeito lança mão das interpretações que o discurso comum lhe proporciona, interpretações prêt-à-porter, impedindo, assim, a necessária “histerização”, esse questionamento dirigido ao significante mestre que visa a um saber. Em uma das conferências sobre “O saber do psicanalista”, Lacan (1971-72b/inédito, 04/11/1971) observava que, para ser recebida, a interpretação requer trabalho. Por parte de quem? Por parte do analista, requer um trabalho comparável ao do alfaiate: fazer uma interpretação sob medida de cada analisante. Por parte do analisante, supõe que ele tenha aceitado submeter-se à dura regra da associação livre e deixar-se surpreender pelas formações do inconsciente. Isso implica que mais além de sua legítima demanda de ver-se liberado do que padece, o sujeito deseje saber, saber de onde vem, saber por que, o que é esse padecer... Se, como dizia Lacan nos anos 1950, “a psicanálise não é uma terapêutica como as outras” (LACAN, 1953/1998, p. 326), é porque leva em conta esta relação do sujeito com o saber inconsciente que a transferência põe a descoberto. É por isso que seus efeitos não são só terapêuticos; a análise produz o que chamamos de uma ganância de saber, e para isso aponta primordialmente. A relação com o saber não sabido do inconsciente, que é um saber sem sujeito, é a que dá à transferência seu pleno sentido. O sujeito analisante transfere para o analista esse saber. Ao fazê-lo, atribui ao saber um sujeito que, ao mesmo tempo, atribui esse saber ao analista, supõe que o analista sabe, faz dele um “sujeito suposto saber”, apesar do fato evidente de que o analista começa não sabendo nada 4 Semelhante “exigência” só pode vir da referência ao real, que concerne tanto a ética, como a lógica. A ética, segundo Lacan, encontra seu centro no real: no problema do mal; no do gozo, que para os seres que falam torna impossível a relação entre os sexos; no que não se pode dizer. Quanto à lógica, Lacan a definia não como uma razão, mas como ciência do real. O ato analítico inaugura, dizia ele, uma ética particular que obedece à lógica.

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do analisante. É útil recordar isso, pois esta ignorância, reconhecida e assumida pelo analista, é o que torna possível que cada análise possa ser uma experiência original, como foi para Freud em seu começo, guardando as diferenças, porém seguindo seu exemplo. “Seus efeitos não são só terapêuticos”. Acaso, então, tampouco o são seus fins? A finalidade do dispositivo inventado por Freud foi, em primeiro lugar, tratar os sintomas com os quais a medicina de seu tempo não sabia o que fazer. Daí que se tenha podido chamar “terapêutica”, nome que a medicina dá ao tratamento das enfermidades. Como esquecer esse laço original, no sentido próprio de origem, entre a psicanálise e a medicina, que passa pelo sintoma? Freud recordava frequentemente, que no início a psicanálise se dedicou a tratar de compreender as enfermidades nervosas para superar a impotência da medicina diante delas e poder curá-las. Essa impotência, a medicina devia à sua ignorância do “fator psíquico’, que lhe impedia “todo acesso aos segredos das neuroses” (FREUD, 1924/s.d.). Fazendo desse fator até então esquecido seu objeto próprio e mantendo-se estritamente vinculado à clínica, a psicanálise, “última flor da medicina” (LACAN, 1975/inédito), foi se convertendo em outra disciplina, em outro discurso. Curiosamente, um século depois, em nome de uma suposta cientificidade, pretende-se poder ignorar a existência do dito “fator psíquico” que, de fato, retorna, como o recalcado, sob formas às vezes extravagantes. (Assim, por exemplo, em uma entrevista recente, um grande especialista das neurociências aplicadas ao cérebro, aconselhava ao público a praticar a meditação). A relação da psicanálise com a ciência é uma questão problemática. (Bem viu Ortega naquele artigo intitulado “Psicanálise, ciência problemática”). Para Freud, seu inventor, a psicanálise era um método científico de investigação dos processos psíquicos inconscientes, método do qual derivavam uma terapêutica e uma teoria fundada nessa experiência. Freud esperava e aspirava dar um caráter científico ao seu descobrimento, a fazer da psicanálise uma ciência. Ele extraiu da biologia e da física de sua época boa parte dos conceitos e noções de sua doutrina. Para ele, a psicologia fazia parte das ciências naturais, e a psicanálise se distinguia dela por sua hipótese do inconsciente. Diferença fundamental, que segue vigente. A classificação das ciências hoje em dia não é a mesma. Costuma-se classificar a psicologia como uma das chamadas “ciências humanas” e a biologia entre as “ciências da vida”, denominação que seguramente entusiasmou Freud, que falava de uma vida psíquica e considerava necessário “reintroduzir o psíquico na estrutura da vida”. Que dizem a esse respeito as ciências de nosso tempo? Como traduzir atualmente essa “reintrodução do psíquico ? A referência à “psique” coloca sempre o problema da relação entre a alma e o corpo, eterna pergunta diante da qual a ciência parece ter que ceder o lugar à

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filosofia ou à religião. A resposta de Lacan a essa velha questão consistiu em tirar as consequências do fato de que o próprio animal humano é ser falante, ser um “corpo falante”, isto é, sujeito de um discurso cujo suporte é o corpo. O psíquico, se quisermos evitar nos remetermos à existência de uma alma, não pode designar nada mais que os efeitos de lalangue, essa que chamamos materna, sobre o corpo do ser falante, ou, melhor dito, sobre “essa relação perturbada com o corpo próprio corpo que se chama gozo” (LACAN, 1971-72/2011, Aula de 12/01/1972). Lacan não compartilhava do ideal cientificista de Freud e acabou considerando que Freud “pensava que fazia ciência”, porém o que estava fazendo era “produzir uma prática” (LACAN, 1975/inédito). Nem por isso ele deixou de se interrogar sobre o estatuto científico da psicanálise e se referir a, e apoiar-se nos saberes científicos de seu tempo (a antropologia e a etologia, a linguística, a lógica, a física, as matemáticas e a topologia). Ainda que terminasse afirmando que a psicanálise não é uma ciência (exata),5 manteve sempre a exigência de recorrer à formalização matemática, necessária para poder teorizar e transmitir o saber extraído da prática, porque a existência da psicanálise depende da dita transmissão. Essa prática inaugurada por Freud é o que ele, Lacan, formalizou como um novo discurso, que definiu do seguinte modo: “O discurso que digo analítico é o laço social determinado pela prática de uma análise”. (“Laço social” é, agora, uma noção já trilhada. Em Lacan pressupõe-se que entre os seres que falam os laços são sempre “laços de discurso”, quer dizer que estão determinados pelo tipo de relações que estabelecem entre si os quatro termos a que Lacan reduziu a estrutura de cada discurso: sujeito, significante mestre, saber e objeto a, segundo o lugar que cada um ocupa). A psicanálise não é uma ciência, mas um novo discurso, fundado na prática de uma análise. O que significa reconhecer na relação entre o analista e o analisante o valor de um novo tipo de laço social. Isso traz consigo o abandono da perspectiva médica e terapêutica e, por consequência, o de toda uma série de noções como as de paciente, enfermidade, cura, tratamento, saúde mental, patologia e normalidade, que, dentro do discurso analítico, carecem de sentido. Traz, pois, consigo também a necessidade de questionar nosso recurso ao diagnóstico. Questão esta que me parece fundamental. Podemos, pois, entender o que se espera de um psicanalista levando em conta o dito sobre a especificidade da experiência analítica. Espera-se de um psicanalista outra coisa que de um médico ou um terapeuta, dado que sofrer de um sintoma e desejar saber porquê, de forma alguma, significa 5 V. “Abertura da sessão clínica em Vincennes” (05/01/1977) e também “O momento de concluir” (15/11/1977).

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que a neurose seja uma enfermidade. (Os médicos sabem disso, percebem que alguns de seus pacientes, apesar dos sintomas corporais que os afligem, não estão enfermos e lhes sugerem “ir falar com alguém”). Desejar saber o que pode haver para além do sintoma manifesto, a que remete, ponto de partida da análise, não é o mesmo que querer calar o sintoma com remédios ou querer corrigir ou reeducar os distintos transtornos e comportamentos que esse sintoma ocasiona. A neurose não é uma enfermidade, e a psicose tampouco o é. O sofrimento que a acompanha é a expressão de um gozo ignorado que a elaboração do sintoma pelo trabalho do analisante reduz. A neurose é algo da ordem de uma pergunta, dizia Lacan, uma pergunta em suspenso, em espera de resolução, que o sujeito encarna, em carne viva. O que a psicanálise oferece a esse sujeito é a possibilidade de converter-se por um tempo em analisante, algo que nada tem a ver com ser um enfermo, um paciente ou um cliente. A psicanálise não se ocupa de nada mais do que de sujeitos, enfermos ou não, já que é como sujeitos do inconsciente que entrarão no discurso analítico. Não existiria a neurose se o ser humano não fosse um corpo falante afetado pelo inconsciente. Isso é algo que se possa “terapeutizar”, isto é, que se possa tratar para ser curado? Pode-se “terapeutizar o psíquico?” Volto a esta expressão que citei no começo. Lacan a inventou em 1977 para responder de maneira literal a seguinte pergunta: “As psicoterapias não valem a pena?” Sua resposta foi: “Com certeza não, não vale a pena terapeutizar o psíquico. Freud também pensava assim. Pensava que não havia o que curar. Não se trata nem de sugerir nem de convencer”. O que a psicanálise oferece é de outra ordem. Nas palavras de Lacan: “Certamente, a psicanálise permitiria esperar pôr às claras o inconsciente do qual se é sujeito”. É uma frase comedida, nem sugere, nem pretende convencer. De fato, é seguida por algo mais: “Cada um sabe que não incito ninguém (a analisar-se), ninguém cujo desejo não esteja decidido”. Isto é, a decisão é incumbência do interessado, depende do que costumamos chamar a escolha do sujeito, outra maneira de dizer que é uma questão de desejo próprio de cada um. Ainda que haja analisantes entusiasmados que acreditam no contrário e querem que o próximo se análise como eles fazem, certo é que não se pode receitar a análise. “Não se trata nem de sugerir, nem de convencer”. Trata-se, dentro desta nova modalidade do laço social, de achar uma resposta para essa pergunta inconsciente que o sujeito encarna. Sem dúvida, podemos considerar, na medida em que a análise conta com os efeitos da elaboração analisante sobre o sintoma, que conserva uma finalidade terapêutica. Porém, para dizer a verdade, ao separar-se da medicina e fundar um novo discurso, deixou de ser uma prática terapêutica para converter-se no que Lacan chamava de a “experiência do inconsciente”.

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Tal experiência transforma o sujeito, modifica radicalmente sua relação consigo mesmo, com os demais, com o que costumamos chamar de mundo, e também com o imundo [inmundo].6 Não faltam testemunhos a esse respeito. (Há aqueles que dizem que leva muito tempo. Não necessariamente. Uma análise não dura nem mais nem menos do que quer o interessado, o analisante. Há os que vão embora ao final de um dois anos, outros ao final de quatro anos. Alguns dirão que a análise não chegou ao fim. Pode ser que não. Porém terá sido uma experiência de análise. Por que não apostar nisso?) Tradução: Elisabeth da Rocha Miranda Revisão da tradução: Cícero Oliveira e Dominique Fingermann

referências bibliográficas FREUD, S. (1924). “Breve compêndio de psicanálise” In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. I – Versão eletrônica. Rio de Janeiro: Imago, s/d. LACAN, J. (1953). “Variantes do tratamento padrão” In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.                   . (1968-69). O seminário, livro 16: De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.                   . (1965). O seminário, livro 12: Problemas cruciais para a psicanálise, inédito.                   . (1971-72a). Le séminaire, livre 19: ...Ou pire. Paris: Seuil, 2011.                   . (1971-72b). Le séminaire Le savoir du psychanalyste, inédito.                   . (1974). “La troisième”, inédito (Conferência proferida em 01/11/1974).                   . (1975). “Conferência na Universidade de Yale”, inédito (Conferência proferida em 24/11/1975).

resumo: “A análise é o que se espera de um psicanalista”: das múltiplas definições que Lacan pôde dar, essa talvez seja a mais certeira. Ela precisa, com humor e rigor, a especificidade da psicanálise, fazendo-a depender do que é um psicanalista, ou seja, da sua formação, que não é senão o resultado de uma análise.

6 V. J. Lacan , “A terceira”

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A análise é o que se espera de um psicanalista

palavras-chave: Desejo de saber; ética do discurso psicanalítico; imundo.

abstract: Out of the multiple definitions Lacan is able to provide, “Analysis is what is expected from a psychoanalyst” is perhaps the most accurate. With humor and rigor, it needs the specificity of psychoanalysis, making it depend on what a psychoanalyst is, that is, on his/her qualification which is nothing but the result of an analysis.

keywords: Knowledge desire; ethics of the psychoanalytical discourse; inmundo

recebido: 15/08/2016

aprovado: 12/09/2016

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ensaio



A propósito dos discursos Frédéric Pellion “Se em parte alguma do Outro é possível assegurar a consistência do que é chamado verdade, onde está ela, a verdade, a não ser naquilo a que corresponde a função do a?” (LACAN, 1968-69/2008, p. 24) A escrita esquemática dos chamados “quatro discursos” – tal como a encontramos, por exemplo, no anexo de “Radiofonia” (LACAN, 1970/2003, p. 447) – pode parecer demasiadamente bela para ser verdadeira.1 Sua arquitetura simétrica dá a ideia de uma descrição completa, de uma ordem imutável, uma totalidade acabada. Quase de uma “visão de mundo”, como dizia Freud – para desconfiar disso. Assim como o quadro doma o olhar – lembramo-nos do desenvolvimento de Lacan sobre esse tema em Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (LACAN, 1964/1988) –, esse aspecto de sistema, em que todos os casos parecem previstos desarma um pouco o pensamento; discretamente hipnótico, ele convida à paráfrase, quando não se trata apenas de pura e simples imitação. Mesmo que Lacan tenha sido tão exigente, como de costume ele é consigo próprio, nesta parte de seu ensino, isso faz com que tudo seja bem possível – nem sempre voluntariamente, aliás – se fazer uma leitura desonesta disso, com relação a Lacan e, sobretudo, com relação à coisa analítica. É preciso, portanto, partir novamente das questões para as quais essas escritas buscam trazer uma resposta. E isto se correndo o risco de aumentar a complexidade, até mesmo a opacidade, do discurso de Lacan. O que, no fim das contas, talvez não seja tão grave. Pois sustento que é dessa complexidade, e em nosso afrontamento a essa opacidade – opacidade que certamente não se encontra no mesmo lugar para cada um – que o ensino de Lacan pode nos ajudar – como ele próprio nos incitava – “a pensar a psicanálise, apesar disso [pourtant]” (LACAN, 1969/2003, p. 373, sublinho o “apesar disso” [pourtant] na medida em que ele remete à divisão do ana lista – já que seu ato, por sua vez, não procede do pensamento). 1 Texto ampliado da conferência pronunciada em 11 de junho de 2016 a convite do Seminário clínico de Beirute, que se tornou o Fórum do Líbano.

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Muitas vezes, é de forma enviesada que Lacan enuncia a complexidade da coisa analítica. Tomemos disso um exemplo um pouco exterior – embora... – ao que é nosso propósito aqui: o da “teoria da falta”, cujo projeto abre o seminário sobre A relação de objeto. A falta é o mais seguro denominador comum da experiência dos sujeitos neuróticos; ela é, assim, o sujeito, no sentido original do fundamento, do discurso sustentado em análise. A partir da lição de 12 de dezembro de 1956, Lacan vai ali representar os avatares da falta de objeto2 num quadro que ele iria completar, pouco a pouco, até março de 1957 (LACAN, 1956-57/1995, pp. 59, 199, 216). Ora, os arranjos de três em três (falta, objeto, agente) dos três registros (real, simbólico e imaginário) são possivelmente em número de 3! = 6. Os três arranjos mantidos por Lacan em seu quadro, ou seja, privação, frustração e castração, somente abarcam, portanto, a metade das combinações possíveis. A tipologia desses três avatares da falta de objeto procede, portanto, de uma seleção, que tende a fazer esquecer as combinações intermediárias, ao passo que são elas que não apenas sustentam, mas animam – mas, certamente, apenas se nos dermos ao trabalho de reconstruí-las – a construção de conjunto; e isso do lugar de ser, ora elididas, ora sintomáticas, como mostra, por exemplo, o encaminhamento de Lacan acerca de “a dialética da frustração” (Ibid., pp. 59-75). Uma dessas combinações suplementares, possível, mas esquecida pela apresentação sistemática dos quatro discursos, é aquela que Lacan utilizou, uma única vez, para falar do discurso do capitalismo. Voltarei a isso ao terminar, mas, por ora, guardemos somente que os discursos estabelecidos por Lacan são aparentemente apenas uma pequena parte das possibilidades que o real oferece.

De um contexto Entre 1968 e 1970, Lacan fez, então, três anos de seu seminário girarem em torno desses quatro discursos. Digo “girar”, pois me parece que Lacan não faz desses discursos Ideias reais; e que as apresentemos, a posteriori, como uma teoria acabada, não impede que aquilo de que Lacan procura falar, durante esses três anos, seja, antes de tudo, “teoria psicanalítica”. Isto é, daquilo que poderia ser, já que fica entendido que o campo de noções como, por exemplo, “Outro”, “sujeito” ou mesmo “desejo”, ultrapassam amplamente os invólucros do indivíduo concreto, uma metapsicologia geral. Devemos, então, conservar desses três anos de seminário – e, portanto, dos chamados “quatro discursos” – mais do que aquilo que serve para Lacan dar ênfase ao modo singular de existência do discurso analítico? Vê-se também que a 2 Parece-me que a expressão “falta do objeto” que se encontra nas taquigrafias indica melhor a preparação, entre simbólico e real, do lugar que o objeto, com artigo definido, irá ocupar, do que o termo “falta de objeto”, mantido pela transcrição da Seuil. 80

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A propósito dos discursos

questão é também julgar se há uma psicanálise “aplicada”, e, caso sim, decidir quais são seus melhores pontos de aplicação à subjetividade da época. Os acontecimentos de maio de 1968 – manifestações estudantis e operárias, greve geral, eleições antecipadas e em seguida, depois de alguns meses, alertas econômicos em série – vieram interromper o curso previsto do seminário precedente, sobre O ato [psic]analítico. Nesse seminário, Lacan se propunha a desenvolver as razões de sua “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola” (LACAN, 1967/2003), na qual ele propõe à sua Escola o dispositivo do passe. Para o que nos interessa aqui, penso ser útil lembrar que a “Proposição...” de Lacan ficou muito longe de ser aceita unanimemente, inclusive dentro da Escola que ele havia fundado, com alguns outros, (apenas) três anos antes. Pois quando Lacan falaria da greve (LACAN, 1968-69/2008, pp. 11-25), por exemplo, aquilo que ele diz é também a interpretação da oposição de um bom número de analistas da sua EFP, como uma greve contra a efetivação de seu dispositivo. Enfim, nesse capítulo do contexto, preciso também mencionar a École Normale Supérieure, que, a partir de 1964, acolhe o seminário. Na época, ela era dirigida por Louis Althusser, eminente comentador de Karl Marx e ele próprio autor de uma teoria dos discursos. Os estudantes que assistem ao seminário são para alguns, inicialmente, para muitos, depois, jovens filósofos engajados, evidentemente sem nenhuma prática clínica, e para os quais o discurso de Lacan vai ter efeito, intencional ou não, de reorientar o desejo de ação da política – o que, em outros países da Europa, levou alguns desses mesmos estudantes a formas variadas de violência – com relação à psicanálise. É, pois, bem possível que a dita “teoria dos quatro discursos” tenha, de início, visado assegurar a singularidade do discurso analítico. Isto a fim de deslocar sua função tradicional quanto à formação dos analistas em duas direções: 1. a mudança da discursividade misturada, e por vezes confusa, de maio, e, 2. a conformação das aspirações ao engajamento concreto de uma certa classe intelectual.

Da cadeia significante ao par ordenado Lacan começa a primeira lição do seminário De um Outro ao outro (estamos, então, em 13 de novembro de 1968) mencionando sua eventual filiação à corrente estruturalista, a qual ele não reivindica, mas também não recusa. Em todo caso, ele declara que o ponto comum ao trabalho de alguns, muito diferentes, que se reconhecem, ou não, nessa suposta corrente, poderia ser “o levar a sério do saber [anterior] como causa” (Ibid., p. 14).3 Mas, ele precisa em seguida, o que deve ser levado “a sério” nesse saber anterior é, inicialmente, sua falha (Ibid., p. 15). 3 Acrescento à transcrição a palavra “anterior”, que se deduz de todo propósito ulterior de Lacan, bem como da taquigrafia. Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 33 p.79-99 novembro 2016

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Na sequência do seminário, Lacan escreve esse levar a sério por meio do “par ordenado S1 → S2” (Ibid., p. 55).4 A flecha sugere imediatamente o ordenamento diacrônico de S1 e de S2 que produz a chamada associação livre. Mas ela assinala também uma relação de implicação entre S1 e S2, congruente, aliás, com o que essa associação revela ser, na experiência, perfeitamente determinada. Em suma, S1 leva a uma consequência, que é S2. Nos anos 1950, este par ordenado levava o nome de cadeia significante. Ora, quando ele estava introduzindo a noção, em março de 1956, Lacan já precisava isso: “A cadeia dos significantes tem um valor explicativo fundamental, e a noção de causalidade não é outra coisa” (LACAN, 1955-56/1985, p. 205).5 Portanto, um dos sentidos da escrita S1→S2 é, pois, dizer que, se um significante convoca outro, esta convocação manifesta também a causa que faz derivar o segundo do primeiro. Um certo “logo”6 é, portanto, incluído de início em qualquer cadeia significante. Isto é, um embrião de conceito, já que o conceito, segundo Lacan, é sempre portador de uma postulação sobre a causa: “o conceito [seria] (...) um significante que comanda[ria] esse real de acordo com sua causação íntima”(LACAN, 1962-63/2005, p. 323). A partir de 1960, Lacan define o sujeito como “um significante é aquilo que representa [o sujeito] para outro significante” (LACAN, 1962/1998, p. 833, grifos nossos). O suporte desse “logo”, do conceito e da determinação da associação, é esse mesmo sujeito, o qual, nem que seja porque a causa é inconsciente, não se superpõe ao real. Eis então, situado muito rapidamente, o que significa para Lacan essa noção de “par ordenado” S1 →S2. Mas é preciso detalhar um pouco mais. O S1 é o primeiro significante. Certamente, não é o primeiro vagido, o grito primal, nem mesmo, sem dúvida, as primeiras lalações; mas o primeiro ato de 4 Guardarei para a sequência a consideração deste gráfico conforme a transcrição da Editora Seuil, embora Lacan tampouco rejeite escrever seu par ordenado com os símbolos da teoria dos conjuntos, <S1 S2>. 5 A expressão “cadeia significante”, como tal, só será utilizada por Lacan cinco meses mais tarde, em sua reescrita para A psicanálise (LACAN, 1957/1998 pp. 11-61), de sua conferência sobre “A carta roubada”, do ano anterior, quando ainda não estava apenas em questão a “cadeia simbólica” (LACAN, 1954-55/1985, p. 241 sqq.), Que Lacan fale inicialmente de “cadeia simbólica” e em seguida de “cadeia dos significantes”, e, por fim, de “cadeia significante” testemunha, a meu ver, que o significante seja distinto do símbolo antes que ele restabeleça seu poder determinante à sua colocação em cadeia. 6 Chamo atenção para o fato de que esse “logo” é precisamente a cláusula que Descartes, por vezes escreve, por vezes omite, entre seus “penso” e “existo/sou” (PELLION, 2014, pp. 41-46). Mas que é, escrito ou não, o epicentro da certeza. A escrita que Lacan proporá a partir de 1964 (Ibid., pp. 69 sqq.), ou seja, “Penso”: “logo existo/sou”, ressalta, aliás, que o “logo” é o verdadeiro objeto do cogito. Junta-se a isso a causa, na qual o par ordenado, S1ą S2, encontra seu princípio motor e um primeiro saber, ainda mais “anterior”, porque não é articulável para além do “logo”. Em suma, e inclusive quando ele liga “a noção de inconsciente” a “uma regra de pensamento que tem que se assegurar do não pensamento como aquilo que pode ser sua causa” (LACAN, 1968-69/2008, p. 13), Lacan confere a Descartes a paternidade da montagem que emparelha um “logo” a um Eu. É por isso que, sem dúvida, na lição de 11 de fevereiro de 1967 do seminário sobre A lógica da fantasia, ele identificava pura e simplesmente esse “logo” cartesiano… com o Ça freudiano. 82

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fala de um sujeito cuja intenção é de se significar, o “querer-[se-]dizer” (LACAN, 1958-59/2016, p. 48; LACAN, 1968-69/2008, p. 44-60) vai ao encontro do Outro enquanto lugar de um conjunto de regras discursivas já estabelecidas. De um saber anterior, portanto. Ora, o ser falante demanda à linguagem que o S1se baste a si mesmo, que signifique tudo (É, talvez aqui, nesse condicional, que se situa o ponto de interseção entre o “símbolo Φ” de “Subversão do sujeito…” (LACAN, 1960/1998, pp. 835-838) e o futuro S1 do Seminário 16). Mas ele não têm êxito nisso, pois sua natureza de significante o proíbe. O falante, então, o repete. Ele insiste. Nós estamos no ponto em que os dois níveis do grafo, chamado grafo “do desejo”, se separam um do outro: “O desejo se esboça na margem em que a demanda se rasga da necessidade” dirá Lacan (Ibid., p. 828). Mas essa insistência, como Colete Soler lembrou (SOLER, 2010, p. 258), ordena todo um discurso. O que não significa apenas comandar explicitamente, prescrever, mas também formatar – ser o princípio e o motor desse discurso. O S1 pode permanecer claramente identificado: como, por exemplo, “ideal comum de uma família, de uma classe, de uma nação” (FREUD, 1914/s.d.), o significante /mestre/ ele próprio (mas o que faz com que o mestre o seja?), quiçá para cada um, seu eu [moi]. Mas, geralmente ele paga com o recalque seu primeiro fracasso. Suas manifestações derivadas serão, então, inesperadas, e até mesmo estranhas, como são o objeto “raro e extraordinário” que, segundo Descartes (1646/1953, p. 728), põe em ação as paixões, ou ainda essas representações hiper-intensas” (FREUD, 1895/s.d.) suscetíveis de deixar doente e que foram o primeiro assunto de Freud (FREUD, 1890/s.d.). Mas, em todo caso, esse S1 vai misturar novamente as cartas do saber anterior.

Do saber à ciência Lacan batiza saber, S2, a distribuição, o agenciamento no Outro dos significantes já colocados em cadeia (LACAN, 1968-69/2008, pp. 44-60). É por isso que o “saber” é sempre “saber anterior”. Em 1895, Freud definia o trilhamento como o fluxo preferencial e permanente da quantidade do neurônio A em direção a B (FREUD, 1895/s.d.). O caráter orientado da associação, à qual Lacan, como acabamos de ver, dará tanta importância a seguir, já está, portanto, aí. Além disso, se ele é pensado a partir do trilhamento e da conexão, o saber não é de natureza fundamentalmente diferente, conforme seja consciente ou não. Nem, aliás, se for adquirido ou herdado. Esse saber determina o sujeito, ou, ao menos, sua “condição” (LACAN, 1958/1998, p. 555) – a ponto de, às vezes, comprometer sua própria existência.

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Pois S2 deixado a si mesmo não tem o que fazer do sujeito, e isso vale tanto para a psicologia coletiva como para a individual. Eis porque Lacan pode falar em “saber sem sujeito” (LACAN, 1968/2003, p. 372) a propósito do inconsciente, ao redigir, nesse mesmo ano de 1968-69, o resumo de seu seminário inacabado sobre O ato. O sujeito enquanto tal nasce da confrontação, diversamente ajustada, de um S1 com este S2. O dispositivo freudiano, e o analista que persevera na hipótese freudiana, deduzem o espaço dessa confrontação: “Os psicanalistas fazem parte do conceito inconsciente, posto que constituem seu destinatário”(LACAN, 1960/1998, p. 8487). Com efeito, a hipótese freudiana, que promete a elucidação do inconsciente, faz deste último, tanto um objeto quanto um S1 – mesmo se a estratégia do analista, claro, for de decepcionar pouco a pouco esta promessa (LACAN, 1961/1998, p. 594-595). Mas, então, objeto ou S1? Já assinalei essa ambiguidade há pouco, fazendo ficar lado a lado, na mesma frase, a representação hiper-intensa de Freud e o objeto novo de Descartes. Lacan já havia falado sobre isso dez anos antes, ao desenvolver a observação de que a metonímia, de forma contrária à metáfora, não supera a “barreira resistente à significação” (LACAN, 1957/1998, p. 499, e noto que se encontrará essa mesma barreira, duplicada, em cada um dos quatro discursos). E, com efeito, ao segui-lo, as conexões significantes, já ali no Outro, não sendo em si próprias portadoras de sentido, é preciso que o sujeito, para aí poder inserir libido, faça o desvio, por meio de sua demanda, de um objeto de que deve ser admitido no Outro que seja ser “demandável” (LACAN, 1957-58/1999), e que se encontre por isso inserido de início nas relações de coprodução das quais Marx não cessa de falar. Lacan chama tais objetos de “objetos metonímicos”. Seu processo é triplo: 1. eles compensam o “não sentido” [Sinn] que distingue a metonímia da metáfora por aquilo que se pode chamar de uma “não referência” (Bedeutung); 2. tomados em conjunto, eles edificam uma realidade a ser compartilhada; 3. por fim, eles conferem ao saber um fim, o de seu “conhecimento” (LACAN, 1958-59/2016, p. 108). Ora, a ciência contemporânea, enquanto experimental e matematizável, nutre essa ambiguidade. Com efeito, ela coloca em seu princípio o mandamento de sa7 É necessário, me parece, se referir à concepção lacaniana do conceito (cf. supra), para se entender a que ponto diferem, no espírito de Lacan, o inconsciente e seu conceito. O equívoco aqui recai sobre o en: “les psychanalystes font partie du concept de l’inconscient, puisqu’ils en constituent l’adresse”: trata-se de inconsciente? De seu conceito? Ou ainda Lacan não diz mais a passagem, pelo endereçamento, do inconsciente a seu conceito, o que significaria que o que ele chama de endereçamento é sempre demanda da causalidade?

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ber e o “unifica” (LACAN, 1968-69/2008, p. 29-43) em uma coleção de conhecimentos integralmente intercambiáveis, que são, a partir deste momento, demandáveis, e até mesmo exigíveis, como qualquer outro objeto metonímico. Lacan ressalta dois efeitos dessa universalização do saber pela ciência:

1. é certo que o saber pode ser produzido, mas pode também ser adquirido, sem um trabalho particular: ele é, pois, um ganho de contrabando, cujo preço não foi pago – eis algo de que teremos de nos lembrar ao abordar o discurso histérico; 2. nenhum domínio, inclusive os do inconsciente e o do gozo sexual, é, a priori, excluído do campo do saber.

Divisão entre saber e verdade Mas, e mesmo em tempos de ciência, o problema continua sendo que, desse saber, nada, fora do próprio sujeito, garante a consistência da verdade. “Não tenho nenhuma garantia de que esse Outro, o sistema do Outro, possa me dar aquilo que eu lhe dei – seu ser e sua essência de verdade” (LACAN, 1958-59/2016, p. 355, grifos nossos). Isso tem duas consequências: 1. por um lado, a de situar o saber, como produto finito “fora do campo do Outro” (LACAN, 1968-69/2008, p. 82); 2. por outro, o de um luto, sempre a ser refeito, “da” verdade, a qual, se fosse encontrada, objetivaria o saber. Ninguém está preparado para esse luto, e o sábio menos que qualquer outro. É por isso que seus impasses preparam a cama daquilo que Lacan em “A ciência e a verdade” designa como drama (LACAN, 1965/1998, p. 884) Georg Cantor, segundo ele, é um bom exemplo desse drama, que recentemente Erik Porge (2015, p. 125-129) retomou, para mostrar que as circunstâncias nas quais tal ou tal sábio “vai à loucura” (Ibid.) dependem ao menos tanto de sua atividade científica quanto dos acidentes de sua biografia. Seu argumento é o seguinte: a recusa da foraclusão em decorrência [de fait] da verdade vale para todos, mas Cantor aí se confronta sem escapatória, no momento em que, com o contínuo, encontra algo diferente do que ele procura. Para ser mais preciso, algo que entra em contradição com aquilo que ele busca, isto é, seu saber anterior e, do qual ele

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tem então que julgar se consente com ele ou o recusa.8 “A” verdade volta, então, no real, de fora, sob a forma de ideias delirantes... sobre a paternidade: peças de Shakespeare, como se sabe, mas também sobre Jesus Cristo, ou sobre ele mesmo. Fora do delírio, somente é possível se aproximar “da” verdade enviesadamente. “Há divisão entre (o) saber e (a) verdade” (Ibid., p. 856; p. 8789), dos quais Lacan tira a consequência para a psicanálise, nesses termos: “aquilo de que se trata[,] é admitir que nos é preciso renunciar, na psicanálise, a que a cada verdade corresponde seu saber” (Ibid., p. 883). A interrogação histérica, voltarei a ela, incide muito precisamente sobre o ponto desta divisão – tanto a do mestre, como a de cada um, ao(s) ponto(s) de seu(s) S1.

Do objeto a como a-substância e como saldo O objeto metonímico era também, e sem dúvida inicialmente, uma leitura clínica da plasticidade dos fenômenos libidinais. Nisso, ele seguia o fio freudiano da independência da pulsão e de seu objeto (FREUD, 1917/1989). Mas, ele prefigurava também aquilo que vai amplificá-lo e fazê-lo substituir, o objeto a. A transição de um para outro ocupa o essencial do seminário sobre O desejo e sua interpretação, em que Lacan se apoia, além da contingência do objeto, sobre a mistura de imperatividade, insaciabilidade e insatisfação que faz aquilo que é próprio do desejo. Essas características do desejo indicam que por trás de toda demanda, e por trás de todo objeto demandável, esconde-se ainda outra coisa, que seria o verdadeiro objeto do desejo. No final do seminário, Lacan produz uma primeira definição desse objeto: “O objeto a é o suporte que o sujeito se dá na medida em que ele falha” (LACAN, 1958-59/2016, p. 434). Essa falha do sujeito – que o objeto a recobre, portanto – pode ser concebida em duas direções: uma decorre dos impasses da dependência do sujeito à linguagem. Esses impasses, no fundo, declinam as recaídas sobre o sujeito do “nada há de certo” (LACAN, 1961-62/inédito, Aula de 21/03/1962) do qual acaba de tratar brevemente: a fala fracassa duplamente em estabilizar as relações que têm curso na linguagem, por um lado, e, por outro, em fixar a relação de referência.

8 Eis algo que esclarece rapidamente porque a ciência prefere tão frequentemente falar mais de descoberta do que de invenção. Na medida em que a primeira mantém a ficção de uma relação de saber com “a verdade como causa” (LACAN, 1965/1998, p. 889), identificada ao mundo sensível, “descobrir” é, com efeito, bem menos penoso, para o sujeito, do que “inventar”. 9 Os colchetes são ditados pelo fato de que os dois artigos definidos desaparecem na segunda ocorrência da expressão. Nessas poucas páginas, saber e verdade passaram, então, do estatuto de objeto ao de função.

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A outra direção diz respeito ao fato de que o desejo, assim como o gozo, se situa em um além do princípio do prazer. “O desejo [...] encontra seu cerne, sua proporção fixada, seu limite, e é em relação a esse limite que ele se sustenta como tal, franqueando o limiar imposto pelo princípio do prazer” (LACAN, 1964/1988, p. 35). É por isso que, tomado no sentido que Lacan lhe dá, ele ultrapassa sempre os limites da utilidade – de uso do objeto, em vista de um fim conhecido, quer esse fim seja de uso ou de troca. In fine, o objeto a permanecerá marcado pela ambiguidade entre mais e menos, que é a ambiguidade do próprio desejo. Ele é positivo na medida em que é “suporte” para o sujeito, isto é, tábua de salvação para seu enfrentamento com a verdade que não há. Mas, ao mesmo tempo, ele é negativo, na medida em que é por meio de sua ausência, sua falta, ou mais exatamente, por sua “cessão” (LACAN, 1962-63/2005, p. 340 sqq.) – cessão por meio da qual o sujeito se dá [essa falta] a si mesmo, ao mesmo tempo em que dá corpo à insatisfação da estrutura do desejo – que ele entra em função. “Asseguro-me daquilo que me falta – do objeto que eu teria perdido”. Ou ainda, em estilo cartesiano: “Eu o teria cedido, logo, sou/existo”. Ou: “Não serei/existirei sem tê-lo cedido!” É por isso, sem dúvida, que Lacan falará disso, em 1968, em termos de “saldo” (LACAN, 1967-68/inédito, Aula de 07/02/196810): o saldo se obtém ao se parar as contas e sem pré-julgar o ganho ou a perda... Mas isso supõe todo um histórico e extratos, que não se inscrevem sem o analista.

Do laço social, da economia e do modelo marxiano Eis, inventariados, os principais tijolos do edifício: S1, S2, →  e a, agente e verdade. No momento de iniciar a construção propriamente dita, a junção, Lacan faz uma longa referência a Marx: sem dúvida, efeito do contexto no qual ele fala – disse algumas palavras sobre isso há pouco –, para a invenção da mais-valia, claro – voltarei a isso – mas, inicialmente, porque ele se convenceu, há tempos, de que Marx aderiu bastante à “subjetividade de sua época” (LACAN, 1956a/1998, p. 322) para que seu pensamento fizesse disso o sintoma – tanto em sua consistência quanto em suas aporias. Essa época de Marx, ele declara, era de uma “absolutização do mercado” (LACAN, 1968-69/2008, p. 37), isto é, de uma contratualização generalizada; cada um está tomado aí, se preciso contra sua vontade, daí se encontra transformado em “sujeito da realidade econômica” (Ibid., p. 21). Observo que aqui se trata de um compartilhamento de natureza bem diferente da que Freud descrevia em sua “Psicologia das massas” (FREUD, 1921/s.d). Ini10 Exatamente a “saldo da operação psicanalisante”. Voltarei a isso.

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cialmente, porque ela é mais durável que as massas mais ou menos instáveis das quais fala Freud. Em seguida, porque, ao inverso da relação da massa freudiana com seu líder, essa organização é ainda mais coercitiva quanto, embora estritamente codificada, desconhecida pelos sujeitos que determina. E, por fim, e talvez principalmente, porque o arranjo discursivo do qual Marx fala modifica concretamente o mundo físico: pela influência que ele exerce sobre os corpos em presença, por um lado, pela repartição diferenciada do elemento material que este arranjo produz em lugar do saldo, e que Marx chama de “mais-valia” (MEHRWERT11).

O que é um discurso? Essas três características do capitalismo – estabilidade, desconhecimento e efetividade – vão se encontrar em cada um dos discursos isolados de Lacan. Mas Lacan, como acontece frequentemente, demorará para formular aquilo que coloca exatamente com o termo/discurso/. Será preciso esperar até 1972, e pela publicação de “O aturdito”: “[O discurso], eu o situo pelo laço social a que se submetem os corpos que abitaño” (LACAN, 1972a/2003, p. 47512). Não teria como ser mais claro, nem, aliás, mais fiel à fonte marxiana, trata-se do diálogo de cada um desses corpos com uma certa configuração linguageira, ao mesmo tempo em que sua agregação, e da modelagem de suas interações: “a referência de um discurso é aquilo que ele confessa querer dominar, querer amestrar.” (LACAN, 1969-70/1994, p. 65) O primeiro efeito desse programa dos discursos é uma “renúncia ao gozo” (LACAN, 1968-69/2008, p. 17). Isso significa, como Freud já havia amplamente desenvolvido (FREUD, 1930/s.d.) que os sujeitos que aí se “implicam” (LACAN, 1968-69/2008, p. 18) num discurso abandonam algumas de suas reivindicações pulsionais. Quanto a isso, todo discurso é proibidor, ainda que com uma nuance – é o sentido da palavra “renunciar” que traduz a Versagung freudiana – que essa proibição opera com o assentimento do eu [moi], exceto o do sujeito. Assim, o trabalhador assalariado julga mais certo abrir mão de uma parte do valor de seu trabalho para aquele que mantém a ele próprio, bem como a suas ferramentas. Aliás, Lacan completa esta definição observando que, dentro de cada discurso, o parceiro do casal sexual é escolhido para ser aquilo que encarna certa não re-

11 A mais-valia é definida por Marx como a diferença entre a remuneração do trabalho e do valor que este acrescenta ao valor de troca do produto final. Ela é idêntica ao excedente produzido pelo capital empenhado (MARX, 1965, pp. 511 sqq.). 12 O jogo de palavras visa Martin Heidegger, mas também o empréstimo que Lacan faz dele muitas vezes (por exemplo, LACAN, 1961-62/inédito, 02/05/1962) dessa ideia da linguagem-habitat: com efeito ali onde, para o primeiro, a linguagem é a “casa do ser”, o segundo sugere agora que não há ser, mas somente corpos.

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núncia (LACAN, 1968-69/2008, p. 11-25). Lacan dá um verniz à genealogia dos diferentes discursos com alguns nomes próprios: Licurgo, para o discurso do mestre; Carlos Magno, para o da universidade, e Sócrates para o da histérica (LACAN, 1970a/2003, p. 305 sqq.). Mas, cada um desses grandes nomes fez, à sua maneira e em seu regime próprio, escola, cujos ecos reverberam até nós. Esses diferentes discursos estão, portanto, copresentes no “discurso concreto” (LACAN, 1953/1998, p. 258-259). A meu ver, essa copresença deve ser remetida à divisão entre saber e verdade. Cada um desses discursos confere ao saber uma função diferente, mas a verdade, como lugar e como função, por sua vez, não se move de um discurso a outro. Na verdade, ela é sempre aquilo que, para preservar uma unidade de ação, o agente desse discurso deve negligenciar, esquecer, recalcar, e até mesmo foracluir. Assim, quando Lacan diz “nenhum discurso pode dizer a verdade” (LACAN, 196869/2008, p. 42), “nenhum” [nul] deles quer dizer nenhum [aucun] discurso particular, mas tampouco os quatro, ou cinco, tomados em conjunto. Contudo, os diferentes discursos se comunicam, e mesmo se esclarecem mutuamente: “O sentido (penso que aqui Lacan utiliza este termo no sentido pleno que ele pode ter como, por exemplo, em “fazer sentido”, em que se trata sempre de um “fazer sentido para”) se produz pela tradução de um discurso em outro” (LACAN, 1972/1998, p. 481).

Ambiguidades do discurso do mestre Ao menos três figuras do discurso do mestre se alternam nos desenvolvimentos de Lacan, conforme o S1 seja referido ao mestre antigo, ao inconsciente ou ao capitalismo. O par que o mestre antigo e o escravo formam, que procede de Hegel, prefigura, assim, o par ordenado S1→ S2, mas Lacan se interessa tanto, senão mais, pela maneira como o mestre extrai o saber do escravo do que pelo processo mítico da escravização. Sem dúvida, é por isso que Lacan cita com tanta frequência, no que diz respeito a esse par, o Menon de Platão. Em seu seminário sobre O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, ele já destacava como Sócrates, que pretende fundar um saber totalmente coerente, julga ele próprio um problema que coloca para o escravo a partir de um ponto de vista heterogêneo ao saber que se trata de fazer aparecer junto a este último. Esse ponto de vista é o da opinião verdadeira, da ortodoxa (LACAN, 1954-55/1985, pp. 24-29)e, notemos, Sócrates age nessa circunstância, a partir de uma posição de mestre. Mas, recorrendo a isso, talvez Sócrates dissimule, e talvez até mesmo dissimule para si próprio, o fato de que ele utiliza para a resolução do problema um elemento extraintuitivo – neste caso, – que, na época, é uma construção “científica”, que é impossível que ele ignore,

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mas muito improvável que o escravo tenha ficado sabendo. Esse elemento “tu” carrega, segundo Lacan, “a função criadora da verdade na forma nascente”, e lhe permite introduzir a tese segundo a qual todo saber só opera a partir de um ponto de verdade que ele “esquece” (Ibid., p. 30). 3. Que o inconsciente descreva uma variedade do discurso do mestre decorre diretamente da hipótese freudiana. Mas Freud não se contenta com a constatação de que o Isso é um dos mestres a que o eu [moi] serve; ele precisa que as satisfações substitutivas tomadas pelo sintoma são, em larga medida, desconhecidas pelo próprio sujeito (FREUD, 1917/1989), e só serão, talvez, trocadas por outras com a condição de serem elas próprias retomadas no dispositivo analítico. Há, pois, já em Freud a intuição dos desafios “econômicos”, diz ele, podendo objetar à passagem do discurso do inconsciente, variante do discurso do mestre, ao discurso analítico. Desafios que, como veremos logo mais, Lacan reconsiderará ao interrogar, em termos de mais-de-gozar, o produto próprio ao inconsciente. 4. Mas, segundo Lacan, não é bem o estado do discurso do mestre, ordenado pelo capital em posição de S1, que torna esse desafio mais claramente visível. Desafio que ele identifica com a mais-valia de Marx. Mas, identificação não é identidade, e me parece que o paralelo tem seu limite. Com efeito, Lacan não adere à afirmação de Marx, segundo a qual o desequilíbrio dos gozos serve em todos os casos à utilidade do mestre. Reformular Marx em termos de discurso é, aliás, também “implicar” aí, com partes iguais, tanto o proprietário quanto o assalariado e interrogar cada um dos dois sobre a satisfação que ele retira dessa implicação – a do primeiro é opaca, sublinha Lacan, e deve ser nuançada a apresentação do segundo, conforme a evidência de uma falta-de-gozar.

O mais-de-gozar modifica o valor do gozo? O “mais-de-gozar” é, portanto, a fórmula geral de Lacan para aquilo que produz um discurso. A palavra está formalmente calcada sobre o “excedente de trabalho” [Mehrarbeitt] e sobre a “mais-valia” [Mehrwer] – aliás, Lacan se diverte transcrevendo-a em alemão como Mehrlust. E a própria noção se inspira fortemente na conceitualização marxiana da produção como codeterminação do social e do real (DEKEN, 2013, particularmente pp. 87-90). O “mais-de-gozar” traduz o fato de que o gozo não permanece como “substância amorfa” (LACAN, 1968-69/2008, p. 44): ele assume, por exemplo, a forma tangível do rir, por meio do qual, no apólogo de Marx (1867, pp. 735-745) o capitalista pontua o discurso no qual se vangloria do serviço prestado a seu operário,

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colocando suas ferramentas à sua disposição (LACAN, 1968-69/2008, p. 61-75). Mas, a mais valia isolada por Marx, e na qual se efetua o capitalismo, é, segundo Lacan, apenas um caso particular – mesmo sendo especialmente eloquente – de mais-de-gozar. O objeto a enquanto “efeito de perda” (Ibid., pp. 125-134) específico da repetição fomentada pelo inconsciente – e do qual falta determinar melhor aquilo que as condições para que ele se isole devem ao discurso analítico – é outro. A meu ver, há aí uma primeira dificuldade que é preciso levar em conta: Lacan, que faz uso da escrita /a/ em cada um de seus quatro, ou cinco, discursos, a cada vez está falando de seu objeto a? Segunda dificuldade, correlativa à primeira: como acabamos de ver, Lacan fala ao mesmo tempo de “mais-de-gozar” e de “renúncia ao gozo”. Essas duas dificuldades exigem duas observações: 1. A tonalidade agradável com a qual a expressão “mais-de-gozar” colore o gozo parece contrastar com certas afirmações anteriores. Em particular aquela segundo a qual o gozo seria um “mal” (LACAN, 1959-60/2008, p. 215 e sqq.). Mas ressalto inicialmente que aquilo de que Lacan falava, no seminário da Ética, era de um uso direto da Coisa – apanágio, talvez, dos heróis trágicos, mas, em todo caso, “vedado a quem fala como tal” (LACAN, 19659-60/2008, p. 79; LACAN, 1960/1998, p.836). Em seguida, que o “mais-de-gozar” fala de um ganho sobre fundo de perda, sobras de um festim que não há. De uma formatação que é, ao mesmo tempo, passagem ao ser. E, por fim, que a topologia do além do princípio do prazer, na qual se inscreve o mais-de-gozar, supõe esse princípio colocado, e não é, portanto, o da relação imediata com a Coisa. Mais tarde, no mesmo seminário, aliás, Lacan terá uma fórmula que diz muito simplesmente essa dialética e esse temperamento: “O gozo decorre da distribuição do prazer no corpo ” (LACAN, 1968-69/2008, p. 218).O que equivale a dizer que ele tem a ver, antes de tudo, com norma e com os desvios dessa norma que o uso – os costumes – toleram... 2. Segunda observação, na qual se introduz a dimensão coletiva. Essa positivação provém, também, da “identificação objetivante” (LACAN, 1948/1998, p. 114), segundo a qual o gozo é sempre expropriado; esse é o princípio homo lupis homini, que, da luta de classes à concorrência de todos com todos, passando pela palidez agostiniana, faz o usufruto suposto ao outro, sempre superior ao seu próprio. Jamais em seu lugar legítimo, o gozo tortura o sujeito desse lugar mesmo, e perturba a organização de seus prazeres. Nesse sentido, “ele [o gozo] que não se deveria” (LACAN, 1972-73/1985, p. 81)

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A universidade desnudada pelo próprio capitalismo A universidade à moda antiga – a universidade medieval, certamente, mas também o liceu antigo – colocava o saber acima de tudo, e, em particular, fora das regras que regem o discurso do mestre. Daí seus privilégios com relação ao político. Daí também, a tradição da gratuidade, ou ao menos, da livre remuneração do ensino. Mas esse privilégios, claro, não faziam nada além de negar a dependência: da qual faziam sintoma a auctoritas dos Antigos, mas também, mais perto de nós, “a deslizada de tobogã do Panteão à Chefatura de Polícia”, de George Canguilhem (1956) que Lacan cita com tanto prazer (LACAN, 1965/1998, p. 874). Num certo momento, Lacan fala da forte crise desse modelo. Se ele ridiculariza, aliás, o restabelecimento geral à “unidade de valor” instaurada na volta das férias de 1968, na urgência dos acontecimentos de maio (LACAN, 1968-69/2008, p. 29-43) é que ele lê aí mais um sinal da extensão ao saber da absolutização do mercado. Essa inscrição do saber na contabilidade geral tem por efeito, segundo ele, que ele perde seu valor – entenda-se aí, ao mesmo tempo como valor particular e como valor absoluto (LACAN, 1969-701992/, p. 91-92) Pois não nos esqueçamos de que é o a que ele situa no lugar de outro, de interlocutor, e até mesmo do verdadeiro trabalhador da operação universitária (Ibid., p. 120 e 192): S2 → a. O que simplesmente significa que o saber não pode ser obtido sem levar o estudante a “uma consequência em que ele precise colocar algo de si” (LACAN, 1966/1998, p. 11), isto é, sem dividi-lo. Se este efeito-sujeito falta, não há ensino propriamente dito, o saber somente é adquirido e o tecnocrata que daí resulta (Lacan, claro, não emprega essa palavra, mas me parece, contudo, bastante apropriado dizer aquilo de que se trata) pode ainda mais ser suposto gozar do saber. Ele atribuirá a tese do saber-poder (LACAN, 1968-69/2008, p. 286-298), então, e legitimará, por exemplo, a figura do “biopoder”, imaginada por Michel Foucault (1976). Com relação a isso, Lacan reserva seu prognóstico: “É pelo gozo que a verdade resiste ao saber” (LACAN, 1967/2003, p. 357). O que pode querer dizer que o gozo singular de cada um faz objeção a toda tomada de poder do saber unificado. Mas também que ele espera outras manifestações da verdade no campo coletivo do saber. O ódio ao saber, que se espalha, poderia ser uma delas?

A histeria e, de novo, a ciência Para Lacan, Descartes, ao pôr em dúvida a “Escola” e a autoridade de seus mestres, intensifica a figura de Sócrates, o histérico. É certo que tanto um quan-

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to o outro “coloca[m] o mestre contra a parede de produzir um saber (LACAN, 1970/2003, p. 436). O que tem por efeito tornar o saber desejável enquanto tal, e preparar os “impulsos” (Ibid.) da ciência. Isso não se dá, como vimos, sem se maltratar a verdade, identificada com o resto dessa promoção à marcha forçada do indivíduo que questiona, e, portanto, ao dejeto sob o aspecto do qual, eventualmente, se apresenta o objeto a. Eis o individualismo, o relativismo, o capricho, e até mesmo o “narcinismo” (SOLER, 2012), os obstáculos fenomenais da histeria clínica. Colocar em destaque sua divisão pode produzir a psicanálise, mas a dificuldade da histérica em juntar-se a seu próprio desejo permanece. É como dizer que a histérica não é nem si, nem por si, analisante.

Um discurso sem fala Mas, como disse, o discurso psicanalítico permanece o assunto principal do seminário De um Outro ao outro e dos dois seguintes. No dia 13 de novembro de 1968, Lacan escreve no quadro a seguinte frase, que é em parte o frontispício do ciclo: “A essência da teoria psicanalítica é um discurso sem fala” (LACAN, 196869/2008, p. 11). Essa proposição misteriosa somente vai se esclarecer lentamente. Mas, uma vez situado o discurso analítico, constata-se que ele é, na verdade, um discurso sem fala, pois a, seu agente, não é linguagem, não fala e, por não ser intercambiável (LACAN, 1968-69/2008, p. 11-25; LACAN, 1968a/2003, p.368), tampouco pode ser falado. Mas, como pode esse objeto, em direção ao qual convergem as diferentes experiências da falta, agenciar um discurso? Com a condição, me parece, de que sua cessão, uma vez assumida como tal (cf. supra) tenha aberto a via ao desejo, e, assim, a uma satisfação que o sujeito poderá, finalmente, reconhecer como certamente sua. O discurso analítico é, portanto, agenciado, com todo o rigor, pelo estado particular a que o término da análise conduziu o mais-de-gozar. Ou seja, sem dúvida, ainda mais precisamente, para o analisado que se arrisca a manter sua posição analisante além do limite de sua própria cura (PELLION, 2015). Uma das formas dessa manutenção é a passagem à prática analítica. O analista, então, “faz as vezes de”, faz “semblante”13 dessa falta indizível ao sujeito. E desse lugar “lhe sustentar o tempo todo que ele não pode se reencontrar no tocante à causa de seu discurso” (LACAN, 1968-69/2008, p. 20). Mas, não poderia se tratar de troca entre o a do analisante e o do analista. Pois, 13 A colocação do semblante ali onde antes estava o agente, em 1970, leva em conta a impossibilidade irremediável de se dar conta por meio dos discursos, dos efeitos de verdade (LACAN, 1970-71).

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PELLION, Frédéric

se as desavenças do saber com a verdade estão no cerne do discurso analítico, e são até mesmo, com relação aos outros discursos, a marca eletiva dele, sua saída não é reproduzível. Vê-se, então, que se trata de algo diferente da hipótese do inconsciente como S1. Este último ponto é decisivo, pois, se toda análise, seja qual for sua orientação, produz S1, os efeitos que eles acionam,14 se não forem transferidos para a conta do sujeito, podem muito bem permanecer prisioneiros do prestígio da análise, do analista, e até mesmo do analista do analista (PELLION, 2012).

Retornos no real A flecha superior, como desenvolvi, designa a implicação constituinte da qual cada um dos discursos se funda. Ora, salvo no anexo que acompanha a primeira publicação de “Radiofonia”, em Scilicet (LACAN, 1970/2003, p. 447) Lacan não indica geralmente flecha inferior, flecha de retorno. Isso, me parece, indica a ausência de qualquer medida comum entre aquilo que produz o discurso e a verdade que ele deixa em suspenso. No lugar dessa verdade, o produto tem, portanto, o estatuto de um retorno no real. As crises esporádicas que os discursos conhecem, são bastante afins, me parece, a esses retornos: assim, a expansão do mais-de-gozar pode ser lida como um retorno no real da divisão subjetiva; a servidão voluntária dos “astudados”,da questão do mestre; a covardia neurótica e sua saída depressiva, do consentimento à desqualificação da verdade como dejeto; enfim, os impulsos em direção ao Um, ou ao menos em direção a essa “suficiência” (LACAN, 1956/1998, p. 479 sqq.) que, por vezes, torna os analistas surdos àquilo que, de sua época, lhes faz objeção, a inconciabilidade do saber e da verdade.

Continuar a dar dividendos no mercado15 Chegamos ao ponto. Uma última questão, todavia. Evoquei longamente a insistência de Lacan sobre “um discurso capitalista” e para referi-lo ao nome próprio de Marx. Ele declara, por exemplo, em “Radiofonia”, e não sem malícia, que sua “descoberta” por parte dele, uma vez completada pela luta de classes, fez do nome de Marx a referência do discurso capitalista e, assim, um “mestre” (LACAN, 1970/2003, p. 434-438) Mas nem por isso, porém, Lacan se arriscou a escrever esse discurso preto no branco. Ou melhor, sim, ele fez isso uma única vez, em Milão em 1972 (LACAN, 1972). 14 Como já sugeriam as “representações hiper-intensas” do primeiro Freud (cf. supra) é por meio do efeito que o S1 comanda – move um corpo. 15 (LACAN, 1973/2003, p. 314)

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A propósito dos discursos

Nessa única tentativa, a e S2 permanecem no mesmo lugar que no discurso do mestre, ao passo que S1 e  se invertem. A flecha que liga S1 a S2, no discurso do mestre, e que poderia, por causa dessa inversão, ser traçada entre  e S2, é desdobrada em duas flechas idênticas, indo de S1 a S2 e de a a . Os ideais e mesmo a ideologia são recalcados como obscenos, o saber faz seus negócios sem o sujeito, que não mais o distingue das outras mercadorias, os mais-de-gozar comandam as subjetividades mais do que são ordenados por elas; e o indivíduo, seja, quais forem suas ilusões pequeno-burguesas, é ainda ao menos tão proletário quanto capitalista. Quanto à crise da economia, ela não levará forçosamente à crise do discurso. Sem dúvida. Mas, então, quid das relações do discurso do analista com o discurso do mestre assim renovado? Não tenho uma resposta pronta, mas me parece que encontrar a flecha que vai de a a  no discurso capitalista é uma indicação útil (BRUNO, 2010): qual analista, aliás, não constatou a impotência dos consumíveis e de a consumação em fazer recuar realmente a insatisfação? A falta continua, portanto, sendo uma das vias de abordagem do objeto, inclusive no regime mercantil. Tudo se dará, então, no que distingue os usos do objeto na análise e no discurso concreto. E por isso, é hoje tão pertinente quanto em 1967, se não for até mais, distinguir a passagem a analista da entrada numa carreira. No discurso analítico, com efeito, não é sendo objetivado como ausente, insuficiente, inadequado etc. que o objeto a causa a divisão do sujeito. É, antes, enquanto falta apresentada (LACAN, 1978; PELLION, 2006) pelo analista. Apresentação essa que significa, a meu ver, a mesma coisa que Lacan visa, a partir de seu seminário sobre O desejo, ao falar de “reintegração de a” (LACAN, 1958-59/2016, p. 381-382) e que opera, por exemplo, quando o analista recusa ativamente, ao contrário dos outros “psis”, a se pronunciar em verdade sobre a causa (PELLION, 2016). Nisso, ainda somos freudianos, o que quer que se pense: pois se Freud, em 1892, disse “etiologia sexual” (FREUD, 1892/1956) foi também para repetir, em seguida, década após década, que no fundo nada sabemos da química sexual nem dos impulsos físicos da pulsão, nem das causas fisiológicas do amor... Tradução: Elisabeth Saporiti Revisão da tradução: Cícero Oliveira e Dominique Fingermann

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A propósito dos discursos

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PELLION, Frédéric

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A propósito dos discursos

resumo: Os quatro discursos de Lacan, elaborados entre 1968 e 1970, e aos quais ele ensaia, um pouco mais tarde, incluir um quinto, são um dos aspectos mais arriscados de seu ensino. Trata-se, na verdade, de política? De psicologia coletiva? De psicanálise aplicada à antropologia social? Partiremos aqui de suas “partículas elementares” para tentar fazer aparecer melhor os meandros propriamente clínicos de sua construção.

palavras-chave: Discurso; impossível; gozo; real; saber; verdade.

abstract: The four discourses developed by Lacan, between 1968 and 1970, and to which some time later he appears to add a fifth, make up one of the most perilous aspects of his teachings. Is it truly a question of politics? Of collective psychology? Of psychoanalysis applied to social anthropology? Here, we depart from his “elementary particles” as an attempt to better reveal the strictly clinical intricacies of their construction.

keywords: Discourse; impossible; jouissance; the real; knowledge; truth.

recebido: 25/08/2016

aprovado: 12/09/2016

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atualidade do laço social



Lacan e a modernidade David Bernard

Nós sabemos que alguns psicanalistas de hoje, reivindicando-se às vezes lacanianos, não cessam de clamar que tudo muda ou que, de forma mais astuta, tudo mudará em breve. O inconsciente claro, mas também o real, os analisantes, os sintomas, os gozos etc... Parece-me, portanto, que Lacan, apesar de exortar a acompanhar a subjetividade de sua época, nunca caiu em tal denúncia. Eu, aqui, gostaria de marcá-lo. Há, claro, o que ele conseguiu isolar como efeitos do discurso capitalista, e não os menores. Dentre eles, a ascensão do racismo e da segregação, em conjunção com o que ele nomeava a foraclusão das coisas do amor, ou seja, jogar o sexo para escanteio (LACAN, 1970/2003, p. 530). Seguindo Lacan, há então, pelo fato do discurso próprio à nossa modernidade, o que poderia mudar, e sobre o que os psicanalistas devem se questionar. No entanto, sublinhemos que ele relativizara, de outra parte, certos efeitos do capitalismo, não se deixando de jeito nenhum impressionar pelas promessas revolucionárias deste discurso. Eu tomo um primeiro exemplo, retirado de uma entrevista que ele deu em 1974 ao jornal italiano Panorama. Assim que o jornalista lhe lança: “Os tabus caíram, se diz, o sexo não dá mais medo”, Lacan replica: “A sexomania galopante é somente um fenômeno publicitário (...). Que o sexo esteja na ordem do dia e exposto em todas as esquinas, tratado da mesma forma que qualquer detergente nos carrosséis televisivos, não constitui absolutamente uma promessa de qualquer benefício. Não digo que isso seja ruim. (...) Só não serve para curar as angústias e os problemas singulares. Faz parte da moda, dessa falsa liberação que nos é fornecida como um bem concedido do alto pela suposta sociedade permissiva. Mas isso não serve no nível da psicanálise” (LACAN, 1974/inédito). Vê-se aí um pequeno comentário que, sobre a questão da modernidade, me parece exemplar em vários aspectos. Sabemos, de fato, que naqueles anos 1970, a esperança de uma revolução sexual animava a juventude. E nós vemos aqui que Lacan não desprezava o progresso social que essa revolução sexual, tal como esperada à época, pudera trazer. “Eu não digo que isso seja ruim” – diz ele – “salvo que, para a psicanálise” – continua – “a questão não está aí”. Em tudo que se produz aí, em todas essas mudanças na sociedade, nada serve à psicanálise. A isso tem uma razão precisa: nada virá consolar o sujeito neurótico da castração e do seu efeito, a inexistência da relação

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BERNARD, David

sexual. Do ponto de vista psicanalítico, não há, portanto, e não haverá jamais, a liberação do sexo. Não há liberação desse real da castração, que funda o “medo de não compreender” (Ibid.) da neurose. Há aí, para a psicanálise, algo que não mudará. Portanto, não há por que se exaltar. Exaltar-se no sentido do fantasma. E desse modo, o neurótico é bem aquele que, sob o assunto da modernidade, se exaltará muito rapidamente em torno desse ponto onde tudo poderia mudar, seja por sonhá-lo, seja por temê-lo. E, aliás, que tudo possa mudar, não é outra maneira de formular o encontro do gozo, com o que este pode convocar como afetos de esperança ou de angústia? Diante da ideia de que tudo possa mudar, pode ser prazeroso sonhar, ou (se) assustar. A esse respeito, retornemos à posição de Lacan. Eu acabo de indicar um dos seus princípios, fundados sobre a estrutura e não sobre uma visão fantasmática do mundo. Já que não haverá liberação do sexo, a psicanálise não precisa versar sobre falsas promessas, as quais atolarão o sujeito em sua impotência, em vez de lhe permitir se virar com o impossível da não relação sexual. Mas também, o psicanalista não deve atiçar os medos... do amanhã. Nós sabemos de fato como a manutenção do medo pode ser uma estratégia política, notadamente na juventude para ganhar seu apoio. Lacan o comentou, acrescentando que a manutenção do medo da juventude, o que o deixava furioso, era algo “repugnante” (LACAN, 1968-69/2008, p. 230). Resumindo então: já que não há relação sexual, haja vista que a castração é estrutural, o psicanalista não deve participar, nem se deixar impressionar pelo medo dos levantes que estão por vir, esse medo de que tudo mude. A partir disso deduzo que nós ganharíamos em precisar os diagnósticos de Lacan sobre a modernidade, para não versar, a nossa vez, e mais ainda em seu nome, sobre um medo e um catastrofismo generalizados. O próprio Lacan, na mesma entrevista, objeta a isso claramente. Assim, em se tratando da modernidade, ele acha bom precisar: “Eu não me alinho dentre os alarmistas, nem dentre os angustiados. Cuidado se um psicanalista não ultrapassar seu estado de angústia” (LACAN, 1974/inédito).

O desatino moderno Há bem, como eu destaquei, os efeitos graves, muito graves, que ele atribui ao discurso capitalista, como o aumento do racismo, da segregação, que verificamos infelizmente a cada dia em nossas telas. Tantos efeitos, portanto, que tocam o laço social e a sua ruína. Mas, no entanto, acharemos em Lacan uma só indicação concernente a uma modificação, devido à modernidade, do real do sexo e do seu correspondente no inconsciente? Deixo a questão aberta por enquanto, para precisar primeiro o que encontramos muito cedo em seu ensino. A saber, um diagnóstico preciso, sobre o qual ele voltará muitas vezes. O discurso capitalista se define por jogar o sexo para escan104

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Lacan e a modernidade

teio, quer dizer, numa tentativa de foracluir, no simbólico, a castração. Assim sendo, ele avança, em seu seminário intitulado O saber do psicanalista: “O que distingue o discurso do capitalismo é isto – a Verwerfung, a rejeição (...) da castração. Qualquer ordem, qualquer discurso que se aparenta ao capitalismo deixa de lado o que nós chamaremos simplesmente as coisas do amor”. E acrescenta: “É bem por isso que (...) a castração fez finalmente sua entrada irruptiva na forma do discurso analítico” (LACAN, 1971/2011, p. 88). Há, portanto, no discurso capitalista, uma tentativa de foracluir a castração, a qual não se deixa rejeitar tão facilmente, ao ponto que ela fez um retorno – “entrada irruptiva”, diz aqui Lacan – na invenção da psicanálise. Aqui está o bastante para relativizar um pouco a ideia de que o capitalismo acabaria com a castração. De fato, nós vemos aqui aparecer uma tese diferente: há esta tentativa de foraclusão, que foi respondida com o retorno da castração no real dos sintomas. Razão pelo qual, houve a invenção da psicanálise. Daí deduzo duas outras observações. Primeiramente, nós vemos aqui se esclarecer em que o discurso capitalista pode afetar o laço social. O que é de fato a castração se não a possibilidade de fazer laço? Lacan insistiu seguidamente nisso, e notadamente sobre as coisas do amor. Eu não posso aqui demonstrá-lo, mas a tese é clara: a castração é o que condiciona a possibilidade do amor. O que ele nomeou também o “médium da castração” (LACAN, 1967/2003, p. 570) é o que permitiria a cada um dos dois parceiros, qualquer que seja o sexo, “encontrar seu lugar na relação dita genital” (Ibid.). Desde então, ao foracluir a castração, o que teremos? Ao oposto desse lugar encontrado, mesmo se ele divide aquele que o ocupa como homem ou mulher, o que ele nomeou “o desatino” (LACAN, 1973/2003, p. 533) do sujeito moderno, em sua relação ao gozo. E é na medida mesmo desse desatino que os sujeitos poderão então tentar situar ainda mais ferozmente o gozo que lhes faz falta no lugar do Outro. Quer se trate de recriminá-lo por no-lo roubar, e teremos o racismo. Quer se trate de lhe impor o nosso, e nós teremos o que Lacan nomeou “a humanitariaria1 a pedido” (Ibid.), uma maneira de mantê-lo como um subdesenvolvido, para não deixá-lo com seu modo de gozo, que por ser Outro, nos amedronta.

Divertir-se2 Aqui está quanto ao laço social. Eu passo agora à dimensão do desejo. Aqui, Lacan se recusa a ser, diz ele, alarmista. Eu gostaria de destacar seus motivos, porque a demonstração é muito precisa. Diremos primeiro seu argumento principal: os 1 Trata-se de um termo que caiu em desuso hoje em dia, e que fora forjado por A. de Musset, para designar um sentimento exagerado a respeito da humanidade sofredora. 2 Tromper son ennui no original em francês, literalmente “enganar seu tédio”, é uma expressão que significa satisfazer ilusória e temporariamente um desejo ou uma necessidade; por extensão de sentido, divertir-se. Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 33 p.103-109 novembro 2016

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objetos do discurso capitalista não chegarão realmente a foracluir a castração, e logo a se substituírem ao objeto causa do desejo. Em outras palavras, o ser falante não logrará realmente ser animado por um gadget, o que quer que possa esperar, temer ou ouvir nas promessas publicitárias. Assim sendo, Lacan pergunta em sua conferência A terceira, proferida em Roma algumas semanas antes de sua entrevista ao Panorama: “Os gadgets (...) tomarão mesmo independência? Chegaremos a nos tornarmos realmente animados pelos gadgets? Isso me parece pouco provável, eu confesso” (LACAN, 1975/inédito). “Eu não sou muito pessimista. Haverá uma canseira do gadget.” Todos esses gadgets, “todas essas coisas que devoram, (...) não há por que fazer um drama disso. Eu estou certo de que quando estivermos entediados com aquilo (...), encontraremos outras coisas para nos ocupar” (Ibid.). Há então o desatino do sujeito moderno em seu gozo, mas que o deixará, na sua estrutura, sempre animado por um desejo de Outra coisa, segundo a fórmula pela qual Lacan define o “tédio”.3 É bem com isso, aliás, que o discurso capitalista lida habilmente, propondo sempre ao sujeito, justamente, outras coisas para consumir, para que ele engane seu tédio. É também aí o que certos políticos sustentam, já que compreendem que quando o sujeito consome, ele não se revolta. Contudo, defende aqui Lacan, não há por que se preocupar com a permanência do desejo, seja nesse desejo de Outra coisa que faz o tédio, tanto quanto as revoluções. Eu acabei de indicar a razão estrutural: nenhum objeto de realidade, seja o último modelo, seria suficiente para substituir o objeto causa de desejo. Portanto, eis o que deixará sempre a possibilidade, desde que os próprios psicanalistas não se deixem enganar pelas pretensões desses gadgets, de propor ao sujeito decifrar a parte que ele mesmo toma nesse consumo desenfreado que o desatina. Ou seja, as razões sempre singulares pelas quais ele se deixará... devorar, judiar, fascinar ou comandar, pelos objetos que ele consome.

Lacan: nem alarmista, nem pessimista Para continuar a demonstrá-lo, retomo a frase citada acima, e a continuo. “Eu não me alinho dentre os alarmistas” – enuncia Lacan – “nem dentre os angustiados. Cuidado se um psicanalista não ultrapassar seu estado de angústia. E verdade, há ao nosso redor coisas horripilantes e devorantes, como a televisão,4 pela qual a maioria de nós se encontra regularmente ‘fagocitada’. Mas é somente porque há pessoas que se deixam ‘fagocitar’, que elas vão até inventar um interesse pelo que elas veem” (1974/inédito). 3 3 Cf. também sobre este ponto LACAN, J. (1970). “Radiofonia” In: Outros escritos, op. cit., p. 411: “Quando já não se sabe a que santo recorrer [...], compra-se qualquer coisa, um carro, em especial, com o qual se dá sinal de inteligência, digamos, do próprio tédio, ou seja, do afeto do desejo de Outra-coisa”. 4 Hoje em dia a internet, fazendo a sua vez de tela. 106

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Eu destaco esta expressão: o sujeito se deixa... “fagocitar”. Ela nos permite, de fato, prosseguir na demonstração. O que ela diz? Primeiramente, ela nos remete diretamente à lógica da pulsão. Lacan insistia nisso desde Roma, algumas semanas antes. O ser falante se deixará agarrar pelas ágapes modernas, pela via das pulsões. Em outras palavras, os objetos mais-de-gozar sem valia que produzem o discurso capitalista, só valerão por meio das satisfações pulsionais que eles permitem, via os quatro objetos pulsionais. Pelo olhar, então, mas não somente, pela voz, pelo objeto oral ou anal também. Nenhuma razão, de fato, ao que me parece, de fazer de um ou outro desses objetos a última palavra da modernidade. Mas o modo de aí reencontrar a lista limitada das pulsões, assim como sua dimensão devoradora que, tal um pacman, nunca cessa de se satisfazer. E é por isso que, aqui também, Lacan insistiu sobre a razão estrutural, motivo pelo qual ele não é alarmista. Haverá sempre a possibilidade para o sujeito questionar por que ele se deixa... Assim, os gadgets, “nos comem, mas eles nos comem por intermédio das coisas que eles movimentam em nós. Não é à toa que a televisão é devoradora. É porque nos interessa mesmo assim. Interessa-nos por certo tanto de coisas absolutamente elementares, que se poderia enumerar, fazer uma pequena lista. Mas enfim, a gente se deixa consumir. É por isso que eu não estou nem dentre os alarmistas, nem dentre os angustiados” (LACAN, 1960/2005, p. 77). Mas então, por que o sujeito se deixa devorar pelos gadgets? Para aí encontrar uma satisfação pulsional. O que mais? Para assim tentar poder contornar a castração. O sujeito se deixa interessar pelas ofertas de gozo contemporâneas na medida em que ele finge encontrar em tal ou tal encarnação desses objetos, sempre a mesma coisa, o falo como objeto. Ora aqui, nada novo. Nós, inclusive, reencontramos de fato uma lógica muitas vezes descrita por Lacan. Eu relembro brevemente seu princípio. Primeiramente, pelo fato de que a castração, o falo será um significante, não um objeto. Portanto, não há pulsão genital, e logo, não há relação sexual. Não há o objeto que permitiria ao sujeito atingir o Outro, e encontrar nesse Outro seu correspondente. Com a falta, o sujeito substituirá então o Outro por um dos objetos da pulsão. E é a título desta substituição que tais objetos poderão ser desejados e pedidos ao Outro. Simplifiquemos: onde o sujeito não poderá dar nem receber do Outro o falo faltante que teria assegurado a relação sexual, ele substituirá com um dos objetos da pulsão. E é por isso que Lacan, no seminário Mais, ainda pôde deduzir que o verdadeiro “parceiro” (LACAN, 1972-73/1985, p. 114) do sujeito não será o Outro, mas sim uma das formas dos objetos pulsionais. Assim sendo, qual é a esperança do sujeito moderno? Não somente a de poder encontrar nesses objetos gadgets encarnações dos objetos da pulsão, mas a de poder encontrar assim seu correspondente, seu parceiro. Nós temos então a razão precisa pela qual Lacan não é pessimista. Visto que jamais a pulsão e suas quatro formas de objeto serão suficientes para substituir a castração, e logo a não relação

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sexual (LACAN, 1973/2003, p. 526), o sujeito casado com seu iPhone não deixará de tropeçar novamente sobre sua falta. Seu iPhone no bolso, ele recairá, seja o que for que ele esperasse, sobre o fato de que o falo não é um objeto, mas o significante de uma falta de objeto que objeta a relação sexual. Desde então, o verdadeiro parceiro seguirá faltando. E é por isso que Lacan virá a comparar esses gadgets ao que ele chama uma falsa mulher. Ou seja, em cada um dos casos, a falsa promessa do objeto pulsional, ao querer substituir o objeto fálico que não existe. Conclusão lógica: os gadgets não faltarão, à sua vez, de se tornar sintoma. “Nós não conseguiremos realmente fazer com que o gadget não seja sintoma, porque ele já o é, evidentemente. É certo que se tem um automóvel... como uma falsa mulher;5 quer-se, absolutamente, que seja um falo, mas isso só tem relação com o falo pelo fato de que é o falo que nos impede de ter uma relação com algo que seria nosso correspondente sexual. É nosso correspondente parassexuado, e cada um sabe que o ‘para’ consiste em que cada um permaneça do seu lado, que cada um fique ao lado do outro” (Ibid.). Volto então à conclusão que Lacan retira. “Eu não sou muito pessimista. Haverá uma canseira do gadget” (1960/2005). Todos esses gadgets, “todas essas coisas que devoram, (...) não há porque fazer um drama disso. Eu estou certo de que quando estivermos entediados com aquilo (...), encontraremos outras coisas para nos ocupar” (1974, inédito). Onde reencontramos o tédio, esse desejo de Outra coisa. Eu acabei de marcar, portanto, como esse desejo de Outra coisa poderá igualmente aparecer por meio do sintoma. A questão, portanto, concernente aos próprios psicanalistas: saberão eles se sentir suficientemente implicados com os efeitos do discurso capitalista no laço social, sem por isso se deixar impressionar pelo poder desses gadgets? Em outras palavras, saberão eles seguir acreditando no inconsciente? Será preciso, para tal, apontava Lacan, que eles tenham transposto sua angústia. Em poucas palavras: que eles tenham aprendido bastante com ela, para medir o real da castração e não recalcá-lo novamente. Ou seja, que eles ousem manter-se à altura da posição analisante, aquela cujo pequeno Hans já sabia dar o exemplo. Lacan, sobre isso, concluiu: “A fobia do pequeno Hans, eu mostrei que ela era assim, ali onde ele fazia Freud e seu pai darem voltas e mais voltas, mas disso, desde então, os analistas têm medo” (LACAN, 1973/2003, p. 527). E nos dias de hoje? Tradução: Luciana Guarreschi Revisão da tradução: Luc Matheron

5 Notemos que nesta demonstração, Lacan se apoia na lógica da perversão polimorfa do macho. Daí a questão poderia se abrir, concernente às relações do não todo, às ofertas de gozo contemporâneas.

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referências bibliográficas LACAN, J. (1960). O triunfo da religião: precedido de Discurso aos católicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. _________. (1967). “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista de Escola – Primeira versão” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. _________. (1968-69). O seminário, livro 16: De um Outro ao outro, Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro, 2008. _________. (1971). Eu falo com as paredes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2011. _________. (1972-73). O seminário, livro 20: Mais ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. _________. (1973). “Televisão” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. _________. (1974). Entrevista com Emilia Granzotto para o jornal Panorama, em Roma (21/11/1974), inédito. _________. (1975). Conferência A terceira. Paris, inédito.

resumo: Gostaríamos aqui de retornar a alguns diagnósticos de Lacan sobre modernidade, para tentar melhor separar, um por um, dentre seus comentários, os que concernem ao laço social e aqueles concernentes aos sintomas e ao inconsciente dos sujeitos. Porque se Lacan soube marcar lucidamente certos efeitos da modernidade, ele também sublinhou seus limites estruturais, razão pela qual, dizia, ele não era pessimista.

palavras-chave: Modernidade; laço social; pulsão; gadget.

abstract: Here, we would like to review some of Lacan’s diagnoses of modernity, in an attempt to achieve a better distinction between his commentaries on social bonding and those on subjects’ symptoms and subconscious, one by one. Indeed, while Lacan emphasized and clearly demonstrated certain effects of modernity, he also highlighted its structural limits, and according to him, this was the reason why he was not pessimistic.

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keywords: Modernity; social bonding; drive; gadget.

recebido: 09/08/2016

aprovado: 12/09/2016

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O sofrimento do sujeito contemporâneo Marc Strauss Milão, 12 de maio de 1972 (No quadro negro) Discurso do Mestre

Discurso Universitário

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Discurso da Histérica

Discurso Analista

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Discurso do Capitalista

ú ô O que é que nos liga à vida? É uma questão que cada um já se colocou em um momento ou em outro. A religião, a filosofia tentaram responder, sempre pela promessa de um mais além, um mais além de paraíso para a religião, de sabedoria para a filosofia. O fato é que isso não funcionou. Uma única palavra é suficiente para nos fazer despertar cruelmente de nossa fé em uma palavra de esperança... um nome próprio... Se lhes disser “Auschwitz!”, isso fará ranger freios e dentes. Por trás de tudo, logo pensamos: com esse curinga você desconcerta [coupez le sifflet] todo o mundo. Você apita [sifflez],1 até mesmo o fim da partida. Em que podemos ter fé depois de Auschwitz? 1 O autor joga aqui com a palavra siffler, que na frase anterior aparece como “vous coupez le sifflet à tout le monde”, e nesta como “vous sifflez même la fin de partie”. Na ausência de uma expressão adequada em português, que mantivesse o jogo, optamos traduzir cada termo separadamente (N. do T.)

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A negação do humano vinda da própria humanidade sempre foi uma aporia para o pensamento, mas com o extermínio industrial dos judeus da Europa, os quadros tradicionais de sustentação do laço com o outro perderam sua consistência. Com efeito, sempre se deveu ou se quis destruir o outro, o inimigo, com mais ou menos violência, seja aquela regulada, da lei, ou aquela desenfreada, da barbárie. E sempre soubemos que para ter mais sucesso nisso é melhor não estar só, mas fazer amigos. O que são os amigos? Como os fazemos, como os escolhemos? É muito simples: pelo peso que eles dão à palavra dada, com relação a um projeto que representa uma questão comum. Cada um possui sua maneira própria de significar o peso que tem a palavra: até aí... mas não demais... Não até o ponto, ainda assim, em que isso se torne insuportável... O impossível de suportar, é assim que Lacan definiu o sintoma. E o problema com a palavra dada é que não é possível dar-lhe um valor absoluto, como queria o velho Kant. Seria uma loucura, pois dar um valor absoluto à palavra consiste em se fazer, a si próprio, o garante de sua própria palavra. Em outras palavras, isso não deixa nenhuma chance de se colocar de acordo com o outro sobre o que pode, entre eles, garanti-la. Consequentemente, aqueles que caem nessa loucura não têm amigos: eles não têm que lidar senão com outros que só lhes querem bem porque aí encontram interesse, e que terminam sempre por traí-los. Em suma, eles não têm senão inimigos. Terminam, em geral, nas mãos dos psiquiatras, com o diagnóstico de paranoia. Mas não dissemos, nós mesmos, que era por interesse que devemos ter amigos, para poder sobreviver? Na verdade, sabemos não somente a fraqueza do homem só, mas sua impotência radical. Mesmo se ele nasce a termo, é prematuro; não viveria dois dias se não recebesse a proteção e os cuidados que chamamos “maternos”. Os primeiros amigos, como se vê, são os pais, e começa-se sempre por amar a mãe, quer se queira ou não. Não somente ela afasta a morte, que ronda desde o primeiro grito, e assegura a sobrevivência do corpo, mas com ela se instaura ainda outra coisa, um jogo a partir das sensações, um gozo que pode se fazer prazer. E para que esse jogo se desenvolva e se mantenha, é preciso pôr fé na palavra. Daí a função do pai, que encarna o terceiro garante. Ele encarna os limites da palavra, tanto no sentido daquele que a enquadra, confere-lhe sua validade, quanto também no sentido em que ela encontra seu limite, quando é preciso outro para tomar as coisas em mãos. É o que Lacan diz sobre o pequeno Hans e sua ereção traumática: por causa do pai e da mãe que tinha, não havia ninguém para lhe tomar o problema das mãos. É preciso, para isso, que a mãe o permita, e que o pai o queira, e mostre que ele consegue, mais ou menos. É ele que apita o fim da partida, quando não é mais jogo, e que é preciso parar de pensar senão no próprio prazer. Com efeito, existe um prazer a que o pai se reserva, com a mãe. Não somente o prazer da sexualidade, mas aquele da sexualidade partilhada, em uma perspectiva que se situa fora de toda satisfação de necessidade, mesmo de procriação. Essas são simples lembranças. Na verdade, se há algo de que o humano, como indivíduo, não tem necessidade, é de ter filhos, os quais irão se acrescentar às suas preocupações cotidianas, por uma 112

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promessa bem incerta de prazer. O que, então, pode levar um casal a participar do empreendimento de reprodução da espécie? É preciso justamente que haja outra coisa que a necessidade no que anima os humanos, e a essa outra coisa, que nome lhe dar senão amor? Uma velha história, um velho enigma, sobre o qual Platão já quebrou a cabeça; conhecemos suas categorizações da amizade e a sua mais bela representação: não sobreviver a seu amigo morto no campo de batalha. É belo, mas, justamente, não se deve exagerar! Se realmente todo mundo fizesse isso, no primeiro amigo morto, o exército seria dizimado, e seria inútil se entregar a uma batalha perdida de antemão. Explica-se, então, que o soldado, cujo amigo morreu no campo de batalha, deve redobrar o vigor para punir seu assassino e vingá-lo. A Pátria, a Causa, adquirem o nome do amigo supremo. Mas, no fim das contas, é a mesma coisa: trata-se de afirmar que existe algo mais poderoso que a sobrevivência corporal, que faz com que se possa ser levado a, voluntariamente, colocar a própria vida em jogo. Portanto, para Freud o pai é o protótipo da sociedade, ele encarna, antes de tudo, os valores simbólicos que fazem a cultura e, portanto, organizam o jogo entre os corpos que constituem um coletivo. Assim, cada um sabe onde é seu lugar, tanto como amigo, quanto como inimigo, homem e mulher. Lacan foi mais longe. Ele reduziu a função do pai à sua parte de enigma irredutível. A seu nome. Com efeito, dos valores que são transmitidos pela cultura do meio parental, não se trata senão de uma encarnação, mais ou menos feliz, sempre imperfeita, na realidade. Mas, sobretudo, ela é fundamentalmente falha no ponto do casal que forma com a mãe. Está claro para toda criança que há alguma coisa que não funciona entre seus pais, quaisquer que sejam. Não somente lhes ocorre de estar em desacordo, mas eles brigam e se recriminam mutuamente sua insatisfação. A criança, no entanto, deseja que entre seus pais isso funcione, ela está pronta para consolar aquele que não encontra no outro a satisfação que espera. Os dois estão insatisfeitos, como dissemos, mas a criança escolhe seu campo. Ela é, antes, designada a um campo, recrutada por aquele de seus pais que será para ele o pai/mãe traumático, porque traumatizado pelo outro pai/mãe. Aquele cuja insatisfação será para ela a mais dolorosa, e que ela quererá, então, a qualquer custo apaziguar, para justificar o casal que eles formam. Restar-lhe-á, então, colocar em cena em sua vida o cenário de seu “isso funciona, ainda assim”, isso com um parceiro que será adequado ao modo pelo qual ela quer corrigir o “isso não funciona” do pai/mãe traumático. A clínica tem aí seu lugar, pois as maneiras de traumatizar não são as mesmas para o pai e para a mãe, elas não são as mesmas para o homem e para a mulher. A descoberta de Freud foi a de mostrar o valor determinante desse “isso não funciona” particular, que cada um encontrou, um valor que permanece inconsciente, mas que por isso não opera menos no que diz respeito às escolhas do sujeito.

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Será que um sujeito tem escolhas e, mais particularmente, a escolha de seus parceiros; e, em primeiro lugar, de seus parceiros amorosos e sexuais? Com o inconsciente, não. Certo é que ele não sabe conscientemente o que determina suas escolhas, mas não sabe quando, e sob que forma eles vão se oferecer a ele. Mas o lugar desse parceiro está reservado no que chamamos de estrutura do desejo. O parceiro, por meio de seu sintoma, deve responder ao sintoma do sujeito, e isso o distingue de qualquer outro. Se esses parceiros podem ser múltiplos, eles ocupam, de fato, sempre o mesmo lugar e se distinguem entre eles por seu nome. Nome do pai e nome do sintoma, o parceiro é uma necessidade que impõe à própria lei do discurso, uma lei que necessita engajar sua palavra, malgrado – por causa de, de fato – a ignorância sobre a qual ela se apoia. O laço de amor é inerente à estrutura da palavra, ele prima sobre as formas que sua manifestação adquire. Esse laço de amor é, de fato, o laço de representação entre dois significantes. Somente ele justifica a fé na representação que impõe. O humano, então, sempre obedeceu inconscientemente ao que Lacan chamou de discurso do mestre (DM), o qual rege as relações humanas desde sempre, e no qual um significante primeiro, S1, se faz representar para um outro. Lacan mostrou, além disso, que esse discurso estava acompanhado por dois outros. Um, que lhe é contemporâneo, o discurso da histérica (DH), no qual o sujeito recusa subtrair sua singularidade na representação coletiva de sua colocação em jogo. O outro, o discurso universitário (DU), apareceu mais tarde. Ele consistiu em colocar o saber no lugar da justificação última de toda ação. É a ciência que permitiu isso, postulando um saber na natureza que prescinde de todo deus criador. Isso não resolve o problema de Deus, da verdade última, mas substitui um garante, que não é nenhum humano, por outro, que também não é nenhum humano. Esses três discursos coexistiram por um tempo, rivalizando uns com os outros, e determinando lugares precisos: o do mestre, do escravo, do aluno e da histérica. Nesses discursos tradicionais, pode-se fiar no outro para que ele não toque na verdade que funda o laço. A verdade, com efeito, é relativa ao discurso, mas seu lugar é único, é ela que funda o discurso e ela é, como tal, inacessível. Na circulação dos discursos, do termo que ocupa o lugar da verdade, é impossível retornar. Ela é, por outro lado, sustentada no par formado com o parceiro do discurso. É ela que permite, segundo o que se coloca nela, repartir os lugares entre o casal. Assim, no DM, a verdade recalcada da divisão do mestre permite ao escravo produzir no mundo um objeto de gozo. No DH, a verdade pulsional recalcada, quando se põe ao trabalho da associação livre, permite ao sujeito confrontar o mestre com os limites e com as insuficiências de seu saber. No DU, a verdade escondida do mestre permite ao saber tratar o outro como objeto de estudo. Esses três discursos fazem assim, à sua maneira, consistir uma ordem e por aí tentam representar também a relação sexual (RS). O discurso analítico veio mostrar o estatuto da verdade, um lugar, e o que vem 114

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ocupá-lo é relativo ao discurso, e aí é recalcado. O mestre esconde sua divisão, a histérica desconhece o real de um gozo outro, o universitário esconde sua submissão ao mestre. Assim é suprida a RS no DM e o que ele prescreve da diferença homem/mulher, uma diferença cuja modalidade é contestada pelo DH, com razão, já que ela é sempre ideológica; enfim, a diferença é dissimulada no DU; o DA, por sua vez, mostra o limite das possibilidades de um discurso, já que o saber aí procede de um inconsciente inacessível senão por seus efeitos. Assim, como precisa Lacan, a tarefa do DA é de completar e de sustentar os três outros discursos. Isso permanece eficiente enquanto o discurso universitário mantiver sua submissão ao mestre, e não se impõe como a única verdade que vale. Ora, para Lacan, a época contemporânea se distingue radicalmente daquelas que a precedeu. Evidentemente, a história nos lembra que desde sempre as sociedades se modificaram com o tempo, os mestres mudaram, e distinguimos no Ocidente grandes épocas, desde o império grego, depois o romano, até hoje, passando pela Idade Média, a Renascença etc. Mas não é disso que se trata em nossa época, a mudança é muito mais radical, já que se trata de um novo discurso que nos dirige, do qual somos sujeitos, que ele chamou o Discurso do Capitalista (DC), ou Discurso da Ciência (DS). Ele ressaltou a simultaneidade do triunfo desse quinto discurso com a aparição do DA, e propôs sua escrita em Milão, em 12 de maio de 1972. Tomemos duas questões: o que nos diz esse discurso e sua escrita do laço ao parceiro? E o que faz a solidariedade dessa aparição com a do DA? Notemos, em primeiro lugar, que se seguimos o percurso das flechas na escrita do DS, a sucessão dos termos é conservada, a exclusão do lugar da verdade é abolida. Temos, ainda assim, dois parceiros que reconhecemos, por vê-los escritos em outros discursos: à esquerda, o analisante, que está à direita no DA, /S1 – e à direita o escravo, S2/a. Isto posto, à esquerda, não é nesse DC o analisante que é representado, mas o sujeito que se aliena ao significante mestre. Se um sujeito produz essa alienação sob o corte de um analista, de um que dá seu valor de verdade ao gozo que divide, então esse sujeito daí se torna um analisante. À direita, é a priori o escravo que está escrito. Mas trata-se aí do escravo de um mestre dividido, que não pode dizer o que quer. É por isso que o saber do mercado faz suplência a isso, propondo, até mesmo impondo ao sujeito, o objeto de seu desejo. Assim, ele é feito sujeito por esse objeto. Lacan insistiu muito sobre o fato de que éramos, muito mais do que acreditávamos, os sujeitos desses objetos, que ele chamou de lathouses, ou de gadgets. E foi bem antes da internet e do telefone celular... Podemos dizer que o sujeito do significante é preservado, já que ele é sempre o efeito da articulação S1 – S2, mas ele não está contido em lugar de verdade pelo significante mestre, e permanece indeterminado. À direita, S2/a não representa o escravo do mestre, mas um corpo animado de um saber sem sujeito. Lacan chamou esse último de proletário, precisando que estávamos todos nesse discurso. Ele o definiu

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assim: aquele que não tem senão seu corpo para representá-lo. Em outras palavras, ele não possui nenhum valor simbólico. A ordem que rege seu corpo e suas satisfações eventuais é a do expert. Foucault, extraindo aquilo que chamou de biopolítica, mostrou bem essa evolução de nosso mundo permitida pela ciência. Os psicanalistas lacanianos não criticam a ciência, muito pelo contrário. Mas criticam o uso da ciência na forma pela qual o discurso do capital evacua a questão do sujeito e da verdade, a questão da palavra e do dom que ela implica. Em nome da ciência, o mercado sabe o que está faltando para vocês. E não é mais um parceiro que faz suplência à relação sexual faltante, mas o par que forma o sujeito com seu objeto-gadget. Assim, Lacan reconheceu os campos [de concentração] como precursores. Somos todos números agora, e nem é mesmo necessário tatuá-los no antebraço. Enquanto formos úteis à circulação dos valores mercantis, mesmo estando doentes ou inválidos, temos um lugar no mundo. Permanece, é claro, a questão de saber o que fazer com os corpos inúteis, sempre mais numerosos. Ao lado dessa mercantilização mundializada do humano, constatamos fenômenos que parecem, pelo contrário, manifestar uma forte resistência do DM. Assim, o terrorismo e, mais amplamente, o retorno do religioso em nosso século, e com eles, também o retorno de valores de nacionalismo, de pátria, de fronteiras, tudo aquilo que o cosmopolitismo do fim do século XX acreditava estar enterrado para sempre. Por toda parte reivindica-se com violência a defesa e a preservação de uma identidade. Mas também podemos ver como esses próprios valores hoje reivindicados obedecem às leis do mercado, o sujeito pode escolhê-los e trocá-los à vontade, ao sabor de seus humores diários, sem experimentar o embaraço da traição. O indivíduo de hoje deve, antes de tudo, ser fiel a si próprio, já que supostamente ele é a própria verdade de si mesmo. Que o verdadeiro par que o sujeito forma seja com seu objeto, mais do que com o corpo de um parceiro, é também o que mostrou a psicanálise. Do mesmo modo, que o saber inconsciente seja para cada um sua própria verdade, também é a descoberta da psicanálise, já que ela faz do gozo singular, intratável, o que causa o desejo de cada um. O DC e o DA fizeram, em comum, do objeto o parceiro real do sujeito, não um outro corpo. E se eles puderam aparecer ao mesmo tempo, é porque os três discursos que vinham em curso até então haviam atingido os limites de seu poder, por causa justamente da ciência e de suas consequências em termos de produção de objetos de consumo sempre mais indispensáveis à vida cotidiana. Dito isso, sua resposta à fragilidade dos discursos tradicionais foi também muito diferente, até mesmo oposta. O objeto-parceiro não é o mesmo segundo se trate do objeto perdido freudiano, do sintoma singular, reconhecido e autenticado, ou se trate de um objeto produzido pelo mercado. Com efeito, o DA preserva o laço entre o objeto e o parceiro como corpo falante, ao passo que o objeto do mercado

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O sofrimento do sujeito contemporâneo

abre mão de um tal parceiro, ele remete ao próprio sujeito, e em sua circularidade alimenta a “sede da falta de gozar”. Isso deve nos levar a precisar nossa posição com relação ao DC, e a reconsiderar nossa posição com relação aos outros discursos. Desenvolvi este ponto em Paris, na ocasião de nossas jornadas nacionais. Ao DC estamos opostos por origem. Mas como manifestar essa oposição? Denunciá-lo não serve para nada, como sempre que se denuncia alguma coisa. Isso não quer dizer que não seja necessário saber reconhecer seus efeitos e desmascarar sua louca pretensão. Desmascarar sem denunciar pode-se fazer ridicularizando, mas não necessariamente, isso pode também assumir a forma da indiferença, do mesmo modo que em um raciocínio puramente lógico. Lacan ressaltou isso, o lógico é odioso ao mundo porque ele diz o fato, sem cobri-lo com a menor história que lhe daria sentido. Mas mesmo nessa perspectiva, o psicanalista deve velar para que o que lhe resta de voz que lhe é creditada não seja sufocada. Assim, diante do sujeito contemporâneo, podemos reconhecer o mal-estar em sua sede da falta em gozar, mal-estar legítimo, da mesma forma que era a exigência de verdade da histérica Dora. Temos, portanto, que nos tornar amigos daqueles a quem o mercado torna doentes. O que não quer dizer que devemos nos fazer amigos daqueles que querem restaurar a ordem antiga, ou impor ao lugar do mercado uma nova ordem que lhe convenha. Esses últimos querem um mestre, cuja ferocidade será na medida da ferocidade do mercado. Para concluir, será que devemos nos preocupar com o devir da humanidade, e será que somos os guardiões de sua manutenção? De um lado, sim, tenho o encargo de meu irmão; de outro, não, a humanidade faz o que pode, e não mais. Podemos, o próprio Lacan o fez, ter confiança na estrutura, que sempre fará com que um gadget se faça também sintoma, já que o enigma do sexo permanece insolúvel, e que ele não cessará de se manifestar por seu gozo perturbador e traumático. Em outras palavras, não há nenhuma confiança a se ter nos tempos que se anunciam, que serão sempre mais duros para cada um, mas uma total confiança a se ter na humanidade para inventar os modos de perpetuação. Tradução: Paulo Marcos Rona Revisão da tradução: Cícero Oliveira

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STRAUSS, Marc

resumo: Lacan mostrou a novidade e a originalidade do discurso contemporâneo que rege os laços humanos. Se os laços tradicionais organizavam, não sem dificuldades também, as relações entre os sexos e temperavam o ódio, esse discurso faz, de cada um, um indivíduo que não pode contar senão com seu próprio corpo para se sustentar. O sofrimento que se segue toma, então, formas inéditas, como as respostas que nele encontram o sujeito para suportá-lo. A psicanálise é, assim, solicitada de uma maneira diferente da dos tempos de Freud.

palavras-chave: Laço; ciência; parceiro; sintoma.

abstract: Lacan brought novelty and originality to the contemporary discourse that orients human bonds. If traditional bonds, not without difficulty, organized the relations between sexes and conditioned hatred, this discourse turns each individual into someone who can count only on his/her own body to stand. The suffering which follows then assumes forms never taken before, as much as the answers that once inside it find the subject to endure it. Psychoanalysis is then demanded in a way different from Freud’s times.

keywords: Bond; science; partner; symptom.

recebido: 15/08/2016

aprovado: 12/09/2016

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Psicanálise e contemporaneidade: Novas formas de vida? Christian Ingo Lenz Dunker Nota sobre o “contemporâneo” em psicanálise Em grego, temos três expressões que podem igualmente ser traduzidas por “palavra”: mithos, logos e epos. Cada uma destas expressões comporta uma temporalidade diferente. O mithos é a palavra sem autoria, a palavra das origens imemoriais que, por ser de todos, não é de ninguém. Mithos é algo que se diz além do dizente, de forma circular, de tal forma que o que vem antes pode ser posterior ao que vem depois. É o ça parle (isso fala). Logos é outro tipo de palavra. Palavra universal, palavra que supera o tempo de sua própria enunciação. Palavra que possui uma lógica que aspira à verdade, em meio dizer. Epos, origem de termos como época, épico e epocal, refere-se ao relato e à narrativa. A recitação do epos pode ser feita por meio de um discurso antigo e mesmo em uma língua arcaica ou estrangeira. Mas é um discurso indireto, entre aspas, que se apresenta não apenas para o coro, mas também para os espectadores. Tradicionalmente o epos refere-se à origem de uma pessoa, comunidade ou grupo (LACAN, 1953/1998), mas segundo aquele que conta. Lacan critica a degradação destas duas formas de palavra na modernidade. Mithos deixa de ser uma palavra coletiva e passa ao mito individual do neurótico. Logos deixa de ser ambição de verdade e passa a ser saber universal. Mithos e logos parasitam epos de tal maneira que não podemos mais reconhecer o valor deste tipo de palavra. De certa maneira tudo virou epos. Por isso pensar a psicanálise em seu tempo tornou-se uma tarefa tão simples quanto inexequível. Pensar o próprio tempo em que se está é, em princípio, uma tarefa inexequível quando se imagina tomar o epos como uma evidência. Os únicos que são capazes de engendrar um resquício de epos são aqueles que se sabem exilados. São os velhos, as crianças, os estrangeiros. São aqueles que praticam o que Valéry chamou de profissões delirantes: “aqueles que têm coragem de querer claramente algo absurdo”. Sabe-se que se está envelhecendo quando de repente começam a sair de nossa boca expressões terríveis como: “na minha época ...” ou “no meu

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tempo...”. Ou seja, uma época se apreende excentricamente. Como dizia Santo Agostinho: quando me perguntam o que é o tempo eu não sei, mas quando não me perguntam eu sei. Os velhos largaram esta estranha obsessão de pertencer ao próprio tempo, experimentam o tempo à distância. Assim como para as crianças o tempo, o seu tempo, funciona como um horizonte. A frase de Lacan diz “que antes renuncie a isto, portanto, quem não alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época”, ou seja, alcançar em seu horizonte, não simplesmente pertencer à sua própria época. Esta prudência com relação ao assenhoramento de seu próprio tempo parece depender do reconhecimento da opacidade do tempo. Portanto, a psicanálise em seu tempo, não deve resumir-se, a saber, se ela é filha da modernidade ou da pós-modernidade, se ela sobrevive ao fim das grandes narrativas ou se inclui na sociedade do espetáculo. Se ela é herdeira das práticas de confissão e disciplinarização dos corpos ou se inclui-se como uma forma de familiarismo repressivo, falocêntrico ou universalista. Se ela é uma forma laica de religião ou uma técnica terapêutica ineficaz. Se ela fornece as bases biológicas para uma possível neurociência ou os fundamentos lógicos de uma teoria da cognição e da linguagem. Se ela é progressista ou conservadora. Tais debates são importantes e caracterizam a posição da psicanálise em uma época. Espera-se que deles se extraia um diagnóstico: será que a psicanálise cabe neste tempo? Não estaríamos nós fora deste tempo, como casulos ou fósseis sociais de um experimento científico datado? Tais debates presumem certa noção do que vem a ser uma época e com isso uma economia própria do que é o tempo. O tempo em que se está ou do qual se está excluído. Ao pressentir que a psicanálise é vítima de uma obsolescência não programada estamos nos fazendo pertencer à nossa época. Época na qual se vive em atraso e fora do tempo, o novo acontecendo em outro lugar. Mas ao pertencer a esta época, ao pertencer demais a esta época, deixamos de nos situar a partir de epos. A narrativa hegemônica desta questão identifica nosso tempo ao que realmente está acontecendo, ou seja, a tudo aquilo que é capaz de gerar ou de se apresentar como novo. Mas a obsessão pelo novo, como já se observou, tornou-se uma velha obsessão. Entra em cena aqui o que chamo de o novo conservadorismo psicanalítico, ou seja, o argumento aqui é de que é preciso cautela com relação às descrições mais ou menos midiáticas de nossa época, prudência diante dos grandes diagnósticos massivos sobre a cultura, sobre a arte e sobre a ciência e sobre a sociedade. Isso é verdade, em uma época marcada pela sensação de que há um grande evento em curso, em algum lugar ocorre uma grande festa, da qual estamos sempre em atraso ou exclusão. Há duas estratégias mais simples, eu diria reativas diante deste mal-estar:

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a. Dizer que o que há de mais radical na psicanálise é que ela contenta-se em permanecer como é: como uma Velha Senhora. Ela afirma o valor da experiência contra a vivência, a importância do desejo contra a depressão, a importância da lei contra o gozo, a força da ética contra o mundo da técnica, do tempo longo de uma análise contra a rapidez da cura dos homens feita às pressas. A prova disso é que ela sobreviveu, apesar de seu anacronismo. b. Dizer que o que há de mais radical na psicanálise é que ela é atualizável. Ela aparece aqui como uma Enfant Terrible, o moleque travesso das ciências humanas, a única prática à altura da ação comunicativa (Habermas), o reduto de uma estilística da existência (Foucault). Ela é atualizável justamente porque estava na frente na aurora da modernidade. Ela sempre foi profética: o papel da sexualidade, a crítica do funcionamento das massas, a segregação inerente à expansão dos mercados comuns, o recuo diante das utopias e planejamentos sociais. Digo que estas duas posições representam o novo conservadorismo psicanalítico tanto por ironia ao fato de que já faz cem anos que ambas as soluções abundam a história da psicanálise, quanto pelo fato de que ambas aceitam tacitamente a tese de que nossa época é tangível, imediatamente tangível: basta abrir os jornais. Nisso ela está perfeitamente em acordo com nossa época, que se imagina transparente a si mesma, que as coisas realmente se conservam apesar de plenas de mudanças. Ou seja, tanto uma quanto a outra confiam no retrato que recebem desconhecendo uma das regras elementares do funcionamento narcísico: entre o retrato e aquele que pretende nele se enxergar há sempre um lugar terceiro. Lugar para o qual concorremos para produzir em soberano desconhecimento e ignorância. Enquanto nos medimos no retrato, procurando o melhor perfil e ajustando nossa posição, esquecemos que nossa época foi produzida, como fato simbólico e discursivo, também pela psicanálise. Portanto, a psicanálise está perfeitamente em acordo com esta época, simplesmente porque ela contribuiu para produzi-la. A questão é saber se ela poderá sair de sua própria época para poder reencontrá-la. Portanto, um dos problemas cruciais para a psicanálise, em sua clínica e em sua presença no mundo é saber se ela conseguirá sair do condomínio no qual ela mesma se torna contemporânea de si mesma e de seus síndicos.

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Nota sobre o diagnóstico Muitos psiquiatras questionam as renovações feitas pelo DSM-V, porque elas não se apoiam de fato em novas descobertas científicas, mas em redefinições nominalistas de sintomas e definições operacionais de síndromes. Isso valoriza ou sobrevaloriza o diagnóstico mediante exame retrospectivo dos efeitos de medicações, cujo verdadeiro mecanismo de ação se desconhece. Ou seja, a unidade perdida com o sequestro da neurose, como hipótese que unifica história de vida, sintomas e personalidade, é reencontrada na unidade de um objeto: a medicação. A hipótese da recaptura da noradrenalina para explicar o mecanismo da ansiedade, proposta em 1958, foi expandida para a relação entre a dopamina e a esquizofrenia, nos anos 1960, para a serotonina e a depressão, nos anos 1970, e finalmente ligando a endorfina aos circuitos do prazer na década de 1980. Observe-se que se trata de uma mesma matriz hipotética que se reaplica em diversos casos. Em todos eles o transtorno é considerado um déficit de substância neuronal. A medicação entraria assim, de modo compensatório, fazendo o que o corpo não consegue fazer por si mesmo. Mas tal hipótese deixa de lado o caso em que certos estados mentais sejam produzidos de forma totalmente inédita na propriocepção, na experiência corporal e na economia de significação do sujeito, como parece ocorrer com o uso continuado do metilfenidado (conhecido popularmente como Ritalina). Ou seja, há sim um “antes” e um “depois” da medicação que estabelece uma nova unidade no eu, mas esta é criada pela medicação e não pressuposta por esta. O caráter mais ou menos questionável das descobertas em torno dos neurotransmissores se faz acompanhar de outro fato mais difícil de entender. Palavras, principalmente metáforas, narrativas ou experiências de linguagem em contexto intersubjetivo induzem a receptação e a distribuição de neurotransmissores como dopamina, serotonina, noradrenalina e endorfinas. Palavras mudam o seu cérebro, e o seu cérebro muda suas palavras, mas não da mesma maneira. O real prejuízo que temos com o sequestro da noção de neurose, para o tratamento de nossos pacientes, não é que agora eles não querem mais saber da arqueologia infantil, nem das conexões sexuais e esquecidas na gênese histórica de seus sintomas, mas que eles se vejam sancionados, por um dispositivo diagnóstico com força de lei e poder disciplinar, na desconexão entre seus próprios sintomas. Ou seja, uma das características mais antigas e mais simples da neurose, a saber, o fato de que nela o sujeito não liga (aliena) os pontos que unem sua vida, seus sintomas e sua personalidade tornou-se a forma oficial e padronizada de pensar a loucura. A neurose opera pela desconexão entre contextos narrativos, como que a dizer que a vida sexual é uma coisa, a profissional é outra, a familiar uma terceira coisa, os cuidados com o corpo algo à parte, as fases da vida um problema isolado. A vida pessoal é apenas “outro setor” desta grande loja de departamentos na qual nos transformamos. Mas todo aquele que se vê diante de uma experiência 122

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maior de sofrimento sabe que não é assim. O sofrimento tem uma valência política incontornável, porque ele liga os assuntos: a alimentação com a pobreza, a miséria com a família, a família com o Estado, o Estado com a saúde, a saúde com a maneira estética de viver o corpo, e assim por diante. O sofrimento pode ter a estrutura de uma novela, como o Romance Familiar; de uma teoria, como as Teorias sexuais infantis (Freud) de um mito como o Mito Individual do Neurótico, da poesia chinesa ou simbolista (Lacan), de uma narrativa (A. Ferro) e até mesmo encontrar sua expressão universal na tragédia (Édipo para Freud, Oresteia para M. Klein, Antígona ou Filotectes para Lacan). As pesquisas em torno da dissolução da forma romance, empreendidas por autores como Beckett, Joyce e Duras, desafiam o paradigma discursivo no qual a neurose foi descrita a partir da unidade narrativa-narrador, da coerência entre contar (Erzählen) e descrever (Beschreiben), da progressão articulada de conflitos, da tensão entre diegese da ação e verticalização de personagens. Talvez não seja uma coincidência que os mesmos anos 1950, que presidiriam a emergência do DSM-I, tenham assistido, mais uma vez, a onda de declarações sobre a morte do romance. Mas isso só confirma que o tipo de unidade que encontramos na noção de neurose nos leva a sistemas simbólicos como a literatura, o mito ou os discursos sociais, e que ela pode ser redescrita consistentemente em função destes, tanto em termos semiológicos quanto diagnósticos. Mas isso exigiria reconhecer o mal-estar que preside a insuficiência das articulações entre sofrer e ter um sintoma, no interior do sistema DSM. Certo é que as novas formas de vida, que identificamos com a temporalidade contemporânea, definem-se pela certeza objetiva de uma certa expansão do mundo, correlata de estratégias redutivas deste mesmo mundo ao cenário de nossas pequenas áreas de funcionamento e circulação. Passamos a sofrer de acordo com esta retração narcísica. Se Lacan dizia que o declínio da função social da imago paterna nos levará à ascensão das neuroses de caráter, podemos dizer que a expansão realizada de nossos mercados comuns nos levará a novas formas de sofrimento segregativo.

Nota sobre a vida em forma de condomínio É em nome da insegurança, indeterminação, estranhamento, e seus consequentes juízos de diferença, que se formam muros, arenas e jardins, espaços protegidos no interior dos quais o conflito pode ser administrado. Podemos dizer que neste tempo o mal-estar é lido como anomia suprimida. O conflito deixa de ser percebido como sistêmico, e como tal inapreensível pelo eu, e passa a se apresentar mimeticamente em um pequeno antagonismo administrável, uma luta regrada:

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Correlativamente a formação do eu simboliza-se oniricamente por um campo fortificado, ou mesmo um estádio, que distribui da arena interna até sua muralha, até seu cinturão de escombros e pântanos, dois campos de luta opostos em que o sujeito se enrosca na busca do altivo e longínquo castelo interior cuja forma simboliza o isso de maneira surpreendente (LACAN, 1949/1998). O sonho em torno da casa envidraçada é uma solução ardilosa que alguns analisantes encontram para representar (Rücksicht Dartstelbarkeit) simultaneamente a função de transparência e a função de distanciamento que a primeira fase da fantasia prescreve. Tipicamente este sonho culmina em temas em torno da representação, do palco, da torção entre público e privado, da intimidade e devassidão, de autômatos e bonecos. Muito comumente esta série é interrompida pela emergência de personagens obscenos: ditadores, mestres ou feitores. Se conseguimos extrair a terceira etapa da série, nela aparecem os desmembramentos, as partições e decomposições do corpo, a erotização da morte ou da violência, as figurações gososas da violência. Temos então quatro tempos do processo de condominização. Primeiro, é preciso definir o que é um espaço produtivo, que deve se tornar território, e o que é um espaço improdutivo, que permanecerá em anomia. Notemos que a dificuldade aqui não está em saber como um espaço é produtivo, mas em definir os critérios de improdutividade. Em segundo lugar é preciso estabelecer muros, fronteiras, marcas, que fixam o lugar dentro e o lugar fora, as zonas de passagem e as zonas de interdição. Temos então uma forma de vida no qual o mal-estar encontra-se nomeado. Surge então uma nova divisão, agora entre espaço produtivo e espaço reprodutivo. Por vida reprodutiva entenda-se um conjunto de procedimentos securitários, morais, estéticos, higiênicos, alimentares bem como um conjunto de cuidados, atenções, disposições, atualizações, advertências bem como um conjunto de encargos, taxas e obrigações “necessárias” para a vida continuar a funcionar. Em terceiro lugar surge a função do síndico, aquele que deve gerir o sofrimento da vida em espaço reprodutivo, de tal modo a transformá-lo em formas palpáveis de insatisfação e consequentemente tornar a reprodução, produtiva. O síndico não se ocupa do espaço produtivo, mas do espaço no qual a vida se reproduz, se repõe, se restaura. Sua função é mostrar que ali onde lemos apenas variações amorfas de modalidade de viver há um potencial de uso e de consumo. Finalmente encontramos, no quarto tempo, a passagem da fantasia para a gênese de sintomas, dos quais seriam sua expressão simbólica. Cada forma de retorno do que foi suprimido liga-se a um tipo de sofrimento. Podemos então propor uma primeira divisão destas patologias do social, envolvendo respectivamente:

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1. As que procedem do retorno no Real do que foi negado pelo território imaginário. A referência aqui é a expropriação do território que funda o condomínio como espaço apartado e regido por leis de exceção. Este estado de exceção particular engendra patologias da perda da experiência, que se mostra como anestesia e violência, como sentimento de inautenticidade e irrelevância. Ele é a fonte do mal-estar que encontramos no interior de um universo excessivamente organizado, controlado e higienizado. 2. As que derivam da segregação real do espaço simbólico. Neste caso é o muro, como patologia da divisão do sujeito, que se apresenta em formações de fragmentação, esquizotípicas, com a prevalência dos sentimentos narcísicos de deslocalização, de anomia e de perda de pertencimento. 3. As que se organizam ao modo da impostura imaginária da autoridade simbólica. Aqui é a figura do síndico e seus regulamentos, que nos serve de alegoria para entender a gênese de uma patologia do reconhecimento. São as formações de ideais de vida, de gozo e de ordem, que se exprimem como sentimento de impostura, de falso reconhecimento e de conflito entre promessa e realização. Aqui, o mal-estar é recorrentemente interpretado como violação de um pacto de obediência. 4. As patologias que se apresentam como anomalias de gozo. Neste caso temos todas as formas de sofrimento que giram em torno da gramática social do objeto intrusivo. Desde a hipertrofia do consumo como patologia do supereu, até a percepção de excesso no consumo de substâncias moduladoras da experiência (que criam um condomínio interiorizado) e ainda as formas que tendem a recompor a infelicidade residual no universo condominial atribuindo-as ao vizinho, no fundo ao “outro condomínio” que estaria, por assim dizer, raptando um fragmento do gozo que é aqui sentido como faltante. A lógica do condomínio pode agora ser compreendida como o correlato necessário de uma forma de vida que Boltanski e Chiapelo chamaram de cidade por projetos, baseada na orientação da produção para a forma de redes e da informação para o modo de conexões. Assim podemos navegar por todos os universos paralelos e virtuais, tendo acesso livre a todos os lugares, mas com a garantia sólida de que na “vida real” temos nosso próprio condomínio que nega, ponto a ponto, todos os aspectos da vida virtual, em rede e hiperconectiva. A produção é deslocalizada, o emprego se torna precário, a segurança social declina e a exploração se combina com a exclusão. Surge então um tipo de trabalho, por projeto,

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que consegue contornar benefícios sociais e dispendiosas proteções trabalhistas ou sindicais, gerando consigo uma espécie de oportunismo da produção: Desespacializada [da concepção Estado-nação], sem instância de representação, nem posição preeminente, dominada pela exigência de ampliação ilimitada das redes, ela [...] permanece indiferente à justiça, e mais geralmente à moral [...] Além disso, a exigência de autonomia e o ideal individualista de autoengendramento, autorrealização como forma superior de sucesso [...] contribuem para tornar o homem das redes pouco atento à dívida como fonte legítima de elos sociais (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 1999/2009, p. 391). A lógica do condomínio é a face familiar, privada e íntima deste processo. Por isso quase todos os atributos verificados no processo produtivo se encontrarão, com o sinal trocado, e de forma invertida no condomínio, onde vigora a vida reprodutiva. Ele é um lugar fortemente delimitado, com instâncias de representação como o síndico, possui uma posição como indexador social de classe ou origem, não é indiferente à justiça, com seus códigos e regulamentos, e é, sobretudo, um espaço moral. Nele ganham substância os ideais de autorrealização e sucesso. Ao fim e ao cabo, um condomínio é, em geral, adquirido por meio de uma dívida extensa, que anela o sujeito a um compromisso futuro. O papel desta dívida, que pode ser substituída, trocada superestimando o valor do bem imobiliário, mostrou sua importância na crise econômica da última década. Estados Unidos, Espanha, Irlanda, Grécia, em quase todos os casos a crise desencadeou-se como uma crise imobiliária.

Nota sobre o muro e o aMuro O muro é uma estrutura de defesa. O muro é uma forma de determinação do espaço como território. A defesa (Abwehr) é um conceito psicanalítico que gira em torno das diferentes maneiras pelas quais a indeterminação, gerada pelo desejo, pela angústia, pelo trauma e pela pulsão, pode ser concernida em estruturas de determinação ou de ocupação (Besetzung). Defender-se do desejo é tornar a indeterminação de seu objeto, determinada. Defender-se da angústia é tornar seu objeto não apenas determinado, mas determinante. Defender-se do trauma é tornar a repetição insensata e indeterminada, uma mesma figura de identidade pulsional. Freud, em seu trabalho sobre o Mal-estar na cultura (FREUD, 1929/1988), enumera uma série de “estratégias de vida” que se poderia adotar para fugir ao desprazer. Quase todas elas estão condensadas em nossa parábola do condomínio fechado: associação entre trabalho de conquista da natureza e acolhimento em uma comunidade orgânica de experiência, refúgio em um mundo próprio e 126

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protegido, sentimento de que se usufrui de uma experiência que é acessível para poucos, ilusão de uma realidade esteticamente orientada, sentimento de ruptura intencional com o “mundo comum”, e finalmente, a anestesia induzida pela intoxicação. Em tais condições a possibilidade de sonhar e a as ilusões disponíveis à consciência tornam-se perigosamente próximas de sua realização efetiva. Nesta situação ocorre uma destituição tanto da função de ideal, que é a de apresentar-se como negatividade futura (utopia), quanto da função do objeto, que é a de apresentar-se como presença não localizável (atopia). Entre um e outro há o Real como aquilo que volta sempre ao mesmo lugar, des-encontradamente ao mesmo lugar. A utopia é uma ilusão que se sabe ilusão, justamente por isso ela exerce a função reguladora própria do ideal. Quando a função de ideal é substituída pela de um objeto determinado está estabelecida a condição para o fascínio totalitário e para a servidão voluntária. Ora, essa substituição regressiva, que procura alocar um objeto empírico no lugar da falta estrutural, dissociando crenças e saberes, mimetizando regras particulares com leis universais, é exatamente a estrutura social do fetichismo. Este modo de divisão primário, chamado por Freud de Verleugnung, correlato psicanalítico do que outro processo de produção de falsos universais, ou seja, o que Marx chamou de fetichismo da mercadoria. Assim como a mais-valia seria um caso particular da função de mais-de-gozar, o fetiche da mercadoria seria um caso genérico da função clínica do fetiche clínico. Freud já havia percebido este sistema de cruzamentos entre patologias sociais e patologias do indivíduo ao afirmar que assim como o sintoma do neurótico obsessivo é como uma religião particular, as religiões coletivas seriam expressão da generalização de sintomas obsessivos (rituais, constrição de pensamentos, penitências, juramentos etc.). Essa é uma consequência regular da psicologia das massas, como processo de individualização (FREUD, 1912a/1988). Um líder, uma figura da excepcionalidade, vem a ocupar, como objeto, a posição de Ideal de eu para seus seguidores. Este mantém entre si relações de equivalência orientadas pelas posições narcísicas de eu ideal. Contudo, é preciso pensar, depois de Freud, uma psicologia das massas para além do eu e neste caso a noção de sofrimento torna-se essencial. O sofrimento, como vimos, é sempre estruturado como uma demanda, daí sua ligação com a lógica do reconhecimento, com a dialética do amor e daí também sua estrutura de retorno, regressão e resistência. Contudo, nem todo mal-estar se constrange a ser capturado pela demanda, assim como nem todo desejo se inscreve sob forma de demanda. Assim como a demanda é um estado, de excesso de determinação do desejo, o sofrimento é um estado de excesso de determinação do mal-estar. Seria possível entender, por esta via, a existência de certas formas de mal-estar que não se articulam como sofrimento, porque não se articulam em estrutura de demanda. O sofrimento

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que não se articula como demanda é semelhante a uma alienação imperfeita. Por exemplo, uma alienação que perde a capacidade de exteriorização simbólica ou que suspende a distinção entre estrangeiro e próprio é uma alienação precária, ou melhor, uma alienação que se exagera a tal ponto que perde sua função de defesa. Para Lacan (1961-62/2003), a demanda se estrutura ao modo de dois toros entrelaçados, o toro do sujeito e o toro do Outro. O toro é uma estrutura topológica circular semelhante a uma boia. Imagine duas boias entrelaçadas e você terá a figura à qual Lacan alude. O conceito psicanalítico de demanda é muito importante para desestabilizar a força intuitiva da noção de pedido, de queixa ou e até mesmo a noção econômica de demanda. Por ser inconsciente não é possível saber exatamente quando e porque uma demanda é satisfeita. A imagem dos dois toros serve para mostrar como aquilo que é demanda no sujeito torna-se desejo no Outro, e aquilo que é demanda no Outro torna-se desejo no sujeito. A neurose é definida por Lacan como esta parceria entre os dois toros. A cura psicanalítica é, em grande parte, a experiência de que afinal estes dois toros não se encaixam perfeitamente, que há entre eles um suplemento, uma ilusão que faz com que ambos se articulem em um sistema de passagens perfeitas. É neste “gap”, neste ponto de desencaixe entre os toros, que o neurótico introduz seu objeto a. É também neste ponto que o neurótico oferece sua própria divisão subjetiva ao Outro. A difração causada pela demanda, como momento de objetivação do desejo, explica por que o sujeito não sabe o que pede no ato mesmo de pedir. Isso é outra maneira de mostrar como as teorias baseadas no sujeito econômico que age por motivações racionais, sempre maximizando ganhos e reduzindo prejuízos, não podem funcionar perfeitamente, em todos os momentos. Há formas de sofrimento que aparecem como demanda para o Outro. São as que se manifestam como aspirações de ajustamento, adequação ou normalização. É o tipo de sofrimento que faz pedido e apelo ao outro. Ela acusa mais claramente uma forma objetivada do desejo, um objeto no qual ele se aliena. Daí que seu semblante clínico seja a insatisfação, a indignação e a reivindicação. Também o desejo histérico, como desejo de um desejo insatisfeito, permite exemplificar esta posição do sofrimento como pedido intransitivo. Neste caso a demanda adquire sua forma aparentemente mais simples de nomeação de uma falta, seja como frustração imaginária, como castração simbólica ou como privação real. Há outras formas de sofrimento que surgem como modos afirmativos de identidade, de caráter ou de personalidade. São demandas contra o Outro. Elas não se refletem em aspirações de transformação, mas que se baseiam na recusa. Sofrer, apesar da passividade semântica aludida pela etimologia do verbo (pathos), apresenta-se aqui na forma específica de um ato ou de uma atividade. Um exemplo disso encontramos no chamado Transtorno de Personalidade Agressivo Passiva,

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caracterizado pela atitude de aceitação apática de ordens e regras, mas que silenciosamente constrói uma atitude de resistência e recusa, semelhante ao dito de Barthelby, o escrivão descrito por Melville, que dizia diante de todas as demandas: “I would prefer not to” (eu preferiria que não). São como monumentos que consagram e protegem uma história ou uma experiência, recusando-se a esquecê-la ou substituí-la impropriamente. É a posição negativista da criança diante do desejo do adulto. É também a posição da anoréxica diante dos objetos alimentares que se lhe oferecem. Posição que alcança seu grau mais elaborado de formalização literária no dito do escrivão Barthelby, de Melville “I would prefer not to” (eu preferiria que não). Há formas de sofrimento que decorrem da desarticulação da demanda, da desorientação de seu endereçamento simbólico, da suspensão calculada da dialética do reconhecimento. Nesse caso trata-se de um sofrimento que ataca a oferta do outro, que avança contra o lugar em que se é instalado pelo outro quando se tem o sofrimento reconhecido. São formas de sofrimento que não pedem nada, mas que, ao contrário oferecem algo ao Outro. Um bom exemplo disso é a posição masoquista, na qual se poderia entrever a modalidade mais pura e desinteressada de amor. O que se oferece ao outro é a própria carência, desamparo ou ausência. Se o pedido é uma forma de sofrimento que constitui o falo como significante da falta, a oferta é uma modalidade do sofrimento que se baseiam na identificação ao objeto a, com a qual suturamos a demanda no Outro. Finalmente, há formas de sofrimento que são impercebidas ou irrealizadas pelo próprio sujeito, porque aparecem justamente como demandas do Outro. Neste caso é porque o outro sofre que o sujeito sofre como que por procuração, como se nota muitas vezes na relação dos adultos com crianças. Este é também o caso do fetichista, que jamais sofre porque tem um fetiche, mas eventualmente porque este fato lhe traz dificuldades secundárias, quanto ao modo de praticá-lo, quanto à dificuldade social que este pode implicar. A enunciação desta forma não nomeada de mal-estar poderia se resumir a: não é isso. Não se trata da recusa de uma oferta, nem do pedido, mas do ponto de suspensão do próprio circuito da demanda. A demanda é toda do Outro. É ele quem se encarregará de trabalhar, de re-ofertar, de pedir, de recusar os objetos específicos. O não é isso se aplicará a cada uma destas fases da demanda, de modo ambíguo e flutuante. Não é isso se aplica indistintamente a quem oferece, ao que é oferecido e ao próprio reconhecimento do que foi recusado. O muro é uma estrutura de defesa contra a falta (pedido), uma mensagem de indiferença contra o outro (oferta) e uma negação indeterminada de reconhecimento (recusa). O muro, ou a estrutura de véu quando se trata do fetichismo, diz invariavelmente que “não é isso”, para os que estão fora, e consequentemente “é isso” para os que estão dentro.

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No mesmo seminário em que Lacan (1971-72a/2012) introduz a relação borromeana entre Real, Simbólico e Imaginário, ele redefine a estrutura da demanda por meio do conceito de recusa. A fórmula que sintetiza a estrutura da demanda, e que decompus anteriormente, em modalidades narrativas do sofrimento é: “eu peço que recuses o que te ofereço, por que não é isso”. A posição discursiva da demanda, assim como a narrativa do sofrimento, não deve ser reduzida ao processo aquisitivo ou incorporativo. Aqui o eco estruturalista é claro: receber não só implica a obrigação de retribuir como pedir é ao mesmo tempo oferecer. Por isso a gramática da demanda é homóloga à gramática do amor (dar o que não se tem a quem não pediu). Recapitulemos agora os quatro tempos da lógica do condomínio segundo a estrutura da demanda: 1. Pedir ou não pedir, que em termos da dialética do amor refere-se à inversão de conteúdo da pulsão entre amar e odiar. Trata-se, neste caso, da decisão primária que delimita o espaço no qual as relações de reconhecimento podem e devem se dar. Segundo a lógica freudiana (FREUD, 1911/1988) da constituição do narcisismo, aquilo que não entra na esfera da oposição prazer-desprazer é excluído como zona de indiferença. O condomínio localiza um campo para além do qual se estabelece esta zona de indiferença, exterior ao escopo da luta pelo reconhecimento. 2. Recusar ou aceitar diz respeito ao ato de sanção pelo qual a demanda se inscreve no Outro. Recusar ou aceitar uma demanda não quer dizer satisfazê-la, mas reconhecer a pertinência de sua formulação, sua inscrição significante, sua assimilação a um discurso constituído. 3. Dar ou receber, que diz respeito à inversão simples entre amar e ser amado, organiza a expectativa básica de reciprocidade e correspondência, matriz essencial das relações de reconhecimento. 4. Não é isso ou é isso. O quarto tempo da gramática amorosa é a sua única forma de negação real, ou seja, aquela pelo qual o oposto do amor é uma exterioridade constituída pelo desejo, pela angústia ou pelo gozo. É o tempo no qual a fantasia retorna sob si mesma, trazendo efeitos de decepção e insuficiência. Lacan reescreve esta oposição poeticamente: Entre o homem e a mulher, há o amor. Entre o homem e o amor, há um mundo. Entre o homem e o mundo há o muro (LACAN, 1971-72b/2011).

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Lembremos que o muro, como figura de interposição da demanda, refere-se também aos muros do asilo, uma vez que este seminário se realiza na capela do Hospital de Sainte-Anne, no contexto da antipsiquiatria e da reforma italiana, que originaram um novo modelo em saúde mental. A ironia contida na ideia de falar com as paredes, que dá título a esta conferência, recupera a ideia de que nas paredes há uma demanda e uma modalidade de sofrimento que foi esquecida. Falar com as paredes não é só falar para quem não vai nos escutar, mas reconhecer que nas paredes e nos muros há um mal-estar do qual não lembramos mais o nome e um tipo de sofrimento que exprime uma aspiração de reconhecimento. Novamente o muro aparece como figura da indiferença, da exclusão e da segregação, contendo dentro de si, a forma indeterminada de negação dos tempos da demanda. O muro determina um lugar. Um lugar é habitado por uma demanda. E uma demanda implica um circuito entre um pedido, (exemplo, Mantenha distância – Cão bravo), uma recusa (exemplo, Propriedade particular – não entre), uma oferta (exemplo: Seja bem-vindo à Morada dos eucaliptos!). Um lugar se transforma conforme o espaço no qual ele se insere. Daí que um lugar não seja um território e que toda demarcação é também uma des-marcação, ou seja, uma possibilidade, mesmo que virtual, de apagamento do território. A enunciação desta quarta articulação da demanda, e que a articula ao desejo, chama-se “não é isso”. Paradoxo da designação ostensiva, pela qual a própria indicação do lugar o desmente enquanto território. Mas o muro no capitalismo avançado adquire outra incidência. Ele substitui a dimensão criativa da negação (não), pela função reificante do (é isso). Esta nova função do muro se distingue do que Lacan chamou de amuro, como figura obstrutiva do amor em relação ao desejo, pois se trata de uma paralização da dialética entre ambos, a espécie de fixação de um sentimento. Esta nova figura do muro, que compõe a lógica do condomínio, nos leva assim a quatro sentimentos envolvidos na produção da patologia social:

1. O ressentimento, derivado da soberania imaginária do Outro e da obstrução da faculdade do pedir (KEHL, 2009). O ressentimento é um efeito estrutural da soberania excessiva do Outro, da consolidação fantasmática de sua onipotência, por identificação redutiva a uma alteridade encarnada e positiva. É fácil perceber como o ressentimento prospera naqueles que se sentem excluídos pelos muros do condomínio.

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2. O cinismo, procedente da instrumentalização do sentido e da fixação na posição da recusa (GOLDENBERG, 2002). Cinismo é, antes de tudo, uma patologia da crítica, uma patologia da possibilidade de dizer não, de forma determinada ou indeterminada. O cínico recusa aceitando e aceita recusando, neutralizando assim a função de resistência e de detenção da demanda. 3. A degradação do sentimento de respeito, associada ao declínio de uma determinada gramática de autoridade, decorrente da exclusão ou do fracasso do oferecimento de meios de participação no universo da produção, do consumo e da reprodução cultural (SENNETT, 2003/2004). A autoridade é, principalmente, um efeito da recusa ao exercício direto do poder. Ela envolve um processo gradual de substituição simbólica do exercício do poder pela suposição de que este pode ser exercido, de que seu agente tem os meios para exercê-lo. É por isso que o declínio da função social da imago paterna explica a emergência de formações concentracionárias em torno do exercício do poder. 4. O sentimento de exílio e isolamento, que instaura a inadequação generalizada a qualquer espaço de pertencimento. “Não é isso” torna-se uma espécie de legenda para a impossibilidade de pertencimento. Sua origem é, naturalmente, o ponto genético do desejo, seu apagamento pela interpolação do objeto ou ainda a formação de equivalentes de angústia (a falta da falta). Freud estabeleceu a culpa, a vergonha e o nojo como os três sentimentos sociais, decorrentes da interiorização da lei. A estes devemos acrescentar as formas sociais da angústia, desde o horror até o pânico, desde o desamparo até o embaraço. Lacan falava dos sentimentos sociais de familiaridade, realidade, apatia ou estranheza (unheimlich), como a realização subjetiva de tensões sociais. Ressentimento, cinismo, desrespeito e angústia subjetivam a impostura da lei, representada pela presença do muro. Seja ela descrita em termos da atividade da linguagem (cinismo), na esfera do desejo (ressentimento) ou do mundo do trabalho (desrespeito), a patologia social do muro não deve ser resumida à enunciação negativa (não é isso), afinal esta é tanto a enunciação da lei simbólica quanto efeito inerente ao trabalho do desejo diante de seus objetos. O que é propriamente patológico na figura sintomática do muro é o desligamento ou a desarticulação que este produz com relação às outras posições da demanda. Não é por outro motivo que os muros se tornaram lugares privilegiados para a escrita de mensagens, grafites e pichações, por meio das quais novas formações de demanda se inscrevem. Voltemos a este período na cultura brasileira pós-inflacionária, marcado pela indeterminação crônica do valor, tanto das mercadorias quanto das experiências, no qual o laço social em forma de condomínio surge como solução. Lembremos como 132

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os primeiros tempos pós-inflacionários estavam carregados por um significante de dupla valência: a chamada abertura – política e econômica. A ideia de que éramos um país fechado, repleto de barreiras alfandegárias, restrições comerciais e que estávamos a recusar nosso ingresso no mundo global do futuro, produzia, como sói acontecer nos efeitos da fantasia, uma realidade constituída a posteriori. Ou seja, já éramos um condomínio, mesmo que não soubéssemos disso ainda. Isso nos teria levado à fantasia ideológica de que uma vez livres deste pequeno empecilho – “ajuste” era a expressão eufêmica para tal operação –, poderíamos, enfim, dedicarmo-nos à procura da “felicidade”, reencontrando novamente nosso glorioso destino. Ou seja, uma versão maldisfarçada da fantasia, que nos faz crer e confirmar, a cada momento, a hipótese de nosso “liberalismo mal implantado”. Primeiro, é preciso estabelecer certos limites contra o desprazer, em seguida pensar se é possível alguma satisfação. “Um esforço a mais se quereis montar vosso próprio condomínio” – diria o aspecto sadeano de tal fantasia. É preciso lembrar que o conceito de condomínio toca-se rapidamente com o universo invertido e periférico das favelas. A fusão sintética dos dois universos opostos é, naturalmente, a prisão. A lógica concentracionária reproduz o estado de exceção alternando a face liberal da formação de muros, que trabalha pela instrumentalização dos dispositivos de regulação, e a face disciplinar dos muros que opera reativamente pelo controle de excessos. Entre uma e outra, há a face romântica do condomínio, aquela pela qual a estrutura se mostra de modo mais visível como idealização. Ou seja, três formas complementares de determinação como bom uso da liberdade, como aperfeiçoamento da ordem e como idealização da experiência, concorrem na sustentação da fantasia narcísica dos muros. O condomínio, como bolsão de pobreza, aproxima-se do que Milton Santos chamou de pobreza incluída, sinal de uma nova interpretação sobre a diferença social e a desigualdade. Não se trata mais de fazer desenvolver os atrasados, mas de localizar e conter o resíduo como pobreza estrutural globalizada. De acordo com esta lógica é preciso exportar problemas e ao mesmo tempo restringir seu retorno, pelo reforço de barreiras fiscais, controle de fronteiras e restrição de circulação de pessoas. A identidade estrutural que une condomínios de luxo, prisões e favelas aparece como ressentimento social: O território tanto quanto o lugar são esquizofrênicos, porque de um lado acolhem os vetores da globalização, que neles se instalam para impor sua nova ordem; e de outro lado, neles se produz uma contraordem, porque há uma produção acelerada de pobres excluídos e marginalizados (SANTOS,2000). Saliente-se, com relação aos três casos o fascínio despertado pela criação de “leis próprias” ao modo de códigos autônomos na favela, no condomínio e na

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prisão. O delírio do retorno à natureza, a atração exercida pela terra de ninguém, o terreno neutro e virgem sobre o qual se pode definir falicamente regras e normas, permite atualizar a cena primária de toda fantasia, qual seja, o momento originário de nascimento da lei. Encontramos assim uma tentativa de corrigir um fragmento insuportável de realidade que fora suprimido por ocasião da constituição do campo. O campo é uma regra de ocupação, não é um lugar empírico, mas há lugares empíricos que nos permitem reconhecer suas regras de formação. Se o campo de concentração tradicional baseava-se em certos princípios produtivos, discursivos e organizativos, que possuíam seu correlato na noção médica de isolamento, o novo campo está mais adaptado a uma produção deslocalizada. Outro exemplo cultural correlato da formação de muros é o chamado reality show. Veiculados de maneira massiva e variável desde 2002, eles começam pela importação de uma fórmula internacional, mas que rapidamente ganha fôlego por aqui. Assim como Alphaville, de Godard, dá título a Alphaville, de Barueri; 1984, de George Orwell, é o suporte paródico do Big Brother. O regime murado é orientado para olhar o que se passa dentro. Recuperando nossa antiga tradição da assistência ritual familiar à novela, a transmissão ao vivo deste experimento psicológico pode ser considerada, enfim, o que faltava ao condomínio para que ele encontrasse sua inscrição cultural cotidiana. Forma rediviva da antiga chanchada, aliás, às vezes também pornochanchada, o reality show encontra sua trilha sonora no sincretismo do axé ao forró universitário. Suas câmeras de segurança são parasitadas por uma função segunda, erotológica e pornográfica. Os dramas banais são agora universalizados, como vivência coletiva. A fala prosaica e o cotidiano ordinário nos mostram que qualquer um pode ser uma celebridade, pois ela é feita pelo olhar não pelo objeto. Uma manobra muito interessante, pois permite ao antigo morador do condomínio ter acesso ao que lhe faltava, o olhar de inveja dos que ficam de fora. Inversamente permite aos que estavam fora sentir que no fundo já viviam em um condomínio, só não sabiam disso. Há uma espécie de paradoxo da imagem tornada assim pornográfica, não pelos eventuais eventos picantes, mas pela forma mesma de exageração e do excesso. Paródia e autorrepresentação nas quais se baseia a própria satisfação de ser olhado. Quanto mais se reconhece a vida cotidiana como produto montado e gerido, menor valor ela tem em termos de autenticidade e espontaneidade. O erotismo, na sua forma de mais-de-gozar, extraída do interior da vida reprodutiva, é muito mais eficaz como valor agregado ao objeto: A imagem publicitária evoca o gozo que se consuma na própria imagem, ao mesmo tempo que promete fazer do consumidor um ser pleno e realizado. Tudo evoca o sexo ao mesmo tempo que afasta o sexual, na medida em que a mercadoria se oferece como presença segura, positivada no real, do objeto de desejo (KEHL, 2002, p. 123). 134

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O domínio do erotismo, assim como o da violência, está continuamente exposto à banalização. A relação entre estas duas séries pode ser examinada à luz da lógica do condomínio. Freud chamava esta degradação da demanda amorosa de Erniedringung, ou seja, declínio do valor libidinal do objeto (FREUD, 1912b/1988). A imagem que Freud evoca para exemplificar o processo é a do casal que depois do enamoramento inicial vê o casamento se arrastar para a tediosa repetição cotidiana. O homem de volta à roda de amigos no bar e a mulher transformada em um dragão insatisfeita e mal-humorada. O enredo prossegue com a aparição de objetos consolatórios: crianças para a mulher, outras mulheres para os homens. Há algo de substancial que ainda permanece neste roteiro, mesmo com as modificações importantes nos costumes conjugais. A solidão e o esvaziamento dos laços de afeto acompanham as novas formas de avaliação de produtividade, desempenho e retorno de investimento, próprias ao mundo do trabalho e do consumo. A intimidade autêntica torna-se assim um dos condomínios mais cobiçados em função das inúmeras formas miméticas que a vida digital introduziu neste âmbito. Neste caso teríamos que entender o hedonismo interpassivo, como parte da fantasia do muro. Hedonismo interpassivo retoma a noção proposta inicialmente por Zizek de crença interpassiva. Trata-se de um fenômeno pelo qual uma experiência é vivida por procuração, por exemplo, as antigas carpideiras, que por ofício choravam nos velórios esvaziados do interior do Brasil, ou os “risos de auditório” que nos poupam até mesmo o esforço de achar algo diretamente cômico em uma comédia de qualidade duvidosa. Ou seja, não rimos do riso do outro, mas empreitamos nosso riso a um terceiro, como se ele fosse um síndico de nossa satisfação. O sentimento de que todos os outros estão em uma vida extremamente intensa, eroticamente rica e movimentada, enquanto nós mesmos enfrentamos nossa banalidade solitariamente é um caso particular do sofrimento organizado pela relação intra/extramuros. No hedonismo interpassivo não precisamos sair de casa, enfrentar o trânsito e os riscos reais de uma contingência amorosa. Mesmo que a experiência amorosa assim posta seja excessivamente determinada e vazia, ainda assim é possível gozar com a suposição de que aqueles que estão do lado de fora não sentem assim. Então, nos vendo de fora, e nesta imagem de satisfação que eu suponho que o outro lê em mim, posso recuperar um fragmento do hedonismo real ao qual renunciei. Três anos depois da aparição da lei brasileira sobre condomínios e cinco anos antes de nossa experiência modelo nos arredores de São Paulo, Lacan postulava que a expansão dos mercados comuns nos levaria à acentuação da segregação como princípio social. Nesta previsão há uma leitura do tipo de consequência que se pode esperar da elevação do regime de igualdade liberal à condição de regra universal bem como do tipo de concepção da troca social que se liga ao fenômeno

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da segregação. Entre o fenômeno econômico do mercado comum e o fenômeno social da segregação há uma mediação adicional, representada pela anomalia do laço social prescrito pelo discurso do mestre, anomalia que Lacan chamou de discurso do capitalista. Sob certas circunstâncias a relação de reconhecimento, organizada pelo discurso do mestre, em seus movimentos alternados de absorção de sentido e de contrassentido e com sua fantasia subjacente recalcada, inverte-se em uma relação direta e fechada entre o sujeito e o objeto (gozo do consumo) e do significante ao outro (gozo do sentido).

referências bibliográficas BOLTANSKI, L; CHIAPELLO, È. (1999). O Novo Espírito do Capitalismo. Martins Fontes, São Paulo, 2009. FREUD, S. (1911). “Dois princípios do acontecer psíquico” In: Obras Completas de Sigmund Freud – v. IX. Buenos Aires: Amorrortu, 1988.                   . (1912a). “Psicologia das massas e análise do eu” In: Obras Completas de Sigmund Freud – v. XVIII. Buenos Aires: Amorrortu, 1988.                   . (1912b). “Sobre a mais geral degradação do objeto na vida erótica” In: Obras Completas Sigmund Freud. Buenos Aires: Amorrortu, 1988.                   . (1929). “Mal-estar na cultura” In: Obras Completas de Sigmund Freud – v. XXI. Buenos Aires: Amorrortu, 1988. GOLDENBERG, R. (2002). No Círculo Cínico ou Caro Lacan porque recusar a análise aos canalhas. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. KEHL, M. R. (2002). Sobre Ética e Psicanálise. Companhia das Letras, São Paulo.                   . (2009). Ressentimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009. LACAN, J. (1949). “O estádio do espelho como formador da função do eu [Je] tal como nos é revelada na experiência psicanalítica” In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.                   . (1953). “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.                   . (1961-62). O seminário, livro 9: A identificação. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife, 2003.                   . (1971-72a). O seminário, livro 19: ... ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2012.                   . (1971-72b). Estou falando com as paredes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2011. SANTOS, M. (2000). Por uma Outra Globalização. Record, Rio de Janeiro. SENNETT, R. (2003). Respeito. Record, Rio de Janeiro, 2004.

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Psicanálise e contemporaneidade: Novas formas de vida?

resumo: Neste artigo apresento três notas sobre a contemporaneidade da psicanálise. Na primeira, examino sua contemporaneidade a si tendo em vista a distinção entre a temporalidade de mythos, epos e logos no tempo da transferência. Na segunda nota examino os tempos da diagnóstica psicanalítica em relação à temporalidade da tecno-psiquiatria. Na terceira nota examino a inserção da psicanálise lacaniana na cultura brasileira dos anos 1970 e sua incidência sobre a vida em forma de condomínio.

palavras-chave: Temporalidade; brasilidade; diagnóstico.

abstract: My aim in this article is to present three notes about the contemporaneity of psychoanalysis. On the first note, I examine its contemporaneity taking as a point of departure the distinction between the temporality of mythos, epos, and logos in the time of transference. On the second note, I examine the times of psychoanalytical diagnosis in relation to the temporality of tecno-psychiatry. On the third one, I discuss the insertion of Lacanian psychoanalysis in the Brazilian culture of the 1970’s and its incidence over life as a condominium.

keywords: Temporality; brazilianism; dyagnosis.

recebido: 15/08/2016

aprovado: 12/09/2016

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A essência fugaz do brilho da falta1 Fabiano Chagas Rabêlo Introdução O filme Brilho eterno de uma mente sem lembranças, do roteirista Charlie Kaufman e do diretor Michel Gondry, nos apresenta uma intrincada trama que conjuga fórmulas e temáticas que usualmente não são encontradas associadas. Sua história oscila entre o cotidiano e a ficção científica, o drama e a comédia, o absurdo e o trivial, o sublime e o ridículo. Apesar de sua complexidade, o enredo consegue capturar o espectador e conduzi-lo pelos meandros do caminho construído a partir da errância da personagem principal. No entanto, sua principal qualidade, que a nosso ver o torna tão atual hoje quanto em seu lançamento, em 2004, deriva dos questionamentos sobre a presença cada vez mais incisiva, mas ao mesmo tempo sorrateira e insuspeita, do discurso da ciência em nossas vidas. Eis o cerne do dilema que o filme dramatiza: uma vez sendo possível gerenciar nossas próprias lembranças, mantendo as agradáveis e excluindo as penosas, por que então deveríamos padecer com experiências traumáticas? Diante da opção realizada pelo protagonista pela economia do sofrimento, o desenrolar dos acontecimentos nos leva a formular uma segunda questão: quais, então, seriam as consequências para uma pessoa do apagamento voluntário, deliberado e intencional de suas lembranças infelizes? O que isso acarretaria? Partimos dessa história para indagar, com base nas contribuições de Freud e Lacan, os desafios que se colocam para o psicanalista na atualidade, tendo em vista a presença maciça de ofertas de tratamento mediadas pelo discurso capitalista. Desse modo, repercutimos aqui a pergunta formulada por Roudinesco (2000). No contexto de um mercado repleto de tecnologias que prometem a felicidade ao alcance das mãos e uma vida sem dor por meio de uma negação protética da castração, o que fazer então para sustentar a opção pela psicanálise, um tratamento longo, que não poupa o sujeito do desconforto da fala e da implicação no seu sintoma? 1 Uma versão preliminar deste trabalho foi apresentada no X Encontro Nacional da EPFCL – O inconsciente e o CORPO, que ocorreu em Joinville (SC) em novembro de 2009.

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RABÊLO, Fabiano Chagas

De acordo com a autora, a resposta a essa pergunta passa necessariamente pela aposta no tratamento pela fala a partir do discurso psicanalítico, que, por sua vez, deve estar à altura para intervir nas diferentes formas de manifestação do inconsciente de cada época. Por isso, durante nossa explanação buscamos situar no filme as modalidades de presentificação da divisão subjetiva, no simbólico e no real, como vias de retorno daquilo que é foracluído por essas práticas de regulação do mal-estar. Ao final, perguntamos o que compete ao psicanalista fazer em face das manifestações do sofrimento psíquico na atualidade que trazem consigo efeitos do discurso capitalista na cultura.

A essência da memória O filme começa com Joel Barish acordando para uma rotina vazia. No caminho para o trabalho, percebe que aquele não é um dia como os outros. Pequenos acidentes, coincidências intrigantes e uma sensação ao mesmo tempo vaga e abrangente de desconforto o fazem sentir como se algo íntimo de extrema importância lhe estivesse escapando sem que pudesse nomear. A imersão nesse sentimento generalizado de estranhamento só é interrompida pelo surgimento de uma vontade compulsiva, arrebatadora e inexplicável de desenhar e escrever alguns pensamentos que lhe ocorrem. Constata nesse momento que algumas folhas de seu caderno foram arrancadas. Tais folhas ausentes, como veremos, constitui uma metáfora de sua condição de exilado das próprias lembranças. Temos então, de um lado, algo de um registro subjetivo que se encontra excluído ou desconectado; de outro, um intenso trabalho que busca religar as pontas soltas do seu discurso cotidiano. Enquanto aguarda o trem, lembra-se que aquele é o Dia dos Namorados, Valentine’s Day. Pensa em monólogo: “uma data criada para fazer as pessoas se sentirem culpadas e comprarem cartões”. De súbito, resolve faltar ao trabalho e, sem saber o porquê, deixa-se levar pela ideia de retornar a Montauk, uma praia próxima de Nova York onde estivera anos antes com alguns amigos. “Eu não costumo ser impulsivo. Por que estou agindo desse modo? Por que esse lugar e não outro?” Indaga-se, afetado pelos significantes que emergem: Valentine’s Day, impulsivo, Montauk. Da perspectiva da psicanálise, é possível identificar esses acontecimentos como um acting-out, uma atuação (agieren), conforme Freud (1914/1997) exprime no texto Recordar, Repetir, Elaborar. De acordo com Lacan (1958/1998), trata-se de um modo pelo qual o sujeito atualiza em uma cena a sua posição em relação ao Outro na fantasia, dando a ver nessa encenação aquilo que lhe concerne como verdade recalcada. Constitui o equivalente a uma análise sem analista, na medida em que uma disposição à transferência está mobilizada. Quando o sujeito em questão encontra-se em análise, o acting-out é indicativo de uma insuficiência de interpretação da parte do analista. Logo, da perspectiva do analisando, ele pode 140

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ser considerado uma abertura psíquica para um trabalho de elaboração simbólica. Assim, por meio do acting-out, um quantum de afeto livre, não metabolizado, na falta de outras alternativas, escoa pela via da ação, furtando-se a uma elaboração. O desafio do analista está em criar as condições para que essa elaboração ocorra. No caso do filme, podemos tomar as atuações de Joel como uma insistência do inconsciente, que presentifica o seu lugar de sujeito tocado pela falta. Isso quer dizer, como um apelo à significação diante do Outro a partir de um encontro siderante com o objeto que lhe causa o desejo. Já em Montauk, Joel se depara com uma mulher que lhe chama a atenção. Tal fato o desconcerta, fazendo-lhe repudiar a atração que sente. Pouco depois, torna a encontrá-la na cafeteria. A moça parece simpática. Surpreendido pelo interesse correspondido, acrescenta mais uma pergunta ao seu monólogo interior, dessa vez em tom de autorrecriminação: “por que eu sempre me apaixono por toda mulher que me dá um pouco de atenção?”. Temos então notícias de uma discrepância entre um desejo que insiste e um ideal que seu Eu busca preservar e que supõe ameaçado. No trem, ao regressar, torna a reencontrá-la. Seria coincidência? Por que os caminhos dos dois se cruzam reiteradamente? Desta vez, eles conversam. Ela então toma iniciativa, puxa assunto e lhe diz o nome: Clementine Kruckzinsk. Enquanto a escuta, Joel faz um inventário mental das características da moça que mais lhe desagradam: é atirada, fala demais. Sua presença, todavia, lhe causa um misto de fascínio e inibição. A sensação de já a conhecer paira no ar. Na conversa, durante o trajeto, surge outro significante enigmático: “Dom Pixote” (Huckleberry Hound), referência a um desenho animado da Hanna Barbera que Clementine associa imediatamente ao seu prenome em função da música cantarolada pela personagem principal. Estranho, comenta Clementine, todo mundo conhece esse desenho, menos você. Ela então o convida para ir à sua casa, e na despedida, solicita que Joel telefone para lhe desejar feliz Dia dos Namorados. Esses são os primeiros acontecimentos do filme. Em seguida, um corte faz a narrativa retroagir no tempo para mostrar um Joel desconsolado, aos prantos, dirigindo seu carro até colidi-lo contra um poste. Doravante, o fio condutor da história, que até então seguia uma progressão cronológica e linear, vai cedendo espaço a um estilo mais intimista, no qual as lembranças de Joel, que progressivamente descobrimos repletas de hiatos, passam a funcionar como diapasão. A história ganha um aspecto cíclico e labiríntico pelo entrelaçamento entre passado e presente, o que em Freud atende pelo nome de Nachträglichkeit, termo que designa o movimento de significação retroativa inerente à atualização das lembranças inconscientes no trabalho de elaboração onírica (FREUD, 1900/1997). A partir dessa referência ao sonho, propomos tomar a errância de Joel como efeito de uma formação de compromisso que coloca algo do real em questão. Daí tomarmos as pontas soltas de suas lembranças como o eixo de onde parte um trabalho de atualização do inconsciente, enquanto causado pelo gozo e pelo significante. Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 33 p.139-151 novembro 2016

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Descobrimos então que Joel já namorara Clementine e que a conhecera em Montauk. O relacionamento teve fim após uma intensa discussão, deixando dolorosas cicatrizes para ambos. Logo após o rompimento, chega ao conhecimento de Joel pelo setor de propaganda da empresa Lacuna que Clementine recorreu aos seus serviços para apagar as lembranças do romance frustrado. “Por que sofrer inutilmente quando se pode abandonar o fardo das lembranças desagradáveis e viver uma nova vida?”, eis o mote da empresa que ele lê no cartão de marketing. Seguindo o exemplo da ex-companheira, Joel opta por se submeter ao mesmo tratamento. O desenrolar da história nos mostra o quão cínica e enganosa é essa proposta da Lacuna. O próprio dono da empresa sabe das consequências e impasses que o emprego de sua técnica acarreta. Não obstante, sua atitude é a radicalização do mesmo expediente. Ou seja, ele busca afastar tudo aquilo que nos seus clientes e colaboradores possa resultar numa atualização das lembranças apagadas: fotos, anotações, gravações, filmes, objetos pessoais etc. No caso das desilusões amorosas, faz-se necessário ainda que a contraparte envolvida, o ex-parceiro, também consinta em se submeter ao mesmo tratamento. Ao contrário do que a propaganda da Lacuna apregoa, está implícito nesse esforço de manutenção do esquecimento que há sempre um elemento transindividual implicado em toda recordação humana. Tal fato evidencia que o sujeito posto em causa por meio de suas recordações não se trata de uma mônada isolada em si mesma ou um epifenômeno vinculado a processos fisiológicos. Na verdade, ele constitui uma função – efêmera e insistente –, resultado dos efeitos da concatenação de uma alteridade com uma linguagem articulada. Dessa forma, é a partir dos hiatos e lacunas do discurso que sua singularidade emerge como resposta ao Outro (LACAN, 1963-64/1998). A ficção constitui aqui uma forma de abordar a realidade. Essa oferta da Lacuna pode ser tomada como a caricatura de uma característica de nosso tempo: a presença ostensiva e cotidiana dos produtos da aliança entre o discurso da ciência e do capitalismo, que engendra objetos de gozo para consumo rápido e dispositivos instantâneos de regulação do mal-estar e erradicação do sofrimento. Para a Lacuna, o problema está em encontrar os meios mais apropriados para tornar essas lembranças um objeto passível de ser manipulado e, dessa forma, possibilitar uma planificação das expressões da subjetividade. O que persiste, então, como manifestação do sujeito?

O brilho do significante A palavra Lacuna, que batiza a empresa, é apresentada conforme sua raiz latina, ainda que o filme tenha sido originalmente escrito e rodado em inglês. De acordo com o dicionário Aurélio (2010), ela possui as seguintes significações: vácuo, falha, falta, omissão, buraco. Pode denotar também a porção de um texto ilegível, ou em 142

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razão de estar materialmente danificada, ou por ter sido deliberadamente suprimida. Já o dicionário Michaelis (2015) acrescenta as seguintes definições: espaço não ocupado, seja ele natural ou artificial; abertura ou cavidade; sentimento de perda. Lembramos a etimologia desse termo para destacar que o surgimento do discurso analítico está relacionado à problematização dos chamados fenômenos lacunares (GARCIA-ROZA, 2009). A psicanálise se funda na constatação de que há nas lacunas algo passível de ser lido e interpretado, na medida em que os hiatos e cortes no discurso demarcam o lugar privilegiado onde o sujeito emerge a partir da ambiguidade indissolúvel da mensagem do Outro a quem está estruturalmente alienado. Desde o tratamento das histéricas por meio do método catártico, quando se verifica a partir de suas falas um esquecimento seletivo e a permanência das lembranças alijadas na forma de sintomas corporais, Freud desconfiava do que era considerado falhas da memória no sentido da decomposição de seu registro fisiológico. Para ele, as experiências de prazer-desprazer, principalmente aquelas mais significativas, deixam traços indeléveis no psiquismo (FREUD, 1887-1902a/1962). Na carta 52, Freud (1887-1902b/1962) desenvolve a tese de que esquecer não implica necessariamente a perda da informação que compõe o registro psíquico. A partir daí, o ato de rememorar, segundo seus argumentos, passa a ser explicado como um complexo mecanismo de transcrição, reinscrição e tradução por meio do qual os traços de percepção são transpostos em marcas mnêmicas. Estas marcas, por sua vez, estão organizadas em estamentos, cada qual com lógica e gramática próprias. Na passagem de um estamento para outro ocorrem perdas e distorções, o que demarca um limite à simbolização e à rememoração, além de impor a exigência de uma reinvenção e reconstrução contínuas das lembranças. Logo, a concepção freudiana de aparelho psíquico rompe com os pressupostos de um realismo ingênuo e de um empirismo mecânico. Nele, não há uma continuidade ininterrupta e imediata entre percepção, memória e pensamento. Como consequência, o funcionamento psíquico não está orientado para constituir um decalque internalizado da realidade. Daí a necessidade de se conceber uma outra realidade, a psíquica, que coexiste ao lado da realidade objetiva. A memória, nesse contexto, torna-se uma função mais ampla, extremamente complexa e sutil, que não se limita à rememoração consciente dos fatos. Por isso, no livro dos sonhos, marco de surgimento da psicanálise, Freud enfatiza que não se trata de analisar o sonho em si mesmo, como se fosse possível reconstituí-lo da forma como o sonhador o sonhou, mas de interpretar a partir de cada fragmento do texto de seu relato o conteúdo latente que se decanta das associações do sonhador. Ao formular seu primeiro modelo de aparelho psíquico, a primeira tópica, Freud cunha a expressão “núcleo do nosso ser” (Kern unseres Wesen) (Die Traum-

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deutung, op. cit. pp. 572, 573) para imputar ao processo primário a condição de principal eixo de funcionamento do psiquismo. Dele deriva o movimento metonímico do desejo em torno de uma falta constitutiva. Com isso, Freud passa a interessar-se pelos esquecimentos, lembranças encobridoras, atos falhos (FREUD, 1898/1999, 1899/1999, 1902/1999) e, posteriormente, pelos fenômenos de dessubjetivação e desrealização – déjà vu, déjà raconté, déjà expérimenté – (FREUD, 1914/1997a) e, por fim, pelas repetições. Acerca desse último ponto, Freud (1914/1997b) sustenta que, por efeito do recalque, prevalece no psiquismo uma tendência de repetir em ato aquilo que não pode ser rememorado intencionalmente. Por outro lado, destaca que para ser possível esquecer algo de fato, no sentido de dirimir a influência que uma representação exerce no contexto de uma cadeia associativa, é preciso que essa representação seja rememorada pela fala com o intuito de elaborar suas intensidades, proporcionando-lhes outros destinos. Logo, esquecer aqui possui o sentido de consentir em reconhecer. Retornemos às desventuras de Joel. Durante a consulta de avaliação com o dono da Lacuna – o médico responsável por coordenar o procedimento de apagamento de suas lembranças – é tomado por uma sensação de déjà expérimenté que o desnorteia. Tem a impressão de já ter vivido a mesma cena em outra ocasião. As explicações sobre o procedimento a que vai se submeter ficam em segundo plano em face da abertura para essa outra realidade que se mostra ao mesmo tempo evanescente e mais urgente. O médico prossegue em sua explanação: a técnica consiste em infligir “um dano mínimo aos neurônios, similar ao que ocorre numa noite de bebedeira. Faremos um mapeamento de seu cérebro e apagaremos apenas as lembranças indesejáveis” (...). “Há um centro emocional para cada uma de nossas lembranças, e quando apagarmos este centro, inicia-se o processo de degradação” (...). “Assim, quando acordar pela manhã, todas as memórias atingidas terão definhado e desaparecido, como se acordasse de um sonho.” Nessa última sentença o “como se” faz toda a diferença. Sabemos com Freud que a causa do esquecimento é a censura psíquica. Ao acordarmos, não há apagamento do material mobilizado pelo trabalho do sonho, mas a restituição de uma conjunção energética que revigora o recalque, cuja ação havia sido abrandada durante o sono. A técnica utilizada pela Lacuna, em contraste com a explicação freudiana do esquecimento, nos coloca diante da suposição de que o cérebro é uma superfície, onde aquilo que se inscreve pode também ser apagado. As emoções, nessa perspectiva, são abordadas como epifenômenos relacionados a um processo supostamente objetivo de inscrição de vivências. Tais inscrições, por sua vez, são tomadas cinicamente como legíveis e tecnicamente manipuláveis. A pedido do médico, Joel então traz para a consulta uma coleção de objetos vinculados aos momentos que viveu ao lado de Clementine. Eles servirão de estímulo

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para o mapeamento cerebral e, depois, serão arquivados. Também grava uma fita com o relato das coisas que gostaria de esquecer. O médico então inicia o esquadrinhamento da superfície de seu cérebro: “Diga o que se lembra e começamos daí, das lembranças mais recentes em direção às mais antigas”. Nesse momento, é advertido para algumas dificuldades do procedimento: “Procure apenas visualizar as situações que deseja esquecer, evite descrições verbais”. É pertinente perguntar, a partir dessa lógica, o que faz com que as descrições verbais representem um estorvo para a localização das lembranças na superfície do cérebro. As referências que trouxemos até aqui nos fornecem o fundamento para sustentarmos que, em vez de um obstáculo que embaralha as referências de localização dos traços mnêmicos, a linguagem é o principal alicerce da memória humana, conferindo a ela a estrutura de uma rede rizomática. Essa rede, por sua vez, é composta por elementos independentes e heterogêneos que, isoladamente, não respondem pela constituição das lembranças. Sobre isso, citamos Lacan (1957/1998): “É na cadeia significante que o sentido insiste, mas que nenhum elemento da cadeia consiste na significação” (p. 506). O paradoxo tragicômico encarnado por Joel e Clementine é que, após o apagamento, em vez de trilharem caminhos diferentes e viverem uma nova vida, eles são atraídos pelas reminiscências que supunham abolidas. Nós os acompanhamos no desenrolar da história a tatear os resíduos de suas representações esmaecidas, a repetir os mesmos traços do passado sem a possibilidade de elaborá-los. Todavia, essa inércia plástica dos fragmentos das lembranças se apresenta ao mesmo tempo como a possibilidade de constituição de um novo arranjo. Assim, imediatamente após o apagamento, os técnicos da Lacuna constatam que as representações associadas à Clementine continuam a existir, mas transformadas, amalgamadas a outras lembranças. Por meio de um processo de deslocamento e condensação, um resíduo mnêmico de Clementine é transposto para outro traço de memória, valendo-se para isso da estrutura em cadeia que ordena a inscrição dos traços mnêmicos no psiquismo, seguindo o movimento do processo que Freud nomeia regressão. Do exposto, propomos descrever a errância de Joel a partir da atração que a letra – como aquilo que celebra uma inscrição mais fundamental de uma vivência de gozo no psiquismo – exerce na conformação de sua cadeia de pensamentos. Por isso, Lacan defende que é a partir da letra que se produz “todos os seus efeitos de verdade no homem” (Ibid., p. 513). Em outro texto, Lacan (1953/1987) afirma que essa verdade, no entanto, só pode ser articulada na forma de uma ficção ou mito. Logo, se a letra celebra o gozo, ela exige o suporte de um dizer que implique o sujeito em sua verdade, ainda que esta,

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em última instância, permaneça opaca e irredutível, uma vez que não há significante que possa dizê-la por completo. Lembramos que Lacan localiza o processo de presentificação da verdade na fulguração efêmera pela qual um significante representa um sujeito para outro significante. Isso quer dizer que, antes de dominar a linguagem, o sujeito é efeito dela. Logo, sua essência é fugaz, pois não possui consistência e duração. Se há um sujeito pretensamente senhor da significação, este constitui uma ficção que responde pelo nome de Eu. Sua função é de desconhecimento em relação ao inconsciente e à verdade que lhe habita. Por isso, a frase de Freud (1917/1999): “O Eu não é senhor em sua própria casa” . Podemos dizer então: se a realidade é traumática, isso não se deve à ocorrência de um fato na biografia, seja ele infeliz ou violento. O trauma, enquanto evento, é sempre uma repetição desse momento essencial no qual a verdade se revela para o sujeito para em seguida novamente se ocultar. Logo, se algo se repete, isso se dá por meio da realidade, não por causa dela (LACAN, 1963-64/1998). Essa fórmula remete ao que Lacan convencionou chamar de tiquê: algo que se repete como que por acaso em relação ao que os analistas não devem se deixar tapear, o encontro faltoso com o real. O real enquanto distinto da ideia de realidade, como aquilo que resiste ao simbólico e sempre retorna ao mesmo lugar.

O gozo como substrato material do sujeito A sessão de apagamento então começa. Uma dupla de técnicos da Lacuna vai à casa de Joel trazendo toda a parafernália necessária para executar o procedimento. Inicia-se então uma verdadeira caçada, na qual a mente de Joel é o palco, as lembranças, o alvo e os instrumentos de mapeamento, o perseguidor. Nessa disputa, observamos as lembranças sobre Clementine se entrelaçarem com recordações e investimentos afetivos da infância mais remota de Joel. Tal fato nos remete ao caráter efêmero do objeto sobre o qual incide a escolha objetal. Freud (1905/1997) nos indica que toda escolha amorosa se desdobra em dois momentos. Assim, na vida adulta, já sob o primado genital, o sujeito busca reencontrar no parceiro os traços significantes do seu primeiro objeto de escolha amorosa. Esse primeiro objeto possui uma natureza incestuosa, pois se apoia na referência a um dos membros do casal parental, e constitui o modelo para as escolhas futuras. O processo psíquico que força a supressão do investimento nesse primeiro objeto de amor é denominado complexo de castração. Esse é o caminho pelo qual o sujeito busca preservar a sua integridade narcísica, deslocando para os substitutos futuros dessa primeira escolha a possibilidade de obtenção de uma satisfação

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libidinal. Entre a bolsa ou a vida, é feita a opção da vida sem a bolsa (LACAN, 1963-64/1998). É a configuração singular desse jogo de forças que preserva os investimentos libidinais nas representações de Clementine. O desenrolar da história nos revela que esse efeito de pregnância das lembranças apagadas já era fato conhecido pelos técnicos da Lacuna. Uma prática corrente entre eles é a utilização das recordações dos clientes em proveito próprio, como estratégia de sedução por sugestão. Acompanhamos então as investidas frustradas de um dos técnicos da dupla que acompanha Joel. De posse de seu prontuário, nos intervalos de folga, ele tenta sem sucesso seduzir Clementine, conseguindo apenas transtorná-la e confundi-la. Em seguida, nos é dado conhecer que a bela atendente da Lacuna, a mesma responsável pelo envio dos prospectos de propaganda para os ex-parceiros dos clientes da empresa – descobre que suas lembranças também foram apagadas. Ela tem acesso ao material que um dos técnicos utilizava para conquistá-la e que se encontrava armazenado nos depósitos da Lacuna. Nos arquivos sobre sua pessoa, ela descobre que o amor frustrado de sua vida é o seu chefe, o médico e dono da empresa. A admiração, afeição e dedicação que pautava a relação entre os dois – aparentemente restrita ao âmbito profissional – logo se transmuta em ódio quando ela se dá conta que, para manter seu casamento e se livrar da aventura inconveniente, ele resolve apagar dela as lembranças do que viveram juntos. Como vingança, a atendente envia pelo correio para seus verdadeiros donos os objetos arquivados e as fitas cassete com o relato das memórias apagadas. O filme retoma o fio narrativo da sequência inicial. A cena mostra Joel e Clementine, cada um em suas próprias casas após o que imaginavam ter sido o primeiro encontro no passeio a Montauk. Atônitos, abrem os pacotes recém-recebidos com uma série de objetos estranhamente familiares. Dentre eles, as fitas. Escutam as gravações nas quais suas próprias vozes vaticinam o destino funesto daquela relação que mal iniciara. Depois de se assenhorarem minimamente da perplexidade causada pelo impacto da revelação, optam por repetir o que aparentemente deu errado no passado. Talvez, desta vez, Joel e Clementine estejam um pouco mais advertidos dos percalços que encontraram no caminho. Fica em aberto a questão se isso é suficiente, se eles realmente topam suportar a infelicidade banal do neurótico para, então, buscar uma felicidade possível e contingente. Apesar do desfecho feliz, na melhor tradição hollywoodiana, somos céticos acerca da estabilidade da resolução apresentada no filme. Ainda que ela seja possível e factível, a permanência dos vínculos amorosos costuma ser, via de regra, a primeira vítima das promessas de promoção de gozo e regulação de sofrimento.

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Conclusão Na história, o método empregado pela Lacuna evidencia o conhecimento cientificamente valorizado em nossa sociedade. No caso, a conjugação de tecnologias computacionais, com a neurologia e uma explicação cognitivista dos processos psíquicos. Talvez encontremos aqui uma síntese metafórica de um projeto de planificação dos desejos, por meio de uma aproximação entre o pensar humano e o processamento de informação nas máquinas. Sabemos que outras técnicas e práticas discursivas podem ser cooptadas dentro do mesmo enquadre de produtividade e eficácia. Por exemplo: a farmacologia, a religião, as propostas de autoajuda e as práticas de promoção da autoestima, só para citar algumas delas. Apesar do seu apelo e popularidade, os efeitos subjetivos que essas estratégias engendram são devastadores, na medida em que atuam ou no enrijecimento das defesas egoicas ou na regulação do gozo por meio de uma intervenção no real do corpo. Assim, ao não proporcionarem uma articulação do desejo na estrutura psíquica, torna-se necessário que tais estratégias – ou a combinação delas – sejam utilizadas repetidamente como forma de afugentar o sofrimento não subjetivado e promover a satisfação da pulsão de morte na medida em que força uma ultrapassagem dos limites do princípio do prazer. Daí as questões que se colocam para o psicanalista: como responder a essas modalidades de retorno no real daquilo que é foracluído pelo discurso da ciência e que constitui parte significativa das demandas por tratamento em nossa época? Como favorecer uma torção discursiva que atualize, a partir das mediações da cultura de nosso tempo, a subversão subjetiva necessária para o início de uma psicanálise? A simples denúncia dos males inerentes ao espírito de nossa época se mostra uma estratégia insuficiente, uma vez que se apoia na crença em uma militância pedagógica baseada numa posição de mestria, que não raro deságua numa atitude de impotência. Por outro lado, se uma tentativa de diagnóstico dos processos discursivos nos quais estamos inseridos pode ser justificada, isso acontece pela possibilidade de vislumbrar a partir dela as linhas de fuga que são produzidas no interior dessas mesmas estratégias, evidenciando novas e antigas possibilidades de resistência. Acreditamos que essa perspectiva está bem demarcada no filme, na medida em que interroga o preço pago pelo sujeito ao se submeter a essas tecnologias de regulação do sofrimento. A resposta do psicanalista talvez não constitua uma novidade. Consiste em interrogar o sujeito em seu sofrimento, naquilo que presentifica sua divisão subjetiva a partir das repetições significantes e suas vivências de gozo.

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resumo: Neste artigo, discutem-se as respostas possíveis do psicanalista em diante demandas de tratamento de sujeitos afetados pelos discursos do capitalista e da ciência. Para isso, toma-se como objeto de análise o filme Brilho eterno de uma mente sem lembranças, como forma de interrogar as vias pelas quais o sofrimento e a divisão subjetiva se expressam na atualidade, tendo em vista os efeitos no sujeito de práticas que se propõem regular e suprimir o sofrimento ou franquear o acesso à felicidade por meio do acesso a objetos de gozo de consumo rápido. Prioriza-se o debate em torno das repetições significantes e dos paradoxos do gozo que permanecem e insistem como resíduos das tentativas de planificar as manifestações do sujeito. Salienta-se ao final que o desafio do psicanalista está em responder a essas manifestações, apostando numa torção no discurso possível no caso a caso.

palavras-chave: Psicanálise; sujeito; memória; capitalismo; ciência.

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A essência fugaz do brilho da falta

abstract: This article discusses the analyst’s possible responses when it comes to the demands of the treatment of subjects affected by the discourse of capitalism and science. In such a process, the movie Eternal Brightness of an Spotless Mind is taken as the object of analysis in order to question the ways through which suffering and the subjective division are expressed today, considering the effects on the subject of practices which propose to regulate and suppress suffering or to guarantee the access to happiness through the access to objects of jouissance and immediate consumerism. Priority is given to the debate about the significant repetitions and the paradoxes of jouissance that remain and persist as a residue of the attempts to plan the manifestations of the subject. At the end, it is highlighted that the analyst’s challenge is to respond to these manifestations, betting on a twist of the discourse possible in each case.

keywords: Psychoanalysis; subject; memory; capitalism; science.

recebido: 15/08/2016

aprovado: 12/09/2016

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Sair do discurso capitalista?1 Patrick Barillot A escolha deste título, “Sair do discurso capitalista?”, numa forma interrogativa, foi feita para lhes indicar que desejo questionar a ideia, que esteve em voga na comunidade analítica, segundo a qual a psicanálise permitiria uma saída do discurso capitalista. Esta tese se difundiu abundantemente na sequência daquilo que Lacan propõe, em “Televisão”, em resposta a uma questão sobre o lugar que o psicanalista deve ocupar diante da miséria do mundo, questão que os psis de toda sorte, e não são os únicos, suportam. Essa miséria estando reportada fortemente pela ideologia dominante da época ao discurso capitalista, o que, aliás, Lacan não recusa.2 Antes de responder a esta questão fundamental para a psicanálise e para os psicanalistas, Lacan começa por efetuar um balanço bastante radical, inaudível hoje em dia no politicamente correto, assim resumido: protestar contra essa miséria é entrar no discurso que a condiciona, o discurso capitalista, forma derivada do discurso do mestre, para, por fim, chegar a colaborar com esse discurso que se denuncia. É uma tese maior de Lacan que se deveria ter em mente quando somos convocados a nos pronunciar sobre o estado do mundo; não se pode, seriamente, denunciar o discurso capitalista – e penso que isso é válido para todo discurso – porque “ao denunciá-lo eu o reforço – por normatizá-lo, ou seja, por aperfeiçoá-lo” (LACAN, 1973/2003, p. 517, grifos nossos). Uma vez dito isso, coloca-se, de maneira ainda mais premente, a questão da posição que deve ocupar o psicanalista que não colabora nem protesta. Ela lhe é, evidentemente, colocada, mas, espantosamente, não figura no texto autorizado editado pela Seuil, ao passo que está bem presente no registro original de “Televisão” (LACAN, 1973/2003),3 tal como se pode encontrá-lo nos arquivos da INA4 ou em algumas transcrições. Tenho como hipótese que o que Lacan enuncia naquela ocasião devia embaraçar o entrevistador, então em plena contestação do sistema capitalista. Se a questão desapareceu, a resposta, no entanto, permaneceu para nós. 1 Intervenção apresentada na ocasião das Jornadas da EPFCL-França em outubro de 2015. 2 .“Menos ainda na medida em que, ao referir essa miséria ao discurso do capitalista, eu o denuncio” (LACAN, 1973/2003, p. 516, grifos nossos). 3 Cf. Arquivos da INA: “Como, então, situar o analista, a seu ver, que não colabora, mas tampouco protesta?” 4 Institut National de l’Audiovisuel (N. do T.)

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BARILLOT, Patrick

Para responder a isso, Lacan começa por comparar o analista ao santo. Não o santo tal como é representado na iconografia religiosa, cercado pelos méritos de sua compaixão. Não. O santo, tal como Lacan o entende, não faz caridade, ao contrário, ele “descarita” fazendo-se dejeto. Ele não faz caridade porque não se ocupa em querer reparar a injustiça da distribuição de bens. Em outras palavras, ele não colabora com o discurso do mestre, o que também é esperado do psicanalista. O santo e o analista têm isso em comum, por essa espécie de caridade do dejeto, de permitir, tanto um quanto outro, que o sujeito do inconsciente os tomem como causa de seu desejo. O santo consegue isso fazendo-se realmente de rebotalho do gozo do Outro, fornecendo significante “para fritar”,5 (LACAN, 1970/2003, p. 412) enquanto que o analista, e é aí que a comparação termina, não faz senão semblante deste rebotalho, em outras palavras, de objeto a. Em seguida, Lacan propõe o que chama de seu princípio, não desprovido de humor e, sobretudo, de derrisão, parodiando um adágio bem conhecido, que pretende que “quanto mais santos, mais rimos” (LACAN, 1973/2003, p. 519). E acrescenta que isso poderia ser a saída do discurso capitalista e constituir um progresso se esta saída não se limitar somente a alguns. Há uma questão sobre o que designa o “Ça”, o “isso”. Suponho que se trate da santidade do analista da qual ele nos fala. Evidentemente, ao fazer cintilar uma possível saída do discurso capitalista, em 1973-74, isto imediatamente suscitou muita esperança no contexto social da época, antidiscurso do mestre, e alguns viram nisso a promessa de “amanhãs que cantam”.6 A tal ponto que de uma saída possível – Lacan utiliza o condicional – do discurso capitalista alguns passaram à esperança, sempre vivaz, de uma saída do discurso capitalista e ponto. Era esse o sentido do que Lacan propunha? A perspectiva que ele nos dá é para ser levada a sério, ela não é circunstancial, mas não me parece que tenha havido a menor intenção em Lacan de propor uma saída do capitalismo no sentido do sistema econômico que engendra o discurso capitalista e, particularmente, o da economia de mercado. Ele não queria nem predizia a ruína do capitalismo, diferentemente de Marx, para quem o capitalismo continha, em si mesmo, a causa de sua própria queda. Sem querer reduzir o discurso capitalista ao liberalismo econômico, fazer equivaler que sair do discurso capitalista é sair do capitalismo é uma extrapolação muito contestável. 5 “Quando não há mais significante para fritar – é isso que o santo fornece”. 6 “Les lendemains qui chantent”, conhecida expressão do político e jornalista Gabriel Péri (1902-1941), transformada em lema comunista alusivo ao futuro feliz do povo após a revolução socialista (N. do T.)

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Sair do discurso capitalista?

Aliás, alguma vez se viu um psicanalista sair do capitalismo? Se ele quisesse teria se dado mal, pois o discurso não pode se sobrepor ao sistema econômico que ele determina. É como se você dissesse que para sair do discurso universitário bastaria sair da universidade, de seus muros, quando se sabe muito bem que um discurso, tal como define Lacan, não se limita aos lugares nos quais prospera. Poderíamos já ter uma ideia disso ouvindo como Lacan, no fim de seu seminário De um discurso que não fosse semblante (LACAN, 1970-71/2009, Aula de 16/06/1971), em 1971, avaliava as sequências políticas da denúncia marxista do capitalismo como o advento do socialismo real. Lacan julgava o conjunto destas sequências como um capitalismo retomado em um discurso do mestre. Em seguida, em seu seminário sobre O saber do psicanalista, em janeiro de 1972, ele vai direto ao ponto. Ele afirma que graças ao avanço de Marx, que fez do proletário o sujeito do discurso do capitalismo, o qual “se estendeu por todo lugar onde reina a forma de estado marxista” (LACAN, 1971-72/inédito, Aula de 06/01/1972). Não se poderia ser mais claro sobre a articulação entre reivindicação marxista, capitalismo e discurso do mestre. Da mesma maneira, na ocasião de uma sessão de trabalho sobre o passe em 1975 (LACAN, 1975, p. 185-193), ele formulará que o sistema econômico reinante na URSS não é nada além de um capitalismo de Estado. Não se tratava senão de uma retomada de teses já desenvolvidas bem antes dele, em parte por anarquistas revolucionários dentre os quais um certo Mikhail Bakunin, um visionário, que via na implementação das teses de Marx “aplicação do capital à produção por meio do único banqueiro, o Estado”. Em suma, trata-se de um capitalismo reposto em ordem, como Lacan diz em “Televisão” (LACAN, 1973/2003, p. 531). Essa constatação está inteiramente conforme sua tese sobre a denúncia do discurso capitalista. A denúncia do capitalismo por Marx, ao mostrar como o proletário era o sujeito do discurso capitalista e que a mais-valia subtraída a ele era sua mola propulsora essencial, conferiu a este discurso uma potência até então inigualada. Para a URSS, os resultados são, agora, conhecidos por todos, até o colapso final do sistema em sua competição com o capitalismo liberal. Nesta época, a China mal estava despertando. Desde então, foi possível ver o que um capitalismo de estado, perfeitamente orquestrado por um partido comunista devotado ao discurso capitalista, podia obter como resultados econômicos num sistema aberto à mundialização das trocas. Sair do discurso capitalista não visa, portanto, a ruína do capitalismo, mas, antes, como Lacan se expressa em sua “Nota italiana”, fazer de forma que a análise continue a primar sobre ele (LACAN, 1974a/2003, p. 314).

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Esse esclarecimento me parecia importante a fim de que, antes de entoar o lamento anticapitalista, se esteja certo de não se enganar de endereço, seguindo aí a recomendação de Lacan. Com efeito, em “Radiofonia”7 (LACAN, 1970/2003, p. 423), ele não aconselhava aos produtores – aos proletários, portanto – na perspectiva marxista da mais-valia, a pedir contas da exploração que sofriam ao mestre capitalista, mas, antes, aos objetos mais-de-gozar (Ibid., p. 435).8 Suplantar o mercado seria, portanto, nosso horizonte. Mas, por quê? E como? Sobre a causa do mal-estar na civilização, ainda em “Radiofonia”, ele é categórico: o mal-estar deve ser atribuído ao inconsciente (Ibid.).9 Freud teria pressentido isso sem, no entanto, formalizá-lo, como o fará Lacan ao fazer do real do inconsciente a impossibilidade do significante em “dar corpo a uma fórmula da relação sexual” (Ibid., p. 411),10 a origem desse mal-estar. Lacan extrai essa fórmula da “não relação sexual” dos ditos de Freud para deles fazer seu dizer, no qual ele considera que o mal-estar como falha na estrutura foi apenas pressentido por Freud. Essa falta fundamental da “não relação” está aí desde sempre e presente em todas as formas de sociedade, mas nossa época tem em particular o fato de que o discurso capitalista primou sobre as outras formas de discurso. Mas não está nisso a única particularidade de nossa época. A outra particularidade diz respeito ao fato de que a força desse discurso, longe de ser apaziguado pela ideologia da luta de classes, ao contrário, viu-se amplificado por esta ideologia que induz, como ele diz (Ibid., p. 435),11 o explorado, o proletário, a rivalizar sobre a exploração por princípio, para melhor abrigar aí sua queda da mais-valia, em outros termos, em linguagem analítica, sua queda da falta-de-gozar. 7 “Questão II: Por exemplo, os produtos a cuja qualidade, na perspectiva marxista da mais-valia, os produtores, mais do que ao patrão, poderiam pedir contas da exploração que sofrem”. 8 “Questão V: E esta será uma oportunidade de observar que isso em nada modifica o discurso implacável que, complementando-se com a ideologia da luta de classes, apenas induz os explorados a rivalizarem na exploração por princípio, para protegerem sua participação patente na sede da falta-de-gozar”. 9 “O instrutivo é que essas formulações correm às ruas (exceto pela lógica, é claro, da qual eu as supro). O fato de emergirem sob a forma de um mal-estar, que Freud só fez pressentir, haveremos de imputá-la ao inconsciente? Certamente, sim: aí se indica que alguma coisa trabalha”. 10 Essa divisão repercute as aventuras do ataque que, do mesmo modo, o fez confrontar-se com o saber sexual – traumaticamente –, por estar esse assalto condenado, de antemão ao fracasso, pela razão que enunciei: que o significante não é apropriado para dar corpo a uma fórmula que seja da relação sexual. Daí minha enunciação: não há relação sexual – subentenda-se: formulável na estrutura”. 11 “E esta será uma oportunidade de observar que isso em nada modifica o discurso implacável que, complementando-se com a ideologia da luta de classes, apenas induz os explorados a rivalizarem na exploração por princípio, para protegerem sua participação patente na sede da falta-de-gozar”.

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Sair do discurso capitalista?

Como podem constatar, Lacan não fala de um discurso próprio ao proletário, o qual teria chegado a ele por meio de Marx. O que a ideologia da luta de classes associada ao discurso de Marx sobre o proletário produziu é o fato de fazê-lo entrar no discurso capitalista e, portanto, nele assujeitá-lo um pouco mais. Marx não somente definiu o sujeito do discurso capitalista – o proletário –, como também a causa de seu desejo de mais-valia. Parece-me que Lacan não teria muitas variações no que diz respeito a essa tese. Ele a reformularia e a completaria em outro momento, sobretudo em “A terceira” (LACAN, 1974b/inédito),12 em 1974, quando diagnostica que não há senão um sintoma social, a saber, que “cada indivíduo é realmente um proletário, isto é, não tem nenhum discurso com que fazer laço social”. E ele acrescenta que Marx adornou este sintoma social de uma forma incrível com seu discurso que se pretendia emancipador da classe proletária. O que é incrível, na verdade, é, diz ele, que isso não mudou nada e que tudo continua exatamente como antes. Que tudo continue como antes das revoluções marxistas é, certamente, o que justifica este papel de baby-sitter da história atribuído ao Partido Comunista em “Radiofonia” (LACAN, 1974a/2003, p. 423).13 Mas essa constatação data dos anos 1970, do tempo do capitalismo industrial. Desde então, o discurso capitalista ganhou embalo, se ampliou, planetarizou, mundializou conjuntamente com a expansão de sua financeirização. Seria, então, esse o indivíduo proletário, que seria o sintoma social, como não é raro que se leia? Ao se tomar as coisas assim, permaneceríamos na retórica marxista. O que faz sintoma no social é que cada indivíduo, isto é, que todos os indivíduos, sejam proletários no sentido em que Lacan entende isso, ou seja, sem discurso para fazer laço social. Diferentemente dos quatro outros discursos que organizam um laço social ali onde falta a relação entre os sexos, ao atribuir um lugar a cada um e organizar as relações dos corpos entre os indivíduos, o discurso capitalista, derivado do discurso do mestre, não organiza nenhum deles. Ele apenas privilegia o lugar do mais-de-gozar – equivalente da mais-valia como causa do desejo válido para todos. Esta causa única do desejo é colocada como princípio de uma economia que produz cada vez mais objetos e semblantes para satisfazer nossa insaciável falta-de-gozar. Trata-se de um discurso que manda gozar incessantemente dos objetos que ele 12 “Só há um sintoma social: cada indivíduo é realmente um proletário, quer dizer, não há nenhum discurso do qual se faça laço social; dito de outra maneira, semblante. É isso que Marx reteve, reteve de uma forma inacreditável. Assim dito. Assim feito. O que ele emitia implica que não há nada a mudar. É bem por isso, aliás, que tudo continua exatamente como antes”. 13 “Quando se reconhecer o tipo de mais-de-gozar que leva a dizer ‘isto é alguém’, estaremos no caminho de um material dialético talvez mais ativo do que a carne do Partido, empregada como baby-sitter da história. Esse caminho, o psicanalista poderia esclarecê-lo por seu passe.” Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 33 p.153-161 novembro 2016

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coloca à nossa disposição, prometendo-nos um gozo sem limite ali onde o gozo é, de fato, limitado, como a castração obriga. O proletário, assim definido, é um indivíduo totalmente ocupado com seu gozo solitário, fora do laço social, com tudo o que isso implica como consequência, a saber, uma precariedade de seu modo de gozo que alimenta sua queixa (LACAN, 1973/2003, p. 533).14 Quando, como hoje, emerge um discurso do mestre particularmente feroz, cruel e sanguinário, tendo como fonte um fundamentalismo religioso, é certo que para alguns ele se torna uma maneira de tratar a instabilidade e a precariedade de seu modo de gozo. Que pode a psicanálise fazer? Já por sua prática, a psicanálise instaura um laço social a dois, ali onde falta a relação sexual. Mas este laço social não pode durar toda uma vida. Para operar uma saída durável do discurso capitalista, a análise deve começar por recolocar a castração em seu lugar. O gozo é forçosamente limitado e tem seus impasses – a não relação – que a corrida infinita aos objetos de consumo de toda sorte, não apenas os gadgets, mas também as drogas, não resolverá. E depois, ao conduzir o sujeito à verdade singular de seu gozo, fixado em seu sintoma, gozo que não interessa ao discurso capitalista, todo ocupado em produzir mais-de-gozar válidos para todos, universalisáveis, a análise antepara a instabilidade e a precariedade do modo de gozar. Se quisermos que a psicanálise não desapareça no futuro, no discurso capitalista, como fazem as psicoterapias em geral, é preciso que os psicanalistas continuem a produzir um saber sobre as coisas do amor e do sexo, forcluídas deste discurso. Parece-me que é o sentido do que nos é requisitado fazer para dar dividendos no mercado, contribuir com a elaboração do saber sobre a não relação sexual (LACAN, 1974a/2003, p. 314).15 Este saber deve sempre ser inventado, para cada analisante que vise a se tornar analista, e o passe é o lugar específico onde pode se recolher esse saber adquirido por cada um. É uma virtude do passe: poder objetivar esta saída do discurso capitalista própria a cada analisante. Mas esta visada epistêmica se duplica, também, em uma dimensão política das

14 “Somando-se a isso a precariedade de nosso modo, que agora só se situa a partir do mais-de-gozar” 15 “Que ele não se autorize ser analista, porque nunca terá tempo de contribuir para o saber, sem o que não há chance de que a análise continue a dar dividendos no mercado, isto é, de que o grupo italiano não fique fadado à extinção. O saber em jogo, eu emiti o princípio como do ponto ideal que tudo permite supor quando se tem o sentido da épura: trata-se de que não existe relação sexual, relação aqui, quero dizer, que possa pôr-se em escrita”.

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Sair do discurso capitalista?

instituições psicanalíticas. É certo que, ao estabelecer esse modo de nominação dos analistas da escola, Lacan tenha querido sair do funcionamento institucional do discurso do mestre, o qual presidia, e preside ainda, o modo de recrutamento dos analistas nas sociedades psicanalíticas. Não estando as nossas instituições psicanalíticas organizadas pelo discurso analítico, pergunto-me se Lacan não tinha, também, a ideia de uma saída, por meio do passe, do discurso do capitalismo em nível institucional, discurso que não é senão, lembremo-nos, a versão moderna do discurso do mestre. Diferentemente de outros procedimentos de garantia, a nominação pelo passe não procede de um espírito de concorrência, nem segundo critérios de notoriedade, de serviços prestados, de qualidade do trabalho fornecido, seja ele analítico ou institucional. É isso que, muitas vezes, é difícil de aceitar quando uma pessoa merecedora no plano dos critérios precedentes não é nomeada. O dispositivo do passe não visa ao tipo de mais-de-gozar que faz dizer: “isto é alguém”, como expressa Lacan em Radiofonia (LACAN, 1974a/2003, p. 413). Mas encoraja o passante a testemunhar sobre o que o leva a funcionar, na análise, como representante do objeto a, a testemunhar, diria eu, sua “santidade”. É, certamente, menos glorioso que o manejo de fórmulas antidiscurso capitalista mas, apostemos, mais eficaz para controlá-lo, evidentemente não no nível macroeconômico, mas, mais modestamente no nível microeconômico, o de nosso funcionamento institucional. Tradução: Sonia Magalhães Revisão da tradução: Cícero Oliveira e Dominique Fingermann

referências bibliográficas LACAN, J. (1970). “Radiofonia” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.                   . (1970-71). O seminário, livro 18: De um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.                   . (1971-72). Le séminaire Le savoir du psychanalyste, inédito.                   . (1973). “Televisão” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.                   . (1974a). “Nota italiana” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.                   . (1974b). “A terceira”, inédito.                   . (1975). “Intervention dans la séance de travail ‘Sur la passe’ du samedi 3 novembre” In: Lettres de l’École freudienne. Paris, n° 15, pp. 185-193.

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BARILLOT, Patrick

resumo: Lacan faz cintilar uma possível saída do discurso capitalista por meio da psicanálise. Mas ele não visava, como Marx, a ruína do sistema econômico produzido por esse discurso, mas apenas que a psicanálise tivesse primazia sobre ele. Não há denúncia nem protesto contra a miséria do mundo que engendra o capitalismo, dado que, segundo sua tese, fazê-lo equivale a colaborar com esse discurso que se denuncia, e até mesmo reforçá-lo, algo em que Marx têm êxito. Como, então, situar o psicanalista que não colabora e não protesta? O analista deve ser aproximado do santo, no sentido em que ele não faz caridade, mas se oferece como causa do desejo como objeto a. O mal-estar na civilização deve ser colocado na conta do inconsciente na medida em que ele não pode dar corpo a uma fórmula que seja a da relação entre os sexos. O discurso capitalista comanda do gozar à vontade, sem limite, ao passo que o gozo é sempre limitado, a castração obriga. Por ter uma chance de fazer o fala-ser sair desse assujeitamento, o psicanalista deve recolocar a castração em seu lugar e conduzir o sujeito à verdade singular de seu gozo.

palavras-chave: Discurso capitalista; mal-estar na civilização; castração; santo; Marx.

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Sair do discurso capitalista?

abstract: Lacan brings up the prospect of possibly abandoning the capitalist discourse through psychoanalysis. Unlike Marx, he did not aim for the collapse of the economic system generated by this discourse, but rather that it should be trumped by psychoanalysis. There is no denunciation or protest against the misery in the world resulting from capitalism since, according to his thesis, to do so means to collaborate with this discourse that is being denounced, and even to reinforce it, as Marx succeeded in doing so. Then, how to position the analyst who neither collaborates nor protests? The analyst may be taken as the saint in that he does not practice charity, but he offers himself as a cause of desire under the guise of object a. The malaise in civilization may be attributed to the unconscious in so much as it cannot embody a formula for a ratio between the sexes. The capitalist discourse controls from jouissance to desire, without any limit, while jouissance is always limited, castration obliges. If he is to stand a chance of relieving the “parlêtre” from such subjection, the psychoanalyst must put castration in its place and lead the subject to the singular truth of his jouissance.

keywords: Capitalist discourse; malaise in civilization; castration; saint; Marx.

recebido: 03/08/2016

aprovado: 12/09/2016

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atualidade e sexo



Diante do muro Sonia Alberti e Barbara Zenicola Introdução O homem não faz parte de um continuum dos animais e da natureza, é o que a psicanálise nos diz, rompendo com qualquer tentativa, ou ilusão, de justificar o que concerne ao comportamento humano por essa via, pois esclarece que o homem não é natural e que não partilha com os animais desse saber pré-programado, que é o instinto. O homem é pulsional! É por sermos pulsionais e por estarmos imersos na linguagem que não é possível tentar observar aquilo que advém do humano pela ótica da natureza. Esta, por exemplo, une um macho a uma fêmea por meio do instinto, mas não um homem a uma mulher, pois quando se trata do humano, a natureza falha. No entanto, algo que causa ainda mais estranhamento, e até algumas polêmicas, é a constatação de que nem mesmo há uma natureza que diga o que é ser um homem ou uma mulher. Ao longo de sua obra, Freud faz inúmeros questionamentos sobre o que definiria o homem e a mulher. Logo no início de sua conferência A feminilidade (1933), esclarece que todas as pessoas, sejam homens ou mulheres, possuem tanto características masculinas quanto femininas. A ideia proposta por Freud de pensar que homens não são unicamente masculinos e que mulheres não são somente femininas é bastante inovadora para a época, e ele só poderia ter chegado a essa afirmação porque não estava reduzido a características biológicas que, à época, levavam os cientistas a acreditarem que os hormônios masculinos eram encontrados exclusivamente no homem e que os hormônios femininos eram exclusivamente encontrados na mulher. Freud retoma a proclamação napoleônica segundo a qual “a anatomia é o destino”, que muitos interpretam como uma resistência de Freud em se desvincular da determinação biológica. No entanto, segundo Lacan, a frase apenas testemunha que desde 1905, quando Freud a retomou, o alicerce da psicanálise não é a biologia, mas o dito. Trata-se de uma passagem no início de O seminário, livro 19: ... Ou pior (LACAN, 1971-1972/2012), na qual Lacan observa que a diferença sexual se deve ao fato de que os adultos a atribuem a uma diferença natural e por causa disso a dizem diferença sexual. Portanto, na realidade, ela é devida à linguagem, “a anatomia é o destino” é um dito, e por causa disso se instituiu esses dois universais que Lacan viria a conceituar nas fórmulas da sexuação. Lacan afirma que há, sim, uma pequena diferença inata entre o menino e a menina. Mas há outra diferença,

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ALBERTI, Sonia e ZENICOLA, Barbara

ou melhor, uma diferenciação, que esta, de natural, não tem nada. A distinção entre meninos e meninas não é feita por eles e sim pelo Outro da linguagem. “Nós os distinguimos, não são eles que se distinguem” (LACAN, 1971-71/2012, p. 16). Assim, Lacan introduz o Outro, como tesouro dos significantes, que irá nomear o que são “coisas de menino” e “coisas de menina”. É a linguagem que vaticina a diferenciação sexual, uma vez que não se nasce psiquicamente homem ou mulher. Em 1933, isso é perfeitamente claro para Freud quando afirma que o que verdadeiramente constitui a feminilidade e a masculinidade é algo que está para além da anatomia, já que o corpo do ser falante é capturado pelo significante e não pela natureza (cf. FREUD, 1933/2010, pp. 265-266). Assim, é somente porque segue os trilhos deixados por Freud, que Lacan afirma a desnaturalização do humano e acrescenta à teoria freudiana, o seu axioma “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”, mostrando que somos tecidos pela linguagem que, por sua vez, nos orienta na inserção na partilha dos sexos (MIRANDA, 2015).

A homossexualidade Em 1967, dialogando com Heidegger, Lacan perguntou se nós, psicanalistas, estamos efetivamente à altura da subversão do ser-para-a-morte da filosofia pelo ser-para-o-sexo promulgado por Freud. Não que Freud não tenha se colocado a questão do ser-para-a-morte, mas desde o início o dialetizou com o ser-para-o-sexo, ou seja, desde 1898, quando introduziu o impossível em articulação com a linguagem, impossível que o fez esquecer o nome Signorelli: falta um significante (LACAN, 1957/1999). Sexo e morte são os dois reais impossíveis de simbolizar, e foi isso o que o levou ao esquecimento. Castração, perda, falta... uma série de referências clínicas apontam para esses dois reais impossíveis. Foi isso também que permitiu a Lacan avançar em relação à questão de resposta impossível, Was will das Weib? – que Freud (1933/2010) identifica na literatura universal –, que a relação sexual e La/Mulher não existem. Daí que se trata, em psicanálise, de “poder sustentar com coragem e de modo gaio [...] uma relação ao outro que já não é a da luta de morte [... mas] a do amor advertido do fato de que entre o homem e a mulher há um muro” (ALBERTI, 2008, p. 32), conforme – algumas vezes referido por Lacan – poema de Antoine Tudal. Com efeito, diante da incompletude e da incongruência entre o homem e a mulher, a única possibilidade de encontro é no amor – a relação sexual é sempre marcada pelo desencontro. É apenas o amor que consegue fazer suplência à inexistência da relação sexual (cf. LACAN, 1972-73/2008). Então fazemos um convite para examinarmos as coisas de modo gaio – em francês e em inglês, é um equívoco: de façon gay/in a gay way, levando em conta o gozo. Ora, se pretendemos “contribuir para a presença e a manutenção dos desafios do discurso analítico nas

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conjunturas do século”,1 o campo do gozo é, sem dúvida, um instrumento de uma riqueza que ainda exploraremos por muito tempo! Estando posto que a pulsão de morte é primordial de modo que toda pulsão é, antes de mais nada, pulsão de morte – o que não deixa de ser trágico –, inscrevendo-se sob condição de uma perda de gozo, a subversão vem do fato de que tal perda promove um mais-de-gozar. Que isso possa novamente implicar a pulsão de morte é teoricamente necessário, mas a vida se sustenta na busca por esse mais-de-gozar – enquanto há vida! (ALBERTI, 2007). E essa busca, como se dá, senão por meio de Eros e todos os seus possíveis desdobramentos? Na medida em que estes são dependentes da função da fala, do campo da linguagem e da lógica dos discursos, desde o primeiro momento em que o filho do homem com eles se depara, responderá a eles por meio de lalangue. Poderíamos dizer que Eros parte de lalangue – o que é bem mais complexo do que propor o Édipo como seu ponto de partida. Ora, diante do muro que há entre o homem e a mulher, cada um se colocará – nesse salve-se quem puder – da maneira como der, servindo-se da função da fala, do campo da linguagem e da lógica dos discursos. As ofertas são várias! E serão elas a determinar a variedade dos sintomas, conforme as escolhas de cada um. É preciso, diz Lacan em um de seus últimos seminários, reconstituir a relação sexual por um discurso que serve para [...] ordenar, entendo, para sustentar o mandamento que me permito chamar de intensão do discurso [...]. Todo discurso tem um efeito de sugestão. Ele é hipnótico. [...] Um discurso sempre adormece, salvo quando não o compreendemos. Então desperta (LACAN, lição de 15/3/1977). O discurso que já não compreendíamos há algum tempo era aquele que impunha, ordenava com seus imperativos, o casamento dito heterossexual. Não o compreendíamos porque há muito tempo já havíamos percebido que ele não colmata o impossível da relação sexual na contramão do que ele mesmo apregoava. Há muito tempo já dera provas de sua mais frequente insustentabilidade, deixando à mostra que uma mulher não passa de sinthoma para um homem, e que ele é para ela “pior que uma aflição, pior que um sinthoma [...], devastação” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 98), ou seja, deixando à mostra a impossibilidade de equivalências que exige especificar o sinthoma. É porque já não se compreendia mais que houve o despertar. Este “é o Real sob seu aspecto de impossível, que só se escreve forçando ou por força disso, é o que chamamos a contranatureza” (LACAN, lição de 15/3/1977). As relações amorosas são contra essa suposta natureza que, como vimos, não passa de mais um dito discursivo. Ricardo, ser-para-o-sexo 1 “Quem somos” <http://www.campolacaniano.com.br/#!apresentao/c1rj3>.

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nele introduzido pelas carícias do pai em seus órgãos sexuais desde a mais tenra idade e posteriormente seduzido pelo irmão mais velho, diz em sessão estranhar a demanda pela legalização de enlaces matrimoniais, os casamentos gay, pois isso remete, diretamente, para uma equiparação “das relações homossexuais com as heteronormais”. Em que medida podemos dizer que há equivalência entre os amores gay e os relacionamentos entre homens e mulheres? Questão atual para a psicanálise, não apenas porque ainda hoje há psicanalistas que julgam que enlaces homossexuais implicam uma problemática que diz respeito muito mais à perversão do que ao amor de relação de objeto, mas também e, sobretudo, porque é uma questão que tem por objetivo abordar o casamento gay a partir de outro ângulo: a recuperação, no discurso, do que testemunha de uma ruptura do modelo cultural e social, ou seja, de um despertar. Levanta-se a hipótese de que o casamento heteronormal, para retomar as palavras de Ricardo, se impôs visando a uma associação necessária entre amor e procriação (sobretudo a partir do século XIV, quando populações inteiras eram arrasadas por doenças e a peste negra) – associação subvertida por Freud – e que, necessariamente, a homossexualidade rompe ou, se quiserem, perverte. A homossexualidade na clínica indica, apenas, que é possível escolher essa forma de amar como qualquer outra. Que ela pode ser determinada pela função da fala, pelo campo da linguagem, pelos discursos, ou pode ser uma varidade sinthoma, diante do impossível da relação sexual. As conjunturas que virão não podem ser modificadas a partir das resistências que queiram se impor contra elas, e é obrigação ética do psicanalista, na trilha deixada por Freud, a de nos mantermos despertos pois, como nos ensinou Lacan, se há resistência na clínica, ela é do psicanalista. Freud também resistiu à homossexualidade: diante de Fliess, diante de Dora. Mas cedo descobriu seu engano. Em 1914, diante da enorme resistência que seus colegas médicos lhe opunham, retomava uma frase do poeta Hebbel e concluía: “Passei a fazer parte do grupo daqueles que ‘perturbaram o sono da humanidade’” (FREUD, 1914/1999, pp. 59-60) e, tanto em 1920 – com a Jovem homossexual – quanto em 1935, na carta à mãe americana que, ao que tudo indica, lhe pedia uma forma de curar seu filho de sua homossexualidade, deu provas de que estava convencido da força de um Eros bem mais complexo do que originalmente supunha. Afinal, é ele que move montanhas! E se move montanhas, talvez mova o discurso – se não o do mestre, que sempre haverá independentemente do que pretenderá sugestionar – ao menos o do analista, na direção que Lacan quis lhe dar, aquela que exige que o analista ocupe apenas o lugar do objeto a causar a análise do sujeito. Ora, se nem Freud nem Lacan deixaram uma orientação quanto à homossexualidade enquanto doença, desajuste ou ainda problema a ser tratado pela psicanálise; se Freud e Lacan são os autores que orientam nosso trabalho, por que ainda estamos discutindo? Seria porque o sujeito homossexual é fruto de um discurso? Função da fala? Seria porque está

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inserido no campo da linguagem o que lhe impõe haver-se do jeito que pode com a castração? Seria porque é determinado ou porque, tendo atravessado uma análise, fez escolhas absolutamente próprias? Em que então difere do sujeito que não o é? Ou seria porque, momentaneamente, o movimento gay despertou de uma letargia a humanidade inteira diante do impossível da relação sexual, assim como tantos outros movimentos? Questão para a psicanálise novamente, porque os discursos que a ela se contrapõem nos dias de hoje, ou pretendem com a teoria queer “que o gozo é rebelde a toda universalização, à lei” (MILLER, 2003, p. 50), ou insistem na patologização que criminaliza o gozo quando, na verdade, não há vida sem ele. Como transmitir que, ao identificar o sujeito em suas relações com a fala, a linguagem e os discursos, a psicanálise não visa à patologização, mas apenas procura, a duras penas, teorizar o sofrimento a que tem acesso a partir da clínica – independentemente da opção sexual do sujeito sintoma? Na realidade, nem sempre foi assim, como atestam Bulamah & Kupermann (2016). Não fossem as mudanças históricas, na própria psicanálise, instigadas pelas questões de gênero nos movimentos sociais, certamente não estaríamos hoje nos perguntando sobre o papel da psicanálise na transmissão que se inscreve na ética freudiana segundo a qual todo gozo é efeito da relação do sujeito com a lei, enlace e desenlace entre a ordem do semblante e o impossível a representar: heteros que se repetem. Como testemunhar, no mundo, que o saber do psicanalista é, fundamentalmente, o insabido?

O mal-estar da bipartição sexual O tema da bipartição sexual chega à sua máxima com a transexualidade, que surge na metade do século XX. São sujeitos que experimentam um mal-estar tamanho com relação aos seus sexos anatômicos, a ponto de demandarem uma correção cirúrgica. Dizemos correção, pois é muito comum observar nos relatos de transexuais a afirmação de que nasceram no corpo errado. É isto que caracteriza a transexualidade para a medicina que, em consequência, a reconhece como patológica, um transtorno. Os transexuais lutam pela despatologização de sua sexualidade, no entanto, se desejarem qualquer tipo de intervenção que promova modificações corporais, precisam ser diagnosticados como transtornados de gênero para obter a autorização do SUS para a cirurgia. Com Freud (1905/2002), ao apontar que a pulsão pode satisfazer-se com incontáveis objetos, poderíamos dizer que toda sexualidade humana se não é transtornada é um transtorno! Pois falta-lhe a naturalidade (AYOUCH, 2014). Poderíamos perguntar: então por que a cirurgia? Será que o sujeito transexual não estaria, também, mergulhado na ilusão da normatização sexual ao demandá-la? Ao fornecer o Processo Transe-

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xualizador,2 pelo SUS, o Estado não estaria vaticinando que é possível um apaziguamento quanto ao real do corpo e do sexo, por meio da cirurgia? Se o ser falante não é instintivo e nem natural, a bipartição sexual entre homem e mulher não consegue dar conta da subjetividade e sempre haverá algo que irá escapar. Será que a promessa de uma adequação do sujeito ao seu corpo e ao seu sexo é possível? Sobre a diferença sexual, não estariam, ainda, esperando que, a partir de uma “pequena diferença” (Ibid.) anatômica exista uma identidade específica, um posicionamento na partilha sexual ditado pela certeza anatômica? Freud se defrontou com a questão dessa inscrição a priori, de uma anatomia que não é o bastante para definir o que é “ser homem” e o que é “ser mulher”, já que não há uma resposta que diga a “verdade sobre a verdade” assim como “não existe Outro do Outro” (LACAN, 1971/2009, p. 14). Assim, tratar-se-ia talvez de melhor fazer operar o enigma, na busca de um saber que será sempre parcial. E, uma vez que as palavras faltam e o simbólico não drena tudo o que é do real do sexo, isso leva necessariamente a um mal-estar. Logo, o mal-estar do sexo está para todos, sejam ele transexuais ou cisgêneros. Inicialmente, em seu ensino, Lacan propõe que um sujeito se posiciona na interpretação da diferença sexual a partir do lugar que ocupa entre o ser e do ter o falo, atribuindo ao falo uma função significante. Mais tarde, propõe as fórmulas quânticas da sexuação, que asseveram a bipartição sexual a partir do posicionamento do sujeito diante do desejo e do gozo. A partir do momento em que o campo do gozo encontra na ciência um avalista, tudo efetivamente passa a ser possível. Ao afirmar a bipartição sexual – a bipolarização da divisão sexual –, ao reconhecer-se em um polo ao qual não se identifica e, então, endereçar-se à ciência com a demanda de transposição para o polo sexual com o qual se identifica, confirma outra máxima de Lacan: só há demanda quando esta se constitui a partir de uma oferta.

Será que é possível exterminar a alteridade sexual? Entretanto, na contramão da crença na bipartição sexual estão algumas feministas que, inicialmente reivindicavam direitos equânimes entre os gêneros e, atualmente, defendem a anulação das diferenças entre o homem e a mulher. Isso não veio à toa; na realidade é contemporâneo a uma resposta direta a práticas terapêuticas que anulavam o desejo de analisantes de serem identificados conforme o gênero de suas próprias escolhas e tratavam seus pacientes com os “nomes e pronomes ditados por seus sexos biológicos, contrariando a vontade” deles (BULAMAH; KUPERMANN, 2016, p. 77). Judith Butler, em seu livro Problemas de 2 Portaria no 2.803, de 19 de novembro de 2013.

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gênero (1990), cita a música, cantada por Aretha Franklin, “You make me feel like a natural woman”, para indicar que só é possível para o sujeito afirmar-se mulher a partir de uma diferenciação com o outro gênero, o homem. Talvez Butler tenha lido O seminário, livro 18: De um discurso que não fosse semblante (1970-71/2009). Nele, Lacan enfatiza a ideia da alteridade em relação à partilha sexual, o que define o homem é sua relação com a mulher e vice-versa, pois a identificação sexual consiste em considerar que existem mulheres, no caso do menino, e que existem homens, no caso da menina. É nesse cenário, no qual o biológico é insuficiente para a subjetivação da diferença sexual, que se inscreve o semblante que tem função de verdade, sempre meio dita para Lacan. Já que não há nada instintivo que diga o que é ser um homem ou ser uma mulher, o que resta é fazer semblante, resta apenas “parecer” homem ou “parecer” mulher, fazendo “semblante do que se chama um homem e uma mulher” (LACAN, 1971-72/2012, p. 36). O sujeito transexual vem reafirmar que habemus gender! Como escrevem Tenório & Prado (2016), transexuais não relatam “serem incapazes de se sentirem ‘mulheres’ ou ‘homens’” (p. 45), e sim, de se sentirem mal-compreendidos, não aceitos – fundamentalmente em função dos discursos que patologizam – e de terem um “defeito físico” – por não terem nascido no corpo certo. E por maiores variações que possam existir no modo de ser homem ou mulher, tal alteridade está posta. Inclusive, para que possa haver sexo, é imprescindível que haja a diferença. Na lógica dos gozos, Lacan, ao abordar o lado feminino das fórmulas quânticas da sexuação o faz pelo viés da Heteridade, e afirma que aquele que é heterossexual, aquele que ama uma mulher, identifique-se ele próprio com o sexo que for. Com efeito, para haver o real do sexo é necessário que haja o Heteros, a diferença, enquanto o amor narcísico é homemsexual, como Lacan chamava o amor do homem pelo homem, no sentido humano.

Para concluir Exatamente por não existir equivalência possível entre os termos homem e mulher, é pela inexistência da relação sexual que é possível o sexo, o ato sexual. É preciso cruzar, de um lado para o outro das fórmulas quânticas para acertar o parceiro, seja localizando no corpo do outro o objeto de sua fantasia, ou buscando no outro o significante fálico. Mas é sempre no outro, no diferente, na alteridade. A linguagem de que Lacan sempre tratou, em que as verdades se dizem em contrabando, a linguagem que ele teve o cuidado de cingir no campo em cuja função está a fala – ou seja, o que interessa o psicanalista –, é aquela que “permite distinguir, entre outros, o código da mensagem” (LACAN, 1971-1972/2000, p. 18), o que não é outra coisa senão a maneira como o sujeito recebe do Outro a sua própria mensagem de forma

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invertida, levando-o, a ele próprio, desejar. Se o discurso, produção de gozo e sem palavras, sugere a heteronormalidade ou a homossexualidade, isso não muda em nada o analisante que vem falar de seu sofrimento diante do fato de que entre o homem e a mulher há um muro. A psicanálise é uma clínica e não uma proposta de mudar o mundo, muito menos ainda, de resistir a qualquer uma de suas mudanças, até porque o saber do psicanalista o leva a constatar que as revoluções acabam por nos fazerem girar sempre no mesmo lugar (LACAN, 1970/2001), ali onde cada um busca seu mais-de-gozar enquanto há vida, mais-de-gozar com o qual cada um faz seus enlaces e que Colette Soler (2013) situa como “o verdadeiro parceiro da repetição” (p. 122). Sendo assim, reivindicações sociais em prol da tentativa de garantir direitos iguais a homens e mulheres não só são válidos, mas necessários, pois sem eles não teríamos tido avanços históricos importantes. No entanto, esperar que o homem e a mulher sejam iguais, no que tange à subjetividade, é abdicar da alteridade necessária para defini-los. Concordamos com a afirmação de Quinet (2013) que “para haver sexo, é necessário a diferença do outro – não se faz sexo com o mesmo” (QUINET, 2013, p. 139). Aquilo que diz respeito à sexualidade do ser falante é da ordem do Heteros, já que a posição sexuada está para além da sustentação do imaginário da anatomia, sendo necessários os dois sexos, para que possa haver sexo. Então, sim, Habemus Gender!

referências bibliográficas ALBERTI, S. (2007). “O bem que se extrai do gozo” In: Stylus: Revista de Psicanálise, Rio de Janeiro, 14. pp. 65-76.                     . (2008). “O lugar da sexualidade para a psicanálise” In: ALBERTI, S. (org.) Sexualidade na aurora do século XXI. Rio de Janeiro, Cia. de Freud. pp. 21-38. BULAMAH, L. C. & KUPERMANN, D. (2016). “A psicanálise e a clínica de pacientes transexuais” In: Periódicus. n. 5, v. 1 maio-out. 2016, pp. 73-86. BUTLER, J. (1990). Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. FREUD, S. (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2002. 120 p.                   . (1914). “Zur Geschichte der psychoanalytischen Bewegung” In: Gesammelte Werke. Frankfurt a. M., S. Fischer, 1999. Vol. X. pp. 43-113. (pp. 59-60).                   . (1933). “A feminilidade” In: Novas conferências introdutórias – v. XXXIII: São Paulo: Companhia das Letras, 2010. LACAN, J. (1957-58). O seminário, livro 5: As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. 172

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fontes eletrônicas AYOUCH, T. “A diferença entre os sexos na teorização psicanalítica: aporias e desconstruções”. In: Revista Brasileira de Psicanálise, Volume 48, n. 4, 58-70, 2014 <https://www.researchgate.net/publication/278624826_Sex_Difference_in_Psychoanalytical_Theory_Aporiae_and_Deconstructions>. MIRANDA, E. R. (2015). “Transexualidade e sexuação: O que pode a psicanálise” In: Revista Trivium Est. Interd. Ano VII, Ed.1-2015, pp. 52-60 <http://dx.doi. org/10.18370/2176-4891.2015v1p52>. RINALDI, D. “O corpo estranho” In: Revista latino-americana de psicopatologia fundamental, São Paulo, v. 14, n. 3, pp. 440-451, Sept. 2011. Acesso em: 06/08/2016. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1415-47142011000300003&script=sci_arttext>.

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resumo: Ao longo de sua obra, Freud faz inúmeros questionamentos sobre o que definiria o homem e a mulher, o que leva Lacan a retomar o poema de Antoine Tudal: entre o homem e a mulher há um muro. Cada um se colocará na partilha dos sexos servindo-se da função da fala, do campo da linguagem e da lógica dos discursos. As ofertas são várias e há diversas formas de amar. O tema da bipartição sexual também leva à homossexualidade e chega à sua máxima com a transexualidade. Ao afirmar a bipartição sexual – a bipolarização da divisão sexual–, ao reconhecer-se em um polo ao qual não se identifica e, então, endereçar-se à ciência solicitando uma mudança cirúrgica, o transexual confirma que só há demanda quando esta se constitui a partir de uma oferta. Visamos levantar algumas questões no vasto campo que se abre quando partimos do fato de que os dois universais, homem e mulher, implicam a impossibilidade da relação sexual, ou seja, quando nos indagamos sobre as diversas formas de um sujeito sexuar-se.

palavras-chave: Sexuação; psicanálise; homossexualidade; transexuais.

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abstract: Throughout his work, Freud rises innumerous questions about what would define a man and a woman, which leads Lacan to resume the poem by Antoine Tudal: between a man and a woman there is a wall. Each one will place oneself in the sharing of the sexes through the function of speech, in the language field, and the logic of discourse. The offers are varied and there are several ways of loving. The theme of sexual bipartition also leads to homosexuality and reaches its maximum with the phenomenon of transsexuality. Once sexual bipartition is affirmed – the bipolarization of sexual division – once one recognizes him/herself in a pole where he/she does not particularly identify with, turning then to science seeking a surgical change, the transsexual confirms that there is only a demand when this comes from an offer. We aim to raise some questions in the vast field that gets unveiled when we start from the fact that the two universals, man and woman, imply the impossibility of the sexual relationship, that is, when we ask ourselves about the various forms a subject inserts him/herself in sexuation.

keywords: Sexuation; psychoanalysis; homosexuality; transsexuals.

recebido: 15/08/2016

aprovado: 12/09/2016

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Transexualidade e transgêneros: O gozo sexual da falante Vera Pollo Transexualismo, transexualidade, transgênero, trans-homens e trans-mulheres, os significantes deslizam, incidem no real e interrogam a psicanálise. Vivemos numa época em que já não é impossível mudar cirurgicamente o sexo anatômico. Cirurgias de construção de próteses e de ablação de órgãos são realizadas até mesmo em hospitais públicos, e a medicina, mais do que nunca, procura responder à demanda de alguns sujeitos por uma nova genitália, por diferentes caracteres sexuais secundários, e por um novo registro civil. Em busca de possíveis respostas da psicanálise a este tema, que ganha a cada dia mais espaço em nossos veículos de comunicação de massa, façamos primeiramente um breve recorrido histórico.

De onde parte a questão Autores que se debruçam sobre o tema ressaltam que se deve a Jean Étienne Esquirol (1772-1840) o primeiro registro de um caso de transexualidade, e a Richard von Krafft-Ebing (1840-1902) o estabelecimento de uma escala de inversões sexuais que vai do “hermafroditismo psicossexual” à “metamorfose sexual paranoica”, esta bem conhecida dos psicanalistas por meio do texto freudiano, de 1911, “Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (dementia paranoide)”, o famoso Caso Schreber. Daniel Paul Schreber (1842-1911), importante jurista alemão, ao ser nomeado presidente da Corte Suprema de Dresden, construiu um longo sistema delirante em torno da ideia de que Deus, contrariando a ordem do universo, enviava intermitentemente para seu corpo nervos da volúpia feminina, que alteravam sua voz e lhe faziam crescer seios, feminizando sua silhueta. Internado em hospital psiquiátrico, redigiu o seu sistema delirante em forma de livro, posteriormente publicado sob o título de “Memórias de um doente dos nervos”.1 O termo “transexual” foi cunhado pelo endocrinologista norte-americano, nascido em Berlim, Harry Benjamim (1885-1986),2 em consonância com a proposta de um tratamento hormonal e uma experiência de vida social segundo o 1 No original Denkwürdigkeiten eines Nervenkranken, 1905. 2 Autor de inúmeras obras sobre o tema, sendo uma das primeiras intitulada Transsexualism and transvestism as psychosomatic and somatopsychic syndromes, publicada em 1954.

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POLLO, Vera

sexo desejado pelo período de seis meses, para que, só depois, fosse concluída a indicação ou a contraindicação cirúrgica. Robert Stoller (1924-1991), professor de psiquiatria na Universidade Columbia, cuja obra mais conhecida é Sex and gender: On the development of masculinity and femininity, define o transexual como a “pessoa anatomicamente normal, mas que tem o sentimento de pertencer ao sexo oposto e deseja mudar de sexo, porém ciente de seu sexo biológico, sem a manifestação de distúrbios delirantes” (STOLLER apud MIRANDA, 2015, p. 53). Na verdade, Stoller pretendia ter descoberto uma protofeminilidade comum a todas as crianças, independentemente do sexo biológico, a qual funcionaria como “uma identidade de gênero feminino no coração da sexualidade humana” (STOLLER, 1993, p. 35), descoberta esta que, segundo ele, o posicionava mais além de Freud. Acreditando em um contato simbiótico mãe-bebê, postulou a existência de um imprinting de feminilidade primeva e atribuiu as distorções da imagem dos transexuais masculinos à fixação na protofeminilidade. Em suas palavras, [...] sentir-se a si mesmo como parte da mãe – uma parte da estrutura de caráter primeva e, portanto, profunda (core gender identity, identidade de gênero nuclear) – estabelece o fundamento para o sentimento de feminilidade de um bebê. Isso coloca a menina firmemente no caminho para a feminilidade, na idade adulta, mas põe o menino em risco de ter, em sua identidade de gênero nuclear, um sentido de unidade com a mãe (um sentido da qualidade de ser mulher). Dependendo de como e com qual intensidade a mãe permite ao filho separar-se, essa fase de fusão com ela deixará efeitos residuais que podem ser expressos como distúrbios da masculinidade (STOLLER, 1982, p. 35). Na França, a psicanalista Catherine Millot publica, em 1983, um livro intitulado Hors-sexe,3 em que discute as conclusões de Stoller e relata algumas entrevistas realizadas com transexuais operados e não operados. Em suas palavras, Stoller propõe que “na verdade, a essência do transexual é sua mãe”, no entanto, “dizer que o transexualismo se baseia sobre o sentimento íntimo de ser mulher ou homem é uma das falsas certezas que os testemunhos dos transexuais vêm abalar” (MILLOT, 1992, p. 121). De acordo com a doutrina lacaniana, Millot afirma que a principal característica da transexual, diferentemente da homossexual, é a confusão entre o órgão (pênis) e o significante (falo). Uma das transexuais que ela entrevistou, ao tomar conhecimento de que a consanguinidade aumenta as chances de sucesso em cirurgias de transplante, fez o irmão prometer que lhe cederia o pênis se morresse antes dela. 3 Traduzido em português como Extrassexo.

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Curiosamente, sua pesquisa a levou também ao estudo dos cultos metroacas, em que o casal clássico não é formado por sujeitos da mesma geração, mas pela mãe e seu filho-amante, normalmente castrado. Além destes, ela ainda descobre as assim chamadas “comunidades skoptzy”,4 seita religiosa que praticava a castração ritual, por acreditar que a alma precisa se libertar da matéria para progredir. São comunidades que existiram na Rússia, na Romênia e na Finlândia, entre a segunda metade do século XVIII e a primeira do século XX. Por fim, ela observa que, se muitos transexuais sentiram necessidade de escrever uma autobiografia após serem operados, este ato denuncia claramente que a cirurgia não lhes proporcionou tudo que esperavam, ou seja, não lhes respondeu satisfatoriamente sobre suas indagações acerca de sexo próprio. Logo, “se a operação não é uma solução, ela é imposta pela sociedade” (MILLOT, 1992, p. 115). Voltaremos a esse ponto na parte final do texto.

A pulsão e o falo; sexualidade e sexuação O advento da psicanálise, na aurora do século que passou, trouxe consigo uma concepção até então inédita da vida sexual dos seres falantes. O conceito de pulsão cujas características o diferenciam do instinto animal – pressão constante e não cíclica; variabilidade imensa do objeto – rompeu definitivamente com as ilusões românticas acerca do ato sexual como o encontro complementar que resultaria, para cada um dos parceiros, na confirmação de uma, e só uma, identidade sexual: homem ou mulher, nesse caso separados pela partícula excludente. Freud não tardou a concluir que o feminino e o masculino puros não passam de construções hipotéticas, construtos vazios distantes da realidade empírica. E mais: concluiu também que a tão propalada atração entre os sexos está certamente mais próxima da poesia do que da vida. Inclusive, entre as suas primeiras conclusões se pode ler que “os sintomas neuróticos nada mais são do que a atividade sexual do paciente” (FREUD, 1905/1972, p. 25). Nesse caso, uma atividade da ordem da fantasia inconsciente e dos devaneios mais ou menos conscientes que dela decorrem. Afirmamos, com Lacan, que o escândalo freudiano não foi tanto o reconhecimento de que há gozo sexual na primeira infância – o que já se sabia, ao menos desde a Idade Média, em que tratados médicos mencionavam os apetites carnais das crianças –, mas a demonstração, anteriormente denegada, de que a sexualidade humana é intelectual, ou seja, de que o impulso sexual do ser falante se deixa apreender no desfile dos significantes, desnaturalizando-se. 4 Que significa “castrado”.

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E a consequência imediata da desnaturalização do sexo e do sexual nos seres de linguagem concentra-se exatamente na assim chamada relação homem-mulher, tornando-a inexistente do ponto de vista subjetivo – o ato sexual, quando tem lugar, não relaciona um sujeito-homem a um sujeito-mulher e vice-versa, mas, sim, um sujeito dividido e alguém que encarna o objeto da fantasia deste mesmo sujeito – e enigmática do ponto de vista da ciência médica que, embora divida os humanos em duas classes – designando como “homem” ou “sexo masculino” aquele que apresenta cromossomas XY, testículos, testosterona, pênis e bolsa escrotal e como “mulher” ou “sexo feminino” quem apresenta cromossomas XX, ovários, estrogênio, vagina e útero –, não consegue explicar os jogos de atração e/ou de repulsa entre os dois, não explica, portanto, o que se chama “conduta sexual”. Pode-se, então, falar em “falha epistemo-somática” (LACAN, 1966/2001, p. 8-14) ou “resíduo de não saber” (TEIXEIRA, 2006), indicando uma falha do saber médico sobre o corpo dos falantes. A classificação segundo critérios genéticos, hormonais e anatômicos permite apenas cálculos estatísticos, como aquele que afirma a existência de cerca de 50% de certidões civis de nascimento onde se lê o significante “sexo masculino” e de cerca de 50% com a inscrição “sexo feminino”. “Cerca de”, nesse caso, significa um cálculo aproximado, pois a esta sex ratio se devem acrescentar ainda os casos das assim chamadas “Desordens da Diferenciação Sexual”, as DDS, que englobam hermafroditismo, genitália ambígua ou “intersexo”. Quanto às diferenças de conduta, ditas também “masculinas” ou “femininas”, cuja variabilidade cultural é enorme, a ciência médica nada tem a dizer, pois estas são bem mais da ordem dos ideais de uma determinada época e de um determinado lugar, e estes são privilegiadamente imaginários e/ou simbólicos. Ao seguir na trilha freudiana, Lacan (1958) demonstrou primeiramente que as identificações sexuais estão diretamente ligadas ao significante falo, o qual “irrealiza” a relação entre os sexos, pois, se o que importa no jogo de sedução é apresentar-se ao parceiro como “tendo o falo” ou como “sendo o falo”, já não se trata de apresentar-se como portador de um pênis ou de uma vagina. O jogo de sedução torna-se, assim, jogo de semblantes: um “parecer ser” e um “parecer ter”, para os homens. A falta fálica é o verdadeiro nome da castração, porque, a rigor, não se pode ter ou ser um significante de forma absoluta. A função do falo é determinar as estruturas – ritos, gestos e falas – que serão submetidas às relações entre os parceiros. Ao substituir o significante freudiano “sexualidade” por “sexuação”, Lacan (1972-73/2012) escreve – ou matemiza, se preferirmos – a divisão homem/mulher em uma forma que, evidentemente, nada tem a ver com o sexo dito cromossômico, mas com dois diferentes modos de gozo, mais além do princípio de prazer. A clínica psicanalítica contemporânea tem confirmado a previsão feita por Lacan, em 1971, de que os sujeitos que se autodesignam “homossexuais” lotariam os consultórios dos psicanalistas com as mesmas questões daqueles que se auto180

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designam “heterossexuais”, quais sejam: o que me impede de gozar? Por que não consigo uma relação amorosa estável? Por que sou diferente de todas as mulheres? Será que sou suficientemente homem? Vale dizer, portanto, que as questões subjetivas não divergem em função das escolhas de objeto. Elas o fazem, privilegiadamente, em função do que Freud chamou de “caráter sexual do eu” e Lacan chamou de “posição sexuada”.

Sexualidade e sexuação: encontros e divergências O texto freudiano nos ensina que a vida sexual dos falantes comporta uma maldição, a qual resulta dos seguintes fatos e características: 1. A sexualidade do falante é bem mais ampla do que o ato genital, e pode inclusive dispensá-lo. 2. O tabu do órgão genital feminino é encontrado em homens e mulheres, e tende a estender-se ao corpo da mulher como um todo. 3. A renúncia à satisfação direta da pulsão é necessária ao processo civilizatório da comunidade e de cada um de seus participantes. 4. Independentemente da repressão familiar e social, há, na própria natureza da pulsão, algo que impede sua satisfação completa. Caso contrário, ela se extinguiria. 5. O primeiro objeto sexual, para as crianças de ambos os sexos, é a pessoa que desempenha a função materna, a quem será atribuído um falo imaginário, constituindo-a como a Mãe fálica. A Medusa é um de seus símbolos. 6. Como o bebê humano é um prematuro, ele experimenta ao nascer um desamparo físico e psíquico, motivo pelo qual a pulsão se apoia na satisfação da necessidade e engendra a demanda de amor. 7. Uma certa dose de sadismo é necessária à realização do ato sexual, chamado posteriormente por Lacan de “perversão polimorfa do macho”. 8. Existe um masoquismo originário que consiste em obter prazer na dor, o que equivale a dizer que a pulsão de morte é primária, e deverá ser “amansada” pela pulsão de vida. 9. Há uma diferença entre o “caráter sexual do eu” e a “escolha de objeto”; o primeiro é aquilo pelo qual um determinado sujeito se diz “homem” ou “mulher”; a escolha de objeto pode ser dita hetero ou homo, mas é sempre possível alterná-la. 10. Um sujeito que alterna entre uma escolha hetero e homo costuma declararse um “bissexual”. Há uma bissexualidade originária, não propriamente orgânica, mas essencialmente psíquica, a qual faz de toda criança um “pequeno perverso polimorfo”, quanto ao seu modo de gozar.

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11. O caráter sexual do eu resulta das identificações masculinas e femininas, que correspondem ao declínio do complexo de Édipo. Um sujeito, então, se dirá homem ou mulher conforme a predominância de um ou outro tipo de identificações. Logo, considerando-se também o sexo das identificações recalcadas em seu inconsciente, todo sujeito é, em algum nível, um ser bissexual. Não pretendemos fazer uma listagem detalhada das elaborações de Lacan sobre a vida sexual dos falantes, mas queremos observar que, a princípio, isto é, ao longo dos primeiros nove anos de seu seminário, ele subscrevia, literalmente ou quase, as principais conclusões de Freud, reescrevendo-as, é claro, com seus próprios termos. Por exemplo, ao afirmar que a desarmonia homem/mulher subjaz “à falta preparada no sujeito pela linguagem, para que nisso se exercitem como rivais os partidários do desejo (leia-se: os homens) e as recorrentes do sexo (leia-se: as mulheres)” (LACAN, 1958/1998, p. 745). Ora, designar os homens como “partidários do desejo” e as mulheres como “recorrentes do sexo” parece-nos em consonância com as observações mais tardias de Freud (1932) acerca da sexualidade feminina, segundo as quais as mulheres permaneceriam mais ligadas à satisfação direta da pulsão e menos propensas à sublimação, em consequência do repouso encontrado na ligação edipiana com o pai e apresentarem, consequentemente, um funcionamento superegoico menos inexorável que o masculino. Porém, nesse mesmo texto, escrito em 1958 e intitulado “Diretrizes para um congresso sobre sexualidade feminina”, Lacan observa que os grupos de mulheres homossexuais não apresentam as mesmas características identificadas por Freud (1921) nos grupos de homossexuais masculinos, uma vez que elas não apresentam uma maior propensão às práticas intempestivas e violentas. Pelo contrário, demonstram grande interesse pela cultura, em particular, a literatura. O que o levará a concluir, alguns anos depois, que somente as homossexuais sustentam o discurso sexual com segurança, porque sentem-se confortáveis nas “coisas do amor” e “não correm o risco de tomar o falo por um significante” (LACAN, 1971-72/2012, p. 17). Freud (1912) esclareceu “Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor” dos homens incapazes de fazer convergir amor e desejo numa só mulher, mencionando a existência de duas correntes em suas vidas amorosas: uma que toma a mulher/mãe como objeto de amor; outra que toma a mulher/puta como objeto de desejo. E, embora tenha observado que algumas mulheres podem adotar o “tipo masculino de amor” (FREUD, 1920/1976, p. 199), o qual se caracteriza pela sublimação da pulsão e pela idealização do objeto, como no caso que hoje conhecemos como a “Jovem homossexual”, Freud deu indícios de acreditar em uma convergência do amor e do desejo na vida amorosa das mulheres em geral. Mas Lacan não subscreve esta observação de Freud. Segundo ele, na vida amorosa das mulheres há uma divergência de correntes apenas menos evidente, pois, enquanto

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o objeto de desejo é o parceiro portador do pênis, o objeto de amor encontra-se velado no inconsciente. Este tanto pode ser “um amante castrado ou um homem morto (ou os dois em um) ... um íncubo ideal” (LACAN, 1958/1998, p. 742). Explica-se, assim, por que razão se pode dizer que “o extremo do erotismo feminino é a fantasia de matar o homem” (LACAN, 1975-76/2007, p. 122), magistralmente ilustrada no filme “O império dos sentidos”. Outra observação de Lacan assinala que as mulheres não se caracterizam, como Freud chegou a pensar em determinado momento, pela aceitação imediata da castração, o que as conduziria rapidamente ao complexo de Édipo e, portanto, ao pai. Em “O aturdito”, Lacan (1972/2003, p. 465) declara que tal ideia “contrasta dolorosamente com a realidade de devastação que constitui na mulher em sua maioria a relação com a mãe de quem como mulher ela parece esperar mais substância que do pai – o que não combina com ele ser segundo, nessa devastação”. Buscando esclarecer as posições sexuadas homem/mulher para além dos significantes da identificação, Lacan (1972-73/1985) produz, na sétima lição do Seminário 20: Mais, ainda, um quadrante lógico, que corresponde a uma nova maneira de se pensar a sex ratio, enigmática distribuição dos seres falantes em apenas duas metades, a que nos referimos acima. Trata-se de escrever as duas maneiras de um falante se dizer “homem” ou “mulher”, conforme dois modos distintos de gozo: “todo fálico”, no primeiro caso; e “não todo fálico”, no segundo. Esta divisão dos seres falantes entre uma metade que tem um gozo “todo fálico” e outra metade que tem um gozo “não todo fálico”, porém que tem também um suplemento de gozo dito “feminino”, não significa de modo algum que outros gozos não sejam experimentados, nem que estejam aí englobados todos os falantes, sem possíveis exceções. Tampouco significa que os sujeitos não possam experimentar-se nos dois lados alternadamente. Significa, apenas, que o gozo fálico é o que substitui no falante o que seria um gozo da ordem da natureza – ou puramente animal, se preferirmos – e que “o Falo é a objeção de consciência, feita por um dos dois seres sexuados, ao serviço a ser prestado ao outro” (LACAN, 1972-73/1985, p. 15). Mas foi exatamente no ano anterior, em O Seminário, livro 19: ... Ou pior, e referindo-se explicitamente ao transexual, que Lacan (1971-72/2012) criou o sintagma “o erro comum” do discurso sexual que confunde o órgão dito “macho” com o significante falo. O órgão se torna instrumento de gozo e o falo, seu significado. “Nessas condições, para ter acesso ao outro sexo, realmente é preciso pagar o preço, o da pequena diferença, que passa enganosamente para o real por intermédio do órgão, justamente no que ele deixa de ser tomado como tal e, ao mesmo tempo, revela o que significa ser órgão” (LACAN, 1971-72/2012, p. 17). Para Lacan, a paixão do transexual “é a loucura de querer livrar-se desse erro, querer forçar pela cirurgia o discurso sexual” (Ibid.). É o caso de João W. Nery que veremos a seguir.

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A viagem de um trans-homem O livro de João W. Nery (2011), Viagem solitária – Memórias de um transexual trinta anos depois, inscreve-se dentro da observação de Millot, acima referida, de um ato de escrita que objetiva elaborar a interrogação do sujeito sobre o seu próprio sexo e sobre a distinção simbólica homem/mulher. Primeiro caso de trans-homem de que se teve notícia no Brasil, seu testemunho veio a público em 1984, com a publicação do livro Erro de pessoa, primeira versão reduzida de Viagem solitária. Por meio de uma certa identificação com o autor do livro, Millos Kaiser escreve na Introdução de Viagem solitária que “João não nasceu mulher e quis virar homem. Nada disso. João nasceu homem, mas preso num corpo de mulher”. Ora, este é justamente o enunciado mais frequentemente escutado por quem se dispõe a escutar os sujeitos que se autodesignam transexuais: o corpo é de um sexo e a alma ou temperamento é de outro. Contudo, no “Prefácio” à primeira versão do livro, Antonio Houaiss recomenda-o enfaticamente, como [...] um livro imprescindível para todos os que queiram ver melhor o espanto que é o ser humano: a dimensão e a importância do componente sexual como fonte da identidade individual e social são aqui penetradas com a vitalidade de uma vida vivida [...] e o que daí emerge é um real mais forte do que o captado pela ciência e um romance mais pungente que as ficções romanescas [...] provando que o literário (quando irrecorrível) é a própria forma autêntica de dizer o humano: é de tal poder que faz deste livro algo que não é lícito ignorar. A crermos na assertiva de que uma obra de arte só existe para um outro e por um outro e, consequentemente, de que um livro, qualquer que seja, só se completa no leitor, diremos que João nos quer seus cúmplices e parceiros, de uma vida bem difícil, é claro, mas também do feliz encontro entre o seu desejo decidido e o saber fazer do cirurgião. No tempo que antecede a cirurgia, o sujeito experimentava Uma dor lancinante, com minha alma alheia ao corpo que vestia. Oprimida por ser sempre a sombra de um vulto que ninguém via [...] Carregava um infecundo viver de esquivas. A sátira pungente de me sentir um homem eunuco, sem a permissão da deformação! (NERY, 2011, p. 73). “A relação sexual era o ponto mais doloroso”, prossegue João, que só obtinha prazer após o “coito perceptivo”, neologismo que criou e que definiu como a segurança de que a parceira o percebia “como um homem e estava atraída mais pelo

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que sentia do que pelo que via no meu corpo” (Ibid., p. 127), pois “viver dois gêneros numa só vida era enlouquecedor” (Ibid., p. 129). João afirmava não conhecer ninguém igual a ele. “Não era hetero, não era homo, era trans. Mas o que é ser trans? Eu não sabia ... eu só era diferente. Precisava me reinventar” (Ibid., p. 204). Nery prossegue a narrativa de sua vida, passando não apenas pelas cirurgias, mas também por vários amores, encontros e desencontros, e pela alegria da paternidade adotiva de um menino, gerado por uma das mulheres que amou. São descritas diferentes questões com diferentes mulheres, muitos conflitos com parentes, pais, irmãs, cunhados... e o envelhecimento, que é assim narrado: Há tempos que o peso dos anos me fazia sentir novas barreiras físicas, como se um estranho se apossasse de mim lentamente. Agora, a crise de identidade era diferente, não mais a de gênero, mas aquela que todos temem com a idade, ao constatar a dificuldade do possível fascínio sobre o outro. A face enrugou, os pneus surgiram, os pelos caíram, o pênis não veio. Hospitaleiro, ele decide promover em sua casa um encontro de transgêneros de diferentes cidades do Brasil, hospeda-os em um longo fim de semana de troca de vivências, e espanta-se ao tomar conhecimento de trans-homens que engravidaram. Então conclui: “Percebi então que, embora fôssemos todos trans, éramos bem diferentes”. O que restou para nós da leitura deste livro do qual emerge, como bem assinalou Houaiss, um real muito forte, o testemunho de um sujeito que, depois de viver situações das quais o mínimo que podemos dizer é que são situações raras, é capaz de surpreender-se e, por isso, intitular um capítulo de “O homem grávido”. Um sujeito que conclui pela existência da força da singularidade acima de qualquer afinidade ou semelhança.

Algumas respostas da psicanálise Escrevi há alguns anos um texto intitulado “Não há transexual fora do discurso da ciência”,5 no qual sustentei que, embora o enunciado que assevera a discordância entre um corpo e uma alma não tenha esperado o advento da psicanálise para se fazer ouvir, concordo com a conclusão de Millot (1983) de que a ênfase midiática que a transexualidade vem adquirindo em nossos dias permite que a consideremos um sintoma da contemporaneidade, uma das formas mais recentes do mal-estar na civilização. Sintoma de um sujeito que está mal numa civilização em que o discurso 5 Que se tornou último capítulo do livro de minha autoria O medo que temos do corpo.

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da ciência dá as mãos ao discurso do capitalismo, transformando o corpo – desde sempre um objeto de gozo e de consumo – em objeto desse gozo acéfalo que enuncia: “Mude sua forma, seu tamanho, seu peso e, por que não?, sua anatomia! Não o submeta a nenhuma amarra! Invente-lhe, se for possível, novas funções”. Compete-nos, todavia, diferenciar entre o transexual que deseja se fazer operar porque seu corpo não está de acordo com o “mais íntimo sentimento de si”, segundo a expressão de Stoller (1982), e o transexual que se considera provido de órgãos masculinos e femininos, ou seja, que se posiciona do lado de fora da partilha dos sexos. As pesquisas têm mostrado que, num caso, como no outro, há diferentes nuances e possíveis gradações de afeto. Ou seja, há transexuais que se satisfazem apenas com tratamentos hormonais e com o transvestimento do próprio corpo segundo o sexo com que se identificam; há sujeitos que desejam se fazer operar para que emerjam os órgãos supostamente inclusos do sexo diferente ao da genitália externa; há também aqueles que, como Schreber, admiram no espelho a transformação do próprio corpo sob a influência de um Outro gozador. Enfim... Daniel Paul Schreber é, até hoje, paradigma dessa última variante pulsional, em que o sujeito experimenta um gozo transexual, mas não demanda nenhuma intervenção cirúrgica, porque, em seu delírio paranoico, não apenas o mundo estava povoado de “homens feitos às pressas” e reduzidos à função de “cabides”, como a diferença entre os sexos se resumia na vestimenta vazia que se pendura nesses cabides. Além disso, como Deus enviava sistematicamente para o seu corpo feixes de “nervos da volúpia feminina”, sua transformação em mulher, embora deferida ao infinito, seria inexorável. Talvez nos seja possível postular, de forma simétrica, que assim como nem todo psicótico demanda intervenção cirúrgica de correção do sexo, nem todo sujeito que demanda tal intervenção é psicótico. Parecem-nos pertinentes as afirmações de que se “o transexual está convicto de que sua identidade não condiz com seu sexo anatômico [...] trata-se de uma disforia de gênero [em face da qual] o discurso da ciência opera em nome de uma conformação ortopédica da demanda” (TEIXEIRA, 2016, p. 3,4). Há, então, um gesto de contrabando, uma sutura da hiância que separa sexo e gênero ou, se preferirmos, identidade sexual e escolha de objeto. Tanto em algumas mulheres, quanto em algumas trans-mulheres, a preocupação exacerbada com questões de estética assinala o fortalecimento do registro do imaginário, bem como a falta do significante da mulher no inconsciente. Há relatos de entrevistas com transexuais que não apresentam sintomas psicóticos manifestos; há transsexuais, alguns inclusive pais, que referem viver com sua mulher como duas mulheres; há transexuais, algumas inclusive mães, que afirmam viver com o marido como dois homens. Tais afirmações reforçam a descoberta psicanalítica da bissexualidade subjetiva originária e da inexistência de uma identidade sexual unívoca, no sentido de inquestionável e independente das identificações

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do eu. Não se pode negar que parece haver, em muitos casos, o desejo de apagar as marcas da diferença, na medida em que ela significa obstáculo à identificação fálica (MILLOT, 1992, p. 107). Todavia, tampouco se pode negar a diferença da posição diante do Outro – e certamente da estrutura que resultou do encontro com a castração – de um sujeito que se diz “homem” ou “mulher”, mesmo se ele lamenta, como alguns o fazem a existência de um terceiro sexo, e outro que se diz simultaneamente portador de genitália e características sexuais dos dois sexos. No primeiro caso, o sujeito está inscrito na partilha dos sexos, apesar de confundir sexo e gênero ou, como disse Lacan (1972), confundir o órgão e o significante. Parece-nos que apenas nesse segundo caso se aplicaria mais adequadamente a expressão “extrassexo”. Um psicanalista sabe que certezas subjetivas ou são fantasias inconscientes, frases fantasmáticas subjacentes aos sintomas ou são significações delirantes, mas nem sempre é fácil distinguir entre uma e outra. Distinção, no entanto, fundamental no caso de um sujeito analisante, porquanto, ao decidir o diagnóstico diferencial, decide-se simultaneamente a direção do tratamento.

referências bibliográficas FREUD, S. (1905). “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud – v. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1976, pp.129-237.                  . (1915). “As pulsões e suas vicissitudes” In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud – v. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1976, pp. 137-168.                  . (1920). “Psicogênese de um caso de homossexualismo em uma mulher” In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud – v. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1976, pp. 183-212.                  . (1933[1932]). “Novas conferências introdutórias sobre psicanálise –Feminilidade” In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud – v. XXII. Rio de Janeiro: Imago, 1976, pp.139-165. LACAN, J. (1958). “Diretrizes para um congresso sobre sexualidade feminina” In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, pp. 734-748.                  . (1971-72). O seminário, livro 19: ...ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2012.                  . (1972). “O aturdito” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, pp. 448-497.                  . (1972-73). O seminário, livro 20: Mais, ainda Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.                  . (1975-76). O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 33 p.177-189 novembro 2016

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resumo: O presente texto discorre sobre o gozo sexual dos seres falantes, com ênfase na transexualidade e nos transgêneros. A primeira parte procura localizar historicamente a questão, a partir do primeiro registro de um caso de transexualidade e dos primeiros autores que estudaram o assunto. A segunda parte introduz quatro conceitos psicanalíticos produzidos por Freud e Lacan com vistas a circunscrever este tipo de gozo: a pulsão, o falo, a sexualidade e a sexuação. Na terceira parte, o texto elabora alguns encontros e divergências entre os dois últimos conceitos. A quarta parte está centrada no livro de João W. Nery, Viagem solitária – Memórias de um transexual trinta anos depois. A parte final produz o levantamento de algumas respostas da psicanálise, sobretudo, ao tema da transexualidade.

palavras-chave: Transexualidade; transgêneros; falo; sexualidade; sexuação.

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abstract: This paper discusses the sexual jouissance of speaking beings, with an emphasis on transsexuality and the transgender. The first part aims to place the question historically, departing from the first register of a transsexuality case and the first authors who studied the topic. The second part introduces four psychoanalytical concepts conceived by Freud and Lacan in order to circumscribe this type of jouissance: impetus, phallus, sexuality and sexation. In the third part, the text works on some encounters and divergences between the two last concepts. The fourth part focuses on João W. Nery’ book Solitary trip – The memoirs of a transsexual 30 years later. The final part then brings the results of some psychoanalytical answers mainly related to transsexuality.

keywords: Transexuality; transgender; phallus; sexuality; sexaction.

recebido: 15/08/2016

aprovado: 12/09/2016

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Homofobias psicanalíticas na psicologização do Édipo Antonio Quinet Este trabalho faz parte de uma pesquisa de crítica assídua do movimento psicanalítico proposto por Lacan. Abordando o tema laços sociais e as parcerias amorosas, foi a ocasião para alguns psicanalistas na Europa entre o final do século passado e o início deste exporem suas concepções psicanalíticas nos jornais e na mídia a respeito do complexo de Édipo, da homossexualidade e suas preocupações com a sanidade mental de uma criança adotada por casais do mesmo sexo biológico. Isso vem sendo objeto de vários estudos acadêmicos e psicanalíticos no mundo. Por exemplo, a tese de doutoramento de Acyr Corrêa Leite Maya Homossexualidade: Saber e homofobia,1 e a de Anderson Schimer sobre Homofobia: véu do real.2 Na França, o conjunto dessas declarações públicas – algumas das quais podem ser encontradas na internet – foi considerado “Homofobia psicanalítica” por um psicanalista conhecido e por outro, também historiador, “um desastre de tal ordem para a psicanálise que só uma próxima geração de analistas poderá eventualmente retificar” (ROUDINESCO, 2013, p. 117). Nosso interesse é o debate de ideias e a reflexão, daí preferirmos não citar os nomes dos autores psicanalistas cujas declarações públicas apresentaremos aqui. A regulação dos gozos que asseguram os discursos é frequentemente utilizada pela “moral sexual civilizada” para determinar e discriminar os laços amorosos adequados ou inadequados a uma dada sociedade. Os laços sociais que tentam, em vão, regular as parcerias amorosas entre os sexos são tentativas também vãs de suprir o real da relação sexual que não pode ser escrita. Em nossa pesquisa verificamos que ao longo da história essa regulação vem sendo sustentada por alguns psicanalistas em nome de Freud e Lacan que apregoam a boa e normal sexualidade em contraposição a uma sexualidade desviante, imatura, patológica ou perversa. E, a partir daí, pontificam sobre os laços sociais e a direção do tratamento analítico de acordo com sua concepção das práticas sexuais e vínculos amorosos. É o que vem acontecendo na história da psicanálise em relação à homossexualidade. 1 Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008. 2 PUC-São Paulo, 2016.

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Essa posição dos analistas nada mais faz do que incrementar o repúdio à própria psicanálise, a segregação que já existe na sociedade, o tabu da homossexualidade e a discriminação de gays e lésbicas acabam assim alinhando-se aos que promovem o discurso de incitação ao ódio – discurso este que, como outros, sustenta os atos homoterroristas como o que aconteceu em Orlando, onde um homoterrorista fundamentalista assassinou brutalmente 50 pessoas numa boate gay deixando mais 50 feridas. A Escola de Psicanálise é nosso instrumento político para transmitir a psicanálise, fazendo com que ela cumpra a sua função no mundo. Trata-se de um lugar onde os “trabalhadores decididos” não estão a serviço do discurso do mestre, do universitário ou do capitalista nem tampouco a serviço do gozo de um que acredita ser o UM, e sim a serviço do discurso do analista. Trata-se de um organismo que tem por função política: “restaurar o gume cortante de sua verdade; que reconduza a práxis original que ele instituiu sob o nome de psicanálise ao dever que lhe compete em nosso mundo; que, por uma crítica assídua, denuncie os desvios e concessões que amortecem seu progresso, degradando seu emprego’’ (LACAN, 1964/2003, p. 229). A psicanálise é subversiva, mas os analistas são conservadores e reprodutores da ordem vigente, por demais condescendentes com a “civilização”. Mas não todos. A civilização está cada vez mais contaminada pela barbárie em vários níveis: barbárie da espoliação capitalista, da segregação, das guerras e da destruição do meio ambiente. A história da psicanálise nos mostra a “engenharia humana” na qual ela se transformou com a sua psicologização e foraclusão do inconsciente, a participação e condescendência de analistas nas ditaduras militares, a homofobia nas instituições psicanalíticas e suas teorias, até a discriminação homoterrorista de alguns psicanalistas na Europa contra as leis do casamento gay e da homoparentalidade. Daí a necessidade de uma crítica assídua para que a psicanálise não seja degradada e engolida pela religião, ciência ou discurso capitalista. Não foram os psicanalistas, por exemplo, que promoveram as mudanças na sociedade contra a patologização e a discriminação derivadas do racismo sexual, e sim os movimentos sociais e os estudos da teoria de gênero. E, no entanto, a psicanálise de Freud a Lacan fornece todas as armas para isso. Até quando nós, analistas, ficaremos a reboque das mudanças contemporâneas de subjetividade e transformações dos sinthomas? Na terceira parte da “Proposição sobre o analista da Escola”, Lacan se refere ao que ele chama de “nossas relações com o exterior”. Aí fica mais clara a questão política, ou mais precisamente, “a extraterritorialidade da psicanálise” (LACAN, 1967/2003, p. 262), onde ele situa as famosas três linhas de facticidade, que são de fato três orientações políticas para a psicanálise, a partir de três fatos históricos: a ideologia reinante, nazismo e o campo de concentração. São três aspectos da civilização, que Lacan reparte em simbólico, imaginário e real, contra os quais o psicanalista deve se opor.

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No registro do Simbólico trata-se da “ideologia edipiana da família pequeno -burguesa” (Ibid.), segundo as palavras de Lacan que, na verdade, é a filha do casamento do capitalismo com a ciência no templo da religião. Muitos analistas ainda confundem o complexo de Édipo com o edipismo da família tradicional pai, mãe e filho biológico, batizado na igreja e com registro civil no cartório. E daí falam barbaridades, conduzem análises e escrevem teorias nas quais abundam o preconceito, a discriminação e a patologização de tudo o que sai de uma suposta norma edipiana. Judith Butler criticou o Édipo freudiano de heteronormativo e dominado pela ideologia machista em que a mulher está em segundo lugar entre os sexos, certamente porque os analistas não fizeram uma re-visão das leituras equivocadas a partir do Édipo normativo descrito por Lacan no Seminário 5: As formações do inconsciente. Vale lembrar que no escrito de 1958, em que nos traz a fórmula da metáfora paterna, Lacan não se refere a nenhuma normatividade nem fala de papai e de mamãe e sim das funções do Nome-do-Pai e do desejo da mãe deslocando assim o Édipo da família para uma função da fala no campo significante do desejo. Os analistas lacanianos que se ativeram a uma concepção normativa do Édipo, e hierarquizada da sexualidade em que o normal é a hetero e a homossexualidade é perverso, não foram mais adiante na reformulação constante do Édipo de Freud em Lacan, que o situa como o quarto elo do nó borromeano que liga os três registros do ser-para-o-sexo. O Sinthoma é um Nome-do-pai para o neurótico que se expressa como letra na singularidade de cada um. O Édipo, na psicanálise, merece ser re-visto. Sempre. No imaginário é a estrutura do grupo constituído a partir do Um, como Freud dissecou em Psicologia das massas: o S1 encarnado por uma pessoa que se torna assim líder, guru, ideal de eu de um grupo submisso e hipnotizado. A representação paradigmática desse S1 é o bigode de Hitler, como o seu mais-de-gozar que provocava nos nazistas um efeito de identificação, cristalizando-os (LACAN, 1970-71/2009, p. 28). Trata-se, com Lacan, da repercussão no coletivo da política do Um, do Todo Fálico, da lógica do Uni-verso onde todos são iguais e castrados, impotentes diante do Um do poder. Em oposição a isso há a lógica da Heteridade, de não fazer universo, do conjunto aberto de dispersos disparatados (LACAN, 1976/2003, p. 569), do enxame de S1, do modo de funcionamento em rede, do somatório de singularidades que não se fecha e nem cabe em uma panela de pressão. No registro do Real é o processo de segregação e racismo, cujo pior exemplo nos é dado pelo campo de concentração nazista. Trata-se do efeito do rechaço do real que pode se expressar como um mal radical que cada um leva dentro de si e projeta no outro. Daí o outro se transforma em inimigo a ser eliminado. Trata-se, a partir da lógica do Um, do rechaço da heteridade, do outro como radicalmente outro, como Diferente. Todo aquele que não é “Mesmo” é, gradualmente, discriminado, isolado, perseguido e eliminado. O racismo é a tentativa de situar no Outro o nosso gozo descaminhado, na medida em que estamos dele separado. Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 33 p.191-199 novembro 2016

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Vejamos algumas declarações públicas de psicanalistas europeus diante do debate sobre o casamento gay e a homoparentalidade. A maioria dessas referências se encontra na tese de doutorado de Acyr Corrêa Leite Maya, supracitado. Um conhecido analista francês declarou: “Estou convencido de que a criança se constrói pensando que ela é o resultado de um encontro entre um homem e uma mulher. A realidade sexual é a realidade da diferença dos sexos”. Para outro, que também é psiquiatra, adotar a lei do casamento gay é “suprimir a diferença dos sexos como elemento da divisão do sujeito e a proibição do incesto – o que é uma armadilha literalmente perversa”. Outro ainda interpreta que a reivindicação da homoparentalidade é devida ao fato de “a vida sexual deles não ser potencialmente procriadora”. Trata-se, como vemos da ideologia “teológico-psicanalítica”, segundo as palavras de um colega discordante. Outro lacaniano afirmou que “(...) é necessário que esse significante Nome-do-Pai seja, explicitamente, e sem ambiguidades, referido à existência de um terceiro, marcado em sua diferença sexual em relação à protagonista que se apresenta como mãe”. Ainda outro analista francês se pergunta: “como esses filhos vão se confrontar com a diferença, se doravante, a mesmice dos lugares do pai e da mãe poupa o futuro sujeito de fazer o seu aprendizado nessa confrontação?”. Vemos aqui sistematicamente a diferença sexual ser referida por esses analistas lacanianos à diferença anatômica dos sexos, como o fazem os estudiosos de gênero. Da mesma forma para um analista italiano os filhos de casais que não veem diferença sexual dos pais não poderiam passar pela “crise edipiana”. No texto sobre a jovem homossexual, Freud afirma ser três os determinantes da sexualidade: a anatomia, a posição subjetiva (masculina ou feminina) e a escolha sexual (homo ou hetero) – esses três elementos podendo se misturar e variar de acordo com cada caso. E com Lacan aprendemos que a sexualidade é desnaturalizada pela linguagem e pelo inconsciente, e que a diferença sexual se repercute nas posições subjetivas de gozo e na diferença de posição entre o todo e o não todo fálico independentemente de qualquer genitália. Outro que se diz psicanalista exprime uma preocupação fofa: “vai ser um problema para a criança superar a falta de modelo de um homem que ama uma mulher e de uma mulher que ama um homem. Uma criança necessita ver sua mãe amando seu pai”. O amor é lindo... mas só entre um pai XY e uma mãe XX. Mas o pior é que: “No casal homossexual, é muito provável que eles tratem a criança como o centro de toda a casa. E isso não é bom. Porque uma criança de casal homossexual se converteu em algo excepcional, em um fenômeno único, uma espécie de bem inestimável do casal. O rei da casa”. Parece que ele esqueceu de ler a Introdução ao Narcisismo, de Freud, e a posição de todo filho de ser “Sua majestade, o bebê”. Mas outros analistas também batem na mesma tecla: Sr. X alerta para “o homossexual não fazer de seu narcisismo uma armadilha em defesa do direito de ser homossexual”. Esse preconceito não é novo, encontramos desde Hanna Segal a afirmação de que “A heterossexualidade pode ser mais ou 194

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menos, narcisista, pode ser muito perturbada ou não. Na homossexualidade, isso é inerente” (SEGAL, 1990, p. 212). Ora, o narcisismo localizado por Lacan como o investimento na imagem é uma característica de todo corpo falante – é o que caracteriza todo ser humano como homo sexualis, ou seja, aquele que tem amor pelo mesmo, a sua imagem no outro, independentemente do sexo. No final dos anos 1990, uma escola de psicanálise na França fez uma jornada com um título muito “última moda”, chamado “Gays em análise”. E isto uma jornada de psicanálise de orientação lacaniana – não era de estudos de gênero nem de sociologia – desses mesmos lacanianos que aprenderam com Lacan que só se faz análise do sujeito do inconsciente. Nessa jornada o chefe de escola diz não ter nada contra o casamento gay, apesar de eles, diferentemente dos heteros, “não respeitarem a fidelidade conjugal”. E lamenta que os homossexuais ao reivindicarem o direito de cidadania “tendem a apagar um certo número de traços fundamentais à perversão”. Eles perderiam, portanto, o charme da clandestinidade e o glamour da transgressão. Ainda por cima, os analistas dessa escola, ao constatarem que o Inconsciente é falocêntrico e foraclui o Gozo Outro concluíram que o inconsciente é... homossexual. Como se o sexo entre pessoas do mesmo sexo biológico excluísse a heteridade e que homens e mulheres dotados de inconsciente e pulsões não se distribuíssem na partilha da sexuação independentemente de sua genitália. Mais recentemente, diante dos movimentos que tomaram a rua pró e contra os projetos de lei, esse mesmo chefe lançou uma palavra de ordem de virginal pudor, como um “não me toques”: “Por favor, não instrumentalizem a psicanálise para fins sociais”. O cinismo psicanalítico pode ir às raias do ridículo. Outro chefe de escola perguntou para a jornalista que o entrevistava: “Se algo lhe acontecesse, você concordaria que seus filhos fossem entregues a um casal homossexual?”. E fez uma profecia: “Em 15 anos teremos processos judiciários de filhos de homossexuais contra o Estado”. A questão da homofobia na psicanálise não é uma novidade, ela vem sendo tema de pesquisa de vários trabalhos e teses de doutorado no Brasil e no mundo. Freud sempre lutou e militou contra ela dentro e fora da psicanálise. Na instituição foi contra Jones e sua filha Anna que queriam barrar a entrada de analistas gays para a formação analítica. E publicamente assinou uma petição contra a criminalização da homossexualidade (só descriminalizada em 1981 na França, e em 1994 na Alemanha). Freud fez também declarações públicas ao jornal Die Zeit dizendo que a homossexualidade não deveria ser uma questão de tribunal e que não era doença. Sua posição não prevaleceu nos institutos de formação na IPA nem na psiquiatria, que a interditaram aos homossexuais. Só em 1992 a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou a homossexualidade como patologia do Manual de Classificação Internacional da Doenças (CID-10). Em 1997, o Congresso Internacional de Barcelona foi marcado pelo trabalho de Ralph Roughton

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que trouxe à luz publicamente a homofobia dos institutos de formação tendo que pleitear pela despatologização dos analistas gays (QUINET; JORGE, 2013). Só a partir de então que começou a ser franqueada aos homossexuais na formação analítica. Lacan nunca barrou a formação de nenhum analista por causa de sua escolha sexual em sua Escola. Se nos anos 1950 encontramos alguns trechos em seu ensino associando a homossexualidade à perversão, nessa época Lacan ainda não se diferenciava do ponto de vista da IPA sobre o assunto. Posição esta que não se manteve posteriormente em seu ensino quando abandonará a relação da perversão com a castração e nem mais se referirá aos homossexuais como perversos. A partir dos anos 1970 revolucionará esse tema com as fórmulas da sexuação, o Édipo borromeano e com os termos de homo sexualis e heteridade. Para finalizar, podemos citar dois depoimentos ainda mais segregativos eivados de incitação à discriminação e ao ódio, na medida em que situa os homossexuais como uma ameaça ao laço social. Curioso que isso venha de pessoas que se alinham com Freud que dizia que a ligação homossexual é o cimento social. Pois bem, um analista francês de formação jurídica declarou que “instituir a homossexualidade com status familiar é colocar o princípio democrático a serviço da fantasia, na medida em que o direito é fundado no princípio ideológico, isso abre espaço para uma lógica hedonista, herdeira do nazismo”. E um psicanalista italiano afirmou que, se o casamento homossexual for reconhecido “ele tende a ameaçar de destruição o reconhecimento e apoio social aos laços humanos, os quais levam em conta a diferença e o futuro, como são os laços familiares originais. Prevalecerá o instinto de morte. O ISIS (Estado Islâmico) não é muito diverso disso”. E acrescenta que negar a diferença sexual anatômica é “negar a realidade e medi-la com uma régua abstrata com a mesma lógica do campo de concentração”. Depois de Orlando, em que um homem matou 50 pessoas numa boate gay se reivindicando do ISIS, fica ainda mais bizarra esta declaração invertendo monstruosamente a realidade. Talvez o termo homofobia seja inadequado para designar tais discursos e atos. Não seria melhor dizer homoterrorismo? Ou até mesmo homofascismo? Não obstante todas essas ameaças malignas, tanto na França quanto na Itália o projeto de lei do casamento gay e da homoparentalidade foi aprovado. Em nossa pesquisa verificamos um número significativamente maior de declarações de psicanalistas contra o casamento gay e contra a homoparentalidade do que os outros com posição distinta. O silêncio de uns não foi mais eloquente do que o preconceito dos outros. Lavar as mãos não tirou a mancha jogada na psicanálise. A história da psicanálise nos mostra: a “engenharia humana” na qual ela se transformou nos EUA com a sua psicologização e foraclusão do inconsciente, a Psicologia do Ego. E agora, como podemos chamar esses desvios da psicanálise na atualidade? Psicologização (pequeno-burguesa) do Édipo? Teologia psicanalítica? Psicanálise cínica? Lembremos que são os discursos que dão sustentação aos atos

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Homofobias psicanalíticas psicologização do Édipo

homoterroristas, como o que aconteceu recentemente em Orlando e acontece cotidianamente no Brasil, onde um homossexual é assassinado a cada 27 horas e onde a extrema-direita e os políticos evangélicos apregoam a cura de homossexuais e incitam a homofobia. Daí a necessidade de uma crítica assídua para que a psicanálise não seja degradada e engolida pela religião, ciência ou discurso capitalista. Lacan nos deixou a pergunta: “E quando a psicanálise houver deposto as suas armas diante dos impasses crescentes de nossa civilização que serão retomadas por quem?” (LACAN, 1967/2003, p. 341). Não esperemos chegar a esse ponto, temos as nossas armas – as que nos fornecem a teoria e a clínica psicanalíticas. “A intensão no político só pode ser feita ao se reconhecer que é só do gozo que há discurso” (LACAN, 1970-71/1998). A política é uma forma de tratamento do gozo: modalidade de dominar e regular o gozo. A política determinada pelo Estado a serviço da sociedade e de suas instituições é um campo minado de interesses e de forças de movimentos sociais e partidários. Ela pode contaminar o discurso do analista que não esteja prevenido e advertido de não se deixar guiar por tudo o que não seja o próprio do desejo do analista: o de levar cada sujeito à sua pura diferença. O que a psicanálise nos ensina é que tem algo do gozo que não é coletivizável, na medida em que é aquilo que cada sujeito tem de mais singular. E que tampouco entra no discurso, como as coisas do amor e do sexo que não se encaixam em nenhum discurso previamente estabelecido. É o que não faz plural, mas não deixa de fazer parceria. E isto é uma questão a ser levada em conta na política. A singularidade é o modo como cada um goza de seu inconsciente, ou seja, seu sinthoma. A política da psicanálise é a política do sinthoma. E ao levá-la para o mundo e poder se defrontar com a “civilização”, os analistas se situam politicamente contra os discursos que fazem obstáculo ao sinthoma de cada um, que hierarquizam formas de parcerias sexuais, que discriminam determinadas maneiras de gozar, que excluem fala-a-seres por suas opções, cor, credos, classe social e suas aspirações e sinthomas. O psicanalista não pode ser preconceituoso e deixar-se contaminar pela moral, religião ou o discurso da ciência que foraclui o sujeito.3 A psicanálise é antirracista, pois admite que o estrangeiro habita o âmago de cada um e o diferente (heteros) é parte de si. Cabe ao analista fazer entrar a consideração pelo gozo do sinthoma, com sua singularidade, no discurso de sua polis. E no espaço público e no privado, trazer a política que sua prática ensina.

3 “Deixar a esse Outro seu modo de gozo, eis o que só se poderia fazer não impondo o nosso”, diz Lacan em “Televisão” (1973/2003).

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Homofobias psicanalíticas psicologização do Édipo

resumo: Este trabalho faz parte de uma pesquisa de crítica assídua do movimento psicanalítico proposto por Lacan. Abordando o tema laços sociais e as parcerias amorosas, foi a ocasião para alguns psicanalistas na Europa entre o final do século passado e o início deste exporem suas concepções psicanalíticas nos jornais e na mídia a respeito do complexo de Édipo, da homossexualidade e suas preocupações com a sanidade mental de uma criança adotada por casais do mesmo sexo biológico. Mostraremos como essas declarações, eivadas de preconceito de cunho homofóbico que apontam para uma psicologização pequeno-burguesa do Édipo freudiano, desviam da psicanálise apontada por Lacan desde 1967.

palavras-chave: Édipo; homossexualidade; homofobia; homoparentalidade; heteridade; sinthoma.

abstract: This paper is part of an on-going critical research project on the psychoanalytical movement proposed by Lacan. The theme social bonds and love partnerships served as the occasion for some psychoanalysts in Europe, at the turn of this century, to expose their psychoanalytical conceptions in papers and on the media about Oedipus Complex, homosexuality, and their concern with the mental health of a child adopted by parents of the same biological sex. We will show how these declarations are impregnated with homophobic prejudice which points to a petty-bourgeois ‘psychologization’ of the aforementioned complex, a fatal detour of psychoanalysis pointed out by Lacan as of 1967.

keywords: Oedipus; homosexuality; homophobia; homoparentality; heterity; sinthome.

recebido: 15/08/2016

aprovado: 12/09/2016

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Ditadura e homossexualidades: Discurso e sintoma1 Raul Albino Pacheco Filho Nosso tema implica pensar a conexão entre o âmbito do sexual e o do social e político. E diferentes campos de saber têm sido convocados a trazer suas contribuições em um diálogo importante e instigante que traz a marca da diversidade2. A psicanálise viu-se às voltas com esses dois âmbitos desde a origem. O sexual está na sua mira desde o começo, trazendo surpresas e escandalizando a moral social e as normas estabelecidas, como no caso da sexualidade infantil na sociedade vitoriana. E o mesmo em relação à sociedade. Aí estão os textos sociais de Freud, para nos lembrar disso, com reflexões sobre as massas, as religiões, os exércitos, a moral sexual civilizada, o mal-estar na civilização, a guerra etc. No momento histórico brasileiro atual, em que escutamos vozes clamando novamente a volta da ditadura, como regime de governo capaz de impor a ordem – no que é proposto por estas mesmas vozes como caos econômico, político e social –, eu começo lembrando que a psicanálise, assim como o marxismo, é um campo de prática e de teoria que pressupõe o conflito e não a harmonia. Vamos esclarecer: não é que o psicanalista prefira que as coisas sejam desse modo: que ele seja um advogado do conflito. Ele simplesmente se recusa a esconder essa verdade, em nome de uma concepção falsificada de harmonia e de pacificação absoluta do que é humano e social. A psicanálise, pelo menos a de Freud e Lacan, não é como o positivismo, que acredita que a ordem vem do progresso. Decididamente, a psicanálise não é positivista! Vamos lembrar que o lema “Ordem e Progresso”, da bandeira brasileira, vem do positivista Benjamin Constant, ministro da guerra da Primeira República brasileira, e a seguir ministro da instrução pública (educação). A “Doutrina de Segurança Nacional”, elaborada na Escola Superior de Guerra das forças armadas brasileiras, que norteou as instituições da ditadura militar de 1964 a 1985, funda-se no positivismo das forças armadas. Mas também na doutrina de segurança nacional norte-ame1 Texto elaborado com base na apresentação na mesa “Ditadura e homossexualidades”, compartilhada com Renan Quinalha, Welson Barbato e Patrizia Corsetto (mediadora), promovida por Diálogos do Lacaneando, em 20 de agosto de 2016, na Livraria da Vila – Batel (auditório), Curitiba (PR). 2 Veja-se, p. ex., GREEN e QUINALHA (2014) “Ditadura e homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade”.

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PACHECO FILHO, Raul Albino

ricana, exportada após a Segunda Guerra Mundial para o Brasil e demais países latino-americanos durante a guerra fria, via militares brasileiros que passaram a frequentar sistematicamente cursos de preparação militar nos Estados Unidos.3 Aqui já vemos claramente uma importante conexão histórica entre o totalitarismo político das ditaduras latino-americanas e uma posição conservadora no plano moral. O presidente norte-americano do pós-Segunda Guerra Mundial (1945-1953), Harry Truman, ameaçou que, para conter o avanço comunista no mundo, os Estados Unidos interviriam militarmente nos países onde houvesse focos de perturbação contra os regimes simpatizantes.4 E John Foster Dulles, o inflexível secretário de defesa do governo seguinte – general Eisenhower (19531961) –, completou essa ameaça com a declaração de que a neutralidade política diante do avanço comunista era “um inequívoco traço de degradação moral”. 5 O vexatório episódio da visita de Eisenhower ao Brasil, quando o deputado da União Democrática Nacional (UDN) Otávio Mangabeira beijou suas mãos em um gesto de submissão só comparável aos da vassalagem feudal, é significativo.6 Mas que ilustra bem como a posição de submissão subjetiva (submissão do sujeito) é o gesto que se soma (e completa) a subordinação política, militar e econômica da oligarquia brasileira à nação norte-americana.

3 A Escola das Américas, do Departamento de Defesa dos EUA, que treinou várias gerações de militares latino- americanos (notadamente os das ditaduras militares do século XX), incluía técnicas de tortura em seu currículo. Veja-se: 1) CASSEN (2012) “Uma escola de torturadores nas Américas”; 2) TRUCCHI (2012) “Escola das Américas traduz política externa dos EUA, diz fundador do SOA Watch”; 3) “La Escuela de las Americas” (vídeo) (2013). 4 Ou seja, uma posição inversa à de Carl Von Clausewitz – autor comentado por Lacan – para quem “a guerra é a continuação da política por outros meios” (CLAUSEWITZ , 1832/1996, p. 29). 5 Veja-se SCHIESINGER JR. (1966) Os mil dias: JK Kennedy na Casa Branca. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966, p. 513. Também SCHILLING (s/d) “EUA, a doutrina da segurança nacional – Guerra fria”. 6 Veja-se SCHILLING (s/d) op. cit. Foto disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/especial/ fotos/img35.htm>[Acesso em 25/8/2016].

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Acho importante lembrar o nome escolhido para a convocação às manifestações públicas, usadas pelos articuladores da ditadura militar para criar uma base de apoio social ao golpe: “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”. O que mostra o uso do apelo a uma moral religiosa e conservadora com propósitos políticos totalitários. Encontramos uma das cenas emblemáticas dessa conexão entre moralismo conservador e totalitarismo no episódio da prisão de Caetano Veloso e Gilberto Gil, pela ditadura militar, em 1968: tirados da cela, foram levados ao pátio do quartel em que estavam presos e os seus cabelos longos (um símbolo de independência e liberdade dos jovens, nesses anos 60) foram raspados na frente de soldados e oficiais, em um ritual de humilhação que recorda as punições públicas da Inquisição. Fatos históricos como estes nos lembram que o moralismo conservador em todos os planos, aí incluído, obviamente, o sexual, anda junto com uma dominação política de aspecto totalitário. Digamos que o moralismo conservador e intolerante é o complemento ideológico do totalitarismo político, com vistas à dominação econômica. Ele visa à dominação do sujeito, como meio de assegurar o poder na sociedade. A consideração desses dois episódios considerados emblemáticos ilustra o duplo sentido do exercício da submissão do sujeito, que opera tanto sobre o eu quanto sobre o outro, segundo o modo de funcionamento pulsional ilustrado por Freud.7 7 A pulsão tanto pode ser defletida para um objeto exterior, quanto retroagir sobre o próprio eu. Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 33 p.201-214 novembro 2016

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Embora a posição autoritária e moralmente conservadora na política brasileira não se restrinja a uma época histórica nem seja prerrogativa de apenas um partido, a ação da UDN, de 1945 a 1965, pode ser apontada como exemplo paradigmático da conjunção ambígua e paradoxal entre moralismo conservador e liberalismo econômico na política brasileira.8 Em “A UDN e o udenismo: ambiguidades do liberalismo brasileiro (1945-1965)”, Maria Victoria de Benevides (1981) demonstra como o liberalismo udenista sempre esteve marcado por um profundo elitismo, cuja tese maior é a crença na presciência das elites e a convicção da incapacidade do povo para a decisão política: Em termos de prática política esse elitismo, assumido de maneira ostensiva, se revela em duas constantes da trajetória udenista: a identificação de reivindicações sociais e, especificamente, trabalhistas, com a desordem, “o caos”, e um solene desprezo pelo povo –“as massas”– refletido na permanente revolta com a derrota nas urnas, considerada “fruto da ignorância popular”. A soma desses dois elementos constituiria um sólido argumento para a defesa da intervenção militar e da repressão ao movimento operário (a “anarquia e a subversão”) por um lado, e do golpismo e da contestação dos resultados eleitorais, por outro (BENEVIDES, 1981, p. 194). Compreende-se o título e subtítulo de uma matéria sobre as manifestações de 15 de março de 2015, pedindo o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, eleita com mais de 54,5 milhões de votos: “O fantasma da UDN – Espalha-se o cheiro de um retorno ao passado, como se o objetivo final fosse entregar o Brasil a Tio Sam”.9 É claro que o conservadorismo moral não tem nada a ver com a psicanálise: é suficiente lembrar o comentário de Freud a Jung, no porto de Nova Iorque, por ocasião das conferências na Clark University: “Eles não sabem que lhes estamos trazendo a peste!” (LACAN, 1955/1998, p. 404). Mas a praga do conservadorismo também se infiltrou na psicanálise,10 e sabemos como. Nos Estados Unidos, desenvolveu-se uma psicanálise (psicanálise do ego) contraditoriamente associada ao positivismo, cujo ideal de cura era adaptar os analisantes aos padrões sociais e convencionais da sociedade capitalista norte-americana: o american way of life. 8 “Na raiz daquela visão moralizante da política, com a preocupação dos princípios e do ‘julgamento da história’, estaria, talvez, a influência positivista (Benjamin Constant, por exemplo, ‘tinha nojo da política’ e considerava que ‘os políticos não prestavam para nada, fossem liberais ou conservadores’)” (BENEVIDES, 1981, p. 213). 9 Publicado em 21/03/2015, em Carta capital. Disponível em <http://www.cartacapital.com.br/ revista/842/o-fantasma-da-udn-1308.html> [acessado em 22/08/2016]. 10 Sobre isto, veja-se BARBERO, Graciela Haydée (2005) Homossexualidade e perversão na Psicanálise: uma resposta aos Gay & Lesbian Studies. São Paulo, Casa do Psicólogo, 2005. Veja-se também DRESCHER, Jack (2013) A história da homossexualidade e a Psicanálise organizada.

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Conhecemos, porém, a crítica enérgica que essa versão distorcida da psicanálise recebeu de Lacan, em sua convocação ao “retorno a Freud”. A psicanálise não nega o conflito, à maneira dos avestruzes, que escondem a cabeça num buraco para se esconder do que acontece. Ela trabalha com o conflito, em vez de considerá-lo uma sujeira a ser escondida debaixo do tapete. Ela não acredita, e muito menos tem simpatia por essas imposições de ordem à força; como se os sujeitos pudessem ser programados como robôs ou tratados como escravos pelos que se arrogam a donos absolutos do saber e do poder; e que saberiam e poderiam ditar, a todos os demais, as normas e as ordens perfeitas: os ditadores. Tudo isso sempre fracassa. Fracassa no plano da clínica: e os pseudogurus terminam desmascarados. Nós, psicanalistas, constatamos isso no cotidiano da nossa clínica. E sempre fracassa também no plano social: e as populações derrubam e des/moralizam os ditadores. Basta olhar a história. Na clínica, o conflito aparece na forma de sintoma. E a psicanálise não é uma prática que se dirige pela pressa na eliminação do sintoma: ela acolhe o sintoma; acolhe o conflito. Ela o escuta e o faz trabalhar. É do conflito, e não da ordem, que advém o progresso! Se formos falar numa política da psicanálise, podemos dizer que ela é uma política do conflito: uma política do sintoma. E o que é o sintoma? Já dizia Freud: o sintoma é resultado de um conflito entre forças em luta. É uma formação de compromisso, um acordo; entre desejo e defesa; entre o recalcado e as forças recalcantes; um “preço” pago pelo sujeito para não saber de algo; uma tentativa de delimitar um gozo e ao mesmo tempo de gozar; aquilo que, “não cessando de se escrever, supre o que não cessa de não se escrever, isto é, a impossibilidade da relação sexual” (DIAS, 2006, p. 98); a “irrupção dessa anomalia em que consiste o gozo fálico, na medida em que aí se desenvolve plenamente essa falta fundamental que eu qualifico de ‘não relação’ sexual (non-rapport sexuel).” (LACAN, 1975 [1974], p. 13). Não foi à toa que Lacan disse que Marx inventou o sintoma. Para Lacan, o sintoma é “o que atrapalha a bela ordem do amo (do senhor)”,11 numa referência ao que ele chamou de “discurso do amo” (ou “discurso do mestre” ou “discurso do senhor”), em sua teoria dos discursos. Discursos concebidos como estruturas de ordenação (de aparelhamento, de dominação) do gozo, a partir da linguagem. Obviamente, falo do lugar de psicanalista. E quero lembrar o que particulariza esse lugar em relação aos outros saberes, qualquer que seja o assunto que, a partir dele, se possa abordar. Em primeiro lugar, a convicção da importância do inconsciente, é claro. Mas, além disso, o fato de que tudo o que nós, psicanalistas, possamos dizer, sempre tem como fonte de inspiração fundamental o que se recolhe da 11 “O sentido do sintoma é o real; o real enquanto ele se atravessa aí para impedir que as coisas andem (funcionem), no sentido de que elas deem conta delas mesmas de maneira satisfatória; satisfatória ao menos para o mestre” (LACAN, 1975 [1974]), p. 4.

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escuta dos sujeitos singulares na clínica.12 Mesmo quando nos arriscamos a nos estendermos por assuntos que vão ‘mais além’ de nossa atuação na clínica:13 como o tema de que me ocupo aqui. No discurso do amo, inspirado pela “dialética do senhor e do escravo”, de Hegel, o amo (senhor) é aquele que busca ordenar (enquadrar, aparelhar) todo o gozo humano. Mas que sempre topa com o impossível de conseguir realizá-lo por completo, pois se defronta com o sintoma. E a psicanálise surgiu para se colocar à escuta do dizer do sintoma; do seu real, em sua rebeldia e subversão a essa ordem do amo: a essa ordenação/dominação absoluta do gozo do sujeito. E o que ela escutou? Que gozo, sexo e discurso articulam-se intimamente, mas não se superpõem e nem se harmonizam completamente. E também que a pulsão sexual dos humanos não é um instinto. Ao descobrir isto, ainda antes da virada para o século XX, Freud pariu a psicanálise e articulou o enigma do sexual ao mito de Édipo. O que Freud mostrou é que a sexualidade humana é des/naturalizada por condições que devemos chamar de estruturais. Tudo que está nesse âmbito da sexualidade humana não pode ser colocado em uma categoria que se pudesse chamar de ‘natureza humana’. A sexualidade dos humanos não é biologicamente determinada. É claro que os seres humanos têm o que a biologia chama de órgãos sexuais: de cromossomos X e Y ligados à reprodução; têm testosterona e progesterona (biologicamente chamados de hormônios sexuais); têm fenótipos chamados de sexuais e assim por diante. Tudo isso existe: é inegável. Mas o que a psicanálise aprendeu, ao escutar os sujeitos em sua clínica, é que não é isso que dá a direção da vida sexual dos humanos: de como nós nos sentimos e nos concebemos, sexualmente; da condição masculina ou feminina com a qual queremos nos apresentar aos outros, no laço social; da identidade sexual que declaramos; da posição masculina ou feminina, que assumimos na cama, com nosso parceiro (ou parceiros) sexual(is); do modo como gozamos; das fantasias que alimentam nosso gozo sexual; da condição masculina ou feminina, ou ambígua, ou mutante, daqueles que escolhemos para nossos parceiros sexuais ou para aliança conjugal. Diante dessa diversidade, falar de heterossexualidade ou homossexualidade, ou mesmo de bissexualidade humana, no singular, é desconhecer completamente o que se passa. Trata-se de homossexualidades: assim mesmo, no plural! Do mesmo modo que heterossexualidades e bissexualidades, sempre no plural. No Seminário 11, Lacan afirmou que a pulsão sexual humana é uma “montagem” singular. E para dar uma ideia dela a partir dos quatro elementos freudianos que caracterizam a pulsão (seu impulso, fonte, objeto e alvo), usou a imagem ale12 O contexto da psicanálise em intensão. 13 O contexto da psicanálise em extensão.

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górica de uma montagem (de uma colagem) do tipo das que encontramos na arte dos surrealistas: por exemplo, “um dínamo acoplado na tomada de gás, de onde sai uma pena de pavão, que vem fazer cócegas no ventre de uma bela mulher” (LACAN, 1964/1988, p. 161). Por que não? Na intimidade de cada quarto, cada um tem seu jeito próprio e singular de gozar. Seja ele mais ou menos extravagante, se não for reprimido e inibido, é sempre criativo. Pretender governar (dominar) isso, impondo uma modalidade padronizada e única de gozo, é optar por uma empreitada fadada ao fracasso. E pretender fornecer o fundamento científico dessa modalidade padronizada de gozo sexual é participar de uma mistificação: é colaborar com uma ideologia pseudocientífica voltada à tentativa de domesticação da vida pulsional. Mas se a psicanálise vê com bons olhos a desconstrução da concepção biologizante do sexual e a colocação em evidência do que existe de social e histórico nos valores, recomendações e proibições que dizem respeito às práticas sexuais, ela não endossa o ponto de vista de algumas das “teorias de gênero”, que limitam o sexual a uma construção social. O masculino e o feminino não são apenas representações sociais de gênero. Eles são isso, mas são também posições de gozo, sem que uma coisa esteja necessariamente ligada à outra. Digamos assim: o sexual é influenciado pelos valores, saberes e pelos discursos hegemônicos em cada cultura e época histórica (discursos, entendidos aqui nos dois sentidos: como enunciados sobre o sexual e como estruturas de ordenação de gozo no laço social). “O inconsciente não é todo individual. Embora não haja enunciação coletiva, ele está prenhe do discurso que rege uma comunidade” (SOLER, 2013, p. 125). Mas, além disso, há também um real do sexo, rebelde a todos os discursos e saberes. Sexo é uma escolha, mas não no sentido usual de opção consciente ou decisão por meio da vontade ou da racionalidade do pensamento consciente. O sexual é da ordem de uma ética que considera o desejo, o real do gozo e o inconsciente. Sobre essa ética, vamos dizer que se trata de decidir se queremos o que inconscientemente desejamos. O único sentido cabível e não absurdo de se falar que a sexualidade humana é heterossexual é o de que, para haver prática sexual, é preciso haver sujeitos em “posições sexuadas” distintas, nos termos do que Lacan chamou “fórmulas quânticas da sexuação”. Ou seja, que para haver prática sexual se requer um sujeito que tenha seu gozo inteiramente regido pela função fálica e um outro sujeito que esteja “não todo” regido por essa função (que algo escape à ordenação do gozo pelo falo) (QUINET, 2013, p. 99). Mas isso não tem nada a ver com a condição biológica masculina ou feminina dessas pessoas; nem com a identidade sexual que elas apreciem ter ou declarem socialmente; nem com a identidade sexual das pessoas que elas busquem como parceiros sexuais; nem com a maneira delas se

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vestirem, ou com o sexo com que se identifiquem, ou pelo qual sejam apontadas pelos outros; nem com o sexo civil, que consta nas suas carteiras de identidade. A sexualidade humana está inexoravelmente ligada ao desejo humano e, por isso mesmo, recebe dele sua marca essencial. E aqui cabe lembrar o que Hegel e Kojève falaram sobre o desejo14. O Eu do desejo é um vazio que só recebe um conteúdo positivo pela ação dirigida ao objeto. E, para atingir o estatuto que lhe deve caber, o desejo deve mirar algo que ultrapasse o natural (a natureza, a realidade dada). Portanto, é só o desejo que mira um outro desejo – o desejo de um desejo humano –, que pode criar um Eu não natural: um ser que possa ser chamado de “ser humano”. Esse Eu será sua própria obra e será, no futuro, aquilo em que vier a se tornar: aquilo que ele vier a ser por sua ação, no presente, de transformar aquilo que ele foi, no passado. Esse ser humano será, portanto, necessariamente, um “devir”. Como pensa Lacan, esse diálogo com Hegel e Kojève é relevante enquanto fonte de inspiração. E não como marco essencial de referência para a psicanálise, que não é uma filosofia, pois nunca desprende suas formulações teóricas do confronto incessante com a prática cotidiana de escuta de cada sujeito singular (de seu inconsciente), na clínica. A sexualidade humana talvez possa ser mais bem caracterizada como um devir. A sexualidade de cada um é uma tarefa de vida. Tarefa a ser empreendida a partir de uma escolha... a ser cuidadosamente trabalhada...e a fazer evoluir no decorrer de uma vida: a única vida, com começo, meio e fim, que cada um de nós tem para viver. E pobre daquele que a desperdiçar! O Édipo que o progresso da psicanálise veio a demonstrar não é o Édipo da família pequeno-burguesa, transitoriamente instalado em uma fase histórica do capitalismo: família, essa, em veloz mutação nos dias de hoje. Esse Édipo do papai, da mamãe e da criança, em harmonia familiar manifesta, mas apoiado sobre um cadinho turbulento de agressividade e desejo latentes, é passageiro: é produto das ordenações de gozo hegemônicas em uma época histórica determinada. Mas existe um Édipo estrutural que atravessa a história (um Édipo transistórico), que, para ser esclarecido, requereu o esforço da psicanálise, da antropologia (Lévi-Strauss, em particular) e da linguística estrutural (notadamente, Saussure e Jakobson). Falo do Édipo de quatro termos e não triangular (que inclui o falo), que tem em sua origem a entrada do ser humano na linguagem, e que regula a articulação das relações de aliança e parentesco. Esse Édipo busca ordenar o social por meio das prescrições do sexual, impondo normas universalizantes, como tentativas de padronização e homogeneização da sociedade e da sexualidade humanas. Mas ele esbarra com o impossível de enquadrar a totalidade de gozo de qualquer 14 Ver KOJÈVE, Alexandre (1947 [1933-1939]/2002). À guisa de introdução. In: Introdução à leitura de Hegel. Rio de Janeiro, Contraponto / EDUERJ, 2002.

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ser humano em uma norma universal absoluta, que é o que produz o sintoma e o “mal-estar na civilização”. Problema esse, para o qual todo ser humano tem que encontrar sua solução única e diferenciada: um tratamento singular. O psicanalista é aquele que se oferece para acompanhar, nessa trajetória, o ser humano cuja energia de vida e independência sejam fortes o suficiente para que ele não consiga abafar o ruído desse “mal-estar” com os analgésicos usuais que as sociedades sempre têm para prescrever: incluo aqui as drogas lícitas e ilícitas, mas não apenas elas. E se, além disso, esse ser humano conseguir reunir a coragem requerida para buscar sair da miséria de sua neurose, perversão ou psicose. Como o psicanalista opera nessa tarefa? Escutando e acolhendo o singular do sintoma que se rebela e recusa as soluções universais. É por isso que a heterossexualidade, mas também a homossexualidade, quando tomadas como categorias universalizantes que visam homogeneizar e padronizar as sexualidades dos sujeitos (sempre singulares), são imposições sociais destinadas ao fracasso. As heterossexualidades, homossexualidades ou bissexualidades são tão plurais e numerosas quantos são os sujeitos. Em todas as sociedades existem aqueles que se dedicam a ocupar o lugar, no laço social, de duas das atribuições que Freud designou como “impossíveis”: governar e ensinar. A nossa sociedade, por obra de Freud, agregou a eles os que se dedicam a um terceiro impossível: o analisar. Trata-se de impossíveis, mas não porque não se governe, não se ensine e não se analise: mas sim porque esses empreendimentos não são realizáveis de um modo absoluto e ilimitado. Contudo, existem os que têm essa pretensão vã e que, exatamente por isso, são fonte de sofrimento para os que, com eles, compartilham a vida na mesma sociedade. São os governantes arrogantes e totalitários; são os mestres, os religiosos e os cientistas presunçosos; são os psicoterapeutas gurus. São aqueles que acreditam tudo poder enquadrar, de modo completo e absoluto, nos saberes e poderes em que se fundamentam, que constroem ou ministram. Antes de encerrar minha fala quero ainda lembrar que o problema da intolerância em relação à sexualidade, em relação aos valores e aos modos de vida, não se limita aos regimes totalitários: às ditaduras. Há uma conexão importante, sim, entre essas duas coisas, e não pretendo de modo algum minimizar isto. Mas sublinho que a intolerância não se limita a isto. Max Weber mostrou que a ética protestante alimentou e foi alimentada pelo capitalismo.15 E previu que a progressão do capitalismo o libertaria da sua base religiosa, tornando-o autônomo e capaz de ditar sua própria ética, baseada no atrelamento do desejo ao consumo de mercadorias. Disse que o capitalismo “impõe 15 (1904-1905/1974). A ética protestante e o espírito do capitalismo. In: Weber. São Paulo, Abril Cultural, 1974 (Col. “Os Pensadores”, v. XXXVII), p. 181-237.

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de forma coercitiva suas leis e sua dinâmica a todos os indivíduos das sociedades industriais”.16 E “a onipotência dos mercados aprisiona os povos na jaula de aço do cálculo egoísta”.17 Embora a hegemonia do capitalismo tenha substituído a hegemonia do discurso do amo pela do discurso capitalista,18 não houve uma dessacralização do mundo. Ressurgiu um fundamentalismo religioso fanático e radical, tanto no interior quanto no exterior dos centros capitalistas economicamente mais ricos, com as tragédias que conhecemos. Além disso, assistimos ao florescimento desse fenômeno das igrejas-empresas, com indivíduos politicamente espertos aproveitando-se dessa circunstância para enriquecer pessoalmente. Segundo a revista Forbes, quatro fundadores dessas novas igrejas no Brasil têm patrimônio pessoal superior a 65 milhões de dólares.19 E muitos políticos e líderes religiosos (nem sempre escrupulosos) vinculados a igrejas e seitas, novas ou tradicionais, têm fomentado um fanatismo preconceituoso e intolerante em relação à diversidade sexual. É uma forma de seduzir seus prosélitos mais conservadores. O deputado Eduardo Cunha, ligado a uma igreja evangélica, atualmente réu perante o STF em processo por corrupção e lavagem de dinheiro, é um dos piores exemplos. É autor de projeto de lei que institui o Dia do Orgulho Hétero, em um evidente protesto contra o Dia Internacional do Orgulho Gay. E costumeiramente posta mensagens segregacionistas e preconceituosas em seu Twitter, como: “Chega desse espetáculo deprimente, que envergonha a todos nós. Não à república gay”.20 “Bando de sodomitas, parece que são alunos da sodoministra das mulheres, aquela abortista. Tudo isso é um plano do inimigo e vamos lutar”.21 Construir nossa sexualidade é tarefa cuidadosa para toda uma vida: a única que temos. Mais uma vez, na história, existe por aí gente atrapalhando a vida dos outros e provocando sofrimento, em nome da ordem e de Deus... tentando impor aos demais seu padrão rígido e moralista de viver, de sexualidade, ou de repressão à sexualidade...e querendo impedir, até com violência, que os outros busquem a forma de encontro sexual em que melhor se realizem.22 Devido a isto, concluo esta apresentação com uma bênção. Bênção é uma palavra que, etimologicamente, se 16 Veja-se entrevista especial com Michael Löwy “O marxismo weberiano: uma das múltiplas expressões no campo intelectual brasileiro”, publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos. 17 Ver orelha do livro de LÖWY, Michael (2014).A jaula de aço: Max Weber e o marxismo weberiano. São Paulo, Boitempo, 2014. 18 Além de ter alterado profundamente as relações entre religião e Estado. 19 Veja-se a matéria “Forbes lista os pastores mais ricos do Brasil”, em Época Negócios, 18/01/2013. 20 CUNHA (2011) Disponível em <https://twitter.com/depeduardocunha/ staus/70700601712967680>. [Acesso em 25/08/2016]. 21 CUNHA (2012) E-mail: deputadoeduardocunha@depeduardocunha, em 29 de maio de 2012. 22 Sobre isto, veja-se SCHIRMER, Anderson (2015). Homofobia, véu do real. Tese (Doutorado em Psicologia Social) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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origina do latim benedictio: bene (bem) e dictio, dicere (dizer). Bem dizer: algo muito caro à psicanálise, que é uma prática do dizer: do bem dizer. E a bênção que eu escolhi para concluir é uma estrofe do “Samba da bênção”, de Vinicius de Moraes e Baden Powell: Essa gente que anda por aí, brincando com a vida. Cuidado, companheiro! A vida é pra valer. E não se engane não, tem uma só. Duas mesmo, que é bom, ninguém vai me dizer que tem, sem provar muito bem provado. Com certidão passada, em cartório do céu, e assinado embaixo: Deus. E com firma reconhecida! A vida, não é brincadeira, amigo. A vida é arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida!

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Ditadura e homossexualidades: Discurso e sintoma

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resumo: O tema “Ditadura e homossexualidades” convoca a um diálogo entre diferentes campos do saber. E a psicanálise tem sua contribuição a oferecer, já que, nela, desde a sua origem, o sexual, o social e o político mostram-se articulados. Observe-se que totalitarismo político e moralismo conservador caminham juntos. O modus operandi das ditaduras é a dominação dos gozos por meio da padronização de valores e condutas, tentando suprimir as singularidades dos sujeitos. Em contraste com isto, a psicanálise é uma práxis que sustenta a relevância dessa singularidade, da escuta dos conflitos e dos sintomas. O sintoma é o que vem do real, em subversão ao discurso do amo. A sexualidade é da ordem de uma ética que considera o desejo, o inconsciente e o real do gozo, implicando uma tarefa de construção permanente, na vida (um devir), a partir de uma “escolha”, no sentido freudiano do termo. Decorre daí a inconciliabilidade da concepção psicanalítica da sexualidade tanto com a propugnada pelos regimes políticos totalitários, quanto com a defendida pelo moralismo religioso conservador e reacionário das igrejas-empresas contemporâneas, articuladas ao discurso capitalista.

palavras-chave: Psicanálise; homossexualidade; ditadura; sexualidade; discurso; sintoma.

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PACHECO FILHO, Raul Albino

abstract: “Dictatorship and homossexualities” is an issue that fosters a dialogue among different fields of knowledge. And psychoanalysis is has its contribution to offer, once since its origins the sexual, the social, and the political have been articulated in it. It is important to notice that political totalitarianism and conservative moralism have always walked hand in hand. The modus operandi of dictatorships is the control of jouissances through the standardization of values and behaviors, attempting to suffocate an individual’s singularities. In contrast to this, psychoanalysis is a praxis that sustains the relevance of this singularity, of the attention to conflicts and symptoms. Symptom is what comes from the real, subverting the master’s discourse. Sexuality is related to an ethics that considers the desire, the unconscious, and the real of jouissance, implying a task of permanent construction, in life (a wish to become), departing from a “choice”, within the Freudian meaning of the term. From that comes their reconcilability of the psychoanalytical conception of sexuality, both with the one sustained by the totalitarian political regimes and the conservative religious and reactionary moralism of the contemporary churches-enterprises, articulated with the capitalist discourse

keywords: Psychoanalysis; homosexuality; dictatorship; sexuality; discourse; symptom.

recebido: 25/08/2016

aprovado: 12/09/2016

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psiquiatria na atualidade



Sujeito do inconsciente e sujeito de direito: Ponto de conjunção ou de disjunção na interlocução da psicanálise com a saúde mental?

Paulo Alberto Teixeira Bueno

[...] o doente, antes excluído do mundo dos direitos e da cidadania, deve tornar-se um sujeito, e não um objeto do saber psiquiátrico. A desinstitucionalização [...] é um processo ético, de reconhecimento de uma prática que introduz novos sujeitos de direitos e novos direitos para os sujeitos (AMARANTE, 1995, p. 494). Saúde Mental e psicanálise, sujeito de direitos e sujeito do inconsciente: termos que se opõem, se sobrepõem ou que se complementam? Podem coexistir em um mesmo equipamento de Atenção Psicossocial práticas orientadas por estes conceitos? Tentarei elaborar algumas reflexões com base nestas perguntas, colocando no centro o conceito de sujeito de direitos. Como ponto de partida será utilizado o texto Saúde mental e ordem pública (MILLER, 2001), originado de uma conferência proferida em 1988 na Espanha. Faremos a explanação de duas equivalências estabelecidas pelo autor: a primeira, entre saúde mental e ordem pública, em que afirma que o conjunto de dispositivos institucionais de tratamento é marcado pela função de manutenção da ordem pública e que seus usuários são aqueles que perturbaram a ordem; na mesma linha, o autor estabelece outra equivalência, a de que o sujeito do inconsciente é o sujeito de direitos. Este texto é de grande importância, pois auxilia a situar a função social dos dispositivos de Saúde Mental e traz legibilidade à demanda direcionada aos profissionais deste campo. Porém, não contribui para uma necessária delimitação entre o campo psicanalítico e o da Saúde Mental. Assim, recorreremos a alguns autores da área jurídica para defender que não há grandes vantagens teórico-operacionais para o campo da Atenção Psicossocial na equivalência entre sujeito do inconsciente e sujeito de direitos. O autor afirma categoricamente que a “saúde mental é uma parte, uma subcategoria, do conjunto da ordem pública” (Ibid., p. 56) e que a perda de saúde é perturbação da ordem. Aos profissionais de Saúde Mental cabe a decisão de quem

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BUENO, Paulo Alberto Teixeira

poderá circular pelas ruas – será eleito aquele que não trouxer grandes perturbações e tampouco apresentar um potencial grau de periculosidade. Essa é a principal demanda social aos equipamentos de Atenção Psicossocial: decidir quem está apto ao convívio coletivo. Isto aproxima os profissionais de Saúde Mental dos operadores da justiça e dos policiais. O que os diferencia é o fato de que a via de ação do profissional de Saúde Mental é o tratamento, enquanto a dos juristas e dos policiais é a punição. Estes, com base no ordenamento jurídico vigente, têm como alvo as ações e omissões daquele que responde pelo que faz. Já o sujeito ao qual se dirige o profissional da atenção psicossocial é aquele que não é responsabilizado por seus atos, com base no princípio de inimputabilidade, cuja definição podemos verificar no artigo 26 do Código Penal Brasileiro (2012): É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardo, era, no momento da ação ou omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou determinar-se de acordo com esse entendimento (Ibid., pp. 240-241). Miller (2001, pp. 55-56) irá alicerçar sua definição de sujeito de direitos na noção de responsabilidade. Logo, aquele que não responde pelos próprios atos não é um sujeito de pleno direito. Nesta perspectiva o autor afirma que a psicanálise se dirige ao sujeito de direitos, que seria o que responde pelo que faz e pelo que diz. Na mesma esteira afirma que o sujeito de direitos é o mesmo que o sujeito da enunciação e da castração e que a entrada em análise implica um sentimento de culpa que traz em seu bojo o questionamento sobre si. O sujeito de direitos, assim como o sujeito psicanalítico é aquele que demanda, que tem queixas e as leva para o setting analítico, é aquele que pode reivindicar, ou, em outros termos, aquele que tem “direito a”. Ao mesmo tempo, o sujeito de direitos é o sujeito do dever, na medida em que é orientado pelo imperativo “tu deves cobrar” do Outro. Constituem material de grande valia as reflexões deste texto, mas é importante que nos detenhamos na equivalência entre o sujeito psicanalítico e o sujeito de direitos. Alguns autores têm se amparado nessa equivalência para pensar a interface com o campo da Atenção Psicossocial. Todavia, é preciso notar que Miller parte de uma definição precisa, porém recortada da noção de sujeito de direitos, ao tomá-la pelo viés único da responsabilidade. E mais: conclui seu escrito traçando uma oposição entre atuação psicanalítica e as intervenções em Saúde Mental. Partiremos da hipótese de que se objetivamos estabelecer um diálogo entre os dois campos que possibilitem novos modos de intervenção em Saúde Mental, bem como a possibilidade de circulação do discurso analítico em seus equipamentos, devemos ampliar a definição de sujeito de direitos milleriana e questionar a partir desta ampliação se ainda há um ganho conceitual na equivalência com o sujeito do inconsciente.

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Sujeito do inconsciente e sujeito de direito

Partiremos do filósofo do direito Costa Douzinas, que realiza uma leitura da contemporaneidade a partir das teses de que vivemos em uma cultura dos direitos humanos e de que a ideologia dominante na atualidade é a ideologia dos direitos. O autor, que sofre influências da psicanálise lacaniana, realiza uma leitura crítica do conceito de sujeito de direitos a partir da construção dessa noção na filosofia e no direito e analisa o impacto social de sua predominância. Expõe que: Para Kelsen, o sujeito jurídico, em vez de ser o centro da lei, é um construto jurídico secundário, um espaço lógico ou point de capiton, que ajuda a aproximar e a combinar uma série de normas e regras de comportamento. O sujeito é o portador de direitos e deveres, uma personificação de normas. Conforme observa Kelsen, a “pessoa jurídica não é um ser humano, mas uma combinação personalizada de regras jurídicas” (DOUZINAS, 2009, p. 241). Nota-se, assim, que o sujeito de Hans Kelsen, sendo um construto jurídico, é um operador teórico aplicável ao campo judicial; o sujeito do inconsciente é teórico tão somente na medida em que é a formalização de um fenômeno analítico. Para a emergência do sujeito psicanalítico basta que se ligue um significante ao outro, ou um ato falho, sonho, lapso etc. Para que o sujeito jurídico entre em cena é preciso um arranjo jurídico-institucional que dê suporte ao seu aparecimento. Douzinas afirma que o sujeito de direitos “posiciona-se no centro do universo e pede à lei para garantir suas prerrogativas sem maiores preocupações quanto às considerações éticas e sem empatia pelo outro” (Ibid., p. 246). É um sujeito cujo imperativo ético é o “reivindica!”, e para tanto o cálculo em jogo é o da maximização dos direitos, buscando, sim, um benefício coletivo, porém é o benefício coletivo de um grupo de pertença do qual se é integrante, seguindo a lógica das identidades culturais. A forma que este discurso, que é o discurso dos direitos, assume na atualidade é a de uma estrutura discursiva que é regida por uma gramática cujos termos se resumem à polaridade de ter ou não ter direitos. Significantes como solidariedade, consciência de classe, coletivismo, responsabilidade e ética são termos contingentes e não necessários em tal discurso. O que está em questão é a localização do sujeito de direitos do ato judicial e a posição ética por ele assumida. Constata-se que este sujeito é, antes, o depositário da norma jurídica do que aquele que se posiciona e se responsabiliza. Este sujeito sem considerações éticas se contrapõe ao sujeito de direitos definido por Miller como responsável. A formulação do direito positivo é a do sujeito jurídico como um mero suporte que será contemplado por um direito ou cobrado por um dever; não possui um caráter pré-definido. A definição do sujeito de di-

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reitos como aquele que responde pelos seus atos é incompleta; atesta-se este fato a partir de uma breve análise do uso do termo no campo jurídico. O conjunto das categorias de seres que se enquadram na definição amplia-se largamente: aquilo que em 1789 surgiu como direito dos homens se ampliou metonimicamente para mulheres, crianças e escravos; atualmente no Ocidente engloba todos aqueles que são nascidos em uma nação, e luta-se para que casos especiais passem a ser enquadrados enquanto sujeitos de direito. O exemplo emblemático é o da tradição da tribo ianomâmi, que tem a prática de matar os bebês recém-nascidos que podem representar alguma maldição à tribo. Existe projeto de lei (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2007) em tramitação que visa criminalizar esta prática e tomá-la como infanticídio, ou seja, defende-se a primazia do direito à vida e busca-se tomar como sujeito deste direito os bebês ianomâmis. Não será necessário que se entre no mérito da discussão sobre o que deve ser priorizado: a soberania cultural da tribo ou o direito à vida dos recém-nascidos, o foco é acentuar a tendência atual de resolver questões complexas transformando a todos em sujeitos de direitos. Outro caso exemplar é o do projeto de lei norte-americano de incluir o feto como sujeito de direitos, não mais como parte do corpo da mãe, podendo esta responder criminalmente por negligenciar o feto em gestação. O exemplo que melhor ilustra nossos argumentos – para que refutemos de vez a ideia de um sujeito de direitos vinculado exclusivamente à responsabilidade – é o dos animais como sujeitos de direitos. O caso dos direitos dos animais impõe algumas reflexões, pois revela de modo contundente o caráter de depositário do sujeito jurídico; este caso configura uma ampliação do conceito de Kelsen que afirma que o sujeito tem direitos e deveres e, embora os animais não possuam deveres no sentido jurídico do termo, são entendidos por muitos juristas como seres que devem ser contemplados em seus direitos essenciais. Essa curiosa plasticidade do conceito opera porque o sujeito jurídico é concebido como uma derivação da norma jurídica (KELSEN, 1960/1968, pp. 188-189); ele é, em essência, uma criação da lei, a lei cria o sujeito de direitos. Tal definição implica uma noção abstrata de igualdade que é a base para se pensar que tais sujeitos são iguais perante a lei. Essa igualdade é uma ficção, e o sujeito do inconsciente emerge para denunciar essa ficção e inscrever a singularidade. Uma breve vinheta de um caso ocorrido em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) infanto-juvenil da Grande São Paulo servirá para ilustrar tais afirmações. Madalena (nome fictício), mãe de uma paciente de oito anos, dizia sempre que todos os seus problemas eram causados pelo comportamento da filha. Viviam em uma situação paupérrima em que a base de sustento da casa era o bolsa família. Raissa (nome fictício) começou a envolver-se em brigas na escola – agredia e era agredida pelos garotos de sua sala. Além disso, com seus gritos, cantorias e agressões ao irmão perturbou a ordem e tranquilidade do quintal da casa em que morava, o que pro-

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vocou reclamações dos vizinhos e consequente despejo por parte do proprietário. Por fim, após uma atuação histérica em que a garota se despiu durante o atendimento psicoterapêutico que fazia na Unidade Básica de Saúde (UBS), foi encaminhada para o CAPS por sua psicóloga, que entendeu que naquele momento a UBS não daria conta das demandas que eram apresentadas por essa família. Madalena alegava que não tinha dinheiro, porque não podia trabalhar para cuidar dos seus dois filhos, disse que não encontrara vaga na creche próxima à sua casa para o mais novo, de dois anos. As reivindicações eram claras e as respostas para a resolução da situação não menos evidentes. O assistente social do CAPS conseguiu vaga em creche para o garoto e ajudou a mãe a arrumar um emprego, inscrevendo-a no Programa Frente de Trabalho. À garota foi oferecido um espaço de escuta e em pouco tempo cessaram os sintomas iniciais e passou a construir laços sociais mais positivos na escola. Em poucas semanas Madalena foi demitida, após recorrentes faltas no trabalho, e deixou de levar o filho à creche, perdendo a vaga. Trabalhou-se no sentido de garantia de direitos, mas não houve a escuta do que se enunciava para além da reivindicação. O sujeito do inconsciente, em ato, mostrou sua impossibilidade de ocupar o lugar abstrato que a norma jurídica reservou ao sujeito de direitos. Por outro lado, se a garota teve alguma possibilidade de beneficiar-se dos efeitos da intervenção analítica foi em decorrência de ser um sujeito de direitos. A mãe só procurou ajuda psicológica para Raissa pelo fato de temer que a garota parasse de frequentar a escola, condição para o repasse do benefício do bolsa família. Portanto, o que se constata a cada momento é que estamos em um delicado emaranhado que só nos apresenta paradoxos. Este é apenas um exemplo para pensarmos sobre o intrincado campo em que um dado discurso, o dos direitos, se erige como hegemônico na estrutura social. Tal discurso se destaca por sua particular capacidade de descrever situações políticas complexas e conflitivas em termos normativos relativamente simples. É um discurso que assume que a sociedade caminha para uma homogeneidade cultural e moral e que traz implícita a crença de que o mal-estar se dissolverá paulatinamente. Esse discurso se entrelaça com uma certa política de identidade cultural. Tal política de identidade tem como base as categorias de diferença e de igualdade, e esta é a linguagem de expressão de reivindicações: “almejo tal direito, pois é preciso tratar diferentemente meu grupo identitário para que assim possamos atingir a igualdade”. A política de identidade, portanto, não tem em seu centro a noção de singularidade, mas sim a dupla igualdade/diferença, que nos remete ao narcisismo das pequenas diferenças. O uso do discurso dos direitos para descrever normativamente um conflito social ou um conjunto de reinvindicações é uma forma limitada de narrativa. Tal discurso propõe que um certo número de reinvindicações possa ser traduzido em uma única linguagem comum. Essas reinvindicações são oriundas de um con-

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flito social absolutamente complexo que envolve disputa de classes, interesses de cunho econômico, étnico e cultural; tais reinvindicações são produções discursivas de sujeitos e coletivos que possuem histórias singulares. Precisamente por esse motivo se faz necessária a demarcação do lugar em que opera a psicanálise no campo da Saúde Mental, para que se evite o amálgama do discurso psicanalítico ao discurso dos direitos. A escuta das reinvindicações deve estar para além do discurso dos direitos que em sua gramática simplificadora tem apenas duas direções: a de conceder direitos ou a de negá-los. Lacan, ao analisar a transformação – iniciada nos fins da década de 1940 com o surgimento da Organização Mundial da Saúde (OMS) – da saúde em direito, indica que a resposta à demanda no campo da saúde, ainda que seja uma demanda por direitos, não pode ser negligenciada: O desenvolvimento científico inaugura e põe cada vez mais em primeiro plano este novo direito do homem à saúde, que existe e se motiva já em uma organização mundial. À medida que o registro da relação médica com a saúde se modifica, em que esta espécie de poder generalizado que é o poder da ciência, dá a todos a possibilidade de virem pedir ao médico seu ticket de benefício com um objetivo preciso imediato, vemos desenhar-se a originalidade de uma dimensão que denomino demanda. É no registro do modo de resposta à demanda do doente que está a chance de sobrevivência da posição propriamente médica (LACAN, 1966a/2001, p. 10). Neste ponto, em que o discurso jurídico se enlaça com a saúde, a demanda apresenta-se amalgamada à reivindicação. Responder ao enunciado da reinvindicação por direitos sem aproximar-se da questão concernente ao desejo é arriscar-se a incorrer no erro apontado por Lacan de perder a posição transferencial, a qual o paciente supõe um saber e direciona seu apelo. A separação entre reivindicação e demanda deve ser uma tática norteadora para a Atenção Psicossocial nas discussões de caso. Viganò (2012) propõe que se diferencie o caso social do caso clínico, e que este sirva como base para se pensar as ações e intervenções em Saúde Mental. Na mesma linha, nos parece essencial a apuração da escuta da demanda que traz o paciente e da resposta que será dada a tal demanda. Responder a demanda é, antes de tudo, posicionar-se diante dela, compreender que nem sempre o que é pedido é a cura, o paciente “vem às vezes nos pedir para autenticá-lo como doente. Em muitos outros casos ele vem pedir, do modo mais manifesto, que vocês o preservem em sua doença” (LACAN, 1966a/2001, p. 10). Posicionar-se de modo que se considere que há uma falha estrutural entre demanda e desejo e que, portanto, este não se reduzirá àquela, como aponta Lacan:

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[...] longe de ceder a uma redução logicizante, ali onde se trata do desejo, encontramos em sua irredutibilidade à demanda a própria mola do que também o impede de ser reduzido à necessidade. Para dizê-lo elipticamente: que o desejo seja articulado é exatamente por isso que ele não seja articulável (LACAN, 1966b/1999, p. 819). A leitura e escuta das situações que são apresentadas cotidianamente nos equipamentos de Atenção Psicossocial exigem referenciais de alta complexidade para que se possa oferecer um tratamento efetivo tanto às questões de sofrimento subjetivo como àquelas de iniquidade e exclusão sociais. O sujeito da Saúde Mental, atendido por uma equipe multidisciplinar, deve ser visto sob diferentes óticas. Não devemos substituir o discurso médico pelo discurso dos direitos, mas sim pela multiplicidade discursiva. Neste contexto de multiplicidade visualiza-se uma porta de entrada para o psicanalista que tem como princípio ético fundamental guardar o lugar de emergência da singularidade, do sujeito do inconsciente e da verdade do desejo. Em suma, a contribuição do psicanalista é abrir espaço dentre tantos discursos para a narrativa do próprio sujeito, contada em primeira pessoa, e que essa narrativa contada seja levada em conta nas decisões multiprofissionais.

referências bibliográficas AMARANTE, Paulo. Novos Sujeitos, novos direitos: o debate em torno da reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Cad. Saúde Pública, jul/set 1995. BRASIL. Código Penal, Processo Penal e Constituição Federal. São Paulo: Saraiva, 8ª ed., 2012. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Projeto de Lei no 1.057, 2007. DOUZINAS, Costas. O fim dos direitos humanos. São Leopoldo: Unisinos, 2009. KELSEN, Hans. (1960). Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 6ª ed., 1998. LACAN, J. (1966a). “O lugar da psicanálise na medicina” In: Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. São Paulo: no 32, pp. 8-14, dez, 2001. _________. (1966b). “A subversão do sujeito e a dialética do desejo” In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. MILLER, J.-A. “Saúde mental e ordem pública” In: GLAZE, A.; BRISSET F.O.B.; MONTEIRO, M.E.D. A saúde para todos não sem a loucura de cada um: perspectivas da psicanálise. Rio de Janeiro: Wak Ed., 2011. VIGANÒ, C. “A construção do caso clínico” In: ALKMIN, W. D. (org.). Carlo Viganò: Novas Conferências. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2012.

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BUENO, Paulo Alberto Teixeira

resumo: A inclusão do discurso psicanalítico nas instituições públicas de atenção psicossocial se faz cada vez mais presente e, como consequência, tem gerado um debate no campo sobre seus limites e alcances. Um importante ponto deste debate está na noção de sujeito. A Reforma Psiquiátrica brasileira elegeu como meta central a restituição de direitos historicamente destituídos dos usuários dos equipamentos substitutivos ao manicômio. Neste contexto o sujeito em sofrimento é, muitas vezes, tomado prioritariamente como sujeito de direitos no planejamento das ações em equipes multiprofissionais. Há autores que propõem que entre sujeito do inconsciente e sujeito de direitos há uma equivalência. Problematizaremos tal proposta – a partir de uma imersão na filosofia do direito, de onde se origina o termo – para indicar a imprecisão de tal equivalência, demonstrando, em seguida, que a noção de sujeito de direitos tem limitada contribuição enquanto operador clínico. Serão exploradas as críticas que Lacan teceu à transformação da saúde em um direito, prevenindo aqueles que operam no campo assistencial dos riscos que comportam ceder de sua posição. Por fim, propor-se-á que o psicanalista sustente nas equipes de atenção psicossocial não o amálgama ao arcabouço conceitual hegemônico, mas sim a multiplicidade discursiva, de modo que possa garantir entre as brechas institucionais o espaço do sujeito desejante.

palavras-chave: Sujeito de direito; psicanálise; atenção psicossocial; saúde mental.

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Sujeito do inconsciente e sujeito de direito

abstract: The inclusion of the psychoanalytic discourse in public institutions of psychosocial care has become increasingly present and, as a result, this has produced a debate in the field about its limits and reaches. An important point in this debate is the notion of subject. The Brazilian Psychiatric Reform has elected as a central goal the restitution of historically deprived rights of users of substitutive equipment to the asylum. In such a context, the suffering subject is very often taken primarily as a subject of rights in the planning of the actions in multidisciplinary teams. Some authors propose that between the subject of the unconscious and the subject of rights lies an equivalence. We problematize such an argument through an immersion in the philosophy of law, where this term comes from, indicating the inaccuracy of such equivalence by demonstrating later on that the subject of rights notion poses a limited contribution as a clinical operator. Lacan’s reviews on the transformation of health into a legal right will be explored, calling the attention of those who operate in the healthcare field to the risks inherent to the decision of giving away their position. Finally, we propose that the psychoanalyst supports in the teams of psychosocial attention, not the amalgam of the hegemonic conceptual framework, but a discursive multiplicity, so that the space of the desiring subject can be guaranteed amongst the institutional gaps.

keywords: Subject of law; psychoanalysis; psychosocial care; mental health.

recebido: 25/08/2016

aprovado: 12/09/2016

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Epistemologia psiquiátrica e marketing farmacêutico: Novos modos de subjetivação Nelson da Silva Junior

Introdução Em seu texto Toward a new epistemology of psychiatry, Berrios e Marková (2015) sublinham o aspecto de intermediação incontornável da linguagem e da cultura na expressão e na morfologia dos sintomas psiquiátricos assim como em sua interpretação pelo psiquiatra no diagnóstico. Esta posição se coaduna com aquela de outros filósofos, como Hacking (2002), Foucault (1972) e Deleuze e Guattari (1976), entre outros, para quem a clínica psiquiátrica não é apenas uma mera modalidade específica, aplicada aos comportamentos da clínica médica em geral, que se organiza a partir do princípio que todo sintoma é sempre e apenas uma expressão de um fator causal localizável no organismo. Doenças com causas orgânicas, como a hipertensão ou o diabetes, produzem sintomas fixos, ou seja, expressões relativamente padronizadas e independentes do tempo e local onde vivem os doentes. Há, é bem verdade, variações destas expressões entre indivíduos, grupos etários, gêneros e grupos étnicos, mas tais tendências estão pouco sujeitas à determinação simbólica de suas culturas no caso das doenças da clínica médica. Não é o caso da psiquiatria, em que a expressão individual dos sofrimentos psíquicos é altamente definida pela história pessoal e sua narração, pela linguagem e cultura à qual pertence o sujeito; e na qual a teorização causal dos sofrimentos parece sempre inquietantemente sujeita a moralidades locais, frequentemente tomadas como universais, por parte dos clínicos (DUNKER, 2015). Foucault, por exemplo, demonstra a construção do saber psiquiátrico como indissociável da instauração da forma disciplinar de dominação, ao lado de outras formas de saber sobre o homem, como é o caso da pedagogia. Em resumo, no caso da psiquiatria, não apenas a expressão dos sofrimentos psíquicos, como também a forma de conhecê-los e conceitualizá-los está condicionada historicamente às culturas. Em outras palavras, tanto o paciente quanto o médico organizam seus discursos sobre o sofrimento partindo de formas prévias de um saber sobre a alma e suas rela-

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SILVA JUNIOR, Nelson da

ções com o corpo. Contudo, notemos que, diferentemente das culturas tradicionais, nas quais os processos de significação se organizam de modo relativamente espontâneo, a cultura contemporânea se organiza desde meados do século XX a partir de uma profunda articulação com processos econômicos. Os valores, os ideais de saúde e as moralidades, neste caso, serão expressão não apenas de uma lenta maturação local da cultura e da linguagem em torno dos sofrimentos da alma e do corpo, mas também produções instrumentais de natureza cultural que possuem sua razão de ser na função que exercerão como peças de uma cadeia fechada que vai da produção ao consumo. A cultura de massa, a indústria cultural (HORKHEIMER; ADORNO, 1985) são conceitos-chave para a compreensão de como a expressão, os desejos dos sujeitos são uniformizados de modo a que estes possam se inserir na lógica de consumo. É bem conhecido como a indústria cultural funciona no direcionamento e inserção dos desejos na gramática do consumo (SILVA JUNIOR; LIRIO, 2005). Mas, seriam os sofrimentos igualmente articuláveis nessa gramática mercantil, tais como os desejos? Portanto, por um lado cabe investigar os modos pelos quais a lógica capitalista modifica a morfologia, a expressão e a interpretação que os sujeitos fazem de seus sofrimentos; e por outro, como esta lógica tende a organizar o modo como tais sofrimentos se traduzem conceitualmente em sintomas psiquiátricos.

Novos modos de subjetivação Uma inquietante cena da clínica psicanalítica ilustra bem a pregnância de uma nova modalidade de nomeação do sofrimento a partir dos próprios sujeitos. Vejamos uma vinheta clínica particularmente instigante: Clara é uma mulher bonita, de quarenta e poucos anos, encaminhada para a análise por sua psiquiatra. Ao sentar-se na poltrona para a primeira entrevista, declara, como quem oferece um cartão de apresentação: “– Sou bipolar”. O silêncio que se segue parece esperar uma confirmação do analista, algum sinal de que este sabe do que ela está falando, antes de poder continuar. Diante da ausência deste sinal de entendimento prévio, ela finalmente dá início a uma narrativa: está divorciada, é mãe de dois filhos, já fez uma análise, inicialmente motivada por uma depressão quando foi morar aos 17 anos no exterior, onde fez faculdade e conheceu seu marido. O modo de Clara se apresentar é particularmente comum. Tais formas de autonomeação são transnosográficas. Neuróticos obsessivos, histéricas, borderlines, deprimidos e psicóticos frequentemente evocam um diagnóstico fechado, como quem descreve uma informação complementar, mas essencialmente exterior à análise. Tais modos discursivos, isto é, o estabelecimento de identidades a partir de discur-

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Epistemologia psiquiátrica e marketing farmacêutico: Novos modos de subjetivação

sos fundados sobre saberes, constituem o foco dos trabalhos de Michel Foucault, particularmente naquilo que ele nomeou como “modos de subjetivação”. Sob este sintagma “modos de subjetivação”, Foucault define, em primeiro lugar, que estes são equivalentes a modos de objetivação do sujeito (FOUCAULT, 1994, p. 223). Os sujeitos se constituem ao se assumirem como objetos de um saber ou poder, nomeados por Foucault como formas de saber, ou jogos de verdade. Os jogos de verdade definem as condições segundo as quais um discurso pode ser considerado verdadeiro ou falso, aceito ou excluído (práticas de segregação como em História da loucura, Nascimento da clínica, Vigiar e punir) e o modo como um sujeito se torna um sujeito moral (como em História da sexualidade e Hermenêutica do sujeito). Tais sujeitos parecem se apresentar sem perguntas sobre si, que partem do princípio que a própria fala é supérflua: “Sou deprimido”, “sou bipolar” ou “tenho pânico” são sentenças que não raro inauguram uma primeira entrevista. Parecem também pouco interessados em qualquer fala do analista que não confirme a resposta que já têm sobre si. Tal indiferença ao saber inconsciente e ao seu deciframento parece, com efeito, ser uma das tendências do modo de subjetivação pós-moderna (ASKOFARÉ, 2013, p. 85). Estamos, portanto, diante de uma realidade social que afeta a economia psíquica dos sujeitos, suas estruturas de gozo e sofrimento segundo uma modalidade específica. Os novos jogos de verdade que sustentam os modos de subjetivação atuais parecem assim afetar a potência enunciativa dos sujeitos mais do que suas “estruturas”. Este parece ser o efeito mais visível sobre o psiquismo e sua expressão do sofrimento, a saber, o progressivo silenciamento do sujeito da enunciação pelo sujeito do enunciado. Não é este o caminho que será explorado aqui. Nosso caminho será o de examinar a relação da racionalidade diagnóstica que sustenta tais modos de subjetivação e racionalidade. Tal racionalidade diagnóstica, como veremos, é, por um lado, pautada por uma compreensão organicista e convencionalista das patologias. Por outro lado, ela é disseminada na cultura por meio da media e seus recursos de persuasão e produção do consumo, mais particularmente aqueles do marketing farmacêutico.

O sujeito do desejo nos tempos do marketing O marketing é uma invenção do século XX, e sua finalidade é persuadir os sujeitos ao consumo, independentemente de suas necessidades. Gostemos ou não, a psicanálise não está isenta desta história. Em 1909, Freud e seus discípulos haviam deixado uma forte impressão sobre o meio médico dos Estados Unidos com a apresentação de uma teoria racional sobre os processos irracionais da alma, demonstrando a presença desses processos irracionais no cotidiano (HALE, 1971, 1995, apud ILLOUZ, 2006). Considerar as emoções como realidades em si, fora das categorias do

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pensamento moralizante, não era mais algo impensável. A literatura e as revistas femininas haviam popularizado este novo saber sobre o espírito apresentado pela medicina e um discurso sobre a interioridade começava a tomar a cena pública desse país (ILLOUZ, 2006; MILNITZKY, 2006; WATTERS, 2010). Uma figura-chave na instituição prática e constituição teórica do marketing foi Edward Bernays, sobrinho de Freud e Marta Bernays. Apoiando-se na teoria psicanalítica, Bernays lançou as bases da manipulação simbólica como instrumento do consumo das massas (CASTRO, 2013). Bernays define sua ciência como uma “engenharia do consentimento”, isto é, como “arte de manipular as pessoas”, e defende que esta era uma forma de proteção da democracia, uma vez que as massas eram “fundamentalmente irracionais” e em cuja opinião “não se poderia confiar”. Não é uma surpresa sua participação ativa por várias décadas no Committee for Public Information, órgão estatal do governo norte-americano para manipular a opinião política das massas com base na tecnologia desenvolvida no marketing. Assim, em meados dos anos 1920 nasceu nos Estados Unidos um novo campo de estudos, chamado “economia de consumo”. Este campo desenvolveu novas técnicas na economia, como o crédito pessoal, e principalmente a publicidade, que deveria descobrir e explorar o poder da carga simbólica dos produtos. Charles Kettering (1929), engenheiro da General Motors e inventor de mais de três centenas de patentes em vários domínios, foi um dos primeiros a capturar o núcleo do que iria então se tornar a máxima da ciência do consumo: “A chave da prosperidade econômica”, dizia ele, “é a criação de uma insatisfação organizada” (apud RIFKIN, p. 42). Supomos que o sujeito atual ocupa seu lugar neste discurso, e vimos acima que um dos efeitos retroativos desta ocupação parece ser a supressão de um saber do inconsciente em seu discurso. Este lugar, pensado como estruturas da linguagem, foi nomeado por Foucault de modos de subjetivação. Em seguida, retomamos a gramática de persuasão e direcionamento dos desejos sob a tutela da engenharia do consentimento com fins lucrativos. Vejamos agora como tais modos de subjetivação se constroem. Em outras palavras, se há “estética”, uma forma de recepção, os sujeitos que a incorporam e que propagam seus efeitos ontológicos; há também uma “poética” da racionalidade diagnóstica, ou seja, uma produção discursiva desta. Ocorre que esta poética colocou-se a serviço de uma lógica capitalista, da qual dificilmente pode hoje se diferenciar.

A associação da nova epistemologia psiquiátrica ao marketing Não se trata de examinar aqui a hipótese de que o sistema DSM tenha sua origem em vista de uma reconstrução planejada da nosologia psiquiátrica em torno de uma nosografia, de modo a servir mais facilmente ao projeto de exploração mercantil dos afetos pelas indústrias farmacêuticas. Independentemente de sua

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origem no mercado ou no projeto de cientificação radical da psiquiatria a partir do empiricismo lógico de Hempel (1994), fato é que são inegáveis a influência extensiva e o direcionamento do mercado nesta nova nosografia classificatória. Trata-se, sim, de examinar e eventualmente isolar o modo como a “epistemologia” convencionalista e “ateórica” do DSM vem ao encontro, articula-se e se insere nas novas gramáticas da produção de consumo do momento neoliberal. De fato, talvez um dos exemplos mais claros de como a ciência atual passa a ser redefinida pelos interesses do mercado seja aquele da recente história da psiquiatria. Para tanto, notemos que a psiquiatria operou uma verdadeira revolução baseada em duas ordens de acontecimentos: o primeiro na clínica, e o segundo em sua teoria. Em primeiro lugar, a partir dos anos 1950, o desenvolvimento de uma tecnologia de medicamentos finalmente eficaz no controle dos efeitos das depressões graves permitiu uma eficácia clínica inédita para a psiquiatria. De fato, após praticamente 200 anos de desconfortável restrição à descrição e taxonomia das doenças – incluindo aqui uma breve associação com a psicanálise que fornecia uma estrutura causal e um tratamento coerente com esta, mas que a excluía do princípio de causalidade orgânica partilhado por toda a medicina – os primeiros antidepressivos representaram as primeiras conquistas capazes de legitimar efetivamente a psiquiatria no campo da clínica médica. O segundo acontecimento ocorreu a partir da surpreendente reorientação epistemológica na ideia de diagnóstico, reorientação com efeitos radicais na produção de conhecimento da teoria psiquiátrica. Esta reorientação se deu novamente em duas frentes, a saber: o abandono de uma pretensão de compreensão etiológica na elaboração do diagnóstico, e a adoção de critérios convencionalistas para a definição do caráter patológico ou não de um fenômeno. Com relação à primeira frente, a história dos manuais das séries DSM e CID demonstra um progressivo abandono do ponto de vista causal e a paulatina adoção de critérios pragmáticos e convencionalistas de diagnóstico e tratamento das doenças mentais. Tal reorientação epistemológica, que exige da psiquiatria seu distanciamento de uma nosologia crítica e reflexiva em nome de uma nosografia purificada de quaisquer hipóteses, buscou oferecer critérios exclusivamente empíricos, fundados na presença ou ausência de sintomas, para o diagnóstico das doenças, incluindo aqui a quantidade destes e a duração para a atribuição de um certo diagnóstico. Em sua segunda frente, a revolução epistemológica do DSM se assume como essencialmente convencionalista com respeito à divisão entre o normal e o patológico. Em outras palavras, os critérios que definem a presença ou ausência de uma doença são essencialmente abertos às discussões entre a comunidade científica e a comunidade. Por exemplo, após as críticas recebidas pela comunidade de médicos gays californianos, rapidamente a equipe do DSM redefiniu o diagnóstico para homossexualidade. A homossexualidade como condição psiquiátrica, que era até

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então simplesmente definida como uma orientação sexual patológica de parceiros do mesmo sexo, passou, na edição seguinte do manual, a ser definida como um diagnóstico psiquiátrico possível apenas nos casos em que esta orientação era “ego-distônica”, isto é, conflitante com o ego do paciente. Retomando: a primeira alteração na epistemologia da psiquiatria faz coincidir a doença com o sintoma e tende a tornar obsoleta a preocupação com sua causa; a segunda, por sua vez, coloca entre parênteses a ideia mesma de “doenças”, razão pela qual o termo foi substituído por aquele de “transtornos”, evitando assim a forte carga moral do primeiro. Tais alterações quanto à etiologia e quanto ao caráter convencionalista do diagnóstico foram as condições de base que permitiram à psiquiatria um salto para além das fronteiras da medicina tradicional, a saber, um salto para a indústria do consumo, numa bem-sucedida joint venture acadêmico-empresarial (PIGNARRE, 2003; BLECH, 2005; LANE, 2007; WHITAKER, 2014). Elas permitiram uma adequação perfeita às novas necessidades do marketing farmacêutico. Com efeito, um dos resultados mais salientes desta joint venture – que não restringe à psiquiatria, evidentemente, mas atinge várias especialidades médicas – tem sido a progressiva redefinição dos sofrimentos normais como algo da ordem de uma patologia. As pessoas normais representam uma fatia inexplorada de consumidores potenciais de medicamentos. Para que este mercado seja conquistado, basta que sejam convencidos que estão ou que correm sérios riscos de ficarem doentes (CASSELS; MOYNIHAM, 2006). Atualmente, inúmeros profissionais de marketing, revistas e associações empresariais se especializaram no marketing farmacêutico. Vince Parry, em The art of branding a condition (2003), um artigo cuja função é naturalmente também a de divulgar a eficácia de sua empresa de marketing nas indústrias farmacêuticas, resume em três estratégias o modo como sua arte procede: 1. Aumentar a importância de uma doença; 2. Redefinir uma doença já existente, de modo a diminuir o preconceito em torno dela; e 3. Desenvolver uma nova doença de modo a construir o reconhecimento para uma necessidade não atendida pelo mercado. Claro está que tais estratégias implicam renomeações dos quadros afetivos, e eventualmente sua classificação como patológicos. Notemos que o termo branding refere-se tradicionalmente à identidade de um produto ou serviço, de modo a diferenciá-lo de seus concorrentes. No caso das doenças, explica Vince Parry, o processo é mais complexo, pois seu branding visa conseguir um consenso que mantenha gerenciadores de marcas, clínicos e pacientes “focados em uma única história com estrutura de problema/solução, fechadura e chave” (PARRY, 2003, p. 44). O branding de uma doença envolve, portanto, a criação de uma narrativa completa: inicia com a nomeação de um desconforto, aponta para sua causa e apresenta uma solução eficaz. Esta narrativa deve atingir uma série de públicos muito heterogêneos entre si, desde as “indústrias farma-

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cêuticas, grupos de suporte, formadores de opinião e consumidores; e o esforço precisa se coordenado com múltiplas agências de comunicação, nos campos do branding, propagandas, educação e publicidade” (Ibid.). Seus exemplos são o Transtorno do pânico, cujo branding, particularmente eficaz, deslocou muitos pacientes dos cardiologistas para os psiquiatras, assim como o Transtorno disfórico pré-menstrual, cujo tratamento é realizado com o mesmo princípio ativo do Prozac, a fluoxetina. Nesse último caso, o problema inicial era que o Prozac era associado pelo público feminino a transtornos mentais, o que causava uma rejeição ao medicamento. Assim, devidamente new branded, o fabricante de Prozac lançou o mesmo princípio ativo no mercado, mas sob nova embalagem estampando girassóis, mulheres bonitas, com pílulas de cor lavanda e outro nome: Safarem. Cabe refletir sobre como os dois avanços epistemológicos acima mencionados da psiquiatria, a saber, uma nosografia ateórica e convencionalista, adotada pela série DSM, foram revoluções teóricas que a prepararam para uma articulação particularmente eficaz com esse novo nível de complexidade atingido pelo marketing farmacêutico. De fato, mais facilmente do que seria possível em qualquer outra especialidade médica, o pressuposto de uma coerência interna pode deixar de orientar na psiquiatria a observação clínica e a dedução hipotética dos processos autônomos que constituiriam a doença no sujeito. Sendo uma especialidade profundamente definida pela linguagem e pela cultura, é também possível para a psiquiatria alterar mais livremente suas entidades clínicas. Ora, na nova nosografia ateórica do DSM, o pressuposto etiológico, sua hipótese causal, que daria unidade à doença, tende a ser substituído pelos efeitos de novas drogas sobre o comportamento. A relação entre o princípio ativo e seus efeitos no comportamento assume a função de unificar a entidade em questão. A narrativa problema/ solução visada pelo marketing entra aqui em acordo com esta nova epistemologia inversa, uma vez que a o “problema” passa a ser criado a partir de sua solução, conforme a terceira estratégia descrita por Parry. Nesse sentido a epistemologia ateórica do DSM inverte a ordem entre o processo de produção de conhecimento e aquele de ação terapêutica vigente até então: em vez de esperar passivamente as doenças surgirem, serem descritas, tornarem-se objeto de hipóteses, experimentos e serem submetidas a sucessivas tentativas terapêuticas, com sua nova “epistemologia” da psiquiatria passa a definir as patologias de sua competência de um modo a posteriori, nachträglich, poderíamos dizer, organizando-as em torno dos agrupamentos de sintomas que desaparecem sob a ação de drogas com ação neuroquímica. Uma chancela mútua ocorre nesse processo narrativo problema/ solução: o medicamento chancela a unidade da patologia e a patologia chancela a eficácia do medicamento.

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Isso permite que novas formas de sofrimento sejam concebidas como formas de adoecimento e incorporadas na lógica de renomeação mercantil, numa duvidosa articulação do campo da cultura com o campo da indústria farmacêutica das drogas psicoativas. Para tanto, o sofrimento psíquico cotidiano exige uma série de modificações da linguagem, dos sujeitos, das instituições de saber e da cultura (BOLGUESE, 2004). Este processo inclui elementos que vão além da mera competência psiquiátrica. A segunda estratégia definida por Parry, a saber a redefinição de uma doença de modo a diminuir o preconceito em torno dela, constitui aquilo que Bolguese em seu estudo sobre a depressão, denomina “banalização” e a “naturalização”. A banalização da depressão, por exemplo, visa à crescente popularização dos discursos sobre a depressão no âmbito leigo, assim como uma inflação inusitada do diagnóstico de depressão no âmbito médico como um todo. Com efeito, para além da clínica psiquiátrica enquanto tal, o diagnóstico e o tratamento da depressão são hoje comumente realizados por clínicos gerais, ginecologistas e outros especialistas sem formação psicopatológica específica. Nesse sentido, não apenas a depressão se banalizou, como também o sofrimento psíquico como um todo, que se redefine nesse novo quadro narrativo de modo a desresponsabilizar os sujeitos. O processo de banalização serve a tornar mais confortáveis as trocas entre o paciente e seu médico. Isto foi particularmente importante, por exemplo, na renomeação da “impotência viril masculina” como “disfunção erétil”, nome que remete a um problema mecânico em vez da semântica moral presente na palavra “impotência”. De fato, se tal banalização está associada a discursos que naturalizam os problemas, isto é, que os apresentam como uma condição “natural” do ser humano, resultante de distúrbios orgânicos, isto visa, em última instância, desvinculá-los do contexto social, bem como da historicidade de seu surgimento. Em última instância, trata-se de suprimir a parcela de responsabilidade do sujeito em seus sofrimentos. Por meio do marketing, uma Weltanschauung científico-organicista é construída para sustentar a identidade do consumidor das drogas psicoativas longe do campo semântico e histórico que está implicado no sofrimento. Esta Weltanschauung, ao des-significar o sofrimento qualificando-o como disfunção orgânica, priva o sujeito do sentido do seu sofrimento como forma de reação aos acontecimentos, e, portanto, invalida sua potencialidade crítica na esfera da vida social. Em outras palavras, a des-significação do sofrimento implica necessariamente sua despolitização. Com efeito, na lógica do discurso que naturaliza o sofrimento, o responsável último pela doença se torna o corpo inerte, o soma, que apresentaria um déficit ou irregularidade deste ou daquele elemento ou processo neurofisiológico. Sua insatisfação, inconformismo e tristeza deixam de ser reações compreensíveis às adversidades de sua existência e passam a significar distúrbios neuroquímicos. Entretanto, nada há a temer, pois como vimos, esta narrativa é fechada: com o

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problema, ela apresenta sua solução, que consiste em informar que a ciência já se encontra suficientemente avançada para resolver tais incômodos, e que há medicamentos específicos para corrigir tais deficiências. Neste momento o sujeito está preparado para continuar a exercer, também por meio do seu sofrimento, o seu papel “cívico” no mundo do capitalismo, aquele de consumidor. Contudo, o trabalho de recodificação não termina aqui, já que um novo problema se coloca, aquele de conquistar a fidelidade deste novo consumidor. Tal fidelização não é simples, contudo, pois ela depende de manter esse consumidor ativamente interessado em seus problemas. Como será então que outras competências do marketing serão convocadas a atuar? Assim, entre outros elementos que constituem um quadro semântico de extrema coerência, o marketing farmacêutico não hesita em apresentar a alegria, o sono ou a ereção como um estado à mão, passível de ser obtido pela medicação a qualquer momento e por toda a vida. A cada momento um novo desconforto, ou uma “nova causa, recém-descoberta pela ciência de ponta” substituirão os antigos sofrimentos e soluções. A manutenção de um processo virtualmente infinito de renomeação de grupos de sintomas permitirá, nesse sentido, numa inquietante importação de uma das estratégias mais eficazes do marketing de produtos de consumo, aquela da obsoletização programada, tendo condições de fornecer sempre o perfeito consumidor para a indústria farmacêutica.

Conclusões: Modos de subjetivação na era da psiquiatria classificatória Ao dar exemplos de sua terceira estratégia de branding doenças, aquela de desenvolver uma nova doença a partir de seu tratamento, Parry menciona, com efeito, a grande abertura conceitual que caracteriza a psiquiatria, uma vez que, diferentemente de outros campos da medicina, suas “doenças são raramente baseadas em medidas de sintomas físicos” (PARRY, 2003, p. 46). Com uma sinceridade desconcertante, Parry defende que o crescente volume de doenças elencadas nas sucessivas edições do DSM não deve ser entendido como um aumento exponencial de doenças psíquicas, mas como resultado da “fragmentação dos problemas nas partes que o compõem, de modo a fornecer uma melhor avaliação das formas de tratamento. Não é surpresa que muitas destas novas doenças tenham surgido por meio de financiamentos diretos de indústrias farmacêuticas junto à pesquisa, publicidade ou ambas” (Ibid.). Se por um lado, a psiquiatria adquiriu um maior poder terapêutico apoiada nos avanços da neurofisiologia e neuroquímica, por outro lado, a insularização do sofrimento em torno dos sintomas e o princípio convencionalista da classifi-

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cação das doenças se constituíram em uma parte perfeitamente ajustada ao que é almejado pelos profissionais de marketing: uma história única estruturada em torno da descrição de um problema e sua solução. O desenvolvimento de uma epistemologia duplamente flexível na nomeação de entidades nosográficas permite que ela se adapte tanto às descobertas de novos medicamentos, fornecendo retroativamente aos mesmos suas “doenças”, quanto desestigmatizando sofrimentos a partir de deslocamentos dos critérios de normalidade. Dessa narrativa, o sujeito está excluído apenas como responsável, pois sua participação como consumidor treinado é imprescindível para que o processo funcione. Diferentemente do capitalismo tradicional, focado no processo que vai da produção ao consumo, estamos já em uma nova versão do capitalismo, que parte do consumo e dos consumidores e pensa a produção em função destes. Cabe ao consumidor estar atento aos próprios estados e desconfortos, assim como buscar constantemente novas classificações nas quais seu “caso” possa ser objetivado, compreendido e tratado. A formação do sujeito nessa nova função implica o estabelecimento dos novos “jogos de verdade” do marketing farmacêutico. Compreende-se assim a naturalidade com a qual alguém pode hoje se nomear: “Sou bipolar”.

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resumo: Trata-se aqui de examinar o modo como a “epistemologia” convencionalista e “ateórica” do DSM vem ao encontro, se articula e se insere nas novas gramáticas da produção de consumo do marketing. Com efeito, a insularização do sofrimento em torno dos sintomas e o princípio convencionalista da classificação das doenças se constituíram em uma parte perfeitamente ajustada ao que é almejado pelos profissionais de marketing: uma história única estruturada em torno da descrição de um problema e sua solução. O desenvolvimento de uma epistemologia duplamente flexível na nomeação de entidades nosográficas permite que ela se adapte tanto às descobertas de novos medicamentos, fornecendo retroativamente a eles suas “doenças”, quanto que ela desestigmatize sofrimentos a partir de deslocamentos dos critérios de normalidade. Dessa narrativa, o sujeito está excluído apenas como responsável, pois sua participação como consumidor é essencial. A formação do sujeito nessa nova função implica o estabelecimento dos novos “jogos de verdade” do marketing farmacêutico.

palavras-chave: Epistemologia; modos de subjetivação; marketing farmacêutico; consumidor.

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abstract: The aim of the article is to examine how DSM’s conventionalist and “a-theoretical” epistemology meets, articulates, and inserts itself in the new grammars of the consuming production of marketing. Indeed, the insularization of suffering around the symptoms and the conventionalist principle of disease classification of diseases have become a perfectly adjusted part to what is desired by marketing professionals: a single story structured around the description of a problem and its solution. The development of a double flexible epistemology about nominating nosographic entities allows it to adapt to both the discoveries of new drugs, providing retroactively to them their own “diseases”, as well as the possibility to de-stigmatize sufferings through the displacement of the criteria of normality. In this narrative, the subject is excluded only as the responsible person, once his participation as a consumer is essential. The formation of the subject to assume this new function implies the introduction of the new “games of truth” of the pharmaceutical marketing.

keywords: Epistemology; modes of subjectivity; pharmaceutical marketing; consumer.

recebido: 24/08/2016

aprovado: 12/09/2016

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O transtorno bipolar, o discurso capitalista e suas implicações na clínica psicanalítica1 Jamile Luz Morais O presente trabalho tem como objetivo discutir as implicações do fenômeno da expansão diagnóstica, no campo da psiquiatria, para a clínica psicanalítica, destacando alguns obstáculos na direção do tratamento. Para tanto, tomaremos como referência fragmentos de um caso clínico, no contexto do consultório particular, para assim apresentar como a psiquiatria moderna, aqui representada pelo Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM), acaba forjando um aparelhamento de laço social que suprime o sujeito em sua particularidade, expropriando-o, deste modo, da possibilidade de construir um saber acerca do seu próprio mal-estar. Nesse contexto, aludimos à proliferação de sujeitos que, cada vez mais, passam a ser enquadrados em algum tipo de transtorno, o qual desde o DSM-III, passou a simbolizar um significante que domina o discurso psiquiátrico moderno. No terreno de uma diagnóstica restrita ao DSM, estamos na era dos transtornos. Tudo é transtorno! Transtornos somatoformes e dissociativos, transtorno obsessivo compulsivo (TOC), transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), transtornos de ansiedade generalizada (TAG), transtornos alimentares, transtornos psicóticos, pós-traumáticos, transtornos do humor e por aí vai. Com relação aos transtornos do humor, um em especial chama atenção: o transtorno bipolar (TB). Em um artigo publicado na revista Piauí, em 2011, denominado A Epidemia da doença mental, Márcia Angell afirma que um estudo patrocinado pelo Instituto Nacional de Saúde Mental entre 2001 e 2003 mostrou que um percentual surpreendente de adultos (em torno de 46%) encaixava-se nos critérios estabelecidos pelo DSM, confeccionado pela então Associação de Psiquiatria Americana (APA). Esse estudo demonstrou que a referida porcentagem de adultos foi acometida, em algum momento de suas vidas, por pelo menos uma doença mental, destacando quatro categorias. Entre essas categorias, estavam os “transtornos de 1 Parte deste artigo refere-se a um recorte da pesquisa de doutorado em desenvolvimento no Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), no núcleo de Pesquisa “Psicanálise e Sociedade”.

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ansiedade”, que englobam as fobias e o estresse pós-traumático; os “transtornos de controle dos impulsos”, referentes aos problemas de comportamento e de déficit de atenção/hiperatividade; os “transtornos causados pelo uso de substâncias”, como o abuso de álcool e drogas, e os “transtornos de humor”, como a depressão e o transtorno bipolar. Para a autora, a maioria dos pesquisados enquadrava-se em mais de um diagnóstico. Sobre o transtorno bipolar, Darian Leader (2015, p. 7) afirma: “Se o período pós-guerra foi chamado de ‘a era da ansiedade’, e as décadas de 1980 e 1990 de ‘a era dos antidepressivos’, vivemos agora em tempos bipolares”. O TB, antes aplicado a menos de 1% da população, teve um aumento drástico. Nos Estados Unidos, estima-se que quase 25% dos norte-americanos sofram de algum tipo de bipolaridade. O resultado disso é um aumento progressivo da prescrição de estabilizadores de humor, tanto para adultos como para crianças, que também já estão entrando no rol dos bipolares: “As receitas para crianças aumentaram 400% desde meados dos anos 1990, enquanto diagnósticos globais tiveram alta de 4.000%” (LEADER, 2015, p. 7). Na era do significante transtorno, ambiciona-se que o TB, de alguma forma, remeta à então Psicose maníaco-depressiva (PMD), proposta pelo psiquiatra alemão Emil Kreapelin. No DSM-V, pretende-se que a PMD esteja alocada na categoria Transtorno bipolar, especificamente no TB tipo I, representando justamente a concepção moderna kraepeliniana. O TB tipo I, de acordo com o manual, diferencia-se do transtorno depressivo maior pela presença de episódios maníacos, os quais não precisam, obrigatoriamente, ser acompanhados de critérios para sintomas psicóticos. Conforme o DSM-V, o TB manifesta-se de várias formas, considerando sua gravidade. Neste contexto, vale ressaltar que o conceito de hipomania também foi crucial para o atual entendimento do transtorno, na medida em que o sujeito não precisa manifestar sintomas da mania clássica para ser diagnosticado como bipolar. No mesmo caminho da racionalidade diagnóstica do DSM, destaca-se a existência de um movimento dentro da psiquiatria, liderado especialmente pelo psiquiatra americano Hagop Akiskal, de expansão do diagnóstico de bipolaridade. Este movimento defende o pressuposto segundo o qual o TB é concebido ao longo de um espectro de sintomas, que varia ao longo de um continuum, a considerar principalmente o aspecto quantitativo e epidemiológico, em vez de uma abordagem categórica. Neste sentido, a noção de hipomania ganha destaque, principalmente, porque, vista como uma mania “controlável”, mais sujeitos podem cair na régua do espectro bipolar. Alcântara e outros (2003) localizam que o aumento da prevalência do TB seja consequência de uma mudança de abordagem dentro da própria psiquiatria e encontram na noção de espectro tal mudança. Salientam que a introdução desta noção baseia-se na perspectiva dimensional, a qual concebe a doença mental

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como uma disfunção única, expressando-se de maneira variada, a depender da gravidade. A própria expressão spectrum, usada pelos psiquiatras para definir uma disfunção única do transtorno, traduz a metáfora do fenômeno físico de decomposição da luz que, ao passar por um prisma, assume cores diversificadas (MATOS; MATOS; MATOS, 2005). Nessa linha de pensamento, a antiga psicose maníaco-depressiva de Kraepelin se colore, não podendo mais acontecer de forma categórica: “ou preto, ou branco”. Decerto, considerando ou não a ideia do espectro, não se trata mais de saber se é ou não é, tendo em vista que a facilidade de ser diagnosticado como bipolar hoje é bem maior do que na época de Kraepelin, quando, categoricamente, ou se era psicótico maníaco-depressivo ou não se era. Esta transformação na abordagem para definir o TB, por sua vez, faz com que a prevalência do transtorno aumente de 1% para 5% na população geral. Além disso, verifica-se a predominância da prescrição dos estabilizadores de humor em detrimento da prescrição de antidepressivos, entre outros fármacos (ALCÂNTARA et al, 2003). Atualmente, fala-se em temperamento bipolar para se referir ao sujeito que possui um temperamento forte. Muito em breve, poucos escaparão de ser enquadrados como tendo alguma forma de transtorno bipolar. No senso comum, o adjetivo “bipolar” parece “cair como uma luva” na linguagem popular, servindo geralmente de adjetivo pessoal. Sobre isso, Bogochvol (2014) salienta que o adjetivo bipolar entrou na série dos significantes da moda e a sua vulgarização acabou estabelecendo uma concepção de homem sobre si mesmo, figurando como um modo privilegiado de nomear seu mal-estar na civilização. Diante disso, cabe interrogar: estaríamos, portanto, diante de uma sociedade de “sujeitos bipolares”? E mais: de que maneira esta suposta proliferação ocasiona implicações na clínica psicanalítica? Ora, não podemos esquecer o quanto a clínica não pode ser vista separada do social, ou seja, o quanto existe entre esses dois campos uma continuidade moebiana de tal modo que é impossível delimitar o que é interno e externo ao sujeito. Como ressaltou Freud (1921/1996) em Psicologia de grupo e análise do Ego, toda psicologia social é também individual, porque nenhum sujeito se constitui sozinho, mas sim se apoiando em uma estrutura social, estando, portanto, assujeitado a ela. Ao entender que o sujeito estrutura-se no campo do Outro social, compreendemos o sujeito como trans-histórico e, portanto, não somos partidários da ideia de que nos deparamos na contemporaneidade com um “novo sujeito”, mas sim que, uma vez se estruturando no campo do Outro da linguagem, ele está submetido às mudanças deste campo que, por conseguinte, obedecem um determinado enquadramento de laço social (ASKOFARÉ, 2009). Dessa maneira, podemos dizer que existe uma conexão entre o aspecto estrutural do sujeito e a dimensão histórica onde ele se encontra inserido e, nesta medida, falamos,

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novamente, de uma relação moebiana entre o sujeito e Outro do discurso, de tal maneira que o sujeito que nos chega à clínica não pode ser concebido senão articulado à estrutura social. No cenário atual, governado pelo discurso capitalista, convém nos debruçarmos e pensarmos nos efeitos que este tem sobre o sujeito que chega a nossos consultórios, dado que a psicanálise em intensão possui estreita relação com a psicanálise em extensão. Como se falou anteriormente, o sujeito não está separado da dimensão do social, e por isso concordamos com Soler (2011) quando afirma que a psicanálise “não se limita, como normalmente se acredita, a ocupar-se dos indivíduos somente um a um” (Ibid., p. 57), ou seja, na intensão mesma da psicanálise, mas também com o que acontece ao redor dela. Sob este prisma, veremos, a partir de uma breve vinheta clínica, como os dois campos estão relacionados, analisando como a dimensão do social acarreta efeitos no sujeito do desejo e, assim, na clínica psicanalítica. Assistiremos, por um momento, a identificação do sujeito ao significante mestre universal tomado do campo do Outro, a saber: o significante “bipolar”.

Um breve relato Melissa chega ao atendimento dizendo que era, em suas palavras, portadora de transtorno bipolar, mostrando-me a receita prescrita pelo seu psiquiatra. O então profissional tinha receitado o medicamento Escitalopram, conhecido comercialmente como Lexapro, antidepressivo que, segundo o médico, também era receitado nos casos de pacientes que apresentassem sintomas que aplacavam o complexo do espectro bipolar. Pronto! A informação repassada pelo psiquiatra parecia ter sido suficiente para que Melissa se identificasse ao significante “bipolar”. Curiosamente, Melissa disse que antes da consulta psiquiátrica já desconfiava que fosse receber tal diagnóstico, pois vira uma reportagem em um noticiário televisivo mostrando que um dos indicativos de bipolaridade dizia respeito a pessoas que compravam demais e se mostravam compulsivas por compras. Melissa disse: “estou atolada em dívidas, estou devendo ao banco um valor que não gosto nem de pronunciar”. Entretanto, apesar de aparentemente estar convencida do referido diagnóstico, disse que ainda não havia comprado o medicamento, dizendo que estava “receosa”, pois pesquisara sobre o medicamento na internet e estava com medo de ter efeitos colaterais indesejáveis. A questão que se colocou desde então para Melissa não era necessariamente tomar ou não tomar o medicamento prescrito, mas sim saber se era ou não “bipolar”. Na primeira sessão, interrogou-se, dirigindo a pergunta à analista: “Será mesmo que sou bipolar?”. Disse-lhe, então: “Fazer essa questão pode ser um bom começo”. A partir daí, Melissa começou a descrever os sintomas que, às vezes, a

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levavam pensar sobre isso: “Sabe, além das compras e das dívidas, sou muito ansiosa, faz semanas que não consigo dormir direito, tenho me irritado com facilidade e minha convivência com outros tem se tornado quase impossível. Não gosto quando sou contrariada. Têm dias que não quero fazer nada, mas têm outros que eu saio e, se depender de mim, fico mais de um dia fora de casa, na balada”. Melissa tinha 38 anos, nunca casara e nem tivera filhos, morava com a mãe, viúva, e era filha única. Trabalhava em um banco e dizia ganhar bem, mas não o suficiente para pagar suas dívidas. Em suas palavras: “Olha que ironia, trabalho com dinheiro, mas não consigo administrar meu próprio dinheiro, não consigo dar conta da minha vida”. Teve vários namorados, mas até o momento não conseguira sustentar nenhum relacionamento ao ponto de casar. Falou de um último namorado, o qual, segundo ela, “era pra casar”, porém, disse ter conseguido afastá-lo dela. Quando ele terminou o relacionamento, Melissa caiu em um estado depressivo. Ficou profundamente triste, sentindo-se fracassada, desmotivada para ir ao trabalho, começando a faltar bastante, ora porque era levada pela preguiça, ora porque começara a sair à noite e chegar muito tarde. “Não posso perder meu emprego, preciso dele e gosto de trabalhar no banco, gosto do dinamismo desse ambiente, mas agora parece que não gosto mais de nada”. Este fato, segundo ela, foi o que mais motivou para que procurasse ajuda. Depois desse breve relato, cabe perguntar: como a psicanálise se posiciona diante de uma situação como essa, em que o sujeito chega, decerto, identificado a um significante, neste caso, ao significante bipolar? Interrogar-nos sobre isso convoca-nos a pensar sobre como se dá o diagnóstico em psicanálise, considerando a particularidade de cada sujeito que aparece em nossos consultórios. Em primeiro lugar, vale ressaltar que a nosografia psicanalítica vai na contramão da atual nosografia dos manuais psiquiátricos. Em vez de se comprometer com uma abordagem meramente descritiva, massificadora e ateórica, a psicanálise realiza seu diagnóstico de forma estrutural, considerando a realidade psíquica de cada sujeito, sob transferência, a partir da fala dirigida ao analista. Para a psicanálise, o importante é o que o sujeito tem a dizer sobre o sintoma de que se queixa, independentemente se ele chega com um diagnóstico médico determinado. Não importa se o sujeito já vem nomeado. Isso, para a psicanálise, não entra em questão, na medida em que é ele mesmo, com sua fala dirigida ao analista em transferência, quem vai construir um saber sobre o seu sintoma, saber este que nos leva à Outra cena, a uma realidade própria ao inconsciente. Nessa direção, podemos dizer que é por meio do discurso do sujeito que se pode identificar o lugar que ele ocupa no campo do Outro, estruturado por uma linguagem e lógica próprias. Para Lacan, seguindo Freud, o sintoma reflete o mal-estar do sujeito em ser alienado pela linguagem, pelo discurso social compartilhado a que está submetido. Ao se alienar na linguagem, o sujeito é lançado em um malogro, estando

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condenado a “ex-sistir”, porque uma vez imerso neste universo, ele também se vê castrado em tudo dizer e representar, inclusive a si mesmo. A entrada no universo da linguagem castra este sujeito, porque no momento em que se torna falante, um falasser, ele deixa para trás a possibilidade de se obter uma satisfação pulsional plena. Esta alienação à linguagem impõe uma falta ao sujeito que, a partir de então, só poderá satisfazer-se parcialmente. Neste sentido, entrar na linguagem implica perder gozo, separar-se de uma parte do seu corpo. Esta perda produz um resto, o objeto a, objeto para sempre perdido, cujo acesso direto torna-se impossível: o sujeito só será capaz de ter algum acesso a ele, indiretamente, pela via dos significantes e da pulsão, meios pelos quais pode recuperar uma parcela de gozo perdido na castração. É por meio da castração operada pela imersão na linguagem e separação do objeto que o sujeito passa a ser desejante. Estruturado no campo do Outro, o sujeito se ampara em um modo particular de se obter satisfação com este objeto, ou seja, opera-se uma modalidade de gozo própria deste sujeito. A partir disso, realiza-se um diagnóstico estrutural com a finalidade de dirigir o tratamento analítico. Em psicanálise, fala-se somente em três estruturas ou tipos clínicos, propostos por Lacan em sua releitura a Freud, a saber: neurose (histérica, obsessiva ou fóbica) psicose e perversão. Melissa não era nem psicótica, nem perversa. Tratava-se de uma estrutura neurótica histérica. Depois de muitos relacionamentos fracassados, Melissa passou a se perguntar por que era tão difícil para ela sustentar uma relação duradoura e o motivo pelo qual ainda não fora morar sozinha, afinal, tinha condições para isso, corrigindo-se em seguida, dizendo: “quer dizer, se não me endividasse tanto, teria condições. Parece que eu acabo criando situações para me sentir fracassada”. Esse momento marca a entrada de Melissa no processo de análise, pois ser ou não bipolar não era mais questão para ela. A questão era outra: por que não conseguia se desligar da mãe e constituir uma vida separada dela? Depois de aproximadamente um mês desde a primeira sessão, Melissa decidiu começar a tomar o medicamento, porque não queria causar sua demissão. Nesse sentido, dar início ao tratamento medicamentoso foi um ato que serviu não para aliená-la ainda mais em seus sintomas, mas sim para ajudá-la, inicialmente, a realizar atividades cotidianas que até então eram um sacrifício para ela. Dizia: “Não me importo mais em saber se sou X, Y ou Z, quero ficar bem. Tomar remédio ou não tomar não diz nada sobre mim”. Melissa responsabilizou-se por este ato, que lhe implicava renúncias, mas sabia que, pelo menos por um tempo, precisava sustentá-lo. Isso, por outro lado, não impediu que Melissa continuasse a trabalhar em análise. Falou que seu pai sempre vivera atolado em dívidas e que era a sua mãe que, no final, “segurava as pontas da casa”. De fato, era sua mãe que

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ainda pagava sozinha as contas da casa. Apesar de nunca ter sido cobrada por sua mãe a ajudar nas despesas, Melissa nunca tinha parado para pensar que poderia ajudá-la mesmo assim. Falava: “afinal, não sou mais criança. Sou uma mulher, trabalho, ganho meu dinheiro e posso me organizar”. Sua identificação com um traço do pai, somada à parceria de gozo com a mãe, impedia que Melissa pudesse se posicionar no lugar de mulher para um homem, permanecendo no lugar daquela filha “bancada” pela mãe e que, no entanto, não conseguia sustentar seu desejo. Identificar-se com o significante “bipolar”, por um momento, fechou as portas para a construção de um saber inconsciente. No entanto, por outro lado, permitiu, mesmo que pela via do saber psiquiátrico, uma possibilidade de sair desse lugar, na medida em que colocou em xeque, no processo analítico, o diagnóstico que até então havia recebido. Verificou-se, nesse sentido, um deslizamento de significantes. Antes fixada ao significante “bipolar”, Melissa, ao construir um enigma sobre o diagnóstico que recebera, passou a dar outros sentidos aos seus sintomas, os quais estavam “emparedados”, engessados aos significantes do Outro. Construir um enigma sobre isso provocou um furo no discurso vindo do Outro universal, fato que promoveu um giro discursivo no processo analítico, por meio da histericização do discurso. Sob este prisma, podemos afirmar que estabelecer um diagnóstico em psicanálise é um ato que abre portas ao sujeito, no sentido de que possibilita tocar no ponto de sua singularidade, nos modos de satisfação pulsional que ele escolheu para lidar com a impossibilidade da linguagem de tudo recobrir, bem como no fato de que nem tudo ele pode ter. Em outras palavras, embora a psicanálise parta de um caráter universal de estrutura para fazer o diagnóstico de um determinado sujeito (seja de neurose, psicose ou perversão), no final, é a particularidade do sujeito diante de sua estrutura que importa, ou seja, o que será resgatado é justamente aquilo que o marca como desejante. A realidade psíquica é singular e só pode ser construída em análise. Mesmo quando o analista se veja com dois pacientes histéricos, por exemplo, ele será um analista diferente com cada um deles, a considerar que a realidade psíquica é particular, pois envolve sujeitos diferentes e histórias distintas, as quais só poderão ser construídas em análise.

O discurso capitalista e o sujeito expropriado do saber Na conferência O lugar da psicanálise na medicina, Lacan (1966/2001) denominou de falha “epistemo-somática” a separação entre o corpo (pulsão) e o sujeito (desejo), promovida pelo discurso médico-científico, o qual, conectado ao capital, agencia um aparelhamento de gozo capaz de deixar este sujeito ignorante com relação à sua história subjetiva e inconsciente. Uma vez cindido do saber inconsciente que o

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constituiu como sujeito do desejo, o sujeito fica alienado a um saber que pretende ser totalitário e sem furos, sustentado pela ideia de que pode aparar todas as suas arestas e imperfeições, mascarando uma contradição que lhe é própria, oferecendo diagnósticos e remédios que, supostamente, dariam conta de suprimir o seu malestar fundamental, o qual, sabemos, é impossível eliminar. Prates Pacheco (2009) afirma que “com a aliança cada vez mais forte entre a ciência e o capitalismo, o corpo passou a ocupar um lugar central” (p. 240), localizando a biologia no topo da hierarquia científica. Da mesma maneira, ao discorrer acerca dos efeitos do discurso da ciência sobre o sujeito, Alberti (2008) salienta que a perpetuação da noção de um indivíduo cerebral, determinado plenamente por reações neurais e cerebrais, leva-nos “a crer que é o cérebro que produz o que há de mais genuíno, independentemente do corpo e do sujeito enquanto efeito de linguagem” (pp. 153-154). Sobre esse aspecto, aponta Quinet (2006) que o entendimento de um sujeito neuronal, marcado por condições neuroquímicas e biológicas, especialmente no campo da psiquiatria, traz consigo não só a produção de psicofármacos cada vez mais variados, mas também de categorias diagnósticas que os justifiquem. Verifica-se, desse modo, uma ciência médica em parceria perfeita com o capital, que se apropria do conhecimento produzido por ela para agenciar um enquadramento de laço social onde o sujeito do desejo é achatado em sua particularidade. Ao receber um diagnóstico qualquer e se identificar com ele, o sujeito permite que um conhecimento pretensamente científico se sobreponha ao saber que o constitui como um sujeito do desejo. A consequência disso é a negligência do sujeito com relação à sua própria história. Ao classificar o sofrimento do sujeito, o discurso científico produz generalizações, massifica e objetiva o que é mais subjetivo. Ora, para este discurso pseudocientífico e totalitário não importa se o sujeito tem um nome ou algo a dizer sobre o sintoma que sofre. O importante é que ele tem uma patologia que precisa ser tratada e eliminada. Ansioso, depressivo, hiperativo, doente psicossomático, bipolar, não importa o diagnóstico que ele receba do Outro dominante do discurso, o relevante é que sempre existirá uma tecnologia que vai nomear e tratar esse sujeito. Acontece que apesar do efeito de objetivação do sujeito pelo discurso pseudocientífico, algo desse sujeito sempre escapa, na medida em que ele é irredutível a qualquer forma de massificação e normatização mediana, que intenta equivaler à normalização. Um nome, um diagnóstico não dá conta do que ele tem de estrutural: ser desejante, faltante e só aparecer nas hiâncias do discurso. Para a psiquiatria moderna, o diagnóstico é normativo e se pauta em uma generalização que parte mais da fisiologia propriamente dita (das disfunções neuronais), do que do pathos que o sujeito carrega. Por causa disso, muito da clínica psiquiátrica se perde por nem sempre escutar aquilo que o sujeito tem a dizer.

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Trata-se de um diagnóstico que tende a fechar possibilidades ao sujeito, colocando-o em um conjunto de classe, apenas generalizando-o a partir do que é manifestamente visível, em vez de singularizá-lo. O DSM eliminou as psicopatologias a favor de uma linguagem universal, que não suporta diferenças e que mais facilmente pode captar possíveis consumidores. O DSM é um manual estritamente diagnóstico, mas não de psiquiatria, como salienta Quinet (2006): Temos que recordar que o DSM e o CID são manuais diagnósticos e não de psiquiatria. Como dizia René Olivier-Martin, referindo-se ao DSM-III, “observemos que de modo algum é um manual de psiquiatria, que só pretende ser manual de auxílio para o diagnóstico, útil ao prático em suas orientações terapêuticas, para avaliar comparativamente a eficácia das terapêuticas e fazer uma coletânea estatística” (QUINET, 2006, p. 12). Em concordância com Quinet, Miller e Milner (2006) assinalam que a atitude ateórica e utilitarista dos manuais diagnósticos faz semblante de ser científico, mas que, na verdade, estruturam seu discurso um uma pseudociência, mascarada por dados estatísticos. Ser científico significa ser eficaz, resolver problemas o mais rápido possível (afinal, tempo é dinheiro!). É nesse lema que o DSM, no compasso da Classificação Internacional de Doenças (a CID) se sustenta. Por este viés, o discurso da ciência deve ser distinguido de uma finalidade cientificista. Como falamos ainda há pouco, falar de discurso da ciência na época da psiquiatria clássica tem todo o fundamento. Agora, falamos de uma finalidade cientificista, de uma ideologia do capital que agencia diagnósticos e intensifica o caráter operacional dos manuais que pretendem ser psiquiátricos. É justamente nesta ideologia científica de estrutura que pretende totalitária e sem furos que o discurso capitalista se apropria para angariar mais sujeitos para o mercado, ofertando cada vez mais objetos (gadgets) ilusoriamente capazes de dar conta plenamente do que é irredutível do sujeito: a pulsão. Nesta direção, ofertar diagnósticos, incitar que é sempre necessário gozar mais e mais, é uma tarefa a que o discurso capitalista se propõe, objetivando uma alienação progressiva do sujeito ao ponto de ele não mais se perguntar e se questionar sobre o seu mal-estar. É dessa visada totalitária que o sujeito fica, muitas vezes, fechado a um discurso que vem do Outro do social. Separar-se dos significantes universais advindos do campo do Outro pode ser um dos efeitos provocados pelo discurso do analista que, desde sempre, parte do pressuposto de uma impossibilidade da relação sexual, de que nem tudo é possível, mas que nem por isso o sujeito estará fadado à infelicidade profunda. Sobre o discurso capitalista, pontua Pacheco Filho (2015):

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No avesso do discurso do analista, orientado pela experiência do impossível (experiência do inconsciente e do núcleo do real), nosso sujeito mergulhado no discurso capitalista é aquele que nada quer saber da experiência do impossível. Com seu desejo governado-ordenado-causado pelos objetos/ mercadorias – pelas latusas cuja construção é viabilizada pela ciência –, ele é aquele para quem não existe nem real nem o inconsciente; aquele que ‘não quer saber disso’; aquele que constrói ao redor disso a barreira de sua paixão da ignorância: ‘um potente Napoleão’ que tapa seus ouvidos e fecha os olhos (PACHECO FILHO, 2015, p. 37). De fato, o discurso capitalista se aproveita da paixão da ignorância do sujeito de “não querer saber nada disso” para ofertar objetos-mercadorias, deixando-o cada vez mais distante de se deparar com um saber furado do Outro, mas que, mesmo assim, diz mais sobre ele do que um diagnóstico vindo do discurso pretensamente médico e pseudocientífico. Melissa, quando pôde criar um enigma acerca do significante que até então a tinha engessado em um determinado lugar, foi capaz de construir um saber sobre uma certa modalidade de gozo sua, particular, ancorada em sua história de vida, pertencente a ela e a mais ninguém.

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resumo: Propõe-se discutir, a partir de um breve relato clínico, as implicações do discurso capitalista na clínica psicanalítica, tomando como referência o fenômeno da proliferação de sujeitos diagnosticados com Transtorno Bipolar, de acordo com os critérios apontados pelo Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM), desenvolvido pela Associação de Psiquiatria Americana (APA). Reflete-se sobre a expansão diagnóstica da referida categoria e seus efeitos tanto no campo do social, quanto no que concerne ao sujeito do desejo visado pela psicanálise, o qual, como veremos, mantém intrínseca relação com este campo.

palavras-chave: Transtorno bipolar; discurso capitalista; clínica psicanalítica; sujeito do desejo.

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abstract: It is proposed to discuss, from a brief clinical report, the implications of capitalist discourse in psychoanalytical practice, with reference to the proliferation phenomenon patients diagnosed with Bipolar Disorder, according to the criteria set forth by the Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM), developed by the American Psychiatric Association (APA). It is posed a reflection upon the diagnostic expansion of the referred category and its effects both in the social field and in what concerns the subject of desire targeted by psychoanalysis, which, as we shall see, keeps and intrinsic relationship with such a field.

keywords: Bipolar disorder; capitalist discourse; psychoanalytical clinic; subject of desire.

recebido: 23/08/2016

aprovado: 12/09/2016

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Dos confins de uma análise Vera Iaconelli A primeira formulação de meu sofrimento me levou a iniciar uma “análise” que se mostrou desastrosa. Foi aos 17 anos, três anos após a morte trágica de meu irmão mais velho, peça-chave em minha história. Levaria mais alguns anos, de fato dezesseis, para que passasse de uma sequência de psicoterapias (junguiana, psicodramática, reichiana...) para uma análise, passagem que se deu em virtude do nascimento da minha primeira filha. A partir daí, já com 33 anos, seguiram-se sete anos de análise com um excelente profissional winnicottiano. Nestas quase duas décadas e meia, entre psicoterapia e psicanálise, eu contava com uma coisa: que a análise fosse interminável, que eu seguiria dizendo e dizendo, sobre esta morte, sobre meu pai e mais “algumas coisinhas sobre minha mãe”, homônima a mim, Vera Iaconelli como eu. Dizendo de forma cada vez mais elaborada, mais acurada, mais inteligente e, claro, sofrida. O fim da análise não era uma questão assumida como tal, embora a questão dos fins, tanto o fim dado pela morte, quanto a finalidade de uma análise, sempre estivessem lá. Passei por um divórcio muito sofrido, minha segunda filha tinha apenas nove meses. Considero esse um dos efeitos da minha neurose. E seguia dizendo em análise de forma cada vez mais elaborada, mais acurada, mais inteligente e sofrida. Ainda levaria muitos anos, para eu ler em Televisão: “O bom senso representa a sugestão, a comédia, o riso. Quer dizer que isto basta, além do fato de serem pouco compatíveis? É aí que a psicoterapia, qualquer que seja, estanca, não que ela não faça algum bem, mas ela conduz ao pior” (LACAN, 1973/1993, p. 21). No entanto, devo ter melhorado, pois “apenas” um quarto de século depois, começo a me cansar de dizer inúmeras versões sobre os ocorridos de minha vida. Duas vezes por semana, 50 minutos, entra ano, sai ano, um dia escuto de meu analista: “Winnicott levava um baile das histéricas”. Acho que ele também estava cansado de nossa patinação. Eu disse a vocês que ele é um excelente analista e não estava sendo irônica. Tendo escutado a fala de meu analista, formulo outra aposta analítica: passar da escola inglesa para a lacaniana. Medo e, claro, frisson inconfesso de imaginar “o corte” da sessão, de um fim inesperado. Uma grande amiga me indica uma analista francesa. Duplo frisson, o estrangeiro. O Fórum, o movimento lacaniano, o “quem é quem” institucional não faziam parte da minha vida. Tripla estrangeirice. Detalhe: meu nome em francês soa Verra. Recuperarei este “detalhe” depois. Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 33 p.255-260 novembro 2016

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As entrevistas em análise lacaniana dão uma amostra nada grátis do que se trata esta opção. O dizer sem fim, ou seja, sem se escutar, começa a ser desmascarado logo de cara. Que se diga não fica esquecido por trás do que se diz no que se ouve, pelo menos não pelo analista. Então, vamos a uma versão de minha história: Meu pai era alcoolista e um tanto louco, e minha mãe submetida a ele. Eram apaixonados, humildes, mas com o tempo construíram um grande patrimônio. Depois de alguns anos de casados e com três filhos, tentando recuperar um casamento já abalado, tiveram mais três filhos temporãos, seis no total. Claro que esses nascimentos não ajudaram a questão do alcoolismo, da violência, e a família dostoievskiana mostrava todo seu espectro de horrores. Fui a quinta filha deste casal sofrido e desajustado. Mas havia meu irmão mais velho, dócil e presente. Nós o adorávamos. Quando eu tinha 13 anos, ele sofreu um infarto e morreu, tendo apenas 24 anos na ocasião. Minha mãe e meu pai colapsaram, perderam os bens, fomos morar de favor no apartamento desocupado de uma tia no centro de São Paulo. A ruptura me emancipou precocemente. Aos 15 anos comecei a trabalhar, aos 17 podia pagar minha “análise”. A interminável. A família chafurdava num trabalho de luto impossível. A tragédia contingente veio se alocar num drama familiar que a precedia e que transformava o luto em melancolia. A busca por tratamento vinha da esperança de dizer para sempre sobre estes irmãos, sobre este pai e “algumas coisinhas sobre minha mãe”. Mas havia a possibilidade de perder a esperança. Possibilidade sem a qual não estaria aqui hoje. Há uma decepção necessária, há uma desesperança necessária, pois não há o que esperar. Desta busca que se inicia num luto impossível emergem alguns pontos centrais de giro nesta análise, que não haviam sido possíveis até então. Elenco alguns, entre outros, por entender que foram momentos cruciais. Vamos a eles: A primeira memória que conta de mim é referida ao reconhecimento da existência de minha irmã, dezoito meses mais nova, como rival absoluto. Trata-se de uma cena construída em análise, na qual dou-me conta de que ela já sabia escrever o próprio nome, antes de sermos formalmente alfabetizadas. O mesmo momento é de reconhecimento de que antes disso, eu habitava a mãe-nuvem. Uma entidade com quem compartilhava algo de não existir completamente, ainda, de completadamente não existir. Desta luta de vida e morte, enquanto alienação e separação, formularam-se como sintomas: uma dificuldade excruciante de aprender a ler, a impossibilidade de decorar palavras e usá-las corretamente, a convicção na minha absoluta falta de inteligência, momentos de ausência, isolamento, medo constante, crises de angústia. Por sorte, não eram os tempos dos diagnósticos fáceis de dislexia ou déficit de atenção. Porém, tampouco eram os da escuta do sintoma como forma de subjetivação.

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Supus dar conta do desejo de meu pai e de meu tio, irmãos rivais, ora errando, ora aprendendo. Demorou para que me desse conta de que supunha, acima de tudo, saber o desejo do Outro. E ainda, de supor o Outro. Enquanto pulava para alcançar a linha do olhar destes homens com meus feitos e defeitos, não admitia que olhavam alhures. Bela decepção, quando pude reconhecê-la. O Outro é enigma, pois não existe, e não poderia, portanto, saber de si mesmo. Tampouco minhas ações poderiam dar conta do que emerge do inconsciente, trabalhador incansável em sua produção de efeitos. Não acredito na minha histérica, é uma frase que ouvi sair da minha boca em análise, fruto do duro reconhecimento de que defendia sempre uma versão melhor, em busca d“A” versão, que explicaria a morte, o sexo, a mãe, a mulher. A operação fundamental que se dava nestas sessões era o corte preciso, palavra que em português conjuga as ideias de acurado e necessário. Não há lembrança de interpretações perspicazes ou retumbantes da analista, apenas um ato que apontava para o dizer, para a repetição. Que se sustente, diante de tamanho sofrimento, o vazio de sentido que a profusão de sentidos das versões busca cerzir; que se sustente em ato, desde o primeiro momento que inaugura o dispositivo analítico (e certamente desde antes, posto que advém do desejo de analista que o antecede) é crucial. Sustentação sem garantias, que implica risco considerável, mas sem o qual a espera(nça) desnecessária não cede. É neste giro ético que entendo que minha análise saiu do eixo infernal da demanda. Demanda de cerzido, que significa “disfarçar o tecido puído”, cujo ideal é o cerzido invisível, aquele que não deixaria rastro do furo. Se o sentido da volta no Grafo do Desejo/Sujeito já está dado de saída, só cabe ao analista propor a mudança de direção. Apontar para o mais além do sentido enfrentando os confins da análise. Lugar de confinamento e borda que poderá ser preterido em direção ao que aponta para o real. D“A” versão passei à Aversão, por meio da subversão e por fim, passei ao reconhecimento das diversas versões. Diversões não reconhecidas como tais em 25 anos de psicoterapia. Próximo ao fim, uma urgência não me permitia ir às sessões nos mesmos horários pré-estabelecidos. Algo se impunha e eu aparecia no consultório de minha analista a qualquer momento. Não esperava ouvir nada, mas ainda precisava testemunhar o que acontecia. Um dia, não mais precisei voltar. Saí avisando que não viria mais e dizendo thank you very much. Depois ri, por encerrar anos de análise com uma frase tão fora de contexto. Obrigada ou merci beaucoup não seria mais apropriado? Mas talvez o very me concernisse. Chego em casa e me dou conta de que deixei de pagar uma parte do dinheiro da última sessão. Nada mal para minha obsessividade. Constrangimento e riso. No fim, o último ato foi falho, como sempre o foi. Voltei para pagar o resto e compartilhar que no fim é isso que fica, ou melhor, é o Isso. Não me dei ao trabalho de interpretar este ato falho, pois se

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tratava justamente de assumir o que estava para além da interpretação de mais um ato falho, ou seja, mais de assumir o que advinha do ato analítico, como desejo de analista. Não nos curamos de nosso inconsciente, com sorte, o desfrutamos.

No só depois Depois da queda da transferência e do fim da análise, passei por um período de grande entusiasmo, mas que desembocou num vazio tremendo. Descubro inesperadamente que não poderia me valer do entusiasmo do fim da análise, nem do fato de já trabalhar como analista, não de forma inercial. Afinal, se escolho, não poderia escolher outras coisas na minha vida, em outro lugar, com outras relações? Mandar minhas filhas viverem com o pai, morar em outro país, trabalhar com outra coisa e ter outro marido? Ou ainda, nenhum lugar, nenhum trabalho, nenhuma relação. Poderia? Em nenhum momento desse período desejei voltar para análise, não havia por que voltar e ainda por cima havia uma estranha convicção na minha desolação. Continuei pela via dos sonhos. Gravava-os de madrugada e os escutava de manhã. Aos poucos fui escolhendo cada coisa de novo. De novo, ou seja, pela primeira vez. Fui descobrindo um entusiasmo diferente, sem garantias. Mesmo as que seriam supostamente dadas pelo fim da análise. Decepção necessária, não sem luto. Na minha clínica houve um ponto de virada. Ainda temia assumir todas as consequências de uma mudança de escuta, que evita entender e que aponta para o real. Mas, num dado momento, dei-me conta que só poderia escutar meus pacientes se pudesse perdê-los, todos, sem exceção, pois esta é a condição. Então, que fosse. Porque a concessão em nome do “bem” aponta para o pior. O resultado de assumir este lugar, sustentando o discurso analítico foi que os pacientes passaram a vir mais vezes, e vieram muito mais pacientes. E o meu desejo de escutar para além do entendimento subverteu o caráter aversivo da minha clínica, ou seja, de versões infindáveis. Hoje há muito mais diversão, ou seja, mudança de direção, ainda que não sem sofrimento. Pois é o melhor que podemos oferecer. E esta é a aposta que me anima. Entre os sonhos que tive, há um que me trouxe aqui hoje. Na véspera de tê-lo, conversava com uma colega durante uma aula do Fórum e ela me perguntava por que eu não era membro, ao que respondi que começara a estudar Lacan havia bem pouco tempo e que me dedicava intensamente a outra instituição, não achando possível nesse momento contribuir como membro. Naquela noite, tive o sonho a seguir: Saio de uma aula do Fórum conversando com minha analista e buscamos uma palavra para explicar algo. Ela me diz uma palavra em alemão e eu respondo que temos uma palavra para isto em português: ERRÁTICO. Ela repete a palavra em alemão e eu insisto, im-paciente, pois é, RANDÔMICO.

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Acordo curiosa e me ponho a escrever estas palavras: ERRÁTICO à ERRAICO à ERRA IACO à VERA IACO. ERRA meu sintoma desde a infância. VERA IACO meu apelido para os amigos, que me diferencia de minha mãe que também se chama Vera Iaconelli. VERRA meu nome pronunciado com o sotaque da minha analista. VERA ERRA: motivo de vergonha fora de casa, mas de graça para meu pai, que ria de meus erros, ainda que sobre o preço de negar meu sofrimento na vida escolar e, posteriormente, na vida acadêmica. TIO: irmão de meu pai que me incentivava fortemente a estudar e com quem meu pai tinha brigas homéricas. Ao pensar neste sonho na ocasião, imediatamente lembro, com forte emoção, que Lacan me capturou com sua ênfase, recuperada de Freud, na relação entre ERRO e VERDADE, esta última palavra sendo o sentido do nome VERA. Daí depreendeu-se o reconhecimento do desejo de analista. De não recuar diante do erro, mas de escutá-lo, de alçá-lo à dignidade de ato. Desejo que renovo depois do período inercial do fim da análise e que o sonho vem nomear. RANDÔMICO à de onde se pode extrair: o nome de minha analista DOMINIC, de meu primeiro irmão morto RICARDO, e de meu segundo irmão morto NIC (começo esta última análise, me referindo a este segundo luto impossível, de um irmão que morre em decorrência de uma cirurgia com 45 anos). Em uma palavra, RANDÔMICO, o “arco” que fecha os lutos, incluindo o do final de análise. Randômico também tem o sentido de errático em português. A morte é inescapável e aleatória. Não há versão possível da morte. A morte é erro verdadeiro. Recolhi deste sonho: o nome com o qual fiz a marca da minha identificação sinthomática; o destino dado ao desejo de analista como permanente busca por escutar o erro/verdade do inconsciente e o investimento em novos laços, só possível a partir da realização dos lutos. Recolhi deste sonho também a aposta de que valia a pena tentar transmitir esta experiência. Não o fiz sozinha, uma vez que o passe, como diz Glaucia Nagem em seu prelúdio a este encontro, é telefone sem fio, jogo infantil de soprar no ouvido do outro uma mensagem e descobrir o que chega no final. Neste final, não foi sem surpresa que me dei conta de que a escola transmite algo ao A.E., quando de sua nomeação. Algo muito desafiador e que causa. Este sonho também me colocou diante do desejo de testemunho do passe, ou seja, ao laço a que me disponho fazer no espaço da Escola e que responde ao desejo de contribuir com a transmissão. Quanto a isso, veremos.

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referência bibliográfica LACAN, J. (1973). Televisão, Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1993.

resumo: O texto trata do percurso de uma análise até o momento de sua conclusão. Considera o fato de que uma decepção é necessária no processo que leva dos infindáveis ditos à sustentação de um dizer como ato, incontornável, condição do falasser. Do acontecimento contingencial de uma análise, enquanto atravessamento de seu confim em direção ao fim, emerge um outro ato que aponta para a transmissão e para o laço. Desta aposta surge o desejo de testemunhar o passe perante a Escola. Aposta cujos efeitos, como de todo ato, só se fará confirmar no só depois.

palavras-chave: Final de análise; passe; analista de escola; nomeação.

abstract: The text explores the course of an analysis up to its conclusion. It considers the fact that a disappointment is required in the process, which takes from the endless sayings to the support of a “say” as an act, uncontrolled, condition of the parlêtre. From the contingent event of an analysis, while crossing its confine toward the end, another act emerges and it points to the transmission and to the bond. From this bet comes the desire to witness the pass before the School. A bet whose effects, as any act, will be confirmed only in the afterwards.

keywords: Final of analysis; pass; school analyst; appointment.

recebido: 25/08/2016

aprovado: 12/09/2016

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Ensino e saber Dominique Fingermann É, no entanto, indispensável que o analista seja, no mínimo, dois: o analista para ter efeitos e o analista que teoriza esses efeitos. (LACAN, Jacques. Le séminaire, livre 22: RSI, inédito, Aula de 10/12/1974).

Tanto Freud quanto Lacan, embora com metodologias e estilos bem diferentes, mostraram entusiasmo e rigor incansáveis para sustentar com suas elaborações a questão que Lacan, em 1957, formula tão simplesmente: “O que a psicanálise nos ensina, como ensiná-lo?” (LACAN, 1957a/1998, pp. 438-439). Devemos às suas insistências e ousadias o que chamamos habitualmente de “a obra freudiana” e “o ensino lacaniano”. Cada um, ao longo de seu percurso teimoso, contando com inúmeras parcerias e driblando seus percalços e “acidentes” das épocas que atravessaram, perseguiu a indagação: “qual é… esse algo que a psicanálise nos ensina ser-lhe próprio, ou o mais próprio, o verdadeiramente próprio, verdadeiramente o máximo, o mais verdadeiramente?” (Ibid., p. 441). Alguns dizem: Freud explica, Lacan complica. Freud inaugurou não somente o campo de experiência inédito dessa Outra Cena, o inconsciente, até então desconhecido, mas também a prática do conceito que possibilita, até hoje, rastrear, organizar, balizar o campo da experiência, se for constantemente reavaliado à medida da experiência da clínica. Impossível esquecermos a formidável aula de epistemologia freudiana, à altura do rigor e do estilo da psicanálise, que abre o seu ensaio metapsicológico sobre o conceito de pulsão: Tais ideias, que depois se tornarão os conceitos básicos da ciência, são ainda mais indispensáveis à medida que o material se torna mais elaborado. Elas são da natureza das convenções, embora tudo dependa de não serem arbitrariamente escolhidas, mas determinadas por terem relações significativas com o material empírico, relações que parecemos sentir antes de podermos reconhecê-las e determiná-las claramente. Só depois de uma investigação mais completa do campo de observação, somos capazes de formular seus conceitos científicos básicos com exatidão progressivamente maior, modificando-os de forma a se tornarem úteis e coerentes numa vasta área (FREUD, 1915/s.d.).

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Em continuidade com o “conceito” freudiano e as construções que ele possibilita, propomos “a prática da letra” (LACAN, 1965/2003, p. 200) que Lacan persegue ao longo de seu ensino, de acordo com as diversas interpretações/leituras da letra que incidem sobre e inflexionam sua abordagem “do texto psicanalítico” e o que se pode transmitir a partir daí. De fato, “A instância da letra no inconsciente e a razão desde Freud” (LACAN, 1957b/1998) explicita, a partir dos recursos da linguística, uma continuidade com relação aos conceitos freudianos, quando desdobra, como metáfora e metonímia, a instância da letra freudiana que A interpretação dos sonhos explicava como condensação e deslocamento das representações inconscientes. É, no entanto, uma descontinuidade em relação à sua releitura de Freud que o ensino lacaniano propõe progressivamente ao introduzir, para sua leitura do inconsciente, uma prática da letra segundo os dois eixos que seguirão até o final de seu ensino, a formalização e a via da ressonância poética: o matemático e o maternal (LACAN, 197172/2001, Aula de 04/05/1972), o matema e o poema. A persistência e a coragem, tanto de Freud quanto de Lacan, não lhes impediram de apreender a dificuldade, para não dizer a aporia, que o ensino da psicanálise encontra forçosamente. Para Freud, a transmissão da experiência combinava dois “impossíveis”: educar e psicanalisar. Por outro lado, em 1926, em “A questão da análise leiga” ele desdobra, com bastante humor e lucidez, o paradoxo da transmissão: como alcançar com palavras alguém que não passou pela experiência? Sei que não posso convencê-lo. Isto está além de qualquer possibilidade e, por esse motivo, além de minha finalidade. Quando ministramos aos nossos alunos instrução teórica em psicanálise, podemos ver quão pouca impressão lhes estamos causando, para começar. Eles absorvem as teorias da análise tão friamente quanto outras abstrações com as quais são alimentados. Poucos deles talvez desejam ficar convencidos, mas não há qualquer vestígio de que estejam. Mas também exigimos que todo aquele que quiser praticar a análise em outras pessoas se submeta ele próprio a uma análise. É somente no curso dessa ‘autoanálise’ (como é confusamente denominada), quando eles realmente têm a experiência de que sua própria pessoa é afetada – ou antes, sua própria mente – pelos processos afirmados pela análise, que adquirem as convicções pelas quais são ulteriormente orientados como analistas. Como então poderia esperar convencê-lo, a Pessoa Imparcial, da correção das nossas teorias, quando só posso pôr diante do senhor um relato abreviado e, portanto, ininteligível das mesmas, sem confirmá-las pelas próprias experiências do senhor? (FREUD, 1926/sd).

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Ensino e saber

Lacan menciona igualmente esse impasse, embora seu ensino, em um primeiro tempo, tentará forçar esse obstáculo – apostando nos efeitos de formação como “indução mesma que meu ensino visa” (LACAN, 1964/2003), até que conclui e constata o fracasso do que chamou de sua “missão”, e finalmente extrai da letra outras vias de transmissão do saber inconsciente –, concluindo, nos anos 1970, com um antagonismo entre o ensino e o saber. Podemos ler nessa provocação do seminário sobre O ato psicanalítico uma posição sensivelmente diferente da observação de Freud em “A questão da análise leiga”: com efeito, Lacan, depois de ter escrito na lousa a frase “l’homme est un animal, à moins qu’il ne se n’homme”, (LACAN, 1967-68/inédito, Aula de 20/03/1968) adverte, de uma certa forma, o público sobre esse antagonismo, dizendo que provavelmente eles não vão compreender nada; no entanto, o jogo que evidencia o equívoco da linguagem vai produzir suas ressonâncias, pelo deslize das palavras, pelo devaneio: “le côté rêverie” que fisga mais além da compreensão e do pensar. Essa pequena fórmula não tem a pretensão de ser um pensamento. Pode ser que, apesar de tudo, sirva de ponto de engate, de pivô para um certo número de vocês que não compreenderão nada, por exemplo, do que direi hoje, não é impensável. Não compreenderão nada, o que, mesmo assim, não lhes impedirá de sonhar com outra coisa [...]. O lado de devaneio daquilo que sempre se produz em todo tipo de enunciado com pretensão ‘pensatória’, ou que se acredita como tal, deve ser sempre levado em conta, e, por que não, dar-lhe seu pequeno ponto de engate? (Ibid.). No intuito de esclarecer algumas mudanças da posição de Lacan em relação ao ensino da psicanálise, vamos agora desdobrar três aspectos da questão: – A posição ética do ensinante; – A sensível diferença entre conceito, formalização e saber; – O antagonimo entre ensino e saber.

Ensinar: uma posição ética Inúmeras vezes, Lacan menciona o início da sua “missão” com relação ao ensino da psicanálise que ele mesmo inaugura desde 1951. A situação da psicanálise na França no anos 1950 (no pós-guerra e depois da morte de Freud), a falta de orientação, de rigor, as derivas e as leituras equivocadas da obra freudiana engajaram essa guerra contra o obscurantismo que ele travou incessantemente durante trinta anos.

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O que podemos extrair de seu percurso que sirva para nossa orientação da prática da psicanálise? Antes de tudo, o fato de que o ensino da psicanálise procede de uma “posição”, posicionamento e responsabilidade – ética, portanto. Recorto três pistas que até hoje participam da implicação e do engajamento no ensino da psicanálise: – a responsabilidade em relação à psicanálise; – a responsabilidade em relação ao psicanalista; – e, consequentemente, uma necessidade do analista de se pôr à prova na provação insistente da transmissão do intransmissível em que consiste o desafio ético próprio à psicanálise na sua relação com o Real.

A responsabilidade em relação à psicanálise No início, parece que o objetivo de Lacan (“mon dessein”) foi a urgência de uma retificação “no campo aberto por Freud, restaurar a sega cortante da sua verdade” (LACAN, 1964/2003, p. 235) para que o ensino da psicanálise tivesse efeito de formação para com os futuros operadores, e que sua extensão espaço-temporal prolongasse a manutenção de sua via original. [...] Fui chamado, pelas condições difíceis com que se deparou o desenvolvimento dessa prática na França, a assumir nela uma posição que é uma posição de ensino (LACAN, 1966a/2003, p. 226). Em seus Escritos e seminários dos anos 1950, a empreitada de leitura dos textos freudianos e o retorno a Freud estão constantemente entremeados com longos desdobramentos criticando os mal-entendidos e contrassensos que circulam na literatura psicanalítica e nos congressos de então. Sessenta anos depois, podemos indagar se essas polêmicas interessam ainda para nossa formação analítica e se fazem parte do corpus do ensino de Lacan, da mesma forma que a construção dos tão valiosos operadores conceituais da clínica. Todavia, essa “crítica assídua” (LACAN, 1964/2003, p. 235) interessa mesmo e tem um efeito didático inegável, na medida em que oferece o exemplo de um analista extremamente atento e curioso das elaborações de seus contemporâneos, extraindo dos desvios expostos, indicações precisas para a manutenção do procedimento freudiano e do seu tratamento tão preciso das consequências do inconsciente e das suas “formações”. Além disso, muitas dessas críticas e observações estão, infelizmente, bem atuais, e gostaríamos de ter a mesma ousadia que Lacan para colocar nossas diferenças à altura de um debate conceitual.

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A responsabilidade em relação ao psicanalista Logo mais, no entanto, Lacan apreendeu que a questão dos desvios e mal-entendidos não era somente uma questão de explicações claras e precisas, mas que o que estava em jogo era a formação analítica do analista enquanto agente da operação. Nada surpreendente, já que ele retoma novamente a insistência e a exigência freudianas a respeito da análise pessoal. O seu ensino, então, comportou uma meta explícita de ter efeitos de formação, podendo induzir a uma mudança de posição em quem estava ouvindo com incidências para a prática da psicanálise, articulando, desde então, a estrutura do sujeito com a lógica da cura, e abrindo o capítulo da psicanálise pura e mais além da articulação da intensão (o mais próprio da psicanálise) com a sua extensão, que o dispositivo do passe almejava “resolver”. Vejamos como ele expõe esse objetivo explícito de seu ensino: [...] Foi preciso que a insuficiência do ensino psicanalítico eclodisse na luz para que nos empenhássemos na tarefa de exercê-lo [...]. O que quer dizer isso, senão que nunca estivemos interessados senão na formação de sujeitos capazes de entrar numa certa experiência que aprendemos a centralizar onde ela existe? Onde ela existe – como constituída pela verdadeira estrutura do sujeito, que, como tal, não é inteira, mas dividida, deixando cair um resíduo irredutível, cuja análise lógica está em andamento (LACAN, 1966b/2003, p. 222). Sabemos que este vetor do seu ensino não passou desapercebido, foi interpretado como abuso (passar recados “selvagens” para seus analisantes durante seus seminários!) e foi incluído no extenso processo que resultou na sua exclusão da posição de didata e, portanto, assinou a sua “excomunhão”. Sabemos igualmente que o impacto e a ressonância das palavras entre fala-seres é singular, incalculável e contingente, é feito de transferência e – muito além de seus efeitos simbólicos e imaginários – de sua repercussão do real em jogo e do mistério do corpo falante que ela encaminha. Sabemos, por experiência, como a leitura dos textos de Freud e Lacan impactou e orientou nossa relação com a psicanálise. Necessidade do analista de se pôr à prova na provação insistente da transmissão do intransmissível, em que consiste o desafio ético próprio à psicanálise na sua relação com o Real

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Muito cedo, Lacan precisa que a prática do ensino, “a práxis da teoria”, tem um valor ético inegável: “a ética da psicanálise que é a práxis de sua teoria” (LACAN, 1964/2003, p. 238). Os trinta anos de seu ensino assíduo só confirmarão e precisarão essa orientação. Se no início a “missão” parecia se endereçar aos outros psicanalistas, o tempo, a experiência e a sensação de um fracasso em relação à missão fazem com que ele insista nos últimos anos em precisar que o ensino tem efeito de formação para ele próprio. É por isso que Lacan aponta insistentemente a posição de ensinante como uma posição analisante: [...] O que realmente me cabe acentuar é que, ao se oferecer ao ensino, o discurso psicanalítico leva o psicanalista à posição do psicanalisante, isto é, não produzir nada que se possa dominar, malgrado a aparência, a não ser a título de sintoma (LACAN, 1970/2003, p. 310). No Seminário 22: RSI, ele não hesita em aproximar sua posição de ensinante à supervisão: […] Que eu testemunho de uma experiência que especifiquei como sendo analítica e minha, é suposto como verídico. Ver até onde essa experiência me conduz pelo seu enunciado, tem valor de supervisão/controle (sei as palavras que utilizo) (LACAN, 1974-75/ inédito, Anexo I). O analista, para funcionar enquanto tal, precisa ser pelo menos dois: um atento e firme na condução do tratamento, e o outro para teorizar essa condução e esse tratamento. A proposta do dispositivo do cartel leva em conta essa função didática da sua “práxis da teoria” para o próprio analista. A “Alocução sobre o ensino” precisa, mais uma vez, essa evidência do impacto do ensino sobre o ensinante que se dispõe a ser analisante da psicanálise: “Só posso ser ensinado à medida de meu saber, e ensinante, já faz um tempão que todos sabem que isso é para eu me instruir” (LACAN, 1970/2003, p. 304).

O que se ensina? Conceito, formalização, matema, saber CONCEITO O ponto de partida do ensino de Lacan foram os textos freudianos. Sua empreitada de leitura e retorno a Freud consistiu essencialmente em extrair desse testemunho imenso, de uma prática exigente na sua elucidação e explicitação constante, os conceitos que daí se distinguiram como fundamentais. 266

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Ensino e saber

A estrutura da análise pode ser “formalizada de maneira inteiramente acessível à comunidade científica, por pouco que se recorra a Freud, que propriamente a constituiu” (LACAN, 1957a/1998, p. 439). Com efeito, será na precisão e no rigor dos conceitos tão cuidadosamente lapidados por Freud que se reencontrará a direção da cura e os princípios de seu poder para se contrapor à desorientação geral dos anos 1950: “Não há limite para o desgaste da técnica por sua desconceituação” (LACAN, 1958/1998, p. 618). Lembramos que ao se separar da Associação Internacional de Psicanálise (IPA), ele prossegue no seu ensino no mesmo ano com um seminário intitulado Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, fazendo um recorte pessoal do arcabouço conceitual freudiano (o inconsciente, a repetição, a pulsão e a transferência), que marca não somente a ruptura com a IPA, como também, de certa forma, anuncia um caminho diferente daquele do suposto mero “retorno a Freud”. O seminário de 1964 conclui provisoriamente os anos de garimpagem e formalização que fizeram, até o final, Lacan declarar “sou freudiano”, pois ele se dedicou a fazer dos termos com os quais Freud definiu a experiência conceitos e não preceitos. Com os pós-freudianos em primeiro lugar, e depois com o próprio Freud, a formalização lacaniana se esforçou para elucidar “a flagrante incerteza da leitura dos grandes conceitos freudianos”, como ele diz em 1957. Desde os primeiros escritos e seminários, e de acordo com seus estudos de matemática e o rigor que ele almeja, Lacan nomeia esse esforço e orientação como “formalização”. Recorrendo aos avanços da linguística para este primeiro lance, ele não hesita em reconhecer em Freud um mestre nessa tentativa, considerando que a Traumdeutung antecipava-se em muito às “formalizações da linguística” (LACAN, 1957b/1998, p. 516). Da formalização ao matema Preocupado inicialmente em “assegurar à nossa disciplina seu lugar nas ciências” (LACAN, 1953/1998, p. 285), Lacan localiza o problema como “problema de formalização, na verdade muito mal introduzido” (Ibid.), e não hesita em se apropriar do exemplo da matemática, com sua extensão lógica e topológica como anuncia no texto “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”: Vê-se por esse exemplo como a formalização matemática que inspirou a lógica de Boole, ou a teoria dos conjuntos, pode trazer à ciência da ação humana a estrutura do tempo intersubjetivo da qual a conjectura psicanalítica necessita para se garantir em seu rigor (Ibid., p. 288).

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Lacan nunca desistirá do esforço, sempre renovado, para fundar a prática da psicanálise no rigor da matemática: Ela só dará fundamentos científicos à sua teoria e à sua técnica ao formalizar adequadamente as dimensões essenciais de sua experiência, que são, juntamente com a teoria histórica do símbolo, a lógica intersubjetiva e a temporalidade do sujeito (Ibid., p. 290). No entanto, por volta dos anos 1970, Lacan realiza um salto notável em relação à sua referência à formalização: esta não é mais descritiva de um recurso, a referência do que se transmite na psicanálise, no que diz respeito à estrutura da linguagem, é a lógica formal: “A lógica matemática não é, como só nos pode ser imputado de má-fé, uma oportunidade de rejuvenescer um sujeito cunhado por nós” (LACAN, 1969/2003, p. 373). O matema configura, então, o que se ensina, “o ensinável”: o que pode se ensinar daquilo que interessa precisamente Lacan é sua orientação ética da prática analítica pelo real. O matema é o único acesso para transmitir o que está fora do sentido, “ensinar” o impasse, o impossível, o real, sem recurso a qualquer experiência: “É nisso que os matemas com que se formula em impasses o matematizável, ele mesmo a ser definido como o que de real se ensina de real, são adequados para se coordenar com essa ausência tomada do real” (LACAN, 1972/2003, p. 480). O matema e o saber A invenção, elaboração do conceito de alíngua, em 1972 em O saber do psicanalista, modifica a concepção do saber inconsciente, modifica a lógica da cura e também a transmissão da experiência: o saber-alíngua não se transmite pela via do matema, mas sim pelo saber-fazer com alíngua – o poema. Lembramos aqui a apresentação do conceito de alíngua no Seminário 20: Mais, ainda: A linguagem, sem dúvida, é feita de alíngua. É uma elucubração de saber sobre alíngua. Mas o inconsciente é um saber, um saber-fazer com alíngua. E o que se sabe fazer com alíngua ultrapassa de muito o de que podemos dar conta a título de linguagem. Alíngua nos afeta primeiro por tudo que ela comporta como efeitos que são afetos. Se se pode dizer que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, é no que os efeitos de alíngua, que já estão lá como saber, vão bem além de tudo o que o ser que fala é suscetível de enunciar (LACAN, 1972-73/1985, p. 190).

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Ensino e saber

Ensino e saber Há uma continuidade no longo percurso do ensino de Lacan, procedente de sua posição ética (não ceder na sua responsabilidade do dizer) e do rigor lógico que dela decorre. No entanto, podemos marcar três tempos na sua concepção do que é um ensino da psicanálise que “não a dissolve naquilo que ela propaga”, ou seja, que possibilita que novas gerações “reencontrem a mensagem da experiência freudiana e seu motor”. – o retorno a Freud; – o “nosso” ensino; – o fracasso do ensino incompatível com o saber. O retorno a Freud O ponto de partida foi o “retorno a Freud” e a leitura cuidadosa dos textos e dos conceitos que a obra freudiana legou. O formidável testemunho da descoberta do inconsciente e da invenção da psicanálise é lido, citado, rastreado e mapeado em torno de seus conceitos fundamentais no decorrer de uma apaixonante “prática do comentário” compartilhada pela geração que inaugurou, desde os anos 1950, o estilo próprio da “psicanálise francesa”. Embora os recortes, o mapeamento e a interpretação do legado freudiano marquem desde já o estilo próprio e a perspectiva de Lacan, este faz questão de demonstrar que a psicanálise que ele pratica e ensina é coerente com a letra freudiana e suas formalizações. O recado está dado: ser psicanalista, de acordo com a orientação e os conceitos próprios da sua invenção subversiva, só pode valer se for atravessado pelo estilo de cada um que adentra esta aventura: Qualquer retorno a Freud que dê ensejo a um ensino digno desse nome só se produzirá pela via mediante a qual a verdade mais oculta manifesta-se nas revoluções da cultura. Essa via é a única formação que podemos pretender transmitir àqueles que nos seguem. Ela se chama: um estilo (LACAN, 1957a/2003, p. 460).

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DOMINIQUE, Fingermann

O “nosso” ensino Rapidamente topamos nos Escritos e seminários com uma referência constante ao que aparece insistentemente designado como “meu ensino”, “nosso ensino”. Mais além da leitura e do comentário do texto freudiano, fica patente que o que está em jogo na construção desse arcabouço teórico fenomenal é a explicitação de um cuidado e uma relação ímpar com a clínica psicanalítica e as tentativas teimosas de abrir as vias possíveis de sua formalização. O que Lacan nomeia “nosso ensino” consiste em um caminho em espiral que se arrisca, ousa, lança mão de tantas referências surpreendentes e volta iterativamente sobre as mesmas questões estruturais e clínicas, com os mesmos termos, mas deslocando a cada vez um pouco a perspectiva, abrindo assim o horizonte e as vias de acesso ao real da clínica, “necessárias à inteligência do texto de nossa experiência”. Desvios, atalhos, piruetas, aforismos, demonstrações, lapidações, ingressos na literatura, filosofia, teologia, linguística, poesia, chinês, amplificações, reduções, matemática, construções, formalizações, neologismos: “nosso ensino” deposita conceitos, trilha e sedimenta campos e caminhos. Talvez, mais do que qualquer coisa, produz excepcionalmente a orientação e a intranquilidade juntamente imprescindíveis para suportar “o real em jogo na formação do analista” (LACAN, 1967/2003, p. 249). O fracasso do ensino: incompatível com o saber Sabemos que por volta dos anos 1970, Lacan passa a colocar o seu ensino de cabeça para baixo. Ele faz isso com os conceitos, as referências, reformulando a sua concepção do inconsciente com as devidas consequências para a direção da cura e a concepção do final de análise e, portanto, do passe e da formação do psicanalista. Na esteira dessa reviravolta, é também a sua concepção de ensino que está na berlinda. Desde 1967, com sua “Proposição sobre o psicanalista de Escola” e seu seminário contemporâneo sobre O ato do psicanalista, Lacan confessava o “fracasso” de seu ensino, embora tanto a “Proposição...” quanto a formalização do que vem a ser um “ato” subvertessem o impasse próprio à via do significante, em “passe”. Em 1970, por ocasião do encerramento de um congresso sobre o ensino, Lacan pronuncia a sua “Alocução sobre o ensino”. Esse texto eleva a questão para um nível além de simples lamento ou ressentimento, como salto condizente com suas reformulações conceituais. Lacan se mostra severo e radical: “há um antagonismo entre ensino e saber” (LACAN, 1970/2003, p. 308), e ele adverte mesmo que “nosso discurso não se sustentaria se o saber exigisse a intermediação do ensino” (Ibid.). 270

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Ensino e saber

O saber do inconsciente real, inconsciente sem sujeito, o saber d’alíngua que não se encadeia e não faz sentido, esse saber é antagônico, incompatível com o que passa no ensino, esse saber passa em ato, na “monstração” e não na demonstração. Quando lemos, na mesma época, que é na via do matema que consiste o que é propriamente “ensinável”, que a transmissão que possibilita é uma transmissão integral, podemos ficar perplexos com essa incoerência aparente. De fato, há duas vias de “acesso” ao real, próprio à estrutura, intangível, impossível, de alcançar: demonstrar o real na medida em que é o limite intangível das vias significantes, e isto é o que “ensina” a via do matema, e possibilitar, em ato, uma caixa de ressonância para o real que ex-siste. “A verdade pode não convencer, o saber passa em ato” (Ibid.), já dizia Lacan. “O que me salva do ensino é o ato” (Ibid., p. 309), precisa ele no final desta alocução. A prática do ensino de Freud e Lacan foi suficientemente subversiva para transmitir os eixos teóricos que asseguram a persistência da psicanálise no mundo de hoje e, sobretudo, a responsabilidade própria do analista por estar à altura do real, a responsabilidade de invenção para tangenciar suas bordas e a-bordar seus efeitos e outros afetos: “Mas tal direção só se manterá através de um ensino verdadeiro, isto é, que não pare de se submeter ao que se chama novação” (LACAN, 1955/1998, p. 437).

referências bibliográficas FREUD, S. (1915). “Os instintos e suas vicissitudes” In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, s/d (versão eletrônica), v. XIV.                    . (1926). “A questão da análise leiga” In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, s/d (versão eletrônica), v. XX. LACAN, J. (1953). “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.                    . (1955). “A coisa freudiana” In: Escritos. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.                    . (1957a). “A psicanálise e seu ensino” In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.                    . (1957b). “A instância da letra no inconsciente e a razão desde Freud” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.                    . (1958). “A direção da cura e os princípios de seu poder” In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

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. (1964). “Ato de fundação” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.                    . (1965). “Homenagem a Marguerite Duras” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.                    . (1966a). “Pequeno discurso no O.R.T.F.” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.                    . (1966b). “Apresentação das Memórias de um doente dos nervos” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.                    . (1967). “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.                    . (1967-68). Le séminaire, livre 15: L’acte psychanalytique, inédito (Aula de 20/03/1968).                    . (1969). “Resumo do seminário O ato psicanalítico” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.                    . (1970). “Alocução sobre o ensino” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.                    . (1971-72). Le séminaire Le savoir du psychanalyste. Paris: Seuil, 2001(Aula de 04/05/1972).                    . (1972). “O aturdito” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.                    . (1972-73). O seminário, livro 20: Mais ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, p. 190.                    . (1974-75). Le séminaire, livre 22: RSI. Paris, inédito (anexo I).

resumo: Tanto Freud quanto Lacan, embora com metodologias e estilos bem diferentes, mostraram entusiasmo e rigor incansáveis para sustentar com suas elaborações a questão de Lacan, em 1957: “O que a psicanálise nos ensina, como ensiná-lo?” Devemos às suas insistências e ousadias o que chamamos habitualmente de “a obra freudiana” e “o ensino lacaniano”. Este último propõe progressivamente, no entanto, uma descontinuidade em relação à sua releitura de Freud ao introduzir, para sua leitura do inconsciente, uma prática da letra segundo os dois eixos que seguirão até o final de seu ensino, a formalização e a via da ressonância poética: o matemático e o maternal, o matema e o poema. No intuito de esclarecer algumas mudanças da posição de Lacan em relação ao ensino da psicanálise, o texto desdobra três aspectos da questão: a posição ética do ensinante; a sensível diferença entre conceito, formalização e saber; e o antagonismo entre ensino e saber.

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Ensino e saber

palavras-chave: Ensino; saber; inconsciente; conceito; formalização.

abstract: Although using different methodologies and styles, both Freud and Lacan have shown us great enthusiasm and rigor in order to sustain with their elaborations Lacan’s questioning, raised in 1957: “What does psychoanalysis teach us and how to teach it?” We owe to their braveness and insistence what we habitually call “the Freudian work” and “the Lacanian teaching”. The latter proposes a progressive, however, a sort of discontinuity in relation to his reinterpretation of Freud as, for a reading of the unconscious, he introduces a practice of the letter according to the two axes which will remain until the end of his teaching, formalization and the way of poetic resonance: the mathematical and the maternal, mathem and poem. In order to clarify some changes in Lacan’s position in relation to the teaching of psychoanalysis, this text approaches three aspects of the questioning: the ethic position of the one who teaches, the sensible difference between concept, formalization, and knowledge; and the antagonism between teaching and knowledge.

keywords: Teaching; knowledge; unconscious concept; formalization.

recebido: 25/08/2016

aprovado: 12/09/2016

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resenha



Resenha do livro Édipo ao pé da letra Vera Pollo “Fragmentos de tragédia e de psicanálise”, eis o subtítulo escolhido por Antonio Quinet para o seu novo livro Édipo ao pé da letra, recém-lançado pela Jorge Zahar Editora. Um e outro, o título e o subtítulo, são fiéis ao que o leitor encontrará à medida que for virando suas páginas. Porém, mais do que isso, suas páginas testemunhariam, se necessário fosse, que não vivemos para além do Édipo, como não vivemos para além do inconsciente, nem mesmo da psicanálise. Mas, para caminhar com seus próprios pés, é preciso tomar o Édipo ao pé da letra. Esta seria talvez a melhor síntese de todo o livro. Arriscaria dizer que a ideia da escrita por meio de fragmentos dá ao livro um toque singular que nos permite tratá-lo como uma sessão de análise, como se estivéssemos escutando algo assim: “Sim, comece de onde você quiser. Quer voltar atrás? Então volte, quantas vezes você quiser. Já não dizia Fernando Pessoa que é preciso navegar?!”. Tome a direção que tomar, você irá se surpreender. Se o autor nos adverte que encontraremos algumas frases repetidas, verificamos, no entanto, que a repetição nunca é repetição do mesmo, pois este livro, simultaneamente leve e erudito é, acima de tudo, um cuidadoso trabalho de decifração de enigmas. Com ele, tomamos conhecimento dos diferentes modos de se ler a tragédia de Édipo, aprendemos como traduzir os mais variados termos da língua grega, e descobrimos o sentido, por vezes trágico, do gozo de lalíngua. São, ao todo, cinco partes: Édipo em Freud, Édipo em Lacan, Retorno a Sófocles, O enigma da Esfinge e A tragédia grega. Cada uma é composta por um número variável de capítulos, e este chegará a 23 na última parte. Composto por uma série de fragmentos, nem por isso se trata de um livro fragmentado. Qual Sherlock Holmes, ele nos deixa a impressão de que Quinet se deixou guiar de ponta a ponta por uma pergunta misteriosa: “Por que Sófocles não se debruçou sobre o crime de Laio? E seus desdobramentos: Por que Freud e Lacan tampouco o fizeram? Por que, principalmente, omitiram esse crime que se estende como uma maldição pelas gerações subsequentes e põem fim aos filhos de Édipo e de Jocasta sem deixar herdeiros?” A bem da verdade, desde a orelha do livro somos informados de que Antonio Quinet, com seu Édipo ao pé da letra, vai em busca da “preteridade velada”, desta que só advirá em ato, mediante o inevitável retorno do recalcado. Ao revirar o Édipo pelo avesso – seguindo uma orientação bem lacaniana, por sinal – ele Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 33 p.277-279 novembro 2016

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POLLO, Vera

descobre a origem do vaticínio do oráculo de Delfos: “Matarás teu pai e dormirás com tua mãe!”. Ela está no crime de Laio, o homem do pé torto. Para quem não sabe, o avô de Édipo se chamava Labdaco, isto é, pé manco; seu pai, Laio, era pé torto; ele, Édipo, pé inchado. Três significantes da lalíngua grega, que demonstram como o significante marca o corpo, em sua transmissão geracional. Em sua desmedida, ou, se preferirmos, sua hybris, Laio raptou o filho de seu anfitrião e fez dele o seu amante. Eis o que se extrai do saber da tragédia grega: atentar contra a hospitalidade é crime hediondo e não fica impune aquele que o comete. No capítulo intitulado “É proibido ver a nudez do pai”, aprendemos que, enquanto Freud acentuara a importância dos desejos edipianos parricidas, a releitura de Lacan acentuou o filicídio como o ato criminoso por excelência, o crime do gozo do pai que se transmite de uma a outra geração. Laio desejou matar o filho, Édipo promoveu a morte dos seus. “Eis a herança de Isaac e também a de Édipo: o filicídio”, declarou Lacan. Pois, se a ordem do pai real é: “ignore!”, vem “daí a paixão da ignorância de Édipo” (p. 49). Em “Enlace e nomeação”, capítulo que segue de imediato o “Édipo borromeano”, Quinet chega a propor a tradução inédita de um comentário de Lacan, na aula de 14 de janeiro de 1975 do Seminário R.S.I. Ei-la: “Enlaçar-me de outra forma, é isso que faz o essencial do complexo de Édipo e é muito precisamente nisso que opera a psicanálise” (p. 57). Logo, não se trata de ir além do Édipo, pois tampouco se pode ir além do nó, trata-se, isso sim, “de enlaçá-lo de outra forma”. No “Retorno a Sófocles”, Quinet se apoia em um helenista inglês, Bernard Knox, para dizer, com certa ousadia, que Édipo rei não é uma tragédia do destino, porque o herói é livre, portanto responsável por sua própria catástrofe. Esta parte do texto, como se deduz do título, é rica em termos gregos traduzidos para o português, e o primeiro, não poderia deixar de ser, é Óidipous. Estranhíssima a figura da Esfinge, tal como a descreve Sófocles em Édipo rei, e a retoma Antonio Quinet, que, não por acaso, a aproxima da “não toda” e assim a descreve: “cara e seios de mulher-menina, corpo de cadela, garras de leão com unhas curvas, asas de pássaro e virgem. Ela se apresenta cantando. É uma cadela cantante” (p. 100). Além disso, como ela utiliza os equívocos da lalíngua, “é também uma representação do inconsciente”. Mas a resposta de Édipo à Esfinge: “É o homem!”, embora lhe abra as portas de Tebas – ou melhor, por isso mesmo – é uma pseudorresposta, que simultaneamente realiza e mascara “sua identidade de parricida e incestuoso” (VERNANT apud QUINET). Édipo não tem lugar em Tebas, como não o teve previamente no desejo de seus pais. E assim ele ensina ao leitor que o enigma do lugar do sujeito como objeto a na fantasia é o de ser simultaneamente desejado e dejetado, convidado e expulso.

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Resenha do livro Édipo ao pé da letra

No subcapítulo intitulado “Faltou poesia”, não podia deixar de ser, o convidado de honra de Quinet é Heidegger. Este vem nos ensinar que “poesia é o ato de medir esse entre-dois entre a terra onde a pergunta é jogada e o céu que não responde” (p. 121) e, mais do que isso, que há dois tipos de cegueira: uma provocada pela falta, outra pelo excesso, já que, para Hölderlin, “o rei Édipo talvez tivesse um olho a mais” (p. 122). A quinta e última parte, como dissemos anteriormente, chama-se “A tragédia grega”. Nela, aprendemos que a tradução literal do termo alemão Trauerspiel, tragédia, é jogo de luto (p. 161). A tragédia não é o mito, não é uma de suas inúmeras versões, pois o que a caracteriza, entre outros, é a equivocidade da língua e a contradição entre a fala poética do coro e a fala coloquial dos atores. A tal ponto que, para Goethe, o trágico é justamente a “contradição irreconciliável”, o evento terrível que é consequência do fazer humano. Édipo, “multifacetado e sutilmente complexo, é o maior indivíduo da tragédia grega (p. 133)”. A catarse, objetivo maior de toda peça trágica, longe de ser simples purgação, no sentido de ab-reação do “afeto estrangulado” – esta que foi talvez a primeira definição freudiana do sintoma conversivo –, merece ser tomada em seu verdadeiro sentido de “manifestação em estado puro da compaixão e do temor” (p. 135). Pois a Mimesis – que é representação, e não imitação –, “permite que se experimente sem dor esses dois afetos, e isso devido ao efeito da beleza que a arte produz” (p. 135). Por isso Freud qualificou de Genuss, ou seja, gozo, a satisfação experimentada pelo espectador da tragédia, e Lacan concluiu que o desejo puro se localiza no espaço trágico do entre-duas-mortes. Na definição de que a obra de arte é metáfora do gozo da desmedida, o termo metáfora não corresponde exatamente à substituição de um significante por outro; ele significa, sobretudo, transposição, transporte, como se pode ler no livro de Quinet, assim como em veículos coletivos que circulam em cidades gregas. Mas a tragédia permite, sim, uma certa substituição, uma vez que permite substituir o desprazer trágico pelo prazer estético. Ou melhor, transporta-nos de um ao outro. Ao fim, Quinet nos lembra que Lacan se referiu à cena grega para explicitar o lugar de semblante do objeto a. Porém, mais do que isso, sugere pensarmos o que teria acontecido, se Édipo tivesse laiusado. Ele não o fez. Em contrapartida, é isto que fazemos, enquanto analisantes, durante o tempo da análise. Laiusar significa “ir além do desejo de salvar o pai, usar e gastar o pai real, defrontar-se com seu crime e vencer a ordem de ignorância feroz” (p. 173). Numa só palavra, parafraseando o poeta: “Laiusar é preciso, viver...” bem, desde que seja “laiusando”. E precisa mais?

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Resenha do livro Mal-estar, sofrimento e sintoma

Mayla Di Martino Uma das consequências da popularização da teoria psicanalítica pode ser justamente a perda de terreno para a... prática da psicanálise. Palavras de Freud (1912/1993), ao relatar o caso da paciente vítima da “interpretação selvagem” feita por um médico (leitor de Freud) em nome da psicanálise, mas não por meio da prática psicanalítica. Também o Brasil foi alvo de um sincretismo diagnóstico que deixou marcas permanentes: “complexo de vira-lata”, “jeitinho brasileiro” e “cordialidade” são sintomas popularizados, diagnosticados por sociólogos e escritores (leitores de Freud) e aceitos como parte da nossa cultura e do nosso caráter. Se é mesmo tão difundida por aqui a tese freudiana de que a forma de vida que adotamos pode se tornar uma patologia social que afeta cada um de nós, em nossa subjetividade, por que os psicanalistas deixaram para outros a produção de diagnósticos sobre o Brasil?1 É o questionamento que Christian Dunker faz em seu livro mais recente: Mal-estar, sofrimento e sintoma: Uma psicopatologia do Brasil entre muros. Essa releitura diagnóstica do Brasil da modernidade é desconcertante em qualquer gênero: como obra de psicanálise, interroga os ditos “novos sintomas” da contemporaneidade e procura reposicionar a prática clínica em “prática social clínica”; como livro político, faz uma reconstrução da experiência psicanalítica brasileira e almeja ampliar a influência do discurso psicanalítico na pólis; como ensaio social, analisa a forma de vida no neoliberalismo à brasileira na tradição da teoria crítica e do pós-lacanismo de Slavoj Zizek. O resultado é complexo, porém, à la Zizek, Dunker dá uma colher de chá aos seus leitores e, num tour-de-force estilístico, vai alinhavando canções, livros e filmes que conhecemos tão bem às obras e autores que não conhecemos tanto assim. O “síndico” Tim Maia ganha status teórico da mesma forma que o carioca Viveiros de Castro – alguém que, se os antropólogos fossem tão populares quanto os músicos, seria o nosso Tom Jobim. E a metáfora do “encontro na mata”, com a qual Viveiros de Castro chacoalhou as teses da antropologia estrutural, seria a nossa “Garota de Ipanema”, que desencaminhou os ouvidos do mundo acostumando-os à dissonância de uma nova lógica musical. Mas o desconforto sobrevém, inevitavelmente, quando Dunker co1 Obviamente, as exceções confirmam a regra, e são devidamente citadas por Dunker ao longo da obra. Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 33 p.281-288 novembro 2016

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DI MARTINO, Mayla

loca Freud e Lacan nessa dança, ou melhor, nessa mata. Para começar, Dunker propõe tirar a psicanálise (e os psicanalistas ) das quatro paredes dos condomínios institucionais – formados, como ele argumenta, para preservar a “pureza” da prática freudiana do sincretismo diagnóstico brasileiro. Esse último, efeito colateral da enorme disseminação da psicanálise na nossa cultura, pela porta de entrada da Semana de Arte Moderna de 1922. À maneira das ideologias políticas europeias, a psicanálise chegou ao Brasil como ideia fora do lugar, como psicanálise sem psicanalistas, incorporada por Mario de Andrade e Oswald de Andrade como fonte de reação crítica às teses positivistas. Desse caráter marginal decorreria o nosso “complexo de impostura”, e nossa obsessão pela “verdadeira psicanálise e pelos verdadeiros psicanalistas” (p. 125). Outra pauta é derrubar os muros que separam as diversas escolas de psicanálise entre si. O atualíssimo conceito de “narcisismo das pequenas diferenças”, que ocupa apenas uma linha em toda a obra de Freud, encontrou um desenvolvimento teórico apurado nas páginas de Dunker sobre o modo de vida condominial. Por último, Dunker aponta um caminho que pretende levar os psicanalistas do condomínio para a mata. A terceira abordagem do mal-estar na psicanálise brasileira sugere que a radicalidade das teses lacanianas sobre as fórmulas da sexuação seja incorporada ao edifício edípico da teoria freudiana, abrindo passagem, através dos muros, para a floresta ao redor, povoada por novas tribos cujo sexo (posição sexuada) pode até ser indefinido: vai depender da contingência do “encontro imprevisível na mata”, conforme a inquietante revelação de Eduardo Viveiros de Castro sobre a tribo dos awaretés, localizada no alto Xingu (VIVEIROS DE CASTRO, 2002). Trata-se de uma metáfora para descrever que, nesta forma de vida: a cultura é “dada”, é “universal” enquanto a natureza é “construída” e muda conforme o ponto de vista – o inverso dos postulados universalistas do mundo ocidental. Fora dos limites da tribo, um awareté, toda vez que se deparar com um ser, não saberá se ele é animal ou humano, vivente ou espírito, e terá apenas uma certeza: o outro (ou outra) vê a si mesmo(a) como homem. A decisão, fugir ou lutar, casar ou devorar, tem que ser feita no ato. Tal grau de indeterminação, descrito pelo antropólogo Viveiros de Castro no “perspectivismo ameríndio”, encontra ecos na teoria lacaniana, como aponta Dunker: O animismo perspectivista contém uma concepção de reconhecimento, de linguagem e de nomeação cujo correlato no texto lacaniano talvez sejam suas observações erráticas sobre o inconsciente no Oriente, sobre o gozo das santas místicas ou a errância indeterminada do sentido em Joyce ou Lol Von Stein. Nesses povos, a função da dêixis é absolutamente idiossincrática, assim como a função social da nomeação. Sua regra parece ser a indeterminação, e a não identidade pelo semblante. Sua estrutura de circu-

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lação fálica é pensada através do encontro imprevisível na mata, não pela troca regrada entre “ nós” e “ eles”, de mulheres e palavras (p. 316). Se o Édipo é a moeda corrente da psicanálise, que assinala o valor do objeto, feminino ou masculino, e marca a escolha sexuada do sujeito, homem ou mulher, Dunker propõe o paradigma do “encontro na mata” como moeda paralela na economia psicanalítica. Uma convocação a (contra)balançar o totemismo, que a psicanálise absorveu da antropologia, com o animismo perspectivista, por meio do qual Viveiros de Castro provocou uma releitura das teses do próprio Lévi-Strauss. A proposta de Dunker é reformular, de forma complexa, a noção de universal em psicanálise sem cair em oposições e dualismos – nos moldes de uma lógica das relações que inclua a não relação, ou seja, que dê lugar para o não todo fálico. Apesar da sagacidade e da novidade trazidas por Lacan por meio das fórmulas da sexuação, argumenta Dunker, ainda está por se fazer a releitura da diagnóstica lacaniana, que permanece orientada por uma supervalorização das “experiências improdutivas de determinação” vis-à-vis as “experiências produtivas de indeterminação”, como se elas fossem categorias excludentes, o que não são: Um sujeito, para além da redução egológica ao indivíduo, da analítica da finitude, da limitação antropológica, das instituições disciplinares pode ser, então, redefinido como um sujeito capaz tanto de experiências produtivas de indeterminação quanto de experiências produtivas de determinação, ou seja, tanto de proceder discursivamente como um homem quanto de experimentar o gozo infinito da feminilidade (p. 318).

Mal-estar, sofrimento e sintoma: a “diagnóstica” psicanalítica Unbehagen, “o estado de ser ou estar”, é um conceito que já deu muito pano para manga – desde quando foi escolhido por Freud para nomear a obra em que ampliava os limites do campo psicanalítico para a análise dos fenômenos coletivos. Referia-se, naquela ocasião, à condição inerente à experiência humana, isto é, à condição de impossibilidade diante do poder supremo da natureza; da decadência inevitável dos corpos e da necessidade de estabelecer um contrato, sempre insatisfatório, para a vida em sociedade (FREUD, 1929/1993, p. 274). Das Unbehagen in der Kultur, o “Mal-estar na civilização”, é, contudo, mais do que uma obra cujo título é de difícil tradução: é uma mudança no paradigma etiológico em Freud. Partindo desse argumento de Nelson da Silva Júnior (METZGER; SILVA JÚNIOR., 2010), Dunker propõe uma diagnóstica psicanalítica que seja capaz de evitar os temores de Freud acerca da psicanálise transformada em “psicanálise

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aplicada” ou “terapia coletiva”. Como se sabe, na obra de 1930 Freud alerta que as inúmeras analogias entre a formação libidinal do indivíduo e o desenvolvimento das sociedades são de ordem teórica – e não de ordem terapêutica. Por mais correto que pudesse ser um determinado diagnóstico de “neurose social”, o criador da psicanálise questionava sobre como lidar com questões relativas à prática, uma vez que “ninguém tem autoridade para impor esse tipo de terapia sobre o grupo [a sociedade]” (FREUD, 1929/1993, p. 338). Orientando-se pela complexidade da noção de mal-estar, Dunker argumenta que Freud, neste texto, estaria dando status conceitual ao próprio mal-estar e também à noção de sofrimento: Não se trata mais de pensar apenas a formação de sintomas pelo recalcamento e o retorno da angústia como seu fracasso, mas de pensar uma dinâmica maior de fusões e defusões das pulsões, no interior das quais séries inteiras de sintomas, repetições e sofrimentos são articulados com processos culturais. Daí o esforço sintético de Freud em introduzir uma teoria que contemple os sintomas, mas também outras formas de sofrimento, sob a égide da noção de mal-estar (p. 201). Conforme as proposições feitas em 1930, se para Freud o mal-estar é irremediável – em virtude da insatisfação inerente aos diversos contratos sociais, repressores, todos eles, de moções internas libidinais ou agressivas – pressupõe-se que todo sofrimento seja curável, em virtude da dimensão essencialmente política de todo arranjo social. Assim, o sofrimento, que tem raízes no mal-estar experimentado de forma universal e, sobretudo, coletiva, distingue-se do sintoma, que tem valência clínica e caráter singular. Difere também do próprio mal-estar (Unbehagen), que caracteriza-se pelo seu aspecto genérico e pela dificuldade de nomeação. A distinção entre mal-estar, sofrimento e sintoma torna-se, assim, a base conceitual que permitiria aos psicanalistas analisar os fenômenos da pólis sem conspurcar a prática ou a teoria psicanalíticas. Mas é preciso estar atento às fronteiras entre os conceitos, já que “o que chamo de razão diagnóstica procura definir, a cada momento, a fronteira, o litoral e os muros que separam e unem mal-estar, sofrimento e sintoma” (p. 40). Ainda conforme Dunker, se o sintoma pede, por definição, um endereçamento ao analista, via transferência, essa pode ser relida, na análise dos fenômenos coletivos, por reconhecimento, nos moldes dos desdobramentos teóricos trazidos por Axel Honneth (2003) no campo da teoria crítica e que remontam ao conceito dialético de reconhecimento em Hegel. Assim, a diagnóstica psicanalítica irá entender o sofrimento como uma categoria pré-patológica, como uma forma de invenção e resposta ao mal-estar advindo das transformações no horizonte de uma época. Assume que o sofrimento, para se expressar, vale-se de uma narrativa e que esta, por sua vez, pode ou não estar

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inscrita em um determinado discurso em um dado momento histórico. Dessa forma, o tratamento de uma forma de sofrimento requereria a sua inclusão em um dos discursos constituídos: A inclusão discursiva de uma forma de sofrimento é o que permite que ela seja reconhecida, tratada e localizada em um registro moral ou jurídico, clínico ou político, literário ou religioso. Sofrimentos que não se enquadram nos discursos constituídos são frequentemente tornados invisíveis, derrogados de sua verdade, como uma palavra amordaçada (p. 34). Compreendida desde este ponto de vista, a cura psicanalítica não é a volta a um estágio anterior de saúde ou “normalidade”. Torna-se uma nova relação de poder, “uma relação propriamente política em relação ao lugar e à posição que cabe a cada um diante do mundo e de seu destino” (DUNKER, 2011, p. 211). Curar significaria incluir a forma de sofrimento no discurso, seja este diagnóstico, analítico ou crítica social, de modo que ele possa ser tratado, o que equivale a ser reconhecido em outro registro que não aquele da “linguagem individual” do sintoma. Nas palavras do autor: “boa clínica é crítica social feita por outros meios” (p. 46).

Sobre condomínios e encontros na mata: Os ditos “novos sintomas” contemporâneos Após o milagre econômico (1969-73), o país experimentou um crescimento econômico acentuado com o acúmulo da concentração de renda, e uma das formas de converter o mal-estar da desigualdade social extrema em sofrimento foi a proliferação dos muros e condomínios. Alphaville, o megaempreendimento criado nos arredores de São Paulo em 1973 e replicado em diversas cidades – como franquia ou como cópia (como tragédia ou como farsa) – tornou-se o paradigma desse modo de viver onde o sofrimento é tornado invisível pelo fechamento da vida em formas pré-constituídas e superdeterminadas. A tragédia de Alphaville é que ele não seja visto como uma distopia – igual ao filme de Jean-Luc Godard (1965) que, como não cessa de se surpreender Dunker, dá nome ao condomínio originário brasileiro! A farsa é que este modo de vida inclua sujeitos que sofrem sem saber que sofrem enquanto assistem à proliferação das regras e das punições e disputam pelo carro, pela adega ou pelos filhos mais belos. Nos condomínios, “o mal-estar indeterminado é transformado em sofrimento produtivo” (p. 79), onde o que era uma “opção de vida” torna-se uma “ obrigação obscena de felicidade” (p. 81). A briga judicial por causa dos dois centímetros a mais do muro do vizinho – conflito que qualquer síndico jamais consegue resolver e que faz parte do dia

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a dia dos condomínios – exemplifica de que modo essa nova forma de viver está regida por um deslocamento da autoridade, agora indeterminada e impessoal: O síndico é como um novo sintoma da patologia brasileira da autoridade: envolve conflito entre exigências antagônicas, simbolização do desejo e principalmente um tipo especial de satisfação, chamado gozo. Esse terceiro quesito parece ter sofrido uma inversão. Se antes a autoridade dizia como gozar, agora ela se contenta em gerenciar o gozo perturbador do outro. Se antes o domínio se exercia no território pessoal do latifúndio familiar, agora ele se organiza em torno do espaço impessoal do condomínio (p. 78). Seguindo a análise de Dunker, o síndico e a condominialização transformaramse em um sintoma à brasileira, porque tornaram-se intrínsecos também à forma de vida no Brasil pós-inflacionário, “marcado pela indeterminação crônica do valor, tanto das mercadorias quanto das experiências”. O laço social em forma de condomínio surge como solução, na tentativa de suprimir um dado insuportável da realidade. A consolidação do sistema capitalista neoliberal no país, a partir dos anos 1990, reforçou, ademais, a fantasia ideológica de que os muros demarcariam o território do nascimento de uma nova lei. Fazer um condomínio tornou-se, assim, uma mitologia, um ato fundacional, refletindo uma modificação interessante na incidência da autoridade – e consequentemente da inscrição cultural da imago paterna no Brasil de então. É muito importante observar que a partir do momento em que o texto de Dunker começa a discorrer sobre o declínio da função social da imago paterna no Brasil, põe-se também a destacar a irrupção Real de um novo mito fundador. Na tradição psicanalítica, conforme Lacan (1973, Staferla), o mito funciona como um mecanismo do qual a linguagem se serve para expressar aquilo que não pode ser traduzido em palavras: o próprio mal-estar freudiano. Teria sido essa a tentativa de Freud ao criar “Totem e Tabu”, a versão psicanalítica de outros mitos contratualistas como o “Leviatã”, de Hobbes, e o “Contrato Social”, de Rousseau. Paralelamente ao mito totêmico, passamos a conviver com uma nova lógica das relações no laço social, organizadas por uma mitologia que não é mais derivada do contratualismo como forma de justificação da autoridade. O totem (representado pelo Pai), o monstro bíblico (representado pelo Rei) ou a “vontade geral” (representada pela Constituição/Contrato Social) são figuras usadas para representar a transformação do poder em autoridade. Podemos nos remeter às fórmulas da sexuação e pensar que o que Dunker denomina de a lógica do condomínio é diversa daquela que, com Lacan, poderíamos chamar de lógica fálica justamente porque não é orientada pelo Um da autoridade. Mas Dunker nos

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leva a dar um passo adiante e considerar que a lógica do condomínio também se distingue porque obscurece o próprio conceito de representação, entendido como delegação (aparência) de autoridade a outrem – por exemplo, quando elegemos um legislador para nos representar no Parlamento: A posição do síndico, como segundo tempo na fantasia do condomínio, seduz com a promessa que todos nos tornaremos pequenos legisladores de uma micropolítica escolhida automaticamente pelo ato de compra e ingresso no condomínio. O síndico gerencia a promessa de que esse pedacinho de gozo roubado de nós por nosso vizinho, e que faz a figura fálica da falta, será devolvido “na forma da lei”, como uma espécie de excesso benfazejo. Se a autoridade arcaica era pessoalmente impessoal, a autoridade do síndico é impessoalmente pessoal. Ela não discute, não considera exceções nem pondera casos únicos. É fria ou violenta, sem dois pesos nem duas medidas (p. 81). É fácil reconhecer de que maneira a lógica do condomínio está impregnada na forma de vida do brasileiro, rico ou pobre, por meio da maneira como são geridas a saúde, as escolas, os bancos, o mundo do trabalho, o ambiente organizacional e os shopping centers: Há condomínios de luxo e condomínios de pobreza, condomínios institucionais e condomínios de consumo, condomínios de educação e condomínios de saúde. Em todos eles, encontramos traços semelhantes de racionalização: fronteiras, muros, regulamentos e catracas. Assim como um sintoma substituiu um conflito por uma formação simbólica onde não reconhecemos mais o antagonismo inicial, o síndico neutraliza o antagonismo deslocando a falta para uma espécie de zona de excesso (p. 78). A disseminação do modo de vida orientado pela lógica do condomínio, no Brasil, pode ter levado à confusão entre narrativas do sofrimento e a emergência de novos sintomas. Dunker destaca a existência de inúmeros trabalhos de orientação psicanalítica que, nos últimos 20 anos, “pressentem” a importância das transformações do modo de vida para as modalidades dos sintomas, sem, entretanto, investigar as relações entre o mal-estar, as narrativas do sofrimento e a formação de sintomas. Aponta que o vínculo entre fatos sociais – o declínio da imago paterna; a desorganização da família, o capitalismo globalizado, a feminilização da cultura – e os novos sintomas clínicos – depressão, pânico, anorexia – tem sido feito “de modo direto demais”, gerando até mesmo movimentos de reinvenção da própria noção de sintoma

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em psicanálise, “marcados pelo exagero das noções de sinthome ou de suplência em Lacan” (p. 234). O problema é abordar o sintoma pela via do diagnóstico, isto é, “o reconhecimento de sintoma em unidades regulares, chamadas de doenças, síndromes, quadros ou distúrbios” (p. 21); quando se deveria optar pela diagnóstica, que prevê a articulação do sintoma com as demais categorias psicanalíticas: “o sintoma é, sobretudo, Real e não deve ser dissociado da narrativa do sofrimento na qual se expressa e pode ser reconhecido socialmente, nem do mito por meio do qual sua verdade aparece em estrutura de ficção” (p. 150). Enfim, o admirável trabalho crítico e de reposicionamento teórico da psicanálise brasileira, apresentado por Christian Dunker, é mais do que excepcionalmente rico e bem fundamentado. Ele tem o senso da urgência. Em tempos violentos e de intensa transformação – nos quais os laços sociais não são integralmente decorrentes da noção de identidade – derroga o papel do psicanalista instalado na função de “tradutor”, isto é, de produtor de diagnóstico, e o situa como agente de uma diagnóstica, ou, como quer Christian Dunker, como o “xamã transversal” do perspectivismo ameríndio, alguém que ocupa o papel de diplomata e poliglota, nem homem nem mulher, que atua para estabelecer conexões e paridades entre populações incomunicáveis, entre universos incomensuráveis.

referências bibliográficas DUNKER, C. Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica. Uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento. São Paulo: AnnaBlume, 2011.                        . Mal-estar, sofrimento e sintoma. São Paulo: Boitempo, 2015. FREUD, S. (1912). “Wild Psychoanalysis” In: The Freud Reader. London: Penguin Books, 1993.                       . (1929). “Civilization and Its Discontents” In: The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud – v. 12. London: Penguin Books. HONNETH, A. Luta por Reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais, São Paulo: Ed. 34, 2003. LACAN, J. (1973). “Télévision”, staferla.free.fr/Lacan/television.htm. METZGER, C.; SILVA JR., N. “Sublimação e pulsão de morte: A desfusão pulsional” In: Psicologia USP. São Paulo: Instituto de Psicologia, v. 21, n.3, set. 2010, pp. 567-83. VIVEIROS DE CASTRO, E. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2002.

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Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades Luís Vaz de Camões Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, Muda-se o ser, muda-se a confiança: Todo o mundo é composto de mudança, Tomando sempre novas qualidades. Continuamente vemos novidades, Diferentes em tudo da esperança: Do mal ficam as mágoas na lembrança, E do bem (se algum houve) as saudades. O tempo cobre o chão de verde manto, Que já coberto foi de neve fria, E em mim converte em choro o doce canto. E afora este mudar-se cada dia, Outra mudança faz de mor espanto, Que não se muda já como soía.

(Sonetos de Camões. São Paulo: Ateliê Editorial, 2011)

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Nada é impossível de mudar Bertolt Brecht Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural. Pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural. Nada deve parecer impossível de mudar.

(Antologia poética. Rio de Janeiro: ELO Editora, 1982)

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Sobre autores e tradutores Antonio Quinet Psicanalista, doutor em filosofia Université de Paris 8. AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. Professor do Mestrado e do Doutorado de Psicanálise, Saúde e Sociedade (UVA). Pesquisador convidado do Instituto de Psiquiatria (UFRJ). Dramaturgo e Diretor da Cia. Inconsciente em Cena (RJ). E-mail: quinet@openlink.com.br

Barbara Zenicola Psicóloga graduada pelo IBMR. Especialista em Psicologia Clínica, pela PUC-Rio. Mestre em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pelo Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da UERJ e atual Doutoranda no mesmo Programa. Psicanalista participante dos Fóruns do Campo Lacaniano-RJ. Endereço: Rua Almirante Tamandaré, 66/428 – Largo do Machado (RJ). E-mail: barbarazenicola@hotmail.com

Cícero Alberto de Andrade Oliveira Graduado em Letras (Português/Francês) pela FFLCH-USP. Professor de francês e tradutor, mestre em Língua e Literatura Francesa pela mesma instituição. E-mail: ciceralb@gmail.com

Christian Ingo Lenz Dunker Psicanalista. AME da EPFCL Brasil. Professor Titular do Instituto Psicologia da USP. Endereço: Rua Abílio Soares, 932 – CEP 04005-003 – Paraíso, São Paulo (SP). Tel. (55) 11 3887 0781 E-mail: chrisdunker@usp.br

Colette Soler Doutora em Psicologia (Paris VII), AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – França. Professora de FCCL-Paris. Formada com Jacques Lacan, está na origem dos Fóruns do Campo Lacaniano e sua Escola. Autora de vários livros, dentre os quais Psicanálise na civilização (Contracapa), O que dizia Lacan das mulheres (Jorge Zahar Editora), O inconsciente a céu aberto na psicose (Jorge Zahar Ed), edição bilíngue do Caderno Stylus 1: O corpo falante, O inconsciente. Que é isso? (AnnaBlume), Lacan, o inconsciente revisitado (Cia de Freud), Declinações da Angústia (Escuta), Seminário de leitura de texto: A angústia, de Jacques Lacan (Escuta) e Lacan, Lecteur de Joyce (PUF, 2015). E-mail:solc@wanadoo.fr Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 33 p.295-301 novembro 2016

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Daniel Menezes Coelho Professor Associado I da Universidade Federal de Sergipe e Professor Permanente do Núcleo de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade Federal de Sergipe. E-mail: daniel7377@gmail.com

David Bernard AME, psicanalista. Mestre de Conferências em Psicopatologia na Université de Rennes 2. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, ensinante no Collège de Clinique Psychanalytique de l’Ouest (CCPO). 20 rue des Fossés, 35000 Rennes, França E-mail: dabernard2@yahoo.fr

Dominique Fingermann Psicanalista, AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil. Autora do livro Por causa do pior (Iluminuras, 2005), em coautoria com Mauro Mendes Dias, organizadora do livro Os paradoxos da repetição (Annablume, 2014) e autora de A (de)formação do psicanalista (Escuta, 2016). E-mail: dfingermann@gmail.com

Elisabeth da Rocha Miranda Psicanalista. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano e da Internacional dos Fóruns (AME) Fórum-Rio de Janeiro. Membro do Colegiado de Ensino de Formações Clínicas do Campo Lacaniano-RJ. Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Pesquisa e Clínica em Psicanálise UERJ com a tese intitulada O gozo no feminino. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Pesquisa e Clínica em Psicanálise UERJ com a tese A debilidade mental nas estruturas clínicas. Professora do Curso de Especialização em Psicologia Clínica – PUC-RJ. Membro do Conselho Editorial da Revista Marraio – publicação de Formações Clínicas. Membro do Conselho Editorial da Revista Affecctio Societatis da Universidade de Antioquia como parecerista. Autora de diversos artigos publicados no Brasil, França, Espanha, Colômbia e Austrália. Organizadora do livro A clínica do ato, com Georgina Cerquise (7 Letras, 2013). E-mail: bethrm@uol.com.br

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Elisabeth Saporiti Psicanalista, doutora em Semiótica e Comunicação pela PUC-SP, onde tem orientado teses e dissertações em semiótica psicanalítica. Publicou: A interpretação e A cientificidade da psicanálise: Popper e Peirce, ambos pela Ed. Escuta. Tem vários artigos em revistas e periódicos sobre as possíveis inter-relações entre a teoria semiótica e a clínica psicanalítica. Atualmente, desenvolve uma pesquisa sobre a metodologia dos trabalhos em psicanálise, especialmente sobre a questão dos raciocínios lógicos: indução/dedução/abdução. E-mail: elisa.saporiti@terra.com.br

Esther Maynart Pereira Mikowski Psicóloga, psicanalista. Mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal de Sergipe. Membro de Escola da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano e Membro do Projeto Freudiano. E-mail: esthermikowski@uol.com.br

Fabiano Chagas Rabêlo Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – EPFCL. Professor do Curso de Psicologia da Universidade Federal do Piauí – Campus Parnaíba Endereço: Rua Marc Jacob, 484, Apt. 203 – CEP 64202510 – Parnaíba (PI). Tel. (86) 9809 1277/(85) 8718 7005 E-mail: fabrabelo@hotmail.com

Frédéric Pellion AME, Membro da Escola da Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. Doutor em medicina e em ciências humanas clínicas. Psiquiatra, residente hospitalar, Institut National de Jeunes Sourds. Diretor de pesquisas (Université Paris Diderot), ensinante na Université Paris Descartes e no Collège Clinique Psychanalytique de Paris. E-mail: f.pellion@wanadoo.fr

Jamile Luz Morais Psicóloga e Psicanalista. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Atualmente, doutoranda no Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Social (linha pesquisa “Psicanálise e Sociedade”) na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Endereço: Avenida Francisco Matarazzo, no 43, apto. 95. CEP 05001-000 – Água Branca – São Paulo (SP) E-mail: jamile.luz.morais@gmail.com

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Luciana Guarreschi Membro do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo. E-mail: guareschi.lu@gmail.com

Marc Strauss Psiquiatra, psicanalista. Ex-residente dos Hopitaux Psychiatriques de la Région Parisienne. Ex-assistente de Consultas no Hospital Sainte-Anne (Paris). Membro Fundador da EPFCL, AME, Docente no Collège de Clinique Psychanalytique de Paris. E-mail: strauss.m@wanadoo.fr

Mayla Di Martino Psicanalista e pesquisadora no Programa de Pós-Doutorado no Instituto de Psicologia da USP. É participante de Formações Clínicas do Campo Lacaniano-RJ. E-mail: mayladimartino@me.com

Nelson da Silva Júnior Psicanalista, Doutor pela Universidade Paris VII. Professor Livre Docente e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social do Instituto de Psicologia da USP. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. Coordenador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise, juntamente com Christian Dunker e Vladimir Safatle. Autor dos livros: Le fictionnel en psychanalyse. Une étude à partir de l’œuvre de Fernando Pessoa. (Villeneuve d’ Asq: Presses Universitaires du Septentrion, 2000), e Linguagens e Pensamento. A lógica na razão e desrazão, (Casa do Psicólogo, 2007). Endereço: Rua Borges Lagoa, 908 apto. 214. CEP 04038-002 – São Paulo (SP). Email: nesj@usp.br

Paulo Marcos Rona Psicanalista, doutor em Psicologia Clínica pelo IP-USP, membro do Fórum de Psicanálise do Campo Lacaniano de São Paulo. Autor do livro O significante, o conjunto e o número: A topologia na psicanálise de Jacques Lacan”, (AnnaBlume) E-mail: paulo.rona@terra.com.br

Patrick Barillot AME da EPFCL. Psiquiatra, ensinante no Collège de Clinique Psychanalytique de Paris. Endereço: 104 bd Saint-Germain, 75006, Paris Tel. (33)142223380 E-mail: pbarillotepfcl@gmail.com 298

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Paulo Alberto Teixeira Bueno Mestrando pelo Núcleo de Pesquisa Psicanálise e Sociedade do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da PUC-SP, Psicólogo do CAPS Infantil Espaço de Vida. Psicanalista em formação, participou dos módulos de formação do FCL-SP (Fórum do Campo Lacaniano – SP). Endereço: Rua Dr. Fernandes Coelho, no 86, apto. 21 – CEP 05423-040 – Pinheiros, São Paulo (SP) E-mail: paulotbueno@hotmail.com

Raul Albino Pacheco Filho Professor Titular da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), atuando no Curso de Psicologia e no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social, onde coordena o Núcleo de Pesquisa Psicanálise e Sociedade (inscrito no Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil – CNPq). Psicólogo com graduação pela PUC-SP e Mestrado e Doutorado pelo Instituto de Psicologia da USP. Psicanalista AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (EPFCL – Brasil) e da Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano (Fórum de São Paulo). Coordena a Rede de Pesquisa Psicanálise e Saúde Pública do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo. E-mail: raulpachecofilho@uol.com.br

Ronaldo Torres Psicanalista. Doutor pelo Instituto de Psicologia (USP) Av. 9 de Julho, 3229 - Conj. 110 – CEP 01407-000 – Jd. Paulista – São Paulo (SP). Tel. (55) 11 3051 8289 E-mail ronaldotorrescl@gmail.com

Sandra Letícia Berta Psicanalista. AME da EPFCL, Brasil, Fórum do Campo Lacaniano – São Paulo. Mestre e Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo. Coordenadora da Rede de Psicose pela Universidade de São Paulo. Membro do Colegiado dos Representantes da Internacional dos Fóruns (CRIF, 2014-2016). Autora do livro Escrever o trauma, de Freud a Lacan. (Letra Viva, Buenos Aires, 2014; e Annablume, São Paulo, 2015) E-mail: bertas@uol.com.br

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Sávio Siqueira Doutor em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), professor de língua inglesa e linguística aplicada do Departamento de Letras Germânicas do Instituto de Letras da UFBA, coordenador do Programa de PósGraduação em Língua e Cultura. Atualmente, faz estudos de pós-doutorado no Departamento de Estudos de Aquisição de Segunda Língua na Universidade do Havaí, Manoa, Honolulu, Havaí, Estados Unidos da América. E-mail: savio_siqueira@hotmail.com

Sol Aparicio AME da EPFCL. Mestre em Filosofia, DESS em Psicologia Clínica e doutora em Psicanálise. Ensinante no Collège de Clinique Psychanalytique de Paris. E-mail: sol.aparicio@orange.fr

Sonia Alberti Professora Associada do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pesquisadora do CNPq. Psicanalista Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. Endereço: Rua João Afonso, 60 casa 22 – CEP 22261040 – Rio de Janeiro (RJ). Tel. 21 25273154. E-mail: sonialberti@gmail.com

Sonia Maria Coni Campos Magalhães Psicanalista, AME da EPFCL. Psicóloga, Especialista em Clínica, especialista em Psicolinguística. E-mail: soniacmag@gmail.com

Vera Iaconelli Psicanalista, mestre e doutora em Psicologia pela USP, membro do Forum do Campo Lacaniano SP, Analista de Escola, Diretora do Instituto de Psicanálise, Perinatalidade e Parentalidade Gerar. Endereço: Rua Natingui, 314, CEP 05469-000 – Vila Madalena (SP). Tel. (11) 30326905 / (11) 999421912 E-mail: vera.iaco@hotmail.com

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Vera Pollo Psicanalista. Doutora e Mestre em Psicologia pela PUC-RJ; D.E.A. pela Universidade de Paris VIII. Analista membro (AME) da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, da Internacional dos Fóruns (IF-EPFCL). Professora Titular do Programa de Pós-graduação stricto sensu em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida – Rio de Janeiro e da Especialização em Psicologia Clínica da PUC-RJ. Autora de Mulheres histéricas (Contra Capa Livraria, 2003) e de O medo que temos do corpo (Editora 7Letras, 2012). Endereço: Rua Benjamim Batista, 15 / 101 – Jardim Botânico – Rio de Janeiro (RJ). E-mail: verapollo8@gmail.com

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Orientações Editoriais Stylus é um periódico semestral da ESCOLA DE PSICANÁLISE DOS FÓRUNS DO CAMPO LACANIANO – BRASIL e se propõe a publicar artigos inéditos das comunidades brasileiras e internacionais do Campo Lacaniano, e os artigos de outros colegas que orientam sua leitura da psicanálise, principalmente pelos textos de Sigmund Freud e Jacques Lacan. Revista que aceita artigos provenientes de outros campos de saber (a arte, a ciência, a matemática, a filosofia, a topologia, a linguística, a música, a literatura etc.) que tomam a psicanálise como eixo de suas conexões reflexivas. Aos manuscritos encaminhados para publicação, recomendam-se as seguintes Orientações Editoriais. Serão aceitos trabalhos em inglês, francês e/ou espanhol. Se aceitos, serão traduzidos para o português. Todos os trabalhos enviados para publicação serão submetidos à apreciação de, no mínimo, dois pareceristas, membros do Conselho Editorial de Stylus (CES). A Equipe de Publicação de Stylus (EPS) poderá fazer uso de consultores ad hoc, a seu critério e do CES, omitida a identidade dos autores. Os autores serão notificados da aceitação ou não dos artigos. Os originais não serão devolvidos. O texto considerado aceito será publicado na íntegra. Os artigos assinados expressam a opinião de seus autores. A EPS avaliará a pertinência da quantidade de textos que irão compor cada número de Stylus, de modo a zelar pelo propósito dessa revista: promover o debate a respeito da psicanálise e suas conexões com os outros discursos.

Fluxo de avaliação dos artigos: 1.) Recebimento do texto por e-mail pelos membros da EPS de acordo com a data divulgada na rede-epfclbrasil@googlegroups.com, na if-epfcl@champlacanien.net e na página do Facebook da revista (/Revista-Stylus) 2.) Distribuição para parecer. 3.) Encaminhamento do parecer para a reunião da EPS para decisão final. 4.) Informação para o autor: se recusado, se aprovado ou se necessita de reformulação (neste caso, é definido um prazo de vinte dias, findo o qual o artigo é desconsiderado, caso o autor não o reformule apropriadamente). 5.) Após a aprovação o autor deverá enviar à EPS no prazo de sete dias úteis um e-mail contendo um arquivo de seu texto, definido para impressão. 6.) Direitos autorais: a aprovação dos textos implica a cessão imediata e sem ônus dos direitos autorais de publicação nesta revista, a qual terá exclusividade de publicá-los em primeira mão. O autor continuará a deter os direitos autorais para publicações posteriores. 7.) Publicação.

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Nota: não haverá banco de arquivos para os números seguintes. O autor que desejar publicar deverá encaminhar seu texto a cada número de Stylus.

Serão aceitos trabalhos para as seguintes seções: Conferências: conferências proferidas sobre temas psicanalíticos ou de interesse da psicanálise no âmbito dos Fóruns do Campo Lacaniano em Diagonais Epistêmicas e outras atividades, nas Universidades, nos Encontros da EPFCL Nacionais e Internacionais. As conferências proferidas oralmente serão transcritas. Artigos: análise de um tema proposto, levando ao questionamento e/ou a novas elaborações (aproximadamente 12 laudas ou 25.200 caracteres, incluindo referências bibliográficas e notas). Ensaios: apresentação e discussão a partir da experiência psicanalítica de problemas cruciais da psicanálise no que estes concernem à transmissão da psicanálise. Expressão mais subjetiva das escolhas discursivas e, portanto, podendo apresentar conclusão mais original (aproximadamente de 5 laudas ou 9.000 caracteres até 15 laudas ou 31.000 caracteres, incluindo referências bibliográficas e notas). Resenhas: resenha crítica ou descritiva de livros, filmes, peças teatrais ou teses de mestrado ou doutorado, cujo conteúdo se articule ou seja de interesse da psicanálise (aproximadamente de 2 a 5 laudas, entre 3.000 e 9.000 caracteres). Entrevistas: entrevista que aborde temas de psicanálise ou afins à psicanálise (aproximadamente 10 laudas ou 21.000 caracteres, incluindo referências bibliográficas e notas). Letras: poesias e poemas de autores brasileiros ou estrangeiros que tenham relação com o tema proposto para aquela edição específica da revista. STYLUS possui as seguintes seções: conferência, ensaios, trabalho crítico com os conceitos, direção do tratamento, espaço escola, entrevista e resenhas e letras; cabendo à EPS decidir sobre a inserção dos textos selecionados no corpo da revista.

Apresentação dos Manuscritos: Formatação: Os artigos devem ser digitados em Word for Windows, versão 6.0 ou superior, com extensão (.doc), em fonte Times New Roman, tamanho 12, em folha de formato A4, com espaçamento 1,5 entre linhas, margens superior, inferior e laterais de 2 cm. Ilustrações: O número de figuras (quadros, gráficos, imagens, esquemas) deverá ser mínimo (máximo de 5 por artigo, salvo exceções, que deverão ser justificadas por escrito pelo autor e avalizadas pela EPS) e devem vir separadamente em arquivo JPEG nomeados Fig. 1, Fig. 2 e indicadas no corpo do texto o local dessas

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Fig. 1, Fig. 2., sucessivamente. As ilustrações devem trazer abaixo um título ou legenda com a indicação da fonte, quando houver. Resumo / Abstract: todos os trabalhos (artigos, entrevistas) deverão conter um resumo na língua vernácula e um abstract em língua inglesa, contendo de 100 a 200 palavras. Deverão trazer também um mínimo de três e um máximo de cinco palavras-chave (português) e keywords (inglês) e a tradução do título do trabalho. As resenhas necessitam apenas das palavras-chave e keywords.

Envio dos manuscritos: Ao enviar o artigo para a revista, o autor compromete-se a não o encaminhar para outro(s) veículo(s) de publicação, pelo prazo de seis meses, a contar da data do envio. Preferencialmente, as propostas de publicação devem ser enviadas via internet, como anexo, para o e-mail revistastylus@yahoo.com.br. Alternativamente, podem ser enviadas em mídia digital, acompanhadas de três cópias impressas, para o seguinte endereço: Fórum do Campo Lacaniano – São Paulo Revista Stylus: Revista de Psicanálise da Associação de Fóruns do Campo Lacaniano Brasil Rua Veríssimo Glória, 126. CEP: 01251-140 – Sumaré (São Paulo – SP)

Os artigos devem conter os seguintes elementos:

Normas de publicação • Primeira lauda contendo apenas o título do artigo, nome(s) do(s) autor(es), dados do(s) autor(es) [titulação, filiação institucional e referências acadêmicas e profissionais, em 10 linhas, no máximo] e endereço completo (com e-mail). • Demais laudas, numeradas consecutivamente a partir de 1 (um), repetindo o título, sem o(s) nome(s) do(s) autor(es), e contendo o texto da publicação. • No caso de investigações/desenvolvimentos teóricos, relatos de pesquisas, debates e entrevistas, deve ser incluído um resumo de no máximo trezentas palavras, ao final, na mesma língua do trabalho, acompanhado de palavras-chave (no mínimo três e no máximo sete). Após esse resumo, deve-se incluir também uma tradução do mesmo, em inglês (abstract), acompanhada da tradução do título e das palavras-chave. • No caso de entrevista, devem ser incluídos, ao final, os seguintes dados: data da entrevista, nome do entrevistador, nome do entrevistado e dados completos de

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identificação de ambos (titulação, filiação institucional e referências acadêmicas e profissionais). Opcionalmente, podem ser incluídos dados relevantes sobre o contexto em que foi realizada a entrevista. • No caso de resenhas, deve-se incluir, ao final, a referência completa da obra resenhada. As ilustrações devem ter seu lugar indicado no texto e devem ser enviadas também em anexos separados, em formato de arquivo JEPG. Devem ser nomeadas Fig. 1, Fig. 2, sucessivamente, podendo ainda ter um título sugestivo do seu conteúdo.

SOBRE CITAÇÕES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Indicamos a NBR 6023 da Associação Brasileira das Normas Técnicas, lançada em 2002, disponível nos seguintes endereços eletrônicos, ambos oriundos do sítio (http://www.ip.usp.br/portal/) da Biblioteca Dante Moreira Leite, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo: Citações: (http://www.ip.usp.br/portal/images/stories/manuais/citacoesabnt.pdf) Referências bibliográficas: (http://www.ip.usp.br/portal/images/stories/manuais/normalizacaodereferenciasabnt.pdf)

Citações no texto: 1. As citações diretas (ou textuais) devem reproduzir fielmente as palavras do autor ou o trecho do texto utilizado. Exemplo: Dessa maneira, Quinet (1991, p. 87) adverte que “não há duas pessoas que lidem com o dinheiro da mesma forma”. 2. Já as citações diretas (ou textuais) que excederem três linhas devem vir em parágrafo separado, com recuo de quatro cm da margem esquerda (além do parágrafo de 1,25cm) com letra menor do que a do texto e sem utilização de aspas. Os títulos de textos citados devem vir em itálico (sem aspas), os nomes e sobrenomes em formato normal (Lacan, Freud). Exemplo: Freud (1910, p. 130) em As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica, destaca um aspecto importante: Agora que um considerável número de pessoas está praticando a psicanálise e, reciprocamente, trocando observações, notamos que nenhum psicanalista avança além do quanto permitam seus próprios complexos e resistências internas; e, em consequência, requeremos que ele deva iniciar sua atividade por uma autoanálise e levá-la, de modo contínuo, cada vez mais profundamente, enquanto es-

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teja realizando suas observações sobre seus pacientes. Qualquer um que falhe em produzir resultados numa autoanálise desse tipo deve desistir, imediatamente, de qualquer ideia de tornar-se capaz de tratar pacientes pela análise. 1. As citações indiretas devem conter as ideias daquele que escreve o texto, mas também devem referendar as ideias originais do autor citado, em letras maiúsculas. Exemplo: Lacan sempre deixou claro sua posição sobre os psicanalistas que se acomodavam frente aos mecanismos institucionais das escolas psicanalíticas daquela época, com suas burocracias e rituais questionáveis (LACAN, 1956). 2. As citações de obras antigas e reeditadas devem ser feitas da seguinte maneira: Kraepelin (1899/1999). 3. No caso de citação de artigo de autoria múltipla, as normas são as seguintes: A) até três autores – o sobrenome de todos os autores é mencionado em todas as citações, por exemplo: (ALBERTI e ELIA, 2000). B) de quatro a seis autores – o sobrenome de todos os autores é citado na primeira citação, como acima. Da segunda citação em diante só o sobrenome do primeiro autor é mencionado, como abaixo (ALBERTI et al, 2009, p. 122). C) mais de seis autores – no texto, desde a primeira citação, somente o sobrenome do primeiro autor é mencionado, mas nas referências bibliográficas os nomes de todos os autores devem ser relacionados. 4. Quando houver repetição da obra citada na sequência deve vir indicado Ibid., p. (página citada.). 5. Quando houver citação da obra já citada, porém fora da sequência da nota, deve vir indicado o nome da obra em itálico, op. cit., p. (Kant com Sade, op. cit., p. 781). 6. Caso a fonte seja um website ou página eletrônica, deve-se explicitar o endereço eletrônico de acesso, entre parênteses, após a informação, (http:// www.campolacanianosp.com.br/).

notas de rodapé: As notas não bibliográficas, indicações, observações ou aditamentos ao texto feitos pelo autor ou editor, devem ser reduzidas a um mínimo indispensável, ordenadas por algarismos arábicos e organizadas como nota de rodapé, ao final da página em questão.

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Referências Bibliográficas: Os títulos de livros, periódicos, relatórios, teses e trabalhos apresentados em congressos devem ser colocados em itálico. O sobrenome do(s) autor(es) deve vir em caixa alta, seguido do prenome abreviado. Livros, livro de coleção: 1.1 LACAN, J. (1955). A coisa freudiana. In:______. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. pp. 402-437. 1.2 FREUD, S. (1920). Além do princípio de prazer. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 18, pp. 17-88). 1.3 LACAN, J. (1960-61). O seminário, livro 8: A transferência. Tradução de Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Zahar, 1992. 386 p. 1.4 Lacan, J. O seminário: A identificação (1961-62): aula de 21 de março de 1962. Inédito. 1.5 Lacan, J. O seminário: Ato psicanalítico (1967-68): aula de 27 de março de 1968. (Versão brasileira fora do comércio). 1.6. Lacan, J. Le séminaire: Le sinthome (1975-76). Paris: Association freudienne internationale, 1997. (Publication hors commerce). Obs. O destaque é para o título do livro e não para o título do capítulo. Quando se referencia várias obras do mesmo autor, substitui-se o nome do autor por um traço equivalente a seis espaços. Capítulo de Livro: Foucault, Michel. Du bon usage de la liberté. In: Foucault, M. Histoire de la folie à l’âge classique (pp. 440-482). Paris: Gallimard, 1972. Artigo em periódico científico ou revista: Quinet, Antonio. A histeria e o olhar. Falo. Salvador, n.1, pp. 29-33, 1987. Obras antigas com reedição em data posterior: Alighieri, Dante. Tutte le opere. Roma: Newton, 1993. (Originalmente publicado em 1321). Teses e dissertações: Teixeira, A. A teoria dos quatro discursos: uma elaboração formalizada da clínica psicanalítica. Rio de Janeiro, 2001. 250 f. Dissertação.

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(Mestrado em Teoria Psicanalítica) – Instituto de Psicologia. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001. Relatório técnico: Barros de Oliveira, Maria Helena. Política Nacional de Saúde do Trabalhador. (Relatório No). Rio de Janeiro. CNPq, 1992. Trabalho apresentado em congresso e publicado em anais: Pamplona, Graça. Psicanálise: uma profissão? Regulamentável? Questões Lacanianas. Trabalho apresentado no Colóquio Internacional Lacan no Século. 2001 Odisseia Lacaniana, I, 2001, abril; Rio de Janeiro, Brasil. Obra no prelo: No lugar da data deverá constar (No prelo). Autoria institucional: American Psychiatric Association. DSM-III-R, Diagnostic and statistical manual of mental disorder (3rd edition revised.) Washington, DC: Author, 1998. CD Room – Gatto, Clarice. Perspectiva interdisciplinar e atenção em Saúde Coletiva. Anais do VI Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva. Salvador: ABRASCO, 2000. CD-ROM. Home Page: Gerbase, Jairo. Sintoma e tempo: aula de 14 de maio de 1999. Disponível em: www.campopsicanalitico.com.br. Acesso em: 10 de julho de 2002. Fontes eletrônicas: Fingermann, D. A análise dos analistas. Jornal de psicanálise, São Paulo, v. 41, n. 74, jun. 2008. Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-58352008000100008&lng=pt&nrm =iso>. Acesso em 8 abr. 2011. Outras dúvidas poderão ser sanadas consultando-se a versão original da ABNT 6023, como dito anteriormente, ou eventualmente endereçadas à Equipe de Publicação da Revista Stylus (EPS) para o e-mail revistastylus@yahoo.com.br

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Pareceristas Stylus 32 Ana Laura Prates Pacheco Ana Paula Gianesi Andréa Brunetto Andréa Franco Milagres Andréa Rodrigues Angela Diniz Costa Ângela Mucida Barbara Guatimosim Beatriz Almeida Beatriz Oliveira Bernard Nominé Clarice Gatto Colette Sepel Conrado Ramos Daniela Chatelard Eliane Schermann Elisabete Thamer Elisabeth Saporiti Elizabeth da Rocha Miranda Elynes Barros Lima Fátima Pereira Gabriel Lombardi Georgina Cerquise Glaucia Nagem Graça Pamplona Gracia Azevedo Henry Krutzen Jairo Gerbase José Antonio Pereira da Silva Katia Botelho Leandro Santos Lenita Pacheco Lia Silveira Luis Achilles Furtado Luis Andrade Luís Guilherme Coelho

Marcia Assis Marcus do Rio Teixeira Maria Helena Martinho Maria Vitoria Bittencourt Nelson da Silva Jr. Osvaldo Costa Paulo Rona Raul Albino Pacheco Filho Ronaldo Torres Rosane Melo Roseli Rodella Sandra Berta Sonia Borges Sonia Magalhães Tatiana Assadi Vera Edington Vera Pollo Zilda Machado

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“O que distingue o discurso do capitalista é a Verwerfung, a rejeição; a rejeição fora de todos os campos do

simbólico aquilo que eu já disse que tem como consequência a rejeiçãolacaniano de quê? Da castração. Toda escola decompsicanálise dos fóruns do campo - brasil ordem, todo discurso aparentado ao capitalismo deixa de lado o que chamaremos, simplesmente, as coisas do amor, meus bons amigos. Vocês veem isso, hein, não é pouca coisa.” (LACAN, J. O seminário O saber do psicanalista, inédito, Aula de 06/01/1972).

Stylus

ISSN 1676-157X

revista de psicanálise

Stylus Rio de Janeiro

nº33

novembro 2016


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