Stylus 32

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ISSN 1676-157X junho 2016 no 32

Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano ‒ Brasil

stylus R E V I S TA

DE PSICANÁLISE

Clínica psicanalítica: Laços e desenlaces



escola de psicanรกlise dos fรณruns do campo lacaniano - brasil

Stylus revista de psicanรกlise

Stylus Rio de Janeiro

nยบ32 p.1-288

junho 2016


© 2016, Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (AFCL/EPFCL-Brasil) Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem permissão por escrito. Stylus – Revista de Psicanálise É uma publicação semestral da Associação Fóruns do Campo Lacaniano/Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil. Rua Goethe, 66 – 2o andar. Botafogo. Rio de Janeiro, RJ – Brasil CEP 22281-020 – www.campolacaniano.com.br – revistastylus@yahoo.com.br Comissão de Gestão da AFCL/EPFCL-Brasil

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FICHA CATALOGRÁFICA STYLUS: revista de psicanálise, n. 32, junho de 2016 Rio de Janeiro: Associação Fóruns do Campo Lacaniano Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil – 17x24 cm Resumos em português e em inglês em todos os artigos. Periodicidade semestral. ISSN 1676-157X 1. Psicanálise. 2. Psicanalistas – Formação. 3. Psiquiatria social. 4. Psicanálise lacaniana. Psicanálise e arte. Psicanálise e literatura. Psicanálise e política. CDD: 50.195


sumário 07 editorial: Dominique Fingermann conferência 13 Camila Vidal: Névoa direção do tratamento 27 Ana Laura Prates Pacheco: Desfazendo nó cego, dissolvendo nó na garganta e dando nó em pingo d’água 37 Bernard Nominé: Desenlace da transferência 47 Luciana Guarreschi: Esperança e ato 53 Miriam Ximenes Pinho: A morte da amada: Do luto romântico ou da morte como bom encontro 65 Ricardo Cabral: Amor: Sinal que se muda de laço estruturas clínicas: laços e desenlaces 79 Andréa Franco Milagres: Enlaces e desenlaces na clínica das psicoses: Três fragmentos de amor erotômano 89 Dominique Fingermann: Pânico e fobia: Enlace e desenlace da angústia 99 Paula Rodrigues Calado: Sobre o delírio na psicose: A relação com o Grande Outro na paranoia e na esquizofrenia 109 Muriel Mosconi: Joyce: Rupturas e laços 123 Maria Claudia Formigoni: Perversão ou “posição perversa”? Caminhos para a construção de uma hipótese diagnóstica ensaios 139 Isalena Santos Carvalho e Daniela Chatelard: O nome: Um direito ou um dever? 151 Elynes Barros de Lima: Par ou ímpar? 157 Julia Minaudo: A arte da e(s)quivocação ou a arte de se esquivar pelo equívoco 163 Raul Albino Pacheco Filho: Do mel ao fel: Metamorfoses da estratégia de gozo em Roman Polanski trabalho crítico com conceitos 181 Beatriz Elena Maya: Psicologia das massas: Método analógico? 191 Samantha Abuleac Steinberg: Enlaces do grafo do desejo com os discursos, a partir do Seminário 16, de J. Lacan

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espaço Escola 201 Beatriz Elena Zuluaga Jaramillo: A imensa precariedade do desejo 209 Daniele Guilhermino Salfatis: A transmissão como sustentação do passe: para além da nomeação 219 Katarina Aragão Ponciano: O laço e a videira: O que enlaça o psicanalista a Escola de Lacan? 225 Matías Buttini: Vozes a partir do inaudível: Verificação, auditoria e passagem pela Escola resenhas 241 Pedro Ambra: Vers l’identité, de Colette Soler 245 Fernanda Zacharewicz e Maria Claudia Formigoni: Atas da Sociedade Psicanalítica de Viena 1906-1908, organização de Marcelo Checchia, Ronaldo Torres, Waldo Hoffmann 249 Alfredo Eidelsztein: Atos de fala, de Jairo Gerbase entrevista 253 Vladimir Safatle entrevistado por Ronaldo Torres

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contents 07 editorial: Dominique Fingermann conference 13 Camilla Vidal: Haze the direction of the treatment 27 Ana Laura Prates Pacheco: Untying a tight knot, dissolving a knot in the throat and getting blood from a stone 37 Bernard Nominé: Outcome of the transference 47 Luciana Guarreschi: Hope and act 53 Miriam Ximenes Pinho: The death of the beloved woman: Of the romantic mourning or death as a good encounter 65 Ricardo Cabral: Love: A sign that changes the bond clinical structures: linkings and unlinkings 79 Andréa Franco Milagres: Connections and disconnections in the clinic of psychosis: Three fragments of the erotomanian love 89 Dominique Fingermann: Panic and phobia: Connection and disconnection of anguish 99 Paula Rodrigues Calado: Delirium in psychosis: The relation with the Big Other in paranoia and schizophrenia 109 Muriel Mosconi: Joyce: Ruptures and bonds 123 Maria Claudia Formigoni: Perversion or perverse position? Ways to the construction of a diagnosis essays 139 Isalena Santos Carvalho e Daniela Chatelard: The name: A right or a duty? 151 Elynes Barros de Lima: Even or odd? 157 Julia Minaudo: The art of “e(s)quivocation” or the art of slipping out through equivocality 163 Raul Albino Pacheco Filho: From honey to gall: Metamorphoses of the jouissance strategy in Roman Polanski critical paper with the concepts 181 Beatriz Elena Maya: Psychology of the masses: An analogic method? 191 Samantha Abuleac Steinberg: Bonds of graph of desire with the discourses, from J. Lacan’s Seminar 16

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school context 201 Beatriz Elena Zuluaga Jaramillo: The desire’s immense precariousness 209 Daniele Guilhermino Salfatis: Transmission as sustenance of the pass: Beyond the nomination 219 Katarina Aragão Ponciano: The tie and the grape tree: What ties the psychoanalyst to Lacan’s School 225 Matías Buttini: Voices from the inaudible: Verification, auditing, and passage to the School review 241 Pedro Ambra: Vers l’identité, from Colette Soler 245 Fernanda Zacharewicz e Maria Claudia Formigoni: Atas da Sociedade Psicanalítica de Viena 1906-1908, from Marcelo Checchia, Ronaldo Torres, Waldo Hoffmann (org.) 249 Alfredo Eidelsztein: Atos de fala, from Jairo Gerbase interview 253 Vladimir Safatle interviewed by Ronaldo Torres

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Editorial Clínica Psicanalítica: Laços e Desenlaces A ética própria ao discurso analítico causa e determina os “laços e desenlaces da clínica psicanalítica”. Stylus 32 se propõe a desenvolver os tratamentos lógico-éticos dos laços na experiência de uma análise e sua relação com os desencadeamentos e desenlaces que ela proporciona assim como os novos enodamentos que ela venha, eventualmente, a disparar. O discurso psicanalítico e a experiência que este proporciona apresentam uma chance de resposta àquilo que não faz laço e que chega a se manifestar no mundo como inibição, sintoma, angústia, isto é, como avatares de um sujeito, dividido entre corpo e significante, entre signo e sentido, entre real e semblante, avatares do fala-ser. Essa resposta de analista, da qual nós analistas temos a responsabilidade, constitui um laço extra-ordinário, excepcional, por fazer laço com aquilo que se apresenta como solidão radical, desenlace fundamental: o sintoma singular da estúpida e inefável existência de cada sujeito particularmente tocado e enlaçado pela lei do significante. Há um desenlace fundamental: a marca de gozo, que isola, mas distingue Um que ex-siste como único e incomparável: fora de série. Como não escamotear essa marca única nos laços necessários possíveis e contingentes com o outro? Além da insistente questão da direção da cura e de sua teimosa orientação lógica e ética em direção ao final de análise, podemos ler aqui como os autores levam em conta a topologia borromeana para adentrar a delicada questão das estruturas clínicas e dos novos enodamentos que a clínica lacaniana permite precipitar, construir. Os 21 trabalhos, assim como as 3 resenhas e a entrevista, são o fruto da “práxis da teoria” constante da comunidade de trabalho dos Fóruns do Campo Lacaniano, e são procedentes de analistas da Argentina, Brasil, Colômbia, Espanha, França, nomes conhecidos do público e muitos outros, mais “novos”, que temos o prazer de apresentar para o leitor. Começamos com a Conferência de Camila Vidal, Analista de Escola (A.E.) da Espanha. A conferência “Névoa”, pronunciada durante o Encontro Nacional de 2015, em Curitiba, agora publicada, expõe com extrema simplicidade o percurso de uma análise que leva um sujeito do desejo de ser analista ao desejo de analista, descrito como uma “névoa” que não se dissipa, como uma tentativa de preservar algo do real ao avesso da insistência do sentido. Em Direção do tratamento, Ana Laura Prates Pacheco (com sua rigorosa referência ao avanço borromeano), Bernard Nominé (desde sua experiência no cartel

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do passe propondo o caminho do equívoco da transferência até a transferência de trabalho) e Luciana Guarreschi (com sua instigante indagação da esperança enquanto oposta ao ato) abordam precisamente a direção do tratamento analítico pela operação do ato analítico até seu fim. Miriam Ximenes Pinho e Ricardo Cabral nos oferecem mais algumas voltas na questão do amor que, como sabemos, está no centro da relação transferencial. Na rubrica Estruturas clínicas: Laços e desenlaces, Andréa Franco Milagres, Dominique Fingermann, Paula Rodrigues Calado, Muriel Mosconi e Maria Claudia Formigoni desenvolvem as soluções da neurose, psicose e perversão como diversos enodamentos possíveis dos três registros, enodamentos do sintoma em resposta à angústia. Ensaios: Quatro ensaios compõem esta seção. Isalena Santos Carvalho e Daniela Chatelard discutem como ocorre o processo de nomeação no Brasil, afirmando que o nome é uma marca que requer resposta. O texto de Elynes Barros de Lima aborda o conceito do Um desde o seminário O saber do psicanalista. Julia Minaudo se baseia na experiência da clínica e em uma leitura do “Joyce” de Lacan para precisar a práxis analítica como uma arte de e(s)quivocacão, permitindo desviar do senso comum de uma neurose. Raul Albino Pacheco Filho oferece uma bela leitura do filme Bitter moon, de Roman Polanski, para propor uma discussão sobre os aspectos distintivos estruturais entre neurose e perversão. Trabalho crítico com conceitos traz o primoroso trabalho crítico de Beatriz Elena Maya, que relê a famosa frase de Freud “a psicologia individual é simultaneamente psicologia social” a partir do ensino de Lacan e de sua abordagem da relação do singular com o coletivo. Samantha Abuleac Steinberg se debruça em uma leitura aguda do Seminário 16 de Lacan para desenvolver um cotejamento pertinente do grafo do desejo, apresentado aqui com os Discursos em plena construção neste momento. Espaço Escola – “A Escola, a prova” dizia Lacan, a escola persiste e insiste ainda e sempre, na sua provação teimosa! Beatriz Elena Zuluaga Jaramillo, Daniele Guilhermino Salfatis, Katarina Aragão Ponciano, Matías Buttini dão vozes às questões fundamentais que fomentam a vivacidade da psicanálise graças ao refúgio em que consiste a Escola de Psicanálise. As palavras-chave que eles elencam e desdobram não são palavras de ordem, mas convocação e provocação para que a Escola persista como lugar privilegiado de manutenção da intranquilidade. Por fim, as Resenhas de Pedro Ambra, Fernanda Zacharewicz e Maria Claudia Formigoni e Alfredo Eidelsztein nos permitem um acesso ímpar e rigoroso às recentes publicações de Colette Soler e de Jairo Gerbase, assim como ao formidável trabalho de edição das Atas da Sociedade Psicanalítica de Viena 1906-1908, organizadas por nossos colegas Marcelo Checchia, Ronaldo Torres e Waldo Hoffmann. Last but not least, na seção Entrevista, nosso colaborador Ronaldo Torres conversou com Vladimir Safatle, atuante filosófo de São Paulo cujo envolvimento com

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a psicanálise lacaniana atravessa seu engajamento na presença viva da filosofia no século XXI, assim como a “responsabilidade intempestiva” com a qual ocupa um lugar de destaque no campo da política de nosso país . Desejamos a todos uma ótima leitura! Dominique Fingermann pela Equipe de Publicação de Stylus (2014-2016)

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conferĂŞncia



Névoa… Camila Vidal Calima... dá no mesmo, pois depende do acaso, de onde venha o vento, se do deserto ou de algo não menos árido, do mar. Ante a aleatoriedade do vento, prepotência da presença. “Névoa” foi o significante surgido ao final da análise para tentar nomear o real. Real enlaçado ao gozo feminino por meio da sobredeterminação do sintoma. O passe é uma tentativa de que esta névoa não se dissipe, tal como este escrito e todos os outros que o sucederão, pois só o intento de escrever permite tornar patente o que não pode ser dito, o que não pode ser lido, evocando o lugar fundamental da ex-sistência em qualquer realização humana, apenas se a pessoa consentir.

Primeiro Já fazia um tempo que eu sabia que a análise tinha sido concluída, mas eu não estava sendo capaz de encontrar um ponto de parada que me permitisse finalizá-la. Um dia disse à minha analista: “[...] eu já sei que a análise está terminada, não há nada mais que esperar, mas a verdade é que eu sinto que há algo do real que não foi tocado.” “[...] Talvez para você seja assim”, respondeu a minha analista, para minha surpresa, dando por terminada a sessão. Então, de repente, me dou conta de algo que não havia sido possível pensar em todos esses anos de análise, apesar de ser algo que estava totalmente à vista. Tão à vista como “... a calima” com que, aos oito anos, me nomeia – por acaso – em um lapso, o segundo irmão do meu filho ao conhecer-me. Eu sou a terceira de quatro irmãos. O primeiro é um menino que, ao nascer, o pai registra com nome de um irmão seu, nome este que minha mãe disse que jamais escolheria. O segundo, nascido dez meses depois, outro menino, registrado com o nome do pai, porque, já que não o tinha colocado no primeiro filho, era lógico, de acordo com a lógica daquele tempo, que o fizesse com o segundo.

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Quando eu cheguei, era a vez da mãe escolher o nome, uma vez que os outros tinham nomes da família paterna. Então minha mãe quis colocar Camila, como o nome dela; a madrinha também queria que a menina levasse o seu nome, então disseram: “pois bem, não importa, Camila Juana”. Porém, eis que eu nasci no dia de San Ramón (São Raimundo) que, além de ser padroeiro dos natimortos, era o nome de um tio materno, homem de reconhecido prestígio por seus estudos científicos, e assim a coisa ficou um pouco bizarra: Camila Juana Ramona. Entretanto, finalmente ela me chama “Cucaracha”1, nome que meus irmãos simplificam para Cuca. Pude entender, de repente, do que se tratava, ou seja, da dificuldade da minha mãe para colocar-me um nome. Quando chega a sua vez de escolher, ela simplesmente não consegue. Este “colocar-me um nome” cai, um pouco depois, quando posso escutar o seu desejo de ser cremada no momento de sua morte e quando diz que não será preciso colocar nenhum nome sobre a lápide, porque afinal “já está o do papai”. Sua dificuldade não era colocar um nome na sua filha, era uma dificuldade com o nome mesmo. A queda do sujeito suposto saber, com este “... há algo de real que não havia sido tocado”, produz, de forma quase simultânea, o atravessamento do fantasma e a queda do Outro, ao mesmo tempo que transforma o significante “Cucaracha” em Sinthoma. Surge então um axioma: “fazer-se um nome com as insígnias do Outro” e toda a história pode ser reinterpretada. Cucaracha marcou com um “fazer-se esmagar” a existência. A descoberta de que por trás deste “Cucaracha”, se encontra a dificuldade materna com o nome, deixa vislumbrar a opacidade do desejo materno e produz a queda do Outro: “[...] não era uma dificuldade com ela, era uma dificuldade dela mesma”. Chegando neste ponto, “cucaracha” é o mesmo que qualquer outro significante dotado de qualquer outra significação possível. Pouco importa, ainda que não seja 1 Preferimos manter a palavra cucaracha – barata em português –, pois este significante, sua homofonia, suas consequências e desdobramentos foram importantes neste testemunho. (N.T.)

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indiferente, claro, e que tal significação tenha tido grande importância ao longo da história. Pouco importa o sentido, porque a significação cai, já não é necessário fazer-se esmagar para sustentar o sintoma, para sustentar o Outro. Do que se trata não é de “Cucaracha” e desta dificuldade materna em nomearme, que deriva de nomear-se a si mesma, que é o que está na base deste significante; o que importa é que a dificuldade de nomear-se da minha mãe nos remete a um oximoro, por um lado nomear-se com o nome do outro, seu marido, e, por outro lado não, ser necessário ser sustentada por nenhum significante. Capturar o oximoro implica a queda deste irremediável e inútil “tratar de constituir-se um nome com as insígnias do Outro”, que foi o “hic et nunc” da minha vida. Entretanto, vamos por partes: este “fazer-se um nome com as insígnias do Outro” permite também reler uma queixa antiga: “[...] o sentimento de que somente o meu desejo não seria suficiente para a vida, desejo desfalecente, afirmava eu, que me tinha feito apelar sempre a um outro para apoiá-lo, para sustentá-lo e cuja consequência era inevitavelmente o sentimento de sentir-me esmagada pelo peso deste outro, debaixo de um significante, um ‘[...] coitadinha da Cuca’, que fechava o círculo infernal”. Um sintoma precoce e “indecifrável” aparece então sobredeterminado e permite circunscrever algo do gozo feminino. Desde sempre tive dificuldades para recordar os nomes próprios, não só das pessoas, mas também das ruas, dos locais, dos títulos de livros etc. Este sintoma me colocava (me coloca) em situações muito embaraçosas, nas quais eu me sentia muito mal por não conseguir recordar o nome de um autor muito conhecido por mim, o título de algum romance ou o nome de pessoas próximas o bastante para que o esquecimento fosse interpretado como descuido e desinteresse. Porém, isso também dificultava muito a minha vida no nível do cotidiano: longas explicações sobre a localização de um lugar onde eu combinava de encontrarme com um amigo ou conhecido, explicações que, por serem muito imprecisas, acabavam confundindo-me e dando lugar a memoráveis desencontros. O resultado de tudo isso era a sensação de não me inteirar de nada, de não poder concretizar, de estar sempre na corda bamba. Muito rapidamente renunciei a encontrar um sentido para estes “esquecimentos” massivos, pois este sintoma descartava qualquer interpretação ao estilo do “Signorelli” freudiano, e então passei anos não fazendo outra coisa a não ser constatá-los, atribuindo-os a esse “desejo desfalecente” que eu me designava.

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“É como não querer se submeter a algo do simbólico”, eu disse um dia à minha analista, como que trazendo, sem importância alguma, um dos reversos do oximoro materno, em uma sessão depois de relatar um desagradável incidente com alguém próximo: “[...] com o fácil que é dizer que nos encontramos em tal cafeteria de tal rua, no lugar destes grandes circunlóquios... que me permitem ficar na indeterminação, no desencontro. Isso de simplicidade é para os outros, eu estou em outra parte”. Este “permanecer na indeterminação”, por fora do gozo fálico, essa falta de limite que os nomes próprios circunscrevem, não deixa muito lugar para o “desejo decidido”, já que todo desejo forte e circunscrito é limitado, concreto. É assim que consigo entender a ideia freudiana de que as mulheres não propiciam a cultura; este gozo feminino, ilimitado e deslocalizado, não serve para nada, não permite as realizações culturais, haja vista que estas precisam do contorno fálico, uma coisa depois da outra, em determinada ordem. Porém, o que não é útil à produção da cultura, talvez seja eficaz para penetrar no inconsciente. Era o que eu tinha a descobrir. Descobrir a abertura do indeterminado na debilidade mental. Sempre quis ser psicanalista. Nunca, desde que posso me lembrar, pude ao menos conceber a ideia de dedicar-me a qualquer outra coisa. Psicóloga infantil, dizia eu, até o encontro prematuro com os textos de Freud. Minha mãe dizia que eu era “mórbida”. Efetivamente tive, desde muito pequena, um gosto particular pela visão do sofrimento, das catástrofes e das malformações corporais – hoje abundantes na minha família –, ou seja, um gosto decidido pelo horror. Durante a minha análise pude descobrir que meu desejo de analista tinha a ver com a necessidade de perguntar-se sobre este horror: “[...] Algo disto é o desejo de analista, porém sem a morbidez”, disse deitada no divã.

Segundo Desde “sempre” também tive o sentimento de que algo não “funcionava” para mim. Isso que “não funcionava” tinha a ver com uma hipersexualização do mundo absolutamente desconhecida até muitos anos depois de minha entrada em análise. Uma hipersexualização que fragmentava tudo e desordenava profundamente a realidade. Tudo se reduzia a sexo. 16

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Não é que eu fosse uma menina particularmente sexual, pelo contrário. Neguei-me obstinadamente – para o desgosto da minha mãe para quem a beleza era algo fundamental na vida –, durante boa parte da minha, a encarnar qualquer coisa que tivesse a ver com o desejo do outro masculino: Ficar bonita, arrumar-me, produzia em mim um rechaço radical. Minha primeira interpretação, ou talvez devesse dizer “a interpretação”, foi a de que essa aversão a este interesse desmedido que tinha a minha mãe pelo belo, era um rechaço a “ela”. Um repúdio também da feminilidade no sentido mais freudiano do termo, como um não aceitar ter nascido menina, porém o longo percurso analítico me permitiu circunscrever em um algo mais além. Esse rechaço está relacionado com o que chamo hipersexualização do mundo, que incluía um repúdio do fálico. Uma recordação. Minha mãe me manda comprar um pijama, vou com uma amiga e trago dois para casa para mostrar: um bonito e outro claramente feio. Tanto minha mãe como minha amiga me incentivam a ficar com o bonito, mas eu teimo em querer o outro. Não entro no jogo de ter, isso para elas. Não se trata de gozar da falta, do gozo de estar privada, de que falava Freud, mas de gozar de outra coisa, que não tem relação com a privação, nem leva junto queixa ou lamento algum. E aí, neste ponto, o belo sobra. Algo do gozo feminino aparece neste sem limites do sexual, diante do qual o gozo fálico empalidece; é essa erotização geral que dava a toda minha existência um peso singular, muito distanciado do sentimento trágico da vida que, em sua vertente mais histérica, encarnava a família da minha mãe. Essa erotização dotava a minha existência e todos os meus atos de um peso que se traduzia em uma falta de ligeireza, de centelha de vida que se acumulava sobre meus ombros a cada manhã quando eu tentava me levantar. Não era ausência de satisfação, que eu obtinha inclusive do estudo, ponto especial de condensação e que, à diferença da erotização fálica – que impede muitas vezes, sobretudo aos homens, o poder estudar – não me impedia em absoluto, ao contrário, permitia uma entrega decidida aos estudos, bons resultados acadêmicos e o sentimento, absolutamente verdadeiro, de não poder aprender nada mais do que fragmentos desconexos sem conseguir uma visão de conjunto que me permitisse pensar um pouco mais além daquilo que estudava. Eu funcionava à maneira de Antígona, que podia sacrificar tudo na proteção deste “sem limites”. Tudo era prescindível, nada valia mais do que qualquer outra coisa, exceto este saber encontrado nos livros, tanto mais valorizado quanto maior fosse o desprezo da minha mãe por ele; primeiro, por ela não o ter; e, segundo, por tê-lo atribuído sempre aos homens que, apesar disso, ou melhor, por

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isso mesmo, “não serviam para nada na vida”, numa clara alusão aos homens da sua família, mesmo muitos deles sendo famosos homens de ciência e de leis. Este “não servir para nada na vida” faz alusão à doença mental de alguns deles, ficando assim a loucura unida, indefectivelmente, ao saber dos livros, ao estudo, e, como interrogação sobre o desejo materno, preparando desta maneira o terreno para o encontro precoce com os textos de Freud. Uma recordação desfaz de um só golpe essa hipersexualização. Com nove ou dez anos, uma amiga de infância me dizia que entre ser cega e paralítica, ela preferia mil vezes ser paralítica. Eu me calo por um momento, como que não sabendo bem qual desgraça “escolher”, mas o meu pensamento é claro. “[...] qualquer coisa é melhor do que ser paralítica”, já que isso supõe “[...] sem sexo”, pois, tal ideia se apresentava como a pior do mundo para mim. Como viver sem sexo?! Logo, melhor cega. Aí apareceu de repente o valor do “sexual”, que permitiu uma deserotização geral e ao mesmo tempo a erotização do corpo (algo se limita); uma vez circunscrito este gozo ilimitado e irrefreável, algo do fálico pôde começar a circular e teve efeitos na possibilidade de concretização do desejo em certas realizações. Segundo oximoro. O fálico começa a limitar algo por um lado, e, por outro, a continuar neste plus de fragmentação cega pela “névoa”. Vários sonhos, nos quais apareço cega, propiciaram uma queda do desejo preso do olhar. São sonhos que anunciam o final da análise; porém, me pergunto como finalizar neste ponto de queda do desejo e me coloco ainda à espera de uma recuperação impossível. Finalmente o que aparece é algo mais desencarnado. A inibição, que havia aparecido como o mais insuportável do sintoma, aparece nesta conjuntura como condição de gozo que protege em face do horror (gozo e defesa contra o mesmo). Como dizer as preferências, como formular um quero isso ou aquilo, é que se digo, já não me serve, já não é estimulante, já não serve ao gozo. Protege diante do horror em três pontos precisos: Primeiro: horror do desencarnado da sexualidade. Segundo: horror diante do gozo materno – que o desejo dela seja dela mesma, que não tenha nada a ver comigo. E, por último, como terceiro ponto, como analista: horror do ato, pois não se trata de cura. Há uma dificuldade para desalojar esse gozo da situação analítica. Fazê-lo aparecer como saber supõe o desalojamento da inibição; perder a inocência, apre-

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sentar-se como podendo suportar isso, esse gozo ilimitado, que não ordena nada, definitivamente não se trata da cura. Produziu-se então uma série de sonhos de angústia que evidenciaram a dificuldade de separação e finalmente dois deles preludiaram o final: Primeiro sonho: Estou sentada em uma cama, rodeada de cucarachas; quero descer, mas não posso, pois se eu descesse, pisaria nelas e se piso elas, fazem “CRAC”. “[...] E o que é crac?”, pergunta a analista. “[...] Um ruído”. Fim da sessão. Segundo sonho: Estou na estação do metrô em Paris para voltar para casa logo depois das sessões de análise. Tenho que olhar os mapas para ver por onde tenho que ir, mas apesar de tudo estar igual, de eu reconhecer o francês dos mapas e as indicações, tudo é diferente. Posso ler, mas não consigo entender os cartazes, nem interpretar os mapas. Tudo é igual, mas nada é o mesmo: [...] impossível voltar!!! Um umbral foi ultrapassado, não há como retroceder, é um ponto sem volta que inclui, como no sonho anterior, o sem-sentido. A intervenção do analista, esse: “... talvez para você seja assim” se apresenta como crucial para a possibilidade de finalização da cura em dois sentidos diferentes: Em primeiro lugar, “devolve a bola” ao campo do analisante. É algo assim como: “se você quiser”, ou seja, há um passo a dar apenas quando se quer. Por outro lado, introduz algo do “não todo”, porém sem a defesa, um “não todo” diferente, que permite consentir ao simbólico sem submeter-se à lógica do todo, resguardando o “não todo”, mas sem a defesa com a que eu havia tratado de sustentá-lo durante toda a vida, desde a posição de objeção, de não submissão, de “não querer submeter-me a algo do não simbólico” e [...] faz aparecer a névoa. Toda a questão da sexualização do mundo, do esquecimento dos nomes com a carga de indefinição, de não me inteirar, por fora do fálico, sem limites, sem

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pontos de corte, remete ao gozo feminino e permite outra leitura muito diferente da problemática com a mãe, entendida até este momento como rechaço da feminilidade (ódio por tê-la traído menina). Efetivamente o que eu chamava “desejo desfalecente”, esse desejo que não se atinge, não é falta de desejo. O que dificultava o desejo, a sua realização, é toda a questão do ilimitado, a falta de concisão, a indefinição permanente, deslocalizado, sem pontos de corte. Isto é o que não dá lugar ao desejo decidido, pois este é limitado, precisa do corte. Poderíamos dizer melhor que o que há, como verdadeiro problema, é uma falta de firmeza diante do real; é o passo a ser dado. Fazer-se um nome com as insígnias do outro é outra forma de defender-se diante disso, diante do real do sem nome, do Outro que não existe, fazendo existir a “Cucaracha”. Isso é o que cai, não é necessário fazer existir a “Cucaracha”, pois isso está aí, inclui o real do outro materno e esta queda permite posicionar-se de outra maneira diante desse real, sem defender-se tanto. Também a análise tinha participado desta espécie de indefinição, sem grandes cortes, também como um contínuo, presidido por este gozo que só cede ao final. O significante névoa surge aí para nomear o real. O real é essa névoa mesma que, longe de desaparecer, se mostra. O passe é uma tentativa para que essa névoa não se dissipe, já que é o que permite sair da indefinição. Tentativa de preservar algo desse real que tende constantemente ao contrário – uma insistência do sentido que sempre volta –, uma tentativa de uma nova ligação para que algo disso, que se encontrou e que é tão valioso, não se perca. O difícil é fazer permanecer a névoa, manter afastado o sentido. A névoa garante o não todo, é o gozo que falta e que já se sabe que não está no Outro, já sabe que não tem que ir buscá-lo no Outro, porque está aí do lado do Um, porém, não é mais do que névoa. Sonho pós-analítico: Tenho um bonito trabalho preparado para apresentar, estou contente porque acredito que ficou muito bom. Há um suporte com microfone atrás de uma cortina. Começo a ler, mas saem sons descoordenados, como balbucios, procuro recomeçar, mas é inútil, os sons são desconexos. Eu leio, porém, sai algo irreconhecível. Desperto-me sem angústia, mas um tanto quanto perplexa.

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Névoa...

Também para falar é necessário um recorte; articular fonemas supõe também recortar, delimitar, parar. Escreva-se o que escrever, por melhor que o faça, esse sem-sentido do lá, lá, lá não desaparece. Minha analista disse: Escreva! Porém, por mais que se escreva, algo deste lá, lá, lá não só permanece, senão que cada vez que se escreve, se faz patente, toma consistência como dificuldade, esse algo que fica sempre por fora sem poder articular-se.

Terceiro Desejo do analista: Como sujeitos, poderíamos dizer: não somos mortais. Apenas ao descobrir-se como o objeto que um foi para o Outro, que a morte toma sua consistência, permitindo uma temporalidade diferente, que propicia a realização do desejo. O final de análise permite pôr em evidência – na contingência do meu nascimento e no fato de que coubesse à minha mãe colocar-me o meu nome – a impossibilidade, a dificuldade materna para nomear-me, como um real próprio dela, e, ao mesmo tempo, como comentava anteriormente, o paradoxo de que não há significante que possa nomear o real do sujeito. Isto permite, longe dos lamentos e das reclamações, sustentados nas significações diversas que o apelido “Cucaracha” manteve durante toda a análise, poder vislumbrar o objeto que havia sido para o Outro materno. A significação de “cucaracha” cai e o gozo cai do lado do sujeito. O sujeito inventa para si mesmo um Outro, e, correlativamente, um desejo para esse Outro para escapar do horror que supõe saber-se objeto de gozo. É o atravessamento deste horror, essa posição de dejeto, que serve para que o analista possa se situar aí, como objeto para o paciente, porque sabe qual objeto foi para o Outro. O desejo do analista preso a esta “morbidez”, finalmente aparece com a névoa, esse real mesmo que já não está no Outro, que está aí, porém perdido e que permite ao analista não ir buscá-lo no analisante, mas sim deixar este lugar vazio. A questão é como mantê-lo aí, que a névoa não se dissipe. O desejo de ser psicanalista se apresenta, geralmente, como um desejo de curar, de reparar, de arrumar aquilo que a mãe não conseguiu – furor sanandis, dizia Freud. Uma pessoa quer ser psicanalista para fazer pelo outro algo melhor do que fizeram para ela mesma. É assim que Lacan nomeia os desejos de famosos psicanalistas de sua

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época: um desejo maternal – foi dito por Lacan referindo-se a Winnicott, Klein etc. Porém, o desejo de ser psicanalista, não só não é a mesma coisa que o desejo do analista, senão que é apenas desprendendo-se do primeiro – o que unicamente ocorre quando foi possível constatar a inexistência do Outro – que a pessoa pode aceder ao segundo. O desejo de analista, como o avesso da posição de saber do psicanalista, é algo inédito no mundo. O que quer dizer inédito? Inédito quer dizer que não é algo que se possa encontrar na própria história, diferentemente do desejo de ser psicanalista. Se dizemos que o analista apresenta um desejo inédito no mundo é porque ele não existe fora do dispositivo, e, diferentemente do desejo inconsciente, ele não é particular, mas faz a sua aparição com a análise mesma. O desejo de analista é o que resulta e o que se pode pôr em funcionamento uma vez que o percurso da cura desembaraçou o sujeito de sua crença no Outro, tornando-o responsável pelo seu próprio gozo, tanto daquele que tem quanto daquele que falta. Dizendo melhor, fundamentalmente do que falta, já que é o que permitirá não situar o “paciente” como objeto na busca deste gozo que falta, mas deixar este lugar vazio, permitindo ao analisante encontrar-se com esse desejo inédito, o qual, pela primeira vez, não será tomado como corpo. Este desejo, ao não estar inscrito no inconsciente do sujeito, nem na sua história, não carrega nenhuma marca pessoal. Coloca-se então um paradoxo ou um terceiro oximoro. Dizíamos que é unicamente desprendendo-se do desejo de ser psicanalista que uma pessoa pode aceder ao desejo de analista, quer dizer, só se pode sustentar o desejo de analista uma vez que a pessoa se “curou” do seu desejo de ser psicanalista. O desejo de analista não se sustenta em nenhum “querer”, mas em uma posição ética que implica um “não retroceder”, não retroceder diante do caminho percorrido, aceitar que apesar de já “não mais querer” ser psicanalista não há possibilidade de voltar atrás; o tempo inexoravelmente passou e se constitui como uma imposição que o sujeito se autoimpõe, a pessoa tem que ganhar o pão de cada dia, já não sabe fazê-lo de outra maneira a não ser atuando como psicanalista e, por momentos, conseguindo não dissipar a névoa, sendo analista. Como eu já disse, desde sempre eu quis ser psicanalista; porém, hoje posso dizer que agora sim, posso imaginar-me fazendo outras coisas e que, se eu tivesse “outra vida” – é claro que não tenho –, eu poderia satisfazer-me de muitas maneiras diferentes. Hoje minha escolha, sem dúvida forçada, como todas as escolhas, é mais livre, apesar de eu continuar escolhendo o mesmo. Dívida impagável com a psicanálise. Tradução: Silvana Pessoa Revisão da tradução: Luís Guilherme Coelho Mola 22

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resumo O desejo do analista é o que resulta e que se pode colocar em funcionamento, uma vez que o percurso da cura desvencilhou o sujeito de sua crença no Outro, fazendo-o responsável por seu próprio gozo, tanto daquele que está como daquele que falta; fundamentalmente do que falta poderíamos dizer, já que é o que permitirá situar o “paciente” não como objeto na busca desse gozo que falta, mas deixar esse lugar vazio, permitindo, assim, que o analisante se encontre com esse desejo inédito, no qual, pela primeira vez, não será tomado como corpo. Neste caso, o desejo do analista finalmente aparece com a “névoa”; esse real mesmo que já não está mais no Outro, está ali perdido, garante o não todo, é o gozo que falta e que já se sabe que não está no Outro; ele não tem que ir buscá-lo no outro, porque está ali do lado do Um, mas não é nada além de “névoa”. A questão é como mantê-lo ali, de forma que a “névoa” não se dissipe, se mantenha no limite do sentido. O passe é uma tentativa de que essa “névoa” não se dissipe, já que ele é o que permite sair da indefinição. Tentativa de preservar algo desse real que tende constantemente ao contrário da insistência do sentido que sempre volta, tentativa de um novo enlace de que algo disso que foi encontrado, tão valioso, não se perca.

palavras-chave Passar; gozo feminino; horror de saber; desejo do analista.

abstract The analyst’s desire is what results and what can be put to functioning, once the trajectory of the cure has freed the subject from his/her faith in the Other. This makes the subject responsible for his/her own jouissance, both from the one who is present and the one that is missing. Fundamentally, we could say something about the missing one, once it is the one that will allow the localization of the “patient” not as an object in search of this jouissance, but leave this place empty, thus, allowing the analysand to meet with this new desire, in which, for the first time, will not be taken as body. In this case, the analyst’s desire, finally, appears with the “haze”, this blunt real which is no longer with the Other. It is lost there, it guarantees the “not all”. It is the missing jouissance and as previously known, it is not within the Other. It does not have to look for it in the Other because it is there by the side of the One; however it is nothing but “haze”. The question is how to maintain it there, in a way that the “haze” does not dissipate, is kept in the limit of the sense. The pass is an attempt to prevent this “haze” from dissipating once it is exactly this that also allows a move away from indefinition. An attempt of preserving something of this real that, contrary to the insistence of the sense, always turns back; an attempt of a new connection with something that was found, and that for being so valuable, shall not get lost.

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keywords Pass; feminine jouissance; horror towards knowledge; analyst’s desire.

recebido 05/11/2015

aprovado 11/03/2016

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direção do tratamento



Desfazendo nó cego, dissolvendo nó na garganta e dando nó em pingo d’água! Ana Laura Prates Pacheco No Seminário RSI, que em francês ressoa como heresia, Lacan anuncia que há esperança de darmos um passo juntos, convocando os analistas da época a acompanhá-lo na aventura borromeana. Como dizem que a esperança é a última que morre, ainda hoje tentamos acompanhá-lo nesse passo que é, fundamentalmente, clínico. Lacan é enfático ao afirmar que o nó borromeano não é um esquema, aos moldes da “geometria do saco” freudiana, na qual id/ego/superego são esboçados com base na separação entre mundo externo e mundo interno. Tampouco se trata de um modelo matemático – como o era o “esquema dos espelhos conjugados”, por exemplo, chamado à época de modelo teórico. Não estamos, portanto, no plano da representação “semântica de um sistema” (RONA, 2012, p. 71). O nó muito menos é uma cosmologia, ou uma cosmogonia. Ele desafia a Estética Transcendental de Kant, para quem “o espaço não é um conceito discursivo”. Para Kant “só podemos imaginar um único espaço, e quando falamos de vários espaços, entendemos com isso apenas as partes de um único e mesmo espaço” (FERRY, 2010, p. 36). O nó não tem a pretensão de representar qualquer universo, já que ele “parte da experiência analítica e é nisso que está o seu valor”. O nó: é preciso sustentá-lo com o desejo de analista! pcpt.-cs.

EGO

pré-consciente

r rep

do

imi

ID

inconsciente

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O nó bo apresenta-nos o “espaço do parlêtre”, na medida em que só há ser da fala/palavra, a partir do acontecimento de um dizer. Graças a esse acontecimento, corpo e linguagem não se comunicam sem chiados, linhas cruzadas e quedas de ligações. Há sempre boi na linha! Não há, portanto, razão (proporção/relação) possível entre a res cogito e a res extensa, pois, como bem diz Milan Kundera em A insustentável leveza do ser, “basta amar loucamente e ouvir o ruído dos intestinos para que a unidade da alma e do corpo, ilusão lírica da era científica, imediatamente se desfaça” (KUNDERA, 1999, p. 130). As coisas da alma e do corpo não

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fazem Um; no entanto, paradoxalmente enlaçadas, compõem a única substância que interessa à psicanálise: a substância gozante. Eis a corda a partir da qual esses seres falantes se enrolam, se enroscam e, às vezes, se enforcam. Por isso Lacan define o inconsciente como dizcordante: não há nada no Inconsciente que com o corpo faça acordo. É exatamente desse falasser – ser, entretanto, riscado da metonímia do desejo –, diz-cordante (discordante) e por vezes diz(a)cordado (desacordado) que nós, analistas, nos ocupamos em nossa práxis, acolhendo seus corpos tagarelas em nossos divãs. Em RSI, Lacan dialoga poeticamente com Descartes: “Em sua regra ‘As boas maneiras para a direção do espírito’, um tal Descartes não achou supérfluo observar que não se deve ocupar imediatamente das coisas mais difíceis e árduas, mas que se deve aprofundar primeiramente nas artes menos importantes e mais simples, aquelas sobretudo em que a ordem melhor reina, como as dos artesãos que fazem a tela e os tapetes, ou as mulheres que bordam ou fazem renda, assim como todas as combinações de números e todas as operações que se relacionam com a aritmética e outras coisas semelhantes. Não há a menor suspeita – comenta Lacan – de que dizendo tais coisas, Descartes pensasse haver uma relação entre a aritmética e o fato de as mulheres fazerem renda, ou mesmo que os tapeceiros fazem nós” (LACAN, 1974-75/inédito, Aula de 14/01/1975). Talvez hoje pudéssemos incluir o analista nessa série dos artesãos de coisas desimportantes, como as mulheres e os tecelões. Com efeito, o passo dado por Freud, não sem Descartes, é que se a linguagem e o corpo não se comunicam, isso não implica que não se enlacem. Freud propõe esse enlace pela via do que chamou de fantasia, a partir da instância da letra no inconsciente que sustenta a montagem do imaginário pelo simbólico e, ao mesmo tempo, escreve uma razão impossível. Curiosamente, Lacan recupera em RSI a função freudiana da interdição do incesto como aquilo que faz o furo estrutural a partir do qual o par se pode atar. Instante do novo ato psíquico, cuja sequência é a atadura... Atadura: fantasia fundamental que o sujeito neurótico escreve ($&") com as versões pulsionais cavadas nos buracos do corpo – sobretudo a voz e o olhar – que revestem o furo que chamamos de objeto a. Constatamos que o máximo que ele consegue é fazer um nó cego, no qual fica preso e fixado. Ou, às vezes, surdo e mudo, deixando-o com um nó na garganta. Seja como for, o sujeito atado nunca dá ponto sem nó. Há vários tipos de enlaces criados com a gramática da fantasia, que procura sustentar o impossível de governar, educar e fazer desejar: nós de gravata, com os quais alguns acabam se enforcando; laços de enfeite e de presente, com os quais algumas pessoas passam a vida fazendo fita; nós de marinheiro, muito praticados por Ulysses em sua Odisseia, e de rendeira, que sustentaram a astúcia de Penélope enquanto ela o esperava. Redes de pesca,

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nas quais, quando se cai, é peixe. E de internet, que não se sabe se são menos reais, pelo fato de serem virtuais. Perigosas relações. Relações religiosas – sustentadas pelo amor Olímpico a Deus (e a toda sua genealogia: Urano, Cronos ou Zeus) –, ou pelo amor ao próximo como a si mesmo –; e relações geopolíticas, que produzem fluxos migratórios, êxodos e muros mais altos e intransponíveis que aquele que já nos impõe a linguagem. Amarrações de amor. Laços de família. É o dizer de Freud, desenvelopado por Lacan, que nos permite verificar a estrutura para além da fantasia; em outras palavras, é a psicanálise que aponta a não coalescência entre o a e o S(%) – o gozo opaco e à deriva, o Outro gozo, a terceira (pois gozo, em bom lacanês – jouissance –, é artigo feminino). Já que a dualidade linguagem/corpo não faz um, mas também não se sustenta na atadura do dois, logo, há três. É o que Lacan quis dizer, quando escreveu no matema da sexuação, que não há relação sexual. Se o Real é três, aqui é o dizer de Cantor que impera. O três no nó é cardinal, não há ordem nem prevalência de um sobre os outros dois. O três ex-siste. Mas ele também insiste e consiste. Assim, o nó bo nos apresenta o impensável enlaçamento entre o equívoco fundamental e o sentido, RIS, ISR, IRS, SIR, SRI, RSI... Heresia lacaniana! Mas o nó, ele mesmo, também é a um só tempo Real, Simbólico e Imaginário, na medida em que ele se mostra em sua ex-sistência no corpo vivo de quem goza; se escreve na insistência corpsificada (cadavérica, diríamos em português) da palavra que mata a coisa; e se imagina dando consistência intuitiva ao sentido comum. Eis o segredo do nó, sua impossibilidade de fazer uma única consistência, pois cada duas que se enlaçam, esburacam a terceira. Três letras, três furos, três gozos: J…, Jsentido, J%.

I

sentido

R

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S

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Pois cada ato díspar – que comete o disparate de atar um par (disperso e dizparatado) –, cria um modo de gozo, ao preço de uma ex-sistência que esburaca o ser. Encore un effort para entendermos porque “o modal é nodal”: O dizparate S ◊ R dá corpo ao gozo na dialética do desejo por meio do gozo fálico de Joãozinho, com a condição de excluir o corpo. O dizparate I & S permite à jovem Dora gozar do sentido de fazer a mulher existir na senhora K – antes do desencadeamento da conversão – com a condição de excluir o real de sua in(ex)sistência. O dizparate R&I permite a Santa Tereza D’Ávila a contingência de gozar encore, en cops, com a condição de experimentá-lo, esse gozo, fora da linguagem. Vemos, portanto, que as particularíssimas características desse tipo de enlace têm para Lacan, uma inestimável utilidade clínica. Três letras, três modos de gozo, três nomes para nossa dor de ex-sistir. O sofrimento humano não é assunto do psicanalista, mas pôde ser formalizado e tratado – na experiência clínica sob transferência que chamamos Psicanálise – desde que Freud o nomeou: Inibição, Sintoma, Angústia.

I Angústia Inibição sentido

R

ICS

S Sintoma

efeito de parada

A partir do nó podemos precisar que a Inibição – o Sintoma posto no museu, como um dia a definira Lacan – por mais que hoje a chamem de depressão, “é o que para de se imiscuir no buraco do simbólico” (LACAN, 1974-75/inédito, Aula de 10/12/1974). Inflando o eu imaginário para não se haver com o furo, a inibição não é, em si, analisável. A angústia, por mais que a chamem de pânico, “parte do real e dá sentido à natureza do gozo que se produz aí” (Ibid.). O real que toma corpo na angústia, que aperta o peito e acelera o coração é, entretanto, uma ocorrência desamarrada da linguagem. No século XXI, portanto, e por motivos estruturais – como lemos no nó – continua sendo pelo Sintoma – qualquer que seja

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seu nome contemporâneo: fibromialgia, TOC, ou TDH –, que podemos passar ao discurso analítico. É pelo Sintoma que, por meio do simbólico, “identificamos o que se produz no campo do real” (Ibid.). Ora, é justamente com o Sintoma – o efeito do simbólico no real – que a Psicanálise opera. É partindo da prática da tagarelice que podemos, nas palavras de Lacan: manipular qualquer coisa do Real. A pergunta de Lacan, que se faz extremamente atual é a seguinte: “o que faz com que a Psicanálise opere?” (Ibid., Aula de 14/12/1974). É por essa questão e pela função do Sintoma, aí articulado na transferência, via discurso analítico, que Lacan introduz, na aula de 14 de janeiro de 1975, uma quarta consistência. Vejamos, então, como se dá essa passagem, tão fundamental para a sustentação da operação analítica. Lacan se pergunta como pode se servir do nó para abordar o Real, e coloca à plateia – e nós o acompanhamos quarenta anos depois – o problema: “será que com quatro isso funciona?” (Ibid.) E em um golpe de ousadia, é a Freud que Lacan supõe a intuição sobre a ex-sistência do quarto nó: “O que fez Freud? Vou contar. Fez nó com quatro a partir dos seus três (...) inventou algo a que chamou realidade psíquica. E Lacan vai além: O que ele chama de realidade psíquica tem perfeitamente um nome, é o que se chama Complexo de Édipo. Sem o Complexo de Édipo, nada da maneira como ele se atém à corda do S, do I e do R se sustenta. Do que Freud enunciou, não é o Complexo de Édipo que se deve rejeitar”. (Ibid.).

(I)

(R) Nome-do-Pai / Sintoma

(S)

É verdade que já havia uma aposta no quatro na primeira escrita do nó bo. Ouçamos Lacan: “O ponto de partida para qualquer nó se constitui na não relação sexual como buraco. Não dois, pelo menos três, e o que quero dizer é que se vocês

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só forem três, isso já faz quatro” (Ibid., Aula de 15/04/1975). Eis, portanto, a escrita do nó, lida com a inclusão do mais um, o buraco que constitui a causa, nomeado objeto a. Se o nó borromeano de três já implica o quatro enquanto estrutural é, entretanto, o desejo de analista inaugurado por Freud que permite verificar o que aí faz suplência a esse furo inaugural.

A realidade psíquica freudiana, Lacan a identifica aos Nomes do Pai. E não nos surpreende que Lacan nos diga que há pelo menos três formas de Nomes do Pai. A que nomeia o Imaginário, ou seja, a Inibição; a que nomeia o Real, ou seja, a Angústia; e a que nomeia o Simbólico, ou seja, o Sintoma, “pois é nesses nomes que está o nó” (Ibid., 18/03/1975). Ora, se o furo estrutural cospe o Nome a partir do qual é possível separar os modos de gozo, diferenciar as consistências RSI e nomeá-las IAS, podemos sustentar que “a própria nominação é o quarto elemento” (Ibid., Aula de 13/05/1975) que permite ao analista operar com a face Real do Sintoma – passagem selvagem do contingente (que cessa de não se escrever) ao necessário (que não cessa de se escrever). Como nos ensina Lacan: O que quer dizer o sintoma? É a função do sintoma, função a se entender como o faria a formulação matemática ϯ(x). O que é esse x? É o que, do inconsciente, pode se traduzir por uma letra, a identidade de si a si está isolada de qualquer qualidade. Do inconsciente todo um, naquilo que ele sustenta o significante em que todo inconsciente consiste, todo um é suscetível de se escrever com uma letra. (...) Mas o estranho é que é isso que o sintoma opera selvagemente. O que não cessa de se escrever vem daí. (Ibid, Aula de 14/01/1975)

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Ora, desde que Freud nos permitiu operar com o discurso do analista, Édipo deitou-se no divã. A partir de então, segundo Lacan, “é preciso que a peste se propague em Tebas para que cada um se sinta concernido em particular por sua ameaça”. “O que se revela então é que se Édipo forçou alguma coisa, foi absolutamente sem sabê-lo; foi, se posso dizer assim, que ele só matou o pai por não ter se dado o tempo de laiusar.” Para isso, Édipo teria que ter tido o tempo necessário, “um tempo que teria sido quase o tempo de uma análise” (Ibid., Aula de 17/12/1974). Usar do pai até gastar, dispensá-lo com a condição de servir-se dele. Para isso, é preciso tempo, o tempo de laiusar, ou o percurso de uma análise. Será, portanto, analista – essa espécie de tecelã de coisas desimportantes – quem puder acolher o que diz-corda, a que chamamos, desde Freud, de inconsciente, amarrando com firmeza uma das pontas da corda do sintoma. A corda, diz Lacan, é o fundamento do acordo. O acordo do laço analítico é o acorde dissonante que dá corda à tagarelice e permite aos filhos e netas de Laius abrirem suas próprias caixas de Pandora, e esvaziá-las. O que resta, ao final, não é nada mais nada menos que a esperança. É preciso, então, transformar a caixa dos males do mundo em caixa de ressonância do eco no corpo de que há um dizer. E então o corpo diz(a)cordado tem a chance de (a)cordar. O tempo de laiusar desfaz o nó cego da inibição, dissolve o nó na garganta da angústia e opera a redução do sintoma à sua letra impronunciável que separa as três modalidades gozosas, revelando que o buraco sem fundo do nó cego é, realmente, furo estrutural que cospe o nome, sustentando e orientando nosso desejo incurável. Tecem-se, então, outras tranças que promovem novos laços (sociais, amorosos e sexuais), e que permitem ao falasser se virar (lidar, rebolar, ganhar a vida, pagar o preço) e nesse reviramento topológico: ver, ouvir e falar, inventar outra ficção do real. Não mais um nó cego, surdo e mudo. Não mais o nó na garganta. Mas riscar e arriscar o impossível, dando nó em pingo d’água. É possível, então, caminhar decidido pela corda bamba do desejo, sem rede de proteção. Nas palavras do poeta: “a esperança dança, na corda bamba de sombrinha, e em cada passo dessa linha, pode se machucar. Azar, a esperança equilibrista, sabe que o show de todo artista, tem que continuar” (BOSCO; BLANC, 1979).

referências bibliográficas BOSCO, J.; BLANC, A. O bêbado e a equilibrista, 1979. FERRY, L. Kant. Uma leitura das três “Críticas”. Rio de Janeiro: Difel, 2010. KUNDERA, M. A insustentável leveza do ser. São Paulo, Cia das Letras, 1999. LACAN, J. (1974-75) O seminário, livro 22: RSI, inédito. RONA, P. O significante, o conjunto e o número – A topologia na psicanálise de Jacques Lacan. São Paulo, Annablume, 2012.

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Desfazendo nó cego, dissolvendo nó na garganta e dando nó em pingo d’água

resumo O texto apresenta a partir do Seminário 22 de Lacan “Os nomes do pai”, o avanço epistemológico e clínico trazido pela escrita do nó borromeano como “espaço do falasser”, que articula o enlace entre os três registros (Real, Simbólico e Imaginário) bem como de três modos de gozo (gozo fálico, gozo do sentido e gozo do Outro) a partir do furo central. Articula-se, ainda, o acolhimento do sofrimento humano pelo psicanalista, com a devida precisão formalizada por Freud (Inibição, Sintoma e Angústia) e as operações realizadas pelo Psicanalista para que daí um novo desejo possa advir. Acompanha, ainda, a passagem do nó de três para o nó de quatro elementos, introduzindo a escrita dos Nomes do Pai com o Sintoma e uma nova leitura do Complexo de Édipo.

palavras-chave Nó borromeano; RSI, Nomes do Pai; Complexo de Édipo.

abstract Departing from Lacan’s Seminar 22 “The names of the father”, the text introduces the epistemological and clinical advance generated by the writing of the Borromean knot as a “space of parlêtre,” which articulates the connection of the three registers (Real, Symbolic and Imaginary) from the central hole. It is also articulated the embracement of human suffering by the psychoanalyst, taking into consideration the exact precision formalized by Freud (Inhibition, Symptom and Anguish) and the operations conducted by the Psychoanalyst so from that point on a new desire can be triggered. The text follows the passage of the knot of three to the knot of four elements, introducing the writing of the Names of the Father with the Symptom and a new interpretation of the Oedipus Complex.

keywords Borromean knot; RSI; Names of the Father; Oedipus Complex.

recebido 10/02/2016

aprovado 22/03/2016

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Desenlace da transferência Bernard Nominé É verdade que, quando respondemos com muita pressa ao que nos é pedido, a resposta não costuma ser boa. Quando me pediram um título para este Espaço Escola, pensei em como se soluciona a transferência ao final de uma análise e respondi com o seguinte título: fim da transferência. Porém, no momento de trabalhar o tema, deparei-me com um título que não era bom. Não tenho certeza de que haja um fim da transferência ao final da cura. Pode ser que haja, mas, com frequência, não há. Por isso, o melhor título, sob o qual lhes apresento minha conferência, é: Desenlace da transferência, no mesmo sentido que falamos do desenlace de um drama ou de uma comédia.

Em Freud Em seu texto Análise terminável e interminável, Freud não coloca em primeiro plano o desenlace da transferência como critério absoluto de um final de análise. Fala da decisão própria do analisante, com a qual o analista pode concordar desde que lhe pareça que bastante material inconsciente tenha sido clareado e que as resistências interiores tenham sido vencidas. Freud nos apresenta duas vinhetas clínicas, sabe-se que uma delas trata de Ferenczi. É interessante, porque Freud nos confessa que seu analisante o criticou por não ter percebido sua transferência negativa. Ele se justifica dizendo duas coisas: – a primeira: nessa época, não havia percebido a possibilidade de uma transferência negativa; – a segunda: por mais que a houvesse detectado, não teria podido agir para ativá-la sem recorrer a um ato real, pouco amistoso, contra o paciente. E acrescenta que “nem toda boa relação entre um analista e seu paciente, durante e após a análise, devia ser encarada como transferência; havia também relações amistosas que se baseavam na realidade e que provavam ser viáveis”. Parece-me que essa pequena advertência de Freud vai mais além da justificativa. Às vezes, consideramos a transferência como sendo forçosamente um tipo de laço amoroso ou amistoso, enquanto que, para Freud, é somente o efeito da cura, é a resposta da neurose e é preciso curá-la como neurose de transferência.

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A queixa de Ferenczi é também interessante, porque destaca que quem mais sabe da transferência não é o analista, e sim o próprio paciente. Frequentemente, ocorre que o analisante queira atenuar nele o efeito e o afeto da transferência. Na maioria dos casos, a transferência aparece claramente nos sonhos, mas, precisamente, os sonhos de transferência são os mais difíceis de relatar. Não raro, o analisante guarda-os consigo e os relatará o mais tarde possível, ao final do trajeto, quando decidirá acabar com isso para poder se despedir. Caso releiam Análise terminável e interminável, verão que Freud não fala de liquidação da transferência, senão insiste sobre a liquidação dos conflitos pulsionais. Tal liquidação não corresponde forçosamente a uma liquidação da transferência.

Em Lacan Precisamente no Seminário 10, Lacan zomba da estranha noção de liquidação da transferência. Cabe dizer que, no âmbito analítico, é uma crítica frequente que uns fazem a outros quando parecem muito submetidos àquele que foi seu analista ou, ao contrário, quando brigam com ele: “não liquidou sua transferência”. Vale mencionar que os efeitos de transferência voltam à realidade cotidiana enfadonha das instituições analíticas. Lembro que, antes de sairmos da AMP, eu sonhava com uma escola livre desses fenômenos. Pensava que talvez tivéssemos que esperar terminar a análise para poder entrar na Escola. Isto foi, de certo modo, o mal-entendido com o qual se nos propôs o passe à entrada. Agora, deixei de sonhar com esse tipo de coisas. É óbvio que, na maioria dos casos, a transferência não se liquida completamente e nós, os analistas, temos que nos virar com esse fenômeno para poder continuar trabalhando em nossas comunidades. Se liquidação da transferência equivale a liquidar o inconsciente, tratar-se-ia então de esvaziar o lugar do inconsciente. Coisa estranha! Não podemos dizer que, ao final do processo, já não há mais lugar para o inconsciente no sujeito analisado. Em um seminário de 1973-74, Lacan, falando daquilo que seria a ética do analista, diz que é uma ética que “se funda na maneira de ser, cada vez mais, fortemente tolo desse saber, desse inconsciente que, no fim das contas, é nosso único patrimônio de saber” (LACAN, 1973-74/inédito, Aula de 13/11/1973). Então, é preciso distinguir o engano do amor de transferência e o ser tolo do inconsciente. No seminário ao qual me refiro, Lacan associa ser tolo do inconsciente com ser tolo do Pai e ser tolo do real. Se a liquidação da transferência equivalesse a liquidar o analista, enquanto sujeito suposto saber, seria um paradoxo. Ao final do percurso, o analista adquiriu realmente um saber sobre seu analisante. Mas liquidá-lo poderia matá-lo, tal qual

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o aluno que mata seu professor e pega seu lugar. Certas análises acabam assim, mas esse tipo de saída demonstra o máximo da identificação ao analista. Se o analisante não consegue ir mais além da identificação, o amor de transferência transforma-se em ódio. O analisante logo se despede com seu ódio sem ter encontrado a verdade coberta atrás do amor. Porque o ódio, mesmo que seja a outra cara do amor, não é forçosamente a verdade coberta mais além da transferência. O ódio, parece-me, é a consequência de o analisante não admitir o fracasso de suas identificações ideais. Em vez de atravessar o plano da identificação, em vez de liquidar sua identificação ideal, prefere liquidar o analista. No fim das contas, Lacan nos sugere que, se há liquidação, não é senão liquidação do engano com o qual a transferência leva ao fechamento do inconsciente. Ao final de uma análise, o analisante enfrenta a hiância que o sujeito suposto saber tampava. Que haja um saber que não procede de nenhum sujeito que o saiba, mas que é puro produto da estrutura. Que haja um dizer que se diga sem que se saiba quem o diz, diante desse encontro o pensamento se esquiva. Mas a questão permanece aberta: o que acontece quando tropeçamos com o equívoco do sujeito suposto saber? Se Lacan colocou o equívoco do sujeito suposto saber como ponto essencial a ser alcançado ao final de uma análise, se funda nisso o desejo do analista e seu ato; isso implica que o descobrimento do equívoco do sujeito suposto saber não leva o analisante – que está a ponto de fazer-se analista para outro – a deixar de ser tolo do inconsciente. Então, digamos que, ao final da análise, o que observamos, especialmente nos testemunhos que recebemos no dispositivo do passe, é que o analisante, nesse momento de fim de análise, já não precisa da presença de seu analista para ocultar o equívoco do sujeito suposto saber. Ou, mais precisamente, já não precisa da presença de seu analista para pôr em ato a realidade do inconsciente, já não precisa da presença de seu analista para continuar apostando no inconsciente, escutando-o e levando-o em conta. Se pensarmos no próprio dispositivo do passe, o passante deve transferir ao cartel, e também à escola, a suposição que concernia a seu analista. Não é a mesma suposição, mas é ainda uma suposição, isto é, uma transferência. Do mesmo modo, podemos pensar que o testemunho não pode chegar até o cartel sem a passagem pelos passadores. Cada vez que conseguimos destacar as condições de uma nomeação possível, comprovamos que algo tinha acontecido no encontro do passante com os passadores. Não era um encontro formal com os encarregados do passe, mas um verdadeiro encontro que surtiu efeitos em ambas as partes. Por isso, penso que também há aí uma espécie de transferência do passante em relação aos passadores aos quais se supõe que estejam no mesmo tempo e no mesmo lugar no que se refere ao equívoco do sujeito suposto saber.

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O que destaco aqui é que há encontros no dispositivo do passe. Encontros com quem? Com figuras do Outro a quem supomos que lembre a carne que todos fomos na origem, antes de que entrássemos no discurso como ser falante? Não creio. A presença desse Outro costuma manter-nos calados. No dispositivo do passe, foi possível, para mim, experimentar outro tipo de alteridade. Senti que o trabalho era possível entre nós, porque cada um de nós havia deixado de supor a existência dessa figura do Outro que nos faz calar. Escrevi umas linhas sobre essa experiência na Wunsch no 14. Retomo-as aqui. Se me detenho a pensar naquilo que me chamou a atenção no testemunho do passante nomeado posteriormente AE, diria, em um primeiro momento, que foi a simplicidade e a humildade. Era o testemunho de uma trajetória de vida um pouco complicada, mas relatada sem patologia e, além disso, com um toque de humor que mostrava a distância tomada em relação à história. A forma do relato soava-me um pouco como a escrita de García Márquez, isto é, um relato que trata de coisas da vida, mas livres de seu peso e articuladas entre si de modo divertido. Isso nos colocava em um lugar que não era o do Outro a quem se dirige uma queixa ou de quem se quer conseguir a comiseração. Era, assim penso eu hoje, o lugar do Outro a quem se dirige o chiste, ou seja, o Outro esvaziado da voz e, logo, onde o dizer encontra ressonâncias. As escansões precisas do testemunho permitiam medir o impacto da psicanálise sobre os modos de gozo que foram modificados. As formulações originais e convincentes indicavam-nos, precisamente, como esse sujeito soube extrair-se de certos impasses. Esse testemunho não buscava nos convencer de que o passante tinha chegado ao fim de sua trajetória, satisfazendo os critérios epistêmicos que circulam na Escola. É por isso que formulei, depois de terminado o trabalho do Cartel do passe, que a humildade do testemunho tinha chamado minha atenção. O último ponto que nos convenceu foi quando soubemos que, ao final de um longo percurso de análise, o passante chegou à idade de aposentar-se de uma profissão que nada tem a ver com a psicanálise, mas decidiu atuar como psicanalista. O que mais esperamos para nos convencer? Era suficiente. A própria tonalidade do testemunho que impressionara os passadores dava certa ideia do que pode ser aquela satisfação do final de análise, sobre a qual discutimos em nossa comunidade. Então, disse-me: por que não? Certamente, nesse momento, cada membro do Cartel se compromete com um sim ou com um não. O sim compromete muito mais, evidentemente. Nesse momento, cada um se compromete levando em conta a posição dos outros quatro membros. Há ali um cálculo coletivo do qual se pode destacar o movimento retrospectivamente. Nesse momento, estamos sós, e a sombra de um Outro que poderia objetar nossa decisão deve, necessariamente, se apagar, da mesma maneira que se apagou esse Outro ao final da cura daquele

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que se oferece a essa experiência e que se apresenta ao procedimento do passe. Se ele o faz com a esperança do reconhecimento do Outro, os dados estão viciados. No que se refere aos passadores, se eles foram designados por seu analista, é porque eles também estão nesse ponto de desconstrução do Outro. Experiência pouco comum desse pequeno grupo efêmero, constituído de algumas pessoas em um tempo de suspensão no que se refere à sua alienação ao Outro, unicamente interessadas em tentar apreender um pedaço de real. A experiência desse pequeno grupo é a experiência da Escola. Assim, espero tê-los convencido de que a Escola a quem se dirige o passante não há de ser o Outro de sua história, nem o Outro de sua neurose infantil, nem tampouco o Outro de sua transferência. É uma pequena comunidade composta de alguns outros, como dizia Lacan quando falava do analista que só se autoriza de si mesmo e de alguns outros... esses alguns outros devem ter se separado do Outro. Isto foi, no fim das contas, o mais importante que experimentei nesse cartel do passe que culminou em uma nomeação de AE: a experiência dessa pequena comunidade composta de alguns outros que, em um primeiro momento, considerei como órfãos do Outro. A figura do órfão pode nos remeter a uma perda imensa, à figura de uma criança abandonada. Mas não uso essa palavra nesse sentido. Somos todos órfãos em certa época da vida e, quando esse momento chega muito cedo, isso nos leva a certo comedimento. Seja o que for, quero voltar a esse tema da separação do Outro e de suas consequências. Durante a cura, uma das funções do analista, enquanto sujeito suposto saber, é que o analisante conta com seu analista para continuar desejando saber, saber cada vez mais, enquanto todos preferimos ignorar. Então, ao analista compete-lhe querer saber. É um sujeito a quem se supõe que queira saber. O desejo de saber não é a norma, nos diz Lacan. A norma é a paixão da ignorância. Entretanto, há aqueles que querem saber. Pensem, por exemplo, no âmbito universitário. Mas, geralmente, querem saber para obter reconhecimento e, mais além, poder. Lacan nos adverte de que eles são animados somente pelo desejo do Outro. Cito um trecho da aula de 9 de abril de 1974, do Seminário 21: “não é o desejo que preside o saber, mas o horror. Vocês me dirão que há pessoas que trabalham para conquistar uma cátedra. Mas, vocês compreendem, isso não tem nada a ver com o desejo de saber, trata-se de um desejo que, como sempre, é o desejo do Outro; o desejo do homem é o desejo do Outro”. Porém, em seguida, Lacan nota que, no âmbito da invenção matemática, houve alguns que quiseram saber, houve apaixonados. “Quero dizer que não era uma maneira de fazer-se valer na Sorbonne resolver os problemas da cicloide” (Lacan, aqui, refere-se a intercâmbios entre Pascal e outros matemáticos que se uniram para resolver um problema puramente matemático que não servia para nada na

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realidade dessa época) “houve tempos milagrosos, tempos que gostaria de ver reproduzir-se sob a forma dos psicanalistas, gostaria de ver reproduzir-se neles essa espécie de república que fazia com que Pascal se correspondesse com Fermat, com Roberval, com Carcavi, pessoas vinculadas entre si por algo que não se sabe o que é e que fazia com que houvesse gente que deseja saber mais e mais a respeito dessas coisas inverossímeis que se designam como cicloide. […] Essas pessoas estavam loucas por isso; e isso, nesse momento, não reportava nada ante nenhum Senhor; dava-lhes uma reputação estritamente entre eles, não saíam dali. Eles contribuíram com o objeto a, por certo, mas justamente sem saber disso. Apesar disso, realizaram melhor quanto o objeto era o objeto a; o realizaram tão melhor que, sem saber para onde iam, passaram pela estrutura que lhes disse, a saber: essa borda do Real” (LACAN, 1973-74/inédito, Aula de 09/04/1974). Vocês notaram o interesse de Lacan por esse pequeno grupo, essa República do cicloide em torno de Pascal e de alguns outros. Poderíamos pensar que no umbral de tal República, digamos, dessa escola, haveria um pequeno cartaz no qual estaria escrito: “somente podem entrar aqui aqueles que se atreveram a seguir a estrutura até sua borda com o real”. Entenderão que esse percurso supõe que tenha havido separação do Outro. Se Lacan insiste nessa função da invenção – nesse mesmo seminário, Lacan diz que o saber se inventa –, essa invenção implica uma separação com o Outro. É o preço a ser pago para poder inventar. Por isso, existiu certo número de psicóticos entre os grandes inventores. São os que podem prescindir do Outro mais naturalmente. Para o neurótico é muito mais difícil inventar, pois supõe uma separação do Outro. Estruturalmente, a suposição que fazemos de que o Outro é quem sabe, é que nos permite continuar com a ignorância. Não nos predispõe à invenção. Mas, justamente, se a psicanálise começa com a suposição de um saber no Outro, ao final do percurso, o analisante pode deixar seu analista, porque já não o considera como um sujeito suposto saber, o vê como objeto a, sem nenhum valor agalmático. Deixar de supor-lhe um saber, leva o analisante à invenção, ao menos a invenção do modo de sair da experiência. Quando o saber deixa de ser localizado no Outro, não há outro remédio a não ser tomar por conta própria o saber. Isso é o saber como invenção. Por isso, no dispositivo do passe, ficamos atentos a esse saber inventado. O que impede o neurótico inventar o saber é o Outro. Ao Outro que nos ensinou tudo não lhe é agradável a invenção, ele a teme e a proíbe. Nenhum saber que não passe por suas vias! Então, para quem não chegou ao ponto de separação é impossível inventar o saber. Não lhe resta outro remédio a não ser repetir o saber do Outro. Logo, arrulha e nos adormece com a cançãozinha. O saber inventado acorda, é muito distinto do saber plagiado, copiado do Outro, adequado às normas do Outro.

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O que Lacan inventou é o objeto a. Cabe dizer que aquele objeto só pode ser inventado. O Outro não tem nenhum saber sobre esse objeto. O analista também não. É o analisante que lhe entrega, pouco a pouco, ao analista, por meio da transferência, os dados desse objeto. A questão é que o próprio analisante não se dá conta disso, o faz apesar de si. Então, se Lacan inventou o objeto a, teríamos que reinventá-lo cada um de nós? Creio que sim, de certo modo. É, mais ou menos, o que Lacan disse no encerramento de uma jornada de sua Escola sobre o tema da transmissão, em 1978. Disse que chegava a pensar que a psicanálise é intransmissível, o que é um problema, porque implica que cada analista seja forçado a reinveintar a psicanálise. “Isso implica que cada psicanalista reinvente o modo com o qual a psicanálise pode durar a partir do que conseguiu tirar (de sua experiência) por ter sido, por um tempo, psicanalisante.” O dispositivo do passe põe em evidência que o testemunho do passante é mais do que um testemunho. Deve ser a prova de que o passante toma seu próprio caso, seu percurso na análise, como lugar que abriga um saber. Isso é o que o anima a trabalhar sobre sua própria experiência. A suposição se deslocou. Mas, notem que isso não leva o passante a dar uma de quem sabe. Se o cartel nomeia o AE, não é para que seja tomado como mestre supremo. Seu passe se revelaria um impasse, até mesmo, uma fraude. Lembro uma fórmula do passante a quem nomeamos. A meu ver, é um lapso muito importante. Relatava a seus passadores que, a partir de certo momento, ao final de sua análise, a suposição de saber havia se deslocado e disse: agora, eu sou o que sei. A sutileza do lapso demonstra a diferença entre dar uma de que sabe – eu sou o que sabe – e saber quem sou – eu sou o que sei – ou seja, sei quem sou. Ao final dessa conferência, percebo que não falei da transferência de trabalho. Em certa época, costumávamos falar da transferência de trabalho como desenlace habitual da transferência e como laço entre colegas em nossa comunidade. Fui buscar em meus arquivos referências de Lacan sobre essa questão. Lacan pouco falou de transferência de trabalho. Encontrei somente uma referência. Está no “Ato de fundação”, de 1964. “O ensino da psicanálise somente pode transmitir-se de um sujeito ao outro pela via de uma transferência de trabalho.” E acrescenta que os seminários, inclusive o seu, “não fundarão nada se não remeterem a essa transferência”. A transferência de trabalho, de que tanto falavam no âmbito lacaniano, não pode remeter a fenômenos de massa, como identificação ou submissão a ordens superegoicas. Quando vemos que todos trabalham na mesma linha, com a mesma perspectiva, usando as mesmas palavras, não acho que tenha a ver com a transferência de trabalho.

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O termo transferência de trabalho mereceria esclarecimentos. A transferência de saber, agora sabemos o que é, situa no Outro o saber que não sabemos que, na realidade, é nosso. A transferência do objeto, também vemos o que é: situar no Outro esse objeto que nos estorva. Assim, transferência de saber e transferência do objeto agem no mesmo sentido, ou seja, do analisante ao analista. Mas, falar de transferência de trabalho indica, a meu ver, que o que se transmite ao final da cura é o trabalho e se transmite do analista para o analisante que, ao final da cura, já não necessita da presença do analista para continuar seu trabalho analisante. Então, a transferência de trabalho não teria que fazer com que todos trabalhem no mesmo sentido, imitando um trabalhador ideal, figura do Outro da transferência. A transferência de trabalho é outra coisa que a transferência à obra de Freud ou ao ensino de Lacan. Não basta supor o saber a Freud ou a Lacan e apoiar-se em seus trabalhos para testemunhar uma transferência de trabalho. Trata-se, antes, de se apoiar em seu próprio trabalho fundado na transferência estabelecida em seu próprio percurso na análise. Para resumir, direi que, ao final da cura, o que observamos a partir do cartel do passe não é o fim da transferência, e sim seu desenlace. A transferência muda se desloca. O passante, ao trabalhar seu testemunho, supõe que possa encerrar um saber inédito; os passadores e o cartel do passe, ao escutá-lo, também supõem que possam ensinar-lhes algo novo. Tudo isso pode surtir efeitos na Escola. Os analistas podem apoiar-se no passe para sustentar seu interesse, cada um, por seu próprio trabalho e continuar supondo que alguns outros possam ensinar-lhes algo. Há uma espécie de reação em cadeia. No fim das contas, o dispositivo do passe parece-me ser o coração da Escola, tal qual o coração de um reator nuclear. Nesse núcleo fechado, que deve ser muito protegido, acontecem coisas importantes que surtem efeitos para todos. Tradução: Maria Claudia Formigoni Revisão da tradução: Ida Freitas

resumo Trata-se, neste texto, de considerar a forma como a transferência pode se denodar no fim de um discurso analítico. A experiência do cartel do passe tendo produzido a nomeação de AE nos leva a examinar as consequências do equívoco do sujeito suposto saber. Chegando a essa constatação do equívoco do sujeito suposto saber, o analisando não pode mais contar senão consigo mesmo para elaborar aquilo que não pode se apreender de um outro, mas que só pode se inventar. É assim que a psicanálise pode ser transmitida. Ademais, este texto revisa outra via do desenlace da transferência, a via da transferência de trabalho, o que implica certa concepção da Escola. 44

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Desenlace da transferência

palavras-chave Transferência; equívoco do sujeito suposto saber; cartel do passe; saber como invenção; transferência de trabalho; Escola.

Abstract The goal of the text is to consider the outcome of the transference at the end of an analytical discourse. The cartel experience of the pass having produced the nomination of AE leads us into examining the consequences of the mistake of the subject’s supposed knowledge. Arriving at this conclusion of the mistake of the subject’s supposed knowledge, the patient cannot any longer count on him/herself to elaborate what cannot be learned from somebody else, but just to invent it. This is how psychoanalysis can be transmitted. Besides, this text reviews another way of the outcome of transference, the way of work transference, which implies a certain conception of the School.

keywords Transference; mistaking of the subject supposed to know; cartel of the pass; knowledge as invention; work transference; School.

recebido 05/02/2016

aprovado 10/04/2016

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Esperança e ato Luciana Guarreschi Há esperança suficiente, esperança infinita – não para nós. (KAFKA apud BENJAMIN, 1985, pp. 141-142) Estas poucas páginas foram causadas por algumas inquietações em relação ao que costumamos chamar campo lacaniano, incluída aí a direção das curas de que nos ocupamos diariamente, acentuando seus desenlaces. Acresce-se a essas o fim de mais um ano de estudos, do qual o seminário trabalhado, O ato psicanalítico, vem bastante a calhar. Vou enumerar ditas inquietações no intuito de ser breve: 1. Em uma supervisão clínica, recolhi as consequências do (des)espero. A analista se vê decepcionada, ponto em que quase “deixa a paciente cair”, já que, diante de mais uma volta da demanda, quando acreditava entrever a saída, a coisa não saiu como o esperado. 2. A lembrança de um extrato clínico: em um momento de virada, uma paciente de alguns anos de análise, depois de um mês afastada do tratamento imbuída a voltar ao “não quero saber nada disso!”, chega visivelmente angustiada e anuncia, jogando-se no divã: “perdi a esperança!”. Marco, a posteriori, o início do fim dessa análise nesse momento. 3. Um certo frenesi que se pode colher de trabalhos diversos de nossa comunidade, sobre os quais faço incidir uma pergunta: podem entusiasmo e esperança se confundir? Inquietações que viraram questões, ainda bem condensadas, com meias respostas, quase anedóticas. Comecei por investigar a esperança. Como sabemos, a esperança já chega bem mal acompanhada, uma vez que fé e caridade são suas parceiras nas virtudes teologais da Igreja Católica. Do latim sperare, tem como significado primordial esperar pela felicidade, ter confiança em uma coisa boa no futuro. Nesse sentido, a esperança é indissociável de uma relação positiva com a noção de tempo: fazer dele nosso melhor aliado, poderia ser sua máxima.

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Sigo me perguntando se esperança e temor são indissociáveis, pois que temor também envolve a dimensão tempo. Temer é o medo presente de um mal que poderá vir, no futuro. Quando não se teme nada, espera-se algo? E o que teme um analista? No seminário do Ato, Lacan é muito claro: Eu o repito: se o ato analítico é precisamente isso a que o psicanalista parece opor o mais frenético desconhecimento isso está ligado [...] à estimativa que o analista pode fazer daquilo que ele mesmo recolhe, nas consequências da análise, da ordem do saber (LACAN, 1967-68/inédito, aula de 29/11/1967, grifos meus). O que acontece então com essa jovem analista? Ela esperava. Ela esperava sem saber ainda que “o jogo se constitui no inesperado”, como diz a frase de Lacan (1965-66/inédito, aula de 19/05/1965), vocês a reconhecem, em Problemas cruciais para a psicanálise. Constitui-se no inesperado e disso é preciso saber. Freud (1937/1980) se preocupou, em “Análise terminável e interminável”, com o que poderia atrapalhar o tratamento. Cito-o: Em vez de nos indagar como se dá uma cura pela análise (assunto que acho ter sido suficientemente elucidado), deveríamos nos perguntar quais são os obstáculos que se colocam no caminho de tal cura (FREUD, 1937/1980, p. 252). Penso que a esperança de um analista é um deles, provocando enlaces infinitizados. Não se trata de apontar uma falha, um “errou”; a tarefa é árdua mesmo, e a esperança pode parecer um caminho doce. É árdua pelo que Freud já alertava a Ferenczi, a saber, que a frustração é um elemento inevitável, que pertence ao dispositivo analítico da cura e que, ademais, é necessária mesmo ao seu avanço. Só se esqueceu de avisar que a frustração (também) é do analista. As voltas infernais da demanda, repetições que elevam exponencialmente a decepção primeira, indelével, castração para chamá-la por seu nome, da qual o sujeito, por um lado, não vê a hora de se livrar e a qual, por outro lado, o analista e o final de análise não podem senão objetivar. É aqui que a fala recolhida em análise “perdi a esperança” pode ser indicativo de uma virada, já que esperança é signo de falta e impotência, uma vez que tem o Outro não barrado em seu horizonte. Boa coisa a se perder.

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Esperança e ato

Se quisermos, em Lacan (1967-68/inédito, aula de 13/03/68), cito-o: Na psicanálise, não é de um “conhece-te a ti mesmo” que se trata, mas precisamente da apreensão do limite desse conhece-te a ti mesmo, porque esse limite é, propriamente, de natureza lógica e está inscrito no efeito de linguagem que ele sempre deixa de fora [...] (LACAN, 1967-68/inédito, aula de 13/03/68, grifos meus). Para os fins que me interessam, grifo apenas “apreensão do limite”. Como disse, a tarefa é árdua. Mas sem essa apreensão, nada de desenlace. Trata-se de ver como podemos, ainda que bem orientados, estar sob o que Lacan (1967-68/inédito) chamou de a fantasia do chalé da montanha (para quem não sabe ou não lembra, é a maneira como Lacan expressa, em vários momentos do Seminário 15, o chamado “instinto clínico” do analista acerca da naturalização do encontro sexual entre um homem e uma mulher). Estamos nós, lacanianos, já longe disso? Ou o entusiasmo tomou seu lugar? Ah, o entusiasmo... Essa veemência manifestada na realização de algo... Pois bem, ela também tem suas raízes, por assim dizer, religiosas. Na Antiguidade, era dita como um estado de exaltação do espírito, de comoção profunda da sensibilidade de quem recebeu, por inspiração divina, o dom da profecia ou da adivinhação (HOUAISS). Não, nem o entusiasmo pode ser esperado, quem dirá, garantido. Vejam bem, não se trata de pessimismo ou fatalismo, mas é que cultivar a esperança lá onde há impossibilidade, não há de ser permitido entre nós. Em “Televisão” (LACAN, 1973/2003), J.-A. Miller pede a Lacan que responda ou reitere as três perguntas kantianas que resumem o “interesse de nossa razão”, quais sejam: Que posso saber? Que devo fazer? Que me é lícito esperar? Atenho-me à resposta de Lacan à última pergunta: Quanto a “o que é lícito esperar”, devolvo-lhe a pergunta, isto é, entendo-a, desta vez, como vinda de você. [...] Como ela me diria respeito sem que me dissesse o que esperar? O senhor pensa a esperança como não tendo objeto? [...] Espere o que lhe apetecer. Saiba apenas que, por várias vezes, vi a esperança – aquilo a que se chama os róseos amanhãs1 – levar ao suicídio, pura e simplesmente, pessoas a quem eu prezava tanto quanto a você (LACAN, 1973/2003, p. 540). 1 Gabriel Péri – Les lendemains qui chantent. Sua autobiografia, publicada em 1947, contém sua carta de adeus, escrita na véspera de sua execução. Esta carta contém a seguinte frase: “Eu ainda acredito, esta noite, que meu querido Paul Vaillant-Couturier tinha razão de dizer que o comunismo é a juventude do mundo e que ele prepara os róseos amanhãs”, de onde provém o título da obra.

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GUARRESCHI, Luciana

Não satisfeito, ele prossegue: Para que a pergunta de Kant tenha sentido, eu a transformarei em: de onde se espera? [...] A psicanálise certamente lhe permite esperar elucidar o inconsciente de que você é sujeito. Mas todos sabem que não incentivo ninguém a isso, ninguém cujo desejo não esteja decidido [...]. A única chance que ex-siste decorre apenas do feliz acaso [bon heur], com o que pretendo dizer que a esperança não adiantará nada, o que basta para torná-la inútil, isto é, para não permiti-la” (Ibid., p. 541, grifos meus). Não há esperança: há acaso e há ato, neste “não permiti-la”. Se quisermos ser modernos: #esperançososnãopassarão. Termino com um pequeno recorte de um filme, com todas as limitações que uma exemplificação como essa possa conter. Vejo uma reprise de Batman, de 2012, O cavaleiro das trevas ressurge. Machucado e recuperando-se aos poucos, ele está em uma prisão, que é uma espécie de poço, o Poço dos Lázaros, cuja única saída se dá por meio de uma escalada. Nessa escalada há um salto a ser dado, o qual não é grande, o que encoraja muitos presos a, todas as manhãs, recolherem alguns pertences, amarrarem na cintura uma corda que está presa a uma altura média no paredão a ser escalado e tentarem a sorte. Dia após dia, eles não saem, caem, mas não sofrem muitos danos, já que a corda os impede de se esfacelarem no chão. Bruce Wayne também faz suas tentativas, em vão. Certa manhã, em um ímpeto, se arrisca novamente, seminu, sem pertences, sem corda na cintura. Desperta e vai. E sai! O salto é perfeito, desses que a fantasia do entusiasmo pode fazer crer existir, juntamente com os livros de autoajuda e alguns textos apoiados em Lacan. Mas é Hollywood, a coisa passa despercebida. O que não passa é que a corda em que o sujeito acredita se equilibrar, a esperança, é sempre curta, puxando aquele que almeja sair de suas prisões, para dentro delas.

referências bibliográficas BENJAMIN, W. “Franz Kafka – A propósito do décimo aniversário de sua morte” In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. FREUD, S. (1937). “Análise terminável e interminável” In: FREUD, Sigmund. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980. LACAN, J. (1967-68). O seminário, livro 15: O ato psicanalítico, inédito. . (1973). “Televisão” In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

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Esperança e ato

resumo Propõe-se questionar o lugar da esperança na direção dos tratamentos conduzidos por analistas lacanianos. A noção de esperança pressupõe em seu horizonte o Outro não barrado sendo, portanto, contrária ao ato analítico, crucial para os desenlaces do tratamento analítico.

palavras-chave Esperança; ato; desenlace.

abstract The aim here is to question the place of hope in the conduct, although well oriented, of the Lacanian analysts. As a sign of absence and impotence, once you have the Other not impeded in his/her horizon, hope clearly positions itself against the psychoanalytical act.

keywords Hope; act; outcome.

recebido 10/02/2015

aprovado 25/04/2016

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“A morte da amada”: Do luto romântico ou da morte como bom encontro 1

Miriam Ximenes Pinho A Morte da Amada Da morte ele sabia quase nada: que nos toma e nos cala de repente. Como a amada não fora arrebatada, antes se desprendera docemente do seu olhar para a morada escura, e como percebeu que à outra vida como uma lua plena a formosura da visitante fora concedida, dos mortos se tornou tão familiar que os viu como parentes através dela; deixou os outros a falar, sem neles crer; chamou esse lugar bem-vindo, sempre doce, e pelos pés da amada o começou a palmilhar. (Rainer Maria Rilke, 1908) Há tempos que na prática clínica, mas não só, tenho me deparado com sujeitos mergulhados em um luto melancolizado2 impossível de finalizar. No campo social, essa observação não é nova, pois já na década de 1950, o antropólogo Geoffrey Gorer (1967, p. 85) assinalou que a progressiva dessocialização do luto no século XX havia produzido o prolongamento e/ou agravamento de suas manifestações. O caso extremo é aquele em que o luto beira à “mumificação”. Isto é, 1 Este estudo é em uma versão modificada de parte do material desenvolvido durante pesquisa de doutorado realizada no Programa de Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Projeto financiado no Brasil pelo CNPq (Processo no 143405/2011-0). O estágio doutoral foi financiado pela CAPES e realizado na Université Paris 13-Nord, França (Processo no 6142-133/2013). 2 Trata-se aqui de traços melancólicos e não da melancolia como estrutura. Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 32 p.53-64 junho 2016

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alguns enlutados se portam como os antigos egípcios que desenvolveram técnicas para proteger seus mortos da decrepitude natural; esses sujeitos cultuam não só as lembranças do falecido, mas também seus referentes. Da prática clínica, vem à lembrança uma mulher profundamente pesarosa que preservava intactos desde o lençol na cama até a escova de dentes do falecido, mais de um ano após sua morte. Esses lutos apaixonados e duradouros lembram sobremaneira o fascínio pela morte e os grandes lutos dramáticos que marcaram a era do Romantismo, no século XIX. Os traços dessa relação enigmática com a morte aparecem belamente traduzidos na poesia de Rilke que abre e dá título a este estudo. Que se passa nesses lutos? Poderia a concepção romântica do amor lançar-lhes alguma luz? De que se trata esse traço romântico que enlaça intimamente o amor e a morte? E por fim, em que medida essa figura do amor faz função no luto, o (des)enlaça? Com o intuito de precisar essas inquietações interrogantes recorro à ajuda preciosa da literatura (romântica) no trilhamento de Freud e também de Lacan (1958-59/2002, p. 262) para quem as “criações poéticas engendram mais do que refletem as criações psicológicas”. É fato conhecido que a dor e o desespero diante dos infortúnios no amor impulsionam ou mesmo precipitam não só a criação literária, mas a grande maioria dos pedidos de análise. O drama do amor e as dificuldades de despedir-se encontram na morte o seu ponto de irredutibilidade. Entretanto, sabemos que não é nada fácil abandonar algo que amamos. A libido se apega a seus objetos e não os abandona de bom grado “mesmo quando dispõe de substitutos [...]. Isso, portanto, é o luto” (FREUD, 1916/2010, p. 250). No luto, trava-se uma longa e dolorosa batalha contra a renúncia do objeto perdido. Até que por fim, “tendo renunciado a tudo que perdeu, ele [o luto] terá consumido também a si mesmo, e nossa libido estará livre [...]” (Ibid., p. 251). Em poucas palavras, na versão de Freud (1917/2010, p. 175), o luto realizaria o trabalho – “trabalho de luto” – de retirar toda a libido investida no objeto a mando dos decretos da realidade. Trata-se de um lento trabalho rememorativo ancorado no eu e que se dá entre o imaginário e o simbólico (BERTA, 2010). A finalização do luto implica a renúncia psíquica do amado perdido. Mais tarde Freud (1923/1987, p. 43) dirá que os laços libidinais que ligavam o objeto ao eu serão daí em diante substituídos por traços identificatórios. Esse destino dará ao objeto perdido alguma sobrevivência que não o deixará tão perdido assim. A morte, assim como o sexo, é da ordem do irrepresentável; assim, por mais que nos esforcemos para tentar imaginar a nossa própria morte, só o conseguimos na condição de observadores, de vivos portanto (FREUD, 1915). Foi diante dessa impossibilidade que o homem incorreu em compromissos conciliatórios: por

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um lado admitiu a própria finitude, mas por outro recorreu às crenças e práticas rituais (mitos e ritos) concebidas para apaziguar a angústia ante a ameaça de aniquilação. Já a morte de outra pessoa, se amada, nos causa um total colapso, nos recusamos a substituí-la como se algo em nós tivesse morrido junto: “Enterramos com ela todas as nossas esperanças, ambições, alegrias, ficamos inconsoláveis e nos recusamos a substituir aquele que perdemos” (Ibid., p. 131). É curioso que essa atitude cultural-convencional dramática diante da morte de alguém querido que nos parece tão óbvia e familiar, a se crer no historiador Phillipe Ariès (1981), é um modelo de luto historicamente datável e não remonta senão ao fim do século XVIII, momento do nascimento, na Europa, do Romantismo. Enquanto movimento artístico, político e filosófico, o Romantismo surgiu em plena ascensão da classe burguesa expressando uma nova onda de sensibilidade passional incontrolável e despida de razão em resposta à lógica racionalista e a objetividade do Iluminismo (DE NICOLA, 1985). Herdeiro do amor cortês, uma versão medieval do amor romântico, o Romantismo celebra os amores abrasados repletos de obstáculos que, de modo geral, conduzem a um fim trágico. O sujeito romântico é essencialmente “tormenta e ímpeto”, mote levado às últimas consequências na obra inaugural do romantismo alemão, Os sofrimentos do jovem Werther, publicada por Goethe em 1774. A trágica história de amor do protagonista desencadeou uma onda de suicídio entre os jovens europeus. O suicídio, assim como o álcool e o ópio – figurações da morte –, aparece entre as mais desejadas das fugas românticas. De fato, os tempos românticos carregam um verdadeiro fascínio pela morte. Amor e morte se conjugam em íntima relação. Daí deriva a observação de Ariès (1981, p. 446) de que o Romantismo é o “ tempo das belas mortes”, tempo em que os estertores da agonia foram envelopados pelas imagens sublimes da “doçura narcótica” que se almeja alcançar. Tempo ainda das grandes dramatizações de luto, do culto exaltado dos mortos e das peregrinações ao cemitério. À antiga crença cristã da morte como repouso dos justos3 à espera do julgamento no fim dos tempos, a lírica romântica agrega ideias novas de paz maravilhosa, felicidade e ainda... a recompensa de reunião, por toda eternidade, com os seres amados (ARIÈS, 1981). Em Werther já aparece a ideia da morte como reencontro imediato com Deus e com os queridos: “Vou ter com meu Pai, com teu Pai. Queixar-me-ei a ele, e ele haverá de me consolar até a tua chegada, quando voarei ao teu encontro, cingir-te-ei, ficando unido a ti em presença do Eterno, num abraço infinito” (GOETHE, 1774/2011, p. 165). 3 Uma imagem popular do além perpetuada na prece do ofício dos mortos e nas inscrições tumulares “repouse em paz”, do latim resquiece in pace, R.I.P. (ARIÈS, 1981).

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O Romantismo inaugurou um novo tipo de sentimentalidade, baseado na impossibilidade de se esquecer dos mortos. Se a morte é a promessa de paz e encerramento suave dos tormentos da vida, para os que ficam a dor da separação é mais deplorável do que a morte em si e a morte de si. O sentimento do outro assumiu uma primazia inédita: das preocupações com a própria morte passou-se para o cuidado e preservação da vida do outro, ser essencial cuja falta é intolerável (ARIÈS, 1981). No fim do século XIX, Freud (1893-95/1987, p. 173) acolhia com desconfiança essa exagerada preocupação com o bem-estar do outro. Qualquer pessoa cuja mente seja ocupada pelas mil e uma tarefas envolvidas na prestação de cuidados a pessoas enfermas, [...], adotará, por um lado, o hábito de suprimir todos os sinais de sua própria emoção, e por outro, logo desviará a atenção de suas próprias impressões, visto não ter tempo nem forças para apreciá-las devidamente. A doação sem limites se constitui em uma espécie de medida protetiva contra, não só a angústia da própria finitude, mas também contra as inquietações advindas da ambivalência afetiva (amor e desejo de morte) para com aquele de quem cuidamos. E se acontecer de o doente vir a falecer, o período de luto será agravado por autorrecriminações e culpa infundadas oriundas dos desejos de morte inconsciente (FREUD, 1915/2010). Nos “Estudos sobre a Histeria”, Freud (1893-95, p. 174) registrou o curioso caso de uma conhecida sua que celebrava anualmente “festivais de recordações”. Esta senhora – assim como Elizabeth von R. e Anna O. – havia cuidado obsequiosamente de alguns doentes até o fim e após cada perda, em estado de completo esgotamento, [...] iniciava-se nela um trabalho de reprodução que mais uma vez lhe colocava diante dos olhos as cenas da doença e da morte. Todos os dias ela repassava cada uma daquelas impressões, chorava e se consolava. [...] A situação inteira lhe passava pela mente em sequência cronológica. [...] Além dessas explosões de choro com que ela compensava o atraso e que ocorriam logo após o término fatal da doença, essa senhora celebrava festivais anuais de lembranças no período de suas várias catástrofes, e nessas ocasiões sua nítida reprodução visual e suas expressões de sentimentos se atinham rigorosamente às datas exatas. A observação desse e outros casos certamente contribuiu para a construção da teoria do luto que aparece em “Luto e melancolia”. Neste, conforme já assinalado,

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o trabalho rememorativo realizado em detalhes é o cerne do trabalho de luto, sua via elaborativa. E Freud prossegue: [...] uma vez encontrei-a chorando e perguntei-lhe amavelmente o que acontecera naquele dia. Ela repeliu minha pergunta, um pouco irritada: “Não foi nada”, disse, “foi só que o especialista esteve aqui hoje novamente e nos deu a entender que não havia mais nenhuma esperança. Não tive tempo de chorar por causa disso na hora”. Referia-se à última doença do marido, que falecera três anos antes. O culto dos mortos andava realmente em alta e já se fazia sentir sua tendência – que se consolidou no século XX – ao cultivo privado e pessoal das lembranças em detrimento do culto público, os rituais sociais. Por essa época, um culto espontâneo e secularizado dos mortos se expandia, e a “segunda existência” do morto era assegurada agora, não mais no além-religioso, mas na memória daqueles que o conheceram e também nos objetos que ele deixou ou que a ele remetem, tais como fios de cabelo, joias, túmulos, fotografias4 (ARIÈS, 1981, p. 589). Mementos (do latim, “lembra-te”) que funcionam como objetos fetiches, os substitutos dos ausentes. Eles se constituem em signos que reanimam os mortos dando-nos a ilusão de sua presença. A partir do século XIX, é como se todos, devotos e laicos, passassem a acreditar na continuação dos laços terrenos após a morte. O apego a esses objetos gera a necessidade de preservá-los, e a devoção pode se fixar em um luto melancolizado, “mumificado”, impossível de elaborar. O caso célebre é o da Rainha Vitória, que adotou de modo permanente, aos 42 anos, os trajes de viúva em memória do falecido esposo, o Príncipe Albert. Inconsolável, nas quatro décadas seguintes, tornou-se reclusa dedicando-se ao cultivo das lembranças e pertences do Príncipe. Todas as manhãs, a seu pedido, repetia-se o ritual de preparar suas roupas e trazer sua água de barbear como se ele fosse retornar a qualquer instante (GORER, 1967). Seu luto romântico influenciou toda a moda e a etiqueta de luto da época. Nesses exemplos clínicos, históricos e literários, a morte é saudada como bon-heur/ bonheur,5 a boa hora, a boa chance, o bom encontro, a felicidade. A morte romântica 4 Atualmente, as novas gerações têm cada vez mais adotado signos fúnebres não convencionais, tais como as tatuagens in memoriam e as páginas criadas em redes sociais, como é o caso da comunidade criada no Facebook “Profiles de gente morta”, entre outros. Aos interessados nos desdobramentos desse tema, remetemos à tese de doutorado: PINHO, MX. O rito (fúnebre) individual do neurótico em tempos de dessocialização da morte e do luto: Uma leitura psicanalítica das tatuagens in memoriam. 2015. Orientadora: Miriam Debieux Rosa. Tese (Doutorado – Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). 5 Em francês bon-heur: boa hora, bom encontro; bonheur, felicidade.

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é desprendimento suave da vida, como se lê na bela poesia de Rilke (1908/2013); “um lugar bem-vindo, sempre doce” que promete restituir, para toda a eternidade, o “abraço infinito” dos amantes sonhado por Werther. Em suma, no Romantismo a morte permite ao amor retornar ao Um. Alain Badiou (2013, p. 20) distinguiu três figuras principais do amor: a concepção romântica, “focada no êxtase do encontro”; a concepção comercial ou jurídica, que faz do amor um contrato entre dois indivíduos livres que dizem que se amam, “mas atentos à igualdade da relação, ao sistema de benefícios recíprocos etc.”; e a concepção cética, que considera o amor uma ilusão. Badiou anunciou uma quarta, que é a sua própria filosofia do amor e que não se reduz a nenhuma das anteriores. Segundo sua visão, o amor é uma construção de verdade “sobre um aspecto bem específico, a saber: o que é o mundo experimentado a partir do dois, e não do um? O que é um mundo, examinado, praticado e vivenciado a partir da diferença, e não da identidade?” (Ibid., p. 20). O amor proposto é disjunção, separação, “simples diferença entre duas pessoas” (Ibid., p. 23). Na mitologia romântica, está-se diante da “cena do Um” e não da “cena do Dois”, pois “o amor é consumado e consumido no momento do encontro, momento de uma exterioridade mágica ao mundo tal como ele é” (BADIOU, 2013, p. 24). Em outras palavras, trata-se de uma visão fusional do amor que “não raro leva à morte [...] porque o amor foi consumado no inefável e excepcional momento do encontro e, depois disso, já não há como retornar ao mundo, que se mantém externo à relação” (Ibid., p. 25). Igualmente crítico dos ideais fusivos do amor, Lacan (1972-3/2008, p. 52, grifo do editor), no Seminário 20, ironiza: “Nós dois somos um só. Todo mundo sabe, com certeza, que jamais aconteceu, entre dois, que eles sejam só um”, posto que é impossível sair-se de si mesmo, argumenta. Esse Um participa da miragem narcísica – “miragem do Um” – que nos faz crer não só que somos uma unidade, mas que, por meio do amor (narcísico) é possível fazer Um com o objeto identificandose a ele. Entretanto, esse amor que se orienta pelo desejo de fazer Um só está condenado, cedo ou mais tarde, a esbarrar na própria impossibilidade de sua missão: “O amor é impotente, ainda que seja recíproco, porque ele ignora que é apenas o desejo de ser Um, o que nos conduz ao impossível de estabelecer a relação dos... A relação dos quem? – dois sexos” (Ibid., p. 13, grifo do editor). Não há relação sexual. O que vem suprir a ausência da relação sexual é o amor. Suplência, insisto. Pois Lacan não diz que o amor nos cura da inexistência da relação sexual, como que a suturar essa falta, mas sim que ele surge em suplência à constatação dessa impossibilidade. É desse modo que Lacan (Ibid., p. 75) interpretará o amor cortês: “O que é isso [o amor cortês]? É uma maneira inteiramente

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refinada de suprir a ausência de relação sexual, fingindo que somos nós que lhe pomos obstáculos. É verdadeiramente a coisa mais formidável que jamais se tentou. Mas como denunciar seu fingimento?”. No Seminário 22, Lacan (1974-75/inédito) denuncia a propagada relação romantizada do Príncipe Albert com a Rainha Vitória6 para ilustrar “essa verdade da não relação sexual”. A se acreditar na biografia escrita por Lytton Strachey, o príncipe não tinha nenhuma inclinação pelas mulheres, e por uma fatalidade caiu nas mãos de uma mulher da “envergadura excepcional da Rainha Vitória”. Sua morte precoce possivelmente o salvou do constrangimento de ver-se tragado pelas consequências dessa (não) relação sofrendo a mesma sina do Conde Essex: “Defuntou-se bem cedo com uma morte que se chama natural, mas espero que vocês olhem isso bem de perto. Parece-me, afinal, a mais maravilhosa coisa que se possa ter como anúncio dessa verdade que encontrei sem isso, enfim, essa verdade da não relação sexual”. O Romantismo fez da morte um modo elegante de se disfarçar os desapontamentos a que todo amor está condenado, uma saída para a ausência de relação sexual. De que outra maneira seria possível garantir-lhe a (boa) duração, sua pretensão à imortalidade? Conforme observou Badiou (2013), no amor romântico o encontro rouba quase toda a cena, sobrando muito pouco para tratar de sua duração. De modo geral, a história termina no casamento ressoando o “felizes para sempre” dos contos de fada (vide os romances de Jane Austen) ou termina com a morte precoce de um dos protagonistas (A dama das camélias, Werther...). Na literatura romântica o amor, mais forte que a morte, atravessa o túmulo (como pode ser visto no aclamado romance do além “O morro dos ventos uivantes”) e continua por toda a eternidade. No céu dos românticos, a morte é menos obstáculo, disjunção, do que restituição da comunhão perdida: “... Chamou esse lugar bem-vindo, sempre doce, e pelos pés da amada o começou a palmilhar” (RILKE, 1908/2013, p. 213). A morte se mostra como o garante do bom (des)enlaçamento, ainda que falte a substância do corpo para que se possa gozar e fazer gozar, privilégio dos vivos. Se o amor é aquilo que supre a ausência da relação sexual, a morte parece estar a serviço dessa mesma função, ali onde o amor ameaça mostrar seus limites. O amor, diz Lacan (1972-73/2008, p. 100), é um acontecimento contingente – aquilo que “para de não se escrever” – logo, por princípio não programável e não mercantilizável. O encontro amoroso surpreende na medida em que, por um momento, dá a ilusão de que a relação sexual cessou de não se escrever, “ilusão de que algo não somente se articula, mas se inscreve, no destino de cada um, pelo que, 6 Lacan havia acabado de ler uma biografia sobre a Rainha Vitória, escrita por Lytton Strachey, Queen Victoria, publicada em 1921.

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durante um tempo, um tempo de suspensão, o que seria a relação sexual encontra no ser que fala, seu traço e sua via de miragem” (LACAN, 1972-73/2008, p. 156). Se por um instante fortuito o amor escreve suas letras – oh, bonheur – suspendendo temporariamente o exílio da relação sexual, não é de se estranhar que os amantes tentem esticar esse momento na esperança de fazê-lo passar à ordem do necessário, ainda que seja no para além da morte. “Será que o amor é isso: ter feito um pedaço de caminho juntos?”, se interroga Lacan (1973-74/inédito) sobre os mistérios da duração do amor. Pode ser que “no horizonte do amor o avô e a avó” ainda estejam juntos como parceiros de caminhada. Pode ser que aconteça, não é impossível, mas não há garantias. O para sempre “é sempre por um triz”, depois que o encontro acontece ninguém sabe o seu desfecho, o triz está sempre lá no horizonte e “faz parte do amor”, diz Prates Pacheco (2015, p. 39). O romantismo se fia na vida além para garantir a eternidade do amor. Vem de Freud (1915/2010) a observação sobre a mudança de atitude que assumimos perante o morto: nos abstermos de toda crítica e relevamos os seus erros a ponto de a consideração pelo morto estar acima da verdade e até mesmo da consideração pelos vivos. Com efeito, só a morte pode cristalizar a experiência amorosa, poupando-a do “triz”, dos desgastes e limites que lhe são próprios. Um luto que se afigura romântico parece contar com a promessa de que, no depois da morte, o amor não para, não para, não parará nunca mais de se escrever. Passa necessariamente a ser imortal. Ao considerarmos que o luto romântico busca suprir o real do sexo, poderíamos também considerar que a mesma sorte se dá em relação ao real da morte? Lacan (1958-59/2002, p. 356), no Seminário 6, acentuou que não é qualquer perda que nos deixa de luto, mas somente a “morte de um outro, que é para nós um ser essencial”. Essa perda abriria um “furo no real”,7 e o sujeito mergulharia na vertigem da dor a ponto do desfalecimento. A desordem provocada por um lutofuro-no-real faz o sujeito convocar todo tipo de coisas a que se possa agarrar – imagens e significantes – para fazer frente a esse furo aberto na existência. Ao furo no real, o sujeito responde lançando um apelo a todo o sistema significante. Acontece que, conforme acentuou Allouch (2004), ainda que imagens e todo o jogo simbólico possam ser lançados nesse furo, este é um lugar impossí7 Recolho de Allouch (2004, p. 365) a “prudência doutrinal” de ler com cautela esse “furo no real”: “Lacan formulava assim as coisas em abril de 1959. […] Sobretudo desde o estudo da cadeia borromeana, tornou-se menos fácil, em Lacan, falar de um furo [...], se houve ‘progresso’, entre 1959 e 1979, foi no sentido de não mais saber demais o que se acreditava saber, quanto ao furo. Disso decorre que a mais elementar prudência doutrinal reclama que acolhamos hoje esse ‘furo no real’, tal como Lacan o usava em 1959, como uma metáfora”.

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vel – impossível, um dos nomes do real – de preencher. O trabalho de luto está precisamente às voltas com essa impossibilidade em que nada ou ninguém pode vir plenamente satisfazer esse lugar deixado vazio. O candidato à substituição carregará sempre a marca de ser uma outra coisa. O romantismo é uma resposta, dentre outras, que os homens se inventaram em face do impossível da morte, ao impossível do sexo. Com efeito, a retórica romântica apazigua as dores da separação com a promessa de restituição, por toda eternidade, dos amores terrenos perdidos. O encontro bem-aventurado com o objeto existe e está disponível no para além da morte. Trata-se de uma ideia bastante sedutora na medida em que produz uma certa complacência com a morte, mas, deixemos claro, com a morte-felicidade, a morte-comunhão. Porém, por mais encantadora que seja, fiar-se totalmente nessa promessa romântica tem por contrapartida fixar o enlutado em uma espera sem fim, uma espera pelo (não) reencontro. O luto fica em suspensão porque a morte não implica separação. No luto romantizado, o culto ao morto e aos seus referentes dá consistência à relação com alguém que, conforme a sabedoria popular, “está morto, mas não enterrado”. É como se, com esse luto, se visasse dar provas de sua (não) existência. Na obra Erótica do luto, Allouch (2004, p. 387), a partir de Lacan, apresenta uma versão de luto cujo desfecho implica um ato em que o enlutado efetuaria sua perda suplementando-a com um “pequeno”, mas precioso “pedaço de si”: “Luto não é somente perder alguém [...], é perder alguém perdendo um pedaço de si”. O autor coloca de outro modo a problemática do objeto no luto. Tratar-se-ia de um objeto (de)composto em (1 + a). Efetuar um luto a partir de um ato é uma operação radical na medida em que implica ceder em suplemento à perda sofrida um pequeno pedaço, sem qualquer possibilidade de recuperação futura. Esse ato joga contra as pretensões restitutivas do luto romântico, pois a oferenda de luto “graciosamente sacrificada” ao morto (à morte) é sem compensação, é uma perda que se dá às secas, uma “perda seca” (Ibid., p. 11). Sem a perda desse suplemento, a escrita subjetiva do luto não se encerraria e estaria aberta a repercussões, sejam os fenômenos de luto, o suicídio do enlutado, os lutos mumificados...: “só estando ele mesmo perdido é que esse suplemento satisfaz a função de possibilitar a perda desse alguém que foi perdido. Assim, ele cessa de possivelmente aparecer, tal como um fantasma ou uma alucinação” (ALLOUCH, 2004, p. 389). Um ato separador e simultaneamente instaurador das mudanças na relação com o objeto perdido abre para o sujeito a possibilidade de recuperar as vias de seu próprio desejo. No Seminário 10, Lacan (1962-63/2005) reconsidera a função do luto a partir do objeto a, causa do desejo. Se em Freud o trabalho de luto

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lida com a tarefa de consumir pela segunda vez a perda do objeto perdido, Lacan (Ibid., p. 363) propõe uma versão idêntica e ao mesmo tempo contrária a essa ideia. Quanto a nós, o trabalho de luto nos parece, por um prisma simultaneamente idêntico e contrário, um trabalho feito para manter e sustentar todos esses vínculos de detalhes, na verdade, a fim de restabelecer a ligação com o verdadeiro objeto da relação, o objeto mascarado, objeto a. Em suma, efetuar um luto implica essencialmente uma separação que muda a relação que se tem com o morto e com seus referentes. Nesse sentido, não se trata de esquecê-lo ou de não conviver de jeito nenhum com seus signos – muitos enlutados temem que “seguir a vida”, outro modo de falar de fim de luto, implica esquecimento ou traição –, mas encontrar para o morto um outro lugar que não este, ilusório, de ser tomado como o objeto causa de desejo a ponto de fazer de sua morte a causa que (des)enlaça o sujeito em um luto sem fim. Para finalizar essas breves anotações sobre o luto romântico, recorro novamente a Rilke (2001, p. 21) cuja voz poética agora se eleva não mais para cantar as virtudes dos mortos e da morte, mas para exortar as “amorosas abandonadas” a frutificarem seus sofrimentos: [...] Frutificarão afinal esses longínquos sofrimentos? Não é tempo daqueles que amam libertar-se do objeto amado e superá-lo, frementes? Assim a flecha ultrapassa a corda, para ser no voo Mais do que ela mesma. Pois em parte alguma se detém.

referências bibliográficas ALLOUCH J. Erótica do luto no tempo da morte seca. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004. ARIÈS, P. O homem diante da morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981. BERTA, S. L. O exílio: vicissitudes do luto. Reflexões sobre o exílio político dos argentinos (1976-1983). 2007. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica). Universidade de São Paulo. BADIOU, A; TRUONG, N. Elogio ao amor. São Paulo: Martins Fontes, 2013. DE NICOLA, J. Literatura Brasileira: das origens aos nossos dias. São Paulo: Scipione, 1985.

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“A morte da amada”: Do luto romântico ou da morte como bom encontro

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resumo Na prática clínica, com frequência nos deparamos com sujeitos mergulhados em um luto romantizado impossível de finalizar. Esses lutos apaixonados e duradouros lembram sobremaneira o fascínio pela morte e os grandes lutos dramáticos que marcaram os tempos do Romantismo, no século XIX. Que se passa nesses lutos? Poderia a concepção romântica do amor lançar-lhes alguma luz? Em que medida essa figura do amor faz função no luto? Com o intuito de precisar essas inquietações recorro à ajuda preciosa da literatura no trilhamento de Freud e de Lacan (1958-59/2002, p. 262) para quem as “criações poéticas engendram mais do que refletem as criações psicológicas”. Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 32 p.53-64 junho 2016

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PINHO, Miriam Ximenes

palavras-chave Luto; Romantismo; luto romântico; psicanálise.

abstract Very frequently in clinical practice we meet subjects drowned by a type of romanticized mourning, impossible to finish. These situations of passionate and enduring grief greatly resemble the fascination with death and the great dramatic cases of mourning that marked the age of Romanticism in the nineteenth century. What happens in this type of mourning? Could the romantic conception of love shed some light on them? To what extent this figure of love operates in the mourning process? In order to carefully discuss such concerns, I turn to the precious help of literature, following the trail of Freud and also of Lacan (1958-59/2002, p. 262) for whom “poetic creations engender more than reflect the psychological creations”.

keywords Mourning; Romanticism; romantic mourning; psychoanalysis.

recebido 10/02/2016

aprovado 22/03/2016

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Amor: Sinal que se muda de laço1 Ricardo de Barros Cabral 1. A sucessão obstrui a direção do tratamento Resolver ocupar um lugar de analista impõe a questão sobre os invariantes da psicanálise. Por que razão há impossibilidade de reduzi-la à técnica? Porque, em psicanálise, o pivô da clínica é o amor. Então, o que faria a diferença a outras maneiras de lidar com amor, terapêuticas de apelo vitalista, religião e, por que não, a própria filosofia? Deve-se cuidar dos vários aspectos sem perdermos a referência ao amor em psicanálise. Os recentes trabalhos que apresentei a respeito nas jornadas de formações clínicas e nos encontros nacionais e internacionais do campo lacaniano tratam desta preocupação. Todavia, as dimensões do amor na clínica psicanalítica não constituem um fio que se possa percorrer em contínuo. Este artigo trata destas dimensões: o fim da psicanálise, a instauração de um novo laço social, com sua condição clínica, o amor, o amor de transferência tal como Freud o descobre e conceitua. A estratégia de trabalho deixa em segundo plano a referência a autores, tanto quanto a preocupação tipicamente universitária com a datação, considerada fundamental para alguns psicanalistas, inclusive Analistas Membros da Escola do campo lacaniano, que lhe conferem um valor maior do que de fato possuem, o de índices para o leitor. Afinal, pode-se extrair qualquer direção da cura psicanalítica desta suposição tipicamente positivista, ao simplesmente subordinar a psicanálise à sucessão: primeiro Freud, depois Lacan; primeira tópica, segunda tópica, um primeiro Lacan, um segundo Lacan, um último, e, por que não, um ultimíssimo Lacan. Nossa estratégia deixa de lado a sucessão, enquanto ilusão de continuidade, em prol da transmissão. A transmissão da psicanálise passa por outra, por uma nova maneira de amar, orientada pelo real não escrito da clínica e o real da letra escrita de Freud. A descoberta freudiana do Inconsciente abala a concepção ascética de amor, idealizada, pilar da civilização. Ao contrário de reduzir a humanidade à energia sexual animal, a intransigência de Freud para preservar a sexualidade e o sexo como fundamento da psicanálise implica uma profunda modificação, ou melhor, uma transformação de nossa maneira de amar. 1 Je ne dis pas autre chose en disant que l’amour, c’est le signe qu’on change de discours. (LACAN, 1975) Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 32 p.65-75 junho 2016

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Não seria por acaso que Lacan fala de um estranho amor ao concluir o Seminário 11 após sua excomunhão da IPA. Referindo-se ao fim da psicanálise, ele fala que “só aí pode surgir a significação de um amor sem limite, porque fora dos limites da lei” (LACAN, 1964/1973, p. 248). Um amor fora dos limites da Lei? Não há outra razão para os mal-entendidos que pairam sobre a psicanálise, desde as tentativas de reduzirem-na a uma técnica anódina, às leituras que a banalizam e condenam em nome de algo supostamente claro, conquanto ainda mais obscuro.2 A sucessão cronológica enrijece a leitura da psicanálise e confunde ainda mais a convivência da Escola. Essas indicações atravessam a obra de Lacan e não obedecem a uma sucessão. Mais recentemente encontrei eco no retorno de Antônio Quinet à noção de Hímeros (2014), o desejo positivado, um desfecho possível para uma análise e guia de convivência entre aquelas pessoas que desejam perseverar no desejo do analista para fazer da psicanálise uma nova modalidade de laço social, quer dizer, uma transformação da maneira de amar, de desfazer laços e reuni-los outra vez. Anelos? Desejo positivado que denomino amor. Por quê? Porque se trata em psicanálise necessariamente de nós.

2. Nós na clínica Que o amor seja o sinal de que se muda de laço? A expressão sintetiza o alfa e o ômega da psicanálise, tanto quanto o percurso de uma análise. Como nos situarmos, nós analistas, na clínica? Há diferença entre laços e nós? Uma análise nunca acaba para quem vai além e se indaga pelo enigma renovado do desejo do analista. Seu fim, da análise que vai além, seria sustentar o desejo do analista? Se for, aquele que deseja precisa se haver ainda com outros analistas. No congresso de Bonneval, Jacques Lacan nos ensina que: Os psicanalistas fazem parte do conceito de inconsciente, uma vez que constituem o seu endereço. Nós não podemos desde então não incluir nosso discurso sobre o inconsciente na tese mesma que ele enuncia, que a presença do inconsciente, por situar-se no lugar do Outro, deve ser buscada na enunciação de todo discurso. O sujeito que pretende sustentar esta presença, o analista, deve nesta hipótese, pelo mesmo movimento ser informado e posto em causa, seja experimentar-se sujeito a divisão do significante (LACAN, 1966, p. 834).

2 Refiro-me à pretensão dos neurocientistas ao se pronunciarem sobre algo além dos nervos que consta no livro negro da psicanálise.

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Este “faz parte” é o nosso problema, e quaisquer transformações advindas no ensino de Lacan reiteram essas linhas proferidas na época de sua excomunhão. Razão pela qual cabe pensar de que modo o recurso à topologia, ao nó borromeano e aos nós pretende escrever este novo laço, discurso do analista, que emerge a cada passagem de um ao outro discurso. Novo laço que só o amor de transferência viabiliza revirando pelo avesso o que há de mais real no amor. Em vez da rígida identificação, na primeira pessoa do plural de um nós (CABRAL, 2014), ideal impensável e não realizado no cotidiano das instituições, seria preciso pensar de outra maneira o desfecho de uma análise. Prosseguir na Escola durante e depois de uma análise para edificar o campo lacaniano só será viável a partir do anelamento de um mais-um. Sim, esta qualificação quase trivial de um “anelo” faria a pequena diferença entre o discurso do analista, discurso entre outros discursos, para um discurso que almeja a hegemonia. O discurso do mestre, tal como Lacan o estrutura, pressupõe a universalidade antes do consentimento. Quando uma igreja se nomeia universal ou católica, ela ergue a pretensão de envolver todos. Se lhe respondêssemos: não, qual a consequência da negação desta vontade universal? O que seria de nós? Outrora, a fogueira. Hoje, os divãs estão repletos de ex (...) onde se lhes dá a palavra e tempo para elaborar seu desejo, para o sim ou o não, ou como desejam fazer ou não parte de um grupo. A própria história da psicanálise não escapa à tentação de se organizar como igreja universal. Jacques Lacan denuncia em “Televisão” (1973/1974) na Sociedade Internacional de Psicanálise esta intenção e a renomeia como sociedade de assistência mútua contra o discurso analítico (SAMCDA). Ainda assim, o empuxo à totalização assemelha-se à Hidra. Por paradoxal que possa parecer a comparação, uma vez que a Hidra é a criatura que, quando se tenta eliminá-la surgem duas no lugar, ela me parece adequada na medida em que não há Todo sem exceção, ou seja, não há Todo cuja consistência não seja extraída de menos-um (QUINET, 2015, p. 50). Este menos-um pode ser o iluminado, o líder, o guru, aquele que sabe o que ninguém sabe, ou como o psicanalista Lacan excomungado da psicanálise, como o judeu-alemão na Alemanha nazista, ou um negro americano na América. Nunca a exceção confirma a Lei, porém a existência que a põe em questão. Reparem: o traço da exceção, a função dita fálica, não difere da característica que define o grupo. Qualquer leitura que reduza ao binário a releitura que Jacques Lacan faz da sexualidade e do amor negligencia o caráter paradoxal da descoberta freudiana. Para mostrar o quanto esta descoberta freudiana não é um saber sujeito à dominação, em sua organização institucional, mesmo depois das diversas contribuições, alertas e formulações de Jacques Lacan, apesar de toda a preocupação com a transmissão da psicanálise, o fantasma da totalidade, como uma Fênix, o Um

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do único cuja consistência fantasmática exclui o Outro ressurge. Entretanto, sabemos que “a história se repete, a primeira vez como tragédia; e a segunda, como farsa” (MARX, 1951-52/2011).

3. Nós no Campo Lacaniano O Campo Lacaniano nasce dessa cisão (CARNEIRO-RIBEIRO, 1998). Nós somos o fruto dessa divisão. O voto de uma contraexperiência do Um. O Campo Lacaniano nasce dessa divisão, mas o que são nós no Campo Lacaniano? Não contenta assumir que somos frutos da divisão e do quanto a sexualidade e o sexo é fundamental para a psicanálise. Necessário, mas não suficiente. O laço é tão fundamental quanto, ainda que alertados pela impossibilidade da relação. A relação é a categoria que ultrapassaria efetivamente a divisão. Só uma união supostamente divina teria esse poder de não deixar vestígios do que fora outrora separado. E a psicanálise é leiga. Por isso, o axioma lacaniano faz todo seu sentido: a relação sexual não existe. Ainda que achem graça nessa formulação, porque negaria um fato consumado da realidade concreta, se disséssemos “a união divisão não existe”, qualquer um concordaria, e perceberia o disparate de afirmar existir o unido dividido e negá-lo uma platitude. Daí minha interrogação sobre o que são nós. A transmissão da psicanálise passa e passará necessariamente pela tentativa de fazer laço de outra maneira, de amar. Não significa ceder à concepção ascética e idealizada de amor. Pelo contrário. A intransigência de Freud quanto ao sexo como fundamento da psicanálise implica esta transformação da maneira de amar. Na lógica do mais-um do desejo e não na lógica da exclusão da maestria, do menos um. Admitir tratar um sintoma por meio da transferência, do amor, nos constrange a pensar de outra maneira que a Sociedade Psicanalítica que excomungou e excluiu o psicanalista Jacques Lacan. A tradição oriunda de certa compreensão dos evangelhos oporia o verdadeiro ao falso no que concerne às coisas ditas e sentidas do amor e decalcaria nos escritos de Freud os velhos impasses da vida amorosa. Se houver efetiva preocupação com a verdade no tratamento, o amor (de transferência), um amor presente no Real (LACAN, 1962-63/2004, p. 128), não deve ser interpretado na clínica como oposto ao verdadeiro amor. Tudo se passaria como se transferíssemos ao analista o que não suportamos na vida e, ao nos conformarmos a isso, estaríamos desenganados e sarados. Enfim, estaríamos mais preparados para enfrentar a dura realidade? Isso não acontece.

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4. O que não engana não orienta A decepção amorosa, o desencanto, não nos faz cair na realidade nem nos impõe o verdadeiro, o que implica a repetição do além do princípio do prazer. Razão pela qual abre-se uma janela donde advirá, como um fôlego que falta, a angústia. Uma pausa, um hiato é necessário na passagem do amor à angústia, um passe pelo fantasma. O fantasma [...] é certa relação de oposição a “"” relação cuja polivalência está suficientemente definida pelo caráter composto do losango que é tanto a disjunção, È, quanto a conjunção, Ç, que é também o maior e o menor. $ é o termo desta operação sob a forma de divisão, uma vez que “"” é irredutível, um resto, e não há maneira de operar com ele (LACAN, 1962-63/2004, p. 203). Não há outra razão para a topologia interessar tanto a Lacan. Sem corte, torção e junção seria inconcebível a faixa de Mœbius obtida ao efetuar meia volta numa das extremidades de um plano que se reúnem fora do campo da percepção. O plano de Mœbius estampa a capa do seminário da Angústia. Se, portanto, passase de Um a Outro, isso se faz em um ponto de torção como a raiz quadrada de menos-um: . Que se escreve, porém invisível, indizível, impossível de indicar. Ponto de passagem onde a orientação do sujeito vacila devido à crise do sentido escrita $ na álgebra lacaniana. “Quando a falta vem a faltar” não é justo o avesso de “dar o que não se tem”? ( LACAN, 1962-63/2004, p. 128). No limite, onde toda Norma vacila, quando se impõe a questão do que quer o Outro, recordemos Il diavolo Innamorato, Che vuoi?, eis a angústia. Mas se, de repente, faltar toda e qualquer norma, isto é, tanto o que constitui a anomalia quanto o que constitui a falta, se esta de repente não faltar, é nesse momento que começará a angústia (Ibid., p. 53). Poderíamos encontrar na angústia o guia, a orientação que se perde quando nos falta o sentido? Se não há amor verdadeiro, a angústia, como afeto que não engana, seria, então, a bússola do sujeito moderno na era da ciência, o afeto verdadeiro? O afeto que não engana, na verdade, não é um porto seguro. Afeto que não engana, a angústia nos cala e nada nos diz da verdade. Ponto de passe, silencia o desespero de um sujeito. Tratar esta pausa e tentar de escrevê-la, eis o desejo do analista.

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5. A necessidade de quem fala Todas as traduções dos Écrits (1966) de Lacan para o português vertem o “besoin” francês, por necessidade, o que engendra uma incompreensão de tal ordem que parece impossível articular o que está escrito com o que lidamos na clínica, ao reduzir Demanda à fala que pode calar-se e emudecer. Para que se entenda a Demanda segundo Lacan, com o D maiúsculo, devemos fazer outra distinção, como ele mesmo já deixava claro desde “Função e campo da palavra e da linguagem” que “need e demand têm para o sujeito um sentido diametralmente oposto” (LACAN, 1953/1998, p. 297). Ou seja, trata-se de uma necessidade de outra ordem e por isso mesmo o silêncio na clínica é retumbante. Eis uma das razões que dificultam o uso do matema $<>D (1960/1998, p. 831) como matema da pulsão: reduzir a demanda ao falado. O S-barrado denota a operação, a priori, de anulação pelo significante das orientações vitais, anterior ao nascimento de cada um que padecerá em seu próprio percurso da sua repetição. A própria demanda incide sobre outra coisa do que sobre as satisfações que ela exige. Ela é demanda de uma presença ou de uma ausência. O que a relação primordial com a mãe manifesta, por estar prenhe deste Outro que se deve situar aquém do que se pode preencher quanto ao que é (besoin) preciso (LACAN, 1958/1998, p. 697). $<>D: matema da pulsão alinhavado, no grafo do desejo, à exigência que não encontra correspondência no campo do Outro, onde o sujeito deve advir e se escreve no grafo do desejo “s” de A-barrado s(%) no vetor do Gozo a castração (LACAN, 1958/1998, p. 511).

S(%)

Gozo

($&")

($&D)

d

Castração

No dizer freudiano, o objeto da pulsão é um objeto qualquer, ou seja, não há objeto específico de saciedade da pulsão (FREUD, 1915). Articulada à estrutura significante, à repetição não faz sentido indagar pela fonte somática ou qualquer outra para ela. Nada há o que contente ou corresponda a esta exigência: $<>D.

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Amor: Sinal que muda de laço

Por outro lado, se não há como responder adequadamente a esta exigência, não há como se abster dela. Eis o paradoxo desta necessidade. O que não há remédio, não está remediado. Aliás, nada mais freudiano do que esta característica da pulsão, e por causa dela concebe o dispositivo clínico da psicanálise. Como não há como se abster, entram em jogo as imagens, anuladas pela função simbólica, ou seja, fantasmas, a dimensão de imagens com a imprecisão que lhes é peculiar, tal como escritas no grafo do desejo e entrelaçam os “anelos” que não se contam a partir dos quais Lacan nos ensinou a ler e a reler Freud, porque não são três (real, simbólico e imaginário). Este ponto será fundamental. A leitura da função do nome-do-pai em Jacques Lacan do Seminário 3 ao 23 acompanha essa mesma lógica. A álgebra lacaniana já não é cardinal ou ordinal. S1 e S2 são diferenciais. Passar a pensar as distinções nomeadas Real, Simbólico e Imaginário para reler Freud a partir do anelamento borromeano interdita de vez enganar-se com o número ordinal ou contabilidade. O anelamento poderia ser infinito. Não há um elo privilegiado. Qualquer anel pode desfazer o anelamento. O sexual de Freud a Lacan, o sexual na psicanálise é esta fenda no coração de qualquer nó (não trivial) de amor. Não há vínculo natural para o qual se incline a necessidade de amar. A expressão sintética da perda e da busca do amor perdido é a pedra angular da psicanálise como clínica, como ética e também como política. Não por acaso, Lacan entendeu que o desejo (anelo) era e é o cogito freudiano (LACAN, 1964/1973). Quem se autoriza estar no lugar de acatar a Demanda como analista, não pode, nem deve abrir mão da categoria do necessário, sob pena de se tornar impotente para sustentar a direção do tratamento, uma vez que serão tomados como objeto de amor. E o amor transferencial toca no que há de mais real nos laços de amor na medida em que não é orgânica a necessidade de quem fala, [...] pois need e demand têm para o sujeito um sentido diametralmente oposto, e afirmar que seu emprego possa ser confundido por um instante sequer equivale a desconhecer radicalmente a intimação da fala (LACAN, 1953/1998, p. 297). Se à categoria de necessidade concerne o imprescindível, ela não se reduz para quem fala ao que se precisa: need em inglês, besoin em francês, ou até mesmo bedürfnis em alemão (LACAN, 1954/1998, p. 387). Quanto mais para a psicanálise, porque trata pela fala da necessidade de cada um (talking cure). O necessário em questão implica as categorias da lógica modal: possível, existência, necessário, que não desenvolverei aqui neste trabalho, não obstante, Jacques Lacan reformule a tríade de categorias modais kantianas sem jamais abrir mão do necessário, em suas palavras, a referência ao “que não cessa” (LACAN, 1972-73/1975).

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Este é o erro crasso da maioria dos tratamentos dados aos sintomas contemporâneos: pretender a eliminação ou remissão do sintoma porque se acredita na possibilidade de cessá-lo quando, na verdade, apenas se deslocam. Erro crasso referendado até as últimas edições dos DSM e dos CID que reduzem o sintoma a um sinal qualquer, em vez de considerar a que necessidade o sujeito responde com seu sintoma. Por isso mesmo, desqualificam a pulsão como mera conjetura freudiana verbal e vazia. Porém, outro erro, não tão grave, todavia bastante comum entre psicanalistas, sobretudo lacanianos, como a tradução dos Écrits revela, se expressa na oposição entre desejo e necessidade: quando se equivale o necessário ao que se precisa e se opõe demanda a desejo. Escuta-se a demanda apenas como falada e se negligencia seu caráter de intimação, ou seja, de pulsão: $<>D. Isto porque “Tudo o que o falante precisa está contaminado por estar implicado numa outra satisfação para a qual pode fazer falta” (Ibid., p. 49). O que pode fazer falta? Justo o que se precisa. O ar para os pulmões, o alimento para a fome, o sono para a fadiga não atende ao necessário para quem fala, esta Outra Necessidade. Quando se trata de amar, o que se deve realmente buscar? Não há! Nada mais estranho às elaborações clássicas do pensamento: uma necessidade cujo objeto não há. Contudo, porque envolve o necessário, permanecer indiferente é impossível. Razão pela qual a ética da psicanálise não é uma ética estoica, não visa à ataraxia, nem o fim da análise poderá ser o resignar-se ao sintoma. Por isso mesmo Lacan afirma na “Nota Italiana” que sem entusiasmo, pode haver análise, “mas nenhuma chance de analista” (1974/2001, p. 309).

6. A resposta psicanalítica à necessidade Donde a impossibilidade daquele que ocupa este lugar de objeto de amor como analista SER o amor de quem o procura. Mas quem o procura não sabe disso, ou ainda, inconsciente sabe. Todavia quem recebe essa intimação como analista terá obrigação de saber, caso contrário correrá o risco de recair na impotência de tentar responder a esse chamado, receio que tenta, que ronda qualquer iniciante na clínica e comparece no lugar de semblante. O analista não é uma Pessoa, nem sujeito, mas causa de desejo. Não sou EU, nem pode ser um. Tampouco um mestre que ao acatar a demanda orienta em que sentido o sujeito precisa buscar resolver o seu problema. Mas a psicanálise se passa em outra dimensão, onde DAR nada contenta, e dar Sentido significa menos ainda pois, ao contrário, oblitera toda possibilidade de cura. Por isso se deve transformar a maneira de amar para que advenha um outro laço, um novo laço que se chama o discurso do analista, a cada análise que se inicia, como nova modalidade de laço social, de um amor sem limite (LACAN, 1964/1973) que só o desejo do analista consente sustentar.

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7. O fim da psicanálise Não há laços eternos. Só os amores o são. Não há matriz do laço, porque os laços não são prévios, mas hiato devido à palavra. Mesmo o vínculo materno. Parece banal dizer que os laços de amor são feitos. Quando o são, em nome do quê? A sabedoria popular, entretanto, não se engana de todo quando diz que o amor está escrito. Para nós, amar implica a letra. Mas não quer saber que escrever não erradica o hiato aberto pela palavra. Amar é desejar. Amar seria gozar nas entrelinhas do Outro. Não se encontra na certeza soberba de quem ama ou é amado. E a resposta inútil: não sei, não sei, não sei... que evita refazer laços, reiteração do sintoma e do pavor de amar, será justo o que o psicanalista ousa tratar, quando a ênfase recairá sob o engajar-se em decifrar sinais con-siderados de amor. Lacan nos ensina, sobretudo, a reler Freud. O que será concedido almejar, ao concebermos, paradoxalmente, cada laço de amor a partir do seu feitio? A psicanálise nos permite reler a história de cada um, o que está escrito em nós. Freud escreve que a anatomia é o destino. A anatomia é letra morta. Reler consiste em dar voz à letra e animá-la por meio da fala. Viver entre letras é a sina do sujeito, pois que todo ânimo não apagará o destino de se tornar-se letra outra vez, nas lápides que se empilham nas bibliotecas. Antes disso, ainda precisamos viver o desenlace da transferência. Este é um capítulo da “histœria” da psicanálise que está em curso, que se faz ainda e desejo escrever. Como não há desejo sem Outro, me dirijo àquele que não sabe o que fazer com Isso, para que possa cessar de não escrever sobre nós, sobre o que nos intima no mais íntimo, o enigma do nós e dos nós, a fazermos sós, o que constitui o drama, a trama e o urdume do campo lacaniano, que o próprio Lacan desejara, torne-se campo de Gozo! (LACAN, 1969-70/1991, p. 93). Sem esquecermos do amor, pois, parafraseando o que diz Lacan no seminário sobre a Angústia, só um amor permitirá ao gozo consentir com o desejo.

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CABRAL, Ricardo de Barros

LACAN, J. (1953). “Função e campo da fala e da linguagem” In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. . (1954). “Resposta ao comentário de Jean Hyppolite sobre a Verneinung de Freud” In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. . (1957). “A instância da letra no inconsciente” In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. . (1957-58). Le séminaire, livre 5: Les formations de l’inconscient. Paris: Seuil, 1998. . (1958). “A significação do falo” In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. . (1960). “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente” In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. . (1962-63). Le séminaire, livre 10: L’angoisse. Paris: Seuil, 2004. LACAN, J. (1964). Le séminaire, livre 11: Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse. Paris: Seuil, 1973. . (1969-70). Le séminaire, livre 17: L’envers de la psychanalyse. Paris: Seuil, 1991. . (1972-73). Le séminaire, livre 20: Encore. Paris: Seuil, 1975. . (1973). Télévision. Paris: Seuil, 1974. . (1974). “Note Italienne” In: Autres écrits. Paris: Seuil, 2001, pp. 307-311. MARX, K. (1851-52). Dezoito de brumário, de Luis Bonaparte. Rio de Janeiro: Boitempo, 2011. QUINET, A. “Le Beau désir: Hímeros, entre l’art et la psychanalyse” In: Revue du champ lacanien , n. 15. Paris: PUF, 2014. . Édipo ao pé da letra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2015. SOLER, C. “Amar seu sintoma?” In: Opção Lacaniana, 12. Paris: Seuil, 1995, pp. 73-82.

resumo Este artigo articula o fim da psicanálise, a instauração de um novo laço social, com sua condição clínica, o amor, o amor de transferência tal como Freud o descobre e conceitua. A estratégia de trabalho deixa em segundo plano a referência a autores, tanto quanto a preocupação tipicamente universitária com a datação, considerada fundamental para alguns psicanalistas que lhe conferem um valor maior do que de fato possuem, o de índices para o leitor. O amor é o sinal de que se muda de laço: a expressão sintetiza o alfa e o ômega da psicanálise, tanto quanto o percurso de uma análise. Esclarecê-la é o que pretende este artigo.

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Amor: Sinal que muda de laço

palavras-chave Transferência; amor; laço social; nós.

abstract This article is a synthesis of the latest works I have presented in the Lacanian field. It articulates the end of psychoanalysis, the creation of a new social bond, with its clinical condition, love, the love of transfer as found and conceptualized by Freud. The method used in this paper leaves the reference to authors in the background, as much as the typically academic concern with dates, taken as fundamental by some psychoanalysts who give it a value greater than it actually has, that of indices for the reader. Love is the sign that a bond is changed: the expression synthesizes the alpha and the omega of psychoanalysis as much as the trajectory of an analysis. This article intends to clarify it.

keywords Transference; love; social bond; knots.

recebido 28/01/2016

aprovado 25/03/2016

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estruturas clínicas: laços e desenlaces



Enlaces e desenlaces na clínica das psicoses: Três fragmentos de amor erotômano _____________________

Andréa Franco Milagres Tomarei como ponto de partida uma pergunta: o que pode a psicanálise extrair da clínica com sujeitos erotômanos? Podemos considerar a experiência com estes sujeitos potente em termos de ensinamento? Freud nos ensina que a psicanálise não provoca a transferência. Ela é anterior ao tratamento e se manifesta também fora deste. Podemos entendê-la como uma espécie de prontidão libidinal, apta a tomar o outro como um objeto, a fim de satisfazer parte do impulso que não pode encontrar pleno desenvolvimento. Todavia, se há uma prontidão libidinal, o analista deve ser enredado necessariamente nesta trama para que o tratamento aconteça, suportando ser tomado como objeto. É uma condição. Freud, desde o início, considerou com reservas a possibilidade de a psicanálise ocupar-se dos sujeitos psicóticos. Já em 1911, constatava que o problema advinha da dificuldade de estabelecer uma ligação libidinal com o psicanalista, visto que na psicose haveria um retorno da libido em direção ao eu, em detrimento de uma ligação com os objetos, situação que comprometeria a transferência, motor do tratamento psicanalítico. Todavia, se por esta razão Freud desconfiava da aplicabilidade da prática psicanalítica à psicose, paradoxalmente nos mostra, por meio do delírio de Schreber, como o sujeito trabalha para se reconectar ao Outro. A referência para compreender a psicose neste momento da sua elaboração é a teoria da libido, construída como resposta a Jung, que entendia a libido como interesse em geral pelas coisas. Freud o retifica, demonstrando a realidade sexual da libido a partir de Schreber. Trata-se de um caso exemplar para a psicanálise, na medida em que nos permite constatar os efeitos do desligamento do outro como objeto e os destinos da libido quando do seu retorno ao eu. A partir de uma gramática particular oriunda do enunciado de Schreber – “como seria bom ser uma mulher submetendo-se à cópula” – Freud depreende não somente uma tipologia da paranoia, nomeando os delírios de perseguição, de ciúmes, de ser amado e de grandeza, mas, sobretudo, esclarece o modo como cada paranoico estabelece ou restabelece sua ligação com o Outro.

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MILAGRES, Andréa Franco

Freud parte de uma fórmula matriz: EU O AMO O que quer dizer, EU (UM HOMEM) O AMO (A ELE, UM HOMEM). Em todos os casos há uma negação da frase EU O AMO. Esta negação pode recair sobre o sujeito, o verbo, o objeto, ou sobre a frase inteira. A partir de um trabalho de negações, inversões ou projeções, Freud constrói uma gramática da libido que nos instrui a respeito de sua ligação com o Outro e consequentemente, com seu desejo, conforme o tipo clínico. Na perseguição: a negação recai sobre o verbo da frase, ocorrendo uma inversão. O amor, por projeção se converte em ódio, levando ao delírio de perseguição. “Eu não o amo, eu o odeio, porque ele me persegue”. Na erotomania: a negação recai sobre o objeto da frase. “Não é a ele quem amo, é a ela”, e por projeção: “É ela quem me ama”. Nos delírios de ciúmes, a negação recai sobre o sujeito da frase, que é invertido: “Não sou eu quem ama o homem, é ela quem o ama”. E no delírio de grandeza, nega-se a frase por inteiro: “Eu não o amo, só amo a mim mesmo”. Megalomania, portanto. A partir de três fragmentos, discutiremos a modalidade erotômana de fazer laço e, na medida do possível, seus respectivos desenlaces.

Caso 1: Marisa, um “mulheril” Na entrevista inicial, Marisa fala do seu problema: “é que o sexo trepou pra cabeça”. Aos poucos recolhemos as pistas que permitirão uma aproximação diagnóstica. Primeira pista: vendo televisão, uma propaganda anunciava: “de mulher pra mulher, Marisa...”. Teve, então, uma certeza: o recado era para ela. Segunda pista: o surgimento de um neologismo: relatava estar em uso de uma medicação que nomeava como “mulheril”, em vez de meleril.1 Terceira e inequívoca pista: no parto do terceiro filho testemunhou uma experiência inefável. Durante a cesariana teve acesso a um gozo sexual que jamais havia experimentado. Sua conclusão é rápida e certeira: “doutor X me ama”. A partir daí passará seus dias atrás do doutor X, cercando-o nas ruas e jogando-se na frente do seu carro para lhe declarar seu amor. Importante lembrar que a erotomania pode manifestar-se clinicamente nas duas vertentes: amar ou ser amado pelo Outro, pois se Marisa ama, foi doutor X quem declarou seu amor primeiro. Podemos nos interrogar sobre o laço que o sujeito estabelece com o Outro: ela é Marisa, o mulheril que tendo acesso a essa 1 Cloridrato de tioridazina, neuroléptico indicado em casos de psicose e exacerbações agudas. 80

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Enlaces e desenlaces na clínica das psicoses: Três fragmentos de amor erotômano

experiência absolutamente única proporcionada pelo doutor X pode não somente gozar, como fazê-lo gozar. Na psicose podemos dizer que o amor se torna signo do gozo do Outro e ao mesmo tempo circunscreve seu ser de mulher?

Caso 2: O casamento do Rey Seu nome: “Sou Rey, Deus Pai todo poderoso”. A situação: “Há sofrimento e o Brasil é escravizado pelos Extado Wonido”. “Extado Wonido povo sujo. Robou 100 bilhão de Dr. L., robou 500 bilhão de Dr. L., robou 600 bilhão de Dr. L.”. Sua missão: “Unificar países com o Brazil: Nóvaiórqui – China – As América – Botafogo – Oroquai – Exráeo – Rólhiode – Rondônia – Londris – Paris – Argentena”. O objetivo: “criar um novo progresso, um novo entendimento, pão farto na mesa do brasileiro, tendo sempre à frente o Brasil no comando do Globo-terra para afastar os maus pensamentos, as brigas e as discussões. Criar uma nova base, nova formação básica dativa, uma nova república”. O método: “ditar os erros do mundo e da democracia”. O benefício: “Com os onze países reunidos quem ganha é o Brasil, que fica forte, preparado para os ataques”. Um aliado: “É através dos escritos que vou unir muito país com o Brasil. Preciso continuar trabalhando; sou obrigado”. A condição: “casar-se com Wandreia Milagri”. Pouco após o início dos atendimentos, começa a chamar-me de “fugitiva”, referindo-se à minha ausência do hospital por alguns dias. Sofreu com minha saída e andou passando uns sustos. Formula a seguinte questão: “Antes não tinha nada. Era só eu e Deus. Agora tem você. Por quê?”. Depois que me conheceu, adquiriu fama, e eu também. Ouve meu nome pelos quatro cantos do globo. Está passando na rua e de repente ouve alguém dizendo: “Wandreia Milagri”. Agora o mundo todo o recebe, os vizinhos o convidam para entrar. Diz que “com Wandreia Milagri e Rey o Brasil está de pé”. O trabalho de unificação está quase terminado: a isto chama de “trabalho global”. Faz muitas observações e elogios: muitos homens gostariam de estar casados comigo, meu nome é forte e toda vez que ouvi-lo significa que ocorreu um milagri. Tais fenômenos começam a enigmatizá-lo: não entende por que todos os vizinhos o conhecem, nem por que quando passa na rua todos falam com ele. Clérambault, em 1921, nos dá a fórmula do fenômeno passional. Se Freud falava de uma gramática, Clérambault falará de lógica. Além de suas descrições da

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síndrome, ele dirá que a paixão erotomaníaca é um postulado (“é o objeto quem começou a amar”) ao qual se acrescentam por dedução, proposições derivadas. Ele rompe com o vocabulário psicológico da crença, fazendo justiça à lógica psicótica. Sendo um postulado um ponto fundador, fora de demonstração, do qual todas as proposições são derivadas, o que está em questão não é uma pergunta, senão uma certeza. Esses amores iniciam-se não pela percepção de que se ama, mas pela percepção vinda de fora de que se está sendo amado. Será justamente em função desta lógica que Clérambault fala do “comportamento paradoxal e contraditório do objeto”. O erotômano tentará explicar por que o objeto não o acode, por que não vem em sua direção, por que não atende a seus pedidos: interrogará os motivos do seu afastamento, já que existe um postulado fundamental. Os paradoxos do erotômano não são, portanto com seu postulado, senão com seu objeto (SOLER, 2007a). No caso em questão temos abundantes exemplos de tal paradoxo. Há uma ocasião, pouco antes de uma internação ocorrida em maio de 1994, em que diz que está me perdendo, que eu não venho mais a ele. Chama-me de “filha pirracenta” e indaga: “como é que você não cumprimenta Deus?”. Nesta noite promete me castigar para que eu me arrependa de enjeitá-lo, para que eu perceba que quem fornece o ar que respiro é ele, Deus. Durante aproximadamente três anos de atendimento em um hospital-dia, Rey escreve e entrega de modo sistemático o que chama de “escrituras”, dizendo: “tudo passará, tudo passará menos as minhas palavras porque elas estão escritas... na bíblia”. Decorridos oito meses de atendimento aparecem nas escrituras as primeiras referências sobre o casamento que estaria para acontecer entre Wandreia Milagri e Rey: “ela está gamada com Rey” ou “Wandreia Milagri tá querendo casar com Rey”. Manifestações megalomaníacas são evidentes: ele é Sansão, o homem mais forte do mundo, todos o chamam nos quatro cantos. Atribui isto a Wandreia Milagri. Passa a dormir no Posto de Urgência Psiquiátrica porque tem medo. Hostil, ameaça agredir as pessoas. Reafirma ser Deus-Pai, manda em todos aqui, seus filhos devem obedecer-lhe. Ameaça acabar comigo e com tudo que tenho, e ao mesmo tempo diz que se contenta em castigar por meio das escrituras. Esta fase resultará numa interrupção do tratamento no hospital-dia e consequente internação, motivada pela intensidade da erotomania que tornava a percepção de ser amado algo extremamente invasivo; pela hostilidade e agressividade dirigida a todos e como não podia deixar de ser também, ao Brasil (“como é que um Rey pode receber isto?”, referindo-se ao fato de considerar sua função no hospital-dia um trabalho e seu salário, insignificante). Após a internação, o

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paciente começa a trazer novidades, falando a respeito daquilo que já escrevia: o casamento. Considerando as margens estreitas de manobra clínica no caso, após a internação tomamos duas medidas: providenciar uma moradia fora do hospital e reduzir as sessões a um encontro semanal, no mesmo dia e horário, com o propósito de promover uma distância mínima necessária. Sente medo. Isto tudo por causa da Rede Globo, que colocou seu nome para todo o mundo. A Globo estaria fazendo isto porque está irritada com o fato de ele “distribuir os erros” e “estar na presidência”. O que ameniza tais fenômenos é assegurar que vai continuar no hospital-dia. Pouco após, nos seus escritos, anuncia: “Estou num percurso, numa formação”. Não tem família, mas não está sozinho: está com Deus: “Tou pronto pra luta. Tenho defesa pessual. Tou forte comu a rocha. Sou Deus, o meu corpo somi. Qi eu sou Deus Poderoso. Sou imortal e sou Deus. Si eu sou forte pra luta. Pode fazê o meu corpo sumi. Sou Deus Pai Todo Poderoso”. Continua entregando escritos alusivos ao casamento por vir; prenúncio de dias melhores: “É... pelo que vejo as coisas vão de vento em popa...”. Se em Schreber localizamos que o efeito de empuxo-à-mulher seria justamente a nomeação “mulher de Deus”, no caso em questão podemos dizer que este efeito estaria na nomeação “Rey-Deus Pai”, significante novo que virá fazer frente à ausência da significação fálica, fazendo suplência ao significante foracluído, permitindo que o sujeito possa situar-se, senão na partilha dos sexos, pelo menos fazendo semblante de heterossexualidade, como diria Soler. “Rey-Deus Pai” é o significante S1 que representa o sujeito para o significante S2, “Brasil”, e Wandreia Milagri é o instrumento, o meio pelo qual – se se admite suportá-lo – a transformação ocorrerá, fazendo do Brasil um país forte, preparado para os ataques. “Rey quer representar o Brasil com Wandreia na China, a China quer que Rey casa com Wandreia e dá um toque na democracia, prenúncio de uma fase de progresso, disciplina e fartura, e de uma nova geração no Brasil.” Diz que agora já tem “dons, poder e espírito”. Uma trindade forjada a partir dele próprio, quando da retirada de um pedaço de sua costela e que sai do seu corpo para “procurar os erros”, mas a ele retorna num movimento de vai e vem. No entanto, a partir desta trindade aparece algo novo. Se antes Wandreia Milagri estava colocada no lugar de emissor da libido que tomava por alvo o sujeito, agora é a Virgem-Maria quem manifesta o desejo de morar com ele. Seus escritos anunciam: “Sou Deus Pai Todo Poderoso. Virgem Maria tá com vontade de morar comigo”.

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Qual é a solução ética encontrada pelo sujeito? A mudança de objeto de Wandreia Milagri para a Virgem Maria não altera a estrutura do amor erotomaníaco, mas ainda assim comporta as seguintes vantagens: 1.

2.

Opera um deslocamento no objeto de amor, de tal modo que o laço analítico permaneça nos limites do viável. Uma pequena solução que poupa o analista, ainda que a erotomania não tenha se dissolvido. Compele-o a “adiar a solução do presente para o futuro remoto, e a contentar-se com o que poderia ser descrito como uma realização de desejo assintótica”, disse Freud (1911/1987, p. 68), pois é bem verdade que a Virgem Maria constitui-se como muito mais distante que a analista...

E tal qual o casamento com a Virgem, a unificação dos seus onze países prossegue numa tarefa interminável.

Caso 3: “Bem-me-quer, mal-me-quer” A título de interlocução com a cultura podemos fazer referência ao filme “Bemme-quer, mal-me-quer”, de 2002, protagonizado por Audrey Tatou que encarna Angélique, uma artista plástica. O que desencadeia o amor desmedido de Angélique é um gesto banal de Löic, seu vizinho médico. Certo dia, transbordando de alegria com a notícia da gravidez de sua esposa, Löic lhe compra um buquê de flores. Casualmente, encontra Angélique na rua, e do buquê retira uma única rosa e presenteia sua vizinha. É o suficiente para que Angélique tenha a certeza de ser a amada de Löic. Utilizando-se de um interessante manejo com o tempo, a diretora do filme adia qualquer compreensão imediata do espectador. Se para Angélique, a contingência do encontro está abolida e é absolutamente óbvio e sem suspeitas que o Outro a ama, para o espectador, somente um golpe de surpresa irá revelar uma verdade outra: é que o amor que Angélique postula nunca existiu. Trata-se de um amor louco e delirante, que não conhece o acaso, não tolera o equívoco nem tampouco o desencontro. Longe de estarmos diante de um amor que faz suplência à relação sexual que não há, na erotomania temos um amor morto, que jamais poderá ser dialetizado. Tiramos a prova na última cena do filme. Angélique, de alta médica, se despede do hospital psiquiátrico e do seu médico. Aparentemente seu amor desmedido foi tratado pela psiquiatria, estando ela livre do seu pathos e enfim, em condições de conviver novamente em sociedade. Qual não é a surpresa do expectador, quando após a alta, a equipe da limpeza, ao arrumar os aposentos da doente, encontra atrás do armário uma verdadeira obra de arte. É o

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retrato de Löic, construído laboriosamente por Angélique com os comprimidos que deveriam ter sido ingeridos para o seu próprio bem, durante o período da internação. Angélique constrói sua solução, pílula por pílula. Ela poupa os médicos da ladainha do seu amor louco. Em contrapartida, ela o deposita ou circunscreve em um objeto, o que não quer dizer que ele tenha deixado de existir. A erotomania continua lá. Encerraremos sustentando que a psicanálise não tem a prerrogativa de dissolver a erotomania. Não é sua missão. A erotomania poderia ser considerada uma solução para o tratamento do real, na justa medida em que vemos aí uma tentativa de religar a libido ao Outro. Nos três fragmentos abordados é precisamente o que a clínica nos ensina. É uma solução fornecida pelo próprio sujeito. Talvez não seja a melhor, posto que quase sempre coloque o psicanalista em maus lençóis. Assim, fica como questão, quando recebemos um sujeito psicótico, que Soler (2007b) inclusive não hesita em nomear como “trabalhador”, em que ponto a psicanálise pode dar seu auxílio. O curioso é que no caso 1, Marisa, a localização do amor no Outro parece não bastar como solução subjetiva. Ela insiste em retornar ao serviço de saúde mental semanalmente, tomando a analista como testemunha de que seu amor é verdadeiro. No caso 2, de Rey, apesar da escrita profusa e do delírio relativamente consistente que poderia ter efeito de ponto de basta, ainda assim ele elege um secretário que deve recolher diariamente suas notas que ele nomeia de “os erros do mundo”. A clínica, com esses sujeitos, nos ensina, portanto, que na erotomania, ainda que se trate de uma elaboração espontânea, nem sempre se pode prescindir de um analista. Considerando que o sujeito possa demandá-lo e que este amor provavelmente não se dissipará com o tratamento, trata-se, para o analista, de sustentar exatamente o mesmo ponto, sempre, independentemente da estrutura: não há relação sexual. Com esta resposta de analista há chance, quem sabe, de que o sujeito possa fazer seus pequenos arranjos, como o fez pelo menos o Rey, ao manter sua expectativa matrimonial perenizada, de Wandreia Milagri a Virgem Maria. Casamento sim, relação sexual não.

referências bibliográficas FREUD, S. (1911). “Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (dementia paranoides). Artigos sobre técnica (Tradução sob a direção de Jaime Salomão) In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1987, pp. 15-108.

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MILAGRES, Andréa Franco

CLÉRAMBAULT, G. “Os delírios passionais: erotomania, reivindicação, ciúmes”. Tradução de Alain François com revisão técnica de Mário Eduardo Costa Pereira. Revista Latino-americana de Psicopatologia Fundamental. São Paulo, vol. 2. n.1, mar 1999. Disponível em <www.psicopatologiafundamental.org/ uploads/files/revistas/volume02/n1/os_delirios_passionais.pdf> (Acesso em: 10/02/2016). LACAN, J. (1954-55). O seminário, livro 3: As psicoses. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, Zahar, 1986, 380p. PEREIRA, M. E. C. O “automatismo mental e a ‘erotomania’, segundo Clérambault”. Revista Latino-americana de Psicopatologia Fundamental. São Paulo, vol. 2. n.1, mar 1999. Disponível em <http://www.psicopatologiafundamental. org/uploads/files/revistas/volume02/n1/o_automatismo_mental_e_a_erotomania.pdf> (Acesso em: 10/02/2016). SOLER, C. (2007a). “Estrutura e função dos fenômenos erotomaníacos da psicose” In: O inconsciente a céu aberto da psicose. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007, 264p. . (2007b). “O trabalho da psicose” In: O inconsciente a céu aberto da psicose. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007, 264p. BEM ME QUER, MAL ME QUER. (2002). Art Filmes distribuidor. Dirigido por Laetitia Colombani. Com Audrey Tatou e Samuel Le Bihan.

resumo O trabalho aborda a particularidade do enlaçamento com o Outro na erotomania, tomando como referência dois fragmentos clínicos e um recorte do filme “Bem-me-quer, mal-me-quer”. Partiremos das elaborações de Freud em 1911, sobre a gramática da erotomania no caso Schreber, passando pela lógica e o postulado fundamental proposto por Clérambault em 1921. Ainda que se possa pensar a erotomania como uma solução subjetiva, é preciso considerar as estreitas margens da manobra analítica na medida em que a certeza de ser amado pelo Outro coloca o analista em dificuldades, quando ele aí é enlaçado.

palavras-chave Erotomania; solução subjetiva; postulado fundamental.

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Enlaces e desenlaces na clínica das psicoses: Três fragmentos de amor erotômano

abstract The aim of the work is to approach the particularity of a connection with the Other in erotomania, taking as reference two clinical fragment and a segment of a the movie “Bem me quer, mal me quer” (À la folie... pas du tout). We depart from Freud’s elaborations of 1911 about the grammar of erotomania in the Schreber case, passing through the logic and the fundamental postulate proposed by Clérambault in 1921. Although it is possible to conceive the erotomania as a subjective solution, it is important to consider the narrow margins of the analytical move as the certainty of being loved by the Other puts the analyst in trouble when he/she finds him/herself entrapped in such a situation.

keywords Erotomania; subjective solution; fundamental postulate.

recebido 27/01/2016

aprovado 22/03/2016

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Pânico e fobia: Enlace e desenlace da angústia Comunicação de uma pesquisa em curso Dominique Fingermann 1. Fobia e pânico hoje Fobia e pânico hoje foi o tema dos Collèges Cliniques du Champ Lacanien, escolhido por nossos colegas franceses para 2015/2016. O convite de intervenção na jornada de Ajaccio, em setembro de 2015, foi o pretexto para desencadear meu interesse pela questão, a qual pretendo retomar classicamente pelo enlace da angústia que esses sintomas proporcionam diversamente. O tema escolhido me surpreendeu, sobretudo por ter optado por uma questão da qual o DSM1 se apropriou: por que não questionar simplesmente a articulação da angústia com o sintoma hoje, ou seja, a estrutura do fala-ser, nas circunstâncias peculiares do século XXI? O DSM, como sabemos, e em particular pelos seus efeitos no discurso contemporâneo, tal como ele aparece nos consultórios dos analistas via queixa dos analisantes, exclui a angústia de suas considerações. Por outro lado, cada uma das revisões de suas versões tenta se aproximar “melhor” dos fenômenos que perturbam a suposta homeostase da “vida” (distúrbios, transtornos etc.), com uma proliferação de detalhes que fazem perder de vista a estrutura única do ser falante, que lhe proporciona angústia e sintoma como marca distintiva de sua humanidade, diferenciando-o, assim, radicalmente de todos os outros animais vivos. Sabemos o quanto este problema remete à “solidariedade” peculiar do Discurso da Ciência e do Discurso do Capitalista, já que esse extremo cuidado com os detalhes se reverte em multiplicação de pesquisas científicas, cujo rigor é inegável, embora a proliferação das combinações de moléculas químicas suscetíveis em remediar inibições, sintomas e angústia satisfaça sobremaneira ao mercado. 1 O Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, em português) é um manual para profissionais da área da saúde mental que lista diferentes categorias de transtornos mentais e critérios para diagnosticá-los, de acordo com a APA (Associação Americana de Psiquiatria).

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FINGERMANN, Dominique

A angústia não é um termo que faz sucesso no discurso da ciência que domina nossa época, nem tampouco um conceito que interessa aos valores do mercado que a determina. Uma vez mais, ciência e mercado acumpliciam-se para excluir a subjetividade, e a dor de existir que lhe é própria, da cena do mundo, tornando esse termo obsoleto. Mas, como sabemos por experiência, o que está recalcado retorna no real. Se a angústia, banida do século XXI, sai do discurso comum, a ansiedade, o estresse, o nervosismo, o distúrbio de atenção, a falta de ar, e, mais precisamente os pânicos e as fobias, entram de vento em popa tanto no discurso da ciência quanto no senso comum. O que está originariamente recalcado, o que está foracluído, retorna no real; portanto, o que a psiquiatria globalmente aceita, discrimina, cataloga, trata e medica, segundo o capítulo dos “Distúrbios da ansiedade”, são essas formas elementares que procedem da angústia, mas que o discurso isola e escamoteia como se não tivessem articulações estruturais e estruturantes: assim sendo, o pânico e a fobia são elevados a categorias privilegiadas de “anxiety disorder”, distúrbios, apenas. Este deslize do discurso não é sem consequências para os fala-seres do século XXI, pois já que a etiologia é banida do DSM, pânico e fobia são reduzidos a puros efeitos sem causa, e o sujeito do mundo contemporâneo é desresponsabilizado em relação à sua história: suas determinações, suas causas... suas escolhas, e os enodamentos que daí procedem. Sem a angústia como causa, essas formas sintomais reduziriam o humano às piores pantomimas, caso esqueçamos de Freud e da sua consideração cuidadosa por esse afeto, decorrência da estrutura, ou de Kierkegaard, quando ele o eleva paradoxalmente a um conceito ontológico – “quanto mais se experimenta profundamente esse afeto, mais se experimenta a grandeza humana” (KIERKEGAARD, 1844/1935, p. 121). De uma certa forma, hoje em dia são os psicanalistas que têm a responsabilidade da angústia: será que o ato do psicanalista ainda sabe fazer valer sua dimensão paradoxal de suspensão do pensamento que pode preceder o ato? Conhecemos as fórmulas de Lacan: “a angústia não sem objeto”, angústia “único afeto que não engana” etc.; e não podemos não ouvi-lo com a nota que lhes dá “A Terceira”: a angústia como “acontecimento de real” (LACAN, 1974/2001), ou seja, presença, testemunho, da terceira dimensão, o real, que enoda o humano. A angústia é experimentada muito cedo no Eu, dizia Freud (na junção do Real e do Imaginário, dizia Lacan) e, de fato, ela faz explodir seus limites para o melhor e para o pior. Ela tem a estrutura temporal do instante, mas promove uma experiência de abismo temporal que pode se manifestar como uma sensação de “petrificação motora”.

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Pânico e fobia: Enlace e desenlace da angústia

Em geral, o afeto de angústia estoura diante de uma ruptura de significação; é uma experiência de “destituição subjetiva selvagem”, precisa Soler (20002001/2012, p. 46), um encontro repentino com o objeto, ao mesmo tempo a sua eminência e sua perda. Acontecimento, instante, ruptura, estouro de angústia: não se trata de um estado do sujeito, mas de um lugar, talvez uma passagem, onde alguém se encontra quando menos espera e de onde sai quando o pensamento logra enlaçar o que se encontrou tão brutalmente desencadeado. Desde os primórdios da psicanálise Freud descrevia o “Ataque de angústia”: Pode irromper subitamente na consciência sem ter sido despertada por uma sequência de representações, provocando assim um ataque de angústia. Esse tipo de ataque de angústia pode consistir apenas no sentimento de angústia, sem nenhuma representação associada, ou ser acompanhado da interpretação que estiver mais à mão, tal como representações de extinção da vida, ou de um acesso, ou de uma ameaça de loucura; ou então algum tipo de parestesia (similar à aura histérica, pode combinar-se com o sentimento de angústia, ou, finalmente, o sentimento de angústia pode estar ligado ao distúrbio de uma ou mais funções corporais – tais como a respiração, a atividade cardíaca, a inervação vasomotora, ou a atividade glandular). Dessa combinação o paciente seleciona ora um fator particular, ora outro. Queixa-se de “espasmos do coração”, “dificuldade de respirar”, “inundações de suor”, “fome devoradora”, e coisas semelhantes; e, em sua descrição, o sentimento de angústia frequentemente recua para o segundo plano (FREUD, 1894-95/s.d). Claude Léger observa em seu artigo “La panique attaque, l’anxiété se généralise” (LÉGER, 2001) que a expressão “panic attack” do DSM provém indiretamente de uma tradução em inglês da expressão “attaque d’angoisse”, descrita por Freud em 1894. O nome “ataque de pânico” faz sucesso no discurso de hoje, porque expressa bem essa dimensão fenomenológica de ruptura repentina. O pânico, velho nome que denota a velha angústia, se apresenta hoje recauchutado como “síndrome de pânico”. As descrições precisas do DSM 4 correspondem bem aos fenômenos relatados: trata-se de uma dilatação do instante da angústia subvertendo sua estrutura temporal de hiato, transformando-a em pensamento, que incide insistentemente, estendendo o instante no espaço, dando-lhe um lugar no corpo. Extensão no corpo de uma tensão que o assalta. Pensar muito “naquilo” funciona como sutura, e, logo, fabrica uma ficção curadora.

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A fobia, por sua vez, torna o acontecimento da angústia pensável; a sua montagem produz uma articulação mínima de significantes, que logo possibilita que se esqueça da Coisa, essa coisa viva impensável e descabida que Lacan nomeou “gozo”. A fobia, mais que uma estrutura clínica, configura o próprio princípio da estrutura, quando o “objeto” fóbico fixa um gozo singular. Esta “letra” de sintoma poderá lançar mão da primeira articulação significante, base do primeiro enodamento RSI. O pânico e a fobia que figuram no capítulo das “anxiety disorder” são, ao mesmo tempo, testemunho e defesa contra a angústia, ela mesma desaparecida dos bons cuidados da ciência. Vale notar que se o DSM despedaça a estrutura em seus mil e um sintomas, distúrbios e anomalias, ele mantém, no entanto, em destaque os dois pilares da estrutura: a angústia (dramatizada como pânico) e o sintoma, na sua forma e formação mínima, a fobia. Talvez por isso, e apesar da sutil gama de moléculas químicas que se esforçam em domá-los, pânico e fobia insistem na clínica psicanalítica, em resposta à angústia desconsiderada e ao disfarce de sua emergência. Denunciar os usos e abusos dos sintomas “pânico” e fobia pelo discurso da ciência não nos autoriza a negligenciá-los, pois sua presença, cada vez mais frequente nas queixas dos analisantes, convida a prestar atenção e discriminar suas respectivas relações com a angústia, e, eventualmente suas eventuais articulações.

2. Pânico e fobia: do mito à estrutura Pânico e fobia, reunidos no DSM, em nosso título e em inúmeros sintomas como resposta à angústia, andam de mãos dadas desde a Antiguidade. Podemos pensar a priori que o pânico revela o que a fobia e sua fuga escamoteiam: mas, desde suas origens etimológicas e mitológicas gregas, constatamos que os dois articulam, enlaçam medo e fuga em resposta ao pavor desorganizador da angústia. Pânico é um termo emprestado do grego, panikos, propriamente [aquilo que vem] “de Pan”, usado frequentemente em grego tardio para qualificar o medo, pois a aparição repentina e monstruosa de Pan é medonha. O medo-pânico indica inicialmente a fuga desesperada no campo de batalha provocada pela aparição ruidosa do deus Pan. Não é difícil associar Pan com o gozo: seu nome “Todo”, que em psicanálise se liga com o “grande todo” freudiano, sua aparência monstruosa, seus excessos, sua sexualidade transbordante etc. A tela de François Marot, século XVII, mostra a aparição do deus monstruoso, mas também o fascínio do olhar, a suspensão imaginária a este momento supostamente disruptivo.

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Pânico e fobia: Enlace e desenlace da angústia

François Marot (1666-1719). Pan et Syrinx Óleo sobre tela (130,8 x 114,3 cm)

Fobia: “Phobos” designa a fuga decorrente do pânico, um susto intenso e fora de razão. Phobos procede do verbo phebesthai, “fugir com ideia de precipitação e desordem”. Phobos designa também o filho de Ares, deus da guerra, irmão de Deimos, o terror, que causa a fuga dos guerreiros mais valentes. Panikos e Fobos nomeiam, ambos, o desamparo, articulando o medo com a fuga. Em que pânico e fobia se distinguem, no entanto? Como localizar suas relações específicas com a angústia e suas eventuais articulações?

3. Os pânicos Numa multidão, num grupo, ou para um indivíduo ocorre de repente um desenlace, desencadeamento, ruptura de significação, alguma coisa em algum lugar se desata e os efeitos sobre a estrutura podem ser devastadores, da desagrega-

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ção momentânea até a dissolução radical nas versões psicóticas. Nestes casos, o desmoronamento imaginário produz efeitos catastróficos e conduz ao desencadeamento dos fenômenos elementares da psicose com sequências diversas, como sideração, agitação, confusão. Muitos acabam por chegar ao encontro de um analista por causa desse “sintoma” que os renomeia e os ocupa: muitas vezes brilhantes, e bem-sucedidos até então, não raro dizem que nunca toparam com a angústia antes disso. “Tudo” ia bem, até certo incidente, um detalhe que faz desmoronar o edifício, e então nunca mais pararam de pensar nisso: a sensação precisa da morte, um morrer no gerúndio os ocupa obsessivamente. Freud (1921/s.d.) explicava: “pertence à própria essência do pânico não apresentar relação com o perigo que ameaça, e irromper frequentemente nas ocasiões mais triviais”. As causas são derrisórias, mas provocam um sentimento de estranheza, ao mesmo tempo abandono do outro e invasão de alteridade, cujos efeitos no corpo estão na medida da sensação de desamparo, sentida ou apenas pressentida. Se um indivíduo com medo pânico começa a se preocupar apenas consigo próprio, dá testemunho, ao fazê-lo, do fato de que os laços emocionais, que até então haviam feito o perigo parecer-lhe mínimo, cessaram de existir. Agora que está sozinho, a enfrentar o perigo, pode certamente achá-lo maior (Ibid., grifos nossos). Embora a angústia exacerbada no pânico proporcione frequentemente um acesso único a esse “íntimo/êxtimo” de si mesmos, é difícil fazê-los falar do desamparo, pois ficam muito ocupados em narrar, nos mínimos detalhes, os efeitos pressentidos, cuja volta imaginada representa o máximo do terror, o que, na maior parte das vezes, produz desacelerações brutais de suas ascensões egoicas vertiginosas. As minúcias com as quais descrevem a extensão e as repercussões no corpo do que foi certamente um ataque de angústia permitem “esquecer” a originalidade do ponto de ruptura do ataque. O sintoma organizado, desdobrado e agora catalogado como “pânico” permite burlar o instante da angústia e o que esta poderia sinalizar de tão impensavelmente singular. Freud, em Inibição, Sintoma e Angústia, precisa bem a relação da angústia com o desamparo, “Hilflosigkeit”, mas o pânico, tal como se instala e se estende, dilata o instante da angústia numa duração, reduzindo passado, presente e futuro à mera espera garantida da volta do “estou morrendo”. O pânico, assim experimentado, é uma astúcia para escamotear o rastro incomum da angústia e a substituí-la por um

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medo comunicável da morte. “A angústia é justamente algo que se situa alhures em nosso corpo, é o sentimento que surge dessa suspeita que nos advém de nos reduzirmos a nosso corpo”, diz Lacan (1974/2001) em “A Terceira”. O pânico encobre essa suspeita com a certeza da apreensão do leque minuciosamente detalhado das sensações imaginadas do morrer. O aspecto artificial e exagerado das crises de pânico, encobrimento imaginário do real da angústia, evoca o Deus Pan e suas caretas monstruosas. Uma vez a crise passada, uma vigilância se instala, quase sempre desenvolvendo sintomas fóbicos inibidores, mas localizando o medo em algumas situações. Podemos formular a hipótese de que as crises de pânico seriam o efeito de uma derrapagem entre real e imaginário, ao qual a fobia remediaria produzindo um ponto de sutura da estrutura entre real e simbólico, nó fundamental da substituição do significante ao rastro de gozo outro no corpo?

4. A fobia As manifestações extremadas das crises de pânico e a sua dilatação temporal e espetacular nos informam a respeito da angústia e o que seu instante pode produzir como efeitos de difração no corpo da destituição subjetiva que induz. As suas manifestações multiformes nos informam também a respeito da formação da fobia: como um significante entra em jogo para salvar da dissolução imaginária e do desmoronamento subsequente, revelando “a verdadeira função da fobia, que é substituir o objeto da angústia por um significante que causa medo” (LACAN, 1968-69/2008, p. 297), pois, insiste Lacan no Seminário 16: “ante o enigma da angústia, a relação de perigo assinalada é tranquilizadora” (Ibid.). A montagem da fobia como resposta, diante da angústia mostra como um significante da sua própria desaparição pode se tornar significante do sujeito que o representa para outro significante? A fobia, desde o início da estrutura, constitui uma boa solução para evitar o desamparo e seu susto louco: algo como um desarranjo, um transbordamento pulsional fora de significação, se enoda e se equilibra no arranjo fóbico. A fobia é, por assim dizer, o início da estrutura: “A fobia não deve ser vista, de modo algum, como uma entidade clínica, mas sim como uma placa giratória” (Ibid., p. 298). A instalação do significante fóbico configura o giro da instalação da estrutura, ou seja, da castração e do desejo. A “montagem” fóbica se produz no momento da colusão entre gozo e significante, e por isso mantém junto o que procede do gozo na origem do sujeito, assim como o que procede de sua representação significante. A “assemblagem” se produz quando um “objeto” (cavalo, cachorro etc.) se sobrepõe contingencialmente a uma vivência de gozo inassimilável, que deixa rastro. A leitura deste rastro como

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presença única apaga sua passagem efêmera e o transforma em letra, signo de gozo, sem sentido, ainda que suscetível posteriormente de se encadear e representar o sujeito para outro significante. A fobia evidencia “ao vivo” o paradoxo fundamental do significante, pois este é marca de gozo e marco de sua perda a partir do momento inicial da sua marcação como Um diferente de todos, o que produz a metonímia do gozo perdido no apelo para outro significante. Paradoxo do significante: fundamentalmente sino de gozo, sem sentido, mas ponto de emergência do sentido procurado no Outro. A fobia, diz Lacan, diversa, mas insistentemente, ao longo de seu ensino, é “artifício”, “suporte”, “chave universal”, “significante faz tudo”, “ordem nova”, “estruturação mítica”, “suplência”, “poesia viva”: enlaçamento do sem sentido do corpo e do significante. A fobia é uma elaboração significante, um dispositivo que produz a substituição inaugural de um “significante obscuro” “com um lado insignificante” (LACAN, 1956-57/1995, p. 314) no lugar de algo que se apresenta como inconciliável, e que vai adquirir, por isso mesmo, uma função e um papel cristalizante, polarizante. A partir deste enodamento, a fobia, defesa contra a angústia, protege do abismo (LACAN, 1965-66/inédito, Aula de 01/12/1965): do objeto que falta, da ausência do Outro e da solidão irremediável da separação inaugural da neurose. Não podemos ter medo da angústia, pois sua emergência fora de controle indica para cada um o que do corpo do inconsciente ainda está desligado, en-corps, sem ainda a significação que liga ao Outro. Se pânico e fobia constituem duas maneiras diferentes de pô-la na cena do Outro para melhor esquecer e afastar seu valor de separação essencial, o desejo de analista a convoca para que ela se enlace de outra forma e passe: “eis onde se concebe uma mudança na própria amarração da angústia” lança Lacan em seu imprescindível “Resumo do Seminário O ato psicanalítico” (1969/2003, p. 378).

referências bibliográficas COSTA PEREIRA, M. E. (1999). Pânico e Desamparo. São Paulo: Ed. Escuta, 1999. FREUD, S. (1894-95). “Sobre os fundamentos para destacar da neurastenia uma síndrome específica denominada neurose de angústia” In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, s/d (versão eletrônica). . (1921). “Psicologia das massas e Análise do eu” In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, s/d (versão eletrônica).

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Pânico e fobia: Enlace e desenlace da angústia

. (1926). “Inibição, sintoma e angústia” In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, s/d (versão eletrônica). KIERKEGAARD, S. (1844). Le concept d’angoisse. Paris: Gallimard, 1935. LACAN, J. (1956-57). O seminário, livro 4: A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995. LÉGER, Claude. “La panique attaque, l’anxiété se généralise” In: Revue nationale des collèges cliniques 1 – L’angoisse. Paris: EPFCL-France, 2001. . (1965-66). Le séminaire, livre 13 : L’objet de la psychanalyse, inédito. . (1968-69). O seminário, livro 16: De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. . (1969). “Resumo do seminário O ato psicanalítico” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. . (1974). “La Troisième (7e Congrès de l’École Freudienne de Paris), Roma, 01/11/1974” In: Opção lacaniana n. 62. São Paulo: EBP, 2001. SOLER, C. (2000-2001). Declinações da angústia. São Paulo: Ed. Escuta, 2012.

resumo A angústia não é um termo que faz sucesso no discurso da ciência que domina nossa época, nem tampouco interessa aos valores do mercado que a determina. Mas, como sabemos por experiência, o que está recalcado retorna no real, ou o que sai pela porta da frente volta pela porta de trás. Então ansiedade, estresse, nervosismo, distúrbio de atenção, falta de ar, e, mais precisamente pânicos e fobias, entram de vento em popa tanto no discurso da ciência quanto no senso comum. O pânico e a fobia, que figuram no capítulo das “anxiety disorder” do DSM, constam como referência comum do mal-estar das pessoas que procuram um analista, e foram precisamente descritas e formalizadas desde os primórdios da psicanálise. O pânico explora e encena uma dilatação temporal da angústia e sua localização no corpo, enquanto a fobia organiza a fuga, o deslocamento e a amarração em um significante privilegiado. O texto aproxima e distancia essas duas formas sintomáticas e suas maneiras distintas de enodar o fato existencial da angústia

palavras-chave Pânico; fobia; angústia; DSM.

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abstract Anguish is not a very successful term in the scientific discourse of our current times, as it does not raise the interest of the values of the market that determines this era either. But as we know by experience, what is kept hidden returns in the real, or what leaves through the front door does return through the rear door. So, anguish, stress, attention dysfunction, breathing difficulties and, more specifically, panics and phobias, operate at full steam both in the scientific discourse and the common sense. Panic and phobia, which are listed in the DSM’s chapter of “anxiety disorders,” appear as a common reference of the ill conditions of people who usually look for an analyst, and they were precisely described and formalized since the early days of psychoanalysis. Panic explores and presents a temporal dilation of anguish and its localization in the body while a phobia organizes the escape, the move, and the tying in a privileged signifier. The text approximates and separates these two symptomatic conditions and its distinct forms of absorbing the existential fact of anguish.

keywords Panic; phobia; anguish; DSM.

recebido 10/02/2016

aprovado 22/03/2016

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Sobre o delírio na psicose: A relação com o Grande Outro na paranoia e na esquizofrenia Paula Rodrigues Calado Mas há sempre coisas atrás de mim. Sinto a sua ausência de olhos fitar-me, e estremeço. Sem se mexerem, as paredes vibram-me sentido. Falam comigo sem voz de dizerem-me as cadeiras. Os desenhos do pano da mesa têm vida, cada um é um abismo. Trecho de “A múmia”, de Fernando Pessoa

As psicoses são estudadas por diversos campos do conhecimento, e foram amplamente exploradas pela psiquiatria, especificamente em duas vertentes de pensamento: a tradição germânica e a francesa, sendo frequentemente relacionadas a uma gênese orgânica, como aponta Jacques Lacan em 1932 em sua tese Das psicoses paranoicas em suas relações com a personalidade. O objetivo deste trabalho é, a partir de uma perspectiva lacaniana sobre fenômeno da psicose, apresentar as distinções entre o campo das neuroses e das psicoses no que diz respeito à lógica do significante, mais especialmente no que tange aos tipos clínicos de paranoia e esquizofrenia. Além disso, buscou-se explorar a relação do psicótico com a linguagem e a localização do sujeito diante do Grande Outro. Lacan nos ensinou que não devemos recuar diante da psicose. Em seu Seminário 3, sobre as psicoses, nota-se um interesse do autor em ressaltar que o que difere o campo das neuroses das psicoses é, antes de mais nada, a relação do sujeito com o significante. Ele afirma: “A promoção, a valorização na psicose dos fenômenos de linguagem é para nós o mais fecundo dos ensinamentos” (LACAN, 1956-57/1988, p. 167). Desse modo, os psicóticos sofrem, assim como os neuróticos, de uma relação com a linguagem, mais precisamente, do efeito do significante, sendo assim, necessário pensar a psicose a partir de uma lógica do simbólico (QUINET, 2014).

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CALADO, Paula Rodrigues

No que diz respeito à diferenciação topográfica entre fenômenos neuróticos e psicóticos, Lacan introduz, ainda no Seminário 3, a ideia de que na psicose tem-se a rejeição de um significante primordial, primitivo, que, ao ser excluído do primeiro corpo de significantes, constitui uma espécie de falha quanto à apreensão da realidade. Assim, depreende-se nas páginas seguintes de seu seminário que, para o psicótico, não se trata de recalque, do “disso nada querer saber”. Na psicose, o significante inconsciente que ordena o registro do simbólico se situa numa exterioridade ao sujeito, exterioridade essa que é evocada no delírio e na alucinação. O mecanismo que rege a relação do sujeito com o significante na psicose é denominado por Lacan de Verwerfung ou foraclusão. Trata-se agora de saber sobre o que incide a foraclusão. No campo das neuroses, há a inclusão de um significante primevo que institui a lei na ordem simbólica; esse significante é denominado de Nome-do-Pai e barra o gozo absoluto, o que institui na neurose a elaboração da fantasia (LACAN, 1956-57/1988). O significante do Nome-do-Pai instaura a interdição do gozo absoluto no simbólico. Segundo Izcovich (2002, p. 51): A não integração da ameaça de castração se refere à relação do sujeito com a lei e com o que desta pode se inscrever, ou não, inconscientemente. O passo seguinte será considerar que um significante está foracluído. Na neurose, a interdição do gozo absoluto faz com que o neurótico produza a fantasia, caracterizada por Lacan como a janela para o real (LACAN, 195657/1988). A fantasia neurótica estrutura a realidade psíquica, e permite ao sujeito não ser diretamente invadido pelo insuportável do real como na psicose. O neurótico é capaz de simbolizar quando o real lhe bate à porta. A alienação ao desejo do outro, instaurada no Estádio do Espelho, no registro do Imaginário, faz com que o Outro do neurótico seja inconsistente, castrado. Na psicose, devido à não inclusão do significante do Nome-do-Pai e à elisão do falo, o Outro carece do significante da lei. O Outro é absoluto, onipotente, consistente, gozador (QUINET, 2014). Na psicose não se trata de fantasia e sim de delírio ou alucinação, uma vez que o significante foracluído da cadeia simbólica retorna pela via do real, o que implica uma realidade que se estrutura a partir do registro real. O que Lacan destaca ser o ponto primordial de diferença entre neurose e psicose é o modo de relação do sujeito com o significante, ou seja, sua posição diante do grande Outro. O neurótico, por possuir o significante do Nome-do-Pai, é capaz de encadear os significantes e emergir como sujeito intervalar, na escansão, entre os significantes encadeados.

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Sobre o delírio na psicose : A relação com o Grande Outro na paranoia e na esquizofrenia

O Nome-do-Pai é responsável pela organização da cadeia de significantes a partir da articulação entre S1 e S2. O S1, essaim, significante unário, é aquele que introduz o primeiro corpo de significantes e articula-se a S2. S2 é sempre uma tentativa de repetição de S1 e, a partir daí, desenvolve-se a cadeia como tal. No entanto, na psicose, devido à não incidência do Nome-do-Pai e à não instituição da lei fálica no simbólico, a relação do sujeito com o S1 se diferencia do que se vê na neurose (QUINET, 2009). A ausência do significante da lei não permite a articulação entre significantes, e, consequentemente, o encadeamento. A psicose é marcada por uma desordem significante. É o que nos mostra Quinet, a partir de Lacan, ao afirmar que a relação com o significante-mestre (S1) diferencia-se na paranoia e na esquizofrenia, uma vez que na primeira há o mecanismo de Verhaltung, ou seja, a retenção do S1 e a identificação do sujeito com esse Um ordenador da cadeia. Ao reter o S1 e com ele se identificar, o paranoico localiza-se diante do Grande Outro como o único, o mestre. Isso é o que posiciona, em muitos casos, paranoicos como líderes religiosos, chefes de Estado, gurus de neuróticos (QUINET, 2009). Em se tratando de esquizofrenia não há S1 e, com isso, não há organização da cadeia a partir de uma matriz simbólica. Em consequência, o esquizofrênico nos mostra um inconsciente a céu aberto, que se manifesta na dispersão dos significantes, como atesta Lacan em seu Seminário 3, ao afirmar que os psicóticos sofrem de um distúrbio de linguagem. Isso é evidenciado na esquizofrenia, uma vez que a ambivalência, devido à não oposição no inconsciente e à condensação que forma neologismos, aparece no discurso esquizofrênico. Por causa disso, a fala é ilógica, bizarra, descarrilhada. “O esquizofrênico não sabe por que está dizendo tudo aquilo” (QUINET, 2009, p. 72). O que impera na esquizofrenia é a desordem. É relevante destacar que tais distúrbios de linguagem fazem com que o discurso psicótico apresente uma temporalidade própria, portador de uma singularidade perceptível no setting analítico. Como Lacan (1956-57/1988, pp. 56-57) diferencia o campo das neuroses e psicoses no Seminário 3: Na neurose é no segundo tempo, e na medida em que a realidade não é plenamente rearticulada de maneira simbólica no mundo exterior, que há no sujeito fuga parcial da realidade, incapacidade de enfrentar essa parte da realidade, secretamente conservada. Na psicose, ao contrário, é realmente a própria realidade que é em primeiro lugar provida de um buraco, que o mundo fantástico virá em seguida cumular. A temporalidade referida tem relação com a posição do significante no real, que está perdido, não encadeado. No caso da esquizofrenia, pela falta do Nome-

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do-Pai, não há amarração entre significante (S) e significado (s), bem como não há ponto de basta na cadeia significante, o que impede ao sujeito a precipitação de sentido. Por tal motivo, destaca-se a importância do corte da sessão no tratamento analítico dos esquizofrênicos, para que os significantes que dispersam sejam de alguma maneira, barrados. Um apelo à organização. Daí percebe-se a incapacidade do psicótico em simbolizar devido ao rompimento do primeiro corpo de significantes. O psicótico é um desenlace por excelência (QUINET, 2009). Assim, o surto é deflagrado justamente no momento da vida do sujeito no qual há uma exigência para a simbolização. A demanda do simbólico, diante da incidência do real, é o que descompensa o sujeito e faz advir o surto. Lacan elucidou sobre as psicoses propondo que na alucinação a voz que fala é a do real. O delírio seria nada mais do que uma tentativa de fazer frente à não simbolização e à incidência insuportável do real. Na paranoia, o sujeito é invadido pelo olhar do Outro e não há barreira para o gozo alheio. O olhar localiza-se na paranoia como objeto a, o que dá ao sujeito a certeza antecipada de que há alguém que o olha e dele goza. O objeto a está na paranoia para além do mais-de-gozar, ele se apresenta no mais-de-olhar (QUINET, 2002). Segundo Lacan, em 1975 no Seminário RSI, “a paranoia é um visco imaginário” (apud QUINET, 2002). Sendo assim, o sujeito é tomado pelo sentido do imaginário, da imagem especular, do que lhe é escópico. Uma vez que não há simbolização possível na psicose, não existe, portanto, o duplo sentido do simbólico. Aqui o sujeito é invadido pelo não sentido do real e dá sentido aos significantes que o cercam, sendo tomado pelo registro do imaginário. “Ele vê sentido em tudo e abole o acaso: toda coincidência é suspeita” (QUINET, 2002, p. 20). Sobre a formação do delírio, Lacan afirma que no delírio paranoico trata-se de um delírio de significação, de modo que tudo que cerca o alienado são signos repletos de significação própria, a ele endereçados. Sobre a posição delirante de Schreber, Lacan (1956-57/1988, p. 94-95) afirma: Ele é violado, manipulado, transformado, falado de todas as maneiras, é, eu diria, tagarelado. [...] É justamente disso que se trata – ele é a sede de todo um viveiro de fenômenos [...]. Num sujeito como Schreber, as coisas vão tão longe que o mundo inteiro está tomado desse delírio de significação, de tal modo que se pode dizer que, ao invés de estar só, quase nada há de tudo o que o cerca que, de certo modo, ele não seja. Com base nos estudos de Antônio Quinet, em Psicose e laço social: Esquizofrenia, paranoia e melancolia, podemos afirmar que na psicose o sujeito não habita a linguagem, mas é habitado por ela, o que faz do psicótico um mestre da linguagem apesar de fora do discurso (QUINET, 2009).

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Sobre o delírio na psicose : A relação com o Grande Outro na paranoia e na esquizofrenia

Na esquizofrenia, o corpo é tomado pelo real, o que situa o esquizofrênico nos fenômenos corporais de despedaçamento, desaparecimento, cadaverização. O retorno ao autoerotismo, anterior ao estádio do espelho, faz com que a dispersão dos significantes incida sobre o corpo e o esquizofrênico seja tomado pela linguagem. Na paranoia, o delírio apresenta uma sistematização devido ao mecanismo de retenção (Verhaltung) do significante-mestre (S1). O que se evidencia na paranoia é o centramento do sujeito, tomado pelos olhares e pelas vozes do Outro vigilante. Portanto, percebe-se a organização delirante na paranoia a partir de dois – o olhar e a voz – dos quatro objetos pulsionais propostos por Lacan. Dessa forma, o sujeito é visto e falado, inserido em uma realidade que é marcada pela “sonorização do olhar” (QUINET, 2002, p. 22). O Outro do paranoico goza, julga, persegue. Ele é o centro de todo amor ou de todo o ódio do Outro. No entanto, o delírio pode assumir diferentes facetas de sistematização. Lacan propõe um retorno a Freud, que, ao publicar sobre o caso Schreber em 1911, apresenta modelos de organização delirante sobre a causalidade do delírio paranoico. A lógica freudiana aponta para um desejo homossexual que formaria o núcleo central da paranoia a partir da formulação gramatical: “Eu o amo”. Partindo de uma leitura freudiana, há uma perspectiva econômica no que diz respeito ao investimento da libido e à escolha objetal. Sigmund Freud, ao publicar sobre o caso Schreber, acredita que a grande questão que gira em torno da formação do delírio na paranoia é uma suspensão do investimento da libido em objetos e pessoas, e o retorno de tal catexia em direção ao ego. Sendo assim, o paranoico vivenciaria um processo de luto, devido à perda de um objeto investido e, em vez de substituí-lo, assim como faz o neurótico, o investimento retornaria para o ego, sendo percebido pelo sujeito como exterior a ele. Aí está o ponto fundamental que para Freud define a paranoia como fonte de investimento eminentemente narcísico (FREUD, 1911-13/1996). Para Freud, as organizações delirantes na paranoia seriam estratégias de defesa a tal desejo homossexual inconsciente, de modo que nos delírios de perseguição, de erotomania, ciúme e megalomania, a frase inicial articula-se de diferentes modos. A formulação “Eu o amo” se transformaria a partir de dois mecanismos: a negação e a projeção. A primeira é semelhante ao processo neurótico, em que algo inconsciente é rejeitado. No entanto, na psicose paranoica a projeção atua sobre o que foi inicialmente negado, fazendo com que o desejo inconsciente seja articulado de modo a ser percebido em uma exterioridade ao sujeito. Freud, diante do caso Schreber, apresenta os quatro modelos delirantes na paranoia da seguinte maneira: no delírio de perseguição ocorre uma negação do verbo da frase primordial “Eu o amo”, de modo que o verbo amar é negado, e por projeção, coloca-se em seu lugar o verbo odiar. A negação do verbo é projetada no

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Outro. Sendo assim, tem-se a seguinte equação: Eu o amo – Eu o odeio (negação do verbo) – Ele me odeia (projeção). Mais precisamente: “Ele me odeia, por isso me persegue”. No delírio de erotomania ocorre a negação do objeto da frase inicial. Ou seja, o que antes era “Eu o amo”, desejo inconsciente de um homem por outro homem, ao sofrer negação do objeto, torna-se o amor de um homem endereçado a uma mulher, constituindo a frase: “Eu a amo”. Por mecanismo de projeção, torna-se “Ela me ama”. O erotômano é gozado pelo Outro pela via do amor (QUINET, 2014). No delírio de ciúme há a negação do sujeito. “Eu o amo” transforma-se em “Ela o ama”. Assim: “Não sou eu que o amo, é ela, e por isso me trai”. Tais equações do delírio na paranoia tornam possível a compreensão do axioma lacaniano de um inconsciente estruturado como uma linguagem, já que o delírio constitui-se a partir de uma formulação gramatical e suas flexões, provando que assim como o neurótico, o psicótico também é efeito do significante. Há, ainda, uma quarta forma de delírio. Esta contradiz toda a formulação gramatical, quando “Eu o amo” é transformado em “Não amo de modo algum – não amo ninguém”. Trata-se da megalomania. Aqui, nega-se a frase inicial como um todo, atestando que na megalomania não há investimento libidinal para além do ego. Isso retorna como: “Eu só amo a mim mesmo”. Freud nos mostra que todas as formas delirantes paranoicas apresentam sua fonte na megalomania, uma vez que todos os delírios incluem uma supervalorização egoica (FREUD, 1911-13/1996). Lacan, no Seminário 3, sobre as psicoses, destaca a importância de deixar que o psicótico fale o maior tempo possível. O analista deve ouvir o delírio como um campo de significação que carrega certo significante que insiste em retornar. Os analistas devem compreender a organização do delírio e não tentar submeter o discurso delirante à lógica neurótica, muito menos reduzi-lo a partir de um referente de realidade. Dentre os erros que um analista pode cometer diante de um psicótico, o pior deles é tentar organizar seu discurso por meio de uma causalidade, ou ainda, tentar compreendê-lo. Não se trata de compreender, mas de ouvir os significantes que retornam no real e os efeitos que provocam no sujeito (LACAN, 1956-57/1988). As questões recorrentes quanto ao tratamento das psicoses são as seguintes: como seria possível analisar um sujeito incapaz de simbolizar? Há a possibilidade de, por meio da análise, criar laços e unir real, simbólico e imaginário? Como foi discutido por Freud: haveria transferência? Lacan afirma que é necessário, aos analistas, pensar uma clínica da psicose para além do registro do simbólico e, assim, distingui-la radicalmente da clínica das neuroses. A intenção não é neurotizar o psicótico, mas ser guiado por sua tempo-

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ralidade e discurso singulares. Os psicóticos procuram a análise, frequentemente, com a demanda de que o analista faça barreira ao gozo do Outro (QUINET, 2014). Diante da psicose, os analistas devem se posicionar como “secretários do alienado” (LACAN, 1956-57/1988, p. 235), ou seja, disporem-se a ouvir a relação do sujeito com o Outro e se colocar como testemunhas da loucura. Em seus Escritos, no texto “De uma questão preliminar a todo tratamento possível das psicoses”, Lacan propõe que o ato analítico incida sobre uma manobra de transferência. Segundo ele, a transferência na clínica da psicose é maciça, de modo que o analista é inserido na organização delirante (LACAN, 1966/1998). Há, então, um grande risco de, nos casos de paranoia, o analista tornar-se o perseguidor, o não castrado, como Schreber posiciona o Dr. Flecshig. A partir daí, depreende-se que no tratamento das psicoses há transferência. No entanto, a manobra de transferência faz-se necessária para barrar o gozo do Outro, pelo qual o sujeito psicótico é invadido. O analista deve apontar para um Outro castrado, inconsistente, incapaz de tudo gozar (QUINET, 2014). No que diz respeito à formação de laços, Lacan nos mostra no Seminário 23, sobre o sinthoma, que é possível, por meio da análise, que o sujeito psicótico seja inserido nos discursos, forme laço social. Sabe-se que a criação do laço social pode se dar por meio da arte. Tomemos como exemplo Arthur Bispo do Rosário, que foi capaz de se inserir em discursos por meio da produção artística, ou ainda, como Joyce que, por meio da escrita, alcançou a estabilização do delírio. Tem-se ainda o caso do Homem dos Lobos, que, ao receber tal nomeação por Freud, foi capaz de fazer suplência ao Nome-do-Pai foracluído e assujeitar-se, fazer-se um nome (QUINET, 2014). Para Lacan, o quarto elemento do nó borromeano que teria a função de elo dos três registros, real, simbólico e imaginário é o Nome-do-Pai. Devido à foraclusão deste, o psicótico não é capaz de enlaçar, simbolizar, nem de inserir-se nos discursos. Com isso, é ainda no Seminário 23, que Lacan aponta para a estabilização do delírio a partir de uma metáfora delirante, que seria uma forma de ordenar os significantes. Essa estabilização ocorre a partir da substituição do significante do Nome-do-Pai, por um significante suplente ideal. A nomeação tem função borromeana, uma vez que o sujeito é abordado como falasser, parlêtre (LACAN, 1975-76/2007). Sobre a análise de um sujeito psicótico, não se pode ter certeza do que virá. Deixá-lo falar é permitir que, por meio da análise, o sujeito produza algo, que delire de outras formas. Cada um produzirá à sua maneira, e a metaforização do delírio proposta por Lacan acontecerá de forma singular a cada sujeito. A loucura pode produzir discursos diversos, obras de arte, de literatura, de poesia, possibilitando ao sujeito psicótico ser capaz de delirar com dignidade, de forma ética, estética e

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moral. Cabe a nós, psicanalistas, secretariar a relação do sujeito com a palavra e ouvir os significantes aos quais a sua realidade está submetida. Temos muito ainda a aprender com a psicose. Freud nos ensina que os psicóticos são capazes de nos revelar exatamente aquilo que os neuróticos tanto se preocupam em manter como segredo. Estar diante de sujeitos psicóticos nos permite desconstruir determinadas noções de realidade e estar diante da nossa própria loucura. É por meio da transferência que ouviremos o sujeito que advém no delírio, valorizando sua subjetividade, podendo, assim, enxergar a beleza do trabalho psicanalítico diante da insanidade. E como nos ensinou Mário Quintana, fazer da insanidade poesia: a forma mais lúcida de loucura.

referências bibliográficas FREUD, S. (1911-13). “O caso Schreber, artigos sobre técnica e outros trabalhos” In: Edição standard brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (v.12). Rio de Janeiro: Imago, 1996, pp. 21-89. IZCOVICH, L. (2002). Os paranoicos e a psicanálise. In: QUINET, Antonio. Na mira do Outro: a paranoia e seus fenômenos. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2002. LACAN, J. (1956-57). O seminário, livro 3: As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda., 1988. . (1966). “De uma questão preliminar a todo tratamento possível das psicoses”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. . (1975-76). O Seminário, livro 23: O sinthoma. Trad.: Sergio Laia. Rev.: André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. . (1932). Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade; seguido de Primeiros escritos sobre a paranoia. 2ª. edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011. QUINET, A. (2002). “O número um, o único” In: QUINET, Antônio [org.]. Na mira do Outro: a paranoia e seus fenômenos. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2002. . (2006) Psicose e laço social: esquizofrenia, paranoia e melancolia (2ª. ed.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. . (2014). Teoria e clínica da psicose. 5ª. edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.

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resumo Tendo em vista a complexidade dos fenômenos psicóticos e a importância do reconhecimento, por parte do analista, da psicose na experiência clínica, o objetivo deste trabalho é abordar as psicoses de ordem paranoica e esquizofrênica, por meio de uma perspectiva lacaniana, diferenciando-as do campo das neuroses. Explorou-se também a relação do psicótico com a linguagem e a localização do sujeito em face do Grande Outro. O que diferencia o sujeito psicótico do neurótico é a sua relação com o significante. Com base nos estudos de Jacques Lacan sabemos que na psicose não há recalque, ou seja, não se trata de um inconsciente enigmático que exige um deciframento do discurso por parte do analista. Em se tratando de psicose, o inconsciente está presente de uma maneira singular: desvelado. Foram levantados questionamentos sobre a clínica da psicose no que diz respeito à transferência, à simbolização e ao lugar do analista ante àquele que delira.

palavras-chave Psicoses; linguagem; significante; inconsciente.

abstract In light of the complexity of the psychotic phenomena and the importance of identifying psychosis in the clinical experience by the analyst, the objective of this article is to approach the cases of psychosis of paranoia and schizophrenia through a Lacanian perspective, and differentiate them from those in the field of the neurotic types. The article has also explored the relation of psychotic with language and the position of the subject in relation to the Big Other. The difference between the psychotic and the neurotic subjects is its relation to the significant. Based on Jacques Lacan’s work, we know that in psychosis there is no psychological repression, that is, it does not concern an enigmatic unconsciousness which requires the analyst to decipher the discourse. Regarding psychosis, the unconscious is present in a singular manner: unveiled. Questions about the clinic of psychosis were raised in relation to transference, symbolization, and the place of the analyst towards the person who are delirious.

keywords Psychosis; language; significant; unconscious.

recebido 27/01/2016

aprovado 22/03/2016

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Joyce: Rupturas e laços1 Muriel Mosconi Com Joyce, Lacan aborda a clínica borromeana do sintoma. De que se trata? O termo “sintoma” aparece tardiamente no ensino de Lacan, na ocasião de sua conferência “Joyce, o sintoma”, proferida na Sorbonne em 16 de junho de 1975. Com “Joyce, o sintoma”, ou o sinthoma, Lacan dá nome próprio a Joyce, a quem ele dedica seu seminário seguinte, O sinthoma, em 1975-76. “Sinthoma” é a primeira forma escrita em francês da palavra “sintoma”, que resulta da introdução do grego no francês, e Lacan segue aí a vontade de Joyce de que se helenize a língua.

Qual é o desafio dessa mudança de escrita? Trata-se, a partir da psicose, já que Joyce era psicótico, de dar ênfase àquilo que o sintoma tem de inanalisável e de terapêutico em si, à sua função de letra enigmática, fixão de gozo, mais do que sua função de formação significante a ser interpretada. Na lógica borromeana, o sintoma é uma quarta volta que enoda o Real, o Simbólico e o Imaginário. No caso do neurótico, Lacan oferece dois enodamentos borromeanos possíveis: Em RSI, em 1974-75, o Nome-do-Pai é a quarta volta borromeana que responde da falha, do lapso do nó que cobre o falo. A ideia de que o sintoma, que assume uma função paterna, faz suplência à carência estrutural do pai não castrador aparece desde o seminário A relação de objeto, em 1956-57, no que diz respeito à fobia do pequeno Hans, que Lacan qualifica como suplência. Na ocasião das “Conferências americanas”, em 1975, Lacan dá outra configuração borromeana do sintoma em sua relação com o R S I: “o elemento quarto”, diz ele, “é aquilo que o sintoma realiza na medida em que faz círculo com o Inconsciente, S + œ1” (LACAN, 1975a/1976, p. 40). O nó borromeano tem, então, três voltas, das quais uma é constituída pelo enodamento do Simbólico e do sintoma. 1 Texto apresentado em 24/03/2012 durante a Journée Nationale des Collèges de Clinique Psychanalytique, Vichy (França).

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Lacan equivoca sobre o fato de que sin (o início da palavra “sinthoma”) significa pecado, donde sua relação com a falta, a falha do inconsciente: a impossível inscrição da relação sexual na estrutura. Não há fórmula pronta para que os dois sexos se emparelhem. É com o sinthoma que temos que lidar na relação sexual. Lacan também aponta que, se uma mulher é um sinthoma para todo homem, isso não é recíproco. O homem é, por sua vez, mais uma aflição, até mesmo uma devastação, para uma mulher. A função de letra do sintoma, que faz suplência a uma falha simbólica, aparece muito cedo em Freud, ao lado de seu valor metafórico. Desde a conceituação do proton pseudos (a primeira mentira) no Projeto, e do manuscrito K, o sintoma é o resultado do recalque da representação-limite e mentirosa, que tem valor fálico, de uma lacuna no psiquismo. Vamos examinar como a letra participa do sinthoma em Joyce. Mas, inicialmente, vejamos algumas rupturas em sua estrutura.

Quando a estrutura se rompe... O “deixar cair” com relação ao corpo próprio Joyce relata, em Retrato do artista quando jovem, que depois que Stephen Dedalus pecou com prostitutas, ele “se esvaíra como uma névoa ao sol. Tinha-se perdido, ou errava fora da existência, pois já não existia mais” (JOYCE, 1916/1987, p. 71). O enigma do gozo não encontra resposta mentirosa do lado do falo onde o sujeito se identifica com seu ser de vivente. A foraclusão do falo, …° se expressa ali diretamente. Em outro momento, o padre Dolan lhe aplica um castigo corporal nas mãos, e Stephen “pensa[va] nelas machucadas e inchadas, ardendo, o [que o] fez de súbito se sentir tão amargurado, com tanta pena delas como se não fossem suas, e sim de uma outra pessoa de quem ele tivesse muito dó” (Ibid., p. 45). É uma forma peculiar de ter um corpo, ou melhor, de não ter. Ainda no Retrato, Joyce narra uma memória de infância, a qual atribui a Stephen. Depois de ser surrado contra uma cerca de arame farpado por três companheiros – dentre os quais o líder, Heron, é seu rival no colégio, seu duplo –, “tinha sentido que certa força o houvera despojado dessa súbita onda de raiva tão facilmente como um fruto é despojado de sua mole casca madura” (Ibid., p. 65). Para Lacan, seu corpo é que parte como uma casca. A cena da surra é seguida por um “um ato de submissão” de Stephen. Ele havia cedido à formulação de um ensaio literário em que afirmava que não existia possibilidade alguma de a alma nunca se aproximar de seu Criador. Para seu professor isso era

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uma heresia. Stephen, então, se retrai e sussurra: “Eu queria dizer ‘sem uma possibilidade de jamais atingir’” (Ibid., p. 63). Ele admite, assim, uma possibilidade assintótica de que a alma se aproxima de seu Criador para além dos tempos. Ele, então, começa a perceber a seu redor “uma vaga e geral alegria algo maligna” (Ibid.). Depois dessa palinódia, Stephen é intimado pelo trio de algozes a dizer quem é o maior poeta, ao que responde “Byron!”. A sequência se decompõe da seguinte forma: Stephen cede sobre a ruptura radical que ele defendia entre a criatura e o Criador, admitindo a possibilidade assintótica de um laço. Surge, então, a figura de Byron, herético e incestuoso, na genealogia de quem Joyce se inscreve, figura do pai que goza, evocação do “Um pai real”, que Lacan coloca no fundamento do desencadeamento da psicose. Em seguida, seu corpo, essa página marcada por arranhões de arame farpado, traços de sangue, de uma protoescrita, sai como uma casca, abandonada por não incorporar a estrutura simbólica naquele momento preciso. É incorporada que a estrutura faz o afeto. E o corpo do Simbólico faz o corpo do sujeito por se incorporar a ele. Lacan remete essa estrutura simbólica ao “menos-Um” do significante da falta do Outro, e a correlaciona à sepultura como traço cultural desse “menos-Um” que marca o Nome-do-Pai. Serge André propôs, aliás, que se inscrevesse o S (%) e o “existe x tal que não … (x)” no nível dos dois cruzamentos do Simbólico e do Real no nó borromeano de três (ANDRÉ, 1981). No episódio da surra, a falha de S (%), esse “menos-Um” correlacionado ao Nomedo-Pai, que sustenta a ruptura radical entre a criatura e o Criador, faz crescer em potência do “Ao-menos-Um” que escapa à castração, enodamento direto do simbólico e do Real, em que Lacan inscreve esses significantes no Real, que são as epifanias. Essa falha do nó deixa o Imaginário livre, a ideia de si como corpo, que demanda somente partir. Isso corresponde ao nó de Joyce, que Lacan dá, sem a junção pelo Ego.

R

I

R

I

S

epifanias

O nó fracassado

S O ego corretor

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Laços Ego e escrita Será, então, seu próprio texto que se tornará, para Joyce, a ideia de si como corpo. Ele pensou, assim, em escrever Ulisses com tantos capítulos quanto o número de órgãos de um corpo, cada um com um estilo característico do órgão de referência. O capítulo “As sereias”, por exemplo, é dedicado ao ouvido. Ele tenta reconstruir, com a escrita, a colocação em funcionamento dos órgãos que a falha de S (%), outro nome aqui da foraclusão do falo (…°), não lhe permite. Joyce descreve Shem, o herói do Finnegans Wake, da seguinte forma: um homem da escrita como uma aranha deve “dianoitemente produzir, por meio de seu corpo aceleste, uma não incerta quantidade de matéria obscena” (JOYCE, 1939/2000, p. 560-61)2 e escrever “em cada polegada quadrada do único papel de ofício acessível, seu próprio corpo” (Ibid., p. 561).3 Na mesma ordem de ideias, Lacan ressalta que é a arte de Joyce que supriu sua firmeza fálica um pouco frouxa (LACAN, 1975-76/2007, p. 16). Mas qual é a estrutura desse texto peculiar? O enigma da raposa, que Stephen Dedalus propõe a seus alunos em Ulisses, e que Lacan retoma, vai nos dar uma visão geral disso. Eis o enigma em que ressoa o ato de submissão de Stephen sobre a alma e o Criador: O galo cacarejou, O céu azulou; Sinos de bronze Soaram onze. A hora da pobre alma Ir pro céu chegou. O que é isso? – O quê, senhor? – De novo, senhor. Nós não ouvimos. Os olhos deles cresciam enquanto os versos eram repetidos. Depois de um silêncio 2 No original: “(…) he shall produce nichthemerically from his unheavenly body a no uncertain quantity of obscene matter”. 3 No original: “(...) over every square inch of the only foolscap available, his own body (…)”.

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Cochrane disse: – O que é, senhor? Nós desistimos. Com a garganta comichando, Stephen respondeu: – A raposa enterrando sua avó debaixo de um azevinho (JOYCE, 1922/2010, p. 36). A cena continua: “[Stephen] se levantou e soltou uma risada estridente e nervosa à qual os gritos deles [das crianças] ecoaram consternação” (Ibid.). Esse enigma não tem nada de chiste (que depende do S (%)), pois não comove nosso inconsciente. E Joyce se revela aí um affreud,4 um desabonado do inconsciente, como Lacan destaca (LACAN, 1975b/inédito, 16/06/1975). Por seu estilo irônico, sardônico e alusivo, contudo, faz piadas inconcebivelmente internas [inconceivably private jokes] (LACAN, 1975-76/2007, p. 73), e leva o leitor a seguir, de maneira metonímica, os fios associativos, as eftsooneries, associações adiadas para breve – after soon – que tecem seu texto. Nesse enigma, os fios associativos correm em particular a partir das palavras “alma”, “raposa”, “enterrando”, “avó” e “azevinho” (the bush: azevinho – Holly bush – e os pelos pubianos). Stephen modificou a resposta desse enigma tradicional: The fox burying his mother under a holly tree (“A raposa enterrando sua mãe debaixo de uma árvore de azevinho), “a raposa enterrando sua mãe sob um azevinho”, substituindo “avó” por “mãe”, e bush, “arbusto”, por tree, “árvore”. No episódio anterior, Buck Mulligan acaba de sugerir que Stephen matara sua mãe, recusando-se a se ajoelhar em seu leito de morte e rezar por ela (JOYCE, 1922/2010, p. 21). Essa culpa com relação à morte da mãe, ressaltada aqui pela referência ao adultério de Parnell, apelidado por isso de the Fox, voltará a assombrar Stephen em todo o decorrer de Ulisses. Pouco depois do episódio da charada, a pobre alma da mãe, que partira aos céus, é associada à raposa que “scrappe” [cava] e “scrappe” a terra (Ibid., p. 37). Uma superstição afirma que aqueles cujos corpos são desenterrados pelos lobos foram assassinados. E a resposta para a charada de Stephen é igualmente justificada pela expressão inglesa “unhas suficientemente longas para desenterrar a avó”.5 A raposa-lobo é também o cão proteiforme que desenterra a pobre pele de cão de carniça em “Proteu” e que acompanha Bloom em “Circe”. Esse cão já apareceu no 4 (N.T.) Trocadilho com a palavra affreux (atroz, terrível, assustador, apavorante) e o nome de Freud, algo como um “atroz a-freudiano”. 5 (N.T.) Referência a um trecho de Polite Conversation (ver o “Dialogue III”) de Jonathan Swift: “Oh, the hideous creature! Did you observe her nails? They were long enough to scratch her granum out of the grave”.

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capítulo XIV de Stephen Herói, no qual cheirara o cadáver de uma mulher afogada que escapara do asilo na véspera. O olhar de Stephen, durante essa cena, permanece suspenso nas letras de um pedaço de jornal que flutuava na água: “A Lâmpada, Jornal de...”. A palavra que falta é “Literatura” (1944/1995-96, pp. 337-38). A colocação em cena dessa falta de palavra na ocasião da morte de uma mulher se lê e se liga com diversas passagens de Ulisses, em que o olhar de um afogado lembra, para Stephen, o de sua mãe morrendo, e com o final de “Circe”, no qual Stephen um “Kinch corpodecão”, (JOYCE, 1922/2010, p. 657) como Mulligan diz, alucina sua mãe morta, o “corpodecadela da mãe” (Ibid.) ainda de acordo com Mulligan. Stephen pede à sua mãe que diga “a palavra conhecida de todos os homens” (Ibid., p. 659). Sua evasiva ao responder leva-o à loucura. A palavra que falta é “amor”. O cão-raposa ainda está lá em Finnegans Wake para designar Shem, o herege, em seu julgamento. Esse escavador de túmulos é acusado de buscar “o ninho do mal no cerne de uma palavra chistosa” (JOYCE, 1944/1995-96, p. 570).6 Em “Circe” ainda, um cão vem representar Dignam, morto e enterrado no início de Ulisses, e falar em seu lugar. Esse cão (dog) que cava (dig) a terra, as carniças e os nomes remete ao próprio nome de Dignam, dig name. Ele é a colocação em cena da questão de Stephen e de Bloom: “O que há em um nome?”. E, ainda em “Circe” é o grito de Adonai, “Doooooooooog!”, o anagrama inverso de “God” (Deus). To fox também significa “trapacear” ou “fazer corpo mole”. Desde o Retrato, o verbo e o adjetivo foxy são associados por Stephen a um jesuíta com toque viscoso que reaparece em “Proteus”. Em seguida, a raposa retorna no capítulo 6 de Finnegans Wake, em uma paródia de “A raposa e as uvas”. A palavra “bush” anuncia o advogado Seymour Bushe e sua retórica, que é tratada em “Éolo” e “Circe” quando J. J. O’Molloy Fox retorna com bigodes de raposa e a eloquência desse advogado. Bush também remete à sarça ardente, mas, além disso, aos pelos pubianos, com uma série de mulheres que inspiram mais ou menos repugnância: Eva, que “nos vendeu a todos, estirpe, raça e geração, por uma semente de um vintém” (JOYCE, 1922/2010, p. 381); Helena, “a égua de madeira de Troia em cujos flancos uma dúzia de guerreiros dormiu” (Ibid., p. 220); a mãe de Stephen, uma “devoradora de cadáveres” (Ibid., p. 22); as prostitutas de “Circe”, na frente das quais a raposa canta, os galos fogem e é hora de deixar os céus; Molly Bloom, que comete adultério, e que durante seu monólogo final, “Penélope”, teve suas regras, ou ainda Anna Lívia Plurabelle, a mulher de Finnegans Wake, cujas iniciais, ALP, significam “pe6 No original: “(…) Sniffer of carrion, premature gravedigger, seeker of the nest of evil in the bosom of a good word”.

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sadelo” em alemão. Notemos, aliás, que o monólogo de Molly, sem pontuação, substituiu um grande ponto-final preto que Joyce tinha o projeto de fazer, e no qual Lacan reconhece um clitóris. O azevinho remete ao Retrato, no qual Stephen, doente, aspira voltar para casa para um Natal tradicional decorado com azevinho vermelho-sangue, símbolo da coroa de espinhos, e a flor branca virginal, e decorada com hera, a planta da fidelidade, emblema de Parnell. Essa coroa evoca o próprio nome de Stephen pela etimologia grega.7 Os fios associativos se cruzam e recruzam também em torno da figura do pai impostor, o pai de Stephen que, ridiculamente em “Circe”, o exorta a defender o brasão que ele atribui a si mesmo, e que é o dos Joyce do condado de Galway, simples homônimos da família de James Joyce, o pai de Hamlet, “morto na flor de seus pecados”, em torno da lei de talião, a lei da dita “evidência”, ao contrário da função do Nome-do-Pai, de uma mudança de patronímico e de uma indeterminação sobre o sexo do pai. Assim, nessa passagem de “Os ciclopes”, acerca do pai de Leopold Bloom, ele diz: “Seu nome era Virag, nome do pai que se suicidou tomando veneno” (JOYCE, 1922/2010, p. 338). E, mais adiante, quando da vinda do Messias: “E todo judeu fica num completo estado de excitação, creio, até que saiba se é um pai ou uma mãe” (Ibid.). Lacan observa aí a suspensão entre os sexos que Joyce testemunha (LACAN, 1975-76/2007, p. 71). Virag e Bloom também são nomes femininos, pois significam “flor” em húngaro e em alemão. E Rudolph Virag retorna em “Circe”, como machona, uma mulher masculina, ou até mesmo a mulher do ponto de vista de Adão (que, em si mesmo, é uma senhora [Madame], de acordo com a joke de Joyce). Os fios também correm do lado do objeto voz, como nessa epifania que se segue ao enigma da raposa: “Isso é Deus. – Hurra! Ai! Rrhiiii! – O quê? – o Sr. Deasy perguntou. – Um grito na rua – respondeu Stephen, sacudindo os ombros” (Ibid., pp. 42-43). Em “Éolo”, o Moisés de Michelangelo é uma estranha “música congelada” (Ibid., p. 133).

7 (N.T.) Do grego Stéfanos, “Stephen”, em inglês (“Estevão”, em português) tem o significado de coroado.

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O objeto voz constitui uma identificação entre o pai e o filho, identificação por incorporação, identificação ao Real do Outro real. O texto passa e repassa pela questão da consubstancialidade do pai e do filho, e essa mesma substância é a voz. Como ocorre nesta passagem: “uma voz ouvida apenas no coração daquele que é a substância de sua sombra, o filho consubstancial com o pai” (Ibid., p. 216). Pouco depois da morte de seu pai, Joyce escreve: “Parece-me que a voz dele penetrou não sei como em meu corpo ou minha garganta” (TARDITS, 1987). Joyce tinha o mesmo timbre de voz (tenor) que seu pai, e também queria ter se tornado tenor antes de se dedicar à escrita. Para Lacan, a missão de Joyce em Finnegans Wake consiste em fazer a linguagem sofrer uma decomposição tamanha, de forma a não haver mais identidade fonatória. É no nível da escrita que “a palavra se decompõe impondo-se”, como nas epifanias ou em certas passagens que devem ser lidas em voz alta para captar os efeitos translinguísticos. Em Finnegans Wake, encontramos esta passagem: “Who ails tongue coddeau, a space of dumbillsyli”, que daria “Onde está teu presente, espécie de imbecil?” (JOYCE, 1939/2010, p. 135). Sigamos ainda alguns fios das cartas: a que Stephen carrega antes da surra, as que Leopold Bloom acumula sobre si mesmo durante o dia 16 de junho de 1904, o qual Ulisses reconstitui, ou com relação a Shaun the Post, irmão gêmeo de Finnegans Wake santificado em seu nome de carteiro ou de correio por uma voz alucinatória quando seu irmão, Shem, foi nomeado the Penman, o homem da pluma. Um enigma truncado introduz o quebra-cabeça da raposa: Adivinhe, adivinhe, adivinho! Ganhei grãos pra semear do paizinho (Ibid., p. 36). A continuação é dada em Finnegans Wake: A semente era preta e o campo era branco. Adivinhe isso e lhe dou uma cerveja. A solução: “Escrever uma carta” (JOYCE, 1939/2010, p. 1.096).8 Todos esses cruzamentos na trama do texto conjugam, pela carta, prazer, Real e Simbólico, em uma cifração que impele o leitor a uma decifração incessante, propagando-se ao redor e encerrando-se de volta pontos enigmáticos. Trata-se, 8 No original: “(…) All the world’s in want and is writing a letter”.

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escreve Joyce, “de uma sentença enigmática a ser tecida e retecida [na verdade] sobre as profissões” da leitura. Trata-se de tecer seu Ego com gozo, j’ouïs sens,9 e até mesmo Joyce sens, em torno desse ponto vazio de sentido: o enigma da enunciação, Ee, que é um substituto do S (%). Assim, passando de uma protoescrita de S1 sangrento na pele, durante a surra, à escrita de uma obra que atrai o leitor de um possível todo-sentido, e que encerra lugares de não sentido radical, levando o sentido à própria pulverescência, Joyce recupera seu corpo perdido. Seu texto, tecido pelo engano, pela deficiência e pela voz do pai, torna-se “ideia de si como corpo”. Mas seu corpo não é, contudo, um deserto de gozo, e a falha do nó permanece sensível nas epifanias e na “estranha relação sexual” entre Joyce e Nora.

Os rastros da falha do nó As epifanias Joyce identifica nesses fenômenos, datados de 1900-1904, os momentos fecundos de sua vocação como artista. São fragmentos de discursos, de diálogos realmente ouvidos em situações banais, retirados de seu contexto, registrados como o mais precioso de sua obra e reinseridos incógnitos em textos posteriores. Estes excertos tornam-se estranhamente insensatos, fora do discurso, reais, e seriam apenas rebotalhos sem a experiência epifânica que os acompanha. O vazio da significação é aí convertido na certeza de uma revelação inefável e extática. Na falta de sentido desses fragmentos, como o grito na rua, que é o próprio Deus, Joyce reconhece “uma súbita manifestação espiritual” (JOYCE, 1944/1995-96, p. 512), na qual se revela, referindo-se a Tomás de Aquino, a quididade da coisa em si, a sua Claritas. As epifanias inscrevem-se no nível do laço direto entre o Simbólico e o Real, como elementos simbólicos que passam diretamente no Real. Elas evocam aquilo que de Clérambault chamou de “pequeno automatismo mental”, quando o discurso interior adquire um caráter estranho e automático, e elas também evocam as variações de Lacan em “a paz do anoitecer” (LACAN, 1955-56/1988, p. 160), em que aparece o estranhamento do significante, durante o seminário sobre as psicoses. A primeira epifania que Joyce cita o faz conceber um poema: “The Villanelle of the Temptress” [A tentadora do Vilancete]. Esta epifania se resume a alguns trechos de diálogo entre um rapaz e uma moça: 9 (N.T.) Trocadilho de Lacan entre a palavra jouissance (gozo) e a expressão j’ouis sens (eu ouço sentido) que reverbera também em Joyce sens (Joyce sentido).

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A moça: Ah sim... estava na capela ... O rapaz (inaudível): ... Eu (ainda baixinho) ... Eu ... A menina (gentilmente): ... Ah... mas... Você é muito malvado (LACAN, 1944/1995-96, p. 512). Esse incidente trivial vai ao encontro de seus pensamentos sobre as mulheres e a religião, ao passo que sua mãe acabara de lhe anunciar que havia procurado aconselhar-se com um padre sobre ele. Uma intrusão real que provoca a sua vocação como escritor da epifania. No Retrato, Joyce nos conta ter concebido “The Villanelle of the Temptress” em um momento “de êxtase da vida seráfica” (JOYCE, 1922/2010, p. 151), êxtase paradoxal, pois os serafins são mais ardentes (o que seu nome em hebraico significa) do que passivos. Ele continua: “No seio virginal da imaginação o Verbo fora feito carne. Gabriel, o serafim, tinha entrado na câmara da Virgem”. Uma luz rosa e ardente surge dali, que é “o coração estranho e singelo dela” (Ibid.). E, “fascinados por esse fulgor de rosa assim tão ardente, os coros do serafim estavam caindo dos céus” (Ibid.). Esse êxtase seráfico ambíguo com relação à sexuação nos leva à “estranha relação sexual” de Joyce com Nora. Um sexo estranho que faz laço Françoise Gorog desenvolveu particularmente este ponto, sobretudo no artigo “Joyce le prudent” (ver bibliografia geral), no qual, em parte, me apoio aqui. Joyce, que não conheceu “nem saúde masculina rude; nem mesmo amor filial”, nos termos do Retrato, encontra uma impossibilidade de se inscrever do lado masculino da sexuação e, ao mesmo tempo, inscrever ali seus semelhantes. Ele não cessa de se proclamar “homem feminino”, e reconhece a si mesmo um nome hermafrodita na variante irlandesa do seu patronímico: “Sheehy”. De Bloom que é um Senhor “Flor” e ao qual ele dá um segundo prenome feminino, “Paula”, quando já o chamou de Leopold, em referência a Leopold Sacher Masoch, ele diz: “sou eu”. Aliás, Joyce havia sido chamado de James Augusta quando nascera, em virtude de um erro de um funcionário do cartório. Seus amigos de infância são frequentemente incluídos em sua obra por meio de uma feminização, como Bertie Tallon, que surpreende ao aparecer maquiado como menina no espetáculo de Pentecostes. Se por um lado Joyce defende que Adão é uma mulher, ele se pergunta: “Talvez [não seja por que] ele [Hamlet] fosse uma mulher [...] que Ofélia cometeu suicídio”? (Ibid., p. 74).

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“Joyce não se toma por mulher, vez por outra, senão por se consumar como sintoma”, diz Lacan (1975c/2003, p. 566). E, ao nos dar a referência do nome que responde aos desejos de Joyce (na página 162 da edição da Oxford de Finnegans Wake), Lacan nos permite supor que este nome que Joyce escolhe para si é “Ostiak Vogul della Marina”, em que, a partir de duas línguas úgricas (o ostíaco e o vogul) e do italiano (óstio della vergine Maria), podemos ler em translinguística “o furo da Virgem Maria”!10 A partir dessa dificuldade na identificação sexuada, a escolha de objeto de Joyce também é original. Sobre Nora Barnacle, sua esposa, ele diria para Ettore Schmitz: “O que é certo é que sou o mais virtuoso de todos, eu, que sou realmente monogâmico e que só amei uma única vez na minha vida”. 11 E Lacan ressalta: “Para Joyce, só há uma mulher. Ela é sempre do mesmo modelo, e ele só a enluva com a maior das repugnâncias. É visível que apenas com a maior das depreciações é que ele faz de Nora uma mulher eleita” (LACAN, 1975-76/2007, p. 81). Ela é aquela que ele idolatra e, ao mesmo tempo, a parceira de um tempo de vida sexual em que se desdobra toda a loja de acessórios do voyeurismo, fetichismo, masoquismo, coprofilia e ondinismo. Ele lhe escreve e pede que ela lhe escreva cartas mais que eróticas, nas quais ele evoca “sua firmeza fálica um pouco frouxa” (Lacan), e na qual lhe diz que “nenhuma menina da Europa, exceto você, perderia seu tempo tentando isso” (JOYCE, 1982, p. 1284), isto é, tentando dar mais “firmeza”. A repugnância de Joyce com relação a Nora aparece na personagem de Molly Bloom, que representa a vulgaridade da mulher que nunca diz não, e nas diversas personagens femininas, já evocadas, de sua obra. Mas na vertente “mulher eleita”, ela também é uma santa, e até mesmo a Virgem Maria ou o Menino Jesus. Quando Joyce vai visitar o antigo quarto de Nora no hotel Finn (de onde deriva Finnegans Wake), ele lhe escreve: “Quase me ajoelhei para rezar ali como os três reis do Oriente o fizeram diante da manjedoura onde repousava Jesus” (Ibid., p. 1282). Trata-se de uma epifania no sentido do cristianismo, mas também no sentido joyceano: “uma fase memorável do espírito, extático” (JOYCE, 1922/2010, p. 324). Notemos também que Ulisses se desenrola ao longo de 16 de junho de 1904, que é o dia em que os dois se conheceram. Para Joyce, o sobrenome de Nora, Barnacle, a masculiniza. Trata-se do oie bernacle [ganso-do-canadá], oriundo, segundo a lenda, dos mariscos homônimos e 10 Cf. A Lexicon of “Small” Languages in Finnegans Wake, editado por C. George Sandulescu, http://editura.mttlc.ro/carti/sandulescu-small-languages-fw.pdf, p. 101. 11 JOYCE, J. “Lettre à Ettore Schmitz”, citado por BRENDA WADDOX, Nora. Paris: Albin Michel, 1990. GOROG, F. “Joyce le prudent”.

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classificados como peixe na Irlanda para ser consumidos durante a Quaresma. E, em Ulisses, ele fala de “Um camarada que não é nem carne nem peixe (...), nem um bom arenque vermelho” (Ibid., p. 151) . Barnacle também significa um aparelho que aperta as narinas dos cavalos para dominá-los, e Kinch, o apelido que Buck Mulligan dá a Stephen, significa um nó corrediço, feito sobretudo para segurar os cavalos pela língua. O barnacle (craca em português), uma concha dotada de um pé-ventosa, permanece a vida toda pendurada no mesmo suporte, rocha ou destroço, por exemplo. “Com um nome assim, ela não te deixará nunca!”, havia brincado o pai de Joyce. E, com efeito, ela nunca o deixou. Eles raramente se separavam enquanto estavam vivos, e Nora se recusou a deixar a cidade onde Joyce foi enterrado. Ela incorpora, assim, o “jamais” herético Stephen em sua composição literária, mas mais na vertente “jamais ruptura” do que “jamais laço”. Assim como na escrita, Nora participa do sinthoma para Joyce, a quem ela evita o empuxo-à-mulher schreberiano e seu lado “poedeira universal”, como Anna Livia Plurabelle, “a bela galinha” de Finnegans Wake. Assim, ela o ajuda a ser a poedeira particular de suas obras, das quais ele se faz filho, numa espécie de autoengendramento.

Tradução: Cícero Oliveira Revisão da tradução: Dominique Fingermann

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resumo Como ler Joyce com Lacan nos permite apreender a clínica do defeito de estrutura, a falta do nó e sua reparação pelo Sinthoma?

palavras-chave Joyce; Ego; Sinthoma; nó borromeano; estranha relação sexual.

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abstract How reading Joyce with Lacan allows to understand the failure of the structure, the fault of the node, and his repair by the Sinthome.

keywords Joyce; Ego; Sinthome; Borromean knot; a strange sexual intercourse.

recebido 01/02/2016

aprovado 29/02/2016

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Perversão ou “posição perversa”? Caminhos para a construção de uma hipótese diagnóstica Maria Claudia Formigoni O caso que será apresentado trouxe, a partir de dificuldades na direção do tratamento, questões para pensar a perversão na infância. Sabe-se que o estabelecimento de uma hipótese diagnóstica quando se trata de uma criança é algo polêmico dentro do campo psicanalítico, aspecto que produz ainda mais controvérsias ao se abordar a perversão na infância. Como o objetivo deste trabalho não é realizar um levantamento de todas as posições, relativas a essa questão, que circulam no âmbito da psicanálise, é importante esclarecer de onde se parte para construir a hipótese diagnóstica apresentada. Considera-se aqui que a “criança é suposto sujeito” (SAURET, 1997, p. 63). O sujeito é um efeito de linguagem, correlato à estrutura do inconsciente, cuja manifestação se dá no instante de uma pulsação que se faz reconhecer, por exemplo, como um tropeço produzido na cadeia significante. Esse sujeito sobre o qual opera a psicanálise é sem substância, não se desenvolve e não tem idade. Supera-se, assim, a separação criança/adulto, não havendo, em termos analíticos, distinção entre eles. Isso significa que a criança é um ser falante igualmente dividido pelo significante e pelo gozo. A esse sujeito atribui-se uma pergunta a respeito do lugar que ocupa na ordem simbólica. Está aí o que interessa à psicanálise: pensar a constituição do sujeito dentro da estrutura edípica composta por quatro elementos (criança, mãe, falo e pai), que são as ferramentas com as quais a criança pode, e deve, operar a fim de se posicionar na ordem da linguagem à qual é assujeitada por estrutura. O complexo de Édipo é, portanto, a forma como cada sujeito subjetiva o interdito que lhe é imposto de saída, isto é, a impossibilidade de acesso ao gozo. “A análise com criança incidirá, como para o adulto, sobre a forma como foi transmitido à criança o saber, o gozo e o objeto” (Ibid., p. 42), já que, como postulavam Rosine e Robert Lefort, trata-se de um analisante por inteiro.

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No que se refere à perversão, sabe-se que há tendência de concebê-la como uma conduta patológica caracterizada por uma série de desvios em relação àquilo que é esperado e considerado aceitável. Estabelece-se uma oposição, pautada em aspectos fenomenológicos, entre perversão e normalidade. Perverso acaba, assim, por se tornar um adjetivo – usado como sinônimo de depravação, maldade, crueldade, frieza – que caracteriza de modo pejorativo e exerce certo julgamento moral tanto de indivíduos quanto de atitudes e comportamentos. Por isso, pode-se pensar que seja tão difícil e, até mesmo, assustador o estabelecimento do diagnóstico estrutural de perversão, ainda mais quando se trata de uma criança. Esse diagnóstico costuma mobilizar o imaginário, trazendo à tona aquilo que circula socialmente a respeito dos indivíduos ditos perversos. Ao se tratar da clínica com crianças isso parece acentuar-se ainda mais, “graças à tendência que essa clínica provoca, de ‘ressuscitar’ os sentimentos do analista, embaraçado com sua própria fantasia de infância” (PRATES PACHECO, 2012, p. 260). Pode-se supor, assim, que a “fantasia de infância” que povoa o imaginário do analista oferece resistência ao diagnóstico estrutural de perversão na infância, pois dizer que uma criança é perversa opõe-se ao ideal de pureza e inocência que ainda circula em relação à infância. A estrutura perversa, porém, não designa, uma conduta e/ou um desvio de caráter. Trata-se de um modo de estabelecimento de laço com o Outro. Assim como a neurose e a psicose, a perversão é uma modalidade de resposta ao confronto com a diferença sexual e com a falta do Outro. É preciso, além disso, lembrar que a estrutura, o significante e a relação com o Outro não concernem de maneira diferente à criança e ao adulto (SAURET, 1997). Como afirma Peusner (2016), na clínica com crianças também não há proporção sexual e é preciso investigar o modo como cada criança lida com isso, o que só é possível sob transferência. É apenas na relação transferencial que se pode verificar o modo de resposta de um sujeito para a falta do Outro. Assim sendo, passemos ao caso clínico em questão. * No Seminário 4 (1956-57/1995, p. 359), Lacan faz a seguinte afirmação a respeito da reação de Hans ao ver as calcinhas da mãe: O essencial é o seguinte: as calças em si mesmas estão ligadas para Hans a uma reação de repulsa. Mais que isso, o pequeno Hans pediu que se escrevesse a Freud, dizendo que quando viu as calças, ele havia cuspido, caído no chão e depois fechara os olhos. É por causa desta reação que a escolha está feita: o pequeno Hans jamais será um fetichista. Se ele houvesse

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reconhecido, ao contrário, essas calças como seu objeto […] ficaria satisfeito com elas, e se teria tornado fetichista, mas como o destino quis outra coisa, o pequeno Hans fica repugnado pelas calças. Só que ele explica que, quando a mãe as usa, a coisa é outra. Aí elas não são mais repugnantes, em absoluto. Aí está toda a diferença. Ali onde elas poderiam se oferecer a ele como objeto, quando as calças estão ali em si mesmas, ele as rejeita. Elas só conservam sua virtude, se assim podemos dizer, estando em função, ali onde ele pode continuar a sustentar o engodo do falo. Evidencia-se nesse trecho que Lacan estabelece relação clara entre a repugnância, a não escolha das calcinhas como objeto e o consequente fato de Hans não ser um fetichista. Foi dessa relação que parti para construir a hipótese do diagnóstico estrutural de um menino de cinco anos que recebi no consultório. Seus pais suspeitavam que ele tivesse alguma dificuldade orgânica que o impedia de usar o banheiro, pois “só fazia na fralda”. Nunca usara penico ou vaso sanitário. Após a realização de uma série de exames, nenhum dos médicos procurados encontrou algo orgânico que pudesse justificar o uso da fralda. Então, sem saber o que fazer e “por falta de opção”, os pais seguiram a orientação de levar o filho a um psicólogo. Durante as entrevistas preliminares, a mãe mencionou que o uso da fralda poderia ter “outro motivo”, mas isso não lhe fez questão. O pai, por sua vez, apontou alguns aspectos do filho que o preocupavam: não se vestir nem tomar banho sozinho e só sair de casa com uma sacola de roupas, fraldas e mamadeiras, preparada pela mãe. Diante de tais colocações, ela falou que o menino era seu “bebê” e que também se preocupava com uso da fralda, dizendo não deixar “faltar, pois ele fica muito angustiado quando não tem”. Foi com esse panorama que recebi para as primeiras entrevistas um menino que se apresentou contando não ter medo de nada e gostar de brincar de esconder. Esconder-se, me esconder, esconder os objetos da sala, esconder os brinquedos... E a fralda, escondia algo? A única vez que abordou de modo explícito o uso da fralda, disse não entender a preocupação dos pais. Não escondia deles que estava determinado a usar fralda mesmo quando adulto, pois sabia que “existem fraldas de gente grande”. Não sentia vergonha de usá-las e tampouco nojo das fraldas sujas. Além das brincadeiras de esconder, ele realizava sistematicamente nas sessões atividades nas quais ficava explícito que estava às voltas com a questão da diferença sexual. Dividia a lousa ao meio, desenhava coisas de menino de um lado, coisas de menina do outro e, em seguida, apagava tudo. Jogava Mico agrupando os pares não por formarem um casal (macho e fêmea), mas por terem números iguais. Ele

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lia os pequenos números impressos nas cartas, e não a diferença sexual. Também dividia entre mim e ele o tabuleiro de um jogo, a fim de ver quem tinha e quem não tinha certa peça. Dizia: “se eu tenho, você não tem” ou “se eu não tenho, você tem”. Certa vez, após afirmar, sem pudor algum, que gostava de usar vestidos e de fingir que tinha cabelos longos, pegou duas cartas do jogo do Mico: rata e rato. Disse haver só uma “diferencinha” entre os dois, já que todas as letras eram iguais, menos A e O. Quando questionei sobre isso, comentou que não era diferença, e sim algo errado: “O o é errado. Tinha que ser só a”. Aponta o rabo do rato e diz: “Olha aqui! É a coisinha errada!”. Assinalei se seria a “coisinha” errada que tentava esconder com a fralda. Ele riu. Sabia sobre a diferença sexual, mas a negava. Nesse sentido, o uso da fralda não era mesmo uma questão para ele. Estava satisfeito com a eleição desse objeto que, mesmo sendo uma solução temporária, evitava que se angustiasse e lhe facilitava a vida de alguma forma. A fralda, algo unissex, funcionava como um fetiche, tampando o lugar onde poderia se localizar a distinção entre os sexos, a diferença entre ter e não ter. Segundo Freud, o menino se recusa a tomar conhecimento do fato de ter percebido que a mãe não tem pênis e desmente isso que constatou. A percepção, porém, fica presente e é preciso empreender uma ação muito enérgica para manter o desmentido (FREUD, 1927/2006). Assim, com a ajuda do deslocamento, o conteúdo desagradável relativo à percepção da ausência de pênis na mulher chega à consciência sob a condição de ser negado e como um substituto. Não é verdade que, depois que a criança fez sua observação da mulher, tenha conservada inalterada sua crença de que as mulheres possuem um falo. Reteve essa crença, mas também a abandonou. No conflito entre o peso da percepção desagradável e a força de seu contradesejo, chegou-se a um compromisso [...] Sim, em sua mente, a mulher teve um pênis, a despeito de tudo, mas esse pênis não é mais o mesmo de antes. Outra coisa tomou seu lugar, foi indicada como seu substituto, por assim dizer, e herda agora o interesse dirigido a seu predecessor. Esse interesse sofre também um aumento extraordinário, pois o horror da castração ergueu um monumento a si próprio na criação desse substituto (Ibid., 1927/2006, pp. 156157, itálico do autor). O fetiche é um substituto do pênis da mãe em que o menino outrora acreditou e não quer abandonar. Esse objeto produzido para negar a castração é, ao mesmo tempo, uma marca de seu reconhecimento, pois a traz à tona de modo disfarçado. O fetiche, então, afirma aquilo que nega, fazendo com que saber e não querer saber possam coexistir. 126

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Essa coexistência foi notável nas sessões seguintes àquela em que a “coisinha” errada foi evidenciada. Ele disse ter várias namoradas e “pegar todas as gatinhas do play”. Comentou também querer ser uma princesa, ter cabelos longos e usar vestidos cujas saias rodassem. Contou que tinha um pé menina e um pé menino, marcando a diferença entre eles com um elástico. Passava esse elástico de um pé ao outro, falando que, de acordo com sua vontade, podia fazer o pé menina virar menino e vice-versa. Uma vez, ele disse: “pessoa tem pinto”. Questionei se pessoa era homem ou mulher, menino ou menina. Respondeu: “pessoa é pessoa e quem tem pinto é...”. A frase deixada incompleta foi concluída por mim: “menino, homem”. Ele, de modo assertivo, falou: “não! As coisas não funcionam assim! É pessoa!”. E continuou, dizendo ter um pinto. Assinalei que ele era um menino, afirmação seguida por um enfático “não! Eu sou bichinha”. Fez breve silêncio. Disse que sua cabeça estava confusa e dirigiu-me um pedido explícito de ajuda. Algumas sessões depois, após recusar-se a entrar na sala e ameaçar a quebrar coisas, como já havia feito outras vezes, deixou a porta aberta e deitou. Ele disse que chamaria sua mãe, comentando gostar de que ela visse o que fazia lá dentro. Ou seja, rebolar como uma menina, completei. Levantou-se e foi chamar a mãe. Ela, conforme combinamos, se recusou a entrar, dizendo que só o faria quando eu mandasse. Bravo, protestou: “eu mando em todo mundo! Pai, mãe, avó, professora e aqui também”. Disse-lhe que não mandava, mas que gostaria de mandar. Ao que respondeu: “um dia, quando eu for papaimamãe, vou mandar. Meninoa”. Quando questionado, diz: “meninoa: meninomenina. Eu sou os dois!”. Ele, de fato, sabia sobre a diferença sexual, mas se devotava a negá-la. Recusava também assumir uma posição. Era como se, conforme sua vontade, pudesse ser menino, menina e, como ele preferia, os dois. Nesse sentido, seu pedido de ajuda não parecia vinculado a uma dúvida relativa à diferença sexual, e sim a uma forma de ajudá-lo a manter a negação dessa diferença e, consequentemente, poder ser os dois sexos. Freud (1925), em A negativa, salienta que é essencial que haja, primeiramente, uma afirmação (Bejahung) para a ocorrência de uma negação (Verneinung), a qual evidencia que se aceita certa forma de saber sobre a castração. Freud estabelece também uma conexão entre o recalque (Urverdrängung) e a negação (Verneinung), evidenciando que a percepção desagradável que o primeiro barra pode chegar à consciência com a condição de ser negada, seja via Verdrängung (retorno do recalcado) ou Verleugnung (retorno do desmentido). Portanto, sem recalque e sem afirmação primordial, não há negação. A Verneinung é, assim, a negação própria à neurose e à perversão. Na psicose, a realidade psíquica não pode ser significada com a marca do falo. Apesar de haver Bejahung primordial, não há, como nas demais estruturas, uma simbolização da castração. Então, o mecanismo que determina a psicose escapa Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 32 p.123-135 junho 2016

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a qualquer possibilidade de afirmação do Nome-do-Pai e, consequentemente, a negação não pode existir. “O mecanismo que determina a psicose está fora do recalque significante. Na psicose, a Verwerfung exclui toda a possibilidade de Bejahung, ou seja, afirmação primeira do Nome-do-Pai” (MARTINHO, 2011, p. 91). Sendo assim, se no caso clínico em questão fica evidente um saber sobre a castração (Bejahung do Nome-do-Pai) e uma recusa – algo foi inscrito e algo recusado – é possível afirmar que se tratava ou de neurose ou de perversão. Mas qual o mecanismo de negação utilizado: Verleugnung ou Verdrängung? A fim de dar continuidade à discussão faz-se importante, neste ponto, retomar a ideia do polimorfismo e do traço perverso, próprios à sexualidade. Para tanto, é válido voltar ao texto Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). Freud inicia esse escrito descrevendo comportamentos sexuais considerados desviantes. Aborda também a gênese da sexualidade humana e termina o texto tratando a questão da escolha do objeto na puberdade. Freud fala de uma sexualidade que transcende os objetivos da procriação e possui objetos de satisfação variáveis, ou seja, muitas condutas que, à primeira vista, nada teriam a ver com atividades genitais podem ser consideradas sexuais. Essas práticas sexuais são encontradas tanto nos perversos quanto nas pessoas ditas normais. Sendo assim, estabelece-se o traço perverso da sexualidade como algo universal, que faz parte da constituição considerada normal. Para Freud, nessa época, as perversões seriam patológicas quando houvesse fixações e regressões da libido. Além de estabelecer o traço perverso como algo inerente à sexualidade humana, Freud traz à tona a questão da sexualidade infantil. Ele afirma que considerar a pulsão sexual como estando ausente na infância é um grave equívoco. Conceber que a sexualidade nasceria apenas na puberdade seria, segundo o autor, a causa do desconhecimento a respeito das condições básicas da vida sexual e da ignorância quanto à importância da sexualidade infantil. A partir da conjugação entre sexualidade e infância, Freud introduz a ideia da “disposição perverso polimorfa” da criança, sobre a qual ele diz ser “impossível não reconhecer nessa tendência uniforme a toda sorte de perversão algo que é universalmente humano e originário” (FREUD, 1905/2006, p. 180). Há um polimorfismo que é próprio à sexualidade humana, bem como um traço perverso relacionado ao fato de essa sexualidade se afastar de uma ordem natural que restringiria o ato sexual à procriação. Portanto, Freud estabelece que a sexualidade é a mesma – polimorfa e perversa – para todos os humanos falantes, sejam eles adultos ou crianças. A partir disso, deve-se distinguir aquilo que é universal daquilo que se particulariza em uma tomada de posição a respeito da sexuação. A disposição perverso-polimorfa que marca a sexualidade dos seres falantes não é o mesmo que a perversão enquanto estrutura, ou seja, quanto à posição subjetiva de um sujeito frente à castração do Outro.

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“Nesse sentido, diante do caráter perverso-polimorfo da sexualidade, nem todas as crianças assumem a mesma posição. Algo se inscreve e algo se recusa, dando lugar ao que se pretende situar como posições perversas na infância” (IUALE; LUTEREAU; THOMPSON, 2012, p. 18, tradução nossa, itálico dos autores). Essas devem ser entendidas como traços fenomênicos ligados à sexualidade infantil, evidenciados, muitas vezes, em práticas e/ou encenações chamadas perversas. Isso é diferente da perversão enquanto modo como sujeito estabelece laço e responde a determinados aspectos vindos do campo do Outro, caracterizando determinada posição subjetiva que, como veremos, consiste em se fazer de instrumento do gozo do Outro. Estabelecida essa importante diferenciação, pode-se voltar ao caso do “meninoa”. Fica evidente que ele negava a falta do Outro e que a fralda funcionava como um objeto fetiche. Essas constatações, contudo, não são suficientes para afirmar que se tratava de uma estrutura perversa, pois ainda não se sabe de qual mecanismo fazia uso para negar a castração. Por enquanto, parece cabível dizer que havia identificação feminina e que ele estava em uma “posição perversa”. Mas seria algo estrutural ou transitório? O fetiche funcionava como placa giratória ou era uma forma estrutural de gozo? Ele seria um fetichista ou estaria fazendo actings fetichistas? Lacan (1953-54/1986, p. 245), logo no Seminário 1, dá o nome de “perversão primária” àquilo que Freud chamou “perverso-polimorfo”, situando-a em uma dialética intersubjetiva imaginária. Essa dialética suporia sempre um terceiro elemento e estaria associada ao olhar, o que implicaria a ideia de mostração. Iuale, Lutereau e Thompson (2012), partindo dessa afirmação lacaniana, assinalam que a mostração perversa tem uma lógica distinta do acting out neurótico. Em ambas as estruturas, o ato põe em cena a dimensão do objeto a. Porém, na neurose, o sujeito tenta barrar o Outro para constatar sua própria posição desejante. Já na perversão o que se mostra é a tentativa sempre falida de reintegrar o gozo ao Outro, de fazer existir o gozo do Outro, causando sua divisão. Há, assim, uma diferença entre neurose e perversão que passa não só pela forma como o sujeito se posiciona frente à castração, mas também pela estratégia de gozo que utiliza. “Talvez, a neurose pudesse ser pensada como o padecimento, do lado do sujeito, em relação ao lugar de onde o Outro o nomeia (…) O perverso parece não querer renunciar a esse lugar, respondendo ao capricho materno, que mais parece representar uma faceta de gozo” (IUALE; LUTEREAU; THOMPSON, 2012, p. 35). Nas entrevistas com a mãe do “meninoa”, evidenciava-se sua dificuldade em lhe colocar limites. Atendia à maioria de seus pedidos, inclusive os relacionados ao uso de vestidos e cabelos longos, preparava mamadeira, dava banho e o vestia. Como dizia, não conseguia “deixar um buraco nele” porque, além de “muito gru-

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dados”, ele era “exigente, frágil e não gostava de frustração”. Menciona que deixar de usar fralda seria uma perda para ele, mas nega que o seria também para ela. Essa mãe, que consentia o uso da fralda, transmitia ao filho as coordenadas de localização subjetiva de “bebê”, “exigente”, “frágil” e incapaz de tolerar frustrações. Se ele saísse desse lugar, necessariamente, castraria o Outro materno. Por sua vez, ficando nele, obturaria a castração da mãe. Ao que parecia, o “meninoa” estava situado em uma posição que corresponderia à segunda, identificando-se ao falo da mãe não como causa de desejo, mas como instrumento de gozo. Lacan (1956-57/1995), no Seminário 4, tenta situar algumas coordenadas para estabelecer a perversão como tipo clínico. Ele assinala que a constituição de toda perversão deve ser abordada a partir do Complexo de Édipo e destaca que não é uma categoria do instinto ou das tendências. Introduz como primeiro ponto para distinguir neurose e perversão, a relação com a fantasia, construção que revela a posição estrutural do sujeito em relação à falta do Outro. Enquanto o neurótico identifica a falta do Outro com sua demanda, o perverso a identifica com significante do gozo. Em outras palavras, o perverso, “no lugar do gozo que falta no Outro, coloca o significante ɸ, que é o significante produzido como significante do gozo, pelo fato de que o suporte imaginário do falo falta à mãe” (MARTINHO, 2011, p. 42). A perversão acentuaria, assim, aquilo que é uma função geral da fantasia: colocar um objeto no lugar do gozo. A função da imagem e a relação do sujeito com a metáfora e a metonímia também são abordadas por Lacan (1956-1957) como formas de distinguir neurose e perversão. Partindo da comparação do Caso Dora e da Jovem homossexual, Lacan situa a neurose do lado da metáfora e a perversão do lado da metonímia. O sintoma como metáfora seria uma cifra a ser desvelada, uma questão que permitiria ao sujeito tentar situar seu lugar na ordem das trocas simbólicas. Já o sintoma como metonímia seria reflexo de um modo de lidar com a perda do objeto que faz com que o sujeito se coloque no lugar desse objeto, saturando a falta que sustenta o desejo do Outro. A partir dessa estruturação metonímica em relação ao desejo do Outro, abre-se a possibilidade de pensar a diferença entre objeto fóbico e objeto fetiche. Tanto a fobia quanto a perversão são saídas imaginárias inventadas pela criança, na trama edípica, para lidar com a castração materna. Ambas, de modo distinto, desempenham uma função de proteção contra a angústia de castração. Lacan, a partir do Caso Hans, mostra que a fobia se apresenta como solução provisória para proteger da mãe insaciável. O sujeito recua frente à constatação da falta na mãe, cristalizando um engodo que deveria ser passageiro: o de manter sua função fálica diante do desejo materno. No fetiche, por sua vez, o sujeito cria um objeto que responderia simbolicamente ao falo como ausente, restituindo à mãe o que lhe falta. O sujeito identifica-se e oferece-se a ela como falo, positivando um

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objeto e garantindo o reencontro com ele. Tanto a fobia quanto a perversão são saídas imaginárias inventadas pela criança para lidar com a castração materna. Do lado da fobia, diz Lacan, extraímos o “nada de saber” sobre a castração, que designa o recalque freudiano. Há um saber, mas esse não está à disposição do sujeito. Na fobia, é a eficácia do saber inconsciente que fabrica o sintoma. Do lado do fetiche, Lacan observa que a eficácia do sujeito se manifesta nesse substituto que ele erige para lhe apontar o ponto de verdade. O ponto de verdade, ao qual Lacan se refere, é o ponto onde se revela a castração como verdade do Outro (MARTINHO, 2011, p. 100). No caso do “meninoa”, verifica-se que houve uma clara eleição de objeto. Ele escolheu as fraldas, sem nojo ou repulsa, demonstrando estar satisfeito com elas. Pode-se supor, então, até o momento, que ele estava fetichista, que estava em uma “posição perversa”. A ideia de “posição perversa” remete à de fobia como placa giratória e à de perversão transitória, propostas por Lacan. Ambas são um artefato para lidar com a falta do Outro, representando um posicionamento temporário na constituição subjetiva. Assim, tanto a fobia quanto a perversão transitória não constituem uma “entidade clínica, mas uma ‘placa giratória’, que aponta para a escolha, sempre forçada, do caminho a ser tomado pelo sujeito” (Ibid., p. 100), garantindo a estruturação de uma neurose ou de uma perversão. Com base no exposto até aqui, vê-se que a ideia lacaniana de perversão parte da defesa contra a angústia de castração pela produção de um objeto de substituição. Sabe-se, porém, que não se pode tomar o fetiche como paradigma geral da estrutura perversa, pois Lacan ainda não havia estabelecido uma delimitação estrutural precisa desse tipo clínico. Suas afirmações remetiam mais às condições perversas do desejo neurótico, à perversão do fantasma em toda neurose, do que à perversão como estrutura clínica. É só na década de 1960, quando há uma releitura da perversão à luz da teoria do objeto a, que se pode propriamente falar de uma teoria lacaniana da perversão como estrutura. A partir do Seminário 10 (1962-63) e de “Kant com Sade” (1963), Lacan toma a fantasia sadiana como o protótipo da perversão e articula sujeito e gozo do Outro, mostrando que a diferença entre neurose e perversão está na estratégia de gozo. O neurótico supõe um Outro que quer sua castração; identifica sua falta com a demanda e goza disso. Já o perverso, para fazer coexistir o reconhecimento e o desmentido da castração, tenta restituir o gozo ao Outro, oferecendo-se ele mesmo como o objeto a.

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O perverso não está na posição de sujeito dividido, mas na posição de a, mais-de-gozar, como objeto causa de gozo para o Outro. Com isso, ao se prestar como esse objeto, se faz de instrumento do gozo do Outro e desmente a falta de objeto. Como se dissesse: “o objeto não falta, olha aqui, sou eu, estou aqui para te fazer gozar” (MARTINHO, 2011, p. 134). A estratégia de tentar reconduzir o gozo ao campo do Outro é facilitada pelo deslizamento do falo como função que obtura e sustenta a castração ao objeto a como capturador de gozo. Há, assim, na perversão, um deslocamento do desejo ao gozo. Trata-se de uma “operação que procura anular a via desejante tentando evitar o encontro com a falta e transpõe a causa de desejo em imperativo de gozo” (IUALE; LUTEREAU; THOMPSON, 2012, p. 88, tradução nossa). O desejo tornase vontade de gozo e o sujeito, instrumento do gozo do Outro. Assim, traços de perversão e práticas de gozo perverso não podem ser confundidos com a estrutura perversa propriamente dita. A perversão consiste em uma modalidade de laço entre o sujeito e o Outro, na qual o primeiro se oferece como instrumento de gozo do Outro. Portanto, para se estabelecer um diagnóstico de perversão é preciso considerar não só o sujeito, o Outro, o objeto a e a posição na fantasia, mas também a estratégia de gozo. Após um período de férias, o “meninoa” retornou às sessões dizendo não usar mais fralda. Esse fetiche havia caído. E agora? Como lidaria com a falta do Outro? Como trataria a questão de ser um objeto para a mãe? O tempo de trabalho foi pouco para conseguir acompanhar o desenvolvimento dessas questões, pois os pais suspenderam os atendimentos logo depois de o filho ter deixado a fralda. Nas poucas sessões que se sucederam, passou a envolver dinheiro nas brincadeiras. Adivinhar um enigma valia dinheiro, assim como ganhar no jogo da memória ou achar no tabuleiro as peças que sorteava. Fazia também chuva de dinheiro e ficaria rico aquele que pegasse mais notas. Queria ser milionário para ter uma casa só sua, fazer o que quisesse e “mandar em todo mundo”. O dinheiro era uma forma de deter poder e de acessar ao gozo. Além disso, brincava tanto do que nomeava coisas de menino quanto de menina. Podia ser a Xuxa ou o vilão de um filme. Continuou, tranquilamente, às voltas com a questão da diferença sexual segundo o modo que lhe era peculiar. Afinal, havia um saber sobre a verdade, mas isso não o impedia de gozar como se não soubesse. Ainda restava certa dúvida quanto ao diagnóstico estrutural do “meninoa”. Suas manifestações perversas poderiam ser apenas transitórias, e não reflexo de determinada estrutura clínica. Para saber sobre isso, era preciso verificar como a criança estava posicionada em relação ao desejo do Outro, qual significação atribuiu a esse problema. 132

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Segundo Laurent (1984/1999), há três respostas possíveis para isso, as quais podem ser encontradas no ensino lacaniano e estão relacionadas ao fato de a criança ter ocupado a posição de objeto junto ao desejo do Outro. Essa posição é estrutural e estruturante, ou seja, toda criança, um dia, encarnou o objeto para o Outro. A questão é saber em qual dimensão está essa posição. No texto “Nota sobre a criança” (1969), Lacan estabelece dois possíveis posicionamentos: a criança como sintoma e a criança como objeto do fantasma da mãe, caracterizando, respectivamente, a neurose e a psicose. Há ainda uma terceira modalidade de resposta, a criança identificada ao falo da mãe, a qual Lacan coloca do lado da perversão. Laurent (1984/1999, p. 14, tradução nossa) assinala que é preciso “ver em que sentido essa resposta da criança identificada com o falo da mãe pode ser uma perversão, dado que, mesmo com um sentido diferente, é comum à neurose e à perversão”. Deve-se, segundo o autor, superar a ambiguidade existente nessa afirmação de Lacan considerando que, em “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano” (1960), estabelece-se que a perversão inclui uma recuperação da função fálica e que, nessa estrutura, o sujeito é situado como instrumento de gozo do Outro, e não como causa de desejo. Somente a fórmula do fantasma permite orientar-se na ambiguidade ( ◊ a), fórmula que inclui o objeto a, ou seja, que esse objeto se apresenta de tal maneira que inclui o falo. Se o falo não é incluído, coloca-se, então, no horizonte a questão da psicose. Por isso, deve-se precisar as ambiguidades dessa resposta [identificação ao falo da mãe] […] considerando quando o gozo se apresenta de maneira tal que o sujeito se faz de instrumento de gozo do Outro […] (LAURENT, 1984/1999, p. 15). No caso em questão nota-se deslizamento do falo como função que obtura e sustenta a castração ao objeto a como capturador de gozo. Assim, é possível afirmar que se tratava do caso de um menino(a), que se oferecia como objeto na tentativa de restituir ao Outro o gozo perdido.

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resumo O presente trabalho evidencia tanto a construção de um diagnóstico estrutural quanto de um caso clínico. A partir das concepções de neurose, perversão, fetiche, negação e estratégia de gozo, pretende-se, por meio da apresentação de fragmentos do atendimento de uma criança, construir uma hipótese diagnóstica. Seria um caso de perversão ou de uma “posição perversa” manifestada em um estrutura neurótica?

palavras-chave Perversão; fetiche; caso clínico; criança; diagnóstico estrutural; Verneinung; Verleugnung.

abstract From the conceptions of neurosis, perversion, fetish, negation, and the strategy of jouissance, it is intended through the presentation of fragments of a child’s clinical case, to discuss the clinical structure of the subject in question. Would this be a case of perversion or that of a perverse position? The focus of the work, therefore, is both on the construction of the structural diagnostic and the clinical case itself.

keywords Perversion; fetish; clinical case; structural diagnostic; Verneinung; Verleugnung.

recebido 10/02/2016

aprovado 16/04/2016

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ensaios



O nome: Um direito ou um dever? Isalena Santos Carvalho e Daniela Scheinkman Chatelard “Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome” (Art. 16 do Código Civil). “Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu” (GOETHE, na obra “Fausto”, apud FREUD, 1913/2006, p. 160). As citações acima são norteadoras deste artigo pela consideração de que, se toda pessoa tem direito ao nome, ela precisa, de algum modo, posicionar-se em relação a ele em sua história. Precisa posicionar-se diante de uma escolha anterior ao seu nascimento, diante de algo que não teve participação alguma na decisão. Mesmo nos casos em que o Direito permite a alteração do nome, a autorização para tanto passa pela investigação da análise individual dos motivos que levaram ao pleito de sua modificação (AMORIM e AMORIM, 2010). Segundo o Código Civil (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/2002/L10406. htm), toda pessoa tem direito ao nome ao nascer. Mas o direito ao nome tem sua contrapartida, que se relaciona à história de um determinado homem, de uma determinada mulher e de uma determinada família, bem como às implicações disso no modo como a criança se contará contando sua história. Ela será, assim, convocada a responder sobre sua posição no mundo. Antes ainda que se estabeleçam relações que sejam propriamente humanas, certas relações já são determinadas. Elas se prendem a tudo que a natureza possa oferecer como suporte, suportes que se dispõem em temas de oposição. A natureza fornece, para dizer o termo, significantes, e esses significantes organizam de modo inaugural as relações humanas, lhes dão as estruturas, e as modelam. O importante, para nós, é que vemos aqui o nível em que – antes de qualquer formação do sujeito, de um sujeito que pensa, que se situa aí – isso conta, é contado, e no contado já está o contador. Só depois é o que o sujeito tem que se reconhecer ali, reconhecer-se ali como contador (LACAN, 1964/2008, p. 28).

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CARVALHO, Isalena Santos e CHATELARD, Daniela Scheinkman

No Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan, após a fala acima, apresenta a forma como um homem se enuncia: “Tenho três irmãos, Paulo, Ernesto e eu” (1964/2008, p. 28). Ainda que não seja proferido pelo autor da frase, o nome confere um lugar na família. É uma marca a partir da qual cada um ao ouvir o nome pelo qual foi nomeado pode se reconhecer como um eu. Quando nos dirigimos às crianças bem pequenas e perguntamos: “Maria, você quer água?”. Ela responde: “Quer”. A resposta “Eu quero” é posterior. Como indica Freud (1914/2006) no texto “Sobre o narcisismo: uma introdução”, os pais sentem-se inclinados a suspender, em relação ao filho, todas as restrições a que seu próprio narcisismo precisou respeitar. O filho lhes permite renovar as reivindicações aos privilégios abandonados, pois a criança “concretizará os sonhos dourados que os pais jamais realizaram” (Ibid., p. 98). Isso nos leva a inferir que não é à toa o fato de ter se tornado o processo de escolha pelos pais do prenome da criança praticamente uma saga. O filho não pode ter qualquer prenome. Deve ter um que sintetize todos os diferentes investimentos que os pais fazem na criança. É na sua vida que o filho mostrará o que pôde fazer com isso. O nome tem efeitos sobre o funcionamento psíquico. O nome tem efeitos que não se restringem ao fato de levar facilmente ao riso (“Bem Vindo o Dia de Meu Nascimento Cardoso”, “Maria-Você-Me-Mata”), de ser decorrente de junção (Raissara: Raimundo com Jussara), de estrangeirismo (Deivid, Greice) ou de envolver uma homenagem a alguém (Júnior, Neto). Tem efeitos, porque a ele respondemos quando somos chamados. Na resposta, o sujeito fica enredado à história de uma família e de uma sociedade. No Direito, sendo algo que todo cidadão deve possuir, o nome não é uma propriedade. É abordado no campo do Direito de Personalidade, tendo como função identificar e individualizar, permitindo a integração social. Como símbolo da personalidade do indivíduo, é apenas uma realidade fática aquele que não possui nome, pois o nome é uma necessidade de ordem pública (AMORIM e AMORIM, 2010). “Jamais se admitiria alguém sem nome” (Ibid., p. 25). O nome não é uma propriedade, porque não é permitida sua venda, troca, empréstimo etc. Se não é um bem como outro qualquer, pela obrigatoriedade legal de se ter um nome, há algo no nome que já no campo jurídico mostra como a noção de direito não pode ser dissociada da noção de dever. É com base nisso que este artigo se propõe a discutir a pergunta: Nome: um direito ou um dever? Para tanto, aborda sucintamente como ocorre o processo de nomeação no Brasil, a composição do nome civil e seus caracteres jurídicos. Dentre os caracteres, confere destaque ao de intransmissibilidade por seu caráter relativo no que tange ao direito do recém-nascido de receber o patronímico familiar. Por essa via é que se discute, com base em considerações de Lacan sobre a travessia edipiana e o nome próprio, como o nome é uma marca que requer uma resposta.

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O nome: Um direito ou um dever?

O nome para o Direito No campo jurídico, a questão da nomeação se encontra no Direito de Personalidade. Refere-se a prerrogativas consideradas inerentes à pessoa e a ela ligadas de maneira permanente e perpétua. No Direito de Personalidade destacam-se, além do nome, o direito à vida, à liberdade, ao corpo, à imagem e à honra. São direitos que se destinam a resguardar a dignidade humana por meio de medidas judiciais. No Direito de Personalidade é indicado que o nome integra “a personalidade por ser o sinal exterior pelo qual se designa, se individualiza e se reconhece a pessoa no seio da família e da sociedade” (DINIZ, 2002, p. 31). Envolve tanto algo que fornece uma referência, algo que particulariza, que diferencia uma pessoa de outra, quanto que situa alguém nos planos privado (família) e público (sociedade). Ao situar, viabiliza a constituição de laços de pertencimento e um ponto de partida para o desenvolvimento das relações na trajetória de vida de cada um. O vocábulo nome, no Direito, se relaciona ao nome completo (GONÇALVES, 2015). Quanto aos elementos constitutivos do nome civil, o prenome pode ser “livremente escolhido, desde que não exponha o portador ao ridículo” (DINIZ, 2002, p. 31). O sobrenome, nome de família ou o patronímico, é o que identifica nossa procedência, por indicar a “filiação ou estirpe” (Ibid., p. 31). O sobrenome é o que evidencia a que grupo ou pessoa nós estamos vinculados. O sobrenome destaca a transmissão familiar, estendendo-se aos filhos e “não ensejando qualquer discussão sobre sucessão ou hereditariedade” (AMORIM e AMORIM, 2010, p. 11). Os dois elementos (prenome e sobrenome) que compõem o nome podem ser formados de modo simples ou composto, recebendo a criança mais de um prenome (Ana Júlia) ou mais de um sobrenome (Carvalho de Melo). No entanto, por mais extenso que possa ser o nome de alguém não é permitida a ausência de termos indicativos de cada um daqueles dois elementos (DINIZ, 2002). Para Gonçalves (2015), sendo o prenome a designação do indivíduo, o sobrenome é o característico de sua família, transmissível por sucessão. Se o nome civil é signo de identidade social, o sobrenome tem nele particular relevo por situar o portador como membro de determinado grupo familiar. Denota o “traço não arbitrário, mas histórico de sua estirpe, de sua individualização social” (Ibid., p. 160). É o que o faz ter decisivo papel de ordem jurídica e prática, como componente mais importante do nome. Pelo princípio de isonomia constitucional, não mais se justifica que o oficial registre somente o sobrenome do pai no registro de nascimento do filho. Como o sobrenome tem caráter declaratório, pode também o escrivão registrar apenas o patronímico do pai ou o da mãe (GONÇALVES, 2015). O Código Civil (http://

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www.planalto.gov.br/ccivil_03/2002/L10406.htm) não traz nada sobre a obrigatoriedade de registro do sobrenome de ambos. Fica a critério da família a escolha de quais e quantos sobrenomes comporão o nome completo da criança. No campo do Direito, além da obrigatoriedade, o nome apresenta os seguintes caracteres jurídicos: indisponibilidade, exclusividade, imprescritibilidade, inalienabilidade, incessibilidade, extracomercialidade, inexpropriabilidade, irrenunciabilidade, imutabilidade relativa e intransmissibilidade. São características que impedem, por exemplo, seu empréstimo ou troca, caso dele nos cansemos. Contudo, conforme se pode perceber, nem todas são determinações absolutas. O nome não prescreverá pela ausência de seu emprego, mas há nomes que se tornam marcas comerciais. O Código Civil, inclusive, estabelece que, mediante autorização, o nome pode ser empregado em propaganda. Ainda que a pessoa física não possa perder seu nome civil, levantam-se aí questões sobre a extracomercialidade e incessibilidade do nome. Quanto à intransmissibilidade, também é algo relativo. É possível alguém obter judicialmente o direito de uso do sobrenome do outro por meio do casamento ou sua manutenção após a separação conjugal. Quanto ao filho, tema que interessa particularmente a este trabalho, é direito do descendente recém-nascido receber o patronímico de sua família. É um direito que também comparece no ato de adoção. Quando o pai não autoriza a inscrição de seu sobrenome no registro da criança, a mãe pode recorrer à justiça para a comprovação da paternidade, bem como o filho, após completar 18 anos. Nesse caso, a comprovação de que aquele é o pai biológico, com o alcance pelo filho do direito de registro do patronímico paterno em sua certidão, não é garantia de alcance de um pai. Na verdade, independentemente da forma de filiação, todas têm em comum o fato de explicitarem que o nome é uma herança, não é uma regalia. Fala de uma aliança simbólica entre a criança e os pais. Segundo Gonçalves (2015), a convivência impõe uma ordem, determinada por regras de conduta. Portanto, a definição de direito envolve a prescrição de normas que permitam a vida em sociedade em um dado país e em uma dada época. A ordem jurídica possui como premissa o estabelecimento de limites para a relação do indivíduo com outros indivíduos, aos quais todos devem “indistintamente se submeter” (Ibid., p. 19). Com isso, o referido autor define o Direito como a “ciência do dever ser” (Ibid., p. 21), apontando não se poder, com efeito, dissociar o direito público do direito privado, como se fossem antagônicos. É frequentemente difícil distinguir o interesse protegido, público ou privado. A indissociável relação entre direito e dever remete ao que Freud (1913/2006) aborda em Totem e tabu acerca da ligação a um tronco familiar pela existência de um nome em comum e da interdição do incesto instituída por uma lei simbólica. É a partir da comparação que Freud tece entre a psicologia dos povos primitivos e

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a dos neuróticos, conforme denomina no texto, que ele discorre sobre o que permite a formação do laço social para os últimos. O primitivo se reconhece como membro de um determinado clã por receber o nome do totem daquele grupo. Para os membros, há a ideia de que seu totem os protege das intempéries da vida. A proteção, em contrapartida, exige respeito ao totem. É uma relação entre direito e dever decorrente da submissão à lei simbólica; submissão representada por Freud por meio do mito da horda primeva. O remorso dos filhos pelo assassinato do pai acarreta o pacto da interdição do incesto. Sendo o totem um substituto do pai (FREUD, 1913/2006), a interdição dos desejos incestuosos mostra que a transmissão do nome do pai e o direito pelo filho de portar tal nome se articulam ao modo como cada sujeito vai poder se apropriar e arcar com os significantes do Outro. São questões posteriormente retomadas e desenvolvidas por Lacan com as noções de significante Nome-do-Pai e de metáfora paterna, noções que evidenciam que a submissão à lei na neurose não equivale a que todos se submetam “indistintamente”.

O nome próprio para Lacan Os componentes do nome indicam como ele confere um lugar, o que implica haver uma questão simbólica aí envolvida. Ao estabelecer a vinculação, inscreve e diferencia; daí não ser possível se falar em nome próprio sem se recorrer à noção de nome no campo do Direito. Do mesmo modo, é preciso abordar o nome próprio articulado à noção de significante de Lacan. O significante representa um sujeito para outro significante. Isso implica que, embora o sujeito não se confunda com o significante, não há sujeito se não houver um significante que o funde (LACAN, 1957-58/1999; 1961-62/2014). É pela função significante, conforme Lacan indica no Seminário, livro 9: A Identificação (1961-62/2014, p. 80), “enquanto ponto de amarração de alguma coisa de onde o sujeito continua”, que ele se detém na função do nome. Não é ao nomen (noun), chamado nas escolas de substantivo, a que Lacan se refere. É ao name, o nome próprio. O nome próprio não se traduz. É o que Lacan aponta no Seminário 9 com o exemplo de que Cleópatra é Cleópatra em qualquer idioma. O nome próprio se distingue por conservar sua estrutura sonora de uma língua para outra. O nome próprio revela como está coordenada a cadeia de significantes para cada um, o que Lacan nos indica quando recomenda: “Vocês sabem, como analistas, a importância que tem, em toda análise, o nome próprio do sujeito. Vocês têm sempre que prestar atenção em como se chama o paciente” (Ibid., p. 81).

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A constituição subjetiva da criança depende dos significantes que circulam em seu meio familiar. Na obra de Lacan, o que caracteriza o significante é o fato de não significar nada. O significante só pode adquirir alguma significação a partir de seu entrelaçamento a outros significantes. O significante importa na economia do desejo. Isso implica que a resposta não será a mesma para cada um nem para cada estrutura. A teorização lacaniana aponta que o desejo de cada sujeito parte do desejo do Outro. Conforme Lacan (1957-58/1999) assinala, nosso estado – na neurose ou na psicose – depende do que se desenrola no Outro. É no Outro que está o Inconsciente estruturado como uma linguagem. É notória a importância do conceito de inconsciente para a Psicanálise. Em seu retorno a Freud, Lacan articulou o conceito de inconsciente ao de linguagem, indicando o inconsciente como “a parte do discurso concreto, como transindividual, que falta à disposição do sujeito, para restabelecer a continuidade de seu discurso inconsciente” (LACAN 1953/1998, p. 260). Qual a relação das questões acima com o tema deste artigo? Quando a criança nasce, a pessoa que dela cuida – sua mãe, em geral – ocupa para ela esse lugar de Outro. É isso que possibilitará a transmissão dos significantes aos quais a criança precisará responder, “uma vez que é do Outro que o sujeito recebe a própria mensagem que emite” (LACAN, 1960/1998, p. 821). Como “nenhum sujeito pode ser causa de si mesmo” (LACAN, 1964/1998, p. 855), o Outro é para o sujeito o lugar de sua causa significante. Na transmissão, o nome confere e articula um lugar à criança em sua família e em sua sociedade. Ainda que ela questione posteriormente esse lugar, o nome em sua relação com o significante marca a passagem da dimensão da natureza para a cultura – dimensão da linguagem e do mal-estar. Quando a criança nasce, há uma série de expectativas que nela são investidas; expectativas representadas pelo nome que lhe é atribuído. Com isso, determinado nome será ou não escolhido de acordo com suas implicações para cada família. Ainda que os pais realizem um levantamento etimológico, o “significado” escolhido de um nome é atravessado por questões inconscientes, o que não quer dizer que o nome comporte um hermético destino. Implica que a nossa trajetória estará marcada pelo modo como cada um tentará responder a questão: “Que quer o Outro de mim?”. Sendo a função da linguagem, evocar (LACAN, 1953/1998): O que me constitui como sujeito é minha pergunta. Para me fazer reconhecer pelo outro, só profiro aquilo que foi com vistas ao que será. Para encontrá-lo, chamo-o por um nome que ele deve assumir ou recusar para me responder. [...] Mas, quando chamo aquele com quem falo pelo nome, seja este qual for, que lhe dou, intimo a função subjetiva que ele retomará para responder, mesmo que seja para repudiá-la (Ibid., p. 300).

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Quando chamamos alguém pelo nome, é pela aposta de que há ali um sujeito que esperamos sua resposta. Não chamar por qualquer forma de nomeação, como um apelido, é considerar que não há sinal algum de um sujeito. No Seminário: livro 5, Lacan (1957-1958/1999) descreve por meio do esquema L, o S, o sujeito, como inefavelmente estúpido, pois não tem seu significante. Está na partida à sua própria custa. Do ponto não constituído em que se encontra, terá de participar da partida com sua pele, ou seja, com suas estruturas imaginárias e tudo o que se segue. Por meio dos três tempos lógicos da travessia edipiana – que Lacan assenta nos planos da castração, da frustração e da privação –, ele mostra como, para que haja a constituição do sujeito desejante, é necessário haver a passagem da identificação imaginária ao falo à identificação simbólica ao pai. O complexo de Édipo tem uma função normativa, que não se restringe às relações do sujeito com sua realidade. Implica a “assunção de seu sexo” (LACAN, 1957-58/1999, p. 171), com todas as ambiguidades e dificuldades que isso representa para o neurótico, já que precisará assumir uma posição diante da castração. Também no Seminário 5, Lacan aborda como ocorre essa passagem. Para tanto, parte da questão: “Que é o pai?” (Ibid., p. 180). Sua resposta: “o pai é uma metáfora” (Ibid., p. 180); metáfora que se situa no inconsciente. O pai concerne a uma função, o que está no centro da questão do Édipo. A importância da revelação do inconsciente por Freud, suscitada por sua investigação da amnésia infantil, incidiu sobre a existência dos desejos infantis pela mãe, desejos que foram recalcados; desejos primordiais e, portanto, sempre presentes. Com a Verdrängung (recalque), a cadeia significante continua a se desenrolar e a se ordenar no Outro. O pai interdita a mãe para a criança. Esse é o fundamento do complexo de Édipo. Ao interditar, o pai, por seus efeitos no inconsciente, é ligado à lei primordial da proibição do incesto. O desejo se exprime e passa pelo significante. Quando cruza a linha significante, o desejo encontra o Outro. É “no nível do Outro que se situa a dialética do significante” (LACAN, 1957-58/1999, p. 184), sendo aí que convém abordar a incidência do Nome-do-Pai em cada estrutura para Lacan. É no Outro que se produz a refração do desejo pelo significante e o desejo chega como significado, diferente do que era inicialmente. Para tanto, é preciso ter o significante “Nomedo-Pai, mas é também preciso que saibamos servir-nos dele” (Ibid., p. 163). Toda história depende disso. O significante Nome-do-Pai representa no Outro o Outro como aquele que permite alcance à lei. É isso que é expresso pelo mito necessário a Freud, o de Édipo. A princípio, a criança se esboça como assujeito. Ela se experimenta como profundamente assujeitada ao capricho daquele de quem depende. Pelo assujeitamento, a relação do filho com o falo se estabelece na medida em que o falo é o objeto do desejo da mãe.

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É no plano da privação da mãe que se coloca para o sujeito a questão de aceitar ou não, de simbolizar, de dar valor de significação a essa privação da qual a mãe se revela o objeto. Isso tem efeitos na posição de assujeito da criança. O pai priva a mãe de algo que só tem existência na medida em que surge na existência como símbolo. É pela operação da metáfora paterna, com a identificação ao pai – aquele que não é, mas que tem o falo –, submetendo-se à lei simbólica, que o sujeito se constitui como sujeito desejante. Sendo a metáfora um significante que surge no lugar de outro significante, “a função do pai no complexo de Édipo é ser um significante que substitui o primeiro significante introduzido na simbolização” (Ibid., p. 180), o significante do Desejo Materno. A primeira simbolização envolve o enigma que comparece para a criança quanto às idas e vindas da mãe, movimento que determina as variações do mundo para a primeira. Para a criança, há um significado desconhecido. O significado que fica para ela quanto ao objeto do desejo da mãe que rege seu vai e vem é x, o falo. Pela identificação imaginária ao falo, a criança se encontra na posição de ser o que sacie o desejo da mãe. É o que fica recalcado com a introdução do significante Nome-do-Pai no lugar dessa primeira simbolização. O Nome-do-Pai vem apontar um para além do desejo da mãe. Acarreta à criança a percepção de que há para a mãe o desejo de Outra coisa que não é lhe satisfazer e que a criança não pode satisfazer (LACAN, 1957-58/1999). A operação da metáfora paterna instaura o desejo, sustentado pelo falo enquanto significante da falta no Outro. É o que permite ao sujeito se constituir como sujeito desejante, o que o faz demandar ao Outro, ainda que dele só possa receber de volta sua mensagem invertida. A operação institui para o neurótico o Outro como um lugar vazio. A metáfora paterna leva à instituição de alguma coisa que é da ordem do significante, cuja significação se desenvolverá mais tarde para a criança. É o que fica para o menino como título de propriedade virtual que lhe foi transmitido por seu pai, que ele sinaliza na frase: “quero ser um homem como meu pai”. A lei simbólica revela não um contrato, mas um pacto social, que institui as regras de aliança. O significante Nome-do-Pai organiza a cadeia dos significantes; daí não ter sido por acaso que Lacan não empregou significante Pai. Precisou marcar algo em torno do nome do pai que possibilita as trocas simbólicas. A transmissão do incesto instituída pela lei do pai morto rege o laço social. “O inconsciente é o capítulo da minha história que é marcado por um branco ou ocupado por uma mentira: é o capítulo censurado” (LACAN, 1953/1998, p. 260). Para o neurótico, a censura está relacionada ao recalque do desejo incestuoso, que se torna possível pela transmissão da interdição entre as gerações. Para Freud (1913/2006), em “Totem e tabu”, se os processos psíquicos não fossem continuados de uma geração para outra, cada nova geração teria que adquirir uma nova

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atitude para com a vida. Não existiria progresso, evolução. Logo, o nome se articula a uma transmissão de uma herança, uma herança psíquica. O nome evoca nossa origem. Com Freud e, particularmente, com Lacan aprendemos que não há a origem. Não há como sabermos sobre nossa origem. Não havendo como, o sujeito só pode falar de si por seu enredamento a uma história. É pelo nome que lhe é conferido, que ele, ao se contar, pode se tornar o contador. O símbolo envolve a vida do homem em uma rede tão total que conjuga, antes mesmo de seu nascimento, aqueles que irão gerá-lo. Traz em seu nascimento o “traçado de seu destino” (LACAN, 1953/1998, p. 280), que o aniquilaria se o desejo não impusesse ao neurótico manifestar algo de si nas contingências de sua vida, algo que lhe possibilite falar em nome próprio de algum modo. Em outras palavras, que ele possa tomar posse do que lhe foi transmitido à sua revelia.

Considerações finais A Psicanálise nos mostra que uma pergunta pode gerar os mais diversos desdobramentos. Logo, não se visou esgotar a pergunta norteadora da construção deste trabalho: “Nome: um direito ou um dever?”. A articulação entre o campo do Direito e questões desenvolvidas na Psicanálise por Lacan, a partir de sua profunda leitura da obra freudiana, produziu a consideração de que direito e dever não têm uma relação dicotômica. Sua relação é dialética. É dialética pelo que o ensino de Freud e de Lacan nos legou, indicando que o inconsciente é social. Um nome é dado à criança ao nascer, porque há a aposta por seus pais de que há ali um sujeito. O ato de nomear inclui a criança não apenas em uma rede de parentesco de linhas reta ou colateral. Seu nome é enlaçado por cordinhas do simbólico, o que confere um lugar na cadeia discursiva. Como ser falante, o que também faz sair da lógica dicotomizante de ser ativo ou passivo, ao responder quando chamada, a criança evidenciará como se posicionou nesse lugar. Ao se constituir como sujeito desejante, a criança poderá mostrar seu desejo de Outra coisa, que vai além do enredo e romances familiares. Como dito antes, a pergunta que embasa o presente escrito pode suscitar muitos desdobramentos. Um deles é a discussão sobre a relação entre patronímico paterno e o significante Nome-do-Pai. Outro possível desdobramento é o desenvolvimento da articulação entre nome próprio, significante, identificação e letra – articulação abordada por Lacan no Seminário 9. Ambos os pontos foram pensados ao longo da construção do artigo, porém, a complexidade da proposta de tentativa de estabelecimento do laço que se visou aqui desenvolver entre o Direito e a Psicanálise, não tornou possível um trabalho sobre aqueles neste momento. Fica, assim, a sugestão de que a discussão realizada e suas lacunas suscitem outras elaborações.

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referências bibliográficas AMORIM, J.; AMORIM, V. Direito ao nome da pessoa física. Rio de Janeiro: Campus, 2010. BRASIL. Ministério da Justiça. Código civil brasileiro. Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/2002/ L10406.htm>. Acesso em 3 jan. 2016. DINIZ, M. Código Civil anotado. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. FREUD, S. (1913). “Totem e Tabu” In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 13. Rio de Janeiro: Imago, 2006, pp. 13-162). _________. (1914). “Sobre o narcisismo: uma introdução”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 14. Rio de Janeiro: Imago, 2006, pp. 77-108. GONÇALVES, C. Direito Civil Brasileiro, volume 1: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2015. LACAN, J. (1953). “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. pp. 238-324. . (1957-58). O seminário, livro 5: As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. . (1960). “Subversão do sujeito e dialética do desejo”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. pp. 807-842. . (1961-62). O seminário, livro 9: A identificação. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife, 2014. (Versão brasileira fora do comércio). . (1964). “Posição do inconsciente”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. pp. 843-864. . (1964). O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

resumo O nome não é uma propriedade, porque não é permitida sua venda, troca, empréstimo etc. Se não é um bem como outro qualquer, pela obrigatoriedade legal de se ter um nome, há algo no nome que já no campo jurídico revela como a noção de direito não pode ser dissociada da noção de dever. É com base nisso que este artigo discute a pergunta: Nome: um direito ou um dever? Para tanto, aborda como ocorre o processo de nomeação no Brasil. Discute, com base em considerações de Lacan sobre a travessia edipiana e o nome próprio, como o nome é uma marca que requer uma resposta. Um nome é dado à criança ao nascer pela aposta de que há ali um sujeito. Seu nome é enlaçado por cordinhas do simbólico, o que confere à

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criança um lugar na cadeia geracional de sua família e na cadeia dos significantes. Como ser falante, ao responder quando chamada, a criança evidenciará como se posicionou nesse lugar. Ao se constituir como sujeito desejante, a criança poderá mostrar seu desejo de Outra coisa.

palavras-chave Nome; direito; dever; Psicanálise.

abstract The name is not a property because its sale, exchange, loan etc. are not permitted. If it is not a good like any other and due to the legal obligation of having a name, there is something in the name that already reveals in the legal field how the notion of right cannot be dissociated from the notion of duty. It is based on this assumption that the present article discusses the question: Name: a right or a duty? Therefore it discusses how the nomination process takes place in Brazil. Based on Lacan’s considerations about the Oedipal cross and the proper name, it argues how the name is a brand that demands a response. A child is given a name at birth based on the bet that there is a subject there. His/her name is woven by little strings of the symbolic, which grants the child with a place in the generational chain of his/her family and in the chain of signifiers. As a speaking being, once the child answers when called out, he/she will stress how he/she behaved in this place. As the child constitutes him/herself as a desiring subject, he/she is able to show his/her desire for Another thing.

keywords Name; right; duty; Psychoanalysis.

recebido 10/02/2016

aprovado 04/04/2016

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Elynes Barros Lima Que saber da clínica? Ou poderíamos perguntar de outro modo: que saber está em jogo na clínica, par ou ímpar? Um saber enlaçado, que faz par com o outro, ou o saber do Um sozinho, desenlaçado? Lacan (1971-72/inédito, aula de 04/11/1971), no ciclo de palestras que proferiu em Sainte-Anne, afirma “o que a psicanálise revela é um saber não sabido por si mesmo”. Esse saber inédito e surpreendente é o inconsciente, que se articula como uma linguagem. Mas qual linguagem seria essa, capaz de vincular o saber inconsciente? Lacan (Ibid.) responde dizendo que, quando fala de linguagem, “se trata de traços comuns a encontrar na alíngua (...) A linguagem de que se trata (...) é a linguagem na qual se pode distinguir o código da mensagem, entre outras coisas”. Assim, ele distingue que a fala é a função e a linguagem é o campo. Essa distinção permite que ele situe a fala como o lugar da verdade e a linguagem como o lugar da verdade mentirosa, que ele grafou como S(%), esse campo que comporta um saber, ainda que não sabido. Ímpar! Mas, como é possível a articulação desse novo saber? Como abordá-lo clinicamente? Lacan (1971-72/inédito, aula de 03/03/1972) comenta que ele é possível a partir de um novo tipo de discurso, um discurso inédito – o discurso do analista. Discurso do Mestre

ó¯ô Discurso da Histérica

÷¯ø

Discurso Universitário

õ¯ö Discurso Analista

ù¯ú

1 Este trabalho foi apresentado durante a XIV Jornada do Campo Lacaniano de Fortaleza Que saber da clínica?, em dezembro de 2015. Agradeço à psicanalista Angélia Teixeira o incentivo na escrita deste texto, fruto das discussões em sua participação no Seminário do Campo Lacaniano de Fortaleza. Agradeço também à Vanessa Rodrigues, aluna do curso de Engenharia da Computação da UFC, a “tradução” dos conceitos matemáticos que possibilitou a articulação com a clínica psicanalítica.

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LIMA, Elyne Barros

A partir desse discurso, podemos vislumbrar o que está em jogo no processo analítico, ou pelo menos deveria estar. O saber em jogo é o saber inconsciente sobre o qual o analista se apoia para dirigir a cura. Cito Lacan (1971-72/inédito, aula de 06/01/1972): O discurso psicanalítico só pode ser articulado ao mostrar que este objeto a, para que haja chance de analista, é necessário que uma determinada operação, chamada experiência psicanalítica, tenha trazido o objeto a ao lugar de semblante. Podemos extrair daí algumas observações. A primeira que me ocorre, é que para que haja experiência psicanalítica, o objeto a deve estar no lugar de semblante. De acordo com Lacan (Ibid.), quem faz isso, coloca o objeto a no lugar de semblante, é o analisante. A segunda é que suportar esse lugar de semblante e operar a partir dele depende do analista, depende de como ele próprio vivenciou em sua análise o saber inconsciente. Lacan (1971-72/inédito, aula de 03/02/1972) diz que [...] o essencial do saber do analista: é que esse lugar aí que eu chamei tetrápode ou quadrípede, no lugar da verdade tem-se o S2, o saber. É um saber que deve, portanto, ser sempre colocado em questão. Como opera, então, o analista a partir desse lugar? Que ferramentas ele usa nessa operação? Freud, nos primórdios, já nos alertava para o manejo da transferência, difícil tarefa do analista! Porém, quando bem situado, ele pode operar com a interpretação. Lacan (1958/1998, p. 597) diz que: “É, pois, pelo que o sujeito imputa ao analista ser (ser que está alhures) que é possível uma interpretação voltar ao lugar de onde pode ter peso na distribuição das respostas”. Mas o que se interpreta? Tudo o que o paciente diz é interpretável? Lacan (197172/inédito, aula de 04/11/1971) diz que a interpretação segue um princípio: “Não há uma interpretação que não diga respeito... a quê? Ao laço do que se manifesta de fala, no que vocês escutam, o laço com o gozo”. Assim, a interpretação incidiria sobre o gozo. Lacan (Ibid.) comenta ainda que há uma insistência por parte do sujeito, e que essa insistência denuncia o gozo. Ela foi vislumbrada por Freud no início de suas formulações por meio da bipolaridade: princípio de prazer e princípio de realidade. Porém, o próprio Freud chegou à conclusão que essa dupla não era capaz de dar conta do mal-estar na civilização e forjou então o conceito de pulsão de morte. Com esse conceito, Lacan (Ibid.) diz que o que Freud queria dizer é que “não há ato senão fracassado”, em suma: não há relação sexual.

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Par ou Ímpar?

E é disso que se queixam os sujeitos, é assim que chegam à análise: par! Identificados, enlaçados aos significantes do Outro, carregam amarrados em si o peso dessas identificações. O peso provém da necessidade de corresponder ao que o Outro espera dele, ou ao que ele acha que o Outro espera dele: o filho “nota dez”, ou “o número 1”, ou ainda “o zero à esquerda”; a esposa “fora de série”; o funcionário padrão; e todas as variações e combinações possíveis. A identificação é o resultado do processo de alienação. Na tentativa de dar sentido aos significantes que não querem dizer nada, o sujeito produz um significante no lugar do Outro para fazer surgir ali o sujeito do ser, para dar conta de sua falta a ser. Essa operação deixa o sujeito desfalcado, diz Lacan (1964/1998, p. 854): “será a vida sem a bolsa”. Esse é o preço da identificação, a alienação do sujeito aos significantes do Outro. Izcovich (2011-12, p. 7, tradução nossa) introduz seu seminário dizendo que: A identificação é alguma coisa que vem do outro. Ela se instala no sujeito. É alguma coisa que está no sujeito, mas que não lhe pertence completamente. Na experiência de análise isto se apresenta de um jeito evidente, ao ponto de o sujeito tentar se desembaraçar daquela parte do outro que está nele mesmo. Mas como se desembaraçar do laço identificatório? Como é possível um desenlace, uma desidentificação? É a partir da operação de separação que temos notícias do processo de alienação que funda o sujeito, porque é justamente no intervalo da cadeia que ele pode ter notícias do desejo e de sua própria falta, na forma de falta que ele supõe no Outro. A separação, que Lacan (1964/1998, p. 857) diz separare, gerar a si mesmo, imputa ao sujeito tomar partido: Par ou ímpar? No seminário O saber do psicanalista, Lacan (1971-72/inédito, aula de 04/05/1972) retoma sua fórmula não há relação sexual, “porque dos dois, cada um permanece um. Homens e mulheres estão juntos, porém cada um do seu lado”. Lacan diz que não há relação sexual, mas formula também que Há Um [Y a d’l’Un]. E então ele se pergunta se não poderíamos extrair do Há Um um conjunto que jamais foi feito para esse fim, ser um conjunto. Lacan se referia ao conjunto vazio. O Um se equivale ao conjunto vazio, na medida em quem é “reiteração de uma falta”. Assim, Lacan passa da linguística à lógica e demonstra a partir da teoria dos conjuntos o fundamento do Um como o lugar de uma falta, mas que também marca uma presença a partir da insistência, da repetição.

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LIMA, Elyne Barros

Explico melhor como se dá essa insistência, essa repetição do Um e sua relação com o conjunto vazio. De acordo com Lipschutz (1972), o conjunto vazio é por definição um conjunto em que não há elementos e que está contido em todos os conjuntos como conjunto, e também como elemento de qualquer conjunto. Na teoria dos conjuntos, por definição também, todo elemento é equivalente; o conjunto vazio, como elemento de um conjunto, não é imagem de nenhum dos elementos do outro conjunto, por ser vazio; ele é, portanto, um elemento distinto por sua diferença radical. Lacan (1971-72/inédito, aula de 04/05/1972) diz que é, pois como elemento distinto de um conjunto, que o conjunto vazio subsiste como um. E complementa: [...] no discurso analítico, o Um se sugere como estando no princípio da repetição e que então aqui se trata justamente da espécie de Um que se acha marcado por não ser nunca, quanto à teoria dos números, senão uma falta, um conjunto vazio. O conjunto vazio está presente em todos os conjuntos, porém o que sua presença marca não é outra coisa senão uma falta e ao mesmo tempo uma insistência na medida que se sua presença se impõe como repetição dessa falta marcando também uma distinção. O que a experiência psicanalítica produz é um sujeito desidentificado, desenlaçado, distinto, o Um, ímpar! É o S1 produto do discurso analítico, que surge a cada sessão; no corte da sessão, no intervalo entre uma sessão e outra; ao final de uma análise; nas sequências. Tem quatro teorias de árvore que eu conheço. Primeira: que arbusto de monturo aguenta mais formiga. Segunda: que uma planta de borda produz frutos ardentes. Terceira: nas plantas que vingam por rachaduras lavra um poder mais lúbrico de antros. Quarta: que há nas árvores avulsas uma assimilação maior de horizontes (BARROS, 2013, p. 237).

referências bibliográficas BARROS, M. de. (2013). “Seis ou três coisas que aprendi sozinho”. In: Poesia completa. São Paulo: LeYa. IZCOVICH, L. (2012). Le choix des identifications, Inédito: aula de 16 de novembro de 2011. Cours du collège de clinique psycanalytique de Paris, 2011-2012.

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Par ou Ímpar?

LACAN, J. (1971-72). O saber do psicanalista. Inédito. Publicação não comercial para circulação interna do Centro de Estudos Freudianos do Recife, 1997. . (1958). “A direção do tratamento e os princípios do seu poder”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998 . (1964). “Posição do inconsciente”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. LIPSCHUTZ, S. (1975). Teoria dos conjuntos. São Paulo: McGraw-Hill Ltda, 16ª edição.

resumo Este texto aborda o conceito do Um a partir de algumas aulas do seminário O saber do psicanalista, nas quais Lacan argumenta sobre a emergência desse conceito a partir de um novo discurso, o discurso do analista. Ele parte da lógica e demonstra por meio da teoria dos conjuntos o fundamento do Um como lugar de uma falta, mas também de uma presença que insiste como repetição. Assim, a autora usa a metáfora do par ou ímpar para abordar respectivamente a identificação e a distinção, S1, produto do discurso do analista.

palavras-chave Discurso do analista; teoria dos conjuntos; identificação; separação; S1.

abstract This paper addresses the concept of the “One” from a few lessons of the seminar “The Knowledge of the psychoanalyst”, in which Lacan argues about the emergence of this concept from a new discourse, the discourse of the analyst. He departs from the logic, and through the set theory, he explains the foundation of the “One” as a place where something misses, but also where there is a presence which insists to appear repetitively. Thus, the author uses the “even or odd” metaphor to respectively approach the identification and distinction, S1, a product of the analyst’s speech.

keywords The analyst’s discourse; One; Set theory; identification; separation; S1.

recebido 10/02/2016

aprovado 04/04/2016

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A arte da e(s)quivocação ou a arte de se esquivar pelo equívoco1 Julia A. Minaudo A arte da e(s)quivocação Este trabalho está inspirado na experiência clínica, assim como em vários aspectos a que me vejo convocada. Em um primeiro momento, este jogo que proponho com a palavra equivocação, agregando-lhe um “s” e transformando-a em e(s)quivocação, pode soar-lhes de muitas maneiras, não necessariamente igual para mim ou para outros. Sobre isso quero falar hoje, do som e sua semelhança com o sentido e de como aquilo que é equivocado permite a abertura de uma cisão a que chamarei diplomática. Vou pontuar os alcances dessa divisão no sujeito e no laço social. A esquivocação é uma arte que opera desde e sobre o sujeito, possibilitando um lugar apropriado para ele e para os demais; o sujeito é reconhecido. Como é o laço que sustenta o artista e o espectador, o louco e o Outro? É um laço provocado graças às diferenças. Existem sons com sentidos cristalizados, que tomam sempre caminhos desgastados. São vias canônicas que podem ser úteis para distrair o outro e dar lugar a uma margem de liberdade aproveitável. A esquivocação, como a arte de desviar, graças ao jogo com a semelhança, abre uma oportunidade de o sujeito apostar mais além das estruturas, fazendo um uso diferente do sentido comum.

TOC, TOCC, não é a mesma coisa … Carla estava governada por palavras impostas que a induziam ao ato: “você é horrível”, “você é a pior”, “não merece viver”. Vozes ferozes que se combinavam com olhares acusadores e gozadores. Na intenção de explicar, diz: “é uma ‘broca1 Trabalho apresentado em La Otra Escena: la voz y la mirada en el arte y el psicoanálisis – Primeiro Simpósio Interamericano da Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano”, realizado nos dias 28, 29 e 30 de agosto de 2015, em Buenos Aires

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ção’2 que não para”. A escuta recorta esse significante “brocação”, ao qual se atribuem essas vozes que então deixam de ser suas. Sessão após sessão, produzia-se uma nova invenção, que repetia a anterior; as “brocações” se iam multiplicando ou, por que não, analisando: “brocação” maior, menor, do noivo, transversal. Carla expressa que sua família a pressiona todo o tempo. Em uma entrevista comigo, sua mãe relata: “Minha psicóloga me disse que Carla é como uma mesa à qual falta uma perna”. E eu lhe respondo: “Não falta nada a Carla”. Ela passa da indignidade a estar indignada em uma posição de queixa, inédita: “Eles me põem doente”. A mania silencia as vozes. Restava-lhe solucionar uma preocupação que a inquietava: “Eu não posso ir dizendo que tinha uma ‘brocação’ na cabeça” (enquanto fala, dá pequenos golpes nas têmporas). Eu lhe pergunto: você escutou falar de TOC? “Sim, conheço uma obra de teatro com esse nome”. Investigando-se, são identificadas, nos pensamentos invasivos, obsessões e compulsões. Relata com humor ter encontrado o pai lendo sua folha com as características do TOC com cara de preocupação. Ela retruca: “Tenha cuidado, olhe que é capaz de você estar pior!” A única coisa que a atormentava era ter lido que não era curável, e lhe digo que nem Freud nem eu e muitos colegas pensamos dessa forma. Carla reconhece algo próprio na permanência do “T” nas palavras TransTorno e “Taladro” (“brocação”). A partir daí, para os outros, ela havia tido TOC, embora soubéssemos que, na realidade, seu nome a-propriado era TOCC, dois “Cs” (“Taladro” Obsessivo Compulsivo Curável). O último “C” remete a certa escritura de seu ser, é áfona, inaudível para os outros. De que lado recai o equívoco, de que lado está a iniciativa, neste diagnóstico equivocado, sendo, por sua vez, um nome a-propriado? Chamo de esquivocação esse modo de dizer que consegue fazer coexistirem essas cenas, essas ressonâncias, mas não quaisquer tipos de ressonâncias, mas aquelas nas quais se joga o ser do sujeito.

O laço, o nome próprio diplomático Como diz Colette Soler, em seu livro Lacan, o inconsciente reinventado: O fazer-se um nome que parece deixar toda a carga do nome para o sujeito [...] não deve esconder que não há autonominação, dignificando que um nome próprio [...] é sempre solidário a um laço social. Em todos os casos faz falta [...] para a nominação [...] a aposta no sujeito (SOLER, 2013, p. 114). 2 No original, taladro, a partir do significado de instrumento perfurante, que broca. (N.T.)

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Como um chiste, TOCC tem um valor de reconhecimento igual, necessita do outro para existir. Um reconhecimento que não aliena, que não se baseia na autorização: “o chiste não cria compromissos como o sonho [...]” (FREUD, 1905/1992, p. 165), mas utiliza o jogo de palavras, fazendo com que dois sentidos possam “parecer ao mesmo tempo admissíveis” (Ibid.). A bilateralidade e a duplicidade são características exclusivas do chiste. Permitem convocar (chamar, citar, conviver) duas ou mais vozes. Há chistes que trabalham com o jogo das palavras e da homofonia […] estão os que jogam com os nomes próprios (Ibid., p. 86). Pode-se aproveitar a homofonia para jogar com os nomes próprios. Freud fala desse grande disfarce que é o lugar-comum, permitindo a expressão do extraordinário do sujeito.

A pista Joyce Este é o nome da aula de 10 de fevereiro de 1976, em que Lacan encontra um caminho inédito com Joyce. Sua solução é dupla, torna admissíveis ao mesmo tempo seu desejo de ser artista e o efeito de entreter a comunidade literária mundial que continua tentando decifrar. Isso compensou exatamente seu pai que se descuidou de quase tudo, “salvo se apoiar nos... padres jesuítas, a igreja diplomática” (LACAN, 1975-76/2007, p. 86). Lacan ressalta a importância da palavra diplomacia em Joyce, tomada dos textos “Stephen Hero” e “O retrato do artista”. O que é ser diplomata? Do grego di, que significa “duplo ou dois” e ploss, “vezes”. Um diplomata é o ser que tem a faculdade de saber lidar com dois governos diversos. Dentro desses atos diplomáticos, podemos situar: t

t t t

Holbein, em seu quadro “Os embaixadores”, pintando belamente todos os objetos e avanços da ciência da época, mas também fazendo passar disfarçada, em primeiro plano, uma caveira que, à primeira vista, não vemos, símbolo da mesmíssima existência da morte. O mago que convoca o olhar para uma mão, para fazer magia com a outra, provocando esse efeito sedutor. Carla nomeando-se como TOCC e que o outro escute TOC. E Lacan quando, no final dessa aula, seguindo a pista Joyce, faz algo similar com seu próprio nome “Jacques Lacan”.

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Lacan e Joyce, dois nhome[n]s comuns Lacan resgata a insondável decisão do ser. Joyce não dá seu consentimento ao pai, mas quis que se prestasse homenagem a seu nome. Qual é esse nome? Pelo menos, temos dois: É claro que foi uma invenção haver dois nomes que sejam próprios ao sujeito, difundida no curso da história. Que Joyce também se chamasse James apenas se sucede ao uso do cognome – James Joyce, designado pelo cognome Dedalus [...]. O fato de que possamos colocar assim um monte de nomes implica apenas o seguinte – fazer entrar o nome próprio no âmbito do nome comum (LACAN, 1975-76/2007, p. 86). Sthepen Dedalus é o alter ego em vários romances de Joyce. Evoca o arquiteto, maravilhoso artesão, capaz de fabricar suas próprias asas e as de seu filho Ícaro para escapar de Creta. Seu filho des-ouviu o pai: “Não subas demasiado alto, para que o sol não derreta a cera de tuas asas, nem voes demasiado baixo para que o mar não molhe tuas penas” (GRAVES, 2004, p. 104). Ícaro se dirige diretamente ao sol, enquanto Dédalo consegue sua liberdade graças à prudência. Joyce foi um diplomata que soube manter seu voo justamente entre o sol e o mar. Joyce é, por sua vez, Dédalo. Lacan não se conforma com o louco e opera sobre seu próprio nome, continua: […] Pois bem, escutem [...] vocês já nem mais funcionam como claque [en avoir sa claque], e mesmo seu jaclaque, uma vez que lhe acrescentarei um han como uma espécie de suspiro de alívio que experimento por ter percorrido hoje esse caminho (LACAN, 1975-76/2007, p. 87). O jogo de palavras culmina com jaclaque han (que produz homofonia com Jacques Lacan). “Reduzo, assim, meu nome próprio ao nome mais comum” (Ibid.). Faz passar seu desejo, seu ensino, que deixou uma marca registrada, a de ser um homem renom[e]ado no som homofônico do mais comum. O renomear possibilita uma dupla volta, às vezes sem diploma paterno, mas com diplomacia, fazer-se um nome, “não digamos que o louco é alguém que vive sem o reconhecimento do outro [...]” (LACAN, 1955-56/1985, p. 94). Não logra gerar qualquer laço na cura, não é senão um detalhe fundamental: que esses laços estejam respaldados no respeito a seu juízo mais íntimo. Não podemos chamar justamente análise, ou arte da esquivocação, a essa relação particular com a palavra, que tem Joyce, Lacan ou o caso TOCC? Destroçá-la, descompô-la, fazer uma reflexão sobre a escritura, jogar com seu próprio nome,

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que nada mais é que a dimensão ética de cada sujeito, a liberdade do ato de seu dizer-desejar. Atrevo-me a dizer que poderia fazer algo semelhante com meu próprio nome. Tradução: Solange Mendes da Fonsêca Revisão da tradução: Ida Freitas

referências bibliográficas FREUD, S. (1905). El chiste y su relación con lo Inconsciente. Buenos Aires: Ed. Amorrortu, 1992. Tomo VII. GRAVES, R. Los mitos griegos. Buenos Aires: Ed. Ariel, 2007. LACAN, J. (1955-56). O seminário, livro 3: As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. _______. (1975-76). O seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. SOLER, C. Lacan, lo inconsciente reinventado. Buenos Aires: Ed. Amorrortu, 2013.

resumo Propõe-se jogar com a palavra equivocação, agregando-lhe um “s” e transformando-a em e(s)quivocação, para trabalhar a relação entre o som e sua semelhança com o sentido e de como aquilo que é equivocado permite a abertura de uma cisão a que chamaremos de diplomática. São pontuados os alcances que esta divisão tem no sujeito e no laço social, tomando-se vários exemplos, um caso clínico, o caso Joyce, e o próprio Lacan no Seminário 23. São propostos alguns questionamentos: Como são os laços que sustentam o artista e o espectador, o louco e o Outro? O que os provoca? Como se articulam, simultaneamente, o próprio do nome e o laço?

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palavras-chave Nome próprio; laço; diplomacia.

abstract We propose to play with the word equivocation adding to it an “s” thus changing it to e(s)quivocation (a slip that can be sorted out or avoided), so that we can work on the relationship between the sound and its sameness with meaning, and how something that is taken as mistaken allows the opening of a division we would consider as diplomatic. The effects that this division causes in the subject and in the social bond are stressed out, taking several examples like a clinical case, the Joyce case, and Lacan himself in Seminar 23. A few questions then are posed: How are the bonds that sustain the artist and the spectator, the insane and the Other? What makes such bonds to happen? How are the proper of the name and the bond simultaneously articulated?

keywords Proper name; bond; diplomacy.

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Do mel ao fel: Metamorfoses da estratégia de gozo em Roman Polanski1 Raul Albino Pacheco Filho Trauma, paradoxo e enigma incluem-se tanto na vida quanto na obra do cineasta polonês Roman Polanski, às quais não faltam o envio dos pais aos campos de concentração nazistas, os maus-tratos e espancamentos na infância, como mendigo nas ruas do gueto judaico de Cracóvia, o assassinato da esposa (atriz Sharon Tate) por uma seita de místicos fanáticos e a fuga dos EUA à Europa, para livrar-se da prisão por acusação de abuso sexual de uma menor com 13 anos de idade. Cineasta famoso e premiado, suas produções vão do lirismo romântico e dramático de Tess, ao horror de parir um filho do diabo, em O bebê de Rosemary. Bitter Moon2 (“Lua de Fel”), de 1992, não é menos impactante. Em diferentes momentos do filme, os personagens Oscar (Peter Coyote) e Mimi (Emmanuelle Seigner) revezam-se na posição de torturador e torturado, um do outro, em cenas clássicas do receituário BDSM (Bondage/Discipline, Dominance/Submission, Sadism/Masochism). E deixam o espectador hesitante quanto a como conceber o que rege as relações entre eles: busca desesperada de reencontrar o desejo por meio de uma erótica sadomasoquista? Ou tratar-se-ia de algo mais fundamental, da ordem daquilo que convocaria os psicanalistas a uma reflexão sobre a estrutura clínica dos sujeitos? Isso fica ainda mais acentuado a partir do trecho em que a trama do filme passa a incluir o casal Fiona (Kristin Scott Thomas) e Nigel (Hugh Grant), com este último sendo atraído inicialmente como testemunha curiosa, mas, progressivamente, seduzido a se envolver como participante cada vez mais explícito da erótica do primeiro casal. O fato de o autor da história do filme, Pascal Bruckner, ser conhecido por filosofar e tecer teorias controvertidas a respeito do amor em seus livros3 apenas dei1 Uma versão condensada deste trabalho foi apresentada no XVI Encontro Nacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil (EPFCL-Brasil) “Neurose, psicose, perversão: enlaces e desenlaces”, realizado em out./nov. de 2015, em Curitiba (PR). 2 Bitter Moon (filme). Direção de Roman Polanski. Roteiro de Roman Polanski, Gérard Brach, John Brownjohn e Jeff Gross. Elenco: Hugh Grant, Kristin Scott Thomas, Emmanuelle Seigner e Peter Coyote. Estúdio: Columbia Pictures Corporation (USA). Lançamento em 1992. 3 Lua de fel. Lisboa, dom Quixote, 1993 (publicado na França em 1981); A euforia perpétua: ensaio sobre o dever da felicidade. Rio de Janeiro: Difel, 2002 (publicado na França em 2000); O paradoxo

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xa a interpretação ainda mais controversa: “O amor agora é submetido ao regime da performance, ao imperativo do absoluto (...) a felicidade vira não mais um direito, mas um dever”; “submetemos nosso amor ao imperativo do absoluto... isso é desumano”; “pode-se desejar menos o outro sem querer deixar de ficar junto, porque a ternura leva a melhor sobre a exigência passional”; “sou partidário dos ‘arranjos à francesa’... grande liberdade do homem e da mulher em suas aventuras amorosas sem desmantelar a família”.4 Embora personagens de filmes não possam ser confundidos com “casos clínicos”, as obras de arte sempre constituíram leito de garimpo promissor para os psicanalistas mergulharem suas bateias. O objetivo desta apresentação é interrogar os personagens do filme, e sua trama, para uma reflexão sobre os aspectos estruturais da neurose e da perversão, apresentados por Lacan no Seminário 16. O filme acompanha os passageiros de um transatlântico deslocando-se em férias pelo Mediterrâneo, focalizando como personagens principais os casais Oscar-Mimi e Nigel-Fiona, que não se conheciam anteriormente à viagem. Nigel vêse atraído por Mimi, que se insinua sensualmente para ele. Na sequência, Oscar aborda-o de modo provocativo: “Ela é uma armadilha para homens. Veja o que me fez (mostrando a paralisia das pernas). Você quer trepar com ela, não? É exatamente o ouvinte que eu procurava. Espero que ache minha história interessante”. A partir daí, interpola-se na trama um relato de Oscar, em primeira pessoa, sobre sua vida amorosa com Mimi. Dada a inviabilidade de um relato exaustivo do enredo, tomo este personagem como foco de consideração, já que ele é o narrador da maior parte da trama e é de sua posição que a maior parte dos acontecimentos nos é apresentada. Além disso, ele me parece ser um alter ego de Pascal Bruckner, no que se refere às suas posições sobre felicidade, amor, casamento, desejo e paixão. “A eternidade, para mim, começou em Paris, um dia. (...) Eu vislumbrava o paraíso. (...) Nada jamais superou o êxtase daquele primeiro despertar. Eu podia ser Adão com o gosto da maçã ainda fresco na boca. Uma forma feminina incorporava toda a beleza do mundo. Eu soube, com cega certeza, que era isso mesmo.” O relato de Oscar sobre o início da relação com Mimi é interpolado com imagens do idílio romântico e sexual do casal, como a cena dos dois dançando a sós, apaixonados, no apartamento. Ou outra em que ela bebe iogurte direto da garrafa e, em seguida, o derrama sobre os seios, para que ele os lamba e beije, excitado e enternecido. Ele prossegue sua narrativa, evoluindo para os episódios sexuais mais explícitos: “Sua vagina era uma pequena fenda discreta e pura. Mas quando minhas carícias excitavam o animal dentro dela, ela afastava a cortina de amoroso. Rio de Janeiro: Difel, 2011 (publicado na França em 2009); Fracassou o casamento por amor? Rio de Janeiro: Difel, 2013 (publicado na França em 2010). 4 Entrevista concedida para o jornal Folha de São Paulo, em 12/10/14.

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Do mel ao fel: Metamorfoses da estratégia de gozo em Roman Polanski

seda que cobria sua toca e virava uma flor carnívora. Uma boca de bebê sugando meu dedo avidamente. Adorava excitar seu clitóris com a ponta da minha língua”, conta rindo do embaraço de Nigel. “Ora, Nigel, não fique tão chocado. Só dou detalhes para mostrar como estava escravizado de corpo e alma por essa criatura cujos encantos o impressionaram.” Ao paraíso da paixão dos primeiros tempos, seguiu-se o receio do esvanecimento do desejo: “As estações iam e vinham e o rosto de Mimi ainda tinha mil mistérios para mim. Seu corpo, mil doces promessas. Mas, no fundo da minha mente, havia o medo de que já havíamos chegado ao topo do nosso relacionamento e de que agora ele começaria a desmoronar”. Segue-se um período de tentativa desesperada de sustentação da relação e do desejo por meio de uma sexualidade que simula a ausência de limites, à qual não faltam todas as cenas clássicas do receituário BDSM. “Rastejei como um lunático (a imagem mostra Mimi urinando sobre a TV), me coloquei entre suas pernas e me virei. Na hora, fui envolvido por uma cascata dourada e quente que me inundou a face, encheu minhas narinas, atingiu meus olhos. E então algo fez meu cérebro vibrar intensamente. (...) Nigel, meu Deus, cara. (...) Era meu Nilo, meu Ganges, minha fonte da juventude. Meu segundo batismo. Nigel, estou expandindo seus horizontes sexuais.” “Nada pode ser obsceno em um amor assim.” Sucedem-se as cenas de sadomasoquismo sexual do casal: Mimi representando a dominatrix, de botas e roupa de borracha negra brilhante, chicoteando Oscar, sufocando-o ou cortando-lhe as roupas íntimas com uma navalha. “Nós nos fechamos com nossos brinquedos semanas a fio, jamais saindo, vendo somente um ao outro.” “Era querer demais de qualquer casal. Eu também a amava, mas estávamos caminhando para uma falência sexual.” Prosseguem as cenas, mas agora com o tédio inserindo-se nos jogos sexuais: Oscar de meias, calcinhas femininas e máscara de porquinho e Mimi chicoteando-o. “Estragou tudo. Porco não fala”, diz Mimi interrompendo a brincadeira. “Sabe de uma coisa, também não acredito”, diz Oscar desolado. “Pronto, finalmente o encanto estava desfeito.” A débâcle do desejo e a agressividade inserem-se, então, no cotidiano das relações, até o auge da violência física. “Devíamos ter terminado aí. Os casais deviam se separar no auge da paixão. E não esperar até o inevitável declínio. Meu desejo por ela havia começado a diminuir! Aí estava ela deitada, nua, maravilhosa, voluptuosa e nada significava para mim. Ressentia-me o fato de ela não me excitar mais como antes”, diz Oscar, enquanto a imagem do filme mostra-o olhando, entediado, Mimi dormindo nua na cama. “Antigamente gostava da minha bunda”, diz Mimi, ante a indiferença de Oscar em relação ao seu vestido provocante. “Não me ama mais.” Oscar continua sua narrativa para Nigel, enquanto as cenas mostram as imagens. “Beije-me. Assim não. Abrace-me”, diz Mimi. Oscar: “Apertava meus lábios

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FILHO, Raul Albino Pacheco

sobre os dela como se amassasse um cigarro em um cinzeiro. Era o prelúdio do ato menos original conhecido pelo homem. O processo chamado de cópula. Sentia-me como um rato em uma armadilha. As pessoas se divertiam lá fora, dançavam, faziam amor. Eu queria variedade. Tinha fome de barulho e excitação” (diz enquanto a imagem o mostra olhando pela janela, pessoas encontrando-se e divertindo-se na rua). Repete-se a cena em que Mimi bebe iogurte direto da garrafa, mas agora Oscar irrita-se: “Precisa beber assim? Por que não usa um copo?” Mimi responde: “Dá na mesma”. Oscar retruca: “A aparência, não”. Seguem-se cenas de um período em que Oscar maltrata e humilha Mimi moral e fisicamente, ao mesmo tempo em que se culpa e sente remorsos por maltratá-la, sem coragem de se separar. “Que noite linda! Gostaria que durasse para sempre” (Mimi). “Para sempre é muito tempo” (Oscar). “Quando algo é bom não quer que dure para sempre?” (Mimi). “Claro, mas as coisas boas nunca duram. Esperava que você tomasse a iniciativa, mas parece feliz em deixar que as coisas se arrastem assim. (...) Estamos aviltando um ao outro. Preservemos uma bela recordação. Vamos nos separar” (Oscar). “Mas eu amo você. Só quero você. Quero me casar com você. Quero lhe dar filhos. Quero lhe dar o resto da minha vida. (...) O que eu fiz de errado? Até a um criminoso se diz qual é o seu crime” (Mimi). “Você não fez nada. Você existe, só isso” (Oscar). “(...) Não consigo viver sem você” (Mimi). “Terá de viver” (Oscar). “Não vou” (Mimi). “Já discutimos isso, procure amigos, divirta-se, em alguns dias estará grata pela minha iniciativa” (Oscar). (...) “Suporto tudo para ficar às vezes com você (ajoelhada em frente a ele). Pode gritar comigo, bater em mim. Pode ter outras mulheres, mas, por favor, mesmo se não me ama mais, fique comigo por piedade (beijando seus joelhos) suplico.” [Interpolação de pensamento de Oscar] “Todos têm traços de sadismo. Se ela queria viver num inferno, eu o tornaria tão quente até que ela saísse.” Prosseguem as cenas da deterioração da relação entre Oscar e Mimi. Ele a maltrata, troca seu nome ao transarem, caçoa dela e a humilha na frente de outras mulheres. Ela se submete passivamente e, progressivamente, vai descuidando-se da aparência, desleixando-se, enfeando-se e limitando-se a cuidar da casa. “Pare de bancar a mártir. Tire isso da cabeça (pano amarrado sobre os cabelos); fica ainda mais feia. Tenho vergonha de ser visto com você” (Oscar). Depois de forçar Mimi à interrupção de uma gravidez desejada apenas por ela, abandona-a finalmente em uma decisão unilateral, sem ao menos comunicar-lhe antecipadamente. Segue-se um tempo de vida boêmia de Oscar, com diversas mulheres [“chafurdava em carne feminina como um porco num chiqueiro. De cama em cama. Várias mulheres”], até que fratura o fêmur em um acidente de automóvel. “Tive mais sorte do que merecia”, exprime, a Nigel, sua culpa. Mimi visita Oscar, ferido

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no hospital, e, em uma discussão, derruba-o da cama e deixa-o com uma lesão irreversível: “Tenho boas e más notícias... Você está paralisado da cintura para baixo... essa é a boa ... a má notícia é que vou cuidar de você de hoje em diante”. Tornam a morar juntos, com Oscar limitado a locomover-se em uma cadeira de rodas e dependente da ajuda de Mimi [“Veio morar comigo com uma estranha devoção. Era minha cozinheira, minha governanta, carcereira e enfermeira”]. Nesse novo período da relação, agora é Mimi que reveza Oscar na posição de torturadora, vingando-se dos acontecimentos do período anterior. “Sei que mereço isso tudo. Tratei você como um monstro. Prometo nunca mais machucá-la” (Oscar). “Você me machucar? Muito engraçado” (diz Mimi, rindo). (...) “Sou um verme, me desprezo” (Oscar). Mimi o humilha de variadas formas, o trai com homens diversos e caçoa dele. “Eu me acostumara a ser apenas meio homem, mas naquela noite cheguei ao fundo do poço” (diz Oscar, enquanto a imagem do filme mostra a cena dela levando outro homem para casa, acariciando-o sexualmente na frente dele e, finalmente, transando com a porta do quarto aberta, enquanto um Oscar, devastado, escuta os gemidos de prazer sentado na sala em sua cadeira de rodas. As imagens do filme mostram a sequência em que Oscar casa-se com Mimi. “Parecíamos os sobreviventes de uma catástrofe tão terrível, que criou um elo entre nós (diz Oscar a Nigel, mostrando-lhe a aliança de casamento). (...) A poeira assentou, mas receio perder o que restou do coração dela para um felizardo. Demos uma volta completa. É estranho confessar isso a quem espera ser esse felizardo. Não negue... nesta cabine só há lugar para um hipócrita. Pode ir (com ela). Não há nada a dizer.” O filme continua em uma sequência de acontecimentos surpreendentes e inesperados das relações entre os dois casais (Oscar-Mimi e Nigel-Fiona), até o final, em que Oscar mata Mimi – “Fomos gananciosos demais, anjo. Só isso” – e se suicida. Oscar concentra elementos fenomenológicos que, pelo senso comum, poderiam sugerir uma perversão. E que, pelo DSM 5 (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2013), conduziriam ao diagnóstico de múltiplos transtornos (comorbidade), entre os quais alguns da categoria de parafilia: fetichismo, sadismo sexual, masoquismo sexual, travestismo fetichista etc. Mas a formalização do ordenamento topológico estratificado do Outro, a partir do furo do objeto a, e o funcionamento desse lugar vazio como polarizador e núcleo de atração de gozo – a partir do que Lacan definiu a função mais-de gozar –, me levam a preferir seguir a pista de uma neurose. Não pretendo fazer uma “psicanálise aplicada” rastaquera e simplista, lembrando que, em psicanálise, mesmo em se tratando de um caso clínico real, um diagnóstico é sempre uma “hipótese de trabalho” orientadora na direção do tratamento. Consequentemente, posso admitir sem grandes resistências que outra hipótese possa ser explorada, para se abordar o personagem Oscar.

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Mas, como disse acima, meu objetivo é apenas usar o filme e a análise do personagem como instrumento para refletir sobre aspectos distintivos das estruturas da neurose e da perversão; e, sendo assim, sigo o que me parece mais plausível. Desde a origem da psicanálise, a diferença entre perversão e neurose afirmou-se como tema importante. Freud o inaugurou com a conhecida fórmula da neurose como o negativo da perversão, mas não sem esclarecer que há algo de perverso na vida sexual de todo neurótico e, mais amplamente, de todo ser humano. Todos os psiconeuróticos são pessoas de inclinações perversas fortemente acentuadas, mas recalcadas e tornadas inconscientes no curso de seu desenvolvimento. Por isso suas fantasias inconscientes exibem um conteúdo idêntico ao das ações documentadas nos perversos, mesmo que eles não tenham lido a Psychopathia Sexualis de Krafft-Ebing [...]. As psiconeuroses são, por assim dizer, o negativo das perversões (FREUD, 1905 [1901]/1987, p. 45). Ao demonstrar as moções perversas enquanto formadoras de sintomas nas psiconeuroses, aumentamos extraordinariamente o número de seres humanos que poderiam ser considerados perversos. Não é só que os próprios neuróticos constituam uma classe muito numerosa, há também que levar em conta que séries descendentes e ininterruptas ligam a neurose, em todas as suas configurações, à saúde; por isso Moebius pôde dizer, com boas justificativas, que todos somos um pouco histéricos. Assim, a extraordinária difusão das perversões força-nos a supor que tampouco a predisposição às perversões é uma particularidade rara, mas deve, antes, fazer parte da constituição que passa por normal (Ibid., p. 174). Mais adiante vislumbrou o simplismo maniqueísta dessa fórmula, e na sua concepção sobre a construção do fetiche (FREUD, 1927/1987) apresentou um processo cuja complexidade não ficava nada a dever ao da construção da fantasia dos neuróticos. Ambos, perversos e neuróticos, visam ao manejo da castração, ainda que por vias distintas. No Seminário 7, Lacan (1959-60/2008) segue a pista freudiana e mostra que a diferença entre ambas não se resolve por uma oposição simples entre presença e ausência da fantasia, como lastro imaginário para sustentação da articulação simbólica. Além do mais, algo de perverso existe tanto na fantasia dos estruturalmente perversos, quanto dos neuróticos. Para avançar na diferença entre ambos, recorre à conhecida formulação do giro de 90o no esquema da fantasia, como aparece também em “Kant com Sade” (LACAN, 1963/1998).

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Fig. 1: Esquema referente a Sade (fantasia do neurótico) (p. 790)

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Fig. 2: Esquema da fantasia do herói sadeano (fantasia do perverso) (p.786)

Não por acaso, é também no Seminário 7 que ele se vê convocado a aprofundar a reflexão sobre algo mais opaco e que oferece uma dificuldade mais radical, no trabalho de análise, à elaboração de um saber sobre o inconsciente. Daí a retomada da distinção entre Dingvorstellung e Sachevorstellung, no Projeto de 1895 de Freud (1950 [1895]/1987), e o recurso à metáfora heideggeriana do vaso, para pensar a Coisa freudiana: esse “objeto feito para representar a existência do vazio no centro do real que se chama a Coisa, esse vazio, tal como ele se apresenta na representação” (LACAN, 1959-60/2008, p. 148).

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Sabemos dos novos avanços a esse respeito nos Seminário 10 (1962-63/2005) e 11 (1964/1988): a construção teórica do objeto (a), como “resto” não simbolizável da entrada na linguagem, e a proposição das operações de alienação e separação. Mas a exigência de novos desenvolvimentos teórico-clínicos não se extingue, e Lacan dedica-se, na sequência, a buscar uma solução para o real do gozo mais apropriada do que os empréstimos à termodinâmica, com que Freud tentou dar conta do “além do princípio do prazer”. E sabemos como é, por homologia com a mais-valia de Marx, que no Seminário 16 (1968-69a/2008) ele se inspira para teorizar a função mais-de-gozar do objeto (a). O Seminário 16 permite avançar e aprofundar, ainda mais, o entendimento das estruturas e dos tipos clínicos. O essencial na perversão “é a função de um suplemento, de algo que, no nível do Outro, interroga o que falta no Outro” (Ibid., p. 246) e o oferece. É pelo gozo do Outro que o perverso zela: ele é aquele que se consagra a tapar o buraco no Outro, ele está do lado do fato de que o Outro existe. É um defensor da fé. “A perversão é a restauração, como que primordial, a restituição do objeto a ao campo do A. (...) É a estrutura do sujeito para quem a referência da castração, isto é, o fato de a mulher se distinguir por não ter o falo, é tamponada, mascarada, preenchida pela operação misteriosa do objeto a” (Ibid., p. 283). Quanto ao neurótico, o significado do A como barrado, marcado por sua falha lógica, vem expressar-se plenamente: ele não mascara o que acontece com a articulação conflituosa no nível da própria lógica. Para ele, como é o caso de Oscar (assim proponho), deve existir, em algum lugar, “uma relação não de suplemento, mas de complemento no Um” (Ibid., p. 252). Teria existido, anteriormente, uma relação primitiva de pseudocompletude com a mãe (suposto/imaginário complemento no Um) – o paraíso perdido da “ilusão retroativa de um narcisismo primário” (Ibid., p. 253) –, que, de fato, nunca existiu, mas pelo qual o neurótico luta, buscando reencontrar. Ele quer ser o Um no campo do Outro. E isso Oscar não pode encontrar na relação com Mimi, uma vez ultrapassado o fascínio do período de apaixonamento. Como afirma Martinho em sua profunda e abrangente tese de doutorado “Perversão: um fazer gozar”, “a diferença entre a neurose e a perversão se explicita na estratégia de gozo que o sujeito utiliza na relação com o seu parceiro” (MARTINHO, 2011, p. 6). Oscar é um homem dilacerado pela incapacidade de sustentar o desejo pela mulher que, um dia e por um certo período de tempo, o fez conhecer a plenitude da paixão e da satisfação sexual e a integração do amor com o sexo. Em “Sobre a mais generalizada degradação da vida amorosa”,5 Freud propôs que “se o psicanalista clínico indagar a si mesmo qual perturbação leva as pessoas 5 Usei o título da edição Amorrortu das Obras completas de Sigmund Freud (FREUD, 1912/1986, p. VIII).

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com maior frequência a procurarem-no em busca de auxílio, ele será compelido a responder – deixando de lado as diversas formas de angústia6 – que consiste na impotência psíquica” (1912b/1987, p. 106). Não se trata de uma incapacidade de ereção do pênis ou de realização do ato sexual, já que esta estranha perturbação atinge homens de natureza intensamente libidinosa e com “forte propensão psíquica” a realizar o ato sexual. A primeira chave de entendimento do problema se obtém quando o próprio paciente se dá conta de que sua inibição só surge com determinada (ou determinadas) pessoas. Trata-se de alguma propriedade do objeto sexual, aquilo que produz, no interior do indivíduo, um impedimento e uma vontade contrária, os quais conseguem perturbar seu propósito consciente. A explicação proposta por Freud aponta na direção de complexos psíquicos subtraídos à consciência do indivíduo, responsáveis pela dificuldade de viabilizar a confluência das duas correntes – a “afetiva” e a “sensual”7 –, necessária para assegurar uma vida amorosa plena. (Ibid., p. 107). Defrontamo-nos aqui, portanto, com as articulações enigmáticas e conflituosas entre o objeto do desejo sexual e o objeto do amor dos seres humanos. Se a clínica de Freud incluiu preponderantemente homens com essa queixa, isso deve ser posto na conta dos preconceitos e discriminações de gênero da Áustria vitoriana e não a uma exclusividade masculina, no que diz respeito às dificuldades para lidar com o amor, o sexo e o obscuro e insondável “objeto do desejo”. Afirmar que a “frigidez feminina” tinha mais dificuldade para se apresentar como queixa (sintoma) principal de início de tratamento, do que a “impotência psíquica masculina”, na clínica psicanalítica da época vitoriana, seria outra maneira de dizer a mesma coisa. O que constitui um nó para o neurótico é que seu desejo só consegue se sustentar pela demanda. Oscar é um personagem atormentado pela impossibilidade de obter o controle sobre seu desejo. Como diz Lacan em “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano” (1960/1998), o neurótico é aquele que não dá conta de responder quem ele é, esgotado seu cogito (Ibid., p. 834). À ausência de resposta para a questão “Quem sou?”, e à insciência do seu desejo – que “é menos insciência daquilo que ele demanda (...) do que insciência a partir da qual ele deseja” –, o neurótico reage recorrendo ao Outro com o “Che vuoi?” (Que quer ele de mim?) (Ibid., p. 829) e brandindo a fantasia como escudo contra o real. “Assim se explica que seja entre o campo do eu, tal como ele se ordena especularmente, e o do desejo, no que ele se articula em relação ao campo dominado pelo objeto a, que se joga o destino da neurose” (LACAN, 1968-69a/2008, p. 284). 6 Substituí o termo “ansiedade”, empregado na Edição standard brasileira, pelo termo “angústia”, empregado na edição da Amorrortu (FREUD, 1912/1986, op. cit., p. 173). 7 Na edição da Amorrortu, os termos empregados são “corrientes tierna y sensual” (FREUD, 1912/1986, op. cit., p. 174).

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“O gozo sexual, em relação a todos os outros, tem o privilégio de que alguma coisa no princípio do prazer, o qual sabemos constituir a barreira ao gozo, mesmo assim deixa um acesso a ele. (...) Mas o gozo sexual não está no sistema do sujeito. Não há sujeito do gozo sexual” (Ibid., p. 311). O falo é o significante fora do sistema, que designa aquilo que é radicalmente foracluído do gozo sexual. Por isso o gozo reaparece no real: “o gozo é absolutamente real, porque, no sistema do sujeito, ele não é simbolizado nem simbolizável em parte alguma” (Ibid.). Vem daí a ubiquidade do mito de Édipo e o fato de que “todo mundo continua a acreditar que o complexo de Édipo é um mito aceitável” (Ibid.). Mas ele só o é porque aponta para um lugar em que se situaria o enigma de um gozo absoluto: o Pai Primevo. O fato de o neurótico buscar um mito como tentativa de resposta a esse enigma já indica que ele não sabe de que gozo se trata: é o do Pai, ou o de todas as mulheres, as quais ele confunde em seu gozo? É isto que Lacan assinala, ao lembrar que “foi o gozo feminino que sempre permaneceu, na teoria, (...) em estado de enigma analítico” (Ibid.). Quanto à função fálica, embora não represente o sujeito, “parece marcar, como campo limitado da relação do gozo com o que se estrutura como o Outro, um ponto de sua determinação” (Ibid.). A eclosão de uma neurose [l’éclosion de la névrose]8 ocorre no momento exato da intromissão positiva de um gozo autoerótico na criança, no qual, correlativamente, produz-se a positivação do sujeito como dependência do desejo do Outro (o anaclitismo). Esse é o ponto de entrada pelo qual a estrutura do sujeito constitui um drama. Graças à relação positiva do sujeito com o chamado gozo sexual, mas sem que por isso se assegure de modo algum a conjunção sexuada (“Não há a relação sexual”), aparece o desejo de saber. É na medida em que “isso é outra coisa”, que vemos o que acontece quando o jovem sujeito precisa responder aos efeitos que se produzem pela intromissão da função sexual em seu campo subjetivo (Ibid., p. 312). Falamos aqui da irrupção de um gozo dentro da posição anaclítica, reavivando-a. No ponto de impossibilidade introduzido pela proximidade da conjunção sexual – no momento em que, então, “eclode” a sua neurose —, o neurótico é aquele que “escolhe” [le choix de la névrose] projetar esta impossibilidade em termos de insuficiência. Essa impossibilidade, a insuficiência a mascara e a desvia de ter que se exercer, considerando que o sujeito não está forçosamente à altura dela, como ser vivo e reduzido a suas próprias forças (Ibid., p. 322). A insuficiência é o álibi do sujeito 8 Atente-se, a seguir, para a distinção feita por Lacan entre eclosão, escolha e desencadeamento da neurose, no Seminário 16. Quem tiver interesse em aprofundar a maneira pela qual Freud e Lacan abordam a questão do desencadeamento e da causa em suas obras pode recorrer à ampla e consistente investigação apresentada por Gianesi em “Causalidade e desencadeamento na clínica psicanalítica” (GIANESI, 2011).

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para se esquivar da impossibilidade. Daí a culpa e o remorso de Oscar: “Sou um verme, me desprezo”. Terminado o encantamento da paixão, e incapaz de sustentar o imaginário do complemento no Um (fazer Um com o Outro, ser o Um no campo do Outro), ele permanece estacionado na posição de insuficiência e seu horizonte restringe-se e limita-se aos sintomas do desencadeamento [déclenchement]9 de sua neurose. Vemos isso em sua paralisação e passividade, como na resposta à interpelação de Nigel “Você é cafetão?”: “Não a censuro por procurar o que já não posso lhe oferecer”, responde Oscar. Ele não consegue sair do lugar, nem mudar sua posição de gozo: seja para transformar sua relação com Mimi, seja para dela se separar. Sua depressão deve ser entendida no sentido da “covardia moral”, tal como é apresentada por Lacan em “Televisão” (1974/2003), inspirando-se em Dante e Espinosa. “Covardia moral”, que não implica um julgamento moralista sobre o seu caráter e sim um parecer sobre sua recusa ética de um saber que o referencie na estrutura simbólica, na realidade fantasmática por ela estruturada (em que ele se aliena), e em seu gozo, no inconsciente. Nas palavras do próprio Lacan: A tristeza, por exemplo, é qualificada de depressão, ao se lhe dar por suporte a alma [...]. Mas esse não é um estado de espírito [état d’âme], é simplesmente uma falha [faute] moral, como se exprimiam Dante ou até Espinosa: um pecado, o que significa uma covardia moral, que só é situado, em última instância, a partir do pensamento, isto é, do dever de bem dizer, ou de se referenciar no inconsciente, na estrutura (LACAN, 1974/2003 p. 524). A possibilidade de resolução do problema de Oscar, com a saída da autorrecriminação e autocomiseração paralisantes, não “se limita ao esgotamento das identificações do sujeito, isto é, daquilo pelo qual ele se reduziu ao Outro” (LACAN, 9 A tradutora da versão brasileira dos Escritos (LACAN, 1966/1998) assinala: “Reservamos o termo ‘desencadeamento’ para déclenchement, essencial ao tratar-se de psicose” (p. 590). Eu entendo que não se trate de uma prerrogativa da psicose, pois a noção de “desencadeamento” também é fundamental para a abordagem da neurose (assim como as noções de “eclosão” e “escolha”. Aliás, as diversas formas verbais do verbo “desencadear” são empregadas, nos Escritos e também na versão brasileira oficial de diversos Seminários, para traduzir o verbo déclencher, seja quando se refere à psicose, à neurose, ao sintoma, a figuras clínicas (fobia) e sintomas específicos (p. ex., delírio). Há, porém, ocasiões em que o verbo “desencadear” também é empregado para traduzir as formas verbais de déchaîner: ao que parece, quando Lacan o emprega no mesmo sentido anteriormente assinalado para déclencher. Veja-se, p. ex., a página 296 da versão brasileira do Seminário 16 (LACAN, 1968-69a/2008), em que se traduziu “déchaînement du symptôme” (LACAN, 1968-69b, edição francesa Staferla, p. 159) por “desencadeamento do sintoma”. Considerem-se os sentidos apresentados em “Dictionnaires Le Robert” para os dois verbos: A) déclencher: 1. Déterminer la production de (un phénomène) par un mécanisme, 2. Déterminer brusquement (une action, un phénomene) → provoquer, commencer. (LE ROBERT, 1988, p. 323). B) déchaîner: 1. Donner libre cours à (une force). → provoquer, soulever, ameuter. (Ibid., p. 321).

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1968-69/2008a, p. 269). A prática analítica nos ensina que ali, onde lidamos com o sintoma, é mister desvelar e desmascarar a relação com o gozo, “que é nosso real uma vez que está excluído”. Esses são os três termos (os três suportes) em que se requer situar a experiência psicanalítica. Trata-se de vertentes idênticas às redes em que se encontra preso o sujeito que vem em busca de um analista: “o gozo como excluído, o Outro como lugar em que isso se sabe, e o objeto a, que é o pivô da história” (Ibid., pp. 315-316). É da lógica entre os três que Lacan extrai sua abordagem das estruturas clínicas no Seminário 16. Por isso, ele pode afirmar que “é com ele [objeto a] que é preciso acabar [a análise], no nível da neurose – [o que não exclui o atravessamento da fantasia] –, para que se revele a estrutura do que se trata de resolver; ou seja, o significante de A barrado, a estrutura pura e simples” (Ibid., p. 285). Este é o enigma para resolver (ou dissolver) em uma análise, instigante como a frase do cartaz com o corpo de uma mulher, deitada, provocantemente seminua, cuja imagem se esconde ou se insinua em locais e momentos diversos, no filme: “Honni soit qui mal y pense”. “Desprezado seja aquele que pense mal disso”

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resumo Assim como outras realizações de Roman Polanski, “Lua de Fel”, de 1992, é um filme impactante. Em diferentes momentos do filme, os personagens Oscar e Mimi revezam-se na posição de torturador e torturado, em cenas clássicas do receituário BDSM (Bondage/Discipline, Dominance/Submission, Sadism/Masochism). Busca desesperada de reencontrar o desejo por meio de uma erótica sadomasoquista? Ou tratar-se-ia de algo mais fundamental, da ordem da estrutura clínica dos sujeitos? O enigma se acentua com a entrada do casal Fiona e Nigel, na trama do filme. O fato de o autor do romance ser Pascal Bruckner, conhecido por filosofar e tecer teorias sobre o amor, apenas deixa a interpretação ainda mais controversa. Embora personagens de filmes não sejam “casos clínicos”, as obras de arte sempre foram fonte promissora para a reflexão dos psicanalistas. Esta apresentação interroga os personagens de “Lua de Fel” e sua trama, visando a uma reflexão sobre os aspectos distintivos estruturais entre neurose e perversão.

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O ordenamento topológico estratificado do Outro (esburacado pelo objeto a), o funcionamento desse lugar vazio como núcleo de atração de gozo e a função mais-de gozar – apresentados por Lacan no Seminário 16 – permitem avançar o entendimento das estruturas clínicas da neurose e da perversão.

palavras-chave Neurose; perversão; estrutura clínica; gozo, objeto a; topologia; seminário 16.

abstract As much as other works in Roman Polanski’s curriculum, “Bitter Moon”, from 1992, exhibited in Brazil as “Lua de Fel”, is a striking movie. At different moments in the footage, the characters Oscar and Mimi trade themselves in the position of torturer and tortured of each other in classical scenes of the recipe BDSM (Bondage/Discipline, Dominance/Submission, Sadism/Masochism). A desperate search to re-encounter the desire through an erotic sadomasochist woman? Or is it all about something more crucial, of that type of thing that would invite analysts to reflect about the clinical structure of the subjects? This becomes clearer from the part do the movie in which the plot includes the couple Fiona and Nigel. The fact of the author of the romance, Pascal Bruckner, on which the film is based being known for philosophizing and coming up with theories about love, just makes interpretation even more controversial. Although film characters are not to be confused with “clinical cases”, art works have always become a source of potential search for psychoanalysts to go deeper in their stories. The objective of this work is to interrogate the characters from “Bitter moon” and its plot, aiming at a reflection about the distinctive structural aspects between neurosis and perversion. The topological stratified ordering of the Other, perforated by the object a and the functioning of this empty place as a polarizer and core of jouissance attraction – from what Lacan defined the function more-of jouissance – allows them to advance and go deeper into a larger comprehension of the clinical structures of neurosis and perversion.

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Do mel ao fel: Metamorfoses da estratĂŠgia de gozo em Roman Polanski

keywords Neurosis; perversion; clinical structure; jouissance; object a; topology; Seminar 16.

recebido 09/02/2016

aprovado 22/03/2016

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trabalho crĂ­tico com conceitos



Psicologia das massas: Método analógico? Beatriz Elena Maya “Psicologia das massas e análise do eu” é um dos textos de Freud mais convocados para chamar a psicanálise a se ocupar do social, poderíamos dizer, dos laços sociais. Voltar a ele com o olhar de Jacques Lacan nos permitirá tornar relativa a demanda que se faz aos psicanalistas, ou melhor, dar um justo lugar a seu ato, sem que perca sua especificidade. Para isso, comecemos com uma citação do Seminário 19... ou pior, no qual Lacan (1971-72/2011, p. 167) diz o seguinte: Uma coisa é evidente: o caráter-chave, no pensamento de Freud, do todos. A noção de massa, que ele herda desse imbecil do Gustave Le Bon, lhe serve para entificar esse todos [...]. Toda essa psicologia de algo que se traduz por massas perde aquilo que trataria de ver aí, com um pouco de sorte, a natureza do não todos que a funda [...]. Qual é a crítica evidente que Lacan faz a esse texto de Freud? O que é que ele descobre como algo que não vai na lógica da psicanálise que o próprio Freud fundou? Como voltar ao texto de Freud com semelhante consideração? Podemos ignorar isso e ficarmos com o que Freud nos ensina sobre a massa, ou podemos ter como referente Lacan, que é um leitor judicioso de Freud, e considerar, em perspectiva, o que nos anuncia para ler com muito cuidado o texto que mencionamos. Releiamos, pois, “Psicologia das massas e análise do eu” com uma pergunta: qual é o método empregado por Freud em sua investigação ou o que ele quer nos ensinar? Em princípio, podemos dizer que faz um estudo da questão sobre aquilo a que a noção de massa se refere. Indo a autores como Le Bon, McDougall e Trotter, encontra, em cada um deles, uma dificuldade, um obstáculo, que ele quer resolver. Não é nosso interesse confrontar Freud com o que esses autores disseram, mas assinalar a forma como ele se aproxima de suas teorias. O problema que Freud encontra em Le Bon está vinculado ao fato de que não dá resposta a esta pergunta que Freud (1921/s.d.) se faz: “Se os indivíduos do grupo se combinam numa unidade, deve haver certamente algo para uni-los, e esse elo poderia ser precisamente a coisa que é característica de um grupo”.

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Com relação à organização da massa que, segundo Freud, McDougall faz depender de certas condições, Freud (1921/s.d.) propõe uma tese: “A tarefa consiste em procurar na massa as mesmas propriedades que eram características do indivíduo e se apagaram pela formação de massa” (Ibid.); e introduz noções centrais que a clínica lhe forneceu, tais como identificação, sugestão e libido. Acerca de Trotter, Freud (1921/s.d.) vê como problemático “[...] que não atende suficientemente ao papel do condutor dentro da massa” (Ibid.). E Freud responde a esse problema com o mito do pai da horda primitiva, tema retomado por Lacan muitas vezes até reduzi-lo a uma função lógica, desprendendo-o da orientação evolucionista de Darwin, que havia inspirado Freud. Mas qual seria a tese que quer desenvolver nesse texto? Freud (1921/s.d.) a resume com estas palavras que tantas vezes ouvimos citar: Na vida anímica do indivíduo, o outro conta com total regularidade, como modelo, como objeto, como auxiliar e como inimigo, e por isso, desde o próprio começo, a psicologia individual é simultaneamente psicologia social neste sentido mais lato, mas inteiramente legítimo (FREUD, 1921/s.d.). Uma tese que traz consigo a argumentação que vai requerer todo um desenvolvimento, por parte de Freud, para poder agregar algo novo ao que os três pesquisadores da massa, segundo ele, haviam feito. Porém, ainda que Freud coloque que há um estreito vínculo entre a psicologia individual e a psicologia das massas, ele vai criticar que os estudiosos das massas evitem o estreito vínculo do indivíduo com as primeiras pessoas com as quais têm contato e proponham, antes de tudo, uma pulsão social que determinaria a massa e esta, o indivíduo. Freud não crê que seja a massa, por seu número, o que determine o indivíduo e, muito menos, que este seja efeito de uma linhagem, casta ou instituição, e, melhor, vai dar a volta para fazer depender a massa do que aconteceu com o indivíduo. Mas que tipo de relação ou dependência se pode estabelecer entre a massa e o indivíduo? Que relação de causa/efeito podemos estabelecer? Quando Freud analisa as duas espécies de massa estudadas por McDougall, a massa organizada e a não organizada, dá uma explicação para além do exposto por esse autor, pois diz (FREUD, 1921/s.d.): “Em nosso juízo, a condição que McDougall chama ‘organização’ de massa pode descrever-se mais apropriadamente de outro modo. A tarefa consiste em procurar na massa as mesmas propriedades que eram características do indivíduo e que se apagaram pela formação da massa”, isto é, dota-se a massa com os atributos do indivíduo. Agora, que quer dizer esta expressão dotar? Podemos arriscar uma resposta no sentido de que o pesquisador da massa, Freud, situa as mesmas características na massa que desco-

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briu na clínica ou em suas construções sobre o neurótico, isto é, como se houvesse uma solução de continuidade entre o individual e o coletivo, a massa como efeito do indivíduo, mas não o inverso. Talvez seja a isso a que Lacan faz referência em uma nota de 1966, acrescentada a seu artigo “O tempo lógico e a afirmação de certeza antecipada”, em que diz: Que o leitor que prosseguir nesta coletânea volte à referência ao coletivo que é o que constitui o final deste artigo, para situar o que Freud produziu sob o registro da psicologia coletiva: o coletivo não é nada senão o sujeito do individual (LACAN, 1945/1998, p. 213). Isto é, a massa e o coletivo dos prisioneiros podem ser explicados pelo individual e não ao contrário. Ademais, Lacan diferencia nesse artigo entre coletividade e generalidade, o que nos leva a ter isso em conta para diferenciá-los junto à noção de massa. A explicação da libido e do amor como aquilo que uniria a massa, junto à necessidade que tem o indivíduo de um outro, é o que acrescenta Freud aos pesquisadores mencionados, segundo sua interpretação. Recordemos que ele disse, desde o projeto, que o inicial desamparo do ser humano é a fonte primordial de todos os motivos morais. Assim, Freud explicará o fenômeno de massas artificiais, como o exército e a igreja, pelos laços libidinais, duplos, ao condutor e entre os membros da massa. Poderíamos resumir todo o desenvolvimento de sua tese em que existe uma relação analógica entre o que se passou no indivíduo e o que se passou na constituição de uma massa, obrigando-nos a pensar sobre o vínculo estabelecido entre a massa e o indivíduo, o outro. É tentador empregar as noções de Lacan e dizer, de maneira rápida, que há um traçado moebiano entre os dois, ou ainda pior, dizer que a massa é o Outro com inicial maiúscula, trabalhado por Lacan especialmente no Seminário, livro 16: De um Outro ao outro e no Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Com relação à primeira saída, é demasiadamente fácil a solução e, portanto, suspeita, e, de referência à segunda, deveria ser considerada a primeira citação que trouxemos em que Lacan se contrapõe à noção de massa, o que implicaria que, de nenhuma maneira, lhe passou a ideia de identificar a massa e o Outro como iguais. Encontramos, porém, em Lacan, a massa associada ao discurso do amor, um dos que ele formaliza como via para pensar o vínculo entre o sujeito e o coletivo, desprendendo-se da noção de massa. A propósito da pergunta que vínhamos fazendo sobre o método e, especificamente, o analógico, na segunda lição do Seminário, livro 10: A angústia, Lacan (1962-63/2005, pp. 25-37) se ocupa disso para pensar o método que deve empre-

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gar quem quer transmitir algo da psicanálise, e nos fala de dois métodos conhecidos: a via do catálogo, o método do análogo, e ainda propõe um terceiro, a função da chave. O primeiro, o do catálogo, conduz a classificações que levariam a uma aporia, porque em dita classificação, um elemento pode reduzir-se a outro, o que introduz becos sem saída, e, inclusive, uma infecundidade muito especial, diz Lacan. Poderíamos pensar que, ao indagar Le Bon, McDougall e Trotter, Freud procede dessa maneira? Não, o que ele descobre é que eles procederam assim, assinalando os inconvenientes. Pois bem, com relação ao segundo método, o chamado por Lacan de análogo, ele diz: Existe um outro método. Peço desculpas por me estender por tanto tempo, hoje, na questão do método, mas ela tem grande interesse prévio no tocante à oportunidade do que fazemos aqui, e não é à toa que a introduzo, vocês verão, com respeito à angústia. Eu o chamarei, para entrar em consonância com o termo anterior, de método do análogo. Este nos levaria a discernir alguns níveis. Um livro, que hoje não citarei de outra maneira, apresenta uma tentativa de compilação dessa espécie, vendo-se nele, em capítulos separados, a angústia concebida biologicamente, depois sociologicamente e, em seguida, culturally, culturalmente, como eles dizem, porque o livro é inglês – como se bastasse revelar posições análogas, em níveis supostamente independentes, para fazer algo diferente de destacar não mais uma classificação, porém uma espécie de tipo [...]. Sabemos a que leva tal método. Leva ao que é chamado de antropologia (LACAN, 1962-63/2005, pp. 29-30). O que leva sempre, segundo ele, a um núcleo, e, à maneira de Jung, poderíamos dizer, uma generalização das coisas. Esse método do análogo ou analogia pode levar a psicanálise a perder sua especificidade, ali onde se acredita ver uma origem idêntica para dois assuntos como o sujeito e a massa, dito mais claramente, transformar o que é uma experiência singular em coletiva e fazer da psicanálise uma antropologia ou uma sociologia. Estaria Freud empregando esse método em seu texto mencionado? O título deste artigo o sugere, porém o interroga. Se olharmos em detalhe a maneira de Freud se conduzir, encontramos uma espécie de paralelismo entre a psicologia social e a psicologia individual, diria que depende da leitura que se faça do próprio Freud; podemos conduzi-lo a uma das duas vias expostas por Lacan. Mas podemos pensar o outro método que ele chama de chave e que, afirma, provém da experiência. Diz Lacan:

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A experiência, ao contrário, conduz-nos à terceira via, que colocarei sob o indicador da função da chave. A chave é aquilo que abre e que, para abrir, funciona. A chave é a forma pela qual funciona ou não a função significante como tal [...] é que a dimensão da chave é conatural a todo e qualquer ensino, analítico ou não (LACAN, 1962-63/2006, p. 30). Ainda que este Seminário, livro 10 seja sobre a angústia, é o seminário no qual Lacan vai fundamentar, mais claramente, a teoria sobre o surgimento do sujeito a partir da estrutura, que ele havia iniciado no Seminário, livro 9: A identificação. A tese de entrada que Lacan (1962-63/2005, p. 31) propõe é: “só há aparecimento concebível de um sujeito como tal a partir da introdução primária de um significante, e do significante mais simples, aquele que é chamado de traço unário. O traço unário é anterior ao sujeito”. Isso é o que define o método da chave, que qualifica de simplicidade, isto é, pensa-se o sujeito a partir do significante. Digamos que a psicologia individual partiria desta premissa que introduz o grande tema desenvolvido, segundo Lacan, em “Psicologia das massas e análise do eu”, e não é outro senão o da identificação. Em “De nossos antecedentes”, artigo dos Escritos de Lacan, ele diz: Nada há nisso que não se justifique pela tentativa de prevenir os mal-entendidos decorrentes da ideia de que haveria no sujeito seja lá o que for que corresponda a um aparelho – ou, como dizem em outros lugares, a uma função própria – do real. Ora, é a essa miragem que se consagra, na época atual, uma teoria do eu que, por se apoiar no reingresso que Freud assegura a essa instância em Análise do eu e psicologia das massas, comete um erro, já que não há nesse artigo outra coisa senão a teoria da identificação (LACAN, 1966/1998, pp. 72-73). É que a noção de traço unário, Lacan a toma de Freud, justamente desse texto e é com ela que construirá sua teoria do sujeito. Assim, Lacan não se deixa enganar com esse artigo e não o vê como um texto sociológico nem antropológico, mas como a teoria da identificação da qual depende o sujeito, sobre o qual ele vai falar todo o tempo. Teoria do sujeito que vai construindo desde o sujeito da representação significante, que aparece em fading, apagado, até levá-lo à categoria de parlêtre, neologismo lacaniano que reúne em si mesmo noções tais como: inconsciente, corpo, ser, gozo, palavra, alíngua, entre outras, e que entroniza em uma “Conferência de imprensa em Roma”, na qual Lacan (1974/1980) se refere a esse neologismo: “O parlêtre é uma maneira de expressar o inconsciente”. Centrar a atenção no tema da identificação faz com que Lacan conduza nosso olhar deste texto de “Psicologia das massas e análise do eu” para situar, de ma-

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neira precisa, o que é o individual em sua relação com o coletivo, entendido tal como Lacan o define em “O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada” (1945/1998, p. 212): “um grupo formado pelas relações recíprocas de um definido número de indivíduos” ou o individual em relação com a generalidade definida como “uma classe que abrange abstratamente um número indefinido de indivíduos” (Ibid.). Ficando claro isso, poder diferenciá-lo do que Lacan abomina como massa e dar à psicanálise seu justo lugar, em sua intervenção e seu olhar do social, é como se Lacan reconduzisse as coisas a um ponto de especificidade da psicanálise. Ali, onde Freud fala de massa, Lacan fala de linguagem e de discurso, que seria o que vincula o sujeito ao outro. Então, Freud fala da influência da massa no indivíduo, produzindo um incremento do afeto e da inibição do pensamento, tomando como explicação a sugestão e a libido. Em “Psicologia das massas e análise do eu”, Freud (1921/1979, p. 88) afirma que “[...] o indivíduo submete sua peculiaridade à massa e se deixa sugerir por outros”, e acrescenta que “sente a necessidade de estar com eles e não de se opor a eles, talvez por amor deles”. Introduz uma pergunta que temos de resolver e que se pode enunciar assim: o indivíduo que tem peculiaridade é o mesmo sujeito de que fala Lacan? A expressão indivíduo, em Freud, contempla as características que o próprio Lacan lhe dá no Seminário 20: Mais ainda, quando diz: “Minha hipótese é a de que o indivíduo que é afetado pelo inconsciente é o mesmo que constitui o que chamo de sujeito de um significante. O que enuncio nesta fórmula mínima de que um significante representa um sujeito para um outro significante” (LACAN, 1972-73/1985, p. 194). E acrescentaria: a intervenção analítica levaria um indivíduo a descobrir sua peculiaridade, isto é, a se produzir como sujeito, e para isso deve descobrir de que maneira o coletivo o apaga em sua peculiaridade, digamos, em sua singularidade? É o Eu que Freud confronta com a massa, o mesmo sujeito que Lacan descreve como efeito da lógica coletiva e não da lógica da generalidade? É o parlêtre de que se ocupa a clínica psicanalítica, que é a clínica em direção ao real, via os enlaces e desenlaces do nó borromeano? O assunto da particularidade ou da singularidade é levado por Lacan, em seu Seminário, livro 8: A transferência, à noção de traço unário ou einziger Zug, que Lacan (1960-61/2009, pp. 394-395) toma do capítulo “A identificação” de “Psicologia das massas e análise do eu”. Ali, Freud (1921/s.d.) diz: “[...] a identificação é parcial, limitada em grau máximo, pois toma emprestado um único traço da pessoa objeto”. É à expressão “traço único” que Lacan se prende para desenvolver a teoria, não apenas da identificação, mas também do sujeito. Esse assunto é a base para continuar o que segue no texto de Freud e que ele chama enamoramento e hipnose, no qual mais claramente se vê a relação entre o que se passa no indivíduo

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e o que se passa na massa, sem confundir um com a outra. Freud (1921/s.d.) diz: “Uma massa primária desta índole é uma multidão de indivíduos que puseram um objeto, um e ele próprio, no lugar de seu ideal do eu, e em consequência se identificaram entre si em seu eu. Essa condição admite representação gráfica”.

Fonte: Lacan. Seminário, livro 11 (1964/1989, p. 257).

O mesmo gráfico que Lacan toma em seu Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, para precisar o que pensa da experiência analítica em termos de separar o I do a contando que nela também se possa dar a hipnose de que há de prescindir, assim o diz Lacan: “Quem não sabe que foi ao se distinguir da hipnose que a análise se instituiu? Pois a mola fundamental da operação analítica é a manutenção da distância entre o I e o a” (1964/1973, p. 258). Por isso, embora pareçam homólogos, a intervenção da psicanálise se dá no individual por efeito do coletivo, que chega por alíngua, tomada e transmitida pelas primeiras pessoas com quem se põe em contato a criança, imersa, desde o início, no banho da linguagem, em sua estrutura, e não do geral, que seria a massa; daí que, ao se intervir no individual, toma-se o coletivo também, dado que o traço vem do Outro, dando como resultado um sujeito que não é sem Outro, isto é, de um mais outro articulados. Mas o que interessa a Freud é o mecanismo que se põe em jogo na formação da massa e, partindo da noção de libido, poderá situar duas coisas que a constituem: a existência do líder e a ligação de uns indivíduos com outros. A Lacan (1969-70/1992, p. 52), entretanto, interessa a marca do significante, como disse no Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise, marca de voluptuosidade que nada mais é que o próprio gozo, isto é, a marca do significante no corpo. É por isso que, na lição do Seminário, livro 19: ...ou pior, onde assinala a crítica a esta noção de massa em Freud, ele vai se dedicar a pensar o traço unário, que levará ao Ideal do eu, sendo Lacan mais claro com esta noção do que o próprio Freud.

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Desse modo, interessa mais a Lacan o saber sobre o gozo que se assegura da verdade proposta a partir do significante, enquanto para Freud interessava a verdade, quando, segundo Lacan (1971-72/inédito, Aula de 10/05/1972), “[...] cometeu um erro ao ligar o Eu à sua Massenpsychologie” e derivar dali “[...] o inacreditável da instituição na qual projetou o que denomina a economia do psiquismo”. Sabemos que essa instituição é a IPA, que supõe ser uma Escola de sabedoria. Lacan zomba disso, porque a sabedoria é o saber sobre o gozo, mas um saber iniciático, como o chama. Nesse seminário, precisa algo sobre o sujeito que, talvez, possa ir esclarecendo a pergunta deixada lá atrás sobre se é o mesmo que o indivíduo de que fala Freud. Esclarece Lacan (Ibid.): A análise produz um sujeito que se recorta a partir do que, em minha lógica, o sujeito se esgota produzindo-se como efeito do significante […] sua exibição no sentido passivo adquire um sentido ativo e se impõe como demonstração ao ser falante, que a única coisa que pode fazer nesta ocasião é reconhecer não apenas que habita o significante, mas também que não é nada mais que sua marca. Trata-se, então, de um sujeito que se produz na experiência sob transferência, um sujeito real impossível de ser nomeado, apenas mostrado em um ato, e que poderá, para o parlêtre, aparecer por sua palavra como a demonstração de uma marca de gozo que seu corpo leva. Voltemos ao método de Freud. Este o levou a certo paralelismo, que poderíamos assimilar a uma analogia entre o que se passa em um indivíduo e o que se passa na massa, mas avançar em sua crítica sobre a proposta de Trotter, em relação ao instinto gregário, lhe permite afirmar que não se pode conceber a essência da massa descuidando do condutor, e, além disso, o que se encontra como espírito comunitário se desprende da inveja originária, levando assim a composição da massa como desprendida do que se passa em cada indivíduo. Contudo, no capítulo intitulado “A massa e a horda primeva”, Freud vê o que chamamos antes de solução de continuidade entre o indivíduo e a massa, quando afirma que a massa é um renascimento da horda primeva, e que esta, por sua vez, se conserva em cada indivíduo. Sabemos que alude à sua teoria da filogênese, que é necessário introduzir na linguagem para que não seja, como diz Lacan, o coelho que se tira da cartola. Como vemos, não é tão simples dizer que “Psicologia das massas e análise do eu”, junto a outros textos que se perguntam pelo coletivo, seja sociológico e que daí nos autorizemos a afirmar que a psicanálise deve ocupar-se da massa, do gru-

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po, do coletivo. Não é necessário tal imperativo, porque se ocupar do individual inclui a lógica coletiva, dado que não existe sujeito sem a passagem pela linguagem e sem um Outro que propicie o traço necessário para que o sujeito se considere como tal. Massa, grupo, lógica coletiva da generalidade, junto com civilização e cultura, serão noções indispensáveis para esclarecer e diferenciar; umas trazidas por Freud, e outras incluídas por Lacan para manter o rigor da experiência do real e do gozo, para onde levou toda a sua teoria e, portanto, a clínica. Assim como Freud avançou com relação a McDougall, Trotter e Le Bon, Lacan o fez no que se refere a Freud, ao introduzir a linguagem como dobradiça entre o sujeito e o Outro. Passar da massa à lógica coletiva introduz a responsabilidade ética da eleição de gozo, para onde uma análise conduz seus analisantes. Tradução: Solange Mendes da Fonsêca Revisão da tradução: Ida Freitas

referências bibliográficas FREUD, S. (1921). “Psicología de las masas y análisis del yo”. In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu editores, 1979. LACAN, J. (1945). “O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. . (1966). “De nossos antecedentes”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. . (1960-61). O seminário, livro 8: A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. . (1962-63). O seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. . (1964). O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1973. . (1969-70). O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. . (1971-72). O seminário, livro 19: …Ou pior, inédito. . (1972-73). O seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. . (1974). “Conferencia de prensa, 29 de octubre de 1974 en el Centro Cultural Francés en Roma”. In: [Vários autores]. Actas de la Escuela Freudiana de París. Barcelona: Ed. Pretel, 1980.

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resumo O presente artigo pretende mostrar como Jacques Lacan resolve a relação entre o singular e o coletivo que Freud reduz na frase “a psicologia individual é simultaneamente psicologia social”, via a noção de massa, questionada pelo primeiro para situar o texto “Psicologia das massas e análise do eu” como a teoria da identificação, que lhe permitirá desenvolver a do sujeito, inicialmente, e a do parlêtre depois.

palavras-chave Sujeito; identificação; traço unário; massa; coletividade.

abstract The present paper intends to show how Jacques Lacan equates the relationship between the singular and the collective that Freud reduces to the phrase “the individual psychology is simultaneously social psychology”, through the notion of mass, questioned by the former to situate the textbook Psychology of the Masses and the Analysis of the Ego, as the theory of identification, which will allow him to initially develop the theory of the subject, and that of the parlêtre afterwards.

keywords Subject; identification; unary trait; mass; collectivity.

recebido 16/01/2016

aprovado 26/03/2016

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Enlaces do grafo do desejo com os discursos, a partir do Seminário 16, de Jacques Lacan Samantha Abuleac Steinberg Neste texto, trabalharei com o grafo com o qual me deparei no Seminário 16: De um Outro ao outro (LACAN, 1968-69): o grafo, como um grande interlocutor de Lacan, ao formalizar lugares e construir os quatro discursos, apresentados, formalmente, no seminário seguinte. Lacan apresenta e constrói o grafo no decorrer do Seminário 5: As formações do inconsciente (1956-57/1999), e, arrisco dizer, “conversa” com ele em inúmeros momentos de seu ensino. Ele permite situar o desejo na cadeia significante e localizar uma série de lugares da complexa álgebra lacaniana. Além disso, é extremamente clínico: a direção de tratamento pode ser formalizada com e a partir dele. Neste trabalho, compartilho uma face menos explorada desse inusitado “parceiro” de Lacan e algumas possibilidades de articulação com os discursos aqui postos. Inicio com uma distinção que Lacan diz nunca ter realizado antes: afirma, na lição de 26 de março de 1969 (Ibid.), que a linha inferior do grafo é o simbólico e que devemos conceber a cadeia superior como “os efeitos do simbólico no real”; e continua: “Por isso, o sujeito, que é seu efeito primeiro e maior, só aparece no nível desta segunda cadeia” (Ibid., p. 244).

S(%)

Gozo

($&D)

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Significante

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Fig. 1: Grafo do desejo, retirado do Seminário, livro 16 (1968-69).

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STEINBERG, Samantha Abuleac

A linha superior no grafo é o discurso do inconsciente, é o discurso do Outro, articulado, mas não articulável, (LACAN, 1961-62/2003, p. 488). Articulado, se pensarmos na sua articulação primordial com a estrutura significante; o inconsciente estruturado como uma linguagem. E não articulável por ser o que escapa ao simbólico, o que se articula ao desejo na sua estrutura de para-além da demanda. No entanto, o que Lacan está perseguindo no Seminário 16 (LACAN, 196869/2008)? Ele quer formalizar o discurso do analista, na sua relação com os demais discursos e, para tal, se faz fundamental articular o objeto a ao mais-de-gozar, como resto, produto de um determinado discurso. Diz: “O que há de novo é existir um discurso que articula essa renúncia, e que faz evidenciar-se nela o que chamarei de função do mais-de-gozar. É essa a essência do discurso analítico” (Ibid., p. 17).

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ù° °ú Fig. 2: Discurso do analista.

E diz logo a seguir: “Assim, o mais-de-gozar é aquilo que permite isolar a função do objeto a” (Ibid., p. 19). O discurso do analista, portanto, faz ver o que se produz no discurso do mestre para que este resto se torne “operável”, passível de se fazer operar pelo analista. Mas como articular este objeto a, articulado aos discursos, e o grafo? Lacan, nas lições de 11 de dezembro de 1968 e 15 de janeiro de 1969 (Ibid.), fará algumas construções nesse sentido. Diz, referindo-se a um radical questionamento do Eu: “O que será mostrado, o que esperamos, o que sabemos claramente, é que esse Eu é sempre impronunciável em toda a verdade” (Ibid., p. 79). E apresenta o grafo definindo o campo da experiência analítica como um campo de enunciação totalmente diverso, alertando-nos de que a enunciação assume a forma da demanda na medida em que o Outro não é consistente. Articula, então, a dupla questão que se coloca no vetor ($&D) para d (A): “Eu me pergunto o que desejas (o que te falta)” e “Eu te pergunto o que é Eu”. (Ibid., p. 84). Faz-se importante, porém, assinalar os vetores estruturais, pois haverá os convergentes e os divergentes.

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Enlaces do grafo do desejo com os discursos, a partir do Seminário 16, de Jacques Lacan

Fig. 3: Grafo com vetores convergentes e divergentes.

Serão convergentes no nível do desejo do Outro. E não podemos esquecer que a demanda está intimamente articulada ao desejo do Outro, em uma ambiguidade completa que permite escrever: “Eu te pergunto o que eu quero já que meu desejo é o desejo do Outro” (Ibid., p. 100), e continua afirmando que: O fiador do desejo do Outro, como seu suporte imaginário, é isto que tenho escrito desde sempre sob a forma de ($&"), isto é, a fantasia, onde reside, embora encoberta, a função do Eu. Ao contrário do ponto de convergência chamado de desejo do Outro, é de maneira divergente que o Eu oculto no ($&") se dirige, sob a forma que chamei no começo do verdadeiro questionamento, do questionamento radical, para os dois pontos em que situam os elementos da resposta (Ibid., p. 100). Na linha de cima está S(%), significando que o A é barrado, e que é precisamente o que tive o trabalho e também lhes dei o trabalho de tomar como suporte para conceber o que enuncio aqui, ou seja, que o campo do Outro não garante, não garante em nenhuma medida, a consistência do discurso que se articula nele, em nenhum caso, inclusive no aparentemente mais seguro (Ibid., p. 100). Na linha inferior s(A), uma significação como tal é fundamentalmente alienada, Lacan nos elucida que “E é aqui que é preciso vocês se aperceberem do sentido

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de minha entrada neste ano pela definição de mais-de-gozar e de sua relação com tudo o que podemos chamar, no sentido mais radical, de meios de produção” (Ibid., p. 100). Há, portanto, uma disjunção a partir do lugar do Eu, lugar da fantasia, que pode se dirigir para dois pontos diversos: ao S(%), lugar de a-causa, que Lacan articula ao “Eu não existe” (Ibid., p. 117) ou ao s(A), lugar em que uma significação se fecha, “Eu existe” (Ibid., p. 117). Visualizamos, neste trecho, Lacan pensando com o grafo para formalizar o discurso que nos compete, o discurso do analista, na sua função de histericizar os demais discursos, atribuindo ao objeto a um lugar de causa. Como o analista responde deste lugar, diante da demanda analisante? O analisante vem nos perguntar “Quem sou Eu?”, ao que respondemos “Quem é Eu?”, uma recusa articulada à própria estrutura S(%), a uma necessidade lógica. E ainda acrescenta: o que nós, analistas, procuramos é aquilo que suspende o que se articula a partir do Outro, e que está fora do Outro como tal – o S2 como fora do campo. Qual é seu sujeito? Eis a questão. E, se esse sujeito não pode, de forma alguma, ser captado pelo discurso, qual é a articulação correta do que lhe pode servir de substituto? (Ibid., p. 88). Para que possamos nos dar conta da complexidade desta última formulação de Lacan, vamos a algumas elaborações acerca do “Outro” e do “sujeito”, neste mesmo seminário, não sem o grafo. Comecemos pelo Outro, que é profundamente interrogado nesta visada. Podemos dizer que a formulação base do seu ensino “o significante representa o sujeito para um outro significante” é colocada à prova pela lógica dos conjuntos, com um efeito bastante relevante para a teorização lacaniana. O segundo significante da sentença passa a ser articulado logicamente ao saber, a um lugar de impossibilidade lógica, pois o primeiro significante não pode alcançar o segundo por estrutura. Há uma inapreensibilidade e uma inacessibilidade em jogo neste ponto que podemos relacionar ao Urverdrängung, “ um núcleo já fora do alcance do sujeito, embora seja saber” (Ibid., p. 54). O S2 passa a ser localizado neste lugar falho da própria estrutura, S(%), “espaço em que o lugar da verdade é um lugar vazado“ (Ibid., p. 58). Não há como não associar esta posição ao lugar da verdade no discurso do analista, ocupado pelo S2. O Outro e o S2 passam, portanto, a ocupar posições diferentes neste momento, com consequências importantes para a formulação dos discursos e para seu ensino. Mas o que ocorre com o sujeito neste movimento, se ele deve estar fora do campo do Outro? Um sujeito articulado a este saber fora de alcance?

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Volto à primeira distinção das duas cadeias do grafo, realçada no início do texto. Lacan precisa que é só na cadeia superior que podemos encontrar o sujeito, sempre como um efeito de enunciação, efeito de S(%). O Outro fornece apenas a textura do sujeito, ou seja, sua topologia, aquilo mediante o qual o sujeito introduz uma subversão, sem dúvida, mas que não é apenas a dele. [...] Mas a subversão de que se trata aqui é a que o sujeito certamente introduz, mas da qual se serve o real, que, nesta perspectiva, define-se como o impossível. Ora, no ponto exato que nos interessa só existe sujeito de um dizer (Ibid., p. 64). Só existe sujeito de um dizer, e deste dizer o sujeito é o efeito. Extremamente complexa esta problemática: o sujeito deve necessariamente se articular ao dizer e ao real, a partir dessa afirmação. No Seminário 16 (1968-69), ele passa a ser pensado essencialmente como uma função. Dessa maneira, Lacan (1968-69) adverte que é preciso fazer girar a função do sujeito para que se apreenda sua falha e nos diz a seguir: Seja qual for o uso que vocês deem posteriormente a uma enunciação, e mesmo supondo que seja um uso da demanda, será por haverem assinalado o que ela demonstra de falha, como simples dizer, que vocês poderão delimitar mais corretamente, na enunciação da demanda, o que acontece com a falha do desejo (Ibid., p.73). Como estas elaborações podem orientar nossa prática? Repito: “o que da enunciação se demonstra de falha”; “um discurso que faz girar a função do sujeito para apreender sua falha”. Leio que o discurso do analista é o que faz girar o discurso do mestre para o discurso da histérica, ao operar com a função do sujeito, a partir dos vetores convergentes e divergentes visualizados no grafo e já abordados acima.

Fig. 4. Discursos: operando com a função sujeito.

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Mas retomo à questão apontada acima: qual é a articulação correta do que lhe pode servir de substituto, substituto do sujeito que não se pode alcançar S2? Entendo que Lacan enveredará para o campo do gozo nesta trilha. Diz que “nosso acesso ao gozo é sempre comandado pela topologia do sujeito” (Ibid., p. 112) e ainda: “O sujeito cria a estrutura do gozo, mas tudo que podemos esperar disso, até nova ordem, são práticas de recuperação. Isso quer dizer que aquilo que o sujeito recupera nada tem a ver com o gozo, mas com sua perda” (Ibid., p. 113). Termino aqui, deixando uma questão para elaboração, uma questão que tenho me deparado nos últimos estudos. Como poderíamos articular um pouco melhor este rumo tomado por Lacan neste momento do seu ensino: da problemática do sujeito ao campo do gozo?

referências bibliográficas LACAN, J. (1999). Seminário, livro 5: As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. . (1966). Escritos: A subversão do sujeito e a dialética do desejo no inconsciente freudiano. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. . (1958-59). Seminário, livro 6: O desejo e sua interpretação. (Publicação para circulação interna). Associação Psicanalítica de Porto Alegre, 2002. . (1961-62). Seminário, livro 9: A Identificação. (Publicação para circulação interna). Centro de Estudos Freudianos do Recife, 2003. . (1968-69). Seminário, livro 16: De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. . (1969-70). Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.

resumo A partir do Seminário 16: de um Outro ao outro, de Lacan (1968-69), este artigo apresenta uma discussão em torno do grafo do desejo numa vertente pouco explorada: na sua relação com o Eu e com um certo “questionamento fundamental”, necessário em qualquer trabalho analítico. Neste momento, Lacan se debruça sobre o conceito de sujeito na sua íntima relação com o gozo. O sujeito, aqui, é apresentado essencialmente como uma função, indissociável dos conceitos de dizer e real, podendo ser localizado no S(%) no grafo do desejo, como seu efeito. O artigo ainda mostra relações entre o grafo e os discursos, em plena construção nesse seminário.

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Enlaces do grafo do desejo com os discursos, a partir do Seminário 16, de Jacques Lacan

palavras-chave Grafo do desejo; Seminário, livro 16; discursos; função sujeito, Eu (Je).

abstract Stemming from Lacan’s Seminar 16, From Another to the other (1968-69), this article brings a discussion about the graph of desire under a not so common perspective: in its relationship with the “I” (Je) and with a certain “fundamental questioning”, required to all psychoanalytic work. At the time of the Seminar, Lacan was working on the concept of Subject within its intimate relationship with jouissance. The Subject here is presented essentially as a function, inseparable from the concepts of saying and real, which might be located at the graph of desire as its effect. In addition, the article also presents relationships between the graph and the discourses, in full construction in the Seminar

keywords Graph of desire; Seminar: book 16, discourses; function subject; I (Je).

recebido 09/02/2016

aprovado 16/04/2016

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espaรงo escola



A imensa precariedade do desejo Beatriz Elena Zuluaga Jaramillo Pessoalmente por ter habitado em três sociedades psicanalíticas durante uns trinta anos, até hoje, em três períodos, de quinze, dez e cinco anos, entendo um pouco o que é coabitar com o lixo doméstico. (LACAN, 1968-1969/2008, pp. 11-12). Sempre tive um questionamento desde que iniciei minha relação com a psicanálise, fundamentalmente no modo como se faz laço de Escola: qual é a relação da psicanálise com a vida? Minha pergunta não se detém no efeito terapêutico, mas concerne ao saldo de Eros no um a um, que teria de ter efeitos em toda a comunidade de analistas. Portanto, a travessia analítica permite aos analistas não apenas acompanhar outros para que façam sua própria travessia, mas também a um dizer em ato, que se ocupe de velar e sustentar um desejo que se oponha ao real das instituições? Que se oponha ao real que situa às vezes nossas Escolas a par dos fenômenos mais comuns dos grupos? É um fato clínico que a demanda de análise nos conduz à angústia, ao menos a um sofrimento, “o que não anda”. O mal-estar subjetivo ao não operar mais o enlace perfeito de nosso fantasma conduz alguns de nós às portas dessa experiência nada cômoda, mas inédita e singular, que é a análise, sobretudo por seu saldo final. Eu me pergunto de novo: dito saldo, entendido como satisfação no final, abraça e implica a comunidade analítica? É este o saldo vital da experiência? Se nos apoiarmos nos testemunhos que temos lido, nas experiências que temos escutado dos que fizeram parte dos cartéis do passe, poderíamos dizer que sim, que a experiência da psicanálise, inclusive tendo menos ilusões e ideais com relação a nossas Escolas, tem um voto pela vida, pois, escutando os AE e alguns outros, “dispersos disparatados” não nomeados, a psicanálise parece permitir uma maneira inédita de ver isso com a experiência de estarmos vivos e de nos ocuparmos em pensar e discutir a teoria e a clínica com outros. A psicanálise, como a própria vida, não deixa de nos surpreender. Com Freud e Lacan, foram semeados, no mundo do pensamento, dizeres inesperados. Freud descobre o inconsciente, suas formações e o saber daí extraído. Ele nos ensina,

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além disso, que a pulsão é parcial, e Lacan o reformula: não há relação entre os sexos... E sabemos que o modo como cada ser falante se organiza com isso é seu verdadeiro “enlace”, o mais singular, pois sustenta suas fidelidades com o objeto e determina, por sua vez, seu modo de fazer laço com os outros: do amor, do trabalho e do sexo. No dispositivo analítico, alguns enlaces se tecem e, sem recorrer a eles, a aventura de uma análise não seria mais que uma psicoterapia. Ditos enlaces estruturados pelo dispositivo terão como efeito outro saldo importante: o saldo que rompe o chamado pertinaz ao significante, assim como a demanda de buscar sentido, e a garantia de um Outro para insistir em construir “O par”, a relação sexual impossível. Então, os enlaces lapso-sentido, equívoco-interpretação, associação-corte, sob o artifício do Sujeito-Suposto-Saber, darão passagem ao ciframento de poucos, muito poucos S1, prelúdios de um limite onde “já não se tem nenhum impacto de sentido” (LACAN, 1976/2003, p. 567). Se nos detivermos nesse ponto da frase de Lacan no prefácio, vemos que aí ele nos dá uma pista para tentar apreender o fora de todo enlace, sentido ou associação do inconsciente real. Quando há um não mais! “somente então se está seguro de estar no inconsciente”. Por isso, Lacan nos diz várias vezes que, só em prestar atenção, isto é, estender de novo um laço de significante, de pensamento ou de atenção ..., “aí não estamos mais no inconsciente” (Ibid.). Ao menos, não no inconsciente que abriga a verdade, que, sabemos, somente poderá ser meio-dita, pois jamais se saberá tudo dela. O que aqui se nos revela é que, como sujeitos, isso que nos constitui de mais fundamental, opõe-se a qualquer laço, enquanto no consciente, nem com o significante, nem com o dispositivo analítico, o inconsciente que aqui interessa a Lacan, e em consequência à nossa clínica, nos diz, nesse texto, não há amizade alguma que o suporte? A verdade, se é oferecida ao significante, mente, o real do inconsciente não “diz nada” e, com o objeto, resto, êxtimo do significante, somente gozamos dele. Que laço, então, é-nos prometido, a nós, os exilados, daquilo que nos causa no mundo? Esta não é uma pergunta nova, já Freud e Lacan se fizeram essa pergunta a seu modo. Lacan se ocupou em nos mostrar, com seus quatro discursos, que, por sorte, há maneiras de criar laços para lidar com o gozo. Freud, apesar da barreira da castração, para eles; e a inveja do pênis, para elas, foi otimista, pois acreditava que a análise oferecia ferramentas ao analisado para se posicionar diferente diante de sua doença, e em seu horizonte estava recuperar a capacidade de amar e de trabalhar. Lacan concluiu que a análise podia permitir a um sujeito se haver com o intratável. Temos todo o desenvolvimento de Lacan para pensar o final de uma cura, para pensar como se arranja o sujeito com o rebelde ao significante, e como, finalmente, se inventa um dispositivo para dar a palavra àqueles sujeitos que se atrevem “a se submeter à prova da hystorização da análise” (LACAN, 1976/2003,

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p. 569), e esperar deles uma palavra, mas não uma qualquer, porém o pequeno, o precário dizer que se logrou extrair, contudo imenso, inédito, singular, pois tem uma grande tarefa: renovar, devolvendo algo vital ao corpus teórico-clínico da psicanálise. A novidade é como esse sujeito efeito da travessia analítica logrou reconciliar-se com o pior de si, inventando outro modo de fazer laço, porém não mais para insistir no impossível, nem fazer um uso clínico disso, mas para lhe dar um tratamento diferente, pois a análise deve-lhe haver revelado algo de seu gozo mais rebelde, de seu núcleo mais obsceno, para, sem juízo, preconceito, esperança ou qualquer ideal, deixar passar, permitir, como semblante do objeto, que outros se submetam à travessia analítica. Operação efeito do que Lacan chama satisfação do final. Por isso, creio que o termo satisfação abarca o ponto ético fundamental da clínica analítica, porque, na sua própria formulação, se consigna o que nos foi dito, desde os albores da psicanálise, pela boca de Freud. E como concordou Lacan (1968-69/2008, p. 206): “[...] a pulsão é, sem dúvida, mitológica [...] mas o que não é mitológico é a suposição de que o sujeito esteja satisfeito com ela”. Freud disse categoricamente: para a pulsão, sua meta é a satisfação, pois, uma vez conhecido um prazer, será muito difícil renunciar a ele. E Lacan foi mais contundente e nos diz: gozamos dos sintomas, gozamos do inconsciente, gozamos ao falar, isto é, insistimos em gozar. E o gozo é necessário para que a máquina funcione, “[...] nela só se indicando o gozo para que se tenha por essa maneira de apagamento [effaçon], como furo a preencher”, nos diz Lacan (1970/2003, p. 434). Mas, satisfazer-se, ao contrário de gozar, guarda, em sua conotação, o limite, a pacificação, pois, nesse contexto, efeito desse novo laço com o real, haverá de se abrir uma dimensão distinta, que se esperaria permitir ao analista “[...] se dedicar a satisfazer esses casos de urgência” (LACAN, 1976/2003, p. 569). O gozo, então, não faz laço com o outro, mas a satisfação inclui outros, faz laço analista-paciente e se espera que faça laço com os pares da Comunidade. Pois bem, ao final da análise, a satisfação que acarreta dito final a se consagrar a satisfazer outros casos de urgência, parece-me que são três pontos que se atam entre eles por uma pergunta que considero a fundamental de Lacan, e que penso que cada analista deve fazer-se todo dia, ainda que algo dela já se haja revelado em sua análise: que razão nos leva a sermos analistas? Que razão nos leva a “atender às necessidades dos a-cargo”? É o efeito, se seguirmos no contexto do prefácio, da satisfação do final? Esta questão me interessa, porque abre uma via para responder uma pergunta que escutamos muitas vezes: que ocorre com a pulsão no final? Que fazer com essa boca feroz que nunca se fecha? A respeito, Lacan, no final de seu ensino, nos indica que pode haver um pacto novo, um gozo moderado por uma nova satisfação.

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O modo como até hoje entendo essa satisfação é que ela é um afeto provocado por uma posição distinta em relação ao real. Uma resposta ética, que impele a criar novos laços, por via do desejo do analista. Portanto, a satisfação do final não está separada de uma função, a do desejo do analista. Um desejo que opera não apenas como ato solitário, no laço analista-analisante, mas também como transferência a uns pares e a uma Escola. Não há aqui um saldo vital? Trabalhar para um impossível desperdiça uma vida, mas o paradoxo de uma análise é que nos ensina que se reconciliar com o pior, mas naturalmente advertido disso, pode ser o melhor pacto “passo-passe” na vida. Se o analista “se criva do rebotalho de que falei, é por ter um vislumbre de que a humanidade se situa pelo feliz-acaso [bon heur] [...] e é nisso que ele deve ter circunscrito a causa de seu horror, o dele próprio, destacado do de todos, horror de saber” (LACAN, 1974/2003, p. 313). A análise, essa travessia pela qual alguns de nós decidimos quando a opacidade do gozo nos cerrava a porta para a vida, para mantermos aberta a janela do fantasma, pode, sim, nos permitir fazer uma tessitura, um laço com os outros que estão em vias de fazer a sua própria, a “própria”, quer dizer, analisar-se para, em sua trama significante, resgatar um desejo, talvez para alguns, o do analista, para outros, simplesmente “ir cuidar de sua vida” (PACHECO, 2015). Não é isso já o bastante? Não é imensa a precariedade de um desejo? Precariedade pelo simples que pode ser; mas imenso, pois nos permite nos suportar e nos impulsionar a cuidar dos laços nos amores, no trabalho, nos amigos, isto é, da própria vida, e, para nós que nos denominamos analistas, além de tudo antes expresso, cuidar das transferências, dos laços com os pares e, naturalmente, cuidar da Escola. Não foi para a aposta e o desafio que nos convocou Lacan? Seus textos institucionais foram sua intenção de preservar o refúgio para a psicanálise: seu “Ato de Fundação”, sua “Proposição de 1967”, sua “Exortação à Escola”, a “Nota Italiana” etc. Sustentamos tal aposta? Mantemo-nos analistas à altura dela? Não estou muito segura, pois, apesar de isso ser afirmado nos encontros, em nível teórico também, constatamos, muitas vezes, que o desejo do analista não passa na prova da Escola. Tal desejo falta na Escola. Constatamos que nem sempre ele anima nossas Escolas. O desejo de análise é a contingência de uma análise, não é o efeito de Escola, mas nossa Escola deve garantir que o desejo do analista seja o que sustenta o ato dos analistas que ali se inscrevem. A experiência original, esta que Lacan fundou e viu expirar muitas vezes, corresponde a nós, um por um, devolver-lhe o vital, seu enlace com a vida, o enlace efeito de um novo trabalho com o real. Do contrário, nossa comunidade, como os pares do amor, estará condenada muitas vezes, como diz Colette Soler na apresentação de nosso IX Encontro em Medellín, ao desencanto. Não é esse o afeto de todo desejo gasto ou ausente? Realmente, hoje, impelimos, sustentamos, alentamos o desejo de psicanálise? Estamos assegurando o lugar da psicanálise no mundo? 204

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Nossa Escola soube aproveitar o ensinamento do que se depurou do dispositivo? E aqui evoco um dos ecos que chegaram da última Jornada de Toulouse (setembro de 2015). Como sustentar o desejo no um a um? Como revitalizar a função dos AE e lhes devolver seu papel crítico e seu dizer, em seu testemunho sobre os efeitos da psicanálise sobre o real? Como evitar que as Escolas acabem corroendo seus próprios princípios? Há caminhos, naturalmente, e um destes são Jornadas, Encontros, que renovam nossa causa, quando vemos trabalho, entusiasmo, laços. Laços que nos recordam que não é nem o real ressaltado, nem os sintomas, nem a resistência ao discurso capitalista que assegurarão o lugar do psicanalista no mundo. A psicanálise, seu futuro, não dependerá somente do real, dependerá fundamentalmente do compromisso de cada analista na conquista de seu desejo e deste com a Escola. Dependerá de um trabalho de comunidade, que ponha o foco no ensino precioso que escutamos dia a dia nos divãs, no dispositivo do passe e nas palavras de nossos colegas. Estes últimos nos enfrentam com seu lado mais escuro, mas também nos mostram o pior do nosso. Contudo, como nos ensina o grande artista Vik Muniz, “façamos vida com nossos afazeres”, façamos do desperdício, um uso diferente, o uso de uma nova satisfação para si e para outros. Um uso que transmita a outros que a economia do gozo pode transformar-se e que se pode fazer um trabalho com aqueles que também recolheram e trabalharam com seu refugo. Um uso que transmita e, sobretudo, “que se enlace no tempo por vir” (BERTA, 2015). Poderíamos pensar, então, que a travessia analítica atada à Escola talvez nos permita fazer condescender ao gozo, ao mais intratável de cada um, a um laço que sustente, que faça um nó sustentável por meio do desejo do analista e do desejo da psicanálise. Um caminho talvez viável é que nós, os analistas, passemos, de vez em quando, do cômodo sofá ao banquinho incômodo que nos lembre que não podemos afrouxar o rigor exigido para nossa ação. Se esquecermos isso, a experiência da psicanálise – e a escola como seu refúgio – des-fará todo laço possível com a vida... Tradução: Solange Mendes da Fonsêca Revisão da tradução: Ida Freitas

referências bibliográficas BERTA, S. Efectos de un decir en la clínica y la escuela. Trabalho apresentado na Jornada La Escuela a Viva Voz, Buenos Aires, 2015. LACAN, J. (1968-69). O seminário, livro 16: De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.

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LACAN, J. (1974). “Nota italiana” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. LACAN, J. (1970). “Radiofonia” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. LACAN, J. (1976). “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. PACHECO, A. L. El Pase: el artificio inmundo que recoge el desecho de la Humanidad. Trabalho apresentado em Tucumán, 2012.

resumo O final de análise, a satisfação que acarreta dito final e dedicar-se a satisfazer outros casos de urgência, parece-me que são três pontos que se juntam entre si por uma pergunta que considero a fundamental de Lacan: que razão nos leva a sermos analistas? Que razão nos leva a “atender às necessidades dos a-cargo? A Escola não produz o desejo de analista, é contingência de uma análise, mas à experiência original, esta que Lacan fundou, nos corresponde, um por um, devolver o vital, seu enlace com a vida, o enlace efeito de um novo trabalho com o real. Um caminho, talvez possível, é que nós, os analistas, passemos de quando em quando da cômoda poltrona, ao banquinho incômodo que nos recorde que não podemos afrouxar o rigor exigido para nossa ação. Se esquecermos isso, a experiência da psicanálise – e a Escola como seu refúgio – terá desperdiçado todo laço possível com a vida…

palavras-chave Desejo de analista; satisfação; enlace; vital.

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A imensa precariedade do desejo

abstract The end of the analysis, the satisfaction that turns into a final statement, and the dedication to satisfy other urgent cases, to me, are three points that meet together to provoke a question that I regard as crucial in Lacan: which reasons make us become analysts? Which reason takes us to “fulfill the needs of the a-cargo”? The School does not produce the analyst’s desire, it is a contingence of an analysis, but to the original experience. Founded by Lacan, it brings us, one by one, to return the vital, its link with life, the effect connection of a new work with the real. A possible way, is that we, analysts, once in a while, move from the comfortable seat to the uncomfortable bench in order to have us remember that we shall abandon the rigor requited for our action. If we forget this, the psychoanalytical experience – and the Schools as its refuge – will have wasted all possible connection with life…

keywords Analyst’s desire ; satisfaction ; bond ; vital.

recebido 10/02/2016

aprovado 22/03/2016

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A transmissão como sustentação do passe: Para além da nomeação Daniele Guilhermino Salfatis Acredito que qualquer pessoa que se aproxime da teoria lacaniana, logo escuta algo acerca do dispositivo do passe inventado por Lacan – marca de sua Escola, diferença de outros campos de formação. Mas, afinal, do que se trata? Quem já passou pelo passe? Quem já viveu essa experiência? O que se pode colher dela? O que se pode dizer dela? De acordo com o arranjo estrutural de funcionamento de uma Escola lacaniana que tenha tomado o passe como um de seus dispositivos, aqueles nomeados Analistas de Escola (AE) serão, em tese, aqueles que concederão testemunhos de suas análises para a comunidade psicanalítica. A nomeação de AE é concedida pelo cartel do passe. Tal cartel se responsabiliza por dizer se o que foi escutado por seus membros coloca em evidência o desejo de analista. Na Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, o passante que se torna AE trabalhará para a escola por três anos para dizer de sua análise, do passe, seguir testemunhando, exercitando a transmissão do impossível da psicanálise. O que acontece quando não há nomeação? A experiência se perde? O trabalho de passantes e passadores é “engavetado”? Durante o Encontro Internacional da IF-EPFCL em Paris, 2014, um membro da mesa falava que o final de análise traria esperança e que a entrada para o dispositivo do passe seria uma espécie de manutenção da esperança e do entusiasmo despontados ao final de análise, e então alguém da plateia pergunta: quando a nomeação de AE não acontece acabou a esperança? Trago estas interrogações para este texto. Mesmo sem a nomeação de AE, acredito ser importante dizer do dispositivo e da experiência vivida. Acredito que a transmissão não deve estar atrelada à nomeação, ou submetida a ela. Continuamos, em uma escola lacaniana, guiados pela ética e pela política do desejo, em que o analista se autoriza de si mesmo. Seguindo esta lógica, desenho este texto.

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SALFATIS, Daniele Guilhermino

O dispositivo do passe Na “Proposição de 9 de outubro de 1967”, Lacan formalizou, ou, de acordo com Roudinesco e Plon (1998, p. 576), “conferiu um caráter institucional a essa noção de passagem”. Por meio do passe, Lacan procurou assegurar a passagem da psicanálise em intensão para a psicanálise em extensão, bem como trazer para a escola experiências das passagens de analisante para analista e a evidência do desejo de analista. A elaboração deste dispositivo rompia com a ideia de hierarquia piramidal, tão em voga na IPA daqueles tempos. Não seria preciso ter passado por uma análise didática ou ser um membro com determinadas especificações curriculares para que o mesmo fosse nomeado AE. No atual funcionamento do Campo Lacaniano, por exemplo, a rigor, qualquer analisante poderia se submeter ao dispositivo. Para tanto, após o trabalho do secretariado do passe, o passante deveria dar um testemunho de sua passagem de analisante para analista a dois passadores. Tais passadores seriam, de acordo com Lacan (1967/1998, p. 260) “... um outro que, como ele, o é ainda, esse passe, ou seja em quem está presente nesse momento o des-ser...”. Portanto, o passador é aquele que se encontra na mesma horizontalidade que o passante, não é alguém que está colocado hierarquicamente acima, ou que tenha algum atributo curricular que lhe confira tal função dentro de uma escola, mas aquele que está às voltas com sua própria passagem, que vive intensamente o seu processo de finalização. Mais à frente falarei sobre a posição do passador e da importância de tal horizontalidade. Terminado o testemunho do passante, os passadores transmitem ao cartel do passe aquilo que foi escutado no decorrer dos encontros entre as partes. Caberá então a este cartel nomear, ou não, o passante como AE. O cartel do passe é composto pelos membros eleitos para o Colégio Internacional de Garantia (CIG) e é multinacional, plurilinguístico e de duração transitória. O cartel escuta o testemunho e discute se foi possível por meio dos testemunhos dos passadores escutar o desejo do analista, algo da diferença absoluta. O nomeado sela um compromisso de trabalhar pela Escola por um período de três anos, de dar provas da passagem de analisante para analista, de falar sobre o desejo de analista e seguir o exercício da transmissão. Ocorre que, a meu ver, a experiência de passar por tal dispositivo não deve se encerrar na não nomeação para aqueles passantes que não o foram. Há que se dizer da transmissão ocorrida durante o processo. Por que não fazer escola com isso? A experiência ímpar de ser passante e/ou passador, independentemente daquilo que é franqueado pela Escola ou daquilo que é colocado em pauta por ela, merece continuar no curso da extensão. Mesmo porque, não se trata de um

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dispositivo de avaliação, em que apenas aqueles que foram aprovados recebem um título que os autorizam a tomar um lugar. Devemos ter em mente que o passe tem seu lugar no interior de uma escola de psicanálise estabelecida a partir das diretrizes dos ensinamentos de Lacan e norteados pela ética do desejo.

Nomeação de AE O que é a nomeação? A nomeação de AE, especificamente? Não é meu intuito questionar tal nomeação, sua autenticidade, suas razões. Trago a questão apenas para deixar claro que sua negativa não deve fazer calar aquele que, passado seu momento de final de análise, faz vistas ao seu processo, via dispositivo do passe, no interior de uma escola. Ou ainda, dar por encerrada a tarefa do passador, que percorreu o discurso alheio de forma tão inusitada, tal como é arquitetada pelo dispositivo. Nem mesmo creio que a Escola pretenda que o silêncio se faça condição e a experiência de cada um não deva circular entre seus pares. Primeiramente, é de suma importância lembrar que toda nomeação dentro da Escola de Psicanálise foi proposta em 1967 sob a ideia de gradus e não de hierarquia. Isto significa que a nomeação está baseada no fazer da Escola o campo das provas, que coloca em campo o arsenal de experiências daqueles que fazem escola, que nada têm a ver com a política de reconhecimento de uma estrutura piramidal em que o detentor do saber destaca aquele o qual julga também ser possuidor de determinado conteúdo. O gradus nomeia aqueles que fazem escola, como os AMEs, que, reconhecidamente, deram provas de seu trabalho à comunidade. Isso é diferente de ser intitulado mestre por critérios determinados por uma sociedade, ou por um membro da mesma. No Campo Lacaniano, portanto, serão os psicanalistas membros de fórum, membros de escola, AMEs, AEs, que, por meio de suas experiências, fazem Escola, procuram bordar, no sentido de fazer bordas, de preencher com linhas coloridas alguns pontos do molde sempre furado. No Seminário 18, Lacan (1971/2009, p. 160) dirá que, “como dizia o outro, nome é aquilo que chama. Sem dúvida, mas chama a quê? Ele é aquilo que chama a falar”. Para Porge (2014, pp. 94-95), em Fundamentos da clínica psicanalítica, a nomeação no passe teria duas vertentes: A primeira é a da metáfora paterna, na qual o nome do pai está acoplado ao sentido, fálico, que ele engendra. Esse plano é o avesso da psicose e da foraclusão.

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A segunda vertente, portada, ela, pelo discurso histérico, que Lacan lembra em outra parte que é o discurso do analisando, é a de uma consistência própria da nomeação, mais além da intensão e da extensão, como chamado [appel] a falar [...] a nomeação no passe é um ato que decide um antes e um depois para aqueles que, de perto ou de longe, participaram nele, e que de fato são arrastados por um turbilhão, um ato no qual o sentido é esburacado e o saber não é totalizante, um ato no qual a significação procede do enodamento que revela entre o real, o simbólico e o imaginário [...] seus efeitos não são previsíveis e podem produzir-se em cada um daqueles comprometidos no passe. Em tal sentido, a clínica do passe é uma clínica de nomeação. Tendo em mente que são os psicanalistas engajados em uma Escola que fazem a Escola, que são a Escola, que dão provas de sua experiência como analisantes, analistas em constante (de)formação, se debatendo com os saberes que abrem outros e outros caminhos, nos angustiando e nos entusiasmando a cada vírgula, como não falar da experiência do passe para além da nomeação? Parece-me que o convite da nomeação, do chamado à fala, ao dizer, nasce já no desejo de ser passante, no desejo de abrir a possibilidade de circulação, de transmissão de sua experiência analítica, dizer de sua passagem e de sua autorização enquanto psicanalista. A experiência do passe abre, sim, um antes e um depois, marca, faz diferença. Tal experiência, se for do desejo do analista que experienciou o passe, não deve ser encerrada pelo veredito do cartel. Deve circular, seguir o exercício de transmissão, de escrita do impossível que se impõe no desejo do analista, o desejo da diferença absoluta.

Passador Na experiência do Campo Lacaniano, o passador é designado por um AME. O AME será o analista que escuta que algum, ou alguns de seus analisantes encontram-se em passagem, prestes a chegar ao final e passar a analista. O nome deste analisante (de novo o nome) segue para uma lista e, no caso de existir um passante, há um sorteio dentre estes nomes indicados por AMEs. Detalhe, o fato de entrar na lista de passadores nem sempre é dito para os analisantes indicados pelos AMEs. Assim aconteceu comigo: recebi um telefonema e sou informada de que meu nome havia sido sorteado como passadora. Esse é o primeiro momento de angústia, de abertura para a falta, para o não saber. Eu me perguntava como havia “caído” nesta lista. Seria um engano? Qual era a minha função? Como fazer isso? Precisaria me preparar? Haveria algo a saber para desempenhar tal função?

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Depois de passado o primeiro impacto e ter minimamente me informado de qual seria o trabalho, tive absoluta certeza de que a única certeza era de que nada saberia a respeito do passante. Suposto saber era carta fora do baralho. De alguma forma, o real parece pulsar mais intensamente neste encontro entre passante e passador, já que a fantasia foi atravessada pelo primeiro e está em vias de com o segundo, ambos sabem que estão despidos (ou quase) de suas vestimentas imaginárias. Trata-se de uma experiência de intimidade radical. Nas palavras de Bruno (2007, p. 22), citado por Porge (2014) “O sentido passa, é êxtimo; o real volta, é íntimo”. Em nosso primeiro encontro, uma apresentação breve, a leitura de uma carta, a escolha do analista, o início. Combinamos então que nos encontraríamos novamente em uma semana. Durante este intervalo me deparo com uma sensação que nunca havia experimentado, parecia que algo rodava à minha volta, tinha a sensação de estar em um local escuro, apenas com alguns flashes de luz. Em nosso segundo encontro, o passante conta que um de seus sintomas era a sensação de vertigem. No momento em que ele nomeou o que eu sentia, passou. Algo do real não precisou ser dito para que pudesse ser transmitido. Talvez, simbolicamente metabolizado, em um segundo momento, até mesmo porque o intuito do passe é minimamente dizer o indizível, mas a transmissão daquilo que não se diz estava ali, crua, dando alguma notícia, tomando o corpo que permitia a passagem da experiência. Algo do real que brota para além do arranjo simbólico fazendo furo na narrativa do passante.

Passante Passadora, final de análise... urgência. Tomada pelo tal entusiasmo, tanto pela experiência como passadora como pelo final de minha análise, algo pulsava em direção ao passe. Precisava transmitir o que havia passado, fazer Escola, dizer da experiência e buscar mais uma experiência, a de passante. Toda transmissibilidade inclui sua intransmissibilidade, um fato clínico só se realiza quando é transmitido, assim como no chiste, é no Outro onde se realiza (PORGE, 2014).1 Sigamos com Porge (Ibid., p. 78): Os recortes, eles não estão fora do tempo. As escansões, temporalizadas logicamente, são os significantes que representam o sujeito para outras escansões. O après-coup da transmissão opera sobre a clínica, ela terá efeitos de retorno. Há uma clínica da transmissão. 1 Esta frase de Porge refere-se à vinheta clínica e não ao passe, mas acredito que é bastante oportuna para o que está sendo tratado no texto.

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Ainda com Porge (Ibid., pp. 81-82). O próprio das relações da clínica e de sua transmissão é que elas provêm do mesmo recorte, um corte na falação. Se a clínica e sua transmissão resultam do mesmo corte é porque se trata de um corte que se recorta, um corte de duas voltas, isto é, o que Lacan chamou de oito interior correspondendo ao traçado de uma fita de Mœbius. Se transmitir a clínica é igualmente transmitir seus fundamentos, trata-se então de transmitir um método, o caminho para alcançar os resultados. Tal caminho, já dissemos, é rastro de um corte, em dupla torção, na falação; tal caminho é recorte clínico [section clinique]. É necessário um re-torno, duas voltas, já que o caminho bordeja um buraco, o da parte da intransmissibilidade em psicanálise, sobre a qual testemunha o passe (Lacan 1978[1979, p. 219]).2 Falar de transmissão... passadora... sentir no corpo... corpo que dá passagem, que faz passagem. Algo do Real que brota para além do arranjo simbólico, agora posto na narrativa do passante. Como passante, ao tentar traçar um método, um caminho para a minha narrativa, inicio com a cena de um filme, assistido após o final de minha análise. Aqui já posso falar de um après-coup, uma nova escansão, outro significante. Ao escrever o nome do filme, que fala de escravidão, cometo um ato falho e, em vez de escrever “Doze anos de escravidão”, aglutino o livro “Cem anos de solidão”, e escrevo “cem anos de escravidão”. Prontamente aquilo ressoa, se faz ouvir, retorno do recalcado, real que não deixa de marcar presença e se reeditar em infinitas séries de significantes que se reinventam, mas de forma, digamos, um pouco mais elástica, não engessada pela fantasia e pela angústia. E desse ato falho se pode falar, fazer transmitir neste enodamento tão íntimo entre intensão e extensão... a luva e seu avesso. Em um texto de Prates Pacheco (2014, p. 16), “Do impasse da fantasia ao passe: a letra entre o saber e o gozo”, em que a autora cita uma cena do livro de Clarice Lispector (1964) e nesta cena algo que se dá entre o olhar e a escrita, destaco o seguinte trecho: Após comer a gosma branca, ela passa do registro do olhar, para o do dizer, a partir do intervalo de silêncio que era a matéria da barata, a verdade anterior a nossas palavras. Enlaça, então, o outro de modo inédito 2 Recortes feitos por mim.

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através da escrita de seu testemunho que se passa no limite, mas não sem desejo: Quando se realiza o viver, pergunta-se: mas era só isso, é exatamente isso [...] (p. 173). E afirma: Tenho avidez pelo mundo, tenho desejos fortes e definidos, hoje de noite irei dançar e comer, usarei o vestido azul. (p. 173). Desejo inédito advindo dessa experiência. Talvez pudesse dizer que esse é o desejo de analista, inédito, desejo advindo da experiência da análise, do final de análise, da passagem de analisante para analista, e, por que não?, da experiência da imersão no dispositivo em si. A escrita do testemunho, que movimenta, que afeta, mas que é resto... um bordado sob um pano tecido com tantas tramas, por tanto tempo, por tantos... mas resto que dá nome e abre radicalmente para a diferença. O testemunho é uma escrita, “um” poder dizer, que reverbera, que ecoa, via transmissão e extensão. Sem encerrar-se em si mesmo, não é um ponto-final, uma definição, mas a possibilidade de advir diferença. Tanto na experiência como passadora, como de passante, algo transpassa. Algo do incontornável, do intangível, do furo, acena de forma extremamente impactante. A sensação de estar fazendo um rally na banda de Mœbius, estar imersa em uma garrafa de Klein, dando loops no toro. Isto talvez diga sobre o desejo do analista, desejo de se aventurar no real, naquilo de real que cada experiência de análise, cada analisante, cada sessão pode disparar, despida, até certo ponto, de armaduras imaginárias e discursos prontos. É poder fazer uma aposta no sem sentido, no mal-entendido, no impossível da comunicação. O passe tem como horizonte a transmissão, e não a nomeação. Quem passa pelo passe terminou sua análise e não deveria ter a nomeação como objetivo ou algo de ideal. O que resta é o entusiasmo que acompanha, que impulsiona a transmissão. Sempre tentando circundar, sondar, tocar o furo, intransmissível e impossível. Enfim, o compromisso do passe é com a transmissão e não com a nomeação. Sigamos, então... fazendo Escola.

referências bibliográficas BRUNO, P. “Sans la passe...”. In: Essaim. Toulouse, n. 18, 2007, pp.11-24. LACAN, J. (1968). “Proposição de 9 de outubro de 1967”. In: Outros escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. LACAN, J. (1970-71). O seminário, livro 18: De um discurso que não fosse semblante. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro : Zahar, 2009, pp. 152-166. LISPECTOR, C. (1964). A paixão segundo GH. 4. edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 1964. p. 173.

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PRATES PACHECO, A. L. “Do impasse da fantasia ao passe: a letra entre o saber e o gozo”. In: Livro Zero. São Paulo, n.5, 2014, pp. 9-16. PORGE, E. Fundamentos da clínica psicanalítica. Tradução de J. Guillhermo Milán-Ramos. Campinas: Mercado de Letras, 2014. RODINESCO, E., PLON, M. Dicionário de Psicanálise. Tradução de Vera Ribeiro, Lucy Magalhães. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1998.

resumo O texto coloca em pauta a importância de, a partir da lógica do desejo, que passantes e passadores os quais as experiências de passe não tenham culminado em nomeação, sigam nos trilhos da transmissão. A não nomeação de AE não deve encerrar a circulação e o questionamento tanto daquilo que foi experenciado, bem como do mecanismo do dispositivo em si. A transmissão não estar atrelada à nomeação, ou submetida a ela, permite que se faça escola, que se faça laço entre a experiência e a comunidade. Guiados pela ética e pela política do desejo, em que o analista se autoriza de si mesmo, passantes e passadores podem autorizar-se de si mesmos a escrever, dizer, o indizível da experiência que vivenciaram.

palavras-chave Transmissão; nomeação; passe; Escola.

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abstract Departing from the logic of the desire, the text discusses the importance “passants” and passers whose experiences have not culminated in nomination, are to follow on the transmission tracks. The AE non-nomination should not close the circulation and the questioning of both the experience and the mechanism of the device itself. Keeping the transmission free from the nomination or submitted to itself, allows school to be carried out, and also a bond between experience and community. Guided by the ethics and politics of the desire in which the analyst gets his own authorization, “passants” and passers may authorize themselves to write and speak the unspeakable about the lived experience.

keywords Transmission; nomination; pass; School.

recebido 05/02/2016

aprovado 24/05/2016

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O que enlaça o psicanalista na Escola de Lacan? Katarina Aragão Ponciano Este questionamento surgiu do tema do encontro internacional e levou a outra questão dentro de um contexto – o de um trabalho em Cartel: um Cartel que não enlaçou os seus componentes e pertinho do fim, desenlaçou-se... Um desenlace que fez surgir uma fita. Fita na mão, rumo à produção! Por que não articular os laços à palavra empasse, uma palavra pouco conhecida na língua portuguesa, e os desenlaces aos impasses? Não há uma fórmula, mas podemos aproximar, seria algo da equivalência. A proposta é refletir sobre empasse, essa palavra pouco usada da língua portuguesa, para escrever alguns apontamentos sobre a formação do analista e o que nos enlaça. Mas para falar do empasse (do verbo empar) ficará mais fácil se retomarmos o vocábulo impasse. As duas palavras existem na língua portuguesa, mas é preciso muita atenção quanto ao seu emprego. O impasse significa beco sem saída, uma situação embaraçosa. O empasse significa a operação que consiste em amarrar as varas/estacas dos frutos de uma videira sobre dois paus, um enterrado junto à origem da vara – pau de espera – e outro junto à ponta – pau do fim (FERREIRA, 1999). Para tratar o empasse, recorremos ao texto de Freud (1919) sobre o ensino da psicanálise na universidade no qual afirma que a formação do analista deve ser sustentada a partir de um tripé constituído por ensino teórico, supervisão e análise pessoal. Esse tripé teve sua importância reafirmada por Lacan que lhe forneceu maior consistência. Então, associei ao tripé, as estacas da operação do empar que sustenta a formação do analista.

Laço e empasse ou desenlace e impasse? No prefácio do livro a Estranheza da Psicanálise, Quinet (2009) aponta que a psicanálise é Extranha em relação a outras disciplinas e à própria civilização. Ele diz: “é essa estranheza que Lacan situa no âmago da sua Escola como lugar de formação do psicanalista. A escola de Lacan é a estranha na civilização”. Lacan introduz, na “Proposição de 9 de outubro de 1967”, a dessemelhança, a desigualdade dos membros em relação à psicanálise: se todas são iguais perante o

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PONCIANO, Katarina Aragão

trabalho, nem todos são iguais perante a formação analítica e o reconhecimento como analista pela Escola. Como pensar, então, na articulação dos chamados “Colégios Clínicos” com a Escola? No mesmo texto ele introduz um grau, um gradus para o analista – gradus totalmente independente da hierarquia de mando da instituição – ao mesmo tempo em que afirma que o analista só se autoriza de si mesmo, porém na sua Escola não se autoriza e nem se desautoriza ninguém a praticar psicanálise, mas é seu dever reconhecer e garantir aquele que aí tenha feito sua formação e dado provas de sua prática de analista. A Escola confere o título de AME – analista membro da Escola. AE, analista da Escola, é o título conferido àquele que fez o passe, no qual se reconheceu a passagem de analisante a analista em seu relato sobre sua análise; com isso a Escola se diferencia das outras instituições de psicanálise, nas quais autorização e garantia se confundem. A “Proposição de 9 de outubro de 1967” de Lacan pode nortear reflexões sobre os impasses e aquilo que nos faz pensar sobre a estrutura de uma instituição psicanalítica e seus impasses. O passe foi aí proposto com a finalidade de teorizar sobre o surgimento de um analista na lógica do final de análise, o qual, após Freud, não havia sido tratado com o devido rigor. No lugar desse rigor teórico, criaram-se regras cada vez mais rígidas, padrões preestabelecidos, que longe de fazer surgir o sujeito do inconsciente o faziam sumir, ou melhor, apareceu o consumir, consumir tempo, dinheiro... assim, erguia-se uma padronização da análise e a burocratização da instituição. Em sua “Proposição”, Lacan parte do seguinte princípio: “o analista se autoriza de si mesmo”. O que se extrai de uma análise é um analista. O final da análise é marcado por essa passagem de analisante a analista. A Escola será testemunha dessa garantia não só mediante seu ensinamento, mas também por meio da instauração de uma “comunidade de experiência”. A psicanálise tomada em intensão deverá ser verificada pela Escola em sua função de extensão, ou seja, de transmissão. Lacan propõe, então, o passe na tentativa de fazer uma mostração de que daquela análise se retirou um analista. Assim, não se exclui a garantia da Escola, porém ele diz que não é com essa garantia que o analista opera. Sendo assim, há o impasse na formação. Um beco sem saída, mas que nos leva a pensarmos no empasse, no em-pares (com os pares), ou seja, é com as estacas (pau do início e pau do fim) que se faz cartel. É em-par, com os pares membros de Escola, que se pede, que se solicita o passe. Temos aí a contradição em relação a outras instituições não lacanianas, nas quais o grupo funciona como fundamento do ensino. A metáfora da videira exemplifica o trabalho do cartel, que de pau de começo e pau de fim, vai enlaçando e desenlaçando com o que vai transmitindo no percurso.

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O que enlaça o psicanalista na Escola de Lacan?

O analista é sempre advindo de uma queda, de um dejeto, mas não qualquer um. Não basta se fazer dejeto para o outro, há que se entusiasmar com a transmissão. Assim, tornar-se analista é dispor-se à transmissão com todos os seus percalços, dentro ou fora de uma instituição psicanalítica. Tornar-se analista não é um sinal verde para que o analista possa fazer simplesmente o que quer, tendo como critério seu próprio gozo. Quinet (2009) constata que a frase “o analista só se autoriza de si mesmo” com o dever de garantia em sua Escola, onde é convocado a levar ao conhecimento público o que ele faz do seu saber textual e do que foi depositado em sua experiência analítica. E quanto ao ensino da psicanálise? Pode-se pressupor a existência de um enlaçamento entre o ensino e a transmissão representados no círculo de Euler. A zona de interseção entre esses dois campos, criada a partir desse nó, aponta para uma estrutura de corte. É dessa estrutura que se extrai o estilo, com o qual o analista opera e pode inventar, ir além da cola, da identificação com os ideais. O estilo de cada um vai dizer como se dá a formalização do ensino e a transmissão somente a partir de uma singularidade diferenciando com os pares. A Escola de psicanálise encampa esses dois registros, do ensino e da transmissão, pois ela apresenta uma parte formal, de ficção e outra real, de pura falta, partes que se mesclam para deixar cair o objeto a, objeto causa de desejo. No “Ato de fundação” (1964/2003) o termo Escola, conforme Lacan, “deve ser tomado no sentido de que, em tempos antigos, significava certos lugares de refúgio, ou bases de operação contra o que já então se podia chamar de mal-estar na civilização. A partir dessa definição, entende-se que Escola implica a avaliação do estilo de vida a que a psicanálise leva. O estilo de vida se distingue de normas e modelos. Nessa perspectiva, segundo Lacan (1958/1998), o ensino da psicanálise não pode ser um saber pré-digerido. Por isso tem razão a pergunta feita em “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”: Como ensinar aquilo que a psicanálise nos ensina? Pode-se afirmar nessa pergunta que há um ensino que se passa no âmbito da experiência psicanalítica? Sim, pois, foi o que levou Lacan a dizer que toda análise é didática. Assim, se o ensino também se dá aí, há que se levar em conta a transferência e, consequentemente, o sujeito suposto saber que a concebe. Freud diz que o que se aprende na transferência jamais se esquece. Ao falar em transferência, menciono a publicação Stylus, que é uma publicação seriada da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano/Brasil, que permite que vozes, sotaques, abordagens e estilos diferentes sejam ouvidos nos diversos fóruns, pluralidade tencionada por uma mesma opção epistêmica e ética que a Escola dos Fóruns do Campo Lacaniano sustenta. Ao refletir sobre o impasse, recorremos ao texto “O mal-estar na civilização”, no qual Freud explicita que o sofrimento nos ameaça a partir de três direções: a do nosso próprio corpo, a do mundo externo e, finalmente, a de nossos relacio-

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namentos com os outros homens. Sobre essa última, enfatiza ser a mais penosa. Além disso, ressalta que na tarefa de evitar o sofrimento é prioritária a busca da felicidade. Portanto, os impasses se mostram necessários, pois como disse Freud (1920-30/1976) citando Goethe, nada é mais difícil de suportar que uma sucessão de dias belos. Por fim, sobre uma metáfora que me foi dada por uma colega do campo lacaniano, que em-par me acolheu e me fez pensar que a videira nada mais busca que se enlaçar no seu vigor, assim como os analistas, não só em-pares, mas também só ou seria sol, com sua luz própria adquirido muitas vezes no céu duro de suas análises e com suas fitas.

referências bibliográficas FERREIRA, A. B. H. Novo Aurélio Século XXI: O dicionário da língua portuguesa. 3ª ed. totalmente rev. e ampl. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. FREUD, S. (1929-30). “O mal-estar na cultura” In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas de Sigmund Freud, v. 21. Rio de Janeiro: Imago, 1976. . (1919). “Sobre o ensino da psicanálise nas universidades”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 17. Rio de Janeiro: Imago, 1976. LACAN, J. (1957). “A psicanálise e seu ensino”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1998. . (1964). “Ata de fundação da Escola Freudiana de Paris”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. . (1967). “Proposição de 9 de outubro de 1967...”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. . (1974). “Nota Italiana”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. QUINET, A. A estranheza da psicanálise: a Escola de Lacan e seus analistas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.

resumo O presente texto trata de uma reflexão sobre o enlaçamento do analista e a Escola. Esse refletir iniciou-se na construção de um trabalho de Cartel. No decorrer do texto discute-se, por meio de textos fundadores, o modo de ser e de estar do analista em consonância com sua práxis. A discussão trouxe ainda um novo significante – empar – para pensar a possibilidade de enlaçamento.

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O que enlaça o psicanalista na Escola de Lacan?

palavras-chave Passe; Cartel; Analista; Escola; Lacan.

abstract This text is a reflection about the connection between the analyst and the School, which has started in the construction of a Cartel work. Throughout the text, based on the founding texts, it is discussed the analyst’s way of being in accordance with his/her praxes. It also brings a new signifier in order to think about this possibility of bonding.

keywords Pass; Cartel; Analyst; School; Lacan.

recebido 11/02/2016

aprovado 11/04/2016

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Vozes a partir do inaudível: Verificação, auditoria e passagem pela Escola1 Matías Buttini 1. Introdução: do primeiro passo para meter os pés pelas mãos… [= “meter la pata”] À guisa de introdução ao tema que propus, trago algo que quero lhes fazer escutar. Trata-se, nem mais nem menos, do primeiro passo na Lua e do que Neil Armstrong, aquele astronauta famoso, disse nesse mesmo instante em que dava esse passo, inundando, pela primeira vez, a Lua com a voz humana (mesmo que tivesse posto o capacete, seria difícil saber se escutou algo ali, mesmo um murmúrio ou um tremor imperceptível) [Áudio]2 Ali se produz uma falha, segundo ele, um lapso segundo a crítica jornalística, que levou a que, em cada entrevista posterior ao acontecimento que ele deu em sua vida, se encarregasse de negar. Foi um problema da transmissão de rádio, dizia incansavelmente. O que se pode apreciar, em forma auditiva, é que falta o som de uma letra crucial e isso faz, quem escuta, poder supor uma mudança ou passe de sentido, um passe de mãos, inclusive um sem-sentido, como se escuta em francês (pas de sens). Esse passo grandioso se reduz, pela falta da letra “a”, em uma espécie de lapso. Escuta-se que ele diz: “é um pequeno passo para o homem”, em vez de “é um pequeno passo para um homem”. Em inglês: “That’s a small step for (a) man; a giant leap for mankind”.3 Leap significa passo e também salto. Esta letrinha que nos ecoa, Lacan não a retoma no nível do sentido senão no nível pulsional, isto é, no da voz. No Seminário 17, diz que “esses astronautas [...] teriam se saído muito pior [...] se não estivessem permanentemente acompanhados por esse pequeno a da voz humana” (LACAN, 1969-70/1992, p. 153). É todo 1 Conferência pronunciada no espaço Escola do FARP (Fórum Analítico do Rio da Prata), na segunda-feira, 27 de abril de 2015. 2 O áudio completo está em: < https://www.youtube.com/watch?v=z-N3-2YTawI >. 3 Palavras que pronunciou Armstrong em 21 de julho de 1969, o que havia sido anunciado por J. F. Kennedy, oito anos antes, em maio de 1961: “Esta nação deveria comprometer-se em levar um homem à Lua e trazê-lo de volta à Terra antes que termine esta década”.

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o comentário que faz Lacan, de passagem. Pois bem, essas vozes que se escutam, a distâncias cada vez mais inesperadas, conseguem, com sua presença, que a uns seres humanos tenha acontecido algo menos pior do que sem elas. Fala de que escutavam essas vozes ou de que podiam falar e ser escutados? Essa voz de Armstrong e as imagens transmitidas em conjunto foram questionadas por alguns como uma montagem filmada em um estúdio de televisão, que se trata de um passo em falso da ciência que cambaleia. Esboçamos, com isso, uma ideia simples: qualquer testemunho humano, por estar estruturado pela linguagem, está aberto a leituras. Outra anedota: navegando pela internet, encontrei um artigo de um rapaz chileno que se apresenta como bricoleur, alguém habilidoso, alguém a quem encarregavam uns trabalhinhos, na época em que estudava em Paris nos anos 1970. Diz: Me apresentei na rua de Lille, no 5, em um típico edifício burguês do século XIX. Abre a porta um senhor de cabelos brancos, de óculos, um tanto magro. Cumprimenta mais a minha caixa de ferramentas do que eu. Não me lembro muitos detalhes daquele lugar. Talvez não me importassem ou já estava habituado ao ambiente de intelectuais parisienses... Me propôs um servicinho, digamos delicadamente, meio doido. Me pediu que serrasse em um par de milímetros o pé de um divã. Me disse que precisava desse móvel com un petit defaut [um pequeno defeito], vamos traduzir: manco. Era o divã que, usualmente, suas pacientes utilizavam (Disponível em: <http:www.francochilenos. com/spip.php?article2452&Lang=fr>.). É uma anedota ou um rumor ou, talvez, simplesmente se trate de uma invenção como a do escritor italiano Giovanni Papini sobre seu inexistente encontro com Freud e a suposta conversa em tom de sátira. Acontece com personagens famosos e seus contemporâneos. Lacan serrando um pé de seu divã não é mais que um mito e, justamente por isso, uma metáfora de algo apelativo: uma espécie de real cambaleante, como vou chamá-lo; um incômodo que se faz sentir na experiência do dizer analisante. Um real que cambaleia por estar próximo da equivocação, do incomprovável em termos estritamente científicos ou, por que não?, um real que faz cambalear outros discursos pondo-os em questão com seu ato, “o ato de colocar o inconsciente” (LACAN, 1967-68/inédito, Aula de 10/01/1968). Seja como for, se acreditarmos nessas histórias como fatos ou invenções, elas nos servem pela posição de leitor a que aludem: convocam aquele que escuta e que deveria decidir se crê nisso ou não, ou se diretamente não o afeta. Mas o lugar está convocado, chama-se o Outro pela via da voz, já que, como testemunhou Primo Levi e sublinhou Agamben, surge um paradoxo, uma vez que aquele que não tem

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voz não deveria poder dar testemunho. O que não acontece com o muselmann (muçulmano), o abatido em Auschwitz, aquele que, justamente por não ter voz nem vida já considerada humana, por estar “irreversivelmente exausto, extenuado e próximo da morte” (LEVI, 1986, p. 92), se converte no testemunho mais perfeito dos horrores que ali aconteciam. Contudo este testemunho mudo, sem restos visíveis de humanidade, necessita da voz de outros que deem testemunho por ele, introduzindo-nos em uma estrutura diferente. Inclusive, diz Primo Levi sobre o fim definido de sua vida, da obrigação que teve de sustentar, “precisamente o de dar testemunho, fazer ouvir minha voz ao povo alemão” (LEVI, 1986, p. 92). Quando digo que está evocado o que escuta, eu o faço sublinhando que um testemunho está sujeito a afetar ou não a quem o recebe, a ser escutado ou não escutado.

2. Obedecer, auditar, verificar Queria esmiuçar um pouco o título que propus para este Espaço Escola cuja causa inicial foi um trabalho intenso de cartel que levamos adiante com vários colegas sobre o tema Leitura de testemunhos do passe (2012-2014), originalmente proposto por Lucas Boxaca e eu no marco de uma oficina aberta de leitura de testemunhos em 2012. Nós nos ocupamos, naquele momento, em fazer várias apresentações. Também [lembro] as últimas jornadas, com a presença de Colette Soler e seu comentário na atividade do CIG, em que ela disse que, diferentemente da escola, o passe não é para todos. A pergunta-guia que me conduziu ao título poderia ser formulada deste modo: como se verifica algo baseado exclusivamente no desejo? Ou, mais precisamente: como tornar audíveis seus resultados, uma Escola como a nossa, isto é, que oferece efetivamente4 pôr em prática o dispositivo do passe cada vez que alguém decide correr o risco de pedi-lo? Queria dividir em três partes este desenvolvimento: 1ª – O título: Confesso que o roubei, com a intenção de que não passe despercebido, de um livro de Theodor Reik – Voices from the inaudible: the patients speak (1964), para interrogar a Escola. Longe da qualidade de Listening with the Third Ear (REIK, 1948/1983), o melhor é o título. Trabalhou bastante na questão da voz, do som, da escuta do analista e é contemporâneo de Lacan. “Os pacientes falam” – diz. Falam graças a que ele, já entrado em anos, dá testemunho por eles, revisa as notas de sua vida, que incluem sessões de supervisão, seminários, alguma anedota com Freud e faz um livro... 4 LOMBARDI, Gabriel. Hacia un dispositivo del pase efectivamente practicable. Wunsch, n. 8, mar. 2010.

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Como pertence à IPA daqueles anos, seu corte se faz evidente: não há lugar para este sujeito dividido a que chamamos o analisado. Somente há lugar para os Analistas Atualizados Didaticamente. Eles não escapam à nomeação meritória do Grande Outro e, portanto, do discurso burocrático comum: tantas sessões e pronto! Você é analista! O autor se surpreende, porque nenhum outro analista acreditou ser útil compilar todas essas expressões espontâneas ditas no contexto de uma análise. Reik (1964) sabe que apresenta algo um pouco cru e diz: “Yet I know that the more important material is not what patients say, but what is expressed in silence – in the pauses between their sentences. Here is the unsayable and sometimes the unspeakable” (REIK, 1964, p. 8). Podemos traduzir: “Ainda assim, sei que o material mais importante não é o que os pacientes dizem senão o que se expressa em silêncio – nas pausas entre suas frases. Aqui está o que não se pode dizer (the unsayable, o indizível) e, às vezes, o inefável/inexpressável/indizível”. The unspeakable, torcendo as coisas, alguém pode fazer escutar, na passagem de uma língua a outra, um-spi-ke-able, que fale. A isso que não se pode dizer, o analista oferece o corpo sonoro, capaz de responder com sua escuta e seu que fale. Para Reik (1964), seus pacientes falam em sua memória, não recordam as caras desses sujeitos, mas “suas palavras, o tom e o timbre de suas vozes” (Ibid., p. 9). Nesse livro, permanecem como vozes: “Only their voices remain. It is almost ghostly…” (Ibid., p. 10). Esse tipo de fantasmagoria quer nos dizer que devemos tomar caminhos mais científicos, tal como estipulam os inimigos da psicanálise? Teremos de escutar essas vozes críticas e simplesmente obedecer? 2ª – Como tornar audível sem obedecer? Sempre me surpreendeu que Lacan tenha inventado o passe para dar a essas vozes um topos específico: o Espaço da Escola. Vozes inaudíveis, inauditas, não escutadas até esse momento, surpreendentes, estranhas, inesperadas. Ambos os dispositivos, o analítico e o passe, são veículos de vozes inauditas, que permitem ou não que algo inédito se produza. Esse objeto é próprio das práticas humanas. Do mesmo modo, talvez, que se eleva a voz para ressaltar algo, Lacan eleva a voz do analisante, realizando a operação contrária à de Reik: as vozes dos que se arriscam ao passe não são vozes ressonantes na recordação dos mais velhos que aprenderam ou não algo. De nenhuma forma. Quando Lacan (1967) propõe seu passe, passagem pela Escola, eleva essas vozes, fazendo com que as dos sábios permaneçam em silêncio. Por isso, tomo uma hipótese que não deve ser muito inovadora, mas de que sempre gostei; é que penso que tanto o passe como as diversas teorias sobre o final de análise se deduzem de sua aprendizagem, escutando os psicóticos, aqueles que

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se movem melhor fora do Outro e que têm outra experiência da voz. Há finais que se repetem, por exemplo, o de dar testemunho, o de secretariar, o de se inventar por fora do Outro, o de se dar um nome fora dos discursos estabelecidos. Temos, no passe-dispositivo, um marco de movimento de corpos e de vozes que veiculam um dizer diverso. Recorda-nos Colette Soler que o que se diz fica esquecido pelo próprio ato de dizer; e agregaria: a voz fica esquecida também pelo próprio ato da escuta, que costuma apontar para o significado. Esse objeto voz é o objeto fundamental da psicanálise, dizia-nos Gabriel Lombardi faz pouco tempo. Como não o vimos antes? Como não recordar, com entusiasmo, essa frase de Lacan que leva diretamente ao próprio paradoxo? Se os objetos, como ele nos ensina, não têm uma estratificação nem uma evolução padrão, se nenhum é mais ou menos fundamental que outro, como podemos afirmar que o objeto voz é o objeto fundamental da psicanálise sem nos inquietar um pouco? Além disso, não há dúvida de que é o objeto privilegiado da experiência analítica e aquele que a análise privilegia e permite personificar [encarnar]. É o que verificamos diariamente no uso freudiano do divã. Não se trata de uma técnica, tampouco de uma tecnologia avançada, nem sequer de algo retrô ou vintage, mas de um elemento ético, o ethos da palavra que articula a voz ao dizer de um sujeito. Uma voz in-audível que somente se faz audível graças ao ato analítico. Claude Jaeglé (2010), em seu Retrato silencioso de Jacques Lacan, revisa exaustivamente e com um estilo contundente a função da voz na prática de Lacan, tomandose a titânica tarefa de escutar seus seminários gravados. Insiste em que a transcrição a que estamos acostumados faz perder uma entonação, um ritmo, uma forma de dizer, a “teatralização” do que denomina um “pensamento-em-voz-alta”. Perdemos o que sai de um corpo falante ou vociferante. E diz isso de um modo poético e preciso: O dispositivo clássico da cura mobiliza o corpo do paciente sobre o divã, e o faz de modo que analista e paciente não troquem nenhum olhar, o silêncio se instala; a voz do paciente se eleva; o analista lhe opõe seu silêncio, fragmentos vocais de reinício ou de interpretação. Cada um dá ouvidos ao que o outro diz ou cala. A própria presença dos corpos se torna algo que se escuta: um gesto é um ruído. A imobilidade, um silêncio (JAEGLÉ, 2010, p. 88). O autor se interroga – como é possível que Lacan, o qual manteve seu ensino a viva voz, durante três décadas; que se opunha a publicar rapidamente seus escritos e seus seminários; como é que ele que, próximo do final de sua vida, teve um acidente automobilístico de que supostamente saiu ileso, porém fingiu haver perdido um pouco a voz (ROUDINESCO, 2012), estendendo seus silêncios ... como é

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que Lacan, tão interessado e, inclusive, perturbado pela questão da voz, dedicou apenas duas aulas do Seminário A angústia a esse tema e outros comentários soltos, e que haja produzido, em troca, um desenvolvimento muito preciso e extenso a respeito do olhar? Jaeglé (2010, p. 88) recorre aos números, dizendo que “em um quarto de século, três horas específicas, somente, são as que Lacan consagra ao vetor dominante dos intercâmbios entre um paciente e seu analista”. Finalmente, propõe uma hipótese curiosa: “Essa exiguidade do tema da voz é um enigma – senão uma omissão voluntária”. Pois bem, a grande mágica, a maçã lustrosa que oculta a serpente da obediência é, já o sabemos, como escutar sem se deixar capturar. E o sabemos há muito tempo, com o flautista de Hammelin ou desde o canto das sereias para o qual Homero nos alerta: como se desatar (anelysan) do mastro sem se deixar atrair obedientemente pelo canto das sereias? Pascal Quignard (2012, p. 68), em seu inesquecível O ódio à música, afirma uma série de questões que deveríamos retomar em uma Escola que não se orienta pelo Poder do Um senão pelas vozes de dispersos disparatados... e alguns outros. Sustenta que “escutar é obedecer. Escutar se diz em latim obaudire”. Do que derivou, em francês, obéir, obedecer; “A audição, a audientia, é uma obaudientia, portanto uma obediência”. 3ª – A que obedece nossa Escola como orelha que escuta as vozes diversas? Que tipo de auditoria deveríamos ter sem cair necessariamente na obediência da ciência, da obeciência? Podemos ler no texto de apresentação de Ecos/Echos, n. 2, Boletim do novo CIG 2015, que: O passe implica o mistério de decisões que se apoiam em encontros e mal-entendidos próprios do dispositivo, assim concebido por Lacan para deixar alguma possibilidade à transmissão do clarão [ou fulgor, brilho] de um desejo que não se divisa nas coordenadas tradicionais ou tecnológicas do reconhecimento. Que saia bem ou não, é responsabilidade dos cartéis do passe encontrar esta luz discreta, mas decisiva, para a Escola. Das perguntas que formulei, duas permanecem pendentes: a primeira – como se verifica algo baseado no desejo? E a segunda – que desejo nos anima a re-unirmo-nos ou a fazer passar nossa voz pela Escola? Sobre o termo verificação, escutamos Colette Soler repeti-lo amiúde em escritos, seus cursos e conferências: “Bonne... mas deve-se demonstrá-lo”. Que tipo de demonstração tem a Escola? Não podemos nos contentar com um laissez-faire institucional nem tampouco com as antigas análises didáticas onde o desejo do analista não figura senão como

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desejo de ser analista. Ambos, podemos dizer, da mesma forma que a ciência, evitam o sujeito e o desejo. A análise antepõe a essas vias o analisante, com um nós o verificaremos em seu discurso – ainda que eu interprete e empreste meu corpo aqui, não verificarei eu como um amo – no modo como você diz o que diz, o que lhe acontece e que efeitos teve e tem isso sobre você mesmo, tudo isso graças à regra fundamental. Na Escola, essa estrutura não tem por que mudar. Digam, testemunhem, falem, escrevam, participem das atividades. A Escola os escuta. Para verificar, com seus dispositivos veículos das vozes, a transmissão que foi produzida, ela tem suas formas. Passagem necessária pela Escola. Outros, às vezes, estão inclinados a dar testemunho aberto, livre. Há lugar na Escola para isso, sabendo que ali não se verifica nem se demonstra nada mais que alguém com seu dizer próprio, falando de sua experiência. Não é que isso tenha um valor, pelo contrário, já que o passe não é para todos, senão para quem se aventure a isso, inclusive para quem assim o deseje. Do contrário, passe obrigatório para todos igualmente e ... fracasso da Escola, como aconteceu quando da famosa “Nota italiana” de Lacan (1974). Então, é o passe como dispositivo, mas também a passagem pela Escola das vozes, o que torna possível uma verificação de algo cujos números, cujas estatísticas não têm muito que nos dizer: de tantos passantes, uns tantos foram nomeados, outros tantos, não. Se pusermos o valor nos números, nas possibilidades a que estamos acostumados desde há muito no mundo, caímos nos usos políticos mais perigosos. Por exemplo, nos Estados Unidos, a Confederação, em 1777, realizou o primeiro censo para dividir os custos da guerra e os que vieram depois, estabeleceram que se realizasse um censo a cada dez anos para assegurar igual representação das famílias, mas “para apaziguar os proprietários de plantações do Sul, os negros deveriam ser contados à razão de 3/5 de pessoa” (HACKING, 1991/2009, p. 40). Agora, por que introduzir a figura da auditoria? Essa verificação da passagem pela Escola não poderia ser feita sem essas vozes que recebe e torna audíveis. O auditor não é outro senão o que traslada seus corpos para ouvir, constituindo-se assim, a cada vez, em auditorium. Mas este auditar da Escola tem outra função: fazer com que a mensagem retorne sobre ela mesma e não somente sobre quem fala, diferença incisiva em relação ao que audita os números de uma companhia. Igualmente ao desejo, sua verificação ou sua realização depende de condições particulares de cada qual, mas sobretudo, depende também de que isso se faça audível de certa maneira. Igual ao você o disse de Lacan, o analista bem poderia responder freudianamente com um você o desejou.

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A obediência própria da voz e o escutar como encantamento, já advertido por Plínio nas leituras públicas realizadas em Roma no final do século I, quando os autores se faziam famosos lendo em voz alta seus textos e contavam com o “deleite de escutar sua própria voz” (MANGUEL, 2005), pode nos conduzir ao dogmatismo egocêntrico das massas. Plínio também adverte, por outro lado, que essa prática é “um ato realizado com a totalidade do corpo, para ser presenciado por outros” (MANGUEL, 2005, p. 262). Ambas as questões nos interessam e sob que forma. Tal como comenta Manguel (2005, p. 266), há uma terceira opção que podemos tomar para a Escola e suas vozes: “como Plínio havia explicado, as leituras públicas do autor estavam pensadas não apenas para levar o texto ao público, mas também para devolvê-lo logo ao autor” (Ibid.). Movimento de ida e volta entre o autor/ leitor, o auditor, o auditorium e o próprio texto, que não poderia reduzir-se à obediência aos números sem matar o desejo, que não pode traduzir-se em números. Para responder à segunda questão sobre o desejo que nos anima a nos reunir, agruparei as respostas que habitualmente escuto de colegas da saúde mental de diferente procedência. Por um lado, um grupo de respostas é expresso em termos de corte político-partidarista. Escutam-se palavras como militância, fanatismo, entre outras. Por outro lado, estão as respostas mais clássicas: os psicanalistas – especialmente os lacanianos –, porque permanecemos quase o dia inteiro calados, escutando outros e necessitamos da Escola como do café com os amigos ou outros dispositivos similares, que nos servem para poder falar. Esta é a resposta que chamaria de retentiva-acumulativa: calar durante o dia inteiro e, no final, falar na escola. Como essas respostas não me satisfazem muito, as primeiras, por não parecerem muito atrativas como ideia, já que levam a pensar em um líder e seus seguidores, quer se trate do ideal de doutrinamento religioso, da força política ou do treinamento militar; as segundas, porque dão maior consistência ainda ao preconceito de que nós, os analistas, calamos com um esforço enorme – eu costumo chamar de entulho lacaniano o analista mudo, que nunca fala, do qual os pacientes se queixam dizendo “nunca me dizia nada, nunca abria a boca” –, trata-se mais de uma teoria que confunde a abstinência e a atenção flutuante com uma espécie de sufocação voluntariosa de uma curiosidade exagerada ou excessiva.5 Sinto-me obrigado a buscar alguma outra que sustente o que acontece. 5 Interessante expressão, que tomo de Freud em “O Homem dos Ratos” como antecedente fundamental do desejo do analista freudiano: “o analista deve sufocar sua curiosidade”, a que agregaria um – Se é que a tem! Ponto este, o da curiosidade de Freud, que o leva a se apagar em sua posição analítica na transferência de Dora alguns anos antes. Ver suas expressões em volta do primeiro sonho, por exemplo, quando Freud confessa que se trata de “um sonho que se repetia periodicamente, era, já por este único caráter, muito apropriado para despertar minha curiosidade”.

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Algo da voz, não apenas da palavra, mas também de um percurso emocional, deverá fazer-se presente. Alguns virão porque querem saber mais, porque querem se fazer escutar; outros porque querem se agrupar, outros simplesmente porque necessitam de diálogo com colegas. Mas não aponto as causas próprias de cada membro, senão uma um tanto mais geral. A Escola é o lugar onde tornamos audível algo que nos resulta inaudito, não escutado. As vozes ressoam nos encontros, nas jornadas, nas supervisões, nos cartéis, nos passes ... todos dispositivos humanos da voz, muito diferentes dos números da ciência, das porcentagens de esquizofrênicos no mundo, das probabilidades de contrair ou não tal ou qual enfermidade mental, de acordo com a quantidade de genes malignos ativos que a cadeia de sua família lhe deixou como herança. Eu me oponho aos números! A Escola é em voz alta, é onde ressoam as vozes de quem deseja ser escutado, inclusive confrontado com seus próprios dizeres. Ainda que essa voz possa ser gravada e manipulada pela tecnologia e até resulte interessante fazê-lo, eu resisto a que se calem as vozes que querem soar, do modo próprio, não sem risco. Este oposicionismo é uma maneira antiburocrática que encontro de manter vivo o questionamento da experiência que conduzimos e à qual nos deixamos conduzir em um princípio, e é justamente ali onde um analista requer a companhia de outros que não sejam seus pacientes. Justamente, a esses astronautas de que fala Lacan, teria ocorrido algo muito pior se não estivessem acompanhados por esse a minúsculo da voz humana. Retomo esse comentário inicial, já que Lacan falou de outro personagem flutuando no espaço; mas é a imagem oposta, é alguém muito só, antecedido somente por Laika (literalmente, ladradora em russo), a cadela astronauta, em novembro de 1957, mas que não voltou. Em 16 de dezembro de 1964, tece seu comentário sobre o cosmonauta russo Yuri Gagarin, o primeiro homem a sair da atmosfera. Ele o faz para sustentar que o corpo está estruturado como uma garrafa de Klein, em que um interior e um exterior se põem em contato topologicamente com outro interior e exterior. Diz: Gagarin, aparentemente, está exatamente enclausurado – digamos para simplificar em ir rápido, não temos mais muito tempo – como o homem antigo, em seu pequeno cosmo ambulante [...] faz uma operação redobrada. Ele se envelopa em seu próprio pulmão, o que necessita que, no fim das contas, ele mije no interior de seu próprio pulmão, porque é preciso que tudo isso [refere-se aos excrementos corporais que não saíam do interior desse traje espacial] se enfie em alguma parte (LACAN, 1964-65/inédito, Aula de 16/12/1964).

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A descrição é de uma desolação que creio similar à de um analista que não dialoga com a Escola e com o que ela proporciona: como saber sobre o final da análise, por exemplo, não somente do próprio final, mas também do de outros, daqueles que fazem sua passagem pela Escola? Como investigar certa clínica sobre o desejo do analista, o final da transferência, a queda do outro etc., sem contribuir para o encontro onde esses testemunhos se dão a ouvir? É necessário, então, que os restos da experiência cotidiana se vertam em alguma parte que não seja o próprio corpo. Já que a vida do psicanalista não é cor-de-rosa e pode ser comparada a uma lixeira, como nos diz Lacan desde muito antes (1955-56, p. 47), e que eu já trabalhei com o equívoco do reco-leitor de lixo, de testemunhos, de restos de experiências. Para encerrar a apresentação, podemos tomar a palavra de Josep Monseny (2007, p. 17) quando diz que “somente fazendo parte de uma Escola na qual o passe mantenha vivo o questionamento da experiência, inclusive se for para que o grupo inteiro resista a ele, permite-se manter viva a questão da relação com o ‘desejo do analista’ para cada analista”. Uma ideia que me interessou desde que a li pela primeira vez, já que propõe o passe como adesivo da Escola, se tomarmos o jogo homofônico que faz Lacan entre École e cole, Escola e cola ou adesivo. Mas não ao modo da massa freudiana, mas ao modo de um dispositivo a que se costuma resistir na própria Escola, porém é o único capaz de manter aberta, junto com o cartel e a prática da supervisão, a pergunta sobre o desejo para cada analista. Um adesivo que não é intruso, que resiste à intrusão, à uniformidade e que se sustenta na pura diferença que o passe lhe outorga em forma verificada. Seus resultados, os que põem a experiência à prova, voltam-se sobre a própria Escola.

3. À guisa de conclusão… Queria voltar ao início, à Lua e aos avatares de alguns personagens e até a Estados inteiros sujeitos ao rigor científico, mas também à obediência muitas vezes ineludível – quando se fez auditiva, audível – dos próprios desejos, a esses vetores, que nos conduzem como flechas em direção a lugares inesperados, com o estranho convencimento de que os temos buscado de alguma maneira. Quando Neil Armstrong estava para sair dali, justamente antes de levantar a última bota da superfície lunar, escuta-se um comentário rápido, fora de toda lógica esperada. Ele diz: “Good luck, Mr. Gorsky”. Novamente, com o passar do tempo, já não negando a frase, não rechaçando a interpretação dos jornalistas, como o havia feito em relação à frase que começamos, mas simplesmente sorrindo sem responder. Parece que seu silêncio intrigou muitas pessoas e durante muitos anos...

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Até que um dia, finalmente, confessou, já que o suposto Mr. Gorsky estava morto e era chegada a hora: “Quando criança, brincava com um amigo no backyard [quintal] e a bola foi parar na casa do vizinho. Saltei escondido a cerca para recuperá-la. Nesse momento, escutei a senhora Gorsky dizendo ao seu marido: ‘Sexo oral?! Terás sexo oral no dia em que o menino daqui do lado caminhar na lua!’.” Mas, com certeza, ninguém sabe se isso é um rumor, uma lenda urbana, um testemunho ou um mito a mais sobre aquilo que já ninguém sabe com certeza se aconteceu ou foi uma invenção. Parece o limite do in-verificável, embora não seja in-audível. Certamente, muitas coisas não se podem saber. O passe não é compatível com os números nem com as estatísticas: grande passo para um homem (e para a Escola), pequeno passo para a humanidade. Tradução: Solange Mendes da Fonsêca Revisão da tradução: Ida Freitas

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resumo Que necessidade temos de nos reunir de vez em quando para falar sobre psicanálise? Que desejo nos impele a fazer Escola, a fazer passar, por ela, nossa voz? Que tipo de laços nos mantêm unidos? Nossa Escola de psicanálise conta com seus próprios métodos de verificação dos resultados de sua prática. Que diferenças nos vemos levados a estabelecer no que se refere a outros discursos? Lacan propôs à Escola, em seu conjunto, que tome a seu encargo o trabalho de dissipar essa “sombra espessa” que inunda a passagem de analisante a analista. A figura do auditor nos ajudará nessa tarefa, evitando cair em uma obediência burocráticocientífica sustentada nos números e, por isso, isenta de toda crítica. Retomemos questões essenciais como o desejo, a verificação e a auditoria.

palavras-chave A voz; auditor; escola.

abstract What need do we have to meet once in a while to talk about psychoanalysis? What desire takes us to make School, makes us pass our voice through it? What kind of bond keeps us together? Our School of psychoanalysis counts on its own verifying methods of the results in its practice. What differences are we brought to establish with other discourses? Lacan proposed the School as a whole to assume the work of dissipating the “deep shade” that floods the passage from patient to analyst. The figure of the auditor will help us in this task, avoiding us to fall into a bureaucratic-scientific obedience founded in numbers, and consequently free of any criticism. Let us return to essential issues like desire, verification and auditing.

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Vozes a partir do inaudível: Verificação, auditoria e passagem pela Escola

keywords The voice; auditor; school.

recebido 10/02/2016

aprovado 01/04/2016

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resenhas



Vers l’identité Pedro Ambra Se em 1984 assistimos se desenrolar na França discussões, congressos e publicações em psicanálise referentes à noção de identificação,1 trinta anos mais tarde é a identidade que parece estar na ordem do dia.2 Nesse sentido, Vers l’identité3 é a primeira publicação psicanalítica de maior fôlego a abordar o tema em tal contexto, já ciente de que se trata de uma noção cara aos debates contemporâneos em ciências humanas. Assim, à dissimetria do tratamento dado pelos psicanalistas ao tema da identidade em relação àquele da identificação, Soler oferece uma resposta original: não só coloca a identidade como centro da preocupação de Lacan durante todo o seu ensino como igualmente redescreve todas as séries de identificações simbólicas como respostas a uma falta de identidade do sujeito.4 Não sucumbindo ao caminho fácil de uma crítica em bloco dos efeitos subjetivos do capitalismo, Soler insiste que um dos paradoxos da contemporaneidade se refere justamente ao acirramento das identidades e à lógica segregatória que viria a suprir as falhas do laço social (p. 22). Em face de tal quadro, a autora critica posições saudosistas, que exaltam o passado como um tempo em que os sujeitos não eram “dessubjetivados” e parece sublinhar que a postura ética do analista passa por uma aposta de que os sujeitos estejam não todos aparelhados pelo capitalismo (p. 25).

1 Para citar alguns, Les identifications: confrontation de la clinique et de la théorie de Freud à Lacan de Monique David-Ménard, Jean Florence, Julia Kristeva, Jean Oury, Jacques Schotte, Conrad Stein. Paris: Denoël (1984). No mesmo ano, temos a publicação de um volume sobre a identificação da Revue Française de Psychanalyse, n. 48. 2 Além da presente publicação, a jornada dos Colégios Clínicos do Campo Lacaniano de 2014 teve como tema, justamente, “Identité et identifications”. O mesmo tema é trabalhado por Marie-Hélène Brousse em seu seminário em 2015 “Identity Politics avec Lacan”. Para além do lacanismo, o número 30, de dezembro de 2013, das Lettres de la Société de Psychanalyse Freudienne foi dedicado ao tema da identidade. 3 Resultado do seminário de 2014-2015 do Collège Clinique de Paris, ainda sem tradução para o português. Seu título pode ser vertido como “Rumo à identidade”. 4 Bem entendido, a autora diferencia uma consciência identitária – imaginária e alienante – da identidade de separação, mais ligada à singularidade e ao que, ao final do livro, definirá como o “Um borromeano”.

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AMBRA, Pedro

Assim, a clínica mostra que é o inconsciente que colocará a identidade em questão por meio de suas diversas formações e, portanto, a função da análise passa a ser a denúncia das séries de fracassos das identificações. Por meio de uma releitura da construção do grafo do desejo, demonstra-se uma primazia do desejo e da fantasia diante das identificações. Mais ainda: ao retomar o texto Subversão do sujeito e dialética do desejo, Soler sublinha o fato de que o desejo antecede a lei e não o contrário. Tal discussão, aliada à constatação de que as notações referentes ao falo não figuram no grafo do desejo, leva a autora a uma tese original: toda a construção e sustentação teórica do falo em Lacan não passam pelo pai. O falo é assim apresentado como aquele significante que exerce uma “função copulatória” entre o sujeito e Outro, e a identificação ao falo seria, portanto, uma identificação ao que falta ao Outro. A autora apresenta ainda o que chamará de “equívoco do falo”: como pode esse significante ao mesmo tempo significar o poder e a falta da castração? Ao desdobrar tal questão, Soler sublinha a rápida aproximação feita entre pai e homem no contexto da assunção do sexo e lembra que para a psicanálise o que é de fato mais estruturante é o lugar dado ao pai não como genitor, mas como pai morto, significante puro. Abre-se assim a questão: como se dá a sexuação?5 A solução desse impasse viria apenas com a formulação “não há relação sexual”. Neste quadro, o que está em jogo são, antes, posições perante a castração – os conhecidos lados todo e não todo das fórmulas – e não identificações ou semblantes. Soler retoma a expressão “ares do sexo”, utilizada por Lacan justamente para designar o que há de ideal nas identificações sexuais, que apesar de terem uma função no amor, falhariam na “hora da verdade”, momento do real do sexo no qual as identificações atestariam a inexistência da relação sexual. A autora dá ainda um passo à frente ao sublinhar o caráter contingente das fórmulas que indicam “simplesmente como o casal heterossexual se estrutura quando ele ocorre” (p. 119) sem que, no entanto, sejam uma norma, mas “somente uma possibilidade” (Ibid.). É nessa esteira que a autora comenta a máxima da identificação ao sintoma,6 lembrando que no mesmo período Lacan apresenta o parceiro como sintoma, laço que estaria além do semblante incluindo também aí a dimensão do real. Logo, o que Freud teria demonstrado para a histeria – que o sintoma vem no lugar do sexo – a partir de Lacan teria um caráter estrutural: o sintoma é o efeito

5 Para a autora, Lacan teria, assim como Freud, se perdido nessa explicação que dá ao pai a função de conformidade e normatividade sexual, o que levaria a resultados nos quais, por exemplo, a homossexualidade seria necessariamente um desvio. 6 Cumpre notar que Soler não cita textualmente o sinthome por mais que a ele faça referência. Seu apelo clínico parece relativizar a necessidade de opô-lo radicalmente ao sintoma.

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Vers l’identité

da inexistência da relação sexual. E nesse sentido a definição de sintoma dada por Soler é extremamente clínica “é assim que o sujeito percebe o que chamamos de seus sintomas, como algo que é nele, que o incomoda, mas que não é ele. A noção de identificação ao sintoma vem daí. Lacan não faz prescrição de fim de análise” (p. 129). Para a autora, o efeito terapêutico da análise vem, portanto, não de uma mudança no sintoma, mas no sujeito.

referências bibliográficas SOLER, C. Vers l’identité. Paris: Éditions du Champ Lacanien, 2015, 134p.

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Os primeiros psicanalistas: Atas da Sociedade Psicanalítica de Viena 1906-1908 Fernanda Zacharewicz e Maria Claudia Formigoni A psicanálise conta com uma história de mais de 100 anos e, ainda assim, há o que ser descoberto sobre esta ciência. A publicação do volume I da obra Os primeiros psicanalistas: Atas da Sociedade Psicanalítica de Viena 1906-1908 – traduzido direto do alemão por Marcella Marino e recém-publicado no Brasil pela editora Scriptorium, inaugurando a Coleção atentado – permite um mergulho inédito nas origens da psicanálise e, assim, novas descobertas sobre essa teoria. Está, nesses registros, um dos caminhos percorridos por Freud na construção de seu arcabouço teórico. A cena do pai da psicanálise atrás do divã, escutando seus pacientes ou escrevendo seus textos na solidão de sua escrivaninha, é comum. Costuma-se pensar em um Freud que, basicamente sozinho, teria criado a teoria psicanalítica. O único diálogo que geralmente é lembrado é o que se deu por escrito, via cartas trocadas entre Freud e alguns correspondentes, especialmente Fliess. Porém, para formular seu trabalho, fundamentá-lo e, até mesmo, transmiti-lo, outros diálogos, não escritos, estabeleceram-se. A leitura das Atas, até então inéditas em português, lança luz exatamente sobre as outras interlocuções de Freud. Os minuciosos registros dos encontros semanais entre os primeiros interessados pela psicanálise evidenciam como foi o início da construção do conhecimento psicanalítico. Na leitura, é nítida a elaboração de hipóteses, o compartilhamento de opiniões e os debates. Percebe-se também o abandono de algumas conjecturas, o aparecimento de novas e a decantação de outras, evidenciando o quanto estudavam e se punham a pensar aqueles homens que se encontravam com Freud. Mas, com quem dialogava o pai da psicanálise? Quem eram os primeiros psicanalistas? Trata-se de um grupo de homens que, a convite de Freud, se reunia todas as quartas-feiras à noite. O grupo pioneiro não era formado somente por médicos, mas também por educadores e intelectuais da época, contando com um músico e também com escritores. Participavam das “noites psicológicas de quarta-feira” Otto Rank, responsável pela redação das atas; Alfred Adler, Max Graf, pai do pequeno Hans; e outros. Depois de Fliess, esses homens passaram a ser a caixa de ressonância de Freud, como afirma Nunberg, na introdução que fez à publicação das Atas, em 1959.

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ZACHAREWICZ, Fernanda e FORMIGONI, Maria Claudia

A cada encontro, um dos membros da Sociedade era responsável por uma conferência, fosse a respeito de um caso clínico, um artigo a ser publicado, um livro, uma peça de teatro, um tema da filosofia ou, até mesmo, uma personalidade. Os temas variavam em torno de qualquer produção cultural ou científica, própria ou de outrem, que pudesse ser relacionada aos estudos psicanalíticos. Debatia-se sobre os direitos humanos, formulavam-se conceitos teóricos como o de sublimação, refletia-se sobre produções culturais como “O despertar da Primavera”, de Wedekind. Depois de cada exposição, tinha início um debate, com o qual, até 1908, todos os presentes eram obrigados a contribuir. A leitura das Atas permite perceber o quão ricas e intensas eram tais discussões, e que alguns temas discutidos à época ainda hoje são debatidos pelos psicanalistas. Cada um dos membros dessa Sociedade contribuiu, a seu modo, para a construção da teoria psicanalítica. Adler (1907/2015, p. 169), por exemplo, falou sobre aquilo que viria a ser o futuro conceito de sublimação: “Ele só vê uma maneira de conceber a substituição de um complexo por outro, a saber, criar uma outra solução para a configuração neurótica da vida pulsional (por exemplo: a pintura, a música, a psicologia)”. Freud, como já era de se esperar, fez inúmeras contribuições. Durante uma discussão sobre a neurose, falou da importância da transferência, mais um dos conceitos fundamentais da psicanálise nitidamente abordados nessas reuniões (1907/2015, p. 177). Só haveria um poder capaz de eliminar as resistências: a transferência. Nós compelimos o paciente a abandonar as resistências por amor a nós. Nossas curas são curas de amor. [...] Pode-se curar na justa medida em que há transferência [...] O destino da transferência decide o êxito do tratamento (itálicos do autor). Entre as tentativas de estruturação teórica e investigativa, descritas nas Atas, algumas foram posteriormente abandonadas por Freud. Nas reuniões dos dias 15 e 22 de abril de 1908, por exemplo, vê-se os participantes, com o conluio dele, elaborarem um “questionário para investigação da pulsão sexual”, no qual fica evidente a importância que o aspecto orgânico tinha à época. Como se sabe, Freud, ao longo do tempo, minimiza o papel desse componente na formação psíquica. Os debates que a leitura das Atas permite conhecer trazem à tona também a apropriação e o posicionamento que cada um dos membros tinha acerca dos assuntos discutidos. Muitas vezes não havia consenso e conflitos instalavam-se. Isso certamente não foi sem consequências para o movimento psicanalítico. Pode-se pensar, inclusive, que tenha levado, na última reunião antes do recesso de 1907, ao anúncio de Freud sobre a dissolução da Sociedade e sua imediata refundação,

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Os primeiros psicanalistas: Atas da Sociedade Psicanalítica de Viena 1906-1908

com aqueles que manifestassem interesse. No mesmo ano, Freud (1907/2015, p. 308) envia uma carta aos membros, anexada à ata de 9 de outubro, em que explica sua decisão: Permita-me justificar esta medida aparentemente supérflua. Temos em vista levar em conta as mudanças naturais que se produzem nas relações humanas, quando supomos que para um ou outro membro de nosso grupo a participação em nossa Sociedade possa já não significar o mesmo que nos anos anteriores, seja porque se esgotou o interesse, ou porque seu tempo livre e forma de vida o impedem de participar de nossa sociedade, ou ainda por razões pessoais que o apartam de nós. A leitura desses documentos também mostra que o corpo teórico psicanalítico constrói-se, principalmente, fora do âmbito universitário formal. As reuniões de pessoas interessadas na psicanálise marcam o estilo da transmissão freudiana desde os primeiros tempos. Freud não somente escrevia ao grande público, mas também punha-se a pensar e investigar junto com os colegas. Alguns deles colocavam Freud no lugar de mestre. Porém, a partir da leitura das Atas, é perceptível o esforço dele para não ocupar esse posto. Continuamente, propunha e instigava o debate entre todos os participantes e considerava seriamente cada uma de suas contribuições, contrapondo-as ou corroborando-as quando julgava necessário. Essa postura de Freud evidencia sua preocupação não só com a construção da psicanálise, mas também com a formação dos psicanalistas. Será plausível considerar que o funcionamento desses encontros semanais e a forma como Freud se posicionava teriam servido como inspiração para Lacan pensar sua proposta da prática de cartel? Teriam também essas discussões e debates com outros funcionado como base para que Lacan propusesse seus seminários abertos ao público? As características desses encontros propostos por Freud teriam influenciado a proposta lacaniana de formação e também de Escola? Salta aos olhos, ao longo da leitura desses registros, outra relevante preocupação freudiana – e também lacaniana: a transmissão da psicanálise. A iniciativa de reunir diferentes interessados por sua incipiente teoria, pelo comportamento humano e pelas diversas manifestações culturais é, por si só, um reflexo de tal preocupação. A psicanálise já nasce, assim, marcada por sua vocação ao diálogo com a sociedade, pela preocupação com a psicanálise em extensão, extramuros. Diversas pessoas de fora de Viena foram convidadas a participar das reuniões das quartas-feiras. Em 23 de janeiro de 1907, por exemplo, Eitingon, interno de Bleuler no hospital de Burghölzli – como também o era Jung – foi a primeira pessoa do exterior a vir debater com Freud. Já Jung participou pela primeira vez junto

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ZACHAREWICZ, Fernanda e FORMIGONI, Maria Claudia

com Binswanger, na reunião de 6 de março de 1907. Assim, em pouco tempo, a Psicanálise difundiu-se para além do Império austro-húngaro. É justamente no âmbito da preocupação com a transmissão que pode ser elencada a iniciativa de Marcelo Checchia, Ronaldo Torres e Waldo Hoffmann de publicar as Atas da Sociedade Psicanalítica de Viena. Os próximos volumes certamente lançarão mais luzes sobre as origens da psicanálise, constituindo-se uma contribuição fundamental para a história e transmissão dessa teoria.

referências bibliográficas NUMBERG, H; FEDERN, E. Os primeiros psicanalistas: Atas da Sociedade Psicanalítica de Viena 1096-1908. São Paulo: Scriptorium, 2015.

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Atos de fala Alfredo Eidelsztein O livro de Jairo Gerbase, Atos de fala, é um texto importante. Tem essa característica, pois há ali perguntas fundamentais, feitas a partir de uma perspectiva também fundamental, ou seja, buscando e propondo os fundamentos dos argumentos. Aborda, desde o começo, temáticas da psicanálise, tentando estabelecer uma lógica que esclareça, primeiramente, a questão sobre aquilo que distingue a psicanálise da medicina, especialmente da psiquiatria, e da psicologia clínica. Sem desvalorizar nenhuma dessas práticas, propõe quais seriam as hipóteses que as sustentam. O fato de estabelecer distinções a partir de questionamentos a respeito das hipóteses sobre as quais se baseiam as distintas abordagens psicoterapêuticas indica também o cuidado e a elaboração da dimensão epistemológica, habitualmente ausente nos textos dos psicanalistas, exceto nos de Freud e de Lacan. O postulado epistemológico central que Gerbase sustenta é que há fatos sob a condição de que haja ditos. Estabelecida a preexistência do dizer em relação aos fatos, o autor aborda as perguntas: como cura a psicanálise? O que se cura quando o analisante fala? A perspectiva com a qual essas perguntas são meticulosamente analisadas é a da topologia e da matematização propostas por Lacan à psicanálise. O argumento se desenvolve sustentando o autor uma topologia fundamental, a dos quatro discursos, e uma proposta metodológica que daí deriva, apresentada sob a forma de uma observação – “não leia os sentidos, leia os matemas” – comparável à proposta de Freud em “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise”. Gerbase, com seu estilo claro e direto, também explicita sua hipótese fundamental, a qual desenvolve com muito cuidado ao longo de todo o texto. Cito-o: “A hipótese fundamental da topologia da fala é saber de que maneira constrói-se uma formação do inconsciente, como o sintoma, a partir da relação do sujeito com o imaginário, o simbólico e o real” (GERBASE, 2015, p. 53). Essa hipótese fundamental sustenta-se na leitura que Gerbase faz da proposta de Lacan, sustentada, principalmente, sobre o motérialisme, o materialismo dos termos da linguagem. Nos diversos capítulos do livro, analisam-se questões importantes: como se fazem e se desfazem sintomas com palavras; prematuridade significante; psicanálise em uma só geração, e muitas outras de igual relevância para a teoria e prática da psicanálise.

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EIDELSZTEIN, Alfredo

Tal qual ensina Lacan, a forma da escrita articula-se intimamente ao seu conteúdo. Assim, destaca-se também que Atos de fala – que é um livro relativamente curto (pouco mais de cem páginas) para tratar temas tão substanciais – está dividido em quase vinte capítulos que se caracterizam por serem “claros e distintos”, o que acrescenta um valor que o leitor, certamente, apreciará. Entre os capítulos, Gerbase apresenta casos clínicos de diferenciação entre sintomas físicos e sintomas de palavra, cuidadosamente analisados. Todos os argumentos do livro que estou apresentando são realizados em um diálogo intenso com um conjunto importante de autores. Além de Freud e de Lacan, as ideias são articuladas a propostas de Benveniste, Jakobson, Cassin, Todorov, Pinto, Verdiglione, Austin e muitos outros. Gerbase, nessa importante obra, tampouco deixa de oferecer propostas pessoais – algumas das quais, na minha opinião, são muito polêmicas, por exemplo, que psicose e paranoia significam egocentrismos. Propõe, inclusive, traduções de neologismos de Lacan, tal qual parlêtre por falaser. Atos de fala é um livro que se destaca – segundo meu critério – da série de livros publicados por psicanalistas neste século. Em pouquíssimos livros, encontrei tantas perguntas compartilhadas, algumas discrepâncias e muitas outras oportunidades para, novamente, refletir sobre temas fundamentais da psicanálise e da prática clínica e, finalmente, conhecer como outros pensam a respeito desses temas e fazer com que a comunidade analítica pense sobre eles. Tomara que seja propagado, como merece. Tradução: Maria Claudia Formigoni Revisão da Tradução: Ida Freitas

referências bibliográficas GERBASE, J. Atos de fala. Salvador: Associação Científica Campo Psicanalítico, 2015.

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entrevista



Entrevista com Vladimir Safatle por Ronaldo Torres Vladimir Pinheiro Safatle é professor livre-docente da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Autor de diversos livros, dentre eles: A paixão do negativo: Lacan e a dialética. (Unesp); Cinismo e falência da crítica. (Boitempo). Grande hotel abismo: por uma reconstrução da teoria do reconhecimento. (WMF Martins Fontes) e Circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. (Cosac Naify). Também escreve regularmente em algumas mídias impressas do país. Suas pesquisas têm sido marcadas pela presença constante das contribuições que a psicanálise aportou ao campo da razão e dos afetos. Além disso, faz com que a psicanálise participe, como nos diz, de seu “modo de tentar organizar problemas e de construir questões”. Seus trabalhos têm trazido reflexões importantes sobre temas que tocam não apenas a teoria psicanalítica, mas também sua prática, inserindo-a no exame sobre as práticas discursivas que compõem o campo da cultura. Vladimir nos recebeu em sua sala na Universidade de São Paulo para a seguinte entrevista: Stylus: Primeiramente, gostaríamos de lhe agradecer a oportunidade desta entrevista. Vladimir Safatle: É um prazer. S.: O senhor desenvolve, há muitos anos, pesquisas que esclarecem relações entre questões centrais para a filosofia, principalmente a moderna e contemporânea, com alguns fundamentos importantes da psicanálise. Gostaria de iniciar esta entrevista pedindo que contasse como aconteceu, para o senhor, em seu percurso, o encontro, talvez com alguns desencontros, entre a filosofia e a psicanálise. V.S.: Na verdade, ainda na época da graduação, eu pensava em desenvolver trabalhos entre a filosofia e a psicanálise. Não tinha muita clareza se eu iria para a filosofia ou para a psicologia, porque, para mim, havia muito tempo, era muito evidente que haviam questões que só poderiam ser tratadas do ponto de vista filosófico se levássemos em conta o impacto que a psicanálise teve no interior da história do pensamento do século XX. Seria impossível falar de questões ligadas a sujeito, desejo, reconhecimento, imaginação, sem levar em conta o que a psicanálise nos aportou a respeito da noção de inconsciente e todas as consequências que

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TORRES, Ronaldo

isso traria para uma visão mais ampla do pensamento. Para mim, então, estava claro que a psicanálise era um fato filosófico fundamental, porque ela impunha à filosofia uma reorientação de rota que era inextirpável; não havia como voltar atrás, e sempre me incomodou muito uma certa reincidência de uma noção de consciência vinculada às ideias de autonomia, de unidade, de identidade, as quais me pareciam completamente na contramão de tudo aquilo que a psicanálise tinha trazido. Por isso, acabei organizando boa parte de meus trabalhos tentando explorar, de forma mais sistemática, como esse acontecimento, que foi a psicanálise, implicou vários conceitos do pensamento filosófico que exigiam uma guinada muito radical dentro do discurso filosófico enquanto tal. S.: E esses trabalhos iniciaram na graduação e em seguida… V.S.: Sim. Meu mestrado já foi sobre psicanálise, uma dissertação sobre o conceito de sujeito em Lacan, e meu doutorado foi uma tese também sobre Lacan, sobre Lacan e dialética e... S.: Foi em Paris... V.S.: Sim, exatamente. Foi [na Universidade de] Paris VIII, mais especificamente. S.: Seu orientador foi Alain Badiou? V.S.: Sim, foi Badiou. Ela acabou sendo publicada em um livro intitulado a Paixão do negativo (São Paulo: Ed. Unesp/Fapesp, 2006). S.: Muito bom, por sinal. V.S.: Fico feliz em saber que você gostou. E mesmo depois houve alguns desdobramentos, com outros trabalhos que não eram diretamente ligados a ela, o que poderíamos aqui chamar de epistemologia da psicanálise. Sempre foi muito clara a presença da psicanálise em meu modo de tentar organizar problemas, de construir questões. Até em meu último livro, O Circuito dos afetos (São Paulo: Cosac Naify, 2015), há toda uma reflexão sobre o conceito psicanalítico de desamparo, que para mim é muito claro que a presença da psicanálise se faz sentir. Quando se faz filosofia, há sempre um campo empírico que nos empurra a pensar. Acho muito estranha a ideia de que a filosofia seria uma espécie de discurso autorreferencial, que fala apenas de seus textos, de suas tradições, de seus próprios problemas. Minha visão é completamente diferente desta. A filosofia é um campo no qual os

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Entrevista com Vladimir Safatle

problemas são produzidos por experiências que vêm do exterior – ou elas vêm da política, ou elas vêm da estética, ou elas vêm da ciência, ou elas vêm da psicanálise, e, no meu caso, acredito que isso funciona de maneira muito evidente. As questões que trabalho no campo da filosofia foram produzidas pelo impacto de alguns discursos externos, e o principal deles, com certeza, é a psicanálise. S.: Neste sentido, então, Lacan também foi tocado, para tratar das questões clínicas que se apresentavam a ele desde sempre, por outros discursos, como o próprio discurso da psicanálise. Outro desses campos, como se sabe, foi o da antropologia. Talvez devêssemos dizer antropologias: primeiro com Kojève (fortemente influenciado por Hegel) e depois Lévi-Strauss (com um certo kantismo do estruturalismo). Como o senhor vê e o que pode dizer sobre o arranjo desses sistemas distintos de pensamento funcionando na obra de Lacan? V.S.: Acho que Lacan é um caso muito interessante, muito evidente, da forma como os melhores setores das ciências humanas produziram questões filosóficas. Diria que existe um certo tipo de discurso híbrido, um discurso entre as ciências humanas e a filosofia, ou esse campo que entendemos como sendo as ciências humanas. Podemos admitir que a psicanálise, à sua maneira, partilha um pouco desse campo, da mesma maneira como certos setores da sociologia o fazem. Não no sentido de partilhar o mesmo conceito de sujeito, mas de que é um tipo de discurso que tenta falar, descrever e intervir em seu objeto. Ao mesmo tempo, tem-se uma teoria psicanalítica sobre o aparelho psíquico, sobre a estrutura do desejo, a dialética do desejo; ou seja, algo que se constitui mesmo como uma teoria para além do campo clínico. A teoria da linguagem, por exemplo, não é de uso estritamente clínico, mas uma teoria tout court, no sentido forte do termo, mas além disso, é também um modelo de intervenção – há uma prática, que é a prática clínica, com suas orientações, com a sua compreensão do que é patologia. Acho que existe um setor de discursos muito interessantes, que são esses discursos híbridos, que vêm do campo das empiricidades, mas que têm uma forte carga especulativa. Freud é um caso muito evidente disso, Lacan, Lévi-Strauss, Weber também, todos eles têm um pouco essa caracterização. Acho que o caso lacaniano é extremamente expressivo da forma como uma reflexão clínica mobiliza setores e um conjunto de valores que estão para além da clínica. Não é possível compreender uma orientação clínica sem levar em conta o sistema de influências produzidas por valores de circulação no campo da cultura, na constituição do que entendemos por normalidade ou patologia, a maneira como organizamos as patologias em categorias ou orientamos o que fazer com o sofrimento. Acredito que Lacan tinha muita consciência disso. Para mim, essa é uma das razões fun-

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TORRES, Ronaldo

damentais pelas quais ele cria um sistema de retroalimentação, no qual entram a antropologia, filosofia, linguística, teoria literária, teoria social. Isso não significa nenhum tipo de ecletismo, no mau sentido do termo, mas, simplesmente, revela uma consciência muito clara de que os valores que orientam a clínica vêm de campos exteriores à clínica e, por esse motivo, uma reflexão clínica vai ser necessariamente uma reflexão sobre esses sistemas de influência. S.: Exteriores ou mais amplos do que a clínica? V.S.: São exteriores mesmo. Podemos pensar, por exemplo, em alguns valores que são fundamentais para a orientação, até mesmo de nossa compreensão do que é normalidade, equilíbrio. Saindo um pouco do campo psicanalítico e indo para o campo médico mais amplo, equilíbrio não é um valor clínico, mas um valor estético ligado à simetria. Controle, seria a capacidade que se tem de hierarquizar as próprias vontades – ter um princípio mínimo de autocontrole. Controle, portanto, não é um valor clínico, mas um valor político. Há, de fato, um sistema por meio do qual a clínica vai mobilizando, à sua maneira, esses valores ou a crítica desses valores. Nesse sentido, diria que ela vai ser sempre obrigada a se deparar um pouco com as suas exterioridades, a todo momento. Acho que Lacan é um dos psicanalistas que compreenderam isso melhor, a ponto de abandonar um pouco o modelo tradicional de exposição de conceitos por meio de casos clínicos, para desenvolver um tipo de exposição de conceito através da mobilização da literatura, da filosofia e de vários outros discursos que nos compuseram. O que é interessante no uso que Lacan faz da literatura, não é simplesmente fornecer um exemplo que pode ser mais “chamativo” do ponto de vista da sua elaboração, mas compreender que a literatura é um discurso de formação, que forma uma categoria de sujeito, um sistema de sensibilidade, um horizonte de ação e de justificação de ações. De certa maneira, quando se tem um sujeito no interior de uma situação clínica, há também um pedaço das literaturas que o compuseram. Essa maneira de pensar é muito interessante, pois não trata a literatura como um caso clínico, mas compreende, de certa forma, como, no interior da experiência literária, há estruturas de pulsões, mobilizações de afeto, que, de uma maneira ou de outra, vão servir como horizonte para a constituição, para a subjetivação, de uma vasta categoria de sujeitos que vão ser encontrados, depois, nos consultórios. S.: Talvez um elemento emblemático disso que o senhor está dizendo – que é um elemento articulador entre aquilo que é de uma esfera mais ampla ou exterior à psicanálise, e também é um elemento de pesquisa para a psicanálise, mas um elemento fundamental de intervenção, de prática da psicanálise

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Entrevista com Vladimir Safatle

– seja a noção de saber: a forma como Lacan, como Freud na verdade, trouxe, construiu a noção do saber como uma cadeia significante. Isso que move toda a estrutura simbólica; por exemplo, falamos da literatura, mas como isso se mostra como o elemento que fundamenta, mas também a própria prática da psicanálise... V.S.: Sim. Diria também o seguinte: não se trata, aqui, de fazer a defesa de uma psicanálise aplicada, ou coisa parecida. Também não acredito que os textos, sejam os de Lacan, sejam os de Freud ou de outros psicanalistas, sobre, por exemplo, fatos sociais, fatos sobre obras literárias, sejam, com efeito, de psicanálise aplicada. Acho que é uma má maneira de compreender isso. Há uma ideia, que me parece muito forte, que consiste em dizer que quando se tem um sujeito no interior da clínica, também há a vida social expressa, o sistema literário expresso em seus sofrimentos, seus sintomas. Não se tem um indivíduo no sentido trivial do termo, mas um momento da vida social, que se individualiza na figura de um sujeito. Se não se for capaz de compreender isso, talvez não se conseguirá ser capaz de compreender como os sofrimentos adquirem as suas gramáticas, no caso dessa experiência particular. Então, acho que é um modelo. O que é interessante para quem vem da filosofia, é que a psicanálise coloca em operação um modelo de intervenção clínica de alta mobilização: mobilizam-se vários setores da experiência social para poder dar conta daquilo que parece ser, em última instância, um sofrimento individual, um sofrimento psíquico individual. Mas se rebate o sofrimento psíquico interior do sofrimento social, ele é desdobrado em todos os seus campos, mobilizam-se outros setores para conseguir garantir a eficácia da sua intervenção. Este tipo de reflexão sobre o que é a clínica é muito singular da psicanálise e, para quem vem da filosofia, trata-se de uma experiência extremamente rica. S.: Gostaria de retornar, agora, a uma noção mais específica que o senhor vem pesquisando. Em determinado momento, Lacan definiu o fim da orientação da experiência analítica como uma passagem do desejo de reconhecimento ao reconhecimento do desejo. Depois, ele encontrou alguns problemas nessa formulação, problemas os quais o senhor, inclusive, trabalha muito bem em seu livro, e ele desprivilegiou a noção de reconhecimento. No Seminário 24, Lacan propõe uma subversão da noção de conhecimento, que ele sempre alinhara ao imaginário a questão da cópula sexual, mas subverte essa noção de conhecimento ao associá-la ao real do sintoma. Sei que o senhor tem trabalhado sobre a teoria do reconhecimento nos últimos tempos; sendo assim, como entende esses movimentos no interior da obra de Lacan?

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V.S.: Parece-me impossível compreender a clínica lacaniana sem o conceito de reconhecimento. Sei que uma das ideias tradicionais é que o uso do problema do reconhecimento seria muito localizado em Lacan, e que ele teria desaparecido à sua maneira, principalmente quando ele abandona o conceito de intersubjetividade como horizonte fundamental da prática analítica – isso seria por volta de 1958, 1959 e 1960. Depois disso, o conceito de reconhecimento, a ideia de reconhecimento do desejo, não teria mais lugar, porque o conceito de intersubjetividade estaria totalmente vinculado ao conceito de reconhecimento: seria um reconhecimento intersubjetivo que a prática clínica procuraria realizar e, a partir do momento em que se faz a crítica, o conceito não funciona mais. Acho essa uma leitura equivocada, por duas razões: a primeira é que o conceito de reconhecimento volta, por exemplo, no Seminário 20. Podemos encontrá-lo lá, principalmente quando Lacan fala da maneira como uma relação sexual cessa de não se inscrever; segundo, porque é possível pensar em modalidades de reconhecimento que não são necessariamente os reconhecimentos intersubjetivos. Acredito que era isso que Lacan procurava, um tipo de reconhecimento que não é mais um reconhecimento, de certa forma, entre sujeitos, mas entre sujeito e objeto – é o reconhecimento de que há algo da opacidade dos objetos que me causam e que me constituem. Essa ideia de reconhecimento é fundamental. S.: Desculpe, o senhor mencionou quando a relação sexual cessa de não se inscrever? V.S.: É, cessa de não se inscrever. Há um momento muito específico, e muito importante, do Seminário 20 em que ele retoma o conceito de reconhecimento. Chego a trabalhar isso em minha tese, porque acreditava tratar-se de uma reincidência significativa, o que é muito importante, pois há vários conceitos de Lacan que vão e voltam (a palavra plena, de certa forma, também volta), teria uma tendência. Acho que existe um problema em certas leituras de Lacan, uma “leitura de açougueiro”. Pensemos no que um açougueiro pensa quando vê um boi: “onde vou cortar?”, “como eu corto?”, “corto aqui, ali”. Isso, às vezes, produz uma situação em que se tem três Lacans, duas clínicas, seis paradigmas do gozo. Vejo isso como um mau modelo de leitura, porque se perde a experiência do pensamento em sua dinâmica interna. Normalmente, essas leituras insistem muito nesses cortes e são muito interessadas, dizendo “Lacan, quando encontra fulano, sicrano, beltrano, muda completamente de referência e deixa tudo para trás” ou ainda “quando ele encontra os althusserianos, os alunos do Althusser, aí começa o verdadeiro Lacan, então aí quando ele tematiza o real”. Acho que isso não se sustenta, nem sequer na leitura dos textos. Claro que se está falando de alguém

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que tem uma produção extensa, pois são mais de 40 anos – de 1931 até 1981 são 50 anos de produção –, com vários debates, reconfigurando uma série de conceitos em vários momentos. Mas toda experiência intelectual realmente rica tem essa característica, e é possível questioná-la, inquiri-la em sua continuidade. Levando isso em conta, diria o seguinte: parece-me que retirar o conceito de reconhecimento do campo clínico nos deixa numa situação tal, que é impossível explicar a diferença entre ter uma experiência e sofrer algo do qual eu não tenho saber algum. Ter uma experiência é um processo que exige certa elaboração, um modelo de elaboração, um modelo de implicação; preciso me implicar na experiência, e essa implicação tem um nível de reflexividade, mesmo que esse modelo passe por uma série de outras coisas que não sejam a pura experiência do pensamento (mas que é a implicação sensível, uma certa implicação no que diz respeito na sua maneira de relacionar ao seu desejo). Existe uma implicação, e isso é um dado fundamental. Essa é uma discussão que me parece que todo psicanalista compreende de maneira muito clara: o sujeito precisa se implicar em seu sintoma. O que significa, porém, implicar-se, senão se reconhecer? O que significa se implicar senão, de certa maneira, operar, desenvolver uma operação reflexiva na qual, de alguma forma, eu me vejo, mesmo em algo que é completamente irredutível à minha própria identidade como um sintoma? Então, se se retirar isso, faz-se uma espécie de defesa da irreflexibilidade, o que não faz o menor sentido na teoria de Lacan. Por isso, acho que a questão interessante para a psicanálise é pensar novas formas de reconhecimento. É claro, porém, que há certo abandono de um determinado paradigma de reconhecimento em Lacan, mas outra forma de reconhecimento se desdobra daí. Por isso, uma boa parte de meu trabalho foi tentar pensar formas de reconhecimento que não seriam formas intersubjetivas de reconhecimento – o reconhecimento de si na figura de um objeto, o reconhecimento antipredicativo, este é um trabalho ainda em curso. S.: Isso se relaciona com o que o senhor falava sobre o fato de que Lacan não exatamente abandona os conceitos, ele vai retomando, revisitando, reenlaçando... V.S.: Sim. Tenho a impressão de que são raros os conceitos que Lacan, de fato abandona. O que ele faz é... S.: O que é impressionante. V.S.: É, é impressionante, com certeza.

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S.: Porque as mudanças são grandes. V.S.: Sim, são grandes. Acho que a grande mudança mesmo é no conceito de desejo puro, pois há aí uma mudança muito importante, que reorienta completamente a experiência de final análise. S.: E, ainda assim, o desejo é uma noção fundamental. V.S.: E, ainda assim, o desejo continua até o fim. Mesmo que se desdobre desejo e pulsão, isso não implica um abandono no sentido estrito, mas em reordenações. Acho importante, para compreender a natureza dessas reordenações, reconstituir a continuidade da experiência do pensamento, senão ficamos numa situação meio bisonha. Houve um momento entre os lacanianos em que você não lia o Seminário 1 e 2 como se eles fossem algo que tivesse sido ultrapassado. Ficava-se quebrando a cabeça com os Seminários 24, 23, e eles são totalmente incompreensíveis se não se reconstitui o movimento que leva até eles. S.: Determinação e indeterminação, alienação e separação, universalização e singularização são formas de se dizer sobre a divisão do sujeito. Uma análise pode tratar do sintoma, que se enlaça a esses pontos da divisão. Todavia, essas dimensões parecem tocar também questões de ordem coletiva, como o senhor já falava – a questão da segregação, discriminação, produção da miséria. O senhor tem buscado trazer o debate de ideias para uma prática política; como considera essas questões no tecido social? V.S.: Insistiria, primeiro, no seguinte: se há algo interessante na psicanálise, é que seu conceito de sujeito não se confunde com o conceito de indivíduo. Acho muito importante lembrarmos disso. Mesmo que se tenha um modelo de clínica, que é marcadamente individualizado, atende-se um indivíduo, não um coletivo – é muito raro isso acontecer. A prática de análise institucional nunca foi de fato completamente absorvida pela psicanálise, embora algumas pessoas saiam um pouco da psicanálise e vão tentá-la – por exemplo, de La Borde, Jean Oury e Guattari, que têm uma marca muito forte da psicanálise, mas, em última instância, conservou-se muito o quadro que é do analista e do analisando. A questão é que, mesmo que se tenha uma presença individual, o que está em jogo na experiência clínica é um sujeito que não se confunde com a figura do indivíduo, que não se configura completamente sob a figura de um eu. Isso significa que se tem, no interior da experiência clínica, uma elaboração da experiência social porque, de certa maneira, relaciona-se o sujeito como um momento de um sistema de relações,

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uma rede de relações que se desenvolvem no interior da vida social, e isso traz uma série de consequências. Uma delas, por exemplo, consiste em dizer que uma experiência clínica modifica necessariamente a natureza dos vínculos sociais. Imaginar que dentro de uma experiência clínica leva-se o sujeito a fazer a crítica das construções imaginárias do seu desejo e depois, fora dela, ele terá a mesma relação fetichista de objeto no interior dos processos de consumo (como teria anteriormente) é um fracasso clínico. Porque se está modificando relações, vínculos que, por serem vínculos do sujeito ao outro, por se tratar do outro que não é simplesmente uma mera projeção fantasmática (mas de um outro institucionalizado, que tem vida social, que está encarnado na linguagem e nas suas instituições), ele constitui a sociedade enquanto estrutura institucional, as figuras de autoridade estão lá presentes, não somente as figuras paternas, mas as figuras, inclusive, das relações ao Estado. Não é à toa que Freud tem que fazer todas essas passagens e esses vínculos entre outras coisas; a ideia fundamental é de que essas relações se modificam qualitativamente dentro de uma experiência clínica. E parece-me que Lacan é alguém que tem uma consciência absoluta desse processo. Há dois exemplos muito claros disso: ele é o psicanalista que mais claramente vincula o final de análise ao problema de constituição do modelo de relação possível entre os analistas, o que traz uma série de problemas bombásticos, explosivos que foram devastadores, por um certo período. O problema é bom, mesmo que as respostas até agora não tenham sido realmente boas. O problema faz todo o sentido. Depois de um final de análise, ainda mais se levando em conta que não há diferença entre uma análise didática e uma análise para todo e qualquer sujeito, vai se colocar o problema final: qual tipo de vínculo que se produz depois da análise... S.: Qual laço social... V.S.: Exatamente. Qual laço social que se vai produzir, que se transforma no problema da escola, do laço social entre os analistas. A questão é absolutamente central, decisiva, de extrema importância e relevância. Acho que Lacan entendeu muito claramente isso. O segundo elemento, perceba, há um tipo de clínica em que várias figuras que orientam a experiência de final de análise são de problematização dos laços sociais: Antígona, Joyce... Não é por acaso que elas estão ali. Nesse sentido, é absolutamente central que se compreenda que não se está simplesmente modificando a relação do sujeito com o seu sintoma, até porque essa relação do sujeito com o seu sintoma não é individualizada pura e simplesmente. Está-se colocando em questão o modelo de relação do sujeito com os laços que o vinculam a um outro, a qual, ao mesmo tempo, é fantasmática, familiar e é social. Todas essas esferas, então, mudam, são tocadas.

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S.: E isso toca fundamentalmente a questão da transmissão? V.S.: Isso toca também a questão da transmissão, exatamente. S.: A pergunta, finalmente, é: o que uma relação como essa transmite? V.S.: Sim. S.: Uma pergunta voltada para o campo da filosofia: o que o senhor poderia dizer sobre a questão da transmissão na filosofia? Essa é uma questão para a filosofia? V.S.: Começando pelo Lacan, acredito que ele tinha a crença de uma transmissão integral – daí todo o uso do matema, da teoria dos nós, toda essa guinada logicista. Minha maneira de compreender isso é de falar, se se quiser estabelecer uma relação de transmissão, tem algo da ordem da intuição que é necessário modificar radicalmente. Talvez uma maneira de modificar a intuição seja mostrando como ela está dependente de uma certa estética transcendental, de uma certa ideia de tempo e espaço que já é a definição completa do que é o campo da experiência. É preciso, então, modificar no sujeito a sua maneira de perceber tempo e espaço – daí o uso dos toros e todas essas figuras tridimensionais, dizer “olha, está vendo como é possível intuir no espaço, intuir espacialmente de outra forma, misturar tempo e espaço, pensar em uma experiência espacial que demanda uma dinâmica temporal de passagem de um lado ao outro”. Há uma questão muito interessante quando Lacan desenvolve o problema da transmissão. Transmissão não é simplesmente uma questão de como se faz para passar de maneira mais clara certas informações, como se faz para explicar de maneira mais clara como o significante é aquilo que representa o sujeito para o outro significante; para mim, transmissão é quebrar um regime de sensibilidade, que já orienta radicalmente a nossa experiência e que vai sempre orientar essa experiência de uma determinada forma. A quebra desse regime de sensibilidade é condição necessária para que um outro campo de experiência se constitua, e esse outro campo de experiência é fundamental para que certa ideia do que significa o impacto da experiência analítica possa se desdobrar. Diria que esse tipo questão, que toda prática que se confronta com a necessidade de uma formação, que é, antes de mais nada, uma desconstituição – uma formação que só pode ser formação quando desconstitui certas representações naturais...

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S.: Uma deformação? V.S.: Não diria uma deformação, pois, ao dizer deformação parece que há uma forma estabelecida e que se vai, assim, modificá-la. Não. Ela vai ser destituída, vai se insistir no fato de que as pessoas não são tábulas rasas, elas trazem sistemas de representações naturais, as quais já definem todo o campo da experiência, já definiram o que a experiência pode ser. A primeira função da formação, então, é desconstituir as bases desse campo, e isso exige muito mais do que uma outra forma de pensar, uma outra forma de intuir, uma outra razão sensível. Aí entra uma outra discussão muito interessante, muito importante do que significa, de fato, transmissão. S.: Voltando à questão do saber e fazendo uma incursão mais propriamente no campo da política e de nossas questões atuais, há uma interpretação de que o discurso que move o Brasil atualmente a determinados retrocessos se sustenta sobre operação do desmentido (Verleugnung), o famoso eu sei, mas mesmo assim... Sabe-se, por exemplo, que uma mudança no governo atual não afetará em nada o problema da corrupção, mas, mesmo assim... Ou o senhor acredita que estamos mais próximos de algo como o esquecimento ativo do saber de nossa história? Qual seria a ordem da operação sobre o saber e a participação do saber, se é que é possível dizer algo nesse sentido? V.S.: A ideia da Verleugnung é boa, porque parte do seguinte pressuposto: posso ter uma consciência clara a respeito de uma situação, mesmo agindo de forma tal como se eu nada soubesse. Na verdade, o saber aparece como um sistema de compensação à paralisia da ação; quer dizer, a ação está paralisada, em um certo campo de atuação, e já é, à sua maneira, ilegítima do ponto de vista do saber. Mas o saber é impotente para modificar a ação, porque a estrutura da ação responde a outros interesses, a um certo tipo de afetividade, de resposta afetiva que é de natureza completamente diferente. Talvez isso funcione um pouco para se pensar algumas questões da realidade nacional. Não se trata de explicar melhor para as pessoas aquilo que elas, porventura, não saberiam; acho que há alguma coisa de pueril, uma espécie de iluminismo pueril nesse tipo de leitura, completamente impotente como se fosse uma questão de “mas espera aí, deixa eu te explicar, veja bem, você não entendeu direito”. Isso é uma empáfia intelectual, se acreditar que outro tem uma posição diversa à sua porque ele não pensa bem, ele pensa mal. Não, o outro tem uma posição diferente da sua, porque ele se afeta de outra forma, ele tem um outro circuito de afetos. O embate é muito mais relacionado aos circuitos de afetos do que realmente à estrutura de argumentação e de julgamentos.

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Aí está toda uma questão do que significa e em que condições é possível desconstituir certos circuitos de afetos, como se faz isso. Diria que isso passa ao largo, completamente ao largo da ideia de que é possível criar um espaço ideal de comunicação que se organizaria a partir de uma consensualidade suposta, que poderia se desenvolver a partir da procura do melhor argumento ou algo dessa natureza. Não se conversa em política, e acho que a primeira coisa importante a entender seria isso: abandonar de uma vez por todas a ideia de que é necessário algum tipo de conversação. Não se conversa em política, na verdade, se identifica mais os afetos que mobilizam você e o outro e se procura desconstituir a base fantasmática que produz tais afetos. Tenta-se atravessar fantasias, é o que se faz, como todo analista sabe muito bem. Isso não tem nada a ver com você explicar melhor para seu analisando o que está acontecendo e porque ele está agindo dessa forma; não é uma questão de uma intervenção na constituição de espécie de espaço de comunicação. Todo mundo sabe muito bem que uma análise não é uma comunicação; um analista não está se comunicando com seu analisando. Mesmo que se use a palavra, ali se está produzindo um outro processo, está se desconstituindo o objeto causa do desejo, destituindo o seu lugar, atravessando uma fantasia, e isso passa por um outro regime de uso da palavra, muito mais vinculada à noção de ato do que qualquer outra coisa que possa lembrar alguma consensualidade suposta. Acho que isso vale para a política. Esse é o ponto em que a experiência clínica e a experiência política estão mais próximas, e o problema é que esse é o ponto que a experiência política menos entende o que ela realmente é. Se ela se orientasse mais para o que é a experiência clínica, talvez pudesse entender melhor o que ela realmente pode produzir. S.: Então o que poderia ser uma espécie de correlato do ato analítico, no sentido de dar uma direção a uma relação, a uma experiência? Nesse sentido, qual seria o correlato de um ato analítico no campo de uma situação política tão sensível como a nossa atualmente? V.S.: Como todo verdadeiro ato, ele tem uma dimensão de explicitação de um impossível. Ele é a exigência de que aquilo que é impossível para uma situação atual possa se tornar possível, ele tem sempre uma dimensão extremada, no sentido forte do termo, porque obriga, a quem o ato é dirigido, que ele saia de uma situação, da qual ele não queria sair, da qual ele fez de tudo até agora para não sair. Cria-se uma situação extrema nesse caso... S.: O passe para o impasse.

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V.S.: Exatamente. Essa ideia de Lacan é muito bonita: a passagem da impotência ao impossível... S.: Radiofonia... V.S.: Exato, o que acho que é uma colocação muito feliz para o que significa a experiência do ato. Lacan tem uma sensibilidade clínica para compreender que o eixo fundamental – mesmo que a análise se desenvolva a partir de processo de interpretação, no sentido tradicional do termo, hermenêutico do termo –, que o eixo da experiência, se dá fora da interpretação. Ele se dá através de um tipo de ato que não é exatamente a ideia tradicional de interpretação: é, na verdade, a ideia de corte, no sentido mais forte do termo, não somente o corte da cadeia significante, o corte da palavra do analisando, quando se corta ele no final de uma sessão. É um corte no sentido de impedir que ele continue em uma certa situação, ou seja, de obrigá-lo a ir para uma situação que, para ele, é impossível ir, porque é impensável. Essa confrontação com aquilo que ele não sabe como predicar é um momento decisivo, vocês sabem disso melhor do que eu, em situações fundamentais na experiência analítica. Diria mais: isso deveria ser uma das coisas fundamentais para que se possa entender o que significa uma experiência política, e muitas vezes é exatamente isso que falta... O Brasil tem medo do ato, sempre teve. Tem um medo patológico desses atos que seriam capazes e poderiam nos tirar de uma determinada situação, nos confrontar com o impossível e obrigar a sociedade a mobilizar toda a sua criatividade para transformar uma impotência no impossível, ou seja, dar a esse possível uma caracterização de um caminho de uma outra situação. A ausência de rupturas se demonstra muito claramente nesses momentos em que se tem uma situação na qual se percebe que não há diálogo possível. Há uma sociedade que é organizada de uma forma radicalmente antagônica, uma experiência política que vai em direção aos extremos, a ponto de se ter uma franja da classe média que, de fato, ingressou em um discurso completamente fascista: 20% dos eleitores que ganham acima de cinco salários mínimos votariam hoje no [Jair] Bolsonaro. Acho que isso é significativo, por tratar-se de uma em cada cinco pessoas que conhecemos, porque são as pessoas do nosso universo. Isso demonstra que nesse momento o que se precisa é de um ato, que mostre de maneira muito clara a natureza desse antagonismo. Não que tente eliminá-lo, mas que insista nele e fale, de fato: “um se dividiu em dois”, e daqui para frente é necessário encarar essa divisão de maneira cada vez mais forte. Como falta algo dessa natureza, a política brasileira vira um gestão da desagregação contínua, a vida política e social entra em um processo, em uma dinâmica regressiva de desagregação, e o que se produz nesses momentos é simplesmente a tentativa de pensar como é

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possível ainda consertar alguma coisa, o que a gente faz para impedir que tudo pare. Mas, como todo bom analista sabe, há momentos em que se tem que falar: tudo precisa parar. Há certos momentos em que se fala: não, agora é hora de parar. Talvez tenhamos chegado a esse ponto – agora é a hora de o país parar.

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Sobre autores e tradutores Alfredo Eidelsztein Psicanalista, autor de diversos livros, dentre os quais La topología en la clínica psicoanalítica, Modelos, esquemas y grafos en la enseñanza de Jacques Lacan, Las estructuras clínicas a partir de Lacan (2 volumes), El grafo del deseo, La pulsión respiratoria en psicoanálisis e El origen del sujeto en psicoanálisis. Del Big Bang del lenguaje y el discurso en la causación del sujeto (todos pela editora Paidós). E-mail: eidelsztein@gmail.com

Ana Laura Prates Pacheco Psicanalista, Psicóloga. Mestre e Doutora em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da USP (IPUSP). Pós-Doutorado no Programa de Pós-graduação em Psicanálise do Instituto de Psicologia da UERJ. Pesquisadora convidada do LABEURN, UNICAMP. AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – FCL-SP. Coordenadora da Rede de Pesquisa de Psicanálise e Infância das Formações Clínicas do Campo Lacaniano, além de transmitir em seus próprios Seminários. Autora, dentre outros, de Feminilidade e experiência psicanalítica (Haker, 2001), de De la fantasía de infancia a lo infantil de la fantasía (Letra Viva, 2012) e Da fantasia de infância ao intanfil na fantasia (Annablume, 2012) e La letra de la carta al nudo (Un-decir, Asociacion Foro del Campo Lacaniano de Medellín, 2015). E-mail: analauraprates@terra.com.br

Andréa Franco Milagres Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano-Brasil, FCLBelo Horizonte, membro de Escola. Mestre em psicologia pela UFMG, Professora da PUC Minas, coordenadora da Residência Multiprofissional em Saúde de Betim/PUC Minas, coordenadora adjunta do NUPSI-Clínica Escola do curso de Psicologia da PUC Betim. Endereço: Rua Espírito Santo, 2.727, sala 1.302. Lourdes. Belo Horizonte – CEP: 30160-030 Email: andreafmilagres@gmail.com

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Beatriz Elena Maya Psicanalista. AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano e Membro do Fórum de Medellín e Pereira. Autora de Poesía y Psicoanálisis un desciframiento del Bien-decir (Antioquia: Editorial Universidad de Antioquia, 2013). Professora titular da Universidad de Antioquia. E-mail: belemare@gmail.com

Beatriz Elena Zuluaga Jaramillo Analista Miembro de la Escuela de los Foros del Campo Lacaniano Endereço: Calle 36 no 79 – 17 – Medellín Tel.: +412 80 30 E-mail: beatrizelenazuluagaj@gmail.com; bzulu@une.net.co

Bernard Nominé Psiquiatra, ex-residente dos Hôpitaux Psychiatriques. Psicanalista, AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, da qual é um dos membros fundadores. Ensinante no Collège de Clinique Psychanalytique du Sud-Ouest (França) e ensinante convidado em diversas formações clínicas do Campo Lacaniano na Europa, América do Sul e Austrália. E-mail: ber.nomine@free.fr

Camila Vidal Gutiérrez AE da EPFCL (2015-2018). Psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (Foro Santiago-Vigo). Docente das Formações Clínicas do Campo Lacaniano na Espanha. E-mail: camilavidal@hotmail.com

Cícero Alberto de Andrade Oliveira Graduado em Letras (Português/Francês) pela FFLCH-USP. Professor de francês e tradutor, mestre em Língua e Literatura Francesa pela mesma instituição. E-mail: ciceralb@gmail.com

Daniela Scheinkman Chatelard Doutorado em Filosofia pela Université de Paris VIII, docente associada do Programa da Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da UnB. Endereço: Asa Norte, Universidade de Brasília, Campus Universitário, Instituto de Psicologia, Departamento de Psicologia Clínica, Brasília – DF – CEP: 70910-900 E-mail: dchatelard@gmail.com

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Daniele G. Salfatis Psicanalista, membro do Fórum do Campo Lacaniano – SP. Mestre pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Fonoaudiologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Rua Três Irmãos, 310 – cj. 207 – Morumbi – São Paulo – SP – CEP: 05615-190 Email: dgsalfatis@yahoo.com.br

Dominique Fingermann Psicanalista, AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil. Autora do livro Por causa do pior (Iluminuras, 2005), em coautoria com Mauro Mendes Dias, e organizadora do livro Os paradoxos da repetição (Annablume, 2014). E-mail: dfingermann@gmail.com

Elynes Barros Lima Psicóloga, psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano e do Fórum Fortaleza. Endereço: Rua Joaquim Marques, 20-A – Presidente Kennedy – Fortaleza – CE – CEP 60356-030 E-mail: elynesbl@gmail.com

Fernanda Zacharewicz Psicóloga. Psicanalista. Doutoranda em Psicologia Social pela PUC/SP. Mestre em Gerontologia pela PUC/SP. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. Membro do Fórum do Campo Lacaniano em São Paulo. Endereço: Rua do Radium, 166 – Jd. Petrópolis – São Paulo – SP CEP 04637-050 E-mail: fzacharewicz@yahoo.com

Isalena Santos Carvalho Membro da Escola de Psicanálise do Maranhão. Doutorado em Psicologia Clínica e Cultura pela UnB, docente adjunto IV da pós-graduação em Psicologia da UFMA. Endereço: Avenida dos Portugueses, s/n, Bacanga, Universidade Federal do Maranhão, Campus do Bacanga, Centro de Ciências Humanas, Departamento de Psicologia, São Luís – MA– CEP: 65085-580 E-mail: isalenasc@yahoo.com.br

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Julia A. Minaudo Formada em psicologia pela Universidade de Buenos Aires, trabalha atualmente como psicanalista, é professora e pesquisadora na UBA nas disciplinas de Psicologia e Clínica de Adultos. Membro do FARP (Foro Analítico de Rio da Prata) e da EPFCL (Escola da Internacional dos Foros do Campo Lacaniano). Trabalha na equipe de Interconsulta do Hospital das Clínicas de Buenos Aires. É integrante da equipe de Internação e coordena grupos terapêuticos no INEBA (Instituto de Neurociências de Buenos Aires). Publicou diversos artigos sobre psicanálise, apresentados em diferentes contextos. E-mail: minaudoj@gmail.com

Katarina Aragão Ponciano Psicanalista, Doutoranda em Psicologia, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Fórum Aracaju. Endereço: Rua Dr. José Calumby Barreto, 133 – Bairro Suissa – Aracaju – SE – CEP: 49050-020 E-mail: katarinak1110@hotmail.com

Luciana Guarreschi Membro do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo. E-mail: guareschi.lu@gmail.com

Maria Claudia Formigoni Psicóloga. Psicanalista, membro do Fórum do Campo Lacaniano – SP. Mestre em Psicologia Social pela PUC-SP. Especialista em psicologia hospitalar pelo HCFMUSP. Endereço: Rua Urussuí, 92 – cj. 46 – Itaim Bibi – São Paulo – SP – CEP: 04542-050 E-mail: mclaudiaformigoni@gmail.com

Matías Buttini Formado em Psicologia pela Universidade de Buenos Aires, trabalha atualmente como psicanalista, foi e ainda é professor e pesquisador na UBA nas disciplinas de Psicopatologia e Clínica de Adultos. Nesta última, é Coordenador da área de Práticas Hospitalares. Membro do FARP (Fórum Analítico do Rio da Prata) e da EPFCL (Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano). Coordenador Geral de Psicologia e Abrigos de Saúde Mental na Instituição Terapêutica Témpora. Há muitos anos dedica parte de seu tempo a escrever. Publicou artigos sobre psicanálise, literatura e cinema e um livro de contos – Nadie soporta uma vida encantadora (Letra Viva, 2012). E-mail: matiasbuttini@yahoo.com.ar

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Muriel Mosconi Psiquiatra, psiquiatra infantil. Ex-residente dos Hôpitaux Psychiatriques e ex-especialista hospitalar agregada à Assistance Publique de Marseille. Psicanalista, AME da Escola dos Fóruns do Campo Lacaniano. Delegada da IF e ensinante no Collège de Clinique Psychanalitique du Sud-Est. Presidente e diretora de estudos do CCPSE durante dois mandatos. Responsável pelas Revues Nationales des Collèges de Clinique Psychanalytiques no 5 e no 10. E-mail: mmosconi@wanadoo.fr

Paula Rodrigues Calado Acadêmica do curso de psicologia – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Rua São Luiz Gonzaga, 580, Coronel Antonino – Campo Grande – MS – CEP: 79011-280 E-mail: paula_calado@hotmail.com

Pedro Ambra Psicanalista. Autor de O que é um homem? Psicanálise e história da masculinidade no Ocidente (Annablume, 2015) e organizador de Histeria e Gênero: o sexo como desencontro (nVersos, 2014), realiza atualmente doutorado na École Doctorale d’Études Psychanalytiques da Université Paris Diderot e no Departamento de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da USP. É um dos editores da Lacuna: uma revista de psicanálise. E-mail: pedro.ambra@gmail.com

Raul Albino Pacheco Filho Professor Titular da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), atuando no Curso de Psicologia e no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social, onde coordena o Núcleo de Pesquisa Psicanálise e Sociedade (inscrito no Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil – CNPq). Psicólogo com graduação pela PUC-SP e Mestrado e Doutorado pelo Instituto de Psicologia da USP. Psicanalista AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (EPFCL – Brasil) e da Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano (Fórum de São Paulo). Coordena a Rede de Pesquisa Psicanálise e Saúde Pública do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo. E-mail: raulpachecofilho@uol.com.br

Ricardo Cabral Professor do Instituto de Psicologia da Universidade do Brasil. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. Membro Fórum Rio de Janeiro. E-mail: ricardobc@me.com

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Ronaldo Torres Psicanalista, Membro da EPFCL-Brasil - Fórum São Paulo. Doutor pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Autor do livro Dimensões do ato em psicanálise (São Paulo: AnnaBlume, 2010). E-mail: ronaldotorrescl@gmail.com

Sávio Siqueira Doutor em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), professor de língua inglesa e linguística aplicada do Departamento de Letras Germânicas do Instituto de Letras da UFBA, coordenador do Programa de PósGraduação em Língua e Cultura. Atualmente, faz estudos de pós-doutorado no Departamento de Estudos de Aquisição de Segunda Língua na Universidade do Havaí, Manoa, Honolulu, Havaí, Estados Unidos da América. E-mail: savio_siqueira@hotmail.com

Samantha Abuleac Steinberg Psicóloga e psicanalista. Membro da EPFCL-Brasil e do FCL- SP. Endereço: Rua Groenlândia, 197, Jardim Paulista – São Paulo – SP – CEP: 01434-000 E-mail: sasteinberg09@gmail.com

Silvana Pessoa Psicanalista. Mestre em Educação pela USP. AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil. Membro do Fórum SP e Membro Honorário do Campo Psicanalítico – Salvador. Ensinante e coordenadora de atividades de transmissão nas FCCL-SP. Autora de diversos artigos em revistas nacionais e internacionais sobre a práxis e a teoria psicanalítica em intensão e extensão. E-mail: silvanapessoa@uol.com.br

Solange Mendes da Fonsêca Licenciada em Letras Neolatinas pela Universidade Federal da Bahia. Professora aposentada da Universidade Federal da Bahia (espanhol) e da Secretaria de Educação do Estado da Bahia (português, espanhol e francês). Revisora e tradutora de textos acadêmicos, artigos, ensaios, coletâneas, livros técnicos e literários. E-mail: solange_sossoh@yahoo.com.br

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Orientações Editoriais Stylus é um periódico semestral da ESCOLA DE PSICANÁLISE DOS FÓRUNS DO CAMPO LACANIANO – BRASIL e se propõe a publicar artigos inéditos das comunidades brasileiras e internacional do Campo Lacaniano, e os artigos de outros colegas que orientam sua leitura da psicanálise, principalmente pelos textos de Sigmund Freud e Jacques Lacan. Revista que aceita artigos provenientes de outros campos de saber (a arte, a ciência, a matemática, a filosofia, a topologia, a linguística, a música, a literatura etc.) que tomam a psicanálise como eixo de suas conexões reflexivas. Aos manuscritos encaminhados para publicação, recomendam-se as seguintes Orientações Editoriais. Serão aceitos trabalhos em inglês, francês e/ou espanhol. Se aceitos, serão traduzidos para o português. Todos os trabalhos enviados para publicação serão submetidos à apreciação de, no mínimo, dois pareceristas, membros do Conselho Editorial de Stylus (CES). A Equipe de Publicação de Stylus (EPS) poderá fazer uso de consultores ad hoc, a seu critério e do CES, omitida a identidade dos autores. Os autores serão notificados da aceitação ou não dos artigos. Os originais não serão devolvidos. O texto considerado aceito será publicado na íntegra. Os artigos assinados expressam a opinião de seus autores. A EPS avaliará a pertinência da quantidade de textos que irão compor cada número de Stylus, de modo a zelar pelo propósito dessa revista: promover o debate a respeito da psicanálise e suas conexões com os outros discursos.

Fluxo de avaliação dos artigos: 1.) Recebimento do texto por e-mail pelos membros da EPS de acordo com a data divulgada na rede-afcl@yahoogrupos.com.br e na if-epfcl@champlacanien. net 2.) Distribuição para parecer. 3.) Encaminhamento do parecer para a reunião da EPS para decisão final. 4.) Informação para o autor: se recusado, se aprovado ou se necessita de reformulação (neste caso, é definido um prazo de vinte dias, findo o qual o artigo é desconsiderado, caso o autor não o reformule apropriadamente). 5.) Após a aprovação o autor deverá enviar à EPS no prazo de sete dias úteis um e-mail contendo um arquivo de seu texto, definido para impressão. 6.) Direitos autorais: a aprovação dos textos implica a cessão imediata e sem ônus dos direitos autorais de publicação nesta revista, a qual terá exclusividade de publicá-los em primeira mão. O autor continuará a deter os direitos autorais para

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publicações posteriores. 7.) Publicação. Nota: não haverá banco de arquivos para os números seguintes. O autor que desejar publicar deverá encaminhar seu texto a cada número de Stylus.

Serão aceitos trabalhos para as seguintes seções: Conferências: conferências proferidas sobre temas psicanalíticos ou de interesse da psicanálise no âmbito dos Fóruns do Campo Lacaniano em Diagonais Epistêmicas e outras atividades, nas Universidades, nos Encontros da EPFCL Nacionais e Internacionais. As conferências proferidas oralmente serão transcritas. Artigos: análise de um tema proposto, levando ao questionamento e/ou a novas elaborações (aproximadamente 12 laudas ou 25.200 caracteres, incluindo referências bibliográficas e notas). Ensaios: apresentação e discussão a partir da experiência psicanalítica de problemas cruciais da psicanálise no que estes concernem à transmissão da psicanálise. Expressão mais subjetiva das escolhas discursivas e, portanto, podendo apresentar conclusão mais original (aproximadamente de 5 laudas ou 9.000 caracteres até 15 laudas ou 31.000 caracteres, incluindo referências bibliográficas e notas). Resenhas: resenha crítica ou descritiva de livros, filmes, peças teatrais ou teses de mestrado ou doutorado, cujo conteúdo se articule ou seja de interesse da psicanálise (aproximadamente de 2 a 5 laudas, entre 3.000 e 9.000 caracteres). Entrevistas: entrevista que aborde temas de psicanálise ou afins à psicanálise (aproximadamente 10 laudas ou 21.000 caracteres, incluindo referências bibliográficas e notas). Letras: poesias e poemas de autores brasileiros ou estrangeiros que tenham relação com o tema proposto para aquela edição específica da revista. STYLUS possui as seguintes seções: conferência, ensaios, trabalho crítico com os conceitos, direção do tratamento, espaço escola, entrevista e resenhas e letras; cabendo à EPS decidir sobre a inserção dos textos selecionados no corpo da revista.

Apresentação dos Manuscritos: Formatação: Os artigos devem ser digitados em Word for Windows, versão 6.0 ou superior, com extensão (.doc), em fonte Times New Roman, tamanho 12, em folha de formato A4, com espaçamento 1,5 entre linhas, margens superior, inferior e laterais de 2 cm. Ilustrações: o número de figuras (quadros, gráficos, imagens, esquemas) deverá ser mínimo (máximo de 5 por artigo, salvo exceções, que deverão ser justificadas por escrito pelo autor e avalizadas pela EPS) e devem vir separadamente em

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arquivo JPEG nomeados Fig. 1, Fig. 2 e indicadas no corpo do texto o local dessas Fig. 1, Fig. 2., sucessivamente. As ilustraçþes devem trazer abaixo um título ou legenda com a indicação da fonte, quando houver. Resumo / Abstract: todos os trabalhos (artigos, entrevistas) deverão conter um resumo na língua vernåcula e um abstract em língua inglesa, contendo de 100 a 200 palavras. Deverão trazer tambÊm um mínimo de três e um måximo de cinco palavras-chave (português) e keywords (inglês) e a tradução do título do trabalho. As resenhas necessitam apenas das palavras-chave e keywords.

Envio dos manuscritos: Ao enviar o artigo para a revista, o autor compromete-se a nĂŁo o encaminhar para outro(s) veĂ­culo(s) de publicação, pelo prazo de seis meses, a contar da data do envio. Preferencialmente, as propostas de publicação devem ser enviadas via internet, como anexo, para o e-mail revistastylus@yahoo.com. Alternativamente, podem ser enviadas em mĂ­dia digital, acompanhadas de trĂŞs cĂłpias impressas, para o seguinte endereço: FĂłrum do Campo Lacaniano – SĂŁo Paulo Revista Stylus: Revista de PsicanĂĄlise da Associação de FĂłruns do Campo Lacaniano Brasil Rua VerĂ­ssimo GlĂłria, 126. CEP: 01251-140 – SumarĂŠ (SĂŁo Paulo – SP) Os artigos devem conter os seguintes elementos:

Normas para Publicação t 1SJNFJSB MBVEB DPOUFOEP BQFOBT P UĂ“UVMP EP BSUJHP OPNF T EP T BVUPS FT dados do(s) autor(es) [titulação, filiação institucional e referĂŞncias acadĂŞmicas e profissionais, em 10 linhas, no mĂĄximo] e endereço completo (com e-mail). t %FNBJT MBVEBT OVNFSBEBT DPOTFDVUJWBNFOUF B QBSUJS EF VN SFQFUJOEP P tĂ­tulo, sem o(s) nome(s) do(s) autor(es), e contendo o texto da publicação. t /P DBTP EF JOWFTUJHBĂŽĂœFT EFTFOWPMWJNFOUPT UFĂ˜SJDPT SFMBUPT EF QFTRVJTBT EFbates e entrevistas, deve ser incluĂ­do um resumo de no mĂĄximo trezentas palavras, ao final, na mesma lĂ­ngua do trabalho, acompanhado de palavras-chave (no mĂ­nimo trĂŞs e no mĂĄximo sete). ApĂłs esse resumo, deve-se incluir tambĂŠm uma tradução do mesmo, em inglĂŞs (abstract), acompanhada da tradução do tĂ­tulo e das palavras-chave. t /P DBTP EF FOUSFWJTUB EFWFN TFS JODMVĂ“EPT BP Ä•OBM PT TFHVJOUFT EBEPT EBUB

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da entrevista, nome do entrevistador, nome do entrevistado e dados completos de identificação de ambos (titulação, filiação institucional e referĂŞncias acadĂŞmicas e profissionais). Opcionalmente, podem ser incluĂ­dos dados relevantes sobre o contexto em que foi realizada a entrevista. t /P DBTP EF SFTFOIBT EFWF TF JODMVJS BP Ä•OBM B SFGFSĂ?ODJB DPNQMFUB EB PCSB resenhada. As ilustraçþes devem ter seu lugar indicado no texto e devem ser enviadas tambĂŠm em anexos separados, em formato de arquivo JEPG. Devem ser nomeadas Fig. 1, Fig. 2, sucessivamente, podendo ainda ter um tĂ­tulo sugestivo do seu conteĂşdo.

SOBRE CITAÇÕES E REFERĂŠNCIAS BIBLIOGRĂ FICAS Indicamos a NBR 6023 da Associação Brasileira das Normas TĂŠcnicas, lançada em 2002, disponĂ­vel nos seguintes endereços eletrĂ´nicos, ambos oriundos do sĂ­tio (http://www.ip.usp.br/portal/) da Biblioteca Dante Moreira Leite, do Instituto de Psicologia da Universidade de SĂŁo Paulo: Citaçþes: (http://www.ip.usp.br/portal/images/stories/manuais/citacoesabnt.pdf) ReferĂŞncias bibliogrĂĄficas: (http://www.ip.usp.br/portal/images/stories/manuais/normalizacaodereferenciasabnt.pdf)

Citaçþes no texto: 1.

2.

As citaçþes diretas (ou textuais) devem reproduzir fielmente as palavras do autor ou o trecho do texto utilizado. Exemplo: Dessa maneira, Quinet (1991, p. 87) adverte que “nĂŁo hĂĄ duas pessoas que lidem com o dinheiro da mesma forma.â€? JĂĄ as citaçþes diretas (ou textuais) que excederem trĂŞs linhas devem vir em parĂĄgrafo separado, com recuo de quatro cm da margem esquerda (alĂŠm do parĂĄgrafo de 1,25cm) com letra menor do que a do texto e sem utilização de aspas. Os tĂ­tulos de textos citados devem vir em itĂĄlico (sem aspas), os nomes e sobrenomes em formato normal (Lacan, Freud). Exemplo: Freud (1910, p. 130) em As perspectivas futuras da terapĂŞutica psicanalĂ­tica, destaca um aspecto importante: Agora que um considerĂĄvel nĂşmero de pessoas estĂĄ praticando a psicanĂĄlise e, reciprocamente, trocando observaçþes, notamos que nenhum psicanalista avança alĂŠm do quanto permitam seus prĂłprios complexos e resistĂŞncias internas; e, em consequĂŞncia, requeremos que ele deva ini-

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ciar sua atividade por uma autoanálise e levá-la, de modo contínuo, cada vez mais profundamente, enquanto esteja realizando suas observações sobre seus pacientes. Qualquer um que falhe em produzir resultados numa autoanálise desse tipo deve desistir, imediatamente, de qualquer ideia de tornar-se capaz de tratar pacientes pela análise. 3.

4. 5.

6. 7.

8.

As citações indiretas devem conter as ideias daquele que escreve o texto, mas também devem referendar as ideias originais do autor citado, em letras maiúsculas. Exemplo: Lacan sempre deixou claro sua posição sobre os psicanalistas que se acomodavam frente aos mecanismos institucionais das escolas psicanalíticas daquela época, com suas burocracias e rituais questionáveis (LACAN, 1956). As citações de obras antigas e reeditadas devem ser feitas da seguinte maneira: Kraepelin (1899/1999). No caso de citação de artigo de autoria múltipla, as normas são as seguintes: A) até três autores – o sobrenome de todos os autores é mencionado em todas as citações, por exemplo: (ALBERTI e ELIA, 2000). B) de quatro a seis autores – o sobrenome de todos os autores é citado na primeira citação, como acima. Da segunda citação em diante só o sobrenome do primeiro autor é mencionado, como abaixo (ALBERTI et al, 2009, p. 122). C) mais de seis autores – no texto, desde a primeira citação, somente o sobrenome do primeiro autor é mencionado, mas nas referências bibliográficas os nomes de todos os autores devem ser relacionados. Quando houver repetição da obra citada na sequência deve vir indicado Ibid., p. (página citada.). Quando houver citação da obra já citada, porém fora da sequência da nota, deve vir indicado o nome da obra em itálico, op. cit., p. (Kant com Sade, op. cit., p. 781). Caso a fonte seja um website ou página eletrônica, deve-se explicitar o endereço eletrônico de acesso, entre parênteses, após a informação, (http:// www.campolacanianosp.com.br/).

notas de rodapé: As notas não bibliográficas, indicações, observações ou aditamentos ao texto feitos pelo autor ou editor, devem ser reduzidas a um mínimo indispensável, ordenadas por algarismos arábicos e organizadas como nota de rodapé, ao final da página em questão.

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Referências Bibliográficas: Os títulos de livros, periódicos, relatórios, teses e trabalhos apresentados em congressos devem ser colocados em itálico. O sobrenome do(s) autor(es) deve vir em caixa alta, seguido do prenome abreviado.

Livros, livro de coleção: 1.1 LACAN, J. (1955). A coisa freudiana. In:______. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. pp. 402-437. 1.2 FREUD, S. (1920). Além do princípio de prazer. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 18, pp. 17-88). 1.3 LACAN, J. (1960-61). O seminário, livro 8: A transferência. Tradução de Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Zahar, 1992. 386 p. 1.4 Lacan, J. O seminário: A Identificação (1961-1962): aula de 21 de março de 1962. Inédito. 1.5 Lacan, J. O seminário: Ato psicanalítico (1967-1968): aula de 27 de março de 1968. (Versão brasileira fora do comércio). 1.6. Lacan, J. Le séminaire: Le sinthome (1975-1976). Paris: Association freudienne internationale, 1997. (Publication hors commerce). Obs. O destaque é para o título do livro e não para o título do capítulo. Quando se referencia várias obras do mesmo autor, substitui-se o nome do autor por um traço equivalente a seis espaços. Capítulo de Livro: Foucault, Michel. Du bon usage de la liberté. In: Foucault, M. Histoire de la folie à l’âge classique (pp. 440-482). Paris: Gallimard, 1972. Artigo em periódico científico ou revista: Quinet, Antonio. A histeria e o olhar. Falo. Salvador, n.1, pp. 29-33, 1987. Obras antigas com reedição em data posterior: Alighieri, Dante. Tutte le opere. Roma: Newton, 1993. (Originalmente publicado em 1321). Teses e dissertações: Teixeira, A. A teoria dos quatro discursos: uma elaboração formalizada da clínica psicanalítica. Rio de Janeiro, 2001. 250 f. Dissertação.

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(Mestrado em Teoria Psicanalítica) – Instituto de Psicologia. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001. Relatório técnico: Barros de Oliveira, Maria Helena. Política Nacional de Saúde do Trabalhador. (Relatório Nº). Rio de Janeiro. CNPq, 1992. Trabalho apresentado em congresso e publicado em anais: Pamplona, Graça. Psicanálise: uma profissão? Regulamentável? Questões Lacanianas. Trabalho apresentado no Colóquio Internacional Lacan no Século. 2001 Odisseia Lacaniana, I, 2001, abril; Rio de Janeiro, Brasil. Obra no prelo: No lugar da data deverá constar (No prelo). Autoria institucional: American Psychiatric Association. DSM-III-R, Diagnostic and statistical manual of mental disorder (3rd edition revised.) Washington, DC: Author, 1998. CD Room – Gatto, Clarice. Perspectiva interdisciplinar e atenção em Saúde Coletiva. Anais do VI Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva. Salvador: ABRASCO, 2000. CD-ROM. Home Page: Gerbase, Jairo. Sintoma e tempo: aula de 14 de maio de 1999. Disponível em: www.campopsicanalitico.com.br. Acesso em: 10 de julho de 2002. Fontes eletrônicas: Fingermann, D. A análise dos analistas. Jornal de psicanálise, São Paulo, v. 41, n. 74, jun. 2008. Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-58352008000100008&lng=pt&nrm =iso>. Acesso em 8 abr. 2011. Outras dúvidas poderão ser sanadas consultando-se a versão original da ABNT 6023, como dito anteriormente, ou eventualmente endereçadas à Equipe de Publicação da Revista Stylus (EPS) para o e-mail revistastylus@yahoo.com.br

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Pareceristas Stylus 31 Alba Abreu (EPFCL-Aracaju) Andréa Hortélio Fernandes (EPFCL-Salvador) Ana Laura Prates Pacheco (EPFCL-São Paulo) Andréa Franco Milagres (EPFCL-Belo Horizonte) Angela Mucida (FCL-Diagonal Belo Horizonte) Ana Paula Lacorte Gianesi (EPFCL-São Paulo) Angélia Teixeira (EPFCL-Salvador) Bernard Nominé (EPFCL-França) Beatriz Oliveira (EPFCL-São Paulo) Christian Dunker (EPFCL-São Paulo) Conrado Ramos (EPFCL-São Paulo) Daniela Chatelard (EPFCL-Brasília) Elynes Barros Lima (EPFCL-Fortaleza) Eliane Schermann (EPFCL-Rio de Janeiro) Elizabeth Thamer (EPFCL-França) Henry Krutzen (Natal) Maria de Fátima Alves Pereira (EPFCL-Salvador) Gabriel Lombardi (Foro Analítico del Río de la Plata) Isloany Machado (EPFCL-Campo Grande) Kátia Botelho de Carvalho (EPFCL-Belo Horizonte) Luís Andrade (João Pessoa) Luis Guilherme Coelho Mola (EPFCL-São Paulo) Raul Albino Pacheco (EPFCL-São Paulo) Ronaldo Torres (EPFCL-São Paulo) Roseli Rodella (EPFCL-Aracaju) Sonia Alberti (EPFCL-Rio de Janeiro) Sandra Berta (EPFCL-São Paulo) Sônia Borges (EPFCL-Rio de Janeiro) Sonia Magalhães (EPFCL-Salvador) Silvana Pessoa (EPFCL-São Paulo) Tatiana Assadi (EPFCL-São Paulo) Vera Pollo (EPFCL-Rio de Janeiro) Zilda Machado (EPFCL-Belo Horizonte)

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“Uma topologia é o que, de partida, indica como aquilo que não está atado dois a dois, pode, entretanto, fazer nó”. LACAN, Jacques (1974-75). O seminário, livro 22: RSI, inédito (Aula de 15/04/1975) * “(...) é por um número indefinido de nós de três que uma cadeia borromeana pode ser constituída. Quanto a essa cadeia que portanto, não constitui mais uma paranoia a não ser que ela seja comum, a possível floculação terminal de quatro termos nessa trança que é a trança subjetiva nos dá a possibilidade de supor que, na totalidade da textura, haja alguns pontos eleitos que se revelam como o fim do nó de quatro. E é de fato nisso que consiste, propriamente falando, o sinthoma”.

ISSN 1676-157X

LACAN, Jacques (1975-76). O seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007, p. 52-53.


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