ISSN 1676-157X junho 2015 no 30
Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano ‒ Brasil Amor e Sexo
... o amor é a verdade, mas somente enquanto é a partir dela, a partir de um corte, que começa um outro saber que não é o saber proposicional, a saber, o saber inconsciente... O amor é dois meio-dizeres que não se recobrem. E é isto que faz o seu caráter fatal. É a divisão irremediável. Eu quero dizer à qual não se pode remediar, o que implica que o mediar já seria possível. E justamente, não somente é irremediável, mas sem nenhuma mediação. É a conexidade entre dois saberes enquanto são irremediavelmente distintos. Quando isso se produz, isso faz algo... muito privilegiado. Quando isso se recobre, os dois saberes inconscientes, isso dá um baita rolo. JACQUES LACAN OS NÃO TOLOS ERRAM (15/01/1974) Isso poderia se dizer assim: o ser sexuado não se autoriza senão de si mesmo . É nesse sentido que ele tem escolha, quero dizer que aquilo a que a gente se limita, para classificá-los como masculino ou feminino no estado civil, isso não impede que ele tem escolha. Isto, obviamente, todo mundo sabe. Ele não se autoriza senão de si mesmo, e eu acrescentaria: e de alguns outros .
ISSN 1676-157X
JACQUES LACAN OS NÃO TOLOS ERRAM (09/04/1974)
s t y l u s
epfcl brasil
30 junho 2015
stylus R E V I S TA
DE PSICANÁLISE
Amor e Sexo
escola de psicanรกlise dos fรณruns do campo lacaniano - brasil
Stylus revista de psicanรกlise
Stylus Rio de Janeiro
nยบ30 p.1-192
junho 2015
© 2015, Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (AFCL/EPFCL-Brasil) Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem permissão por escrito. Stylus Revista de Psicanálise É uma publicação semestral da Associação Fóruns do Campo Lacaniano/Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil. Rua Goethe, 66 – 2º andar. Botafogo. Rio de Janeiro, RJ Brasil. CEP 22281-020 – www.campolacaniano.com.br – revistastylus@yahoo.com.br Comissão de Gestão da AFCL/EPFCL-Brasil Diretora: Lia Silveira Secretária: Sandra Mara Nunes Dourado Tesoureira: Andréa Rodrigues
Conselho Editorial Ana Laura Prates Pacheco (EPFCL-São Paulo) Andréa Fernandes (UFBA/EPFCL-Salvador) Ângela Diniz Costa (EPFCL-Belo Horizonte) Ângela Mucida (Newton Paiva/EPFCL-Belo Horizonte) Angélia Teixeira (UFBA/EPFCL-Salvador) Equipe de Publicação de Stylus Bernard Nominé (EPFCL-França) Dominique Fingermann (coordenadora) Clarice Gatto (FIOCRUZ/EPFCL-Rio de Janeiro) Elynes Barros Lima Conrado Ramos (PUC-SP/EPFCL-São Paulo) Geísa Freitas Christian Ingo Lentz Dunker (USP/EPFCL-São Paulo) Ida Freitas Daniela Scheinkman-Chatelard (UNB/EPFCL-Brasília) Isloany Dias Machado Edson Saggese (EPFCL – Rio de Janeiro) Ronaldo Torres Eliane Schermann (EPFCL – Rio de Janeiro e Petrópolis) Roseli Rodella Elisabete Thamer (Doutora em filosofia Universidade de Paris IV/Sorbonne) Indexação Eugênia Correia (Psicanalista-Natal) Index Psi periódicos (BVS-Psi) Gabriel Lombardi (UBA/EPFCL-Buenos Aires) www.bvs.psi.org.br Graça Pamplona (EPFCL-Petrópolis) Helena Bicalho (USP/EPFCL-São Paulo) Editoração Eletrônica Henry Krutzen (Psicanalista/Natal) 113dc Design+Comunicação Kátia Botelho (PUC-MG/ EPFCL-Belo Horizonte) Luís Andrade (UFPB/EPFCL-Paraíba) Tiragem Marie-Jean Sauret (Université Toulouse le Mirail/Toulouse) 500 exemplares Nina Araújo Leite (UNICAMP/Escola de Psicanálise de Campinas) Raul Albino Pacheco Filho (PUC-SP/EPFCL-São Paulo) Sonia Alberti (UERJ/EPFCL-Rio de Janeiro) Vera Pollo (PUC-RJ/UVA/EPFCL-Rio de Janeiro) FICHA CATALOGRÁFICA
STYLUS: revista de psicanálise, n. 30, junho de 2015 Rio de Janeiro: Associação Fóruns do Campo Lacaniano Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil - 17x24 cm Resumos em português e em inglês em todos os artigos. Periodicidade semestral. ISSN 1676-157X 1. Psicanálise. 2. Psicanalistas – Formação. 3. Psiquiatria social. 4. Psicanálise lacaniana. Psicanálise e arte. Psicanálise e literatura. Psicanálise e política. CDD: 50.195
sumário 07 Editorial: Dominique Fingermann Conferência 13 Luis Izcovich: Os nós do amor e dos gozos 21 Luis Izcovich: Amor: semblantes e sinthoma Ensaios 31 Ana Laura Prates Pacheco: Para sempre é sempre por um triz 43 Fabiano Chagas Rabêlo: Notas sobre o fantástico e a sexuação a partir do conto As Academias de Sião, de Machado de Assis Trabalho crítico com conceitos 59 Colette Soler: Nova economia sexual 69 Marc Strauss: A escolha do sexo: o que dizem disso? 79 Maria Luisa de la Oliva: A insistência do real na sexualidade: diferentes perspectivas da psicanálise e o feminismo 91 Elisabeth da Rocha Miranda: Transexualidade e Sexuação Direção do tratamento 103 Dominique Fingermann: Amar adentro 111 Kátia Botelho de Carvalho: Percurso de uma análise: do sexo anônimo ao amor de um nome 121 Vera Pollo: Quando o amor devasta Espaço Escola 135 Andréa Hortélio Fernandes: A Escola de psicanálise e sua garantia 143 Luciana Guarreschi: Passador, um leitor Resenha 151 Paulo Marcos Rona: Os paradoxos da repetição 157 Elaine Foguel: Amor, Desejo e Gozo 165 Raul Albino Pacheco: As homossexualidades na Psicanálise: na história de sua despatologização Letras 176 Louise Labé: Débat de Folie et d’Amour 178 Gregório de Matos: Definição do amor
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contents 07 Editorial: Dominique Fingermann Conference 13 Luis Izcovich: The knots of love and jouissance 21 Luis Izcovich: Love: semblants and sinthome Essays 31 Ana Laura Prates Pacheco: Forever is always a close call 43 Fabiano Rabêlo Chagas: Notes about the Fantastic and sexuation based on the short story As Academias de Sião by Machado de Assis Critical paper with the concepts 59 Colette Soler: The new sexual economy 69 Marc Strauss: Sex choice: what do you say about this? 79 Maria Luisa de la Oliva: The insistence of the real in sexuality: different perspectives of psychoanalysis and the feminism 91 Elisabeth da Rocha Miranda: Transexuality and Sexuation The direction of the treatment 103 Dominique Fingermann: Love inside out 111 Kátia Botelho de Carvalho: Course of an analysis: from the anonymous sex to love of a name 121 Vera Pollo: When love devastates School Context 135 Andréa Hortélio Fernandes: The Psychoanalysis School and its guarantee 143 Luciana Guarreschi: Passer, a reader Review 151 Paulo Marcos Rona: The paradoxes of repetition 157 Elaine Foguel: Love, desire, and jouissance 165 Raul Albino Pacheco: The homosexualities in Psychoanalysis: in the course of its ‘depathologicalization’ Letters 176 Louise Labé: Debate of Madness and Love 178 Gregório de Mattos: Definition of love
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Editorial A Revista Stylus 30 “Amor e Sexo” propõe-se a desenvolver um assunto — a conjunção do amor e do sexo — ou, antes, dois assuntos distintos ligados por uma conjunção disjuntiva? Há hiato ou junção entre o amor e o sexo? Há hiato entre a verdade do amor e o real do sexo. De qualquer forma, a questão interessa ao senso comum, às queixas das vidas ordinárias, frequentemente lamentando a incompatibilidade, aos poetas e aos psicanalistas. Freud reuniu Amor e Sexo com o conceito único de Libido, mas, ao descrever as pulsões como parciais, apontava para o “não há relação sexual”, que Lacan extraiu como seu Dizer. O amor “verdadeiro”, e em primeiro lugar a transferência, revelase como a mentira veladora do real do sexo. O Seminário XX de Lacan, “Mais ainda”, Encore, escreve e explicita a junçãodisjunção do amor e do sexo. O sexo procede de e remete à solidão fundamental do parlêtre. Será o amor um mero sonho que pretende “identificar pelo amor o gozo não todo ao gozo prometido pelo significante”, ou podemos conceder-lhe um alcance ético que não seja simplesmente de equivocação, mas sim de suplência à “não relação sexual”? “Mais ainda [Encore] é o nome próprio dessa falha de onde, no Outro, parte a demanda de amor”.1 Desde o En-corps, Un-corps, Um-corpo sozinho, parte a demanda de amor visando um outro que o desejo elege pela graça dos signos enigmáticos inscritos no a-muro de seu corpo. Enigma que o fantasma se presta a reduzir à sua significação solitária. No entanto, o amor como resposta, atesta a impossibilidade, mas produz um saber fazer que “se vira com isso”, a partir dos rastros singulares deixados pela incorporação d’alíngua e sua empolgação pelo dizer de Um. O amor, enquanto suplência, pode fazer laço, isto é, sinthoma — dirá Lacan mais para frente no Seminário XXIII — que logra enodar a relação de um sujeito a seu gozo singular de falasser com o corpo de um outro semelhante sexuado. Stylus 30 distribui os artigos recebidos e selecionados pelos pareceristas nas rubricas habituais dos outros números, com acréscimos: a volta do Espaço Escola e uma nova seção Letras, que encerra este número com a poeta Louise Labé (século XVI). “Mais ainda” (Encore) poderia ser o título do poema que dá o tom da Revista, cantando eroticamente uma das consequências amorosas do sexo: ao gozar um do outro “à vontade”, alcança-se a desmedida que satisfaz, pois “não me 1 LACAN, Jacques (1972-73). O Seminário, livro 20: Mais ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, pp. 12-13. No original: “Encore, c’est le nom propre de cette faille d’où dans l’Autre part la demande d’amour”.
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FINGERMANN, Dominique
posso dar contentamento, se, fora de mim, não faço alguma investida”. Gregório de Matos (século XVII), por sua vez, indaga, procura, supõe, para concluir sem vergonha que o amor é “uma confusão de bocas/uma batalha de veias/um reboliço de ancas/quem diz outra coisa, é besta”. t $PMPDBNPT Ë EJTQPTJÎÍP EP MFJUPS P UFYUP EBT Conferências de Luis Izcovich no Encontro Nacional 2014 da EPFCL-Brasil, em Campo Grande. A primeira, Os nós do amor e dos gozos, coloca a questão de um novo enodamento do amor, do gozo e da identidade sexual em consequência de uma análise, e aponta a satisfação de fim de análise como efeito de uma certeza com relação à identidade sexual, condição de acesso a um novo amor. A segunda, Amor: semblantes e sinthoma, parte da premissa de que a análise forja uma identidade sexual que não é da ordem do semblante, ela não é dada pelo Édipo e seus significantes; por isso, a resposta singular dada pelo sujeito ao “não há relação sexual” é sempre sintoma, a análise permitindo viver este sintoma de outra maneira, com novo enodamento. t &OTBJPT nos brinda com as surpreendentes Notas sobre o fantástico e a sexuação a partir do conto As Academias de Sião, de Machado de Assis, de Fabiano Rabêlo Chagas, e o desenvolvimento preciso de Ana Laura Prates Pacheco. Com efeito, Para sempre é sempre por um triz retoma a distinção estrutural por Lacan do nó borromeano e do nó olímpico, aquele que tenta escrever a relação sexual, com a prevalência de um registro sobre o outro. Dessas tentativas decorre uma tipologia de modos de amor “impostores”, o amor a Deus, o amor Cortês ou o amor masoquista. Um novo amor, não olímpico/edípico procede da surpresa “por um triz”, não sem certa disposição anterior e posterior ao encontro contingente. t &N Trabalho crítico sobre conceitos, o sexo está na berlinda, como escolha, insistência do real, e investiga os fundamentos estruturais da nova economia sexual que as formas “trans”, entre outras, atuam, e que as teorias do gênero tentam explicitar. Colette Soler, em seu texto Nova economia sexual, enfrenta a questão: como se instaura para o falante o corpo a corpo do coito hetero-sexual, já que a descoberta de Freud “há pulsões parciais, mas não pulsão genital” resulta no “não há relação sexual”? Duas frases paradoxais de Lacan: “eles têm a escolha” e “os seres sexuados se autorizam de si mesmos” escancaram a disjunção entre a opção sexual do todo ou não-todo fálico e as práticas de corpo propriamente ditas, pois se há escolha forçada da identidade de gozo, esta não decide o parceiro do encontro em ato com o sexo. Hiato, não mais escondido pelo discurso atual, o que explicita a nova economia sexual nos tempos de hoje e a singular incidência da psicanálise nos destinos da maldição sobre o sexo. Marc Strauss em seu texto A escolha do sexo: o que dizem disso? articula a questão teórica com a questão clínica do tratamento do não-todo na neurose e na psicose. Ele propõe verificar em que a definição por Lacan de um gozo feminino a
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Editorial
partir de uma lógica inédita dita não-todo muda o exercício da psicanálise, isto é, a interpretação que ela faz dos sintomas, intrusões desse não-todo que se manifesta em uma cena onde ele não tem nada a ver. Maria Luisa de la Oliva, em A insistência do real na sexualidade, propõe uma discussão entre a lição da estrutura relida por Lacan como “não há proporção sexual” e alguns postulados das teorias feministas com relação à sexualidade, verificando seus pontos de encontro e desencontro. Transexualidade e sexuação, de Elisabeth da Rocha Miranda, considera corajosa e clinicamente os novos questionamentos clínicos que o discurso capitalista, em cumplicidade com a ciência, impõe ao tratamento da questão dos transexuais. t %JSFÎÍP EP USBUBNFOUP apresenta três textos que percorrem as consequências clínicas do amor e a hipótese de que o amor de transferência possa, no final das contas, permitir o acesso a um amor, em função de suplência e não mais de impostura. Dominique Fingermann, em Amar adentro, percorre os diversos aforismos de Lacan a respeito do amor para cingir o que suas ficções apontam como real: além de seu sentido e de suas significações, o amor mais digno é signo de Um. Kátia Botelho de Carvalho, com Percurso de uma análise: do sexo anônimo ao amor de um nome, resume a travessia analítica que os diversos “giros” ocorridos no processo proporcionam ao analisante, a descoberta/invenção de novo modo de enlaçamento com o outro pela via do “amor de um nome”. Vera Pollo, com seu generoso trabalho Quando o amor devasta, nos permite uma aproximação teórico-clínica do problema mencionado por Lacan da devastação nas relações amorosas, partindo da relação com a mãe e precisando o seu alcance com os exemplos da clínica e de Fedra, de Racine. t &TQBÎP &TDPMB propõe desta vez duas colaborações de colegas que averiguam outro tipo de laço, o laço entre analistas, ou seja, os comprovadamente “esparsos desparelhados”. Andréa Hortélio Fernandes, em A Escola de Psicanálise e sua garantia, e Luciana Guarreschi, com Passador, um leitor, colocam o analista e seus laços na berlinda. t 1PS ĕN UFNPT B TFÎÍP Resenhas, na qual Paulo Marcos Rona, Elaine Foguel e Raul Albino Pacheco Filho, graças a seus comentários entusiastas e meticulosos, nos oferecem um acesso aos livros recém-publicados por colegas do Campo Lacaniano no Brasil: Os paradoxos da repetição, Amor, Desejo e Gozo e As homossexualidades na psicanálise: na história de sua despatologização. Desejamos uma boa leitura a vocês! Dominique Fingermann pela Equipe de Publicação
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conferĂŞncia
Os nós do amor e dos gozos Luis Izcovich I Conferência – XV Encontro Nacional da EPFCL-Brasil Campo Grande, 14/11/2014 Os fracassos no amor são uma razão frequente para se buscar um analista. Basta retomarmos os casos de Freud para constatar, de maneira sistemática, que os impasses no amor e suas repetições se situam no primeiro plano das demandas de análise. É o que acontece, muitas vezes, no caso da histeria; e mesmo quando o amor não está na origem da demanda, os sujeitos não tardam em abordar as impossibilidades que estão ligadas a ele. Algumas vezes, o sujeito acredita ter encontrado a saída na análise no momento em que se apaixona — ou seja, a cura pelo amor —, o que pode produzir uma saída prematura que se verifica pelo fato de que o sujeito é recapturado pela repetição, o que é um retorno aos impasses. O encontro amoroso provoca, então, às vezes, a saída prematura da análise. O amor vai à falência, dizia Lacan com relação à psicose, mas ele não deixa tampouco de ser uma falência na neurose, ainda que ela não seja a mesma. O próprio Lacan ainda faz referência a isso na última parte de seu ensino, ao evocar os impasses do amor na histeria. Em seguida, ele aborda as saídas possíveis. É um fato clínico que, se a demanda que concerne aos impasses no amor permanece atual até hoje, uma outra demanda nela se implantou. Esta ganhou cada vez mais valor nos discursos dos analisantes, ultrapassando algumas vezes a queixa sobre os obstáculos no amor. Estou me referindo ao gozo. Isso toma, às vezes, a forma de uma questão relativa à satisfação: será que estou satisfeito o bastante ou seria possível sê-lo ainda mais? Às vezes, essa questão se mistura ao amor. Um exemplo clínico recente demonstra isso especialmente: trata-se de uma mulher que sonha há muito tempo encontrar o parceiro amoroso. Uma vez que o encontrou e passado o tempo da idealização, ela formula a si mesma a questão de como saber se, com um outro, ela não estaria mais satisfeita. Em outras palavras, ela se coloca a questão explicitamente: que segurança ela pode ter de que com o próximo não será melhor? Podemos observar que, aqui, a questão recai mais sobre a satisfação do gozo do que sobre a satisfação do desejo, que é de um nível diferente. Na época atual, a satisfação ligada ao gozo torna-se, muitas vezes, uma exigência endereçada ao analista e exclui radicalmente o amor. Um outro exemplo, que
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não é o único, serve para demonstrar isso. Trata-se de uma mulher que se dirige ao analista e formula a seguinte questão: “O amor, eu o conheço; mas será que eu conheço o que é o sexo?”. Mais tarde ela poderá acrescentar: “Gostaria de saber se existe uma satisfação sexual diferente da que eu obtenho hoje”. Em outras palavras, a questão implica, implicitamente, a questão de um outro gozo e, se o sujeito se interroga sobre ele, isto significa que ele não o encontrou. Existem então os atrapalhamentos do amor. Eles são sempre relativos aos atrapalhamentos do gozo. O amor tem uma relação com o Um, ou seja, fazer, de dois, Um. O gozo tem uma relação com o Um, mas é o Um sozinho. Mesmo quando acreditamos que com dois gozos chegamos a fazer um, por exemplo, ter o orgasmo ao mesmo tempo, resta o fato de que não se sabe nada sobre o gozo do outro, pois o gozo é sempre o gozo do próprio corpo. É verdade que gozamos do corpo do outro, mas no sentido do corpo do outro como todo, mas apenas de uma parte do corpo e, neste sentido, a ideia de fazer comunhão nos gozos é somente um gozo da fantasia. Se o gozo é sempre parcial, temos que concluir que todo gozo sexual é perverso no sentido freudiano. O sujeito histérico sabe que a complementariedade dos gozos não existe, mas isto não exclui o impasse, pois ele acredita poder fazer suplência pelo amor que, por sua vez, se encontra em impasse. A alma ama a alma, diz Lacan. No parceiro, amamos o mesmo, e podemos fazer disso uma ética. A este propósito, Lacan evocou a ética do exsexo, fora-sexo, assim como ele tinha evocado a ética do solteiro. Podemos fazer uma série: ética do solteiro, a histeria exsexo, fora-sexo, o amor cortês e o que Lacan designou como o gozo do idiota, a masturbação. Trata-se de evitar o impasse, efeito do impossível sexual, ou seja, de fazer, de dois, Um. Esta é a razão pela qual Lacan evoca, a este propósito, a coragem. Nós podemos, então, distinguir o amor a serviço da crença em sua fantasia, do amor a serviço da coragem de enfrentar a diferença no gozo. É certo que o amor visa ao ser do parceiro sexual, mas não o encontra, no sentido em que ele está sempre em falência. Com o gozo, temos uma amostra do ser sexual, o ser próprio, mas também o do outro. Entretanto, o amor faz falência e o que motiva o gozo permanece, em parte, opaco. Passemos às relações entre o amor e o sexo. A tese do seminário Mais ainda (Encore), é de que, no amor, o sexo não conta. Isto é verificável clinicamente. O amor pode dar lugar a um desejo sexual ou não, e ele é, muitas vezes, necessário, pelo menos do lado das mulheres. Pois mesmo na época atual, em que o lugar da satisfação de gozo se tornou primordial, a palavra de amor permanece necessária. Tomo o exemplo de uma analisante, que me pareceu paradigmático: ela é contra o casamento, contra os casais que correspondem à norma e reivindica sua escolha de
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gozo, que é a de assumir seu desejo sexual por um homem casado, bem mais velho que ela, que tem muitas outras mulheres, que a vê pouco e que ela diz não amar. Porém — e os problemas começam aí —, o que se torna enigmático para ela é o seguinte: por que ela permanece ligada a ele, visto que ele não fala de amor? Constatamos então que, mesmo nos casos em que o desejo sexual pode parecer o mais puro possível, aparece por detrás a demanda intransitiva — “que ele me ame”.h Do lado do homem, Lacan afirma que ele somente pode atingir seu parceiro sexual pela via da causa de seu desejo, ou seja, do objeto a. Duas observações se impõem sobre este ponto. Primeiramente, quando Lacan diz “atingir seu parceiro sexual”, isto não quer dizer necessariamente uma mulher. Em segundo lugar, Lacan não evoca o amor. É uma tese clássica em Lacan, que corresponde a um fato clínico. Um homem não aborda seu parceiro sexual a partir do amor, mas a partir do desejo. Ele pode até mesmo abrir mão do amor. O que coloca a questão do que é que faz com que um homem possa amar? Para ampliar a questão: o que é que desencadeia o fenômeno amoroso? Pode-se pensar que é só uma pergunta histérica, é verdade. Mas é verdade que Lacan responde. Há uma passagem pouco conhecida de Lacan, na qual ele dá uma fórmula do que é capaz de suscitar o amor. É claro que quando vemos isso, corremos logo para verificar. Só que Lacan antecipa este fato ao dizer que a fórmula não pode ser eficaz, pois ela é inarticulável. Em outras palavras, não podemos tomá-la e utilizá-la, pois ela diz respeito a uma posição inconsciente. Podemos dizer que depende do inconsciente. Para mostrá-lo, Lacan destaca a perspectiva do amor em Hegel, no qual a conquista do Outro passa por uma fórmula que seria a seguinte: “Eu te amo, mesmo se você não quer”. Podemos perceber que é uma fórmula que não funciona na conquista, pois ela se sustenta a partir de uma demanda. Ela prolonga, assim, a doutrina de Hegel, na qual o outro é colocado em posição de um semelhante simétrico. A fórmula de Lacan se opõe a esta, pois ela se sustenta a partir de um desejo e, por conseguinte, ela é ligada à sua proposição sobre o amor: dar o que não se tem. Nesse sentido, ela é inarticulável. Não basta dizer “eu te desejo”, pois o outro, se ele não for muito ingênuo, lhe responderá: “prove-me isso”. É aí que começam os problemas. Como dar ao outro uma prova convincente de que o amamos? Há sempre uma falência quando se quer dar a prova de amor. Compreendemos, aliás, que Lacan tenha colocado que o máximo do amor é dado pela homossexualidade feminina, pois é nesse caso que se encarna particularmente o “dar o que não se tem”. Ora, o que Lacan demonstra é a eficácia de uma fórmula que se sustenta no seguinte: “Eu te desejo, mesmo se eu não sei disso”. Ela é eficaz porque é irresistível. Ela não pode proceder de um enunciado calculável, mas se sustenta a partir de
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um dizer e, a cada vez que há este dizer, ele faz com que o outro caia nas malhas do amor. Acho que isso demonstra uma tese que Lacan começou muito antes a propósito desta figura do irresistível por excelência em matéria de desencadear o desejo do Outro, ou seja, Don Juan. Mas por que Don Juan, que tem as mulheres uma por uma, é considerado por Lacan como uma fantasia feminina? Por que Don Juan e não o obsessivo, por exemplo, que multiplica também as conquistas? Pois o obsessivo as conta, cada mulher é uma a mais, ao passo que para Don Juan, cada mulher é Uma a menos. Don Juan se situa assim na fantasia da mulher de ser a única. Don Juan marca a mulher enquanto mulher. Se o homem serve de intermediário para que a mulher se torne Outra para ela mesma, Don Juan o encarna especialmente. Dispomos, aliás, desta fórmula surpreendente de Lacan: “Don Juan ama as mulheres, ele as ama o bastante para não lhes dizer isso”. Vocês podem ver que aí não é a palavra de amor que suscita o desejo, mas um desejo que não se sabe. Por outro lado, chamou-me a atenção que Lacan tenha definido Don Juan como um homem sem desejo. Compreendo isso do seguinte modo: para Don Juan não se trata de desejo pelas mulheres em geral, mas da falta de desejo por uma mulher em particular. Mas, então, por que a fantasia feminina é compatível com Don Juan? Porque o homem com um desejo é angustiante para uma mulher. Para voltar à fórmula que suscita o amor, o mais surpreendente é que Lacan acrescenta que isto parte de um sujeito que toma este desvio “inocentemente ou não”. Inocente seria, aqui, aquele que deseja sem sabê-lo. O não inocente é aquele que tem um saber-fazer concernente ao desencadeamento deste circuito. Será que isso corresponde a um fato clínico? Quanto a mim, estou convencido. Existem sujeitos que sabem como ser irresistíveis no amor. Podemos nos perguntar se a análise produz um saber-fazer sobre isso. Não podemos afirmá-lo, mas, por outro lado, é certo que a análise, ao introduzir o sujeito no circuito do desejo, dá uma chance para um amor que seja outra coisa que a demanda. A questão que se coloca para nós é a de saber o que é que funda a segurança de um novo enodamento do amor e do gozo e, sobretudo, o que é que permite dizer que ela é a consequência de uma análise? Penso que é aqui que se situa a verdadeira questão da orientação lacaniana, e que pode ser formulada da seguinte maneira: a satisfação de fim de análise é o efeito de uma certeza com relação à identidade sexual como condição de acesso a um novo amor. O enodamento comporta assim três dimensões: a identidade sexual, o amor e o gozo. Precisar este novo enodamento supõe que compreendamos bem o que se entende por identidade sexual. Digamos, primeiramente, que quando associamos a satisfação à identidade sexual, não associamos a satisfação a um objeto, ou seja, a um parceiro. É claro que um sujeito tem parceiros sexuais e, muitas vezes, ao longo de uma vida, ele
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tem mais de um parceiro. Também é certo que seu último parceiro, quero dizer quando ele termina sua análise, lhe convém necessariamente. Dito isto, nada diz que este parceiro será o último de sua vida, pois podemos dizer que, felizmente, há uma vida após a análise. Desde que falamos de satisfação, nos referimos ao modo de viver a pulsão. Contudo, quando dizemos, em termos freudianos, que o objeto da pulsão é indiferente, isto não quer dizer que a questão do parceiro sexual seja indiferente, que um parceiro vale tanto quanto um outro e que a ausência de parceiro seja sem importância. Existe de fato um real próprio ao parceiro sexual que faz com que ao menos sobre um ponto, e ele não seja substituível por um outro. Na escolha sexual há o que é da ordem do substituível. Os parceiros podem fazer uma série, com a condição de cumprir uma certa condição erótica. É essencial desenvolver a lógica da série em análise, e algumas vezes percebemos que há mais de uma série. Dito isto, mais além da série, desprende-se um real que não é sempre possível de apreender e que faz, do parceiro, um parceiro de gozo real — é porque é ele ou porque é ela e nenhum outro, ou seja, nada o substitui. Algumas vezes observamos que, uma vez perdido, um outro pode vir a ocupar seu lugar, mas não é exatamente a mesma coisa. O “não é exatamente a mesma coisa” é o signo de um real. Dizer que a orientação de Lacan está ligada à identidade, e não à questão do parceiro, implica que a resolução de uma análise passe, antes de mais nada, pela incidência da análise sobre o programa inconsciente. É verdade que o programa inconsciente é a resposta singular ao contexto de uma época e, se é verdade que cada programa é diferente, cada época impele a soluções que tendem a se homogeneizar. Ademais, o próprio programa inconsciente age, ele próprio, com uma tendência à homogeneização. Pois o inconsciente impele ao mesmo. O inconsciente não é somente enigma e, às vezes, ele não é nada enigmático, pois ele é solução que vela o horror da diferença sexual. Nesse sentido, o inconsciente não é feito para ser desvelado, e a psicanálise entra assim em uma zona interdita. Em outras palavras, aquele que escolhe fazer uma análise faz a escolha de perturbar um programa, quer ele o saiba ou não. Tomemos o exemplo da frigidez, que Lacan põe como “quase genérica”, o que quer dizer que ela é, senão geral, pelo menos bastante frequente. Ela supõe, como diz Lacan, toda a estrutura do inconsciente, “mesmo se ela aparece fora da trama dos sintomas”. Lacan afirma que somente a análise a mobiliza, às vezes, incidentemente, mas sempre em uma transferência que ponha em jogo a castração simbólica. O que é que Lacan quer dizer, quando afirma que a frigidez está fora da trama dos sintomas? Isto quer dizer que, não somente a mulher não se queixa disso, mas que ela nem mesmo se dá conta. Como é, então, que a frigidez pode aparecer, se não pelos sintomas? A resposta é que uma mulher pode perceber sua frigidez a
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posteriori, ou seja, no momento de um encontro de gozo com seu parceiro ou por ocasião de uma mudança de parceiro. Os encontros de gozos inéditos podem intervir em qualquer momento da vida e são, portanto, cruciais para a autorização sexual. Evocar o encontro de gozo é diferente de colocar a perspectiva de uma análise em termos de supremacia genital. O termo é de Freud. Essa noção abriu a porta para inúmeros preconceitos, e podemos considerar que, em psicanálise, avançamos a partir de preconceitos, mas com a condição de ultrapassá-los. Vou utilizar três exemplos. O primeiro exemplo encontra-se no seminário O objeto da psicanálise. Estamos em 1966, e Lacan demonstra que um dos pontos centrais do pensamento analítico desde Freud é considerar que nada tem mais valor do que o orgasmo. O que quer dizer que se estabelece uma norma sexual e, por consequência, um critério de análise bem-sucedida. E Lacan acrescenta: “Por que se deve provar que uma mulher deve ter um orgasmo para que ela seja mulher?”. A crítica do famoso orgasmo feminino constitui o ponto de partida de um remanejamento teórico com respeito ao ser de uma mulher, baseado no não toda com relação ao falo. A questão do orgasmo é, no fundo, apenas uma versão do que Lacan tinha designado como a supremacia do falo. O segundo exemplo, o tiramos da AMP. Ao passo que Lacan tinha criticado cuidadosamente a noção de bom objeto, ou seja, do parceiro perfeito no plano do desejo, do amor e do gozo — resumindo: daquele que não se consegue encontrar —, foi levantada na AMP uma questão em torno do final de análise dos homens obsessivos, que era a seguinte: gozar da mulher que ele deseja. Não se trata de nada mais do que de uma outra versão de normalidade sexual. Terceiro exemplo: o da preferência dada ao gozo da fantasia, que é particularmente evidente nos casos de histeria. A histérica faz greve do corpo, o que não é equivalente de se abster de sexo. Fazer greve quer dizer que ela extrai seu maisde-gozar da Outra mulher, na fantasia. Neste sentido, ela não consente em se fazer sintoma para um homem. A partir daí, podemos sustentar que o tratamento analítico no caso de histeria consiste em fazer passar o gozo da fantasia ao consentimento em se fazer sintoma para um homem? Creio que estamos, aí, de cheio, numa fantasia de analista lacaniano, que seria a de que a análise da histeria corresponda à assunção de seu corpo em direção a um homem. Creio que se trata de uma perspectiva reduzida, pois ele exclui todos os casos de homossexualidade feminina e, ademais, não corresponde aos fatos clínicos, porque a análise de uma mulher pode chegar a seu termo e que sua escolha não
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Os nós do amor e dos gozos
se dirija para o gozo com um homem. Deixo de lado a questão dos filhos — um outro preconceito —, pois se supõe que uma mulher deve necessariamente ter um desejo de filho. E se, em análise, ela não tem esse desejo, uma desconfiança pesa sobre ela. Trata-se de uma outra fantasia de analista. Em outras palavras, a ideia é que, uma análise de mulher conduzida a seu termo implica, necessariamente, o desejo de ter filhos e o gozo com um homem. Concluo. É certo que o fim de análise supõe uma modificação com relação às certezas de gozo anteriores à análise. Isso se traduz por uma mudança de discurso, cujo signo é a emergência do amor, não de um amor a mais, mas de um amor inédito. Nesse sentido, é somente sobre uma operação que implica o gozo que damos uma chance a um novo amor que vai, como diz Lacan, de ser a ser, ou seja, que não é o amor do mesmo. Tradução: Elisabete Thamer
resumo
Se a demanda de análise que concerne aos impasses no amor permanece atual até hoje, uma outra demanda nela se implantou. Esta ganhou cada vez mais valor nos discursos dos analisantes, ultrapassando, algumas vezes, a queixa sobre os obstáculos no amor. Ela é referente ao gozo. Isso toma, às vezes, a forma de uma questão relativa à satisfação: será que estou satisfeito o bastante ou seria possível sê-lo ainda mais? Às vezes, essa questão se mistura ao amor. Mas, na época atual, a satisfação ligada ao gozo torna-se, muitas vezes, uma exigência endereçada ao analista e exclui radicalmente o amor. É certo que o amor visa ao ser do parceiro sexual, mas não o encontra. Com o gozo, temos uma amostra do ser sexual, o ser próprio, mas também o do outro. Entretanto, o amor faz falência, e o que motiva o gozo permanece, em parte, opaco. A questão que se coloca para nós é a de saber o que é que funda um novo enodamento do amor e do gozo e, sobretudo, o que é que permite dizer que ela é a consequência de uma análise? Penso que é aqui que se situa a verdadeira questão da orientação lacaniana, e que pode ser formulada da seguinte maneira: a satisfação de fim de análise é o efeito de uma certeza com relação à identidade sexual como condição de acesso a um novo amor. O enodamento comporta, assim, três dimensões: a identidade sexual, o amor e o gozo. É somente sobre uma operação que implica o gozo que damos uma chance a um novo amor que vai, como diz Lacan, de ser a ser, ou seja, que não é o amor do mesmo.
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palavras-chave
Amor, gozo, identidade sexual, enodamento, psicanรกlise.
abstract
If analysis demand concerning the deadlocks in love has remained updated until today, a second demand has emerged from it. This demand has acquired more and more value in the discourse of the analysis patient, surpassing sometimes the complaint about the obstacles in love. The demand refers to jouissance. It sometimes take the shape of a question related to satisfaction: am I satisfied enough or could I be a little bit more? Sometimes this matter gets mixed with love. But, currently, the satisfaction related to jouissance, is to become several times a demand addressed to the analyst, and it radically excludes love. It is true that love targets the being of the sexual partner, but it does not find him/her. With jouissance, we have a sample of the sexual being, the being him/herself, but also the other. On the other hand, loves generates failure and what stimulates jouissance, partly, remains opaque. The question posed for us is to know what founds the enoding of love and jouissance, and, above all, what allows it to say that it is the consequence of an analysis? I believe it is right here where the true question of Lacanian orientation lies, and that it can be formulated in such way: the satisfaction for the end of the analysis is the effect of a certainty in relation to the sexual identity as a condition to access to a new love. The enoding, then, comprises three dimensions: sexual identity, love, and jouissance. And it is only about an operation which implies jouissance that we give a new love a chance. This love, as Lacan would argue, will stand from being to being. In other words, this is not love of the same kind.
keywords
Love, jouissance, sexual identity, enoding, psychoanalysis.
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Amor: semblantes e sinthoma Luis Izcovich II Conferência – XV Encontro Nacional da EPFCL-Brasil Campo Grande, 16/11/2014 A questão da identidade sexual, que varia segundo as estruturas clínicas e que é diferente para cada sujeito, atravessa todas as análises. Trata-se de enigmas com relação ao próprio sexo. Estaríamos enganados em pensar que o enigma é próprio da neurose e que a psicose teria a convicção sobre o sexo. É verdade que a convicção sobre a identidade sexual, que exclui toda forma de questão, deixa sempre uma suspeita de psicose, salvo que, às vezes, o psicótico é a própria encarnação do enigma. A questão “a que sexo eu pertenço?”, renovada sem cessar e de modo idêntico por um sujeito, é uma forma de convicção. É a convicção de que ele não pode ter resposta para esta questão. Assim sendo, a questão que se põe para nós é de como a experiência analítica responde à questão da identidade sexual e quais são seus efeitos. Começo, então, por uma tese, que vou desenvolver em seguida. Ela é a seguinte: a análise forja uma identidade sexual que não é da ordem do semblante e que difere, então, daquela que é evocada na entrada da análise. Esta tese, claro, precisa ser demonstrada. Partamos de uma premissa teórica, que também é confirmada pela experiência. Ela foi proposta por Freud e retomada por Lacan, e sustenta que o Édipo faz o homem mas não faz a mulher. Lacan não diz outra coisa quando postula — é o Lacan do começo, o das Formações do inconsciente — que o menino sai do Édipo com os diplomas no bolso. Isto quer dizer que ele sabe como fazer enquanto menino. Ora, de que saber se trata aqui? É um saber de identificação, o menino se identifica aos ideais de seu sexo, ele sabe manejar os semblantes que o guiam em direção ao parceiro sexual ao mesmo tempo em que esses semblantes capturam o desejo do parceiro. Mas convém fazer uma distinção entre “saber manejar os semblantes” e o saber que diz respeito ao gozo do corpo. O Édipo, que é da ordem de um discurso, permite o acesso ao significante “homem”, mas este significante, como todo significante, é um semblante. O Édipo propicia, não hesito em dizê-lo, uma identidade de semblante.
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É uma das razões pelas quais Lacan colocou o Édipo como inutilizável. Se afirmamos que ser homem ou ser mulher é da ordem dos significantes, fazer o homem ou fazer a mulher pode corresponder somente a uma mascarada. É deste modo que explico a mim mesmo o porquê de Lacan poder afirmar que é preciso a castração para que um homem possa gozar do corpo da mulher. Dizer “não sem a castração” é dizer outra coisa que o acesso ao falo. Pois o falo também é um significante e pertence, então, ao semblante. “Ter o falo” do lado do homem ou “ser o falo” do lado da mulher não quer dizer nada mais que posições com relação ao semblante. É claro que o falo é uma mediação entre os sexos, mas ele não funda uma identidade e faz mesmo obstáculo à verdadeira identidade do sujeito. Por outro lado, podemos dizer que os efeitos de castração são, ao contrário, mais consistentes, o que permitiria assim estabelecer uma distinção entre uma identidade edípica, que seria da ordem do semblante de identidade, e uma identidade real, que seria efeito da castração. Isso quer dizer que podemos dispor perfeitamente do significante “homem”, ter a mediação do falo e não ter acesso a uma mulher, ou seja, fazer amor com ela. Seguindo Lacan, se a anatomia não é o destino e se o Édipo não assegura tampouco a identidade sexual, resta saber o que é que funda a certeza sobre a identidade. É aqui que intervém a dimensão do que Lacan designa como a escolha do sexo em termos de autorização. Do lado da mulher, temos também a confirmação dos limites do Édipo. Aliás, Lacan se deu conta bem cedo de que o Édipo não faz a mulher, o que Freud já tinha postulado. O Édipo permite o acesso à mascarada, por conseguinte a uma feminilidade que não seria nada mais que semblante. Nós também já dissemos que o amor é dissociado do sexo, o que quer dizer que ele não vai necessariamente de um sexo ao outro e, além disso, ele não proporciona nenhuma identidade sexual. Quando seguimos a proposição de Lacan, que diz que o heterossexual é aquele que ama as mulheres qualquer que seja seu próprio sexo, isto implica que gozar de uma mulher não faz de um homem um heterossexual, pois o gozo não é signo do amor. Do mesmo modo, um homossexual, no sentido de que ele escolhe parceiros do mesmo sexo, poderia ser considerado heterossexual se ele ama as mulheres, o que está longe de ser excluído, assim como a homossexualidade feminina pode também pertencer à heterossexualidade. Tentarei avançar sobre a certeza de identidade, retomando o dizer de Freud, “não há relação sexual”. Este dizer indica que há um real no encontro dos gozos que não pode ser inscrito. Em outras palavras, o ato sexual é contingente a cada vez e comporta frequentemente surpresas. A questão é, portanto, a resposta singular dada pelo sujeito ao “não há relação sexual”. Essa resposta seria o dizer do sexo de cada sujeito e poderíamos mesmo afirmar que aí reside nossa orientação
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na análise, isto é, sua finalidade seria de dar precisão ao dizer do sexo como sendo o real do sexo. É o que dá a chave da certeza de fim da experiência analítica. A certeza de identidade não é dada, então, pelos significantes, pois os significantes deixam sempre em suspenso a questão do ser sexual. Os discursos se mostram inconsistentes e os semblantes fracassam em dar o verdadeiro nome de identidade do sujeito, pois eles tocam um limite mais além do qual se encontra o abismo. A garantia não pode vir do Outro, ela vem do ato, mas, ao mesmo tempo, o ato sexual é um real que não se inscreve no ser. Se a única certeza provém da experiência de gozo, é na medida em que um sujeito torna-se responsável pelo seu gozo. Em outras palavras, a heterossexualidade não constitui a norma sexual, a conduta sexual é sempre almoralidade, e isso desde Freud, que tinha colocado as razões enigmáticas que fazem com que um sujeito seja heterossexual. Pôr a questão nesses termos significa considerar que o sexual faz sempre sintoma, que a escolha do parceiro, qualquer que seja o sexo, é sempre um sintoma e a análise é o que permite viver este sintoma de outra maneira. Observem que o simples fato de afirmar que alguém pertence ao ser homem ou mulher é primordial, pois coloca a questão da diferença sexual de outra maneira do que pela escolha do parceiro. Abordemos este ponto crucial: que a relação sexual não possa se escrever é algo que se põe em evidência pelas modalidades de suplência ao inexistente. Primeiramente, há a suplência a partir dos sintomas. É uma suplência pelo mais-de-gozar. Os sintomas são sexuais, porque o trauma é sempre sexual, uma vez que ele comporta uma irrupção de gozo sem que se possa convertê-la em desejo. Podemos, desde então, apreender a função do amor, que também é suplência ao que não se inscreve da relação sexual. Existem, porém, diferentes modalidades de suplência pelo amor. Existe, assim, uma forma que seria a de se apoiar no amor para aceder ao gozo. Outra coisa seria fazer suplência ao inexistente pelo amor e abrir mão do gozo sexual. Digamos que estas duas formas de suplência têm uma afinidade com as mulheres. A primeira forma se demonstra do seguinte modo: é porque o amor existe que há uma passagem possível ao desejo sexual. O amor faz suplência porque, neste caso, ele permite o acesso ao desejo. A segunda forma se demonstra no caso em que o sujeito se satisfaz com o amor, o que quer dizer que o amor não desemboca no desejo sexual. Neste caso, o parceiro pode servir apenas ao gozo da fantasia. É um gozo limitado ao amor. É o que Lacan designou como as “almorosas”, e que diz respeito a uma ética do hors-sexe, fora-sexo. É o amor do envelope e se sustenta na fantasia da Outra mulher. Os semblantes do parceiro podem produzir o amor, pois eles dão uma vestimenta à imagem de si que é encontrada do lado do outro. Amamos, assim, o mesmo, o que coloca a questão de saber se podemos amar outra coisa que o mesmo.
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Além destas formas de suplência pelo amor, Lacan avançou uma outra forma de suplência pelo gozo, gozo do corpo diferente do sintoma, quando ele afirma que é por uma suplência ligada ao não toda na função fálica que repousa o gozo da mulher. Para isso, ela consente em se fazer objeto do gozo do homem. Fazer-se objeto inclui duas dimensões: a primeira é aquela que consiste em causar o desejo do homem. Para isto, uma mulher não precisa se fazer de equivalente do objeto a. Basta que um homem a coloque como objeto a da fantasia dele. Contudo — e é aqui que se situa a segunda dimensão —, mesmo se a mulher pode também ser sujeito no nível sexual, a essência de sua posição consiste em consentir ao gozo do homem. É claro que nada a obriga a passar por aí, mas para aceder ao seu gozo, ela deve consentir em se fazer objeto de gozo do outro. Ela pode igualmente bancar o homem [“ faire l’homme”] no nível sexual, o que significa reivindicar uma posição de sujeito. Neste caso, ela deve se satisfazer com um gozo fálico. É o que explica porque Lacan pode afirmar, ao mesmo tempo, que as mulheres estão prontas a fazer todas as concessões para um homem e de excluir a especificidade de um masoquismo feminino. Questão: Por que estar pronta a fazer todas as concessões não é uma posição de sacrifício ao outro? Resposta: é que suas concessões têm uma finalidade bem precisa. Uma mulher se faz objeto do outro, mas sua finalidade é de obter seu próprio gozo, ao passo que o objetivo do masoquista, como diz Lacan, é de produzir a angústia do Outro. Ser objeto não é estar submisso ao gozo do Outro, o que se confirma pela inversão que faz Lacan com relação à concepção corrente, ao afirmar que são elas, as mulheres, que possuem os homens. Do lado do homem, Lacan não mudou com relação a Freud sobre um ponto: a mulher será tomada sempre e somente como Quod Matrem, o que quer dizer que a mulher só entra em função na relação sexual enquanto mãe, mesmo quando o homem faz de uma mulher o objeto a. Devemos destacar que a única coisa que o homem captura de sua parceira, seguindo a definição de Lacan do objeto a, é um semblante de ser. Nós podemos dizer, assim, que encontrar seu objeto a constitui uma suplência específica do homem para a ausência de relação sexual. A questão é que as suplências pelo amor, do lado homem ou do lado mulher, não inscrevem uma marca. Nada assegura que o amor dure para sempre e, quando ele perdura no tempo, isso prova que houve encontro entre dois saberes inconscientes. O amor vai, então, do inconsciente de um à suposição de saber no outro. É por isso que ele está na base do discurso analítico. Isto não anula o fato de que o amor não se inscreve, mas permanece sempre em reticências, pontos de suspensão [points de suspension]. Voltemos ao gozo, pois, contrariamente ao amor, ele se inscreve. Já disse que ele se inscreve primeiramente como traumático e determina as modalidades de
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gozo do sujeito que são sempre do próprio corpo. Surge, então, a questão: para que serve o corpo do Outro no encontro dos corpos? Ele serve ao gozo da fantasia. Distingamos, então, dois níveis: gozar da fantasia e gozar do corpo. São dois níveis diferentes de um mesmo lugar, o lugar do real. A fantasia ocupa, com efeito, o lugar do real, o que impõe uma outra questão: por que os sujeitos podem preferir passar pelo corpo do Outro para aceder ao gozo em vez de ficar no nível da fantasia? Assim sendo, para aqueles que se confrontam ao corpo a corpo existe o encontro possível com a opacidade do gozo do Outro. Enquanto radicalmente Outro, esta opacidade traz as seguintes questões: O Outro goza? O que é que o faz gozar? Em que consiste esse gozo? O caráter radicalmente Outro deste gozo atribuído ao Outro é a razão pela qual Lacan o colocou em conexão com Deus, em outras palavras, o gozo que ninguém pode encontrar é suposto a Deus, o grande Outro por excelência. Voltemos à experiência analítica. As duas dimensões que desenvolvi, o amor e o gozo, estão implicadas na transferência. Se o amor se endereça ao saber, o analista é necessariamente um parceiro do amor, mas ele também é parceiro de gozo, no sentido em que ele completa o sintoma. A transformação que se opera na análise quanto ao saber afeta os parceiros de saber do sujeito e, por consequência, a relação ao amor. A análise torna o amor mais advertido, menos cego e, portanto, menos perdido. Observemos que, se o amor de transferência visa à continuidade a serviço da inércia, o desejo do analista, como todo desejo, comporta uma intrusão. O amor completa, mas não faz o ser. Ele visa ao ser do parceiro, mas para em um certo limite, lá onde poderia aparecer a diferença entre o sujeito e o Outro. A análise faz objeção a esta completude pela introdução de um enigma inexistente antes do encontro com o analista. Nesse sentido, a verdadeira diferença com respeito à identidade sexual não é a busca da identidade do início da análise, mas uma identidade feita pela experiência analítica, que poderíamos dizer do seguinte modo: uma identidade de intrusão. Em outras palavras, a análise tem uma parte de responsabilidade na escolha do sexo do sujeito, e é assim que explico a mim mesmo porque Lacan pôde formular que, quanto ao sexo, o sujeito se autoriza de si mesmo e de alguns outros. Observemos, então, duas dimensões: si mesmo e alguns outros. Autorizar-se de si mesmo quer dizer que o sujeito está sozinho no momento do ato. Isto quer dizer que os semblantes que ele utilizou e que puderam conduzi-lo até a hora da verdade não lhe servem como suporte na hora do ato. Autorizar-se de si mesmo é o oposto de se autorizar a partir dos semblantes, que provém sempre do Outro da linguagem. Isso não exclui que possam existir sexualidades de semblantes, ou seja, que o sujeito se comporte na sexualidade, digamos assim, como o que ele
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crê que deva se comportar enquanto homem ou enquanto mulher diante de seu parceiro. Passemos agora ao “alguns outros”’ evocado por Lacan com respeito à autorização do sujeito. É certo que que “alguns outros” remete à dimensão da experiência, ou seja, aos encontros de gozo. Sem estes encontros, a escolha sexual é uma pura elucubração. É claro que há a primeira vez. Observemos que, para a primeira vez, o sujeito se apoia sobre os outros. Para que serve a banda de amigos, se não for para que os mais velhos informem aos mais jovens sobre como se passam as primeiras experiências sexuais? E para as meninas? Uma analisante, que está no pré-vestibular, me contou pela primeira vez as questões colocadas por suas amigas no início deste ano: “você transou?”. Vemos, então, que entre “alguns outros” há aqueles com os quais o sujeito se une para ter a coragem para afrontar a hora da verdade. Mas, entre esses “alguns outros”, há também o analista. A escolha do sexo indica, assim, a posição do sujeito com relação a ser homem ou mulher: se, no início, a escolha do sexo se assenta sobre as escolhas dos semblantes, resta, porém, uma dimensão à qual o sujeito deve necessariamente se acomodar, é o real do sexo, que é o real do sintoma. Evidentemente, o sintoma não deve ser tomado aqui como o que incomoda, mas sim como a invenção singular que se opera para cada um para se aparelhar em face da intrusão do gozo no corpo. Pois, com efeito, se o sexual faz sintoma é porque ele comporta para cada um o encontro com um gozo inédito. O que é inédito é sua emergência inesperada no curso da infância. Ele surpreende igualmente no momento do encontro de gozo com o outro sexo, mas ele pode também ser inédito como efeito da análise. Nada diz, contudo, que a conclusão de uma análise supõe que se tenha encontrado um parceiro nem que isto seja uma condição de fim. É verdade que Lacan formulou “para cada um sua cada uma”. Isso quer dizer que para um homem, se sua escolha recai sobre as mulheres, a análise promete o encontro de uma mulher, aquela que ele poderá fazer “sua”, se ele quiser isto. Contudo, nada diz que esta será a última que ele terá. Aliás, quando Lacan afirma que uma mulher é o sintoma de um homem, podemos sustentar que a análise leva o sujeito a este encontro, a esta hora da verdade, o que não quer dizer que uma mulher como sintoma seja a única e para sempre a mesma para um homem. Se abordarmos, agora, as coisas do lado das mulheres, Lacan não utiliza uma sentença recíproca, ou seja, “para cada uma, seu cada um”. Isso quer dizer que é muito perigoso responder à demanda que é, muitas vezes, endereçada ao analista de maneira explícita pelas mulheres: “será que eu vou encontrar alguém?”. Não somente é impossível prometer isso, mas também, como eu disse, uma mulher em análise pode chegar à conclusão desta sem contudo ter encontrado seu “cada um”.
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Amor: semblantes e sinthoma
Isto é válido também para os homens cuja escolha não recai sobre uma mulher. Para concluir, não há saída para os impasses do amor se não levarmos em consideração um novo enodamento com as modalidades de gozo de um sujeito. Aí reside a única certeza de que o sujeito pôde ir mais além dos semblantes. A experiência analítica nos dá sinais desse momento: é o acesso à certeza de que o gozo absoluto não existe, que o Outro encarnado pelo analista não é mais o lugar onde eu endereço minha questão; em outras palavras, este Outro não é mais o parceiro do amor, mas, sobretudo, que a suposição fundamental do sujeito — que é a de que se ele não goza suficientemente é porque o Outro o impede — mudou. Ou seja, não há mais um Outro suposto retirar minha satisfação. Trata-se aí de sinais de identificação ao sintoma, termo último da visada de uma análise e que supõe uma certeza. Esta identificação comporta uma dimensão que seria um “sabe-se” e igualmente um saber-fazer com o gozo. É por isso que sustento que a identificação ao sintoma, no final da análise, é uma identificação ao mais-de-gozar, concernente ao ser sexual. E se falei de um novo enodamento amor e gozo, que seria a passagem do semblante ao sinthoma, é porque esta nova identificação ao mais-de-gozar produz uma adequação no amor que não é mais uma miragem, pois ela mantém, por um lado, o que constitui o Um de um sujeito — sua essência irredutível — e, por outro, a aceitação do Outro gozo enquanto diferente e, igualmente, irredutível. São os deuses irredutíveis que se produzem no final da análise.
Tradução: Elisabete Thamer
resumo
O texto inicia indagando sobre como a experiência analítica responde à questão da identidade sexual para, em seguida, propor uma tese a ser demonstrada: a análise forja uma identidade sexual que não é da ordem do semblante. Tal certeza de identidade não é dada pelo Édipo e nem mesmo pelos significantes, que deixam sempre em suspenso a questão do ser sexual. A garantia não pode vir do Outro, ela vem do ato, mas, ao mesmo tempo, o ato sexual é um real que não se inscreve no ser. Pôr a questão nesses termos significa considerar que o sexual faz sempre sintoma, a resposta singular dada pelo sujeito ao “não há relação sexual”, que a escolha do parceiro, qualquer que seja o sexo, é sempre um sintoma e a análise é o que permite viver este sintoma de outra maneira, ou seja, por um novo enodamento entre amor e gozo. Se o amor na vertente do semblante é o que funciona como mais de uma forma de se fazer suplência ao real do sexo, no ato de passagem
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do semblante ao sintoma, identificação ao sintoma, ele não é mais uma miragem, pois mantém, por um lado, o que constitui o Um de um sujeito — sua essência irredutível — e, por outro, a aceitação do Outro gozo enquanto diferente e, igualmente, irredutível. São os deuses irredutíveis que se produzem no final da análise.
palavras-chave
Amor, gozo, semblante, sintoma, psicanálise.
abstract
The text starts by questioning how an analytical experience responds to the issue of sexual identity and then proposes a thesis to be demonstrated: the analysis forges a sexual identity which is not part of the order of the semblant. Such a certainty of an identity is not given by Oedipus or even by the significant, who always leave the question of the sexual being in the air. The guarantee cannot derive from the Other; it comes from the act, but at the same time, the sexual act is a real which is not able to inscribe itself in the being. To pose the issue in such terms means to consider that the sexual always provokes symptom, the single answer given by the subject to the “there is no sexual relation”; that the choice of the partner, no matter the sex, is always a symptom and it is the analysis what allows to live this symptom in another way; that is, through a new enoding between love and jouissance. If love under the semblant is what works as one more form of replacing the real of sex, in the act of passage from the semblant to the symptom, identification of the symptom, it is not a mirage any longer, once it maintains on one hand what constitutes the One of a subject – its irreducible essence – and, on the other hand, the acceptance of the Other jouissance as different, and equally irreducible.
keywords
Love, jouissance, semblant, symptom, psychoanalysis.
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ensaios
Para sempre é sempre por um triz Ana Laura Prates Pacheco 1. O amor seguro e o acontecimento Nos contos de fada, recontados a partir da Modernidade, quase sempre o final anuncia-se com a frase: “e foram felizes para sempre”. O ideal de amor romântico tem seus primórdios no final da Idade Média, desenvolve-se durante o Renascimento e transforma-se em ideal a partir do Século das Luzes. O amor romântico, que nasceu rebelando-se contra a ordem do Mestre, vigente nos casamentos arranjados por interesses políticos e econômicos, acabou sendo assimilado de modo gradual e depois imperativamente aos ideais das famílias burguesas pós-industriais. Em um livro recente chamado Elogio ao Amor, Alain Badiou comenta o que seriam duas faces da mesma moeda em relação às ameaças contemporâneas ao amor. Amor que leva em conta o acaso e o encontro, e que seria, fundamentalmente, da ordem da disjunção e da diferença, de modo muito similar ao que sustenta Lacan a partir dos anos 70. Para Badiou, essas ameaças são duas: por um lado, a ideia do amor seguro que garante pela minuciosa contabilidade das afinidades um “felizes para sempre” morno e adaptado — transformando o possível em necessário. Trata-se do que Lacan chama ironicamente de “o avô e a avó no horizonte do amor”. Por outro lado, temos os discursos pós-modernos que garantem o amor como impossível: “A contrapartida dessa ameaça securitária consiste em afirmar que o amor não passa de uma variante do hedonismo generalizado, uma variante das figuras do gozo. Trata-se de evitar assim qualquer provação imediata, qualquer experiência autêntica e profunda da alteridade com que o amor é tecido” (BADIOU, 2013, p. 13). Em ambos os casos, tratar-se-ia de conceber o amor como um “risco inútil” (BADIOU, 2013, p. 14) e de afastar o modo da contingência, do qual o amor é tecido, tal como nos ensina Lacan em seus seminários 20, Encore (1972-73) e 21, Les non-dupes errent (1973-74): “o amor nada mais é que um dizer, enquanto acontecimento” (lição 5). Ou nas palavras de Badiou: “o encontro entre duas diferenças é um evento, algo contingente, surpreendente” (BADIOU, 2013, p. 24). Essa definição do amor se sustenta, em Lacan, na escrita do nó borromeano, enquanto a própria estrutura do “espaço do ser falante”, pois que há três faces nesse dizer: a
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PACHECO, Ana Laura Prates
face imaginária, ou da imagem efetiva; a face simbólica, e a face real que se refere ao próprio acontecimento desse dizer.
I
R
S Trata-se, portanto, da estrita equivalência entre os registros R, S e I — e isso pelas propriedades específicas do nó borromeano que irão interessar a Lacan. Essas propriedades referem-se aos números relacionados à teoria dos conjuntos, lembrando que, a partir de Cantor, os numerais podem ser cardinais ou ordinais. O número cardinal é aquele que expressa uma quantidade absoluta, enquanto o número ordinal indica a ordem ou a série em que determinado número se encontra incluído. O 3 do nó borromeano é cardinal, pois ele pode ser desfeito quando qualquer uma das três argolas se solta. No nó borromeano, o importante é que as argolas se distingam, e que façam 3. A propriedade do triplo refere-se, então, ao seguinte: “assim que cada um dos termos destes três do nó borromeano libere os dois outros, há uma relação real” (LACAN, 1973-74, lição 5). Como pude argumentar em meu trabalho “A variação inédita e tola do desejo invariante”: Há dizer, na contingência do discurso que faz acontecimento. (...) Há do Um, sempre ímpar. Do qual, pela impossibilidade logicamente implícita de alcançar o dois, podemos extrair a rejeição de que haja a mínima harmonia entre o que se situa do gozo corporal com aquilo que o rodeia. Daí Lacan escreve no nó o paradoxo do desejo enquanto sexuado, essa falha que causa o mal entendido dos gozos, extraindo a consequência estrutural de que o Real é ternário. Porque o Real borromeano, sendo 3, mostra que não há relação sexual, evidenciando o impasse inverificável do sexo. O impasse inverificável do sexo – ou seja, os modos de gozo todo fálico e não todo fálico, incomensuráveis e irremediavelmente distintos – é o que Lacan sustenta quando afirma a convergência do nodal e do modal, incluindo, para além do necessário e do possível, inscritos do lado homem, as modalidades impossível e contingente (PRATES PACHECO, 2014. Inédito). [Grifo nosso].
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2. O coração tem razões que a própria razão desconhece O amor seguro, entretanto, não é a única forma que o parlêtre encontrou, ao longo da história, para escrever o amor de modo a afastar a contingência. No Seminário Les non-dupes errent (1973-74), Lacan propõe que há dois tipos de nós, estruturalmente distintos, em relação à escrita no amor: o nó borromeano e o nó olímpico. A rigor, pela teoria dos nós, não se trata propriamente de um nó olímpico, mas de um tipo de enlace. O enlace olímpico é ordinal, pois uma das esferas — a do meio — tem prevalência sobre as outras duas. Esse tipo de nó é aquele que tenta escrever a relação sexual, como encontramos no Seminário Encore (1972-73) em que o amor é o que vem em suplência à não existência da relação sexual. Ele tenta escrever a relação sexual na medida em que exclui o Heteros, produzindo um fechamento. Lembremos que nesse seminário Lacan havia citado o poema de Rimbaud, Por uma razão, para sustentar que o amor é o signo de que mudamos de discurso: Por uma razão Um toque de teu dedo no tambor desencadeia todos os sons e dá início a uma nova harmonia. Um passo teu recruta novos homens, e os põe em marcha. Tua cabeça se vira: o novo amor! Tua cabeça se volta, – o novo amor! “Muda nossos destinos, acaba com as calamidades, a começar pelo tempo”, cantam estas crianças, diante de ti. “Semeia não importa onde a substância de nossas fortunas e desejos”, pedem-te. Chegada de sempre, que irás por toda parte.
O amor então é um sinal. Se onde há fumaça, há fumante, podemos dizer que onde há amor, há parlêtre. E onde há parlêtre, não há relação sexual, como mostra o nó borromeano. Diante desse Real cardinal, entretanto, cada discurso escreverá sua modalidade de fechamento e negação sistemática da abertura estrutural do inconsciente não todo, aberto e paradoxal. Em outras palavras, cada discurso escreverá uma gramática proposicional, sustentada pela lógica dos predicados, ou seja: sujeito, verbo, predicado. Nessa ordem de amores olímpicos, é o verbo que faz meio-termo, agenciando um discurso diferente a cada vez — já que a tentativa de tornar necessária a escrita da relação sexual sempre deixa um resto que não cessa de não se escrever.
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Lacan propõe, então, em Les non-dupes errent uma tipologia, e por que não dizer, uma topologia de amores, baseada nas formas medievais de amor, conforme o lugar que as dimensões ocupem no elo de ligação das outras duas, no nó olímpico. Dependendo do registro que ocupará a função prevalente ou verbal, de ligação — o Simbólico, o Imaginário ou o Real —, teremos um modo de amor que faz signo das tentativas discursivas de escrever a relação. Ele os chama de amor divino, amor cortês e masoquismo. Nesse seminário, Lacan articula o Imaginário ao corpo, o Real à morte e o Simbólico ao saber, enquanto meio de gozo.
3. O amor divino
imaginário
simbólico
real
No caso do amor divino é o Simbólico que está sustentando a relação entre o Imaginário e o Real: “É bem aí que se situa o nervo da religião, enquanto que ela prega o amor divino. É bem aí também que se realiza esta coisa louca, esse esvaziamento do que é o amor sexual na viagem” (lição 4). Lacan acrescenta que o amor divino baniu o desejo transformando-o em finalidade. Já no Seminário Encore, citando o Abade Rousselot em Para a história do problema do amor na Idade Média (1908), Lacan havia relacionado o amor divino à concepção física (natural) do amor, preconizada por São Tomás de Aquino — embora ele lembre que se trata da sustentação de um Ser supremo que está posto desde Aristóteles. Remete, portanto, ao que chama de “gozo do ser”, sustentando a unidade entre o amor a si e o amor a Deus: “amando a Deus, é a nós mesmos que
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amamos, e ao nos amarmos primeiro a nós mesmos — caridade bem ordenada —, prestamos a Deus a homenagem que convém” (LACAN, 1972-73/1985, p. 96). Na mística de São Tomás: “Para o ser, a perfeição é a consecução do fim, que é a suprema consumação. Ora, é a caridade que nos conduz ao fim e dá-nos a verdadeira beatitude, unindo-nos a Deus” (HUGON, R. P., 1924, p. 45). Eis de onde deriva, segundo Lacan, o imperativo da dimensão “tu amarás teu próximo como a ti mesmo”, própria do amor cristão. A religião cristã, entretanto, produz um deslocamento no amor divino que reintroduz a dimensão do desejo, ao inventar em suas palavras: “essa coisa sublime da trindade”.1 Esse amor, entretanto, embora também inscrito em um nó ternário transforma-o em caridade, banindo novamente o Heteros: “O amor é caridade — afirma Lacan —, e graças a isso vocês o verão na arte, muito lamentavelmente simbolizada por esta mulher de seios inumeráveis à qual estão penduradas inumeráveis crianças” (LACAN, 1973-74, lição 4).
4. Amor cortês
simbólico
imaginário
real
Para Johan Huizinga em seu livro O declínio da Idade Média: Quando, no século XII, o desejo insatisfeito foi colocado pelos trovadores da Provença no centro da concepção poética do amor, deu-se uma viragem importante na história da civilização. (...) A poesia cortês faz do próprio desejo o motivo 1 Remeto-os aos textos de Sonia Alberti nos livros O amor e o divã e O amor e suas letras.
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essencial e cria assim uma concepção do amor com uma nota de fundo negativo. Sem quebrar todas as ligações com o amor sensual o novo ideal poético conseguiu abraçar todas as espécies de aspirações éticas (HUIZINGA, 1924, p. 80). No amor cortês é o Imaginário que está no meio, “nisso que ele imagina do gozo e da morte” (LACAN, 1973-74, lição 4). Ele foi produzido pela ordem antiga, que Lacan chama de feudalidade: “Aqui o Imaginário está no meio, está aí o fundamento do verdadeiro lugar do amor” (op. cit.). No Seminário Encore, Lacan havia dito: “o amor cortês, o que é isso? Era essa espécie, essa maneira inteiramente refinada de suprir a ausência da relação sexual, fingindo que éramos nós que lhe opúnhamos obstáculo” (LACAN, 1972-73/1985, p. 115).2 O amor cortês garante assim a mulher no lugar do impossível. Lembremos que desde o Seminário 7, A ética da psicanálise, Lacan já havia proposto que embora o amor cortês seja característico de uma época, “suas incidências são totalmente concretas na organização sentimental do homem contemporâneo” (LACAN, 1959-60/1988, p. 185). No amor cortês: O objeto, nomeadamente aqui o objeto feminino, se introduz pela porta mui singular da privação, da inacessibilidade. (...) A inacessibilidade do objeto é aí colocada desde o início.” (...) “Não há possibilidade de cantar a Dama, em sua posição poética, sem o pressuposto de uma barreira que a cerque e a isole”. “Por outro lado, esse objeto, a Domnei como é chamada, mas ela é frequentemente invocada por um termo masculinizado — Mi Dom, isto é, meu senhor — essa Dama é apresentada, portanto, com caracteres despersonalizados, de tal forma que autores puderam notar que todos parecem dirigir-se à mesma pessoa (LACAN, op. cit., p. 185). [Grifo nosso]. Lacan nota que mesmo que seu corpo fosse chamado de rechonchudo e gracioso, chamam-na sempre assim. “Nesse campo poético, o objeto feminino é esvaziado de toda substância real” (op. cit., p. 186). “Vemos aqui funcionar em estado puro o móvel do lugar ocupado pela visada tendencial na sublimação, ou seja, que aquilo que o homem demanda, em relação ao qual nada pode fazer senão demandar, é ser privado de alguma coisa de real” (op. cit., p. 189). “As técnicas em questão no amor cortês são técnicas de retenção, da suspensão.”
2 Remeto ao trabalho de Nádia Paulo Ferreira: “Amor cortês: uma invenção dos trovadores para cantar a Mulher” em “O amor e suas letras”.
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5. Masoquismo
simbólico
real
imaginário
No masoquismo, o Real é o meio entre o Simbólico e o Imaginário: “E se esse Real é bem a morte, aí onde o desejo foi expulso, em termos de acontecimento, aí onde o desejo foi expulso o que temos é o masoquismo” (LACAN, 1973-74, lição 4). Como meio para unir o gozo e o corpo, Lacan aqui parece estar se referindo a uma outra corrente da teologia medieval que sustentava a ascese pela via do sacrifício corporal. Trata-se da concepção extática (que remete ao êxtase) na controvertida tese de Rousselot. Segundo Huizinga (1924), o cadáver apodrecendo oferece uma incorporação mais concreta do perecível, que a alma medieval exige. A mortificação, por sua vez, era vista como prática necessária para dominar o corpo, considerado a fonte dos pecados. Alguns membros de movimentos e confrarias medievais praticavam a penitência com flagelações como meio de alcançar o êxtase. Le Brun, em El amor puro de Platón a Lacan, comenta que: “Um traço especial dessa concepção (extática) é a dualidade entre amante e amado que situa a meta ‘ideal do amor no sacrifício total da personalidade amante na personalidade amada’”. Assim, “o que ama se esvazia de si mesmo e já não tem mais nada suun, nada próprio” (LE BRUN, 2004, p. 342). Talvez seja esse o traço que Freud, equivocadamente, tenha para relacionar a posição feminina à posição masoquista. Muitas mulheres, efetivamente, tentam fazer a mulher existir, na relação amorosa, pelas insígnias da negatividade. Em seu texto “A Mulher: masoquista?”, Colette Soler indaga: “o que há em comum entre um masoquista e uma mulher? A resposta é simples — ela diz —, “ambos, no par que formam com o suposto parceiro desejante, colocam-se no lugar do objeto”. Ela nos lembra, entretanto, que para Lacan essa posição em nada se assemelha à impostura perversa propriamente dita já que se trata de uma complacência para com os semblantes. “Não há limite”, diz Lacan, “para as concessões que a mulher se dispõe a fazer por um homem, com seu corpo, seus bens, sua alma.” (...) “O amor que ela convoca para nele assentar seu ser define o campo de sua sujeição ao Outro.” É importante, entretanto, distinguir bem “o efeito de ser que se ganha no amor, ao preço de muitas concessões, do gozo que, esse sim, vai além do semblante. Restam os percalços do amor (SOLER, 2005, p. 66).
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6. Por um triz Nos três casos tratados por Lacan, o amor se torna o meio pelo qual “a morte se une ao gozo, o homem e a mulher, o ser ao saber”. O Discurso Analítico, entretanto, quando emerge, produz um giro de discurso, ao revelar que a estrutura é borromeana, portanto ternária e modal quanto aos gozos. Eis o novo Discurso Analítico que se anuncia por um decantamento de sentido: o que do sentido se concentra por esse discurso. “Disso que o sentido, o sentido das palavras só aparelha o que chamaremos o coito sexual.” Nas belas palavras de Lacan, é preciso a psicanálise para que se possa “franquear a via de um reflorescimento do amor enquanto (a)mur”. Lacan recorre novamente ao poeta, desta vez Antoine Tudal: “Entre o homem e o amor, há mulher; entre o homem e a mulher, há um mundo e entre o homem e o mundo há um muro”. Assim, pelas mediações mundanas da linguagem — que Freud chamava de rocha — o amor “é trazido à existência pelo impossível da ligação sexual com o objeto. É necessária essa raiz do impossível”. Diante desse impossível, entretanto, algo acontece. Aqui intervém, portanto, o que Lacan chama a função do Real: “o amor se demonstra em sua origem contingente, e de um mesmo golpe, aí se prova a contingência da verdade do ponto de vista do Real”. Contanto que essa verdade que se instaura nesse discurso é pelo meio (meia-verdade). Lacan brinca aqui com a equivocação entre meio dito ou meia-verdade e aquilo que está no meio, como vimos, no nó olímpico. No livro Elogio ao amor, que mencionei no início desse trabalho, Badiou ressalta a importância do que chama de “aspecto diagonal do amor, que perpassa as mais intensas dualidades e as mais radicais separações”. O amor enquanto contingente e surpreendente. “É esse o primeiro ponto, absolutamente essencial” (BADIOU, 2013, p. 24). Lacan o formaliza no Seminário 21, Les non-dupes errent, quando afirma que, às vezes, ocorre que algo se escreve, ou melhor, “alguma coisa cessa de não se escrever, para alguns casos raros e privilegiados”. Pois garantir o impossível, como o faz o amor cortês, é tanto impostura quanto garantir o possível, ou pior, torná-lo necessário. É o que Badiou acrescenta em sua elaboração sobre o amor, incluindo e sustentando a questão da duração: “o amor, entretanto, não é simplesmente o encontro e as relações fechadas entre dois indivíduos, e sim uma construção, uma vida que se faz, já não mais pelo prisma do Um, mas pelo prisma do Dois”. A isso ele chama de “cena do Dois” (op. cit., p. 24). E nesse sentido, ele acrescenta: “todo amor que aceite a prova, aceite a duração, aceite essa experiência do mundo pelo prisma da diferença produz, à sua maneira, uma nova verdade sobre a diferença” (op. cit., p. 29). Trata-se, segundo Badiou, de uma “construção persistente, ponto por
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ponto, da experiência do Dois. “Admito o milagre do encontro” — ele diz —, “mas orientado pelo laborioso vir a ser.” “Existe um trabalho no amor, e não apenas um milagre.” Entendo que esse trabalho só se sustente pela inclusão da meia-verdade que aponta para o “triz” que faz parte do amor. Apostar no “novo amor” sabendo que não há garantia, eis o desafio do discurso analítico. Em seu texto: “Lógica e poética: por um Triz”, Ana Paula Gianesi também fala do triz, a partir do espetáculo de dança Triz, do grupo Corpo. No site do grupo encontramos que na mitologia, Dâmocles, suspensa por um tênue fio de crina de cavalo, serviu de inspiração para Triz, palavra de sonoridade onomatopeica, que tem nos vocábulos gregos triks/trikós (pelo, cabelo) sua mais provável origem etimológica, simbolizada pela expressão por um triz (por um fio)”.
Nos tais casos privilegiados, para não fazer amor olímpico (lê-se, edípico), ou pior, transformá-lo em uma olimpíada, é preciso cantar o amor com os poetas brasileiros Edu Lobo e Chico Buarque no “Grande circo místico” que é a vida: Sim, me leva para sempre, Beatriz Me ensina a não andar com os pés no chão Para sempre é sempre por um triz Ai, diz quantos desastres tem na minha mão Diz se é perigoso a gente ser feliz
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referências bibliográficas BADIOU, A. Elogio ao amor. Tradução Dorothée de Bruchard. São Paulo. Martins Fontes, 2013. BUARQUE, C. & LOBO, E. “Beatriz” In: O grande circo místico. 1983. GRUPO CORPO. Triz.<http://www.grupocorpo.com.br/>. HUGON, R. P. Études Sociales et Psychologiques, Ascétiques et Mystiques, 3ª ed., Paris,1924. Revista Permanência, 275. <http://permanencia.org.br/drupal/ node/1178>. HUIZINGA, J. O declínio da Idade Média. Trad. Augusto Abelaira. Ed. Ulisseia, 1924. SOLER, Colette. O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. LACAN, J. (1959-60). O Seminário, livro 7: A ética da psicanálise. Trad. Antonio Quinet. Rio de Janeiro, Zahar, 1988. LACAN, J. (1972-73). O Seminário, livro 20: Mais ainda. Trad. M.D. Magdo. Rio de Janeiro, Zahar, 1982. LACAN, J. (1973-74). Le Séminaire, livre 21: Les non-dupes errent. Versão não publicada oficialmente. LE BRUN, J. El amor puro de Platón a Lacan. Trad. Silvio Mattoni, Buenos Aires, Ed. Cuenco de plata-Literales, 2004.
resumo
No Seminário 21, Les non-dupes errent (1973-74), Lacan escreve que “o nodal é o modal”, articulando o nó borromeano aos modos de gozo que já havia localizado nas fórmulas da sexuação, no ano anterior. Ele propõe que há dois tipos de nó, estruturalmente distintos: o nó olímpico e o nó borromeano. O nó olímpico é ordinal, pois uma das esferas — a do meio — tem prevalência sobre as outras duas. Esse tipo de nó é aquele que tenta escrever a relação sexual. Dependendo do registro que ocupará a função prevalente — o Simbólico, o Imaginário ou o Real —, teremos uma tipologia de modos de amor que tentam escrever a relação: o amor a Deus, o amor cortês ou o amor masoquista. Curiosamente, garantir o impossível, como faz o amor cortês, é tanta impostura quanto garantir o possível, ou pior, torná-lo necessário. Pois bem, ao contrário do nó olímpico, o nó bô é cardinal — não há ordem, nem prevalência de nenhum dos registros sobre o outro. É essa a característica que permite a Lacan escrever “não há relação sexual” a partir desse nó. Pois como afirma Lacan, o 3 é Real, pois o 1 não atinge o 2. O 2 é ímpar! Belo modo de dizer que relação sexual não há.
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Para sempre é sempre por um triz
palavras-chave
Amor, nó borromeano, RSI, Lacan.
abstract
In the Seminar 21, Les non-dupes errent (1973-74) Lacan writes that “the noding is the modal,” articulating the Borromean knot to the ways of jouissance that he had already identified in the sexuation formulae, in the previous act. He states that there two structurally distinct types of knots: the Olympic knot and the Borromean knot. The Olympic knot is ordinal, once one of the spheres — the one in the middle — prevails over the other two. This type of knot is the one which tries to write the sexual relationship. Depending on the register the dominant function will occupy — the Symbolic, the Imaginary, or the Real, we will have a typology of love that tries to write the relationship: love to God, the Courteous love or the masochist love. Curiously, to guarantee the impossible, as the courteous love usually does is as questionable as to guarantee the possible, or worse, to take it as necessary. Very well, on the opposite side of the Olympic knot, the Borromean knot is cardinal – there is no order, or the prevalence of register over another one. This is the characteristic which allows Lacan to write “there is no sexual relationship” from this knot. As Lacan contends, the 3 is Real since the 1 does not reach the 2. The 2 is odd! Great way of stating that there is no sexual relationship.
keywords
Love, Borromean knot, RSI, Lacan.
recebido 04/03/2015
aprovado 21/04/2015
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Notas sobre o Fantástico e a sexuação a partir do conto As Academias de Sião, de Machado de Assis Fabiano Chagas Rabêlo Introdução Comentaremos neste artigo o conto de Machado de Assis As Academias de Sião. Nele, encontramos uma questão em destaque: o gozo como correlato de uma tomada de posição subjetiva diante da diferença sexual. Esse texto relata a experiência de personagens que transitam entrem os sexos. O fio condutor da história são as tentativas da protagonista de solucionar o dilema da alma neutra ou sexual, de onde deriva uma questão que é bastante atual: é possível a existência de homens no corpo de mulheres e mulheres no corpo de homens? Com apoio de alguns recursos da literatura fantástica, o conto constrói uma abordagem bastante instigante do problema da identidade sexual, valorizando o enigma e, de modo irônico, desconstruindo o ideal de complementaridade entre os sexos. Instigado pelas provocações produzidas pelo texto, resgataremos algumas contribuições de Freud, Lacan e outros psicanalistas sobre a constituição das identidades sexuais. Em seguida, partindo de artigos que fazem menção ao conto machadiano, teceremos alguns comentários acerca do fantástico, do estranho, do transexualismo e das teorias de gênero. Esperamos com isso, no contexto das temáticas levantadas, traçar alguns delineamentos sobre o lugar da psicanálise no âmbito dessa discussão.
O enigma: entre o fantástico e o estranho Em As Academias de Sião, conto de Machado de Assis publicado originalmente em 1884 no livro Histórias sem Data, constatamos uma abordagem diferenciada do tema da constituição das identidades sexuais. Nele, a questão do feminino é apre-
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sentada na condição de uma desproporcionalidade, de um enigma. As tentativas da personagem principal de instituir equivalências entre o masculino e o feminino se mostram fugidias e fracassadas, o que a força a uma tomada de posição em função da premência de um momento de concluir. A história nos leva a transitar nos meandros da complexa relação entre sexo e gozo e a problematizar as escolhas — sempre únicas e singulares — que cada um faz diante da diferença sexual. O conto se inicia na primeira pessoa. A voz de um narrador nos alerta sobre o caráter ficcional da história que será contada: “Bem sabemos que em Sião nunca houve academias” (ASSIS, 2006, p. 595). Ainda assim, ele pede crédito e atenção, convidando-nos que o acompanhe. A produção desse cenário conjectural é essencial para a entronização do leitor em um estado de fusão entre credulidade e incredulidade, ficção e realidade, o que será determinante para a produção de uma ambiência fantástica. Trata-se aqui de uma narrativa heterodiegética, onde a figura do narrador não participa dos acontecimentos que expõe. Este, contudo, não adota uma atitude distante e neutra. Sua voz comparece muitas vezes durante o texto, reverberando as tensões e ambiguidades da história e potencializando os efeitos de enigma. Essas intervenções têm por função engajar o leitor numa vivência afetiva menos distanciada do relato. Salientamos que há quatro intervenções desse tipo distribuídas ao longo do texto. Cada uma delas com características e funções específicas. Elas constituem uma espécie de moldura que mantém a experiência de leitura numa zona de báscula entre uma possibilidade de interpretação alegórica/ racional e a irrupção da experiência do estranho. Todorov (2012) salienta que essa mediação é recorrente na literatura fantástica. Sua função é agenciar uma atitude de hesitação do leitor diante do texto. Assim, o leitor, em função dos efeitos formais e estéticos que a obra proporciona, não só repercute as oscilações afetivas e de julgamento do narrador, como também as lacunas, dubiedades e sobredeterminações do texto. Com isso, somos instados a oscilar entre diferentes possibilidades de interpretação e, em certa medida, a encarnar a errância das personagens da história. Além da mediação do narrador, Todorov defende que a presença do tempo verbal no imperfeito e expressões modalizantes corroboram para produzir esse efeito no leitor. No conto, tais recursos são menos frequentes, mas nem por isso de menor importância. Os verbos no imperfeito, por exemplo, podem ser situados na segunda e terceira intervenções do narrador, que logo comentaremos. No que tange às expressões modalizantes, apesar de rarefeitas, elas desempenham um papel de destaque na estrutura do texto. Uma expressão desse tipo está presente na primeira intervenção do narrador supracitada. Nela, como já mencionamos, o narrador adverte o leitor que a história é ficcional. No entanto, essa
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Notas sobre o Fantástico e a sexuação a partir do conto As Academias de Sião, de Machado de Assis
abordagem é contradita incessantemente no decorrer da história, o que serve para produzir no leitor um estado crescente de tensão. O texto, portanto, inicia-se com uma conjectura, uma suposição. O tratamento dado à narrativa, por outro lado, aproxima-se da factualidade, malgrado a menção a elementos mágicos. Para Todorov, a hesitação do leitor é a principal característica do gênero fantástico. O texto fantástico é aquele capaz de transformar, ainda que provisoriamente, o sentimento de apreensão da realidade, possibilitando que fenômenos até então percebidos como absurdos ou irracionais sejam tratados como experiências concretas, portadoras de uma verdade. No fantástico, o cotidiano e o insólito se sobrepõem. Para o autor, uma vez dissipado esse momento de hesitação — a partir do instante em que o leitor faz a opção por uma explicação racional, alegórica ou mágica — os efeitos do fantástico se dissipam. Decorre daí que a essência do gênero do fantástico não está encerrada no texto em si, mas nos efeitos circunstanciais e efêmeros que o leitor vivencia. Em função dessa definição, Todorov limita o gênero do fantástico entre as fronteiras do mágico e do estranho. Uma vez ultrapassados esses limites, finda-se a experiência do fantástico. No caso do estranho, quando se admite uma explicação racional para um acontecimento insólito; no outro oposto, no limite com o mágico/maravilhoso, quando é aceita a referência ao sobrenatural, ao transcendente. Todorov, contudo, reconhece que tais limites são fluidos e postula a existência de zonas de transição que mesclam características do fantástico com outros gêneros. Daí a menção ao fantástico-mágico e ao fantástico-estranho como modalidades atenuadas do fantástico puro. A história é contada no pretérito, o que dá a impressão de referir-se a eventos transcorridos no passado, em tempos remotos. Porém, ao final, o narrador mais uma vez abala esse porto seguro, convocando o leitor a se manifestar por escrito sobre a solução do enigma por meio de uma carta sobrescrita ao cônsul na China e dirigida à “mais graciosa dama do Oriente” (As Academias de Sião, op. cit., p. 602), supostamente a protagonista da história. Esse desfecho induz o leitor não só a considerar o relato como verídico, mas também a considerar a sua atualidade. A referência a uma temporalidade que enoda presente, passado e futuro é a temática comum às histórias que compõem o livro no qual está inserido o conto As Academias de Sião. Numa advertência que serve também de introdução ao livro, o autor, tendo em vista possíveis objeções ao título pelo fato de algumas histórias estarem datadas, antecipa-se às críticas e justifica sua escolha pelo título Histórias sem Data: “o meu fim é definir estas páginas como tratando, em substância, de cousas que não são especialmente do dia, ou de um certo dia” (ASSIS, 1884, p. VII). Feitas estas considerações, retomamos aqui a discussão sobre os estilos literários para nos apropriarmos de seus elementos estruturais com o fim de apreendermos
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os efeitos subjetivos que o conto engendra no leitor. Alguns textos machadianos (em específico, o conto objeto de nosso comentário) suscitam polêmicas entre os comentadores quanto à possibilidade de inseri-los no âmbito de determinado estilo literário, em especial o fantástico. Para alguns, As Academias de Sião deve ser tomado por uma alegoria, tal como propõem Fiori (2006) e Tettamanzy (2001). Esta última, muito embora admita a presença de componentes característicos do estranho e do fantástico, sustenta que no conto predomina o uso de analogias e metáforas. Diferente dessas autoras, Manna (2014), referindo-se a outro conto de Machado de Assis presente no mesmo livro, sustenta que muitas histórias de Machado de Assis podem ser interpretadas como pertencentes ao campo do Fantástico. Para isso, defende uma relativização das premissas de Todorov, deslocando a condição principal do fantástico para a manutenção do caráter ambíguo, aberto e polissêmico das metáforas machadianas. Da perspectiva da psicanálise, a mudança de posição do leitor — de um momento de hesitação para um instante em que ele se decide por uma interpretação alegórica — não constitui uma dificuldade no sentido de anular os efeitos do fantástico, como pensa Todorov. Tal mudança, no nosso entendimento, é efeito da divisão psíquica. Os processos inconscientes conjurados pelo texto, portanto, não desaparecem. Sobre esse ponto, acreditamos ser possível fazer uma aproximação entre a leitura que propomos do conto com o movimento de báscula que Lacan (2008) afirma orientar o seu ensino. Trata-se aqui de um deslizamento constante entre a posição de analista e analisante, na medida que em sua práxis o analista intervém a partir do seu inconsciente. Ele não julga, não reflete, nem teoriza. Em função disso, o analista é ultrapassado pela intervenção que produz, que não raro pode lhe causar surpresa, espanto, incômodo ou até mesmo horror. O ato do analista traz, portanto, a marca da divisão subjetiva. O esforço de teorizar a partir dos efeitos de uma práxis exige a adoção de uma outra posição. Trata-se de agregar um tratamento formal às coordenadas remanescentes dos processos inconscientes, cuidando para que a organização do pensamento consciente não corrobore as consequências do recalque. Essa é a razão pela qual Lacan faz uso dos matemas, dos grafos, da topologia e da lógica modal. O desafio está em aproximar os produtos do Inconsciente (ou Isso/Id) da sintaxe da Consciência e do Eu, tornando mais porosa a fronteira desses territórios, tal como Freud (1932/1997) enuncia no final do texto A dissecação da personalidade psíquica. Nesse sentido, Freud propõe uma analogia com o sistema de diques holandeses que se tornam intermitentemente vazados para possibilitar a entrada do mar. Tal engenharia possibilita a emergência de vastos trechos de terras até então submersas, o que não aconteceria caso as paredes dos diques fossem maciças.
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Diante do exposto, sustentamos que, mesmo com a adoção em alguns momentos de uma interpretação alegórica ou metafórica, nosso intuito é nos manter próximos às reverberações dos efeitos subjetivos incitados pelo fantástico do conto, cujo núcleo encontra-se no caráter sobredeterminado, lacunar e ambíguo do enigma.
O dilema da alma sexual O local onde se passa a história possui um caráter simbólico. Sião, segundo o dicionário Aurélio (2010), é a denominação em desuso de um dos estados da Indochina, atual Tailândia. Dele, deriva o gentílico siamês. Na medicina e no senso comum, quando falamos de gêmeos siameses nos referimos a duas pessoas que habitam o mesmo corpo. Por sua vez, ainda segundo o dicionário Aurélio, Sião em hebraico significa alto, elevado. É o nome de um monte próximo a Jerusalém que, em razão das referências bíblicas, passa também a designar a terra prometida dos hebreus, como bem lembra Tettamanzy (2001). De Sião deriva a denominação do movimento sionista, cujo objetivo é restituir aos judeus as terras que pertenceram a seus ancestrais e que, conforme os textos sagrados, lhes foram predestinadas. É relevante também destacar uma outra acepção registrada pelo dicionário Michaelis (2015) para essa palavra. Sião pode ser também um antigo instrumento musical chinês, uma espécie de flauta de Pã, composta de uma série de tubos de bambu de diversos comprimentos. A partir dessa sobredeterminação de significados — corpos compartilhados, terra prometida, o estrangeiro distante e exótico — somos levados a situar como tema central do conto o estranhamento de si com o próprio corpo ou, por assim dizer, o estranho que está presente no âmago de qualquer identidade (FREUD, 1919/1997). Dito de outro modo, trata-se da errância e da busca insólita por uma identidade sexual consistente e estável. Retomemos o fio da história. Após a primeira intervenção do narrador, nos são apresentadas a controvérsia e a causa da discórdia entre os sábios das academias de Sião: o dilema da alma sexual. A questão que move os sábios é a seguinte: o sexo é determinado pela alma ou pelo corpo? A alma seria neutra (e o corpo determinaria o sexo) ou haveria um atributo nela capaz de definir a identidade sexual, independentemente do sexo anatômico? Essa pergunta é levantada pelos sábios em decorrência da “esquisita feminilidade” do rei de Sião, que “virtualmente era uma dama” (As Academias de Sião, op. cit., p. 595), apesar de suas 300 concubinas. Para avaliar a índole do rei, os sábios de Sião são levados a se associar em academias, conforme a concordância com suas doutrinas. Dentre as quatro academias constituídas, três defendiam a
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tese da alma neutra e uma, da alma sexual. As quatro academias juntas, por sua vez, reuniriam “toda a sabedoria do universo”. A totalidade dessa sabedoria é, então, descompletada em função do desacordo entre as academias. Transcrevemos os argumentos dos acadêmicos adeptos da doutrina da alma sexual e a réplica de seus contestadores: “— Umas almas são masculinas, outras femininas. A anomalia que se observa é uma questão de corpos errados. — Nego, bradaram as outras três; a alma é neutra; nada tem com o contraste exterior” (Ibid. p. 596). Na impossibilidade de estabelecer um consenso pela via da argumentação, o debate entre as academias divergentes descamba para a força bruta. “Veio primeiro a controvérsia, depois a descompostura e finalmente a pancada” (Ibid. p. 596). Então, numa disputa de vida ou morte, os sábios se dizimam, o que resulta em 38 cadáveres e no estabelecimento de uma academia hegemônica (com sua respectiva doutrina). Aqui, encontramos a segunda intervenção do narrador: “Ventos que passais, se quisésseis levar convosco estas folhas de papel, para que eu não contasse a tragédia de Sião! Custa-me (ai de mim!), custa-me escrever a singular desforra” (Ibid. p. 596). Essa intervenção exerce uma função análoga à do coro na tragédia grega. Com ela, somos interpelados a nos compadecer das desventuras dos sábios, que se assassinam em razão de uma polêmica que aparentemente poderia ser facilmente contornada. Para além de sua dimensão trágica, a violência dos acadêmicos acrescenta à história um tom de ironia. Ela denuncia o caráter arbitrário e a insuficiência simbólica da doutrina que prevaleceu. Daí o efeito cômico que se destaca do louvor de saudação ao presidente da academia vencedora, o “sublime” U-Tong: “Glória a nós, que somos o arroz da ciência e a luminária do universo” (Ibid. p. 596). Ora, a vitória. Fiori (2006) interpreta essa passagem como uma crítica à ciência do século XIX e a suas pretensões de normatizar as paixões humanas, produzindo daí relações de poder e autoridade. Seguindo a mesma linha interpretativa, gostaríamos de acrescentar que, para além do campo da ciência, a pretensão encarnada pelos acadêmicos é a de esgotar o enigma da sexualidade por meio de um saber doutrinário e unívoco. Embora hegemônica, a academia sobrevivente não gozava de reconhecimento perante o povo de Sião. Em vez de confiança, seus feitos inspiravam terror e estupefação. Nesse ponto, nos é dado conhecer que dentre as 300 concubinas do rei, uma lhe era a preferida. Trata-se de Kinnara, “a flor das concubinas régias” (Ibid. p. 596). De acordo com Murthy (1985), Kinnara, na mitologia hindu e budista, são seres meio homens, meio animais, via de regra, pássaros ou cavalos. Os Kinnara demonstram grande aptidão e gosto pela música e pela arte. São considerados semideuses, e por isso, venerados em cultos, rituais e representações artísticas.
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Especialmente para os budistas, os Kinnara são descritos como possuindo uma índole terna. Via de regra, constituem casais estáveis, sendo extremamente apaixonados e dedicados aos seus parceiros. O termo Kinnara designa o espécime macho, enquanto Kinnari, a fêmea. Temos então na escolha do nome da concubina mais uma menção à divisão psíquica (o humano e o animal), além de uma inversão quanto ao sexo. Além disso, Kinnara faz alusão ao encontro sexual. Também é digno de nota no simbolismo do nome Kinnara a referência à conjunção do sublime e do instintual. Lembramos que, para Freud, a sublimação é um processo pulsional que encontra no campo da sexualidade os seus fatores determinantes (1915/1997). Somos informados que Kinnara possuía alma masculina, “era uma mulher máscula, um búfalo com penas de cisne” (Ibid. p. 597). Ao contrário da opinião de todos sobre a carnificina, Kinnara aprovara os meios utilizados pela academia vencedora e empenhava-se junto ao rei para que ela fosse oficialmente reconhecida. O rei Kalaphangko, no entanto, não acreditava no “absurdo” das doutrinas: “Não, não creio na alma neutra, nem na alma sexual” (Ibid. p. 597). Por outro lado, estando completamente apaixonado por Kinnara e já persuadido por suas carícias, deixa-se influenciar. Reproduzimos aqui um trecho do diálogo entre Kinnara e Kalaphangko (Ibid. p. 597): — Mas então em que é que Vossa Majestade crê, se não crê em nehuma delas? — Creio nos teus olhos, Kinnara, que são o sol e a luz do universo. — Mas cumpre escolher: ou crer na alma neutra, e punir a academia viva, ou crer na alma sexual e absolvê-la. — Que deliciosa que é tua boca, minha doce Kinnara! Creio na tua boca: é a fonte de sabedoria. É assim que, “entre duas carícias”, Kinnara obteve do rei o decreto que anunciava a academia sobrevivente como “legítima e ortodoxa, e a outra absurda e perversa” (Ibid. p. 597). Achamos interessante nesse ponto lembrar a discussão em torno das perversões alimentadas pela psiquiatria na virada do século XX, cuja dialetização orientou Freud (1905/1997) em direção ao aperfeiçoamento da etiologia sexual das neuroses e ao reconhecimento da sexualidade infantil. Esses avanços, por sua vez, resultaram em um entendimento das vivências sexuais — seja na criança como no adulto — como processos plásticos, passíveis de um amplo leque de variações. Salientamos que o texto de Machado de Assis é contemporâneo a essa discussão. Daí ser relevante constatar mais uma inversão. No conto, a norma expressa para definir as perversões contrasta com aquela adotada pela psiquiatria do sé-
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culo XIX. Enquanto esta toma a anatomia e a natureza como referência (o sexo, portanto), aquela afirma que a orientação da sexualidade é definida pela alma. Encontramos, então, nos termos de nossa comparação as duas doutrinas da academia de Sião: a da alma neutra (a da psiquiatria do século XIX), que define a perversão como um desvio da natureza; e a da alma sexual, para a qual a perversão constitui o distanciamento da orientação anímica. Mas o que vem a ser a alma? E qual a sua relação com o corpo? E o que acontece quando alma e corpo não se coincidem, como no caso da transexualidade?
Uma lógica não toda As investidas de Kinnara prosseguem. Ela propõe então uma troca de corpos que duraria seis meses, a ser engendrada por uma invocação mágica hindu que lhe fora transmitida por por um bonzo. Não sem hesitar, o rei acata a proposta da concubina. Concluída a troca, ambos se olham com assombro. O narrador adverte: “Era a situação do Buoso e da Cobra” (Ibid. p. 597). Por meio dessa referência ao canto XXV do inferno da Divina Comédia (ALIGHIERI, 2012), Machado de Assis realiza uma analogia entre a situação do casal real com a maldição imputada a Buoso, tal como é retratada pelo mestre florentino: a fusão de corpos com uma serpente. Trata-se, em ambos os casos, de uma união peculiar, pois fica impedido que de dois se faça um. Essa analogia traz à baila a desproporção que resulta do encontro dos seres sexuados falantes. A partir daí, propomos um paralelo entre a analogia machadiana com as teses lacanianas formuladas no seminário, livro 20: “não há relação sexual” (LACAN, 1972-73/1985, p. 22) e “a relação sexual não para de não se escrever” (Ibid. p. 127). A impossibilidade em questão não se refere ao encontro de corpos na cópula, mas à garantia de uma satisfação plena por meio do sexo. Como consequência da operação da castração simbólica, cada um dos lados da relação — o lado homem e o lado mulher — obtêm uma satisfação parcializada, mediada pela fantasia. A sexuação diz respeito, portanto, à posição que um determinado sujeito ocupa em referência à norma fálica, o que resulta na produção de um modo específico e parcializado de gozo. Ao final da troca, “Um e outro estavam bem, como pessoas que acham finalmente uma casa adequada.” […] “Sião tinha, finalmente um rei” (As academias... op. cit., p. 597). O termo casa nos inspira alguns comentários. Lembramos que a expressão alemã que designa o fenômeno do estranho lhe faz alusão na medida que em seu radical encontramos o substantivo Heim (casa/pátria/lar), que é negado (Das Unheimliche, op. cit.). Além disso, chamamos a atenção para o dito freu-
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diano que especifica a razão pela qual a psicanálise pode ser apontada como responsável pelo terceiro corte narcísico infligido à humanidade. Freud (1917/2001) adverte que ao defender em ato ou palavras que o Eu não é o senhor em sua própria casa, o psicanalista está sujeito a desencadear as mais fortes objeções de seus opositores. Lacan (1998), por sua vez, pontua que o Eu se origina de um processo de alienação à imagem do próprio corpo, que é investida libidinalmente. Por isso, as reações de ódio e fascinação mobilizadas pelo narcisismo. Da conjunção desses três apontamentos, concluímos que o estranho é o que não é caseiro, o que não encontra abrigo no Eu. No conto, a emergência do real do sexo é o que ameaça o Eu e desencadeia a experiência do estranho. A partir desse ponto da história, algo de mortífero vem à tona. Ao contrário de Kalaphangko, que se via às voltas com dificuldades de cobrar impostos, a crueldade de Kinnara na vigilância do cumprimento da lei é comparada pelo narrador à inquisição espanhola. Guerras fulminantes e campanhas heroicas foram encampadas. Motivada pelo acúmulo de conquistas, Kinnara passou a ser atraída pela ideia de perpetuar sua condição por meio do assassinato de Kalaphangko. O obstáculo para a consecução desse plano estava na possibilidade de Kinnara no corpo de Kalaphangko também vir a morrer, haja vista que o corpo a ser sacrificado era o dela de origem. A pergunta implícita que motivou a hesitação de Kinnara talvez possa ser expressa da seguinte maneira: será que sua alma, ainda que habitando um corpo masculino, manteria algum vínculo com o corpo feminino no qual crescera? Já completamente subjugado pelo dilema, o novo rei resolve consultar os sábios da academia; não diretamente, mas por alusão. A consulta acontece primeiro aos acadêmicos reunidos, com exceção de seu presidente. Depois, com o próprio UTong. Por fim, os acadêmicos são entrevistados individualmente. O resultado é o mesmo: cada um deles considera uns aos outros tolos — camelos —, cuja única qualidade é a de possuírem bom coração e caráter íntegro. Constatado o fracasso da consulta indireta, o rei resolve decidir por si mesmo, mas é surpreendido pela notícia de que Kinnara, no corpo dele, está grávida de um filho seu. Daí o abandono do plano de assassinato e, posteriormente, o consentimento em levar a cabo a troca de corpos, que ambos executam a contragosto. A imagem que prenuncia o final do conto é a de um barco com todos os membros da academia a cantar o hino: “Glória a nós...”. O assombro de Kinnara diante dessa cena retrata a posição fundamental de todo sujeito diante do enigma da diferença sexual. Entendemos que o Assombro de Kinnara resulta de uma impossibilidade lógica, na medida que as tentativas de resolução de seu dilema orientavam-se pela premissa de que tudo no sexual é passível de ser apreendido pelo simbólico.
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O apelo aos acadêmicos e as tentativas de sistematizar suas respostas denotam um esforço de fazer consistir as identidades sexuais, em especial a sua. Não é por acaso que justamente a referência ao feminino veio a entravar o seu plano de se perpetuar no corpo de Kalaphangko. Por não querer saber da falta e por elidi-la no seu cálculo, seus esforços mentais esbarram em um obstáculo intransponível. Daí o caminho de Lacan que, por meio de uma lógica modal não consistente, levando em consideração a falta, desloca para a psicanálise a discussão em torno das identidades sexuais do campo do gênero e do sexo para o âmbito que denomina sexuação. A partir daí, como assinala Quinet (2013), não são os determinantes genéticos, anatômicos, os traços oriundos de processos identificatórios, as práticas sexuais adotadas ou as características do parceiro que caracterizam para a psicanálise o elemento determinante na constituição das identidades sexuais.
Para concluir: os estudos de gênero e as novas identidades sexuais Temos então que Lacan perfila-se ao mesmo tempo com os defensores das doutrinas da alma neutra e sexual na medida que reconhece no gozo o móbil da sexuação. Isto é, ele não subscreve a tese enunciada por Freud (FREUD, 1925/1997) de que a anatomia é o destino, o que, no nosso entendimento, talvez seja a posição dos defensores da doutrina da alma neutra. Por outro lado, reconhece que há uma materialidade corporal nas modulações do gozo que torna a sexuação uma escolha subjetiva. Trata-se de um processo referido ao corpo, mas não redutível à anatomia, fisiologia ou genética. Por isso, a psicanálise não está inserida no grupo dos denominados estudos de gênero, que tendem a privilegiar os processos identificatórios coletivos — simbólicos e imaginários — na constituição das identidades sexuais. Nesse campo, desenvolve-se uma crítica — muitas vezes pertinente — que denuncia na cultura a presença de uma normatividade heterossexual e de uma tendência falocêntrica/machista. Dentro do escopo desse projeto, cultiva-se o esforço de ultrapassar o que se chama binarismo sexual (dualismo homem/mulher) pela investigação e valorização de novas identidades de gênero (transgêneros, transexuais e travestis). É por essa via que Ribeiro (2008) empreende sua leitura do conto que comentamos. Para a psicanálise, como assinala Pollo (2012), a referência ao falo não implica necessariamente a adoção de uma ideologia machista. O falo, para a psicanálise, não é sinônimo de pênis. Ele é um operador lógico que permite inscrever simbolicamente a diferença sexual no psiquismo. Depreendemos daí que tanto homens
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como mulheres estão referidos ao falo. Este, ao contrário do que se pensa no senso comum, não dá consistência ao masculino. É a sua ausência que interessa à constituição psíquica. Esse é o argumento de onde a expressão complexo de castração encontra sua justificação. Diferentemente da conclusão de Freud no texto de 1925, mas em conformidade com suas premissas, Lacan propõe a fórmula da sexuação como um modelo lógico que visa matematizar dois diferentes modos de tomada de posição a partir da baliza da função fálica. Nessa fórmula, a posição masculina está integralmente contida no lado fálico; enquanto a feminina encontra-se parcialmente contida nessa função como não toda. Daí que algo do gozo feminino não é capturado pela referência fálica. Como consequência dessas premissas, para o psicanalista torna-se mais importante dialetizar o binarismo sexual, decompondo-o em partes mais elementares para em seguida situar as múltiplas e singulares possibilidades de combinações existentes.
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Notas sobre o Fantástico e a sexuação a partir do conto As Academias de Sião, de Machado de Assis
resumo
Neste artigo estabelecemos o comentário do conto As Academias de Sião, de Machado de Assis. De início, situaremos algumas coordenadas mais gerais relativas ao gênero do fantástico que nos permitem localizar um efeito de dessubjetivição mediado pelo conto capaz de suscitar no leitor de um estado de indeterminação produtiva. A partir do abalo de nossas identificações somos convocados a nos perguntar o que, em essência, torna alguém homem ou mulher. Daí, a partir do fio condutor da história, tomando como referência o enigma da alma sexual, avançamos na discussão sobre a constituição das identidades sexuais da perspectiva da psicanálise, discriminando as categorias de sexo, gênero, escolha objetal e sexuação. A respeito dessa última, tecemos alguns apontamentos acerca da lógica modal e da função do falo.
palavras-chave
Sexuação, estranho, fantástico, lógica modal.
abstract
In this article we discuss a comment of the short story As academias de Sião by Machado de Assis. At first, we will work on some general ideas related to the genre of the fantastic that will allow us to locate an effect of ‘desubjectivization’ mediated by the short story which is able of arousing in the reader a state of productive indeterminacy. Departing from the shock of our identifications, we are called upon to ask ourselves what, in essence, makes someone male or female. Hence, following the thread of the story, taking as reference the enigma of the sexual soul, we move on in the discussion about the creation of sexual identities from the perspective of psychoanalysis, describing the categories of sex, gender, object-choice and sexuation. Regarding the latter, we weave some notes about the modal logic and the phallic function.
keywords
Sexuation, fantastic, strange, modal logic.
recebido 06/03/2015
aprovado 21/04/2015
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Trabalho crĂtico com conceitos
Nova economia sexual1 Colette Soler Ao dar como subtítulo de nossas jornadas,2 intituladas “A escolha do sexo”, duas frases de Lacan — “eles têm a escolha” e “eles, os seres sexuados, se autorizam de si mesmos” — aparentemente postulamos implicitamente que ambas são sinônimas! Seria esse o caso? Seria essa uma redundância para dizer a mesma coisa? Isso não se pareceria com Lacan, e no final das contas percebi que são duas teses diferentes. É isso que gostaria de tentar apresentar.
Paradoxo? São propostas que, vistas a partir do discurso comum, são contraverdades, e até mesmo absurdos. Quem sente estar fazendo uma escolha? Nem mesmo os transexuais, que afirmam com certeza um sexo oposto a todos os vereditos da anatomia e do estado civil, mas que não pretendem tê-lo escolhido, mas, pelo contrário, antes ter sido escolhido desde a origem e a contragosto por essa identidade sexual invisível. Se os “trans”, como se diz, mostram algo é somente que o sentimento subjetivo da identidade sexuada pode ser separado dos dados tanto orgânicos quanto culturais, e que, portanto, há entre eles uma junção da qual toda a questão é saber como ela se produz. Insisto no paradoxo. Eles têm a escolha, mas a anatomia, no entanto, vinculase a um real, e o real não pede sua opinião, se esbarra com ele. A anatomia se marca na imagem do corpo, mas ela não é, entretanto, imaginária; digamos que se trate de um índex no nível da imagem de um organismo vivo sexuado, que tem suas regulações próprias, e que em particular divide os seres vivos em duas categorias — macho e fêmea — segundo a sex ratio, que condiciona nada menos que... a reprodução da espécie. Hoje é possível dar um jeito com os hormônios e a cirurgia, mas isso é apenas uma “bricolagem” que faz a prova, pelo contrário, de que o organismo nos é imposto como um real. Ora, a anatomia, índex desse real biológico, é o ponto de amarração de todos os discursos históricos sobre o sexo, o casal, a reprodução e, mais geralmente, a ordem social. Natureza e histórias, por conseguinte, se aliam, mas a anatomia se impõe fora da ordem dos discursos que 1 Texto apresentado nas Jornadas da EPFCL, realizadas em 30 e 31 de novembro de 2014. 2 Jornadas realizadas nos dias 29 e 30 de novembro de 2014 na Maison de la Chimie, em Paris.
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a sobredeterminam. Como pretender, então, que ela não é determinante? Temos, portanto, um problema: como Lacan, a despeito de Napoleão e de Freud, pode por si só objetar ao veredito dos dois, “a anatomia é o destino”? É precisamente isso que “eles têm a escolha” parece dizer. É ainda mais curioso que quando introduz suas fórmulas da sexuação em “O aturdito”, Lacan está longe de esquecer o fator anatômico-orgânico, dado que ele postula não somente que cada uma das duas metades da sex ratio tem uma relação distinta com o sexo, mas, sobretudo, que o discurso deve produzir duas metades homólogas às da sex ratio natural — isto é, textual, cito: “é-nos preciso obter dois universais, dois todos, (...) duas metades que não se atrapalham demais em sua coiteração [coïteration] quando chegam lá” (LACAN, 1972/2001, p. 455). Porque isso é preciso, senão para assegurar, a despeito da não relação sexual, o ato hetero sexual, condição do porvir... da reprodução da vida, que é como que o pano de fundo de todo o texto de “O aturdito”. Por falta de tempo, não farei a demonstração textual disso, mas seria fácil; sublinho, porém, a lógica desse posicionamento. A não relação sexual, postulada em 1970 em “Radiofonia”, condensava a descoberta de Freud. Esta última era assim formulada: há pulsões parciais, mas não há pulsão genital, e, a partir daí a questão de como, para o falante, se instaura o corpo a corpo do coito hetero-sexual? O próprio Freud colocou essa questão e tentou respondê-la por meio do Édipo. Na verdade, um fracasso cujo índex é o limite a respeito da questão da mulher. Lacan, em “O aturdito”, tentava um último esforço para explicitar a identidade sexuada. Digo último, mas deveria antes dizer um esforço renovado, pois ele já havia fornecido uma resposta por meio da função do falo como significante da falta, a qual preside às regulações dos semblantes e dos desejos. Só que o desejo não é o gozo e somente ele não assegura do coito. Hiância, ele repete, do desejo e do gozo. “O aturdito” tenta fazer uma repartição, dessa vez por meio do falo maiúsculo, significante do gozo do falante, este mesmo que objeta à relação e que implica a castração. Como ele diz em “...ou pior”, o resumo do Seminário que “O aturdito” coloca por escrito, é o “título de uma escolha” na qual “trata-se do sentido de uma prática que é a psicanálise” (LACAN, 1973a/2001, p. 546), aquela que não recorre ao Nome do pai, que aposta “do pai ao pior” (LACAN, 1973b/2001, p. 543).
Qual escolha? A escolha, portanto. Não há escolha que não caminhe entre muros de coerções reais. No que tange ao sexo, onde estão os muros? Deixo de lado a anatomia e aquilo que ela empenha do real biológico. Lacan passou décadas precisando o que
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há de real na e pela linguagem e que se formula em negatividade por fim: não há relação sexual e o gozo que há, sendo aparelhado pela linguagem ou pela alíngua, sofre necessariamente pelo golpe de uma castração. Entre impossível e necessário, portanto, esse real próprio à linguagem sobre o qual não há nenhum controle, deixa alguma escolha? Não, esse real não se escolhe, ele se impõe — embora se pense de forma diferente. Enquanto é possível recalcar a verdade, podemos, na melhor das hipóteses, nos habituar ao real, não tem outra opção. Mas com o real há uma circunstância distinta, aquela em que um real — pois o real não é Um — arranja uma alternativa e, com efeito, em um certo nível, a estrutura não engaja somente algo do impossível e do necessário, mas também algo da ordem alternativa. É por isso que Lacan extraiu sua noção de “escolha forçada” imposta pela cadeia significante: ou um ou outro, ou o S1 ou o sentido, dizia o Seminário XI; posso escolher, com a ressalva que não tenho a escolha de não escolher, e cada opção incluindo uma perda, também não tenho escolha com relação à perda. Para o sexo não é só a linguagem, mas o discurso que desenha uma alternativa. Não há discurso do sexo, é o que demonstrava De um discurso que não seria semblante, mas uma alternativa entre duas identidades de gozo, toda e nãotoda [pastoute], fálica, determinada por duas lógicas diferentes. Essa alternativa, Lacan precisa, inscrevia o Édipo freudiano do lado do todo e, do outro lado, o nãotodo [pastout] que não está nessa lógica, mas para além dela, e que já é, portanto, uma das versões da alternativa “do pai ao pior”. Entre os dois, os sujeitos têm escolha. A expressão não aparece no texto de “O aturdito”, mas ela está claramente presente, implícita ali. Quando ele escreve “que um sujeito se propõe, por exemplo, de ser dita mulher”, fórmula de intenção subjetiva por excelência... A anatomia não faz destino para o sujeito, e não é porque alguém nasceu macho e que se diz que é homem, que ele se coloca à esquerda no todo fálico; é justamente o contrário, pois é porque alguém se coloca ali, e se ele se situa ali, que pode ser homem. E o mesmo para o outro lado. Hiato surpreendente, portanto, entre o ser de natureza, biológico, e o ser tomado em um discurso, e que fala. Dois anos depois, Lacan acrescenta: “eles se autorizam de si mesmos” (LACAN, 1973-1974/inédito, lição de 09/04/1974). A fórmula é quase contemporânea da introdução do termo “falasser” [parlêtre], que ele substitui em 1975 ao inconsciente freudiano, depois de ter dito em “Televisão” que não era preciso mudar esse termo “inconsciente”. A nova fórmula postula uma homologia surpreendente com o analista, que de fato surpreendeu. Armei-me, então, com a homologia para tentar mostrar o alcance da nova fórmula. Entre esses dois atos há ao menos um traço comum, bem visível, sem passar pela experiência analítica: eles são opcionais, um não é mais obrigatório do que o outro, e ambos têm consequências, mas não as mesmas, já que um preside a um discurso novo e o outro preside, além de uma possível sa-
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tisfação, à reprodução dos corpos que, por sua vez, não é nova, mas que está em questão, isso porque não há cultura que não produza artifícios discursivos para enquadrar o ato, para simultaneamente regulá-lo e forçá-lo. No cristianismo: abstinência, mas... dever conjugal. Com a ciência: o cálculo das políticas de natalidade, limitação/incitação. Prossigo. O analista que só se autoriza de si mesmo, como já desenvolvi, não é a pessoa do analista, aquela que decide comprar um divã e se instalar, mas o analista definido por seu ato. O ato em geral, mas eminentemente o ato analítico, se autoriza de si mesmo, porque o Outro não está no ato; mas há mais, no ato também não há sujeito — Lacan dá a fórmula paradoxal disso: no ato “é o objeto que aí é ativo e o sujeito, subvertido” (LACAN, 1967/2001, p. 332). Se falamos, então, de um sujeito do ato não se trata do sujeito representado por um significante, mas por aquilo que nele não é sujeito, por aquilo que o divide, por aquilo que o causa, o objeto a. E quando, um pouco mais tarde, Lacan acrescentou para o analista “e de alguns outros”, essa proposta não estava no mesmo nível, o ato não se autoriza de alguns outros; é o sujeito que se autoriza de alguns outros para correr o risco do ato que o subverte, e o primeiro desses outros é, a meu ver, e como já disse, Freud.
Autorizar-se a quê? Pois bem, finalmente percebi que “eles, os seres sexuados, se autorizam de si mesmos” não é como eu havia espontaneamente suposto, e constato que não era a única, não é a tese sobre as duas metades de sujeito homem/mulher estabelecida por “O aturdito”, é uma outra tese que vem depois, complementar, que acrescenta-se a ela e que tem um alcance mais amplo, diferente e que diz respeito... ao ato sexual e, mais amplamente, às práticas de gozo de corpo. Para introduzir esse ponto, noto, aliás, que o “Relatório do Seminário A lógica do fantasma” termina com considerações sobre o ato sexual; e na retomada das atividades que se segue imediatamente dois meses depois, Lacan começa o seminário sobre “O ato analítico”. Assim como, dois meses depois de “O aturdito”, ele abre o seminário Mais ainda sobre a questão do ato sexual, que ele propõe desde a primeira lição. A tal ponto que podemos dizer que ela não havia sido resolvida por “O aturdito”. Desenvolvo um pouco essa sequência. Em 1968, o relatório afirmava um “primado do ato sexual” (LACAN, 1968/2001, p. 326), declinado em duas fórmulas. “Não há ato sexual” e “só há o ato sexual” (Ibid.). Ele explicitava: não há ato que tenha peso para afirmar no sujeito a certeza que ele é de um sexo. Eis explicitada a disjunção entre a identidade homem/mulher e o ato sexual hetero. O ato não prova nem o homem, nem a mulher. Aliás,
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a certeza dos transexuais não tem consideração para o ato. “Só há o ato sexual cujo pensamento tenha lugar para se defender” (LACAN, 1968/2001, p. 326). Em outras palavras, no ato sexual, “eu não penso”, não mais que no ato analítico. Com este ato que não identifica e que desafia o pensamento, o primado do ato sexual se afirmava do lado do negativo. Os passos seguintes foram de propor o “não há relação sexual”, é em 1970, em seguida, em “O aturdito”, de situar a discordância dos dois gozos nas duas lógicas que permitem concebê-la. Já sabíamos que essa identidade de gozo não implica a escolha do parceiro, o que chamávamos outrora na psicanálise de “escolha de objeto”; no entanto, há mais, nenhum dos dois gozos implica necessariamente o ato de copulação. “Eles se autorizam de si mesmos” coloca a disjunção entre a escolha do todo ou do nãotodo e, por outro lado, a escolha, não somente dos parceiros, mas das práticas de gozo de corpo. Sobre esse ponto é o seminário Mais ainda que insiste mais sobre isso, como se fosse preciso. No entanto, uma frase de “O aturdito” já havia marcado o lugar em que os desenvolvimentos futuros poderiam se colocar. Lacan evoca a chicana lógica de que “a relação ao sexo se perca” (LACAN, 1972/2001, p. 469). O termo chicana comenta a não complementaridade entre o todo e o nãotodo, mas ele acrescenta, cito: é por “querer que seus caminhos cheguem ao outro sexo” (Ibid.) que ele se perca. Só que ele não é obrigado aí a querer ir em ato ao outro sexo. Quem ele colocava do lado do todo fálico? Homens, hetero ou homo, pois a identidade de gozo não decide o parceiro; amigos da philia grega, histéricos homem ou mulher, a falofilia de Montherlant em “Televisão”, e dos místicos como Angelus Silesius. Angelus é colocado por Lacan no todo fálico porque entre ele e seu deus há o objeto olhar. Essa tese sobre Angelus pode ser justa ou falsa, pouco importa; ela indica que segundo Lacan, quando o objeto a se interpõe entre o sujeito e seu parceiro está-se do lado do todo fálico. Que o ato hetero não seja aí necessário fica bem evidente por essa série do homem homo, mas igualmente para os “amigos” gregos e a histérica que fazem a escolha do amor mais do que do gozo carnal, ético. Fora-sexo, com letra maiúscula, diz Lacan, evidente também pela ética do celibatário de Montherlant; quanto a Angelus, suas constrições com deus, por serem limitadas pela estrutura do fantasma , não comportam evidentemente o ato sexual. Do lado do heteros ou da hetera que é o nãotodo, Lacan coloca psicóticos, mulheres, místicos cujo matema poderia ser escrito por contraste com o de Angelus Silesius, . Compreenderíamos, assim, que qualquer que seja a intensidade das vibrações eróticas dos textos místicos, Lacan afirma muito fortemente que não se trata de histórias de foda [histoires de foutre]. E se a foda [foutrerie] que passa pelo órgão se distingue bem como Lacan coloca em sua “Nota italiana” da fodedoria [fouterie] que, por sua vez, passa no sentido antigo do termo pela articulação da
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alíngua, poderíamos talvez dizer que se trata de fodedoria em busca do A barrado. Em todo caso, os místicos, de qualquer lado que estejam, são o exemplo mais exacerbado da disjunção entre a opção sexual do todo ou do não-todo e a prática de corpos propriamente dita. No ato, os atos sexuais, hetero ou não, e cujo sucesso faz o fracasso da relação sexual (LACAN, 1973b/2001), não nos esqueçamos, os seres falantes se autorizam de si mesmos e não da escolha entre o todo e o nãotodo que o discurso lhes impõe e que por si só não implica nenhuma prática de corpo específica. No máximo é possível dizer o que aproxima os corpos em caso de hetero sexualidade, como faz Lacan em Mais ainda com seu esquema do casal, onde se lê que para o homem isso passa pelo fantasma, e para a mulher, pelo falo. Poderíamos, aliás, sobre esse modelo, fazer o esquema de outros tipos de casais, mas isso não diz nada do gozo que responde no ato, e assim como para o ato analítico, é preciso questionar o “si mesmo” do autorizar-se de si mesmo. Pode-se dizer que aí, no ato sexual, é também o objeto que ali é ativo e o sujeito subvertido? Não seria suficiente. O objeto causa do desejo pode empurrar em direção ao Outro, objeto ativo, mas ele não basta para assegurar o gozo, como sabemos bem. Hiância do desejo e do gozo, repete Lacan. O que é que daí decide desse gozo que um toma pelo corpo do Outro, de onde ele vem? É exatamente a questão do início de Mais ainda. O desejo que o simbólico determina não basta aí, as características sexuais secundárias da imagem do corpo do Outro também não? O seminário Mais ainda deixa a questão em suspenso, mas ela prossegue para além dele. Lacan avança aí passo a passo, e acaba por responder pelo... sintoma, fixão de gozo. Ele é “acontecimento de corpo”.
O acontecimento de corpo Com ele, não há escolha. O acontecimento de corpo é como o trauma: isso irrompe, contingente e singular. No entanto, isso determina seu ser próprio, seu “si mesmo” que não é sujeito representado por um significante. Eles se autorizam de si mesmos quer dizer, portanto, que entre a sexualidade como atividade e o que chamamos de subjetividade com tudo o que disso se representa na fala, há um hiato. Em certos casos, uma solda entre o que é do sujeito — ou seja o amor, o desejo e o fantasma — e o que é do corpo de gozo dissimula o hiato; em outros, ele é perfeitamente perceptível, fazendo eventualmente o tormento do sujeito que não pode nada com isso. O acontecimento de corpo é algo do real, não o real do impossível, o da tiquê? Aqui se abriria a questão da relação entre o conceito lacaniano da alíngua e o acontecimento de corpo; deixo-a em suspenso por falta de tempo, mas vejam o que se passa em nossa época. Os acontecimentos de cor-
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po se mostram por toda parte nas modalidades múltiplas e variadas dos gozos dos corpos, especificamente nos coitos variados da pornografia de nosso tempo, que se exibem com toda tranquilidade em tablets e telas, disjuntos de qualquer problemática subjetiva, e nos quais o ato sexual hetero não é senão uma modalidade entre outras, algo de que os psicanalistas recebem amplamente retorno. Digo, portanto, nova economia sexual. Na realidade, o que é de fato novo é que o hiato que acabo de evocar não é mais dissimulado pelos discursos tradicionais, pois o capitalismo que desfaz esses discursos e fragmenta os semblantes o deixa aparecer a céu aberto. É que o capitalismo que foraclui os problemas do amor, diz Lacan, não faz nenhuma oferta a seu sujeito. Suas ofertas próprias jamais dizendo respeito senão ao funcionamento do mercado, ele deixa de fato o campo livre aos “acontecimentos de corpo” que só o interessam se ele puder fazer comércio com isso, assim como com tudo aquilo que diz respeito aos seres vivos. A essa finalidade de desvelamento inerente ao capitalismo é preciso acrescentar aquilo que o discurso analítico, com Lacan ao menos, revela, ele que atesta e que explicita as suas razões. Noto, aliás, que esse hiato já estava presente, segundo Lacan, sob uma forma invertida na arte barroca, orgia de gozo de corpo, coito excluído. Hoje, ei-lo justamente fora das alcovas do privado. É, sem dúvida, isso que faz com que ouçamos vozes que evocam uma perversão, até mesmo uma psicose generalizada da época, mas isso é um erro, pois perversão e psicose designam avatares do sujeito em sua relação com o Outro, não avatares do gozo sintoma. Por conseguinte, quem pode ser esses alguns outros? Não sei qual era a ideia de Lacan, mas assim como para o ato analítico, acredito que eles não se coloquem no nível do ato, sobre o qual nenhum Outro-outro poderia ter a maestria — sexologia sem esperança. Constata-se, por outro lado, que os sujeitos apelam para alguns outros para que eles ratifiquem o real de seu sintoma. O real dos falantes empuxa para a demanda de legitimação, e aspira-se hoje a normas plurissintomais contra a antiga norma unissintomal da hetero-sexualidade, e o processo de despatologização dos sintomas sexuais está efetivamente em curso, com o pesar de algumas pessoas. O hiato que evocava é, em todo caso, crucial para a psicanálise, naquilo que ela se fixa como objetivo com relação ao acontecimento sintoma, real, do analisante, ela que não opera sem a verdade do sujeito, e quando se trata de saber como ela ajusta sua interpretação a esse inconsciente renomeado “falasser”. Uma questão pode ser colocada aí: qual o arranjo entre o acontecimento sintoma e a verdade? A verdade que diz “Eu, a verdade, eu falo” — portanto, aquela que se procura pela via do dizer —, essa mente, pois nunca alcança o real fora simbólico. Mas há uma outra face da verdade, a que designa a expressão “hora da verdade”. Entre os corpos, na hora da verdade os semblantes desvanecem, e é o ato que deve responder,
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ou seja, o acontecimento de corpo ao qual falta “os ares de sexo” que se esperaria disso. “Fiasco, pautado como partitura musical”, diz Lacan (1973b/2001, p. 538). Uma última palavra sobre a medida daquilo que se pode escolher, então. Escolha entre o todo e o nãotodo fálico, mas escolha forçada: entre esses dois lados o falante não tem escolha de não escolher. No que diz respeito à atividade de corpo, “eles se autorizam de si mesmos” quer dizer que é o acontecimento de corpo que decide, em outras palavras, justamente o que o sujeito não escolheu, que se impôs a ele, mesmo em caso de hetero sexualidade, pois ela mesma é sintoma, como Lacan formulou. Eles se autorizam de si mesmos, mas de um si mesmos que eles, os sujeitos, não escolheram. E eis que explica o fato que ninguém se sente fazendo uma escolha em matéria de sexualidade. Vê-se, portanto, o que são os dois muros da coerção do sexual: o da estrutura da linguagem e de discurso que valem para todos, e o outro, bem diferente, do real das contingências que se fixam no um por um, e que presidem ao “há um” [y a de l’Un] do sintoma, o qual faz passar o inconsciente ao real. O trajeto do pai ao pior de 1971 se traduz, em 1975, do pai ao sintoma. E no fundo, a questão é de saber se a psicanálise de hoje vai continuar a fazer o que Lacan diagnosticou em “Televisão”, a saber, duplicar “a maldição do sexo” (LACAN, 1973b/2001, p. 530). Ela a duplica quando, na ausência de uma justa avaliação dos dados reais que acabo de mencionar, incumbe os sujeitos daquilo que eles não são responsáveis, pois, diante do real do sintoma, resta-lhes apenas uma escolha — que é bastante significativa, aliás —, a escolha ética de olhá-lo de frente ou não, quiçá de identificar-se com ele. Termino: o “eles se autorizam de si mesmos”, assim entendido, está perfeitamente em consonância com o sentimento de cada um e também com a época; longe de contradizê-los, ele explicita suas razões. Por fim, podemos nos perguntar: como Lacan — que no fundo estava, ainda assim, impregnado de tradição clássica — superou o grilhão das pré-concepções sobre a sexualidade a ponto de chegar à tese “eles se autorizam de si mesmos”, a qual redobra a subversão freudiana, por sua vez limitada àquilo que funda o dizer da não relação? É claro que ele não chegou aí pela via dos sentimentos, isto é, dos gostos pessoais, mas graças ao seu afinco para seguir as veias da lógica da linguagem e do discurso, sem os quais ter-lhe-ia sido impossível situar e colocar em destaque o real que aí escapa. Seria ainda preciso não recuar frente a essa junção, e aí está todo o mistério da incalculável escolha ética. Tradução: Cícero Oliveira Revisão da tradução: Dominique Fingermann
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referências bibliográficas LACAN, Jacques. (1967). O engano do sujeito suposto saber. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. . (1968). Resumo do Seminário 1966-1967 – A lógica do fantasma. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. . (1972). O aturdito. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. . (1973a). Relatório do Seminário 1971-1972– ...ou pior. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. . (1973b). Televisão. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. . (1973-1974). Le Séminaire, livre 21: Les non-dupes errent, inédito.
resumo
A autora enfrenta a questão: como se instaura para o falante o corpo a corpo do coito hetero-sexual, já que a descoberta de Freud “há pulsões parciais, mas não pulsão genital” resulta no “não há relação sexual”? Duas frases paradoxais de Lacan: “eles têm a escolha” e “os seres sexuados se autorizam de si mesmos” escancaram a disjunção entre a opção sexual do todo ou nãotodo fálico e as práticas de corpo propriamente ditas, pois se há escolha forçada da identidade de gozo, esta não decide o parceiro do encontro em ato com o sexo. Hiato, não mais escondido pelo discurso capitalista, o que explicita a “nova economia sexual” dos tempos de hoje e a possível e singular incidência da psicanálise sobre os destinos atuais da maldição sobre o sexo.
palavras-chave
Sexuação, ato sexual, escolha, acontecimento de corpo, sintoma.
abstract
The author faces the following question: how is the body to body of the heterosexual act installed once Freud’s discovery “there are partial pulsations, but not genital pulsation” results in the “there is no sexual relationship”? Two paradoxical phrases by Lacan: “they have a choice” and “the sexed beings authorize themselves” open up the disjunction between the sexual choice of the overall or
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the phallic non overall and the body practices themselves. If there is a forced choice of jouissance identity, this does not decide on the partner of the encounter in act with sex. Hiatus, not any longer hidden by the capitalist discourse, and this makes explicit the “new sexual economy” of current times and the possible and singular incidence of psychoanalysis over today’s destinies of curse over sex.
keywords
Sexuation, sexual act, choice, body happening, symptom.
recebido 21/12/2014
aprovado 21/04/2015
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A escolha do sexo: o que dizem disso? Marc Strauss Em que a definição por Lacan de um gozo feminino a partir de uma lógica inédita dita não-todo [pas-tout] muda o exercício da psicanálise, em outras palavras, a interpretação que ela faz dos sintomas e os objetivos que dá a si mesma? Sabemos que dois sexos são distintos no campo lacaniano por duas posições com relação ao gozo, ao mesmo tempo em que a função fálica os reparte em dois sexos identificáveis. Ademais, ainda de acordo com Lacan, os sujeitos teriam a escolha dessas posições. Quer isso dizer que essa escolha pode ser modificada pela análise? Annie-Claude Sortant Delanoé, em seu argumento,1 depois de ter enunciado os termos em jogo na escolha do sexo, nos coloca um certo número de questões cuja primeira é: Quais são as incidências dessa escolha na neurose e na psicose? Tentemos, portanto, responder a elas. A neurose não ignora o não-todo, mas o considera como um defeito de potência do falo, como uma ameaça para ele, portanto. O falo deve ser o garante do todo; ele deve constituir um consistente, e isso a partir do reconhecimento de um status de exceção de um . Isto posto, a colocação em função do falo não é, em si mesma, sinônimo de neurose. Ela é, antes, sinônimo de discurso do mestre. É preciso um senso comum para se reconhecer uns aos outros como sexuados. Um senso comum que, por hipótese, reconhece e divide a impossibilidade de atingir a verdade da heteridade feminina, e a substitui por comportamentos convencionados. O não-todo é, assim, mais ou menos neutralizado. De toda forma, não é possível tratá-lo melhor a não ser dando-lhe lugar ao lado do falo, com a condição de que ele se mantenha ali tranquilo. Sabemos desde Freud e com Lacan que os sintomas, coletivos e individuais, são intrusões desse não-todo que se manifesta em uma cena em que ele não tem nada a ver. Com efeito, a neurose acrescenta à impossibilidade estrutural a recusa em levar isso em conta. Como sabemos, ela vê aí uma impotência e se dedica a remediá-lo. O neurótico, qualquer que seja seu sexo anatômico, sonha, portanto. Ela sonha 1 SORTANT DELANOE, Annie-Claude (2014). “Le choix du sexe (Présentation des journées)” In: Journées de l’École de Psychanalyse des Forums du Champ Lacanien (Paris, 29 e 30 de novembro de 2014). Disponível em: <https://www.facebook.com/EPFCL2014/posts/296676473859097>. (Acesso em 05/03/2015).
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com o falo sem falha, ele ambiciona fazer Um sem resto. Por sua vontade de “conjuntizar” [ensembliser], ele esquece que um conjunto comporta sempre o elemento conjunto vazio — falha lógica, portanto. O neurótico, assim, é “homossexual”. Ele distingue as mulheres a partir daquelas que ele reconhece, isto é, aquelas que podem tomar lugar nas cenas de seu fantasma. Na histeria, o sujeito se coloca a serviço do mestre-falo, para reforçá-lo, exibindo a seus olhos o resto a desejar que escapa à sua captura; na obsessão, o sujeito também se coloca a serviço do falo, tentando dissimular meticulosamente esse resto. O sintoma neurótico é, portanto, o retorno da verdade nas falhas do saber “fantasma-fálico”. Com efeito, “a” se representa, sem dúvida, no fantasma, mas não se reduz a ele. No entanto, o falo, ponto de referência obrigatório para que se amarrem as cadeias do sentido, não vai sem uma alteridade. Lacan fez inicialmente sua redução lógica, a partir de 1945, com o Tempo lógico. Dessa forma, a falha do falo, reconhecida pela psicanálise como necessária, no final das contas, está longe de colocá-lo em perigo, mas é sua mais fiel aliada, já que é dela que ele extrai sua força criadora. Em seguida, Lacan deu a tradução clínica dessa falha: a angústia. Mais tarde, depois de ter atravessado a cortina de angústia que o protegia, ele descobrirá o tesouro que jaz nessa falha: os efeitos reais da alíngua sobre o corpo. Eles respondem à lógica do não-todo, cada um deles sendo únicos e, portanto, sem significação, mas não sem efeito, e não sem estar presente na cena das representações fantasmáticas. Um significante, S1, tem duas faces, portanto: articulado ao lugar do Outro que é todo, ele é investido como Ideal e faz sentido graças ao referente fálico. Esse investimento encobre a outra vertente do S1, o valor de gozo único que ele sustentou e de que ele permanece o vestígio cicatricial, sempre com sua carga de afeto, pelo tempo que o corpo viver. A questão coloca evidentemente em pauta a questão do laço entre esses efeitos de gozo da alíngua e o gozo situado por Lacan do lado da mulher. Mas antes, algumas palavras sobre a psicose. Sabe-se que o referente fálico falta aí e que, dessa forma, a cadeia não dispõe de um sentido último que a sustente. No entanto, para que essa cadeia seja ordenada e não pulverizada é preciso que o sujeito psicótico assegure o sentido das palavras uma a uma, sem o menor equívoco, o que só o remeteria ao furo do referente. As categorias homem e mulher então podem encontrar aí da mesma forma um sentido, e o exercício da sexualidade pode ser normatizado pela concepção que o sujeito se faz dele, mas a diferença sexual não faz para ele o lugar do pacto de fala destinado a resolver o enigma do sexo. Os transexuais ilustram esse fato. Se o gozo do corpo se infiltra na construção do psicótico, ele só pode ser outro, e, portanto, perseguidor. Ao sujeito psicóti-
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co falta do todo, mas ele só partilha com a posição feminina a linha que estabelece o não-todo. Ele não dispõe dos pés no chão que faz com que todo x que se enuncie seja Φx; pelo contrário, para ele nenhum x é Φx. Ele só pode, portanto, sustentarse de si mesmo, a partir de sua própria construção solitária. Isso nos leva à segunda questão do argumento: Quais experiências clínicas vamos colocar em discussão? O neurótico, dedicado a seu salvamento do pai, do todo fálico, imagina que sua falha seja devida à inadequação do parceiro, e o repreende por isso. Ou então, se ele for sensível à sua divisão, à sua implicação subjetiva, ele pensa que a falta remete à escolha que ele mesmo faz de seus parceiros. Mas, de toda forma, ele aposta na relação sexual e sua eficácia para definir o sexo outro, de uma forma mais precisa do que somente outro. Assim, na neurose, o campo das experiências clínicas é essencialmente o da colocação em ato sexual com seu desafio e suas impossibilidades. Que possamos resumir por meio do sonho de identificar pelo amor o gozo não-todo ao gozo prometido pelo significante. Em defesa do neurótico, esse desconhecimento da estrutura do Um sempre furado de vazio é mais ou menos imposto pelo discurso que distingue os sexos. Ela é o preço a se pagar para a entrada nesse discurso do mestre, que é o do inconsciente na medida em que ele estabelece a hierarquia do falo. Mas a estrutura, que não se deixa esquecer tão facilmente, e a história mostram que se seu desvelamento é lento, ele não deixa de ser feito. Até aquilo que disso pode se dizer de melhor no estado atual dos discursos, pela voz da psicanálise, é claro. É Freud quem permitiu a esses falantes esquecidos de dizer a si mesmos, por fim, que uma outra opinião existia. Freud escutou as mulheres como nenhum homem o havia feito até então. Ele descobriu sua castração, que atinge à sua maneira todos aqueles que falam, dividindo-os entre homens e mulheres, e os condena a se encontrarem, ou ao menos se situarem uns com relação aos outros, sem saber quem eles realmente são. Eles fazem assim o possível para cooperar em “conjuntizar”, desviando-se da castração com os meios próprios a cada um, mas com o mesmo horror. Uma análise, portanto, pode ajudar um sujeito a não mais ter tanto trabalho para defender o todo fálico, um todo-um que a história e a lógica já colocaram bem em maus lençóis. Sobre esse assunto, recomendo-lhes uma exposição do Musée d’Orsay, dedicada a Sade,2(NT) que deve ser vista tendo à mão o excelente guia que são os Escritos de Jacques Lacan, precisamente as páginas 776 e 802 (LACAN, 1963/1998). Não mais se esmerar no salvamento do todo modifica a relação do sujeito com o outro sexo, mas não se deve esquecer que a operação analítica procedeu modi2 (NT) Referência à exposição “Sade. Attaquer le soleil”, em cartaz no Musée d’Orsay (Paris, França) de 14/10/2014 a 25/01/2015.
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ficando inicialmente sua relação com a língua, abrindo as possibilidades que ela lhe oferece... Se não há relação sexual, há uma relação textual, sempre inesperada. Constatar que a alíngua está enodada ao sentido apenas, mas não se reduz a ele libera potencialidades novas que o sentido mascarava. No fundo, uma análise torna um sujeito normal, ele sabe o que é uma lei simbólica, aceita que o falo possa não ser todo; e ele não ignora aquilo que deve ao resto que lhe escapa, se ele se mantiver bastante tranquilo para lhe permitir funcionar de forma conveniente. Na psicose, pelo contrário, podemos apenas nos ater à mais extrema prudência com relação à nossa intervenção sobre aquilo que faz sentido sexual para um sujeito, pois nesses casos corremos sempre o risco de precipitá-lo no abismo da referência faltante. Para voltar à escolha do sexo e precisá-la, podemos dizer que é a escolha de tratar o que a significação fálica deixa como resto ao fantasma. Se chamarmos esse resto de gozo outro, e fizermos dele o índex de uma posição feminina, podemos distinguir escolhas diferentes. Ou nos acomodamos sem estorvar-se demais com isso; ou se ele atormenta demais para que o suportemos, a psicanálise pode, então, ajudá-lo a pensar em outra coisa. Por que alguns sujeitos seriam mais atormentados pelo resto do que outros, a ponto de vomitar ou fazer disso uma obsessão, ao passo que outros conseguem se virar bem com isso? Podemos pensar que um sujeito pode ter sido desfavorecido no que concerne aos meios para se virar que lhe foram dados, que ele se viu coagido por uma opção impossível de manter. Podemos, então, imaginar ajudá-lo a fechar enfim o capítulo de seu estorvo pelo resto e abrir-lhe, assim, o campo do falo, onde ele vai encontrar sua recompensa prometida. Até agora, parece-me claramente que conseguimos explicar que o todo é não somente a escolha forçada, mas também a escolha certa, aquela que trata o nãotodo da maneira certa, que lhe faz um lugar sobre o qual todos, ou ao menos dois, se põem de acordo. Quando o ter e o ser do falo se encontram, tudo vai extremamente bem, e a aliança dos homens e das mulheres deveria ser perfeita para fazer os dois se sustentar. Temos, contudo, um problema. Até aqui falamos de não-todo como se fosse uma ameaça para o todo, estruturalmente inevitável, mas que pode se conter e se metaforizar fazendo-lhe atravessar a barreira fálica. E se reconhecemos que uma pequena excursão para o lado do não-todo não deve ser desdenhada, nem por isso justificamos as razões que um sujeito teria de ter gosto por isso a ponto de daí fazer sua escolha. Com efeito, considerando-se todos os aspectos, o neurótico tem total razão de desconfiar do não-todo. Escapando por definição a todo pacto que supõe um sen-
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tido compartilhado, ele é e permanece fundamentalmente uma ameaça. Vejamos bem o que o não-todo implica como consequência, que não pode se reportar, por definição, a nenhum sentido definível. Isso apenas quer dizer que esse não-todo: t não reconhece nada nem ninguém; ele não testemunha, portanto, de nenhum reconhecimento; t não respeita nada; t não é leal; t não é previsível; t não é gentil. E até mesmo, do ponto de vista do todo, ele pode ser considerado como malvado, já que não ouve nada de nossas queixas nem de nossos prazeres. Em suma, poderíamos assim resumir: não há paz possível com o não-todo. Sabe-se lá que não somente os homens, mas também as próprias mulheres queixam-se sobre os divãs desse excesso preocupante! Por que diabos, então, escolheríamos nos estorvar com um troço desses? Quem poderia ter vontade de se entregar a isso ou mesmo de residir nisso? Esse gozo, no entanto, parece ser apreciado, e até mesmo reivindicado. Desde Lacan temos até mesmo tendência a glorificá-lo, ao passo que caçoamos do falo de bom grado. Com efeito, ele parece nos propor uma terceira escolha possível: por meio da psicanálise, pôr o dedo nesse índex para apoiar-se firmemente nisso. O que faz, então, o preço desse gozo feminino tanto para os corpos falantes quanto para nós, psicanalistas? E a escolha dessa posição é forçada ou livremente consentida? Para tentar responder a isso, voltemo-nos, então, para os fatos e interroguemos os sujeitos que os manifestam. Constatávamos em primeiro lugar que existe um gozo que é experimentado, mas que não está ligado ao funcionamento anatômico de um órgão. Qualquer parte do corpo pode suscitá-lo. Não é o útero que se desloca, mas a zona erógena. Algo que os antigos haviam ainda assim visto bem precisamente, já que uma zona erógena é, no final das contas, apenas uma boca uterina tão mascarada quanto o homem de Wedekind. Por que reportar esse fenômeno de gozo errático ao não-todo? Ao menos por três razões: como dissemos, ele pode abster-se do órgão encarregado de representar o falo; ele não é explicável por nenhuma ciência; por fim, ele não pode ser adestrado por nenhuma iniciação. Haveria, então, nesses sujeitos que manifestam esse fenômeno outros traços de comportamento que revelariam também algo do nãotodo? Aí está a porta aberta a todas as difamações — deixo cada um com as suas. Se a posição que permite experimentar esse gozo é uma escolha, o que é que poderia justificá-la? Ainda mais que, se não há representação no não-todo, não
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há sujeito nesse não-todo? Como um corpo falante pode abandonar o sujeito, sua progênie querida, que ele se fez ser por sua representação; sobretudo ao preço em que ele a pagou, o da castração. Na coluna das vantagens, é verdade que o sujeito nessa posição não-toda não é forçado a daí se remeter a um dado órgão, cujo funcionamento, aliás, pode revelar-se bastante aleatório. O lado não-todo, liberado das cadeias do órgão, parece, então, terrivelmente mais livre que o lado que continua apegado em sustentar o órgão por sua encenação. E dizem desde Tirésias que o efeito obtido seria a medida desse desencadeamento. Tal liberdade é, certamente, um pouco desejável, mas também é preciso lembrar que seu exercício permanecerá sempre solitário, já que, por se situar no espaço do não-todo, não há, portanto, interlocutor possível. Há aí um preço a pagar, que pode parecer bem pesado. Mas isso não basta para explicar as grandes diferenças de apetite ao não-todo que constatamos nos fatos, e que provavelmente estão destinadas a permanecerem misteriosas, dado que são relutantes a qualquer tomada em um sentido qualquer. Isto posto, como já evocamos, Lacan nos desvelou que esse não-todo tal como o descrevemos, com seus efeitos de gozo errático, existe em outro lugar distinto daquele do ato sexual, e desde sempre. Esse efeito se produz inicialmente ali onde qualquer parte de pele e de mucosa, sob o efeito da palavra que a toca, pode se fazer “si”. Os efeitos da alíngua se autorizam deles-mesmos, do si-mesmo que os experimenta, portanto. Não se trata de todo com a alíngua, mas de elementos disparatados, de valor de gozo igual. Assim, o gozo feminino faz eco ao da alíngua, que permanece esquecido pela tomada do sentido, mas continua presente por meio de suas manifestações. Assim como o gozo do corpo do infans sob os efeitos da alíngua, o gozo do lado da mulher não se vincula à apropriação e ao exercício do órgão, mas a seus efeitos sentidos. Essa posição pode parecer passiva ou masoquista, mas ela assim o é ativamente. E, como sabemos, Lacan não faz dela uma obrigação para as mulheres — assim como não obriga os analistas a fazer o passe —, mas uma escolha; escolha de se satisfazer por intermédio de um pequeno homem que ela pode em seguida devolver a suas tarefas “d’homésticas”, isto é, a suas trocas sociais, nas quais ela se faz voluntariamente objeto para atingir seus fins. Os efeitos da alíngua são agradáveis ao infans ou não? É impossível saber, mas podemos postular que para todo sujeito falante eles se revelaram suficientemente bons para tê-lo levado a demandar de novo, a falar. Portanto, a sacrificar esse gozo, a fragmentá-lo para fazê-lo passar através das barras da escala do sentido. Ele prossegue, todavia, seu ofício unitário, já que a cissiparidade significante não o recorta permanecendo desconhecido na metonímia de seus saltos. E, sobretudo, ele não passa todo ao sentido fálico, somente uma parte dele é metaforizada. O resto faz o cerne real do sintoma, que, apesar dos esforços do sujeito, resiste a
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toda significação, não tem nenhum alcance de sentido. O sujeito, desvencilhado da obrigação de impor-lhe sua ganga fálica, pode cessar de temê-lo e deixá-lo jogar nos interstícios do sentido. Evidentemente, atesta-se que o sacrifício ao significante uma vez realizado não tem nenhum sentido de promessa, há motivo para ficar gravemente desapontado. É o que acontece com os sujeitos para os quais o nome do pai não carrega o sentido fálico. Por quais razões, é um outro assunto. Isto posto, esses sujeitos podem dar um jeito com o não-todo caótico que a linguagem permanece para eles, colocando aí sua ordem, com a condição de dele separar o gozo do corpo que ali deve permanecer estrangeiro. Joyce aí mostrou ser o mestre. Excetuando-se este caso, a língua trança em torno do falo todo e não-todo, e forma a escada que conduz ao outro. Ela é o lugar onde o talento sabe fazer ressoar o lugar do não-todo no todo contextualizado que lhe faz escrínio. Assim, o não-sentido [pas-de-sens] do chiste pode fazer rir, pois ele alija do esforço de compreensão. Mas depois desse alívio, ele não dá nenhuma solução no que diz respeito àquilo que há para compreender, a saber, o sexo definido como todo e não-todo ao mesmo tempo. Melhor, portanto, que o chiste, uma nova significação, desperta o prazer no sujeito, pelo ganho de sentido que ela faz espelhar. Um ganho de sentido que homenageia o passo-de-sentido, já que ele o supõe. Fazer amor é poesia, lembrava Lacan no Seminário XX. Em outras palavras, fazer poesia é uma forma de estar assegurado de não estar sozinho, de fazer todo com o não-todo; a poesia é metáfora que reúne aqueles que a entendem sobre o fato de que o amor é um seixo rindo ao sol. Talvez não seja tão agradável, mas igualmente justo aos olhos do mito, dizer que o amor é um seixo rindo na sarjeta. É, sem dúvida, uma poesia que faz pouco-caso das más maneiras, até o pastiche, mas é poesia também. Dito isso, o psicanalista não é poeta. Ao se colocar sob o impulso da alíngua do analisante, ele pode ter a chance de ressoar com ela e de liberá-la de suas aderências a um sentido pesado demais. Vemos como ele só pode se autorizar também de si mesmo. Mas, no entanto, não sem o paciente que lhe fala, assim como o infans precisava que alguém quisesse fazer-lhe ouvir sua voz. É essa a hipótese da psicanálise, a de que cada forma de colocar em cena o gozo como fálico se faz a partir do gozo despertado pela alíngua. E que a encenação por meio do fantasma procede da opção de “univocalizar” um nó de significações possíveis. Em outras palavras, o denodamento do sintoma não se faz ao constatar que há significação impossível. Sabemos disso por aquilo que nos ensina a teoria, mas não temos acesso a essa impossibilidade que, para cada um em particular, pela emergência de uma significação singular pré-existente, que estava congelada em sua univocidade. Uma análise que leve em conta o não-todo, vai, portanto, mais longe que o encontro do lugar vazio da castração.
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Acrescentemos, para concluir, que o espelhamento reconhecido do ganho de sentido engaja uma responsabilidade quanto ao prazer que ali é obtido. É isso que lembra o psicanalista que se extrai do alvoroço coletivo ocupado em celebrar a estátua restaurada do sentido. O psicanalista, sempre um pouco estraga prazeres, fica atento, pela suspeita que ele deixa pairar sobre a autenticidade da jubilação ostentada. E quando sujeitos se recusam a jogar o jogo coletivo e tomar seu lugar na troca, ele pode escutá-los porque ele sabe em que eles têm razão: a escolha, uma escolha, qualquer que seja, só se pode fazer sozinho, sempre, inclusive e, sobretudo, a escolha do sentido. E não se é sujeito senão de sua escolha e por sua escolha. Apoiado em sua razão, esses sujeitos em ruptura de sentido comum podem tomar o lugar que os esperava, sabendo que ele é de sua escolha. O que é, então, a escolha do sexo para o psicanalista? Submeto à apreciação de vocês essa fórmula: a escolha do sexo é a escolha do não-todo em ato, que deixa seu lugar ao Outro do sexo enfim reconhecido. Um Outro sem o qual nós não seríamos nada. Tradução: Cícero Oliveira Revisão da tradução: Dominique Fingermann
referências bibliográficas LACAN, J. (1953). Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. LACAN, J. (1958). O significado do falo. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. LACAN, J. (1960). Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. LACAN, J. (1963). Kant com Sade. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. LACAN, J. (1972). O aturdito. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. LACAN, J. (1972-73). O Seminário, Livro XX: Mais ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1982. LACAN, J. (1975). La Troisième – Conférence parue dans les Lettres de l’École freudienne, 1975, no 16, pp. 177-203 (inédito em português). LACAN, J. (1975-76). O Seminário, Livro XXIII: O sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. SOLER, C. (2003). Ce que Lacan disait des femmes. Paris: Éditions du Champ lacanien, 2003.
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SOLER, C. (2003). L’inconscient reinvente. Paris: PUF, 2009. Le Champ Lacanien, no 9, revue de psychanalyse, “Le mystère du corps parlant”. Paris: EPFCL, mars 2011. WEDEKIND, F. (1906). L’éveil du printemps. Paris: Gallimard, 1974.
resumo
A realidade humana é tecida pela linguagem. É ela que lhe confere um sentido, do qual o sujeito é prisioneiro, sem que ele saiba. Com efeito, o que faz disso a chave e lhe assegura sua coerência é essencialmente inconsciente. Segundo a estrutura, essa chave é fálica e determina o gozo ligado ao fantasma, ou então deve ser construído pelo próprio sujeito. Mas o sentido não é o todo da materialidade significante da linguagem. Um resto sempre permanece, o qual revela sua dimensão de gozo. Lacan identificou a parte não-toda fálica ao gozo feminino. Ele tem características próprias, e escolher levá-lo em conta modifica o conjunto da experiência analítica, até o seu fim.
palavras-chave
Linguagem, gozo, falo, gozo outro, sujeito, sintoma.
abstract
Human reality is interwoven by language. It is language which grants it with meaning, of which the subject is a prisoner, although he/she is not aware of it. Effectively, what makes this the key and assures its coherence is an essentially unconscious process. According to the structure, this key is phallic and it determines the jouissance related to the ghost; or it has to be built by the subject him/herself. But the meaning is not the total of the significant materiality of language. A residue always remains, and it reveals its dimension of jouissance. Lacan associated the non overall phallic part to the female jouissance. It brings its own characteristics, and deciding to take it into consideration modifies the whole of the analytical experience, until its end.
keywords
Language, jouissance, pallus, other jouissance, subject, symptom.
recebido 19/01/2015
aprovado 21/04/2015
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A insistência do real na sexualidade: diferentes perspectivas da psicanálise e o feminismo Maria Luisa de la Oliva I Em psicanálise, dizemos que o Um é a insistência, na repetição, daquilo que não pode mudar e sempre chega ao mesmo ponto, pois é da ordem de um impossível. É um zumbido que não cessa. Não cessa de escrever-se. Nesse não cessar de escrever-se, estamos na impossibilidade da escrita de uma razão matemática que dê conta do que entrelaça os sexos. É o famoso aforismo de Lacan de que “não há relação (proporção) sexual”. É o limite a que se pode chegar na experiência de uma análise, se levada até o final. Na realidade, a ordem da linguagem pode ser reduzida a esse Um, como se fosse o Winzip (compressor de arquivos). Toda a ordem da linguagem comprime-se nesse impossível. É porque somos falasseres que estamos cerceados por um lado, mas, por outro, se somos falasseres é também porque existe essa impossibilidade. Como acede, como advém a linguagem a esse homo sapiens? O que é que finalmente produz o corte entre o animal e o humano? Podemos dizer que é justamente a aparição da linguagem em nossa espécie o que faz com que se produza esse corte que nos separa radicalmente do programa pulsional que rege o mundo animal, sendo lançados em um meio em que há palavras que, se nos permitem relacionar-nos, também fazem com que tropecemos permanentemente com o sentido, enredando-nos com ele, com o gozo, porque esse necessita algum tipo de embreagem para que possa ser outra coisa que um gozo autístico. Então tropeçamos com o desejo, que persegue algo, mas que é empurrado por uma causa que não se pode segurar, não articulável. Um desejo que necessita também a embreagem do fantasma, que é uma ficção de sentido para amortizar as falhas do sujeito e do Outro. Necessita-se uma ficção, um artifício, um pequeno mecanismo de engano para poder suportar o real que encobre. É dessa abertura que surgem os quatro discursos que escreve Lacan. Todos contemplam uma impossibilidade, a de reunir de maneira totalizadora as produções
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de um discurso com a verdade que o sustenta e promove. No discurso do analista, o impossível de saturar a verdade com a produção de significantes mestres. Dizemos que a verdade é não toda, pois é impossível enclausurá-la com o sentido, a significação, e, ao mesmo tempo, enquanto lugar, a verdade é também não toda, porque não tem limites que a circundem. Nisso, a verdade é como a mulher (barrada). No lugar da verdade, no discurso do analista, há o saber. Um saber no lugar da verdade, que promove, que sustenta a posição do analista como agente do discurso. Essa posição não é possível legitimamente sem saber desse impossível que está escrito na parte de baixo do discurso. É saber desse impossível enquanto condição o que faz que seja possível ao analista colocar para trabalhar o sujeito barrado, sujeito do inconsciente, para levá-lo, finalmente, ao limite daquilo que enquanto inconsciente é capaz de produzir. Levá-lo até os confins do Um. Essa abertura que faz nascer o humano está recoberta em todas as culturas conhecidas por algum tipo de mito e/ou ritual. Abertura da qual brotam perguntas justamente sobre aquilo de não poder haver uma resposta absoluta, como a morte e a sexualidade. A vida e a morte. Eros e Tânatos. Entre o gozo como empuxo e a castração como corte (parte superior do grafo) move-se o animal falante. Uma das caras do é justamente a do gozo, pois o limite àquilo que se pode dizer e saber impulsiona a que se diga. Na mitologia grega, representava-se pela esfinge, essa espécie de demônio que tinha rosto de mulher, corpo de leão e asas de ave. Um corpo feito de pedaços: meio animal, meio mulher.
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A partir dessa dimensão de hiância do falasser, representada na parte superior do grafo de Subversão do sujeito e dialética do desejo (LACAN, 1960/1998, p. 831), constroem-se estruturalmente todas as respostas possíveis desde diferentes planos: o plano do desejo e o plano das identificações imaginárias. São respostas no nível estrutural, mas diferentes em cada sujeito. Assim, não há um modelo a seguir. – Como se relaciona um sexo com o Outro? Tomo aqui o Outro sexo como uma alteridade, como Outro. Como se acede ao corpo do Outro? Aqui, temos que contemplar duas dimensões: uma é de caráter a-histórico, e outra, de caráter histórico. Veremos como as teorias de gênero, que tomaram como referência a performatividade, dão um peso determinante aos efeitos de discurso na sexualidade e como, a partir disso, apresentam uma possibilidade subversiva por meio das distintas práticas sexuais. No que se refere à dimensão histórica, os diferentes discursos deram lugar a produções simbólicas, a códigos de conduta, a uma certa narrativa, com as quais organiza modos e maneiras de relação de um sexo com o Outro. Digamos que o Outro social fabrica semblantes, mas esses não definem o que é um homem ou uma mulher. Não têm um caráter identitário, nem tampouco determinante quanto àquilo que em psicanálise chamamos posição sexuada. Entre essas produções simbólicas estão a mitologia, a religião, a arte, a literatura, e também as leis que exerceram um biopoder sobre os corpos e sobre a hegemonia de um sexo em relação ao outro. Dizia que essas produções permitem o uso de certos semblantes para a relação entre os sexos — já que não há outra maneira de fazê-lo que seja sem o semblante, seja a parada masculina ou mascarada feminina — mas o assunto delicado é que, quando se atravessa o umbral do quarto, esses semblantes caem e fica o casal frente a frente, em sua nudez: sem fórmulas que lhes permita encontrar a maneira de que haja uma união que faça desaparecer a diferença sexual, pois essa é da ordem de um Real. O amor tende ao Um, a fazer do dois, um. Mas, o encontro sexual, mesmo mediatizado pelo amor, sempre vai acabar com esse sonho de Eros, vai confrontá-lo com esse impossível. É aqui, em relação a isso que se goza na cama, que teremos que começar a falar da dimensão a-histórica da sexualidade do humano falante, pois o gozo sexual — o gozo que experimenta o sujeito, mas também o gozo do corpo que se goza —, não é histórico, e aí não entram os efeitos de discurso. Quiçá possamos falar de uma dimensão histórica no fantasma enquanto serve de embreagem para fazer gozar a esse corpo, já que, em sua trama imaginário-simbólica, a cenografia e o texto desse fantasma estão feitos de experiências vividas ou imaginadas na infância. Mas, nesse cenário do fantasma, também há um furo, uma dimensão de real que escapa ao histórico, que é um resto daquilo que não é simbolizável e faz com que o corpo
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goze parcialmente em torno das bordas de seus furos. Esse é o polimorfismo da sexualidade. De modo que é um corpo que se goza, aí não está o sujeito, está a pulsão acéfala. Também podemos dizer que há algo na fala que se goza, que não é da ordem do gozo do sentido e que é a parte que escapa ao sentido. É o que Lacan chama alíngua. Um corpo que se enlaça a outro corpo para um gozar-se do corpo e um gozar-se da língua imbricados. Esse gozo não é o gozo do fantasma. Pode-se falar de uma dimensão histórico-temporal da pulsão? Poder-se-ia considerar, levando em conta a contingência de acontecimentos vividos pelo sujeito em determinado momento, que fazem com que uma pulsão tenha predominância sobre outra, ou que haja certas fixações passionais. Quanto à linguagem, goza-se da maneira como essa nos foi infundida pelo Outro, como diz Lacan em sua Conferência de Genebra sobre o sintoma. Há um modo de falar que inclui o fraseado, o ritmo, a respiração, que passam pelo ouvido e que compromete o corpo. Então, a maneira pela qual o sujeito foi falado pelo Outro produz efeitos de ressonância em nosso corpo. A pulsão como “eco no corpo de que há um dizer” conecta com esses efeitos de ressonância. Assim, em relação ao Outro, é preciso diferenciar o que é a mensagem do que é a melodia, a canção dos pais. As palavras ressoam no corpo e isso produz efeitos: por um lado, esburacam esse corpo, criando a caixa de ressonância que não é nada mais que um vazio que permitirá, mediante suas bordas, que a palavra continue tendo efeitos de ressonância no corpo. Relembremos a definição que há pouco dei sobre a pulsão em Lacan: “eco no corpo de um dizer”, em que o dizer é justamente aquilo que não se alcança com a palavra, que está entre as palavras; é o que impulsiona a que se diga na medida em que há uma impossibilidade de alcançar, de capturar com as palavras tudo o que se quer dizer. Entre ambas as coisas, há um grande gradiente, uma diferença. Sempre haverá uma possibilidade de equívoco. Esse dizer tem efeitos no corpo. Ou seja, essa impossibilidade ressoa no corpo, produzindo um efeito de eco, que é a pulsão. Sem esse dizer, a pulsão sofrerá avatares curiosos. Uma amiga e colega, que está no final de sua análise e que padeceu de muitos sintomas em seu corpo, comentava como as palavras de sua mãe sempre haviam ressoado muito nela e como, agora, já não ressoam nada. Suas palavras já não lhe dizem nada e, coincidindo com isso, seus sintomas corporais estavam desaparecendo. Ao mesmo tempo, o lugar do Outro de onde saem as palavras, é um lugar furado por essa mesma impossibilidade. É justamente por esse furo que flui o dizer. Assim, tanto no lugar do Outro quanto no corpo — que Lacan os acabará fazendo equivalentes — há furos, e é nesse furo onde algo ressoa.
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A insistência do real na sexualidade: diferentes perspectivas da psicanálise e o feminismo
II Entro agora no debate entre a psicanálise e as teorias de gênero sobre o que contribuem quanto às identidades sexuais e ao valor de troca da realidade que atribui à sexualidade. A partir dos anos 80, os posicionamentos feministas apontam a eliminação da diferença sexual. O significante diferença sexual é substituído pelo de gênero, que é uma categoria um tanto neutra. Segundo Joan Copjec, isso produziu “sujeitos de papel, sem viço, sem corpos, sem órgãos sexuais no sentido psicanalítico” (CEVASCO; COPJEC; ZUPANCIC, 2013). É a dimensão sexual o que se abandona, mesmo que se fale de práticas sexuais. Deixa-se de questionar o que é o sexo, pergunta crucial como eu dizia no início deste meu trabalho. Para as teorias de gênero, dentre as quais está a teoria queer, a diferença sexual é problemática, porque se considera hetero-sexista. Homem e mulher são considerados categorias, e supõe-se uma relação necessária e obrigatória entre eles. Recusam a classificação dos indivíduos naquilo que consideram categorias universais fixas: homem, mulher, homossexual, travestismo, transexualidade, sempre e quando se considera que estão sujeitas a restrições por uma cultura. O conceito de performatividade foi cunhado por Austin e, posteriormente, reelaborado por Derrida. Ele fala de atos de fala, para indicar que neles há não só uma vontade individual, mas também são ações repetidas de atos reconhecidos de maneira convencional. A filósofa e feminista Judith Butler parte desses trabalhos de Austin e Derrida, aplicando-os aos estudos de gênero e fazendo uma revisão do próprio conceito de gênero: O corpo não é uma realidade material fática ou idêntica a si mesma; é uma materialidade carregada de significado (…) e o modo de manter esse significado é fundamentalmente dramático. Quando digo dramático refiro-me a que o corpo não é simplesmente matéria, senão uma contínua e incessante materialização de possibilidades. Não somos simplesmente um corpo, mas nos fazemos nosso próprio corpo e, de fato, fazemos nosso próprio corpo de modo distinto de como fazem seus corpos seus contemporâneos e de como o fizeram seus predecessores e de como o farão seus sucessores (BUTLER, 2004). A ideia é que o gênero possa deixar de ser entendido como algo que emana de uma suposta essência natural, universal e estável (homem ou mulher), e possa começar a ser entendido como algo construído, como algo que resulta do que fazemos, de como nos posicionamos no mundo e do efeito que os entornos sociais e culturais têm sobre nós. Nesse sentido, pode-se dizer que tanto “gênero” quanto
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“sexo” são conceitos performativos, isto é, são realidades que se produzem por meio do comportamento e do discurso. Quando um bebê nasce e se diz “é uma menina”, não se está constatando um fato natural e essencial, e sim atribuindolhe um papel cultural que faz com que, a partir desse momento, esse ser que acaba de nascer seja considerado uma “menina” (BUTLER, 2002; DERRIDA, 1989). Desse modo, o que Butler acaba sugerindo é que, se aquilo que gera realidades como o gênero são o comportamento e as ações, bastaria apropriar-se desse dito comportamento, adotar certas atitudes autorizadas socialmente, para lograr ser o que cada um deseja ser em cada momento? A afirmação de que “fazemos nosso próprio corpo” não sintoniza com o discurso do self made man capitalista, com a pretensão de fazer-se mestre do próprio corpo, empresário e gestor das inversões de gozo? É, por acaso, o sexo um conceito ou seria um Real? Nomear uma menina como tal ao nascer e dar-lhe um nome é marcar esse corpo Real com um nome próprio. Não se pode negar a dimensão de real que esse corpo tem, o que não é o mesmo que dizer que a “anatomia é o destino”. É claro que na medida em que “menina” é um significante já entra na cadeia discursiva e imediatamente porta uma série de significados associados a ele, o que não subtrai a dimensão de real desse corpo. Tampouco a cadeia discursiva dará a essência do que é enquanto menina. Ligar a ideia de gênero a como nos posicionamos no mundo é, a meu ver, confundir a dimensão de sujeito com a de ser sexuado. Na psicanálise, falamos de posição sexuada em relação ao modo de gozar. Tem-se a maneira macho, em que todo o gozo passa pelo falo, e a maneira fêmea, na qual não todo gozo passa pelo falo, o que não quer dizer, contudo, que não passa pelo falo, e que deixa lugar a um suplemento de gozo. Essa diferente posição não é algo escolhido por vontade, não é algo consciente. Judith Butler lê Lacan. Sua ideia de sujeito é, em parte, lacaniana, pois fala do sujeito da linguagem, e, em parte, aristotélica, como ela mesma diz, porque considera que o sujeito é político já que é um ser linguístico (zoon logon ekhon). Porém, no que se refere à constituição do sujeito, Butler contempla apenas a alienação, e não a separação. Sob meu ponto de vista, esse é um ponto fraco de sua teorização, pois considera o sujeito como totalmente à mercê dos efeitos de discurso que, segundo ela, são efeitos de censura (BUTLER, 2004b). Para a autora, a censura não só é privativa como também produtiva, porque produz “sujeitos de acordo com normas implícitas e explícitas”. “Devir sujeito significa estar sujeito a um conjunto de normas explícitas que regulam o tipo de fala que será interpretado como a fala de um sujeito.” Sujeito alienado ao discurso do Outro. Não há espaço então para a dissidência do sintoma, que é a resposta do sujeito diante daquilo que não encaixa de suas pulsões no Outro.
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O sujeito não é um sujeito somente sob o influxo do Outro do discurso, com seus efeitos de censura, entre outros. É também um sujeito separado do Outro. O sintoma de que parte a psicanálise tem uma face de alienação significante, mas também outra face de separação, que tem a ver justamente com a dimensão pulsional. Isto é, de algum modo podemos dizer que o sujeito do sintoma é subversivo, pois produz mudanças subjetivas e, ao mesmo tempo, objeta algo do simbólico. De fato, a histérica é quem mais mostra, com seus sintomas, aquilo falido do poder do mestre ou, o que dá no mesmo, denuncia sua castração. Creio que essa dimensão do sintoma é obliterada na teoria queer. A sexualidade é pensada unicamente como efeito coercitivo do social sobre o sujeito. Butler busca responder a pergunta sobre qual é a relação entre corpo e discurso por meio de sua teoria da performatividade: o corpo é uma espécie de materialidade que consiste em uma série de normas corporais, e o que faz que seja norma é sua reiteração, de modo que justamente por isso é possível que haja ressignificações ou alterações. Isso é interessante, mas o problema é que a sexualidade fica reduzida a algo da ordem imaginária, negando sua dimensão de Real. Contudo, parece-me correto o postulado queer de não confundir o gênero com o sexo. Em relação a isso, a figura da drag é, para Butler, paradigmática, pois oferece uma promessa crítica que não tem a ver com a proliferação de gêneros, e sim “com a exteriorização do fracasso dos regimes heterossexuais em regulamentar ou conter completamente os próprios ideais”. A drag não se opõe à heterossexualidade. É uma “alegoria” crítica aos atributos que performativamente aplicam-se à heterossexualidade. A drag mostra na cena que nem as identificações nem os semblantes bastam para dizer o que é um homem ou uma mulher. Há aí um nãotodo, uma falha. Falha que pode ter consequências políticas para as teorias queer. Quanto ao que chamam heteronormatividade, estabelecem que essa, de modo forçado, faz com que os sujeitos repitam e imitem os fantasmas e os significados que foram sendo construídos em torno do que é ser homem ou mulher, de modo que não haveria escolha do sujeito em função de uma obrigatoriedade em relação à heterossexualidade. Ou seja, não se escolhe livremente a encenação de gênero heterossexual. A identidade sexual tem, para Butler, um caráter de imitação. Há papéis que de maneira teatral cada sexo assume mediante a imitação. Ou seja, papéis que foram criados com anterioridade e que carregam determinada significação. A autora chama isso de performance do gênero. Isso não ocorre apenas com a performatividade heterossexual, pois também há o trejeito dos gays e transexuais, e as lésbicas “caminhoneiras” (masculinas) ou femininas, na medida em que imitam e repetem condutas com determinado significado fechado. O gênero é efeito de um sistema normativo, coercitivo que determina quais são os atributos próprios a cada sexo.
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Butler questiona o próprio conceito de identidade na medida em que é instrumento de regimes reguladores e, portanto, exercem controle sobre o erotismo, certa normatividade. A teoria queer, não podemos esquecer, é uma teoria política. Para mim, constitui um problema o salto que se dá de um cenário normativo a um cenário privado onde se goza, pois o Outro não ocupa todo o espaço da subjetividade porque, entre outras coisas, é um Outro em falta. Isto é, o gênero (masculino ou feminino) que se tenha não diz da posição masculina e feminina, mesmo que a teoria queer não fale nesses termos. Sexualidade e identificação não são exatamente o mesmo. A identificação não cobre totalmente a sexualidade, pois há nela um componente que escapa ou que não entra na identificação, o objeto a, a dimensão a-histórica de que falava no início. Precisamente porque falta é que nossa sexualidade não é animal. Tampouco as práticas sexuais, quaisquer que sejam, dizem o que é um homem ou uma mulher. Falar de homossexualidade gay ou lésbica não diz nada do sujeito quanto à sua identidade, mesmo que haja sujeitos que se apresentem “sou homossexual”, como há outros que dizem “sou toxicômano”. Para um analista essa afirmação não diz nada sobre o sujeito sintomático, pois essa falsa identidade com a qual se nomeia é um álibi para tampar o que encobre, a falta a ser, a falta em gozar e o impossível do não há relação sexual. Em todo caso, pode dizer do sexo de seu objeto eleito, mas nada mais. Butler propõe que nos convertemos em homens e mulheres por meio da repetição de atos que dependem de convenções sociais. A definição de queer rejeita as classificações de gênero e práticas sexuais. Queer refere-se de modo pejorativo a bicha, gay, homossexual; estranho, esquisito, torto; mas também desestabilizar, importunar. Isso tem uma conotação política de desestabilizar as normas que podem parecer fixas. Estou de acordo com Butler que não há escolha voluntária ou egoica de gênero, mas por outros motivos. Trata-se de uma escolha que não é uma escolha quanto ao sexo do objeto eleito, já que essa virá por acréscimo, mas é uma escolha de gozo, em que não é que o sujeito escolha, mas que o próprio sujeito vê-se implicado nessa escolha. Os primeiros encontros com o gozo marcam o sujeito e sempre têm para ele um caráter de hétero. Encontros que são da ordem da contingência. Logo, não são nem necessários, nem obrigatórios, nem prescritos. Logo, estão por fora da coerção do Outro do discurso que ordena. É também da ordem da contingência o encontro com a castração do Outro. Assim, pode-se falar em todo caso de uma determinação da contingência. Somos produtos da contingência. Ao sujeito não lhe resta alternativa a não ser ver como fazer com isso que foi uma marca em seu ser de gozo e que goza pese a ele, sem ele. Freud já sabia que a oposição ou objeção
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a isso que leva a uma direção paga-se com o preço do sintoma. Lacan, a partir dos anos 70, precisamente para se separar do lugar de um suposto discurso patriarcal no qual as feministas o estavam situando, e também separando-se da perspectiva freudiana, indo mais além do pai enquanto aquilo que faz norma, começou a elaborar sua teoria sexual, na qual não fala de homens e mulheres, senão de maneiras de gozar ao estilo macho ou fêmea, tenha-se o corpo que se tenha. Para Lacan, homem e mulher são significantes. Isso não é a diferença anatômica a que Freud se referia, mas tampouco pode deixá-la de lado, pois é uma contingência nascer com determinado sexo. O corpo não é todo, mas fará, por exemplo, que nos deem um nome de mulher ou de homem e que nos tratem de uma maneira ou de outra. Lacan estabelece que o pensamento é um enviscamento com o imaginário. Diz que se o homem não tivesse corpo, não só não pensaria como também não estaria profundamente capturado pela imagem desse corpo. Ou seja, há uma cola, um enodamento, poderíamos dizer, entre o pensamento e o corpo. Há uma captura pela imagem do corpo. Lacan nesses anos traduz o registro do imaginário ao corpo. O homem “corpo-reifica seu mundo, o faz à imagem de seu corpo, e não tem a menor ideia do que sucede nesse corpo” (LACAN, 1975). Ademais, acrescenta que esse corpo vai adquirir seu valor pela via do olhar e que a maioria daquilo que pensa o homem se arraiga aí. Então, temos um enodamento entre o pensamento e o corpo, e, ao mesmo tempo, esse corpo necessita o olhar para adquirir peso libidinal. Faz desse corpo um corpo desejante, algo diferente de um corpo organismo. É a libido que se transfere no olhar que faz com que se fixe o S1 nomeando meu corpo como um, validando que essa imagem que o espelho me devolve, efetivamente, é o que será meu corpo. Isto é, para a constituição do corpo faz-se necessária a intervenção do Outro e, concomitantemente, certa predisposição para aceitar essa aspiração do Outro, como a chama Colette Soler em “De un trauma al Otro”. Mas também diz Lacan que “o homem pensa com a ajuda das palavras, e é nesse encontro, entre essas palavras e seu corpo, que algo se esboça” (LACAN, 1975). Outra das coisas que a teoria queer questiona é que as práticas sexuais não dizem do ser que as pratica, ou seja, não confunde prática com identidade sexual. Segundo a feminista Beatriz Preciado, do ponto de vista queer, não tem sentido falar de homossexualidade ou de homossexuais como realidades objetivas ou posições estruturais estáveis. Não haveria por que praticar sempre o mesmo tipo de sexualidade, pois haveria uma decisão de adotar algumas práticas ou outras em função de lutas estratégicas, interesses, contextos históricos e políticos. Isso é o que Luis Izcovich chama gozar de maneira semblante. De fato, não há nenhuma classificação diagnóstica das diferentes práticas se-
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xuais. Até aí há conformidade com a psicanálise, pois as estruturas não se estabelecem em função da maneira de gozar, mas em função da resposta do sujeito à castração. Quanto às práticas sexuais, a norma que as rege não é a norma coercitiva hétero, mas a regência do gozo ao modo masculino ou feminino, que se serve do fantasma para poder gozar, e esse é sempre igual, mesmo que as práticas sexuais variem. Variar de prática sexual é vestir o mesmo santo com outro vestido. No que se refere à lei, é sempre a mesma: a lei da castração que torna impossível alcançar o Outro, o Outro desse corpo com o qual eu me abraço, seja esse corpo do mesmo sexo ou não. Com a análise, a maneira de gozar muda? Sim, mas não por que a prática sexual mude. Essa poderá ou não mudar, mas não será a causa da mudança, e sim a consequência. Uma análise levada a seu fim permite atravessar o fantasma, o que quer dizer ter ido longe o suficiente para constatar e verificar que o objeto de que se serve o fantasma é um tampão ao real. Um curinga. Saber disso e tomar posição diante disso, faz que salte como tampão e que o sujeito confronte-se com os três impossíveis: não há Outro do Outro, não há metalinguagem e não há relação sexual. Impossível do sentido, a significação e o sexo. Isso implica uma aproximação ao fato de que o falo não diz tudo do sexo. O homem poderá gozar de maneira mais tranquila porque deixará de estar tão inclinado a obter com o falo a resposta a seu ser de homem, admitindo que não é senão um semblante, o qual lhe permite uma aproximação ao hétero do Outro sexo. Além disso, constata que o que ele possui como órgão não é o falo, mas o que, às vezes, faz-se de substituto. O falo está sempre fora, como signo daquilo que sempre escapa da linguagem e à linguagem, quando se trata de capturar a coisa em si, o Real, e isso como universal que rege uns e outros. Quanto à mulher, descobrirá que o abandono de sua querela fálica, seja pela via da reinvindicação fálica de uma justiça distributiva dos sexos, seja pela via da negação da diferença entre os sexos, o abandono de sua pergunta sobre o que é ser uma mulher — como se houvesse uma essência a ser descoberta que lhe desse uma resposta definitiva —, o desprender-se da esperança e da crença de que a solução está no falo e a aceitação de que nela há algo do gozo que a desdobre em si mesma. Tudo isso pode permitir-lhe um acesso diferente à sua sexualidade, mais livre, menos sobrecarregada do falo. Tradução: Maria Claudia Formigoni
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resumo
A partir dos anos 70, Jacques Lacan começa a construir sua concepção da sexuação, que culminará no seminário Mais ainda. Previamente, Lacan constata que há um real que insiste na sexualidade de todo ser falante e que se resume no aforismo “não há relação sexual”, “não há proporção sexual”. O artigo trata de buscar os pontos de encontro e desencontro entre essa concepção de Lacan e alguns postulados das teorias feministas com relação à sexualidade.
palavras-chave
Psicanálise, feminismo, gênero, gozo, diferença, real.
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abstract
As of the 1970s, Jacques Lacan begins building his conception of sexuation culminating in the Seminar Encore. Previously Lacan notes that there is a Real which insists on the sexuality of every human being, and that it is summarized in the aphorism: “there is no sexual relationship”, “there is no sex ratio”. The article aims at finding the points of encounter and divergence between Lacan’s conception and some tenets of feminist theories related to sexuality.
keywords
Psychoanalysis, feminism, gender, jouissance, difference, real.
recebido 19/12/2014
aprovado 21/04/2015
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Transexualidade e Sexuação Elisabeth da Rocha Miranda Fui surpreendida em minha prática clínica por uma jovem de 19 anos que veio me ver com uma demanda precisa: queria um atestado psicológico que autorizasse a realização da tão sonhada cirurgia de ablação dos seios. Diz precisar de alguém que a escute e entenda que ela não é uma mulher. “Estou aqui porque preciso de uma indicação cirúrgica e me disseram que você poderia me dar. Sabe o que é ser um homem e ser obrigado a viver em um corpo de mulher? Quero me livrar dos seios para ter um pouco de dignidade, onde já se viu um homem com seios? Isso é monstruoso.” Sabemos que a anatomia não identifica os sujeitos como homem ou mulher, por isso mesmo a inquietação quanto ao ser sexuado é a regra para todos. Tal inquietação pode levar os homens a se verem obrigados a fazer a mostração para garantirem sua posição de macho enquanto que as mulheres recorrem à mascarada. Mas não só, essa inquietação quanto ao ser sexuado também passa pelo travestismo chegando ao extremo na transexualidade. A afirmação de Rafaela é de uma certeza cristalina, no entanto, sabemos que a clínica com sujeitos neuróticos prima justo por uma certa vacilação quanto à posição sexuada. O neurótico não tem uma certeza a respeito de sua identificação sexual. Não quero dizer que ele vacile diante da pergunta do Outro; homem ou mulher, mas sim que o sujeito se apresenta com inquietações quanto ao que é ser um homem e uma mulher. Frequentemente ouvimos queixas como: sou mulher, mas não sei o que fazer com isso. O que se espera de uma mulher? O que é ser um verdadeiro homem? Estarei à altura de ser um verdadeiro homem? Questões legítimas na medida em que a significação fálica nos dá apenas um parecer ser homem ou mulher. Trata-se de semblante, somos semblantes e assim velamos o real do sexo, real do gozo. A certeza de Rafaela de que era um homem, me fez de início pensar que pudesse se tratar de um sujeito psicótico. A psicose é uma estrutura que comparece com frequência nos transexuais, onde se observa o empuxo à mulher preconizado por Lacan. Segundo alguns autores, entre eles Catherine Millot, na estrutura psicótica a transexualidade pode funcionar como suplência à foraclusão do significante Nome-do-Pai mantendo a estabilidade do sujeito. É o que diz um transexual que trabalhava como cabeleireira: “Quando adolescente meus pais adotivos me internaram duas vezes; depois que botei seios e me assumi como sou, uma mulher,
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me acalmei. Muitas amigas operadas surtaram e isso me dá medo, não vou me arriscar, piro e perco o bofe”. Os sujeitos psicóticos que apresentam o delírio da transexualidade podem se beneficiar da cirurgia de mudança de sexo por encontrar aí uma estabilização como no caso da cabeleireira, mas isso não é uma regra, pois a cirurgia pode também desencadear um surto psicótico. Vale lembrar que a transexualidade não é um fenômeno elementar da psicose, e pode aparecer em qualquer estrutura. No decorrer das duas entrevistas, Rafaela me pareceu um sujeito histérico. Digo que me pareceu porque não se tratava de um sujeito em análise, mas como a estrutura edípica estava presente, a certeza de ser um homem em um corpo de mulher era, no caso, assegurada pela fantasia neurótica. Nessas duas entrevistas pude antever algo da fantasia desse sujeito que apontava para “ser para sua parceira o homem que o pai não soube ser para a mãe”. Além da mostração dirigida ao pai, a rivalidade com ele e com o irmão também apontavam para uma neurose. A pergunta histérica sou homem ou sou mulher? não passa pela inadequação entre gênero e corpo. O corpo histérico é o lugar onde se representa a vida sexual do sujeito denunciando seu sintoma. As histéricas bancam os homens e vice-versa sem que haja a necessidade de mudanças no sexo biológico. Seria então Rafaela um sujeito neurótico que apresenta o sintoma transexual? Rafael, como esse sujeito se autonomeia, relata o terrível sofrimento que o acompanha desde a infância: “Eu sempre fui um menino com dificuldades de ser aceito nos grupos. Adoro futebol, mas nunca consegui pertencer a um time ou ter uma turma, ou não me chamavam ou me excluíam por eu não ter uma aparência de menino”. Sua tragédia — como ele se refere ao fato de ter nascido em um corpo errado — chegou ao insuportável na adolescência. “Eu não sofria tanto por não namorar as meninas, porque muitos também não namoravam; o pior era a vergonha de menstruar, de ter seios que escondia com todas as minhas forças. Nunca mais fui à praia, piscina. Vivia me escondendo de mim mesmo porque meu corpo me causava raiva e horror. Tomei hormônios e me livrei dos sangramentos e agora quero me livrar desses peitos.” Rafaela, Rafael ou Rafa, como lhe chamam, diz não necessitar de uma cirurgia transformadora da genitália, não lhe faz falta um pênis e à sua parceira também não. O termo transexual foi introduzido por Harry Benjamin (1885-1986)1 para designar uma síndrome particular definida pelo psiquiatra americano Robert Stoller (1924-1981). Para o autor é transexual uma pessoa anatomicamente normal que tem o sentimento de pertencer ao sexo oposto e deseja mudar de sexo, porém ciente de seu sexo biológico, sem a manifestação de distúrbios delirantes. 1 BENJAMIN, Harry. Médico alemão que imigrou para os EUA, é autor do livro The Transexual Phenomenon. New York: Julian Press, 1966.
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Rafaela tem tal convicção do erro da natureza do qual foi vítima, que seu único interesse é a cirurgia, sua técnica, seus resultados e principalmente como consegui-la. Sua demanda não é de análise, “sente-se bem”, só quer um laudo para poder retirar os seios. Percebendo que eu não poderia ajudá-la em seu objetivo, não voltou mais ao consultório. Os avanços da medicina e da técnica cirúrgica e os estudos endocrinológicos nos permitem perguntar: antes desses avanços não havia transexuais? Eles conseguiam obter orgasmo sexual com a genitália com a qual nasceram? O ódio ao órgão viril, o pênis, e a existência deste impediam que esses sujeitos para além da forma de seus corpos se sentissem mulheres? A presença de seios impedia que as biologicamente mulheres se sentissem homens? O que é ser uma mulher? Ou um homem? Até que ponto o discurso capitalista, contaminando a ciência, promete um corpo que possa se adequar à posição sexuada do sujeito, se é que tal adequação é possível? A oferta cria a demanda, e o discurso capitalista é voraz em sua fúria de promover a ciência que a cada ano faz surgirem novas técnicas para mais e mais cirurgias, oferecendo à modernidade um circo de horrores, cruel ao prometer um ideal impossível. Nessa direção lembramos que as cirurgias plásticas, tão bem-vindas quando se trata de reparação e até mesmo de estética, ultrapassam seus limites realizando — já que a oferta cria a demanda — um rejuvenescimento sem fim, propondo a eternização da bela forma. Atualmente, até a genitália feminina é alvo de cirurgias estéticas, pois é possível sempre e sempre deixá-la com mais turgor e mais... não se sabe o quê. Assim, o recurso às cirurgias também no caso do transexualismo deve ser abraçado dentro dos limites do discurso que barra o gozo do tudo pode. O discurso do capitalismo que rege o tudo é possível é o discurso que tenta anular a barreira da castração impondo o imperativo do gozo que se realiza como imperativo de consumo dos objetos que se produzem no mercado. As cirurgias sem barra são consumidas e consomem os sujeitos que passam a achar que com a mudança do sexo anatômico se tornarão homens ou mulheres “como se deve ser”, quando sabemos com Freud que a inadequação é de estrutura. Se a clínica com transexuais aponta para a não adequação radical entre sexo e gênero, paradoxalmente o empuxo às cirurgias faz da transexualidade a via para a amarração do sexo com o gênero, ou seja, da anatomia masculino X feminino com a construção social do masculino X feminino de acordo com as normas e ideias de sociedade. Considerando-se que o corpo é esculpido pela linguagem e habitado por um sujeito do inconsciente, quando se diz eu tenho um corpo, diz-se porque a linguagem é quem dá esse corpo. É um corpo marcado, erogenizado pelo outro que transmite a linguagem. O filhote humano nasce em uma prematuração neurológica que tem seus efeitos no a posteriori, e o símbolo, como ordem da linguagem
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antecede a ela, logo a primeira subjetivação do ser humano dá-se pelo viés da imagem do corpo. O corpo apresenta-se como carne a ser significantizada pelo Outro da linguagem, para se tornar um corpo deserto de gozo, um corpo enquanto perda. A partir daí, o real existe fora: o simbólico — lugar do Outro, do tesouro de significantes e da falta — também está aí a priori; é no imaginário, a partir do simbólico e do real, que o sujeito se vê, por uma primeira vez, como um esboço do Eu. Lacan, em 1972, diz: “Desde o nascimento existe uma diferença inata e muito natural entre o menino e a menina... Essa pequena diferença corresponde ao que há de real no fato de que na espécie que se autodenomina homo sapiens os sexos parecem dividir-se em dois números mais ou menos iguais de indivíduos... Esses indivíduos se distinguem bem mais cedo do que se espera. No entanto, é preciso reconhecer que somos nós que os distinguimos, não são eles que se distinguem” (LACAN, 1971-72, pp. 15-16). O filho do homem é recebido com dizeres tais como: “Ah! É um verdadeiro homenzinho, logo se vê que é completamente diferente da menina” (Ibid. p. 16). Essa distinção foge à lógica, uma vez que para se reconhecerem como seres falantes é preciso rejeitar essa distinção, e isso se dá por meio das identificações e ainda é só porque o ser é falante que existe o complexo de castração. O tipo característico do homem e da mulher se constituirá a partir de algo completamente diferente, a saber, da consequência, do preço que terá adquirido, no desenrolar da vida, a pequena diferença (Ibid. p. 16). Desenrolar que se dá com ou sem a vivência edípica. Essa pequena diferença é justo o que é recusado ou reivindicado na transexualidade, e para resolver o problema esses sujeitos recorrem às cirurgias e à endocrinologia. Trágico equívoco na medida em que da pequena diferença o que importa são as consequências dela, ou seja, as identificações, as provas, o “experienciar”, o viver a experiência desta pequena diferença. A questão não é o transexualismo, mas a forma de abordá-lo pela via cirúrgica. Definir sexo e gênero ou adequar um ao outro não acrescenta nada a respeito das modalidades de gozo, do que se faz na cama, e nem de uma certeza de se estar na posição feminina ou masculina; no campo da “identificação sexual” o que domina é a vacilação, a pergunta. Nesse ponto, retomo ao que Lacan em seu seminário “... ou pire...” chama de “erro comum”. Lacan diz que “[...] para aceder ao outro sexo é necessário pagar o preço, o da pequena diferença, que passa enganosamente para o Real, por intermédio do órgão, justamente no que ele deixa de ser tomado como tal, e, ao mesmo tempo, revela o que significa ser órgão. Um órgão só é instrumento por meio disso em que todo instrumento se baseia: é que ele é um significante. É como significante que o transexual não o quer mais, e não como órgão. No que ele padece de um erro, que é justamente o erro comum. A paixão do transexual é a loucura de
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querer livrar-se desse erro, o erro comum que não vê que o significante é o gozo e que o falo é apenas o significado. Existe apenas um erro, que é querer forçar pela cirurgia o discurso sexual, que na medida em que é impossível, é a passagem pelo real” (Ibid. p. 17). Erro do discurso comum, do discurso dominante sobre a sexualidade que confunde o órgão com a função. O falo é o significante que dá a significação, mas o gozo é da ordem da letra, da marca que comporta o real sexual. Os ditos tratamentos pela via de cirurgias e hormônios falam de uma certa onipotência médica que pensa poder adequar o corpo ao gênero e corrigir um erro da natureza. Precisamente no campo da sexualidade, onde toda determinação é essencialmente desnaturalizada, lembremos Freud em 1905 em seus “Três ensaios sobre a sexualidade”. Pertencer a um sexo é uma questão significante. Se não há o significante que represente a mulher no inconsciente, tampouco há o significante que represente o homem, há um só operador que permite a partir do inconsciente dar conta da diferença sexual e esse operador é o falo. Consideremos três propostas de elaboração na teoria psicanalítica da diferença entre os sexos: a primeira proposta é de Freud, quando marca a diferença entre o ter e não ter — castrado/não castrado; a segunda é a diferença entre o ter e o ser, postulada por Lacan nos anos 1958-1960; e a terceira é a diferença que Lacan introduz com a lógica de um gozo todo e do não-todo fálico. Se a realidade do inconsciente é a realidade sexual, nem toda realidade sexual passa pelo significante. Assim, em 1958 Lacan sustenta que se todo analisável é sexual, nem todo sexual é analisável; quer dizer, há um real da sexualidade que não passa pelo simbólico, que é traumático e permanece no registro do real escapando tanto à questão de gênero como de sexo, mas que, no entanto, é marcado pelo gozo no real do corpo/carne e que independentemente da forma física, determina uma forma de gozo. Lacan propõe o campo do gozo e emprega o termo sexuação, colhido da biologia, para acentuar a dimensão de processo de tal função sexual. A sexuação para Lacan é a especificidade das relações do sujeito com o gozo. Os transexuais cuja estrutura é psicótica, onde há a foraclusão do significante nome-do-pai, estariam fora da partilha dos sexos. Na neurose a certeza de ser homem ou mulher é assegurada pela fantasia, e o sujeito transexual ou não, estará ou do lado esquerdo das fórmulas da sexuação, lado de um gozo fálico, masculino; ou do lado direito não-todo fálico, feminino. Logo, não há a possibilidade de um terceiro sexo como quer a teoria Queer. Essas posições não dizem respeito ao gênero, mas à posição sexuada de um sujeito, posição de gozo. Sendo assim, nada impede que um sujeito do sexo anatômico masculino, de gênero igualmente masculino, experimente um gozo feminino e se coloque na posição feminina. Por que, então, a questão transexual de corpo trocado, se o acesso às posições femi-
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nina e masculina é aberto a todos e independente da forma anatômica? Pergunta que permanece em aberto e que a meu ver deve ser respondida no singular de cada caso, porque não existe a categoria transexual. A transexualidade pode ser um fenômeno na psicose, mas também um sintoma quando estamos na neurose. Para todo ser de fala a sexualidade é desnaturalizada e tem como consequência o mal-estar e uma certa inadequação; e quando ela é radical, como no caso da transexualidade, é preciso ouvir o sujeito e não apenas acatar o fenômeno ou sintoma para resolvê-lo cirurgicamente. As fórmulas da sexuação são as fórmulas das identificações sexuais. Em tempos atuais há uma exacerbação do trans que se comprova com a teoria Queer, entre outras. Esses movimentos propõem uma concepção sexual que faz da relação gênero/sexo algo que se pode mudar como se muda de roupa. Na origem dessas teorias estaria uma oposição à norma heterossexual predominante e à dominação masculina? A norma hétero e a dominação masculina sempre se sentiram ameaçadas pelo feminino, pelo que escapa à norma fálica. Outro ponto importante a ser considerado antes de se partir para a cirurgia é o horror ao pênis, que alguns sujeitos transexuais psicóticos e neuróticos revelam e que é, na verdade, horror à ereção, forma de gozar masculina, presentificação do desejo no macho. A imagem do órgão viril ereto revela para alguns sujeitos um real insuportável e que no caso da psicose não é simbolizado. Alguns sujeitos transexuais, homem para mulher, afirmam que não necessitam da ablação do pênis, basta o tratamento com hormônios para que não tenham ereção. Freud diz que não se nasce mulher, torna-se, mas também não se nasce homem, é preciso construir pela via dos semblantes um parecer ser homem ou mulher. Um transexual masculino, ao se construir como mulher, supõe saber mais o que é ser mulher do que qualquer outra mulher, demonstrando que o suposto original é apenas uma construção. Não há uma identidade sexual de base, ao sujeito dividido se acrescentarão os atributos masculinos ou femininos, mas nenhum atributo proporcionará uma identidade sexual. A identidade é construída, ela é “a cristalização das identificações” (16/11/1976), das fixações de gozo, da inserção da castração; de sua negação, sua recusa radical ou de seu desmentido. Há em torno do significante falo a construção de semblantes do ter ou do ser; e os transexuais fazem um parecer ser mulher ou homem para esconder o que é sabendo que não é, eles seriam o semblante por excelência. Léa T., modelo e transexual, em entrevista à Marília Gabriela, ao ser perguntada se tinha conhecimento de que após a cirurgia de ablação do pênis perderia a sensibilidade por problemas mecânicos, responde que sim, mas não lhe importa o orgasmo sexual e acrescenta: “Vou gozar de ser mulher”. Gozar de ser mulher para esse sujeito não seria experimentar o gozo outro que pode acontecer a qual-
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quer um — independentemente da anatomia — que ocupe o lugar do significante da falta no Outro, mas sim gozar de “não ter mais o atributo masculino para esconder e, aí sim, ser uma mulher por inteiro”. Sabemos que as mulheres, uma a uma, gozam falicamente, ou seja, do lado masculino e podem experimentar o gozo outro, do lado não-todo fálico. Não se trata, portanto, de ser uma mulher do lado não-toda que certifica que nenhuma mulher é toda, mas sim ser a mulher aquela que Lacan afirma não existir. A posição transexual consiste na tentativa e no sentimento de se querer toda, inteiramente mulher, mais mulher que todas as mulheres e valendo por todas é o que nos mostram os chamados SHE-Male que se dizem e sentem superiores às mulheres biológicas. No caso de um sujeito psicótico querer ser a Deusa Branca, a mulher que não existe, pode funcionar como suplência; poderíamos paradoxalmente colocá-la do lado masculino onde há a exceção, onde existe ao menos um que não está submetido à castração, lugar do Pai freudiano da horda primitiva e por aí compreendemos que a mulher é um dos nomes do Pai. Se, como muitos sujeitos neuróticos e transexuais afirmam, eles sabem que não são mulheres e também não se sentem homens, estariam eles fora da partilha, nem do lado homem nem do lado mulher na tentativa de fazer existir terceiro sexo? Não há um saber prévio a respeito da sexualidade. Se há partilha dos sexos, e o saber de que se trata no inconsciente é o não saber sobre o sexo, não há saber sobre essa partilha, há semblante. Se por um lado o real do sexo escapa ao saber, por outro há um saber fazer com esse real por meio do semblante de ser homem ou mulher. Outra entrevistada e igualmente transexual e modelo, Carol Marra afirma que seu namorado, um político gaúcho, precisou ser muito homem para assumi-la como sua mulher. Será que eles também sabem o que é ser muito homem? Na década de 70 o preconceito era muito acirrado, mas o discurso capitalista que promove o “consuma-se” sustentava o sonho das cirurgias ainda precárias e mutilantes, realizadas para os brasileiros na maioria das vezes no Marrocos. Hoje, na Tailândia onde as cirurgias são igualmente comuns e costumam ser bem-sucedidas, o preconceito permanece, pois os transexuais tornaram-se a atração maior pelo fascínio que exercem. Chamados de “seres raros” ou “Lady-Boy”, eles são a cereja do bolo na prostituição local e internacional, na qual ganham dinheiro para poder continuar a série de cirurgias transformadoras que tornam o corpo feminino para então se tornarem “verdadeiras mulheres”. Já as mulheres transexuais, por não poderem se identificar à mulher, ficam impossibilitadas de serem mulheres. Não se trata, para os sujeitos psicóticos ou neuróticos e transexuais, da certeza de se sentir homem ou mulher em um corpo trocado; a certeza de que se trata é de que o remédio para o mal-estar da transexualidade seria a cirurgia e a endocrinologia.
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Nada de transexual sem o cirurgião e o endocrinologista. O desejo do sujeito é abolido em prol da posição de objeto do gozo do Outro da ciência. Esses sujeitos acreditam que trans-formados conseguiriam abolir o mal-estar inerente ao ser de fala que por definição é inadequado, fruto de uma subversão da natureza. Penso que a psicanálise teria um importante papel na questão por oferecer ao sujeito neurótico uma escuta do desejo e fazer surgir o que ele demanda quando pede a cirurgia. No caso de sujeitos psicóticos a própria demanda, a luta e a espera pela transformação podem servir de barreira impedindo um surto, a cirurgia também pode vir a fazer suplência, mas volto a dizer: a cirurgia também pode deslanchar uma psicose. A clínica comprova que o pós-cirúrgico não livra transexuais da castração. Se estamos diante de um neurótico operado, isso não o livrará de uma certa inadequação imposta pela castração, que é simbólica, e nos coloca a possibilidade de um gozo limitado e sempre inadequado na medida que nunca é o que se espera, não importando qual forma física habitemos e muito menos qual o objeto que escolhemos. Se estamos diante de um psicótico, a cirurgia também não opera castrando-o simbolicamente e evitando o surto; muitas vezes a cirurgia também não se estabelece como suplência. Fica a aposta na psicanálise e o cuidado com as intervenções cirúrgicas.
referências bibliográficas BENJAMIN, Harry (1966). The Transexual Phenomenon. New York: Editor Julian Press, 1966. FREUD, Sigmund. (1905). Tres Ensayos de teoria sexual In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu Editores Vol.7. LACAN, Jacques. (1962-63). O Seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro, Editora Zahar 2005. . (1971-72). O Seminário, livro 19: ou pior... Rio de Janeiro, Editora Zahar 2012. . (1972-73). O Seminário, livro 20: Mais ainda... Rio de Janeiro, Editora Zahar, 1985. Marília Gabriela entrevista Léa T. e Carol Marra à disposição no YouTube. MILLOT, Catherine. (1992). Extrasexo: ensaio sobre o transexualismo. São Paulo Editora Escuta, 1992.
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resumo
Neste trabalho discutimos a posição do transexual em contraponto com o discurso capitalista e com a ciência. No texto, questionamos a posição do transexual antes da possibilidade de mudança do corpo, promovida pelas novas técnicas cirúrgicas e perguntamos: em um tempo anterior a essa oferta cirúrgica não havia sujeitos transexuais? Como disse Lacan, a oferta cria a demanda, e o resultado dessas intervenções por um lado não livra o sujeito neurótico da castração que é simbólica e marca uma inadequação estrutural entre corpo e sexo social, e por outro também não opera a castração para um sujeito psicótico ainda que em alguns casos possa funcionar como suplência.
palavras-chave
Transexualidade, discurso capitalista, ciência castração.
abstract
In this work we discuss the transsexual’s position as opposed to the capitalist discourse and science. We question the transsexual’s position before the possibility of body change made possible by new surgical techniques and ask: in a time prior to this surgical offer, were not there transsexual subjects? As stated by Lacan, the offer creates the demand and the outcome of these interventions, on the one hand, do not free the neurotic subject of castration, which is symbolic, and marks a structural mismatch between body and social gender and, on the other hand, do not operate the castration for a psychotic subject either, although in some instances it may function as a replacement.
keywords
Transexuality, capitalist discourse, science castration.
recebido 25/02/2015
aprovado 21/04/2015
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Direção do tratamento
Amar adentro Dominique Fingermann L’amour est enfant de bohème, qui n’a jamais connu de loi. Bizet Le cœur a ses raisons que la raison ne connaît point. Pascal O amor tem razões que a razão desconhece. É uma doçura que embala, embalsama, me-ama! É uma loucura que cativa, captura, enrola e arrebenta. A arrebentação do amar passa, e ressaca. O amar deita e rola. Amar adentra. O amor, “pas-de-sens”, o seu passo de sentido, deriva desde um “pas-de-sens”, ab-sens, não sentido original. Mas o seu passo faz laço, faz dois — ao que parece —, faz de tudo, faz amor, “faz” poïesis: “fazer o amor, como o nome o indica, é poesia” (LACAN, 1972-73/1985, p. 98). O amor procede do exílio do ser banido da linguagem que assujeita o falante. No entanto, ele solta alíngua nos gritos e sussurros, nas camas, nas rasuras, nas ruas, na pólis e na política, “bem me quer, mal me quer, bem me quer...” nos poemas, na literatura, na litterasura.1 O amor fora da lei tem razão, ele se apresenta como reson,2 re-som, ressonância, e eco fora do corpo daquilo que d’alíngua não se encadeou nas leis da linguagem, mas pode se explorar nas dobras do corpo, Outro, corpo que simboliza o Outro, corpo enquanto sítio da heteridade, nos vestígios enigmáticos de suas trilhas sonoras e outros afetos. O ponto de partida, de rachadura, o sulco, de onde partem as histórias de amor, assim como o risco da letra que lança mão do texto, é a “palavra buraco”, troumatismo3da moterialidade4: “Uma palavra buraco escavada em seu centro com 1 Litterasura em referência ao texto de Lacan “Lituraterre” e “litterature” que em francês ressoa como litter= lixo, em inglês, e rature, em português, rasura. 2 Reson, termo de Francis Ponge (1965), cujo parti pris poético foi dar às palavras uma “espessura quase igual” à das coisas, “dar conta da profundidade substancial do mundo. Em vez de se deter na significação que veicula habitualmente o nome da coisa”, Ponge a faz balançar “literalmente e em todos os sentidos”, voltando à sua etimologia, decompondo, associando-a a outras palavras vizinhas pelo som ou pelo sentido”. 3 Troumatismo: Lacan escreve o traumatismo com a palavra trou, isto é, furo. 4 Moterialidade: para falar da matéria do parlêtre, Lacan escreve moterialidade, ou seja, a materialidade da palavra.
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um buraco, desse buraco onde todas as outras teriam sido enterradas. Não se poderia dizê-la, mas se poderia fazê-la ressoar, imensa, sem fim, um gongo vazio” (DURAS, 1964, p. 48).5 De beijo de língua em beijos d’alíngua, o amor adentra. Eventualmente, sexo e amor colaboram para fazer amor. O amor é procura da ressonância no corpo Outro, eco do oco do Um dizer, “mot trou”, palavra que inicialmente, radicalmente não faz sentido, só é moterialidade. A materialidade primordial da língua é traumática, não faz sentido. A procura do sentido do amor, o achado de sua significação de fantasma que o fixa e amarra a certo objeto, procede da sequência da letra. A carta de amor que ela emite procura no outro o signo do Dizer do Um que alíngua exporta, explora, extrapola.
1. Freud explica a verdade do amor O amor preocupa, ocupa, faz sofrer, faz falar, faz gozar: perigozo! O amor interessa à psicanálise. No começo está a transferência. No começo de qualquer análise está a falta de sentido (pas de sens), que atenta e arrisca o passo do sentido (pas de sens) que alenta, mas dá trabalho: trabalho de transferência. No começo das análises, o amor entra em cena e queixa, lamenta: de menos, demais, capenga, impotente, ferido, carente, obsessivo, compulsivo, exaltado, temido, deplorando; “não há dois, não há dois?, não há!” No meio das análises, “o amor que se dirige ao saber” (LACAN, 1973/2003, p. 555) dá trabalho e dá voltas e voltas. O “amor” de transferência apela para “fazer saber”, escrever uma nova carta a partir da letra oriunda do saber inconsciente “insu que sait”, o “não sabido que sabe”. A letra é o remetente da carta de amor. O manejo do amor de transferência, isto é, a resposta ímpar do parceiro analista, sustenta o longo trabalho das análises que procuram seu fim. O analista, que se dispõe como destinatário, não responde à carta, mas o seu silenciar tão peculiar deixa ressoar a letra n’alíngua que transcorre a fala da associação livre. “Não se poderia dizê-la, mas se poderia fazê-la ressoar.” No fim das análises, desde Freud, aposta-se que as condições do amor não estejam tão rebaixadas, que as suas façanhas possam dar mais “satisfaction”. Desde Freud o mínimo que se exige de uma análise é que ela permita um outro trata5 No original: “(...) Un mot trou creusé en son centre d’un trou, de ce trou où tous les autres mots auraient du être enterrés. On n’aurait pas pu le dire, mais on aurait pu le faire résonner, immense, sans fin, un gong vide”.
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mento do gozo e do laço social, um outro enlaçamento, enodamento, do gozo, do corpo, no laço com o Outro. Amor e transferência tecem o texto analítico — o laço social que suporta esse discurso nessa empreitada de corte e costura, enlaça a demanda de quem falta, à presença de quem não tem. O amor interessa ao psicanalista, e Freud, desde os “Estudos sobre a Histeria”, localizou o valor de verdade e de motor dessa mentira, armação/armadilha que o genuíno amor de transferência propõe. Suas indagações insistentes ao longo de sua obra e em particular no texto “Observações sobre o amor transferencial” — tais como “não temos o direito de contestar que o estado amoroso que faz seu aparecimento no decurso do tratamento analítico tenha o caráter de um amor ‘genuíno’”e “por que outros sinais pode a genuinidade de um amor ser reconhecida? Por sua eficácia, sua utilidade em alcançar o objetivo do amor? A esse respeito, o amor transferencial não parece ficar devendo nada a ninguém; tem-se a impressão de que se poderia obter dele qualquer coisa” (FREUD, 1915/1953) — permitem concluir com Freud que, portanto: — a transferência, o amor de transferência, é um amor verdadeiro. — mas, por definição, como todo amor, ele pega emprestado no outro o que lhe falta e usa isso genuinamente para encontrar o que falta para ele. Essa metonímia fundamental do objeto de amor que pode fácil e genuinamente passar de um para o outro é um dos traços que Lacan apontara várias vezes como o cômico do amor verdadeiro. A partir da clínica do amor com a qual se depara, Freud retoma a questão filosófica/ética do amor, que o cristianismo interpretou à sua maneira com o amar ao próximo “como a ti mesmo”. A questão ética indaga os limites e a localização de um amor verdadeiro, autêntico, “o puro amor”, um amor que levaria além do amor-próprio, do narcisismo.
2. Lacan diz que diz Lacan, no decorrer de seus vinte e cinco seminários e Outros escritos, nunca cessou de falar de amor: o amor não cessa de, não cessa... Colhi algumas flores desse “dicionário analógico”6 lacaniano sobre o amor: Paixão — Forma de suicídio — Meleca, Grude corporal — Cascalho que ri — Dom, Dádiva — Véu — Nada — Fetiche — Cômico — Rebaixamento — Mentira — Falta — Mito — Demônio — Duelo — Tragédia — Incômodos — Mãe — 6 Referência ao Dicionário Analógico da Língua Portuguesa, de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo.
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Pai — Enganação — Demanda — Reciprocidade — Atravessamento, Travessia — Narcisismo — Poesia — A(muro) — Impossível — Contingente — Necessário — Possível — Debilidade — Conexividade entre dois saberes — Falha — Exaltação — Espelho — Nada mais que uma significação — Nominação — Simbólico — Imaginário — Real. Tantos enunciados, por vezes contraditórios, dão a deixa para a pergunta: “qual é a verdade do amor?”. Ou antes: o que a verdade mentirosa encobre? Qual é o dizer de tantos ditos? O dizer dos ditos não se abarca assim. Os aforismos lacanianos seriam uma maneira logicamente/poeticamente sutil de assestá-lo? A verdade dos aforismos parece assestar sem acertar o dizer dos ditos sobre o amor; o aforismo, como a “significação” do amor é um para-ser (parecer/ao lado do ser). Lacan chega a rir de seus efeitos, por vezes grandiloquentes, e achá-los um pouco ridículos. Mas, convenhamos que são inesquecíveis e que tensionam, contribuem para que “o dizer não seja esquecido atrás do que se diz no que se ouve” (LACAN, 1972/2003, p. 448). Eles indicam um dizer, como uma lembrança encobridora indexa um real, à condição de que seu enigma se preste a uma disciplina do comentário e que não sejam usados em prol de um “amor à verdade” que desgastaria seu impacto de signo.
3. Amar é dar o que não se tem No ensino de Lacan, amar se conjuga primeiramente como demandar, dentro da dimensão simbólica, e como dar, oferecer-se como o objeto faltante. “Amar é dar o que não se tem” é enunciado por Lacan pela primeira vez em 1957, e será repetido inúmeras vezes. Primeiramente Lacan designa assim o falo, “o que não se tem”, mas é o objeto a que será finalmente assim achado e fundamentalmente assim designado. A localizacão do objeto a permite que Lacan precise o que se trata no amor, no laço com o outro e, obviamente, na transferência, permitindo que a verdade dessa troca simbólica abrande a dimensão de mentira imaginária, e na medida em que o que falta ao simbólico e ao imaginário permite, num segundo tempo, apontar e localizar o real como diz-mensão. “Amar é dar o que não se tem” condensa também os desenvolvimentos de Lacan no Seminário 8 sobre a transferência, quando apresenta a famosa “metáfora do amor”, ou seja, quando o sentido do desejo produz a significação do amor: o amante, fazendo-se de objeto amado para encontrar, naquilo que ele se faz para o outro, a significação (fantasmática) de seu desejo.
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Podemos facilmente interpretar o amor, tal como as letras (poesia, literatura) o testemunham, e a transferência, tal como a vetoriza as análises, a partir desse enunciado “amar é dar o que não se tem”. Por exemplo, a linda frase de Breton em L’amour fou, “é realmente como se eu tivesse me perdido e que viessem de repente me dar notícias de mim mesmo”,7 (BRETON, 1937/1976) poderia se reduzir a esse diagnóstico: amar é dar o que não se tem (para alguém que não quer isso, completa Lacan no Seminário 12). É no seminário ...Ou pire, em 1972, que acontece uma ruptura na repetição do aforismo. Lacan resgatando o que tinha deixado em espera desde “Função e Campo”8 no capítulo antecipatório “As ressonâncias da interpretação”, o amor passa a ser lido a partir da letra de a-muro, como signo. “Eu te demando de recusar o que te ofereço porque não é isso” (LACAN, 1971-72, p. 81), reinterpreta o primeiro aforismo “amar é dar o que não se tem”, e anuncia a letra que está no a-muro: “entre o homem e a mulher há o a-muro” (Ibid.). Este corte no ensino de Lacan implica o amor na estrutura de uma maneira bem diferente. É notável que se aponte para as ressonâncias d’alíngua, e que aqui, precisamente, se abra a questão do nó borromeano (é em torno de um comentário desta frase que Lacan passa a explorar a topologia borromeana). A partir daí, o amor é elevado à dignidade de suplência e não mais apenas de enganação, e a sua carta carrega o eco do saber inconsciente d’alíngua, e não apenas uma mera mentira. O rumo do amor no ensino de Lacan, e seu valor inegável, se enunciará no final, no âmago do título definitivo, decisivo, “L’insu que sait de l’Une-bévue s’aile à mourre”.
4. Fazer o amor mais digno “Pôr em jogo o simbólico e o real que o imaginário aqui une (por isso não podemos largá-lo) e tentar, a partir deles, que fizeram mesmo suas provas no que diz respeito ao saber, aumentar os recursos graças aos quais conseguiremos prescindir dessa tal de relação, para fazer o amor mais digno do que a profusão do palavrório que constitui até hoje” (LACAN, 1974/2003, p. 315).9 7 No original: “(...) C’est vraiment comme si je m’étais perdu et qu’on vînt tout à coup me donner de mes nouvelles”. 8 Antoine Tudal (Paris en l’an 2000) apud Jacques Lacan In: Écrits. Paris: Seuil, 1966. p. 289.“Entre l’homme et l’amour, Il y a la femme. Entre l’homme et la femme, Il y a un monde. Entre l’homme et le monde, Il y a un mur”. 9 No original: “(...) Mettre à contribution le symbolique et le réel qu’ici l’imaginaire noue (c’est
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A “Nota italiana”, 1974, onde se encontra essa sentença, condensa de uma certa forma toda a operação do Seminário 20, cujos inúmeros enunciados inesquecíveis a respeito do amor, deslocam insistentemente a dimensão do Dizer aos quais se referem. Esse enunciado não anula o que foi dito anteriormente, mas suplementa e aponta para um outro dizer: o enodamento RSI e, mais além, talvez, para a função sinthoma do amor como aquilo que permite o enlace das três dimensões. O amor, a partir deste momento no ensino de Lacan, não é mais apenas o que procede do sentido simbólico que vetoriza o desejo, nem tão somente a significação que estabiliza o imaginário, numa tentativa mútua de “fazer dois” e fazer “relação sexual”. Nem sentido, nem significação; o amor é signo. Suplência à não relação sexual, pois a não relação é sua provação e seu ponto de partida; não tentar mais fazer relação com as armadilhas do amor e do objeto permite fazer um amor mais digno. O amor mais digno é signo do Um, do Y a d’l’Un, que o saber inconsciente d’alíngua precipita em letra no a-muro. “...a única coisa que se pode fazer de um pouco sério, a letra/carta de amor” (LACAN, 1972-73, p. 113).10A carta de amor permite que se conte Um, que se tire seriamente as consequências da singularidade do Um sozinho que não faz dois, nem quando faz amor, e que um a um o que faz diferença se conta. Podemos chamar essa solidão de narcisismo? Talvez sim, mas um narcisismo que inclui o real, que precisa de três para fazer Um. A escrita e o amor, ambos responsáveis para que “o que não cessa de não se escrever” deixe rastros sem vergonha, da “impudência do Dizer” (LACAN, 1973-1974, 11/06/1974): repercussão da ausência de sentido da letra mot trou no indesens do texto, a indecência fora de sentido do corpo do texto, entremeado com o sexo. “Escrever, amar. Vejo que isso se vive na mesma incógnita. No mesmo desafio do conhecimento, na tensão do desespero” (DURAS, 1987, p. 89),11concluímos comMarguerite Duras.
pourquoi on ne peut le laisser tomber) et de tenter, à partir d’eux, qui tout de même ont fait leurs preuves dans le savoir, d’agrandir les ressources grâce à quoi ce fâcheux rapport, on parviendrait à s’en passer pour faire l’amour plus digne que le foisonnement de bavardage, qu’il constitue à ce jour”. 10 No original: “(...) la seule chose qu’on puisse faire d’un peu sérieux, la lettre d’amour”. 11 No original: “Écrire, aimer. Je vois que cela se vit dans le même inconnu. Dans le même défi de la connaissance mise au désespoir”.
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referências bibliográficas BRETON, André (1937). L’amour fou. Paris: Gallimard, Folio, 1976. DURAS, Marguerite (1964). Le ravissement de Lol V. Stein. Paris: Gallimard. . (1987). La Vie matérielle. Paris: P.O.L, 1987. FREUD, Sigmund (1915). Observações sobre o amor transferencial In: Edição Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud — Edição Eletrônica. Rio de Janeiro: Imago, s/d. . (1915). Observations sur l’amour de transfert In: La technique psychanalytique. Paris: PUF, 1953. LACAN, Jacques (1971-72). Le Séminaire, Livre 19: ...ou pire. Paris: Seuil, 2011. . (1972). “O aturdito” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. . (1972-73). O Seminário, Livro 20, Mais ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. . (1973). Prefacio à edição alemã dos Escritos In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. . (1973-74). Le Séminaire, Livre 21: Les non dupes errent, inédito (Aula de 11/06/1074). . (1974). Nota italiana In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. PONGE, Francis (1965). Pour un Malherbe. Paris: Gallimard, 1965.
resumo
O amor procede do exílio do ser banido da linguagem que assujeita o falante. É dai que deriva a sua “razão”, reson, resonância, eco fora do corpo daquilo que d’alíngua não se encadeou nas leis da linguagem, e que se explora nas dobras do corpo Outro. Freud explica como o amor de transferência é um amor verdadeiro, mas como mente sobre suas intenções, pois, como todo amor, pega emprestado no outro o que lhe falta e usa isso genuinamente para encontrar o que falta para ele. O texto percorre os diversos aforismos de Lacan a respeito do amor para cingir o que suas ficções apontam como real: além de seu sentido e de suas significações, o amor mais digno é signo de Um.
palavras-chave
Amor, transferência, verdade, signo, letra, alíngua.
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abstract
Love comes from the exile of being banished from the language that subjugates the speaker. It is from there then that its “reason” derives, reson, resonance, an echo outside the body of what the alingua has not connected with in the language laws, and that explores itself in the folds of the body Other. Freud explains that transfer love is a true love, but it lies about its intentions. Like any love, it borrows from the other what is missing in itself and uses it genuinely to find what is missing for it. The text explores several Lacan’s aphorisms about love in order to establish the link with what its fictions approach as real: beyond its sense and significations, love is a sign of One.
keywords
Love, transfer, truth, sign, letter, alingua.
recebido 02/03/2015
aprovado 21/04/2015
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Percurso de uma análise: do sexo anônimo ao amor de um nome1 Kátia Botelho de Carvalho Começo do começo: – na primeira entrevista, na chegada, o sujeito diz: “eu sou gay e odeio as mulheres”. A analista responde: “e o que mais?”. Noutra entrevista continua: “não aguento esse papo freudiano de tudo ser complexo de Édipo, acho uma bobagem! Você não vai ficar falando essas coisas...”. O sujeito em questão, que chamarei de Tom, chega num tempo de indecisão sobre seu futuro profissional, com uma fratura ao nível do tornozelo, ou seja, com o pé quebrado, se achando uma merda, perdido, angustiado com o destino de sua vida. Afirma sem rodeios um ódio pelo pai (que chamarei Toninho) e que o convida para trabalhar com ele numa empresa familiar de renome. Tom aceita a contragosto. Sua entrada em análise foi uma experiência demorada, cheia de vacilações, com frequentes intervenções da analista telefonando, interrogando sua ausência, propondo novos horários, sustentando com determinação o desejo do analista. Um sonho vem marcar sua entrada em análise: “está num barquinho em alto-mar, ondas revoltas, uma tempestade ao redor; apavorado, olha ao lado e percebe a analista junto dele no barco”. Tem início a aventura do sujeito! Se lança ao mar de seu inconsciente, corajosamente! Vale lembrar aqui a importância, o valor inestimável da confiança que se estabelece na condução de uma análise, a partir da função desejo do analista, apontando uma direção no endereçamento daquele que se lança nessa travessia, abrindo a possibilidade de um enlaçamento com o outro, sujeito suposto saber; e aqui, gostaria de fazer uma nova apropriação do conceito, dizendo sujeito suposto suportar... tratar o sofrimento que se apresenta, não só na entrada como naquilo que está por vir nessa empreitada! Se o sujeito do sofrimento vem a se engajar na experiência de fazer essa viagem, que nada tem a ver com um cruzeiro marítimo, muito antes com uma travessia 1 Trabalho apresentado no XV Encontro Nacional de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano no Brasil, realizado nos dias 13, 14, 15 e 16 de novembro de 2014, em Campo Grande – Mato Grosso do Sul.
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perigosa mar adentro, sabemos que isso depende da resposta do analista, dessa responsabilidade/responsividade, ou seja, que a função desejo do analista opere. Lacan é enfático quanto a essa dimensão ética da psicanálise. Dedicou um ano inteiro de seu seminário para nos advertir daquilo que a obra de Freud e a experiência da psicanálise decorrente dela vieram nos trazer de novo. Novo no sentido de como temos que responder no nosso trabalho cotidiano às “demandas do doente, demandas às quais nossa resposta confere uma significação exata” (LACAN, 2008, p. 10). E que, por isso mesmo, exige de nós, analistas, a mais severa disciplina na preservação do sentido profundamente inconsciente dessas demandas. Cito Lacan: [...] o assunto para o qual dirigimos nosso leme com o título da ética da psicanálise [...] nos deve levar a um ponto problemático, não apenas da doutrina de Freud, mas do que se pode chamar de nossa responsabilidade de analista (LACAN, 2008, p. 11). Ou seja, estamos mergulhados nos problemas morais que nossa experiência só veio aprofundar, nos conduzindo ao enigmático universo da falta, tanto em sua vertente mórbida quanto naquela mais obscura (superegoica) que clama por punição. Coisa curiosa — o analista vai na contramão das ofertas da civilização. Soler trabalha detidamente essa questão anunciando uma fórmula para a civilização a partir da que Lacan dá para o amor e articula uma outra para a psicanálise. Assim ela diz: “Lacan propõe, como vocês sabem: ‘peço que recuses o que te ofereço porque não é isso’, entendam: isso não é o gozo que faria relação sexual. Nossa civilização diz, é bastante evidente: te peço aceitar (inclusive comprar) o que te ofereço porque é isso. E faz um grande esforço para que muitos creiam nisso. São os sujeitos, justamente porque o objeto a habita neles, que lhe respondem: não, não é isso. Dizem não pela voz de seus sintomas” (SOLER, 2010, p. 77)2. Soler propõe ordenar esses sintomas entre dois polos opostos: de um lado, os sintomas de recusa, as diversas conversões, a melancolia, a bulimia, a depressão; de outro, os sintomas de apropriação, que tamponam o “não é isso” pela acumulação quantitativa. 2 “Lacan propone, como ustedes saben: ‘te pido rechazar lo que te ofrezco porque no es eso’, entiendan: esto no es el goce que haría relación sexual. Nuestra civilización dice, es bastante evidente: te pido aceptar (incluso comprar) lo que te ofrezco porque eso es. Y esta se hace un gran esfuerzo para que muchos le crean. Son los sujetos, y porque el objeto a los habita justamente, a lo que responden: no, no es eso. Lo dicen evidentemente, por la voz de sus síntomas”. Tradução nossa.
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Na sequência de sua elaboração, Soler (Ibid., p. 77) retoma algumas formulações de Lacan sobre o que o analista deve dar. Primeiro, o analista deve dar o que não tem, o seu desejo como oferta. Dito a partir do nó borromeano, o analista deve oferecer ao analisante o objeto a, dar o objeto que falta, isto é, manejar o objeto na psicanálise. Então, o psicanalista já se coloca, em oposição à civilização, oferecendo uma recusa, de responder, a não ser pela interpretação. Recusa a gratificar o dizer da demanda, já nos indicava Freud em suas recomendações quanto à necessidade de um certo grau de frustração para levar a cabo uma análise; pois na condução de uma análise, corre-se o risco de uma sugestão, ao se dar uma resposta à demanda, quer gratificante, quer frustrante. Assim, Soler (Ibid., p. 81) propõe sua fórmula para a psicanálise: “me nego a te oferecer o que me demandas porque não é isso”. Modo de dizer que a oferta do psicanalista, o objeto a, nada tem de apropriação. Ao contrário da oferta civilizatória, que produz uma infinidade de objetos novidade, o manejo do objeto na psicanálise produz um esvaziamento, uma subtração, revelando o que o objeto é: agulheiro no real com função de causa. No caso que ora apresentamos, a riqueza da produção onírica desse sujeito, doravante “analisante”, indica a potência das forças reais que serão enfrentadas em alto/ vasto mar revolto! De fato, esse viajante do sertão marítimo se mostrará um autêntico fazedor de sonhos, que lhe sinalizam descobertas inconscientes inusitadas, impulsionadoras, que irão lhe possibilitar elaborações e reposicionamentos subjetivos que levaram a novas formas de “se” saber. Singrando os mares de sua história, em sua “hystorização”, recupera sua mais antiga lembrança, tida como uma visão/ alucinação: Uma parede da qual emergia um “pinto-peito” (por volta dos dois anos). Filho caçula de uma série, se descreve como um bebê lindo, cabelos cacheados e olhos claros. Paparicado por todos, era muito ligado à mãe, com quem se deleitava fazendo compras e decorando a casa. Embora tenha conseguido conviver com o pai, trabalhando em seu negócio, ressente-se continuamente de dificuldades para com ele: de conversar, de olhar para ele, demonstrar algum carinho, ter que estar no mesmo local de trabalho. Outra lembrança de tenra infância: ficar no closet de sua mãe, vestindo suas roupas, calçando seus sapatos e se deliciando com sua imagem no espelho. Continuando sua jornada marítima, recorda o que ele diz ser uma lembrança traumática — ao voltar do recreio no colégio, encontra escrito no quadro-negro de sua sala: “o Tom é UI UI”. Foi horrível, se sentiu uma merda, desenvolvendo a partir de então o que ele diz ser seu ódio pelas meninas. Embora tenha tido uma namorada, com quem quase vivenciou uma penetração, recuou horrorizado diante do desconhecido daquele sexo invaginado, numa fantasia similar à vagina dentada. Excitava-se apenas com o apalpar e chupar os seios dela.
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Paralelamente, cultivava um amor platônico por um amigo hetero — como se expressava ao referir-se ao amigo. Curiosamente, a modalidade sexual que ele mais praticava era pegar um cara na rua (michês) e fazer masturbação recíproca com camisinha, pois não queria correr riscos de pegar uma doença venérea. Chamava tal prática de “safe sex”. Simultaneamente à sua entrada em análise, conhece um rapaz com quem inicia um relacionamento duradouro. Mesmo assim, suas práticas sexuais se restringiam ao sexo oral e masturbação mútua, estilo safe sex ou sexo asséptico. Enquanto progredia na análise, seus sintomas se davam a conhecer e iam sendo tratados: bulimia; excessivo consumo de roupas e acessórios, muito ligado às compras com a mãe; frequentação compulsiva de banheiros públicos/shoppings e cinemas reservados à “pegação” aleatória, assim como boates que ofereciam um tipo de espaço que ele nomeava, à sua maneira, de “quarto escuro”, lugar escuro como um breu (limbo), onde ninguém vê ninguém e todos se pegam; visitação incontrolável, incansável, aos sites e blogs de perfil homoerótico e atração irresistível pela fofoca, acrescida de comentários maliciosos e inventados. Importa ressaltar que mesmo estabelecendo um relacionamento firme com o parceiro, morando juntos, assumindo sua escolha diante da família e da sociedade, o sujeito continuava com a prática que ele nomeou de “sexo anônimo”, de um modo compulsivo/repetitivo, lado a lado com a compulsão de comer tudo que estivesse sendo oferecido numa travessa, seguida da provocação de vômito no banheiro. O analisante designava todos esses sintomas com o sintagma “boca grande”, tendo construído por si mesmo o conceito de “Coisa”, já que ele não tem conhecimentos teóricos/conceituais no campo psicanalítico, como aquilo que estava subjacente a todos os fenômenos sintomáticos que ele vivia. Ou seja, quer se enfiasse num banheiro público, ou devorasse uma torta inteira, ou ficasse horas num site de pornografia homoerótico, ou paralisado com uma angústia que se estendia da garganta ao estômago, ele dizia sempre que eram manifestações “coisísticas”. Um dia sonhou: estava deitado e dele saía uma gosma preta, um piche pegajoso, por todos os buracos de seu corpo. Concluiu num instante, aquilo era a Coisa! Sabemos da importância dada por Freud à repetição na experiência clínica, a qual ganhou todo seu peso teórico e clínico após suas elaborações da segunda teoria pulsional onde a repetição encontra-se “localizada como trauma e pulsão de morte, justificando, assim, as versões ‘demoníacas’ das suas manifestações na clínica psicanalítica, que obstaculizam o trabalho da transferência, e até mesmo produzem as piores ‘reações terapêuticas negativas” (FINGERMANN, 2014, p. 70).
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Nesse mesmo texto, Desejo e repetição, Fingermann (Ibid., p. 70) comenta que Lacan inventa a repetição como conceito fundamental da psicanálise, designando sua estrutura como “encontro falho do real” e localizando o sujeito como resposta do real (LACAN, 1964/1968, p. 57). Interessante notar que, embora a análise desse sujeito tenha se estendido por muitos anos, só aconteceu um breve período de manifestação do que poderíamos chamar uma reação terapêutica negativa. Ele se dizia desanimado, com raiva da análise e da analista, por reencontrar sempre aquela “Coisa” em si mesmo, algo de que não conseguia se livrar, que o impelia repetidamente ao encontro do “sexo anônimo”. Dizia-se decepcionado: esperava que a análise fosse extirpar aquilo de dentro dele. Mas, concomitantemente, reconhecia todos os progressos que fizera no seu tratamento, dizia a seu modo: “houve um giro, não sei como aconteceu; sumiu o sintoma bulímico, não tenho vontade de fazer as pegações em banheiros, nem na rua. Consegui fazer sexo com penetração (coisa que ele considerava da ordem do impossível) e não tenho mais aquela mania de fazer fofoca e inventar mentiras. É como se eu tivesse me tornado uma pessoa mais ética. E o mais estranho é que você nunca disse nada a esse respeito, nem críticas, nem sugestões, nem julgamento, como que isso girou em mim?” Ou seja, os avanços eram reconhecidos e valorizados; a fase de reação terapêutica negativa foi elaborada sem levar a uma interrupção prematura da análise. Num tempo mais avançado da análise o analisante formalizou o que ele mesmo conceituou como seus giros em análise: 1. Conseguir fazer sexo com penetração. 2. Quando prisioneiro de uma ciranda diabólica, indo de um banheiro a outro dentro de um shopping, decide ir à sessão de análise, mesmo já tendo perdido o horário. Sai e chega ao consultório, e é recebido pela analista. Desde então, passa a fazer uso estratégico de um mecanismo: se percebia suas manobras para não ir à análise, “ligava o piloto automático” e ia. 3. Deletar os sites de pornografia e encontros fortuitos com desconhecidos. 4. Aceitar e incentivar o companheiro a tentar um novo caminho, abrindo mão do domínio e controle de sua vida. Paralelamente, seu trabalho na empresa familiar foi se consolidando. A empresa ganhava mais notoriedade e reconhecimento público do que na gestão do pai. Conquistavam vários prêmios, inclusive o troféu de melhor do país. Era o auge do sucesso: ele, o pai, e o troféu! Tom, Toninho e o grande falo! Tom suplantou Toninho! Podemos nos perguntar: teria Tom ido além do pai Toninho? Algum tempo atrás chegou à sessão dizendo que não poder escolher é algo fatal. Disse: “nesse processo de decisão/separação do companheiro (que, tendo perdido
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a mãe a quem era fortemente ligado, se encontra revendo suas posições na vida, seu trabalho, buscando uma análise e decidindo ir morar em sua cidade natal) eu percebo aqui dentro de mim uma alegria, só posso falar isso em análise, meu medo de ficar sozinho está diminuindo galopantemente! E meu amor pelo R. parece mais forte, mais firme: sei que posso amá-lo mesmo noutras circunstâncias, ele morando noutra cidade, é ele que eu amo, meu amor tem um nome: R. Já não acho tanta graça em ficar provando todo ‘bombonzinho’ que aparece, de fazer sexo anônimo, meu interesse agora passa por um nome! Frequentar banheiros públicos é algo distante, improvável.” Comenta a passagem rápida do tempo, tem “urgência de viver bem”, não se trata de hedonismo, mas de viver bem a alegria, a tristeza, o amor, a raiva, até mesmo a melancolia... A analista terminou a sessão dizendo: ... bem dizer a vida... É um entusiasmado com a psicanálise, acha que a análise devia ser como “cesta básica”, para todos. Diz que tem muita vontade de estudar psicanálise, fazer parte de um grupo de estudo, conhecer como funciona o psiquismo, entender como tudo se passou com ele, os giros, as novas posições na vida. Mas não acha que seria um analista! Considera que sua análise está chegando ao fim, mas adianta: “acho que ainda tenho um ranço pequeno com meu pai”. E continua abismado por não ser mais “escravo da libido sexual”! Assim ele se expressa. Embora tenha anunciado seu final de análise, continua indo, cada vez mais espaçadamente, quando passa por sua cidade, entre suas inúmeras viagens de trabalho. Nesse tempo enxergou, lá de sua posição no divã, uma bailarina suspensa por uma mãozinha a um fio, que reproduz o grafo do desejo em todos os seus andares, feito por uma analisante que o construiu como elaboração de seu final de análise. Olha e diz: “estou igual a essa bailarina, que está pronta para soltar a mão, está por um fio; mas ainda estou agarrado ao poder, ao dinheiro e ao sucesso. Esse meu imbróglio com o pai que não me deixa ser eu mesmo”. Ao retomar o Seminário da Angústia, Soler (2007) formula a questão do sujeito, que se pergunta: O que sou no antro do Outro? A resposta é que ali “é meu lugar, j’y suis, ali estou”. O que não quer dizer que o sujeito esteja ali representado por um significante, mas sim enquanto ausência, enquanto objeto a, sem representação. O que permitiu a Soler dizer que cada experiência de angústia é uma experiência selvagem da iminência de uma destituição subjetiva: não sei nunca que parceiro sou para o Outro. Donde se conclui que o fantasma, conectando o sujeito a um objeto, permite, ao mesmo tempo, tamponar a hiância no Outro e assegurar algo de um gozo desconhecido. Daí dizer-se que o desejo é uma defesa (SOLER, 2007, p. 69). Tom conta um sonho fazendo um ato falho: “sou um tubo que une o pau da minha mãe à buceta do meu pai”. Assume essa fórmula como seu lugar fantas-
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mático! Retornando a ela em outros tempos da análise, afirma que não quer ficar nesse lugar de merda. Embora o fantasma seja uma solução ao agulheiro (a falha) no Outro, ele também pode ser traumático, como aqueles sujeitos que passam a vida pensando que vão se fazer comer, se fazer exterminar, se fazer cagar etc. No caso de Tom, ele é lugar de passagem da merda toda... Sabemos que Lacan construiu sua teoria do objeto a indo além do impasse freudiano, que colocava o limite da análise na insuperável angústia de castração, não convocando a operação do pai para construir o objeto a, definido como efeito de linguagem. Remetendo-nos ao Seminário da Angústia, Soler reafirma com Lacan que, estruturalmente, o objeto a é “o que falta”, o objeto “que não há mais”, evocando o objeto perdido de Freud. O que levou Lacan à sua tese da função subtrativa da linguagem, em Mais Ainda, embora já se possa encontrá-la quando Lacan distingue Necessidade, Demanda e Desejo, na medida em que as necessidades do pequenino terão que passar pela linguagem, gerando uma perda. A partir desse objeto que não há mais, que é um menos, produz-se uma causa que gera um vetor chamado desejo, que busca uma compensação, em direção a um mais-de-gozar. Assim, o desejo é um vetor infinito que pode se dirigir a qualquer coisa, enquanto numa análise, na clínica, nos interessa “[...] poder determinar os objetos meta”, isto é, os objetos do erotismo, erigidos no mundo, mulher, homem e os diversos objetos da sublimação amorosa, artística, intelectual. Se o objeto a é efeito de linguagem, o que permite determinar os objetos meta é o discurso, razão pela qual Lacan vai introduzir ao final a referência ao pai, para falar do desejo do pai como um desejo não indeterminado, falar do pai como “um humano que colocou um objeto meta como sintoma” (SOLER, 2007, p. 74). Daí Lacan formular ao final do Seminário 10 que a angústia é superada quando se sabe a que objeto se dirige o desejo, precisamente, quando se pode nomear o objeto, o que remete ao pai na medida em que ele nomeou pelo menos um de seus objetos. Enquanto o objeto a é gerado pela linguagem, como objeto anônimo privilegiado sobre o corpo (oralmente, analmente, escopicamente etc.), o objeto sintoma se elege pela via do discurso, pela travessia no espaço do Outro, singrando os mares peculiares a cada inconsciente. Pelo mergulho em uma história singular, desvela-se numa análise, o mais-de-gozar pulsional implicado nos laços eróticos enraizados nas figuras do passado. Tom foi a um distante arquipélago mergulhar em águas profundas, nadou entre tubarões enormes, sumiu dentro de um cardume de peixes. Teve que ficar 23 horas num barco pequeno, no meio do oceano, sem celular, sem internet, sem companhia, envolto numa neblina que a tudo acinzentava. Só ele ali, limitado por aquele espaço imensamente reduzido, sem nada, nem um livro, nem a possibilidade de sair do lugar. Sentiu algo inusitado, acudiu-lhe o nome de um filme: a
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insustentável leveza dê ser (pronunciou descer). Dimensionou a exuberante força da vida, ali naquela natureza intacta, num momento de solidão em que tudo poderia se desfazer, experimentou a fragilidade, a efemeridade da vida e a iminência da morte. Respirava vida e morte simultaneamente e se dizia: “É isso, tenho que me virar com isso!”.
referências bibliográficas FINGERMANN, D. Desejo e Repetição. Stylus, n. 28, (pp. 67 a 77). Rio de Janeiro, junho 2014. LACAN, J. (1959-60). O Seminário, livro 7: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. LACAN, J. (1967-68). O Seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. SOLER, C. De un Trauma al Otro. Medellín: Asociación Foro del Campo Lacaniano de Medellín, 2007. SOLER, C. Florilegio del Mensual. Medellín: Asociación Foro del Campo Lacaniano de Medellín, 2010.
resumo
Trata-se do relato parcial de um caso clínico, apresentando o percurso de uma análise desde a entrada, com o sujeito manifestando diversos modos de gozo sintomático, particularmente na esfera sexual, com a prática do que era chamado “sexo anônimo”. O estudo retoma o conceito de repetição, comenta os “giros” ocorridos no processo analítico, com o analisante descobrindo seu novo modo de enlaçamento com o outro pela via do “amor de um nome”. E avança até o ponto em que se anuncia a aproximação do final de análise.
palavras-chave
Percurso analítico, repetição, objeto a, final de análise.
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Percurso de uma análise: do sexo anônimo ao amor de um nome
abstract
This is the partial report of a clinical case presenting the trajectory of an analysis since its start, with the subject demonstrating different modes of symptomatic jouissance, particularly in the sexual sphere, with the practice of what was called “anonymous sex”. The study brings back the concept of repetition, comments on the “spins” which occurred in the analytical process, with the patient discovering his new way of bonding to the other via the “love of a name”. It then moves on till the point in which the approximation of the end of the analysis is announced.
keywords
Analytical course, repetition, object a, final analysis.
recebido 06/03/2015
aprovado 21/04/2015
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Quando o amor devasta Vera Pollo [...] o amor, se está aí uma paixão que pode ser ignorância do desejo [...] mais de perto, veem-se as devastações. (LACAN, 1972)
“O que vem em suplência à relação sexual, é precisamente o amor”, profere Lacan em uma lição do Seminário Mais, ainda (1972-73/1985, p. 62). Mas, como a clínica e a literatura não se cansam de ensinar, o amor não vem sem o ódio, e dizer ‘suplência’ não é o mesmo que dizer ‘paz’. Longe disso! Derivado do latim supplere, o verbo suprir significa completar, substituir ou remediar. Constatou-se, desde sempre, que o ato sexual não é suficiente para manter seus parceiros juntos. Freud (1913 [1912-13]/1976) percebeu que o tabu à genitália feminina estende-se frequentemente ao corpo inteiro da mulher, e Lacan (1970/2003, p. 410) insistiu que “na psicanálise (porque também no inconsciente), o homem nada sabe da mulher, nem a mulher do homem”, isto porque “o sexual se torna paixão do significante”. O falo se inscreve no inconsciente como significante único do gozo sexual, e os sujeitos se dividem entre dois modos de gozar com o falo: um modo dito “todo fálico”, outro dito “não-todo fálico”. Falta, portanto, ao ser falante aquele que seria dito um gozo cru e nu do corpo do parceiro. Em contrapartida, no amor, pode-se vestir o parceiro com a imagem de si. No intuito de discorrermos sobre as ocasiões em que o amor devasta, começaremos por um recorrido sobre o surgimento do tema da devastação no seio da teoria psicanalítica. Traremos, em seguida, algumas passagens da análise de Pedro, um sujeito que sofre de hainamoration1, enamoródio. E, por último, pediremos auxílio a Racine, autor de Fedra, uma tragédia do ciúme.
Sob a pena de Freud e Lacan O tema da devastação surge sob a pena de Freud e Lacan no momento em que eles se dispõem a elaborar a sexualidade feminina e a relação da menina com a mãe. Em Freud (1931/1969, p. 259), a devastação mãe-filha — ou a “catástrofe”, conforme a tradução em português do termo por ele usado — surge associada ao 1 Termo forjado por Lacan mediante a condensação dos vocábulos haine, ódio, e enamoration, enamoração. Ele o emprega em duas ocasiões: a primeira, em 1973, na VIII lição de O Seminário, livro 20: Mais ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, p. 122; e a segunda, na lição de 21/01/1975 de O Seminário, livro 22: R.S.I.
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assim chamado “período pré-edipiano da menina”, descrito como a fase de uma ligação intensa, apaixonada e exclusiva com a mãe. Tal ligação pode se manifestar mais tarde como o vínculo igualmente intenso e apaixonado que une uma mulher a seu próprio pai. Segundo Freud, acontece nesses casos uma transferência, “no sentido analítico do termo”, prossegue Lacan (1958/1998, p. 693). No texto sobre “Sexualidade feminina”, Freud (1931) se refere ao dano que as tendências sexuais da menina podem sofrer ao longo do processo de transferência para o objeto paterno: a cessação de toda a vida sexual da futura mulher ou a ênfase desafiadora em sua fantasia de masculinidade. Além disso, ele declara que a relação mãe-filha pode vir a ser o germe de muitos delírios paranoicos, em especial, dos delírios de morte por envenenamento. Na conferência O aturdito, Lacan (1972) parece distanciar-se da observação de Freud segundo a qual as mulheres sentem-se prematuramente castradas e aceitam tal fato prontamente. Isto porque a menina, diferentemente do menino, não hesita ante a visão da diferença sexual, isto é, não a desmente, o que “faz da mulher peixe na água pela castração ser nela ponto de partida” (1972/2003, p. 465). Por outro lado, Lacan também reitera e desdobra o comentário freudiano sobre a quase inevitável hostilidade mãe-filha, por ter observado “a realidade de devastação que constitui, na mulher, em sua maioria, a relação com a mãe, de quem, como mulher, ela realmente parece esperar mais substância que do pai...” (Idem, ibid.). Debruçamo-nos com frequência sobre este parágrafo da conferência de Lacan, primeiramente pelo fato de que, na clínica psicanalítica com mulheres, é comum nos depararmos com o fenômeno da devastação atravessando gerações. O que se poderia escrever da seguinte maneira: devastação mãe-filha-mãe... ou devastação mãe-filha-neta, a primeira grafia acentuando o caráter de reciprocidade da devastação, a segunda, sua transmissão geracional. Acrescenta-se a isso o fato de tratar-se de uma questão que tangencia a sexualidade feminina, com tudo que ela ainda pode ter de enigmático, malgrado toda a contribuição de Lacan e de seus seguidores. Outro ponto instigante diz respeito às palavras com que Lacan encerra o referido parágrafo. Diz-nos ele: “[...] o que não combina com o pai, como segundo”. Como entender as palavras de Lacan? Conhecemos sua concordância com o que Freud denominou de uma transferência do objeto materno para o objeto paterno. Parece-nos, portanto, que sua ressalva a respeito do pai, nessa situação específica, pode ser lida como uma indicação de que a intensidade da devastação — a maior ou menor gravidade de suas consequências — está na dependência da presença ou ausência da função paterna de mediação, a qual estabelece uma distância entre o ideal do eu e o papel assumido pelo desejo da mãe (LACAN, 1969/2003, p. 369). Como quer que seja, conduzido por sua experiência clínica, ele chegou a dizer,
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em 17 de fevereiro de 1976, que “se uma mulher é um sinthoma para todo homem [...] posto que o sinthoma se caracteriza justamente pela não equivalência. Pode-se dizer que o homem é para uma mulher tudo o que quiserem, a saber, uma aflição pior que um sinthoma [...] Trata-se mesmo de uma devastação” (LACAN,1976/2007, p. 98). Vê-se, então, que Lacan não reservou o termo para falar exclusivamente da relação mãe-filha. Aliás, um de seus primeiros empregos foi para comentar os efeitos devastadores do pai que, em vez de funcionar como representante da lei, “realmente tem a função de legislador ou dela se prevalece” (LACAN, 1958/1998, p. 586). Gostaríamos nesse ponto de nos remeter a Freud (1921/2006, p. 143), em seu lembrete de que “o apaixonado é humilde”, o que não impede que, “na cegueira do amor, a falta de piedade possa ser levada ao diapasão do crime”. Fantástica lucidez! Certamente a mesma que o guiou, ao afirmar que a fantasia de abuso em que o agente é a mãe, diferentemente da fantasia com o pai, não se reduz a devaneio. Ela toca no real. Aquela que é o primeiro objeto de amor de qualquer criança, é também quem a introduz no masoquismo erógeno2 e no trauma de lalíngua 3. Clareza inebriante! A mesma ainda que o levou a ressaltar, quase no fim de sua obra, que a relação mãe-filha, de longa duração, é prenhe de catástrofes, estas, como já dissemos, que se estendem da fuga diante do gozo sexual e do ódio aos homens aos delírios de ciúmes, de perseguição e de envenenamento. Retornemos primeiramente à devastação mãe-filha. Talvez não seja mesmo novidade lembrar quão devastador pode vir a ser o assim chamado “amor materno”, posto não haver instinto que o freie. Como bem assinala Badinter (2005, pp. 73-75), não só não existe instinto maternal, como, do lado feminino, o assunto violência é tabu “[...] porque põe em perigo a imagem que as mulheres têm delas mesmas”. Badinter também chama a atenção para o fato de que, somente em 1997, por meio da publicação de um livro coletivo, se tomou conhecimento da participação das mulheres no genocídio. Transformadas que foram, na cultura ocidental, em símbolos de ternura, amor e paz, no que se escreveu e ainda se escreve sobre a prática nazista durante a Segunda Grande Guerra, omite-se sistematicamente, com raras exceções, a existência de mulheres que “serviram diretamente a um sistema 2 Tal como Freud o propõe em seu texto de 1924, “O problema econômico do masoquismo”. Nele, Freud identifica três modalidades: o masoquismo erógeno, o masoquismo feminino, o masoquismo moral. O primeiro, diz ele, corresponde ao “prazer no sofrimento e jaz no fundo das outras duas formas”. 3 Tradução de lalangue: outro termo forjado por Lacan mediante a junção do artigo definido ‘la’, a, com o substantivo ‘langue’, língua. Em 1974, Lacan define lalíngua como “o depósito, o aluvião, a petrificação que se marca a partir do manejo por um grupo de sua experiência do inconsciente. Lalíngua não é para ser dita viva porque está em uso. É, antes mesmo, a morte do signo que ela veicula.” Cadernos Lacan, volume 2, p. 53.
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de opressão e morte [...] e trabalharam no funcionamento infalível do sistema de extermínio” (p. 79). Ora, a psicanálise, sobretudo a partir do ensino de Lacan, não se furtou a nos lembrar a existência de Madeleines e Medeias, cujos gestos assassinos são indício de um gozo desprovido da barreira fálica e inteiramente êxtimo à sublimação do amor. Madeleine Gide assassinou letras, se assim pudermos nos expressar, queimando as cartas de amor, o que ela mesma possuía “de mais precioso”. Sentira-se intoleravelmente traída por aquele que as escrevera, para quem, da mesma forma, “talvez nunca tenha havido correspondência mais bela” (GIDE apud LACAN, 1998, p. 773). Medeia, personagem da tragédia homônima de Eurípedes, representa a esposa repudiada que assassina os próprios filhos para atingir o âmago do ser do homem amado. “Pobre Jasão”, diz Lacan (1958/1998, p. 773), “que, tendo partido para a conquista do tosão dourado da felicidade, não reconhece Medeia!”. Não a reconhece, isto é, não sabe de que é capaz, ao se sentir traída, “uma verdadeira mulher em sua inteireza de mulher” (Ibid. p. 772). E Freud, vale a pena lembrar, tampouco se esqueceu de Medusa — uma das três górgonas — cujos filhos não a podem ver e nem podem ser vistos por ela. Visão do terror! Lacan (1972) chegou a dizer que o que existe de mais sério no amor são as cartas de almor4, as “ridículas cartas de amor”, conforme as palavras do poeta Fernando Pessoa. Isso porque, há uma incomensurável distância entre a poesia e o ato. Feita de letras, a poesia faz jorrar um sentido até então inexistente, ela é imaginariamente simbólica, ou seja, o simbólico incluído no imaginário. Em contrapartida, “o ato de amor, é a perversão polimorfa do macho, isto entre os seres falantes. Não há nada de mais seguro, de mais coerente, de mais estrito quanto ao discurso freudiano” (LACAN, 1972-73/1985, p. 98). Em outros termos, se um homem e uma mulher chegam, como se diz, “às vias de fato” — ou seja, a ocuparem uma cama de casal de pleno uso — é porque ela se prestou a encarnar o objeto a da fantasia dele, e é com este objeto — seios, fezes, voz, olhar, pedaço qualquer de carne... — e não com ela, afinal, que ele faz amor. Em seu retorno a Sainte Anne, final de 1971 e início de 1972, Lacan (2011, p. 32) referiu-se explicitamente ao progresso da chamada ciência biológica no que tange à reprodução sexuada. Progresso, diz ele, que está “levando muito longe uma porção de coisinhas que se situam no nível do gameta, no nível do gene [...] e que parecem elucidar algo que tem a ver com o fato de que a reprodução, pelo menos numa certa zona da vida, é sexuada. Só que isso não tem nada a ver com o que é a relação sexual, na medida em que está claríssimo que existe no ser falante, em 4 No original em francês: Lettres d’âmour, condensando os vocábulos âme, alma, e amour, amor.
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torno dessa relação como fundamentada no gozo, um leque absolutamente admirável em sua extensão”. Vejamos, então, o que acontece a Pedro.
O enamoródio de Pedro Um homem de aproximadamente trinta anos vem buscar análise. Profissional bem qualificado em um ramo das ciências exatas, ele está casado há alguns anos e vem analisar-se logo após um ato de autoagressão em que cortou o seu próprio braço com uma faca de cozinha. Pedro perdeu muito sangue, levou vários pontos e ficou com uma grande cicatriz. Segundo ele, não havia escolha: ou fazia o que fez ou teria que bater em sua mulher. Em análise, retorna algumas vezes a seu ato de autoagressão, dizendo que ficou surpreso com a reação dela, que, naquele momento, chorou muito, disse que o amava e pediu que não morresse. Em seu percurso de dois anos e meio de análise, Pedro fala quase exclusivamente da mulher. Quando se conheceram, ela ainda estava casada com outro homem, de quem se separou para vir viver com ele. No início, viveram um autêntico idílio sexual: transavam praticamente todos os dias e várias vezes por dia. No atual momento, ele oscila entre a ejaculação precoce e a impotência e busca descobrir a razão do seu sintoma. Ela o agride verbalmente denegrindo-o de forma cruel: “você não é homem! Não enfrenta seu pai! Não me faz gozar!”. Compara-o com o ex-marido, lamentando-se da troca. Ocasionalmente, ela o manda sair de casa e Pedro obedece, passando a noite em um hostel. Porém, tampouco aceita que ele viaje a trabalho, ameaçando-o de “ter que dar para um outro”. Pedro é oriundo de uma pequena cidade do interior onde ainda reside a maior parte dos seus familiares, que trabalham no comércio. Isto significa que, em termos de estudo, ele foi bem mais longe do que o pai, a mãe e os irmãos. Ele teve um longo relacionamento anterior com uma moça da sua cidade, com quem tinha uma vida sexual satisfatória, mas não chegaram a morar juntos. No início do seu relacionamento com a atual mulher, ele interrompeu um pós-doutorado. Este é um dos motivos que surgem eventualmente nas falas depreciativas de sua mulher. Na reconstrução de sua história de vida, Pedro refere à presença de um pai violento que sai de casa quando seus três filhos estão entrando na adolescência. Sua irmã, um ano mais velha, tinha então quinze anos, ele, catorze, e o irmão mais novo, apenas dez. Sua mãe abre um surto psicótico, recebe o diagnóstico de esquizofrênica, e inicia uma sequência de períodos em hospital psiquiátrico. Entre as inúmeras acusações que Pedro se faz está a de não ter obrigado seu pai a dar uma pensão decente para sua mãe. Ocasionalmente ele indaga qual seria o seu próprio diagnóstico. Recorda o pe-
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ríodo da adolescência em que teve dúvidas sobre sua opção sexual, porque deixava que um primo mais velho o masturbasse. Recorda também o episódio de paralisia facial em que recebeu o diagnóstico de histeria. Não há dúvida de que a questão que ele formula a si próprio é: “Sou ou não suficientemente homem para sair desse casamento?”. Em sua busca por respostas, Pedro imagina que jamais conseguiria viver com outra mulher e tampouco suportaria viver sozinho. Por vezes diz: “É que eu ainda a amo!”. Em certo momento, enunciou: “Há um resto de brilho no olhar dela. Talvez eu queira ficar como forma de me vingar, talvez minha impotência sexual seja uma vingança... talvez eu fique até que desapareça nela este resto de brilho no olhar”. Mais recentemente, formulou: “Ela tem umas rupturas de vez em quando; para subitamente de me agredir e me pede para não morrer, como naquele dia em que ‘cravei’ (sic) a faca no meu braço. Será que ela ainda está comigo porque isso significa que, nesses momentos, apesar de tudo, ela percebe que me ama? Ou será que ela ainda está comigo somente porque ainda não arranjou outro homem? Acho que é a segunda hipótese”. Mas não se pode esquecer que Pedro, devastado, sobretudo pelos ciúmes que o invadem e o assolam, em algumas ocasiões, descreve com frequência uma mulher igualmente devastada. Acusa-o de estar sempre despertando nela o que há de pior, agressividade e depressão. Recorre a medicamentos para dormir e apresenta crises de choro convulsivo. Tudo parece indicar que a devastação é, de fato, um fenômeno de mão dupla. E não apenas no caso da devastação mãe-filha. Sigamos, agora, os passos do poeta e da literatura.
Fedra e Hipólito: quando o amor devasta “Amamos Fedra por seus momentos de humildade. Ela não se protege;” — escreve François Mauriac5 — “ela conhece seu opróbio e o expõe aos próprios pés de Hipólito. O excesso da sua miséria nos aparece, sobretudo, no momento em que, ao descrever seu triste corpo que enlanguesceu e secou, nas lágrimas e nas lavas, ela não pode se impedir de gritar ao ser que é a sua vida (nada mais dilacerante jamais saiu de uma boca humana)”: Seria, p’ra provar-t’o, um teu olhar bastante Se me pudessem ver teus olhos um instante.6 5 Prefácio à edição francesa da Presses Universitaires de France, PUF. 6 Racine (1639-1699) – Fedra, Ester, Atália. Tradução de Jenny Klabin Segall – 4ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2005. (Biblioteca Martins Fontes) – Cena V, p. 35.
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À primeira vista, Fedra é uma tragédia de amor como tantas outras. Teseu ama Fedra que ama Hipólito que ama Arícia... quem não conhece esse refrão? Além disso, de acordo com os historiadores, o ciúme já era inclusive um tema gasto, quando Racine abordou-o no século XVII, inspirando-se em Eurípedes e Sêneca. Fedra, todavia, é mais que uma tragédia do ciúme. “Os Deuses e os Monstros se misturam ao jogo dos humanos [...] a luta que se trava em seu coração não é somente a luta entre o Bem e o Mal, entre não sei que nostalgia da pureza e o pecado original, é a luta de duas heranças, dos deuses da luz e dos animais mitológicos...” (BASTIDE, 1949, p. IX). Não-toda culpada e não-toda inocente, diremos nós, Fedra é uma mulher. A ideia do crime é vista por ela inicialmente com tanto horror quanto o próprio crime. É uma mulher madura, cujo esposo, Teseu, filho de Egeu, rei de Atenas, está há longo tempo afastado do lar. Para alguns, já estaria morto; para outros, estaria bem vivo, porém entregue ao gozo de uma nova amante. Fedra, então, está só. Mas não está sozinha. Com ela habitam, entre outros, Hipólito, seu jovem enteado, filho de Teseu e da rainha das Amazonas, Oenone, sua própria ama e confidente, e Arícia, princesa do sangue real de Atenas. Fedra esconde enquanto pode o seu amor por Hipólito e só pensa em morrer. Hipólito, em contrapartida, vivia um momento de autoacusações e sofria, tanto quanto Fedra, de um amor não declarado. Ele amava a jovem Arícia com um amor igualmente proibido, pois amá-la era trair o próprio pai, para quem ela era de uma família inimiga. Esta, como os demais, o considerava indiferente às mulheres e ao amor. Contudo, ao ser interrogado por seu aio de forma direta e explícita: “Amais, senhor?”, Hipólito lhe responde: “... Tu que na alma me lês desde que ao mundo vim [...] poderás exigir-me o indigno desmentido?” ( p. 6). Quando se divulga a notícia da morte de Teseu, Hipólito crê na possibilidade de unir-se a Arícia e, inclusive, de devolver o cetro à sua família, pois isto já não representaria uma traição filial. Então, ele se declara: [...] Ei-lo, enfim, dependente, este peito arrogante, Há meses que, abatido, em desespero ando Trazendo um dardo em mim que me está lacerando [...] Talvez a narração de uma paixão tão rude Faça, enquanto escutais, corar vossa virtude; Que tosco coração se oferece a vós! Que escravo singular para tão belos nós! (pp. 28-29).
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Assim como fez o jovem enteado, convencida de que Teseu não voltará e instigada pela ama, a quem já havia confessado estar sofrendo dos “fatais furores” do amor, Fedra decide declarar-se a Hipólito. Este se mostra surpreso e indignado e dela ouve ainda: Ah, cruel! de certo que me ouviste! [...] Amo! não julgues, não, que no instante em que te amo; Por inocente me haja e ignore que me infamo; (p. 35). Mas a trama trágica, que em nada cede, traz Teseu de volta. Temendo que Hipólito fosse queixar-se ao pai, Oenone encarrega-se de incriminá-lo junto a este, sugerindo que o amor incestuoso partira dele e não de Fedra, que inicialmente se mantém calada. Ora, do ato que a difama mais do que a infama, a sequência confirma tratar-se realmente de um amor que é, segundo as palavras do texto, um “ardor funesto”. Duas mortes se sucederão de imediato: morrem a velha ama e o jovem Hipólito, vitimado pelo pai que não deu crédito às suas palavras. Somente então Fedra “rompe a reticência” — é novamente o texto que o diz — e declara em viva voz: Cada instante é precioso; ouvi-me, pois, Teseu: Fui eu que ousei poluir este filho exemplar, Tão casto quão leal, com incestuoso olhar.
A suplência do amor Nesse ponto nos parece importante acrescentar mais algumas palavras à questão de que partimos. De que recursos dispõe o amor para substituir a relação sexual? O sofrimento de Pedro nos remeteu à tragédia de Racine, assinalando, a nosso ver, o caráter atemporal do amor e, portanto, sua procedência do inconsciente. Pedro, se quisesse, poderia enunciar uma frase bem em voga em nossos dias. “Eu sou Hipólito”, diria ele, no sentido de alguém que “se envergonha de sua inatividade” e que acredita “dever certa piedade” ao pranto da mulher que “em tudo fomentou seu ódio e inimizade”. De forma semelhante à do personagem trágico, o jovem sujeito teme “avistar-se a si próprio” e pensa em fugir. Denegrido e devastado, desprovido de importante parcela do gozo fálico — gozo que, no ser falante, substitui o gozo sexual — um amigo lhe poderia dizer as palavras que Hipólito escutou do aio: “Senhor, de onde vos vêm essas marcas de dor? Vejo-vos sem espada, atônito, sem cor” (2005, p. 37).
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Se os determinantes do amor parecem resistir ao tempo, mantendo as cores trágicas da traição e do ciúme, todavia não se pode dizer o mesmo do que tem a ver com as escolhas sexuadas. Como observou Lacan (1972-73/1985, p. 98), já está bem próximo o dia em que a reprodução nada mais terá de sexuada e dispensará por completo “o ato de amor [que] é a perversão polimorfa do macho”. E o amor sublimação, ato poético? Permanecerá tão tragicômico quanto antes?
referências bibliográficas BADINTER, E. Rumo equivocado – O feminismo e alguns destinos. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. BASTIDE, R. (1949). Prefácio à 1ª Edição. In: Racine. Fedra, Ester, Atália. Tradução Jenny Klabin Segall. São Paulo: Martins Fontes, 2005. FREUD, S. (1913[1912-1913]). Totem e tabu. In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1972-76, vol. XIII. . (1921). Psicologia das massas e análise do eu. In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1972-76, vol. XVIII. . (1924). O problema econômico do masoquismo. In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1972-76, vol. XIX. . (1925[1924]). Algumas consequências psíquicas da distinção sexual anatômica. In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1972-76, vol. XIX. . (1940 [1922]). A cabeça de Medusa. In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1972-76, vol. XVIII. . (1931). Sexualidade feminina. In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1972-76, vol. XXI. . (1933[1932]) Novas conferências introdutórias sobre psicanálise. Conf. XXXIII. Feminilidade. In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1972-76, vol. XXII. LACAN, J. (1957-58). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. . (1958). A significação do falo. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. . (1958). Juventude de Gide ou a letra e o desejo. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. . (1969). Nota sobre a criança. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. . (1970) Radiofonia. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
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resumo
O presente texto discorre sobre o amor e os fenômenos de devastação, indagando a assertiva de Lacan de que “o amor faz suplência à relação sexual”. Divide-se em três grandes partes e uma pequena conclusão. Na primeira, faz-se um recorrido nas obras de Freud e de Lacan, mostrando que o primeiro aborda o tema particularmente ao escrever sobre a relação mãe-filha e a sexualidade feminina, enquanto o segundo refere-se também à devastação que o homem pode causar a uma mulher. Na segunda parte, o texto aborda o caso Pedro, um sujeito que sofre de “enamoródio”. Na terceira parte, a tragédia Fedra, de Racine, é tratada como um caso clínico. A parte final, além de mencionar os pontos em comum entre os dois casos, aponta mais algumas diferenças entre o amor e o ato sexual.
palavras-chave Suplência, devastação, relação sexual, enamoródio.
abstract
This paper focuses on love and on the phenomena of devastation, questioning Lacan’s assertion when he says that “love makes up for the lack of sexual relation”. It is divided into three parts and a small conclusion. The first part resorts to works by Freud and Lacan, showing that the former deals with the theme concentrating particularly on the mother-daughter relationship and female sexuality, while the latter refers as well to the devastation a man cause a woman. In the second part,
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the paper addresses the case of Peter, a subject who suffers from hatredlove. In the third part, Racineâ&#x20AC;&#x2122;s tragedy, Phaedra, is treated as a clinical case. The final part then, besides mentioning the common points between both cases, it points to a few more differences between love and the sexual act.
keywords Substitutive, devastation, sex, hatredlove.
recebido 21/02/2015
aprovado 21/04/2015
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espaรงo escola
A Escola de psicanálise e sua garantia Andréa Hortélio Fernandes O conceito de escola serve de abertura à minha exposição. Por escola entendemos ser o lugar onde, ainda crianças, somos encaminhados para aprender. Resumidamente, muitos de nós ouvimos que iríamos à escola para aprender a ler. Na escola acontece o ensino de alunos sob a direção de professores e, em grande parte dos países, a educação escolar é obrigatória e em alguns, gratuita. Por que Lacan escolhe manter o termo escola para a Escola de Psicanálise? Quantos de nós, ao longo da nossa formação, nos indagamos o porquê de algumas instituições de psicanálise se denominarem seja por Colégio ou Escola? A partir destes questionamentos iniciais, pretendo falar da Escola após os dois anos de experiência na CLEAG. O filme “Uma lição de vida”, de Justin Chadwick, veio à minha lembrança quando me vi impelida a falar da Escola. O filme conta a história de um homem de oitenta e quatro anos que vai a uma escola primária para ser alfabetizado, pois no seu país, Quênia, somente, em 2002, o governo institui o programa de educação gratuita para todos. As escolas primárias eram as únicas que funcionavam bem e ele precisava ler uma carta que o governo tinha lhe endereçado. Maruge, personagem principal, não cede do seu desejo de saber e enfrenta todos os impedimentos para ter o direito de frequentar a escola, mesmo sendo-lhe dito que não era mais criança. A atemporalidade do seu desejo torna-se decisiva na sua luta para que seus direitos fossem garantidos. O que Lacan nos delegou sobre sua escola? Temos alguns textos fundadores, eles estão no Catálogo da EPFCL. O texto “Prefácio à Edição Inglesa do Seminário 11” (Lacan, 1976/2003) foi incorporado aos textos fundadores na Assembleia em Paris, em 2014. De acordo com os textos fundadores do catálogo da IF/EPFCL, os Fóruns do Campo Lacaniano não são Escolas, “mas campo”. “Não outorgam nenhuma garantia analítica” (Carta da IF e seu Anexo, 2008, p. 252). No site da EPFCL está destacado ainda outro aspecto importante sobre a garantia na Escola: Outorga uma garantia cujos títulos foram definidos por Lacan. O título de Analista membro da Escola (AME) é outorgado — a partir de propostas das Comissões Locais, no caso do Brasil pela CLEAG e por uma Comissão de Habilitação e Internacional de Garantia (GIG). O título de Analista da Escola (AE) é outorgado
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FERNANDES, Andréa Hortélio
pelos Cartéis do Passe, compostos dentro do Colegiado Internacional da Garantia (CIG) <http://www.campolacaniano.com.br/escola.php>. Entre as funções da CLEAG está o acolhimento das demandas de entrada na escola. Estas demandas vislumbram a diferença entre os Fóruns do Campo Lacaniano e a Escola. Os Fóruns “acolhem todos aqueles que de um modo ou outro se sentem concernidos pela psicanálise orientada pelo ensino de Lacan e estão interessados no estudo da psicanálise, suas conexões ou sua aplicação fora do dispositivo analítico” <http://www.campolacaniano.com.br/foruns.php>. A Escola “tem por objetivo transmitir a experiência original que constitui a psicanálise, elaborar um saber sobre isso, permitir a formação de analistas, fundamentar sua qualificação e garanti-la” <http://www.campolacaniano.com.br/escola.php>. Logo, a demanda de entrada na Escola é balizada pela “participação efetiva nas atividades da Escola e na experiência de cartel” (Os princípios diretivos para uma Escola orientada pelo ensino de Sigmund Freud e Jacques Lacan, 2008, p. 264). A experiência de cartel demarca o distintivo da formação do analista que se dá desde que o próprio sujeito possa decantar algo daquilo que ele apreende a partir e sobre a psicanálise e é isso que a experiência do cartel possibilita. Neste sentido, a experiência do cartel revela que a transmissão da psicanálise não é tributária do discurso universitário, e isso é demarcado desde o acolhimento das demandas de entrada na Escola. Logo, a participação num cartel está para além de uma habilitação ou um crédito a ser cumprido para ser membro de Escola. A participação no cartel deve franquear ao cartelizante uma nova relação com o saber da psicanálise, e isso pode ser vislumbrado em algumas demandas de entrada na Escola. Na “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola” consta que “o psicanalista só se autoriza de si mesmo”, o que “não impede que a Escola garanta que um analista depende de sua formação” (LACAN, 1967/2003, p. 248). Isto porque o real em jogo na formação do analista “provoca o seu próprio desconhecimento, ou até produz” a negação sistemática desse real (Ibid., p. 249). O tratamento dado ao real está no cerne da experiência da psicanálise e, portanto, da Escola. O gradus está implícito numa escola de psicanálise devido ao fato de o analista poder querer que a Escola garanta a sua formação. O gradus está concebido em: Analista Praticante (AP), Analista Membro da Escola (AME) e Analista da Escola (AE). O AME, analista membro da Escola, torna-se responsável pelo progresso da Escola, “pelo fato de que a Escola reconhece como psicanalista que comprovou sua capacidade” (Ibid.), esse analista é indicado por outros AMEs visto que ele colabora na transmissão da psicanálise, tem analisandos que poderão ser futuros passadores e tem supervisionados. A lógica presente na formação do analista no que tange ao gradus está associada à
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concepção de que “a verdadeira análise original só pode ser a segunda, por constituir a repetição que da primeira faz um ato, pois é ela que introduz o a posteriori próprio do tempo lógico, que se marca pelo fato de que o psicanalisante passou a psicanalista” (Ibid., p. 258). Isso aponta para o fato de que Freud não fez autoanálise. Ele abriu o caminho, do contrário, o analista não contaria socialmente. Freud nomeia o ofício de psicanalisar de psicanálise. “Porque nomear alguém como analista é algo que ninguém pode fazer, e Freud não nomeou nenhum” (LACAN, 1976/2003 , op. cit., p. 568). O analista praticante (AP) é registrado na Escola, “no começo, nas mesmas condições em que nela se inscrevem o médico, o etnólogo e tutti quanti” (LACAN, 1967/2003, op. cit., p. 248) que exercem, praticam a psicanálise. Tal afirmação de Lacan mostra que, pela garantia da formação do analista, há uma aposta que vai mais além do AP, “tutti quanti”, ou seja, todo aquele que tiver uma “participação efetiva nas atividades da Escola e na experiência de cartel” (Os princípios diretivos para uma Escola orientada pelo ensino de Sigmund Freud e Jacques Lacan, 2008, p. 264) poderá ser acolhido na Escola; mas eles se inscrevem nas condições que nela se inscrevem o médico, o engenheiro etc.; a garantia da formação do analista pela Escola faz uma aposta num plus no gradus, plus decorrente da própria experiência da análise no sentido lato. Já o Analista da Escola (AE) é aquele que “torna-se psicanalista da própria experiência” (Ibid.), e o passe seria “a verificação da historisterização da análise” (LACAN, 1976/2003, p. 569), visto que “o analista só se historisteriza por si mesmo, mesmo quando se faz confirmar por uma hierarquia” (Ibid., p. 568). A hierarquia é inerente à experiência da análise e ao dispositivo do passe. Contudo, o dispositivo do passe conforme o site da EPFCL <http://www.campolacaniano.com.br/escola.php> está construído sob o modelo do chiste: O analisante, nomeado passante, que tem a convicção de ter chegado ao fim de sua questão de analisante, se oferece para dar testemunho de sua passagem a analista. Ele o faz diante de dois passadores. Os passadores, por sua vez, são designados por seus analistas (AME) que, em função do momento preciso dessas análises, [estarem próximos ao final de análise] os consideraram aptos a escutar aquilo que atesta a virada a analista no testemunho do passante (Ibid.). A Escola deve poder “garantir a relação do analista com a formação que ela dispensa”, mas é aí que, na “Proposição”, Lacan aponta para a falha, “a falta de inventividade para exercer um ofício” (LACAN, 1967/2003, op. cit., p. 249). A manutenção de um regime semelhante ao de outras sociedades na Escola de Psicanálise para regular o gradus deve ser salientada em seus efeitos de mal-estar. De fato,
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nas diversas questões levantadas pelo passe cabe destacar os efeitos de mal-estar decorrentes da nomeação ou não-nomeação de AE. Apesar dos desafios inerentes ao passe e que dizem respeito à própria psicanálise, ou seja, o real em jogo na experiência psicanalítica, o passe ainda permanece como “proteção possível para evitar a extinção da experiência”? (Ibid., p. 250). Freud foi até o rochedo da castração deixando para os seus seguidores a elaboração acerca da análise finita. Os pós-freudianos propuseram em grupos, dentro das suas escolas e escolhas de orientação teórica: kleiniana, winnicottiana, psicologia do ego, teorias acerca do final da análise. Por exemplo, Balint ao propor a identificação do psicanalisante com seu guia sustentou como palavra de ordem de algumas sociedades de psicanálise, a existência de uma parte sadia no analista com a qual o eu do analisante deveria fazer uma aliança. Daí surge a seguinte questão: de que serve a passagem do analisante pela experiência da análise? A proposta do passe feita por Lacan destitui o lugar do analista didata que delibera sobre as análises, supervisões, enfim, sobre a formação do psicanalista em algumas sociedades. O novo gradus proposto pela Escola de Lacan tem função ativa e está integrado ao novo modelo de Escola no qual a experiência da análise é determinante, e é dela que vêm a ser extraídos os princípios diretivos da Escola. O acolhimento à entrada na Escola está diretamente articulado à participação nas atividades da Escola e à experiência de cartel, no que a experiência da análise pessoal é fundamental na relação do analisante com o saber da psicanálise. Portanto, o convite de que a demanda de entrada na Escola seja renovado num momento posterior visa impulsionar que o desejo de saber possa se presentificar apesar dos pontos de real que ele toca e que, por isso mesmo, precisam ainda ser elaborados na experiência de análise. As indicações de AME devem ser feitas em sigilo por outros AMEs que atestem o trabalho de transmissão da psicanálise na Escola e das análises e supervisões conduzidas pelos analistas indicados para AME. Mais uma vez a experiência da análise deve fundamentar as indicações de AME. Na Carta da IF-EPFCL e seu anexo (2008/2010) há a seguinte afirmação: A Escola que se dedica a cultivar o discurso analítico. A experiência prova que esse discurso, sempre ameaçado pelo recalque, pela tendência a se perder e a se fundir no discurso comum, está à mercê das contingências do ato analítico. A Escola é feita para sustentar essa contingência (p. 252). Logo, o passe vem relançar questões relativas ao discurso analítico e ao ato analítico. A psicanálise só tem chance de não se perder dos seus princípios se os analistas desafiarem o tom tranquilizador do inconsciente. Para tanto, Lacan
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promulga a seguir a política do sintoma no que ele mantém um sentido no real. Logo, o analista pode ter mais liberdade nas suas táticas, mas sua estratégia numa análise deve orientar-se por essa política no que ela leva em consideração o sujeito e seu sintoma. Portanto, como já tinha dito, o tratamento dado ao real está no cerne da experiência da psicanálise e, consequentemente, da Escola. Em 1967, Lacan destaca que o analista pode querer que a Escola garanta a sua formação. Em 1976, ele chama atenção para o fato de o passe estar “à disposição daqueles que se arriscam a testemunhar da melhor maneira possível” (LACAN, 1976/2003) a historização da análise. Cabe, então, dizer que o passe depende de toda a Escola e não apenas da CLEAG, do CIG e dos cartéis do passe. O passe está na dependência direta do que, enquanto analistas, fazemos nas análises de nossos analisantes, como na dependência dos AMEs que indicamos. O passe está na dependência do ato analítico. Uma ressalva feita por Lacan cabe ser retomada: “nomear alguém como analista é algo que ninguém pode fazer, e Freud não nomeou ninguém” (1976/2003, p. 568). A nomeação de AE é por dois anos, tempo em que esse AE é convidado a poder transmitir, em diferentes ocasiões, o que decantou da experiência do passe. Após esse período, e depois de não ser mais AE, ele inclusive poderá ser indicado ou não como AME e se submeterá ao encaminhamento devido. Entretanto, a nomeação de AE e AME parece carregar muita idealização que contradiz com o que pode se extrair de uma experiência de análise. Dos passes, atribui-se, em certa medida, algum reconhecimento, o que põe em xeque o uso do dispositivo pela Escola. É importante, então, que seja retomada a questão feita por Lacan aos italianos para a nossa própria Escola: ela tem condições de fornecer essa garantia? Ao trabalhar na tradução do texto: “O passe contra o esquecimento”, de Sol Aparício, para o Wunsch, número 14, muitas das questões já elencadas até aqui foram se atualizando. No texto, Sol Aparício diz que: O procedimento do passe constitui, no seio da Escola, a condição da possibilidade de uma reflexão em comum que é pouco comum, diretamente fundada na experiência analítica, sobre o que está em jogo no discurso analítico, discurso do qual a Escola é responsável (<http://champlacanien.net/public/docu/4/wunsch14.pdf>, p. 17). O passe foi relançado dentro da nossa escola. “A passagem a analista permanece uma questão1. É a questão – cuja resposta falta ainda”, nos diz Sol Aparicio. Para ela:
1 V. S. APARICIO, “Persistance d’une question”, In: Mensuel n. 54, octobre 2010.
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O que importa é evitar o esquecimento da questão – sem ela, que é bastante importante, não existirá nada de hystoricização da análise. Qual analisante feliz dos benefícios de sua análise se deterá para hystoricizar? A experiência está prometida ao esquecimento pelo seu sucesso, pelos seus efeitos terapêuticos, que engendram um esquecimento, sobretudo, salubre, se não houvesse um desejo de saber para ir contra (Ibid., p. 20). Logo, em prol de uma questão que persiste, Sol Aparício propõe o passe contra o esquecimento, e a nós parece ser útil continuar o debate acerca da Escola e da Garantia para esclarecer se estamos à altura desta tarefa. Tal qual a atemporalidade do desejo de Maruge, no filme a que me referi no início de minha exposição, “o problema do desejo” no “próprio psicanalista” (LACAN, 1971/2003, p. 245) não pode ser relegado ao esquecimento. Para tanto, no trabalho da CLEAG há sempre uma presteza no acolhimento das mais diferentes demandas, sobretudo, nas demandas de passe.
referências bibliográficas APARICIO, S. O passe contra o esquecimento. In: http://champlacanien.net/ public/docu/4/wunsch14.pdf. . Persistance d’une question. In: Mensuel no 54, Paris, outubro 2010. Carta da IF e seu Anexo. In: Catálogo da IF-EPFCL 2008-2010, versão impressa. Os princípios diretivos para uma Escola orientada pelo ensino de Sigmund Freud e Jacques Lacan. In: Catálogo da IF-EPFCL 2008-2010, versão impressa. LACAN, J. (1967). Proposição de 9 de outubro de 1967 para o psicanalista da Escola. In: LACAN, J. Outros Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, pp. 248 -264. . (1971). Ato de Fundação. In: LACAN, J. Outros Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, pp. 235 -247. . (1976). Prefácio à edição inglesa do Seminário 11. In: LACAN, J. Outros Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, pp. 557 -559. Site EPFCL BRASIL <http://www.campolacaniano.com.br/escola.php>, consultado em 19 de fevereiro de 2015.
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Escola de psicanálise e sua garantia
resumo
O artigo discute o tema da Escola e sua Garantia a partir da experiência da autora durante dois anos na Comissão Local Epistêmica de Acolhimento e Garantia (CLEAG) da EPFCL-Brasil. A experiência é balizada e discutida por meio da retomada de alguns textos fundadores de Jacques Lacan com vistas a atualizar e problematizar a questão da garantia na Escola.
palavras-chave
Escola, garantia, passe, cartel, psicanálise.
abstract
The article discusses the issue of the School and its Guarantee from the experience of the author for two years in the Local Epistemic Committee for Hosting and Guarantee (CLEAG) of SPFLF-Brazil. The experience is mediated and discussed through the resumption of some basic texts by Jacques Lacan with the objective of updating and problematizing the issue of guarantee within the School.
keywords
School, guarantee, pass, cartel, psychoanalysis.
recebido 20/02/2015
aprovado 21/04/201
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Passador, um leitor Luciana Guarreschi Muita tinta já correu na tentativa de aproximação e definição desse termo: passador. Deixarei escorrer a minha, sabendo que, assim espero, outros o farão depois de mim. Sabendo que, a cada vez que um analisante se aproxima de um tempo-espaço nunca dantes alcançado, pois inexistente até então, encontra-se, ali mesmo, passador. E aqui já faço uma pequena nota: passador é todo aquele que aí está, independentemente de estar participando do dispositivo institucional “passe”, independentemente de ter sido designado e/ou sorteado. Como se sabe, esses momentos podem, ou não, coincidir. As referências em Lacan sobre o passador são várias, mas não infinitas como nossas repetições, que ainda assim são insuficientes. Não há muito o que ser feito neste sentido, nos aproximamos desta condição passageira e logo nossos olhos não podem ler outra coisa que não essas referências. Procuraríamos ali uma explicação para nossa condição altamente angustiante? Uma preparação para uma possível designação? Um abrandamento do momento? Importa pouco, já que não encontramos o que procuramos: nada de alívio. Tampouco o que acreditamos compreender nos deixa mais preparados. Certo é que há pontos de identificação com algumas referências, ou mesmo com alguns testemunhos de Analistas de Escola que, se nos trazem a certeza do caminho, nunca sua saída. No melhor estilo picassiano “eu não procuro, acho”, acabo por encontrar, quando já não procurava mais, uma imagem que me aproximou novamente, em certa medida, da condição de passadora. Esta certa medida diz respeito à pergunta que Lacan soube bem fazer: Enfim, a partir de quando há analista? Desdobrando: Nas análises que conduzo, onde está esta virada? Mas também: e hoje? Hoje vai ter analista? Hoje “não tá tendo”, daqui a pouco pode chegar... Sempre o “a cada vez” a que se referia Freud. Bom, fato é que tal achado me fez procurar novamente, encore. Lacan, em 1967, define o passador simplesmente assim: Cada um deles terá sido escolhido por um analista da Escola, aquele que pode responder pelo fato de que eles estejam nesse passe ou que retornaram a ele, em suma, ainda estão ligados ao desenlace de sua experiência pessoal (1967/2003, p. 261). E para explicar o que seria “nesse passe” é ainda mais simples: “[...] estar no passe em que, precisamente, advém o desejo do psicanalista, esteja ele, ou não, em
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dificuldade.” (LACAN, Um procedimento para o passe, 1967/1997). E para que não restem dúvidas de sua posição, arremata em 1973: Aqueles que estão ocupando a posição do passador em certos casos, de fato se colocam como analistas: isto não é absolutamente o que nós esperamos deles. O que nós esperamos deles é um testemunho, é uma transmissão, uma transmissão da experiência, uma vez que ela não é justamente dirigida a um velho, a um mais velho (LACAN, J. Intervenção na sessão de trabalho “Sobre o Passe”, 3/11/1973 [grifos meus]). Isto em Lacan. Se nos ativermos ao que foi depois produzido, teremos algumas definições-metáforas: passador como uma placa sensível, como mediador assimétrico, como difusor da música do passante etc. Sigo então, com o que, para mim, foi um (re)achado, Barthes. E aqui farei referências a diversos artigos dele reunidos num livro chamado “O rumor da língua”, lidos a meu bel-prazer. Começo com um pequeno texto lá contido: “Escrever a leitura” aí está! Essa já poderia ser uma função do passador. Barthes (1970/2012) começa com uma interrogação: Nunca lhe aconteceu, ao ler um livro, interromper a leitura, não por desinteresse, mas, ao contrário, por afluxo de ideias, excitações, associações? É essa leitura, ao mesmo tempo irrespeitosa, pois que corta o texto, e apaixonada, pois que a ele volta e dele se nutre, que tentei escrever (Ibid., p. 26). Poderia dizer: que o passador tenha desejo de escrever. Barthes faz um experimento. Lendo Sarrasine, de Balzac, escreve sistematicamente essas interrupções. E, sobre esse escrever, diz: Não falei nem de Balzac nem de seu tempo, não fiz nem psicologia das suas personagens, nem a temática do texto, nem a sociologia do enredo (Ibid., p. 27 [Grifos meus]). Como fez então, Barthes? Tentou filmar em câmera lenta a leitura desse texto. O resultado? Não é nem totalmente uma análise, nem totalmente uma imagem. É simplesmente um texto, esse texto que escrevemos em nossa cabeça quando a levantamos (Ibid., p. 27).
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Passador, um leitor
Barthes está chamando à ordem uma ênfase ainda por ser dada ao leitor, já que muito falou-se sobre o autor. Lembremos que não estamos muito longe do conhecido texto de Foucault, de 1969, “O que é um Autor?”. Barthes está, em 1970, tentando suscitar, como ele chama, uma “teoria da leitura”. Para ele, o autor estava ainda sendo considerado o proprietário eterno de sua obra, procurava-se entender o que o autor quisera dizer, mesmo sob advertência de muitos autores de que seríamos livres para ler suas obras como bem entendêssemos. E aqui cabe uma pequena nota para o passante: você será lido como bem, e mal, entenderem seus passadores. É bom estar preparado para tal, pois se nos guiarmos por Barthes: “o nascimento do leitor deve pagar-se com a morte do Autor” (Ibid., p. 64), muitos dedos para com seu testemunho podem impedir o nascimento de um leitor. Mas que leitor? Relembremos as raízes do verbo ler, sua etimologia porta nuances das quais me sirvo aqui: “Ler era também recolher, colher, espiar, reconhecer os traços, tomar, roubar. Ler denota, pois, uma participação agressiva, uma apropriação ativa do outro.”(KRISTEVA, 2012, p. 176 [Grifos meus]). É, há de se estar “no ponto” para tal tarefa. O pobre diabo sorteado terá que escolher entre ser pobre ou diabo. Diabólico, roubará o ímpeto dos momentos de passagem, reconhecerá os traços das viradas, tomará o incerto pelo certo. Como pobre pedirá pelo Autor, pelo romance, pela verdade, por mais um sentido, pelas intervenções brilhantes do analista, pela obra, pelo fim, pela origem etc. e etc. Obviamente não está tudo a cargo do passador leitor, que, para ler, terá que contar com o Texto do passante. Em um outro artigo, chamado “Da obra ao Texto”, Barthes delimita, contorna diferenças entre texto e obra. Diz ele: A obra segura-se na mão, o Texto mantém-se na linguagem: ele só existe tomado num discurso (ou melhor, é Texto mesmo pelo fato de o saber); o Texto não é a decomposição da obra, é a obra que é a cauda imaginária do Texto Ou ainda: só se prova o Texto num trabalho, numa produção. (BARTHES, 2012, p. 67 [Grifos meus]). E por último, mas não menos importante: A obra é tomada num processo de filiação. Postula-se uma determinação do mundo (de raça, da História) sobre a obra, correlação das obras entre si e uma apropriação da obra ao seu autor. O autor é o reputado pai e proprietário da obra [...]. Quanto ao Texto, lê-se sem a inscrição do Pai [...]. Nenhum “respeito” vital é, pois, devido ao Texto: ele pode ser quebrado; pode ser lido sem a garantia do Pai (Idid., p. 72).
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Assim, é absolutamente necessário que o passante tenha transmutado sua grande obra neurótica em um Texto, aquele em que a linguagem engendra a causa do desejo, demonstrando justamente “que o terror do desejo do qual se organiza a neurose, o que se chama defesa, não é senão conjuração de dar pena” (LACAN, 1971-72/2012, p. 166). Barthes finaliza: O Texto é antes de tudo (ou depois de tudo) essa longa operação através da qual um autor (um sujeito enunciador) descobre (ou faz o leitor descobrir) a inidentificabilidade de sua palavra e chega à substituição do eu falo pelo isso fala (BARTHES, 2012, p. 105). Poderíamos colocar em termos de grandezas inversamente proporcionais: quanto mais obra, menos Texto. Esse sujeito enunciador, o passante, traz sua longa operação à leitura do passador-leitor, atentando-o para essa inidentificabilidade de sua palavra, para o vazio que se encontra na origem, para o que não se presta, nem nunca se prestou, a ser identificável, em que pese todos os esforços da neurose. Antes de seguir, um outro pequeno apontamento sobre os cartéis do passe: se a escuta do Texto dos passadores-leitores suscita problemas de “classificação” (tragédia, romance, comédia, poesia?) é porque este sempre implica certa experiência do limite. Uma vez que o Texto, diz Barthes: [...] não é um objeto contável, é um campo metodológico onde se perseguem, segundo um movimento mais “einsteiniano” que “newtoniano”, o enunciado e a enunciação, o comentador e o comentante (Ibid., p. 103). Como escutar esse Texto que coloca-se exatamente atrás do limite da doxa? Se há Texto, ele é sempre paradoxal. Cabe a pergunta: em que pé se encontra nossa comunidade para suportar tais paradoxos? Volto ao passador-leitor, com Barthes: [...] uma leitura “verdadeira”, uma leitura que assumisse a sua afirmação, seria uma leitura louca, não no que ela inventasse de sentidos improváveis (contrassensos), não no que ela “delirasse”, mas por ela captar a multiplicidade simultânea dos sentidos, dos pontos de vista, das estruturas, como um espaço estendido fora das leis que proscrevem a contradição. (Ibid., p. 41 [Grifos meus]).
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Passador, um leitor
Cibele Barbará, em um texto publicado em Wunsch n. 14, testemunha de sua posição de passadora-leitora: [...] sentia como se carregasse em meu corpo uma série de afetos, de letras, de tons e sons que me impressionaram durante os encontros. Já não era algo da ordem da identificação e sim daquele lugar de leitor que algumas vezes experimentamos ao nos depararmos com um poema ou com uma música que nos tocam profundamente. (BARBARÁ, C. Testemunho a partir da experiência como passadora, http:// champlacanien.net/public/4/puWunsch.php?language=4&menu=1). Entrar nesse texto testemunho, escrever sua leitura não é de maneira alguma interpretá-lo livremente; é, principalmente, e drasticamente reconhecer ali que não há verdade da leitura. Cena inimaginável: ler um poema, um conto e passar a discutir, ainda que consigo mesmo, se algo deveria ter sido assim ou assado? Que tal detalhe pode ser verdade, mas esta outra frase não? Numa leitura sabemos que há “apenas verdade lúdica” e entramos nesse jogo com a mesma seriedade de uma criança enquanto brinca, deixando os afetos percorrerem o corpo, “ler é fazer nosso corpo trabalhar ao apelo dos signos do texto” (BARTHES, 2012, , p. 41). Não pode haver compreensão, entendimento do Texto testemunho, um passador-leitor aceita deixar-se tomar “por uma inversão dialética: finalmente, ele não decodifica, ele sobrecodifica, não decifra, produz, amontoa linguagens, deixa-se infinita e incansavelmente atravessar por elas: ele é essa travessia.” ( Ibid., p. 41).
referências bibliográficas BARBARÁ, C. Testemunho a partir da experiência como passadora. <http:// champlacanien.net/public/4/puWunsch.php?language=4&menu=1>, (último acesso em 18/02/2015). BARTHES, R. O rumor da língua. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. KRISTEVA, J. Introdução à Semanálise. São Paulo: Perspectiva, 2012. LACAN, J. (1967). Proposição de 9 de outubro de 1967. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, LACAN, J. (1967). Um procedimento para o passe. In: Opção Lacaniana, n. 18. São Paulo: abril 1997. LACAN, J. (1973). Intervenção na sessão de trabalho “Sobre o Passe”, 3/11/1973. Texto não estabelecido. LACAN, J. (1971-72). O Seminário, livro 19: ... ou pior. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
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resumo
Partindo de algumas referências lacanianas sobre o passador, a autora busca, em Roland Barthes, a possibilidade de expandir a definição de passador. Utilizandose da teoria barthesiana da leitura, que invoca uma forma ampliada de leitura, de uma imensa trama sonora — o rumor da língua — em que um não-sentido pode dar lugar a um sentido novo, liberto da história dos signos, a autora cria a figura do passador-leitor.
palavras-chave
Passe, passador, Barthes, leitor.
abstract
Departing from some Lacanian references about the passer, the author searches in Roland Barthes for the opportunity to expand the definition of passer. Through the Barthesian theory of reading, which invokes a broader form of reading, of an immense sound texture — the rumor of language — in which a non-sense can give way to a new sense, liberated from the history of signs, the author creates the figure of the passer-reader.
keywords
Pass, passer, Barthes, reader.
recebido 21/02/2015
aprovado 21/04/2015
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resenhas
Os paradoxos da repetição Paulo Marcos Rona “Os paradoxos da repetição” é uma coletânea. Uma coleção de textos independentes reunidos, porque assim foram “encomendados”, sob um mesmo conceito, o de repetição. É de comum acordo entre os autores que o tema interessa a mais de um campo de saber, e foi dentro de alguns desses campos que aqueles foram escolhidos para contribuir para uma visão que, desde o início, se propõe psicanalítica. Com efeito, Os paradoxos da repetição foi um ciclo de conferências realizadas no espaço cultural Contraponto, no ano de 2013, sob os auspícios de Dominique Fingermann que, no mesmo ano, conduzia um seminário no Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo, intitulado “A repetição na experiência analítica”. Assim, ainda que o convite, e a generosa contribuição dos conferencistas, proponha uma interlocução entre a psicanálise e alguns outros campos, nominalmente a filosofia, a literatura e a música, é um recorte psicanalítico naturalmente que orienta uma leitura dessa coletânea. Porém, é essencial que essa chave de leitura se mantenha na posição em que foi concebida, isto é, como pergunta. Algo do tipo: como vocês, que são de outros lugares, veem a repetição? Dessa forma, a iniciativa da organizadora é altamente louvável: 1) por efetivamente estabelecer essa interlocução com diversos campos, sendo a psicanálise não quem oferece um saber, mas quem pergunta por um; 2) por fazer a psicanálise se voltar a diferentes saberes, incluindo diferentes perspectivas da própria psicanálise, e exercitar aquilo que é seu método: a escuta; 3) por proporcionar, nessas mesmas linhas, um evento, de cunho político até, baseado em um encontro com a diversidade e aberto à surpresa de diferentes sotaques e dizeres e, 4) por, generosamente compilar parte do produto desses encontros nessa coletânea. Parte, somente, porque dos encontros que se deram de forma real, em um tempo em que o virtual tem tanto espaço, neste livro somente se pôde recolher alguma coisa da experiência que nem mesmo as gravações registradas na internet podem dar conta. Mesmo assim, isso não é pouco. Dois dos artigos aí incluídos são de autoria de Dominique Fingermann, apresentando o ponto a partir do qual se poderia estabelecer um começo para a leitura dos demais. O capítulo 9, “Repetição e experiência psicanalítica”, apresenta uma prestação de contas do seminário realizado e que deu ensejo a esta publicação. Debatendo com outro seminário, um de Colette Soler, de mesmo título, a autora percorre o caminho do conceito de repetição em suas transmutações desde Freud, em duas parcelas de suas elaborações, até Lacan, também balizando dois
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RONA, Paulo Marcos
momentos significativos de sua teoria. A autora mostra como Freud e Lacan identificaram a repetição primeiramente como partícipe e produto do inconsciente simbolicamente compreendido para, defrontados com problemas clínicos, elevá -la a conceito mais fundante, seja como Wiederholungzwang, derivado da pulsão de morte, além do princípio de prazer, em Freud, seja como encontro (sempre) falho com o real, além da supremacia simbólica, causa do sujeito e conceito fundamental, em Lacan. A psicanalista discute essa transformação teórica em suas consequências clínicas, não como “demônio a ser exorcizado”, mas como necessidade lógica a ser enfrentada, como incurável estrutural que a topologia da prática psicanalítica faria passar do estatuto da impotência para aquele da impossibilidade. Decorrente dessa demonstração, em ato, a fantasia perderia seu sentido de interpretação neurótica, abrindo espaço para o acaso, para a contingência, para o que poderia se apresentar como novo. “Uma análise pode chegar nesse ponto de passe, de extração de seu alcance ético, lógico e poético, mais além de sua redundância patética” (p. 193). “Desejo e repetição”, o segundo artigo de Dominique Fingerman (capítulo 10), percorre por vias um pouco diferentes essas trilhas freudo-lacanianas, mas agora com a inclusão de considerações sobre o desejo, tanto em Freud como em Lacan. O desejo baliza, nesse texto, a mudança teórica dos dois psicanalistas de referência, indo da fixação do sintoma como realização simbólica do desejo, e por isso repetida, para seu avesso como determinação do desejo a partir da repetição fundante do sujeito. “Podemos, portanto, articular o desejo como efeito da repetição e a repetição como efeito do Dizer” (p. 207). À tríade Dizer — Repetição — Desejo, a autora parafraseia ENCORE. Marguerite Duras é então convidada para a “dança do encore” num belo esforço de encenação do pas-de-deux repetição e desejo. Suplementarmente, nos dois textos, Kierkegaard, com sua ideia de reprise e retomada, assim como Nietzsche, com a de eterno retorno, também são citados, pela via também de Lacan, o que dá o tom para os demais autores convidados. Por suposto, neste convite, não se trata de ratificar qualquer teoria psicanalítica, de Freud ou de Lacan. Encontrar semelhanças entre as formulações extraídas de filósofos e as de psicanalistas não promove os primeiros pelo aval dos últimos, nem esses pela anuência dos primeiros. Tratemos de não reencontrar a teoria de Lacan, ou a de Freud, no pensamento de Nietzsche, Kierkegaard ou Deleuze. Ouçamos o que esses, nas palavras dos autores, têm a dizer sobre o tema que nos é comum, a repetição, surpreendendo-nos, seja com as semelhanças, seja com as diferenças. De Nietzsche e o eterno retorno, escutaremos, por exemplo, que é a utopia mais íntima do autor, o primeiro movimento puramente afirmativo no lugar de um
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começar, um novo começo, um santo dizer sim, gesto puro e sem medida que aspira a uma ressurreição permanente no interior de uma imanência. Trata-se de “dar à própria vida a forma de uma obra de arte, de tal maneira que se possa viver sem se arrepender de nenhum instante” (p. 23). Eticamente, que é somente no momento em que ser sujeito implica ser responsável, sem poder de nenhuma forma se remeter a alguma outra instância, teológica ou cosmológica, que se abre a dimensão do instante que se quer eterno. Naturalmente, os passos dos filósofos Juliano Pessanha e Oswaldo Giacoia Júnior, que nos abrem generosamente as portas de Nietzcshe, são mais lentos e mais delicados que este abrupto convite à leitura. À paciência didática de Giacoia alia-se o escrito extremamente original de Juliano Pessanha, com um depoimento de Nietzsche em primeira pessoa (!), autorizado, segundo o próprio autor, pela presença de uma “ferida similar”, a qual promoveria, por isso mesmo, uma “leitura dionisiana”. Com um tom cheio de audácia, a repetição ganha nova forma nessa espécie de testemunho. De Kierkegaard, que o mesmo Oswaldo Giacoia Júnior, mas também Vinícius Castro Soares, igualmente filósofo e pesquisador da obra do colega dinamarquês, nos apresentam, lemos que a repetição se torna retomada (literalmente Wieder-holung), repetição que, essa, faz abandonar as certezas e explicações abrindo possibilidades para o novo, seja o que “a vida graciosamente dá” (p. 35). “Essa repetição é o que permite um tornar-se Si Próprio, um advir àquilo que inconscientemente se é” (p. 36). Se aí ouvimos a ressonância com o Wo Es war sol Ich werden de Freud, ou de Lacan, não é porque interpretamos Kierkegaard à luz da psicanálise, mas, justamente ao contrário, porque percebemos que a interpretação do filósofo nos abre os ouvidos, seja com notas ressonantes ou dissonantes. Outra vez, com vagar e clareza, vemos aparecer na repetição não o diabólico retorno do mesmo, da mesma tentativa frustrada de se encontrar o objeto, do mesmo fracasso em se fechar a brecha entre o reviver e o rememorar, mas a possibilidade do infinito das infinitas possibilidades. Desde que essa retomada tenha como condição o fracasso da experiência, a frustração de não se conseguir restabelecer o passado pela tentativa de repetição, em um gesto radical, “uma espécie de mortificação simbólica do indivíduo” (p. 225). A filosofia dá ainda sua contribuição na palavra de Deleuze, na fala de Luiz B. L. Orlandi, outro especialista. O filósofo destaca, com generosa modéstia e poesia, que a repetição tem algo a ver com o tempo presente na vida das pessoas, impondo uma estranheza de um encontro paradoxal, que ao repetir o aparentemente mesmo já a faz, a repetição, não mesma. Vemos repetir-se o problema do surgimento do novo e Deleuze, autor de Différence et répétition, é acompanhado nesse movimento, mas neste caso, com nova perspectiva: por meio de uma teoria do tempo. Naturalmente, damo-nos conta graças ao autor, a repetição que repete o objeto, mas que não repete quem a contempla exige uma doutrina do tempo e
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RONA, Paulo Marcos
dos afetos, e é por essa via que uma das formas de repetição fornece a conclusão “o absolutamente novo, é, por sua vez, apenas repetição (...) desta vez por excesso, a repetição do futuro como eterno retorno” (p. 103). Michel Bousseyroux, psicanalista, reúne Freud, Lacan, Nietzsche, Kierkegaard e Blanchot (!) em sua discussão sobre a repetição. Porém, a história de Blanchot e a “felicidade de ser quase fuzilado” rouba a cena, apresentando o efeito também passível de ser libertador de um encontro falho com o Real, o da (própria) morte, no caso. Literatura também aparece nas mãos de Manuel da Costa Pinto e Camus. Pintura, nos pincéis de Sérgio Fingermann e Monet, e música, no ouvido de José Miguel Wisnik, recitando Gregório de Matos e Bandeira ou cantarolando Beethoven, o que incrementa as perspectivas sobre a repetição nessa coletânea. Seja como um tema repetido, o do testemunho de uma execução pelo pai de Camus, que se repete por meio de diversas obras ao longo de muitos anos, por exemplo. Cena que nem ao menos foi presenciada, mas cujo relato transmitido pela mãe do autor dá provas do efeito de um encontro insuportável e paradoxalmente criador. Criador que “não escreveu senão o mesmo livro indefinidamente recomeçado” (p. 90). Repetição de uma mesma cena, a Catedral de Rouen, em 28 telas, por Monet, série na qual cada tela guarda a memória do conjunto. Um múltiplo, portanto, repetitivo, no entanto, único, por fim, fazendo com que a repetição do tema coloque não mais a Catedral em primeiro plano e, com efeito, nem o pintor, mas o próprio ato de pintar, como reconhece o artista. E também na música, na qual o tempo de repetição reaparece, na música do soneto, no qual quando o som é repetido, o significado já é outro. Também na música rítmica, percussiva, ou na tonal, explorada à (aparente) exaustão quanto às modalidades de repetição. Original e essencial neste livro a presença de um CD que fala e mostra o que diz. A heterogeneidade das perspectivas prossegue com um paralelo traçado magistralmente (trabalho de mestre) por Christian Dunker, psicanalista, entre Freud e Darwin, propondo a repetição como conceito que não supõe a identidade primeira do repetido. Em (demasiado) poucas palavras, chega-se que a pulsão de morte freudiana, não conduz ao fim da vida, mas é seu começo, e que, com Darwin, pode-se defender que a pulsão de morte, coligação entre contingência da compulsão à repetição (Wiederholungszang) e do retorno (Wiederkehr), pode ser apresentada como instrumento de produção de variabilidade, e não do mesmo, portanto. A importância das narrativas, anteriormente aberta por Camus, reaparece em outra perspectiva que uma psicanalista nos dá: Maria Rita Kehl. Aqui, é a história que ganha proeminência e depois de Freud, é Walter Benjamin quem é invocado para sustentar que a narrativa escutada e recontada permita que alguém tanto pertença a uma comunidade, levando a história adiante, como se perceba herdei-
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ro de uma tradição, trazendo consigo uma história. Rede simbólica que se tece para frente e para trás. O rompimento dessa rede, nominalmente da tradicional, favorece a emergência da barbárie, seja do uso de armas de destruição maciça, na Primeira Guerra Mundial, pela perda das referências pela quais os europeus se reconheciam como pertencentes a um mesmo patrimônio cultural, seja da iniciativa inominável dos campos de extermínio durante a Segunda Guerra Mundial, pelo rompimento do elo com as gerações passadas. Porém, também na repetição da barbárie que repete execuções sumárias, assassinatos e ameaças típicas do período ditatorial de nossa história, pela ausência de uma narrativa forte e bem fundamentada que transforme os restos da vivência traumática experimentada. Enfim, mas não necessariamente nesta ordem, escolhida meramente para fins expositivos, Vladimir Safatle, novamente um filósofo, e um leitor criterioso de Lacan, apresenta uma construção do próprio conceito lacaniano de repetição. Os dois momentos de Lacan também aqui se apresentam e, é claro, Kierkegaard. Modo de gozo, a repetição é reiterada como motivada por algo que não se deixa subsumir pela lógica da maximização do prazer e afastamento do desprazer. Gozo, no entanto, que pode se servir de objetos que quanto mais se repetem, mais revelam sua contingência, que por serem contingentes podem ser desperdiçados, “pois desperdiçar algo é uma forma de usá-lo livremente”, porque “na verdade, só se goza o que se desperdiça, só se usa livremente o que pode ser desperdiçado” (p. 77). Lógica avessa ao fantasma do qual a repetição tem, portanto, o poder de livrar. Para concluir, de fato, os textos não aparecem nesta ordem, mas poderia esta ser uma, diferente da impressa, proposta para a leitura, que não deixa de ressaltar o que neles se repete e deles se decanta, o que eles interpretam e reinterpretam, e como suas frequências, apesar de sintônicas, também nos dão a curiosa impressão de um batimento.
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Amor, Desejo e Gozo Elaine Foguel Como resenhar uma coletânea de artigos que se teve oportunidade de organizar? Naturalmente, apresentando-a e esclarecendo o modo como foi estruturado o volume, ao tempo em que se articula a escolha triádica dos temas, para então chegar a cada artigo, um a um. Centrada na articulação dos temas amor, desejo e gozo , a coletânea 2014 é fruto do trabalho dos membros do Campo Psicanalítico de Salvador e de Ilhéus e dos convidados que compareceram à instituição em Salvador para enriquecer os debates ao longo de 2013. No entanto, a maior parte dos trabalhos é fruto da XIII Jornada do Campo Psicanalítico de Salvador e X Jornada da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano Brasil. Os artigos foram agrupados por afinidade de temas, colocando lado a lado aqueles que se originaram das Jornadas acima referidas e os que foram resultado de trabalhos apresentados nos Fóruns da instituição. Além de ser uma tríade, desejo, gozo e amor — escrita aqui nesta ordem —, comporta uma articulação tridimensional, pois os termos se enlaçam de forma borromeana, implicando que funcionam juntos no ser falante. O desejo foi o primeiro que apontou na teoria psicanalítica, quando Freud publicou a teoria dos sonhos na virada do século, demonstrando a existência de um desejo inconsciente, que causa e move o sujeito e que é, se se pode afirmar, homeomorfo ao inconsciente. O desejo faz a cadeia simbólica mover-se: o desejo inconsciente é a marca registrada de Sigmund Freud na metapsicologia. O gozo, Freud o localiza na pulsão de morte e nas incidências do supereu, principalmente a partir dos anos 1920, quando se depara com a compulsão à repetição dos sintomas e com as questões relativas ao fim da análise. Quanto ao amor, a contribuição freudiana é incontornável: o amor de transferência e suas complexidades não o fazem desistir de seu método, mas, ao contrário, é usado a favor do tratamento, ao ser conjugado com a resistência à análise, nos artigos técnicos. Não há descontinuidade entre esses fundamentos de Freud e os desenvolvimentos de Lacan, como se verá ao longo da coletânea. Lacan mostra que o desejo se constitui na dialética da demanda do Outro e o sujeito permanece a ele alienado: desejo insatisfeito, desejo impossível e desejo prevenido definem as estruturas da neurose e estão entre os sofrimentos da demanda de análise. O gozo responde no real, o impossível, quando a angústia invade o ser, fora do simbólico e do imaginário. O campo do gozo é a marca registrada de Lacan, como está desenvolvido em muitos dos artigos desta coletânea. O amor não tem uma só via no ensino de
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Lacan; no entanto, a dos últimos anos dá um sentido especial à escuta do psicanalista: o amor é suplemento à falta da relação sexual, é o que torna possível o laço entre os humanos, o que faculta suportar o desamparo da falta absoluta no Outro. Este livro está dividido em seis seções, encabeçadas pela conferência Os nomes do pai segundo Lacan, proferida por Clarice Gatto na Jornada e que tem, entre outros, o mérito de fazer dialogar Freud e Lacan a respeito da função do pai no sujeito, desde a mais precoce constituição. Rastreia os registros real, simbólico e imaginário a partir das primeiras formulações e brinda o leitor com ampla revisão do registro simbólico da linguagem, para bem esclarecer a função da metáfora no inconsciente, quando então situa e comenta o matema do Nome do Pai. Passa a tratar das incidências da expulsão da metáfora paterna no psiquismo, a saber, a psicose. O passo seguinte é considerar os registros enodados de forma borromeana, incluindo o quarto laço como função paterna que os amarra, tal como Lacan apresentou nos seminários a partir dos anos 1970. Além de oferecer percurso rigoroso, o escrito é permeado de fragmentos de relatos clínicos, que conferem ao trabalho consistência e coerência clínica. A primeira seção, Estruturas do significante, congrega os artigos que tratam primordialmente das formações clínicas na contemporaneidade. A seguinte, Variantes do gozo, elenca as contribuições que examinam, entre outros, os efeitos do gozo no sintoma e na direção do tratamento. A terceira parte, Do amor, surpreende pela diversidade das abordagens feitas ao tema, transmitindo, cada artigo, a complexidade e o cuidado que o assunto exige. Do desejo completa a trilogia do título da coletânea, trazendo os artigos que declinam os vários aspectos desse fundamento do inconsciente. Mais duas seções se seguem: Diálogos com a poética, que traz artigos em que os autores se servem tanto da literatura, como de estudos sobre a linguagem para referenciar à teoria psicanalítica, e Diálogos com a educação, que discute a relação possível entre educação e recalque, em Freud e Lacan. Em Dos impasses da maternidade a uma verdade indizível: uma leitura psicanalítica sobre a feminilidade, Alessandra Costa Meira defende que a maternidade e a gestação passam pelo registro das fantasias e desejos inconscientes que são, na maior parte das vezes, negligenciados pela medicina da procriação, provocando um distanciamento prejudicial entre a vontade consciente e o desejo inconsciente de gestar um filho. A autora examina essas discrepâncias por meio de casos clínicos que abordam as questões da feminilidade resultantes das identificações imaginárias egoicas processadas pelo trinômio falo-falta-desejo. É a partir da falta que uma mulher se oferece ao desejo de um homem. Fornecem-se, desta forma, dados indispensáveis para uma escuta psicanalítica nas dificuldades da procriação. Caio Mattos Filho, em O cristal da fobia: um sintoma tão à flor do significante,
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situa as incidências da castração nas neuroses, principalmente na fobia, na qual o significante media a vacilação do nome do pai, tal como se pode localizar no caso Hans com o significante cavalo. Na fobia, o significante cristalizado (metáfora muito oportuna, inspirada na obra de Sthendal) impede o deslocamento do objeto de desejo, ao tempo em que limita o gozo e cerca a angústia, suplementando a função da castração. Em O luto e seus destinos na atualidade, Cristiane Oliveira trata o tema da medicalização do enlutado. Após debater e rebater a atual nosologia psiquiátrica, a autora introduz o depoimento de Roland Barthes em Diário de luto, para iluminar as concepções de Freud e de Lacan e defender que o luto demanda um tempo que não deve ser nem ignorado, nem abreviado: o luto é um doloroso trabalho psíquico de desvinculação pulsional, durante o qual o desejo se encontra inibido. O trabalho do luto é a tentativa de restabelecer o lugar do objeto a que ficou preenchido com a imagem do objeto perdido, tamponando o espaço desejante do sujeito. Esta importante elaboração do luto dá ensejo a que o sujeito se reinvente, sem cair na negação maníaca, ou na culpa do desejo de continuar vivendo. Madaleine Reis parte da condição essencial da psicose, qual seja, a exclusão de um significante primordial — a foraclusão do nome do pai — pelo fracasso da metáfora paterna, testemunhando em A psicose e o gozo do Outro seu interesse clínico e tempo de pesquisa acerca dessa estrutura. Se o Outro na psicose não é barrado, o sujeito fica à mercê do gozo absoluto, um sujeito objetalizado. A autora examina as diferenças entre paranoia e esquizofrenia, esclarecendo as questões da sexuação na psicose e analisando em detalhes os efeitos da afirmação de Lacan “o psicótico faz a mulher existir”. Sabrina Gomes Camargo em Homem dos Lobos: a incerteza diagnóstica de um caso paradigmático, pesquisa as querelas em torno da classificação do caso clínico de Freud, a partir da nosologia psiquiátrica contemporânea, sublinhando também as discordâncias entre os psicanalistas a respeito do paciente de Freud. Destaca que o criador da psicanálise escreveu e reescreveu sobre este caso até seus últimos artigos. A autora defende que uma das dificuldades de elaborar um diagnóstico é a redução sintoma-doença, que deve ser evitada pelos analistas. Chama a atenção para os debates pós-lacanianos em torno de Serguei Pankejeff, que levaram a comunidade analítica a tender para um diagnóstico de psicose, e propõe a retomada da discussão diante da riqueza e da incerteza que o historial suscita. Taya Soledade, em seu artigo A fala que cai — a gramática do infantil, trabalha uma versão original da fala, que tem sido seu objeto de estudo, ao aproximar o construto da linguagem egocêntrica de Piaget à linguagem com a qual a psicanálise opera, que não visa à comunicação. Abordando o fenômeno da fala que cai, equivalente lógico da alíngua, a autora desenvolve a tese segundo a qual, com o advento do
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recalque, a fala cai e é substituída pelo sentido; no entanto, quando a operação do recalque não ocorre, também a fala egocêntrica não se organiza, a fala não cai, fica congelada, como se constata no autismo e nas psicoses na infância. Vera Lúcia Tourinho Edington e Andrea Hortélio Fernandes, no artigo O menino do pacote: uma leitura psicanalítica sobre a medicalização da infância, mostram pelo relato de um caso clínico de um menino que “carregava” um diagnóstico de DTAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade), como foi possível tratar essa criança por meio do dispositivo analítico. Com isso, o sujeito que se encontrava alienado aos outros parentais, pôde, afinal, se construir e se manifestar como sujeito incluído no laço social. O percurso do artigo abrange uma pesquisa sobre a constituição do sujeito e fornece subsídios indispensáveis para o arejamento do debate dos diagnósticos psiquiátricos na infância. No seu artigo Gozo: um apetite do desejo de morte para o sujeito, Aurélio Souza afirma que o campo da linguagem é constante ao longo do ensino de Lacan, embora não se confunda com a linguagem da teoria da comunicação, mas é aquela que leva em conta a dimensão real, polifônica, das letras e significantes, e que foi denominada alíngua por Lacan. A alíngua intervém no organismo, produzindo alterações reais, simbólicas e imaginárias fundamentais na constituição do sujeito, um ser de linguagem e sexo. O autor privilegia os efeitos reais da alíngua, articulando desejo, amor e gozo com os três registros da linguagem, RSI, na mostração borromeana: localiza o gozo no real, o desejo no simbólico, e amor, ódio e ignorância no imaginário. Jairo Gerbase, no seu escrito A besteira, afirma que a besteira é correlata de S1, o inconsciente, produzido pelo discurso do analista ao interrogar o sujeito ($) no dispositivo da análise. Ora, não há escrita da relação sexual no inconsciente, e não há relação possível entre um sujeito não todo fálico e um sujeito escrito na ordem fálica. Essas asserções lógicas afastam a hipótese de que a anatomia é o destino e convocam Freud a determinar que só existe uma libido, a masculina. O mal-entendido provém desta estrutura, e S1 é um significante besta. Dessas premissas, Gerbase discorre sobre o significante como substância gozante, retirando do exposto consequências éticas: “Procuro me desvencilhar da ideia de que analisar é atingir a coisa”. Jamile Abdala, no artigo O supereu e seus efeitos de gozo, examina as incidências do supereu na neurose obsessiva e na melancolia na perspectiva de Lacan, que tomou a voz como objeto a, o qual aparece como presença real, destacada do simbólico e do imaginário, e que vocifera, revelando a inconsistência do Outro. A autora percorre textos-chave na obra do autor sobre o tema, principalmente o Seminário da Angústia, em que privilegia o exemplo do shofar como o som que tenta preencher a ausência de Deus, uma voz que provoca o afeto de angústia.
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Apresenta um caso de sua própria clínica no qual a procrastinação é a forma de gozo que se repete, e que se conjuga com outros dois significantes que começam com a letra p: pensamento e pior. Em O que Lacan quis dizer com o gozo do Outro?, Marcus do Rio Teixeira elabora um diálogo valioso entre o quadro da sexuação e os registros do gozo fálico e gozo do Outro, incluindo nesta construção a lógica do impossível que comanda o registro real da linguagem. Cada momento do desenvolvimento do artigo é acompanhado por referências esclarecedoras e precisas, que possibilitam ao leitor uma melhor compreensão da trajetória do autor, assim como acesso ao estudo das questões relevantes tratadas no artigo. Amélia Almeida se detém, no seu trabalho Padecimentos do amor, num aspecto particular deste afeto, o luto decorrente da perda pela morte do objeto de amor ou pelo fim da relação amorosa. Em ambas as situações, ao sofrimento da perda da pessoa se acrescenta a perda do lugar subjetivo que era ocupado junto àquele que se foi. O luto é um período de doloroso trabalho psíquico e pode se tornar patológico quando o desligamento gradual não ocorre, dando lugar à melancolia. A autora examina quatro situações: o luto propriamente dito, a melancolia, os episódios depressivos, e o desenvolvimento sobre a posição depressiva na obra de Maria Rita Kehl. Célia Fiamenghi parte da obra de Sade, Os crimes do amor, e trabalha em duas vertentes: por um lado, as questões do amor, da falta e da busca do saber inconsciente na neurose e, por outro, a crença do saber sobre o gozo do Outro na perversão. Na obra sadeana, a fraqueza máxima é amar; o amor é uma prisão do corpo que causa dor física e moral. É a perda de si mesmo, uma insanidade. Na outra vertente, na neurose, as incidências da falta no homem e na mulher determinam, ao mesmo tempo, a falta de complementaridade na relação sexual e a busca do amor. Para aceder ao amor, é necessário passar pela castração. Em seu escrito Algumas considerações sobre o aforismo lacaniano: “Só o amor permite ao gozo condescender ao desejo”, José Antônio Pereira da Silva articula amor, desejo e gozo por meio da análise do objeto a no Seminário da Angústia. O objeto a é o topos da falta que se produz na operação de castração; o amor é a sublimação do desejo na cultura, sob a condição de o sujeito se aceitar como falta, isto é, homólogo ao objeto a. O desejo, por sua vez, é a invasão do desejo do Outro, exatamente no lugar onde o objeto a se situa, obturando o vazio necessário da castração e produzindo a angústia que precipita o sujeito no campo do gozo. Maria de Fátima Alves Pereira, em A desmedida do amor, trabalha a questão amorosa pela via da devastação, principalmente na feminilidade. É pela via do amor que se estabelece uma conexão com o Outro; o amor faz crer que existe o gozo do Outro sexo, suplementando a impossibilidade da relação sexual. Assim,
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o amor, na sua vertente real, é contingente e necessário: ele não cessa de se escrever. Ocorre, em alguns casos, uma desmedida do amor: se a demanda de amor não é correspondida por um parceiro, a devastação e a destruição são ilimitadas. No potlach amoroso, por exemplo, a mulher se despoja de seus bens em nome do amor de um homem e, se este se retira, a devastação pode levar à morte. Também no amor materno pode ocorrer uma devastação da criança diante da mãe como Outro absoluto. O exemplo universal da desmedida do amor é Medeia, personagem trágica que mata seus próprios filhos para se vingar da traição sofrida. É o gozo feminino não castrado, na sua expressão máxima. Olga Sá Ferreira, em O outro do amor, demarca o antagonismo entre as posições platônica e aristotélica do bem e da psicanálise, nas quais o cerne do ser não está no bem, nem no amor, mas na agressividade e na pulsão de morte. O amor compareceu à cena analítica desde os primórdios da psicanálise, como se vê no tratamento de Anna O. Lacan alerta que o amor é um fato cultural, como se pode observar nas diferentes formas de amar ao longo do tempo. A fonte do amor — a pulsão sexual — é comum a todas as incidências amorosas. Some-se a isso seu caráter ambivalente, uma vez que a ligação do sujeito com seu objeto é impregnada desta dualidade. A constituição do sujeito desejante, alienado ao desejo do Outro, é a fonte da ambivalência. Isso se aplica de forma complexa ao par amoroso, amante/amado, em que cada um é sujeito e objeto amado ao mesmo tempo. No seu trabalho, O desejo do analista decanta-se da experiência de análise, Andréa Hortélio Fernandes defende que um desejo inédito, o desejo de analista, só pode aparecer numa psicanálise. A passagem de analisando para analista corresponde a uma mudança discursiva na transferência, sob o signo do amor. Além disso, para abordar de outra forma o desejo do analista, o dispositivo do passe relança os efeitos de afeto de alíngua — que nunca se diz toda —, efeitos que vão reaparecer como testemunho do que se atravessou na análise. Para esclarecer seus desenvolvimentos neste trabalho, a autora apresenta o testemunho do passe de Elisabeth Leturgie. Em Desejo, Angélia Teixeira percorre as “avenidas do desejo”, nas suas três ocorrências: o desejo do Outro, o objeto causa de desejo (objeto a), e o desejo do analista. O desejo inconsciente — do Outro — é invenção e conquista de Freud, que subverte a ética da moral e condiciona o desejo do analista. O objeto causa do desejo, invenção lacaniana, assume diferentes aspectos ao longo do seu ensino: objeto da pulsão nas operações de falta, objeto a no matema do fantasma, lugar de semblante no discurso do analista. Nesse percurso, a autora explicita as questões de saber, desejo e gozo por meio da teoria dos discursos. Sublinhando a ética do desejo, Angélia Teixeira conclama os analistas para sua contínua responsabilidade na contemporaneidade.
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Ida Freitas, em Ao pé da letra, trabalha o significante lacaniano e seus funcionamentos metafórico e metonímico, para demonstrar que a linguagem porta uma falta que impede que o desejo inconsciente seja totalmente articulado. O modo possível de uma psicanálise dele se acercar é tomá-lo ao pé da letra. Este desenvolvimento leva ao efeito de escrita no real que o tratamento deve produzir. A autora demonstra, por meio de um exemplo clínico de Serge Leclaire, o sonho do unicórnio, o modo como o significante se desloca e se condensa, revelando e criando sentidos. Raquel Prudente, em O desejo de saber do analista: a travessia do centauro, utiliza este mito, criatura metade homem, metade cavalo, para aludir ao ser falante que, para ascender ao estatuto de ser de desejo — sujeito dividido —, deve se submeter à dialética da demanda e do desejo do Outro, perdendo a conexão com o registro da necessidade. Esta constituição condiciona uma falta no saber que afeta, a um só tempo, não só as possibilidades do humano quanto ao seu desejo, mas o lugar do desejo do analista, que só se autoriza pela sua própria análise. O escrito lírico de Sonia Campos Magalhães, Desejo de bem-dizer, mostra como o conto da literatura infantil A metade do frango e seu equivalente brasileiro O pinto pelado podem ser interpretados como alusões à estrutura do desejo inconsciente e também à coragem de sustentá-lo. Enfatiza a autora que a literatura é um meio de veicular a arte de bem dizer sobre o desejo inconsciente. A estrutura desejante se encontra em todos, mas é singular para cada um dos sujeitos, implicando que a ética da psicanálise se dirige à singularidade do falasser. Em seu artigo, O bonde chamado desejo não circula mais... só a Van filosofia, Soraya Carvalho se atém à modalidade de sofrimento das depressões, nas quais o sujeito se fixa num gozo desmedido, abdicando do desejo e do objeto que lhe causa. Quando o sujeito cede de seu desejo, a depressão faz sinal de excesso de gozo; nesse estado, o falante se demite da ética do bem dizer, abdicando da vida e abraçando a morte. Porém, se nas depressões o desejo se encontra extraviado, no analista o desejo é advertido e orientado para fazer falar do real. Desta forma, numa psicanálise, a aposta é que seja possível para o sujeito encontrar no gozo a causa de seu desejo. Ângela Rabelo, no seu texto Acerca do deslumbramento de M. Duras, trabalha o tema do amor na psicanálise e na literatura a partir da obra de Marguerite Duras O deslumbramento de Lol. V. Stein, sublinhando o feminino, o que encontra ressonâncias na teoria de Jacques Lacan, principalmente no que toca à vacuidade do corpo. A autora ressalta um contraponto importante entre a personagem Lol V. Stein e a escritora: enquanto Lol vive uma experiência de devastação sem limites, caindo num vácuo interior e corporal diante da perda do amor e diante da imagem da outra mulher, a escritora, segundo sua amiga e biógrafa, consegue, pelo
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FOGUEL, Eliane
exercício da escrita, construir-se por meio das suas novelas e de seus personagens, ao ponto de produzir a sensação de doloroso arrebatamento no leitor. Elaine Starosta Foguel retoma um tema que lhe é caro, o da metáfora, realizando em Significante ou letra: o cimento da metáfora uma incursão pela obra de Fenollosa e Pound sobre a escrita chinesa como meio poético. Esta é a ocasião de verificar a afirmação desses autores, segundo a qual toda a delicada substância da linguagem se edifica sobre os cimentos da metáfora, e de acompanhar o ensino de Jacques Lacan a respeito do significante e da letra. O estudo dá oportunidade ao leitor de verificar, por meio de fragmento da clínica, a hipótese de que as metáforas produzidas ao longo do tratamento constituam o cimento da ficção, os novos significantes e letras que fazem borda ao gozo do Outro. José Solon de Queiroz, em Nelson Rodrigues: um traço que se a-$ina feminino, articula literatura e psicanálise, defendendo que assinar é deixar uma marca de autoria. Questiona se isto vale para os heterônimos, mais especificamente em Nelson Rodrigues, quando o autor se faz passar por autora: Suzana Flag. As considerações que a psicanálise pode aportar passam tanto pela constituição do sujeito mulher de acordo com as fórmulas da sexuação — que vão subsidiar a afirmação de que a anatomia não define o destino sexual de uma escrita —, quanto pelas contribuições de Lacan em seu artigo Lituraterre, a partir do qual sustenta que a escrita faz borda ao real, impossível de ser todo dito. O diálogo que Beatriz Elena Maya Restrepo estabelece entre a psicanálise e a educação, em O sujeito do inconsciente não se educa, possibilita ao leitor acompanhar na obra freudiana o pensamento a respeito do que pode a psicanálise em relação à educação das crianças. Distanciando-se do ideal de Sigmund Freud, a autora recorre a Jacques Lacan para articular que a educação e a família não são responsáveis pela repressão e pelo sintoma. Trata-se antes de afirmar que a repressão é estrutural, na medida em que introduz a linguagem que apaga o próprio sujeito, levando o falasser a inventar algo que explique o real. A coletânea Amor, desejo e gozo, assim como seu título, é pluridimensional e constitui no seu conjunto um estudo consistente sobre os temas, na medida em que trabalha seus fundamentos, suas consequências e impasses clínicos, assim como a ética da clínica analítica.
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As homossexualidades na Psicanálise: na história de sua despatologização Raul Albino Pacheco Nenhum saber é neutro em relação ao que acontece no campo social, na medida em que os conflitos que opõem as classes, os grupos, as gerações e os sexos fazemse presentes também nos campos de saber. Não são apenas os poderes político e econômico que se distribuem desigualmente, sendo fácil constatar que a isso se soma também, de maneira correlacionada, a desigualdade na distribuição do poder simbólico. E, no que diz respeito aos significantes articulados ao sexual, não é necessário perder-se muito tempo buscando-se novos fatos ou argumentos, tal é a massa de evidências e demonstrações já trazidas à luz, que corroboram esta obviedade histórica. Trata-se de algo que atravessa os tempos e sabemos que o mesmo ventre que gestou a democracia não deixou de oferecer alojamento para a segregação: só os varões eram considerados cidadãos na Grécia antiga, estando excluídos da condição de cidadania as mulheres e os escravos. E pode-se reunir a quantidade de evidência que se desejar, para se mostrar que o poder circula por meio de significantes articulados às identidades sociais sexuais. Esta correlação histórica articulando os significantes sexuais e o poder atingiu (e ainda atinge) o que diz respeito às maneiras de os sujeitos se posicionarem em suas práticas eróticas e preferências sexuais, como se observa nos diferentes graus de resistência e oposição às práticas não heterossexuais, ao longo dos tempos. E que vão da simples ridicularização e menosprezo até a criminalização e punição social mais violenta, chegando à tortura e assassinato: seja a legal e institucionalmente prescrita, seja a que escapa à legitimação da legislação (mas ainda assim tolerada, senão aprovada). Como diz Anderson Schirmer em seu projeto de doutorado (em andamento no Núcleo de Pesquisa, Psicanálise e Sociedade da PUCSP), que investiga a hipótese de que a homofobia constitui um véu para a impossibilidade da relação sexual: “Há na hipótese da legitimidade da diversidade sexual uma ideia de ameaça à fantasia de uma perfeita e natural ordem do mundo sexual, que, derrubada, levaria o mundo ao caos.” E os campos de saber sempre elegeram o tema do sexual como âmbito sobre
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o qual se pronunciar e, mais do que isso, sobre o qual legislar. Sábios, cientistas e sacerdotes sempre fizeram disso objeto de seus discursos, seja para municiar amos, governantes e instituições com os aparatos simbólicos de sustentação dos aparelhamentos de gozo instituídos, seja, inversamente (para alívio dos que ainda esperam uma contribuição relevante dessa fonte), para trazer uma indagação ou crítica sobre o establishment, como é o caso de Freud, Foucault e Lacan. Acredito não incorrer em erro ao afirmar que a Psiquiatria, articulada à Ciência da Modernidade, alinhou-se mais vezes com uma doxa social segregacionista e normatizadora (uma orto/doxia), do que com uma visão progressista, transformadora e de tolerância em relação à multiplicidade das identificações sexuais e das posições e estratégias de gozo dos sujeitos. E, com tanto maior razão, o mesmo pode ser dito das religiões, ainda que tenhamos que fazer justiça ao fato de que existem algumas mais tolerantes, como é o caso de certas religiões afro-brasileiras. Cabe uma pergunta: e a psicanálise, como tem se colocado? O que tem ela a dizer a respeito do assunto? Para fazer justiça aos fatos, a resposta não pode ser absoluta nem universalizante. Embora já em Freud encontremos uma concepção despatologizante das escolhas homossexuais de objeto, as proposições ideológicas estigmatizantes não estão de forma alguma ausentes da literatura psicanalítica. Em uma tese de doutorado defendida no Núcleo de Pesquisa Psicanálise e Sociedade da PUCSP, posteriormente editada como livro — “Homossexualidade e perversão na Psicanálise: uma resposta aos Gay & Lesbians Studies” (2005) —, Graciela Barbero mostrou a presença de uma concepção de desvio da norma e a proposição de uma conexão entre práticas homossexuais e perversão, em diversos autores psicanalíticos. Daí a relevância de indagarmos os membros do nosso próprio campo — nossos colegas psicanalistas — a respeito de uma posição clara sobre algumas questões importantes. Por exemplo: homossexualismo é perversão, desvio, doença? A psicanálise tem algo a dizer sobre homossexualismo, para além dos preconceitos e ideologias sociais? A psicanálise dispõe-se a aprender algo, com os movimentos de visibilidade coletiva dos homossexuais e de identidades sexuais alternativas? Sejamos mais diretos: é cabível cobrarem a nós, psicanalistas, o mesmo que Canguilhem cobrou dos psicólogos, em sua conhecida conferência de 1956: “O que é a psicologia?” Dizei-me em que direção tendes, para que eu saiba o que sois. Ou, de outra forma: quando se sai da Sorbonne pela Rue Saint-Jacques, pode-se subir ou descer; se se sobe, aproxima-se do Pantheon, que é o conservatório de alguns grandes homens; mas, se se desce, dirige-se certamente para a Chefatura de Polícia. Afinal, falar de homossexualidade (ou homossexualidades) não é mero diletantismo. Basta lembrarmos que o atual1 presidente da Câmara dos Deputados 1 Em 22 de março de 2015. 166
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do Brasil é autor do projeto de lei PL 1.672/2011, que institui o Dia do Orgulho Hétero, em um protesto evidente contra o Dia Internacional do Orgulho Gay. Este deputado, cuja investigação foi solicitada pelo Ministério Público ao Supremo Tribunal Federal, por suspeita de participação em esquemas de corrupção da Petrobrás (“Operação Lava-jato” da Polícia Federal), costumeiramente posta mensagens segregacionistas e preconceituosas em seu Twitter2, como: “Essa história de casamento gay já está passando dos limites do bom senso e excesso de mídia e de lobby.” (17 de maio de 2011). “Chega desse espetáculo deprimente que envergonha a todos nós. Não à república gay.” (17 de maio de 2011). “Se eles têm o dia do orgulho gay, por que não podemos ter o dia do orgulho hétero?” (22 de junho de 2011). “Bando de sodomitas, parece que são alunos da sodoministra das mulheres, aquela abortista. Tudo isso é um plano do inimigo e vamos lutar.” (29 de maio de 2012). Por isso tudo é que a publicação da coletânea “As homossexualidades na Psicanálise: na história de sua despatologização”, organizada por Antonio Quinet e Marco Antonio Coutinho Jorge, é um fato auspicioso, que traz uma contribuição essencial sobre o tema. Para os psicanalistas lacanianos brasileiros a apresentação dos autores é inteiramente dispensável, já que ambos são expoentes no campo. Mas, mesmo uma resenha publicada em Stylus: Revista de Psicanálise pode chegar às mãos de um leitor pouco familiarizado com o campo e, pensando nesta eventualidade, registro que o psicanalista e psiquiatra Antonio Quinet fez formação na École de la Cause Freudienne e é AME (Analista Membro de Escola) da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano EPFCL-Brasil). É doutor em Filosofia pela Universidade de Paris VIII, professor de pós-graduação em Psicanálise e foi o tradutor da edição brasileira do Seminário 7 “A Ética da Psicanálise”, de Lacan, e o revisor técnico da edição brasileira do Seminário 17 “O avesso da Psicanálise” (Jorge Zahar). Autor de inúmeros livros importantes em Psicanálise, fundou a Cia. Inconsciente em Cena, com a qual estreou os espetáculos: “Óidipous, filho de Laios”, “Variações Freudianas 1: o Sintoma” e “O ato: variações freudianas 2”. O psicanalista e psiquiatra Marco Antonio Coutinho Jorge é membro da Association Insistance e diretor do Corpo Freudiano (seção Rio de Janeiro). É professor da UERJ e foi o tradutor brasileiro de duas obras de Lacan: “Os complexos familiares” e “Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade”. Também é autor de vários livros importantes em psicanálise. A coletânea reúne as apresentações de um colóquio com o mesmo nome do título (além de textos de autores convidados especialmente para a edição do livro), realizado em homenagem a Stonewall, a que a imagem da capa faz alusão. São 2 (E-mail: deputadoeduardocunha@depeduardocunha).
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textos de vinte e três competentes psicanalistas e pesquisadores sobre a sociedade e cultura, divididos em cinco partes: “Ética e preconceito”, “O mistério das homossexualidades”, “Bissexualidades”, Homossexualidades e estruturas clínicas” e “Homossexualidades femininas”. Lembremos que Stonewall foi um ‘ato’: limite que demarca um ‘antes’ e um ‘depois’. Ocorrido em 28 de junho de 1969, “é o marco histórico do início do movimento de emancipação e liberação dos homossexuais e do combate à homofobia (...) quando os clientes desse bar de Nova York reagiram vigorosamente à batida policial de praxe (...) [e] inauguraram, com tal ato, o movimento gay que se alastraria por todo o mundo.” (QUINET e JORGE, 2013, p. 9). Sempre que se quiser acentuar o aspecto da multiplicidade, atendendo ao rigor conceitual em psicanálise, o termo sexualidade deve vir no plural. Sejam as homossexualidades, as heterossexualidades, as bissexualidades, ou outro significante qualquer que se venha a inventar para se falar do assunto, neste caso, ele terá que aparecer necessariamente no plural, já que as sexualidades são tantas quantas são os próprios seres humanos: “Não existe “O Homossexual” e sim homossexuais, tanto quanto neuróticos, psicóticos e perversos” (QUINET, in QUINET e JORGE, p. 347). Freud mostrou que a sexualidade humana é desnaturalizada por estrutura, uma vez que aquilo que havia de instintual foi subvertido a partir da entrada no âmbito da linguagem e do registro simbólico, razão pela qual devemos sustentar sem tergiversações que a sexualidade humana, a pulsão e o próprio psiquismo estão em relação negativa com o seu substrato biológico. Como diz Ogilvie: A carência instintual dá livre curso à relação social e cultural, que vêm a desempenhar um papel para o qual bastam, em todas as outras espécies, as determinações biológicas. (...) Natureza, cultura, subjetividade: é pensando a negatividade que as une sob a forma de sua separação que se confere ao psiquismo uma dimensão própria (1987/1988, p. 97). Daí se entende a proposição lacaniana de que o corpo-organismo-natureza é subvertido pelo “pisoteio de elefante do capricho do Outro”, na medida em que “o desejo se esboça na margem em que a demanda se rasga da necessidade” (LACAN, 1950/1988, p. 828). Da hiância/fenda/fosso em que o sujeito se cria automutilado pelo buraco originado a partir do que dele se destacou (o objeto causa do desejo), surge o traçado centrífugo da pulsão, que o impele, ao longo da vida, na direção dos objetos do mundo. Nunca totalmente absorvido, mas nunca totalmente à parte deles: ex-sistente! (PACHECO FILHO, 2010, p. 38).
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Fazendo eco a essas descobertas psicanalíticas, em seu capítulo no livro intitulado “A maldição sobre o sexo”, Colette Soler sublinha de forma decidida: “a anatomia decide o estado civil, mas não comanda nem o desejo nem a pulsão” (p. 119). E Quinet complementa: “o sujeito do desejo é o sujeito do direito à sua forma de gozar” (p. 131). Gozo que não precisa ser motivo de orgulho nem de vergonha, na medida em que “é uma variante da vida sexual”: a sua! Disso não decorre que a escolha de objeto homossexual ou heterossexual seja uma opção consciente do sujeito: suas raízes se alojam no inconsciente. Mas a ética da psicanálise pressupõe um sujeito responsável e não um robot inteiramente determinado, razão pela qual a primeira retificação subjetiva, a ser operada em todo processo analítico, visa implicar o sujeito (homo, hétero ou bissexual) com “sua forma de gozo e fazê-lo responsável por sua sexualidade”. Neste sentido, é legítimo dizer que existe uma ‘escolha’ do sujeito em relação à sua forma de gozar, o que deve ser entendido como uma postura ética da psicanálise, “que tira o sujeito dito homossexual do lugar de vítima”: seja da sua genética, das vicissitudes da sua história pessoal, dos desígnios do destino ou, ainda, do desejo de seus pais (o Outro parental). Para entrar na partilha dos sexos, o sujeito empreende uma dupla escolha: a escolha da sua posição sexuada e a escolha do seu objeto sexual. Este último remete à série infinita dos objetos substitutivos do objeto incestuoso, trazendo sempre a marca do ciúme do objeto como propriedade do outro: o que faz do triângulo amoroso uma “condição estrutural”, já que o objeto encontra-se no campo do Outro. Por isto é que no encontro amoroso e sexual, como já alertava Freud, é em vão que se espera a completa harmonia. A mutilação sangrenta do sexo, que Freud chamou nada menos do que de “castração”, respinga em todos os momentos da história do sujeito, desde a infância até a velhice. E mancha de púrpura seus encontros eróticos, que são assim tingidos pela transitoriedade e pela insegurança de quem nada tem de certeiro. A única certeza é a amputação originária do outro, que faz da vida um caminhar trágico entre duas mortes: a mortificação promovida pela linguagem e a morte como fim da linha (As homossexualidades na Psicanálise: na história de sua despatologização, op. cit., p. 132). Pensar a escolha da posição sexuada e do parceiro sexual, contemplando como aí se presentificam, tanto a determinação do simbólico — o automaton da repetição significante —, quanto o indeterminado do encontro casual — o real d’A Coisa, que vem pela tyché —, implica em se recorrer às fórmulas lacanianas da sexuação: o que é feito por vários autores do livro, ao longo dos diversos capítulos. Neles, se exploram as consequências e vicissitudes do fato de que inexiste o ser do sexo complementar: o que conduziu Lacan à sua máxima de que “não há relação
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sexual”. “Não ser o falo” ou “não ter o falo”? Aqui se introduz a escolha entre o “dito homem” — aquele ‘todo’ submetido à função fálica e o gozo que ela admite — e a “dita mulher” — aquela ‘não-toda’ submetida à função fálica e que, devido a isto, tem acesso também ao gozo Outro (Ibid., p. 136). Outro assunto realçado no livro é a questão da chamada “identidade sexual”: tema controvertido e complexo, no âmbito da psicanálise, já que o termo “identidade” não constitui um conceito psicanalítico. Não há “gay em análise” e sim um sujeito: “sujeito de desejo, sujeito do inconsciente, cuja unicidade é falaciosamente suposta por meio de suas identificações.” (Ibid., p. 344). E é exatamente com fundamento nessa noção falaciosa de identidade sexual que se dividem os seres humanos em supostas (e falsas) categorias identitárias estanques, que, além de contradizerem a singularidade do desejo, servem de instrumento às segregações e criação de guetos, além de alimentarem a “psicologia das massas” pela via das identificações aos ideais. “O desejo pelo outro, ao ser recusado, pode se transformar em ódio.” Daí para a frente, “da homofobia ao homoterrorismo é um passo” (Ibid., p. 346), como se constata na já mencionada atuação do presidente da Câmara dos Deputados. Não menos nociva do que a teorização de um conceito naturalizado e reificado de identidade sexual, apoiado em uma pretensa base biológica, é a patologização pseudocientífica das práticas homossexuais que costuma acompanhá-lo. E que, no mais das vezes, não passa de dissimulação para subestimação, desprezo, ódio ou medo ao que é sexualmente diferente e ao que não se acomodou inteiramente às normas sociais de aparelhamento do gozo. Problema grave, este, quando vem a ocorrer no interior do próprio campo psicanalítico, já que “a leitura que cada analista tem da homossexualidade determina a maneira como ele conduz as análises de todos os seus pacientes, independentemente da escolha sexual e da estrutura clínica” (Ibid., p. 11). E os capítulos “A história da homossexualidade e a psicanálise organizada”, de Jack Drescher, e “A Psicanálise à prova da homossexualidade”, de Elisabeth Roudinesco, escritos especialmente para o livro, nos lembram como, ao longo da História, os psicanalistas tanto ‘subiram ao Pantheon’ quanto ‘desceram à chefatura de polícia’. Ainda que Freud não tenha dado seu aval à patologização da homossexualidade — “A pesquisa psicanalítica se opõe, decididamente, a qualquer tentativa de separar os homossexuais do resto da humanidade como um grupo de caráter especial” (Ibid., p. 49) — muitos psicanalistas, sobretudo americanos, não hesitaram em avalizar a inclusão do diagnóstico de ‘homossexualidade’ na primeira (1952) e segunda (1968) edições do Diagnostic and Statistical Manual (DSM). Em decorrência disto, “homens e mulheres assumidamente gays eram considerados inelegíveis para fazerem formação em psicanálise” (Ibid., p. 51). E
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mesmo quando a American Psychiatric Association votou a retirada da homossexualidade do DSM-II (1973) e a American Psychological Association e a National Association of Social Workers endossaram a decisão, a maioria dos institutos psicanalíticos norte-americanos não modificou sua posição. Foi apenas em 1991 que a American Psychoanalytic Association adotou uma política de não discriminação da orientação sexual na seleção de candidatos a analista. Daí para a frente as coisas mudariam, e em 1997 a American Psychoanalytic Association “tornou-se a primeira das principais organizações de saúde mental a endossar o casamento gay” (Ibid., p. 56). Em relação a Lacan, Roudinesco nos lembra de que não apenas ele “tomou em análise homossexuais, sem jamais pretender os reeducar nem os impedir de se tornarem psicanalistas, caso o desejassem”, como também aceitou o princípio de que eles pudessem ser integrados “na qualidade de analistas da escola (AE) ou analistas membros da escola (AME)”, quando fundou a Escola Freudiana de Paris (EFP) (p. 113). Mais injustificável fica a patologização de homossexuais no campo da psicanálise, quando se lê a “Carta a uma mãe Americana”, de Freud (1935/1953), afirmando que “a homossexualidade, certamente, não é uma vantagem; mas não é nada do que se envergonhar, não é vício, não é degradação; não pode ser classificada como uma doença” (apud Drescher, p. 50). Daí a importância dos capítulos da parte “Homossexualidades e estruturas clínicas” do livro, mostrando que a tentativa de se correlacionar ponto por ponto homossexualismo e perversão é um empreendimento vão: seja porque “identificar todo homossexual à perversão é algo que a clínica desmente” (As homossexualidades na Psicanálise: na história de sua despatologização, op. cit., p. 347); seja porque a perversão como estrutura é uma das formas possíveis de o sujeito lidar com a falta no Outro (a Verleugnung) e não uma patologia; seja ainda porque, embora perversão e homossexualismo possam ser observados em um mesmo sujeito, muitas vezes ambos são inteiramente independentes e autônomos. É isto que Lacan mostra no caso de André Gide, em seu texto “Juventude de Gide ou a letra e o desejo” (1958/1998), cuja perversão não estava vinculada à sua prática sexual com jovens do mesmo sexo e sim à sua prática da letra e seu vínculo de amor com a esposa:
O vazio da ausência da marca fálica do desejo do lado do amor foi preenchido por Gide pelas cartas/letras (lettres), ou seja, sua correspondência com Madeleine, seu Outro do amor único. Essa correspondência constitui um fetiche para Gide, pois as cartas para Madeleine vêm no lugar do falo que falta. (...) Essa letra-objeto fetiche, que é a correspondência com Madeleine, funciona mais como
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objeto a (do que como significante), semblante de ser para o sujeito Gide. (...) Pois, quando tomada como objeto a, a correspondência destinada a Madeleine faz parte da estratégia perversa de Gide, na medida em que “o perverso é aquele que se consagra a tapar o furo no Outro com o objeto a” (As homossexualidades na Psicanálise: na história de sua despatologização, op. cit., pp. 274-275). Em seu capítulo “Yukio Mishima: um talento perverso”, Maria Helena Martinho busca demonstrar que, de modo semelhante ao que ocorria com Gide, a perversão de Mishima não se devia ao fato de ele ser um homossexual assumido; e sim ao fato de que, em sua vida e obra, até o seu suicídio, ele perseguia a solução da divisão do eu “nas polaridades entre “o corpo e as palavras”, “a carne e o espírito”, “o amor e o desejo”, “a arte e a ação” (Ibid., p. 282). Ao exibir seu seppuku (ritual de suicídio da casta samurai, cortando o abdome com uma espada de lâmina curta), Mishima “oferece à hiância do Outro o mais-de-gozar, o puro objeto que lhe convém, na tentativa de tapar o buraco do real com o objeto a, olhar” (Ibid., p. 295). Modificando uma frase que o psicanalista Ralph Roughton emprega em situação diversa (Ibid., p. 111), poderíamos dizer que um homossexual perverso tem mais em comum com um heterossexual perverso do que com um homossexual neurótico. Não seria justo deixar de incluir nesta resenha o devido tributo ao livro por sua “co-memoração” de Stonewall. Ainda que não se possam extrair da psicanálise os fundamentos para uma identidade gay — assim como também não para uma identidade heterossexual —, deve-se considerar que “orgulho gay” (gay pride) e orgulho LGBT representam, antes de qualquer outra coisa, uma vigorosa tomada de posição política dos homossexuais, contra a opressão social e em favor de seu direito ao livre exercício de seu desejo: O sintagma ‘gay pride’, orgulho gay, antes de significar que a homossexualidade é alegre e que ‘a vida é bela’ para os homossexuais, mostra que, antes de Stonewall, ela era vivida com amargura, tristeza e vergonha. As imagens que ficaram de Stonewall são pungentes e transmitem uma alegria incontida daqueles que enfrentam o medo e que reconhecem em si mesmos uma força capaz de não mais se acovardar. Stonewall significou uma verdadeira interpretação psicanalítica para os homossexuais, que ‘saíram do armário’ para as ruas (Ibid., p. 274-275). Não parece difícil escolher uma posição política a tomar, se a opção for manter a coerência com a psicanálise: seja com sua descoberta da pluralidade sexual do ser humano; seja com seu exercício de uma práxis que contempla a alteridade do sujeito e fundamenta-se em uma ética orientada pela singularidade do desejo.
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Paradoxalmente, essa segurança na escolha de uma direção política sobre o assunto decorre de uma incerteza: aquela que a psicanálise demonstrou ser o cerne da sexualidade humana. Como diz Vera Pollo, no início do seu capítulo no livro: Desdobrando a assertiva freudiana de que todo ato sexual é “um acontecimento entre quatro indivíduos”, o ensino de Lacan nos permite dizer que nenhum ser falante encontra, no ato sexual, o recurso que lhe permita afirmar-se homem ou mulher (Ibid., p. 171). Se quisermos dar um passo a mais, “sem ter que explorar seu sexo”, diremos que a mulher, por representar o Outro absoluto na dialética falocêntrica, será classificada como muda, ao passo que a arara tricolor será classificada “como hetero — pelo fato de a dizerem ser falante”3 (Ibid., p. 180). Em “Ser e tempo” (1927/1960), Heidegger propõe que a compreensão do ser (ser em geral) constitui uma determinação ontológica do “ser-aí” (Dasein)4. “O ‘ser-aí’ é um ente que não é simplesmente dado como um ente entre outros. Ao contrário, ele se caracteriza onticamente pelo fato de que, em seu ser, há questão desse ser.” (HEIDEGGER, apud ZUBEN, 2011, p. 90). Já que a interlocução crítica com o filósofo alemão é uma das fontes de inspiração lacanianas, talvez possamos concluir esta resenha arriscando a proposição de uma homologia com a determinação ontológica do ‘ser-aí’; e dizer que o confrontar-se com as tensões irredutíveis entre harmonia e desarmonia, encontro e desencontro, amor e ódio, completude e falta, inerentes ao vivenciar cotidiano do sexual, constituem uma determinação ontológica do parlêtre. E que, ao contrário dos outros entes vivos sexuados, para quem o sexual é biologicamente constitucional, instintivo, e não traz indagação ou dúvida, o falasser caracteriza-se onticamente pelo fato de que, em seu ser, o sexual seja uma interrogação permanente e infindável!
3 LACAN (1972/2003), p. 497. 4 “O termo, na intenção de Heidegger, designa que o homem, enquanto eksistente exposto ao ser, é lugar onde este se manifesta.” (ZUBEN, 2011, p. 90) “O ser-aí – o Dasein – não designa propriamente a condição humana, mas o modo específico de ser do homem enquanto presença ek-stática à revelação do ser (Ibid., p. 97).
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Débat de Folie et d’Amour Louise Labé Baise m’encor, rebaise-moi et baise: Donne m’en un de tes plus savoureux, Donne m’en un de tes plus amoureux: Je t’en rendrai quatre plus chauds que braise. Las, te plains-tu ? ça que ce mal j’apaise, En t’en donnant dix autres doucereux. Ainsi mêlant nos baisers tant heureux Jouissons-nous l’un de l’autre à notre aise. Lors double vie à chacun en suivra. Chacun en soi et son ami vivra. Permets m’Amour penser quelque folie: Toujours suis mal, vivant discrètement, Et ne me puis donner contentement, Si hors de moi ne fais quelque saillie.
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Beija-me ainda, beija-me de novo e beija Beija-me ainda, beija-me de novo e beija: Dai-me um dos teus mais saborosos, Dai-me um dos teus mais amorosos: Dar-te-ei quatro, mais quentes que brasa. Cansado, reclamas? Isso, que esse mal abrando, Dando-te dez outros açucarados. Assim, misturando nossos beijos tão afortunados À vontade, um do outro gozando. Então vida em dobro a cada um resultará Cada um em si e seu amigo viverá Permita-m’Amor pensar alguma desmedida: Sempre estou mal, discretamente vivendo, E não me posso dar contentamento, Se, fora de mim, não faço alguma investida.
Debate de Loucura e d’Amor (1555). Tradução: Cícero Oliveira Revisão da tradução: Dominique Fingermann
Louise Labé (1524-1566) foi uma poeta francesa do século XVI, mais conhecida como “A Bela Cordoeira”, em virtude da profissão de seu pai, um próspero fabricante de cordas de Lyon. Uma das mais conhecidas e celebradas escritoras do Renascimento francês, sua principal obra, publicada em 1555 e de onde a poesia traduzida foi extraída, intitula-se Débat de Folie et d’Amour, na qual encontramos poemas dotados de grande rigor formal, expressando paixão, ardor sensual e uma sinceridade e espontaneidade surpreendentes.
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Definição do amor Gregório de Matos
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Mandai-me, Senhores, hoje, que em breves rasgos descreva do Amor a ilustre prosápia, e de Cupido as proezas.
O arco talvez de pipa, a seta talvez de esteira, despido como um maroto, cego como uma toupeira.
Dizem que da clara escuma, dizem que do mar nascera, que pegam debaixo d’água as armas, que Amor carrega.
Um maltrapilho, um ninguém, que anda hoje nestas eras com o cu à mostra, jogando com todos a cabra-cega.
Outros, que fora ferreiro seu pai, onde Vênus bela serviu de bigorna, em que malhava com grã destreza.
Tapando os olhos da cara, por deixar o outro alerta, por detrás à italiana, por diante à portuguesa.
Que a dois assopros lhe fez o fole inchar de maneira, que nele o fogo acendia, nela aguava a ferramenta.
Diz que é cego, porque canta, ou porque vende gazetas das vitórias, que alcançou na conquista das finezas.
Nada disto é, nem se ignora, que o Amor é fogo, e bem era tivesse por berço as chamas se é raio nas aparências.
Que vende também folhinhas cremos por coisa mui certa, pois nos dá os dias santos, sem dar ao cuidado tréguas;
Este se chama Monarca, ou Semideus se nomeia, cujo céu são esperanças, cujo inferno são ausências.
E porque despido o pintam é tudo mentira certa, mas eu tomara ter junto o que Amor a mim me leva.
Um Rei, que mares domina, Um Rei, o mundo sopeia, sem mais tesouro que um arco, sem mais arma que uma seta.
Que tem asas com que voa e num pensamento chega assistir hoje em Cascais logo em Coina, e Salvaterra.
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Letras
Isto faz um arrieiro com duas porradas tesas: e é bem, que no Amor se gabe, o que o vinho só fizera!
Gastar cordas em descantes, perder a vida em pendências, este, que não faz parar oficial algum na tenda.
E isto é Amor? é um corno. Isto é Cupido? má peça. Aconselho que o não comprem ainda que lhe achem venda.
O moço com sua moça, o negro com sua negra, este, de quem finalmente dizem que é glória, e que é pena.
Isto, que o Amor se chama, este, que vidas enterra, este, que alvedrios prostra, este, que em palácios entra:
É glória, que martiriza, uma pena, que receia, é um fel com mil doçuras, favo com mil asperezas.
Este, que o juízo tira, este, que roubou a Helena, este, que queimou a Troia, e a Grã-Bretanha perdera:
Um antídoto, que mata, doce veneno, que enleia, uma discrição, sem siso, uma loucura discreta.
Este, que a Sansão fez fraco, este, que o ouro despreza, faz liberal o avarento, é assunto dos poetas:
Uma prisão toda livre, uma liberdade presa, desvelo com mil descansos, descanso com mil desvelos.
Faz o sisudo andar louco, faz pazes, ateia a guerra, o frade andar desterrado, endoidece a triste freira.
Uma esperança, sem posse, uma posse, que não chega, desejo, que não se acaba, ânsia, que sempre começa.
Largar a almofada a moça, ir mil vezes à janela, abrir portas de cem chaves, e mais que gata janeira.
Uma hidropisia d’alma, da razão uma cegueira, uma febre da vontade, uma gostosa doença.
Subir muros e telhados, trepar cheminés e gretas, chorar lágrimas de punhos, gastar em escritos resmas.
Uma ferida sem cura, uma chaga, que deleita, um frenesi dos sentidos, desacordo das potências.
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Um fogo incendido em mina, faísca emboscada em pedra, um mal, que não tem remédio, um bem, que se não enxerga.
Uma meiguice, um afago, um arrufo, e uma guerra, hoje volta, amanhã torna, hoje solda, amanhã quebra.
Um gosto, que se não conta, um perigo, que não deixa, um estrago, que se busca, ruína, que lisonjeia.
Uma vara de esquivanças, de ciúmes vara e meia, um sim, que quer dizer não, não, que por sim se interpreta.
Uma dor, que se não cala, pena, que sempre atormenta, manjar, que não enfastia, um brinco, que sempre enleva.
Um queixar de mentirinha, um folgar muito deveras, um embasbacar na vista, um ai, quando a mão se aperta.
Um arrojo, que enfeitiça, um engano, que contenta, um raio, que rompe a nuvem, que reconcentra a esfera.
Um falar por entre dentes, dormir a olhos alerta, que estes dizem mais dormindo, do que a língua diz discreta.
Víbora, que a vida tira àquelas entranhas mesmas, que segurou o veneno, e que o mesmo ser lhe dera.
Uns temores de mal pago, uns receios de uma ofensa, um dizer choro contigo, choramingar nas ausências.
Um áspide entre boninas, entre bosques uma fera, entre chamas salamandra, pois das chamas se alimenta.
Mandar brinco de sangrias, passar cabelos por prenda, das palmitos pelos Ramos, e dar folar pela festa.
Um basalisco, que mata, lince, que tudo penetra, feiticeiro, que adivinha, marau, que tudo suspeita.
Anal pelo São João, alcachofras na fogueira, ele pedir-lhe ciúmes, ela sapatos e meias.
Enfim o Amor é um momo, uma invenção, uma teima, um melindre, uma carranca, uma raiva, uma fineza.
Leques, fitas e manguitos, rendas da moda francesa, sapatos de marroquim, guarda-pé de primavera.
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Letras
Livre Deus, a quem encontra, ou lhe suceder ter freira; pede-vos por um recado sermão, cera e caramelas.
É este, o que chupa, e tira, vida, saúde e fazenda, e se hemos falar verdade é hoje o Amor desta era.
Arre lá com tal amor! isto é amor? é quimera, que faz de um homem prudente converter-se logo em besta.
Tudo uma bebedice, ou tudo uma borracheira, que se acaba co’o dormir, e co’o dormir começa.
Uma bofia, uma mentira chamar-lhe-ei, mais depressa, fogo selvagem nas bolsas, e uma sarna das moedas.
O Amor é finalmente um embaraço de pernas, uma união de barrigas, um breve tremor de artérias.
Uma traça do descanso, do coração bertoeja, sarampo da liberdade, carruncho, rabuge e lepra.
Uma confusão de bocas, uma batalha de veias, um reboliço de ancas, quem diz outra coisa, é besta.
Gregório de Matos: Poemas escolhidos (Seleção, prefácio e notas de José Miguel Wisnik). São Paulo: Cia das Letras, 2010, p. 301-312.
Gregório de Matos Guerra (1633-1696), é considerado um dos maiores poetas do Barroco brasileiro e o mais importante poeta satírico da literatura em língua portuguesa no Período Colonial. Recebeu o apelido de “Boca do Inferno”, devido à sua irreverente obra satírica.
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Orientações Editoriais Stylus é um periódico semestral da ESCOLA DE PSICANÁLISE DOS FÓRUNS DO CAMPO LACANIANO – BRASIL e se propõe a publicar artigos inéditos das comunidades brasileiras e internacional do Campo Lacaniano, e os artigos de outros colegas que orientam sua leitura da psicanálise, principalmente pelos textos de Sigmund Freud e Jacques Lacan. Revista que aceita artigos provenientes de outros campos de saber (a arte, a ciência, a matemática, a filosofia, a topologia, a linguística, a música, a literatura etc.) que tomam a psicanálise como eixo de suas conexões reflexivas. Aos manuscritos encaminhados para publicação, recomendam-se as seguintes Orientações Editoriais. Serão aceitos trabalhos em inglês, francês e/ou espanhol. Se aceitos, serão traduzidos para o português. Todos os trabalhos enviados para publicação serão submetidos à apreciação de, no mínimo, dois pareceristas, membros do Conselho Editorial de Stylus (CES). A Equipe de Publicação de Stylus (EPS) poderá fazer uso de consultores ad hoc, a seu critério e do CES, omitida a identidade dos autores. Os autores serão notificados da aceitação ou não dos artigos. Os originais não serão devolvidos. O texto considerado aceito será publicado na íntegra. Os artigos assinados expressam a opinião de seus autores. A EPS avaliará a pertinência da quantidade de textos que irão compor cada número de Stylus, de modo a zelar pelo propósito dessa revista: promover o debate a respeito da psicanálise e suas conexões com os outros discursos.
Fluxo de avaliação dos artigos: 1.) Recebimento do texto por e-mail pelos membros da EPS de acordo com a data divulgada na rede-epfclbrasil@googlegroups.com, na if-epfcl@champlacanien.net e na página do Facebook da revista (/Revista-Stylus) 2.) Distribuição para parecer. 3.) Encaminhamento do parecer para a reunião da EPS para decisão final. 4.) Informação para o autor: se recusado, se aprovado ou se necessita de reformulação (neste caso, é definido um prazo de vinte dias, findo o qual o artigo é desconsiderado, caso o autor não o reformule apropriadamente). 5.) Após a aprovação o autor deverá enviar à EPS no prazo de sete dias úteis um e-mail contendo um arquivo de seu texto, definido para impressão. 6.) Direitos autorais: a aprovação dos textos implica a cessão imediata e sem ônus dos direitos autorais de publicação nesta revista, a qual terá exclusividade de publicá-los em primeira mão. O autor continuará a deter os direitos autorais para publicações posteriores. 7.) Publicação. Nota: não haverá banco de arquivos para os números seguintes. O autor que desejar publicar deverá encaminhar seu texto a cada número de Stylus.
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Serão aceitos trabalhos para as seguintes seções: Artigos – análise de um tema proposto, levando ao questionamento e/ou a novas elaborações (aproximadamente 12 laudas ou 25.200 caracteres, incluindo referências bibliográficas e notas). Ensaios: apresentação e discussão a partir da experiência psicanalítica de problemas cruciais da psicanálise no que estes concernem à transmissão da psicanálise (aproximadamente 15 laudas ou 31.500 caracteres, incluindo referências bibliográficas e notas). Resenhas: resenha crítica de livros ou teses de mestrado ou doutorado, cujo conteúdo se articule ou seja de interesse da psicanálise (aproximadamente 60 linhas (3.600 caracteres). Entrevistas: entrevista que aborde temas de psicanálise ou afins à psicanálise (aproximadamente 10 laudas ou 21.000 caracteres, incluindo referências bibliográficas e notas). Stylus possui as seguintes seções: ensaios, trabalho crítico com os conceitos, direção do tratamento, entrevista e resenhas; cabendo à EPS decidir sobre a inserção dos textos selecionados no corpo da revista.
Apresentação dos Manuscritos: Formatação: Os artigos devem ser digitados em Word for Windows, versão 6.0 ou superior, com extensão (.doc), em fonte Times New Roman, tamanho 12, em folha de formato A4, com espaçamento 1,5 entre linhas, margens superior, inferior e laterais de 2 cm. Ilustrações: o número de figuras (quadros, gráficos, imagens, esquemas) deverá ser mínimo (máximo de 5 por artigo, salvo exceções, que deverão ser justificadas por escrito pelo autor e avalizadas pela EPS) e devem vir separadamente em arquivo JPEG nomeados Fig. 1, Fig. 2 e indicadas no corpo do texto o local dessas Fig. 1, Fig. 2., sucessivamente. As ilustrações devem trazer abaixo um título ou legenda com a indicação da fonte, quando houver. Resumo / Abstract: todos os trabalhos (artigos, entrevistas) deverão conter um resumo na língua vernácula e um abstract em língua inglesa, contendo de 100 a 200 palavras. Deverão trazer também um mínimo de três e um máximo de cinco palavras-chave (português) e keywords (inglês) e a tradução do título do trabalho. As resenhas necessitam apenas das palavras-chave e keywords.
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Envio dos manuscritos: Ao enviar o artigo para a revista, o autor compromete-se a nĂŁo o encaminhar para outro(s) veĂculo(s) de publicação, pelo prazo de seis meses, a contar da data do envio. Preferencialmente, as propostas de publicação devem ser enviadas via internet, como anexo, para o e-mail revistastylus@yahoo.com.br. Alternativamente, podem ser enviadas em mĂdia digital, acompanhadas de trĂŞs cĂłpias impressas, para o seguinte endereço: FĂłrum do Campo Lacaniano â&#x20AC;&#x201C; SĂŁo Paulo Revista Stylus: Revista de PsicanĂĄlise da Associação de FĂłruns do Campo Lacaniano Brasil Rua VerĂssimo GlĂłria, 126. CEP: 01251-140 â&#x20AC;&#x201C; SumarĂŠ (SĂŁo Paulo â&#x20AC;&#x201C; SP) Os artigos devem conter os seguintes elementos:
NORMAS PARA PUBLICAĂ&#x2021;Ă&#x192;O t 1SJNFJSB MBVEB DPOUFOEP BQFOBT P UĂ&#x201C;UVMP EP BSUJHP OPNF T EP T BVUPS FT dados do(s) autor(es) [titulação, filiação institucional e referĂŞncias acadĂŞmicas e profissionais, em 10 linhas, no mĂĄximo] e endereço completo (com e-mail). t %FNBJT MBVEBT OVNFSBEBT DPOTFDVUJWBNFOUF B QBSUJS EF VN SFQFUJOEP P tĂtulo, sem o(s) nome(s) do(s) autor(es), e contendo o texto da publicação. t /P DBTP EF JOWFTUJHBĂ&#x17D;Ă&#x153;FT EFTFOWPMWJNFOUPT UFĂ&#x2DC;SJDPT SFMBUPT EF QFTRVJTBT EFbates e entrevistas, deve ser incluĂdo um resumo de no mĂĄximo trezentas palavras, ao final, na mesma lĂngua do trabalho, acompanhado de palavras-chave (no mĂnimo trĂŞs e no mĂĄximo sete). ApĂłs esse resumo, deve-se incluir tambĂŠm uma tradução do mesmo, em inglĂŞs (abstract), acompanhada da tradução do tĂtulo e das palavras-chave. t /P DBTP EF FOUSFWJTUB EFWFN TFS JODMVĂ&#x201C;EPT BP Ä&#x2022;OBM PT TFHVJOUFT EBEPT EBUB da entrevista, nome do entrevistador, nome do entrevistado e dados completos de identificação de ambos (titulação, filiação institucional e referĂŞncias acadĂŞmicas e profissionais). Opcionalmente, podem ser incluĂdos dados relevantes sobre o contexto em que foi realizada a entrevista. t /P DBTP EF SFTFOIBT EFWF TF JODMVJS BP Ä&#x2022;OBM B SFGFSĂ?ODJB DPNQMFUB EB PCSB resenhada. As ilustraçþes devem ter seu lugar indicado no texto e devem ser enviadas tambĂŠm em anexos separados, em formato de arquivo JEPG. Devem ser nomeadas Fig. 1, Fig. 2, sucessivamente, podendo ainda ter um tĂtulo sugestivo do seu conteĂşdo.
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SOBRE CITAÇÕES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Indicamos a NBR 6023 da Associação Brasileira das Normas Técnicas, lançada em 2002, disponível nos seguintes endereços eletrônicos, ambos oriundos do sítio (http://www.ip.usp.br/portal/) da Biblioteca Dante Moreira Leite, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo: Citações: (http://www.ip.usp.br/portal/images/stories/manuais/citacoesabnt.pdf) Referências bibliográficas: (http://www.ip.usp.br/portal/images/stories/ manuais/normalizacaodereferenciasabnt.pdf)
Citações no texto: As citações diretas (ou textuais) devem reproduzir fielmente as palavras do autor ou o trecho do texto utilizado. Exemplo: Dessa maneira, Quinet (1991, p. 87) adverte que “não há duas pessoas que lidem com o dinheiro da mesma forma.” Já as citações diretas (ou textuais) que excederem três linhas devem vir em parágrafo separado, com recuo de quatro cm da margem esquerda (além do parágrafo de 1,25cm) com letra menor do que a do texto e sem utilização de aspas. Os títulos de textos citados devem vir em itálico (sem aspas), os nomes e sobrenomes em formato normal (Lacan, Freud). Exemplo: Freud (1910, p. 130) em As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica, destaca um aspecto importante:
Agora que um considerável número de pessoas está praticando a psicanálise e, reciprocamente, trocando observações, notamos que nenhum psicanalista avança além do quanto permitam seus próprios complexos e resistências internas; e, em consequência, requeremos que ele deva iniciar sua atividade por uma autoanálise e levá-la, de modo contínuo, cada vez mais profundamente, enquanto esteja realizando suas observações sobre seus pacientes. Qualquer um que falhe em produzir resultados numa autoanálise desse tipo deve desistir, imediatamente, de qualquer ideia de tornar-se capaz de tratar pacientes pela análise. As citações indiretas devem conter as ideias daquele que escreve o texto, mas também devem referendar as ideias originais do autor citado, em letras maiúsculas. Exemplo: Lacan sempre deixou claro sua posição sobre os psicanalistas que se acomodavam frente aos mecanismos institucionais das escolas psicanalíticas daquela época, com suas burocracias e rituais questionáveis (LACAN, 1956). As citações de obras antigas e reeditadas devem ser feitas da seguinte maneira: Kraepelin (1899/1999).
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No caso de citação de artigo de autoria múltipla, as normas são as seguintes: A) até três autores – o sobrenome de todos os autores é mencionado em todas as citações, por exemplo: (ALBERTI e ELIA, 2000). B) de quatro a seis autores – o sobrenome de todos os autores é citado na primeira citação, como acima. Da segunda citação em diante só o sobrenome do primeiro autor é mencionado, como abaixo (ALBERTI et al, 2009, p. 122). C) mais de seis autores – no texto, desde a primeira citação, somente o sobrenome do primeiro autor é mencionado, mas nas referências bibliográficas os nomes de todos os autores devem ser relacionados. Quando houver repetição da obra citada na sequência deve vir indicado Ibid., p. (página citada.). Quando houver citação da obra já citada, porém fora da sequência da nota, deve vir indicado o nome da obra em itálico, op. cit., p. (Kant com Sade, op. cit., p. 781). Caso a fonte seja um website ou página eletrônica, deve-se explicitar o endereço eletrônico de acesso, entre parênteses, após a informação, (http://www.campolacanianosp.com.br/).
notas de rodapé: As notas não bibliográficas, indicações, observações ou aditamentos ao texto feitos pelo autor ou editor, devem ser reduzidas a um mínimo indispensável, ordenadas por algarismos arábicos e organizadas como nota de rodapé, ao final da página em questão.
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Referências Bibliográficas: Os títulos de livros, periódicos, relatórios, teses e trabalhos apresentados em congressos devem ser colocados em itálico. O sobrenome do(s) autor(es) deve vir em caixa alta, seguido do prenome abreviado. Livros, livro de coleção: 1.1 LACAN, J. (1955). A coisa freudiana. In:______. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. pp. 402-437. 1.2 FREUD, S. (1920). Além do princípio de prazer. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 18, pp. 17-88). 1.3 LACAN, J. (1960-61). O Seminário, livro 8: A transferência. Tradução de Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Zahar, 1992. 386 p. 1.4 Lacan, J. O Seminário: A identificação (1961-62): aula de 21 de março de 1962. Inédito. 1.5 Lacan, J. O Seminário: Ato psicanalítico (1967-68): aula de 27 de março de 1968. (Versão brasileira fora do comércio). 1.6. Lacan, J. Le Séminaire: Le sinthome (1975-76). Paris: Association freudienne internationale, 1997. (Publication hors commerce). Obs. O destaque é para o título do livro e não para o título do capítulo. Quando se referencia várias obras do mesmo autor, substitui-se o nome do autor por um traço equivalente a seis espaços. Capítulo de Livro: Foucault, Michel. Du bon usage de la liberté. In: Foucault, M. Histoire de la folie à l’âge classique (pp. 440-482). Paris: Gallimard, 1972. Artigo em periódico científico ou revista: Quinet, Antonio. A histeria e o olhar. Falo. Salvador, n.1, pp. 29-33, 1987. Obras antigas com reedição em data posterior: Alighieri, Dante. Tutte le opere. Roma: Newton, 1993. (Originalmente publicado em 1321). Teses e dissertações: Teixeira, A. A teoria dos quatro discursos: uma elabora-
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ção formalizada da clínica psicanalítica. Rio de Janeiro, 2001. 250 f. Dissertação. (Mestrado em Teoria Psicanalítica) – Instituto de Psicologia. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001. Relatório técnico: Barros de Oliveira, Maria Helena. Política Nacional de Saúde do Trabalhador. (Relatório Nº). Rio de Janeiro. CNPq, 1992. Trabalho apresentado em congresso e publicado em anais: Pamplona, Graça. Psicanálise: uma profissão? Regulamentável? Questões Lacanianas. Trabalho apresentado no Colóquio Internacional Lacan no Século. 2001 Odisseia Lacaniana, I, 2001, abril; Rio de Janeiro, Brasil. Obra no prelo: No lugar da data deverá constar (No prelo). Autoria institucional: American Psychiatric Association. DSM-III-R, Diagnostic and statistical manual of mental disorder (3rd edition revised.) Washington, DC: Author, 1998. CD Room – Gatto, Clarice. Perspectiva interdisciplinar e atenção em Saúde Coletiva. Anais do VI Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva. Salvador: ABRASCO, 2000. CD-ROM. Home Page: Gerbase, Jairo. Sintoma e tempo: aula de 14 de maio de 1999. Disponível em: www.campopsicanalitico.com.br. Acesso em: 10 de julho de 2002. Fontes eletrônicas: Fingermann, D. A análise dos analistas. Jornal de psicanálise, São Paulo, v. 41, n. 74, jun. 2008. Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-58352008000100008&lng=pt&nrm=i so>. Acesso em 8 abr. 2011. Outras dúvidas poderão ser sanadas consultando-se a versão original da ABNT 6023, como dito anteriormente, ou eventualmente endereçadas à Equipe de Publicação da Revista Stylus (EPS) para o e-mail revistastylus@yahoo.com.br
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Sobre autores e tradutores Ana Laura Prates Pacheco Psicóloga, Psicanalista. Especialista, Mestre e Doutora em Psicologia Clínica pelo IPUSP. Pós-doutora em Psicanálise pela UERJ. Pesquisadora convidada do LABEURB/UNICAMP. AME da EPFCL, Membro do FCL-SP/EPFCL-Brasil. Coordenadora da Rede de Pesquisa de Psicanálise e Infância da EPFCL-Brasil. Autora de Feminilidade e experiência psicanalítica (2001) e Da fantasia de infância ao infantil na fantasia (2013) e La letra de la carta al nudo (2015). E-mail: analauraprates@terra.com.br
Andréa Hortélio Fernandes Psicanalista, AME da EPFCL-Brasil, Membro do Fórum Salvador, Membro do Campo Psicanalítico de Salvador, Doutora em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise (Paris VII), Professora da Graduação e da Pós-Graduação do Instituto de Psicologia (UFBA), Pesquisadora do CNPq. E-mail: ahfernandes03@gmail.com
Cícero Alberto de Andrade Oliveira Graduado em Letras (Português/Francês) pela FFLCH-USP. Professor de francês e tradutor, mestre em Língua e Literatura Francesa pela mesma instituição. E-mail: ciceralb@gmail.com
Colette Soler Doutora em Psicologia (Paris VII), AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano — França. Professora de FCCL-Paris. Autora de vários livros, dentre os quais Psicanálise na civilização (Contracapa), O que dizia Lacan das mulheres (Jorge Zahar Editora), O inconsciente a céu aberto na psicose (Jorge Zahar Editora), edição bilíngue do Caderno Stylus 1: O corpo falante, O inconsciente. Que é isso? (AnnaBlume), Lacan, o inconsciente revisitado (Cia de Freud), Declinações da Angústia (Escuta), Seminário de leitura de texto: A angústia, de Jacques Lacan (Escuta) e Lacan, Lecteur de Joyce (PUF, 2015). E-mail:solc@wanadoo.fr
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Dominique Fingermann Psicanalista, AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano — Brasil. Engajada local, nacional e internacionalmente na transmissão da psicanálise e na formação do psicanalista. É autora de múltiplos artigos publicados em livros e revistas nacionais e internacionais, assim como do livro Por causa do pior (Illuminuras, 2005), em coautoria com Mauro Mendes Dias, e organizadora do livro Os paradoxos da repetição (AnnaBlume, 2014). E-mail: dfingermann@gmail.com
Elaine Starosta Foguel Psicanalista, mestre em Ensino, História e Filosofia das Ciências (UFBA). Membro da Associação Científica Campo Psicanalítico — Salvador. Analista Membro a Associação de Psicanálise de Porto Alegre. E-mail: elainefoguel@terra.com.br
Elisabete Thamer Psicóloga clínica. Doutora em filosofia pela Université Paris IV (Sorbonne). E-mail: ethamer@hotmail.com
Elisabeth da Rocha Miranda Psicanalista Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano e da Internacional dos Fóruns (AME) Fórum-Rio de Janeiro. Membro do Colegiado de Ensino de Formações Clínicas do Campo Lacaniano-RJ. Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Pesquisa e Clínica em Psicanálise UERJ com a tese intitulada O gozo no feminino. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Pesquisa e Clínica em Psicanálise UERJ com a tese A debilidade mental nas estruturas clínicas. Professora do Curso de Especialização em Psicologia Clínica — PUC-RJ. Membro do Conselho Editorial da Revista Marraio — publicação de Formações Clínicas. Membro do Conselho Editorial da Revista Affecctio Societatis, da Universidade de Antioquia como parecerista. Autora de diversos artigos publicados no Brasil, França, Espanha, Colômbia e Austrália. Organizadora do livro A clínica do ato com Georgina Cerquise (7 Letras, 2013).
Fabiano Chagas Rabêlo Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano — EPFCL, Professor Assistente do Curso de Psicologia da Universidade Federal do Piauí — Campus Parnaíba. Endereço: Rua Marc Jacob, 484, Apt. 203 - CEP 64202510 - Parnaíba — PI Tel.: (86) 9809-1277 e (85) 8718-7005 E-mail: fabrabelo@hotmail.com
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Kátia Botelho de Carvalho Psicóloga, especialista em psicologia pela UFMG. Mestre em psicologia pela UFRJ. Professora Adjunta da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Psicanalista membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano-Fórum BH. Rua Aimorés, 462/520, CEP 30140-070, Belo Horizonte, MG, Brasil. E-mail: kaboca@terra.com.br
Luciana Guarreschi Membro do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo. E-mail: guareschi.lu@gmail.com
Luis Izcovich AME da EPFCL-França. Membro fundador dos Fóruns do Campo Lacaniano na França. Médico especialista em Psiquiatria. Doutorado em Psicanálise pela Universidade de Paris VIII. Docente no Collège de Clinique Psychanalytique de Paris. E-mail: alizco@wanadoo.fr
Marc Strauss Psiquiatra, psicanalista. Ex-residente dos Hopitaux Psychiatriques de la Région Parisienne. Ex-assistente de Consultas no Hospital Sainte-Anne (Paris). Membro Fundador da EPFCL, AME, Docente no Collège de Clinique Psychanalytique de Paris. E-mail: strauss.m@wanadoo.fr
Maria Claudia Formigoni Psicóloga e Mestre em Psicologia Social pela PUC-SP. Especialista em Psicologia Clínica também pela PUC-SP. Especialista em Psicologia Hospitalar pelo HC FMUSP. E-mail: mclaudiaformigoni@yahoo.com.br
Maria Luisa de la Oliva Psicóloga especialista em Psicologia Clínica. Psicanalista, AME da EPFCL. Docente do Colegio de Psicoanálisis de Madrid e Membro do FPM. E-mail: oliva2@cop.es
Paulo Marcos Rona Psicanalista, Membro do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo, Doutor em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo. E-mail: paulo.rona@terra.com.br
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Raul Albino Pacheco Psicanalista AME da EPFCL-Brasil. Membro do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo, onde coordena a Rede de Pesquisa Psicanálise e Saúde Pública. Professor Titular da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde da PUC-SP, atuando no Curso de Psicologia e no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social, onde coordena o Núcleo de Pesquisa Psicanálise e Sociedade. Psicólogo pela PUC-SP e Mestre e Doutor pelo Instituto de Psicologia da USP. E-mail: raulpachecofilho@uol.com.br
Vera Pollo Psicanalista. Doutora e Mestre em Psicologia pela PUC-RJ; D.E.A. pela Universidade de Paris VIII. Analista membro (AME) da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, da Internacional dos Fóruns (IF-EPFCL). Membro do Colegiado de Formações Clínicas do Campo Lacaniano-RJ. Professora Titular do Programa de Pós-graduação stricto sensu em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida — Rio de Janeiro e da Especialização em Psicologia Clínica da PUC-RJ. Exerce a clínica no Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente (NESA/HUPE/UERJ) e em consultório. É co-organizadora de Comunidade analítica de Escola: a opção de Lacan (Marca d’Água Livraria e Editora, 1999); autora de Mulheres histéricas (Contra Capa Livraria, 2003) e de O medo que temos do corpo (Editora 7Letras, 2012). E-mail: verapollo8@gmail.com
stylus, m. 1. (Em geral) Instrumento formado de haste pontiaguda. 2. (Em especial) Estilo, ponteiro de ferro, de osso ou marfim, com uma extremidade afiada em ponta, que servia para escrever em tabuinhas enceradas, e com a outra extremidade chata, para raspar (apagar) o que se tinha escrito / / stilum vertere in tabulis, Cic., apagar (servindo-se da parte chata do estilo). 3. Composição escrita, escrito. 4. Maneira de escrever, estilo. 5. Obra literária. 6. Nome de outros utensílios: a) Sonda usada na agricultura; b) Barra de ferro ou estaca pontiaguda cravada no chão para nela se espetarem os inimigos quando atacam as linhas contrárias.
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Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 30 p.1-192 junho 2015
ISSN 1676-157X junho 2015 no 30
Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano ‒ Brasil Amor e Sexo
... o amor é a verdade, mas somente enquanto é a partir dela, a partir de um corte, que começa um outro saber que não é o saber proposicional, a saber, o saber inconsciente... O amor é dois meio-dizeres que não se recobrem. E é isto que faz o seu caráter fatal. É a divisão irremediável. Eu quero dizer à qual não se pode remediar, o que implica que o mediar já seria possível. E justamente, não somente é irremediável, mas sem nenhuma mediação. É a conexidade entre dois saberes enquanto são irremediavelmente distintos. Quando isso se produz, isso faz algo... muito privilegiado. Quando isso se recobre, os dois saberes inconscientes, isso dá um baita rolo. JACQUES LACAN OS NÃO TOLOS ERRAM (15/01/1974) Isso poderia se dizer assim: o ser sexuado não se autoriza senão de si mesmo . É nesse sentido que ele tem escolha, quero dizer que aquilo a que a gente se limita, para classificá-los como masculino ou feminino no estado civil, isso não impede que ele tem escolha. Isto, obviamente, todo mundo sabe. Ele não se autoriza senão de si mesmo, e eu acrescentaria: e de alguns outros .
ISSN 1676-157X
JACQUES LACAN OS NÃO TOLOS ERRAM (09/04/1974)
s t y l u s
epfcl brasil
30 junho 2015
stylus R E V I S TA
DE PSICANÁLISE
Amor e Sexo