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Vício

Sou um perturbado. Isso afirmo, à luz de dias sem fim, nos quais intentava curar-me; dias inúteis! Vivo aterrorizado por devaneios irracionais, e assim absorveu-se minhas décadas em sofrimentos sem sentido. Não obstante, contraí matrimônio, e me fatiguei com o teatro onde, podeis imaginar, meus demônios ganharam proporções extravagantes. As ocorrências mundanas e sociais se realizavam como uma corrente natural que afluía em um cenário antagônico, e minhas ilusões me acompanhavam... Sob o jugo de poderosas paranoias vivi por anos infinitos naquela cidade suja. Por ruas desoladas e sombriamente vazias perambulei. Havia gritos naquelas esquinas. Os anos passaram pesados sobre mim e moviam os potenciais de minha existência. Toda a vida transmutava-se

ao ponto até de não mais reconhecê-la, e minhas ilusões ainda estavam comigo. Já o denunciou minha narrativa, que sou esquizofrênico, e o efeito do palco me foi devastador, e diante de vasto campo de potencial imaginativo, meus fantasmas iam e vinham com livre curso. Por não só uma vez deixei a peça à hora de entrar; mudava os textos no momento mesmo em que encenava, e perdia de uma única vez a simpatia de muitos. E tudo fazia eu pelo medo, e para livrar-me dele. E dissipei então minha atratividade artística, assim indo enfurnar-me nos enredos melancólicos da escrita. Embora minha criatividade necessitasse também travar competição constante com minha doença mental, a solidão cada vez aumentada em que eu laborava me rendia alguma produtividade, e o dinheiro, que agora milagrosamente eu ganhava com aqueles textos me influenciava a assim permanecer. Ademais, com reverência eu trabalhava, duvidando de que se não fosse isso, eu tivesse capacidade de sair à rua, para qualquer outra coisa. Assim, minhas inspirações se tornaram finalmente cinema, e assim se detiveram, cônscio seu criador de que precisava desse claustro distante, ainda que o mesmo irremediavelmente representasse sua definitiva ruína. Passo agora a retratar ataques nervosos de natureza obscura, um tanto vergonhosos à concepção humana. Segredos que julgamos esconder, como quem prende um pensamento e o proíbe de se facetar. Assim escondemos o que achamos ser de natureza sólida em nosso caráter, e com horror convivemos com esses julgadores. Pois tais mistérios existenciais me vitimaram, até ao ponto de me separarem gradativamente da convivência co-

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mum. Assim, confraternizava com meus demônios, e ouvia de sua redenção, enquanto recusava com nervosismo aos convites de qualquer pessoa. Não era de minha ignorância que Antônia sofria intensamente por isso, e não era sem arrependimentos que eu afligia aquela que me vinculava à vida. Acaso me julgaríeis? Desconsideraríeis minhas convicções por andar bêbado e às vezes drogado? Pois para constrangimento vosso é que afirmo que é ao passo que não esclareço uma simples charada popular, que desvendo os mistérios mais inacessíveis do universo. Não obstante a tudo, a resiliência de minha vida social me espantava e escravizava de maneira inexorável. Meu círculo de afeiçoados se renovava tão logo os antigos conhecidos cansavam de minhas manias, e trazia novos delírios e ansiedades. As pessoas, não entendendo eu como, se interessavam por minha persona, e me era motivo de peso o ser impossível a mim retribuir, já que o afeto em mim só eclodia diante da face de Antônia. Era a ela que me achegava, e nela me aconchegava, quando meu laboratório de criações esfriava demais, e o arrepio percorria a espinha sem admitir controle. Orgulhosa de minha emergente fama, ela mantinha todas as relações que eu facilmente e em pouco tempo destruiria. Ela, mais do que qualquer outra criatura, sofreu a pena de meus mistérios. Permanecia sozinha por dias, enquanto eu me isolava em meu quarto e laboratório, onde por anos eu não lhe concedia ingresso. Diríeis que pela inquietação do vinho é que a ofendia com rispidez, porém eu era obstinado no controle de minhas sensações, pensamentos e atividades cotidianas. Era na iminência e ameaça desse desregramento que me tornava irritadiço como um viciado. Ela, no entanto, não me tinha mais para sonhos etéreos apenas, mas da nuvem que

costuma confundir o amor imaturo, surgia um vínculo mais perene e lúcido, não condicionado ao retorno e compreensão a que estaria passível, porém passivo, não pretende interferir no que flui por virtude, e os arrebata de entorno tamanhamente vulgar. Por esse siso é que sofria e era vítima. Assim, de fato, em certo dia ela me apareceu junto a um produtor de cinema de considerável influência, interessado em minha obra. Ele demonstrou respeito e decência ao expor suas intenções, mas certo é que eu não tinha condições cognitivas para me comunicar. Mais certo ainda é que eu não queria nem financiamento, nem compromisso ou contrato, e aquele homem me proporcionava gradações de repulsa cada vez mais intensas. A forma como sentava-se, os detalhes de seus gestos, sua camisa! A textura daquela camisa não deixava a ponta dos meus dedos! Julgara eu mal ao ver uma passageira expressão arrogante de sarcasmo? Quem era aquele desocupado, para olhar-me de cima? A essas horas eu já me dirigia a ele com rispidez, controlando a raiva. Ele pareceu-me em certo momento notar, e sua expressão de espanto atiçou ainda mais meu furor. Voltei a mim quando pude ouvir a segunda parte do que do que Antônia lhe dizia. — ...ele é um excêntrico. Por isso peço que lhe entenda se lhe for relapso ao comunicarem-se virtualmente. Você pode me contatar no momento em que precisar, para que eu fale em nome de Daniel. Bem, essas singularidades não lhe devem ser estranhas. Daquela vez o tolerei, mas eu bem sabia que ele fora com a firme intenção de me afrontar. Agora todos dizem, certo é que dizem: estás louco! Mas eu! Eu que vi o desdém, eu é que explico que o sofrimen-

to me consumia e coagia, ó indignados! Continuo, a despeito do que julgais. Meu espírito velava o momento de subjugá-lo, e assim que vi suas costas e se passaram as impressões daquele dia, empenhei-me em marcar um abstruso encontro com aquele com quem tinha contas a acertar. Chamei-o àquele encontro de aspecto esdrúxulo, culpando por isso a extravagância de minha personalidade. Eu bem poderia ter conseguido domar-me, e contentar-me-ia em envenenar sua autoconsciência e minar sua confiança devorando-o e depois o cuspindo. Naquela noite, porém, minha perturbação estava acentuada, e o ódio e a dor (sim, a dor!), assolavam qualquer disposição para a ética. Toda a minha ira era razoável! Na noite da data marcada, um anseio febril levava-me de uma janela à outra, e exultei ao ouvir seus passos ecoando no piso inferior. Certamente, ele estranhou ter de adentrar a casa fria, sem ninguém que o recebesse. Mais ainda certamente o impressionou o silêncio opressivo, antes que o ambiente se enchesse de uma música clássica e dramática, que fiz ecoar propositadamente. Foi também para divertir-me com suas impressões que deixei meia taça de vinho sobre uma mesa, e todas as janelas abertas, o que àquela hora da noite, sugeriam um estranho e total abandono. Ao adentrar o quarto, ele achou-me prostrado entre muitos livros, de onde parcialmente tirei a visão para saudá-lo. Eu vestia um roupão de veludo negro, que me cobria dos pés à cabeça, peça das apresentações de teatro. Seu espanto divertia-me, e tudo aquilo eu fazia para que lhe parecesse ser desdém, para lhe esconder que desejava molestá-lo como se fosse o único no mundo.

Mostrei-lhe uma poltrona, onde ele sentou-se depois de alguma relutância. Descobri em seu olho, revelado pelo único clarão de luz que iluminava o quarto, que ele estava retraído e com medo. Livrei-me dos muitos volumes que me rodeavam e encaminhei-me para servir duas taças de vinho. Uma delas lhe ofereci, cujo veneno, o negror vergonhoso daquela noite omitia. O belo líquido que tingia a taça aparecia soberano, e ofuscava até mesmo minha astúcia e malignidade. Teria o poder, a vergonha daquela noite, de encobrir também uns pinguinhos de meu ansiolítico, que lhe dei com o fim de deixá-lo mais receptivo aos meus apelos à sua imaginação? — Bem, Daniel, como já te mencionei, acho interessante sua ideia no roteiro que li... Percebi o quanto o ambiente lhe oprimia, e acendi um abajur, para lhe desimpedir a fala. Antes tivesse eu me abstido de tal gentileza. Antes, poupar-lhe-ia o direito à existência. Não tivesse eu acendido aquela luz sobre seu espírito teria eu esquecido, quem sabe, sua repugnante ignorância, sua altivez infundada, e aquela... camisa macilenta, agarrada à sua pele. — o drama de um viciado... — ele continuou. Oh! Ele entendia minha obra assim como um cachorro que ladra para nossas conversas. — Bem, permita-me dizer que não reproduzo histórias, e na referida, tive muito empenho em depositar diversas nuances de caráter ético e literário. Ele levantou-se um pouco distraído agora, e sem me dar resposta, caminhou enquanto bebericava do vinho condenado. Minha exposição o havia dado confiança, e isso reacendia minha ira inicial. Diante de seu silêncio, que permanecia, agravei o tom de voz e dei livre curso à fala, que usava,

como todo o resto, para impressionar e atrair atenção. Ele não demonstrava refletir, era certo que o remédio lhe concedia os primeiros lapsos. — Quando criamos nosso enredo, sempre nos sussurra o anjo da luxúria, morador das paredes, violador dos homens e sua livre escolha. Aqui, porém, longe de meu fascínio particular, de minha disposição irrompida, a mais límpida história concebi. Deixei o capuz do roupão cobrir um pouco mais meus olhos, aumentando o contraste com minha face alvejada pela maquiagem. Decerto direis agora que sou um desocupado, e estaríeis certos, não fosse a legião de considerações que me põe a trabalhar diuturnamente. — A contemplação do objeto criado — perseverei — sempre é adentrar onde está a “coisa” incriável, que lá jaz para excitar-nos perpetuamente com a consciência de sua existência. De forma alguma, porém, a alcançamos, nessa inatingível sublimação. Eu, desconhecendo se seu silêncio era ignorância, desdém ou efeito do remédio associado ao álcool, tinha os nervos gradativamente mais afligidos. Seria com prazer que concluo esse drama? Minha carne treme e desespera da vívida lembrança daquela taça meio bebida onde despejei todo o conteúdo de minha receita alucinógena. Ele aceitava a bebida que brilhava, esquecendo daquele com quem estava conjurada. Cada gole que entornava lhe extorquia as faculdades mais básicas. Lembrem-se do início de minha discorrência. Em mim não se ausenta o sentimento, nem mesmo a culpa, mas aquele verme que antes habita minha cabeça me engana e me prende àquela ignóbil noite.

Eu ainda falava, quando ele estendeu-me a mão para ir embora, e senti em sua sudorese repulsiva, que havia algum tempo, seu interior se agitava. — Sabes o que pretendo se estiveres decidido, avise-

-me.

— Bem sei que vieste para me importunar — assim vociferei, segurando sua mão, e ele me lançou em rosto uma expressão de espanto que infamava minhas justificativas, me infundindo uma incontrolável raiva. Uma vertigem o levou cambaleante em direção à pol-

trona.

— Bebi tanto assim? Ora, se todos os espectros naquele quarto me eram favoráveis testemunhas, ao inquiri-lo de sua perseguição. Apenas uma vez me assaltou a ideia de que eu não tivesse razão. Ainda, porém, que ele estivesse sob meu domínio, o via em posição superior. Ainda que o deixasse em uma poltrona de agonia, seu sorriso de arrogância me expunha ao seu julgamento infame. Assim, eu o privava permanentemente do convívio com os homens, e o assistia minguar por horas derradeiras e silentes. Antônia hoje, ao adentrar o quarto de minha vergonha, perscruta intuitivamente por minha ignomínia, e assediada por sombras que lhe sussurram do mal, entranhando nas paredes, procura por minha natureza decaída. Antônia! Não foi tua decência que te levou aos armários, às estantes tão cheias de histórias, aos recessos onde habitam as contradições de minha identidade? Quem te enviou à poltrona onde descanso minha cabeça e a fez, atraída por emanação repulsiva, trinchar o móvel que acolhia aqueles ossos denunciadores, sobre os quais todos

os dias eu deitava meu domínio? Ingênua foste tu! Meu segredo não era nobre ou artístico, mas um cemitério de pecados. Sim, eu a morte promovi, e dela me apossei, como se assim me tornasse mais eterno. Se quiserdes me julgar, vão em frente, acrescentem dores à esta existência, soneguem à minha consciência o direito de respirar. Receberia eu absolvição, após a luz ter alcançado a escuridão daquele quarto, por mim julgado o mais perene dos esconderijos? É certo que não me justificaríeis, afinal não sou nenhum justiceiro, nem matei por delírio ou vingança, mas por brio. E a frustração os consumiria se dissesse que nunca paguei pelo que fiz. Sequer uma afronta suportei, não houve agonia que me atormentasse, nem sangue que me sujasse. Me deixaríeis terminar meu enredo ao som de uma beleza triste sem perguntar-me quando desobrigarei minha alma?

Alguém aí está dizendo que não se trata senão de uma alucinação vaidosa e narcisista. Deus me concedesse isso! Pois a vaidade é mais frívola do que a loucura. Não! Antes, estou preso ao abismo da consciência. E quando ando pela casa, de onde não posso mudar-me, a impressão de cura vem das paredes que me apartam, embora das mesmas venha a voz, não sei se esquizofrênica ou amiga, que diz: “— Deste crédito demais à tua loucura!”

No topo da montanha A quem eu acharia? Outro além de alguém que já estivesse lá? Pai da Criação, Anel de autoridade Vim buscar, contra a densidade que chega de uma noite que jamais amanhecerá. A quem encontraria eu? Um poeta das luzes com insígnia sacerdotal Guardião da receita mágica que matará a morte. A quem encontrarei eu? A quem encontrarei... Eu?

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