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O breve sentido de Alfredo

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Caroline

Caroline

Espreitei a noite, com seus mantos de neblina. O vento tocou-me o rosto, trazendo um viço repentino. Observava eu a lúgubre paisagem, quando o assobio de um pássaro noturno despertou minha alma absorta em tal eclipse romanesco. O fervilhar de minhas ideias entravam noite adentro. Sou volúvel, irritadiço, maníaco, meu mal é a misantropia. Alguém certamente pensará, dirá ou romanceará que eu deva ser mais... equilibrado. Sabe, equilíbrio, e eu não ousarei questionar o valor do ônix do cidadão moderno. Não questionaremos então, mas façamos um rápido experimento teórico. Sim, dispomos de tempo. Vejamos! Pensemos em dois homens. Enquanto um está a viver as experiências mais excitantes de sua vida, sem jamais estabelecer uma relação de custo-benefício para com suas atitudes, temos

por contraponto um comedido cidadão, que passeia com a família aos domingos. Este desfrutará longos anos em um lar aconchegante, e na segurança de um trabalho perene. Ao alcançar a meia idade, ou quem sabe antes, sossegará em estabilidade financeira, e é bem provável que continue a trabalhar depois da aposentadoria. Enquanto isso, seu antônimo terá como seu mais íntimo e fiel amigo o prazer, até que esconder-se-á de si mesmo aos trinta anos, e aos quarenta, estará a desfrutar as dívidas da existência, caminhará melancolicamente, e carregará uma arma, por escusos motivos. É certo que o primeiro se arrependerá, mas não mais do que o segundo. As aventuras não vividas do cidadão prudente lhe renderam alguns trocados para a velhice, e ele pode dormir à noite, mas quanto ao outro... Certo é que pode nenhum desses desdobramentos ocorrer, devido à natureza relativa dos movimentos da vida. Oh, é claro, algum crente de leis físicas, palpáveis e previsíveis objetará que isso trata-se da lei da semeadura. Sendo assim, colocamos em delicada situação os agricultores da vida. Notamos, porém, interessante semelhança entre nossos dois modelos. Semelhança essa que os aproximará, e quem sabe até os unirá. Tal ponto em muitas fases de suas vidas, ou quem sabe em todas, os intrigará, causará desconforto e um olhar soturno de questionamento interior. Eles farão muitas coisas, motivados pelo desejo de preencher essa lacuna marcante em suas existências. Talvez esse desejo sobrepuje a ganância, os valores e até o amor. Há os que apostam tudo por causa desse desejo, há os que perdem tudo. O fato é que nenhuma das duas pessoas em questão encontrará um sentido, real e fundamental, para sua existência. Assim caminharão dia após dia, sombria e resignadamen-

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te para seus túmulos escuros, ignorantes do que os espera, se algo os espera. É o papel de todo homem, isso é lógico, até demais. Consideremos ainda outra situação: o indivíduo é extremamente religioso, e acredita ter lugar reservado e certo no pós-morte, mas o primeiro fato terrível em sua existência o força a confessar prematuramente que acreditou em algo que julgava nunca aproximar se. Faço essas declarações com o fim de introduzir-te ao mote dessas poucas páginas. Enfado-te leitor, eu sei, falto-te com atenção com estes devaneios e aparentes digressões. A pertinência de tal relato talvez sejas a ti motivo de assombro, se não estiveres, assim como estou hoje, com os olhos pregados aos mistérios que a noite reserva aqueles que suportam acordados perante horas de esterilidade noturna. Há os que desejam com paixão, presenciar as ocorrências durante o sono coletivo. O que ainda nos resta de verdadeiro é a vontade, para isso é preciso estar desperto. Passo a vos narrar a peculiar história de José Alfredo. O outono ainda esparramava suas reminiscências, quando sua figura saudou-me após uma porta que com pouca frequência se abria. — Mas olha! — Boas disposições me trazem, amigo meu. De fato, estava ele com um viço juvenil. — Fico feliz que venhas até mim com boas notícias. Oh, meu amigo! Depois de observar a sala, como a certificar-se de que eu me encontrava sozinho, consultou o relógio e sentou-se. — E então, Carlos, o que tem achado da vida em frente à uma lareira? — Ora... você me falando nesses termos.”O isolamen-

to é identidade da razão”, discurso teu. — A razão tem suas etapas... tenho projeto novo. Por um momento, pensei que zombava. — Você, que me censurava até o hábito do vinho? — Somos velhos, Carlito. — Qual não foi minha surpresa quando o mirei se dirigir até o bar e servir-se de uísque — Até agora tantos ventos nos carregaram. Por não haver alcançado justaposição em doutrina alguma, hoje sigo outra entidade. Seu nome: tu podes. Observei-o quase involuntariamente por dois segundos. Ele pareceu não se importar, e me ofereceu da bebida com um aceno. Ora, Alfredo era o personagem que vos descrevi ao iniciar esta narrativa. Um tipo mais conservador do que eu conseguia ser. Trabalhava no comércio, no ramo da pecuária, e apesar de dominar muito bem nossa língua e a exuberância de nossa gramática, era de poucas palavras, e repelia com veemência a conceitos que lhe parecessem estranhos. — Venho a lhe comunicar que desde já viverei uma outra vida, que não tive oportunidade antes de escolher. — Poder libertar-se de hábitos antigos é uma habilidade muito útil — procurei dar-lhe razão. O canto de sua boca sorriu, como se eu estivesse sendo ingênuo. — Trata-se de um pouco mais do que isso. É certo que tudo são hábitos, mas não se trata assim de tirar a tevê do quarto, ou tornar-se vegetariano, você entende? — Veio com o propósito de instigar-me, então! — Verás! Não deixaria ignorante um amigo de tanto

tempo.

— Me parece um tanto aventureiro, meu amigo — tentei debochar, mas palavra fiel é que não consegui. A resolução que trazia em sua expressão me seduzia.

Sua certeza me fazia concordar com tudo. Era como o calor de um aquecedor, que nos envolve e convence, ao ponto de nos fazer esquecer que lá fora está frio. — Ah, Carlos! Não tenho mais a quem causar dano ou falta. Desde que Elzira nos deixou, não tenho mais vínculo de compaixão. Ele abriu os olhos, como se estivesse lembrado de algo, e continuou: — Sabe, há os que exaltam o poder do sangue. Porém, eu que sou devoto da livre escolha, antes que da genética, não estranho que o Homem tenha o costume de se desvencilhar de sua primeira família, para formar outra, onde sua vontade participe mais efetivamente... E também não me admira que a segunda lhe inspire mais afeto que a primeira, pois representa justamente sua escolha livre, seu domínio, após um jugo de anos.

— Observaste bem, estimamos nossas escolhas ou o que as representa. — Pois bem, conforme deixamos de ser criança, e nos passa a descortinar-se um horizonte de muitas possibilidades, passamos aos poucos a desenvolver a habilidade da rotina. Isso a fim de evitar escolhas equivocadas. Presumimos alcançá-lo ao não adotarmos novidades. Se em algum momento, por acaso, nos pegamos a caminhar às dez da noite, isso nos inquieta, e é possível até que nos traga sensação de mau agouro. Procuramos organização, e o tempo, tão alheio aos julgamentos a respeito de si próprio, é representação disso. — Ora, e precisamos —repliquei— Todos temos muitas obrigações, e são inevitáveis.... Mesmo aos aposentados hehe. Imagine tudo isso sem uma ordem a nos manter o norte?

Seus olhos brilharam de um reflexo assim, como o de

um farol, que vem de algum lado, e ofusca de repente. — Desde agora, viverei uma vida diferente! A compaixão da família nos tolhe a muitas coisas, e não é de admirar. Mas digo que há o que foge de nosso controle de poder escolher. Por isso e mais um pouco, certas decisões só são tomadas a custo de bastante idade. — Mas porque me diz tudo isso, Alfredo? Procurei o que retorquir, mas não achei. Continuei, procurando um tom mais prático, mas a resposta não me veio no mesmo pé: — Meu amigo, a vida frequentemente eclode de uma interrupção entre duas atividades, mas por vezes não reconhecemos tal evento, e a adiamos para um momento ideal posterior ou póstumo, para onde a epifania já se tornou estéril.

Não compreendi de imediato. Tal como o vinho se confunde pela estética ao sangue, não sabia se sua ilustração tratava-se de nascimento ou morte, prazer ou fisiologia bruta. Não vendo outra forma de pôr termo ao assunto que se tornava cada momento mais nebuloso, procurei trazê-lo ao nosso modesto mundo palpável: — Almoçaremos juntos, claro. — Seria muito agradável, mas já estou indo. — O que? Que visita é esta? — Preciso ir, meu amigo. — Mas não me dirás, com efeito, quais são seus pla-

nos?

— O homem é encarregado de suas desventuras, sem ter efetivamente a quem recorrer, e nisso há uma só lição: a de que ele é o dono de seu bem, e não há quem o possa tolher. Farei algo por mim, pois não há salvação fora de nós mesmos. Tendo dito essas sublimes palavras, ele foi-se, e eu per-

maneci ali, a pairar na nuvem que ele deixou, sem por isso isentar-se de carregá-la consigo. Minha reclusão providencia-me luxos, dentre estes está o de que não preciso medir o tempo de minhas reflexões, e até imaginações. Alfredo trouxera-me inspiração, e assim fiquei, criativo e imaginativo, e menos que meia dúzia de horas depois, recebi via e-mail uma notícia vestida de tristeza. E vinha assim, tentando proporcionar conforto a algo inevitável, pretenciosa de conhecer o mal do Homem: “Sr. Rafael. Somos cientes da amizade e consideração mútuas entre você e Alfredo Diniz. Portanto, com muitos sentimentos lhe informamos de seu falecimento. Como é certo que saiba, nem ainda vinte e quatro meses após o sepultamento de sua esposa e muito amiga, esperava por notícias de sua única filha, desaparecida há algumas semanas. Todos nós aqui de sua família receamos tais sucessos terem sido carga pesada demais a nosso amigo. Seu corpo foi encontrado em aspecto irreconhecível não muito longe da encosta do rio onde pessoas repararam a presença de um barco que estava ancorado e vazio fazia dois dias.

Bem, você sabe, ele não costumava entrar em água, muito menos a dez graus. Apesar do horror, todas as evidências apontam para que não estejamos diante de um crime, e nós aqui também não temos esta suspeita. Basta que nos convençamos de que foi um acidente. Que Deus nos providencie essa certeza!” Toda a teia se conectou para mim, e contemplei-a com horror inicial, ascendendo meus escrúpulos, e por fim, minha curiosidade mais profunda. Como se a informação daquela mensagem representasse meus desejos mais reprimidos.

Como Alfredo conseguira tal feito? Sublimei sua coragem, invejei-o, chamei-o frio, inteligente. No entanto, a pergunta capital não era como ele empreendera tal aventura, mas o porquê. De fato, para viver de uma forma que nunca antes o fez, o anonimato é confortável. Sem as influências, convenções e conselhos de seu círculo. O pior, as censuras, escrachadas ou tácitas, escrachadas depois tácitas, de pior forma, daquelas que pretendem lhe descobrir seu mais horroroso destino. E sim, é preciso estar muito decidido quanto ao que se acredita, para que se rompa vínculos tão próximos. Seria romper com as próprias referências. Ora, o olhar alheio talvez enxergue como tolice ou exagero, mas certo é que um conceito liberado pelo pai, enquanto somos adolescentes, quase com a despretensão, beleza e sedução de qualquer historinha moralista para crianças, pode às vezes ter o poder de influenciar decisões por uma vida inteira. Não que eu creia que tais sugestões não tenham acompanhado meu amigo aos confins que tenha escolhido. Porém, quando nosso sofisticado sistema psicológico se nega a encontrar sua autenticidade por si mesmo, necessário se faz uma ajuda artificial, para que entre nos trilhos. Tolo é aquele que rejeita tais atalhos. Em minhas análises, de cunho quase terapêutico, me sobreveio uma ideia, quase uma epifania. A de que Alfredo queria, não no âmbito mais concreto, coletivo ou trivial, mas no subjetivo, interior, queria ele ser livre de suas associações mentais. Nisso me excitou uma curiosidade um pouco sádica. Estaria ele praticando algo de ilícito? Eu poderia estar romanceando demais suas atitudes, e esquecendo de sua inclinação utilitarista e prática?

Teria ele alterado o horário de seu café da tarde? Minha mente envergonhada migrou para essa questão mais trivial, mas não menos importante. Tal e qual questão, os métodos de meu amigo, por hora me encobriram. A garoa, agora muito fraca, já não molhava a vidraça. A claridade que se seguia sugeria até a possibilidade de uma olheira de sol ainda naquele dia. Isso deprimiu-me um pouco. Fechei as cortinas de um golpe e servi-me de meia taça de vinho. Sorvi um gole, arrependido lancei mão da garrafa e completei a taça. Sentei-me em frente a lareira, estava frio, e refleti mais um pouco. Refleti, gostosamente refleti.

Tenho toda a esfera sem limites a ser colonizada e um campo energético vazio, e o rio, e o vento, e todo elemento de vinte e quatro horas. Para manipular como convém tenho toda a covardia das três dimensões. Na retina, tenho os pregos ignorados e uma fronte cauterizada por quantidade imensa de idade e vida cristalizada, comovida e convencida por cada uma das sete cores de uma eletricidade translúcida convergente, resplandecente. Eu tenho coragem suficiente para amar e o céu para voar!

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