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Cíntia
Cintia era. Da flor o jardim; antes, o adubo perante o qual o jardim com devoção lhe estende e caules dependentes de sua força. O lado de cá da narrativa me concede algumas palavras espontâneas, que não ousaria dizer ante sua face, posto que não minto. Pois ela não tinha nenhum interesse em ser a flor que enfeita, nem adubo que fortalece, nem mesmo jardim inteiro, mas o jardineiro, que controla, interfere e decide. Suas mãos escolhem o que nascerá; se a natureza não lhe convém, nenhum pudor terá em alterá-la, exterminá-la, replantá-la. Era isso o que Cintia era, ou antes seu último ensejo Era do tipo tinhosa, que fazia dar certo e se ria de potenciais e probabilidades. Não podia ser chamada intelectual, posto que estudasse dia e noite. Era se todo o conhecimento mundano lhe fosse apenas exercício sem os quais se senti-
ria terrivelmente entediada. Não era feia e era difícil dizer se era bonita, sua face de uma palidez incomum não transmitia nada além de uma frieza muito distante. Não usava adereços e nem mesmo suas roupas permitiam alguma definição sobre si mesma. Apesar de não usar maquiagem, seus olhos, sua pele, ou algo que não poderia ser mais bem definido do que a aura de seu rosto era estranhamente escura. Um dia se apresentou tal situação, mas ela não conhecia nada que fosse maior que sua soberania, pouco caso fazia das ameaças que a vida tentava imprimir. Sua passagem pelos pisos santificados das universidades não lograram limpar a profanidade de suas solas, nem lhe impuseram manifestação bélica. Andava envolta em um espírito um tanto animalesco, do qual ela mesma não era consciente. Seus colegas, embora não confessassem, a temiam. Seu impulso pelo conhecimento não a permitia que visse mais muita coisa. Trazia sempre a tensão onde sentasse. Isso nem um pouco a irritava; que não conseguissem permanecer em sua presença, até preferia. Não se detinha em tais puerilidades, e o tempo que lhe sobrava lhe parecia sempre insuficiente. Assim, o prazer da interatividade ia minguando à sombra de seu mundo individual, que parecia ocupar tão bem todos os espaços. O contato social cada vez mais lhe parecia improdutivo, e motivo para ansiedade. Ela sabia que contavam com alguma vulnerabilidade sua, a fim de ver sujeito seu espírito impregnado de uma superioridade misteriosa, mas permanecia insensível a isso. Apesar de uma servilidade cega a um razoável mundo de enigmas, para os quais já se tinham respostas exatas, Cíntia não desconhecia o teor atômico da natureza que carregava. Em momentos em que estava a sós, após longas leituras em meio às quais se esquecia de vigiar o chegar da noite; em que
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parecia trair sua noção temporal e pular aleatoriamente para um vácuo impressionante, onde a noite era desprendida do dia, ou de qualquer subsequência. Em tais momentos, essa lembrança se revelava de forma tão presente, que ela afirmava estar gerando outro ser no silêncio da casa vazia. Outro ser, que olhava por seus olhos. A ansiedade a oprimia então de tal forma, que com vexame de espírito corria a desligar a música clássica, com suas notas efusivas e dramáticas. O vento, porém, daquela cidade cinza, com rajadas estranhamente comunicativas, sustentava a sensação, que ela lutava para que se descolasse de si. Nas aulas, se um dos professores, por malogrado que visse seu efeito de superioridade sobre Cíntia, abandonava o desafio, e alguém logo se intrometia a expor conhecimento análogo ao assunto, para que o mesmo morresse mais adiante, com louros mundanos e superficiais. Todos se esforçavam para tê-la por apenas mais uma nerd, mas não podiam, e sua presença os incomodava. Seu distanciamento desafiava aqueles que tinham por certa sua inferioridade e sua inflexibilidade lhes era uma afronta, e um tormento. Quando a isolavam, ela não estava ali, obstruíam o corredor que ela não escolheria, lhe deixavam os piores trabalhos e ela se deliciava ou cuspiam no chá que ela não beberia, e de maneira alguma a alcançavam. No tumulto das saídas pelos corredores alguém como que na ânsia em ver aquele caráter desconcertado pelo tangível e julgando-se recôndito, alcançou-a e lhe puxou as calças, deixando-a seminua por um momento. Cíntia olhou ao seu redor e reparou algumas expressões de satisfação em ver sua figura finalmente desmistificada, bem como, algumas de espanto, porém nenhuma de empatia. Sentiu uma vibração violenta e um tanto desconhecida. Pas-
sara pela infância e adolescência sem experiências emocionais significativas. Seus órgãos eram agitados por tal energia, que a impelia como expressão mais primitiva e autêntica ao que seus sentidos determinassem. Era o ódio! Não obstante seu sarcasmo, o malfeitor se viu estranhamente subjugado por uma força atmosférica. A sensação de peso e domínio era real, física. Desejou em segredo consigo jamais ter se dado àquela brincadeira maldita, ainda que achasse tudo aquilo impressionantemente ridículo e inacreditável. Todavia a força que lhe dominava lhe arrebatava o controle e se fortalecia, ao ponto das atenções de todos irem se voltando a ele. Todos perscrutavam aquela emblemática figura do jovem ajoelhado aos pés da extravagância que tinha diante de si. Os olhos de Cíntia, estáticos, pouco viam senão um rosto assustado e antes de tudo, digno da mais inquestionável culpa. O menino procurava recompor-se, grunhindo baixo, na expectativa de recobrar o domínio e escapar da vergonha presente. A força, no entanto, que lhe prendia em sujeição era real e aumentava rapidamente seu assombro e ansiedade. O zelador do campus, ao ver os estudantes concentrados, e o abatimento do aluno, julgou certo que alguém passara mal. Este, que cuja natureza peremptória o permitiria passar por toda a vida sem que a ausência de movimentos o angustiasse minimamente – sabe-se que há pessoas assim, que possuem a habilidade de permanecerem naquilo que são sem ansiedades, e causam grande desconforto aos de persona mais volátil, ou antes, para não incorrer em injustiça, passível de volatilidade – não sabia o que fazer com a variável que se insurgira a ele. O aspecto gélido e concentrado de Cíntia junto à reminiscência espectral daquele quase homem lhe provocara
um arrepio de ansiedade. Como um desenho sujeito aos arroubos artísticos de algum ser sádico, andava agora por todo o ambiente uma nuvem opressora, saída das paredes arcaicas, como se fosse sempiterna. Minava os corredores, através das portas. Todos a sentiam, e não a confessavam. — Olá, Cíntia! Cumprimentou a Reitora, que não partilhava de uma natureza passiva, e tinha pressa em contemplar algo da vida que a fizesse morrer sem temor. Desejava antes perecer de um coração ativo e jovem que sucumbisse ao exagero, em lugar da inércia que o fizesse pesar. Essa mulher tinha olhos grandes para o que lhe desafiasse. Era de uma elegância intimidadora, e nenhuma vez se deu que perdesse o controle de alguma situação. — Olá! Respondeu Cíntia, sem nenhuma perturbação. — Você deixou alguém assustado lá fora. Cíntia limitou-se a manter os olhos firmes em sua direção, sem ironia ou desrespeito, apenas como alguém que trata de um assunto que dispensa reflexão. Sua figura era impressionante. Como já está registrado, era naturalmente obscura, e deduzir-se-ia facilmente ao vê-la que nunca fizera nada em favor de sua estética. O aspecto de seus cabelos mostrava que cresciam e apareciam livres, e seu tom escuro destacava a cara lívida, muito lívida. Entre bonita e feia era coisa nenhuma. Ou melhor, era bonita, mas os padrões não se solidificavam sob suas formas. A roupa que vestia parecia ter sido escolhida por mordomo sobrenatural que conhecia sua disposição de espírito. O suéter cinza puído por cima de uma saia à moda senhora, de forma alguma lhe prestava ares de desleixo. Ao contrário, caía-lhe tão bem que passava a impressão de fazer parte de si. — Cíntia... sabemos o quanto a especialização de to-
dos é importante, mas percebemos que você estuda como se estivesse correndo contra o tempo, e parece não admitir conhecimento que não caiba... Ane, da biblioteca, nos reportou do teor abrangente de suas pesquisas, e que me confessou — o que ela considerou uma lisonja, visto que você praticamente não se comunica com os colegas — os cursos que tem em mente fazer, alguns de naturezas um tanto opostas como matemática e filosofia. Ela ainda preocupou-se com o tempo que você tem passado na biblioteca, e podemos supor que ela não veja comportamentos similares entre alunos de sua idade. A reitora, chamada Elisabete, examinava-a a expressão, a fim de deduzir algum contraste produzido pelo que disse. Com efeito, Cíntia sofria o tipo de uma convulsão interna, embora demonstrasse disso muito pouco. Seus dedos magros contorciam-se e se esfregavam em suor, e seu olhar parecia lutar contra uma hiperatividade. Uma rara manifestação mais emotiva, ou algo difícil de conter que lhe chegava com mais intensidade. — Embora minhas inclinações não lhes sejam muito patentes, eu lhe asseguro que sei o que faço e escolho. Somente pretendo entregar meu tempo a algo que me faça sentido, e imagine em que isso possa me beneficiar, e em que possa me acarretar em prejuízo. Senhora Elisabete, não tenho facilidade em cálculos que não estejam agregados a um conceito teórico, cálculo por cálculo não assimilo, tem que fazer sentido; preciso saber o que estou calculando, e o porquê do cálculo. Não poderia fazê-lo, sem de forma automática me fatigar com a análise... — ela interrompeu-se, como se estivesse a falar o que não convinha. Ao longo do que dizia, sentia uma ansiedade aumentando em gradações sutis, mas desconfortáveis. Dando um salto da cadeira, passeava pela sala e dizia: — Carreira... o que para você é carreira... a mim pouco
importa. Preciso acessar esse opressor em minha mente, tirar suas forças... A Reitora a olhava admirada, sentindo afastar-se suavemente da realidade, atônita com aquele espetáculo, e a julgar que a aluna seguramente estivesse perturbada. Era provável que os muitos estudos lhe tivessem provocado tal histeria. Que fascinante! O fascínio, porém, que lhe inspirava tão terrenamente, tomava formas abstrusas, que beiravam o transcendental. Com horror, constatou que as cortinas se moviam sem aparentemente estar ventando. E ainda mais assombrosa era a observação de que seus movimentos simultaneamente acompanhavam os gestos de Cíntia! Quis interrompê-la, lançar uma frase, mas como? Como interromper? Como malograr tão singular manifestação?
Semelhante a alguém que é encantado pela magnificência de um redemoinho, e inevitavelmente contempla sua beleza misteriosa, antes que procure emergir, assim explorava seus movimentos; estudava aquele fenômeno de potencial destruidor antes que a devorasse. E como alguém que está sendo atingido com recorrência, sua boca não obedecia. Cíntia continuava com ainda mais comoção: — Tudo, tudo o que absorvo é como uma fraca chuva, que deixa o solo temporariamente úmido... Aquilo já era demais! A chuva caiu, não como é o habitual da natureza, com prelúdios, pingos escassos, não, mas toda de vez, de uma só vez, no momento em que ela pronunciou a palavra “chuva”! Não vendo seus sentidos ou razão, nenhuma margem para truque, não pôde deixar de considerar que se achava diante de um tipo de encantamento. Seria ela algum tipo de espécie mística? Oh, no que estava ponderando!
— Cíntia! — a voz finalmente desimpediu-se — Vá para casa! Estás visivelmente alterada. Ela falou de forma brusca, e conseguiu a atenção de Cíntia, que mostrou estranheza, e suspendeu seu monólogo para ouvi-la. — Minha orientação pessoal, e também em nome da instituição que dirijo, é a de que você suspenda seus estudos por hora. Cíntia a olhou, totalmente admirada. — Não vejo nenhum motivo válido para tal recomendação! Como promotora de ensino, não deveria me aconselhar a isso... — Olhe! — ela a interrompeu pela segunda vez — Vejo-te perfeitamente responsável por si, e não tenho necessidade de comprovação além da que pessoalmente vejo em você. Se havia alguma particularidade intelectual em Cíntia que mais se chegasse à semelhança de algum déficit, essa seria a de que ela costumava ser lenta para palavras dúbias. Porém, a situação e o aspecto ameaçador das palavras que ouvia, a constrangia a que evocasse sua sagacidade. Ela lhe dirigiu um olhar tão firme, majestosamente firme, e ainda espectral, que quase fez Elisabete titubear. De um raio próximo ecoou um estrondo, e novas rajadas agora visíveis violentavam as cortinas. A chuva, agora em sua máxima intensidade quase impedia que conversassem. — Vá descansar, menina! Desafogue um pouco a mente para pensar com calma em que rumo quer tomar! — concluiu a Reitora. Cíntia apenas despediu-se com um rápido aceno e saiu, deixando com Elisabete o alívio. Saiu levando consigo a nuvem opressora, sem a qual Elisabete, na sensação de um sonho, jazia em ponderações, sem saber afinal qual a diferença
real baseava-se em um fundamento lógico, que provasse que o que acreditava ver fosse razoável, pois nos sonhos também se apresentam situações de tamanha lógica, que convencem integralmente o sonhador da veracidade do absurdo que sonha. Ao acordar, ele se ri e percebe que não faz sentido, mas no sonho fazia. Que padrão volúvel era esse então? O que faria do sonho acordado mais idôneo? Porque na verdade, nada precisa ser razoável para existir. Seu intelecto pesquisava algo de sóbrio, e recaía em impotência. Com efeito, aquela menina carregava um mistério não passível de uma elucidação racional. E assim, embebia-se daquela beleza um tanto sombria. Para Cíntia, os dias posteriores foram como os cúmplices mais silenciosos de horas cheias, povoadas, tumultuadas de informações e atividades que a iam enfiando em um estado meditativo tal, que se esquecia de todo e qualquer mundo. Suas estranhezas interiores instigavam violentamente sua compulsão pelos estudos. E assim passava dias inteiros e incansáveis a investigar fórmulas e toda matéria avançada de seu currículo acadêmico. A pobre criança julgava subjugar através do conhecimento de elementos convencionais, o monstro que ela hospedava, ou antes, que emergia de si e apropriava-se de suas células, fundindo-se em cada vez mais outra nova consciência. Ou ao menos esperava não ouvi-lo ou perceber sua presença. E assim passava, sem a capacidade de assimilar nenhum marcador natural que a fizesse comer, dormir ou observar os aspectos da estação de forma definida. À tardinha, parava a meditar diante do movimento da rua, que se apresentava de forma tão alheia, que ali ela permanecia por horas a observar espectros, e a meditar acerca do potencial de seus estudos. Com essa fissura no espírito
adentrava na casa escura, onde os elementos com os quais convivia lhe tornavam-se cada vez mais etéreos e distantes. Seus sentidos lhe traíam, ou com efeito adentrara um mundo de percepções mais acuradas. Ela lutava por entender aquele movimento que lhe ocorria de forma constante, lhe conduzindo a transformações várias, que lhe convertiam a deduções espantosas. E assim via sólidos objetos a movimentarem-se em sua frente, na infinidade potencial desse novo universo. Assim seus dias transcorriam, em uma migração do que havia nos livros para algo que jamais fora registrado ou descrito. A nuvem chamada Cíntia desimpregnara os compartimentos da Universidade, embora formasse ainda neblina densa nas memórias. À Elisabete recorrera a preocupação com o que se dera com a aluna, de quem ela agora se recordava não conhecer nenhum parente ou conhecido. Se a menina realmente sofresse de algum mal da mente, que a tivesse levando a acessos esquizofrênicos e maníacos, essa responsabilidade poderia muito bem recair sobre ela. No fundo, nem ela sabia que a lembrança de tal preocupação era obra também desse vermezinho da subconsciência, que era instigado a, comendo aos poucos, chegar aos domínios conscientes da mente, a fim de desvendar aquele enigma novo, que nutrira sua imaginação e lhe escapara, como se fosse mera impressão. Pois o mesmo verme a conduziu, sempre consumindo devagar para que não recuasse envergonhada. E assim Elisabete estava onde Cíntia escondera-se quase que involuntariamente do mundo. O ambiente estava escuro, e recebia luz entrecortada por cortinas brancas. Num silêncio sepulcral, jazia abaixo da luz solar vinda da janela, um corpo pálido e imóvel. Aquele corpo terrivelmente magro, dava à Elisabete a certeza de suas
suposições, e de que acertara na decisão de estar ali. Para ela, era certo que em seu ataque maníaco, Cíntia definhara sozinha, sem o conhecimento de ninguém. Porém, como a nota alta e surpreendente de uma melodia ela pôs-se de pé, e falava com desimpedimento e energia.
— Elisabete! O que veio ver? Elisabete, procurando recuperar o poder de dicção, disse com toda a formalidade que encontrou, mas sem frieza: — Vim porque estou certa de sua aptidão para continuar seu curso conosco – Na verdade ela não cria nisso, mas sentia-se tão exposta que falava a fim de aplacar seu constrangimento. O olhar incisivo de Cíntia, porém, a fazia ainda mais constrangida – ...e também todos os cursos que pretenda fazer, dedicando-se tão intensamente aos estudos... Cíntia não conteve um sorriso irônico. Era de impressionar como sua lucidez e vitalidade destoavam do aspecto mórbido de seu físico. — As coisas mudaram um pouco. Veja, que óbvio você aqui comigo. Bastou apenas uma questão, e você está onde a ilusão e a realidade se confundem. Elisabete procurava a sobriedade em meio a tantas flutuações bizarras, e tão poderosa persuasão que, aquela que seria uma simples menina exercia todas às vezes. Assim, tentava novamente falar, mas antes que conseguisse, um vislumbre tão rápido a precipitou aos níveis do terror. Pois ocorria que, da mesma janela pela qual há pouco entrava a mais viva luz solar, agora emoldurava um céu nebuloso e negro, da mais densa noite. Seus olhos giraram confusos, procurando a saída daquele sonho estranho. Cíntia, como uma visão, caminhava em direção à porta, descalça e pouco vestida. Tão leve, tão fluída, que parecia...
transparente. Ingressaram naquela noite distópica e gélida, mas Cíntia não demonstrava sentir frio. Ela certamente estava perturbada. Elisabete precisava sacudir de cima de si tais efeitos, e resgatar aquela jovem, o que agora era responsabilidade sua. Mas Cíntia andava cada vez mais rápido, até atingir velocidade absurda. Nenhum carro passava naquela avenida! Que horas deveriam ser, já que não havia mais nenhum parâmetro que a retomasse da loucura? Mas havia neblina, por entre a qual Cíntia desaparecia e ressurgia, como um vulto de outros mundos. A Reitora a perseguir, como cúmplice daquela noite de devaneios, mas não a alcançava, podendo apenas observá-la percorrer rapidamente aquele caminho e adentrar a mata densa, onde pareceu desaparecer por instantes. Já sem saber se movida pela curiosidade ou por ética pessoal, ela seguiu também em meio àquela floresta. Como uma ébria, pisava a relva molhada com violência, a fim de não perder a menina de vista. Àquelas alturas ignorava também onde estava, e seu único norte era o espectro de Cíntia em meio à escuridão daquele lugar sem saída. Um arrepio frio percorreu sua espinha. Seus pés pisaram uma nódoa gelatinosa. Estava cansada, sentia medo. Nunca acreditara em sensações místicas, ou que não estivessem debaixo da luz científica, mas seus sentidos lhe traíam com insistente resistência, e lhe causavam as mais pavorosas impressões. Nuvens cerradas abriram-se para a lua, e assim ela pôde perceber que pisara o limiar de um pântano, extenso e amedrontador. E como poderia ser possível que Cíntia o tivesse atravessado? Tal vislumbre poderia ser real? Quem acei-
taria posterior descrição? Elisabete, que chegara ao ponto de recuar, num arrojo de coragem, anuiu à imagem que lhe convocava, e procurava chegar a Cíntia. O incidente, porém, mais fantástico e perturbador que jamais presenciara antes se revelou a ela, e ela contemplou a beleza daquele desconhecido, que mesmo parecendo ter saído das profundezas de um mundo sepulcral, ainda assim vivia dentro de uma poesia. A lua, agora aparente, parecia acolher formas e luminárias, como uma festa noturna por trás das nuvens. Quando sua visão recuperou a imagem de Cíntia, esta, como se todos os seus órgãos falissem de uma vez, a um só instante caiu desfalecida. Ao Elisabete debruçar-se sobre o corpo agora gelado, uma luz branca e fantasmagórica subiu serpenteando por entre a floresta fechada, e o pântano nodoso refletiu aquele espetáculo sombrio. Assim debruçada, Elisabete permaneceu por um tempo que não pôde contar. Teria ela ouvido algo vindo daquele vulto em sua ascensão? Era impressão sua, ou realmente ouvira um lamento? Um murmúrio talvez? O dia ia amanhecendo sobre o corpo pálido estendido. Não havia nada que pudesse induzir a dedução da causa de sua morte. Tudo estava íntegro, apenas desfalecido e torpe. A floresta passava a se revelar sob um tom que conseguia unificar o branco e o negro, o claro e o escuro. Não que um desse lugar a outro, mas os dois integrados formavam aquela cor que cobre a natureza ao anoitecer ou amanhecer. Sentiu mais uma vez aquele corpo gelado em sua pele, já que é provavelmente impossível ter consciência de que se está sonhando e assim permanecer. Talvez acordasse...
Aquela coisa foi embora, e levou metade de seu segredo. A que primeiro era flor, de seu jardim disse: elevá-lo-ei ao nível de paraíso! Não havendo vencedor, a história perdura; não havendo vencedor, venceu o mistério!
Todos dormem, eu velo. Eu que sou a procedência da chuva. A chuva, espero de pingos comedidos. Eu velo o sono de quem da noite. Não conhece seus perigos. Apenas em sonhos calcula sombras. Eu zelo com espada multiforme pelo que não pode fazê-lo Eu enfrento a neblina desse zelo que procura confundir. Vontade de desistir. Sem descanso pra prosseguir. A chuva comedida espero que salvará aos que dormem. Enquanto eu, eu velo. Me deixaste na escolta Anjo dourado de luz. Teus gestos de sangue puro o espelho pra mim reluz a chuva de pingos comedidos. Eu invejo, Eu que sou, Eu que sou luz.