Escola de Medicina Universidade do Minho
Revista Semestral Gratuita N.˚11 · Outubro 2021
Diretora Beatriz Martins
Haja Saúde
FICH A TÉCNICA
Proprietário e Editor Alumni Medicina
Diretora Beatriz Martins
Morada Escola de Medicina Universidade do Minho Campus de Gualtar, 4710–057 Braga, PT
Editores-chefe Érica Gomes e Vasco Henriques
N.º de Registo na ERC 126906 Depósito Legal 431999/17 Periodicidade Semestral
Sede de Redação Escola de Medicina Universidade do Minho Campus de Gualtar, 4710–057 Braga, PT Estatuto editorial disponível no endereço www.hajasaude.org
Redatores Beatriz Lages Diogo Cruz Eva Ferreira João Lima Jorge Machado José Pedro Marques Leonor Ribeiro Mariana Barroso Mariana Oliveira Nina Grillo Pedro Vasconcelos Rita André Teles Tiago Ramalho
Design Editorial OOF Design Impressão Gráfica Nascente Travessa Comendador Alberto Sousa, Lote 15 4805-668 Sande, Guimarães Tiragem 500 exemplares
NIPC 508 321 719 www.hajasaude.org
Í N DIC E
NOTÍCI AS
P E S S OA S
O PI N I ÃO
TEMAS
Um olhar cronológico sobre a medicina — 12
Elsa Cerqueira Uma Educação integral possibilitaria o acesso a todas as áreas de conhecimento, a todas as artes
Humanizar a medicina através da arte Teresa Tomaz, médica de família em Braga — 58
27 anos de “O Erro de Descartes” Eva Ferreira
A música como terapêutica psiquiátrica — 18 A arte e a medicina: Uma breve biografia de Frank H. Netter — 22
E N T R E V I STA
— 34
Rui Barbosa A fusão entre ciência e arte na Cirurgia Plástica
Porta Nova: cinco semanas em Bafatá Célia Araújo — 60
L I T E R AT U R A
— 68
Paprika, um sonho entre sonhos Mariana Barroso CINEMA
— 69
E N T R E V I S TA
Teatro anatómico: Quando a Arte e a Medicina se cruzam — 26
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Tiago Monteiro Brás No primeiro mês em Philadelphia, a minha chefe disse que fazia as experiências à europeu E N T R E V I S TA
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A arte renova o ser humano que trazemos conosco Marco António Carvalho, professor na Escola de Medicina da Universidade do Minho — 62 Liberdade e sociedade Vasco Henriques — 64
Intimidade com o Mundo Nina Grillo S E X U A L I DA D E
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O meu belo não é o teu belo Érica Gomes C U LT U R A
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EDITOR I A L
Artes e Humanidades em Medicina Pedro Morgado Vice-presidente da Escola de Medicina da Universidade do Minho
Há uns tempos perguntaram-me porque gostava tanto de museus de arte contemporânea sabendo que expõem obras que frequentemente desafiam todos os conceitos de arte que temos. Haverá várias razões e é seguro que o gosto pessoal também terá a sua influência. Mas é um facto que aprendo tanto sobre Medicina quando leio a última edição da Lancet Psychiatry como quando visito museus, leio romances ou vou ao cinema. Uma e outra são aprendizagens fundamentais para o exercício de uma profissão que é técnico-relacional de base científica. Mas porque é que as Artes e as Humanidades são tão importantes para a Medicina? A resposta parece óbvia mas vale a pena recordar que sem conhecer e refletir a realidade em que vivemos, o exercício da Medicina corre o risco de se tornar incompleto, ineficaz e gerador de insanáveis frustrações. Qualquer ação esvaziada de um sentido e de um significado, torna o exercício profissional penoso quando não impossível.
Mas não chega mergulhar em experiências capazes de nos suscitar emoções. Esse é, aliás, um dos principais problemas de um tempo caracterizado pelo imediatismo e, em consequência disso, por uma enorme fragilidade das relações sociais. A era das redes sociais substituiu a qualidade pela quantidade, afogando-nos num excesso de conexões superficiais que não se estabelecem entre as pessoas que existem, mas entre os papeis que escolhemos representar no espaço virtual. Em vez de usufruirmos de cada momento e de refletirmos profundamente sobre ele passámos a vivê-lo para sentir e mostrar que o usufruímos. Tanto na vida como na Medicina, é preciso que nos detenhamos serenamente no processo de identificar as emoções e, depois disso, que reflitamos acerca das suas origens, outorgando um sentido ao seu significado. É por isso que as Artes e Humanidades em Medicina não só podem como devem integrar o currículo do curso de Medicina.
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Ainda que possa suscitar surpresa, o dicina – em lato sensu – foram incorpoque aqui se descreve não é propriamente radas em todas as Unidades Curriculares, inovador. Há muito que as escolas médi- promovendo a reflexão crítica como elecas perceberam a necessidade de incluir mento fundamental do desenvolvimento as Artes e as Humanidades na forma- pessoal, académico e profissional da coção e no desenvolvimento profissional munidade da Escola de Medicina. É uma enorme alegria que a Haja Saúdos médicos. Uma imperiosidade que já constava da proposta de criação do cur- de tenha dedicado esta edição às Artes so de Medicina da Universidade do Mi- e Humanidades em Medicina. Acreditanho e que foi materializada por ação e mos que este projeto extracurricular dos determinação do Professor Joaquim Pin- nossos estudantes, em parceira com a to Machado e da Professora Cecília Leão. Alumni Medicina e a Escola de MediciDesde a fundação da Escola, as Artes na, é um elemento fundamental da fore as Humanidades são elementos distin- mação médica e humana que valorizativos da formação médica da Universi- mos por aqui. Bem-haja. dade do Minho. Tratando-se de competências nucleares não ocupam um espaço opcional ou extracurricular mas incorporam o currículo nuclear, obrigatório e fundamental do curso de Medicina. Com a reforma do MinhoMD, as Humanidades em Medicina – em stricto sensu – foram reforçadas, mantendo a sua presença na formação médica nuclear do 1.º ao 6.º ano do curso e as Humanidades em Me-
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Caros leitores da segunda e última edição de 2021 da revista Haja Saúde: sejam muito bem-vindos. O tema deste ano, “A Arte e o Ensino na Medicina”, foi pensado meticulosamente e artilhado com as armas que consideramos mais robustas. Quisemos ocasionar reflexão e prospeção, mas sem descurar de uma pitada de inovação.
Passando a uma fugaz explicação deste mote, começo por salientar a antítese com que se poderão deparar ao longo da leitura: nas Notícias e Reportagens apresentadas, faz-se contrastar desde logo o passado com o presente, e quiçá o futuro. Este ano assinala-se 30 anos de falecimento do galardoado médico Frank H. Netter, que nos deixou um Império de ilustrações vistosas e minuciosas. Antes dele, percorre-se também a História da própria Medicina, transversal aos vários povos. É curioso pensar como conseguimos ter acesso a tanta informação, tanta História. Na verdade, depressa ressalta então a pertinência da Arte neste contexto: as gravuras e ilustrações que foram preservadas ao longo do tempo permitem-nos idealizar, graficamente, as suas descobertas. Porque na Medicina, onde os pormenores são cruciais, nem sempre as palavras bastam. Mas como a Arte não se cinge a este universo, apresentamos também um enfoque na Arquitetura e na Escultura, como que alvo de curiosidade sobre o primeiro Teatro Anatómico, inserido na antiga Universidade de Bolonha, cuja imagem é familiar a quase todos os estudiosos de Ciên-
cias da Saúde. Ainda nesta secção, temos também a Música, cujo uso terapêutico tem sido amplamente estudado, e cada vez mais praticado. Passando às Pessoas entrevistadas no âmbito desta edição, os temas são a Filosofia e o Cinema, a “arte” da Cirurgia Plástica e, novamente, a Música. Tenho a reconhecer o prazer que é ser levado a viajar por estes universos com a Professora Elsa Cerqueira, o Dr. Rui Barbosa e o Dr. Tiago Monteiro Brás, que nos mostram como não há fronteiras ao conhecimento e as várias formas sob as quais este pode ser transmitido e adquirido. Prosseguindo à aclamação dos textos que podem ler ao folhear a secção de Opinião, ressalvo a pertinência das observações aí constatadas. A Dra. Teresa Tomaz aponta como a Arte é uma ferramenta poderosa na humanização da Medicina, e como ela é crucial. Acrescento, também, a importância transversal desta Humanização a todas as profissões e ao próprio ato de ensinar, não fosse Prometeu o símbolo que ressalta a muitos ao pensar na Universidade do Minho, e que simboliza, na mitologia grega, o defensor da Humanidade,
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Beatriz Martins Diretora da revista Haja Saúde
que terá roubado a Zeus o fogo para o ideais de beleza. Quanto ao tema da Seentregar ao Homem. Nesta instituição, xualidade, Nina Grillo aborda a patência não há chama mais forte que a do Co- desta na interação humana, no quotidianhecimento. Já o Professor Marco Antó- no, e a sua relevância de ser tida em connio Filho deleita-nos com a sua perspe- ta no Ensino, em Medicina. Por fim, no tiva de como a Arte pode renovar o ser, Cinema, a Mariana Barroso apresentacomo pode aliviar e acompanhar, como -nos “Paprika”, o filme que inspirou o Inpode ajudar-nos a questionar e ao mes- ception, e que explora o sonho e o “submo tempo lutar contra o conformismo. consciente”. Após esta descrição, resta-me deixar Por parte dos alunos, Vasco Henriques, membro do Haja Saúde, e Célia Araújo, o reparo de quão benéfico é poder inaumembro do Porta Nova, deparamo-nos gurar uma nova etapa – o início de mais com uma abordagem à influência da cul- um ano letivo – com o acréscimo do novo tura no ser humano, e o seu impacto na significado que “normalidade” adquiriu, Medicina: por um lado, molda a sua prá- no mundo, durante os últimos tempos. tica, por outro também pode constituir A adaptação individual que fomos capazes de alcançar é louvável. Concluindo, e à um entrave ao progresso. Por último, mas não menos impor- falta de melhores palavras, deixo transcritante: as Rúbricas. Na Literatura, a Eva tos os seguintes versos de Tobias Barreto: Ferreira refresca-nos a memória quan“Rebelde, sobre um rochedo to à obra inédita “O Erro de Descartes” Cravado, fui Prometeu; do autor, médico e investigador portuTive sede do infinito, guês António Damásio. A sua refutação Génio, feliz ou maldito, do método cartesiano veio fundamenA Humanidade sou eu.” tar a indissociabilidade do ser, da razão, às emoções que adicionam o humano ao ser. A Erica Gomes expõe no seu texto o impacto da cultura e, posteriormente, da Globalização e dos média nos
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E DAIN O TO R E IMA R L EV ISTA
O primeiro passo do MinhoMD
20 anos da Escola de Medicina
Como começamos uma nova viagem? Os nossos alunos do 1.˚ ano estiveram no banco da frente do MinhoMD, dando início a um novo currículo, desenhado de forma a ser mais flexível e ajustado à experiência que cada um pretende ter. E já chegaram os nossos novos pupilos – bem-vindos à vossa nova casa!
Há 20 anos começámos uma aventura: a de construir uma escola médica de excelência, apostada na inovação e no contributo de todos os que passam por cá. Este ano, celebrámos o nosso 20.˚ aniversário com sentimento de missão cumprida e com toda a nossa comunidade presente. Obrigada a todos.
Estudo da Universidade do Minho mostra benefícios do café para a memória e aprendizagem A investigação foi liderada por Nuno Sousa e demonstrou que quem bebe café com regularidade tem um reduzido grau de conetividade em duas áreas do cérebro – resultando em melhor controlo motor e níveis de alerta mais elevados. É a primeira vez que o efeito do café é estudando com um nível de detalhe tão elevado.
Ana João Rodrigues vence a primeira bolsa ERC da Escola de Medicina Como é que o nosso cérebro distingue prazer de aversão? Através da Bolsa do European Research Council, de cerca de dois milhões de euros, a nossa investigadora Ana João Rodrigues vai procurar desvendar mais alguns segredos do cérebro. Parabéns a toda a equipa!
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O A NO EM R EV ISTA
Prémio de Criatividade Tecnológica da Sociedade Portuguesa de Autores A Escola de Medicina da Universidade do Minho, juntamente com o CEiiA, recebeu o primeiro Prémio de Criatividade Tecnológica da Sociedade Portuguesa de Autores referente a 2020. A organização do prémio destacou o avanço científico e tecnológico conquistado numa fase tão importante para todo o país.
Pedro Morgado vence o primeiro prémio português de investigação clínica em saúde mental Pedro Morgado venceu a primeira edição do FLAD Science Award Mental Health, o primeiro prémio português dedicado à investigação clínica em saúde mental. O projeto do docente e investigador da Escola de Medicina quer melhorar a vida dos pacientes com doença obsessivo-compulsiva, através de um fármaco que já é usado no tratamento da doença de Parkinson.
Não há desculpa para a violência A eliminação da violência contra as mulheres é uma responsabilidade de todos. A 25 de novembro associámo-nos à UMAR Braga na luta contra a violência – uma em cada três mulheres já foram vítimas de algum tipo de violência ao longo da sua vida.
Celebramos a igualdade e a diversidade Vestimos as cores da igualdade. Nas comemorações de Stonewall, entre 28 de junho de 3 de julho, assinalámos o momento de defesa dos direitos humanos e da igualdade como objetivo de toda a comunidade, através de iniciativas como a recolha de ideias para um futuro mais justo.
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E DAIN O TO R E IMA R L EV ISTA
Homenagem aos funcionários com 20 anos de casa Nunca poderíamos esquecer quem nos acompanha desde o início. São 20 anos de dedicação, trabalho e muita alegria em crescer e ver crescer. O nosso muito obrigada a Armando Almeida, Cecília Leão, Celina Barros, Fernando Rodrigues, Helena Nascimento, Joana Palha, João Cerqueira, Jorge Pedrosa, José Miguel Pêgo, Magda Carlos, Nuno Sousa, Olga Miranda e Sérgio Machado dos Santos. Obrigada a todos os que ajudam a construir esta casa.
Nuno Gonçalves eleito para Alumni Nuno Gonçalves foi eleito, em janeiro deste ano, o novo presidente da Alumni Medicina. O interno de cirurgia geral liderará a Associação de Antigos Estudantes da nossa Escola durante os próximos dois anos.
Rastreios para toda a comunidade de Braga, Guimarães e da Universidade do Minho Ao longo de três dias, a Escola de Medicina, o NEMUM e o Centro de Medicina Digital P5 contribuíram para o rastreio de mais de 700 pessoas, sensibilizando para a saúde e para os cuidados mais básicos. Em maio e junho, os nossos estudantes contribuíram para comunidades mais saudáveis e preocupadas com o futuro.
NOTÍCI AS
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NO T ÍC I A S “(...) a experiência torna-se mais positiva, a relação entre médico e paciente cresce em confiança e conforto e a visão sobre si próprio passa a assumir traços progressivamente menos negativos.” — José Pedro Marques
A música como terapêutica psiquiátrica — 18
Um olhar cronológico sobre a medicina — 12 A música como terapêutica psiquiátrica — 18 A arte e a medicina: Uma breve biografia de Frank H. Netter — 22 Teatro anatómico: Quando a Arte e a Medicina se cruzam — 26
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NOTÍCI AS
Um olhar cronológico sobre a medicina
T EX TO PEDRO GONÇA LV ES
NOTÍCI AS
Ao longo dos anos, com a contribuição de povos distantes em tempo e espaço, um pouco por todo o Mundo, a Medicina cresceu, evoluiu e densificou‑se. Assim, recordar a história da medicina e a forma como esta se revelou comum e indispensável às várias civilizações, é viajar entre eras e recordar aquilo que cada povo ofereceu em termos de conhecimento e de cultura.
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NOTÍCI AS
A arte da cura na Antiguidade oriental
Onde o sol nasce e onde a ciência que almeja o cuidado da saúde começou a ganhar forma... dos egípcios aos indianos, dos persas aos chineses e ainda aos semitas, todas estas civilizações trouxeram à Medicina a vertente espiritual e simbólica, técnicas que não procuravam cuidar apenas o corpo, mas também o espírito e a mente dos enfermos. Assim, e procurando recordar o contributo de cada um dos povos na evolução da arte da cura, segue-se um breve vislumbre sobre as diferentes medicinas e as suas abordagens. Medicina Ayurveda
Conhecida como a Mãe da Medicina, é um modelo de medicina alternativa fundado na Índia há cerca de 7 mil anos, sendo um dos mais antigos sistemas medicinais da humanidade. De entre as várias vertentes indispensáveis aos seguidores deste modelo, são de destacar o domínio da destilação, habilidades cirúrgicas, cozinha, metalurgia, horticultura, manufatura do açúcar, farmácia, análise e ainda o conhecimento das técnicas de separação dos minerais, metais e alcaloides. Aos estudantes desta prática, era exigida uma vida de castidade, honestidade e vegetarianismo. Eram instituídas, enquanto leis máximas, a dedicação ao paciente, a humildade, o desapego aos bens materiais, e a total entrega ao bem-estar dos outros.
Assim, a Medicina Ayurveda, apesar das lacunas científicas, é uma medicina que visa a saúde no equilíbrio do corpo, mente e espírito, prevalecendo até aos dias de hoje como um modelo de medicina alternativa. Medicina Chinesa
Difundida como uma medicina alternativa, a medicina chinesa corresponde a uma sistematização das mais antigas formas de medicina oriental, conjugando uma multiplicidade de práticas, como os sistemas médicos tradicionais do Japão, Taiwan, Coreia, Tibete e Mongólia. As suas bases teóricas apoiam-se no estudo da relação do yin e yang, no conhecimento da teoria dos cinco elementos (madeira, fogo, metal, terra e água) e ainda no estudo da circulação da energia, designada chi, pelos meridianos do corpo humano, canais que conectam os vários órgãos. Segundo este modelo medicinal, o corpo humano dispõe de um sistema sofisticado de auto-cura, que localiza as doenças e direciona energia – chi – e recursos para resolver os problemas por si mesmo. Assim, a medicina chinesa, alicerçada no conhecimento orgânico e sua interação com o ambiente, procura aplicar transversalmente estas noções no auxílio das funções de auto-cura já inerentes ao corpo humano, utilizando para isso métodos de tratamento tradicionais como a acupuntura, a ventosaterapia, a prática de meditação, entre outros.
NOTÍCI AS
ter curvo e ainda um bisturi de dois guMedicina Egípcia Entre as mais antigas práticas de medici- mes. Há também registos de sangrias, na já documentadas, a Medicina do An- trepanação da abóbada craniana com tigo Egito manteve-se inalterada desde serras metálicas e ainda transplantes. De forma semelhante à civilização o início da civilização no século XXXIII a.C. até à invasão persa em 525 a.C. Ape- egípcia, acreditavam na existência de sar de ancestral, as suas práticas eram demónios causadores de determinadas extremamente avançadas, incluindo mé- doenças, motivo pelo qual recorriam todos como a cirurgia não-invasiva, a or- também aos exorcismos como método topedia e um estudo vasto de farmacote- terapêutico. Com o Antigo Egito, partirapia, motivo pelo qual líderes de outros lhavam também o conhecimento abranimpérios recorriam ao faraó requisitan- gente da farmacoterapia, dando especial do os seus melhores médicos para o tra- uso a substâncias como a beladona, mirra, papoila, mandrágora, louro, incenso, tamento de entes próximos. No que respeita à base teórica e prá- açafrão, alho, zimbro, enxofre, argila e tica, os egípcios possuíam considerável até mesmo excrementos animais. conhecimento acerca da anatomia humana. Através do processo clássico de A arte da cura na Antiguidade mumificação, puderam obter uma no- Clássica e Ocidental ção detalhada e panorâmica da locali- Onde o sol se põe, reúnem-se abordagens zação dos órgãos internos, que remo- medicinais multiculturais, como é o caso viam através de orifícios naturais como da Medicina da Grécia e da Roma Antiga. as narinas, no caso do cérebro, ou orifícios artificiais em locais como a viri- Medicina da Grécia Antiga lha, para remoção de órgãos da cavida- e Roma Antiga de abdominal. Na antiguidade greco-romana, foi deApesar das práticas avançadas, a me- senvolvido um sistema médico onde a dicina egípcia continuava a ter grande saúde refletia um estado de equilíbrio enfoque na magia e na religião, vendo entre os elementos clássicos – terra, nos deuses a origem para muitos acon- água, ar, fogo, éter – e os humores – bítecimentos sobrenaturais que não eram lis negra, bílis amarela, fleuma e sangue. capazes de explicar. Desta forma, era de Assim, instituíram como principal base prática comum os encantamentos, a ma- da medicina o controlo da dieta – nutrigia e o uso de amuletos como parte inte- ção – e higiene. grante do tratamento médico. Para além da importância dos humores dentro do corpo, acreditavam na influência de determinados fatores no Medicina Semítica estado de saúde da população, sendo (Assírios, Fenícios, Persas, exemplos a localização geográfica, clasSumérios e Acádios) A Medicina Semítica, com origem in- se social, traumas e ainda mentalidades. tercultural, deve parte das suas bases Para além destas crenças e de forma seàs práticas da medicina do Antigo Egi- melhante aos Egípcios e Semitas, alito, e às crenças hebraicas e babilónicas. mentavam ainda a ideia de que algumas Desta forma, desenvolveram um mode- doenças surgiam como “punições divilo médico amplo e avançado, com domí- nas”, surgindo a cura, de forma oposta, nio da farmacoterapia e recurso à cirur- como um “presente dos deuses”. No que respeita ao conhecimento gia como método de tratamento. Entre os instrumentos cirúrgicos mais usados anatómico e ao conhecimento das abordestacam-se a agulha de bronze, o cate- dagens cirúrgicas, registam-se noções
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NOTÍCI AS
rudimentares das práticas e ainda parca A arte da cura noção da anatomia humana, cuja com- no Renascimento e Iluminismo paração era muitas vezes levada a cabo Neste período de grande crescimento inpelo estudo dos animais na natureza. telectual, com o maior enfoque sobre as Desta forma, os médicos apostavam na artes e as ciências na Europa, foi possível boa relação médico-paciente, no trata- observar progressos de grande importânmento das doenças menores e na ame- cia no que respeita à medicina – a desconização das condições crónicas de baixa berta da circulação sanguínea e pulmonar, gravidade. o conhecimento do coração como órSó a partir do século V a.C., sobre- gão responsável pelo bombear e pela matudo com o contributo de Hipócrates nutenção do fluxo sanguíneo – tais dese mais tarde Galeno, se descreve maior cobertas, fulcrais para a medicina atual, evolução na medicina greco-romana, vieram mudar completamente os conheque passou a contar com conhecimento cimentos e as ideias alicerçadas durante a prático, empírico e pormenorizadamen- Antiguidade – Grécia Antiga e Egito. te testado. Nesta altura deu-se o desenMuitos médicos começaram a aprivolvimento das técnicas cirúrgicas e a morar o seu estudo, passando a explorar introdução das plantas medicinais como a medicina e os tratamentos médicos de método terapêutico. Gradativamente, forma mais objetiva, afastando possíveis observou-se um desvincular no que res- justificações de origem religiosa e sobrepeita à religiosidade, procurando inves- natural. tir no estudo de explicações plausíveis e També nesta era, foi colocado de lado racionais para as alterações observadas o estudo do corpo humano por compano corpo humano. ração com a anatomia animal. Passou a fazer-se recurso da dissecação de cadáveres, maioritariamente vítimas de batalhas, o que veio densificar e pormenorizar o conhecimento acerca do funcionamento orgânico.
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A música como terapêutica psiquiátrica
T EX TO JOSÉ PEDRO M A RQUES
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Na descoberta daquilo que é o ser humano, principalmente naquela que é a descoberta autónoma e introspetiva, a música toma um papel, para muitos, fundamental. Na comunicação interpessoal, a relevância mantém-se.
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A saúde pode beneficiar da música, e da arte em todas as suas expressões, aproveitando especificidades do som, ritmo ou da letra. O artigo Creative art therapy for mental illness, publicado na 275ª edição da revista Psychiatry Research, descreve a sua aplicação adotando mecanismos ativos, que incluem produção musical guiada pelo terapeuta, ou recetivos, recorrendo a métodos como a análise da letra ou a promoção de responsividade à estimulação sonora. As sessões podem ser complementadas Mas esta não é uma prática com um com outras formas de expressão artística, como a dança, e realizadas em grupo, grau elevado de comprovação científica. garantindo uma atividade de reinserção Ainda que várias fontes revelem resulsocial extremamente importante na re- tados qualitativos predominantemente otimistas, a base estatística que permicuperação mental. O impacto desta terapia foi mais acen- te a construção de guidelines para a sua tuado em pacientes com humor mais agi- aplicação uniforme e ética encontra-se tado, podendo a terapia musical ser uti- subdesenvolvida, sugerindo a necessidalizada como técnica de relaxamento. Já de de colmatar estas questões antes de naqueles com doença obsessivo-compul- avançar para a construção de novas mesiva, por exemplo, este método mostrou todologias na atuação médica. A ideia de conectar a música e a saúde diminuir os sintomas primários, marcadamente obsessivos, e ainda sintomas não é recente. Apolo, na mitologia gresecundários, ligados à ansiedade e de- ga, era o deus da harmonia e da perfeipressão. Em utentes com stress pós-trau- ção, mas era também o deus da música, das doenças e da cura. Apesar de existimático, os efeitos também são positivos. Esta é uma forma de complementar a rem algumas indicações de que a músimedicina, que ajuda também a mudar a ca e a harmonia musical baixam a presperceção que cada um tem sobre a sua são arterial, o batimento cardíaco e os recuperação e os clínicos que guiam a níveis de stress, ou, noutras áreas, mosmesma: a experiência torna-se mais po- tram-se positivos no apoio ao equilíbrio sitiva, a relação entre médico e paciente e coordenação dos membros – contudo, cresce em confiança e conforto, e a visão continua a carecer de mais trabalho para sobre si próprio passa a assumir traços compreender os efeitos realmente proprogressivamente menos negativos, nos duzidos pela musicoterapia. A música casos, como os relatados, que envolvem pode ajudar, mas será mesmo um aliado da medicina? saúde mental.
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A arte e a medicina: U M A BR E V E B IO GR A F I A DE F R A N K H . N E T T E R
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Assinala-se em 2021 os 30 anos da morte de um artista, médico e ilustrador de atlas médicos: Dr. Frank Henry Netter. Como aponta o próprio título escolhido por Marek H. Dominiczak, An Artist Who Vastly Enriched Medical Education: Frank H. Netter, o ilustrador é ainda hoje reconhecido como uma personalidade crucial à História da Medicina e ao Ensino Médico atual; um reflexo indiscutível da grande união entre a Medicina e a Arte.
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Medicina, do latim “mederi”, significa “o mais acessível o conhecimento exaustivo conhecimento do melhor caminho”, nes- da anatomia humana. Nesta sua obra, Netter escreveu uma te caso, o estudo da cura e o combate das enfermidades. Assim, em certos contex- reflexão de que se questionava acerca de tos já alvo de análise, de que é exemplo qual seria a opinião dos grandes anatoDehumanization in Medicine: Perspecti- mistas da História, nomeadamente Veves on Psychological Science, a Medicina salius, Leonardo da Vinci, William Huntornou-se um simples conjunto de com- ter ou Henry Gray, sobre o seu Atlas. Os petências e gestos técnicos e clínicos, 5 têm em comum a ilustração anatómica sem espaço para subjetividade e para do corpo humano. Contudo, Netter acatransformação. Surge um estereótipo no baria por se destacar pois não se limitou qual o médico é visto como um ser me- a ilustrar uma condição médica patolócanizado e frio perante outras vertentes gica no que concerne às consequências da vida, como o sentimento e a manifes- anatómicas, mas também a pessoa com tação deste sob a forma da arte. Porém, essa mesma condição, defendendo que uma vasta lista de médicos ao longo da as mesmas não poderiam ser reduzidas História, sendo exemplo os escritores à sistematização anatómica, como máportugueses Júlio Dinis, Miguel Torga e quinas, tal como referido em Frank H. ainda Fernando Namora, vêm desmisti- Netter MD and a Brief History of Medificar esta ideia, mostrando que a Medici- cal Illustration. Atualmente, conhecem-se cerca de na mostra ser uma forma de arte basea4000 ilustrações levadas a cabo por da na ciência. Nascido a 25 de abril de 1906, Netter Frank H. Netter, demonstrando a sua pecresceu com o sonho de se tornar num rícia e perceção milimétrica, sobretudo artista, embora não visse reconhecimen- na pintura anatómica. Estendeu ainda a to ou apoio por parte da sua família. Ain- sua versatilidade a áreas mais complexas, da a estudar, conseguiu uma vaga para a como a pintura da primeira tomografia National Academy of Design, começan- computadorizada ou a representação do do o seu percurso no mundo das artes. primeiro procedimento de transplante Anos mais tarde, já na Art Students Lea- de coração. Hoje, 30 anos após o seu falecimento, gue, em Nova Iorque, iniciou a sua carreira artística trabalhando para os jor- e tantos após o lançamento do seu prinais Saturday Evening Post e para o The meiro atlas, os alunos de Medicina continuam a fazer grande uso dos seus traNew York Times. Apesar do seu sucesso e ascensão no balhos, o que reflete o modo como a arte ramo, Frank H. Netter acabou por co- constitui uma forma de eternizar a Hislocar de parte o seu sonho e prosseguir tória e o progresso da Medicina no temo curso de Medicina na City College de po: citando Heráclito, “os olhos são tesNova Iorque. Durante o curso, não de- temunhas melhores do que os ouvidos”. sistindo da sua paixão, fez trabalhos como freelancer de arte, vendo na ilustração médica a oportunidade de conjugar a Pintura e a Medicina. Em pouco tempo, Frank H. Netter deixou de ser um mero médico com queda para as artes, tornando-se, em 1989, com a publicação do Atlas of Human Anatomy, o instigador de uma nova era na Medicina, motivada pelas suas ilustrações realistas, pormenorizadas e interativas, tornando
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Teatro anatómico: QUA N D O A A RT E E A M E DIC I N A S E C RU Z A M
T EX TO BEATR IZ M A RTINS
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Os Teatros Anatómicos, assim denominados pela semelhança a um Anfiteatro Romano, são conhecidos mundialmente, e familiares a muitos estudantes de Ciências. Estes remontam‑nos aos primórdios do Ensino de Medicina como o conhecemos hoje, que privilegia a prática em detrito de aulas ex‑cathedra; para além disso, revelam um exemplo de como a Medicina e a Arte se interligam.
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O palácio de Archiginnasio, em Bolonha, este tipo de madeira “afastava” as patomimoseia-nos diariamente com a opor- logias. Seguindo a definição de anfiteatunidade de visitar o seu Teatro Ana- tro, do latim “amphi+theatron”, que sigtómico, cuja construção data ao século nifica “em torno” e “lugar para visão”, XVII. Este outrora fora a sede principal respetivamente, trata-se de uma área da Universidade de Bolonha, a Univer- oval com degraus à sua volta, de forma sidade mais antiga do mundo e local de a providenciar a melhor visão possível formação de vários grandes pensadores para o espetador. A ladear todo o perímetro da sala, alida Antiguidade, como Nicolau Copérnico. Durante a II Guerra Mundial, em nham-se doze estátuas em homenagem 1944, ocorreu um ataque aéreo que re- a médicos imponentes do passado: Hisultou na quase total destruição deste pócrates, Galeno, Fabrizio Bartoletti, Teatro, que haveria de ser reconstruído Girolamo Sbaraglia, Marcello Malpighi, com alto rigor filológico, a partir das pe- Carlo Fracassati, Mondino de ‘Liuzzi, ças originais recuperadas das ruínas do Bartolomeo da Varignana, Pietro d’Argelata, Costanzo Varolio, Giulio Cesare edifício. Em Art in science: Giovanni Paolo Aranzio e Gaspare Tagliacozzi. Nos flancos do lugar de conferencisMascagni and the art of anatomy, defende-se a perpetuação da associação entre ta onde se sentava o lecionador das aulas a Arte e a Anatomia, de que é exemplo de Anatomia, voltado para o demonstraeste Teatro: a Escultura e a Arquitetura dor, figuram duas estátuas denominadas patentes neste monumento são conside- “Spellati” (tradução para “Homens Esforadas, por si só, uma obra-prima. A sua lados”). Acima, pode-se constatar a estáestrutura é toda ela construída em ma- tua de uma figura feminina sentada, que deira de abeto, com a finalidade de per- simboliza a Anatomia, à qual é oferecida mitir uma melhor amplificação do som, um fémur por um cúpido (em antítese à e de acordo com a antiga crença de que tradicional flor).
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No teto figuram 14 esculturas de conhecidas no Céu. Medicina é a minha Deuses Gregos, organizadas de forma invenção e, no mundo, sou chamado de simbólica como constelações, simetri- artista. Nada é melhor do que conseguir camente, em torno de Apollo, o Deus ver tudo claro, e o poder de tudo está da Medicina segundo a Mitologia Gre- subjugado a nós”, que pensa-se referirga. Este encontra-se centrado num oc- -se à crença árabe de que o universo intágono que representa uma alegoria do finito (Astrologia) está ligado à natureza céu, e, por extensão, do universo. Segun- finita (Medicina). Antigamente, era fredo a Antiga Mitologia Cristã, esta for- quente os médicos dirigirem-se às estrema geométrica representa a ressurreição, las antes de realizarem operações ou adpois o número 8 simboliza o ‘oitavo dia ministrar drogas. Os restantes Deuses da semana’, o dia do Novo Mundo de- Gregos estão localizados segundo uma pois da ressurreição de Cristo, e simbo- alegoria e simbolismo próprios, ao inliza uma representação alegórica da Gló- vés da sua verdadeira posição astrológica. Sob Apollo localiza-se a mesa onde os ria de Deus. À sua volta está cravada uma frase em Latim que se traduz para “Eu corpos eram dissecados pelos demonsvou cantar, acompanhado pelas maravi- tradores, sob orientação do professor lhas das estrelas, merecedoras de serem de Anatomia. Debaixo desta, o chão é
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“Segundo a própria Universidade de Bolonha, no passado, este foi o palco da “exaltação da vida através da análise da morte”, um local para descobrir e entender a anatomia humana, repleto de ciência. Hoje, é considerada essencialmente uma atração turística.”
preenchido por hexágonos constituídos deve, portanto, estar fortemente compor 6 triângulos equiláteros delimitados, prometido em garantir, mesmo na práque se referem ao médico enquanto Ho- tica médica, o maior aprimoramento da mem desprovido do Divino inalcançável. dimensão humana”. Segundo a própria Universidade de Ao entrar nesta divisão do edifício, ressaltam os seus pormenores e a sua im- Bolonha, no passado, este foi o palco da ponência. Apesar de atualmente este já “exaltação da vida através da análise da não ser usado com a mesma frequência morte”, um local para descobrir e entenou finalidade, em detrimento de infraes- der a anatomia humana, repleto de ciêntruturas com maior potencial tecnológi- cia. Hoje, é considerada essencialmente co, o seu peso histórico e simbólico aca- uma atração turística. A existência desba por ser inexorável. De acordo com te monumento permite percecionar a viThe teaching of the History of Medicine são que antigamente se detinha da Mein Italy: a path in progress, “a crescente dicina e do médico, como uma Arte e o atenção ao potencial de aplicação da tec- artista, e no simbolismo da sua profisnologia na medicina representa um pe- são, com uma ponte para os Princípios rigoso alerta na direção de uma aborda- que a regem. gem reducionista. O sistema académico
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PE S S OA S “A visão que tinha quando jovem estudante era muito restrita face ao âmbito da especialidade em que hoje trabalho.”
Elsa Cerqueira Uma Educação integral possibilitaria o acesso a todas as áreas de conhecimento, a todas as artes E N T R E V I STA
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Rui Barbosa A fusão entre ciência e arte na Cirurgia Plástica E N T R E V I S TA
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Tiago Monteiro Brás No primeiro mês em Philadelphia, a minha chefe disse que fazia as experiências à europeu E N T R E V I S TA
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Elsa Cerqueira F OI A G A L A R D OA DA C OM O G L OBA L T E AC H E R PR I Z E PE L A F OR M A C OMO E NSI N A F I L O S OF I A C OM C I N E M A .
T EX TO TI AGO R A M A LHO
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Se queremos falar de arte e ensino, em pleno 2021, não podemos deixar passar esta oportunidade. Numa conversa por Zoom encontrámos, do outro lado, a professora da Escola Secundária de Amarante (ESA) que conquistou alunos através da sétima arte – o cinema. Elsa Cerqueira conquistou também o Global Teacher Prize “por conseguir pôr os alunos a pensar na vida”, dizia o jornal “Público”.
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O prémio condecorou anos do projeto “Filosofia com Cinema”, mas também uma capacidade invulgar de pensar a formação e a educação como um projeto de cidadania, bem como um projeto transversal entre as mais variadas disciplinas. Recusa as caixas das áreas limitativas do secundário, reitera a “educação-ação” e, como veremos, corresponderá ao estereótipo de bicho-carpinteiro. Somam-se os projetos, como veremos repito, e as histórias contadas e vividas na primeira pessoa. HAJA SAÚDE Começaria de forma
bastante aberta, mas vocacionado diretamente para as artes no ensino. O que é que a arte consegue trazer à formação, não só enquanto estudantes como enquanto cidadãos? Mesmo em áreas menos orientadas para as artes… Teve turmas de Ciências, Humanidades… ELSA CERQUEIRA Esse é um problema de partida. É o problema da classificação e da exclusão das áreas entre si. Sílvio Gallo, um pedagogo e filósofo anarquista brasileiro, partindo de um enfoque deleuziano, afirma que nós vivemos o ensino segundo um paradigma arbóreo – ou seja, vertical. E é esse o nosso paradigma disciplinar porque temos a Matemática, a Filosofia, a Educação Visual, e outros conhecimentos, cada um pretensamente “arrumado” num sítio específico. E não há complementaridade, há uma relação desigual. E este pensador pugna “por uma educação não disciplinar”. É bastante interessante. Eu diria, em relação à pergunta, que assim como a inteligência é múltipla, também os alunos o são, isto é, não há alunos exclusivamente de Ciências, ou só de Humanidades. É uma falsa dicotomia ou falsa crença. Há pensamento criativo e pensamento crítico, curiosamente uma das descobertas que é sempre magnífica é quando um aluno percebe que tem talentos que não estão especificamente na área em que o enclausuraram ou se
enclausurou. Gilles Deleuze referiu-se ao ato de criação do filósofo, do cineasta e do cientista. Embora a natureza das criações seja distinta, nenhum possui o o monopólio da invenção. E isto é importantíssimo. O pensamento abstrato e o racicocínio lógico são simultaneamente filosóficos e matemáticos. Claro que a natureza das questões que colocam e das respostas são diferentes, mas têm mais de convergência do que de divergência. Pegando pelo prisma da catalogação e do princípio da complementaridade que as diferentes áreas devem ter entre si, os currículos não estão demasiado formatados? Completamente de acordo. Nós temos um ensino profundamente massificado e, salvo pequenas exceções, completamente vocacionado para o término do ensino secundário, os exames nacionais. Eu sei o quão importante é a média de acesso ao ensino superior, mas isso condiciona, mais do que potencia ou amplia, o paradigma educativo, os conteúdos e, na maioria dos casos, a ação do professor. Naturalmente que me preocupo com as classificações dos alunos nos exames nacionais, mas estou convicta que se forem educados de forma a que consigam compreender o alcance prático dos problemas, dos conteúdos das diferentes disciplinas, possibilitando o desenvolvimento de competências – nomeadamente as que estão no “Perfil do aluno à saída da escolaridade obrigatória” –, não só as aprendizagens serão duradouras como os resultados dos exames serão naturalmente mais significativos. Não tenho dúvidas que o ensino que fragmenta não serve uma educação integral. Uma educação integral possibilitaria o acesso a todas as áreas de conhecimento, a todas as artes. Numa escola mais humanizada, teriam acesso gratuito ao cinema, ao teatro, à dança, à música, à escultura, à pintura, à literatura, independentemente da
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área de ensino. O ser humano não pode ser fragmentado, é total. Mas como conciliar esta profusão de conhecimentos com a especialização? Deixo a pergunta. Por outro lado, a educação é sempre educação-ação e transformação. E deve ser esperançosa. Porque se a educação não o for, como contribuirá para o aperfeiçoamento? Aperfeiçoamento não só do aluno, mas de todas as pessoas na comunidade, de uma forma global, universal. Como é que potencio a autonomia do aluno se eu, enquanto professora, não for também autónoma? Se não pesquisar, investigar, produzir conhecimento, aprimorando o pensamento, a ação e os afetos? Esta exigência de ser uma professora aprendiz ou aprendente é fundamental e conduziu-me a um terceiro mestrado, na área da “Filosofia para Crianças”, na Universidade dos Açores. É nessa senda que surge o “Filosofia com Cinema”? O projeto “Filosofia com Cinema” agrega várias iniciativas, nomeadamente um clube de cinema que fundei, em 2011/12 na Escola Secundária de Amarante (ESA). Mas tinha outras ramifica-
ções, como o Cineclube de Amarante, a que pertenço desde a sua génese. Sempre tentei criar uma ponte entre o cineclube, os alunos e a escola – levando-os ao espaço privilegiado para (re)ver o cinema, a sala de cinema Teixeira de Pascoaes. Mas o projeto pode iniciar-se na ESA, mas ganha outras pequenas utopias noutras instituições e espaços da cidade de Amarante. A minha preocupação é: como proporcionar aos alunos, e a todos com quem trabalho, a experiência filosófica, simultaneamente estética e ética, de aprender a ver e a rever cinema? Trata-se do exercício filosófico de olhar, pensar, sentir, imaginar e agir em profundidade. Descobrir que o filme nos interpela, que há formas de dizer num filme, que há enquadramentos e planos, cores e iluminação, tema, personagens, ações e acontecimentos, banda sonora... Metodologicamente, interessa-me muito o viajar “dentro do filme” e depois viajar para “fora do filme”. O dentro do filme convida os alunos, os contempladores, a interpretarem, a analisarem, a questionarem ou problematizarem. É preciso que cada se surpreenda com a
Kali, o pequeno vampiro, 2012
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singularidade das questões filosóficas. Depois da visualização da curta meO que é uma pergunta filosófica? Como tragem, desafiei os alunos a criarem perse cria uma questão filosófica? Que per- guntas sobre aquele universo fílmico. E guntas filosóficas suscitam o filme? sentiram um grau de dificuldade muito Cada um de forma autónoma e au- elevado, justificando que nunca lhes titocorretiva, mas colaborativa (e isso nha sido proposto tal exercício até ao 9º para mim é fundamental) é um criador ano. E esta radiografia mental permitiude perguntas e cada pergunta acolhe -me perceber a profundidade das muconceitos que devem ser clarificados. É danças que é necessário operar no sisteessa uma das tarefas da filosofia. A tur- ma educativo. ma, concebida como uma comunidaÉ preciso fazer um trabalho de de de investigação, deve escolher a per- “desaprender” (hábitos) para conseguir gunta mais filosófica ou o conceito mais reaprender. “Dar ao pente funções de importante e depois investigá-lo. Por não pentear”, escreveu o poeta Manoel exemplo, o belíssimo filme Kali, o Pe- de Barros. Essa desaprendizagem é cruqueno Vampiro, de Regina Pessoa, 2012, cial. E este projeto de “Filosofia com Ciconvoca conceitos como os de exclusão, nema” alimenta-se de múltiplas surprede aceitação, de diferença, de amizade, sas: sou surpreendida com as surpresas de tolerância e de amor. dos alunos, ou seja, com as perguntas Um outro momento dentro do fil- que fazem e com a capacidade de irem me é perceber, em termos argumenta- mais além – de dentro para fora do filme tivos, a tese, e os argumentos que cada – e se descobrirem, descobrindo os ouum apresenta sobre as perguntas, os tros. Reconhecer-se como autor ou criaconceitos, e de que modo escuta o pen- dor de uma pergunta filosófica, de um samento dos outros. Estes exercícios pensamento original, é extraordinário! lógico-argumentativos são exercícios de Este é um trabalho coletivo, ou coocidadania, no sentido em que permitem perativo, se quisermos porque a educauma leitura interventiva, crítica e cons- ção terá de ser sempre partilha. Não é trutiva do filme, da sociedade, vitais em solitária, mas é solidária. democracia. E essa é uma finalidade primordial da filosofia: que cada um penE o projeto acabou por atingir dise, pense criticamente, isto é, de forma ferentes públicos também, certo? fundamentada. Comecei a trabalhar com alunos de todos os ciclos de ensino e depois aperNo início do projeto, qual foi a reac- cebi-me que os alunos da Educação Esção ou recepção dos estudantes? pecial (agora, creio que se designa incluVou dar-lhe um exemplo. Na primei- siva) raramente eram convocados para as ra sessão do 10.º ano exibi a curta-metra- manifestações ou eventos que frequengem “O Emprego” do Santiago Grasso. É tavam os alunos do ensino regular. Afisobre a desumanização – as pessoas ti- gura-se-me como (auto) contraditória nham deixado de o ser, eram objetos –, uma inclusão que separa, exclui. e eles ficaram surpresos. Para já, a surConsiderando o cinema a arte inpresa, como refere a investigadora Dina clusiva por excelência, tratou-se de um Mendonça mobiliza um vasto conjunto imperativo não só estético como ético, de emoções e é fundamental no espaço convidar os alunos e os professores a inpedagógico. Creio que a surpresa convo- tegrarem o projeto. Que cada um, com ca a curiosidade. O espanto é primordial o auxílio de todos, possa descobrir as no pensamento filosófico, no desenvol- suas potencialidades para lá das suas livimento de qualquer tipo de investiga- mitações. E nenhum de nós é alheio a ção e de conhecimento. limitações.
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É por isso que, desde há vários anos, tenho dentro do projeto “Filosofia com Cinema” uma iniciativa que se designa “Cinema de Animação como Inclusão”. Estes jovens veem fragmentos, fílmicos, curtas metragens, e depois exercitam, com o apoio dos professores, a reflexão, imaginação, a motricidade fina, mediante trabalhos de pintura, o uso de plasticina, a criação de serigrafias… Tenho aqui estes trabalhos… [mostra algumas serigrafias pela câmara]. Posso ler-lhe uma coisa? Claro que sim, força. Retomo a curta-metragem de Regina Pessoa, uma realizadora notável de que gosto muito, chamada Kali, o pequeno vampiro. Kali, sendo um vampiro, queria ser como os outros meninos e brincar na rua, ao sol, com os outros meninos. Fiquei surpreendida com o carinho e a profundidade com que os alunos trataram esta personagem. E então com uma ajuda do Nuno de Ed. Visual e dos colegas da Educação especial, eles recortaram, colaram e criaram, na oficina Noctua, uma serigrafia. Um desses alunos, o João Machado escreveu assim: Kali era um vampiro e representa para nós, alunos da Educação Especial, a diferença. Todos nós somos diferentes, pois cada um tem as suas capacidades e diferenças. Não tinha piada sermos iguais. Uma coisa que aprendi também com a curta foi que não te deves importar com as críticas e comentários dos outros sobre ti por seres quem és. Estou a usar muito a palavra “diferença” pela seguinte razão: não tens de deixar de ser amigo e afastares-te de outras pessoas por elas terem as suas diferenças. Essas pessoas são especiais e merecem este mundo e os outros. Temos que nos apoiar uns aos outros e pessoas como eu, diferentes, devem ser incluídas nos grupos. Eu adorei trabalhar neste projeto porque o tema é um pedacinho de mim. As repercussões do projeto na comunidade são importantíssimas. Ele não está fechado na Escola, abre-se para
a comunidade, até porque a educação não está fechada num espaço arquitetónico, mas espraia-se para outras instituições na comunidade amarantina. Tal como comecei este projeto “Cinema de Animação como Inclusão”, convidei também meninos do 1.º aos 4.º anos a assistirem a sessões de cinema. E foi maravilhoso confirmar a vocação profundamente filosófica das crianças. Fazem perguntas filosóficas notáveis, “imaginatórias”, com lhes chamaram. São ótimas nisso. Não é? [risos] Até desconcertantes. E comecei a pensar que esse era um caminho a trilhar, absolutamente entusiasmante e encantatório, porque nós enquanto educadores temos de sentir esta paixão. Neste contexto, criei em 2017 um programa – “Filosofia com Cinema para Crianças” e apresentei-o à diretora do agrupamento de Escolas de Amarante, Dina Sanches, que o aceitou imediatamente. Ao longo de 4 anos, dinamizei sessões na biblioteca com os alunos sentados em círculo. Esta organização espacial estimula uma outra prática pedagógica, mudando completamente a atitude dos alunos, mas também do professor, quer dizer, a dinâmica da aula ou da sessão. A imagem tradicional da sala de aula (que paradoxal e lamentavelmente é contemporânea) são os alunos enfileirados, em turmas com cerca de 30 alunos. Devíamos ter metade dos alunos sentados em círculo ou em “U”. Uma escola não é uma fábrica, mas um espaço (ás vezes com exo-esqueletos fora desse espaço) e um tempo de criação. As crianças superam os adultos e superam-nos com relativa facilidade, ou seja, com autenticidade e naturalidade, basta constatar que elas não têm os pré-conceitos dos adultos – e isso é deslumbrante. São mais imaginativas e desafiadoras. E vou dar-lhe um exemplo deste projeto maravilhoso, a partir de uma curta-
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-metragem que trabalhámos – O SapaIsto também acaba por promover teiro, de David Doutel e Vasco Sá. Aquilo uma certa literacia cinéfila e arque é mais importante para a filosofia, e tística desde cedo – que se calhar também enquanto humanos, é esta canunca foi muito explorada. pacidade que nós temos que ter para Isso é verdade, mas é preciso então desbanalizar o real e os outros. E os ob- pensar o paradigma da educação, do enjetos também. Dentro da curta, as crian- sino e da aprendizagem de outra forma. ças fizeram inúmeras perguntas: “o que E isso implica, como dizia no início dessão os sapatos?”, “os sapatos são pes- ta conversa, não fragmentar os saberes soas?”, “O que é uma pessoa?” “Será a e incluir as artes desde o início da esconossa pele a sola dos sapatos?”. E está- laridade, não descurando a formação de vamos no 2.º ano, imagine. E a partir da- professores. qui foram aprimorando e (auto)corriginEstes miúdos fizeram personagens do o pensamento. Percebendo que só um com os sapatos, batizaram-nos, pintados alunos conhecia o sapateiro real, saí- ram a sua peugada cromática, reinventamos do filme e da própria escola e fo- ram uma história para a representarem, mos visitar o sapateiro real de Sta Luzia, e depois regressaram ao lado de deno Sr. Paulo e o seu ajudante, Renato. Foi tro do filme ao criarem com esses sapauma visita fascinante, dado que desco- tos, sob orientação do realizador, probriram máquinas, fizeram uma entrevis- dutor e diretor da Casa Museu de Vilar, ta ao sapateiro Paulo, sobre a sua profis- Abi Feijó, uma curta chamada “Sapatossão, o que o levou a abraçar a profissão, e -Imagem”. Isto foi possível porque eles no fim disseram: “ah, o sapateiro é o mé- estão totalmente abertos a desafios, mas dico dos sapatos” … também porque há diretores e professores que querem desafios e ser desafiaUma excelente expressão – e muito dos. E eu noto uma vontade imensa por apropriada… parte de muitos professores em querer E acabámos por ir mais além. Sem fazer coisas diferentes – é preciso não saber(em), estavam a aprender a rubri- nos resignarmos a alguns currículos que ca “As profissões” do Estudo do Meio. E possam ser mais bafientos ou a alguns é este cruzamento ou vínculo que não obstáculos burocráticos ou de outra orsó é desejável no ensino do primeiro ci- dem com que nos vamos deparando. clo, mas também no ensino secundário. Não posso deixar de relembrar que Ajudada pela professora Arminda Jeró- o projeto “Filosofia com Cinema” é nimo fez-se exercícios de matemática só dinamizado dentro e fora da Escola com sapatos. Depois, recolheram os sa- Secundária de Amarante (escola não patos velhos lá de casa, de todos os ta- agrupada) porque convida os alunos do manhos, cores, materiais, e levaram-nos ensino básico ao ensino secundário, do para a escola. Fizemos a árvore de sapa- ensino regular, profissional, especial tos, e cada criança recontou a biografia (inclusivo) a descobrirem a sua potênde cada sapato velho (a quem pertencia, cia filosófica, aperfeiçoando-se e, assim, por onde tinha andado, o que costuma- contribuindo para melhorar a sua comuva fazer). Por exemplo, uma das crian- nidade. ças lembrava-se que aqueles sapatos, Na criação de pequenas utopias cruzoque pertenciam ao pai, o acompanha- -me com inúmeros antigos alunos. A eduvam aos treinos de futebol, à piscina, a cação não se submete a um prazo, resiscasa da avó. te às temporalidades. Só a “má educaGaranto-lhe que depois destas ses- ção”, deseducativa, expira. Eu e o Diogo sões não sou a mesma, sou mais feliz e Gonçalves – antigo aluno, agora educaesperançosa nas “pequenas utopias”. dor social –, criamos o clube de cinema
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“Os cineséniores, como lhes chamo, têm um manancial de conhecimentos, de experiências, de afetos, e nós, professores e alunos de diferentes níveis de ensino, só temos a aprender com eles.” “Juventude Cinéfila” na Casa da Boavista, residência sénior. E ainda na sexta-feira estive lá a dinamizar uma sessão com o filme “A Surpresa” do realizador Paulo Patrício, acompanhada por uma outra ex-aluna, a Margarida Vasconcelos, que está a licenciar-se em Fotografia em Inglaterra e, neste momento, se encontra de férias em Portugal. Creio que a primeira vez que me acompanhou foi há cerca de quatro, cinco anos. Nunca mais deixou de ir lá. É bonito, não é? Por que é que isto é importante? Porque aquilo que fizemos com os sapatos é o que nós fazemos com as pessoas: restituir-lhes o valor que elas têm e que julgavam já não possuir. Os cineséniores, como lhes chamo, têm um manancial de conhecimentos, de experiências, de afetos, e nós, professores e alunos de diferentes níveis de ensino, só temos a aprender com eles. Tenho o privilégio de ser a Coordenadora do Plano Nacional de Cinema (PNC) da ESA, desde 2014, ano em que a escola aderiu ao PNC a meu pedido. Lembro-me que tendo estabelecido como tema organizador do PNC “Os avós também sonham dentro e fora de filmes”, dinamizei sessões com filmes de géneros distintos, como Viagem a Tóquio, de Yasujiro Ozu,1953, Vou para Casa, de Manoel de Oliveira, 2001, Uma história simples de David Lynch,1999, Três semanas em Dezembro de Laura Gonçalves, 2012, Pronto, era assim, de Joana Nogueira e
de Patrícia Rodrigues, 2015. Os professores que integram a equipa do PNC, desenvolveram junto das turmas do 7º, 8º, 9º e 10º, 11º e 12ºs anos um conjunto de trabalhos que aproximou os alunos-netos dos seus avós, e que culminou com uma exposição-homenagem dos netos com cartas, fotografias de outrora e de agora, entrevistas, pinturas, esculturas, nos Claustros do Mosteiro de S. Gonçalo e na Cooperativa Dolmen. E ninguém foi esquecido: quer as crianças do 1º ciclo, quer os cineséniores participaram e visitaram a exposição. São estas partilhas intergeracionais na comunidade que fazem com que a educação possa ser transformação e enriquecimento. E tudo a pretexto de aprendermos outros modos de ver e de rever os filmes, de nos olharmos e de olharmos os outros, de nos pensarmos. E tem um contributo enorme para a sociedade. Para terminar, uma pergunta mais aberta – mas mais ou menos simples, diria. Falámos muito sobre a importância das artes no ensino, mas também como nos pode fazer crescer enquanto cidadãos. Aquilo que temos nos currículos também se nota no desinvestimento nas artes e humanidades pelas autarquias, governos e instituições? Onde estão as artes na educação formal? Não me refiro apenas ao curso de
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Artes Visuais, no ensino secundário, vocacionado para o prosseguimento de estudos. E a Filosofia? Sabia que é possível aceder ao curso superior de Filosofia sem ter como prova de ingresso o exame nacional de Filosofia? Neste momento, existe um Plano Nacional das Artes (PNA), tenho-o aqui na secretária. E na secretária não serve de coisa alguma. Julgo que terá cerca de dois anos de existência. Lembro-me de, nessa altura, ficar absolutamente deslumbrada pelo facto de as várias artes entrarem de pleno direito no ensino institucional. Nessa altura, propus ao diretor da escola a adesão a este projeto, mas ainda é uma utopia na ESA. Creio que o PNA pretende essa educação artística integral do aluno e dos seus intervenientes. Mas como manifestei ao longo desta entrevista, a Filosofia com Cinema permite-me trabalhar de forma transdisciplinar, visando essa educação integral e inclusiva. Estou convicta que a educação só será plena se possibilitar, desde a educação pré-escolar, o desabrochar de todas as potencialidades e as artes refinam e ampliam, de forma até hiperbolizada, um manancial de competências que nos humanizam. É necessário que as artes, intrometo a Filosofa, tenham um estatuto de maioridade e para que isso aconteça talvez baste que o ser humano atinja a sua maioridade mental. Como referiu René Huyghe: “A arte e o homem são in-
dissociáveis. Não há arte sem homem, mas talvez igualmente não haja homem sem arte.” Perguntam-me muitas vezes: “Como é que será o cidadão daqui a algum tempo, no futuro?”. Confesso que não sou xamã e que esta pergunta é colocada sob a perspetiva do dever ser, não do ser, que prevalece no pensamento unidimensional, como se a tirania do tempo futuro anulasse a intensidade do tempo presente vivido. Dentro e fora de Amarante, tenho encontrado apoio por parte da autarquia, de instituições, e parcerias que procuro estabelecer porque as pequenas utopias necessitam de ser partilhadas e acarinhadas. Acho que o cinema tem uma vocação filosofante e que a filosofia me permite estabelecer uma relação crítica e criativa com a imagem em movimento, cultivando uma educação para a abertura e para a esperança. Em nós. Aqui e agora.
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Rui Barbosa C I RU RGI ÃO PL Á S T IC O DA S Á R E A S R E C ONS T RU T I VA S E E S T É T IC A S
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Rui Barbosa completou o curso de Medicina em 1999 e, no virar do século, tornar-se Cirurgião Plástico era algo que não perpassara ainda pela sua mente. No entanto, nas urgências do Internato Geral familiarizou-se com procedimentos na pequena cirurgia, que suscitaram interesse em Cirurgia Plástica. Depois do exame de acesso, realizou formação no Serviço de Cirurgia Plástica Reconstrutiva e Estética do Hospital de São João. Manteve-se como Assistente Hospitalar neste Serviço, até ter optado em 2009 por uma nova etapa, no Serviço de Cirurgia Plástica e Reconstrutiva do IPO do Porto, onde hoje desempenha a função de Assistente Graduado. Além da cirurgia reconstrutiva, complementa a sua atividade no setor privado na área da traumatologia (sinistros), cirurgia estética e cirurgia reconstrutiva em oncologia da mama e da pele. HAJA SAÚDE Em que medida a visão que agora possui da especialidade de Cirurgia Plástica, após anos de exercício da mesma, difere da que tinha há umas décadas enquanto estudante de medicina? RUI BARBOSA A visão que tinha quando jovem estudante era muito restrita face ao âmbito da especialidade em que hoje trabalho. As aulas de Cirurgia Plástica no sexto ano do curso, acrescentaram bem mais ao que achava que sabia, mas só quando iniciei a especialidade me deparei com um campo de ação amplamente diverso e multifacetado nesta área da Medicina.
A Cirurgia Plástica é percecionada por muitos como a verdadeira encarnação de arte na medicina: a arte escultórica cuja matéria prima é o corpo humano e, na qual, o utensílio de moldagem são as mãos do cirurgião. É, no entanto, entendida por outros, como uma especialidade que se circunscreve meramente ao serviço da vaidade estética.
Na sua experiência, certamente realizou inúmeras reconstruções a nível de queimados, traumas e até pós mastectomias. Qual o nível de impacto destes procedimentos na qualidade de vida dos seus doentes? No seguimento da questão anterior, a associação mais comum da Cirurgia Plástica é com a cirurgia estética mas, e apesar do conceito estético ser transversal a todas as áreas da especialidade, pode dizer-se que a cirurgia estética é apenas um dos seus grandes campos de ação, sendo exemplos de outros a cirurgia reconstrutiva, em diferentes contextos de patologia e localização anatómica, a cirurgia da mão, a cirurgia oncológica da pele, tecidos moles e da cabeça e pescoço e o tratamento de queimados. Realço ainda uma intervenção em todas as áreas anatómicas, com um leque muito variado de técnicas, ao nível de diferentes órgãos e tecidos e com utilização de uma ampla gama de materiais. O impacto da nossa ação na qualidade de vida pode ser tremendo. Sem outras explicações que não alguns exemplos, basta pensar na diferença que poderá fazer recuperar a função de uma mão com um reimplante, evitar a amputação de uma perna, mitigar o desfiguramento de um rosto, restituir a mama à mulher com mastectomia por cancro, manter a capacidade de comer e falar num doente com cancro da língua ou mesmo preservar a vida de um doente queimado. Há alguma experiência que o tenha transformado particularmente a nível pessoal e profissional? Se sim, poderá descrevê-la? Não há uma, há muitas! Lidamos com pessoas em contextos muito particulares e muitas vezes dramáticos; é impossível que isto não nos molde pessoal e profissionalmente. Trabalhando eu num hospital oncológico, penso que nem terei de particularizar essas experiências; sendo certo que influenciam certamente a minha maneira de estar na profissão e na vida.
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Considera que nesta especialidade haverá um maior desafio em lidar com as expectativas versus realidade face a outras áreas da medicina? Como procura contornar este obstáculo em doentes que se revelem mais relutantes perante um desfasamento neste nível? Sim e não. Noutras áreas da medicina somos também, por vezes, obrigados a enfrentar as expectativas de cura ou melhoria clínica com pouco mais do que a nossa impotência perante a doença. Mas entendo o sentido da questão. Na Cirurgia Plástica, fruto da sua cada vez maior mediatização e publicitação, sobretudo na vertente estética, o que é associado e esperado muitas vezes, é a obtenção de resultados perfeitos. Por exemplo, muitos doentes pensam que as operações plásticas se fazem sem cicatrizes. Para lidar com expectativas desajustadas o caminho é sempre a informação e esclarecimento que devem preceder qualquer procedimento.
Numa área em constante evolução, especialmente a nível de procedimentos (com tendência a serem menos invasivos e mais eficientes), qual prevê ser o próximo avanço a nível da Cirurgia Plástica? Há uns tempos fazia umas arrumações com um colega e encontrámos um livro de Cirurgia Plástica dos anos 70 ou 80, que folheámos. Algumas imagens de casos tratados com técnicas da altura, pareceram-nos agora grotescas... vai suceder o mesmo quando daqui a 40 ou 50 anos alguém folhear os livros atuais (...provavelmente em formato digital)! Os procedimentos tenderão, no futuro, a ser cada vez menos invasivos e é de esperar uma evolução no sentido da tecnologia ao nível de células pluripotenciais, engenharia de tecidos vivos e biomateriais. Considerando então a Cirurgia Plástica a materialização mais próxima da arte em Medicina, até que ponto, enquanto “artesão” possui “liberdade criativa” neste processo? Ao conceito de arte associamos habilidade, criação, imaginação e estética. Estas qualidades não tangíveis podem, com a avaliação e a decisão clínica, o estudo e as técnicas cirúrgicas, criar uma certa fusão entre ciência e arte na Cirurgia Plástica. A liberdade criativa não pode, porém, ir além do estipulado pelas indicações e pelas técnicas cirúrgicas; contudo, é responsável por algumas nuances que definem cada cirurgião e o seu trabalho.
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Tiago Monteiro Brás A LU M N I DA NO S SA E S C OL A C OM U M PE RC U R S O PA RT IC U L A R : DA M ÚSIC A PA R A A M E DIC I N A E C OM U M D OU TOR A M E N TO A M E IO D O C U R S O. C U R IO S O S ?
T EX TO TI AGO R A M A LHO
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HAJA SAÚDE Entraste em Me- ao IPATIMUP falar com uma filha de um dicina aqui, na Universidade do amigo do meu pai que era de Biologia e Minho, já depois de um percurso também de falar com alguns médicos, e ligado à música. Como foi a tua en- na altura fiquei com a ideia que para intrada e também a experiência de vestigação ainda contava muito vir da estudar cá? Medicina. Vir da Medicina no sentido de vir do TIAGO MONTEIRO BRÁS Sim, falanhospital? do um pouco na música, já que tocaste Ou porque traz as questões do hosnesse ponto, eu comecei a aprender piano com cerca de dez anos numa escola prati- pital porque lidas com os pacientes diacamente da minha rua. Isto tudo por cau- riamente. Ou, por outro lado, a ideia que sa do professor de música na escola: nós me passava – não sei se é tão verdade tocávamos flauta, ele tocava piano, e fica- agora – é que havia um certo status quo va fascinado com aquilo. Já quando tinha do médico que investiga. Não sei até que 12 anos passei para uma escola ligada ao ponto isso é real. Mas, na altura, notei conservatório, o que fez com que quan- também que isso me dava uma coisa exdo fosse a altura de ir para a faculdade só tra para fazer: podia dedicar-me à clínica tivesse o 6.º grau de piano – não tinha o a tempo inteiro. Não precisava de estar 8.º, como quem começa a formação aos necessariamente só no laboratório. Semdez anos. Aos 14, comecei também a to- pre que eu idealizava a investigação, pencar guitarra – os adolescentes todos que- sava em coisas como HIV, cancro. O canrem tocar guitarra por volta dessa idade cro era uma bola que englobava tudo. E [risos]. Mas quando cheguei ao 12.º ano são tópicos claramente clínicos com inera um bocado os “3 M”: ou vou para Mú- fluência direta nas pessoas. Na altura tinha boas notas e falaramsica, ou vou para Medicina, ou vou para -me que devia considerar Medicina. Eu Matemática. Matemática era a área que mais gos- comecei a ver e fiquei com esse fascínio tava de estudar. Tinha, claro, um fascínio também, nessa altura optei por Medipela biologia como a maioria das pessoas cina. Uma das coisas, já agora, que me que vai para Medicina tem, mas sobretu- afastou da Música foi que quando comedo até a parte de investigação em Biolo- ça a pensar como algo a tempo inteiro, gia. Mas era a investigação aos olhos de ficava com menos paciência para tocar quem tem 18 anos, que não sabe bem o piano. Tens oito peças para aprender por que é investigação. Lembro-me até de ir semestre, é algo mais pesado…
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Optei então por Medicina, na altura, como te disse, como sou do Porto, candidatei-me às faculdades daqui. A Escola de Medicina em Braga estava penso que no nono ano de vida e não ouvia, no dia-a-dia de um estudante de secundário, não ouvia falar nem de Braga, nem de Coimbra sequer. Sabia que era uma escola nova. E então acabei por colocar por distribuição geográfica – e depois entrei em Braga. Já tinha uma conhecida que estava no 2.º ano do curso, falei com ela, e fiquei mais entusiasmado pela ideia de ir para Braga. Mudo-me para Braga para viver e comecei até a comparar a experiência com amigos meus que entraram noutras faculdades, especialmente no distanciamento que nós não tínhamos com os professores. Ou seja, nós conseguíamos muito mais abertamente falar com alguns professores e eles tinham de fazer aqueles e-mails pomposos para falar com os deles [risos].
Sentia um pouco a ideia de que estava a aprender algo mais direcionado. Lembro-me do 1.º e do 2.º ano, nós não tínhamos Anatomia, estávamos a ter SOF e eu sentia “isto vai ter impacto naquilo que eu quero fazer mais à frente”. E esse sentimento é algo que fui sentindo durante o curso. Naturalmente há sempre matérias que olhas e pensas “estou a aprender isto e não sei que impacto terá”. Mas especialmente nos primeiros anos, esse ‘cheirinho’ do que vai ser mais à frente é importante. Antes de irmos à investigação, que é uma parte fulcral no teu percurso, voltamos à música. Deixas a música um pouco de parte durante o curso ou vais conciliando? Não voltei às aulas. Não conseguia ter aulas de música ao mesmo tempo. Mas já no primeiro ano comprei um piano e levei para Braga. Durante o curso, tínhamos as galas de talentos e participei em todas e fazia um dueto com um amigo meu que tocava guitarra.
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As artes e as humanidades é algo que procuramos que tenha impacto. Sentes que o piano como hobbie também ajudou no percurso? É sempre uma forma de descomprimir. Às vezes, retirar uma hora do teu dia, ou chegaste a casa de estudar e já não dá mais, vais tocar um bocado de piano. Tinha um piano digital, podia meter os fones e tocar a noite inteira que ninguém me ia chatear. Eu acho que isso é bom até para quando estás mais nervoso e acabas por usar o piano como escape. Mas de resto, não interessa bem o hobbie, acaba por servir o mesmo propósito. A música relaciona-se muito com a matemática, daí também o meu gosto pela matemática. Na prática aquilo é um conjunto de intervalos com que vais brincando um bocado e consegues fazer harmonias e melodias baseado em intervalos. É uma arte, não é estanque, mas tem esse lado matemático. Tínhamos falado antes que o teu interesse pela investigação surge quando entras na Escola… Lembro-me logo no primeiro dia, foi o professor João Bessa que nos fez uma tour pela Escola e levou-nos aos laboratórios e eu, na fila da frente, e perguntei logo se os alunos podiam participar. Ele disse que sim, que os alunos eram obviamente bem-recebidos se quiséssemos ir. E logo no primeiro ano, tínhamos Projeto de Opção que eu aproveitei para ir trabalhar com o professor João Cerqueira em esclerose múltipla. Foi o meu primeiro contacto com a ciência e usei isso um pouco como teste. Já tinha ouvido falar do MD/PhD e queria testar as áreas. Fiz isso, gostei, fui às neurociências fazer um projeto e depois quis experimentar as outras. No segundo ano decidi fazer um projeto de opção em clínica, no São João, em cardiologia pediátrica, que era uma área que não tínhamos no curso. E depois nesse ano, voltei a fazer um projeto de opção em neurociências. O primeiro era mais
celular, era com amostras de pacientes. O segundo já foi tentar perceber a modulação cognitiva em modelos animais. Aqui já na equipa do professor José Miguel Pêgo, com o professor António Melo. E foi nestes dois primeiros projetos que percebeste que era aí que querias mesmo investigação. Eu percebi que tinha muito interesse na investigação, no método científico, e em saber mais daquilo, que queria participar mais e ter mais competências. A solidificação desse processo acaba por ser do 3.º para o 4.º ano, quando faço o projeto com a professora Margarida [Correia-Neves] sobre as células T reguladoras no contexto da infeção por HIV, sob alçada da Dra. Ana Horta. No 4.º ano entrei na parte mais clínica. E a maior parte dos meus colegas entrou a pensar “ok, agora estou a ir para o hospital, de bata, estetoscópio, a ver doentes”. E eu sempre gostei muito do ambiente de faculdade, gostava mais de andar por cá, discutir as questões teóricas, falar com as pessoas. Cheguei ao hospital e não era assim tão interessante. Claro que de uma perspetiva errada. No 4.º ano, muitas vezes estávamos no que enquanto alunos chamávamos “segurar paredes”. Porque muitas vezes estás a fazer um trabalho que não era bem o que querias fazer, mas agora olhas para trás e tem impacto no que és agora. Como a questão das histórias clínicas, acaba por ficar enraizado em ti. Isso desanimou-me um pouco na altura. Depois fui para o MD/PhD no final do 5.º ano e quando volto para o 6.º ano, a maneira como encaro a clínica é completamente diferente, seja por estar mais velho, seja por ter outro tipo de contacto. E áreas que não gostava passei a gostar. A minha primeira rotação, por exemplo, foi cirurgia e eu nunca fui ligado a esta área e gostei bastante e sentia que era independente. Mas regressando ao 3.º ano, fiz esse projeto com a professora Margarida, fico
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com uma relação melhor com a professora Margarida e acabo por gostar bastante da área da microbiologia e imunologia, e no final do 5.º ano decido concorrer ao MD/PhD.
E claramente não te arrependeste. Não, não. O doutoramento, como tudo, não corre sempre às mil maravilhas, mas olhando para trás, na mesma situação, tinha ido na mesma.
O MD/PhD acaba por ser uma oportunidade única, mas acaba por ser uma decisão muito complicada de se tomar, por parar o curso para fazer o doutoramento. E como correu a experiência em Philadelphia, na Universidade Thomas Jefferson? A decisão já era algo que se previa, mesmo cá em casa já tinha falado com os meus pais. Obviamente que é uma decisão difícil e o meu ano, bem como os anos próximos, ainda mais difícil, devido à pressão do constante aumento do numerus clausus e de muita gente entrar em Medicina e pensávamos “se eu adiar isto quatro anos, vou ter de tirar uma nota muito melhor no exame para ter uma especialidade”. Esse creio que era o ponto com que nos preocupávamos mais. Mas também voltamos e somos os únicos cinco que temos doutoramento – e isso contará para alguma coisa. Claro que na especialidade não conta muito, porque é basicamente pelo exame de acesso – noutros países fazem entrevistas e aí sim contaria muito mais este doutoramento. Depois depende também da especialidade que escolheres, mas existe sempre uma lógica do serviço de que é bom teres um doutoramento ou ires fazer doutoramento. A parte formativa e, por exemplo, dar aulas numa faculdade sempre foi uma coisa que me atraiu muito – lá está, volto àquela ideia de gostar do ambiente de faculdade. Sempre achei que, para além de ter a oportunidade de parar quatro anos e dedicar-me a 100% a fazer ciência, aprender mais – e que é uma oportunidade que nunca mais tens. Pensei que se não fosse agora, não o faria nunca. E no futuro, este doutoramento acaba por te distinguir e ser uma mais-valia.
Quais foram as melhores coisas do MD/PhD? Estar num laboratório nos Estados Unidos da América, por exemplo? Acho que dizer que ir para o estrangeiro não importa é um bocado hipócrita, porque era uma as coisas que mais me fascinava e em termos de crescimento pessoal é sem dúvida importante. Eu, com 17 anos, saio para Braga, mas estou a 30 minutos de casa. Em Philadelphia é do outro lado do Atlântico. O crescimento pessoal é muito importante e notas isso ao vires. As pessoas que ficaram também cresceram, mas acho que mudas mais lá fora. Depois também tens contacto com o fazer ciência num país completamente diferente e num país como os Estados Unidos que, com os seus defeitos, em termos científicos apostam muito mais que a União Europeia ou Portugal. Mesmo a questão de fazer experiências: planeias, encomendas e dois dias depois executas. A minha chefe era francesa e ela dizia-me no primeiro mês que fazia as “experiências à europeu” e que ela própria tinha sofrido disso quando chegou ao laboratório. A ideia de que tu vais ler e planear tudo ao mais ínfimo detalhe para a experiência correr bem à primeira. Mas ali não era assim que se fazia. Ali achavas a maneira como achavas mais correta de fazeres e fazias. O importante era fazer. Erraste? Vamos ver o que erraste e voltamos a fazer. É um pouco a lógica de quem não tem falta de material ou o mesmo não demora um mês a chegar. É algo engraçado a nível de diferenças culturais. E nesse aspeto, vivia numa cidade grande e morava numa residência americana e, portanto, a maioria dos meus amigos não eram sequer americanos. Tinha alguns de outros estados, um
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grande amigo meu era do Texas, mas a maioria era da Índia, Irão, Jordânia, Malásia. Eram culturas diferentes, com que não tinha contacto nenhum em Portugal, e com que depois por descobrir tradições e tudo mais. Aí também o crescimento pessoal de outras ligações que não poderias fazer fora dali, provavelmente. Sim, claramente. O ponto principal do MD/PhD é mesmo a oportunidade de te dar quatro anos em exclusivo para te dedicares ao doutoramento. E é difícil fazer o que nós fizemos enquanto fores médicos – e essa é a vantagem principal. Para terminar, queria saber que conselhos darias a quem quer ingressar em Medicina na Universidade do Minho. É engraçado porque eu tenho uma irmã mais nova que está neste momento a estudar para a Prova Nacional de Acesso, acabou o 6.º ano agora na FMUP. E eu disse-lhe na altura para vir para Braga. Não sei se por teimosia de não ir atrás do irmão optou por ficar no Porto [risos]. Não gosto de falar mal de outras faculdades, porque não vivenciei, mas consigo comparar. E noto que a grande vantagem de Braga, a não ser que as outras tenham mudado muito, é o contacto clínico que nós temos. Desde o 1.º ano que tínhamos uma semana de centro de saúde. Não parece ser muito, mas é qualquer coisa para mostrar que este ano em que estiveste a aprender vai culminar em vires ver doentes. O nível de contacto que temos com doentes e a questão adicional de termos doentes estandardizados estão muito acima. A grande vantagem é este contacto para quem quer mesmo ser médico e as ferramentas que a Escola te dá para este objetivo.
Adicionalmente, e agora estou numa posição diferente por estar há muito tempo ligado à Escola, mas sinto que os professores continuam a ser sempre muito abertos para que possas interagir com eles e isso é ótimo. E ainda tens um laboratório que está no mesmo edifício que a Escola, atravessas um átrio, sobes as escadas e estás lá. A possibilidade de ires a aulas e aos laboratórios existe e é bom para quem também quer esta vertente. Para os alunos mais novos, o que costumo aconselhar, e se calhar não gostas mesmo de investigação nem tens que gostar, é que usem um projeto ou uma rotação de verão e passem um verão lá. Pode ser ótimo, para provar que não gostam mesmo, ou para descobrir outras áreas de interesse.
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Nome completo Tiago Jorge Monteiro Brás Idade 28 anos (01/12/1992) Entrada em Medicina na UMinho Setembro de 2010
Percurso Interno de Formação Geral no Centro Hospitalar Tâmega e Sousa (CHTS) desde Janeiro 2021 Membro da Comissão de Internos do CHTS desde Maio 2021 Estudante de Doutoramento em Medicina da Universidade do Minho desde Setembro 2015 Trabalho desenvolvido na Thomas Jefferson University de 2015-2019 Atualmente a terminar a escrita da tese Educação Curso de Medicina na Universidade do Minho concluído em Julho de 2020 Escola Básica e Secundária: INED Nevogilde (2002-2010) Certificado C1 em Inglês (Cambridge Assessment English – 2015) Extra Departamento de Comunicação do Núcleo de Estudantes de Medicina da Universidade do Minho (NEMUM) (2015-2016) Colaborador Externo no Núcleo de Estudantes de Medicina da Universidade do Minho (2014-2015) Escola de Música Óscar da Silva – 2004-2010 (onde tive aulas de teoria musical, composição, piano e guitarra)
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OPI N I ÃO “Demonstrou-se, assim, que um programa de arte aplicado a uma equipa de saúde pode apresentar impacto na empatia percecionada pelos utentes, alertando para a possibilidade de criação de espaços de integração artística orientados para o ensino da empatia clínica nos cuidados de saúde primários.” — Teresa Tomaz
Humanizar a medicina através da arte — 58
Humanizar a medicina através da arte Teresa Tomaz, médica de família em Braga — 58 Porta Nova: cinco semanas em Bafatá Célia Araújo — 60 A arte renova o ser humano que trazemos conosco Marco António Carvalho, professor na Escola de Medicina da Universidade do Minho — 62 Liberdade e sociedade Vasco Henriques — 64
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Humanizar a medicina através da arte Teresa Tomaz, médica de família em Braga
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Existe, na medicina, uma frase que qualquer estudan- sentar impacto na empatia percecionada pelos utente ou médico conhece: “O Médico que só sabe Medi- tes, alertando para a possibilidade de criação de espacina, nem Medicina sabe”. É uma frase popular, atri- ços de integração artística orientados para o ensino buída a muitas figuras na História, gasta pelo tempo da empatia clínica nos cuidados de saúde primários. Existirá lugar para a arte na medicina ou na fore pela própria escrita em artigos científicos ou de opinião, relatórios e currículos. Mas o que significa, ao mação médica? Numa época em que a humanização certo? Precisará o médico de conhecer outros domí- nos cuidados de saúde e a empatia se vêem ameaçadas pelo cansaço, burnout e incerteza quanto ao futuro, nios, como a arte, filosofia, literatura ou pintura? A humanização dos cuidados de saúde e ensino da parece-me cada vez mais importante investirmos em empatia tem sido defendida e promovida um pouco programas de arte aplicados a profissionais de saúde e por todo o mundo. Diversos autores defendem que a estudantes para que, de mãos dadas com o desenvolparticipação em programas de arte poderá auxiliar o vimento de competências de comunicação, se desenensino da empatia e que o uso da arte no treino desta volva e estimule o conceito de empatia clínica e a hucompetência pode potenciar diversas competências manização nos cuidados de saúde. Quando questionado, numa entrevista, sobre o de comunicação, como o reconhecimento do comportamento não-verbal do paciente ou a identificação papel da poesia no curso de medicina, o poeta e cie interpretação de situações envolvendo emoções for- rurgião João Luís Barreto Guimarães refere que “Estes. Várias universidades de medicina e de enferma- tes poemas vão dar-lhes uma visão subjetiva (…) e não gem têm, um pouco por todo o mundo, implementa- apenas sob uma perspetiva fria e objetiva, que consta nos compêndios de medicina e cirurgia. Se isto vai do programas de arte nos seus currículos. Apesar deste crescente reconhecimento, encon- contribuir para gerar compaixão, empatia e humatramos uma separação entre a ciência e a arte des- nismo, não o saberemos para já: só o desenvolver das de cedo na educação, quando somos convidados a es- suas vidas profissionais o dirá. Mas que tem potencolher entre “ciências”, “humanidades” ou “arte” na cial para lançar sementes, tem.” Atrever-me-ia a retransição para o ensino secundário, como se reinas- ferir ainda que é importante fazê-lo, sempre de mãos se um receio de contaminação da ciência pelo cará- dadas com a ciência, realizando estudos sobre o beter imaginativo da arte ou da arte pela objetividade nefício. As sementes, tal como os dados, estão lançada ciência. Oliver Sacks, neurologista e escritor, rela- das. É necessário regá-las e dar-lhes espaço para cresta, na sua autobiografia, que sentiu como violenta e cerem e darem frutos. amarga esta separação entre a ciência e a arte no seu primeiro trimestre no curso de medicina: “Havia uma separação tanto física como social (…) Passar imenso tempo a estudar neuropsicologia era divertido e até excitante, mas eu tinha cada vez mais a sensação de que faltava algo na minha vida.” Na ciência, é necessário ter a certeza que determinada intervenção traz benefícios tanto para o paciente, como para o profissional de saúde. Foi com isto em mente que conduzimos um estudo numa Unidade de Saúde Familiar em Braga, que teve como principal objetivo avaliar a influência dum programa de arte na empatia percecionada pelos utentes relativamente aos profissionais de saúde dessa unidade. A intervenção, aplicada a médicas(os) e enfermeiras(os), consistiu num programa de arte constituído por três sessões referentes a cinema, literatura e fotografia. Verificou-se um aumento estatisticamente significativo da empatia percecionada pelos utentes após a intervenção. Demonstrou-se, assim, que um programa de arte aplicado a uma equipa de saúde pode apre-
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Porta Nova: cinco semanas em Bafatá Célia Araújo
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No meio disto tudo, os dias voaram. Cinco semaÉ difícil colocar por palavras de forma sintética tudo aquilo que fui observando durante as cinco semanas nas souberam a pouco. Pouco para compreender tode estágio hospitalar que realizei em Bafatá, Guiné- dos os problemas da comunidade de Bafatá, pou-Bissau. Observei casos clínicos, passíveis de se- co para oferecer tudo o que tinha para dar e pouco rem resolvidos com alguma simplicidade em Portu- para absorver tudo o que aprendi ao longo do estágal, mas impossíveis de serem decifrados nos vários gio no Hospital. Quando me inscrevi no Porta Nova, diagnósticos diferenciais por falta de meios comple- tinha uma ideia pré-concebida de que viria ajudar mentares de diagnóstico. A contagem plaquetar, que comunidades de países em desenvolvimento. Percenos pode parecer tão simples de ser feita por conta- bi, no entanto, que as expectativas eram irreais. Regem de campos, não existe. Pedir um raio-x ou uma cebi mais destas comunidades do que o que tenho tac não é uma possibilidade, um ECG idem aspas e disponível para oferecer. Para lá de todas as técnia ecografia, embora existam ecógrafos no hospital, cas e competências clínicas que exerci, posso afirnão existem especialistas que a saibam fazer com se- mar que cresci também como ser humano. Despergurança. Essa realidade entristeceu-me, mas dá-me tei para realidades porque as vivenciei e não poderia esperança. Há espaço para crescer, melhorar e tal- ter acordado para estes problemas sem os viver na vez possam existir no futuro projetos que combatam primeira mão. Não existe forma de colocar em palavras toda a este gap de MCDTS disponíveis. O mais difícil de testemunhar é mesmo a pobre- magia desta jornada. Foi dura, mas foi frutífera, e za de espírito. Aquela que se vive entre as pessoas da sobretudo essencial para determinar aquela que será região, por falta de informação, perspetiva, conhe- a Médica Célia do futuro. Por tudo isso, resta-me cimento. Essa não dá alento e mata talvez mais que apenas agradecer a toda a equipa do Porta Nova e à Escola de Medicina por apoiar este projeto que nos a falta de meios. A desnutrição é um problema frequente. A popu- prepara para sermos clínicos de excelência. lação alimenta-se essencialmente de caldos de massa e cebola sem fonte proteica, o que despoleta quadros de anemias por défices nutricionais. Continuam a ser perpetuados mitos relativos à prática da mutilação genital feminina. Além de todas as complicações decorrentes da prática, observei muitas mulheres com dificuldade no período expulsivo do trabalho de parto. O HIV continua a ser perpetuado geração em geração, por falta de aparência da grávida na consulta pré-natal. A gravidez é encarada como uma fase natural que não necessita de intervenção médica, nem acompanhamento. Por isso, por norma, quando as grávidas aparecem no hospital com algum sintoma, vêm tarde demais para evitar um desfecho negativo. A malária continua a ser um problema de saúde pública enorme, muito por conta das águas paradas que existem na região. Sem água canalizada, há necessidade de conservar e armazenar a água das chuvas em bidões. Por isso o vector reproduz-se com grande facilidade. E poderia continuar esta lista interminável de problemas, mas tudo começa e acaba na falta de informação dos Bafatienses. Sinto que há muita coisa a gritar mudança nos cuidados de saúde daquele Hospital. Mas nada será possível, sem antes educar a sua população.
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A arte renova o ser humano que trazemos conosco Marco António Carvalho, professor na Escola de Medicina da Universidade do Minho
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“O poeta é um fingidor Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente.” Fernando Pessoa, em “Autopsicografia” Muitos acreditam que é impossível vestir completamente a pele de outra pessoa. Cada experiência individual é única, uma singularidade no tempo e no espaço – como Caetano colocou em uma de suas músicas “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”. Eu acredito nisso, mas também acredito que o ser humano é social por natureza e viemos equipados, não para viver a experiência do outro, mas para conseguir imaginá-la, e usar esta imaginação como base para nos conectar com as outras pessoas através da partilha das experiências vividas e, por que não, das sonhadas. Os profissionais de saúde em geral, e os médicos em particular, participam como convidados de momentos singulares de seus pacientes e suas famílias. Momentos carregados de emoção, dúvida, medo, sofrimento, culpa, alegria, cansaço, desespero, solidão. Momentos em que ações precisam ser tomadas dentro de contextos complexos, ambíguos e incertos. Ações que terão consequências, que se tornaram memórias, que acompanharão os atores deste drama da vida por muito tempo. Para que estes momentos sejam compreendidos, para que as emoções sejam percebidas e moduladas, para que as decisões sejam compatíveis com as necessidades do doente, o médico precisa imaginar. Imaginar o que se passa com seu paciente, não como se acontecesse consigo, mas como se fosse o próprio paciente experimentando a realidade. Imaginar o contexto do outro a partir da perspectiva do outro. Tarefa difícil. Outro desafio que temos pela frente é a necessidade de lidar com situações complexas e ambíguas em que as decisões muitas vezes tem algum grau de imperfeição. Este contexto, que não cabe numa questão de escolha múltipla, demanda um profissional capaz de compreender que a perfeição e a excelência são coisas distintas, e que a certeza é uma figura de linguagem efêmera, que na medicina, pode causar muito estrago. Como dizia um antigo professor de Minas Gerais, “a dúvida é o travesseiro do clínico”. E clínicos também precisam “dormir com os anjos”. A arte ajuda. Trabalhos científicos mostram que nossa capacidade de imaginar o outro e aceitar a
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complexidade pode ser alimentada pelas artes. Os grandes autores literários nos emprestam a sua imaginação e nos convidam a navegar os ambientes internos de seus personagens. As artes plásticas também alimentam nossa imaginação, mas vão além e nos ensinam a observar e a criar sentido a partir de imagens. A poesia abusa da metáfora mostrando que os sentidos muitas vezes são múltiplos e não excludentes – a doença que é má e castra, também pode ser boa e libertadora. A música no enche o coração de esperança e nos arrebata com seu poder transformador de realidades. O teatro nos mostra a complexidade das relações humanas, com seus conflitos, ditos e não ditos, suas nuances e diferentes pontos de vista, todos eles com algum tipo de razão. Além disso, as artes nos aliviam o peito e dão voz e esperança aos oprimidos. Além de nos ajudar a compreender a experiência de nossos pacientes, a arte nos ajuda a fazer estranho o que foi normalizado. Por que isso é importante? Porque depois de ver 30 pacientes em um turno, depois de passar 20 anos dando más notícias, ou depois de ajudar a colocar mais de 1000 bebés no mundo, temos que conservar nossa capacidade de nos deixar surpreender pelo mistério e pela beleza da vida. A arte renova o ser humano que trazemos conosco. A arte ajuda a entender para além da palavra e acolhe as emoções com naturalidade. A arte ajuda a compreender e aceitar o mundo e a nós mesmos. E no final, se o sofrimento for inevitável, a arte convida a beleza para aliviar o peso da caminhada.
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Liberdade e sociedade Vasco Henriques
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A saúde e a liberdade andam de mãos dadas, rolando estrada fora como contrapeso uma da outra, equilibrando-se mutuamente, equilíbrio esse cujo benefício nunca é enfatizado em demasia quando se discute a vida do ser humano. Um dos mais belos exercícios da liberdade é a cultura, base fundamental, dinâmica e adaptativa que serve de pano de fundo para a organização e sobrevivência dos seus membros, propondo meios de comunicação, cooperação e respostas para o concretizar do sentido da existência. É um sistema complexo de crenças, valores e estilos de vida com o intuito de adequar o ser ao ambiente que o rodeia, pautado não só pela biologia e a geografia como também pela economia, tecnologia, religião e estrutura social. Dada a multiplicidade existente no mundo, nasce uma discrepância na forma como cada cultura e consequentemente cada indivíduo inserido perceciona a saúde e a doença, o que se traduz em diferentes modelos de crença relativos a formas de promover saúde, a causas de doença, à procura de ajuda e ao tipo de tratamentos aceites. Estes modelos de crença podem assentar-se em estereótipos ou mitos que são criados para satisfazer necessidades comunitárias, frequentemente justificando relações de poder existentes, quer seja entre deuses e humanos, a comunidade e o indivíduo, mulher e homem ou pais e filhos. Os mitos operam nos meandros do sentimento, tentam assegurar-nos de que as nossas experiências são partilhadas, podendo funcionar como um meio de controlo social e de certificação de legitimidade. Estas suposições, ao fazer parte de identidades culturais, podem dificultar a prevenção e tratamento de patologias, assim impedindo uma manutenção ou até incremento da saúde dos seus intervenientes. Vejamos alguns exemplos… A linguagem dos Navajos, tribo nativo-americana do sudoeste dos EUA, não contém a palavra ou conceito de quimioterapia, sendo que a sua tradução deve começar com a ideia de cancro e partir para os efeitos secundários derivados. A situação torna-se complicada de exprimir, uma vez que, uma porção dos Navajos acredita que se se disser que algo irá acontecer, irá mesmo. Outro exemplo é a negação da teoria dos germes, com algumas pessoas a preferir acreditar no fatalismo, outras num “djiin” (mito árabe de um espírito maligno) ou até em maldições. No final de contas, podem não aceitar um diagnóstico e acreditar na impossibilidade de mudar a cadeia de eventos, por sua vez aceitando as circunstâncias à medida que se revelam…
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Torna-se então um dos deveres do profissional de saúde o de incutir hábitos de literacia científica na sociedade, noções relacionadas com cuidados baseados em evidência e estatística, ferramentas que nos aproximam de uma verdade convincente e nos deixam mais capazes de tomar uma boa decisão para o nosso futuro. Ainda assim, perante um indivíduo cuja cultura desvaloriza a perspetiva que a ciência tem dos cuidados de saúde, o profissional deve ter o discernimento de reconhecer a liberdade pessoal e não interferir com a vontade de alguém que quer passar pela doença como passou pela saúde, que encara a doença como mais uma prova de superação ou simplesmente não reconhece o prolongamento da saúde como algo valoroso. Desta decisão tomada sob domínio cultural pode resultar um terrível dilema, assente na perturbação da liberdade coletiva. Tomemos o exemplo fresco da pandemia causada pela COVID-19. Ainda que não haja dados longitudinais de possíveis efeitos secundários do tratamento anti-vírico, havendo tamanha morbilidade associada à infeção, será que não tomar a vacina, desenvolvida sob um esforço hercúleo da comunidade científica internacional, faz sentido? Será que, tendo em conta os indicadores de redução da transmissibilidade face à administração da mesma, faz sentido não a tomar e consequentemente aumentar a probabilidade de propagação de um vírus com consequências tão nefastas? Este é apenas um exemplo que deixa a derradeira questão no ar, quando não há argumentação fundamentada e justa, será lícito respeitar a liberdade cultural, com tudo o que isso possa acarretar para a sociedade?
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TEM AS “Nos tempos atuais, mesmo na base de tudo, com a educação sexual, também ainda temos um discurso permeado de repressão. ”
27 anos de “O Erro de Descartes” Eva Ferreira L I T E R AT U R A
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Paprika, um sonho entre sonhos Mariana Barroso CINEMA
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Intimidade com o Mundo Nina Grillo
— Nina Grillo
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O meu belo não é o teu belo Érica Gomes C U LT U R A
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TEMAS
27 anos de “O Erro de Descartes” Eva Ferreira Na introdução do livro “O Erro de Descartes”, de António Damásio, deparamo-nos com as circunstâncias que levaram o neurologista a este estudo sobre a razão e a sua inseparável dependência da emoção: “Tinha-me sido ensinado desde pequeno que as decisões sensatas provinham de uma cabeça fria, que as emoções e a razão, qual azeite e água, não se podiam misturar. (…) Quando pensava no cérebro por detrás dessa mente imaginava sistemas cerebrais distintos para a razão e para a emoção”. Contudo, o trabalho clínico e experimental realizado com inúmeros doentes neurológicos levaram à hipótese de que as emoções eram uma componente integrante dos mecanismos da razão. Damásio pretende explorar a neurobiologia da racionalidade humana, fornecendo-nos diversos exemplos que demonstram que lesões cerebrais em regiões específicas diminuem a capacidade de sentir emoções. Para além disso, os estudos mostram que a redução das emoções provocada pelas lesões poderá ser uma origem importante de comportamentos irracionais, contrariando a perspetiva tradicional de que apenas um exacerbamento das emoções leva a este tipo de comportamentos. Mas qual será, afinal, o erro de Descartes referido por Damásio? Ao longo desta obra, os conceitos de emoção e sentimento vão sendo elucidados: o autor defende que são uma perceção dos nossos próprios estados físicos, constituindo uma ligação entre o corpo e regulações que têm como finalidade a sobrevivência do in-
LITERATURA
divíduo. O erro de Descartes foi precisamente separar o corpo da mente, como se a emoção ou a moralidade pudessem existir separadas do corpo, tal como a conhecida frase “Penso, logo existo” do filósofo sugere. Esta declaração apresenta um dualismo, na medida em que é feita uma divisão entre a parte pensante, a mente, e a parte mecânica, o corpo, assinalando o oposto da ideia defendida pelo escritor, pois, segundo as suas palavras, “Existimos e depois pensamos”. O possível desapontamento do leitor desencadeado pela descoberta de que uma determinada emoção pode ser explicada através da atividade de sistemas cerebrais específicos torna-se menos acentuado quando Damásio nos diz que é fundamental que percebamos a diferença entre a própria emoção e os componentes por detrás da sua manifestação. Assim, conclui que a explicação destes fenómenos biológicos não deverá reduzir a importância humana dessa emoção. O otimismo em relação ao espírito humano é notável – e notório. Os constantes sublinhados do autor sobre a compatibilidade entre a biologia e a visão dos sentimentos românticos devolvem essa esperança – e confirmam que os sentimentos não podem ser reduzidos clinicamente a meros circuitos neurais. Ao percebermos a complexidade destes mecanismos que convergem em sentimentos, como a euforia derivada da arte ou o verdadeiro altruísmo, a nossa admiração deve aumentar. Assim, a emoção, vista muitas vezes como algo inatingível ou difícil, é exposta em hipóteses que parecem revolucionar muitas das ideias tradicionais existentes, o que se torna um dos feitos mais
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impressionantes nesta obra. Todavia, muitos outros argumentos apresentados suscitam uma forte reflexão, não só devido à sua grande originalidade, mas também à forma como são expostos e que permitem a sua fácil interpretação.
TEMAS
Paprika, um sonho entre sonhos Mariana Barroso Se tivéssemos que descrever um sonho, muitas vezes o relato do mesmo tornar-se-ia ténue e impreciso, não estando ainda esclarecidos os mecanismos que nos levam a criá-los. Enriquecidos de cenários e emoções, que muitos defendem provir do nosso subconsciente, e desejos reprimidos, realizar um filme sobre sonhos torna-se até mesmo um desafio ousado. Satoshi Kon, através de Paprika, transforma esta ousadia numa autêntica obra de arte que nos invade os olhos e a mente. A história gira em torno do Mini DC, uma invenção científica experimental, desenvolvida num instituto psiquiátrico, que permite que os médicos tenham acesso aos sonhos dos seus pacientes, para fins terapêuticos. Sendo um aparelho extremamente promissor, na medida em que o acesso ao subconsciente e a emoções reprimidas se torna possível, esta invasão da privacidade pode, da mesma forma, ser trágica se cair nas mãos erradas. É o que acontece quando um destes Mini DC é roubado e os sonhos alheios começam a ser invadidos – o que desperta a preocupação da Dra. Atsuko Chiba,
CINEMA
que assume Paprika no mundo dos sonhos, uma persona proveniente do seu alter-ego. O foco do filme prende-se muito pela forma psicadélica como Satoshi Kon retrata o mundo onírico, criando tensão e, ao mesmo tempo, fascínio no espectador. Os sonhos são, muitas vezes, retratados por cenários confusos, cheios de criações irrealistas e que conduzem a um desfecho muitas vezes impossível no mundo real. Contudo, a capacidade de desinibição subconsciente, acaba por refletir os desejos, sentimentos e medos vividos pelas personagens que vão contra o seu modo de agir na realidade. Chiba, sendo uma personagem fria, calculista e séria, contrasta com Paprika, caracterizada pela sua impulsividade, espontaneidade e alegria. A forma como o criador cria um paralelismo entre consciência e subconsciência é rigorosa e, acima de tudo, brilhante. Mais desafiante do que conseguir criar um contraste entre dois mundos pertencentes à mesma personagem, é conseguir recriar um sonho sem que o mesmo caia num looping demasiado lógico ou desprovido de qualquer imaginação e criatividade obscura. Neste sentido, podemos ver cenários enriquecidos de ideias completamente alucinantes, uma fusão de cores e iluminação que nos prende com-
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pletamente ao enredo e nos deixa com uma sensação curiosa de imprevisibilidade. Mas os sonhos são mesmo assim, imprevisíveis e pessoais. A estética acaba por ter um contributo crucial no desenrolar do filme, com desfiles de bonecos coloridos e aberrantes, típicos de uma personalidade mais infantil de Kei Himuro (colega de Tokita, o criador do Mini DC). Mas não nos escapa o ambiente pesado na tela, com um padrão de iluminação completamente diferente nos sonhos do detetive Konakawa, que sofria de incompletude. Ao longo da nossa infância, muitos de nós fomos expostos a filmes de animação que tendiam a envolver sonhos das personagens, de uma forma sólida e segmentada, muitas vezes com um propósito ou uma lição de moral. Satoshi Kon tornou Paprika uma obra mais adulta, criando até mesmo um desconforto em certas situações vividas nos sonhos das personagens, ou a exploração dos desejos perversos das mesmas. Isto, porque explicar ou compreender o subconsciente acaba por ser uma incógnita pessoal e a expressão de determinadas vontades, acaba por gerar um conflito entre a ideia que temos de nós mesmos e aquilo que realmente somos.
Nota Paprika foi a principal influência do filme Inception.
TEMAS
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SEXUALIDADE
Intimidade com o Mundo Nina Grillo O mais difícil de segurar no tempo talvez seja o olhar. Quando cruzo olhares com alguém na rua, sorrio. Mesmo que o outro não retribua a simpatia, a parte do sorrir costuma surgir de forma natural, não custa. Muito mais difícil que sorrir é ser capaz de sustentar o olhar com o outro por algum tempo, sem medo de invadir, sem medo de ser invadido. Basta que por genuína curiosidade, flirt ou desafio pessoal, qualquer um de nós tente manter contacto visual com um estranho por mais de 20 segundos seguidos. A necessidade de fuga é difícil de contornar, a retirada é ansiosa. Ao desviar-se o olhar sente-se alívio, sobretudo quando o esbarrar de vistas se dá acidentalmente. Não sei se reparam, mas isto percebe-se, todos os dias — quando dois carros param no semáforo, lado a lado; quando se está sozinho, numa mesa de café. Na correria do dia-a-dia já é muito raro ver-se alguém com olhos deliberadamente à procura doutros — por vergonha, timidez, falta de interesse, ou hábito. A curiosidade singela, ou a admiração despretensiosa à distância não serão as primeiras interpretações a surgir duma ocasional troca de olhares. Há expectativas e suposições que borbulham num olhar alongado — gera desconforto —, logo, a menos que haja um interesse claro, ou outro motivo (menos ‘ingénuo’ do que os mencionados acima) para se olhar, olho no olho com desconhecidos evita-se, regra geral. Tudo isto para dizer que, de pele com pele, também se fala pouco. Os motivos serão mais ou menos os mesmos. Quando se
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fala de corpo e sexualidade, é natural que se fale também das visões de mundo que marcam uma época. E as visões de mundo costumam ter limites muito bem definidos — apenas alguns passos para lá destes e já temos estigma, tabu, constrangimento, uns ofendidos, outros incrédulos. As diferentes maneiras de fazer-se mulher ou homem (ou de se optar por nenhum destes), as muitas possibilidades de viver prazeres e desejos são, de certa forma, sempre sugeridas, promovidas ou induzidas socialmente — da mesma forma como também são julgadas, condenadas ou negadas. Viver e falar abertamente sobre sexualidade ainda requer uma certa aprovação silenciosa, da qual pouco se fala. Nos tempos atuais, mesmo na base de tudo, com a educação sexual, também ainda temos um discurso permeado de repressão. Os conteúdos lecionados passam por relevar conceitos biológicos como ovulação e fecundação, alertar as raparigas (e com grande foco nas raparigas) das consequências de uma possível gravidez indesejada, e sobre a importância do uso do preservativo para a proteção contra doenças sexualmente transmissíveis. Sim, todas estas são informações relevantes, necessárias. Igualmente indispensável seria abordar o campo do desejo e as noções de prazer, no entanto continuam a ser ignorados. No âmbito da saúde pública, e muitas vezes também em ambiente familiar, aborda-se a introdução ao ensino da sexualidade como uma “conversa importante” a ser tida. É sim uma conversa importante. Mas o “importante” muitas vezes dá peso desconfortável ao que poderia ser mais leve (o que não significa desprovido de responsabilidade). A sexualida-
SEXUALIDADE
de não é apresentada como algo interessante, inspirador, mas exclusivamente como algo perigoso, e cheio de consequências indesejáveis. A sexualidade é atrelada ao medo e não à curiosidade — na medida em que o medo nunca trouxe grande esclarecimento, mas sim opressão, a quem vive sob ele, temos logo aqui, na base, um problema que perpetua um ciclo de desinformação. Maurice Merleau-Ponty, filósofo francês, reconhece, na sua teoria, uma relação profunda e bidirecional entre a sexualidade e a existência, afirmando existir uma espécie de osmose entre elas. Merleau-Ponty postula ainda que a existência terá sempre de acontecer a partir de uma base comportamental sexual, na medida em que cada indivíduo, para poder viver e entrar em contacto com o mundo, precisa de estar aberto e recetivo ao meio envolvente. Para o filósofo, será então impossível de distinguir um ato sexual, dum não sexual. Esta reflexão torna-se particularmente interessante quando se pensa que a construção do gênero e da sexualidade acontece a todo o momento durante uma vida inteira de momentos. É preciso mudar as bases de aprendizagem, informação e introdução à sexualidade, para sermos capazes de atingir a liberdade sexual — na medida em que não só a praticamos livremente, de acordo com as preferências de cada um, mas também falamos livremente sobre ela, e conhecemos o nosso corpo, sem pudor. Em francês, há termos distintos para carne: viande significa carne morta, como a carne de animal num açougue; chair quer dizer carne viva em corpo vivo. Carne viva em corpo vivo busca, entre outras coisas, prazer. Intimidade com o mundo
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e consigo próprio. Explora o horizonte do outro. É preciso normalizar a busca curiosa por olhares, prazeres, desejos e por si próprio, em todos os desdobramentos que isso engloba. E para este fim, nada será mais sexy do que informação livre, para uma sexualidade também mais livre.
TEMAS
O meu belo não é o teu belo Érica Gomes Vivemos num mundo carregado de padrões de beleza definidos pela sociedade e cultura em que nos enquadramos. Todas as culturas têm o seu próprio conceito do que é belo, cada uma com a sua própria história e evolução. O que uma comunidade admira e considera indispensável, para outra é repulsivo e impensável. Através da explosão de Hollywood, da exclusividade da indústria da moda e, mais tarde, do aparecimento das redes sociais, os países mais ricos espalharam os estereótipos de beleza globalmente, não dependendo agora somente da cultura, mas também da influência em massa dos diferentes media, a que nada escapa. A globalização teve um papel imprescindível para o alargamento deste conceito. Inevitavelmente, à medida que as redes sociais começaram a consumir as nossas vidas, mais difícil se tornou vivermos com a nossa própria individualidade, sem nos conformarmos com a perceção estandardizada do belo. Desde muito
CULTURA
cedo, é internalizado nas crianças a crença de que é necessário a validação dos outros para se sentirem completas e felizes, sendo que esta passa pela utopia dos padrões de beleza. Algo inatingível, contudo, a sociedade impõe que tem de ser alcançado, minimizando a importância da identidade e diversidade. É assustador o papel que a beleza pode atingir na nossa sociedade, estando indubitavelmente no centro de tudo. A beleza iguala-se à humanidade, se não é vista em alguém, fica-se rapidamente cego para a humanidade inerente a essa pessoa. A diversidade da beleza pelas diferentes culturas é mais uma prova de que a sua definição é uma construção social. Olhos treinados para entender o que é belo pelas lentes da cultura ocidental ficam condicionados a afastarem-se dos seus padrões e conseguirem identificar beleza com um olhar alternativo. Apesar do seu tremendo impacto na sociedade, o seu conceito está em constante transformação. A indústria da moda adquire um poderoso papel nesta metamorfose. É notável que, na última década, o mundo da moda restrito somente
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a mulheres cisgéneras, altas, magras e pálidas modificou-se num mais inclusivo para mulheres não enquadradas neste conceito do belo. Pessoas transgéneras, não binárias, plus-size e de variadas cores de pele finalmente começaram a ser representadas, refletindo o aparecimento de cada vez mais exigências e protestos por um conceito de beleza mais inclusivo. Uma beleza que vem de nos expressarmos ao máximo, a que vem de quando alguém é verdadeiramente livre para ser ela mesma, sem qualquer medo do julgamento inerente à sociedade. Os padrões impostos pela cultura em que vivemos têm uma profunda influência na nossa própria perceção do que é bonito. Uma beleza que é considerada tanto pessoal como subjetiva fica assim também paradoxalmente universal. Apesar de cada vez mais se observarem transformações significativas em direção a uma beleza inclusiva, ainda existe um longo caminho a ser percorrido para se atingir esta quimera, sendo que o direito para alguém existir sem o juízo negativo é algo bastante utópico à nossa atual realidade.
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