Haja Saúde
Escola de Medicina Universidade do Minho Revista Semestral Gratuita N.˚13 · Outubro 2022
Diretora
Erica Gomes
TÉCNICA
Medicina
Editor Núcleo de Comunicação da Escola de Medicina Morada Escola de Medicina Universidade do Minho Campus de Gualtar, 4710–057 Braga, PT
Periodicidade Semestral
321
Diretora Erica Gomes
Sede de Redação Escola de Medicina Universidade do Minho Campus de Gualtar, 4710–057 Braga, PT
Redatores Beatriz Martins Clara Sousa Cristina Costa Cristina Voronin Inês Maia João Santos Leonor Ribeiro Leonor Vieira Mariana Oliveira Nina Grillo Pedro Simões
Design Editorial Design by OOF
Impressão Gráfica Nascente Travessa Comendador Alberto Sousa, Lote 15 4805-668 Sande, Guimarães
Tiragem 250 exemplares
Proprietário Alumni
NIPC 508
719
FICHA
NOTÍCIAS TEMASPESSOAS OPINIÃO
Afeganistão
O país que hoje vive as consequências da violação dos direitos humanos — 8
Extrema direita na política de hoje — 19
Imigração sem saúde — 22
Liberdades e direitos em contexto — 28
Entrevista a anónimos ENTREVISTA — 37
Sofia Correira Estudante de Medicina Voluntária na Associação Porta Nova ENTREVISTA — 42
Pedro Morgado ENTREVISTA — 48
As dificuldades vividas na Guiné Sara Xavier, Voluntária do Porta Nova — 56 Saúde e Direitos Humanos Ricardo Fernandes, Alumnus da Escola de Medicina e Especialista em Oncologia — 58
Voltas ao Verão Pedro Gonçalves, Haja Saúde — 61
A Plataforma: Canis Canem Edit Mariana Oliveira CINEMA — 64
Intervenção ou Inconformismo? Beatriz Martins MÚSICA — 66
Trinta e quatro pedaços de prosa Nina Grillo LITERATURA — 68
O direito de ser Leonor Ribeiro POESIA — 70
ÍNDICE
Em 1948, num pós-segunda guerra mundial, marcado por uma necessidade de se criar diretrizes explícitas sobre o que a população mundial deve ter como mínimo para a manutenção da dignidade humana, culmina no nascimento da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
4
EDITORIAL
EDITORIAL
Marca-se, assim, o início da contestação de uma sociedade cansada de se confor mar à precariedade. Contudo, passado quase 75 anos da materialização destes direitos, percebemos o quão fugaz foi a sua preservação, não só no panorama in ternacional, como também no nacional. Com a maioria dos países a retificarem a declaração, mas em simultâneo a violar impunemente a sua pauta, percebemos que nunca existiu a universalidade dos Direitos Humanos na qual o povo depo sitava a sua esperança.
Posto isto, não é ao acaso que o tema da última edição de 2022 da revista Haja Saúde seja este mesmo, num mundo desigual deparamo-nos com a crueza da realidade em que estes direitos não fogem de ser uma falácia. Ao folhear a revista o leitor deparar-se-á, como já habitual, com um conjunto de Notícias, Entrevistas, Opiniões e Rubricas meti culosamente trabalhadas pelos nossos redatores. De facto, na instabilidade do panorama atual vivido, é imprescindível ocasionar a reflexão e análise da inigua lável relevância da luta pelos mesmos e das consequências catastróficas conco mitantes com o seu incumprimento. É de fácil perceção que a desumanização é transversal a vários campos integrantes da sociedade e um mundo em que todos os povos vejam os seus direitos cumpri dos parece utópico, todavia convido a que cada um de nós saiba almejar a nada menos do que à incessante promoção e implementação dos direitos de todos, sem exclusões. Boas leituras.
Erica Gomes Diretora da revista Haja Saúde
5EDITORIAL
“(...) a extrema-direita revelou-se mais hábil no domínio das redes sociais do que outras forças políticas, propagando eficazmente a sua visão nos mais jovens, combatendo fervorosamente o denominado “politicamente correto”, num ambiente virtual simultaneamente bélico e imaturo.”
Afeganistão
O país que hoje vive as consequências da violação dos direitos humanos — 8
Extrema direita na política de hoje — 19
Imigração sem saúde — 22
Liberdades e direitos em contexto — 28
— João Santos
Extrema direita na política de hoje — 19
NOTÍCIAS
Afeganistão
O PAÍS QUE HOJE VIVE AS CONSEQUÊNCIAS DA VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
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TEXTO INÊS MAIA
10NOTÍCIAS Um ano decorrido após a tomada de posse, o regime Talibã pôs fim a todas as liberdades conquistadas pelas mulheres afegãs desde a queda do primeiro regime, há duas décadas. Hoje, o Afeganistão moderno está preso ao passado e o desrespeito pelos direitos humanos deixou a sua marca nos vários setores de atividade do país, sobretudo na área da saúde.
Há mais de um ano que o Afeganistão se tornou num país em colapso, vivendo, atualmente, uma crise económica, polí tica e humanitária sem precedentes.
Nos vintes anos que se seguiram à chegada das tropas ocidentais ao país e à queda do regime Talibã em 2001, a população afegã experienciou impor tantes avanços sociopolíticos, sobretudo no que diz respeito ao reconhecimento e valorização dos direitos das mulheres.
Em 2001, 3.3 milhões de raparigas afegãs tinham acesso à educação e fre quentavam as escolas. As mulheres afegãs participavam ativamente na vida política, económica e social do país, ten do profissões não só no ramo da saúde, política, economia, educação, desporto e legislação, como também na comuni cação social, ativismo, jurisdição e pro teção civil. Temas como os “Direitos Humanos” e os “Direitos das Mulheres”
passaram a ser lecionados e a integrar os novos currículos nas universidades afegãs. O Ministério dos Assuntos Fe mininos, implementado na sequência da queda do primeiro regime Talibã, funcionava como um importante órgão político que assegurava o respeito e o reconhecimento dos direitos das mu lheres. Com o acesso facilitado à educa ção e aos cuidados de saúde, as famílias numerosas constituídas essencialmente por mulheres podiam aspirar a uma vida com estabilidade económica e profissio nal. Graças ao reconhecimento dos seus direitos fundamentais, as mulheres pas saram a ocupar um importante lugar na sociedade afegã, tendo contribuído para melhorar a situação de crise que o país então enfrentava.
A 14 de abril de 2021, o presidente norte-americano Joe Biden anunciou a retirada das tropas americanas do
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Manifestação de mulheres afegãs em Cabul. "Por que razão o mundo nos deixa morrer em silêncio?", "Direito à Educação" e "Direito ao Trabalho", lia-se em alguns dos cartazes que exibiram.
Muitas mulheres ficaram impedidas de trabalhar. Apenas podiam trabalhar as que prestavam cuidados de saúde ou lecionavam em escolas primárias. As restantes – jornalistas, polícias, professoras universitárias, lojistas, empresárias, advogadas, políticas, atletas, entre outras – ficaram proibidas de trabalhar e muitas foram ameaçadas caso tentassem comparecer nos locais de trabalho.
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O uso de burcas tornou-se obrigatório.
Afeganistão com o intuito de “encerrar a guerra mais longa dos EUA”. Na se quência desta tomada de decisão, a 15 de agosto de 2021 as forças talibãs recupe raram a capital do Afeganistão e passou a vigorar o segundo regime Talibã no país. Desde então, o panorama sociopolítico, económico e humanitário anteriormente vivido no país mudou por completo, so bretudo para a população feminina.
Muitas mulheres ficaram impedidas de trabalhar. Apenas podiam trabalhar as que prestavam cuidados de saúde ou lecionavam em escolas primárias. As res tantes - jornalistas, polícias, professoras universitárias, lojistas, empresárias, ad vogadas, políticas, atletas, entre outras–ficaram proibidas de trabalhar e muitas foram ameaçadas caso tentassem com parecer nos locais de trabalho. O descon tentamento geral da população feminina rapidamente motivou manifestações com vista à luta pelos seus direitos fun damentais, sobretudo o direito ao traba lho. As autoridades Talibã dissolveram os protestos recorrendo à força e à violência.
A 7 de setembro de 2021, os Talibã anunciaram um gabinete político ex clusivamente masculino, excluindo as
mulheres afegãs de importantes cargos políticos. A participação na vida política do país ficou vedada às mulheres afegãs.
A 17 de setembro de 2021, o Ministé rio dos Assuntos Femininos é dissolvido e reinstalado o Ministério da Promoção da Virtude e da Prevenção do Vício, o qual havia sido instituído no primeiro regime Talibã. Este órgão político visa implementar “a moralidade nas ruas” e é conhecido por, no passado, ter exercido violência sobre as mulheres. Por exem plo, as mulheres que consideravam estar vestidas “sem modéstia” ou que eram vistas fora de casa sem estar na presença de um guardião do sexo masculino eram espancadas nas ruas. Com o desapareci mento da força de segurança nacional e do Ministério dos Assuntos Femininos, as mulheres afegãs confessam que, agora, vivem “mais inseguras”, com “medo, an siedade, desesperança, insónia e um pro fundo sentimento de perda e desamparo”.
Na mesma data, as jornalistas afegãs ficaram proibidas de ir trabalhar. Cerca de 153 meios de comunicação encerra ram desde a tomada de posse dos Talibã, incluindo jornais, canais de rádio ou te levisão e sites.
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A 26 de dezembro, as mulheres afegãs ficaram proibidas de viajar sozinhas. De acordo com o emitido pelo Ministério da Promoção da Virtude e Prevenção do Vício, as mulheres que viajam mais de 72 km precisam de ser acompanhadas por um familiar masculino próximo e os pro prietários de veículos estão proibidos de transportar mulheres que não usem véus a cobrir a cabeça e a ocultar o rosto. "Não posso sair sozinha. O que devo fazer se o meu filho estiver doente e o meu marido não estiver disponível? Os Talibã tiraram a nossa felicidade... perdi a independên cia e a felicidade." confessa uma parteira residente em Kabul.
Em janeiro de 2022, o Ministério da Promoção da Virtude e Prevenção do Vício anunciou a obrigatoriedade de usar hijab. Mais tarde, a 7 de maio, se ria anunciado o uso obrigatório de véus que cobrissem totalmente o rosto das mulheres. Qualquer mulher que se recu sasse a obedecer à nova regra veria o seu guardião masculino preso por três dias. A ordem também afirma que as mulheres
afegãs devem deixar a casa onde residem apenas "em casos de necessidade" e os parentes do sexo masculino sofrerão consequências se essas diretrizes não fo rem cumpridas.
A 3 de fevereiro de 2022, assistiu-se à segregação de género nas universidades. As estudantes tinham aulas em turmas separadas dos restantes estudantes e os currículos foram reformulados tendo por base os princípios islâmicos, dando ênfase à religião.
"O meu sonho era ir para a universi dade e tornar-me médica", declarou a estudante Mahvash, que tem 17 anos e é da província de Takhar. Em conversa com a BBC 100 Women, a estudante se cundária Rohila disse que há meses que aguarda pelo momento em que voltará à escola."Sinto muita tristeza por estarmos a ser privadas do direito básico à educa ção só porque somos mulheres."
A 21 de maio de 2022, as apresen tadoras de televisão foram obrigadas a cobrir totalmente o rosto. A apresenta dora Yalda Ali disse que os Talibã estão
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Jornalista afegã obrigada a cobrir o rosto durante uma emissão televisiva.
a pressionar-nos indiretamente para pa rarmos de aparecer na televisão. Como posso ler as notícias com a boca tapada? Não sei o que fazer…sou o ganha-pão da minha família”.
Um ano decorrido após a tomada de posse, o regime Talibã pôs fim a todas as liberdades conquistadas pelas mulheres afegãs desde a queda do primeiro regime, há duas décadas.
"As políticas dos talibãs rapidamente transformaram muitas mulheres e rapa rigas em prisioneiras virtuais nas suas casas, privando o país de um dos seus recursos mais preciosos, as habilidades e os talentos da metade feminina da popu lação", concluiu a diretora para o direito das mulheres, Heather Barr.
De facto, a violação dos direitos das mulheres e as restrições impostas tive ram graves consequências para o país. A instabilidade política do governo acen tuou-se, uma vez que uma importante parte deste era constituída por mulheres. A crise económica e o limiar da pobreza vividos no país agravaram-se, uma vez que a maioria das mulheres ficou sem sa lário e sem trabalho. Com o agravamento da crise económica no país, as famílias afegãs viram-se obrigadas a entregar as crianças para casar com homens mais velhos a troco de dinheiro. A falta de acesso à educação, o casamento infantil e a indisponibilidade de cuidados pré e pós-natais levaram muitas crianças e jo vens a desenvolver uma gravidez de risco. As consequências nas medidas de saúde da população foram inevitáveis: a mor talidade infantil aumentou, bem como a mortalidade materna associada ao parto.
Além disso, o país enfrenta agora uma verdadeira crise no setor da saúde.
Antes da instituição do regime Tali bã, o sistema de saúde do Afeganistão era mantido essencialmente à custa do financiamento internacional, avaliado num montante de, aproximadamente, um bilião de dólares. Segundo o ministro afegão, no Afeganistão cerca de 2.400 dos 3.700 centros de saúde eram admi nistrados com orçamentos canalizados
pelo Banco Mundial. Mais de 80% das instituições de prestação de cuidados de saúde dependiam desse financiamento.
Este apoio internacional surtiu efei tos no panorama de saúde do país. Em 2001, mais de 1.600 mulheres grávidas afegãs morriam por cada 100.000 partos. Em 2018, graças ao considerável suporte financeiro e técnico disponibilizado pela comunidade internacional, o país con seguiu reduzir o número de mortes para 640 por cada 100.000 partos.
Entre os anos de 2001 e 2021, as mu lheres afegãs não tinham restrições no acesso aos cuidados de saúde, não havia segregação baseada no género, podiam ser vistas e tratadas por médicos do sexo masculino e não era necessário estarem acompanhadas por uma figura masculi na para saírem de casa e dirigirem-se ao hospital.
No entanto, o financiamento inter nacional foi interrompido logo após a tomada de posse do Afeganistão pelos Talibã. A violação dos direitos humanos no novo regime foi um dos pontos apre sentados pela comunidade internacional para sustentar a interrupção do finan ciamento, por medo de que os líderes do regime possam aceder aos depósitos internacionais.
Dado que o sistema de saúde afegão dependia deste apoio, as consequências desta interrupção rapidamente se fize ram notar. Em setembro de 2021, mais de 80% dos serviços de saúde do país foram reconhecidos como disfuncionais devido à falta de financiamento, de ma terial médico e de profissionais no setor. Logo após a instituição do regime tali bã, verificou-se uma queda de 25% na disponibilidade e utilização de serviços destinados à saúde materna. Decorridos seis meses desde o início do segundo re gime Talibã, o país apresentava taxas de mortalidade materna e de doença ma terna superiores às que se verificavam há 15 anos.
O aumento da taxa de mortalidade materna pode ser explicado pela inter rupção do financiamento internacional,
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a diminuição do número de profissionais de saúde, as restrições de mobilidade fe minina e o agravamento da pobreza.
Para além disso, a saúde da restante população está a ser posta em causa: a pobreza e as restrições na mobilidade impedem a ida aos hospitais e centros de saúde; os profissionais de saúde do sexo masculino, em maior número nos hospitais, não podem realizar exame fí sico a pacientes do sexo feminino, o que compromete um bom diagnóstico; o nú mero de profissionais aptos para prestar cuidados de saúde especializados redu ziu significativamente; Há falta de ma terial médico, oxigénio, medicamentos e alimentos.
"Apesar de assumirem numerosos compromissos em matéria de defesa dos direitos humanos, os talibãs não só não cumpriram as suas promessas, como in verteram grande parte dos progressos realizados nas últimas duas décadas", acusam os especialistas da ONU, in cluindo Richard Bennett, relator especial sobre a situação dos direitos humanos no Afeganistão.
Os relatores das Nações Unidas aler tam que o futuro do Afeganistão é “som brio” se não se fizerem mais esforços para inverter a deterioração dos direitos hu manos, o que impede o reconhecimento e legitimidade internacional necessários ao financiamento pelo Banco Mundial. Alertam ainda que não é expectável que a crise humanitária e económica do país venha a diminuir. Pelo contrário, pre vê-se que se agrave "em parte devido à interrupção da assistência ao desenvolvi mento internacional e ao congelamento dos ativos afegãos no estrangeiro".
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Mulheres afegãs na sala de espera de uma maternidade, na província de Kandahar, numa zona rural.
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Casamento infantil. As famílias mais pobres são obrigadas a vender as suas filhas para casarem com homens mais velhos a troco de dinheiro.
Extrema direita na política de hoje
TEXTO JOÃO SANTOS
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Ventura, Salvini, Le Pen, Órban, Morawiecki, Bolsonaro, Trump... Estas figuras surgiram gradualmente no plano político do mundo ocidental, a diferentes ritmos é certo, mas todas se solidificaram como agentes relevantes, devido ao seu apoio eleitoral. Alguns são chefes de governo, validando, portanto, que em certas nações as suas ideologias e valores ressoam com a maioria da população. Quais os fatores que levaram à explosão da extrema-direita no mundo ocidental?
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Antes de mais, relativamente à termino logia, o uso da expressão “extrema-direi ta” não parte do rigor da ciência política, mas sim do seu uso corrente na sociedade, equiparável a “direita radical/nacionalis ta/populista/autoritária”. Refiro-me à di reita que menospreza ou ignora os prin cípios liberais de proteção das minorias e os direitos humanos. É tarefa mais fácil tentar definir a extrema direita de um prisma social do que um puramente eco nómico, pois dada a sua natureza popu lista esta varia segundo os setores sociais que pretende agradar.
Será adequado dizer que este surgi mento foi algo positivo democraticamen te? Que permitiu a representação política de uma parte da população previamente ignorada? Se vivêssemos numa democra cia iliberal sim, contudo não é isto que se verifica. Vivemos numa democracia cons titucional/liberal em que nos são protegi dos vários direitos políticos e liberdades civis que, perante o poder da extrema-di reita, estariam severamente ameaçados.
Um dos possíveis fatores deste cresci mento prende-se com o aborrecimento (e, no extremo, ódio) perante a inércia po lítica dos partidos centristas, em que, ad mitindo uma visão mais complexa e emo cionalmente apagada da realidade e uma análise mais ponderada dos seus proble mas, acabam por não corresponder de forma significativa aos desejos por parte da população, nem às promessas feitas no contexto de campanha eleitoral (aparen temente os partidos centristas também propagam notícias falsas, algo hipócrita da sua parte). Explica-se assim o apelo, por marcado contraste, do discurso defi nitivo, simplista e emocional dos partidos populistas, em que a correspondência do caminho à realidade não se revela mini mamente prioritário, desde que este seja concreto e ressoe com os instintos emo cionais do seu eleitorado. Esta procura de simplificações relaciona-se também com a tendência destes partidos terem um foco numa só figura, para evitar opi niões heterogéneas. Creio que este último
aspeto explica as convulsões internas vis tas neste tipo de partidos, com frequen tes demissões e afastamentos.
Poder-se-á relacionar este desejo de definição de um caminho mesmo que fal so com a crise do Homem na sociedade moderna, inseguro no seu rumo, no seu corpo, nas suas crenças e na esmagadora complexidade da realidade.
Outro aspeto marcante, relacionado com o prévio, é o do uso do medo, em que fenómenos como terrorismo, imigra ção e minorias raciais são apresentados como ameaças que são ignoradas pelos restantes partidos. Esta apresentação frequentemente recorre a simplificações e generalizações, enquadrando-se tipi camente num discurso populista com o alvo de manipulação emocional do seu eleitorado.
Também, a extrema-direita se revelou mais hábil no domínio das redes sociais do que outras forças políticas, propa gando eficazmente a sua visão nos mais jovens, combatendo fervorosamente o denominado “politicamente correto”, num ambiente virtual simultaneamente bélico e imaturo. Contudo, mesmo com adjetivação pejorativa, essa manobra rende. A propagação para o meio virtual intensificou uma forma de debater políti ca em que o tribalismo, os “sound-bytes” e o puro insulto reinam, em detrimento de um debate convencional. Os próprios algoritmos das redes sociais, que nos prendem na nossa bolha ideológica, con tribuem muito para a realidade política atual de polarização.
Este texto não se trata de um traba lho científico, não sendo a lista exaustiva, certamente existem mais fatores a con tribuir para este fenómeno. Sendo este crescimento real e presente, não sei dizer a proporção de votos que correspondem a pessoas racistas, misóginas ou homo fóbicas e os que correspondem a pessoas que votam por outros motivos. Ainda assim, o que dizer das pessoas que, não sendo nenhum dos adjetivos prévios, vo tam em quem o é?
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Imigração sem saúde
TEXTO PEDRO SIMÕES
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24NOTÍCIAS Contexto migratório em Portugal: “O número de estrangeiros que procuram trabalho em Portugal tem vindo a crescer desde 2015. Pessoas em idade ativa da América Latina, da Ásia e da África Ocidental.” —Diário de Notícias, maio 2021
Portugal tem assistido continuamente, ao longo dos últimos anos, a um aumento da sua comunidade imigrante. Entre 2015 e 2019 observou-se um aumento de cerca de 200 000 estrangeiros residentes em Portugal, totalizando nesse mesmo ano 590 348 estrangeiros residentes.
Nesta população, podemos verificar que uma grande parte dos seus mem bros ativos trabalhadores são provenien tes de países com índices socioeconó micos mais baixos e que trabalham em setores como a hotelaria, restauração e agricultura.
Situação atual no país
Num país onde a população imigran te continua a crescer, não podemos ficar indiferentes à precariedade a que muitas destas pessoas ficam sujeitas. Estamos a falar daqueles que deixaram para trás a sua vida noutro país, na esperança de encontrar em Portugal melhores con dições para construírem o seu futuro.
A realidade é por vezes bem diferente das idealizações de prosperidade…
Devemos estar certamente familia rizados com situações de exploração ou de más condições de vida entre as comu nidades imigrantes em Portugal. Temos como exemplo mais recente o mediáti co caso dos trabalhadores de Odemira, mas também temos outras situações de exploração tal como trabalhadores sem contratos de trabalho ou com contratos a tempo parcial (com menos de 8h diá rias de trabalho), recebendo assim menos de um salário mínimo nacional e não au ferindo de todos os direitos previstos na legislação laboral.
Até mesmo durante o contexto pan démico, a comunidade imigrante conti nuou a aumentar, ainda que a situação económica em Portugal não continuasse tão favorável. Este contínuo balanço mi gratório positivo, conjugado com uma desfavorável situação laboral, empur rou muitas pessoas para o desemprego,
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Fonte: Relatório de Imigração, Fronteiras e Asilo 2020, p.20 - Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.
Tendência evolutiva de estrangeiros residentes em Portugal, de 2015 a 2020
agravando a condição de muitos imi grantes, especialmente entre os setores mais afetados.
Um dos problemas que os imigran tes enfrentam em Portugal surge com o elevado tempo de espera para o pro cesso de regularização. Em 2019 foi es timada a demora em cerca de 18 meses para estrangeiros que trabalhassem em território nacional. Durante este tempo de espera os imigrantes com pedidos pendentes para título de residência veem limitados os seus direitos. Entre eles o acesso a um número de Utente do Servi ço Nacional de Saúde ou a outros direitos de assistência à saúde como o acesso a prestações sociais de apoio, à celebração de contratos de arrendamento, à celebra ção de contratos de trabalho, e ainda à abertura de contas bancárias e contrata ção de serviços públicos essenciais.
Acontece também que cidadãos es trangeiros sem a autorização de residên cia regularizada têm de comportar as suas despesas médicas, salvo algumas ex ceções, como em cuidados de saúde ur gentes, cuidados prestados a menores ou à saúde materno-infantil e reprodutiva.
Para além dos entraves no acesso aos cuidados de saúde, muitos imigran tes têm ainda de ultrapassar barreiras
linguísticas, culturais e sociais, muitas vezes discriminatórias, que agravam ainda mais o problema de acesso aos cui dados de saúde.
A saúde mental é outro dos tópicos a ter em conta na comunidade migrante. Segundo um estudo realizado por Elsa Lechner, Imigração e saúde mental, “A experiência individual da imigração é vivida com ruturas nos laços familiares, afetivos, linguísticos, simbólicos, consti tutivos da pessoa, e no acumular de refe rências culturais, por vezes, contraditó rias. Neste sentido, a condição de se ser um e/migrante comporta um mal-estar e um sofrimento evidentes que precisam ser, num primeiro momento, reconhe cidos para poderem ser, num momento seguinte, situados nos devidos contex tos particulares de vivência dos seus protagonistas.”. É necessária assim uma especial atenção para que o apoio nestas situações não se torne na medicalização daquilo que deve ser abordado a nível pessoal e social com os imigrantes.
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Como veio a pandemia mudar as coisas?
Com a pandemia, no entanto, foram tomadas medidas por parte do governo para tentar resolver o limbo em que os cidadãos estrangeiros, à espera de regu larização da sua situação de permanên cia, se encontravam. Desta forma, foi promulgado um despacho a 27 de mar ço de 2020 em que “todos os cidadãos estrangeiros com processos pendentes no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) encontram-se em situação de per manência regular em território nacional” – Entidade Reguladora da Saúde. Abran gendo inicialmente 246 mil cidadãos es trangeiros, inscritos até 18 de março de 2020, foi sucessivamente renovado até 31 de dezembro de 2021.
Com a última prorrogação desta me dida, voltamos à estaca zero daquilo que poderia ter sido implementado perma nentemente para o apoio de todos os que aguardam a regularização da sua situação de permanência em Portugal.
Para além dos atrasos causados pela pandemia na aprovação destes pedidos, temos ainda um próximo entrave com a reestruturação do SEF que pode levar a uma nova acumulação destes pedidos, prolongando ainda mais a incerteza e a precariedade destes cidadãos.
O que pode ser feito?
Algumas soluções para combater a desigualdade no acesso aos cuidados de saúde podem passar por:
- Terminar com a discriminação ao acesso ao SNS dos imigrantes que aguar dam pela sua regularização;
- Aumentar a disponibilização de in formação aos migrantes acerca dos seus direitos à saúde, tanto pela maior distri buição de informação como pela maior disponibilidade linguística;
- Melhorar a monitorização da saú de em populações imigrantes mais vulneráveis;
- Promover maior formação para os profissionais de saúde acerca de necessi dades específicas dos imigrantes.
Tal como a saúde não se define apenas pela ausência de doença, a abordagem para a promoção de saúde nestas comu nidades deve ser holística e não apenas incluir mudanças direcionadas ao SNS, como também mudanças nas redes de apoio social e legislativo para aqueles que em Portugal procuram outra opor tunidade de vida.
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Liberdades e direitos em contexto
TEXTO CRISTINA COSTA
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Se alguém não tem direito a ser humano, podemos ser uma espécie livre? E, se alguém não tem direito à liberdade, podemos dizer que somos seres humanos?
A existência humana data já à época dos primeiros homo sapiens sapiens, que se desenvolveriam a partir dos homo sa piens há cerca de 160 a 90 mil anos atrás.
Entretanto, ser-se humano passou a integrar os conceitos de ligações inter pessoais, personalidade individual e cul tura (o que nos tornaria, em sentido lato, verdadeiramente seres humanos).
Contudo, foi só em 539 a.C. que sur giu, pela primeira vez, o conceito de Di reitos Humanos: aquando da conquista da Babilónia, Ciro, o primeiro rei da antiga Pérsia, libertou os escravos, es tabeleceu a igualdade racial e declarou que todas as pessoas tinham o direito de escolher a sua religião. Estes e outros decretos foram gravados num cilindro de barro – o Cilindro de Ciro.
Apesar de os acontecimentos serem promissores para a altura, ainda nos dias de hoje estes decretos são contestados –continua a haver desigualdade racial e as estatísticas indicam que, só nos últimos 5 anos, cerca de 89 milhões de pessoas seriam submetidas a trabalho de escra vatura, de que são exemplo o tráfico de
seres humanos, a servidão por dívida e o trabalho doméstico forçado.
Em compensação, a atenção que tem sido dada aos direitos humanos tem au mentado significativamente. Cada vez existem mais declarações e legislações que protegem a dignidade da vida huma na, bem como organizações e governos que lutam para o seu cumprimento.
Nota-se que o tema tem requerido mais importância quando, ainda no ano transato, Portugal sentiu a necessidade de publicar a Carta Portuguesa de Direi tos Humanos na Era Digital, que visa col matar, entre outras coisas, desigualdades económicas e assimetrias geográficas no acesso à internet e dar proteção contra a desinformação.
Sim, as declarações esclarecem (e cada vez melhor) quais são as necessidades bá sicas da existência humana. Mas estarão esses direitos a ser cumpridos em Portu gal, e no resto do mundo?
Segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela ONU em 1948, que será um dos do cumentos mais citados neste âmbito,
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«Artigo 23 1. Todo ser humano tem di reito ao trabalho, à livre escolha de em prego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desem prego.», «Artigo 25 1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem -estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os servi ços sociais indispensáveis».
Contudo, ainda há pouco recordámos a situação da mão de obra forçada, que começa por contestar o Artigo 23. Além disso, mesmo em Portugal, mas, sobretu do noutros países do mundo, vê-se o in cumprimento do Artigo 25 – a pobreza, associada à falta de recursos do país onde se insere, condiciona o bem-estar físico, psicológico e habitacional de parte da população. Na Guiné-Bissau, a título de exemplo, não há eletricidade disponível 24 horas por dia, muitas pessoas têm de percorrer largos quilómetros até chegar ao hospital mais próximo e, chegando ao hospital, têm o encargo de pagar, do próprio bolso, todo o material médico utilizado na sua intervenção – coisa que nem todos conseguem fazer.
Nestas circunstâncias, conseguir as segurar o bem da saúde pode ser um ver dadeiro desafio – há o que não têm por falta de dinheiro e há aquilo que dinheiro a mais não poderia comprar: se, por um lado, os custos não servem à realidade das pessoas, por outro, condições exter nas, tão simples como a intermitência da eletricidade, podem impedir a conserva ção de vacinas e medicamentos, como a insulina.
Assim, não se pode dizer que os di reitos humanos estão garantidos – muito pelo contrário! Há quem não tenha se quer direito a ficar doente. Ter diabetes pode ser considerado um luxo, se o tra tamento não for assegurado e a outra so lução for ficar àsportas da morte.
De outra perspetiva, se o direito à vida, e ao bem-estar, é importante, tão
o é o direito à liberdade de escolhas e expressão. Se respirar nos insere na clas sificação taxonómica, é o livre-arbítrio que nos permite experienciar a vida, e dar-lhe um significado.
Analisando a situação de Portugal, verifica-se que, em 2021, ficou em 18º no ranking europeu das liberdades – fi cando em 26º no que toca à liberdade política.
A que se deveria este resultado, se em Portugal se vive uma democracia, cada um pode votar livremente e exprimir-se sem medo de qualquer censura? Talvez se encontre a resposta na bipolarização atual da sociedade, incentivada, em par te, pela utilização massiva das redes so ciais – ou se põe primeiro o leite, ou os cereais; ou se é a favor, ou contra, a euta násia; ou se é de esquerda, ou de direita.
Tem-se notado que esta polariza ção leva à criação de ideias rígidas e imutáveis.
Posto isto, quando confrontadas com opiniões diferentes, as pessoas tendem a reagir impulsiva e irrefletidamente. As plataformas digitais, onde predomina o anonimato, permitem que isto escale com muita rapidez para comentários de ódio e violência.
Estaremos prontos para aceitar a liberdade uns dos outros? A Internet diz-nos que não, assim como as novas atualizações que permitem o bloqueio de comentários nas publicações – uma medida contra a intolerância nas redes sociais.
Além disso, por vezes, dar com uma mão é tirar com outra. O que dizer do “excesso de liberdade de expressão”? Por cada um poder escrever aquilo que sua vontade comanda, dá-se azo, por exem plo, à partilha de fake news.
E a desinformação é um verdadeiro problema na era da informação. A falta de literacia nesta área não deixa que as pessoas tenham liberdade de criticar ar tigos falsos, e isto acarreta verdadeiros
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problemas, nomeadamente na saúde pú blica, quando põem em causa a adesão à vacinação.
Neste momento, para um português, estar em 18º da Europa é estar mais atra sado do que outros 17 países europeus. Mas, noutro contexto, como num cená rio de guerra, poder sair à rua pode ser uma liberdade inalcançável.
Em primeiro lugar, temos de pôr cada situação em contexto. É verdade que um dos direitos humanos fundamentais é o princípio da igualdade, mas é mais do óbvio que a satisfação dos direitos hu manos é desigual – entre países e entre pessoas do mesmo país.
Depois, os dados indicam que o mun do está a melhorar – há cada vez menos pessoas em situação de pobreza, a desi gualdade de género está a diminuir e há menos mortes evitáveis. Mas ainda há muito a fazer. Garantir que ser humano é ter dignidade vai muito além do que está escrito em tratados.
Ter direitos não é uma escolha – é um contexto. É mudando o contexto que se mexe nos direitos, e se consegue a liberdade.
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“É muito fácil ajudarmos aquilo que está perto de nós, mas aquilo que está longe e nós não vemos, não é tão imediato e eu queria mesmo perceber e levar uma “chapada da vida” e ver aquilo que está a acontecer efetivamente no mundo.”
Entrevista a anónimos ENTREVISTA
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Sofia Correira Estudante de Medicina Voluntária na Associação Porta Nova ENTREVISTA
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Pedro Morgado ENTREVISTA
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— Sofia Correira
Sofia Correia
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PESSOAS
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Entrevista a anónimos
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“NOVE DÉCIMOS DA NOSSA FELICIDADE DEPENDEM DA SAÚDE” — ARTHUR SCHOPENHAUER
TEXTO
CRISTINA VORONIN
A saúde tem sido um tema cada vez mais urgente e cada vez mais presente nas nossas reflexões e preocupações, recentemente afetada pela pandemia e pelos tumultos na sua administração. Assim, procuramos recolher e perceber o que os portugueses têm a dizer. Para tal, pedimos e agradecemos a colaboração de um estudante português de 21 anos e de uma trabalhadora por conta própria de 61 anos natural da Ucrânia que vive em Portugal há 22 anos, respetivamente.
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HAJA SAÚDE De facto, o direito à saúde é um dos direitos humanos fundamentais. Na sua opinião, to dos os cidadãos deveriam ter um acesso equitativo aos cuidados de saúde?
ESTUDANTE Claramente. O direito a cuidados de saúde de qualidade ca pazes de responder às necessidades do indivíduo deveria mostrar-se como uma garantia, pois todos partilhamos o con ceito de vida, um conceito transparente e universal.
TRABALHADORA Sim, porque todas as pessoas são iguais e acho que toda a gente está em pé de igualdade perante a recessão de quaisquer cuidados de saúde.
Em Portugal, atualmente, acha que os cidadãos têm um acesso equitati vo aos cuidados de saúde? Porquê?
E Infelizmente não. Trata-se de uma realidade cada vez mais premente, em virtude de um sistema nacional de saúde que se tem revelado incapaz e, também, devido à elevada instabilidade socioeco nómica que infortuna muitas famílias, impeditiva da procura de melhores e mais céleres serviços de saúde.
T Claro que não, parece-me haver prioridades de, por exemplo, quem tra balha para o estado, porque quando vou ao dentista tenho de pagar a totalidade duma consulta e quem trabalha para o estado não. Mesmo que pague, grande parte do valor é-lhe devolvido. Clara mente é por causa do seguro de saúde e falando nisso, podem-me dizer que basta fazer um, mas a realidade é que não se consegue pagar um.
No setor público, o tempo de espe ra na urgência com pulseira amare la pode chegar até 9 horas e o tem po de espera de uma consulta não prioritária nas diferentes especia lidades médicas pode variar entre 20 dias a 3 anos. Como se sente em relação a isso?
E São, indubitavelmente, valores di fíceis de aceitar. A prova disso são mes mo os utentes que acabaram por falecer na espera de uma consulta e/ou cirur gia decisiva, os pacientes que veem em constante cadência os seus problemas de saúde adiados e, enfim, o desolador im pedimento de recorrerem a outro serviço de saúde.
T Já me habituei sinceramente. No caso de consultas e se for algo mesmo prioritário o tempo de espera é curto e adequado. Agora para casos menos ur gentes claro que é inconveniente e nin guém gosta disso, mas talvez há quem precise mais urgentemente das consul tas, por isso porque não esperar? Outra questão é qual o limite a partir do qual podemos considerar que estamos à es pera há muito tempo? Mas obviamente que gostava que as coisas funcionassem melhor.
Já recorreu ao serviço privado de saúde? Se sim, qual o motivo?
E Em diversas ocasiões. Realizo, neste momento, um tratamento contí nuo num hospital privado, que poderia também ser realizado no setor público. Porém, no começo do procedimento médico foi me recomendado, pelo mé dico que então me acompanhava, a via de tratamento no hospital privado, na procura de um atendimento mais segu ro e assíduo. A esta razão acrescentam-se motivos de distância, que foram o fator mais decisivo na escolha.
T Não recorri muitas vezes, mas sim. Principalmente por uma questão de tempo. Às vezes há aquelas condições de saúde que não são urgentes, mas tam bém não são lá muito não prioritárias, mas são catalogadas como tal e teria de esperar 2 anos ou mais por uma consulta no público, portanto, para poupar tem po e resolver mais rapidamente a situa ção recorri ao setor privado.
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Todos os anos, o Instituto Nacio nal de Estatística lança um docu mento que se encontra disponível ao público com dados estatísticos da saúde. A informação presente na edição de 2022 é relativa a 2020. E, portanto, qual pensa ser o rácio de hospital privado para o número total de hospitais existentes em Portugal? (ex.: 30%)
E Diria 30%.
T Talvez uns 30%, no máximo 40%.
Tendo em conta que os dados são relativos a 2020, nesse ano, exis tiam em Portugal 241 hospitais e tal como no ano anterior, mais de metade dos hospitais (54%) eram privados (128).
Sabia que em 2019, do Orçamen to do Estado para a Saúde destina do à aquisição de bens e serviços, no valor de 10,9 milhões de euros, mais de metade (53%), ou seja 5,8 milhões, foi destinado para com pras ao setor privado?
E Não tinha a ideia de um valor tão elevado, portanto não.
T Claro que não sabia, acho isso muito estranho e sinceramente sinto-me revoltada.
Focando agora um pouco nos pro fissionais de saúde, parece-lhe que, ao longo da última década, o número total dos mesmos diminuiu, manteve-se ou aumentou?
E Parece-me ter aumentado.
T Penso que diminuiu. Já passamos por uma crise e sempre que há uma crise, há uma queda salarial e consequente mente diminuição de profissionais.
Efetivamente aumentou. No final de 2020, o pessoal ao serviço nos hospitais era composto por 26 249 médicos (mais 15,9% do que em 2010), 48 255 enfermeiros (mais 27,2% do que em 2010), e 10 508 téc nicos de diagnóstico e terapêutica (mais 23,7% que em 2010).
Continuando no ramo dos pro fissionais de saúde, saiu uma no tícia no final de agosto deste ano segundo a qual existe um hospital no país em que os médicos internos já tinham feito “mais de 650 horas extraordinárias” desde o início do ano. O máximo que a lei permite são 150 horas extra anual mente. Os médicos referidos na notícia, segundo o Bastonário da Ordem dos Médicos estavam a ser desviados para fazerem serviço de urgência em detrimento de esta rem a fazer as suas consultas, o que estava a prejudicar a sua formação. Generalizando, foi também referido que os médicos, em vez de par ticiparem em manifestações e gre ves, estão a sair do SNS, havendo, assim, uma fuga dos mesmos para o setor privado. Tendo em conta esta situação, o encerramento de vários serviços e a recente demis são da ministra da saúde, que fu turo prevê para a área da saúde em Portugal?
E O setor da saúde em Portugal, à semelhança de outras áreas como a edu cação, encontra-se num perfeito estado destrambelhado e pandemónico. Pala vras robustas que descrevem o presente statu quo e a forma como tem sido ad ministrada toda a situação. Assiste-se hoje ao ruir da saúde em várias frentes: a “regionalização” do mundo médico onde a falta de incentivos e recompensas leva à quase desertificação de hospitais, ausentes de urgências preparadas para responder a qualquer situação; a desar ticulação cada vez mais acentuada entre o setor privado e público (exemplo das PPP), tornando a saúde um verdadeiro duelo pela sobrevivência e as exageradas horas de trabalho que tornam as carrei ras na saúde cada vez menos atrativas.
T O ministro há de mudar, isso, em particular, não me parece ser grande problema. Acho que mesmo que a si tuação fique muita má, nunca veremos
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uma total transformação da saúde para o privado, porque isso seria totalmente o contrário ao que o direito da saúde pos tula. Contudo, se a situação se agravar muito e começar tudo a desmoronar, as pessoas vão-se revoltar contra o que es tará a acontecer e a partir daí já não con sigo prever nada. No entanto, depois de um período turbulento, vem sempre um período pacífico, portanto, mesmo que a situação agora se esteja a descontrolar, penso e espero que vá tudo ficar bem.
De um ponto de vista geral, está satisfeito com o SNS? Porquê?
E Totalmente insatisfeito. A pande mia veio tirar o véu (e acentuar…) o mau estado do Sistema Nacional de Saúde. Sem, em nenhum momento, querer re tirar mérito ao trabalho incansável de todo o corpo médico, afirmo com certa tranquilidade ter recursos para aceder a outros recursos de saúde, mas, também, com muita apreensão por ver que tal não é a realidade da maioria das famílias portuguesas.
T Digamos uma vez mais que já me habituei. Sou imigrante e para mim este sistema de saúde foi novo. Não diria que estou muito amargurada com o seu fun cionamento. Tem as suas desvantagens, sim, mas talvez o único aspeto que gos tava que fosse diferente é mesmo o tem po de espera. Fora isso, sempre fui bem atendida e a qualidade dos serviços em si é boa.
Que alterações poderiam ser feitas no SNS?
E Em primeiro, garantir incentivos para a fixação de médicos em zonas onde há clara escassez de profissionais de saú de (o caso do interior do país), o reforço das parcerias público-privadas, a criação de vales de saúde que possam permitir um desconto no acesso ao serviço pri vado em caso de uma espera muito pro longada no serviço público, criação de vales farmácia que contemplam um va lor monetário destinado exclusivamente
à compra de medicação, e reforço dos postos/centros de saúde tornando-os al ternativas cada vez mais viáveis em casos não urgentes.
T Primeiramente, facilitava a entrada no curso de medicina e a própria forma ção médica no que toca à especialização.
Depois, seguramente, teria de ser solucionado o problema do tempo de espera.
Em terceiro lugar, apesar de ser injus to, proibia um mesmo médico trabalhar no público e no privado, por uma ques tão de ganância e interesse de bens. Co nheço casos em que uma figura médica exerce tanto no privado como no público, mas que dá consultas no primeiro, de pois orienta os pacientes para a realiza ção de cirurgias no segundo, utilizando todo o tipo de instrumentação e maqui naria fornecida pelo estado. Se ao menos fosse só isso! O aborrecimento é que pas sam os pacientes sem estes entrarem na lista de espera, ou seja, adquirindo logo o primeiro lugar! E a seguir, as consultas pós-operatórias também são realizadas no privado. Ora, isto não me parece ade quado de todo.
Por último, expandia os centros de saúde, adicionando pediatras e gineco logistas. Acho que são áreas muito espe cíficas e que um médico de família, não querendo de modo algum tirar nem o mérito da especialidade nem dos profis sionais que a representam, não está nem verdadeiramente qualificado nem tem tanto tempo para se debruçar sobre es tas. De onde venho, todas as crianças são seguidas devidamente por um pediatra e todas as mulheres independentemente da idade e de serem ou não saudáveis são seguidas por um ginecologista, o que me parece ser o correto.
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Sofia
Correia
VOLUNTARIADO NACIONAL E INTERNACIONAL
TEXTO LEONOR VIEIRA
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Estivemos à conversa com Sofia Correia, estudante do 5º ano de Medicina da Universidade do Minho e que também faz parte da presidência da associação Porta Nova. Nesta entrevista vamos conhecer a sua experiência no voluntariado local e internacional.
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HAJA SAÚDE Qual foi o teu pri meiro contacto com o voluntaria do e qual o impacto que pensas que este teve na tua vida?
SOFIA CORREIRA Desde que me lembro que sempre tive muito contacto com o voluntariado. Estive desde peque na num grupo de jovens, formado pela minha família, no qual fazíamos muitas ações de voluntariado, recolhas de ali mentos e feirinhas. No entanto, a memó ria mais antiga que tenho de uma ação de voluntariado foi quando fomos visitar uma senhora idosa que vivia isolada, em condições mínimas e passamos lá o dia com ela. Fizemos-lhe companhia, aju damos na horta e depois demos-lhe um cabaz com alimentos e bens necessários, porque ela vivia mesmo em condições terríveis.
Em relação ao impacto desta ação, penso que realizar estes pequenos gestos sempre fez parte de mim e foi também um dos motivos para escolher medicina. Aju dar o outro é algo muito importante e que sempre influenciou muito a forma como eu quero seguir o resto da minha vida.
Qual achas que é o impacto do voluntariado nos jovens, mais espe cificamente em futuros médicos?
Achas que o voluntariado tem um papel importante na sua formação?
Sim, acho que tem um lugar muito importante. Nós temos a sorte de estar numa escola que já nos permite ter algu ma prática médica com atores e treinar entrevistas clínicas, mas uma coisa é fa lar com alguém que tem um script, outra
coisa é falar com pessoas reais. É isso que o voluntariado te dá, permite-te ter um melhor conhecimento do que te rodeia, dá-te mais perspetiva e ajuda-te a sabe res comunicar melhor com as pessoas. Ao longo do curso aprendemos imensos nomes técnicos, mas quando estamos a falar com uma pessoa que não estuda medicina temos de adaptar a nossa lin guagem. Eu acho que o facto de fazer mos voluntariado e sabermos as vivên cias e histórias de algumas pessoas nos ajuda a ter mais empatia e a pormo-nos mais no lugar delas, o que nos aproxima mais e facilita na comunicação e na abor dagem que temos com a pessoa.
Ainda sobre a tua experiência, sei que fizeste uma missão internacio nal no ano passado, qual foi a tua motivação para este projeto?
Sim, eu fiz o projeto internacional na associação Porta Nova. Antes de vir para o curso de medicina eu já tinha muito esta ambição de fazer voluntariado in ternacional, porque queria ter uma pers petiva melhor do mundo onde estou e sair da minha bolha. Não é que eu tenha esgotado todas as opções de voluntaria do nacional, mas queria ir um bocadinho mais além. Quando cheguei aqui à Escola de Medicina e vi a associação Porta Nova, formada por estudantes e com esse mes mo objetivo, não pensei duas vezes e inscrevi-me logo. E foi essa a motivação para ir no projeto internacional, abrir horizontes, conhecer o mundo que me rodeia e tornar-me mais consciente, de forma a adaptar-me e ser capaz de ajudar
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mais. É muito fácil ajudarmos aquilo que está perto de nós, mas aquilo que está longe e nós não vemos, não é tão ime diato e eu queria mesmo perceber e levar uma “chapada da vida” e ver aquilo que está a acontecer efetivamente no mundo.
Achas que a tua presença teve um real impacto na comunidade onde estiveste? Se fosse hoje, irias outra vez e farias as coisas da mesma forma?
Não estou a dizer que fui para lá com a expectativa de salvar o mundo, mas durante o projeto algumas das tuas ex pectativas vão abaixo e tens de fazer um processo quase de luto. Uma das coisas que foi mais difícil de gerir foi exatamen te o impacto, (“que impacto é que eu tive aqui?”). E foi uma coisa que eu debati durante bastante tempo comigo mesma e depois falando com outros colegas que também foram em projeto internacional, percebi que eu não ia para lá mudar nada, não ia para lá mudar uma comunidade. A minha missão, era dar aquilo que eu po dia dar de mim e isso trouxe-me muita coisa. Agora, impacto na comunidade … não tive, aquilo que eu fiz foi uma gota num grande oceano e não mudei nada na comunidade, mas sei que o facto de eu ter estado lá influenciou a vida de mui ta gente que conheci, assim como essas pessoas me influenciaram a mim. Aliás, ainda mantenho contacto com pessoas que conheci na Guiné e agora sou quase tia, porque uma amiga de lá teve bebés e é mais esse o impacto, o impacto que tens nas pessoas que vivem lá e que elas têm em ti.
Se aconselhava a ir… sim, acho que estes projetos o que nos dão mais é pers petiva e também muita experiência em campo, porque a nossa atividade con siste em estágios em meio hospitalar e fazemos doação de material e feiras de saúde, que são rastreios gratuitos com consultas. Aconselho muito a ir, porque nós vamos para lá e damos tudo de nós e aquilo que conseguimos em material,
mas aquilo que recebemos em troca é algo que nunca vais conseguir retribuir. É por isto que as pessoas que vão em projeto, quando chegam aqui dizem que querem lá voltar enquanto médicos, para ajudarem ainda mais e terem ainda mais impacto.
Qual é a tua opinião acerca dos la dos mais negativos do voluntaria do?
Um exemplo, é ir em missão só para riscar esse objetivo da lista. Quando tu vais para lá com as motivações erradas, as coisas podem não correr muito bem. Outro aspeto negativo é o facto de as pessoas terem expectativas irreais de “eu vou para lá salvar o mundo”. Não, tu não vais para lá fazer nada e o teu objetivo e o teu papel lá, não é salvar a comunidade, é impossível. Se tem que haver uma rees truturação da Guiné Bissau? Tem. Mas não é para partir de nós, voluntários que vamos lá, é para partir daquela popula ção, são eles que sabem o que é melhor para eles, são eles que estão no país. Nós não vamos para lá impor nada e acho que os voluntários que vão com essa mentali dade podem ter algum impacto negativo, apesar de pequeno.
Ultimamente é bastante mencio nado o conceito “white savior”, ou seja, a ideia de que “nós”, pessoas brancas, somos privilegiadas e te mos a obrigação de salvar as pes soas que vivem em países em desen volvimento, que é outro termo que, segundo especialistas na área, já não representa a realidade do mundo. Dirias que isto foi uma realida de na tua missão e em ti mesma?
Como eu já disse, eu não tinha a ex pectativa de ir para lá mudar nada, mas achava que ia ajudar muito e ter algum papel, mas quando cheguei lá foi logo uma chapada da realidade. O meu papel foi mínimo. Um médico que vá para em missão já tem um papel limitado, agora um estudante de medicina, ainda mais
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limitado tem. Mas sim, o conceito de white savior que está agora a ser muito falado, não digo que não exista em al guns voluntários. Eu fui em missão com 21 anos, mas há quem vá mais novo e tu ao longo do tempo também vais apren dendo mais sobre o assunto e claro que às vezes aquelas expectativas que tu tens nem as fazes de propósito, é uma expec tativa inocente. No entanto, pelo menos eu tentei sempre que não fosse aplicado a mim e tentei sempre manter-me muito realista. O facto de ter falado com vo luntários que já tinham ido em missão, antes de eu própria ir, ajudou muito, por que me deu uma perspetiva daquilo que ia contar.. No entanto, a verdade é que vais ter a tua própria experiência e por muitos conselhos que ouças, vai ser sem pre uma coisa nova para ti.
Achas que o voluntariado e este tipo de missões terá lugar na tua vida profissional enquanto médi ca?
Sim, acho que sim e espero muito que tenha, porque o sentimento com que nós voltamos é “quero voltar, quero voltar e ajudar mais”, porque o que eu recebi não se compara ao que eu dei, e espero al gum dia poder voltar para dar mais um bocadinho de mim e sei que vou receber o dobro, vai ser sempre assim, mas que ro muito voltar lá, não só à Guiné Bissau, mas a outros países também, porque é algo que eu me imagino a fazer.
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Pedro Morgado
DISCRIMINAÇÃO, LIBERDADE DE EXPRESSÃO E EMPATIA
49PESSOAS TEXTO CLARA SOUSA
Dentro da luta pelos direitos humanos, revela-se, na atualidade, a importância de atentarmos nos problemas de discriminação da comunidade trans. Pedro Morgado, psiquiatra, investigador e professor da Escola de Medicina da Universidade do Minho, redigiu, em julho deste ano, uma crónica para a Comunidade Cultura e Arte intitulada “Cancelaram a Empatia” onde aborda essa mesma discriminação, em sequência de uma grande polémica gerada nas redes sociais à volta de piadas e comentários de humoristas e colunistas.
50PESSOAS
HAJA SAÚDE Em Portugal, tem ha vido mudança significativa na discri minação da comunidade queer e da comunidade trans?
PEDRO MORGADO A maior cons ciência dos graves problemas de dis criminação que persistem faz com que seja mais difícil admirar as mudanças estruturais que aconteceram ao longo das últimas duas décadas. É muito im portante salientar que a discriminação diminuiu de forma significativa e isso traz-nos esperança para o futuro. Em bora as pessoas queer continuem a ser discriminadas, a comunidade trans é hoje o principal foco de preocupação. Há 20 anos, quando entrei na Universidade, não existiam pessoas queer - era tudo invisível. Hoje são as pessoas trans que têm essa invisibilidade - há quem fale muito e ignorantemente sobre elas, mas as pessoas trans são, de facto, invisíveis na sociedade.
Quais os principais desafios em relação com a sociedade e consigo mesmas que enfrentam as pessoas trans antes, durante e após a tran sição de sexo?
Antes de formularmos um juízo sobre o assunto, é fundamental ouvir o que nos dizem as pessoas trans. E o que as pes soas trans nos contam são histórias mar cadas pelo sofrimento, pela discrimina ção e pela incompreensão. Os desafios começam na percepção da situação pelos próprios, na sua partilha com a família e amigos e, posteriormente, em todas as mudanças que acabam por acontecer. A transição de sexo também acarreta uma série de desafios, desde logo relaciona dos com as questões de acessibilidade aos cuidados de saúde necessários no
contexto do Serviço Nacional de Saú de e com os custos das intervenções no privado. É importante salientar que nem todas as pessoas trans efetuam transição de sexo.
Que impacto tem a discriminação durante a infância e adolescência na vida adulta e, em particular, nas pessoas trans?
Uma das principais fontes de sofri mento é a falta de preparação da socie dade para incluir todas as pessoas na sua diversidade. Mas, pior do que a não inclusão, são mesmo as situações de dis criminação a que estas pessoas são sujei tos diariamente e de forma intencional ou não. A discriminação tem um impacto muito negativo na saúde mental e física das pessoas trans, aumentando o risco de doença psiquiátrica e, em particular, de suicídio. Cada vez que fazemos um co mentário negativo, desinformado, não empático ou simplesmente jocoso acerca das pessoas trans estamos a contribuir para perturbar o bem-estar e a vida de alguém que o irá ler ou ouvir.
Quais as principais ideias con traditórias aos consensos técni co-científicos atuais que são atri buídas ao papel da genética e da cultura na transexualidade? Que consequências traz a difusão des tas ideias por pessoas com largo al cance de audiência para os direitos humanos?
O conhecimento científico ainda não explica totalmente a diversidade sexual. Mas é absolutamente consensual que a diversidade de orientações sexuais ou expressões de género não é uma esco lha mas uma característica das pessoas
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que deve ser compreendida e respeitada enquanto tal. Alguns grupos pegam em achados científicos isolados para difun dir as suas crenças acerca da sexualida de, do género e da transexualidade de uma forma que é desonesta e se afasta dos consensos técnico-científicos. Têm como objetivo limitar os direitos das pessoas trans da mesma forma que no passado procuraram limitar os direitos das pessoas em função da sua cor de pele, origem ou orientação sexual. A difusão destas ideias não fundamentadas pela evidência científica agrava o estigma e a discriminação a que as pessoas trans são sujeitas e tem impacto negativo na garantia dos seus direitos civis.
O que temos ainda a percorrer quanto aos direitos civis das pessoas trans? Como considera que as pessoas em sociedade precisam de evoluir para contornar a discriminação das mesmas e para que a sua dignidade seja salvaguardada?
Em primeiro lugar precisamos de garantir o acesso atempado de todas as pessoas trans aos cuidados de saúde que necessitam. Em segundo, precisamos de garantir que cada pessoa é respeitada na sua singularidade do ponto de vista dos direitos civis que falta consignar. Em ter ceiro, precisamos que todas as institui ções adotem políticas inclusivas para as pessoas trans. A nossa Universidade, por exemplo, ainda não dispõe de casas de banho e balneários adequados para todas as pessoas, ainda não aderiu de forma consistente às campanhas contra a dis criminação e ainda não tem um código de conduta que regulamente as ofensas homofóbicas e transfóbicas pelos mem bros da sua comunidade em contexto público presencial ou virtual.
Quais são ou quais deveriam ser, a seu ver, os limites da liberdade de expressão?
A liberdade de expressão é um direito fundamental e protegido constitucio nalmente que deve ser defendido sem reservas. Mas, como todos os direitos, tem naturalmente limites entre os quais se inclui a difusão de discursos discrimi natórios ou de ódio e de discursos degra dantes da condição de outrem.
Atualmente, parece haver mui ta confusão entre os conceitos de cancelamento e de liberdade de expressão. Que razões atribuiria para este tipo de equívoco? Em que medida é que isto limita a nossa evolução quanto aos direitos hu manos?
De facto existe muita confusão, algu ma obviamente intencional. Nos últimos anos, alguns movimentos extremistas in ventaram os conceitos de "politicamente correto" e "cancelamento" para tentarem escapar à crítica e ao escrutínio das suas posições. Na verdade, a liberdade de ex pressão em Portugal é plena. Como se viu nos últimos meses, os comentadores e humoristas podem dizer os disparates e as ofensas que entendem acerca das pessoas trans sem que ninguém os tenha silenciado ou cancelado. Uma pessoa que diz que um humorista não tem pia da porque ofende pessoas discriminadas e vulneráveis não está a cancelá-lo nem a ser politicamente correta - está sim plesmente a utilizar a sua liberdade de expressão para defender a sociedade em que acredita. Parece que os comentado res com opiniões mais retrógradas e os humoristas que congelaram as piadas nos anos noventa têm dificuldade em aceitar que a sua liberdade de expressão não é
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maior do que a dos outros. Por muito que lhes custe, as suas posições também po dem ser livremente escrutinadas, debati das, questionadas e contraditadas.
A defesa dos Direitos Humanos nunca foi fácil e sempre tivemos que lidar com este tipo de táticas desonestas e narra tivas enganadoras. O trabalho é hoje di ficultado pelo facto dos media tradicio nais e sociais favorecerem as mensagens mais sensacionalistas.
A solução é sermos persistentes e combativos, dar voz às pessoas, evitar certezas sobre realidades que não co nhecemos assim tão bem e, em cada momento, defender cada pessoa na sua singularidade que é o garante da maior riqueza da nossa sociedade - a diversida de que existe.
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“Com tudo isto, percebe-se que a batalha da defesa dos direitos humanos deve estar na ordem do dia. Exige esforço, vigilância, luta e persistência. Está em cada um de nós e nos que nos rodeiam, por influência direta ou indireta.”
As dificuldades vividas na Guiné Sara Xavier, Voluntária do Porta Nova — 56
Saúde e Direitos Humanos Ricardo Fernandes, Alumnus da Escola de Medicina e Especialista em Oncologia — 58
Voltas ao Verão Pedro Gonçalves, Haja Saúde — 61
— Ricardo Fernandes
Saúde e Direitos Humanos — 58
OPINIÃO
As dificuldades vividas na Guiné
Sara Xavier, Voluntária do Porta Nova
No passado mês de julho tive a oportunidade de realizar um estágio hospitalar no Hospital Regional de Gabú, na Guiné-Bissau, através da associação de voluntariado médico-estudantil Porta Nova. Apesar de ter passado apenas 30 dias na Guiné-Bissau, tive a oportunidade de conhecer um pouco da realidade tão diferente e surreal que se vive lá.
Em Gabú, os pacientes entravam nas urgências e, independentemente da gravidade do caso, era-lhes dada uma receita de material que deveriam comprar na farmácia para que pudessem ser atendidos. Esse material incluía luvas para o médico e cateteres, algo que aqui damos como garantido quando recorre mos ao Hospital, mas que lá, pela falta de recursos e financiamento, o Hospital não possui. Lembro-me que um dia um menino nos seus 6 anos deu entra da nas urgências com malária grave. O menino não abria os olhos e estava muito sudorético e febril. De morou ainda algum tempo até que o menino fosse atendido e o que pai recebesse a receita para comprar luvas, cateter, soro e artesunato (o medicamento lá utilizado para tratar a malária grave). Com a receita, o pai saiu do consultório para se dirigir à farmácia em frente ao Hospital. Eram aproximadamente 16 horas, mas o pai regressou sem os medicamentos, uma vez que a farmácia estava fechada pois nesse dia se assinalava um feriado religioso e era hora da missa. Após duas horas em que o menino não rece beu nenhum tratamento, a farmácia reabriu, o pai conseguiu comprar tudo e após alguns dias de in ternamento o menino recuperou e teve alta. No en tanto, o próprio internamento tinha muito poucos recursos quer humanos quer materiais, o que muitas vezes tinha consequências muito graves. A falta de recursos humanos deveu-se em grande parte à greve dos enfermeiros que durou várias semanas e coin cidiu com o nosso estágio. Durante a greve, ficava um estudante de enfermagem responsável por todo o internamento de pediatria e o médico responsável era o médico que se encontrava nas urgências. Esta falta de staff e sobrecarregamento do existente, leva va a que a maioria das medicações não fossem dadas, principalmente durante a noite. A falta de recursos materiais no internamento era outro problema. Se uma criança estivesse internada e durante a noite o cateter estivesse mal colocado e precisasse de ser substituído para esta realizar os tratamentos, ou se até tivesse o cateter bem colocado mas faltasse algum medicamento, os pais destas só poderiam comprar o cateter ou o medicamento até às 23 horas,
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uma vez que todas as farmácias fechavam a essa hora. Se alguém precisasse de algo depois dessa hora teria que esperar pelo dia seguinte, o que muitas vezes não era viável.
Para além de todas estas dificuldades ainda ha via problemas inerentes à falta de financiamento do hospital, como o da falta de máquinas de oxigénio, de sucção, entre outras. Só havia um aparelho de oxi gênio, e muitas vezes a luz falhava de noite em pedia tria, por isso tiravam a cânula de oxigênio à criança e apenas retomavam a oxigenioterapia no dia seguin te. Porém, quando chegávamos de manhã algumas crianças não tinham sobrevivido à noite, quer por medicação em falta, quer por esta falta de máquinas que teriam feito toda a diferença. Um recurso mui to importante era a máquina de sucção. Um dia na pediatria deu entrada um menino em paragem car diorespiratória, ajudamos a médica no processo de reanimação mas este não estava a resultar. A médica disse que o menino precisava de uma máquina de sucção, pois tinha demasiadas secreções a obstruir a via aérea. Foi então trazida uma máquina de sucção da maternidade, mas esta não funcionava e o me nino após horas de reanimação acabou por morrer. Alguns dias depois, outra criança em coma com a via aérea obstruída precisava de aspirar secreções e fomos à maternidade pedir a máquina para ver se por algum milagre ela funcionaria nesse dia, e funcionou. Algum tempo depois, outra criança também preci sava de remover secreções, mas a máquina não fun cionava novamente. A enfermeira da maternidade disse que devia ser necessário ligar o gerador da ma ternidade, pois a luz dos painéis solares da pediatria não era suficiente para a máquina trabalhar. Fomos então juntamente com a médica pedir que se ligasse o gerador durante 5 a 10 minutos na maternidade para que o tratamento pudesse ser feito. O pai teve que levar o filho em coma ao colo até à maternidade, que ficava noutro edifício. Quando lá chegamos, os médicos tentaram ligar a máquina mas novamente ela não funcionava. Fomos então até ao bloco da ma ternidade, pensando que, como a máquina já fun cionou em várias cesarianas funcionaria também agora. Quando lá chegamos vimos que havia outra máquina de sucção lá parada, experimentamos essa e funcionava. Conseguiram aspirar as secreções do menino e ele recuperou do coma passado uns dias.
Percebemos então que as vezes em que a máquina não funcionou foi porque tinha sido utilizada a má quina avariada e as vezes em que funcionou tinham,
por sorte, trazido a que estava a trabalhar. É mesmo revoltante e triste pensar que por algo tão simples como uma máquina de sucção que não estava em condições, algumas vidas possam ter sido perdidas.
Há muitos problemas neste hospital e as ajudas que são dadas não são, claramente, suficientes. Es pero um dia voltar lá e que consiga ser mais útil do que como estudante de medicina, mas acima de tudo espero que um dia a ajuda não seja precisa.
57OPINIÃO
Saúde e Direitos Humanos
Ricardo Fernandes, Alumnus da Escola de Medicina e Especialista em Oncologia
58OPINIÃO
Corria o ano de 1215, quando alguns súbditos do Rei João de Inglaterra o acusaram de ter violado um conjunto de leis antigas e costumes pelos quais o seu reino teria sido governado. O Rei foi forçado a assi nar um documento que ficou conhecido como um dos documentos legais mais importantes no desen volvimento da democracia moderna, a Magna Carta. Esta enumerava o que mais tarde vieram a ser con siderados como direitos humanos, desde o direito à propriedade, a proteção contra impostos excessivos e a igualdade perante a lei.
A 10 de Dezembro de 1948, foi publicada a pri meira Declaração dos Direitos Humanos, adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU), apenas três anos após o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Esta declaração defende o ideal comum a todos os povos e a todas as nações, através de um esforço coletivo, através do ensino e da educação, para a promoção do respeito dos direitos e liber dades individuais. Os seus artigos compõem a base das leis contemporâneas que defendem os direitos essenciais de todo o ser humano, como o direito à vida, à integridade física, à livre expressão e à asso ciação, sem distinção de raça, cor, sexo, religião ou ideologia política.
Neste contexto, atualmente são postos em causa direitos humanos fundamentais um pouco por todo mundo. Se pensarmos em países economicamente subdesenvolvidos, países em guerra, temos cidadãos subjugados a líderes autocráticos, onde não existe uma imprensa livre e uma sociedade civil plural e dinâmica, populações que convivem com violações graves e reiteradas dos direitos humanos. O desres peito pelos direitos humanos não é exclusivo dos países mais pobres. O grande fluxo migratório de refugiados de guerra para países da Europa central veio acentuar a ostracização de minorias étnicas e imigrantes, onde é feita a promoção do discurso de ódio racial.
Os países subdesenvolvidos lutam contra a fome, o desemprego, a doença, a ausência de um estado so cial que cuide dos seus concidadãos. Assistimos a um mundo com grandes lacunas na equidade de acesso ao sistema de saúde, quando existente. A pandemia da infeção por Covid-19 veio acentuar estas diferen ças, desde o acesso aos cuidados de saúde, a capa cidade de resposta do mesmo e no acesso à vacina.
Um indivíduo acometido pela doença, fragili zado, tem forçosamente de ser visto no seio de um grupo prioritário de atuação e de proteção dos seus
direitos, enquanto pessoa e doente. O direito a me didas preventivas, a cuidados de acesso, o direito à informação, ao consentimento, à livre escolha, à privacidade e confidencialidade, ao respeito pelo seu tempo, ao cumprimento de padrões de qualidade na assistência médica, o direito à segurança, o direito à inovação, o direito a evitar a dor e o sofrimento des necessários, o direito a tratamento personalizado, o direito a cuidados de fim de vida condignos.
A doença oncológica tem um grande impacto na vida dos doentes e das famílias, com consequências a nível físico, emocional, económico, laboral. Sabemos que a incidência e a prevalência da doença oncológi ca está a aumentar a nível mundial. Ainda não existe equidade no acesso a meios de diagnóstico, trata mento e cuidados em oncologia. Há desigualdades muito acentuadas. Os tempos de espera elevados para exames de rastreio, de diagnóstico e para ci rurgia colocam em causa o prognóstico da doença.
Existe uma necessidade de aumentar a literacia em saúde e a compreensão sobre a doença. Devemos apostar na promoção da saúde e na prevenção da doença, não esquecendo os sobreviventes e os seus cuidadores e a necessidade de os proteger e cuidar, ajudar no seu regresso à vida normal, ao seu trabalho.
Com tudo isto, percebe-se que a batalha da defe sa dos direitos humanos deve estar na ordem do dia. Exige esforço, vigilância, luta e persistência. Está em cada um de nós e nos que nos rodeiam, por influên cia direta ou indireta. O mundo mudou com a pan demia e acordou numa guerra. Saibamos lutar por um mundo melhor.
59OPINIÃO
60OPINIÃO
Voltas ao Verão
Pedro Gonçalves, Haja Saúde
Para além de já não saber pegar numa caneta, já não sei para onde volto. A minha casa é o meu berço, não é um escritório, nem uma sala, nem mesmo uma ci dade. Durmo onde sou feliz e vivo para não deixar de o ser.
O repouso, a fuga das responsabilidades acome tidas por nós próprios chega aos seus últimos dias. Dir-se-ia até que a esperança média de vida de um repousado é menor que a de uma borboleta. Passo a explicar: enquanto que a borboleta vive para as flores, bater as asas e explorar no seu sentido mais puro e lírico da palavra, o repousado balanceia-se de for ma quase rigorosa entre a meditação espontânea e o stress iminente. Constantemente ameaçados, dor mimos pouco e queixamo-nos muito.
Não sendo a melhor transição, cabe ao nosso es pírito procrastinador o papel de prolongar o balanço por anos, mas com um término palpável, claro. Por que, o que seria de nós sem uma recompensa? Sem tempo para matar? Sem gostos por descobrir? Sem sonhos por realizar e histórias por concluir?
Iniciando-se o esplendor outonal, perfumado pela própria terra, lavado pelas primeiras chuvas e vestido pelas ruas e jardins pintados de ouro e bron ze, dizemos a nós mesmos: “Já volto!”, como se dei xássemos na estação anterior o nosso eu sortudo, o que se enterra nos areais e toma longos banhos de mar, aquele que acorda à noite e adormece ao nascer do sol. Este caranguejo sorridente e despreocupado não imagina para além do dia que tem planeado. Não faz ideia que só nos reencontraremos quando o sol der mais uma volta.
Até lá seremos feitos de outras forças, dotados de espíritos que protejam os nossos interesses. Porque outra parte de nós é necessária para continuarmos a procissão celebratória da vida, capaz de encontrar ao longo do percurso carregado de sacrifício e sono forçado, um cheirinho a verão, onde borboletas me tafóricas nos mantêm em equilíbrio.
Voltar, tal como Ulisses regressou a Ítaca. Que de uma aventura seja feita história e que dessa possas nutrir os que te esperam e os que te acompanham até à próxima.
61OPINIÃO
“Toda esta intervenção que a música nos permite não seria possível, claro, sem a prezada liberdade de expressão de que gozamos. Hoje vivemos numa democracia (infelizmente) ainda imperfeita, mas que já sofreu muita evolução desde o 25 de abril.”
Beatriz Martins
Intervenção ou Inconformismo? — 66
A Plataforma: Canis Canem Edit
Mariana Oliveira CINEMA — 64
Intervenção ou Inconformismo?
Beatriz Martins MÚSICA — 66
Trinta e quatro pedaços de prosa Nina Grillo LITERATURA — 68
O direito de ser Leonor Ribeiro POESIA — 70
—
TEMAS
A Plataforma: Canis Canem Edit Mariana Oliveira
"Há três classes de pessoas: as de cima, as de baixo e as que caem."
É assim que se inicia o memorá vel thriller distópico realizado por Galder Gaztelu-Urrutia “El Hoyo”, traduzido em português "A Plataforma". Um filme consi derado por muitos provocador, violento e até mesmo repugnan te. Talvez os espectadores sintam tamanha repulsa uma vez que são confrontados com a sua própria natureza humana, na forma mais primitiva e não-censurada. A pre missa do filme é simples; as con clusões, complexas e sombrias.
“El Hoyo”, em português “o bu raco” corresponde a um “centro
vertical de autogestão", eufemis mo para uma prisão vertical com 333 níveis onde, em cada um des tes, estão dois prisioneiros que são alimentados apenas uma vez ao dia, através de uma platafor ma descendente que nela contém comida suficiente para alimentar toda a população desta torre, até ao último nível. À medida que a plataforma vai descendo, o de licioso banquete é rapidamente consumido. Assim, os restos ali mentares dos níveis superiores são, sucessivamente, o alimento dos inferiores, até que nada reste para os que tiveram o infortúnio de acordar num nível subalterno. Os prisioneiros preferem aceitar a sua impulsividade e egoísmo do que garantir sobrevivência a todas as camadas.
A prisão é uma clara crítica ao capitalismo e à estratificação da sociedade por classes, onde as mais beneficiadas estão – como
sempre – acima de todas as ou tras, no sentido literal e figu rativo. A gula de uns provoca o sofrimento de outros, que com o desespero, são coagidos a praticar atos atrozes como roubo, homicí dio e canibalismo. Igualmente, na nossa sociedade, as classes desfa vorecidas refugiam-se, por vezes, em comportamentos violentos e animalescos, motivadas pela fome de sobreviver e, acima de tudo, fruto da negligência de um sistema que as abandonou. Ainda mais surpreendentemente, nes te filme, os prisioneiros comiam de forma abrupta e muito acima das suas necessidades, com medo de acordar no mês seguinte num nível desfavorável onde passarão fome. Os oprimidos tornam-se os opressores e vice-versa - um ciclo vicioso que se amplifica eternamente.
Nesta narrativa, vamos per cebendo a dinâmica deste lugar
64TEMAS CINEMA
hostil através do jovem idealista Goreng que, tal como todos os prisioneiros do filme, pôde es colher um item para levar para a prisão. Ao invés de escolher uma arma, como a maioria, privilegia o livro intemporal “Don Quixo te de La Mancha” por Miguel de Cervantes. Desde logo, constata mos um paralelismo entre a nar rativa deste livro e do filme: do mesmo modo que Don Quixote vive numa ilusão e obsessão com cavalheirismo e um passado no bre inexistente, Goreng é motiva do pela utopia de que a decência e dignidade podem prevalecer num castelo infernal como no "Buraco".
Rapidamente, vemos esta ilusão a entrar em decadência.
A longa-metragem encontra -se repleta de metáforas e sim bologias a serem descodificadas: a mulher, que durante 25 anos auxilia a administração a gerir a prisão, é ignorante ao horror a
que condena outros - uma ale goria para os líderes atuais, que possuem o poder de tomar de cisões, e muitas vezes condenam inconscientemente o povo a con dições degradantes; os alimentos têm uma apresentação gourmet artisticamente inútil, represen tação da obsessão do Homem por luxos desnecessários produzidos pelo capitalismo, enquanto o que sobra para a grande maioria do mundo é pobreza miserável.
Se no início da história a per sonagem principal, ingénua e inocente, acredita numa “soli dariedade espontânea”, no final entende que é uma mera utopia.
Ao fim ao cabo, vemos que a soli dariedade não surge de forma es pontânea, tem de ser forçada. Ao tentar abolir esta estratificação desigual, pedindo que racionem a comida e apelando à humanidade de todos, Goreng vê os seus esfor ços reduzidos à inutilidade. No
entanto, quando decide ameaçar os prisioneiros e coagi-los a racio nar comida, os mesmos desistem da ganância luxuosa e cumprem esta premissa. Ironicamente, para evitar violência e sofrimento, o método implementado mais efi caz é a própria violência.
Após visualizar a longa-metra gem, somos submersos em senti mentos contraditórios - por um lado desânimo e vergonha, por outro, esperança e sede de mu dança. Entendemos que temos de descer para subir – descer às profundezas negras da natureza humana e confrontá-la, em vez de a embelezar falsamente, para que nos possamos elevar a um nível de conscienciosidade coletiva.
Assim, a pergunta final er gue-se: Na atual sociedade hi per-competitiva e egoísta, cor reremos nós o risco de nos comportarmos como monstros canibais?
65TEMAS
CINEMA
Intervenção ou Inconformismo?
Beatriz Martins
Da sátira ao épico, Portugal sem pre foi um país de poetas. Já no tempo da primeira dinastia, a poesia se fez acompanhar de música, e hoje continua a ser um dos grandes motores da mudança social e cultural no nosso país. A música de intervenção define-se como uma categoria na qual o objetivo seja chamar a atenção do ouvinte a um determinado
problema, seja ele social, político ou económico.
Impossível é associar Portugal à música de intervenção sem que nos surjam grandes nomes: Zeca Afonso, José Mário Branco ou Sérgio Godinho. Anos depois, a revolta é a mesma, mas pergunto -me “onde estará ela hoje?”.
O hip hop é onde a mensagem chega mais marcada. A palavra muitas vezes é crua e dura, e se noutros estilos temos referências a problemáticas como o desem prego, a pobreza e a corrupção, no hip hop o espectro é mais
alargado e muitas vezes sobre temas ainda mais dissonantes, como o tráfico de drogas e a vio lência, questões mais submersas aos olhos da sociedade.
Começando pelos anos 90, num período de transformação para a sociedade, o investimento em infraestruturas aumentava de vido aos fundos comunitários da UE, ao passo que questões como o despovoamento do interior, a descolonização e o paradigma do urbano vs. periferia e inerentes desigualdades se desenrolaram. Nesta fase, os Da Weasel tiveram
66TEMAS MÚSICA
grande impacto no panorama da música nacional, destacando “Educação (é Liberdade)” e “To dagente”. Com a virada do sécu lo, surgem versos que ainda hoje ecoam pelo país fora. Sam the Kid lança “Sobre(tudo)”, censurando a estrutura social, e os Mind da Gap lançam “P.O.L.I.T.I.C.O.S.”, procurando denunciar a corrup ção da classe política. Desde aí até aos dias de hoje, são muitos ou tros os versos que merecem des taque, mas 2006 fica na memória: Sam The Kid e Valete lançavam Pratica(mente) e Serviço Público, respetivamente.
“E eu sou a percentagem que a sondagem nunca mostra Eu sou a mente exausta da mi ragem mal composta Eu sou a indiferença e a insatisfação Eu sou a anti-comparência, eu sou abstenção!” “Abstenção”, Sam the Kid
Também o norte se destaca no mapa da denúncia e da con testação social com o “V Impé rio” dos Dealema em 2007, onde consta “Portugal Surreal (Fado, Fátima, Futebol)”: uma caricatura minuciosa.
Em 2011 regressa um dos poetas mais despiedado. Allen Halloween edita “A Árvore Kri minal” com uma visão sombria da sociedade, fazendo referência ao colonialismo, ao Salazarismo, à promiscua relação do Estado e da igreja católica, à violência nas ruas, à toxicodependência e à prostituição. Avançando anos, surgem novos artistas no pano rama nacional, como Keso e Slow J, que retratam uma geração de sonhos irrealizados na procura de uma “Vida Boa”.
Os exemplos aqui são imen sos, mas como falar de temas
dicotómicos para a sociedade e não falar da faceta mulher vs. ho mem? Dentro deste género musi cal, a representatividade de géne ro fica aquém e o discurso é muitas vezes misógino, e há que reconhe cê-lo. Impossível seria, assim, não fazer referência à necessidade de mudança deste dogma. Capicua é um dos exemplos de uma artista que veio reivindicar a sua posição e dar voz a quem não tem voz em “A Mulher do Cacilheiro”. Para si, a música é "reportagem do que se passa ao nosso redor e das micro -histórias que muitas vezes estão escondidas” e a sua música não se cinge à rádio: o seu tema “Maria Capaz” veio inspirar a criação da plataforma feminista Capazes.
Agora, será a intervenção feita só no hip hop? A resposta não po dia ser mais óbvia e é ela: negativo.
Os Deolinda são um exemplo disto mesmo. A sua música “Parva que Sou” fala de uma geração com formação mas que não consegue um trabalho ou até um estágio e que se veem obrigados a viver na casa dos pais - "Que mundo tão parvo onde para ser escravo é pre ciso estudar". A letra gerou furor e foi um dos hinos que 200 mil pes soas levaram à rua no Movimento 12 de Março, conhecido como o protesto Geração À Rasca, na luta contra a precariedade.
Toda esta intervenção que a música nos permite não seria pos sível, claro, sem a prezada liberda de de expressão de que gozamos. Hoje vivemos numa democracia (infelizmente) ainda imperfeita, mas que já sofreu muita evolução desde o 25 de abril. Afinal, ainda em 1974 surgiu na televisão nacio nal o discurso do general Galvão de Melo sobre como “a Revolu ção não foi feita para prostitutas e homossexuais”. Os Fado Bicha aproveitaram este mesmo excerto para o videoclip que acompanha a
“Marcha do Orgulho”, na tentativa de devolver o fado à rua.
“Aqui e agora, pôr o pé no mundo
Tirar a bandeira do armário É comunitário, num clamor rotundo
Nem menos, nem mais Direitos iguais São muitas as cores desta minoria
Em cada esquina, amigas” “Marcha do orgulho”, Fado Bicha
B Fachada, com o seu álbum “Rapazes e raposas” que inespera damente atingiu os ouvintes em 2020, vem num tom não compa rativo (pois este é inerentemente infrutífero) olhar para o passado e o que se viveu desde a Revolu ção, num olhar sobre o presente. Numa entrevista ao É Só Fuma ça já em 2017, afirmou que “nós vivemos muito obcecados com o passado, e quando o José Mário [Branco] era novo viviam obceca dos com o futuro”.
Perante um passado que já não muda, resta-nos refletir; refletir não é, porém, ficar parado. É ne cessário que haja inconformismo, que haja intervenção. Afinal, “O que é preciso é criar desassossego. Quando começamos a criar álibis para justificar o nosso conformis mo, então está tudo lixado!” (Zeca Afonso, 1985).
67TEMAS
MÚSICA
"(...) talvez a maior expressão do preconceito racial e da intolerância ao outro, se manifeste precisamente na negação de que estes se fazem presentes, diariamente, como problema sistémico, e não como escolha individual. Neste sentido, é necessário repensar a comunidade social, de forma que se fale de diversidade com naturalidade, e não reticência, como algo que acrescenta, sempre."
68TEMAS LITERATURA
Trinta e quatro pedaços de prosa Nina Grillo
Trinta e quatro pedaços de prosa, por trinta e quatro autores de di ferentes países, todos residentes em Portugal. Trinta e quatro ma nifestos antifascistas, antirracis tas, antixenófobos e anticoloniais situados num contexto mundial em que a extrema direita vem ga nhando espaço, sem poupar Por tugal. É esta a matéria política, literária, que integra o segundo volume da antologia “VOLTA pra tua Terra”, publicada recentemen te, em 2022, pela Editora Urutau, com organização e curadoria por Wladimir Vaz e Manuella Bezerra de Melo. O primeiro volume, pu blicado em 2021, em plena pan demia, aborda a mesma temática, em registos de poesia.
Nos últimos trinta anos, e nunca deixando de ser um país de emigração, Portugal foi subli nhado, por milhares de migrantes — ou tentantes —, como destino final ou porta de entrada para uma Europa de oportunidades. Neste tempo, apesar de ser ver dade que houve um esforço, por parte do governo, para uma in tegração ativa desses imigrantes, através da regularização de uma grande maioria dos estrangeiros residentes em Portugal, também é verdade que a plena integração — na qual estas populações não per manecem, por demasiado tempo, numa cadeia de exploração de trabalho e identidade — ainda não acontece sem esforço.
Existe um elogio que ecoa nos veículos mediáticos, acerca da forma como Portugal recebe e acolhe imigrantes. É verdade, a lei portuguesa costuma ser in clusiva nesse sentido, e faz bem. A questão que se coloca é até que
ponto este discurso reflete ape nas as possibilidades asseguradas pela lei, sem de facto abordar a realidade de inclusão imigrante na esfera social portuguesa, que tem mostrado pouco avanço na luta contra a perpetuação de de sigualdade e discriminação. Se ainda existe uma vontade no povo português, de flertar com um pas sado colonial de muitos feitos e poucas derrotas, como quem jul ga ter sido bom colonizador por esta razão, continua-se a promo ver ativamente a invisibilidade do povo que foi descoberto, conquis tado, que é o mesmo que dizer in vadido, dizimado, domesticado, e que agora anda por cá.
Também se torna importan te lembrar que “invisível” não é propriamente característica do objeto, mas do sujeito, que não vê o objeto. E talvez a maior expres são do preconceito racial e da in tolerância ao outro, se manifeste precisamente na negação de que estes se fazem presentes, diaria mente, como problema sistémico, e não como escolha individual. Neste sentido, é necessário re pensar a comunidade social, de forma que se fale de diversidade com naturalidade, e não reticên cia, como algo que acrescenta, sempre. E, para isto, é importante que seja facilitada uma convivên cia com este outro, que é diferen te, de igual para igual — como vi zinho, colega de trabalho — e não sempre limitada a um contexto hierárquico em que ao outro é sempre reservada uma posição subordinada e menos qualificada.
O caminho que importa per correr faz-se tão longo, que pa rece remota a possibilidade de se começar a abordar esta ques tão de uma forma não ficcionada, mas verdadeiramente promotora de mudança. De qualquer das formas, e já há muito, Miguel
Unamuno, romancista, drama turgo, poeta e filósofo espanhol, propunha uma sugestão feliz: “O fascismo cura-se lendo e o racis mo cura-se viajando”.
Nesta linha de pensamento e dirigindo o foco para a litera tura como espaço-manifesto, a antologia “VOLTA pra tua Terra” serve, pela segunda vez, como plataforma para a exploração de dificuldades e constrangimentos vários inerentes ao ser-se, mas sobretudo ao sentir-se forasteiro, num país cuja memória colonial ainda se prova acesa diariamente.
“Instrumentalizamos a lingua gem para alcançar aquilo que sonha, o que passa, o que sente, ou sobre como é cotidianamente ferido este corpo fora da curva pelo fascismo à portuguesa, este fascismo estrutural e cotidiano, que se expressa em uma parte considerável da população através da memória colonial, uma ferida aberta que Portugal não permite cicatrizar, e cotidianamente des perdiça a oportunidade que lhe deu o 25 de abril”, escreve Ma nuella Bezerra de Melo no prefá cio da antologia.
É urgente que se criem cada vez mais espaços de visibilida de como este, que fomentem o interesse pelo imigrante, e o in vestimento no mesmo, também (e finalmente) como produtor de cultura, viva, dinâmica. Ganha mos todos. Por ora, a cada peque na destas conquistas, festeja-se. Para o futuro, resta-nos lutar pelo dia em que não há necessidade de se festejar mais.
69TEMAS
LITERATURA
O direito de ser Leonor Ribeiro
Veio um cravo saltar na ponta da tua espingarda, Selar esse túnel escuro de onde vem
A prata fulminante que determina o fim. Pousou nesse metal amargo, E, levando a semente do cravo Com a velocidade de quem passa palavra, Plantou a boa nova da tolerância, do direito e do sim. Olharam para nós como loucos ou visionários?
Homens bravos, capazes de ver à frente A Luz do túnel a despontar e colorir.
Uma luz que descobre a sombra, Que semeia a esperança de um fado justo para todos. Um dia sem homem e sem mulher, Um dia sem medo ou encolher, Um dia para ser, Ter o direito de ser, Ser mulher, Ser homem, Ser aquilo que eu quiser.
Hoje, deixo um cravo na tua lapela. Amanhã, deixa-o tu onde bem entenderes. Mas não largues a minha mão quando fores, Segura-a contra o peito com o peso da saudade, Porque eu tenho o direito de te puxar, e mais, tenho o direito de saber.
70TEMAS POESIA
A
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Haja
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