Haja Saúde | Abril 2022

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Escola de Medicina Universidade do Minho

Revista Semestral Gratuita N.˚12 · Abril 2022

Diretora Erica Gomes

Haja Saúde


FICH A TÉCNICA

Proprietário e Editor Alumni Medicina

Diretora Erica Gomes

Morada Escola de Medicina Universidade do Minho Campus de Gualtar, 4710–057 Braga, PT

Editores-chefe Beatriz Martins e Vasco Henriques

N.º de Registo na ERC 126906 Depósito Legal 431999/17 Periodicidade Semestral

Sede de Redação Escola de Medicina Universidade do Minho Campus de Gualtar, 4710–057 Braga, PT

Redatores Beatriz Lages Eva Ferreira Frederico Santos Inês Maia João Santos José Pedro Marques Leonor Ribeiro Mariana Oliveira Nina Grillo Pedro Gonçalves Rita André Teles Tiago Ramalho

Design Editorial OOF Design Impressão Gráfica Nascente Travessa Comendador Alberto Sousa, Lote 15 4805-668 Sande, Guimarães Tiragem 250 exemplares

Estatuto editorial disponível no endereço www.hajasaude.org

NIPC 508 321 719 www.hajasaude.org


Í N DIC E

NOTÍCI AS

P E S S OA S

O PI N I ÃO

TEMAS

Medicina Humanitária Conhecer melhor o ser humano para cuidar melhor dele —9

Filipe Félix Almeida

O paradoxo do envelhecimento Teresa Castanho, investigadora no Centro de Medicina Digital P5 e psicóloga e investigadora no ICVS da Escola de Medicina da UMinho — 44

RIBS e o medo geracional de envelhecer José Pedro Marques

Distanásia — 15 Suporte Básico de Vida Nós temos a vida de alguém nas nossas mãos — 19

E N T R E V I STA

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O que é o envelhecimento? E N T R E V I S TA S

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Marina Gonçalves A educação para as ferramentas digitais é fundamental porque é nessa direção que o mundo está a evoluir E N T R E V I S TA

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O envelhecimento Maria Maravalhas, estudante de Medicina da Universidade do Minho e membro do Porta Nova — 46 Desafios e constrangimentos das comunidades envelhecidas Maria João Guardado Moreira, professora coordenadora do Instituto Politécnico de Castelo Branco, especializada em envelhecimento — 47 A proximidade – de estudantes para as aldeias mais isoladas do país Cristiana Rodrigues, estudante de Medicina da Universidade do Minho e colaboradora na “Aldeia Feliz” — 48

M Ú SI CA

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Idadismo Frederico Santos SAÚDE

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As velas ardem até ao fim – análise da obra Inês Maia L I T E R AT U R A

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Sinto que estou a perder as minhas folhas João Afonso Santos CINEMA

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Mais um semestre, mais uma edição da revista Haja Saúde. Desta vez deparamo-nos com um tema inerente ao ser humano: o envelhecimento. Uma constante da humanidade muitas vezes esquecida numa sociedade marcada pela espetacularização, pelo culto do belo e por um medo intrínseco à consciencialização da inevitabilidade da morte.

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E DI TOR I A L

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EDITOR I A L

Sem lhe ser dado a devida importância e repleto de estereótipos, é merecedor de um olhar compreensivo e real. Incessantemente associado à obsolescência, é evitado e negado quase como um tabu, havendo por vezes uma destituição social da pessoa envelhecida. Sabemos que vamos envelhecer, contudo pensamos que nunca irá chegar. Havendo, assim, uma certa recusa na introspeção do significado da velhice concomitante com o desejo utópico da infinitude da juventude. É a partir daqui que como jovens e futuros médicos devemos tentar perceber qual o papel na sociedade atual de ‘ser velho’, o porquê de tanto receio e preconceito face a estas pessoas repetidamente esquecidas e ignoradas. Esta edição está aqui para relembrar meticulosamente a complexidade de envelhecer, o que implica e quais as vertentes desta passagem do tempo. Além das nossas habituais noticias, em que é explorado qual o lugar pertencente ao envelhecimento tanto na Medicina, como em Portugal, temos também entrevistas ora a entendidos no assunto, ora, através de um ponto de vista mais pessoal, a membros do Haja Saúde. A tecerem a sua opinião sobre o tema são apresentados novos colunistas nesta recente edição, aliados à habitual secção em que é explorado como as várias vertentes culturais olham e relatam o envelhecer. Ao longo das páginas, os leitores são novamente convidados à reflexão e prospeção, enquanto desmistificamos esta última etapa da vida, sem nunca esquecer a incessante promoção cultural. Boas leituras.

Erica Gomes Diretora da revista Haja Saúde


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EDITOR I A L

Uma das maiores conquistas na humanidade (quem sabe a maior, se considerarmos tudo o que ela representa, a montante e a jusante) ao longo dos últimos dois séculos foi o aumento da esperança média de vida.

Jorge Pedrosa Vice-presidente da Escola de Medicina da Universidade do Minho


E DI TOR I A L

EDITOR I A L

Hoje, vivemos, de facto, mais tempo, e cientificamente preparados e com uma queremos acreditar que esse aumento abordagem humanística relativamente no número de anos vividos proporciona ao processo do envelhecimento e às suas uma existência, não só mais longa, mas implicações físicas, mentais e sociais. O cluster da nossa Escola de Medicina também mais ativa e plena, ou seja, aquilo a que habitualmente se chama, uma e todos os seus parceiros estão bem cientes deste facto: como prova disso, aqui vida com qualidade. Neste âmbito, a promoção de um temos a presente edição da Haja Saúde. De facto, o aproximar do final do envelhecimento saudável tem, obviamente, um significado civilizacional e de período das restrições impostas pela bem-estar pessoal e social, mas também Covid-19 já permitiu aos nossos estupragmático e de sustentabilidade econó- dantes retomar contacto com populamica. Nesta linha, a idade mínima de re- ções envelhecidas, através de iniciativas forma tem vindo a aumentar, por forma a como “Aldeia Feliz”, promovida pelo garantir a sustentabilidade dos sistemas Núcleo de Estudantes de Medicina da de segurança social, sendo um desafio UMinho (NEMUM), o que assume partiatual ter cidadãos saudáveis, e, portanto, cular importância, uma vez que, também mais realizados, mas também profissio- em relativamente a esta pandemia, os nalmente ativos e produtivos durante mais velhos terão pago uma fatura adicional relacionada com o (pre)conceito: mais tempo. Nestas circunstâncias, é crítico ga- neste caso, de que "são os mais velhos rantir um envelhecimento com saúde que morrem". Este, e outros preconceitos associados num sistema de saúde sustentável. De facto, os investimentos, quer de ao envelhecimento, muitas vezes conducada um de nós, individualmente, quer zindo ao isolamento e à solidão, levaninstitucionais/governamentais, para pro- tam muitas questões e desafios, com mover hábitos de vida saudáveis e para repercussões ao nível do bem-estar e da garantir cuidados de saúde primários saúde mental, quer a nível pessoal quer que previnam a doença, têm não só um social, aspetos que também são abordaimpacto individual mas também coletivo, dos nesta edição da Haja Saúde, na secpromovendo ganhos, não apenas de saú- ção “Pessoas”. É possível fazer a diferença, através da de pública, mas também de racionalidade e de sustentabilidade financeira e social, nossa contribuição no âmbito cluster da ao aliviarem a carga sobre os sistemas de Escola de Medicina, para a promoção de saúde, sendo desta forma possível quebrar um envelhecimento saudável, ativo e sem um ciclo de crescimento constante da preconceito: Vamos a isso! despesa pública e das famílias em saúde. A este propósito, nunca é demais relembrar a citação “se pensam que a saúde é cara, considerem quanto custa a doença”. Para tal, precisamos de médicos e, portanto, de estudantes de medicina, consciencializados da importância da promoção de um envelhecimento saudável,

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NO T ÍC I A S “Ligar ao 112, reanimar, desfibrilar, estabilizar. São estes os quatro grandes passos de intervenção de emergência numa situação de Paragem Cardiorrespiratória (...)” — Pedro Gonçalves

Suporte Básico de Vida — 21

Medicina Humanitária Conhecer melhor o ser humano para cuidar melhor dele —9 Distanásia — 15 Suporte Básico de Vida Nós temos a vida de alguém nas nossas mãos — 19


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Medicina Humanitária C ON H E C E R M E L HOR O S E R H U M A NO PA R A C U I DA R M E L HOR DE L E

T EX TO BEATR IZ M A RTINS


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O Porta Nova é uma associação de estudantes da Escola de Medicina da Universidade do Minho, que desenvolve projetos de voluntariado nacional e internacional. Em 2021, viram a oportunidade de pôr em prática o seu mote no distrito de Braga e, mais especificamente, na Escola de Medicina da Universidade do Minho, no curso que esses mesmos estudantes frequentam ou frequentaram. O MinhoMD trouxe a oportunidade de investir noutras áreas complementares à Medicina – e a Medicina Humanitária é uma delas.

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A Haja Saúde reuniu com alguns dos estudantes e alumni responsáveis pela planificação da unidade curricular (UC) um projeto que, segundo os mesmos, não seria concretizável sem a ajuda de Margarida Correia-Neves, docente da Escola de Medicina que incentivou a criação da UC que procura aliar o humanismo e o trabalho do Porta Nova à formação médica. Um dos pilares foi também Jorge Hernâni-Eusébio, professor da Escola, que contribuiu com a sua experiência nos cuidados de saúde primários e na interação com as diversas comunidades. Segundo Duarte Baptista, antigo estudante e membro do Porta Nova, a ideia de implementar uma UC que visasse a sensibilização dos estudantes para a promoção e a educação para a saúde numa perspetiva mais humana surgiu

no 2.º ano da associação. Assim, durante 2020 e 2021 foi pensada e estruturada aquela que viria a ser apresentada como a opcional de Medicina Humanitária, na estruturação do novo Minho MD. Durante um mês, este é o espaço onde se pretende “dar mais conhecimento sobre minorias ou populações desfavorecidas aos alunos, trazendo membros dessas comunidades e experts de áreas que normalmente não são tão abordadas, como trabalhadores do sexo”, refere Carolina Martins, estudante do 6.º ano e uma das responsáveis pela génese desta unidade. A estudante acrescenta que, apesar do caráter teórico, há uma ponte importante com a clínica e também com o futuro da mesma, perspetivando como estes utentes serão abordados nos cuidados de saúde.


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(...) os membros desta comunidade muitas vezes deslocam-se às instalações de saúde em grupo por se sentirem em minoria, e “nem sempre os profissionais de saúde são capazes de praticar uma noção empática” perante os mesmos.

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Algumas das minorias cujas vivên- porta de entrada no sistema de saúde, os cias são trazidas a palco, tanto culturais membros desta comunidade muitas vecomo nos cuidados de saúde, são a co- zes deslocam-se às instalações de saúde munidade cigana, reclusos, trabalhado- em grupo por se sentirem em minoria, e res do sexo, refugiados e toxicodepen- “nem sempre os profissionais de saúde são dentes. Após as apresentações teóricas, a capazes de praticar uma noção empática” avaliação culmina com a génese de um perante os mesmos. Acrescenta que ao invés de exigir a projeto que possa vir a ser implementado junto destas mesmas comunidades. presença isolada de um só acompanhanSendo uma opcional, os alunos optam te do utente, deve-se entrar num diálogo pela mesma consoante o seu interesse e construtivo em que se explica os motivos vontade de cultivar o conhecimento na logísticos por detrás desta “exigência”, e área, razão pela qual Duarte Baptista re- só assim se pode anular a discriminaconhece o envolvimento ativo dos mes- ção que estes sentem. O especialista de mos nas atividades propostas e o elevado Medicina Geral e Familiar e docente na dinamismo das sessões realizadas. Para Escola de Medicina, acrescenta que nota os seus projetos, os estudantes tomaram uma maturidade crescente das camadas a iniciativa de ir ao encontro físico das mais jovens, mostrando uma elevada sencomunidades e informar-se junto de es- sibilidade e informação nestes assuntos pecialistas, criando assim conteúdo ori- de combate ao estigma e à discriminação. Carolina Lopes, aluna de Medicina e ginal e não apenas uma sistematização uma das responsáveis pela criação da UC, de ideias pré-concebidas e difundidas. Através deste contacto direto, os alu- prevê que no futuro este projeto se possa nos podem ter uma visão mais realista alastrar a uma componente prática mais das implicações dos estigmas a que mui- vincada, num contexto pandémico mais tas das minorias supracitadas estão su- atenuado. Segundo a mesma, o objetivo jeitas. Um dos exemplos que salta à vista, final é “dar o máximo de competências evidenciado por Jorge Hernâni-Eusébio aos estudantes para que consigam prafoi a comunidade cigana. Segundo o ticar uma medicina mais humanitária e mesmo, e partindo da experiência nos mais consciente”. cuidados de saúde primários, que são a

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Distanásia

T EX TO R ITA A NDR É TELES


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Antígona da eutanásia, a distanásia, visa o prolongamento da vida através de meios artificias e desproporcionais. Esta prática abre todo um leque de questões éticas e morais. Partindo do grego, a palavra “distanásia” significa “má morte”, mas em termos correntes, é mais utilizada para definir o atraso, no máximo possível, da morte.


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Na prática clínica, a distanásia pode ser vista como um processo de tratamento excessivo de uma condição clínica cujo prognóstico já é conhecido e não irá alterar, mesmo com o tratamento. Partindo destas definições, surge logo o primeiro problema: será que a distanásia pode ser considerado como um ato fútil? A distanásia pode ser considerado um procedimento fútil, pois não produz um resultado efetivo, para além de que prolongar a vida de um paciente para passar o resto dos dias preso a uma cama numa unidade de cuidados intensivos, sem manutenção da função cognitiva, também não parece um dos objetivos da medicina. Por outro lado, quem somos nós para julgar quando é que prolongar a vida de alguém, mesmo que a qualidade desta não seja mantida, é considerado inútil? No fim, é disto mesmo que se trata, de um juízo de valores. Em termos filosóficos, já que se trata de um valor de julgamento, é inerentemente difícil chegar a um consenso. Outra questão que esta prática levanta é a do direito básico à vida. Segundo o artigo 24.º da Constituição da República Portuguesa, o direito à vida é inviolável. Mas, o que poderá ser definido como “vida”? Será o simples facto de ter um coração a bater e sangue a circular? Será experienciar a vida como um ser consciente? Esta questão, tal como a da futilidade, é outro juízo de valores que depende da perspetiva de cada um. Apesar de ser um tema bastante debatido ao longo da história do ser humano, continua a não ter uma resposta. Como já abordado mais acima, a questão reflete se a vida termina quando o coração para de bater, ou seja, quando o corpo passa a ser denominado de cadáver, ou se a vida termina no momento em que se perde consciência sobre o próprio. Para além de levantar questões éticas, a distanásia também aborda questões religiosas, sendo Portugal um país com fortes ligações ao catolicismo. O Vaticano opõe-se fortemente à eutanásia, sendo a favor da sua antígona. Segundo o catolicismo

o medo da morte simboliza uma falta de fé, que as pessoas não devem ter medo da morte pois, após a morte, vem o céu e a reunião com o criador. Em conclusão, a distanásia ainda é um tema que necessita de bastante discussão a nível mundial, de forma a que sejam estabelecidas regras e leis de controlo desta prática, de forma a que deixe de se tratar de um tema tão subjetivo e com tanto peso para o profissional que terá que decidir se alguém é merecedor de prolongar a sua vida ou não.


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Suporte Básico de Vida NÓ S T E MO S A V I DA DE A L G U É M N A S NO S SA S M ÃO S

T EX TO PEDRO GONÇA LV ES


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“É essencial que a população, de modo geral, tenha acesso a estes conhecimentos de forma a ser o primeiro nível de contacto”, explica Sara Gomes. Foi no dia 30 de novembro de 2021 que se concretizou, na Escola de Medicina, mais uma sessão curricular de Suporte Básico de Vida (SBV) com utilização de Desfibrilador (DAE).


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Como funciona? Em formato de simula- o pânico, particularmente o das pessoas ção, os alunos procedem à avaliação de curiosas e preocupadas, sem esquecer modelos humanos compressíveis e ao que também o reanimador não é imune meio à sua volta. Após garantidos os cri- à aflição do momento. Somos a primeitérios de segurança do espaço, dirigem- ra bóia de salvação para uma pessoa em -se à pessoa que se encontra inconsciente. PCR, mas o que significa isso ao certo? É agora hora de certificar que tem pulso Significa que mesmo não revertendo a e respira e, caso isto não se verifique, dar pessoa para um estado de consciência, início às manobras compressivas ao rit- no contexto imediato, mantém a pessoa mo de uma das músicas mais conhecidas “à tona”, enquanto a ajuda diferenciada se – Stayin Alive dos Bee Gees. Por esta fase, dirige ao nosso encontro. Por esta razão é essencial que a popuo 112 já foi contactado ou estará a ser. Ligar ao 112, reanimar, desfibrilar, lação, de modo geral, tenha acesso a estes estabilizar. São estes os quatro grandes conhecimentos, de forma a ser o primeipassos de intervenção de emergência ro contacto numa situação de emergênnuma situação de Paragem Cardiorrespi- cia. Sara Gomes acrescenta que esta forratória, passos estes interiorizados pelos mação “ devia ser inserida em fases mais alunos do 1.º ano de Medicina e alunos precoces – ensino básico e secundário”. Finalmente, após a realização bem do percurso alternativo, dirigidos e supervisionados pelas docentes da Escola sucedida de uma sessão de SBV e DAE, de Medicina, Beatriz Couto, Cláudia Lei- os alunos dão mais um passo em frente num percurso que prima por priorizar a tão, Paula Ludovico e Sara Gomes. Na colheita de testemunhos, o senti- vida e a manutenção da mesma em prol mento foi unânime – “Nós temos a vida de uma sociedade cada vez mais bem forde alguém nas nossas mãos”, dizia uma mada e sensibilizada para a importância das alunas. Foi também referido que um da entre-ajuda. dos maiores desafios é o saber lidar com

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PE S S OA S “É importante entender-nos que a internet é uma ferramenta de auxílio e não propriamente uma concorrência. E aí, quando o doente tem a informação, mas não o conhecimento, passa a ser nossa responsabilidade validar preocupações e esclarecer o que é que daquilo que leu pode ser verdade e o que não é aplicável ao seu caso.” — Marina Gonçalves

Marina Gonçalves — 40

Filipe Félix Almeida E N T R E V I STA

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O que é o envelhecimento? E N T R E V I S TA S

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Marina Gonçalves A educação para as ferramentas digitais é fundamental porque é nessa direção que o mundo está a evoluir E N T R E V I S TA

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Filipe Félix Almeida " DE V E MO S T E R U M A PR E O C U PAÇ ÃO QU E P O S SA PE R M I T I R U M A P OIO E F E T I VO E M T R A NS P ORT E S , AC E S S O A C U I DA D O S DE SAÚ DE E E QU I PA M E N TO S C U LT U R A I S E DE I NS E RÇ ÃO S O C I A L"

T EX TO M A R I A NA OLI V EIR A


P E S S OA S

Concluiu o Mestrado Integrado em Medicina na Universidade de Coimbra em 2013. Foi descobrindo o interesse pela Psiquiatria ao longo do curso, tendo optado por essa especialidade quando iniciou o internato de formação específica em 2015, no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. Especialista em Psiquiatria, é atualmente assistente hospitalar no Centro Hospitalar Lisboa Norte (Hospital de Santa Maria) e assistente convidado na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.

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Tem como áreas de interesse e formação diferenciada, as áreas de eletroconvulsivoterapia e neuromodulação, depressão resistente ao tratamento, gerontopsiquiatria e perturbações do neurodesenvolvimento, pertencendo a unidades diferenciadas nestas áreas e com pulicações sobre estes temas em livros e revistas científicas. Mais especificamente, pertenceu à unidade de gerontopsiquiatria no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, onde desenvolveu atividade clínica (consulta, internamento, ligação a outras especialidades) e de investigação.

que influenciam o desenvolvimento e apresentação de doenças psiquiátricas. Existe ainda a questão da polimedicação nesta faixa etária e problemas associados (iatrogenia, interações medicamentosas, alterações farmacocinéticas). Além das questões mais eminentemente biológicas, as pessoas mais velhas deparam com mais frequência com fatores psicossociais associados ao desenvolvimento de doença mental em todas as faixas etárias (viver com outras doenças médicas, solidão, privação económica, situações de negligência e maus tratos).

HAJA SAÚDE Quais as particularidades a nível psiquiátrico que encontramos na população geriátrica em relação à população de adultos/ jovens adultos? FILIPE FÉLIX ALMEIDA Nesta população, encontramos doenças psiquiátricas mais características (como as síndromes demenciais) ou com apresentação clínica diferente (como as perturbações do humor). Neste último caso, são observáveis padrões diferentes de apresentação de sintomas (por exemplo, na depressão, com mais sintomas físicos e ideias de cariz hipocondríaco e menos com queixas de tristeza), associação a outras doenças médicas e respostas atípicas à terapêutica.

Sabemos que a população idosa poderá ter uma maior propensão para isolamento social: muitas das vezes por ausência de apoio familiar, perda de parceiros de vida ou comorbilidades que limitem a sua vida e interações. Quais os efeitos a nível psiquiátrico provocados pela solidão experienciada por estes indivíduos? O isolamento social e solidão decorrente diminuem o potencial de estimulação dos indivíduos, favorecem a instalação e manutenção de distorções cognitivas (sobretudo tendentes à menor valia pessoal) e contribuem para um menor investimento do indíviduo em si próprio e na rede social, reforçando a tendência ao isolamento. Este padrão está fortemente associado ao desenvolvimento de sintomatologia depressiva (que o vai agravar) e, menos frequentemente, de sintomatologia psicótica (pelo reforço de sentimentos de desconfiança e ameaça face a terceiros). Por esta razão, este padrão de isolamento pode ser, por si próprio, alvo de intervenção psicoterapêutica e social específica, como é o caso com a terapia interpessoal (que promove o reforço da rede social com vista à recuperação) ou da inserção em associações / instituições.

Quais as doenças psiquiátricas mais comuns na população geriátrica e quais os fatores explicativos? As síndromes demenciais e os sintomas psicológicos e comportamentais associados ocorrem caracteristicamente nesta faixa etária e vemos com alguma frequência o desenvolvimento de perturbações do humor de início tardio, muito associadas a doença vascular cerebral e sistémica. De facto, as pessoas mais velhas apresentam com mais frequência problemas médicos de outra ordem


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Considera que, num contexto pandémico, o isolamento social nos idosos foi agravado? A nível clínico os efeitos da pandemia foram evidentes? De que modo? Um estudo publicado na Acta Médica Portuguesa em novembro de 2021, por investigadores da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e do departamento de Sociologia do Instituto de Ciência Sociais da Universidade do Minho, com base em indicadores de uma amostra portuguesa de pessoas com mais de 60 anos, permite tirar algumas conclusões. As pessoas mais velhas nesta amostra referem uma redução acentuada dos hábitos de saída de casa e de encontros com familiares. Apesar do aumento de sintomatologia psiquiátrica referida de forma subjetiva (80% com maiores níveis de ansiedade, 73% mais deprimidos, 30% com mais insónia), apenas 15% considerou haver um agravamento significativo do seu estado de saúde geral. De notar ainda que 50% referiu ter visto cuidados de saúde serem adiados neste período. É evidente, a partir destes e outros estudos, que o isolamento social em todas as faixas etárias e especificamente na população geriátrica se acentuou em média e sabemos que este é um fator importante no desenvolvimento de doença

mental. No entanto, o caráter excecional deste evento, as estratégias de mitigação do isolamento oficiais ou informais e os elementos individuais de resiliência ajudam a compensar este fenómeno. É ainda difícil encontrar evidência sólida no que diz respeito a um aumento significativo de doença psiquiátrica, especificamente nas pessoas mais velhas, mas existem já alguns dados e experiência empírica que aponta neste sentido. É ainda preocupante o menor acesso a cuidados de saúde, observando-se já que o primeiro contacto com a Psiquiatria surge mais tarde e com maior gravidade de sintomas. De acordo com os dados do INE, em 2019, a taxa de mortalidade por lesões autoprovocadas intencionalmente (suicídio) por 100 000 habitantes em indivíduos com mais de 75 anos correspondeu a um valor de 23,6%. Estes valores são particularmente elevados especialmente em zonas como o Alentejo e no sexo masculino. O que poderá explicar estes valores? No Alentejo, o isolamento geográfico e a inserção mais fraca na vida comunitária (em outras razões, por via de uma menor religiosidade) são apontados como


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fatores associados a um maior isolamento social e comportamento de procura de ajuda mais fraco, que sabemos estarem associados ao desenvolvimento de depressão, ao seu agravamento e a comportamento suicidários. No sexo masculino, encontramos novamente uma tendência para o desenvolvimento de redes sociais mais fracas e menos comportamento de procura de ajuda. Enquanto profissionais de saúde e agentes de bem-estar físico e psicológico, quais as medidas que poderemos tomar para prevenir e orientar estes doentes no sentido de atenuar o isolamento? A nível prático, considera que essas medidas são eficazes? Muitas pessoas mais velhas continuam com um elevado nível de autonomia e, portanto, conseguirão adequar-se e procurar contacto social de forma semelhante às pessoas mais jovens. Devemos, por isso, focar-nos nos fatores biopsicossociais que possam impedi-los de o fazer. De um ponto de vista de intervenção comunitária, devemos preocupar-nos com aquelas pessoas que estão em localizações geográficas mais isoladas ou aquelas que perderam recentemente ou não têm rede de apoio social.

Aí, devemos ter uma preocupação de intervenção junto dos decisores políticos, que possa permitir um apoio efetivo em termos de transportes, acesso a cuidados de saúde e provisão de equipamentos culturais e de inserção social. De uma forma mais seletiva, devemos estar atentos ao desenvolvimento de sintomatologia depressiva em pessoas que estão a passar por processos de luto ou de desenvolvimento de outras doenças médicas, e que irá aprofundar o isolamento social. Não devemos ainda esquecer que todas as pessoas incapazes de se autodeterminar (no caso, as pessoas com síndromes demenciais), devem ter um cuidador eficaz, pessoal ou institucional. Quais os maiores desafios nesta área? O que a torna especialmente gratificante para si? O que é mais desafiante é, talvez, o que se torna mais gratificante: a necessidade de ter um conhecimento médico geral sólido (e a possibilidade de o poder empregar com claro benefício), lidar com as questões que rodeiam a morte e a fragilidade humana (e pôr assim em causa preconceitos estabelecidos), ajudar doentes com quadros complexos (quando foi difícil para estes ter respostas anteriormente).


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O que é o envelhecimento?

T EX TO LEONOR R IBEIRO


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Se procurarmos ser cientificamente corretos, guiados pelas leis da razão, é possível definir o envelhecimento como um processo contínuo e gradual, no qual o organismo vai acumulando erros que não consegue reparar, e que culminam na disfunção progressiva dos vários órgãos que se encontram no corpo. Mas, se decidirmos perguntar a alguém na rua o que é o envelhecimento, será que a ciência irá importar? Não será o envelhecimento uma experiência única e individual, vivida por cada um de nós de forma diferente? Acreditamos que esta segunda visão é muito mais rica e que, sobretudo, é a única capaz de fazer jus a tudo aquilo que o envelhecimento reflete, algo que a ciência e as células não conseguem explicar.

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Nesse sentido, desafiámos os membros da Haja Saúde, estudantes de Medicina, a partilharem a sua conceção acerca do envelhecimento. Procuramos com todas estas reflexões, chegar à conclusão de que o envelhecimento é difícil de descortinar e que, a ideia daquilo que poderá ser a sua definição, não é rígida e está sempre em transformação. Hoje tenho 21 anos, e tenho uma ideia do que seja o envelhecimento. Mas falem comigo aos 70, certamente terei uma ideia diferente. Vasco Henriques, 25 anos “Como pode o envelhecimento ser desculpa para acelerar a vida? A célula é paisana e passará a multa em altura devida…” Frederico Santos, 29 anos "Envelhecer é um desafio (a conquistar)" Beatriz Matos, 22 anos "O envelhecimento acaba (por ser) reduzido à passagem do tempo e até mesmo à insignificância - o tempo imprime caráter” Érica Gomes, 20 anos “Para mim, o envelhecimento vem muitas vezes associado ao medo de envelhecer, da finitude da juventude e a uma marcada subvalorização do idoso pela sociedade” Leonor Ribeiro, 21 anos “O envelhecimento é o agridoce inevitável da realidade humana. Acho que por um lado todos temos medo de envelhecer, de perder a vicissitude. Temos medo de nos resignarmos ao tempo, deixando de lado a aventura, as loucuras da adolescência sem repercussões, o tempo mais despreocupado. Mas na verdade, acho que temos medo porque não temos ainda a experiência de quem já envelheceu. Creio que envelhecer é bem mais do que deixar o tempo passar por nós. É deixar o nosso testemunho a todos aqueles que cruzam a nossa vida, é amadurecer no pensamento e na ação, é ter a experiência de saber aceitar o mau e festejar sempre o bom, por mais ínfimo que pareça. Envelhecer é saber contemplar a vida que passou e aceitar a vida que ainda aí vem, sem pressas, sem expectativas, só deixar flui“

Pedro Gonçalves, 21 anos “O Homem nasce, vive e morre. Quem o Homem foi perdura. Envelhecer é a dádiva de podermos usufruir do tempo, de um jeito leve, como nunca o havíamos feito antes. Envelhecer é distanciarmo-nos do agora, é podermos, de uma vez por todas, sentir a brisa e sentarmo-nos à sombra da árvore que plantámos quando ainda dávamos os primeiros passos. Envelhecer é poder olhar para trás e deslumbrar-nos com a história que criámos. Recordar torna-se tão simples como respirar o mais puro ar. É na sua mais idílica forma, o descompromisso para com tudo. A vida completou-se a si mesma e agradecemos por isso” Inês Maia, 18 anos “O envelhecimento é andar de mãos dadas com o tempo, em plena concordância com as leis inexoráveis da vida, em comprazimento com o passado, em paz com um futuro incerto e finito, em pura comunhão com um presente que afinal é mais uma virtude e não uma breve passagem saudosa. É contemplação da vida sob um olhar benévolo e complacente, é a instância na qual estendemos o que é nosso e abdicamos do fardo da existência para dela saborearmos o fruto da sua essência, até então impercetível. Na fase da vida em que os sentidos se deterioram, os motivos se diluem no tempo escasso, a força fenece e nos movemos difícil e vagarosamente, a vida sugere-nos uma paragem para apreciarmos devidamente o que foi vivido, sentido e recordado. A velhice é afinal uma das nossas maiores virtudes” Nina Grilo, 25 anos “Envelhecer é saber estar, e passar” Rita Teles, 24 anos “Não é envelhecer, é ter vivido” João Santos, 22 anos “Envelhecer é o que dá drama e significado à vida, pelo desafio que impõe. Por um lado estamos condenados à mudança, podendo encarar isso como um duro fado, ou como uma hipótese de revelar a chama e ímpeto que há em nós de aproveitar a vida da melhor forma dentro da sua inexorável matriz”


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Marina Gonçalves A E DUC AÇ ÃO PA R A A S F E R R A M E N TA S DIGI TA I S É F U N DA M E N TA L P ORQU E É N E S SA DI R E Ç ÃO QU E O M U N D O E S TÁ A E VOLU I R

T EX TO TI AGO R A M A LHO

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Médica de família – “de alma e coração” –, faz parte das primeiras “fornadas” do curso de Medicina da Universidade do Minho – e por cá se mantém, agora na pele de professora. Conjuga o contacto direto com os utentes, com a capacitação para o futuro, através do digital e do seu papel essencial no Centro de Medicina Digital P5, reservando ainda tempo para se dedicar a quem, como ela, passou pela Escola de Medicina.

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HAJA SAÚDE Podemos começar por falar sobre a tua especialidade – Medicina Geral e Familiar (MGF) – ,que é, muitas vezes, o primeiro contacto da população com os cuidados de saúde. De que forma é que definiras este impacto inicial, como é que nos devemos preparar enquanto médicos ou quais os desafios que se enfrentam? MARINA GONÇALVES Efetivamente, MGF é a porta de entrada dos doentes no Serviço Nacional de Saúde. E, portanto, apesar das restantes especialidades terem pacientes filtrados, nós recebemos todos os doentes. É certo que todos os nossos doentes têm personalidades diferentes, tal como os outros doentes que nós enviamos para o hospital têm. Só que MGF tem uma característica específica: o facto de nós conhecermos o doente, a família do doente e todo o historial do doente -tendo nós capacidade para resolver 70% dos seus problemas. O mais difícil enquanto contacto de MGF será eventualmente conseguir restringir a consulta a um ou dois assuntos. Como os utentes sabem que nós temos a capacidade de resolver muita coisa, é muito difícil abordar um problema específico e abordar apenas os problemas deles. E, portanto, isto exige uma flexibilidade nossa. Primeiro para reconhecer os problemas que efetivamente são importantes naquela consulta e o que é vamos abordar naquele momento. Depois conseguir fazer o doente entender isso, que o nosso tempo é finito – as nossas consultas têm 15 minutos de duração, portanto não dá para tudo. E ainda existe um desafio específico na MGF, ainda que esteja felizmente a esbater-se, que é a ideia de que o médico de família não é um especialista. Muitas vezes o doente vem falar connosco querendo ser referenciado para uma especialidade porque tem uma queixa específica, mas ainda não investigou essa queixa, não fez exames, não fez qualquer tratamento. E aqui entra o nosso papel,

de fazer o doente entender que também temos especialidade e temos conhecimento para resolver o problema inicial. Portanto, são as duas coisas: refrear o doente quando ele sabe que conseguimos fazer tudo e fazer o doente acreditar em nós quando ele ainda não tem a perceção da nossa capacidade de intervenção. Mencionaste que cada vez menos aparece esse pedido de indicação para outros especialistas, por exemplo. Como é que combater essa, de certa forma, estigmatização da especialidade? O progresso que tem havido nos últimos anos com a reforma dos cuidados de saúde primários ou com a atribuição progressiva de médicos de família aos utentes. Sendo certo que ainda há muitos portugueses sem médico de família, se olharmos para Braga, uma cidade com cerca de 200 mil habitantes, haverá eventualmente 7.000 utentes sem médico de família, o que é um rácio fantástico a nível nacional. Portanto, ter a atribuição de médicos de família, haver esta aposta na formação dos internos, há cada vez uma maior interação entre as especialidades hospitalares e a formação dos internos, a própria qualidade da formação, e também esta oportunidade que o doente tem de estar com o seu médico de família. É normal que, frequentemente, nós desconhecemos aquilo com que nunca contactamos – e mais frequentemente eu posso não ter noção das competências de um médico de família, se eu não tiver um médico de família. Quem não tem médico de família, ainda acha que é o médico da baixa, é o médico que vai transcrever os exames do especialista e, portanto, a oportunidade de contacto é também a oportunidade de compreenderem o papel do médico de família e também, pelo menos alguns utentes assim me dizem, de privilegiar esse contacto - “não vou já ao médico especialista, primeiro vou ver o que diz a minha médica de família”.


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É também um trabalho que se vai fazendo, nesse sentido... Sim, é um trabalho que se vai fazendo e que é muito gratificante. Isto dá trabalho, no meu caso é um trabalho de oito anos, mas acredito que quando me reformar – daqui a muitos anos - será muito mais fácil os doentes perceberem em que é que o médico de família consiste e aquilo que ele consegue fazer. Então voltamos um pouco atrás até por estares a falar um pouco da missão da MGF. Porquê esta especialidade? Sempre estiveste mais inclinada para MGF ou surgiu ao longo do curso? Não, não. Sabes que é engraçado, mas eu entrei em Medicina não querendo ser médica de família. Era a última coisa que querias? [risos] Era a última coisa que queria, exatamente. [risos] Precisamente porque eu tinha uma má experiência com o meu médico de família e sentia que não era ouvida, que não havia uma verdadeira pesquisa, e que havia um desinteresse. Por exemplo, se alguém se queixasse de alguma coisa seria mais “então e que exames quer?” - quando esse não é o papel do médico de família, nem de nenhum médico. E eu sentia que isto era algo até desprestigiante para o médico e que era absurdo estar-se numa universidade e numa especialidade para no fim acabar a pedir conselhos ao doente. Não fazia sentido. Esta reforma dos cuidados de saúde primários começou há cerca de 10, 15 anos e eu apanhei o início dessa reforma ainda enquanto aluna. E contactei com uma recém-especialista e percebi que afinal ser médico de família era muito diferente e que havia muitas áreas de intervenção e muito conhecimento adquirido na especialidade que poderia ser colocado em prática. E então comecei a perceber, contactar com as pessoas,

felizmente tivemos excelentes tutores a nível de cuidados primários, dos vários anos em que tivemos esse contacto na Universidade, e diria que foi a visão desses médicos, o interesse deles e a forma como conseguiam entrar na vida das pessoas e na doença das pessoas que acabou por me motivar e eu gosto também de comunicar e desta familiaridade – e achei que a MGF seria interessante para mim. E foi a minha primeira opção e sou médica de família de alma e coração. Foste estudante, também és docente da Escola de Medicina da UMinho. Que comparação fazes entre quando entraste e agora? Mesmo da parte dos estudantes de Medicina, existe menos também esse estigma do MGF? E, também, existe uma melhor preparação nos vários domínios - falaste na comunicação e na capacidade de instruir ou criar literacia? Eu entrei numa fase muito precoce do curso. O curso tinha aberto há um ano e eu sou, digamos assim, da segunda fornada de médicos. E ainda que houvesse um interesse já especial da Escola em podermos contactar com o utente, aliás nós temos contacto com o utente desde o 1.º ano, não havia uma preparação como temos agora. Confesso que todas as coisas que fui aprendendo sobre comunicação, fui aprendendo já enquanto docente. Algumas pessoas têm maior ou menor propensão para a comunicação, eu já tinha alguma predisponibilidade, mas a verdade é que com formação só depois. Ensinar tem esta parte muito boa de aprendermos enquanto ensinamos. E aprendemos inclusive com os alunos e coisas em que se saem muito bem e “olha, nunca tinha pensado nisto desta forma”. Ensinar também é aprender. E a diferença de currículo que temos entre quando entrei e agora é abismal no campo da comunicação e é muito importante ensinarmos isto aos alunos e sinto que, pelo menos nas aulas sequenciais, chegamos


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ao 5.º ou 6.º ano e, quando colocamos os alunos a comunicar em situações difíceis, vemos que se saem muito melhor do que alguma vez eu me teria saído. Até te posso contar uma coisa que cheguei a ver uma vez enquanto acompanhante de uma doente. E cheguei na urgência a ver um ex-estudante nosso, a quem tínhamos dado aulas de comunicação, e a forma como eu o vi comunicar com as pessoas que lá estavam, fiquei babadíssima, fiquei cheia de orgulho e pensei: “estamos a fazer um bom trabalho, isto está a correr muito bem”. E é muito bom também ter o feedback dos utentes, quando dizem “fui à doutora x, ela diz que a conhece e que foi sua aluna, gostei muito dela e explicou-me tudo direitinho”. É muito bom ter este feedback e perceber que estamos a fazer as coisas bem, que estamos a fazer as coisas diferentes. E esse feedback deve ser essencial, até na capacidade de aprender com ele... Sim, é muito bom saber trabalhar com máquinas, é muito bom saber a parte técnica, mas se não formos capazes de ensinar e explicar ao doente o “porquê” e o “como”, o efeito da nossa ação é muito mais reduzido. Como é que tens percecionado esta questão da expansão do conhecimento dos doentes sobre a própria saúde. Falamos muito do “Dr. Google” e de como a internet influencia estes contactos, principalmente este primeiro contacto. Como é que isto afeta as consultas? A minha perceção é que já levam pesquisa feita... Estamos na era da informação. A questão é que muitas pessoas não sabem distinguir entre informação e conhecimento. Informação é aquilo que eu vou buscar à internet, conhecimento é quando eu efetivamente tenho ferramentas que me permitem distinguir o trigo do joio.

Obviamente que qualquer médico, independentemente da especialidade, não pode ignorar que o primeiro contacto do seu doente com a doença é, frequentemente, através da internet. Já leu todo o tipo de coisas, simples e complicadas. É importante entender-nos que a internet é uma ferramenta de auxílio e não propriamente uma concorrência. E aí, quando o doente tem a informação, mas não o conhecimento, passa a ser nossa responsabilidade validar preocupações e esclarecer o que é que daquilo que leu pode ser verdade e o que não é aplicável ao seu caso. Temos que ter calma, muita compreensão e ensinar precisamente a diferença entre informação e conhecimento e dar-lhe algumas ferramentas que o ajudem a destrinçar entre essas duas coisas – e a literacia pode partir daí. Às vezes não é fácil, porque é muito mais fácil escrever numa folha em branco, do que numa folha escrita em que temos de andar a apagar. Isto exige também jogo de cintura da nossa parte, comunicação, não perdermos a paciência e entender que se o doente procurou informação é porque tem vontade em aprender – e se tem vontade em aprender, mais vale ter o conhecimento correto nosso do que desvalorizarmos isso. Não podemos ignorar também que muitas das terapias alternativas e do seu uso é porque são ouvidas, depois de não o serem por médicos na medicina. Ainda nesta área, um dos focos do Centro de Medicina Digital P5, do qual és diretora, é o trabalho em torno da literacia e das competências digitais, sobretudo na faixa mais velha da população (apesar de não só). Qual é a importância de ter esta capacitação para o digital, principalmente como ferramenta complementar às consultas ou mesmo para esta capacidade de pesquisa? Os médicos digitais têm uma vantagem muito grande: a menor necessidade


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de mão-de-obra humana. Conseguir uma consulta com um médico de família é muito bom, mas são três ou quatro meses. As ferramentas digitais, não sendo um médico, podem começar a orientar-nos nalguma área. Aliás, muitas vezes, e estávamos agora a falar do “Dr. Google”, não se procura um diagnóstico, procura-se se temos de nos preocupar com isto. E essa é uma resposta que pretendemos dar com o nosso Avaliador de Sintomas. A educação para as ferramentas digitais é fundamental porque é nessa direção que o mundo está a evoluir – e frequentemente acaba por esquecer as outras ferramentas normais. Por exemplo, o IRS chegou a ser feito em papel e agora ninguém o faz. E, portanto, existem coisas que poderão mudar. Nos centros de saúde ou em alguns hospitais, não há pessoas a atender na secretaria. Tens um balcão, claro, mas se tiveres uma consulta colocas o teu cartão de cidadão e tens um quiosque digital onde podes fazer tudo. Existe ainda a facilidade de acesso. Se tudo estiver bem formulado, com um algoritmo adequado e uma linguagem adequada, a rapidez e a precisão da informação pode ser muito importante para reduzirmos idas desnecessárias a urgências ou centros de saúde ou até para conseguirmos que essas situações urgentes sejam rapidamente avaliadas. Nós sabemos que há imensas pessoas nas urgências que não necessitavam de estar lá e também que existem imensas consultas realizadas em centros de saúde que não eram necessárias, caso houvesse maior literacia em saúde ou tivéssemos uma triagem inicial. Obviamente, que quem tem 15 anos já cresceu com um telemóvel na mão, quem tem 50 anos viveu metade da sua vida adulta sem ferramentas digitais. Eu digo a brincar que cheguei a fazer um interrail quando ainda não havia smartphones. Eu hoje pergunto-me como é que conseguia fazer aquilo.

É preciso reconhecer que nos últimos 15 anos demos um salto absurdo e muitas pessoas, com mais idade, têm muito medo que os meios humanos desapareçam, que o papel desapareça e que fiquem sem os seus cuidados de saúde. Sermos capazes de passar essas competências básicas é fundamental para tranquilizá-los, mas também para compreenderem que têm ali uma ferramenta para as ajudar e que o podem fazer a partir de casa - não têm de se meter num hospital, não têm de ir de manhã cedo. Temos todas estas ferramentas ao alcance que podem facilitar a vida a todas as pessoas de todas as idades. E, no fundo, tornar a saúde mais inclusiva. Sim, a saúde cada vez mais inclusiva – precisamente.


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Nome completo Marina Gonçalves Idade 39 anos Curso de Medicina 2002 – 2008

Percurso 2002 – 2008 Mestrado Integrado em Medicina Desde 2009 Medicina Geral e Familiar USF Ruães – ACeS Braga 2017-2020 Presidente Alumni Medicina Desde 2020 Vice-Presidente Alumni Medicina Desde 2019 Equipa Médica Centro de Medicina Digital P5


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OPI N I ÃO “Desde a nossa infância somos bombardeados com mensagens negativas acerca da vida tardia. No local de trabalho, nos meios de comunicação, na sétima arte, nas escolas e nos serviços de saúde, o idadismo está frequentemente presente e é algo que a maioria das pessoas experiencia em algum momento das suas vidas.” — Teresa Castanho

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O paradoxo do envelhecimento Teresa Castanho, investigadora no Centro de Medicina Digital P5 e psicóloga e investigadora no ICVS da Escola de Medicina da UMinho — 44 O envelhecimento Maria Maravalhas, estudante de Medicina da Universidade do Minho e membro do Porta Nova — 46 Desafios e constrangimentos das comunidades envelhecidas Maria João Guardado Moreira, professora coordenadora do Instituto Politécnico de Castelo Branco, especializada em envelhecimento — 47 A proximidade – de estudantes para as aldeias mais isoladas do país Cristiana Rodrigues, estudante de Medicina da Universidade do Minho e colaboradora na “Aldeia Feliz” — 48


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O paradoxo do envelhecimento Teresa Castanho, investigadora no Centro de Medicina Digital P5 e psicóloga e investigadora no ICVS da Escola de Medicina da UMinho


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À medida que envelhecemos, é comum começarmos saúde mental e o desempenho cognitivo, aumenta o a pensar em como este processo afeta a nossa ener- isolamento social e a solidão e pode até ter impacto gia, a nossa saúde física e o bem-estar. Nos últimos na cultura de uma instituição ao criar um espaço meanos, e em sentido inverso, os estudos com adultos nos diversificado e inclusivo e privar as organizações mais velhos têm demonstrado uma maior satisfação, de pessoas talentosas. O idadismo é o preconceito contra o nosso próqualidade de vida e funcionamento social à medida prio futuro. Considerando que, globalmente, mais que a idade avança. Na verdade, uma auto-percepção mais positiva de 600 milhões de pessoas têm 65 ou mais anos e do envelhecimento tem sido associada a uma varie- que este número deve ultrapassar 1.6 biliões até dade de resultados promissores na saúde, como uma 2050, representando quase 20% da população munmaior longevidade, melhor saúde funcional, maior dial, as sociedades têm de ultrapassar as crenças que probabilidade de recuperação em caso de doença possuem sobre o envelhecimento. Envelhecer não é um problema para ser resolvido ou uma doença a grave e um melhor desempenho cognitivo. Então, será que não temos motivos para nos sen- ser curada. É um processo natural, real e duradoutirmos bem com o envelhecimento? Porque deixa- ro que nos une a todos. Mudar o discurso em torno mos de celebrar a nossa capacidade de adaptação dos adultos mais velhos transformará positivamente e de crescimento à medida que o tempo avança? O a sociedade, tornando-a um espaço onde todos pomotivo pelo qual não acontece é precisamente devi- dem envelhecer com propósito. Indivíduos de todas as idades, empresas, goverdo ao preconceito com base na idade - o idadismo. “Ele parece tão bem para a idade que tem”. “Não nos, organizações e instituições académicas e de tem idade para usar aquele tipo de roupa”. “É triste investigação têm um papel a desempenhar na conschegar a velho”. Ou “Ele é demasiado velho para ser trução de um movimento para eliminar o precondiretor agora”. Soa-vos familiar? São apenas alguns ceito com base na idade - porque a longevidade está exemplos de comentários discriminatórios que to- mesmo para ficar. dos nós fazemos em algum momento, mesmo que bem intencionados. A Organização Mundial de Saúde define o idadismo em três dimensões: estereótipos (como as pessoas pensam), preconceito (como as pessoas se sentem) e discriminação (como as pessoas agem) em relação aos outros e a si mesmo com base na idade. Desde a nossa infância somos bombardeados com mensagens negativas acerca da vida tardia. No local de trabalho, nos meios de comunicação, na sétima arte, nas escolas e nos serviços de saúde, o idadismo está frequentemente presente e é algo que a maioria das pessoas experiencia em algum momento das suas vidas. O preconceito com base na idade pode afetar as pessoas das mais variadas formas. E tudo pode começar pela própria pessoa internalizar os estereótipos dirigidos a si. Por exemplo, uma pessoa com 60 anos achar que é velha demais para aprender novas competências, que não pode fazer determinado corte de cabelo ou que não pode iniciar uma nova relação porque teve uma vida inteira a interiorizar que tal não é para a sua idade. No entanto, as consequências do idadismo na nossa saúde vão mais além: atrasa a recuperação de uma lesão ou doença, aumenta a suscetibilidade a doenças crónicas, afeta a


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O envelhecimento Maria Maravalhas, estudante de Medicina da Universidade do Minho e membro do Porta Nova

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Uma ilustração do envelhecimento conteria um idoso, de cabelo branco ou sem cabelo, dependendo. Caminharia lentamente com a cábula da bengala para não cair na calçada e sentir-se-iam as mãos frias e enrugadas. Pararia no banco de jardim à sombra porque a consciência de que o sol é nefasto está mais presente. Havia de descansar e pousar a bengala religiosamente, a rezar para que não caísse porque depois seria difícil erguê-la. E esta seria a perpétua rotina, embrenhados na solidão, sem ninguém a quem dar a mão, na observação da velocidade dos demais. Àquilo que já ouvi chamarem de cansaço da vida. Existe aquela velha verba que dita que se o novo soubesse e o velho pudesse não havia nada que não se fizesse. É antagónico e é desinspirador, como se não fosse possível atingir a plenitude por causa da ignorância para não dizer estupidez, ou pela fisiologia que dita o encurtamento dos telómeros e a acumulação de erros genéticos. Há que concordar que habita mais sabedoria consoante a experiência de vida que a idade vai acarretando. Parece-me quase proporcional. Contudo não me parece que a incapacidade física seja o impedimento porque haveria forma de transmitirmos essa aprendizagem. A questão é o porquê de não acatarmos a prudência que nos tentam chegar. Talvez por desvalorização. Somos tão donos de nós mesmos e na inocência da idade consideramo-nos tão seguros das nossas escolhas. E temos o mesmo direito, à semelhança daqueles que nos precederam, de acreditar nessa certeza: uma certeza incompleta. Porém, na verdade, se raramente aprendemos com os próprios erros, quanto mais com os conselhos dos outros? Ouvi há uns tempos que a sabedoria só chega quando não precisamos dela. Espero que não seja bem assim. E assumo que pode parecer uma visão pessimista, no entanto, é-me difícil encontrar outra forma de enfrentar esta realidade.


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A proximidade – de estudantes para as aldeias mais isoladas do país Cristiana Rodrigues, estudante de Medicina da Universidade do Minho e colaboradora na “Aldeia Feliz”

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A “Aldeia Feliz” é uma atividade organizada pelo Núcleo de Estudantes de Medicina, que conta com um total de sete edições, realizadas por vários municípios do norte do país. Esta atividade tem como grande objetivo combater o isolamento social na terceira idade e promover uma intervenção de prevenção primária que diminua, a curto e longo prazos, os riscos associados ao isolamento. Assim, a “Aldeia Feliz” procura promover o contacto direto dos estudantes de Medicina com os idosos de aldeias mais isoladas do nosso país, através da realização de rastreios porta a porta. Com estes, os estudantes conseguem identificar os principais problemas e dificuldades destes idosos, começando pelo enquadramento social, o nível de carência ou estado físico, de forma a que possam ser implementadas medidas de auxílio. Além disso, através dos rastreios, os estudantes têm uma oportunidade para transmitir conselhos e educação para a saúde e, sobretudo, uma porta aberta para um momento de convívio com estes idosos. A última edição, muito condicionada pela pandemia atual, decorreu no município de Ponte da Barca, mais propriamente nas aldeias de Germil, Entre-os-Rios e Ermida, durante os dias 3 e 4 de dezembro. Em Ermida, encontramos uma comunidade muito envelhecida, mas que, curiosamente, apresenta a maior taxa de natalidade do concelho por existirem 9 crianças num total de cerca de 40 habitantes. As casas são, maioritariamente, de pedra e ainda com o gado bovino no rés-do-chão das mesmas. Passar um dia nesta aldeia é uma oportunidade única para perceber a realidade do antigamente e perceber as dificuldades destas comunidades na primeira pessoa. Entre Ermida e o centro de Ponte da Barca distanciam, aproximadamente, 20 km de curvas pelos montes. Se existir uma emergência e for necessária uma ambulância, para além deste percurso, esta não consegue chegar às casas, já que os carros não conseguem atravessar as estreitas ruas, pelo que é necessário que se traga os doentes de maca até à entrada da freguesia. Por outro lado, se um idoso necessitar de uma consulta no seu Médico de Família precisa de pagar uma viagem de táxi de 20€, para cada lado, para que consiga lá chegar, o que corresponde a um valor bastante elevado para um reformado. Participar nesta atividade permite aos estudantes de medicina emergir na realidade destas comunidades mais isoladas e perceber diretamente as suas dificuldades, de forma a que no futuro, possamos entender melhor os doentes que recebemos.


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Desafios e constrangimentos das comunidades envelhecidas Maria João Guardado Moreira, professora coordenadora do Instituto Politécnico de Castelo Branco, especializada em envelhecimento

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O envelhecimento da população tornou-se, mais nos últimos anos, um “trending topic”, uma vez que os indicadores demográficos não deixam margem para dúvidas (vejam-se os dados provisórios dos censos 2021), porque a pandemia da Covid-19 lamentavelmente sinalizou os idosos, como um grupo vulnerável, pelo isolamento para que os confinamentos empurraram, pela incidência da mortalidade. Se é certo que a tónica da análise sobre o envelhecimento da população portuguesa tem sido posta, e bem, no que significa como resultado da evolução positiva dos indicadores sociais, económicos e de saúde que a sociedade portuguesa conheceu nas décadas mais recentes, existe também a preocupação pelos impactos do fenómeno nos territórios. Como se tem visto, o envelhecimento populacional revelou as fragilidades que existem na organização da sociedade e as dificuldades em adaptar as estruturas sociais, económicas e políticas a esta nova realidade. A questão do como e onde se envelhece tem de estar presente nas estratégias de desenvolvimento das comunidades. Por isso, importa que as comunidades conheçam os contextos de envelhecimento das suas populações - os recursos, pessoais, sociais e de saúde disponíveis -, seguindo o que a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda a propósito da criação de contextos que promovam o envelhecimento ativo. Ou seja, a definição de estratégias e políticas territorializadas de envelhecimento tem que considerar os fatores de contexto individuais e dos territórios, porque a heterogeneidade que caracteriza o grupo dos mais velhos, a par da região onde vivem, condiciona a forma como se envelhece. Na verdade, viver nas regiões rurais, ou em meios urbanos, pode também ser um fator que evidencia essa heterogeneidade, nomeadamente no que às diferentes oportunidades de acesso aos recursos se refere, também estes determinados pelas características da região. As respostas aos desafios das dinâmicas demográficas do envelhecimento têm, assim, que se sustentar na recolha de dados no terreno que permita traçar o quadro das reais necessidades e das características das populações idosas, contrariando visões redutoras e estereotipadas sobre este grupo etário, bem como das especificidades dos recursos existentes. Mas é também necessário que a participação dos idosos faça parte integrante das metodologias de discussão e construção das ações de políticas que os têm como destinatários.


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É, portanto, necessário reconfigurar o quadro da Voltemos então à questão inicial, como e onde se envelhece, ou seja, como as comunidades lidam com investigação e da intervenção sobre as repercussões este fenómeno e como desenvolvem estratégias e in- do envelhecimento nos territórios e comunidades, o tervenções territorializadas que as tornem funcionais. que exige planeamento e uma abordagem que priPromover comunidades envelhecidas funcionais pres- vilegie o conhecimento dos contextos e perfis de supõe partir de uma perspetiva ecológica, analisan- envelhecimento, específicos de cada região e dos indo a interligação entre envelhecimento e o ambiente divíduos, de modo a fundamentar intervenções parsocial e físico, considerando a dimensão territorial ticipativas, inclusivas, inovadoras e economicamente quanto à disponibilidade e acesso aos recursos sociais sustentáveis que vão ao encontro das reais expectatie de saúde, mobilidade, habitação, conectividade, vas e necessidades das populações. participação, direitos das pessoas idosas. Estudos realizados por investigadores da unidade de investigação Age.Comm do Instituto Politécnico de Castelo Branco têm mostrado a importância de adotar uma metodologia de recolha de evidências junto das populações idosas, quer por questionários, quer integrando dimensões participativas através de audições à população, procurando assim operacionalizar a dimensão da participação social, um dos pilares do envelhecimento ativo definido pela OMS. No desenvolvimento do plano gerontológico de Idanha-a-Nova, elaborado para e com a Câmara Municipal, a realização de reuniões com a população revelou-se uma etapa fundamental na validação das propostas e eixos de intervenção propostos. Num contexto em que predomina a preferência da grande maioria da população por envelhecer em casa/na comunidade (“ageing in place”), o envolvimento dos atores locais é fundamental na definição de políticas de intervenção, até porque é ao nível local e regional que existem muitos dos serviços essenciais para apoiar quem escolhe esta opção. A implementação do “ageing in place” pressupõe, portanto, a mobilização das comunidades no desenvolvimento de intervenções a vários níveis, identificando a diversidades das necessidades das populações, rentabilizando recursos e equipamentos, envolvendo os destinatários das ações. Os estudos citados (em que se ouviu e recolheu dados junto das populações, agentes locais e painéis de peritos) apontam para que as políticas territorializadas de envelhecimento devem articular-se em torno de três eixos: comunidade, proximidade e articulação intersectorial. Ou seja, os recursos sociais e comunitários necessários à manutenção da autonomia e funcionalidade das pessoas, a distância e acesso aos serviços e a necessidade de uma visão integrada e interdisciplinar que junte sistemas públicos e privados, quer sociais quer da saúde, e os promovidos pela comunidade.


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TEM AS “Famílias em burnout, sem capacidade de resposta, estão a depositar os seus parentes envelhecidos nas urgências de hospitais. É um facto que as pessoas idosas têm progressivamente perdido o seu estatuto social, podendo agora ser vistas como fardos para a sociedade.” — Frederico Santos

Idadismo — 57

RIBS e o medo geracional de envelhecer José Pedro Marques M Ú SI CA

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Idadismo Frederico Santos SAÚDE

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As velas ardem até ao fim – análise da obra Inês Maia L I T E R AT U R A

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Sinto que estou a perder as minhas folhas João Afonso Santos CINEMA

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TEMAS

RIBS e o medo geracional de envelhecer José Pedro Marques O álbum de estreia de Lorde, Pure Heroine, de 2013, é apresentado como uma revisão da modernidade, motivada pela voz da adolescência que anseia largar a ingenuidade, mas teme em conhecer o que é ser a metrópole e viver todos os desafios que essa metamorfose do ser acarreta. Sendo apenas tão jovens quanto o minuto o permite (Tennis Court, faixa 1), os seres que renascem das cinzas da fénix industrializada são um produto

MÚSICA

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empacotado com fado reduzido a gladiadores combatem o tédio e uma data de validade e instruções solitude que os abatem, um por de utilização imutáveis. No holo- um (Glory And Gore, faixa 7). O grama da hiper-realidade (Buzz- sentimento de pertença dissociacut Season, faixa 5), o toque inter- -se do ser, sobrando um cadáver pessoal rapidamente apodrece – e que se vê num reflexo ainda esnunca haverá tempo para que ele tável, ainda rentável (Still Sane, nos sacie, nem forças que possam faixa 8). A carcaça, ainda que oca, perreverter tal podridão. Há, na consciência de quem manece firme contra as intempéespreita para lá do tempo pre- ries do tempo (400 Lux, faixa 2). sente, a idealização do que aí se O medo assoberba, mastiga, enavizinha. A realidade é outra: ra- gole e regurgita: a saliva lubrifica pidamente o sonho se liquidifica a jornada. Se a irremediabilidade em amargura (Ribs, faixa 4). A moderna é o somar dos dias, que transfiguração do devaneio amar- o remédio possa surgir entre a pegurado no medo absoluto de en- numbra do que permanece camuvelhecer é natural e inevitável. Na flado. Que surja entre os dedos da arena imaginária da convicção, os mão do que está por vir.


TEMAS

Idadismo Frederico Santos Ubasute, a prática japonesa mítica de abandonar idosos em montanhas, tem visto uma ressuscitação na vida moderna. Famílias em burnout, sem capacidade de resposta, estão a depositar os seus parentes envelhecidos nas urgências de hospitais. É um facto que as pessoas idosas têm progressivamente perdido o seu estatuto social, podendo agora ser vistas como fardos para a sociedade. Sofrem as consequências do preconceito que a sociedade tem apurado como reflexo aos estereótipos sobre o envelhecimento que o idadismo nos projeta. Uma ótica sobre a idade através da lente do idadismo traz consequências que não devemos ignorar. Gerontologistas desenvolveram o conceito de envelhecimento ativo como um novo paradigma para a abordagem dos desafios que a senescência nos apresenta. Fundamenta-se este conceito na manutenção de uma vida ativa com o avançar da idade como meio de preservação do nosso bem-estar. Neste contexto, Portugal adiou a idade da reforma, desincentivando também a antecipação da mesma, com o objetivo ainda de colmatar a insustentabilidade económica do nosso sistema de pensões. Não contesto que trabalhar é fundamental para o envelhecimento ativo. Mesmo assim, muitos pretendem reformar-se antes da idade mínima. Faltam incentivos que estimulem as pessoas a prolongarem o seu período de contribuição económica. Temos ainda problemas na permanência e na reinserção profissional, aliados ao idadismo no trabalho. Na era da tecnologia, pessoas acima dos 45 podem ser vistas como obstinadas, menos competentes e com menor potencial. Institucionalmente

SAÚDE

instalado, o idadismo é uma barreira contra o envelhecimento ativo, ao comprometer a segurança profissional de seniores. O idadismo é insidioso pela própria normalização, e é só natural estarmos menos atentos a questões que não nos afetam diretamente. Isso não retira a sua influência sobre a nossa sociedade, cuja capacidade de desenvolver respostas diferenciadas vê-se ameaçada por estereótipos. Um exemplo típico gira em torno da sexualidade após os 60 anos, em que se parte do princípio de que a mesma não pode, nem deve existir. Em ninguém. Especialmente se se é mulher. São generalizações que conduzem à divisão entre grupos, abrindo espaço para “nós e eles”. No mesmo planeta, mas de mundos diferentes. Pelo menos é o que se pode achar. Confesso que tenho dificuldade em recordar-me de contextos ou meios de comunicação onde se promove uma relação saudável com o envelhecimento. Antes vejo-me a deparar com um creme “anti-idade”, porque a idade é algo a esconder. Somos bombardeados com a ideia de que as marcas do tempo que o corpo vai carregando representam a entrada numa era de deterioração. Desde novos que assimilamos noções de velhice. Vejo a minha avó derrotada por uma tampa ligeiramente mais apertada e penso: “Uau, eu não quero chegar aí”. Deixar de conseguir ajoelhar? Rezem por mim. O preconceito em relação ao envelhecimento, e a discriminação que resulta desses sentimentos pejorativos, constituem um problema sistémico com efeitos quantificáveis. A Organização Mundial de Saúde estima que o idadismo encurta a esperança de vida por 7 anos e meio. Embora ainda sejam precisos mais estudos, há evidência de que a discriminação acelera o envelhecimento celular. 68% dos participantes de

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um estudo feito em Portugal, em 2006, refere ter sido discriminado pela sua idade, nomeadamente por profissionais de saúde. A impaciência e a desvalorização da opinião chegam a ser quase tão percetíveis como as mudanças no registo da fala. Queixas legítimas escapam-nos, escondidas debaixo do rótulo “normal para a idade”. Não se vê o mesmo esforço em prol da educação para a saúde. Contabilizando o tempo de consulta que dispomos para abordar a patologia crónica múltipla de seniores mais velhos, resta-lhes pouca margem para a participação. Estes doentes tipicamente têm menos agência sobre a sua saúde. Isto também porque muitos sistemas de saúde foram concebidos para uma população jovem, para o tratamento de patologias agudas que exigem pouca continuidade e integração de serviços. Porém, não há dúvidas de que é a medicina preventiva que deve assumir protagonismo numa população onde já se sabe que há maior prevalência de doenças crónicas. Com o pensamento enviesado pelo idadismo, a atenção foca-se mais rapidamente sobre a doença e os défices subjacentes ao envelhecimento. Esse gesto mental tem implicações médicas, económicas e sociais. Em contrapartida, o envelhecimento ativo diz-nos para zelar pela função existente. Devemos escutar ativamente, com uma mente aberta e uma curiosidade honesta em perceber a pessoa. Utilizar essa compreensão para envolver os mais velhos na tomada de decisões e para integrá-los dentro do seu núcleo multigeracional. A vida é mais satisfatória quando tem um sentido de propósito. Isto diz-se para qualquer indivíduo. Entretanto, ninguém está a ficar mais jovem e, no entanto, perpetua-se um sistema onde a idade também é fator de risco para a marginalização.


TEMAS

As velas ardem até ao fim – análise da obra Inês Maia “As velas ardem até ao fim” (no original A gyertyák csonkig égnek) é um dos livros mais aclamados de Sándor Márai, um conceituado e respeitado escritor e jornalista húngaro que, no momento pós II Guerra Mundial, se vê votado ao silêncio da censura por se ter posicionado contra um regime político que abolia a liberdade de pensamento. Sendo um liberal, acima de tudo, optou pelo autoexílio, na ânsia de experimentar o seu ideal de liberdade numa sociedade que não fosse dominada pelo comunismo. Tal decisão foi muito contestada pelos críticos que desprezavam as suas obras literárias por fazerem um retrato fiel da decadência da burguesia, algo que é evidente nesta obra. Ao longo de 153 páginas o autor explora as diferentes dimensões e fases da vida humana, salientando a complexidade das relações e a forma como as percecionamos ao longo do tempo. A amizade, relação essencial e basilar de toda a humanidade, é explorada na sua mais ampla vertente, sendo transfigurada pelo tempo no verdadeiro significado do existir humano. Nela confluem as necessidades existenciais, a atração que o ser humano tem por quem é diferente de si e a esperança cega de que a relação possa ser sublime, quando à partida apenas está fadada à frustração da solidão acompanhada - e essa diferença poderá vir a ser o agente desencadeador de segredos e momentos trágicos capazes de alterar por completo a vida das pessoas envolvidas. Quarenta e um anos e quarenta e três dias foi o tempo que

LITERATURA

Henrik e Kónrad estiveram afastados, depois de ter ocorrido um desses momentos trágicos que colocou em causa a amizade singular forjada na infância, a qual era invejada pelos demais que eram incapazes de compreender algo tão sublime, natural e intenso. De facto, “a amizade deles era tão séria e silenciosa, como todos os grandes sentimentos que duram uma vida inteira” e “(…), sabiam também, desde o primeiro momento, que esse encontro os vinculava para a vida inteira”. O reencontro deu-se num jantar no castelo do general Henrik, onde se tinha isolado do mundo depois de ter terminado a sua carreira militar. Henrik faz questão de que o jantar retrate fielmente o último que precedera a partida do amigo para o Extremo Oriente. A ação desenvolve-se em algumas horas à luz de velas, as quais vão escurecendo até se apagarem na totalidade, num perfeito analogismo à vida nas suas diferentes fases. Recorrendo a analepses, a um narrador ausente e a um monólogo de Henrik entrecortado por breves palavras de Kónrad. Sendo que o silêncio deste é uma forma de resposta, Sándor Márai, constrói uma história repleta de densidade emocional e que consiste numa verdadeira ode à amizade. Tendo esta obra literária um potencial imenso para ser explorada aos mais diversos níveis, desde a sociopolítica da época da sua composição à marcante explanação das relações humanas genuínas e assinaláveis, versarei no modo como esta retrata a velhice no contexto integrado da amizade e da perceção do tempo e espaço à medida que se envelhece. Em vários momentos da obra, a vontade de viver e a capacidade de ser resiliente face à passagem fatal do tempo são atribuídas à

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amizade, mais concretamente, à verdadeira ligação que se estabelece com alguém, a qual ancora o nosso viver de uma forma quase impercetível, mas altamente necessária. Esta sensação de vida trazida por alguém é abordada aquando da preparação do simbólico jantar entre os velhos amigos. “Nas últimas horas o palácio começara a viver, como um mecanismo ao qual tivessem dado corda. (…) Era como se os objetos tivessem ganho um novo significado e quisessem comprovar que no mundo as coisas só faziam sentido, se tivessem a ver com pessoas, se pudessem ser partes integrantes do destino e ações humanas”. O próprio Konrád apercebe-se de que o amigo resistiu às limitações da velhice quando, por fim, o vê, concluindo que fora a vontade e a certeza do reencontro o que efetivamente havia concedido ao homem velho diante de si a força intrínseca para a superação das imposições do tempo. Na tentativa de aproximar o leitor da esfera reflexiva instalada nas personagens, o autor, na primeira pessoa, questiona os valores subjacentes à amizade, levando-nos a amplificar o espectro da nossa superficial compreensão do fenómeno da autenticidade das relações humanas. São estas verdades, por muito tempo ocultas, que são desvendadas ao longo da trama. “A realidade não é a verdade. (…) A realidade é apenas um pormenor”. A questão central do afastamento de ambos os amigos será abordada na obra, mas é rapidamente subvalorizada quando comparada com aquilo que verdadeiramente interessa: a essência que constitui a sua amizade e que os uniu por todos esses anos. Relativamente à verdade almejada, Henrik reitera: “Quero saber


TEMAS

a verdade, e quem procura a verdade, só pode começar a busca dentro de si”. O atingimento da verdade abscôndita pelo tempo prematuro é interpretado literariamente como um dos marcos perentórios do envelhecimento. A velhice, tema central desta edição, é vivida e percecionada sob um ponto de vista literário enigmático, empático, lúcido e comovente, que nos transporta para as etapas derradeiras da vida e nos proporciona a reflexão acerca daquilo que esta efetivamente representou para nós. “Uma pessoa envelhece lentamente: primeiro envelhece o seu gosto pela vida e pelas pessoas, pouco a pouco torna-se tudo tão real, conhece o significado das coisas, tudo se repete tão terrível e fastidiosamente. Isto é também velhice. (…) Depois envelhece o seu corpo. (…) A seguir, de repente, começa a envelhecer a alma: porque por mais enfraquecido e decrépito que seja o corpo, a alma ainda está repleta de desejos e de recordações, busca e deleita-se, deseja o prazer. E quando acaba esse desejo de prazer, nada mais resta que as recordações ou a vaidade; e então é que se envelhece de verdade, fatal e definitivamente. Um dia acordas e esfregas os olhos: já não sabes porque acordaste”. O papel da memória e do esquecimento são recuperados ao longo da obra como inevitáveis instâncias do envelhecimento. As recordações assentam em pormenores apenas recolhidos pelos estímulos que o espaço e os objetos nos devolvem, sendo estes as verdadeiras fontes da capacidade de revisitar o passado. O verdadeiro significado da vida é o ponto estruturante para o qual convergem todas as dimensões anteriormente faladas. No âmbito da presente obra, o significado da vida é mutável, passível de

LITERATURA

ser dissolvido ou mantido à medida que o tempo passa e somos forçados a conviver com o histórico das nossas ações e volições. Os aspetos fisiológicos da velhice descansam na obra como momentos de descrição sentida e fidedigna: “No último ano envelhecera. (…) O rosto de Nini estava enrugado e rosado – as matérias muito nobres envelhecem assim, como as sedas de centenas de anos em que uma família teceu toda a sua habilidade manual e os seus sonhos. No ano passado contraíra cataratas num dos olhos. Este olho estava agora triste e cinzento. O outro ficava azul, tão azul como as lagoas eternas entre as grandes montanhas (…)”. As interações, pautadas pela observação curiosa e a perscrutação do “outro” em busca de algo que alente o “eu” refletem-se igualmente. Assim, numa trama bem engendrada e praticamente monológica, somos conduzidos num preâmbulo essencialmente reflexivo onde se impõem questões importantes, filosóficas, sobre os relacionamentos humanos, sobre o conhecimento da verdade, sobre o sentido da vida e o que é verdadeiramente importante, algo que efetivamente é compreendido na velhice, aquando da iminência do fim. A velhice é encarada como o espaço ideal à reflexão da vida como um todo e somos alertados para aspetos que, durante o seu curso, permanecem imperscrutáveis e negligenciados. O amor é indubitavelmente o verdadeiro protagonista da vida, sem o qual tudo parece ser feito em vão e a vontade fenece lenta e progressivamente. Que este livro sirva a implantação de uma consciência mais aprofundada e ampla do viver humano, da sua essência e valor e que, tendo por base a moral filosófica incutida

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por este célebre autor, saibamos encarar todas as fases da nossa vida como igualmente necessárias e importantes à nossa constituição como seres individuais e, simultaneamente, em permanente união com quem nos rodeia. Saibamos, assim, reconhecer a realidade como” pormenor” da verdade que integra e norteia a vida e saibamos cultivar o afeto e as relações humanas na sua forma mais genuína e natural possível.


TEMAS

Sinto que estou a perder as minhas folhas João Afonso Santos Nesta obra, cumpre-se de forma exemplar um dos objetivos mais nobres da arte: o de nos aproximar de realidades que não a nossa. Diga-se uma tentativa capaz de empatia, alvejando realidades mais apetecíveis ou, no caso em análise, realidades que nos aterrorizam de uma forma tão própria e visceral, por serem tão devastadoras, paulatinamente dissolvendo os blocos da nossa essência, mas principalmente por não serem assim tão improváveis - oxalá fossem ficcionais. Falamos de demência. “The Father” é um filme arrojado, na medida em que posiciona o espetador no lugar do doente demente, transmitindo o sentimento avassalador de perder a estrutura lógica da nossa existência, do lugar em que vivemos, das pessoas que conhecemos, do próprio

CINEMA

fluxo do tempo, como também documenta o deteriorar involuntário da nossa personalidade, tanto na relação com os outros como com o próprio. Algo doloroso de ver, pois percebemos o esforço do seu constante aperfeiçoamento (quiçá a tarefa de uma vida): a delicadeza e sociabilidade consumidas por traços de paranóia, agressividade e instintos primais. Deparamo-nos com uma personagem num estado de confusão asfixiante, interpretada brilhantemente por Anthony Hopkins, sendo a sua aflição retribuída com olhares de pena, confusão, discursos infantilizados e até, num arrepiante espetáculo de indiferença, violência física. Esta confusão associa-se a um sentimento de solidão e isolamento, pois, sem uma compreensão clara da cadeia temporal da vida, dificilmente nos relacionamos com o outro. Algo de verdadeiramente refrescante nesta obra centra-se no facto de que o espetador não perceciona o doente com

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pena e de uma posição de superioridade. A confusão transcende o ecrã, alvejando colocar o espetador numa posição equiparável à do doente, sendo que o espetador é forçado a adotar uma posição ativa, em detrimento da pura observação, tentando fazer sentido das contradições que são expostas e diferenciar pedaços avulsos de realidade de puras ficções. O espetador acompanha o doente na tentativa de resolução deste violento puzzle, deixando um sentimento de perfeita ansiedade invadir os nossos nervos, porque sabemos que é uma tentativa condenada ao fracasso. Trata-se de um filme que relembra a tendência invariável da natureza à involução, a fragilidade das faculdades que mais nos elevam enquanto seres humanos e reacende uma urgência (demasiadas vezes subnutrida) em aproveitar estas enquanto podemos.


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