O LIVRO DAS VIRTUDES DE SEMPRE
Ramiro Marques 2000
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Ao meu av么, Ant贸nio Marques
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Ramiro Marques (Professor Coordenador com Agregação - Instituto Politécnico de Santarém)
Nota Biográfica Ramiro Marques nasceu em 1955. É licenciado em História pela Universidade de Lisboa (1980), Mestre em Ciências da Educação pela Universidade de Boston (1984) e Doutorado em Ciências da Educação pela Universidade de Aveiro (1991). Possui, ainda, o título de Agregado em Educação, obtido na Universidade de Aveiro, em 1999, na sequência de provas públicas. É professor coordenador com agregação do Instituto Politécnico de Santarém e pertence ao quadro da respectiva Escola Superior de Educação. É autor de dezassete livros e co-autor de mais três livros. As suas áreas de investigação e estudo são a história das ideias pedagógicas, a ética e a axiologia educacional. Lecciona, no Instituto Politécnico de Santarém, Teorias e Modelos de Ensino, Educação e Valores e Metodologias da Investigação em Educação. É membro da direcção da AEPEC (Associação da Educação Pluridimensional e da Escola Cultural). Foi Director da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Santarém entre Junho de 1993 e Dezembro de 1996 e presidiu ao seu Conselho Científico entre Setembro de 1997 e Setembro de 2001.
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ÍNDICE Introdução 1. As éticas de Aristóteles 2. Educar em valores 3. A educação ética em Aristóteles 4. O bem e a felicidade 5. O prazer e a dor 6. A felicidade 7. A virtude 8. A Ética a Eudemo face aos outros tratados de ética 9. A felicidade na Ética a Eudemo 10. A virtude na Ética a Eudemo 11. O hábito e a intenção 12. A tolerância e o respeito 13. A justiça e o amor 14. A continência e a temperança 15. A coragem 16. A generosidade e a magnificência 17. A gentileza e a magnanimidade 18. A gentileza e a polidez 19. O autodomínio 20. A prudência 21. A inteligência e o conhecimento científico 22. A compreensão e a sabedoria 23. As emoções 4
24. O car谩cter do jovem, do adulto e do idoso Bibliografia Geral Biografia de Arist贸teles
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INTRODUÇÃO
Aristóteles constitui, ainda hoje, a referência mais importante para quem queira estudar e escrever sobre ética. São-lhe atribuídas três grandes obras sobre ética: a Ética a Nicómaco (EN), a Ética a Eudemo (EE) e a Magna Moralia (MM). A estes três tratados veio juntar-se um texto, intitulado Protréptico, que não está contido no corpus aristotelicum, cuja edição de referência continua a ser a de Bekker (Berlim, 1830). Em relação à Magna Moralia, os eruditos divergem acerca da sua autoria. Há quem considere, como é o caso de René-Antoine Gauthier, que a Magna Moralia, foi escrita depois da morte do filósofo, provavelmente por um aluno do Liceu. Outros, como por exemplo, Pierre Pellegrin, colocam a hipótese de ser uma obra da juventude. Tudo indica que a Magna Moralia seja uma obra de Aristóteles, quer tenha sido escrita ou ditada directamente por ele, quer tenha sido fruto de apontamentos das suas aulas, reunidos por alunos seus. Não é só a semelhança temática e de vocabulário com as restantes éticas. Há, também, referências explícitas a outras obras de Aristóteles, como é o caso da referência à obra Os Analíticos, que surge no capítulo VI, do livro II da Magna Moralia, que trata da solução das dificuldades colocadas pela ausência de autodomínio. Os livros 4, 5 e 6 da Ética a Eudemo são comuns aos livros 5, 6 e 7 da Ética a Nicómaco. Para além disso, a Ética a Nicómaco é não apenas um tratado de maior dimensão, mas também revela uma maior maturidade filosófica e mais fineza na argumentação. De qualquer forma, é impossível conhecer o pensamento ético de Aristóteles sem uma leitura cuidada dos "três livros de ética". Os títulos das obras éticas de Aristóteles não foram, provavelmente, concebidos por Aristóteles, mas sim pelos seus editores, posteriores à sua morte, o principal dos quais, Andrónicos de Rhodes, viveu no século I a C. Quando escreveu o Protréptico, Aristóteles tinha, provavelmente, um pouco mais de 30 anos. Seguiu-se-lhe a Ética a Eudemo, escrito entre os 37 e os 42 anos de idade, quando se encontrava a ensinar em Assos, na Ásia Menor e em Mitileno, na ilha de Lesbos. A Ética a Nicómaco é, sem dúvida, um escrito de maturidade. Aristóteles tê-la-á escrito, após o seu regresso a Atenas, para fundar a nova escola, o Liceu, onde ensinou, entre muitas outras matérias, ética. Em qualquer dos casos, estamos perante textos que resultam de sucessivas lições sobre ética e que foram sendo alterados e melhorados ao longo dos anos. Há bastante controvérsia acerca do título Ética a Nicómaco. Terá sido em honra do pai de Aristóteles ou em honra do seu filho, ambos com o nome de Nicómaco? O mesmo se pode dizer em relação ao título Ética a Eudemo. Terá sido em honra do discípulo de Aristóteles, chamado Eudemo de Rhodes? Ou terá sido o próprio Eudemo de Rhodes que lhe deu esse título? E qual a razão para o título de Magna Moralia, quando essa obra é mais curta do que as outras duas? Pierre Pellegrin coloca a hipótese de a Magna Moralia ser um título dado pelos editores, após a morte do filósofo, pelo facto de o livro circular em longos rolos de papiro. Quando terá a Magna Moralia sido escrita? Antes ou depois das outras éticas? A maior parte dos críticos mais recentes consideram que terá sido escrita numa altura próxima da escrita da obra Ética a Eudemo, dada a semelhança do vocabulário e do conteúdo. Há, contudo, alguns que afirmam ser um texto escrito por alunos, após as aulas dadas por Aristóteles no Liceu. A edição mais antiga que se conhece da Magna Moralia deve-se a Andrónicos de Rhodes que viveu no século I a C., e a primeira vez que a obra é citada deve-se a uma passagem num texto de Atticus, no final do século II da nossa era. A Magna Moralia, também conhecida pela Grande Moral ou pelo Grandes Livros de Ética, embora pouco editada e pouco conhecida, é uma obra de grande 6
qualidade, que não se limita a repetir, de forma mais abreviada, o que Aristóteles escreveu nas outras éticas. Há algumas novidades sobre ética que apenas aparecem na Magna Moralia: em que medida o injusto pode ser prudente?; pode-se ser injusto para com uma pessoa má?; como resolver o conflito entre duas virtudes?; é possível cair-se num excesso de virtude? Este livro tem como referências básicas três obras de Aristóteles: a Ética a Nicómaco, a Ética a Eudemo e a Magna Moralia. Todas elas, mas sobretudo as duas últimas, são desconhecidas de quase todos os professores, dos estudantes de Filosofia, de Educação e de Ética e dos restantes leitores em geral. Quando necessário, recorreuse, também, à Retórica, sobretudo nos capítulos sobre as emoções. A obra A Política inspirou, também, o capítulo sobre a educação ética em Aristóteles. É impossível falar-se, com fundamento e exactidão, de política, de educação em valores e de educação ética sem conhecer estas importantes obras da Cultura Ocidental. Com o LIVRO DAS VIRTUDES DE SEMPRE, procurámos preencher essa lacuna, apresentando a ética aristotélica de uma forma acessível aos leitores interessados em ética e preocupados com o actual desconhecimento e ignorância face às virtudes tradicionais. A pertinência e actualidade de um livro sobre as virtudes de sempre, escrito a escassos meses da passagem para o terceiro milénio, explicam-se pelo facto de vivermos uma época de transição, de mudança e de crise. Sabemos o que estamos a deixar para trás, mas ainda não sabemos aquilo que vamos encontrar. Não temos sequer a certeza de que aquilo para que nos dirigimos a toda a pressa seja melhor do que aquilo que estamos a deixar. O que sabemos, ao certo, é que uma parte significativa das novas gerações do Mundo Ocidental está a ser criada sem ter acesso a fontes culturais seguras. A televisão, a internet e os jogos de vídeo, apesar do muito potencial educativo ainda por realizar, oferecem a essa geração uma "cultura" de mosaico, fragmentada, quantas vezes ilusória e superficial. É certo que, muitas vezes, substituem o amparo da mãe ausente, numa família que já não o é verdadeiramente, ou porque andam todos, de uma lado para o outro, à procura do fermento que há-de satisfazer as necessidades dos seus consumos crescentes, ou porque se separaram de vez, trocando a segurança de um lar e um compromisso que devia ser para sempre pela chama momentânea e ilusória de novas experiências, que quase sempre se revelam enganosas e amargas. Numa época que corre atrás do fácil, do pronto-a-servir, do descartável, do lúdico a qualquer preço e dos prazeres mais fáceis e imediatos, não resta mais lugar nem sabedoria para esperar, para adiar as gratificações, para acreditar, para ter fé, para o sacrifício quando necessário, para as relações afectivas duradouras e para o respeito fiel dos compromissos. E, no entanto, estamos a viver uma época de progresso científico e tecnológico nunca antes visto. Os enormes e extraordinários progressos registados na ciência médica, na ciência farmacêutica, na engenharia biológica e nas telecomunicações estão a trazer, a cada dia que passa, novos tratamentos para antigas e novas doenças e novos processos de comunicação, cada vez mais imediatos e interactivos. Nunca como hoje, a Humanidade deteve tantos instrumentos, técnicas e conhecimentos para poder ser feliz! Mas, também, nunca como agora, a Humanidade desperdiçou tanto esse potencial de felicidade! Contudo, esse extraordinário progresso tecnológico e científico não está a ser acompanhado pelo progresso moral da Humanidade. Em certas zonas do Mundo, em particular em algumas áreas da África Sub-sahariana, e em certas áreas suburbunas das grandes cidades europeias, estamos a assistir, sem dúvida, a uma regressão moral sem precedentes, nos últimos 50 anos. Essa regressão moral surge envolta num caldo de cultura constituído pelo comércio da morte, quer através das intermináveis guerras de 7
rapina, que minam a África negra, quer através do abuso de substâncias tóxicas, que destroem a coesão social e cultural de milhões de famílias em muitas regiões europeias. A família e a escola são as instituições que maior erosão sofreram, nas últimas décadas. Os falsos profetas do novo cepticismo axiológico não cessam de dar as boasvindas àquilo a que chamam de "novos arranjos familiares" e, na escola, não se cansam de advertir para a necessidade de substituir o estudo sério, o esforço, o sacrifício e o amor pelos clássicos por um pseudo-currículo que, de tanto se tornar flexível, corre o risco de deixar de ser substantivo. Ora, como se pode criar resistentes sem o hábito da firmeza e do esforço? E onde aprender a firmeza, a resistência e a perseverança se a família e a escola deixaram de as ensinar e a sociedade as passou a ignorar? Como é possível, num cenário desses, alimentar a coragem das novas gerações, essa virtude, sem a qual as outras virtudes não passam de meras possibilidades? Quando a ausência de firmeza, de perseverança e de coragem anda associada à incredulidade, à falta de fé, à recusa de toda a tradição e à ignorância do que vale a pena, estamos, na melhor das hipóteses, no domínio do imprevisível e da incerteza. Poderá a civilização ocidental, continuar a aumentar o seu poderio tecnológico e científico e, simultaneamente, superar a falta de firmeza, a ausência de coragem e a incredulidade crescente? Ou será que, com o 3º milénio, assistiremos a um progresso moral sem precedentes, conseguindo, por essa forma, diminuir o fosso entre os avanços científicos e a actual estagnação moral? Está fora de questão um regresso ao passado. Tal é impossível e indesejável. Não queremos reencontrar um passado que também foi marcado pela opressão e pelo obscurantismo. Queremos manter e alargar, tanto quanto possível a liberdade, mas, em simultâneo, exigimos mais respeito e mais responsabilidade. Mas, também, não podemos fazer tábua-rasa de um passado de luz e esplendor, sem esquecermos as suas zonas de sombra. Ao invés, é preciso caminhar em frente, construindo sobre esse passado, melhorando-o, recusando as suas partes-sombra e acrescentando-lhe o que a verdadeira cultura, tecnologia e ciência do nosso tempo têm para dar, com o fim de lhe proporcionar mais luz. Aproveitar e utilizar bem os novos tesouros que as novíssimas tecnologias da informação conseguem levar até à nossa casa, criando conteúdos culturalmente sólidos que possam circular na internet e agucem o apetite de todos pelo contacto duradouro e íntimo com os livros. Por isso, faz todo o sentido falar das virtudes de sempre, e dar, de novo, voz a alguns grandes mestres da Sabedoria Ocidental, porque as suas palavras podem ajudar a iluminar a nossa caminhada para um futuro mais humano, mais justo, mais luminoso e mais fraterno. Este retorno aos grandes mestres da Sabedoria Ocidental não pode ser visto como uma preferência pelo etnocentrismo ou a recusa do diálogo com outras culturas. Acontece apenas que nós somos fruto de uma matriz cultural que teve o seu epicentro e deve os seus fundamentos à antiguidade greco-latina e à civilização judaico-cristã. Para compreendermos e respeitarmos os grandes mestres da Sabedoria Oriental e para dialogarmos com as outras culturas temos, em primeiro lugar, que conhecer, respeitar e amar as nossas referências culturais. Aristóteles foi um desses grandes mestres. Poderíamos ter escrito um livro sobre as virtudes de sempre recorrendo a outros grandes mestres, a Santo Agostinho, a Tomás de Aquino ou a Espinoza. Mas já não seria um livro. Seriam vários livros. Talvez se justifique, no futuro, fazê-lo, se a saúde, a vida e a inspiração o permitirem. E também se justifica cruzar a sabedoria desses mestres com a sabedoria de um Confúcio, de um Lao Tseu e de um Mencius. Esse diálogo é uma empresa necessária e urgente!
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A pertinência da ética aristotélica para a actualidade resulta do facto de os valores serem intrínsecos à educação, não sendo possível falar de escola e de educação sem incluir os valores. Na verdade, não há educação sem uma referência intrínseca aos valores, pois o "compromisso educativo não é possível fora do compromisso com os valores" (1). Referindo-se à importância da formação axiológico-educacional de um professor, Manuel Patrício (2) refere que ela deve ser organizada para: "a) promover a reflexão teórica sobre os valores a cultivar na vida e no processo educativo escolar; b) promover a transferência dessa reflexão teórica para as situações educativas concretas e práticas em que o professor se encontra como educador profissional; c) preparar para uma vida pessoal e profissional que seja um processo de formação contínua; d) preparar para uma vida pessoal e profissional que seja axiologicamente diversificada, rica e valiosa; e) organizar situações didácticas rigorosamente provocadoras e propiciadoras da experienciação das classes de valores consideradas principais; f) conduzir a ancorar a reflexão e a prática dos valores num solo cultural e civilizacional concreto, com o universal por horizonte; g) conduzir a analisar com objectividade e realismo as possibilidades de estruturação e funcionamento pedagógicos da Escola, com vista à realização de uma educação efectivamente indutora e promotora dos valores". Para os professores, os estudantes e os leitores em geral que se estão a iniciar no estudo da ética aristotélica, aconselhamos a leitura da obra de Jean Brun (3), que contém um conjunto de excelentes capítulos sobre a filosofia do estagirita. Para a leitura de algumas obras de Aristóteles, traduzidas em português e com um bom conjunto de notas explicativas, aconselhamos algumas edições da colecção Estudos Gerais - Clássicos de Filosofia da Imprensa Nacional (4). Quer a Ética a Nicómaco quer a Ética a Eudemo procuram definir e caracterizar o Bem. Em ambas surge a noção de que "o Bem do homem consiste no bom exercício da actividade humana. E qual é então essa actividade? O que distingue o homem dos outros seres vivos é a sua alma racional, será, portanto, numa certa forma de actividade dessa razão que residirá o Bem; deste modo o Bem, para o homem, consiste numa actividade da alma, e acordo com a virtude e, no caso de pluralidade de virtudes, de acordo com a mais excelente e a mais perfeita delas todas" (5). Coloca-se, então, o problema de saber o que é a virtude. Será uma paixão, uma faculdade ou uma disposição? Paixão não é, pois o medo e o ódio nunca podem ser considerados virtudes. Faculdade, também não, pois uma faculdade tanto pode ser posta ao serviço do bem como do mal. É, então, uma disposição "resultante duma deliberação voluntária, pois a inteligência humana pode ser uma verdadeira causa ao lado daquelas que vemos actuar na natureza. Para que possamos falar de virtude, é preciso então que aquele que age se encontre numa certa disposição: em primeiro lugar deve saber o que faz; depois, deve escolher livremente o acto em questão e escolhê-lo com vista a esse mesmo acto; e, em terceiro lugar, deve executá-lo numa disposição de espírito firme e inabalável" (6). A virtude é um extremo na excelência, mas é uma posição média entre dois vícios, um por excesso, outro por defeito. Para que uma acção seja boa, é necessário "que não seja preciso retirar-lhe nem acrescentar-lhe nada; assim, todo o homem prudente evita o excesso e o defeito, procura o justo equilíbrio e prefere-o, um justo equilíbrio que não seja relativo ao objecto mas relativo a nós" (7). Aristóteles deu duas grandes contribuições para a teoria ética: a primeira, é o seu teleologismo, que encara a procura da felicidade como a principal finalidade do homem. O outro contributo é a sua concepção de virtude, como meio termo entre dois extremos. Embora a teoria ética aristotélica não possa ser considerada uma ruptura com a teoria 9
platónica, a verdade é que há alguns aspectos que as separam. Desde logo, a tese aristotélica de que a educação ética não se faz apenas por via intelectual, mas também, e sobretudo, através da habituação do educando na prática da virtude. Para Aristóteles, "a prática do bem depende de: 1) umas virtudes que se conhecem e que são puramente intelectuais (nous, epistéme, sophía), de modo que, por conseguinte, são produto do ensino doutrinal; 2) outras virtudes intelectuais já menos puras (phrónesis e téchne), que devem aplicar verdades gerais a casos particulares, conhecidas pelos sentidos e dado que estes se acham sujeitos a erro, o conhecimento nem sempre as afecta e move devidamente; 3) por fim, umas virtudes morais vinculadas à acção, as quais, movendo o indivíduo no mesmo terreno em que o movem também os instintos e as paixões, podem ser vencidas por estes, sem obedecer às directrizes da razão" (8). Foi Aristóteles, e não Sócrates ou Platão, que melhor foi capaz de explicar a aparente contradição, que São Paulo, alguns séculos depois resumia dizendo "não quero o mal que faço e não faço o bem que quero". Por que é que o homem, conhecendo o bem, não é capaz de o realizar? Grande parte da Ética a Nicómaco procura explicar esta contradição. Agostinho de Hipona (9) e, mais tarde, Tomás de Aquino, dedicaram, também, longas e admiráveis páginas a este drama humano fundamental. A posição de Aristóteles, acerca do drama humano fundamental, é realista e verdadeira: para a prática do bem exige-se que as luzes da inteligência, nutrida com o ensino da ética, se juntem a uma boa disposição natural e a bons hábitos. Desta forma, Aristóteles explicita os seus dois grandes princípios da educação ética: "1) as inclinações naturais negativas podem ser contrariadas com a formação de hábitos positivos; 2) o indivíduo adquire, assim, a sua segunda natureza, de ordem cultural e moral"(10). Com estes princípios, Aristóteles ultrapassava o intelectualismo ingénuo de Sócrates e Platão e incluía na sua teoria quer a importância dos bons hábitos quer dos sentimentos, os quais tanta importância viriam a ter 23 séculos depois, na obra de Max Scheler e de outros importantes axiólogos contemporâneos. A importância dada por Aristóteles à educação ética conduziu-o à defesa de uma educação pública, capaz de complementar e de substituir, quando necessário, as insuficiências da família, de modo que as novas gerações pudessem beneficiar de uma boa formação do carácter. Na obra A Política (11), Aristóteles dedica várias páginas à organização da educação, como alicerce da formação do carácter, e defende a ideia de que são necessárias leis e medidas correctivas que acompanhem e ajudem a vida ética do homem, tanto na juventude, como na maturidade e na velhice. Importa, no entanto, não exagerar a importância concedida pelo estagirita à educação pública, já que ele não cessa de referir que cabe aos pais a tarefa fundamental de encaminhar os filhos no sentido da virtude, ajudando-os, com firmeza, a formar um carácter virtuoso. No entanto, como reconhece ser essa uma tarefa muito difícil, sobretudo quando os filhos nascem com deficiências nas suas disposições naturais, obedecendo, por isso, com mais facilidade aos instintos do que à razão, Aristóteles afirma que o Estado tem o dever de ajudar e complementar o papel da família na educação ética dos filhos e de se substituir à família quando ela é incapaz de realizar tal tarefa. A ética de Aristóteles é uma ética do bem e da finalidade. Parte da ideia de que o bem do homem está em cumprir a sua finalidade, que é a felicidade. É, por isso, uma moral teleológica. Como a felicidade consiste na contemplação intelectual, no estudo teórico, portanto, as virtude principais são as dianoéticas, ou virtudes cognoscitivas, como a sabedoria e a prudência. Para Aristóteles, as virtudes éticas, ao contrário das dianoéticas, são focadas na vida activa e visam o domínio da parte sensitiva e a sua submissão ao domínio da razão. Ora, o homem que dedica a sua vida ao estudo teórico é o que se encontra mais perto de Deus, que é contemplativo, tudo sabe e supera todos os 10
humanos em felicidade. Tomás de Aquino retomaria, séculos depois, esta tese, para defender que a suprema felicidade é a contemplação de Deus. Para Aristóteles, o Bem não é uma transcendência, mas o conjunto dos bens. E ao contrário dos estóicos, afirma que o bem não é só a virtude, mas também um desfrute moderado dos prazeres materiais e humanos. É possível verificar que a ética aristotélica possui uma base estética, visto que "a razão manda fazer o bem porque isso está conforme com a ordem e com a conveniência" (12). Aristóteles considera que o bem é uma coisa bela e que se deve ser corajoso porque é belo sê-lo. A virtude é uma arte que se funda na ideia do melhor e obedece à lei da harmonia e da proporção. O eudemonismo da ética aristotélica é evidente quando o filósofo escreve que a felicidade é o maior dos bens. Contudo, a felicidade não é o mesmo que a "boa vida", mas sim a "vida boa". Mas, o filósofo não opõe "boa vida" a "vida boa". Pelo contrário, uma pessoa com uma vida digna está no caminho certo para ter uma vida bem satisfeita. Assim sendo, a felicidade pode definir-se como um "agir bem", isto é, de acordo com a virtude. Não é a sorte ou a riqueza que asseguram a felicidade, mas sim os actos virtuosos. A ideia de que a felicidade reside na vida virtuosa deixou marcas em toda a ética ocidental. Coube a Tomás de Aquino (13) a actualização da ética aristotélica à matriz cristã, acrescentando que a suma felicidade consiste na contemplação das coisas divinas. Ou seja, tanto num como noutro, é através do estudo teórico, da contemplação intelectual, que o homem atinge a maior felicidade. Num caso e noutro, estamos perante uma ética do bem e uma moral de felicidade. Numa época, como a nossa, profundamente marcada pela relativismo ético radical e por uma certa anomia moral, não é exagerado afirmar-se que a ética aristotélica pode constituir um referencial seguro e realista para a procura da felicidade e de uma vida digna. Ora, a escola e a educação em geral, embora não sendo uma panaceia, podem contribuir para ajudar os jovens a encontrarem os caminhos para a vida digna e para a felicidade. A demanda da felicidade exige perseverança, esforço e capacidade de sacrifício. Precisamente aquilo que os "mass media" ocidentais mais desvalorizam. Tanto a Ética a Nicómaco e a Ética a Eudemo como a Magna Moralia (14) constituem três textos fundamentais da Cultural Ocidental e é imperdoável continuar a permitir que as novas gerações os ignorem. Este livro quer ser um modesto contributo para a divulgação do conhecimento destas três obras que fixaram os fundamentos das virtudes de sempre. As éticas de Aristóteles, a par de outras grandes obras da Sabedoria Ocidental, como a As Confissões de Santo Agostinho, a Suma Teológica de Tomás de Aquino e a Ética de Espinoza, entre muitas outras, podem ajudar as novas gerações a abandonar o cepticismo axiológico reinante, substituindo o cepticismo pelo gosto de procurar a Verdade e pelo amor à Sabedoria. Jean Guitton acentua a importância dessa grande tradição da seguinte forma: "não se trata de manter a todo o custo as partes carunchosas da tradição, mas retomar a tradição pela razão, com o legado da moral natural; toda esta fidelidade à tradição antiga greco-romana e judeo-cristã, que deu, nesta civilização ocidental, uma parte do bem que é necessário preservar: liberdade, generosidade, direitos do Homem, fraternidade, sinceridade, justiça, honra, as raízes do respeito de si e dos outros, a amizade. Recusar-se a admitir que o egoísmo e a mediocridade possam vencer contra o amor e a inteligência"(15). Numa época caracterizada pelo esfumar dos vínculos e das referências, é necessário regressar ao contacto com as Grandes Obras e buscar nelas a inspiração e a iluminação para a Vida Feliz. Neste sentido, o contacto com as Grandes Obras é como o regresso ao colo da mãe e assemelha-se ao deitar a cabeça no ombro do pai. Jean Guitton chama a atenção, da seguinte forma, para os malefícios da perda dos vínculos: 11
"na nossa época, o que está mais em perigo são os vínculos que outrora ligavam o espírito à coisa, o homem à natureza, o filho à mãe, o cidadão à Pátria, os exercícios do espírito à existência ordenada, cinzenta e esplêndida; o país, a terra, a religião vivida no tempo, a encarnação, em resumo, sob todas as suas espécies e as suas formas. E as virtudes. Não a virtude, termo vago, muitas vezes hipócrita, mas todos estes esforços em que o belo, o bem, o verdadeiro encarnam numa vida humana, criando harmonia entre os seres e as coisas. O que é refúgio, seio, socorro, retiro, floresta, bosque, terra, tudo isso tende a desaparecer. Já não temos paz, mas excessos que se sucedem e se compensam. O respeito, o pudor, a medida e a simplicidade desapareceram. E as mães" (16). É isso. O homem é o animal que mais tempo precisa para chegar à vida adulta. Nasce indefeso e fraco. Sem a protecção da mãe, sem o acompanhamento dos pais e da família, durante cerca de um quarto da sua existência média, o homem definha e morre prematuramente. E mesmo que sobreviva, nunca chega a ser Homem. Para vir a ser Homem, precisa de colo, de vínculos e de referências seguras, isto é, dos exemplos, da tradição e dos testemunhos. As Grandes Obras da Sabedoria Ocidental são o colo, os vínculos e as referências seguras para que os homens de hoje possam aspirar a ser o Homem do 3º milénio. Pudesse este livro contribuir um nadinha para que tal aconteça! Notas 1) Patrício, M. (1993). Lições de Axiologia Educacional. Lisboa: Universidade Aberta, p. 20 2) idem, p.29 3) Brun, J. (1994). Sócrates, Platão e Aristóteles. Lisboa: Publicações Dom Quixote 4) Aristóteles (1998). Retórica. Lisboa: INCM e Poética. Lisboa: INCM 5) Brun, J. (1994). Sócrates, Platão e Aristóteles. Lisboa: Publicações Dom Quixote, p. 281 6) idem, p. 282 7) ibidem, p. 282 8) Quintana Cabanas, J. M. (1995). Pedagogia Moral: El Desarrollo Moral Integral. Madrid: Dykinson, p. 290 9) Ver Santo Agostinho (1997). Diálogo sobre a Felicidade. Lisboa: Edições 70 e, também, As Confissões. S.Paulo: Quadrante 10) Quintana Cabanas, J. M. (1995). Pedagogia Moral: El Desarrollo Moral Integral. Madrid: Dykinson, p. 291 11) Aristóteles (1991). A Política. S. Paulo: Livraria Martins Fontes
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12) Quintana Cabanas, J. M. (1995). A Pedagogia Moral : El Desrrollo Moral Integral. Madrid: Dykinson, p. 98 13) Tomás de Aquino (1953). Summa Contra los Gentiles. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos 14) Aristóteles (1995). Les Grands Livres d`Éthique (Magna Moralia). Traduzido do grego por Catherine Dalimier e com introdução de Pierre Pellegrin. Évreux.Arléa 15) Guitton, J. e Antier, J-J. (1999). O Livro da Sabedoria e das Virtudes Reencontradas. Lisboa: Editorial Notícias, p. 24 16) Guitton, J. e Antier, J-J. (1999). O Livro da Sabedoria e das Virtudes Reencontradas. Lisboa: Editorial Notícias, p. 13
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AS ÉTICAS DE ARISTÓTELES Para Aristóteles, o ensino da coragem, bem como de outras virtudes morais, exige a prática continuada de actos de coragem, de tal forma que essa virtude seja incorporada nos nossos hábitos. Tanto na Ética a Eudemo (1) como na Ética a Nicómaco (2), Aristóteles identifica a busca da felicidade como o fim último da vida. A mesma identificação pode ser notada no "terceiro livro de ética" atribuído a Aristóteles, a Magna Moralia (3). Embora continue a haver controvérsia, quer sobre a sequência temporal destas três grandes obras sobre ética quer sobre a atribuição a Aristóteles da obra Magna Moralia, a maior parte dos especialistas contemporâneos considera que a Magna Moralia e a Ética a Eudemo são obras menos maduras do que a Ética a Nicómaco, sendo esta o grande tratado que coroa o pensamento ético do filósofo de Estagira (4). Como o fim de todos os nossos actos deve ser a procura do bem, a felicidade identifica-se com o próprio bem. A filosofia de Aristóteles é, por isso, eudemonista. A própria sociedade civil tem como fim viver bem e todas as suas instituições não são senão meios para isso e a própria Cidade é apenas uma comunidade de famílias e de aldeias em que a vida encontra todos estes meios de perfeição e de suficiência. É isto a que podemos chamar uma vida feliz e honesta. A sociedade civil é, pois, menos uma sociedade de vida comum do que uma sociedade de honra e virtude. A felicidade surge, assim, como um dever e um direito e o homem é feliz quando ele realiza aquilo para o qual é feito, e realizar aquilo para o qual é feito, é o dever do homem, pois é isso que a razão lhe prescreve. A felicidade anda, em Aristóteles, tal como em Platão, associada ao Bem a à Virtude, à Alma portanto e não ao corpo ou aos bens exteriores, porque todos vemos que não é pelos bens exteriores que se adquirem e conservam as virtudes, mas sim que é pelos talentos e virtudes que se adquirem e conservam os bens exteriores e que, quer se faça consistir a felicidade no prazer ou na virtude, ou em ambos, os que têm inteligência e costumes excelentes a alcançam mais facilmente com uma fortuna medíocre do que os que têm mais do que o necessário e carecem dos outros bens. Os bens exteriores não passam de instrumentos úteis que, em excesso, podem ser um estorvo ou, pelo menos, uma inutilidade para quem os usufrui. Ao invés, os bens da Alma são sempre úteis e quanto mais excessivos forem maior será a sua utilidade. Nessa medida, a felicidade de cada um é proporcional à virtude e à prudência que tiver, e na medida em que age em conformidade com elas. Na Política (5), Aristóteles dá-nos a seguinte definição de vida feliz: consiste no livre exercício da virtude, e a virtude na mediania; segue-se necessariamente daí que a melhor vida deve ser a vida média, encerrada nos limites de uma abastança que todos possam conseguir. E este princípio é válido tanto para as pessoas como para o Estado. Um Estado é tanto mais feliz quanto mais justo, prudente e bom for. Daí que o melhor Governo seja aquele no qual cada um encontra a melhor maneira de ser feliz. Um governo justo é o que procura o justo meio e o que chama a si as virtudes da moderação e da prudência, evitando a desigualdade extrema e a desproporção, que são causas da discórdia e da inveja entre os homens. Um governo justo é o que se esforça por respeitar o equilíbrio entre as classes e o que procura o interesse comum. A realeza preocupada apenas consigo própria conduz à tirania, a aristocracia tende a corromper-se no governo dos ricos e a república, quando não incorpora a regra 14
do justo meio, tende a caminhar para a anarquia. Enfim, um governo justo é um governo equitativo para o qual é sempre desejável a existência de uma classe média susceptível de encarnar o ideal do justo meio. Mas o que é o Bem? Tanto para Platão como para Aristóteles, o Bem não é um meio mas sim um fim. De certa forma o Bem tem a ver com a perfeição com que exercemos a nossa função. Para o Homem, o Bem consiste na procura de perfeição no exercício da actividade humana. Ao contrário dos outros seres vivos, o Homem possui uma alma racional e inteligível, sendo, portanto, dotado de razão. Deste modo, fazer o Bem é agir de acordo com a razão. O homem feliz é aquele que age de acordo com a razão. Mas será que a felicidade é acessível a todos os homens? De acordo com Aristóteles, apenas os mal formados estão impedidos de a atingir. O papel da educação vai permitir que os dons se desenvolvam e se tornem realidade. Embora a educação não seja determinante é, contudo, condição necessária. Sem educação é difícil despertar os dons. Embora a educação não seja tudo - ao contrário de Sócrates que pensava que bastava conhecer para fazer o bem - ela vai permitir a aquisição de bons hábitos e o contacto com pessoas virtuosas. Sócrates e Platão nunca deram uma resposta plausível à grande questão: como se faz uma pessoa virtuosa? Tão pouco conseguiram dar resposta clara à questão: é possível ensinar a virtude? Aristóteles, na Ética a Nicómaco, responde pela afirmativa. As virtudes morais podem ser ensinadas. Mas mais do que produto do ensino, as virtudes morais são produto do hábito. Na Política, afirma que três coisas devem contribuir para isto: a natureza, o hábito e a razão. À pergunta qual deve vir primeiro, o filósofo responde que devemos esforçar-nos ao máximo para proporcionar à criança, ao mesmo tempo, o raciocínio e o hábito, porque da mesma forma que a alma e o corpo são duas substâncias distintas, assim também a alma tem duas faculdades não menos distintas, uma iluminada pela razão e outra que não tem esta luz; por conseguinte, há dois tipos de hábitos, uns apaixonados, ou provindos da sensibilidade, outros intelectuais. E, assim como o corpo é gerado antes da alma, a parte carente de razão o é, igualmente, antes da razoável. Isto pode observar-se pelos rasgos de cólera, pelos desejos e pelos caprichos mostrados pelas crianças assim que nascem. Mas o raciocínio e a inteligência só lhes vêm naturalmente com a idade. Aristóteles distingue as virtudes morais das virtudes intelectuais, embora ambas tenham como ponto comum a razão. As segundas têm a ver com a sabedoria e o conhecimento. As primeiras com o hábito. O hábito de praticar acções rectas torna as pessoas virtuosas. A habituação à virtude faz-se pelo hábito. De certa maneira, para procurar a virtude é preciso, no fundo, ser-se já virtuoso. Mas o que é a virtude para Aristóteles? A virtude é uma disposição, mas nem todas as disposições são virtudes. A disposição para a cólera, o medo ou a cobardia não são virtudes, são vícios. A virtude é, antes de mais, uma disposição voluntária, isto é, não ditada pelas paixões. A pessoa virtuosa é aquela que sabe o que faz, que é conhecedora dos seus deveres, que escolhe deliberadamente seguir a conduta recta e é capaz de repetidamente executar a rectidão com espírito e vontade inabalável. O virtuoso é aquele que é recto porque quer ser recto e porque gosta de ser recto. O hábito da rectidão impele o virtuoso a uma disposição natural para ser recto. E o que é uma acção boa? A acção é boa quando é de tal modo que não seja necessário acrescentar-lhe ou retirar-lhe nada, quando não peca por defeito nem por excesso, quando se enquadra nos limites do justo equilíbrio e é ditada pela prudência. Ao contrário de Sócrates que acreditava que ninguém é voluntariamente mau, Aristóteles defendia que as pessoas têm o poder de escolher uma vida virtuosa ou viciosa e é graças a essa liberdade de escolha que o vício pode ser censurado e as más 15
acções devem ser objecto de sanções e ser seguidas de arrependimento. Aristóteles acredita que qualquer homem possui naturalmente os traços característicos de cada uma das virtudes morais, sendo por isso naturalmente inclinado para a temperança, a coragem e a bondade. Estas virtudes naturais só se transformam em verdadeiras virtudes morais quando a educação as penetrar de razão. Mas o que é a educação ética para Aristóteles? Dos seus textos é possível tirar a conclusão que a educação ética é ajudar a cultivar nas pessoas as características que as ajudam a florescer como adultos capazes de viverem bem e de realizarem vidas felizes. A educação ética ajuda o crescimento porque é mais uma questão de desenvolvimento dos hábitos correctos do agir e do sentir do que do ensino de questões intelectuais, é mais uma questão de prática do que de ensino e é mais um problema de sentimentos do que de raciocínio, embora o domínio da razão esteja sempre presente como processo de domesticação das paixões. O que distingue a educação ética de Aristóteles da educação ética de Platão é que o primeiro enfatiza o carácter e a conduta e o segundo o intelecto e o raciocínio. Será Aristóteles, também, o primeiro autor a colocar no devido lugar o papel dos sentimentos no processo de crescimento moral. O que é que Aristóteles entende por sentimentos? Dos seus textos é possível concluir que Aristóteles se refere ao medo, à fúria, à inveja, ao ódio, ao amor, à piedade, à alegria e, em geral, a todos os estados de consciência que implicam gostar ou não gostar. A questão dos sentimentos é crucial para a compreensão da filosofia moral de Aristóteles. O autor grego parte do pressuposto que as crianças nascem com os requisitos naturais para compreenderem e aceitarem as virtudes e, em consequência, evitarem os vícios. Contudo, para que essas capacidades naturais se desenvolvam é necessário proporcionar às crianças ocasiões para o exercício do controle das paixões e dos desejos que conduzem aos vícios. A essas ocasiões de exercício do controle chama o filósofo hábitos. Antes de desenvolver hábitos de virtude, importa que a pessoa estabeleça hábitos de sentir. Muitas vezes, a passagem do vício à virtude exige, da parte da pessoa, mudanças na maneira como sente e não apenas na maneira como actua. A finalidade é deixar de desejar actuar de acordo com os velhos hábitos, de forma a poder incorporar os sentimentos que conduzam às virtudes e à rectidão moral. O sinal exterior de que a pessoa incorporou as qualidades morais é quando sente prazer em fazer o que está certo. Embora o desenvolvimento das qualidades morais exija, ao princípio, muita auto-disciplina e algum sacrifício pessoal, assim que essas qualidades são incorporadas e fazem parte da nossa natureza, agir no respeito por elas representa aquilo que nós queremos fazer e aquilo que nós realmente gostamos de fazer. Em última instância, a pessoa virtuosa é uma pessoa mais feliz porque evita o ressentimento, as recriminações e os desequilíbrios interiores que acompanham os vícios. Este processo pode ser facilitado pela educação, pelo contacto continuado com pessoas virtuosas e pelo hábito. A fruição da educação exige tempo livre e é por isso que Aristóteles nega aos escravos a possibilidade de acesso à felicidade. Só os homens livres e possuidores de alguma fortuna pessoal podem dedicar o seu tempo ao prazer, ao estudo e à cidade. Mas como se pode ser virtuoso? É sobretudo necessário muita prática e um gosto de fazer “coisas contidas” e um apreço pelo justo meio que Aristóteles define da seguinte maneira: o justo meio é fazer aquilo que devemos, quando o devemos e onde o devemos, relativamente às pessoas que devemos, pelo fim pelo qual se deve fazer e na forma pela qual deve ser feito. A doutrina do justo meio exige que se cultive as disposições para exercer o nível certo da acção ou do sentimento. Não é, portanto, a mesma coisa que a defesa da 16
mediocridade. Embora seja verdade que o nível certo fica entre o demasiado e o muito pouco, pode, contudo, ser muito intenso. O justo meio é, portanto, agir de acordo com o que diz a regra recta. Confúcio, nos Analectos, dirá que o justo meio é o respeito pelos ritos. Confúcio repete continuamente nos Analectos a máxima: “se o nobre desiste da prática dos ritos durante três anos, é certo que os ritos ficam em ruínas”. Paralelismo idêntico podemos constatar na proposição aristotélica da intenção recta e na máxima confuciana “não se desviar do caminho correcto”. Lendo a Ética a Nicómaco é fácil concluir que estas palavras poderiam ter sido ditas também por Aristóteles. Dito de outra forma, é a conformidade da acção à regra moral. As virtudes têm, na concepção de Aristóteles, a função de moderarem as paixões interiores e as actividades exteriores. Todas as virtudes controlam certas paixões para moderarem as actividades. Daí que a temperança surja, à luz do pensamento aristotélico, como uma das principais virtudes morais. Para se ser virtuoso é necessário ganhar o hábito de praticar actos virtuosos. É aquilo a que Aristóteles chama o estado habitual, ou seja, um estado intermédio entre a pura indeterminação da potência e a perfeita determinação do acto. Como se atinge o estado habitual? Será que é suficiente o estudo? Para Aristóteles, o estado habitual atinge-se pela repetição dos actos que procedem da virtude, isto é actos impregnados de razão. Assim sendo, podemos afirmar que a virtude é para Aristóteles um hábito: ao levar a efeito, obedecendo-lhe, um acto conforme à razão, a parte que deseja torna-se mais capaz de obedecer de novo à razão; a repetição de actos conformes à razão acaba de certa maneira por os racionalizar. O hábito, “ethos”, isto é a repetição de actos, permite-lhe ter esse capital de razão e isso é a virtude. A penetração da razão no desejo e a domesticação das paixões são os processos de constituição da virtude e é por essa razão que a virtude rectifica a intenção. Quanto mais a pessoa actuar de forma recta, isto é cumprindo a regra moral, mais facilmente realiza as coisas da virtude de uma forma estável e continuada. A pessoa continua a ser acometida de desejos e de paixões, mas uns e outros ficam submetidos ao poder da razão. Uma das etapas para alcançar o estado habitual da virtude é o domínio de si. Quando a pessoa é senhora de si, o espírito torna-se senhor do desejo, a razão domina as paixões e, embora as paixões e os maus desejos continuem a surgir, a pessoa limita-se a fazer aquilo que deve fazer, agindo de acordo com a razão e cumprindo a regra moral. A habituação à virtude liberta a pessoa do remorso e do arrependimento e leva-a a alcançar a felicidade, um estado de espírito caracterizado pela concórdia, a temperança e cumprimento do dever. A pessoa virtuosa é feliz porque alcança a plena harmonia e evita as perturbações do espírito. O virtuoso não tem nada a temer porque não subsiste nele a inclinação para o mal. Ao contrário de Platão que subordina a virtude à sabedoria, Aristóteles considera-as duas coisas diferentes, embora com pontos em comum. A virtude moral é um estado habitual que rectifica a intenção, é um hábito de fazer coisas rectas. A sabedoria é, para Aristóteles uma virtude intelectual. Sendo também um estado habitual, a sabedoria é um estado habitual que habilita o pensamento a encontrar a verdade. Enquanto a virtude moral é um estado habitual que habilita a pessoa a alcançar o justo meio, a virtude intelectual, a sabedoria, é um estado habitual que capacita o pensamento a encontrar a verdade. Quais são as virtudes morais acentuadas por Aristóteles? São todas aquelas disposições para o Bem que se submetem à alma racional. Aristóteles distinguia uma alma vegetativa, que incluiu todas as disposições relacionadas com a reprodução e os 17
apetites inferiores, uma alma sensitiva, que incluía todas as paixões, sensações e desejos, e uma alma racional, que incluía as disposições para o exercício das virtudes morais. Entre essas virtudes morais, Aristóteles coloca em lugares de destaque a coragem, que não é mais do que o justo equilíbrio entre o medo e a temeridade, a temperança, que é uma justo equilíbrio entre o desregramento e a insensibilidade, a mansidão, que é um justo equilíbrio entre a cólera e a apatia, a liberalidade, como justo equilíbrio entre a prodigalidade e a avareza, a magnificência, como justo equilíbrio entre a falta de gosto e a mesquinhez, a magnanimidade, como justo equilíbrio entre a vaidade e a humildade, a afabilidade, como justo equilíbrio entre a obsequiosidade e o espírito conflituoso, a reserva, como justo equilíbrio entre a timidez e o descaramento. A justiça merece um lugar à parte pelo facto de abranger todo o livro V da Ética a Nicómaco, ocupando, na verdade, um lugar central na filosofia moral de Aristóteles. A definição que se pode encontrar na Ética a Nicómaco é a seguinte: a justiça é esta espécie de disposição que torna os homens aptos a executar as acções justas, fazendo-os agir de modo justo e desejar as coisas justas. Ao longo do livro V da Ética a Nicómaco é possível encontrar definições mais particulares de justiça: observação e cumprimento das leis e aquilo que regulamenta as partilhas e as trocas de bens. Na verdade, Aristóteles distingue três espécies de justiça: a justiça distributiva, a justiça reparatória e a justiça de troca. A primeira ocupa-se da divisão dos bens entre as pessoas, proporcionalmente ao seu mérito. A segunda regulamenta as transacções de forma a suprimir os prejuízos causados e tomando em conta os prejuízos que possam ter resultado e o carácter intencional ou não, do delito. A terceira ocupa-se das relações comerciais e assenta na instituição da moeda. Para além disso, Aristóteles distingue a justiça natural da justiça positiva. A primeira é aquela que tem em todo o lugar a mesma força e não depende desta ou daquela opinião. A segunda é aquela que se pratica neste ou naquele país. Esta distinção permite a Aristóteles distanciar-se do relativismo dos sofistas que consideravam que, sendo o homem a medida de todas as coisas, a justiça seria também ela variável e relativa. Para Aristóteles, a justiça natural é absoluta e imutável, permitindo traçar hierarquias de conduta e valorar as acções de acordo com padrões de Bem e de Mal. Enquanto que, para os sofistas, a melhor justiça será aquela que permite aos mais fortes ou mais espertos retirarem o maior proveito, para Aristóteles, a justiça está relacionada com o justo equilíbrio, o justo meio e a rectidão. A temperança surge, em Aristóteles, como uma das principais virtudes morais. O que é que Aristóteles entende por temperança? É o hábito de controlarmos as nossas paixões e de procurarmos o caminho da moderação e do justo meio. Importa referir que a literatura grega há muito que se interessava pelos heróis submetidos ao império das paixões e da cólera. Um século antes de Aristóteles, Eurípedes, na Medeia, afirmava: “sou vencido pelo mal! Compreendo bem a enormidade do mal que vou fazer, mas a cólera é mais forte que as minhas reflexões!”. São Paulo, uns séculos mais tarde, diria: “faço o mal que não quero e não faço o bem que quero!” Notas 1) Aristóteles (1992). Eudemian Ethics. (Introdução e comentário de Michael Wood). Clarendon Aristotle Series. Oxford: Clarendon Press
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2) Aristóteles (1984). Nichomachean Ethics. (Introdução e notas de Terence Irwin). Indiana: Hackett 3) Aristóteles (1995). Les Grands Livres D`Éthique. Paris: Arléa 4) Aristóteles (1991). A Política. (Prefácio e tradução de Marcel Prélot). São Paulo: Livraria Martins Fontes
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EDUCAR EM VALORES Todos os sistemas filosóficos são determinados, pelo menos em parte, pelo pressuposto metafísico fundamental dos autores. No fundo, são possíveis duas grandes opções: a que está na linha de um idealismo mais ou menos puro e a que está na linha do positivismo mais ou menos empirista. Cada uma das direcções leva a resultados muito distintos. Os valores dependem, bastante, dos pressupostos metafísicos dos autores. Os autores idealistas tendem para a defesa da existência de alguns valores absolutos, em particular dos que derivam da razão axiológica e da razão lógica. Os autores positivistas tendem a defender a opinião de que não existem valores absolutos. Aos primeiros podemos chamar de absolutistas axiológicos. Entre os nomes cimeiros da axiologia absolutista e material, é justo referir Max Scheler, com uma obra muito importante, de que se pode destacar os dois volumes da Ética: Novo Ensaio de Fundamentação de um Personalismo Ético e Nicolai Hartmann, com uma obra igualmente monumental e de que se pode destacar o livro Ética. Aos segundos, chamamos de relativistas axiológicos. Entre uma e outra das posições é possível ainda, encontrar algumas variantes. O que é um valor? Nicolai Hartmann (1) define valor da seguinte forma: o valor é aquilo pelo qual as coisas têm o carácter de bens, quer dizer pelo qual elas são valiosas. Quintana Cabanas (2) dá a seguinte definição: um valor é a qualidade abstracta e secundária de um objecto, estado ou situação que, ao satisfazer uma necessidade de um sujeito, suscita nele interesse ou aversão por essa qualidade. O valor radica no objecto, mas sem o interesse de um sujeito, o objecto deixaria de ter valor. Os valores ideais são ideias consistentes e objectivas do mundo racional humano. Quais são as fontes dos valores? São as necessidades humanas, umas racionais e outras sensitivas. Aos valores que nascem das necessidades humanas racionais, chamamos de valores racionais. Aos valores que nascem das necessidades humanas sensitivas chamamos valores vitais. Só os primeiros podem aspirar à universalidade. Os restantes são produto dos contextos e das condições. São, portanto, relativos. Como se captam os valores? Marciano Vidal (3), na obra Moral de Atitudes responde que é de quatro formas: 1) por connaturalidade, vivendo num ambiente onde esses valores são apreciados; 2) através do exemplo; 3) por recusa, como reacção contra os valores desprezíveis; 4) pela razão e cognição, mediante processo lógicos e discursivos. Quintana Cabanas, na obra Pedagogia Axiológica afirma que é através da inteligência e do sentimento. É necessário que o sujeito faça uso não só da cognição mas também das emoções ou, dito por outras palavras, da inteligência cognitiva e da inteligência emocional. Max Scheler (4) e Nicolai Hartmann, não negam a importância do sujeito cognoscitivo, mas consideram que os valores se captam pelo sentimento. O modelo comunidade justa, inspirado na teoria do desenvolvimento cognitivo de Piaget e Kohlberg, pressupõe um uso quase exclusivo ou, pelo menos, preponderante, da inteligência cognitiva. O modelo da educação de carácter procura conciliar o uso da inteligência cognitiva com a inteligência emocional e o modelo da clarificação dos valores usa preferencialmente a inteligência emocional. O que é a escala dos valores? Existe uma escala de valores? Os autores que estabelecem uma distinção entre os valores racionais e os valores sensitivos costumam defender a existência de uma escala de valores, na qual os primeiros precedem os 20
segundos. Os autores fortemente influenciados pelo empirismo e positivismo tendem a negar a existência de uma escala de valores, porque afirmam que os valores não passam de preferências. Na verdade, podemos afirmar que há tantos valores como necessidades humanas. Contudo, nem todos os valores são da mesma espécie. Os valores racionais têm uma dignidade diferente dos valores sensitivos. Daí que se possa falar numa graduação de valores, um conceito que tem sentido tanto a respeito dos valores de um sujeito (escala subjectiva), como a respeito dos valores em si mesmos (escala objectiva), uma vez que corresponde a uma hierarquia de necessidades comuns a todos os sujeitos racionais. Esta hierarquia de necessidades inclui não só as necessidades biológicas e sensitivas, mas também as necessidades racionais, estratificadas estas últimas em necessidades culturais, estéticas, religiosas e morais. Manuel Patrício (5), em Lições de Axiologia Educacional, dá a seguinte definição da classificação de valores: "a classificação dos valores é o quadro das classes fundamentais de relações de essência apriórica dos valores". Há inúmeras escalas de valores. Deixamos aqui apenas as que consideramos mais fundamentadas. Para Platão, o bem é o valor supremo. A beleza é o esplender da verdade, a qual surge em terceiro lugar na sua escala, logo seguida da sabedoria e, em último lugar, o prazer. Para Aristóteles (6), na Ética a Nicómaco, em primeiro lugar vêm os valores que são dignos da felicidade, depois os que são dignos de admiração, de seguida, os que são dignos de amor e, por último, o honorável, o belo e tudo o que não é mau. Max Scheler divide os valores em sensíveis e espirituais. Os sensíveis incluem os hedonísticos e os vitais. Os espirituais incluem, por ordem crescente de importância, os estéticos, os éticos, os lógicos e os religiosos. A escala de Louis Lavelle (7), na obra Tratado dos Valores inclui três patamares: os valores que pertencem ao mundo (económicos e afectivos); os valores que permitem contemplar o mundo (intelectuais e estéticos); os valores que transcendem o mundo (morais e os religiosos). O axiólogo espanhol José Maria Mendez (8), na obra Valores Éticos oferece-nos a seguinte escala: valores físicos e económicos; valores éticos, valores estéticos; valores ascéticos. Os valores éticos podem ser de três tipos: de autodomínio ( que inclui a sobriedade e a temperança); de justiça (que inclui a equidade e a solidariedade); de respeito ( que inclui a paz e o amor à natureza). Manuel Patrício, na obra Lições de Axiologia Educacional propõe uma escala com as seguintes ordens de valores: vitais, práticos, hedonísticos, estéticos, lógicos, éticos e religiosos. Os valores são absolutos ou relativos? A resposta a esta questão tem enormes consequências tanto nos juízos como na conduta. Se todos os valores são relativos, o professor pouco poderá fazer, devendo limitar-se a dar a máxima liberdade ao aluno para que ele estabeleça as suas preferências de valores. O modelo da clarificação de valores baseia-se neste argumento. Se há valores absolutos, ou seja, se a sua justificação é universal, o professor não pode abandonar o aluno a uma mera estimativa espontânea, devendo, pelo contrário, ensinar o aluno a valorar correctamente e a respeitar a hierarquia de valores. Será que a hierarquia de valores é objectiva, ou seja, prescreve valores universais? Para os relativistas axiológicos, a prova da relatividade dos valores reside no facto de existirem imensas variações valorativas, devendo concluir-se que todos os valores dependem dos lugares e das épocas. Para os absolutistas axiológicos, inspirados pelo racionalismo e pelo idealismo, há valores que são independentes das estimativas 21
individuais e que não dependem nem das épocas nem dos lugares. Os valores racionais são, precisamente, desse tipo. Os valores sensitivos, pelo contrário, são relativos e dependem das circunstâncias, dos lugares e das épocas. Como podemos justificar a existência de valores racionais absolutos? Precisamente porque os valores racionais respondem a necessidades da razão e que estas se expressam através de princípios facilmente aceites por todos os sujeitos que saibam raciocinar bem. A educação moral é apenas um dos âmbitos da educação axiológica. Manuel Patrício define a educação axiológica como a educação impregnada de valores. Quintana Cabanas define a educação axiológica como o processo pelo qual o educando vai adquirindo os valores adequados e segundo a sua hierarquia e os vai traduzindo em obras. Vejamos, então, as respostas que o modelo da educação do carácter dá às questões desenvolvidas atrás. O modelo da educação de carácter é fortemente influenciado pela teoria moral de Aristóteles. Os seus representantes mais conhecidos são os educadores norte-americanos Edward Wyne, Thomas Lickona (9), William Bennet, Kevin Ryan e Stephen Tigner (10). Estes autores consideram que a principal finalidade da Educação é ensinar a compreender e a apreciar o Bem. A noção de Bem que estes autores defendem está próxima da concepção aristotélica. A felicidade é o Supremo Bem e o propósito da vida é a procura da felicidade. A forma de se alcançar a felicidade é procurar levar uma vida virtuosa. A virtude máxima é o justo meio, o qual se pode alcançar através do treino, do hábito, do contacto com bons exemplos, com a leitura de grandes obras ou o contacto com grandes homens e grandes mulheres. Agir com prudência, respeitar a autoridade, ser responsável para com os nossos colegas e os nossos superiores, cumprir as nossas obrigações, apreciar as relações de cortesia, escolher e agir com moderação, ser capaz de adiar as gratificações, ser industrioso e trabalhador, tais são as virtudes ou os valores básicos que unem os esforços educativos destes autores. A ênfase é colocada na acção moral e não no desenvolvimento do raciocínio. Ao contrário de Sócrates e de Platão que afirmavam que “aquele que conhece o Bem praticará o Bem” ou que “o mal é uma questão de ignorância”, estes autores optam pela posição aristotélica de que a procura da Virtude e do Bem é um processo inacabado que associa reflexão, prática e treino, até que a disposição para a prática do Bem se torne um hábito que se pratica naturalmente, sem precisar de reflexão. O objectivo é levar o aluno a incorporar o hábito, isto é, uma disposição natural, para optar pelo respeito dos valores básicos e para o fazer com gosto e com contentamento. À semelhança de Aristóteles que afirmava ser a opção pela Virtude o caminho mais certo para a felicidade, porque a vida virtuosa traz contentamento, tranquilidade e serenidade, estes autores apostam numa educação que privilegie a defesa dos valores tradicionais e o papel da influência dos pais e dos professores, assumidos como modelos e exemplos para os alunos. A ênfase que este modelo curricular coloca na conduta moral leva estes autores a defenderem o envolvimento dos alunos em actividades de voluntariado social, do tipo entreajuda e caritativo, de forma que eles possam desenvolver a disposição natural e o hábito para ajudar os outros e preocuparem-se com os que sofrem. A crítica que os autores que defendem este modelo fazem às abordagens cognitivistas é que a reflexão não é suficiente para educar o carácter das novas gerações. O hábito é considerado bem mais importante. Ora, o hábito não se molda pela reflexão, mas sim pela prática, pelo treino e pelo contacto com bons exemplos. Daí que o modelo da educação do carácter chame a atenção para a utilização dos três “Es”, as três estratégias essenciais: exortação, exemplo e envolvimento. Essas estratégias estão
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presentes noutros programas de educação de carácter, como por exemplo, no programa criado por Thomas Lickona, no Center for the 4th and 5th “Rs”. Estratégias para a sala de aula O professor como mentor e modelo Tratar os alunos com carinho e respeito Uma sala de aula acolhedora Levar os alunos a cuidarem uns dos outros Disciplina moral Usar as regras para desenvolver a moralidade Uma sala de aula democrática Participação dos alunos na tomada de decisões Ensinar valores através do currículo Usar os conteúdos disciplinares para desenvolver a moralidade Ensino cooperativo Ajudar os alunos a cooperarem Clima de responsabilidade Desenvolver a responsabilidade e o gosto pelo trabalho bem feito Reflexão ética Desenvolver o raciocínio moral através da leitura e da discussão Resolução de conflitos Ensinar os alunos a superar os conflitos sem violência Estratégias para toda a escola Uma escola onde todos se respeitam e se preocupam uns com os outros Um clima moral na escola Um código de conduta respeitador dos valores básicos Pais e comunidade como parceiros Colaboração escola-família-comunidade Uma escola acolhedora
Quintana Cabanas, fazendo uso da sua teoria antinómica da educação, parte da necessidade de construir um meio termo entre duas antinomias básicas: a educação moral como produto do saber e da reflexão e a educação moral como produto do treino e do hábito. A concepção antinómica da educação leva o pedagogo espanhol a recusar tanto uma visão antropológica optimista como o pessimismo antropológico, optando, ao invés, por aquilo a que chama de realismo antropológico. Quer isto dizer que a natureza humana predispõe o homem para fazer o bem, mas todas as pessoas possuem algumas deficiências naturais que precisam de ser corrigidas e aperfeiçoadas pela educação. Ao contrário do modelo da clarificação dos valores e do modelo cognitivista, que partilham uma visão antropológica romântica, Quintana Cabanas reconhece a necessidade de uma boa educação moral que limite e corrija algumas inclinações naturais e apetências espontâneas da criança, levando esta a respeitar, aceitar e seguir normas morais que se traduzam em boas disposições morais e hábitos morais correctos. Consciente de que as maiores limitações dos modelos contemporâneos da educação moral, em particular do modelo da clarificação de valores e do modelo cognitivista de Kohlberg, residem no facto de terem optado apenas por uma das dimensões do desenvolvimento moral, no primeiro caso, a dimensão afectiva e, no segundo caso, a dimensão cognitiva, Quintana Cabanas opta por apresentar e justificar uma teoria da educação moral integral, capaz de incluir todos os domínios, todos os âmbitos e todos os níveis da moralidade e da ética. No que diz respeito aos âmbitos, Quintana Cabanas acentua a necessidade de a educação valorizar, igualmente, a razão, 23
as emoções e a vontade, ou seja, o domínio cognitivo, o domínio afectivo e o domínio volitivo. Ora o que se passa com os anteriores modelos é que se assiste, em qualquer dos casos, à subvalorização de, pelo menos, um destes domínios, sendo essa a principal razão da sua ineficácia na promoção do desenvolvimento integral dos alunos. Para além desta limitação, o pedagogo espanhol acentua uma outra que tem a ver com o campo da educação moral. Com efeito, a educação moral inclui um campo pessoal e um campo social e cada um destes campos pode exprimir-se numa moral mínima ou numa moral superior. Assim, tanto o modelo da clarificação dos valores como o modelo cognitivista de Kohlberg consideram apenas o campo social e o nível da moral mínima. Consideram apenas o campo social porque reduzem a prática moral ao âmbito da convivência nos grupos e respeito pelos contratos, como expressão de uma moralidade justicialista ou discursiva, assente na teoria do contrato social que deixa de fora não só a formação dos sentimentos morais, como também das atitudes e hábitos morais. A parcialidade e reducionismo do modelo cognitivista de Kohlberg é justamente evidenciado pela forma como ele encara a finalidade da educação. Em vez de optar por uma ética máxima, capaz de integrar a finalidade da promoção do bem e do amor, para além da justiça, o modelo de Kohlberg fica-se por uma ética mínima, meramente formalista e discursiva, inteiramente centrada na promoção da autonomia. Importa, no entanto, questionar para que serve essa autonomia. Evidentemente que a autonomia não pode ser considerada um fim, como o pretende Kohlberg, mas sim um meio que pode ser usado para o bem ou para o mal. A autonomia é um valor apenas quando ela é posta ao serviço de uma adequada hierarquia de valores que leve o educando a reconhecer, a respeitar, a preferir e a encarnar no seu comportamento os valores superiores. A História da Humanidade e a nossa experiência de vida têm-nos mostrado a existência de muitas pessoas autónomas incapazes de optarem pelo bem, pelo que é justo dizermos, como o faz Quintana Cabanas, que vale mais uma moralidade heterónoma, numa pessoa capaz de uma boa conduta moral, do que um discurso ético pós-convencional sem correspondência com uma conduta reveladora do respeito pelos outros, preocupação com o bem estar dos outros e orientada para o amor. Max Scheler (11), um dos maiores axiólogos de sempre, refere-se, assim, aos limites da intuição autónoma: "El justo principio de la intuitividad autónoma en todo o ser moralmente valioso y en toda conduta autónoma no exige, en absoluto, que el individuo logre la intuicíon moral fáctica de lo bueno y lo malo mediante su propria penetracíon subjectiva en lo intuitivo. El camino hacia la intuicíon de los valores puede muy bien ser facilitado por la autoridad, la tradicíon o el seguimiento de una persona modélica". Quintana Cabanas (12) enuncia, assim, as seguintes limitações do modelo cognitivista de Kohlberg: "Al sistema de educación moral proposto por Kohlberg le hacemos varios reproches: 1º al ser cognitivista, reduce la educación moral a la formación del juicio moral, descuidando la formación de los sentimientos morales, de las actitudes morales y de los hábitos morales ( o virtudes, que rechaza de un modo expresso); 2º al ser formal no quiere inculcar principios morales ni normas morales, ni promover tipos de conducta moral; 3º siendo democrático, lo confia ingenuamente todo a la iniciativa de los proprios educandos". Portanto, ao contrário do que defende Kohlberg, a educação moral tem que ser encarada de forma integral, não deixando de fora nenhuma dimensão, domínio ou nível, porque a virtude não pode prescindir nem da sabedoria, nem da promoção do carácter, nem do autodomínio, nem da autodeterminação. No primeiro caso - sabedoria - estamos a integrar a tradição socrática da reflexão, da argumentação e do uso da razão. No segundo caso - carácter integramos a tradição aristotélica do exercício, do treino, do exemplo e dos hábitos. No 24
terceiro caso - autodomínio - chamamos a nós a tradição estóica, bem expressa nas obras de Séneca, Cícero ou Marco Aurélio. No quarto caso - autodeterminação lembramos a ética formalista kantiana. Ora o que acontece com o modelo cognitivista de Kohlberg é que apenas integra a ética formalista kantiana, complementando-a com a ética discursiva e comunicacional de Habermas. Quintana Cabanas apelida essa ética de ética média - e não máxima - porque lhe faltam os conteúdos morais, desvaloriza a conduta moral e confunde desenvolvimento moral com a prática da justiça, esquecendose da existência de uma ética superior baseada no respeito, na benevolência e no amor. A justiça é apenas uma das virtudes e não a única como Kohlberg pretende. Importa uma referência breve à crítica que Quintana Cabanas faz ao carácter redutor e formalista da ética discursiva de Habermas (13) que tanta influência teve em Kohlberg. Para o filósofo da Escola de Frankfurt, autor da teoria da acção comunicativa, o homem caracteriza-se por ser capaz de comunicar, sendo através do diálogo que ele se realiza a si próprio como ser social, visto que a comunicação constitui, também, um instrumento capaz de dar forma à acção social, no sentido da mudança e da transformação. Habermas propõe um conjunto de condições para que o discurso possa ser considerado válido. Essas condições podem resumir-se na ideia de que a validade do discurso depende da livre crítica de todas as opiniões e da continuação do diálogo e do debate até que seja possível construir o consenso entre os interlocutores que, através de um processo de negociação colectiva, superam os seus interesses egoístas a favor de um bem comum mais geral. O discurso ideal é aquele que se faz no respeito pelas regras democráticas e o processo de deliberação depende dos melhores argumentos apresentados. Decorre daqui, a importância da competência linguística e da capacidade de argumentação, visto que a verdade, no entender de Habermas, é uma construção cooperativa. Portanto, as normas morais são produto da construção colectiva, através da acção comunicativa, não fazendo sentido apelar a normas ideias, porque cabe a cada grupo social construir as suas normas morais através do diálogo comunitário. Embora a ética discursiva de Habermas apareça embrulhada, de forma vistosa, nos conceitos de diálogo e consenso, a verdade é que não resiste a uma crítica profunda, porque deixa de fora do processo de "construção" dos valores, as pessoas que não têm voz, as que não possuem competências linguísticas e as que não sabem argumentar bem e falar em público. Em última instância, a ética discursiva é uma ética dos poderosos, não já apenas daqueles que detêm o poder económico ou militar, mas sobretudo dos que detêm o poder da comunicação. Nesse sentido, não pode aspirar a ser uma ética universal. Mas, mesmo que fosse possível criar uma comunidade comunicacional universal, a ética discursiva de Habermas não conseguiria dar uma resposta convincente ao modo como os sujeitos captam os valores. Se os valores fossem objecto de construção pelo sujeito, então haveria tantos valores quantas construções os sujeitos fossem capazes de realizar. A ser assim, teríamos de admitir que todos os valores são subjectivos e relativos. Contudo, os valores superiores (os lógicos, os estéticos, os éticos e os espirituais) são objectivos exigindo, por isso, uma axiologia material e não meramente formal, como é a axiologia de Habermas. Se há valores objectivos, então é porque eles não são o produto de construções do sujeito, mas sim essências ou ideias consistentes e objectivas do mundo racional humano que se impõem ao sujeito e que este deve captar e respeitar segundo uma hierarquia correcta. Manuel Patrício (14) resume, desta forma, as teses principais da doutrina dos valores objectivos: "os valores não são simples propriedades que estão dadas como coisas a que nós chamamos bens; o ser dos valores é independente das coisas e das suas estruturas reais; os valores são essências, constituindo um domínio especial dos objectos com as suas particulares relações e conexões; as qualidades axiológicas diferem das outras qualidades, 25
propriedades ou força das coisas; os bens não são valores, mas depositários ou portadores dos valores - sejam pessoas, coisas ou acções -; só nos bens os valores se tornam reais; os valores são objectos ideais, não reais". Ao contrário de Habermas ou de Kohlberg, o pedagogo espanhol chama a si um conjunto de tradições morais que importa iluminar para podermos formular uma teoria da educação moral integral. Por um lado, a tradição aristotélica que faz apelo a uma educação da temperança, da coragem e da prudência, para além da justiça. Por outro lado, uma tradição cristã e evangélica que faz apelo à reciprocidade, ao respeito, ao testemunho, ao sacrifício e ao amor. Por fim, uma tradição crítica, formalista e liberal que faz apelo à autodeterminação, à liberdade e à autonomia. Ora o modelo cognitivista de Kohlberg limita-se a lembrar a tradição crítica, formalista e liberal. Não admira, portanto, o seu carácter redutor. Quintana Cabanas (15) caracteriza, da seguinte forma, as limitações de uma ética meramente discursiva e justicialista: "Nosotros opiniamos que la educación moral tiene otros objetivos, y que el de la autonomia moral no es el más importante. En primero lugar porque no es accesible a todos: todas las personas, inclusive los niños pequeños, los individuos de mentalidad primitiva y los débiles mentales han que praticar la moralidad; pero le de esos grupos mencionados no puede ser una moralidad autónoma, sino que sólo será una moralidad heterónoma. La autonomía moral, pues, más que un objetivo de la educación moral, es un ideal suyo, muy deseable. Pero téngase en cuenta, además, que en la moralidad humana lo que más cuenta no es la independencia del juicio moral personal, sino más bien la práctica efectiva de la moralidad (ni que sea heterónoma)." Em que consiste a tradição aristotélica, tão esquecida e desvalorizada, nos nossos dias, por grande parte dos autores que têm escrito sobre educação moral? Em primeiro lugar a concepção antinómica do justo meio, a qual considera que a virtude moral é um justo meio entre dois vícios, um marcado pelo excesso e outro pelo defeito. Por outro lado, a teoria de Aristóteles sobre o papel da prudência na boa deliberação. A prudência, ou sabedoria prática, permite a escolha dos meios correctos para a prossecução dos fins que valem a pena. A educação da prudência é o resultado da experiência, da reflexão e do bom senso. A educação da justiça é o resultado não apenas da reflexão, como pretende Kohlberg, mas também do contacto com bons exemplos e da realização repetida de acções justas que, através do exercício, se tornam um hábito. O justo é aquele que incorporou, nos seus hábitos, a gratidão, a equidade e a liberalidade. O homem temperado é o que dá mostras de moderação, sobriedade e modéstia. O homem de coragem sabe ser paciente, perseverante e magnânimo. O homem prudente faz uso da precaução, da previsão e da circunspecção. É evidente que a justificação destas virtudes é tão antiga como as obras de Aristóteles Ética a Eudemo e Ética a Nicómaco. Mas não é por terem sido justificadas em textos que têm cerca de 25 séculos que elas deixaram de ser necessárias. Para além de outras razões, o que faz a modernidade e a eficácia do modelo de Quintana Cabanas é precisamente a eleição destas virtudes cardinais como conteúdos morais nos programas da educação moral. A par das virtudes cardinais, Quintana Cabanas elege como conteúdos da educação moral o exercício da vontade, o desenvolvimento de competências reflexivas, a formação dos hábitos morais e o fortalecimento do carácter. A selecção das estratégias está condicionada pelo nível de educação moral que se pretende atingir. Para uma ética mínima, ou seja, uma ética apenas preocupada com o cumprimento das leis, com o objectivo de evitar a punição, com o cumprimento dos contratos e com o respeito pelas normas de convivência social, basta o uso dos métodos dialógicos, baseados na discussão de dilemas, tomada de papéis e clarificação de valores e dos métodos directos, baseados na exortação e na exposição. Para uma ética média, ou 26
seja, preocupada com a decência, os bons costumes, o respeito dos deveres, o cumprimento das obrigações e a equidade e reciprocidade no tratamento com os outros, Quintana Cabanas recomenda o uso de métodos indirectos, baseados no exemplo do professor e no clima da sala de aula. Para uma ética máxima, ou seja, uma ética que vai para além da justiça e que incorpora a benevolência, o sacrifício e o amor, Quintana Cabanas recomenda a leitura e discussão das grandes narrativas morais, as reveladas e as outras, a utilização da estratégia do testemunho e o contacto com modelos. Ao contrário do modelo cognitivista de Kohlberg e do modelo da clarificação de valores, que olham para os conteúdos morais como um dispensável "saco de virtudes", o modelo de Quintana Cabanas encara a conduta moral como um dos vértices de qualquer programa de educação moral, ao lado do conhecimento do bem (exercício da razão) e dos sentimentos e dos afectos (amar o bem). Um outro aspecto que separa o modelo de Quintana Cabanas do modelo da clarificação dos valores e do modelo de Kohlberg é a questão do papel da vontade na educação moral. Para Quintana Cabanas, o exercício da vontade é considerado um importante conteúdo moral, pelas seguintes razões: 1) a vontade impõe o império da razão; 2) submete os sentidos à Lei Moral e; 3) modera as paixões e os apetites. No que diz respeito aos objectivos da educação moral, regista-se, igualmente, uma grande diferença entre o modelo de desenvolvimento moral integral e os outros dois modelos. Para o modelo da clarificação de valores, o grande objectivo da educação moral é levar o aluno a clarificar os seus próprios valores e a proceder à suas escolhas, de acordo com a sua consciência, os seus interesses e pontos de vista. Para o modelo de Kohlberg, o principal objectivo é o desenvolvimento do raciocínio moral e a progressão na sequência dos estádios do desenvolvimento do juízo moral. Quintana Cabanas não dissocia nenhum dos seguintes três objectivos: conseguir que o aluno conheça as normas morais; conseguir que ele respeite essas normas na sua conduta; fazer com que o aluno queira superar-se na sua vida moral, aspirando a uma ética máxima e a uma moral superior. Evidentemente que se o modelo de Quintana Cabanas aponta para uma ética máxima, enquanto os outros dois modelos se ficam por uma ética média, há que reconhecer a existência de profundas diferenças em relação às estratégias e aos papéis do professor. Consciente de que a educação moral, o carácter e a conduta são condicionadas pela cultura, pela ética e pela moral, Quintana Cabanas não poderia deixar de dar importância ao papel da identificação cultural no processo de descoberta e recepção dos valores. É precisamente na questão do papel da identificação cultural que o modelo de Quintana Cabanas se afasta do modelo de Kohlberg. O primeiro faz apelo a uma tradição cultural que importa dar a conhecer às novas gerações. Decorre dessa necessidade, a utilização das grandes narrativas como estratégia de educação moral. O modelo de Kohlberg, pelo contrário, aposta na construção dos valores, pelos próprios alunos, com o recurso à reflexão crítica, ao conflito cognitivo e à discussão de dilemas. Para o modelo do desenvolvimento moral integral, os valores são descobertos e interiorizados pelos alunos. Para o modelo cognitivista, são construídos. A diferença entre processo de descoberta e processo de construção dos valores revela-se de extrema importância. Se os valores são construídos pelos alunos, como pretende Kohlberg, então não existem normas naturais e racionais de moralidade que se impõem à consciência humana de uma forma objectiva e absoluta. Se os valores são descobertos pelos alunos, então existe uma Lei Moral, natural e racional que se impõe à espontaneidade e liberdade do educando, porque se entende que a liberdade autêntica não é mais do que um instrumento para fazer o bem, quer dizer cumprir a Lei Moral. Daí que o pedagogo espanhol agrupe as estratégias em três tipos: as que dizem respeito 27
ao papel da identificação cultural, as que se referem à reflexão crítica e as que são do domínio dos afectos e dos sentimentos. O primeiro tipo faz apelo à teoria da aprendizagem social, o segundo tipo, à teoria cognitivista e o terceiro à teoria personalista. As estratégias que dizem respeito à identificação cultural têm que ver com os conhecimentos e os saberes. As que dizem respeito à reflexão crítica estão relacionadas com o exercício da razão, com a cognição e o juízo moral. As terceiras estão relacionadas com a vontade e a acção. Quanto às competências, Quintana Cabanas oferece-nos um quadro complexo e abrangente, mostrando saber fazer uso de uma ampla paleta de cores. Uma educação orientada pelos valores exige que o professor saiba aceitar-se como modelo, saiba argumentar com os alunos acerca de dilemas éticos, seja capaz de exprimir a sua visão moral, consiga promover uma relação empática, conheça e saiba aplicar as competências de moderador e seja capaz de envolver os alunos na acção moral. Se compararmos estas competências com as que o modelo da clarificação dos valores e o modelo cognitivista de Kohlberg acentuam, veremos, com exactidão, o carácter mais abrangente do primeiro. Com efeito, para o modelo da clarificação dos valores, o professor necessita de desenvolver competências que o habilitem a moderar as discussões e a estabelecer uma relação de ajuda e de facilitação. Para o modelo de Kohlberg as principais competências do professor dizem respeito à moderação da discussão de dilemas éticos e à dinamização de processos deliberativos e de tomada de decisões. Ora o modelo de Quintana Cabanas exige do professor o domínio de muito mais competências. Outra coisa não seria de esperar de um modelo intencionalmente dirigido para o desenvolvimento moral integral dos alunos. Manuel Patrício (16) considera que a axiologia educacional é fundamental para o professor, pois não há educação sem valores e o compromisso educativo não é possível fora do compromisso dos valores. E justifica: "em primeiro lugar, a decisão humana de educar e ser educado só é inteligível à luz de um referencial axiológico. Com efeito, a própria educação é um bem geral constituído por um complexo de bens particulares. O bem mais geral que se visa é a perfeição do educando: do homem enquanto sujeito de actos intencionais educativos. Há em cada homem um potencial de ser que se quer actualizar o mais possível com a educação. As actualizações concretas são bens particulares ordenados para o bem geral e dele, afinal, constituintes. Esse bem geral é a síntese de um complexo axiológico: é, em certo sentido, a configuração em um único valor de uma multiplicidade estruturada de valores" (17). E Manuel Patrício identifica as seguinte ordens de valores: "aceitamos, simplificadamente, que as grandes ordens de valores a promover pela educação são as seguintes: a do prazer; a da verdade; a da beleza; a do bem; a do sagrado ou do divino" (18). Com respeito à debilidade, indiferença e confusão axiológicas da nossa época, Manuel Patrício acrescenta: "a nossa época tem uma tremenda labilidade axiológica. Vivemos axiologicamente, sobre areias movediças. Essa difícil situação humana repercute-se com particular violência na educação, sendo factor de insegurança e angústia para os educadores profissionais que são os professores. Confrontam-se eles, na sua navegação quotidiana, com inúmeras dificuldades ou perigos, os quais convém analisar. Assinalemos, à cabeça, o perigo do niilismo. No seu limite extremo, o niilismo é a própria negação dos valores...Um segundo perigo - ou uma segunda dificuldade com que se confronta hoje o educador é o neutralismo axiológico. Consiste na ausência de referências axiológicas para o acto educativo. A educação é esvaziada de valores. Sob o pretexto de que é perigoso endoutrinar, inculcar valores, pugna-se pelo esvaziamento axiológico da acção educativa...O positivismo é um terceiro obstáculo colocado no quotidiano do trabalho educativo do professor. Qual é, do ponto de vista 28
axiológico, a postura positivista? É a seguinte: o que é, é o que deve ser. Ou seja, o positivo é idêntico ao normativo. O dever e o direito reduzem-se, pois, ao facto. Não há valores, só há factos" (19). Se o relativismo axiológico radical constitui um dos grandes males contemporâneos, então talvez a ética aristotélica possa ser um bom remédio para tamanha indiferença face aos valores e à hierarquia dos valores. Não se pretende um regresso, puro e simples, à ética magistralmente desenvolvida pelo estagirita e que tanta influência teve na formação da civilização cristã ocidental, graças ao trabalho intelectual de grandes nomes da cristandade medieval, como Alberto Magno ou Tomás de Aquino. Mas, também, se reconhece que a actual indiferença e ignorância da ética aristotélica deixou o caminho aberto para o avanço das éticas formalistas e discursivas, sem conteúdo nem objecto, e que tanta influência têm tido na difusão da vulgaridade cultural e do relativismo ético contemporâneos. Talvez, a incorporação de uma ética das virtudes, tal como Aristóteles a desenvolveu e Tomás de Aquino actualizou, possa ajudar a iluminar o caminho de todos os que teimam em querer fazer perdurar a identidade cultural e axiológica que tem feito a grandeza da civilização ocidental. A ser assim, a educação ministrada no seio das sociedades que pertencem à civilização ocidental tem de respeitar e promover a estrutura axiológica que constitui essa civilização. Notas 1) Hartmann, N. (1932). Ethics. 3 volumes. Londres: George Allen and Unwin 2) Quintana Cabanas (1995). Pedagogia Moral: El Desarrollo Moral Integral. Madrid: Dykinson 3) Vidal, M. (1983). Moral de Atitudes. 3 volumes. Aparecida: Editora Santuário 4) Scheler, M. (1955). Le Formalisme en Éthique et l`Éthique Matériale des Valeurs. Essai Nouveau pour Fonder un Personnalisme Éthique. Paris: Gallimard 5) Patrício, M. (1993). Lições de Axiologia Educacional. Lisboa: Universidade Aberta 6) Aristóteles (1985). Nichomachean Ethics. Indianapolis: Kackett 7) Lavelle, L. (1955). Traité des Valeurs. Paris: PUF 8) Mendez, J. M. (1985). Valores Éticos. Madrid: Ed. Estudios de Axiologia 9) Lickona, Th. (1991). Education for Character: How our Schools can Teach Respect and Responsability. Nova Iorque: Bantam Books 10) Tigner, S. ( 1996). "Peace education: A more just and caring way". Journal for a Just and Caring Education, vol. 2, nº 4, 349-360 11) Scheler, M. (1941). Ética. Nuevo Ensayo de Fundamentacíon de un Personalismo Ético. Tomo I. Madrid: Revista de Occidente, p. 309 29
12) Quintana Cabanas, J. M. (1995). Pedagogia Moral: El Desarrollo Moral Integral. Madrid: Dykinson, p. 619 13) Habermas, J. (1995). Consciência Moral e Acção Comunicativa. Lisboa: Editorial Presença 14) Patrício, M. (1993), op. cit. p. 250 15) Quintana Cabanas, J.M. (1995). op. cit. 621 16) Patrício, M. (1993). op. cit. p. 20 17) Patrício, M. (1993). op. cit. p. 20 18) Patrício, M. (1993). op. cit. p. 21 19) Patrício, M. (1993). op. cit. p. 22
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METODOLOGIAS DE EDUCAÇÃO EM VALORES A axiologia educacional contemporânea e, em particular, o pensamento axiológico de grandes nomes da axiologia material e objectivista, como são os casos de Nicolai Hartmann, Max Scheler e Louis Lavelle, permite-nos concluir o seguinte: 1) a educação em valores não se faz com o recurso à criação de uma disciplina para ensinar valores; 2) é necessário que a escola faça referência às hierarquias dos valores; 3) a escola deve acentuar a existência de valores absolutos, recusando o relativismo axiológico radical, expresso na valorização da ética formal e discursiva; 4) a escola não pode limitar-se a acentuar uma ética mínima e a ignorar os valores estéticos, os valores lógicos e os valores religiosos; 5) ao nível das metodologias, a escola não deve limitarse a acentuar os métodos que são próprios de uma axiologia formalista, focada no desenvolvimento do raciocínio moral e das capacidades de comunicação, ignorando os métodos próprios de uma axiologia material, assente na necessidade de os alunos captarem e receberem os valores objectivos. No fundo, não vale a pena investir em programas de educação em valores que ofereçam uma educação moral meramente formalista, que subvalorize a dimensão afectiva e a dimensão volitiva e esqueça que a educação em valores não pode reduzir-se à educação moral. Uma verdadeira educação em valores tem que possuir um enquadramento antropológico e filosófico sólido e seguro, deve ser abrangente, ou seja, incluir não só o domínio cognitivo, mas também os domínios afectivo e volitivo e alargar o seu campo não só aos valores sociais, mas também aos valores pessoais. Para além disso, deverá propor escalas de valores e acentuar o respeito pelas hierarquias de valores, ajudando o aluno a ser capaz de sacrificar os valores mais baixos aos valores mais elevados. A ideia de que escolher o Bem é preferir os valores superiores aos valores inferiores é uma ideia central em qualquer programa de educação em valores. A ineficácia da maior parte dos programas de educação em valores resulta do facto de estarem impregnados da ideia de que os alunos são capazes de construir os valores. Trata-se, no fundo, de alargar, à educação em valores, a perspectiva construtivista da aprendizagem. Se os valores puderem ser construídos pela criança, então temos de admitir que não existe qualquer objectividade nos valores e que estes não passam, portanto, de preferências e estimativas individuais. A consequência disto é, na melhor das hipóteses, o cepticismo axiológico e, na pior das hipóteses, a ausência de valores. Ora, todos os grandes axiólogos, nomeadamente Max Scheler, Nicolai Hartmann, Louis Levelle e René le Senne partilham a noção da existência de valores absolutos que se impõem ao sujeito e que podem ser conhecidos, captados e recebidos, mas que não podem ser construídos. Estão neste caso, os valores lógicos, os valores éticos e, em certa medida, todos os valores ideais e racionais. A opção pelo construtivismo faz com que a maior parte dos actuais programas de educação em valores não possam sugerir as metodologias que melhor ajudam o aluno a captar os valores, a respeitar os valores, a preferir os valores superiores aos valores inferiores e a encarná-los na sua conduta. É essa a razão pela qual se subvalorizam os métodos mais adequados e mais eficazes da educação em valores: o exemplo, o testemunho (Max Scheler chama-lhe o "seguimento"), a exortação, o contágio e o exercício repetido de forma a criar hábitos (Aristóteles chama-lhe a "segunda natureza"). É evidente que a discussão de dilemas, o debate de problemas e os jogos de papéis também são importantes, mas são-no apenas para o desenvolvimento do raciocínio moral, o qual é apenas um aspecto, e não o mais importante, de uma educação em valores. 31
A sobrevalorização que os programas de educação em valores fazem da autonomia, encarando-a como um fim em si mesmo, não poderia deixar de conduzir à defesa radical de uma liberdade do educando desprovida da responsabilidade, esquecendo o que Leibniz disse acerca da liberdade: é-se tanto mais livre quanto mais se age segundo a Razão. A divinização da autonomia ignora uma realidade muito simples: vale mais um aluno moralmente heterónomo, mas capaz de uma conduta respeitadora da Lei Moral, do que um aluno perito na formulação de juízos morais autónomos e pós-convencionais, mas incapaz de uma conduta moral adequada. A divinização da autonomia moral é uma falácia, portanto. A criança, ao contrário do que defende um certo romantismo pedagógico, é um ser imaturo que precisa do professor para o orientar no processo de valoração. É preciso não esquecer que a educação em valores é o processo pelo qual o educando vai adquirindo os valores adequados e segundo a sua hierarquia correcta e os traduz em obras. Quer isto dizer que a educação em valores não é apenas, nem sobretudo, desenvolver, nos alunos, competências discursivas, como parecem propor os modelos formalistas e cognitivistas. Justifica-se, por último, que aborde aqui as limitações da ética discursiva, tal como tem sido proposta por vários autores contemporâneos, como por exemplo Kohlberg e Habermas, pelo facto de a maior parte dos actuais programas de educação em valores estarem, também, impregnados desta perspectiva. Para o filósofo da Escola de Frankfurt, autor da teoria da acção comunicativa, o homem caracteriza-se por ser capaz de comunicar, sendo através do diálogo que ele se realiza a si próprio como ser social, visto que a comunicação constitui um instrumento capaz de dar forma à acção social, no sentido da mudança e da transformação. Habermas propõe um conjunto de condições para que o discurso possa ser considerado válido. Essas condições podem resumir-se na ideia de que a validade do discurso depende da livre crítica de todas as opiniões e da continuação do diálogo e do debate até que seja possível construir o consenso entre os interlocutores que, através de um processo de negociação colectiva, superam os seus interesses egoístas a favor de um bem comum mais geral. O discurso ideal é aquele que se faz no respeito pelas regras democráticas e o processo de deliberação depende dos melhores argumentos apresentados. Decorre daqui, a importância da competência linguística e da capacidade de argumentação, visto que a verdade, no entender de Habermas, é uma construção cooperativa. Portanto, para Habermas, as normas morais são produto da construção colectiva, através da acção comunicativa, não fazendo sentido apelar a normas ideais, porque cabe a cada grupo social construir as suas normas morais através do diálogo comunitário. Embora a ética discursiva de Habermas apareça embrulhada, de forma vistosa, nos conceitos de diálogo e consenso, a verdade é que não resiste a uma crítica profunda, porque deixa de fora do processo de "construção" dos valores, as pessoas que não têm voz, as que não possuem competências linguísticas e as que não sabem argumentar bem e falar em público. Em última instância, a ética discursiva é uma ética dos poderosos, não já apenas daqueles que detêm o poder económico ou militar, mas sobretudo dos que detêm o poder da comunicação. Nesse sentido, não pode aspirar a ser uma ética universal. Mas, mesmo que fosse possível criar uma comunidade comunicacional universal, a ética discursiva de Habermas não conseguiria dar uma resposta convincente ao modo como os sujeitos captam os valores. Se os valores fossem objecto de construção pelo sujeito, então haveria tantos valores quantas construções os sujeitos fossem capazes de realizar. A ser assim, teríamos de admitir que todos os valores são subjectivos e relativos. 32
Contudo, os valores superiores (os lógicos, os estéticos, os éticos e os religiosos) são objectivos, exigindo, por isso, uma axiologia material e não meramente formal, como é a axiologia de Habermas. Se há valores objectivos, então é porque eles não são o produto de construções do sujeito, mas sim essências ou ideias consistentes e objectivas do mundo racional humano que se impõem ao sujeito e que este deve captar e respeitar segundo uma hierarquia correcta. Manuel Patrício resume, desta forma, as teses principais da doutrina dos valores objectivos: "os valores não são simples propriedades que estão dadas como coisas a que nós chamamos bens; o ser dos valores é independente das coisas e das suas estruturas reais; os valores são essências, constituindo um domínio especial dos objectos com as suas particulares relações e conexões; as qualidades axiológicas diferem das outras qualidades, propriedades ou força das coisas; os bens não são valores, mas depositários ou portadores dos valores - sejam pessoas, coisas ou acções -; só nos bens os valores se tornam reais; os valores são objectos ideais, não reais" (1). Resulta daqui, não ser possível uma educação em valores que prescinda de uma axiologia material e que subvalorize os domínios volitivo e afectivo, porque o aluno capta os valores sobretudo através dos sentimentos e não apenas através da cognição. Se a criação de uma disciplina não pode constituir um bom instrumento para a educação em valores, qual é a alternativa mais adequada? Em primeiro lugar, importa que a escola, em todo o seu programa educativo, lectivo, extralectivo e de interacção, bem como no seu ethos e ambiente ecológico, se assuma, intencionalmente, como lugar de educação axiológica. Para o fazer é preciso assumir que a educação em valores não pode prescindir de nenhum destes traços: a sabedoria (conhecimento e reflexão), o carácter (entendido por Max Scheler como as aptidões duradouras da vontade), o autodomínio (entendido por Séneca e Marco Aurélio como a capacidade para controlar as paixões e as inclinações naturais, submetendo-as ao domínio da Razão e da Lei Moral) e a autodeterminação (vista por Kant como a capacidade que o sujeito tem de agir, respeitando princípios que todo o ser racional aceitaria e isto apenas porque é correcto fazê-lo, porque o dever deriva da própria necessidade racional, sem sujeição a outros fins). Notas 1) Manuel Patrício (1993). Lições de Axiologia Educacional. Lisboa: Universidade Aberta, p.250
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A EDUCAÇÃO ÉTICA EM ARISTÓTELES Aristóteles, no livro X da Ética a Nicómaco, analisa os fundamentos da educação ética e as melhores modalidades de formar pessoas e cidadãos decentes e capazes de preferirem o Bem. As questões que levanta podem resumir-se no seguinte: a educação ética é possível?; caso seja possível, ela é produto do hábito ou da aprendizagem?; qual é a influência da natureza na formação do carácter da pessoa?; é possível alterar aquilo que a natureza fez?; o que é mais poderoso, o hábito ou a aprendizagem? Aristóteles (1) começa por dizer que "o objectivo dos estudos sobre a acção é, seguramente, não estudar e conhecer cada coisa, mas agir de acordo com o conhecimento que se obteve. Por isso, o conhecimento sobre as virtudes não é suficiente. Devemos, também, tentar possuir e exercer a virtude, ou tornarmo-nos bons de qualquer outra forma". Ou seja, a capacidade de argumentação pode ajudar, mas não é suficiente. A bem dizer, os argumentos sobre a ética só são eficazes nas pessoas que nascem com um bom carácter. Para a maioria das pessoas é manifestamente insuficiente. E Aristóteles (2) justifica esta posição: "a maioria das pessoas obedecem naturalmente ao medo e não à vergonha; elas evitam o que é vil por causa dos castigos e não por que o que é vil seja considerado, por elas, vergonhoso. Isto é assim, porque as maioria das pessoas vivem dependentes dos seus sentimentos, procuram os prazeres que lhes agradam, bem como as fontes deles, e evitam os seus contrários, não tendo a noção do que é bom e verdadeiramente agradável, visto que nunca o experimentaram". Nota-se aqui uma diferença de fundo entre as propostas do estagirita, que fundamentam uma axiologia material e objectiva, e as propostas dos autores filiados na ética discursiva e formalista, como é o caso de Lawrence Kohlberg, John Rawls ou Jurgen Habermas. Embora a natureza tenha um papel extremamente importante no desenvolvimento do carácter da pessoa, a verdade é que o hábito não pode ser negligenciado. Em primeiro lugar, é preciso ter em conta que não se altera com argumentos o que o hábito adquiriu e fixou. O hábito constitui uma autêntica segunda natureza que, uma vez fixada, é quase impossível de alterar. Essa é a razão pela qual falham todas as metodologias argumentativas e baseadas na discussão de dilemas morais, quando não são precedidas e acompanhadas de hábitos moralmente adequados. Sendo certo que uma pessoa virtuosa é produto, simultaneamente, da natureza, do hábito e do ensino, os dois primeiros são bem mais fortes do que o último. Essa é, também a razão por que, regra geral, falham todas as tentativas de educação do carácter através da criação de uma disciplina de ética ou de educação moral. A este respeito, Aristóteles (3) é peremptório: "os argumentos e o ensino, seguramente, que não influenciam toda a gente; a alma dos estudantes precisa de ser preparada pelos hábitos para que eles sejam capazes de amar e recusar de forma apropriada". E isso é assim, porque uma pessoa que se habitua a seguir os sentimentos nem sequer ouve os argumentos ou, quando os ouve, não é capaz de os compreender. Aristóteles parece defender que, quando a natureza é deficiente, desde o nascimento, nem com bons hábitos a pessoa consegue atingir a virtude plena. Quem deve fazer a educação ética? É ela um empreendimento dos pais, para com os filhos, ou do Estado para com os cidadãos? Aristóteles responde que é um empreendimento de todos, embora, nesta matéria, o Estado tenha mais poder, através das leis que aprova, de impor o respeito pelo Bem. Importa não esquecer que o Estado é 34
detentor de mecanismos e instrumentos de dissuasão e de repressão que impedem as pessoas, incuravelmente vis, de partilharem, com os outros, a vida em sociedade. Atendendo a que a natureza faz algumas pessoas pouco capazes de levarem uma vida virtuosa e que, mesmo nas restantes, dota as pessoas de algumas insuficiências, tanto as crianças como os adultos precisam de leis e mecanismos de correcção. É tarefa, portanto, dos legisladores a exortação à decência e a imposição de castigos e correctivos a quem se afasta da rectidão com propósitos vis. Aristóteles (4) justifica esta necessidade, afirmando que: " assume-se que a pessoa decente ouve a razão porque a sua vida procura aquilo que é bom, mas a pessoa vil, uma vez que se orienta pelo prazer, tem de receber tratamento correctivo". Sendo assim, a melhor maneira de educar o carácter de uma pessoa é habituá-la desde cedo a preferir as virtudes e a recusar tudo aquilo que é vil. Por que razão o Estado tem melhores condições para levar a cabo esta tarefa? Em primeiro lugar, porque o Estado tem mais força do que o indivíduo. As instruções de um pai a um filho não possuem um carácter impositivo tão grande como as leis do Estado. Além disso, é fácil um filho tornar-se hostil a um pai que se opõe aos seus impulsos e paixões, mesmo quando o pai tem razão em contrariar os apetites do filho. Com o Estado, a hostilidade dilui-se, porque o indivíduo está muito mais afastado do Estado do que o filho do pai. Embora isto seja evidente, o que acontece, com frequência, é o Estado negligenciar as suas tarefas. Quando o Estado é negligente, aumenta a responsabilidade dos pais na educação do carácter dos seus filhos. Notas 1) Aristóteles (1985). Nichomachean Ethics. (Introdução, tradução e notas de Terence Irwin). Indianapolis: Hackett, 1179 b 5, p. 291 2) idem, 1179 b 15, p. 292 3) idem, 1179 b 25, p. 292 4) idem, 1180 a15, p. 294
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O BEM E A FELICIDADE A maior parte das pessoas identificam o bem com a felicidade, mas têm opiniões diferentes sobre o que é a felicidade. Será que viver bem e fazer o bem é a mesma coisa que a felicidade? Será a felicidade a mesma coisa que a honra, a riqueza ou o prazer? Ou nenhuma delas, por si só, preenche os requisitos da felicidade? Será que, para além desses bens, há um bem, que é bom por ele próprio, e que faz com que todos aqueles bens sejam, de facto, bens? Há três concepções vulgares acerca da vida boa: a vida dedicada aos prazeres, a vida dedicada à actividade que dá honra e a vida dedicada ao estudo. Qual delas é a melhor? Vamos começar a nossa análise pela vida dedicada aos prazeres. Aqueles que renunciam a tudo aquilo que não lhes proporciona gratificação imediata, tendem a pensar que a felicidade e a vida boa estão relacionadas apenas com o máximo de prazeres possível. A acreditarmos nesta posição, teríamos de concordar que se é tanto mais feliz quanto mais perto se estiver da vida animal. A vida dedicada à actividade que dá honra é típica dos políticos e dos guerreiros. Serão eles mais felizes do que todos os outros? Um exame à vida de importantes personagens que se dedicaram a estas actividades leva-nos a concluir que nem sempre a procura da honra se reveste de virtude e há imensos casos de políticos e guerreiros que foram vítimas da má fortuna e depararam com grandes desgraças e desastres. Resta-nos a vida dedicada ao estudo. Ao contrário da vida dedicada a ganhar dinheiro ou da vida dedicada a acumular honra, a vida dedicada ao estudo é a única que não se subordina a nenhuma outra finalidade. É, portanto, a mais auto-suficiente e completa de todas. Nesse sentido, é a que se aproxima mais da felicidade. No entanto, esse tipo de vida não garante, por si só, a felicidade. Deverá vir acompanhada de alguns bens exteriores e da sorte, pois não se pode ser feliz na miséria ou quando se é vítima de grandes desastres. A visão que Aristóteles tem do bem leva-o a identificar as seguintes características presentes no bem: o bem é completo; o melhor bem é aquele que é valioso em si mesmo; o melhor bem é auto-suficiente. A felicidade possui todas essas características e, por isso, pode ser considerada o maior bem: "a felicidade, mais do que qualquer outra coisa, parece incondicionalmente completa, visto que nós a escolhemos sempre e a escolhemos por ela própria, e nunca por outra coisa qualquer. A honra, o prazer, a compreensão e qualquer outra virtude, também são escolhidas por nós, mesmo que não permitam qualquer outro resultado, mas nós também as escolhemos em benefício da felicidade, supondo que, através delas, seremos felizes. Já a felicidade, ninguém a escolhe em benefício das virtudes ou de qualquer outra coisa" (1). Na Magna Moralia, Aristóteles faz a crítica da tese socrática e platónica do bem como ideia de bem, optando, ao invés, por considerar apenas o bem para nós. A recusa da tese de que basta conhecer o bem para fazer o bem, tão cara a Sócrates, é objecto de crítica do estagirita no primeiro capítulo do livro I da Magna Moralia: "Sócrates cometeu, pois, um erro, quando olhava para as virtudes como saberes...Se fossem saberes, teríamos de admitir que, ao mesmo tempo que se conhece o que é o tal saber, também se teria de ser sábio (se, com efeito, uma pessoa sabe medicina, essa pessoa será considerada um médico, e a mesma coisa para os outros saberes). Mas, para as virtudes não se passa isso: não basta saber o que é a justiça para se ser justo, e o mesmo acontece com as outras virtudes" (2).
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Aristóteles divide os bens em três tipos: bens do corpo, como a força e a beleza, bens externos, como a riqueza e o poder, e bens da alma, como as virtudes. Os últimos são superiores a todos os outros. Na Magna Moralia, o filósofo estabelece a divisão dos bens da alma em três tipos: a prudência, a virtude e o prazer. As características da felicidade diferem de pessoa para pessoa. Para algumas, é a virtude; para outras, a inteligência; para outras, ainda, a sabedoria; e há, por fim, os que consideram os prazeres. Sem dúvida que Aristóteles se identifica com os que consideram a virtude a principal característica da felicidade, chegando ao ponto de afirmar que não se pode ser feliz sem se ser virtuoso. Claro está que o prazer não pode ser desprezado como uma característica da vida feliz, tanto mais que a virtude é, ela própria, prazer e as acções virtuosas são agradáveis, em si mesmas. Os bens exteriores também têm a sua conta na vida feliz, pois não é fácil fazer boas acções se faltarem os recursos mínimos. Por isso, parece adequado definir a pessoa feliz como a que expressa a virtude completa nas suas actividades, com uma adequada oferta de bens exteriores, não só durante um certo tempo, mas durante toda a vida. Na Magna Moralia, o filósofo dedica os capítulos II e III, do Livro I à classificação dos bens, revelando, assim, a importância que os bens possuem na ética aristotélica. Na primeira classificação dos bens, o estagirita considera os bens preciosos, os bens louváveis e os bens que são faculdades. Os bens preciosos são os divinos. As virtudes fazem parte dos bens louváveis e a riqueza, o poder, a força e a beleza são faculdades. O que distingue as faculdades das virtudes é que o homem tanto pode usar as faculdades para o bem como para o mal. O homem vil usa-as, sem dúvida, para o mal. Na segunda classificação de bens, Aristóteles considera os bens que são preferíveis, sempre e de todas as maneiras e os outros. Por exemplo, enquanto a justiça é um bem preferível sempre e de todas as maneiras, a riqueza ou a força não o são. Na terceira classificação de bens, distingue os bens que são fins dos que não são fins. Por exemplo, a saúde é um bem que é um fim. A riqueza é um bem, mas não é um fim. Os bens que são fins são superiores a todos os outros. Mas, mesmo entre os bens que são fins, temos de considerar os que são perfeitos e os que são imperfeitos. Um bem perfeito é o que se basta a si próprio, não nos deixando qualquer outra necessidade. Os bens imperfeitos deixam-nos com necessidade de outros bens. Por exemplo, a justiça é um bem imperfeito, porque não se basta a ela própria. Ninguém é feliz só com a justiça. Mas, a felicidade é um bem perfeito, porque quem é feliz não precisa de mais nada (3). Como é que se adquire a felicidade? É adquirida pela aprendizagem, pelo hábito ou pela sorte? A resposta de Aristóteles é clara: a felicidade adquire-se pela virtude, ou seja, pelas nossas acções, embora a sorte também possa contribuir. Assim sendo, e até certo ponto, depende de nós, sermos felizes. E será a felicidade acessível a todos? Aristóteles responde que a própria natureza da felicidade exige que esta seja um bem acessível a todos, embora alguns, pelo facto de serem incapazes de levar uma vida virtuosa, sejam incapazes de ser felizes. Neste aspecto, Aristóteles afasta-se radicalmente da posição dos sofistas, embora não coincida, na totalidade, com a concepção de Platão. Para os sofistas, a instrução permitia a qualquer um levar uma vida feliz. Para Platão, o conhecimento do bem andava associado à prática do bem e, portanto, aquele que conhece o bem pode ser feliz. Aristóteles, sem negar a importância da educação e do conhecimento, adopta uma posição intermédia e mais realista: o que dá o valor
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intelectual é a educação e os bons hábitos que ela nos faculta, mas a educação apenas pode aperfeiçoar as nossas boas disposições naturais. Por outro lado, para ser feliz é necessário ter assegurado um nível decente de bens materiais que proporcionem tempo livre para o estudo e para as amizades, pelo que, quer os escravos, quer aqueles que dedicam todo o seu tempo a um trabalho que não dá prazer, são incapazes de ser felizes. Importa, ainda, notar que a sorte ou a má sorte podem, também, influenciar o acesso ou o impedimento à felicidade. É certo que a maior parte dos homens nasce com uma predisposição natural para a virtude, mas essas predisposições só se tornarão verdadeiras e reais quando a educação as penetrar de razão e os hábitos as encarnarem na conduta e nos comportamentos. Mas, sem essas predisposições naturais para a virtude, a educação é impotente. Por outro lado, pode acontecer que as predisposições naturais favoráveis e a educação não sejam suficientes, caso uma sucessão repetida e prolongada de maus hábitos impeça qualquer esforço de correcção. O filósofo católico Jean Guitton dá a seguinte definição de felicidade: "a felicidade é o reflexo imóvel da nossa vida interior, esta corrente que corre sem ruído no fundo do espírito, neste fundo íntimo de nós mesmos onde nós não descemos; onde se forma e amadurece o pensamento que revela em nós os atributos divinos. A felicidade é mais do que o prazer, do que a paz, mais do que a superabundância; um contentamento de ser que se basta a si. Um mundo de silêncio onde cada coisa está no seu lugar e desfruta a vida" (4). Notas !) Aristóteles (1985). Nichomachean Ethics. (Introdução, tradução e notas de Terence Irwin). Indianapolis: Hackett, 1097 b 5, p. 14 2) Aristóteles (1995). Les Grands Livres d`Éthique (Magna Moralia). Évreux: Arléa, 1183 b, 10, p. 38 3) Aristóteles, idem, 1183 b e1184 a 4) Guitton, J. e Antier, J-J. (1999). O Livro da Sabedoria e das Virtudes Reencontradas. Lisboa: Editorial Notícias, p. 253
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O PRAZER E A DOR Aristóteles define prazer como "um certo movimento da alma e um regresso total e sensível ao estado natural" (1). A dor é o seu contrário. O que produz a disposição para o prazer é agradável e o que a destrói é doloroso. É agradável e, portanto, dá prazer, o que tende para o estado natural e os hábitos também são igualmente agradáveis porque o que é habitual assemelha-se ao que é natural. É, também, agradável o que não resulta da coacção. Por outro lado, é doloroso o que obriga ao esforço não querido ou não habitual e, de uma maneira geral, tudo o que traz preocupações ou envolve a necessidade e a coacção. É essa a razão pela qual o descanso, os jogos e o sono são agradáveis, pois ninguém descansa, joga ou dorme por obrigação. Claro está que o agradável é, também, tudo aquilo de que temos em nós o desejo, pois o desejo é apetite do agradável. Os desejos podem dividir-se em racionais e irracionais. Os desejos irracionais são "os que não procedem de uma acto prévio da compreensão; e são desse tipo todos os que se dizem ser naturais, como os que procedem do corpo; por exemplo, o desejo de alimento, a sede, a fome, o desejo relativo a cada espécie de alimento, os desejos ligados ao gosto e aos prazeres sexuais e, em geral, os desejos relativos ao tacto, ao olfacto, ao ouvido e à vista" (2). Ao invés, os desejos racionais são apenas os que procedem da persuasão. Entre as coisas mais agradáveis, Aristóteles coloca a honra, a boa reputação e, acima de tudo, os amigos. Os gregos usavam a palavra hedone, para dizer prazer e hedesthai, para tirar prazer. Aristóteles opta por uma posição intermédia acerca do bem, não o identificando com o prazer, mas também não negando que o prazer pode ser uma espécie de bem. E o que é o bem, para Aristóteles? "Entendemos por bem o que é digno de ser escolhido em si e por si, e aquilo em função do qual escolhemos outra coisa; também aquilo a que todos aspiram, tanto os que são dotados de percepção e razão, como os que puderem alcançar a razão; tudo o que a razão pode conceder a um indivíduo, e tudo o que a razão concede a cada indivíduo em relação a cada coisa, isso é bom para cada um; e tudo o que, pela sua presença, outorga bem-estar e autosuficiência; e a própria auto-suficiência; e o que produz ou conserva esses bens; e aquilo que de tais bens resultam; e o que impede os seus contrários e os destrói" (3). O prazer é, também, um bem. Se o não fosse, como é que todos os seres vivos, e não apenas os seres humanos, o desejam? As coisas agradáveis e belas são necessariamente boas, pois as agradáveis produzem prazer, e as belas são agradáveis. Por que razão o prazer e a dor são tão importantes na ética aristotélica? É que amar e odiar as coisas certas constitui o aspecto mais importante da virtude do carácter: "o prazer e a dor prolongam-se por toda nossa vida, e são de grande importância para a virtude e a vida feliz, uma vez que as pessoas decidem fazer o que lhes é agradável e evitam o que lhes é penoso" (4). Aristóteles discorda dos estóicos, mas também não concorda com os epicuristas, porque os primeiros identificam o prazer com o que é vil e os segundos confundem incondicionalmente o prazer com o bem. Ora, a verdade é que não podemos nem exagerar a bondade nem a maldade do prazer. Se é certo que a dor deve ser evitada e aquilo que dá prazer deve ser procurado, importa, num caso e noutro, combinar as nossas escolhas com a inteligência, a compreensão e a sabedoria. Por outro lado, embora o prazer seja um elemento da vida feliz, a felicidade não se confunde com o 39
prazer. Além disso, quando os prazeres provêm de fontes vis, não podem ser procurados pela pessoa virtuosa. É o caso da riqueza, que é um bem desejável, mas que o deixa de ser se resulta de uma traição. Decorre de tudo isto que "o prazer não é o bem, que nem todo o prazer merece ser escolhido, que alguns prazeres são intrinsecamente dignos de escolha, diferindo em espécie ou nas sua fontes dos que o não são" (5). Aristóteles identifica diferentes espécies de prazer. Quanto mais prazer temos com uma actividade, mais aumenta a nossa vontade de continuar a actividade. Cada prazer aumenta a actividade que lhe está associado. E pode, inclusivamente, torná-la mais longa, exacta e melhor. É o caso do músico que tira prazer a fazer música e que, quanto mais prazer tem na actividade, melhor músico se torna. O mesmo poderíamos dizer do romancista, do poeta, do filósofo ou do matemático. Ao contrário, a dor tende a reduzir ou a extinguir a actividade. É o caso do estudante que não tira prazer com o estudo e que acaba por deixar de estudar como forma de evitar a dor que essa actividade lhe traz. Uma vez que as actividades diferem na decência e na maldade, há algumas que são dignas de escolha e outras que se devem evitar; o mesmo é verdade para os prazeres, já que o prazer é uma actividade. O prazer adequado a uma actividade excelente é um prazer digno e o prazer próprio de uma actividade vil é vicioso. Da mesma forma, os apetites de coisas boas são dignos de escolha e os apetites de coisas vis são indignos de escolha. No essencial, podemos afirmar que há prazeres do pensamento e prazeres dos sentidos e que há prazeres dignos e prazeres vis. Os prazeres do pensamento são sempre dignos e os prazeres dos sentidos são dignos apenas quando andam associados com a virtude do carácter. Na verdade, há coisas que dão prazer a certas pessoas, enquanto provocam dores noutras. Algumas pessoas consideram-nas agradáveis e estimáveis, enquanto outras pessoas as consideram lastimáveis. Se assim é, como é possível determinar as coisas verdadeiramente agradáveis e boas? Para Aristóteles, o que é realmente agradável e bom é o que é assim para as pessoas virtuosas. E se o que a pessoa virtuosa considera lamentável e indigno aparece como agradável para alguém, isso só acontece porque as pessoas sofrem muitas formas de corrupção que as impedem de deliberar bem. Que tipo de coisa é o prazer? Será uma actividade ou um processo? Se for considerada uma actividade, é o prazer uma actividade completa ou incompleta? Aristóteles procede à discussão destes assuntos, ao longo da primeira parte do livro X da Ética a Nicómaco. Refuta a ideia de que o prazer é um processo porque o prazer, ao contrário do processo, é uma coisa sempre completa. O processo, por definição, necessita de tempo, enquanto o prazer é instantâneo, ou se tem logo ou não se tem. Quanto mais completa for a actividade mais prazer ela dá. O prazer é uma actividade, não é um movimento, nem um processo. Mas o prazer não é o bem em si mesmo. Só é o bem quando é consequente com uma actividade boa. O prazer é muito importante na educação ética porque ele pode enganar-nos acerca do bem e destruir a nossa concepção do bem. Mesmo quando possuímos uma concepção correcta do bem, o apetite pelos prazeres pode conduzir-nos à incontinência e é, por isso, que a educação ética requer a competência para deliberar e decidir sobre os prazeres e as dores correctas. Aristóteles dedica todo o capítulo VII do livro II da Magna Moralia à análise da questão do prazer. A insistência com que este assunto é abordado nas éticas aristotélicas deve-se ao facto de, no tempo do filósofo, imperarem duas grandes correntes filosóficas opostas sobre a relação entre o prazer e a felicidade: a escola dos epicuristas e a escola dos estóicos. Para os primeiros, o prazer identifica-se com a felicidade, para os segundos, o prazer pode ser um obstáculo à felicidade. Aristóteles afasta-se destas duas 40
perspectivas extremistas e opta por considerar o prazer como essencial à felicidade, mas destaca que há prazeres que valem a pena e outros que, por serem excessivos, devem ser controlados ou evitados pelo uso da razão e da boa deliberação. Assim sendo, Aristóteles não identifica a felicidade com o prazer, mas sim com a virtude e com a vida conseguida e realizada, mas não deixa de acentuar que uma vida realizada não dispensa a fruição moderada dos prazeres da alma e dos prazeres do corpo, desde que no respeito pela justa medida, nas alturas apropriadas e das formas correctas. Na Magna Moralia, o filósofo terá oportunidade de defender a tese da existência de prazeres de múltiplas espécies: prazeres da alma (os prazeres superiores, os quais nunca pecam por excesso), os prazeres exteriores (riqueza e beleza) e os prazeres do corpo (prazeres da mesa e do sexo, por exemplo). Desde que usufruídos com moderação, os prazeres são necessários à virtude e, embora não sejam o supremo bem, são necessários para que o homem possa alcançar o bem supremo: a felicidade (6). Na Magna Moralia, o filósofo defende a tese de que a virtude implica prazer. Isto é, a virtude não é uma consequência do prazer, mas o contrário: "é claro que a virtude é acompanhada de prazer ou de dor. Ora, se alguém se ressente da dor ao realizar boas acções, quer dizer que não é um homem de bem. Por consequência, a virtude não saberia acompanhar-se de dor, ela acompanha-se de prazer. Por isso, longe de ser um entrave, o prazer é um estímulo para a acção. E, de maneira geral, não se pode conceber a virtude sem o prazer que ela faz nascer" (7).
Notas 1) Aristótesles (1998). Retórica. (Tradução e notas de Manuel Júnior, Paulo Alberto e Abel Pena). Lisboa: INCM, 1370 a, p. 83 2) idem, 1370 b, p. 84 3) Aristóteles (1998). Retórica. (Tradução e notas de Manuel Júnior, Paulo Alberto e Abel Pena). Lisboa: INCM, 1362 a, p. 64 4) Aristóteles (1985). Nichomachean Etichs. (Introdução, tradução e notas de Terence Irwin). Indianapolis: Hackett, 1172 a 25, p. 266 5) idem, 1174 a 10, p. 273 6) Aristóteles (1995). Les Grands Livres D`Éthique (Magna Moralia). Évreux: Arléa, 1206 a 7) idem, 1206 a, 20, p. 178
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A FELICIDADE A felicidade, em Aristóteles, não se esgota no prazer, ou seja, na palavra grega eudaimonia. A felicidade é entendida como o maior bem do homem e identifica-se com o viver bem e o fazer o bem. As virtudes são necessárias, mas não suficientes, para a vida feliz. A felicidade é o fim completo da vida humana, o único fim que não visa promover um outro fim. Aristóteles considera, também, que a pessoa feliz é autosuficiente, na medida em que a sua felicidade depende dela própria e não de condições exteriores. Uma vez que a felicidade é uma actividade completa, ela inclui todos os tipos de bens, e alguns bens, como é o caso da saúde, dependem da sorte e, por isso, a sorte tem alguma influência na felicidade. Contudo, as maiores componentes da felicidade, as virtudes do pensamento e as virtudes do carácter, não dependem da sorte. A felicidade é um fim em si mesmo que consiste numa acção virtuosa. Não é um estado, mas sim uma actividade, a mais auto-suficiente de todas. Aristóteles considera a existência de dois tipos de actividades: as actividades valiosas em si mesmas e as actividades valiosas para outros fins. A felicidade está entre as primeiras. À felicidade não lhe falta nada. Mas será a felicidade o mesmo que a diversão? A resposta é claramente negativa. A felicidade é acção virtuosa, não é divertimento. Embora os divertimentos pareçam ser um fim em si mesmos, eles podem causar mais danos do que benefícios. Por exemplo, uma vida habituada aos divertimentos pode causar sérios danos corporais e na propriedade da pessoa. Em última instância, acaba por arruinar o maior bem da pessoa: a saúde. Então, por que é que a sabedoria popular coloca os divertimentos em tão grande conta, levando muitos a confundi-los, erradamente, com a felicidade? É que as mesmas coisas parecem honoráveis e agradáveis para pessoas vis e desagradáveis e vis para pessoas decentes. Contudo, apenas o que é honorável e agradável para a pessoa virtuosa é que é digno de honorabilidade. Decorre daqui, que a felicidade não pode ser encontrada na diversão, embora os divertimentos, sem excesso e na medida certa, possam ajudar ao relaxamento, preparando, assim, a pessoa para as coisas sérias. Para se entender melhor o que é a felicidade, importa saber o que é a vida feliz. Para Aristóteles (1), "a vida feliz parece ser uma vida que exprime a virtude, a qual é uma vida que envolve acções sérias e não consiste na diversão. Para além disso, dizemos que as coisas sérias são melhores do que as que proporcionam divertimento, e que, em qualquer caso, a actividade da melhor parte e da melhor pessoa é mais séria e excelente; e a actividade que é melhor é superior, e por isso tem mais o carácter de felicidade". E qual é a actividade que pode proporcionar mais felicidade? Se a felicidade é a actividade mais auto-suficiente, então a actividade que pode proporcionar mais felicidade deverá ser a segunda actividade mais auto-suficiente. Essa actividade é o estudo teórico. A actividade a que o estagirita chama o estudo teórico é não só a mais agradável de todas como a mais auto-suficiente e caracteriza-se pela continuidade e por ser o supremo objecto do conhecimento. Quais são as características do estudo que o tornam a actividades mais propícia à felicidade? Em primeiro lugar, envolve o tempo livre. Ninguém pode estudar sem momentos de ócio. Quem dedica todo o seu tempo à conquista da sua sobrevivência ou à procura gananciosa de mais riqueza não pode dispor de tempo livre. Na verdade, a 42
pessoa virtuosa dedica-se, por exemplo, à actividade económica, à política ou à guerra, não com o objectivo de fazer riqueza, fazer política ou fazer a guerra, mas com o objectivo de alcançar outros fins mais estimáveis, agradáveis e honoráveis, como por exemplo, fazer amigos, obter a honra e a estima dos seus vizinhos ou ganhar a glória. Com o estudo, não se passa isso. Quem se dedica ao estudo teórico, fá-lo pelo prazer que essa actividade lhe dá, sem procurar outro fim que não seja o de continuar a estudar. De certa forma, a vida dedicada ao estudo teórico é a que mais se assemelha à vida de um deus, estando mesmo acima do nível humano comum, porque o sábio possui nele um certo elemento divino, e a actividade deste elemento divino é muito superior à actividade expressa nas restantes virtudes. Por isso, "se a compreensão é qualquer coisa de divino, em comparação com um ser humano, assim também será a vida que expressa compreensão, em comparação com a vida humana" (2). Embora o estudo possa ser considerado a suprema actividade, é possível e necessário o estabelecimento de relações entre o estudo e as outras virtudes que fazem a felicidade. Em primeiro lugar, convém notar que, enquanto o estudo é uma actividade meio humana e meio divina, todas as outras actividades são humanas. O estudioso é feliz por estudar, mas aquele que é corajoso faz acções corajosas porque essas acções são necessárias para outros fins e para outras pessoas. O mesmo poderemos dizer de qualquer outra virtude, com excepção da virtude da compreensão, a qual é a única que tem existência por si mesma, isto é, não precisa do conjunto para existir. Existe, ainda, uma outra diferença de fundo entre a virtude da compreensão e as restantes virtudes. A pessoa que se dedica ao estudo teórico, e à compreensão portanto, é a que menos necessidade tem de bens exteriores. A pessoa generosa só o pode ser, se tiver dinheiro suficiente para dar. A pessoa corajosa precisa de ter suficiente poder para praticar actos de coragem. A pessoa temperada necessita de liberdade para praticar acções intemperadas, pois a temperança só se justifica se a pessoa for livre para praticar acções insensatas, embora delibere e decida não o fazer. A pessoa magnificente precisa de possuir riqueza em larga escala para poder ser generosa em larga escala. E por aí adiante. Ao contrário, a pessoa que estuda não necessita de nenhum desses bens exteriores e podemos até dizer que o excesso desses bens é incompatível ou, pelo menos, prejudicial à vida de estudo. Embora o estudo teórico seja a actividade mais auto-suficiente e contínua de todas e a que necessita de menos bens exteriores para se afirmar, também é verdade que qualquer ser humano precisa de alguns bens exteriores para ser feliz. Sendo a pessoa feliz um ser humano, "ela necessita, também de alguma prosperidade externa; pois a sua natureza não se auto-satisfaz com o estudo, uma vez que necessita de um corpo saudável e precisa de comida e de outros serviços" (3). Aristóteles (4) recusa a ideia da relação entre a felicidade e muitos bens exteriores, afirmando: "embora ninguém possa ser abençoadamente feliz sem bens exteriores, não devemos pensar que para se ser feliz é preciso muitos grandes bens. Pois, a auto-suficiência e a acção não dependem do excesso, e nós podemos fazer acções valiosas mesmo sem dominarmos a terra e o mar; pois até com poucos recursos, nós podemos fazer acções virtuosas. Isto vê-se com clareza, uma vez que há muitos cidadãos que fazem acções tão decentes como as pessoa com poder e até fazem mais, de facto. Basta que lhes sejam proporcionados recursos moderados". Para além desta argumentação, Aristóteles exemplifica com as palavras e as acções dos grandes sábios da Grécia Antiga e Clássica. Solon foi um desses grandes homens que soube descrever bem a pessoa feliz ao afirmar que as pessoas felizes são as que possuem bens exteriores com moderação, são capazes das melhores acções e vivem a sua vida com temperança.
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Como é que a felicidade é adquirida? Será adquirida pela aprendizagem, pelo hábito ou depende da sorte? Aristóteles dedica parte do livro II da Ética a Nicómaco a discutir estas questões. Começa por discordar que a felicidade seja uma benção dos deuses, optando por considerar que a aprendizagem pode ajudar a encontrar a felicidade. Contudo, tendo em conta que a felicidade exige uma vida completa, a pessoa pode ser impedida de a alcançar por motivo do azar. Tal é o caso, quando se sofre um desastre terrível, como a perda de um ente querido. A obra A Magna Moralia dedica o capítulo IV do livro I à análise da felicidade, não se notando grandes diferenças entre o que aí afirma e o que escreveu nas outras éticas. Começa logo por afirmar que " nós não vivemos para mais nada senão para a alma; ora, existe uma virtude da alma; e, com certeza, o que produz a alma e o que produz a virtude da alma são, afirmamo-lo, uma e a mesma coisa. É, por isso, por meio da virtude da alma que nós viveremos uma vida feliz. Ora, ao falarmos de vida feliz e de acção conseguida, nós queremos dizer, nem mais nem menos, ser feliz. Então, ser feliz, quer dizer a felicidade, reside no facto de viver uma vida feliz e o facto de viver uma vida feliz reside no facto de viver de acordo com as virtudes. O fim é, então, tanto a felicidade como o supremo bem" (5).
Notas 1) Aristóteles (1985). Nichomachean Ethics. (Introdução, tradução e notas de Terence Irwin). Indianapolis: Hackett, 1177 a 5, p. 283 2) idem, 1177 b 30, p. 286 3) idem, 1178 b 35, p. 288 4) idem, 1179 a 5, p. 290 5) Aristóteles (1995). Les Grands Livres d`Éthique (A Magna Moralia). Évreux: Arléa, 1184 b, 25, p. 46
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A VIRTUDE A virtude é uma palavra que, em grego, se dizia arete. Aquilo que é virtuoso é o que é excelente. Diz-se de um músico excelente que é virtuoso. A pessoa boa é a que possui as virtudes dirigidas para a acção correcta. Aristóteles analisa e discute o conceito de virtude e as suas implicações para a vida feliz em todo o livro II da Ética a Nicómaco. As virtudes do pensamento (boa deliberação, compreensão, inteligência e sabedoria) adquirem-se, principalmente, pelo ensino e com a experiência, mas as virtudes do carácter ( temperança, coragem, justiça, continência generosidade, magnanimidade e magnificência) adquirem-se, sobretudo, pelo hábito. Embora se possa nascer com uma predisposição para adquirir as virtudes, ninguém nasce virtuoso. Se as virtudes fossem uma coisa da natureza, então não podiam ser adquiridas pelo hábito, porque o que é natural não pode ser alterado. As pessoas são, pela natureza, capazes de adquirir a virtude e de alcançar a perfeição pelo hábito. A virtude do carácter é um estado que se adquire pela repetição de actividades similares. Por isso, devemos executar as actividades correctas, uma vez que diferentes actividades correspondem a diferentes estados. Enquanto a virtude é formada pela repetição das boas acções, o vício é adquirido pela repetição das acções vis. Contudo, a habituação adequada deve evitar tanto o excesso como a deficiência. A virtude do carácter é um estado que tem que ver com as boas acções relacionadas com o que é agradável e com o que é doloroso. Há três objectos de escolha: o bom, o expediente e o agradável; e três objectos a evitar: o vergonhoso, o prejudicial e o doloroso. A pessoa virtuosa sabe escolher as primeiras e evitar as segundas. Aristóteles (1) critica as pessoas que julgam que é possível ensinar as virtudes através dos argumentos: "a maioria das pessoas, contudo, não praticam as boas acções e refugiam-se nos argumentos, pensando que estão a fazer filosofia, e que essa é a maneira de ser tornarem excelentes. Desta forma, essas pessoas são como o doente que ouve atentamente o médico, mas não faz o que ele diz. Um tal tratamento não melhora o estado do corpo; também as pessoas que se limitam a filosofar não podem melhorar as suas almas". É importante notar que a virtude não é o mesmo que sentimentos ou capacidades. Por sentimentos, Aristóteles quer dizer medo, confiança, amor, ódio, inveja e alegria. Por capacidades, quer dizer aquilo que a pessoa é capaz quando possui esses sentimentos: ficar zangada, ficar amuada, etc. A virtude não é uma coisa nem outra, mas um estado que permite realizar bem determinadas funções. Para além disso, as virtudes evitam quer o excesso quer a deficiência e procuram o meio termo em relação a nós. Assim é, porque o excesso ou a deficiência arruinam o bom resultado, enquanto o meio termo o garante. Não é fácil ser virtuoso, porque o erro é fácil e o correcto é difícil. É possível sermos vis de muitas formas, mas só há uma forma de sermos virtuosos, em cada situação particular. Daí a dificuldade de deliberar racionalmente e decidir bem. Mais difícil, ainda, é executar bem aquilo que se decidiu racionalmente. A pessoa virtuosa é a que usa bem o cálculo racional, é capaz de deliberar racionalmente, decide em conformidade e passa à acção. Na Magna Moralia, Aristóteles dedica os capítulos XX a XXXIII do livro I à análise das diferentes virtudes e desenvolve a sua teoria da virtude como meio termo ao longo do capítulo V do livro I. À semelhança da Ética a Nicómaco, refere que " a virtude ética é destruída por defeito ou por excesso. Que o defeito e o excesso sejam 45
factores de destruição, podemos vê-lo a partir de exemplos éticos. Mas é preciso apoiarmo-nos no testemunho de coisas claras a propósito do que não é ético. De facto, ao apoiarmo-nos no exemplo dos exercícios de ginástica, ver-se-á facilmente que o vigor se destrói quando se fazem exercícios em demasia, mas também quando se fazem poucos exercícios...Ora, a mesma coisa se passa com a temperança, a coragem e as outras virtudes" (2). No capítulo IX, do livro I da Magna Moralia, o estagirita volta a analisar o justo meio e os seus contrários, começando por perguntar se é o excesso ou a insuficiência que mais se opõem ao justo meio. Em algumas situações é o excesso, noutras é a insuficiência. No caso da temperança, que é o justo meio entre a insensibilidade aos prazeres e o deboche, parece claro que o seu contrário é o deboche e não a insensibilidade, pois é muito mais fácil cair no deboche do que na insensibilidade aos prazeres. A pessoa esbanjadora dirá que a pessoa generosa é sovina e a pessoa sovina dirá que o generoso é esbanjador. Neste caso, a prodigalidade está mais próxima da generosidade do que a avareza e, por isso, a avareza é o contrário da generosidade. É, portanto, muito mais fácil escolher o excesso e a insuficiência do que o justo meio e é, por isso, que há muito mais pessoas vis do que pessoas virtuosas. Ser vil é fácil, não exige reflexão, treino e domínio de si. Ser virtuoso é difícil. Exige habituação, renúncia e muita reflexão. É, por isso, que o homem de bem é coisa rara. Apesar da dificuldade, a virtude depende da nossa vontade. Quer isto dizer que está ao nosso alcance. Ao contrário do que pensava Sócrates, é possível ensinar e adquirir a virtude. Mas, só é possível adquirir a virtude quando se tem suficiente força de vontade para a adquirir. No capítulo IX do livro I da Magna Moralia, Aristóteles procede à crítica da teoria socrática da virtude, afirmando que a vontade constitui um factor importante no processo de aquisição da virtude. Se a vontade não tivesse qualquer papel a desempenhar, e se, como dizia Sócrates, só se é mau por ignorância, por que razão todos os Estados legislam com o objectivo de definir regras e condutas apropriadas, estabelecendo sanções para quem viola as leis? Por isso, importa reafirmar que tanto as acções boas como as acções más dependem de cada um de nós. Quer a bondade quer a maldade são voluntárias. Não se pode dizer que uma pessoa é má quando pratica, involuntariamente, uma acção má. Se é verdade que a vontade constitui um factor importante na aquisição da virtude, poder-se-á afirmar que está ao alcance de qualquer um ser o mais virtuoso de todos? Aristóteles responde pela negativa, pois importa ter presente a disposição natural. Tal como em relação aos bens exteriores, também os bens da alma dependem, em parte, da natureza. É possível, com muita ginástica, fazer de um corpo feio, um corpo esteticamente aceitável, mas não é possível fazer dele um corpo belo. Com os bens da alma passa-se exactamente o mesmo. Não está, portanto, ao alcance de qualquer um ser o mais justo, o mais corajoso ou o mais temperado, a menos que a sua natureza o permita. A virtude é, para Aristóteles, um estado que se relaciona com os prazeres e as dores, pois, com efeito, "é por causa do prazer que nós cometemos as acções vis e por causa da dor que nós nos abstemos das boas acções. De uma maneira geral, não é possível compreender a virtude e a maldade sem as ligar à dor e ao prazer" (3). Etimologicamente, a ética provém da palavra grega ethos, que significa hábito. Quer isto dizer, que as virtudes não nascem naturalmente em nós, embora a predisposição natural para as adquirir tenha uma força importante. Com efeito, nada do que existe naturalmente pode modificar-se pelo hábito. Mas, as virtudes podem adquirir-se, manter-se e melhorar-se através do hábito. Por isso, não se nasce virtuoso. É 46
preciso fazer-se virtuoso. Essa a razão pela qual não se pode dizer que uma criança é virtuosa. Só num homem e numa mulher já feitos é possível aplicar esse adjectivo.
Notas 1) Aristóteles (1985). Nichomachean Ethics. (Introdução, tradução e notas de Terence Irwin). Indianapolis: Hackett, 1105 a 15, p. 40 2) Aristóteles (1995). Les Grands Livres d`Éthique (A Magna Moralia). Évreux: Arléa, 1185 b, 15, p. 52 3) Idem, 1195 b, 35, p. 54
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A ÉTICA A EUDEMO FACE AOS RESTANTES TRATADOS DE ÉTICA São atribuídos a Aristóteles quatro tratados de ética, embora haja sérias dúvidas sobre a obra O Protréptico. Os autores que atribuem O Protréptico a Aristóteles consideram tratar-se de uma obra menos madura do que as outras éticas, escrita provavelmente quando o filósofo andava pelos 30 anos de idade. René-Antoine Gauthier (1) defende que a Magna Moralia (MM) foi escrita com o objectivo de ensinar ética a jovens estudantes, O Protréptico foi uma obra de divulgação, a Ética a Eudemo (EE), escrita mais tarde, destinou-se a estudantes mais avançados e a um público erudito e a Ética a Nicómaco (EN), escrita após as outras, foi um tratado de síntese, escrito com o objectivo de proceder a uma apresentação definitiva do pensamento ético do filósofo. Michael Woods (2), na introdução e comentário à edição da Ética a Eudemo, da Clarendon Aristotle Series, defende uma teoria diferente: o tratado O Protréptico é uma obra espúria que, erradamente, alguns autores atribuem ao filósofo. Até há pouco tempo, a grande maioria dos estudiosos considerava que a Ética a Eudemo (EE) também seria uma obra espúria, talvez compilada por Eudemus de Rhodes, após a morte de Aristóteles. Actualmente, embora continue por explicar a razão do título (Eudemus), não há dúvida de que se trata de uma obra de Aristóteles, dadas as enormes semelhanças conceptuais e linguísticas e as mesmas referências históricas e biográficas que a obra Ética a Nicómaco. Continua, no entanto, a haver controvérsia sobre a sequência das obras e sobre a origem dos "livros comuns". A EN tem dez livros e a EE tem apenas oito. Como explicar a existência de três livros comuns às duas éticas? Alguns estudiosos consideram que esses três livros comuns terão sido elaborados por Aristóteles num período entre a escrita da EE e da EN. Outros autores consideram que esses "três livros comuns" pertencem à EN. No que parece não haver dúvidas é em considerar que a EE foi produzida primeiro do que a EN, atendendo a que a última é mais elaborada do que a primeira e revela uma maior maturidade filosófica. Seja como for, existem evidentes semelhanças de linguagem nas quatro obras, para além do tema que as une. As referências, na MM, na EE e na EN, a outras obras de Aristóteles, como A Física e Analíticos, constitui outra evidência de que todas elas teriam sido escritas pelo filósofo. Certo é que todas elas são produto de sucessivas elaborações e revisões, visto que foram criadas com o objectivo de servirem de lições. A Ética a Eudemo (EE) é um tratado em 8 livros, três dos quais pertencem, também, à Ética a Nicómaco (EN), havendo controvérsia sobre qual o tratado para que foram escritos originalmente. Com efeito, os livros 4, 5 e 6 da EE correspondem aos livros 5, 6 e 7 da EN. Ao longo dos séculos, a EN monopolizou o trabalho dos estudiosos de Aristóteles, embora o conhecimento da ética aristotélica não se possa fazer sem um estudo aprofundado da Magna Moralia (MM) e da Ética a Eudemo (EE). Em Portugal, os tratados de ética de Aristóteles são praticamente desconhecidos da quase totalidade dos professores e dos estudantes de Filosofia e de Ética. Daí a pertinência de um livro, escrito para professores e estudantes de Educação, de Filosofia e de Ética, com o objectivo de lhes dar a conhecer uma das obras éticas mais fundamentais da Civilização Ocidental.
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Notas 1) Gauthier, R- A (1992). Introdução à Moral de Aristóteles. Lisboa: Publicações Europa-América 2) Aristóteles (1996). Eudemian Ethics. (Introdução, tradução e comentário de Michael Woods). Clarendon Aristotle Series. Oxford: Clarendon Press
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A FELICIDADE NA ÉTICA A EUDEMO A palavra grega que designa felicidade é "eudaimonia", que quer dizer etimologicamente "abençoado por um bom demónio". É essa a razão da diversidade de significados que a palavra possuía na Grécia Clássica, embora se possa afirmar que, no tempo de Platão e de Aristóteles, a felicidade andava associada à prosperidade, à vida boa e à boa sorte. A partir do século XVIII, com a filosofia utilitarista de Bentham e Stuart Mill, começa a haver uma identificação da felicidade com o prazer, recuperandose a ideia que os epicuristas faziam da vida feliz. Embora, em Aristóteles, a vida feliz ande associada à ausência de dor e à vida agradável, há um elemento novo que caracteriza a vida feliz: a realização de actos virtuosos. É, por isso, que Aristóteles afirma que ninguém pode ser considerado feliz sem ter chegado ao fim da vida O primeiro capítulo do livro I da EE abre com a transcrição de uma inscrição feita em Delos que merece a discordância de Aristóteles: "o mais justo é o excelente, ter saúde é o melhor; o mais agradável é realizar o desejo do nosso coração". Aristóteles discorda da separação do que é bom, do que é excelente e do que é agradável, pois a felicidade inclui o que é mais excelente, o que é melhor e o que é mais agradável, e o que é feliz é, também, o mais agradável. Na EE, a vida boa é sinónimo de vida feliz e toda gente vive para ser feliz ou, pelo menos, procura ser feliz e consegue sê-lo se tiver a oportunidade para isso. Em que consiste a vida boa e como é que se consegue ter uma vida boa? Estas são as questões que atravessam toda a EE. A felicidade será produto da natureza? Ou pode-se aprender a ser feliz? E que papel tem a sorte na conquista da felicidade? Haverá lugar para a intervenção divina? E que papel desempenha o saber teórico?. E a sabedoria prática? E se podemos aprender a ser felizes, será que essa aprendizagem se faz pelo treino, pelo hábito ou pelo raciocínio? Se a felicidade se aprende, então temos de considerar que a felicidade é uma forma de conhecimento. Contudo, todos conhecemos pessoas felizes a quem falta conhecimento e pessoas sábias que são infelizes. Por isso, a felicidade não pode ser considerada uma forma de conhecimento e a aprendizagem não é suficiente para conquistar a felicidade. Quer isto dizer que não basta investigar sobre o conceito de felicidade. Mais importante do que saber o que é a felicidade, é conhecer a forma de a adquirir. Ao invés de Sócrates que privilegiava um saber teórico sobre a felicidade, o estagirita dá a preferência a um saber prático. Será que a felicidade não é nem produto da aprendizagem, nem do hábito, nem da natureza? Se a nossa resposta for afirmativa, só nos resta examinar os outros dois factores: a inspiração divina e a sorte. Para muita gente, ter sorte é sinónimo de ser feliz. Desde sempre se considerou haver uma relação entre a mão de Deus e a boa sorte. O ditado popular "ao menino e ao borracho põe Deus a mão por baixo" exemplifica bem essa identificação. Quase todas as grandes religiões se referem aos eleitos de Deus. Aparentemente, a inspiração e a protecção divina não tocam a todos igualmente, pois a realidade da vida lembra-nos que há muitas pessoas imerecidamente infelizes e viceversa. Quantos exemplos não há de pessoas vis a quem o estrela da sorte ou a protecção divina ajuda à conquista da felicidade? Provavelmente, nenhuma destas razões é suficiente para explicar a felicidade e, no entanto, todas elas podem dar o seu contributo. 50
Aristóteles diz-nos que "ser feliz e viver bem e divinamente parecem resultar de três coisas acima de tudo, três coisas que parecem ser as mais valiosas. Para alguns, a sabedoria é o maior bem, para outros é a virtude, e para outros é o prazer. E alguns entram em disputa para saberem qual é a coisa que mais contribui para a felicidade; alguns asseguram que a sabedoria é melhor do que a virtude, outros pensam o inverso; enquanto outros acreditam que o prazer é o maior bem. Alguns pensam que a vida feliz é composta de todas essas coisas, outros que é composta de duas delas e outros, ainda, que é composta por apenas uma delas" (1). Aristóteles parece conceder uma preponderância ao treino e à habituação como formas de adquirir a felicidade, visto que felicidade, vida boa e vida virtuosa andam associadas. Contudo, embora a aquisição da felicidade seja uma questão de treino e de aprendizagem, não podemos ignorar o papel da disposição natural para realizar boas acções. O filósofo concede, desta forma, um grande papel à disposição natural, pois essa disposição, associada à sabedoria prática e à habituação, constitui um factor forte para explicar a vida feliz. Se associarmos a esses factores a inspiração divina e a sorte, ficamos com um retrato algo completo da concepção aristotélica da vida feliz. Resta, ainda, referir que há condições necessárias, umas externas e outras internas, à felicidade. Entre as primeiras, Aristóteles destaca alguma riqueza (bens materiais) e alguns amigos. Entre as segundas, a disposição natural. Contudo, não devemos confundir as condições necessárias com partes constituintes da felicidade. Por exemplo, as pessoas que julgam, erradamente, que a felicidade é o mesmo que prosperidade, tendem a afirmar que os bens materiais são uma parte constituinte da felicidade, quando não passam de uma condição necessária. Aristóteles afasta-se da concepção socrática de felicidade porque considera que a felicidade depende, sobretudo, das nossas acções, ou seja, da capacidade que temos ou não de controlar as nossas acções em função das deliberações tomadas pela parte racional da alma. A experiência diz-nos que todas as pessoas com liberdade de escolha adoptam objectivos, que identificam como meios para a vida feliz. Para uns, é a honra, para outros a riqueza e, para outros o conhecimento. Só os que não dispõem de liberdade ou de entendimento é que se privam de ordenar as suas vidas em função de determinados fins. Aristóteles conduz-nos numa viagem intelectual em torno do conceito de felicidade. Começa por recusar as opiniões das crianças e dos que revelam possuir pouco entendimento, pois, uns e outros, falam de forma irreflectida. Só a opinião das pessoas sabedoras é digna de análise, mas estas estão divididas acerca da resposta. Umas defendem que a felicidade depende da sorte, outras que é fruto de disposições naturais e há outras que consideram que depende do carácter da alma e do carácter das acções. Se depender da sorte, então a felicidade não é acessível a toda a gente, nem tão pouco à maioria. Além disso, se assim fosse, a felicidade não dependeria da vontade ou do livre arbítrio. Caso a felicidade seja fruto do carácter da alma e do carácter das acções, então ela pode ser acessível a quase todos. Contudo, nem sempre o carácter das acções corresponde ao carácter da alma. O que conta, neste caso, não são as virtudes do carácter, mas as acções que correspondem a essas virtudes. Em conformidade, o filósofo examina os três tipos de vida que correspondem ao que se costuma considerar uma vida feliz: a vida política, a vida dedicada ao estudo teórico e a vida dedicada ao prazer. A vida dedicada ao estudo teórico preocupa-se com a sabedoria e a verdade. A vida política diz respeito às acções virtuosas em benefício do
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próprio e da Cidade. A vida dedicada aos prazeres centra-se na satisfação dos prazeres físicos. De todas estas vidas, Aristóteles parece inclinar-se para a supremacia da vida dedicada ao estudo teórico, pois essa vida é a que mais perto está de uma vida divina e é a que satisfaz os prazeres da alma, os quais, ao contrário dos prazeres físicos, nunca são excessivos (2). Contudo, a vida dedicada ao estudo teórico só é verdadeiramente uma vida feliz quando o conhecimento das virtudes é acompanhado da práticas das virtudes, ou seja, de acções virtuosas. O homem feliz não é apenas o que tem o conhecimento daquilo que é a coragem, a justiça ou a temperança, mas, fundamentalmente, o que pratica acções corajosas, justas e temperadas. Com esta afirmação, Aristóteles procede a uma crítica à visão socrática acerca da virtude, ou seja, a ideia de que aquele que conhece o Bem, age bem. Por outro lado, o homem feliz não é apenas aquele que tem uma vida sem dor, mas sim o que tem uma vida agradável e as coisas mais agradáveis são as virtudes da alma (3). No livro II da EE, o filósofo dá-nos a seguinte definição de felicidade: é a actividade de uma vida completa, de acordo com a virtude completa (4). A felicidade é uma actividade que para ser feliz tem que ser completa, isto é, deve ter chegado ao seu termo. É, por isso, que só podemos dizer que uma pessoa foi feliz quando a vida dessa pessoa chegou ao fim. Qualquer pessoa está sujeita a ver a sua felicidade abruptamente interrompida por um acontecimento trágico e é, por isso, que só no final da vida é possível fazer o balanço. Ser feliz, agir bem e viver bem são, na verdade, uma e a mesma coisa. No livro VIII da EE, o filósofo interroga-se sobre o papel desempenhado pela natureza e pela sorte na vida feliz. Aristóteles afirma que há muitas pessoas pouco entendidas que têm sucesso em matérias para as quais a sorte é decisiva. Será por causa de algum estado que estas pessoas são felizes, ou será por serem de uma certa espécie? É evidente que essas pessoas não são bem sucedidas devido à sabedoria prática ou ao saber teórico e, por isso, o seu sucesso deve resultar ou da natureza ou da sorte ou das duas coisas. Talvez essas pessoas beneficiem da protecção divina, pois vemos, muitas delas, deixarem-se conduzir por desejos bons, sem que lhes seja necessário reflectirem sobre eles (5). Um pouco mais à frente (6), o filósofo coloca a hipótese de haver impulsos da alma, alguns deles resultantes da parte racional, outros, da parte não racional que impelem a pessoa para aquilo que é agradável e dirigem a acção para o bem. Haveria, então, alguma pessoas naturalmente bem dotadas para o bem e que nem sequer precisariam do exercício da razão para deliberarem e agirem em função da virtude. Essas pessoas, tal como as cantoras que não necessitam de aprender a cantar para cantar bem, nascem com uma disposição natural para desejarem o bem, na altura certa e de modo adequado. Essas pessoas, protegidas por algum elemento divino ou inclinadas para o bem por alguma disposição natural, não necessitam de aprendizagem nem de conhecimento para agirem de acordo com a virtude. Em conformidade, Aristóteles conclui pela existência de duas espécies de felicidade: uma de origem divina e outra que resulta da razão e da boa deliberação. A de origem divina é a que resulta de um impulso natural. A de origem racional é a que resulta do controlo das paixões e dos apetites por parte da alma racional (7). Aristóteles argumenta que a felicidade é uma actividade completa (teleion) e, nessa medida, merece o qualificativo de excelente. É, também, o maior fim porque não é escolhida para benefício de outros fins, sendo os outros fins que existem em função dela (8). A felicidade é, então, uma actividade completa da alma e como as actividades da alma são superiores às actividades do corpo, a felicidade é a melhor actividade. 52
Contudo, não chega dizer que a felicidade é uma actividade da alma. Importa referir que é uma actividade das almas boas, porque só as pessoas virtuosas podem realmente ser felizes. Das outras pode haver uma aparência de felicidade, mas não mais do que isso. É isso que permite a Aristóteles afirmar que toda a gente procura a felicidade, embora haja diversas concepções de felicidade, umas verdadeiras e outras erróneas, tal como há bens incondicionais, bens em certas circunstâncias e bens aparentes. As pessoas que têm uma concepção errada de felicidade pensam que estão a procurar uma vida feliz, quando, na verdade, se ficam por qualquer coisa muito inferior à felicidade. As pessoas enganam-se, facilmente, acerca do que são as coisas realmente boas e acerca da verdadeira vida feliz, porque só o homem virtuoso é capaz de distinguir, correctamente, o bem verdadeiro do bem aparente e é essa confusão que leva muitas pessoas a possuírem uma concepção errada de felicidade. Sendo a felicidade uma actividade completa da alma virtuosa, quererá isso dizer que os prazeres físicos não contribuem para a vida feliz? Em primeiro lugar, convém notar que os prazeres físicos não são partes constituintes da felicidade, embora possam ser condições necessárias. Contudo, nem todos os prazeres físicos contribuem para a felicidade. Em excesso, podem impedi-la. Mas os prazeres da alma, os quais nunca são excessivos, não só contribuem, para a vida feliz como são partes constitutivas da felicidade (9). Michael Woods explica, assim, o papel que os prazeres menores exercem na vida feliz: " talvez o que melhor se pode dizer é que os prazeres menores acompanham as actividades que são necessárias à vida, e, por isso, à vida feliz; o homem que vive a melhor espécie de vida humana não pode prescindir deles, embora eles não façam parte da vida feliz" (10). Notas 1) Aristóteles (1996). Eudemian Ethics. (Introdução, tradução e comentário de Michael Woods). Clarendon Aristotle Series. Oxford: Clarendon Press, I, 1214 b 5, p. 2 2) idem, 1215 b 3) idem, 1216 b 5 4) idem, II, 1219 a 30 5) idem, VIII, 1247 a 6) idem, VIII, 1247 b 7) idem, VIII, 1248 b, 5 8) idem, 1219 a, 34 9) idem, 1216 a, 28 10) Michael Woods (1996), "Comentário", in Aristóteles. Eudemian Ethics. Oxford: Clarendon Press, p. 55
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A VIRTUDE NA ÉTICA A EUDEMO Na Ética a Eudemo (EE), Aristóteles identifica e caracteriza as duas formas da virtude, a virtude do carácter e a virtude intelectual, e procede à explicação da maneira como uma e outra se adquirem. A virtude intelectual pertence à parte racional da alma e tem que ver com a descoberta da verdade. A virtude do carácter pertence à parte não racional da alma, capaz de seguir os mandamentos da parte racional da alma, e tem que ver com as acções. No livro II da EE, o filósofo dá-nos a seguinte definição de virtude: "é a espécie de disposição, produzida pela melhor parte da alma, e da qual dependem as melhores funções e as melhores afeições da alma" (1). A virtude é um estado que permite às pessoas fazerem o que é melhor, e o melhor é o que está de acordo com o princípio recto, o qual é o meio termo entre o que é excessivo e deficiente em relação a nós. Mais à frente, dirá que a virtude é um estado e não uma capacidade, atitude ou afecto. A virtude do carácter tem que ver com as coisas agradáveis e com as coisas desagradáveis. É uma parte da alma que, embora não racional, é capaz de seguir a razão, de acordo com o princípio recto. No livro II da EE, Aristóteles explica a diferença entre as virtudes intelectuais e as virtudes do carácter, afirmando: "como a alma tem duas partes, e as virtudes são classificadas nessa base, aquelas que pertencem à parte racional são as virtudes intelectuais, cuja função é conhecer a verdade sobre como as coisas são ou como se podem tornar; aquelas que pertencem à parte não racional, mas possuem inclinação para se submeterem à parte racional, são as virtudes do carácter" (2). A virtude diz respeito apenas às acções voluntárias, ou seja, às acções que o sujeito faz de livre vontade e com conhecimento. As acções involuntárias, ou seja, as que a pessoa faz, obrigada por um agente externo ou na ignorância, não podem ser objecto de censura ou de louvor. As acções voluntárias são desejadas e pensadas e, nessa medida, podem ser objecto de louvor ou de censura. É, por isso, que Aristóteles afirma que aquilo que é voluntário é acompanhado de pensamento, enquanto o involuntário é feito por obrigação. É voluntário aquilo que o homem faz, por ele próprio, sem ser por ignorância, e quando tem o poder para não o fazer. O homem que pratica actos voluntários, conforme à razão, e no respeito pelo princípio recto, não só tem o conhecimento, como revela ser capaz de o usar. Neste particular, Aristóteles estabelece uma subtil distinção entre ter conhecimento e usar o conhecimento. Distinção semelhante é a que Aristóteles faz entre conhecer em potência e conhecer em acto. Aqueles que não são capazes de usar o conhecimento que têm estão na situação das pessoas que, por terem bebido em excesso, não fazem uso das suas capacidades. Em relação à ignorância, o filósofo estabelece, também, outra subtil distinção: a ignorância aceitável e a ignorância negligente. Aristóteles só justifica a ignorância daquilo que o sujeito não está em condições de poder adquirir conhecimento sobre a coisa. Quando o sujeito ignora uma coisa, tendo os meios e as condições para obter o conhecimento sobre ela mas opta por não o fazer, podemos falar de negligência e, como consequência, os seus actos podem ser objecto de censura. Posto isto, ficamos em condições de definir o homem virtuosos: "quando alguém tem o poder de fazer coisas boas e de evitar fazer coisas repreensíveis e faz o inverso, é evidente que esse alguém não pode ser chamado de virtuoso. Então, a virtude e o vício 54
tem de ser voluntários...Eis a razão pela qual a virtude é elogiada e o vício censurado; pois os actos maus involuntários não são censuráveis, nem os actos bons involuntários podem ser elogiados; apenas os actos voluntários o podem ser" (3). Um homem bom é, então, aquele que não confunde o bem aparente com o bem verdadeiro e que é capaz de dar um bom uso a todos os bens naturais. Ao contrário do homem vil, que faz um uso errado dos bens, o homem bom sabe usá-los na medida certa, na altura apropriada e em benefício do princípio recto. O homem vil, devido aos seus defeitos de carácter, usa a riqueza, a força e a saúde para fazer acções vis e é por isso que se pode dizer que quanto mais bens possui, mais mal pode fazer, a si e aos outros. A pessoa virtuosa não só sabe escolher os bens, mas também é capaz de os usar em seu benefício e dos outros. Aristóteles faz, ainda, uma distinção entre o homem bom e o homem nobre, ou excelente. O homem nobre (entendido aqui como o homem excelente) sabe não só distinguir as coisas boas das coisas más, mas também é capaz de distinguir as coisas que são boas em si próprias das coisas que são apenas meios e que, portanto, são apenas bens derivativos. O último não se limita a escolher bem e a fazer acções boas. Para além disso, revela possuir todas as virtudes e fazer uso delas sempre que necessário (4). Embora o estudo da ética não seja suficiente para fazer uma pessoa virtuosa, o seu propósito é de ordem prática: ajudar a pessoa a adquirir as virtudes e a ter uma vida feliz. Decorre daqui que a virtude não é inata e que, enquanto as virtudes intelectuais decorrem do ensino, as virtudes do carácter resultam, sobretudo, da habituação. Sendo a virtude um estado, e não uma capacidade ou uma emoção, e sendo os estados criados pelo hábito, cada um de nós é livre e tem capacidade para se tornar virtuoso. Uma outra questão importante é saber se o conhecimento é condição suficiente para a virtude do carácter. Sócrates parece responder afirmativamente, ao identificar sabedoria e virtude com conhecimento. Aristóteles considera que a sabedoria prática é uma condição necessária às virtudes do carácter, mas distingue a sabedoria prática do conhecimento. Há aqui uma clara diferença entre a concepção socrática e a concepção aristotélica acerca da virtude e da sua relação com a sabedoria prática e com o conhecimento. Sócrates parece não distinguir as virtudes do carácter das virtudes intelectuais e, por isso, tende a identificar a virtude com o conhecimento. Aristóteles faz uma distinção nítida entre as duas espécies de virtudes. Enquanto as virtudes intelectuais (conhecimento e inteligência) visam descobrir a verdade das coisas que não mudam, isto é, que não são contingentes, as virtudes do carácter visam a acção, ou seja, procuram ajudar a pessoa a deliberar bem e a preferir as boas acções às más acções. Aristóteles, no livro III da EE e no livro II da EN, fornece-nos uma interessante lista de virtudes do carácter, posicionando cada uma delas face aos dois vícios que são os seus contrários. Embora Aristóteles tente, na medida do possível, nomear os dois vícios que se opõem ao meio termo, reconhece que nem sempre isso é possível, porque há vícios que não têm nome. Notas 1) Aristóteles (1996). Eudemian Ethics. (Introdução, tradução e comentário de Michael Woods). Clarendon Aristotle Series. Oxford: Clarendon Press, 1220 a, 30 2) idem, II, 1221 b, 30 3) idem, II, 1228 a, 10 4) idem, 1249 a, 15 55
O HÁBITO E A INTENÇÃO Quando se ganha o hábito da virtude, deliberar e decidir actos conformes às virtudes, torna-se uma segunda natureza, habitual, fácil, reconfortante e infalível. No estado habitual da virtude, os desejos e as paixões permanecem desejos e paixões, mas encontram-se fielmente submetidos à razão. Esta submissão, para ser total, não se pode limitar à continência e ao domínio de si, pois o "homem é senhor de si mesmo quando nele o espírito é senhor do desejo, um desejo que se revolta contra a lei que o dobra: sentem-se assim todos os maus desejos, mas, apesar disso, faz-se aquilo que se deve fazer" (1). No homem virtuoso, a parte desejante está em plena harmonia com a razão. O virtuoso não tem que recear a parte desejante, pois que não resta nele nada que o possa inclinar para o mal. O homem de carácter não fará nada de vil por sua iniciativa. É, por isso, que ele não tem nada de que se arrepender e, muito menos, de que se envergonhar. É uma pessoa em paz consigo própria. Ao invés, o homem vil só chega a praticar o bem, quando, involuntariamente, a isso é obrigado, por medo de represálias ou por vergonha. Mas, quando o homem vil é capaz de se envergonhar dos seus actos vis, então ainda resta a esperança de que ele possa emendar-se e rectificar aquilo que, nele, não está bem. O homem virtuoso só deseja coisas virtuosas e, por isso, opta por elas voluntariamente. Neste sentido, o efeito da virtude é rectificar a intenção. Para Aristóteles, "a intenção é recta quando a razão penetrou de tal forma o desejo, que este se aplica ao objecto prescrito pela razão. Esta penetração da razão no desejo é a própria virtude, e é por isso que a virtude rectifica a intenção" (2). Em que consiste a rectidão da intenção? Em fazer as coisas que, por si próprias, são objectivamente virtuosas. Vejamos alguns exemplos práticos dados por Aristóteles: "aquilo que objectivamente é ser corajoso, é aguentar firma no seu posto de luta e aí morrer se isso fosse necessário. Mas podemos aguentar firmemente porque ambicionamos as honras cívicas: somos assim um bom cidadão, mas não um corajoso. Podemos aguentar firmemente porque temos a experiência do perigo: é-se então um bom profissional mas não um corajoso. Pode-se aguentar firme porque se possui um temperamento ardente: os animais fazem o mesmo e não se trata de coragem. Pode-se ainda aguentar porque se desconhece a realidade do perigo e desta vez trata-se de uma loucura e não de uma coragem. Mas então quando é que se é verdadeiramente corajoso? Quando se aguenta firmemente pela beleza do acto de aguentar firmemente, ou como Aristóteles o diz bastantes vezes, é-se corajoso quando se aguenta porque isso é belo" (3). É, por isso, que fazer as coisas virtuosas, por elas mesmo, é fazê-las pela beleza moral que lhes é imanente e é porque a intenção tende para a beleza moral que ela é recta (4). Para o estagirita, "o vício é a perversão da inteligência e consistirá, antes de mais, em pensar que devemos fazer o mal, sendo este erro o princípio da falta moral; o vicioso não pode, pois, ser filósofo, e a contemplação é privilégio do virtuoso" (5).
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Notas 1) Gauthier, R. (1992). Introdução à Moral de Aristóteles. Lisboa: Publicações Europa-América, p. 63 2) idem, p. 65 3) idem, p. 66 4) idem, p. 66 5) idem, p. 69
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A TOLERÂNCIA E O RESPEITO Os conceitos de tolerância e de respeito necessitam de uma definição prévia para evitarmos cair num dos maiores males da vida intelectual contemporânea: o mau uso e o abuso dos conceitos, devido ao peso avassalador da actual onda de vulgaridade e superficialismo. O Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (1) de José Pedro Machado dános a seguinte definição de tolerância: "Do latim tolerantia, constância a suportar, resistência; paciência". E de uma pessoa tolerante, diz-se que é alguém que suporta e que resiste. O verbo tolerar vem do latim tolerare, que significa levar, suportar um peso, um fardo, aguentar, sofrer, persistir, suster, manter e resistir. Ser tolerante implica que se aceite que os outros pensem de maneira diferente de nós, sem por isso os odiarmos. Podemos ser tolerantes dentro do mesmo grupo, por exemplo, face aos pequenos defeitos e diferenças de carácter; ser tolerantes face aos que não pertencem ao nosso grupo; e tolerar as convicções e crenças dos outros que sejam diferentes das nossas. O citado Dicionário dá-nos a seguinte definição de respeito: tomar em consideração e preocupar-se com. Vem do latim respectare, que significa olhar para trás e estar à espera. É uma atitude que consiste em não prejudicar alguém ou uma coisa. Por exemplo, respeitar o bem dos outros, a liberdade alheia, as tradições e as crenças. O contrário do respeito é o desprezo, a impertinência e a insolência. Quer isto dizer que tolerar não é amar, nem tão pouco, apreciar. Tolera-se aquilo de que não se gosta, mas que se é obrigado a aceitar e, na melhor das hipóteses, a compreender, para evitar o conflito e a violência. Estamos perante um valor necessário e importante, mas muito insuficiente. Seria um valor suficiente, caso a nossa vida ética se limitasse ao cumprimento dos deveres, ao respeito pelos contratos e ao respeito pela regra de ouro, ou seja, da máxima "não faças aos outros o que não queres que te façam a ti". A tolerância é um valor estruturante do campo social da ética, ou seja do processo de ordenação e de hierarquização dos valores que norteiam o nosso relacionamento com os outros, com os grupos e com a sociedade. Não é, no entanto, um valor estruturante do campo pessoal da ética, ou seja, do processo de hierarquização dos valores que norteiam e ordenam as prioridades da nossa vida. Comparada com o respeito, a tolerância não passa de uma valor de resistência, o qual não pode deixar de ocupar uma posição subordinada ao respeito. Ou seja, embora o respeito implique um uso equilibrado, isto é sem excesso e sem defeito, da tolerância, com o respeito estamos perante um valor activo, profundamente abrangente, estruturante tanto do campo pessoal como do campo social da ética e mobilizador de uma ética máxima norteada pela finalidade culminante do amor. A tolerância obriga a respeitar a regra de ouro: "não faças aos outros o que não queres que te façam a ti". Neste sentido, estamos perante uma ética do dever, deontológica portanto, que se limita a evitar fazer mal aos outros. Trata-se de uma polaridade meramente passiva. O respeito, ao invés da tolerância, carrega uma polaridade activa, marcada pela preocupação com os outros e na qual vem impressa a indelével marca do amor. Neste caso, a máxima "abstém-te de fazer mal os outros" não é suficiente, porque ela é governada pela passividade. Ora, o respeito é governado pela actividade e é, por isso, que a máxima que melhor se lhe aplica é "ama o próximo como a ti mesmo". É, por isso, que o respeito constitui uma virtude estruturante de uma ética do amor e da 58
benevolência, de uma ética marcada pela mensagem e pela palavra de Jesus Cristo. O respeito é, portanto, uma virtude intermédia na longa e difícil travessia em direcção ao cume da vida ética: o amor. Manuel Ferreira Patrício (2) identificou muito bem esta relação ao afirmar: "o primado cabe, efectivamente, à Pessoa. Esta postura personalista fundamental vem, evidentemente, do cristianismo. Eu afirmarei mesmo que vem directamente de Jesus, tal como o Evangelho no-lo dá. Lembremo-nos do mandamento que nele a certa altura nos é apresentado: ama o próximo como a ti mesmo. O próximo é o outro que está aí, logo à mão, logo a seguir. O próximo é o primeiro a amar, porque é o primeiro a aparecer. Não há que desviar o olhar, para o alto ou para o lado, procurando o outro longínquo; há que olhar directamente em frente para ver o outro aí, para ver o próximo, para ver e cuidar do próximo". E em referência ao estatuto de dependência da tolerância em relação ao respeito, Manuel Ferreira Patrício (3) foi um dos autores que melhor soube explicar essa relação: "tolerar é bom, mas respeitar é melhor. Respeitar é bom, mas amar é melhor. Locke escreveu, no século XVII, a Carta sobre a Tolerância. Que bom seria se, neste final do século XX, estivesse ultrapassada a necessidade de tolerância e fosse a hora de escrever uma Carta sobre o Respeito". Enquanto o respeito constitui uma virtude que nunca pode pecar por excesso, porque quanto mais respeito se tem mais se ama, a tolerância é o exemplo de uma virtude que se obriga ao meio termo porque, em excesso, resulta em indiferença, e, em falta, traz o sabor da intolerância. Embora Aristóteles, na Ética a Nicómaco (4) não tenha incluído a tolerância no seu sistema de virtudes, e o facto de o não ter feito já quer dizer muito, podemos aplicar a este conceito a concepção aristotélica do meio termo, para verificarmos quão nefasta pode ser a tolerância em excesso, embora a sua falta provoque sempre mais danos do que o seu excesso. O que é uma virtude? "A virtude é a) uma estado que decide, b) que consiste num meio termo, c) que é um meio termo relativo a nós, d) o qual é definido por referência à razão, e) ou seja, à razão por referência à qual a pessoa inteligente a definiria. É um meio termo entre dois vícios, um que peca por excesso, outro que peca por deficiência" (5). Ou seja, ao contrário do respeito ou do amor - os quais nunca são excessivos - a tolerância deve reportar-se à sua condição intermédia e deve manifestarse no momento certo, sobre as coisas certas, face às pessoas certas, em subordinação às rectas finalidades e da forma correcta. Não é fácil ser tolerante no momento certo, sobre as coisas certas, face às pessoas certas, em subordinação às rectas finalidades e da forma correcta. Talvez por isso, nas nossas sociedades liberais ocidentais, se opte com mais facilidade pelo excesso de tolerância, isto é, pela indiferença, com receio de se cair na intolerância, por má aplicação do princípio aristotélico do momento certo, sobre as coisas certas e em subordinação às rectas finalidades. Importa referir que esta atitude é, apesar de tudo, um progresso em relação à onda de intolerância radical que devastou a Europa do século XVII e que motivou John Locke para a escrita da Carta sobre a Tolerância. Mas o facto de ser melhor não significa que seja boa. A actual vaga de indiferença, isto é, de tolerância em excesso, é preocupante por duas razões: 1) conduz à aceitação e proliferação do que é intrinsecamente mau, ou seja, violador da dignidade da pessoa, e a "democratização" do que é ética e esteticamente mau traz consigo a generalização dos valores inferiores, os quais por terem mais força são mais facilmente captados pelas pessoas, favorecendo a sua preferência com a consequente preterência dos valores superiores; 2) revela uma certa incapacidade de amar as pessoas e as coisas verdadeiramente boas.
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A gravidade da generalização da indiferença, qual doença social contemporânea típica das sociedades liberais ocidentais, resulta do facto de que à medida que vamos sendo cada vez mais indiferentes sobre cada vez mais coisas, aumenta a nossa insensibilidade ao amor e àquilo que vale a pena. A manter-se a tendência para a acentuação e generalização da indiferença isso quereria dizer que a nossa civilização tenderia para a aceitação da inversão da pirâmide dos valores, com a consequente decadência civilizacional e humana que daí necessariamente decorre. A História da Humanidade está repleta de exemplos de grandes civilizações que sucumbiram desse mal. O discurso oficial nem sempre revela incorporar a noção de meio termo aplicada à virtude da tolerância. E se é certo que, com a tolerância, o excesso se encontra mais próximo da média e que a sua falta está mais distante, importa ter a noção da medida e da proporção para não cairmos em posições relativistas radicais impeditivas do estabelecimento de qualquer hierarquia de valores. E, no campo da ética, a ausência de uma hierarquia de valores contraria a própria existência de vida moral. É importante chamar a atenção para o facto de o excesso de tolerância resultar no vício da indiferença porque existe a tentação, nas sociedades liberais ocidentais, de encarar todos os valores, todas as culturas e todas as práticas culturais como se estivessem no mesmo nível de elevação, quando, na verdade, há algumas mais elevadas do que outras e há até casos de violação sistemática da dignidade humana que importa tentar compreender mas não respeitar, nem provavelmente tolerar (6). Notas 1) Machado, J.P. (1977). Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Cinco Volumes. Lisboa: Livros Horizonte 2) Patrício, M. F. (1999). "A Escola e a Educação para a Cidadania", in Suplemento da AEPEC, Diário do Sul, 5 de Maio, p. 22 3) Idem, p. 22 4) Aristóteles (1985). Nicomachean Ethics (Tradução, introdução e notas de Terence Irwin). Indianapolis: Hackett 5) Idem, 1107 a, p. 44 6) Ver a este respeito o livro de Marques, R. (1998). Ensinar Valores: Teorias e Modelos. Porto: Porto Editora
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A JUSTIÇA E O AMOR Comecemos pelo princípio que é por onde se deve iniciar. O Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa de José Pedro Machado (1) define amor da seguinte forma: "do latim amore, ou afeição e vivo desejo". Justiça vem do latim justitia, que quer dizer conformidade com o direito e sentimento de equidade. E o justo, do latim justu, é aquele que observa o direito, que é razoável, regular, normal e que respeita o que está bem. Sinónimos da justiça são a equidade, a rectidão e a exactidão. O seu contrário é a injustiça e a iniquidade. Da justiça, disse o filósofo judeu V. Jankélévitch, no Traité des Virtus (Flammarion, 1986, p.723) que "é o conservatório do valor, o protesto racional contra a violência, o instinto egoísta e a avidez. Não luta para dobrar a força, mas para compensar a fraqueza. É a vingança silenciosa, sobrenatural e, mais tarde ou mais cedo, inevitável do vencido que tem a razão do seu lado. Protege a fraqueza desarmada contra a violência furibunda, o direito humilhado contra a pirataria triunfante". E Kant, na Doutrina do Direito, deu da acção justa a seguinte definição: é justa qualquer acção que permita a livre vontade de cada um de coexistir com a liberdade de qualquer outro segundo uma lei universal. Mas, talvez a definição mais bela e mais exacta de justiça se deva a Santo Agostinho: a justiça é a virtude que dá a cada um aquilo que lhe é devido. O valor da justiça reside no facto de procurar estabelecer uma certa igualdade entre o forte e o fraco, o que tem poder e o que está despossuído dele. Mas como a justiça é uma virtude geral, precisa da equidade para se aplicar às questões particulares. A equidade está, assim, mais próxima da realidade e tem como objectivo corrigir o rigor das leis abstractas. Os gregos utilizavam diferentes vocábulos para designar o amor, consoante se referiam à amizade, ao amor erótico ou ao amor divino. As palavras gregas phílos e philía entraram na composição de inúmeros vocábulos antigos e modernos (2) e significam um amor desinteressado sobre alguma coisa ou pessoa. O amor erótico era designado pelos gregos pelo substantivo eros e o amor divino com a palavra agapé. O radical mais antigo de amor parece ser o latino amma, que designava várias formas relacionadas com o trato de bebés. É possível distinguir, portanto, o eros, a philia e a agape. O primeiro é o amor carnal, sexual, fundamenta-se no desejo do outro e exprime-se pela paixão amorosa. O segundo é o amor- ternura. É o amor expansivo que se fundamenta na dádiva, na partilha e no companheirismo. É o amor conjugal, a amizade e a afeição parental. O terceiro é o amor dado sem contrapartida. É o bem por excelência. É o amor a Deus. O amor-eros é um amor da cobiça e da concupiscência. O amor-agape é o amor da benevolência total. O contrário do amor é o ódio, a indiferença e a agressividade. Aristóteles dedica ao conceito de justiça todo o livro V da Ética a Nicómaco, num total de 32 páginas (3). A virtude da amizade, a qual, na teoria aristotélica, também compreende o conceito de amor, é abordada ao longo das 31 páginas do livro VIII e ao longo das 28 páginas do livro IX. Num total de 10 livros e 300 páginas, o filósofo dedica, respectivamente, um décimo das páginas à justiça e dois décimos à amizade. Se utilizarmos como critério apenas a quantidade de páginas, vemos que Aristóteles concede mais importância à amizade do que à justiça. No entanto, se fizermos uma comparação com a quantidade de páginas dedicadas às restantes virtudes do carácter (temperança, generosidade, magnificência, magnanimidade, coragem e continência) e às virtudes do pensamento (inteligência, compreensão, sabedoria e boa deliberação) 61
vemos, desde logo, que Aristóteles coloca, em posição cimeira, as virtudes da amizade (philia) e da justiça (dikaiosuné). A justiça vem do latim justitia e significa que está conforme com o Direito. Significa rectidão e exactidão. O seu contrário é a injustiça e a iniquidade. Aristóteles analisa e define justiça da mesma forma que o faz com qualquer outra virtude, uma vez que as virtudes são inseparáveis, embora cada uma se preocupe com um conjunto distinto de sentimentos e acções. Contudo, ao contrário da opinião socrática que defendia a unidade e a identidade de todas as virtudes, Aristóteles pensa que cada virtude é inseparável da inteligência. Uma vez que a inteligência é inseparável de todas as virtudes, segue-se que cada virtude é inseparável de todas as virtudes. A virtude a inteligência surgem na teoria aristotélica como mutuamente dependentes, visto que a inteligência permite que a virtude eleja as finalidades correctas. Sem inteligência, ninguém pode ser virtuoso, porque lhe faltaria o discernimento apropriado para deliberar e decidir correctamente em situações menos familiares. O conceito de justiça aplica-se quer à justiça geral quer à justiça particular ou específica. A primeira é a que resulta das leis correctas de uma cidade ou Estado, tendo em vista o bem comum. As leis correctas são as que respeitam a Lei Natural, são conformes à recta razão e respeitam todas e cada uma das virtudes. A justiça específica diz respeito aos casos particulares, nomeadamente os casos relacionados com a distribuição de honrarias e riquezas que podem ser divididos entre os membros de uma comunidade, uma vez que é sempre possível que um membro dessa comunidade possa ficar com uma parte igual ou desigual aos outros membros. Importa, no entanto, referir que a concepção aristotélica de justiça distributiva não se identifica com a igualdade aritmética, mas sim com o dar a cada um aquilo que cada um merece, porque se as pessoas envolvidas não são iguais, não se justifica que recebam em partes iguais. Assim sendo, a justiça não pode prescindir da noção de igualdade proporcional. O que é justo, então, é o que respeita a proporção e o que é injusto é o que é desproporcionado. Deriva daí que a justiça não é apenas reciprocidade e igualdade, mas sobretudo reciprocidade proporcional. Aristóteles (4) dá-nos a seguinte definição de justiça: "vemos que o estado a que toda a gente se refere quando fala de justiça é o estado que nos faz fazedores de acções justas, que nos faz fazer a justiça e desejar o que é justo. Da mesma forma, as pessoas referem-se à injustiça como o estado que nos faz fazer injustiça e desejar ser injusto". Para o estagirita, a justiça é um meio termo que representa uma condição intermédia, enquanto a injustiça expressa os extremos. A justiça é uma virtude que a pessoa justa respeita ao fazer acções justas, não dando a si próprio mais do que o que lhe pertence nem ao seu vizinho menos do que lhe é devido. A injustiça, pelo contrário, é uma desproporção no que é benéfico ou prejudicial. A pessoa injusta concede a si própria um excesso do que é benéfico e uma deficiência do que é prejudicial e ao seu vizinho faz exactamente o inverso. Numa acção injusta, obter demasiado pouco benefício é sofrer injustiça, enquanto obter benefício em demasia é cometer injustiça. Os actos de justiça ou de injustiça requerem, no entanto, acção voluntária. Se forem produto do acaso ou da ignorância, as acções podem ser justas ou injustas, mas quem as pratica não pode chamar-se justo ou injusto. Na Ética a Nicómaco, é possível descortinar dois tipos de justiça: a justiça distributiva e a justiça comutativa. A primeira é a que reparte as riquezas e honrarias entre os membros de uma comunidade. Não está submetida à igualdade, mas à proporção, ou seja, o justo é cada um receber na proporção da sua contribuição. A justiça comutativa é a que rege as trocas entre os indivíduos. Deve respeitar a igualdade entre os bens trocados, sejam quais forem as diferenças entre os indivíduos. 62
Aristóteles atribui dois sentidos à justiça: como respeito da lei, em conformidade com o direito, e como igualdade ou proporção. O justo é o que pratica acções justas. Aquele que não viola a lei não pode ser chamado de injusto, mas só quem não viola nem a lei nem os legítimos interesses dos outros, nem o direito positivo nem os direitos particulares, ou seja, aquele que só fica com a parte dos bens que lhe cabem, é que pode ser chamado de justo. Ou seja, o justo é o que respeita a lei e a igualdade, e o injusto é o que viola a lei e falta à igualdade. A justiça completa obriga não só à deliberação e à decisão segundo a recta razão, no respeito pela lei, mas também, e sempre que necessário, à adaptação da generalidade da lei à complexidade variável das circunstâncias e à singularidade das situações particulares. Só assim, a justiça pode entender-se como equidade, isto é, justiça aplicada. A pessoa justa é, então, aquela que age em conformidade com a lei, mas que, na aplicação da lei às situações particulares, não toma para si mais do que lhe é devido (quando se trata de bens) nem menos do que lhe pertence (quando se trata de sacrifícios ou sofrimentos), segundo a máxima "a cada qual o que lhe compete, nem de mais, nem de menos". Aristóteles, na Ética a Nicómaco, convida-nos a fazer com ele uma viagem intelectual em torno da natureza, objecto e tipos de amizade, começando, desde logo, por afirmar que a amizade (e o amor é uma forma de amizade) é a virtude mais necessária à vida. Ao compará-la com a justiça, Aristóteles não hesita em afirmar que a amizade é mais necessária e importante, pois os inimigos e adversários podem ser justos entre si, mas a concórdia e a comunhão só podem coexistir com a amizade e o amor: "se as pessoas forem amigas, nem sequer têm necessidade de justiça, mas se forem justos precisam, também, da amizade; e a justiça que é mais justa parece pertencer à amizade" (5). Aristóteles parece fazer, ainda, uma outra distinção, a favor da superioridade da virtude amizade: enquanto a justiça é necessária, a amizade não é apenas necessária, mas também uma coisa boa em si mesma, ou seja, é útil, agradável e boa, de tal forma que a melhor de todas as coisas, isto é, a felicidade, não pode prescindir da amizade. Enfim, ser justo é bom, mas amar é, ainda, melhor. O vocábulo grego que Aristóteles mais utiliza é philia o qual se refere não apenas à amizade, entendida como um querer bem a alguém, mas também ao amor, a alguém que se ama. A amizade tem, em Aristóteles, um sentido lato e um sentido restrito. É, acima de tudo, o amor desinteressado que a mãe tem pelo filho, mas é, igualmente, o amor entre marido e mulher e o amor paternal, fraternal ou filial. Inclui, também, o amor dos amantes, mas é, em sentido lato, a amizade entre pessoas virtuosas, que desejam o bem dos seus amigos por amor deles e não para retirarem deles utilidade ou prazer. A palavra philia é a que melhor encerra o sentido amplo e restrito da amizade. É o amor-alegria que tende para a reciprocidade, é a alegria de amar e ser amado, é a benevolência mútua, a vida partilhada, o companheirismo e a confiança recíproca. Entende-se, por isso, que onde haja amor não é necessário pedir justiça. Terence Irwin, no glossário que anexa à Ética a Nicómaco (6), chama a atenção para a necessidade de compreender com exactidão o significado de philia, a qual é muito mais do que a noção contemporânea de amizade. Inclui o amor aos familiares e entre os membros de uma família; abrange os laços de união entre os membros de uma comunidade; identifica-se, também, com o amor que se tem para com outra pessoa, que vai para além do querer bem e incorpora a benevolência, o gostar de, o gostar de estar com e os sentimentos eróticos. A philia requer uma certo nível de bem querer, de reconhecimento mútuo, de actividades partilhadas e de sentimentos de afeição. Por isso, o que melhor caracteriza os amigos é o companheirismo e o gostarem de estar juntos. A ausência física do(a) amigo(a) provoca mau estar e um desejo insatisfeito de estar com 63
ele ou com ela. Aristóteles classifica diferentes tipos de relações que respeitam os critérios de philia: os critérios de bom, útil e agradável; as amizades entre iguais e entre diferentes; as amizades em diferentes tipos de comunidades. A amizade por utilidade e por prazer constituem formas incompletas de amizade, porque, nessas formas, A deseja bem a B só na medida em que B é útil ou agradável para A, e não pelo valor intrínseco de B. As amizades desse tipo terminam sempre que B deixe de ser útil ou agradável para A. A terceira forma de amizade, a qual Aristóteles considera amizade completa, exige três condições: A ama B por ele próprio; A ama B por aquilo que ele realmente é; A ama B porque B tem uma carácter virtuoso. A prova de que Aristóteles coloca a philia em lugar cimeiro no seu sistema de virtudes é o facto de considerar que ela não é meramente instrumental para se alcançar o supremo bem, a felicidade, mas é, além de mais, uma componente necessária e imprescindível da felicidade. Aristóteles, na Ética a Nicómaco, soube, melhor do que qualquer outro, colocar a virtude da amizade no lugar cimeiro da vida ética, mostrando que "sem a amizade, a vida seria um erro. Que a amizade é condição da felicidade, refúgio contra a infelicidade, que é ao mesmo tempo útil, agradável e boa. Que é desejável por si mesma e que consiste mais em amar do que em ser amado. Que implica uma forma de igualdade, que a precede ou que ela instaura. Que vale mais do que a justiça, e inclui-a, que é ao mesmo tempo a sua mais alta expressão e superação. Que os amigos se regozijam uns com os outros e com a sua amizade. Que não podemos ser amigos de todos, nem sequer de muitos" (6). Ou, pegando nas belas palavras de Aristóteles: "Se somos amigos, não precisamos de justiça; justos, precisamos ainda da amizade" (7). Alte da Veiga (8) referindo-se ao amor como "coisa boa" adianta: "amar é coisa boa, e para quantos estão envolvidos do mesmo acto. É isto precisamente que nos diz o inglês love, cujo radical indo-europeu, leubh, significa directamente cuidar (care), permitir e aprovar (leave), confiança e fé (belief), agrado, desejo (líbido). Se me tens amor pode ser: se andas à minha volta com agrado, se pões nisso muito prazer, talvez o poder central da tua vida, o teu amigo de gravidade; como já nos dizia Santo Agostinho, com tanta felicidade e profundeza: amor meus pondus meum". Aristóteles dedica todo o capítulo XI do livro II da Magna Moralia à análise da amizade. À semelhança do que faz na Ética a Nicómaco, o filósofo procura resposta para as seguintes questões: é fácil ou é difícil fazer amigos?; pode um homem de bem ser amigo de um homem vil?; quais são as espécies de amizade que existem?; qual é a mais perfeita?; podem as pessoas diferentes ( em estatuto, em riqueza e em autoridade) serem amigas?; quando é que a amizade acaba? A amizade entre pessoas de bem, baseada no apreço mútuo pela virtude e pelo bem, é a amizade mais perfeita e, embora ela traga prazer e seja agradável, esse tipo de amizade não é meramente utilitário. A amizade baseada apenas no prazer, termina assim que deixa de haver necessidade desse prazer ou se tem acesso a um prazer maior. O mesmo acontece com amizade utilitária. O primeiro tipo de amizade é a amizade entre pessoas de bem, a qual exige reciprocidade e bondade mútua. O bem, o prazer e a utilidade são, assim, as três fontes da amizade, mas só o bem pode dar fundamento à amizade perfeita. E pode o homem vil ser amigo do homem vil? Aristóteles responde afirmativamente, mas só o admite na amizade fundada no prazer e na utilidade. Mas esses tipos de amizade nada têm a ver com a virtude, pois esta não é uma consequência do prazer ou da utilidade, mas sim o contrário. É o prazer e a utilidade que são a consequência da virtude. Por isso, a amizade fundada no bem e na virtude é a mais completa e a mais perfeita (9).
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Será a amizade entre pessoas iguais mais fácil e mais frequente? Todos conhecemos casos de amizade entre pessoas diferentes: a amizade do pais para com o filho e da esposa para com o marido. A amizade entre diferentes inclui sempre a procura da utilidade e do prazer, mas pode evoluir para uma amizade fundada na virtude e no bem. Oiçamos Aristóteles: "uma vez que já dividimos a amizade em três tipos, fica por resolver um problema: nestas diferentes espécies, a amizade nasce a partir de uma relação de igualdade ou a partir de uma relação de desigualdade. Bem, ela é possível sob estes dois aspectos. A amizade que se funda na semelhança é a das pessoas de bem, a amizade perfeita. A que se funda na diferença é a amizade por interesse. Com efeito, o pobre é amigo do rico, porque lhe faltam os recursos que abundam no rico, e o mau é amigo do bom por uma razão similar" (10). Fica, assim, claro que, mesmo entre contrários, pode nascer uma amizade fundada no interesse. O problema das amizades fundadas na utilidade e no prazer é que estão sujeitas a muitas quezílias, pois é muito fácil um dos amigos considerar que está a receber uma recompensa indigna do prazer que oferece (11). Por outro lado, nas amizades entre desiguais, é muito fácil acontecer que aquele que está numa posição superior (por exemplo, o que tem mais riqueza ou mais poder) não precisa de amar o outro, mas que deve ser amado pelos seus amigos que são desprovidos de recursos ou de poder. Fica, assim, provado que só as amizades entre iguais, que sejam, simultaneamente, pessoas de bem, é que podem aspirar à perfeição. Contudo, há uma forma de amizade entre desiguais que tem um estatuto particular: o amor dos pais para com os filhos. Esse estatuto especial deriva do facto de o filho ser, em certa medida, a obra dos pais, o seu prolongamento, a sua memória e a sua esperança e, por isso, essa amizade, embora entre desiguais, pode aspirar à perfeição. O amor cresce com a sabedoria e a virtude, porque à medida que nos tornamos mais virtuosos, também "nos desligamos dos desejos egoístas e elevamo-nos nos degraus do amor. Primeiro, só se ama a si mesmo, depois o outro e depois os outros" 12). O degrau superior do amor não é o eros, mas a agape. Não se veja, no entanto, oposição radical entre um e outro. O ideal é que o eros evolua para a agape e nela seja integrado. Enquanto o eros resulta do ímpeto vital da líbido e do sexo, é marcado pelo interesse próprio e procura mais a fruição do que a alegria, a agape "leva-nos a dar-nos ao outro, a regozijarmo-nos com o seu bem, a imaginar um todo do qual se é somente uma parte" (13). A clareza com que Aristóteles distingue e caracteriza justiça e amizade ajudanos a ver melhor a limitação de uma ética apenas preocupada com a justiça, como parece ser o caso da ética discursiva e formalista de Jurgen Habermas e do modelo comunidade justa de Lawrence Kohlberg. Considerar que a justiça constitui a finalidade culminante da vida ética é reduzir a vida moral ao cumprimento dos deveres e das obrigações para com os outros e ao respeito das leis e dos contratos.
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Notas 1) Machado, J. P. (1977). Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Cinco Volumes. Lisboa: Livros Horizonte 2) Besselaar, J. V. (1994). As Palavras Têm a sua História. Braga: Edições APPACDM 3) Aristóteles (1984). Nichomachean Ethics. (Introdução, tradução e notas de Terence Irwin). Indianapolis: Hackett 4) idem, V, 1129 a, p. 116 5) ibid., VIII, 1155 a 10, p. 208 6). Comte-Sponville, A. (1995). Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. Lisboa: Editorial Presença 6) Nichomachean Ethics, VIII, 1155 a, p. 208 7) idem, p. 208 8) Alteda Veiga, M. (1998). Vida, Violência, Escola, Família. Braga: APPACDM, p. 51 9) Aristóteles (1995). Les Grands Livres D`Éthique (Magna Moralia). Évreux: Arléa, 1209 b, 30, p. 198 10) idem, 1210 a, 10, p. 199 11) idem, 1210 a, 5 12) Guitton, J. e Antier, J-J. (1999). O Livro da Sabedoria e das Virtudes Reencontradas. Lisboa: Editorial Notícias, p. 29 13) idem, p. 31
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CONTINÊNCIA E TEMPERANÇA A temperança vem do latim temperantia, de temperare, que significa temperar, regular e guardar a medida. A continência significa saber conter-se. Saber dominar-se. O contrário da temperança é a intemperança e a avidez. O contrário da continência é a incontinência, o desregramento e a relaxamento. Aristóteles, na Ética a Nicómaco (1) afirma que há três condições de carácter a evitar: o vício, a incontinência e a bestialidade. O contrário do vício é a virtude e da incontinência é a continência. Não estamos, com a continência, ao contrário da temperança, perante uma verdadeira virtude, mas sim perante uma condição valiosa. A continência e a resistência ao vício e aos apetites excessivos são condições boas e valiosas, e necessárias à pessoa de virtude. Os seus contrários, a incontinência e a fraqueza de espírito e de vontade, são condições más que, embora não sejam vícios, contribuem para o desenvolvimento de estados viciosos. A diferença entre a pessoa continente e a pessoa incontinente reside no facto de a primeira basear o seu processo de deliberação e de decisão num cálculo racional, revelando possuir capacidade e vontade para que os seus actos obedeçam aos ditames da razão. A pessoa incontinente vive num perpétuo conflito entre o processo de deliberação e de decisão, baseado no cálculo racional, e a incapacidade para agir em conformidade com os ditames da razão. Ou seja, o incontinente, na passagem da decisão à acção, abandona o cálculo racional, porque lhe falta a capacidade e a vontade para resistir aos apelos dos apetites e dos prazeres excessivos ou não valiosos. A pessoa incontinente revela uma vontade fraca e, por isso, é facilmente vencida pelo apelo dos apetites e dos prazeres excessivos. Em linguagem popular, diz-se que o incontinente é aquele que cai facilmente na tentação, mas, ao contrário do imoderado, reconhece que devia ser capaz de resistir à tentação. É, por isso, que o incontinente vive num constante conflito entre as duas partes da sua alma, a parte racional e a parte sensível, ao contrário do intemperado que obedece apenas à parte sensível da alma, tanto no processo de deliberação e de decisão, como na passagem à acção. Essa é a razão pela qual o intemperado não sente nenhum conflito de deveres e, pelo contrário, obtém satisfação com a realização de acções intemperadas, sobretudo as que se relacionam com o tacto e com o paladar. É também essa a razão pela qual o incontinente é facilmente corrigido, enquanto o intemperado não tem cura. Enquanto a pessoa intemperada age em consonância com a decisão, porque pensa que está certo procurar o prazer em todas as circunstâncias e de forma excessiva, a pessoa incontinente pensa que é errado, mas não é capaz de resistir. Embora o intemperado e o incontinente se relacionem com os mesmos prazeres, de facto não o fazem da mesma maneira. O intemperado decide pelos excessos e pelos apetites, o incontinente não. O primeiro decide abusar dos prazeres em excesso, o incontinente não decide, isto é, decide bem, mas age mal. Será que a incontinência é fruto da ignorância, como julgava Sócrates? Ou é fruto de um falso ou incompleto conhecimento, como Aristóteles parece defender? Será que o incontinente pode possuir um certo conhecimento, limitado contudo, mas não possui verdadeira inteligência? Ou, por outras palavras, pode-se ser inteligente e incontinente? Ao discutirmos estas questões entramos no cerne da teoria do conhecimento do filósofo de Estagira. Vejamos, como ele responde a estas questões.
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Sócrates recusava a possibilidade de a pessoa conhecer o bem e preferir o mal. Seria impossível, portanto, a alguém agir em conflito com uma prévia deliberação e decisão orientadas pelo conhecimento do bem. De acordo com Sócrates, a nossa acção entra em conflito com o bem porque nós ignoramos o conflito entre a acção e a recta razão. Aristóteles opõe a esta concepção, a ideia de que a pessoa incontinente talvez não tenha uma noção exacta do conhecimento, mas apenas uma crença ou opinião pouco reflectida e nada interiorizada, sendo essa a razão pela qual o incontinente sucumbe, com tanta facilidade, ao excesso dos apetites e dos prazeres. O incontinente estaria na posição daqueles maus actores de teatro que apenas memorizaram as palavras e as dizem mecanicamente sem as sentirem. O incontinente revela um conhecimento inexacto ou incompleto e, em qualquer caso, não revela inteligência. O incontinente pode possuir o conhecimento, mas não o usa. Um outro aspecto a considerar, diz respeito ao objecto da incontinência. Quais são os tipos de incontinência? Será que, à semelhança da intemperança, a pessoa é incontinente apenas por referência aos prazeres do sexo e da comida (sentidos do tacto e do paladar) ou o seu objecto é mais amplo? Desde logo, ficam de fora os prazeres do espírito, pois esses nunca podem ser considerados excessivos. Seria absurdo acusar uma pessoa de gostar de música em demasia, ou de gostar de ler em excesso. Importa, por isso, distinguir os diferentes tipos de prazeres, porque há os prazeres necessários e valiosos e há os prazeres valiosos que não são necessários. E há, também, os prazeres que podem ser fruídos em excesso e os que não podem. Aristóteles (2) coloca, assim, o problema: "algumas fontes de prazer são necessárias; outras são valiosas em si mesmas, mas podem ser excessivas. As necessárias são as condições corporais, i.e. as que dizem respeito à comida, sexo...Outras fontes de prazer não são necessárias, mas são valiosas em si mesmas, como exemplo, a vitória, a honra, a riqueza e outras coisas boas similares". Contudo, há prazeres valiosos que, tomados em excesso, se tornam maus. É o caso da riqueza e do lucro e, até mesmo, da honra. Aristóteles estabelece uma outra distinção importante, no que diz respeito aos tipos de incontinência: a que incide sobre as emoções e a que depende dos apetites. A primeira é menos má do que a segunda. E explica (3) : "primeiro, a emoção parece dar ouvidos à razão, mas percebe mal o que ela tem para dizer. É como os criados apressados que se põem ao trabalho ainda antes de ouvirem todas as instruções, e por isso desempenham mal a tarefa". Ao invés, "o apetite só necessita da razão ou da percepção para dizer que isto é agradável e proceder rapidamente à sua satisfação imediata" (4). Decorre desta diferença, que a emoção segue a razão, de uma certa forma, mas o apetite não. É, por isso, que a incontinência baseada no apetite é mais vergonhosa do que a que resulta da emoção. O filósofo distingue, ainda, dois outros tipos de incontinência: a impetuosidade e a fraqueza. A pessoa impetuosa deixa-se conduzir pelas emoções e pelos sentimentos, não chegando sequer a deliberar e a decidir de acordo com o cálculo racional. A pessoa fraca delibera, mas os seus sentimentos levam-na a abandonar o resultado da sua deliberação. As pessoas temperamentais e ardentes são mais favoráveis à incontinência, porque mais dependentes da intensidade dos apetites. Convém ter presente, no entanto, que a crítica aristotélica ao vício da intemperança não significa, antes pelo contrário, a defesa da insensibilidade aos prazeres. O filósofo faz referências oportunas à temperança, considerada um meio termo entre a intemperança e a insensibilidade, uma e outra igualmente viciosas. Tal como há diversas espécies de prazeres, também há vários tipos de apetites. Aristóteles reconhece três tipos de apetites: os causados pela doença, os apetites bestiais 68
(i.e. não humanos) e os apetites humanos. Como a virtude e o vício são estados que não prescindem de uma certa dose de voluntariedade, a temperança e a intemperança, assim como a continência e a incontinência só dizem respeito aos apetites humanos, uma vez que os apetites bestiais e os que resultam da doença não dependem nem da vontade, nem do conhecimento, nem do cálculo racional. Posto isto, estamos em condições de dar uma definição rigorosa da pessoa continente e da pessoa incontinente. É continente a pessoa que é capaz de ultrapassar e vencer os apetites e os prazeres excessivos ou não valiosos. É incontinente a pessoa que se deixa vencer por eles. Enquanto a pessoa incontinente revela ser capaz de lamentar a sua incapacidade para agir de acordo com a razão, e, nessa medida, tem sentimentos de culpa, a pessoa intemperada não lamenta nada, nem revela sentimentos de culpa e, por isso, é incurável. Enquanto a incontinência entra em conflito com a deliberação tomada, a intemperança exprime uma decisão e é essa diferença que faz com que o incontinente não seja considerado injusto, mas apenas uma pessoa que pratica acções injustas. Procurando uma rigorosa distinção entre a pessoa temperada e a pessoa continente, Aristóteles acrescenta (5) : "a pessoa continente e a pessoa temperada são do tipo de nada fazerem que entre em conflito com a razão; mas enquanto a pessoa continente tem apetites maus, a pessoa temperada não os tem. A pessoa temperada é do tipo de não encontrar nada agradável que entre em conflito com a razão, enquanto a pessoa continente é do tipo de encontrar coisas agradáveis que entram em conflito com a razão, mas não se deixa conduzir por elas". É necessário, ainda, distinguir a pessoa continente da pessoa resistente e a pessoa incontinente da pessoa fraca. A continência opõe-se à incontinência e a resistência à fraqueza. Enquanto a continência consiste em vencer e superar, a resistência consiste apenas em segurar uma determinada posição. É, por isso, que a continência é mais valiosa do que a resistência. A pessoa fraca é a que é deficiente a resistir naquilo em que a maior parte das pessoas é capaz de resistir. Uma continuada condição de fraqueza pode resultar num estado de incontinência. Após estas distinções, estamos em condições de revelar a resposta dada por Aristóteles à pergunta: pode a pessoa incontinente ser inteligente? E a resposta só pode ser negativa, porque a pessoa inteligente deve ser, ao mesmo tempo, excelente no carácter e capaz de bem deliberar e de bem decidir. Ou seja, a pessoa inteligente deve saber fazer um bom uso da prudência, também chamada a virtude da boa deliberação. A inteligência requer e supõe a recta razão, não sendo admissível confundir inteligência com esperteza ou com conhecimento limitado. A pessoa inteligente não é apenas a que conhece, mas também a que sabe usar o conhecimento. Ora, a pessoa incontinente pode conhecer, mas revela não ser capaz de dar um uso racional ao conhecimento e, por isso, não pode ser considerada inteligente. Resta-nos, agora, definir e caracterizar a temperança, essa virtude da parte não racional da alma, e o seu contrário, a intemperança. A temperança é um meio termo relacionado com os prazeres do corpo. Para se compreender bem o que Aristóteles quer dizer por temperança, é preciso distinguir os prazeres da alma dos prazeres do corpo. A temperança só se preocupa com os segundos. O amor ao estudo, por exemplo, sendo um prazer da a alma, não tem que ver com a temperança, pois uma pessoa que ama esse prazer não pode ser considerada nem temperada nem intemperada. Há, também, alguns prazeres do corpo que nada têm a ver com a temperança. São eles, por exemplo, os prazeres que dependem dos sentidos da audição, cheiro ou visão. A temperança só diz respeito aos sentidos do tacto e do paladar, ou seja, aos prazeres do sexo e da mesa. Aristóteles nada diz contra a validade destes prazeres do 69
corpo, apenas recomenda temperança no seu uso. Tratando-se de prazeres que provêm do fundo dos nossos apetites - basta dizer que partilhamos com os outros animais o gosto por eles - estamos perante prazeres que facilmente se procuram em excesso, tornando a pessoa facilmente escrava deles. Este facto não deve fazer esquecer-nos que, num caso e noutro, estamos perante prazeres valiosos, desde que fruídos sem excesso, no momento certo, da forma correcta e na quantidade adequada. Com a intemperança, estamos perante um vício de excesso que leva a pessoa a gostar em demasia desses prazeres, com prejuízo de todos as outras coisas. Na verdade, "a pessoa intemperada revela um apetite por todas as coisas agradáveis, ou pelo menos pelas mais agradáveis de todas, e o seu apetite leva-a a escolher essas coisas à custa de tudo o resto" (6). O que melhor caracteriza a pessoa intemperada é o facto de orientar a vida em função dos apetites. Ao invés, a pessoa temperada não sente prazer nas coisas erradas e não sofre com a ausência temporária dos prazeres corporais, embora goste de os fruir no momento certo, da forma correcta e na quantidade adequada. Daí que os apetites da pessoa temperada devam concordar com a razão, porque, nela, tanto a parte não racional da alma como a parte racional, procuram aquilo que é valioso, na quantidade certa e na forma correcta. Com a continência e, sobretudo, com a temperança, estamos perante valores de sempre para os tempos de hoje. Tomás de Aquino (7) evidenciou bem a intemporalidade desta virtude cardinal, ao referir que a temperança se aplica aos prazeres mais necessários do indivíduo (comer e beber) e da espécie (fazer amor), que são também os mais fortes. Comte-Sponville (8) resume, assim, a importância da temperança para os dias de hoje: "a temperança é uma virtude para todas as épocas, mas tanto mais necessária quanto mais favoráveis elas são. Não é uma virtude de excepção, como a coragem (tanto mais necessária quanto mais difíceis são os tempos), mas uma virtude vulgar e humilde: virtude, não de excepção, mas de regra; não de heroísmo, mas de comedimento". Jean Guitton caracteriza a temperança desta forma sublime: "a temperança é uma virtude que releva da arte de desfrutar. O homem não está, como o animal, submetido às regras moderadoras dos seus instintos. Livre, é tentado a ir até ao fim dos seus desejos. Porque o homem pensa, ele é, então, muitas vezes prisioneiro da sua imaginação. O prazer temperado liberta do desejo, dando alegria. É o prazer do gastrónomo oposto à enorme saciedade do comilão enfartado. O amor cortês das cortes medievais, oposto à baixa pornografia dos erocenters modernos. Para manter o seu desejo é necessário conter o seu prazer, regra de ouro do bem comer: pouco mas bom, parando antes do desaparecimento da forme. Deve viver-se com o coração contente com pouco, disse Lucrécio. Era também o segredo de Francisco de Assis: aquele a quem a vida chega do que poderia ter falta? É na privação com medida, voluntária, que saboreamos, finalmente, a essência do que nós gostamos" (9). Notas 1) Aristóteles (1985). Nichomachean Etics. (Introdução, tradução e notas de Terence Irwin). Indianapolis: Hackett 2) idem, 1147 b 15, p. 182 3) ib., 1149 b 25, p. 187
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4) ib. 1149 b, 35, p. 187 5) ib. 1152 a , p. 196 6) ib., 1119 a 5, p. 83 7) Aquino, T. (1993). Suma Teológica, I e II, Ed. du Cerf 8) Comte-Sponville, A (1995). Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. Lisboa: Editorial Presença, p. 50 9) Guitton, J. e Antier, J-J (1999). O Livro da Sabedoria e das Virtudes Reencontradas. Lisboa. Editorial Notícias, p. 227-28
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A CORAGEM Coragem vem do latim cor que significa coração. Assim é, porque os romanos consideravam que a coragem tem mais a ver com o coração do que com a razão. É uma força, uma força da alma, uma das quatro virtudes cardinais. É um poder de acção física e moral. Uma causa agente que produz um efeito. É uma energia física e moral. A coragem é o mesmo que a bravura e a firmeza. O seu contrário é a cobardia, a poltronaria, a fraqueza e a pusilanimidade. A coragem é a justa medida acerca dos sentimentos de medo e de confiança. O medo é a expectativa de algo de mau que está para acontecer ou que pode acontecer. Embora todas as pessoas tenham receio das coisas más, como por exemplo, da doença, da má reputação ou da pobreza, a coragem não está relacionada com esse tipo de coisas. Recear a má reputação ou a doença é uma atitude correcta, tanto para a pessoa corajosa como para as outras pessoas. A coragem diz apenas respeito à ausência de medo da morte, em certas circunstâncias. E quais são essas circunstâncias? São as relacionadas com a possibilidade de morrer em combate, durante uma guerra, em que o cidadão é chamado a lutar para defender a sua pátria. Embora seja de esperar que a pessoa corajosa seja firme na doença, a coragem é uma virtude que admiramos quando se tem de usar a força e quando vale a pena morrer em combate. Qual é o estado de carácter da pessoa corajosa? A pessoa corajosa é capaz de ficar imperturbável perante os maiores perigos, aguentando firme contra os perigos, da forma correctamente prescrita pela razão, e em benefício de finalidades rectas. A pessoa corajosa é a que "aguenta firme as coisas certas e receia as coisas certas, em função da finalidade recta, da forma correcta, no momento certo, pois as acções e os sentimentos do corajoso reflectem o que vale a pena e o que a razão prescreve" (1). A pessoa que não tem medo de nada, em circunstância alguma, não pode ser chamada de corajosa. A temeridade não é o mesmo que coragem. É mais uma imprudência do que coragem. O temerário é audacioso, arrojado e intrépido, mas não é propriamente corajoso. O temerário pode, inclusivamente, pôr em perigo de vida os seus companheiros sem necessidade. A pessoa corajosa só enfrenta o perigo quando é necessário. Não o procura, mas é capaz de o enfrentar quando é necessário. A pessoa cobarde é a que receia as coisas erradas, da forma incorrecta e na altura imprópria. Ao cobarde falta-lhe confiança. Como tem medo de tudo, é uma pessoa pessimista e sem esperança. O corajoso, pelo contrário, é confiante e esperançoso. A pessoa corajosa enfrenta o perigo com confiança e firmeza porque é correcto faze-lo. E fá-lo porque aprecia a honra e recusa aquilo que é vergonhoso. O soldado que recusa a fuga, perante um inimigo superior em número, quando está em causa a defesa da sua cidade, é o exemplo de coragem ao mais alto nível. Na Magna Moralia, Aristóteles dedica todo o capitulo XX do livro I à coragem. À semelhança do que escreveu na Ética a Nicómaco, afirma que a coragem só se relaciona com alguns perigos e não com todos. Quem não receia a doença não pode ser considerado corajoso, mas sim louco. Ou mesmo se passa com quem não receia certos fenómenos da natureza, como os terramotos ou as inundações. O homem corajoso é "o que mantém o sangue frio nas circunstâncias em que a maior parte ou a totalidade dos homens tem medo" (2). E quais são as qualidades do homem de coragem? Em primeiro lugar, só a experiência do perigo permite dizer que uma pessoa é corajosa ou não: é por 72
experiência, com efeito, que se sabe que, em tal lugar, em tais circunstâncias é capaz de enfrentar o perigo com sangue frio. Quem não possui experiência não pode ser chamado de corajoso. As crianças, por falta de experiência, costumam manifestar uma certa insensibilidade face ao perigo. Ninguém, de bom juízo, as pode chamar de corajosas. Também não podemos dizer que é corajoso aquele que enfrenta o perigo por paixão. Por exemplo, os que estão apaixonados enfrentam qualquer perigo para estar com a pessoa amada. Seria loucura chamar a essas pessoas de corajosas, pois deixam de ser corajosas quando se esgota a sua paixão. Na verdade, o homem corajoso é aquele que pratica actos de coragem porque é correcto e é belo fazê-lo. É verdade que a coragem não prescinde de um certo impulso e de alguma paixão, mas é necessário que o impulso parta da parte racional da alma. "Na realidade, aquele que é possuído pela razão e enfrenta o perigo em vista do bem, aquele que não tem medo nessas circunstâncias, pode ser chamado o homem de coragem" (3). Ser corajoso não é a mesma coisa que não ter medo. É ter medo, mas, ainda assim, aguentar firme, porque é correcto e belo aguentar. Ser corajoso não é, também, ser capaz de enfrentar os perigos que estão longínquos ou que não estão para breve. É ser capaz de aguentar e suportar os perigos que estão próximos e que estão a chegar (4).
Notas 1) Aristóteles (1985). Nichomachean Ethics. (Introdução, tradução e notas de Terence Irwin). Indianapolis: Hackett, 1115 b 15, p. 73 2) Aristóteles (1995). Les Grands Livres d`Éthique (A Magna Moralia). Évreux: Arléa, 1190 b, 15 3) idem, 1191 a, 25, p. 92 4) idem, 1191 a, 30
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GENEROSIDADE E MAGNIFICÊNCIA A generosidade é um vocábulo que vem do latim generositate, que significa bondade da raça, boa qualidade. O adjectivo generoso vem do latim generosu, que significa de boa extracção, de boa raça e nobre. A magnificência vem do latim magnificentia, que significa nobreza e grandeza de alma. A generosidade é uma virtude que diz respeito à riqueza e, sobretudo, no dar partes da riqueza a quem precisa e na quantidade apropriada, tendo em conta a propriedade da pessoa que dá e as necessidades de quem recebe. Aristóteles limita a riqueza, objecto da generosidade, a tudo aquilo que pode ser medido pelo dinheiro. Não estamos, por isso, a falar de riqueza espiritual, de honra ou de glória, mas apenas do que pode ser transaccionado com dinheiro. A generosidade é uma virtude da dádiva. Distingue-se da justiça pelo facto de não se limitar a dar ao outro aquilo que é dele ou lhe pertence, mas sim aquilo que, sendo nosso, faz falta ao outro. A justiça não é necessária nem essencial à generosidade. Enquanto a justiça é uma virtude que depende, sobretudo, da reflexão, a generosidade depende, ainda mais, do coração e do temperamento. Comte-Sponville (1) distingue, assim, a generosidade da justiça: "é certo que a justiça e a generosidade têm ambas que ver com as nossas relações com os outros; mas a generosidade é mais subjectiva, mais singular, mais afectiva, mais espontânea, ao passo que a justiça, mesmo aplicada, conserva algo de objectivo, de mais universal, de mais intelectual ou mais reflectido". A pessoa generosa está num estado de equilíbrio e de meio termo entre a pessoa esbanjadora ( o vulgar perdulário) e a pessoa avara. O meio termo (generosidade) é uma virtude e a deficiência e o excesso são vícios, embora a falta de generosidade seja mais viciosa do que o esbanjamento. Seguindo a teoria aristotélica da virtude como um estado de meio termo, podemos dizer que a pessoa avara está mais afastada da virtude do que a pessoa esbanjadora. A pessoa avara caracteriza-se por gostar muito de receber e muito pouco de dar. À medida que a pessoa envelhece e se habitua a receber muito e a dar pouco ou nada, vai transformando essa condição num vício incurável. A pessoa esbanjadora, à medida que vai empobrecendo, vai aproximando-se mais do meio termo. Com um pouco de habituação e uma boa orientação, a pessoa esbanjadora pode tornar-se generosa, mas a pessoa avara tem a tendência para se afastar, cada vez mais, da média. A pessoa generosa sente mais prazer em dar às pessoas certas, nas quantidades adequadas e da forma correcta do que em receber, ainda que seja das fontes certas. A pessoa avara é a que leva a riqueza mais a sério do que aquilo que convém. A pessoa esbanjadora é a que é intemperada no gastar. A virtude da generosidade é muito apreciada porque é mais elogiado e digno de apreço quem dá do que quem recebe, porque não receber é mais fácil do que dar. Enquanto o generoso sente prazer no dar, o avaro goza com o guardar e, por vezes, chega ao ponto de apreciar a obtenção da riqueza a partir de fontes erradas. A generosidade é uma virtude porque procura finalidades rectas, isto é, dar às pessoas certas, nas quantidades adequadas, no momento certo e da forma correcta. A avareza é uma vício porque visa finalidades baixas, ou seja, guardar para si o máximo de riqueza, revelando deficiência no dar e excesso no receber. Como é mais fácil receber do que dar, não admira que seja mais comum a avareza do que a generosidade. A pessoa generosa sente prazer a dar. Aquele que dá por obrigação não pode ser considerado generoso. Tão pouco o que sofre com o dar. O que dá às pessoas erradas, ou não dá com objectivos rectos, também não pode ser considerado generoso. 74
Há algumas condições inerentes aos acto generoso. Não depende da quantidade que se dá, mas do estado do doador. O que se dá tem de provir de fontes correctas. Dáse apenas porque se gosta de dar, sem quaisquer outras finalidades ou razões. O generoso é o que dá de acordo com as suas posses e em função de finalidades rectas. Aquele que dá mais do que pode, não é generoso mas perdulário. A generosidade é uma média relacionada com o dar e receber riqueza e a pessoa generosa dá e gasta a quantidade certa e fá-lo com prazer. O generoso é mais pronto a dar benefícios do que a receber. A pessoa avara é deficiente no dar e excessiva no receber, embora não se apodere, forçosamente, dos bens dos outros de forma ilegítima. Isso acontece porque, embora o avaro ame em demasia a aquisição de bens, possui uma certa forma de decência que o leva a envergonhar-se de tomar para si os bens dos outros. Há, no entanto, algumas pessoas que levam o seu amor excessivo à aquisição de bens até ao ponto de se apoderarem dos bens dos outros, de qualquer forma. Estão, neste caso, todos os que exercem profissões degradantes ou os usurários que emprestam dinheiro a juros elevados. Mais reprováveis, ainda, são os que levam a sua paixão pela aquisição de bens ao ponto de roubarem, mostrando estar numa completa dependência dos apetites sensíveis. O que caracteriza a pessoa generosa? "o generoso não é prisioneiro dos seus afectos, nem de si próprio: pelo contrário, é senhor de si, e por isso sem desculpas e sem as buscar. Basta-lhe a vontade. Basta-lhe a virtude" (2). Aristóteles considera que há vícios mais afastados do meio termo e, portanto, da virtude, do que outros. A avareza é um vício mais afastado da generosidade do que o esbanjamento. Enquanto a avareza é um vício incurável que se acentua com a idade, o esbanjamento pode ser corrigido, com habituação e orientação espiritual, porque o esbanjador possui o traço e a motivação desejável do generoso. A pessoa esbanjadora, além do mais, não parece ser má, se atendermos à noção aristotélica de benefício ou prejuízo feito a outros pelos vícios. É pacífica a ideia de que a pessoa esbanjadora não age com a intenção de fazer mal aos outros. Quando muito, pode acabar por fazer mal a si própria. Contudo, quando o esbanjamento chega ao ponto de fazer mal, também, aos que dependem da fortuna do esbanjador, então já poderemos estar perante um vício com dolo, revelador de uma certa insensibilidade para com quem nos ama e depende nós. Aquele que gosta de esbanjar e aquele que é avaro têm em comum a partilha do egoísmo. E o que é o egoísmo? Aristóteles dedica o capítulo XIII do livro II da Magna Moralia à análise do egoísmo. Começa por referir que o homem de bem pode ter amizade por si próprio, mas isso não significa que seja egoísta. O egoísta é aquele que, em tudo o que seja útil, procura apenas o seu interesse próprio, ignorando os interesses e os direitos dos outros. A pessoa vil é sempre egoísta, pois essa pessoa age sempre na defesa do seu interesse próprio e nunca em defesa dos outros. O homem de bem é o contrário: age em defesa dos outros e é, por isso, que o homem de bem nunca pode ser egoísta. Claro está que todas as pessoas têm um impulso e uma inclinação para adquirirem bens e quase todas as pessoas acreditam que são merecedoras de bens, sobretudo de bens associados à riqueza e ao poder. Mas, o homem de bem sabe reconhecer aquilo que lhe pertence por mérito e por direito e aquilo que pertence aos outros. O homem de bem só fica com aquilo que lhe cabe e, em caso de dúvida, prefere ficar com menos do que aquilo que lhe cabe, porque, como foi sabiamente referido por Sócrates, é preferível ser vítima de injustiça do que cometer injustiça. O homem egoísta considera que lhe cabe tudo aquilo que lhe for possível adquirir e nunca crê que pode fazer mau uso dos bens. É, por isso, que os egoístas
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quando obtêm muito poder tendem a abusar do poder, pois revelam uma grande ignorância em relação às suas limitações e aos seus defeitos. O que caracteriza o homem de bem é precisamente a capacidade para renunciar, em favor dos seus amigos, aos bens úteis e a ser capaz de amar os seus amigos tanto como se ama a si. Por isso, o homem de bem não é egoísta em relação aos bens úteis, mas é, de uma certa forma, egoísta, em relação aos bens da alma. Ou seja, do ponto de vista do útil, o homem de bem prefere o seu amigo, mas do ponto de vista do belo e do bem, é ele próprio que ele prefere, pois reserva para si os melhores tesouros, aqueles que dizem respeito ao belo e ao bem, os tesouros da alma, da sabedoria e da verdade. Vejamos, agora, a magnificência. Enquanto a generosidade está ao alcance de qualquer pessoa virtuosa, a magnificência diz respeito apenas ao dar em larga escala, grandes quantidades de riqueza, para propósitos de grande dimensão, em troca de honra e glória. Aristóteles (3) define larga escala como algo de grandes dimensões, inacessível às pessoas vulgares, e que é próprio e adequado à riqueza de quem dá e às circunstâncias e finalidade. A pessoa magnificente é a que gasta uma grande quantidade de riqueza, num empreendimento digno, de maneira apropriada, numa realização valiosa. Embora a magnificência implique generosidade, distingue-as o seu objecto e a escala. Em comum, o facto de, tanto o generoso como o magnificente, gastarem o que está certo, de forma apropriada, em coisas valiosas. A magnificência de uma realização não é apenas proporcional à riqueza nela investida. Quanto mais valioso e excelente for o empreendimento, maior a sua magnificência. Aristóteles distingue dois tipos de magnificência: a que diz respeito à esfera pública e a da esfera privada. Como exemplos da primeira, os templos erguidos em honra dos deuses ou a oferta de grandes festas e eventos culturais, por ocasião de acontecimentos ou datas marcantes para a comunidade. Quando um pai oferece um casamento magnificente à sua filha, sem exceder ou ficar aquém das suas possibilidades, está a praticar um acto de magnificência da esfera privada. A mesma coisa, quando alguém oferece um presente de casamento ou de aniversário magnificente a um amigo. Tal como com a generosidade, também a magnificência tem o seu excesso e a sua deficiência. O excesso é a vulgaridade. A deficiência é a baixeza ou mesquinhez. Quando a pessoa se excede nos gastos, gastando mais do que está certos para as suas posses, e ainda por cima num empreendimento pouco valioso ou de mau gosto, dizemos que essa pessoa caiu na vulgaridade e no fausto. À pessoa vulgar falta-lhe a noção da medida e da proporção: gasta pouco quando se justifica gastar muito e gasta muito quando é correcto gastar pouco. A pessoa baixa e mesquinha é deficiente em tudo, não apenas na escolha dos fins rectos, mas também dos meios e quantidades apropriadas: em tudo aquilo que faz, procura gastar o menos possível, pensando sempre que está a gastar mais do que aquilo que devia. Na Magna Moralia, Aristóteles dedica um pequeno capítulo à magnificência, afirmando: "a magnificência é o meio termo entre o fausto e a mesquinhez. Diz respeito às despesas que é necessário fazer segundo as conveniências. Todo o homem que gasta quando não é necessário, é faustoso: por exemplo, todo o homem que oferece um jantar aos membros da sua associação como trataria os convivas de um casamento, é um faustoso...O mesquinho é o seu oposto, aquele que não faz uma grande despesa numa circunstância que o exige, ou que se a fizer (por exemplo, no casamento), o faz de uma maneira indigna e insuficiente" (4). 76
Embora a vulgaridade e a baixeza sejam vícios, porque se afastam da proporção, da medida e do meio termo, não poderemos considerá-los vis, em si mesmas, visto que não visam fazer mal aos outros. São mais deficiências de carácter do que deformações de carácter. Notas 1) Comte-Sponville, A (1995). Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. Lisboa: Editorial Presença, p. 95 2) idem, p. 102 2) Aristóteles (1985). Nichomachean Ethics. (Introdução, tradução e notas de Terence Irwin). Indianapolis: Kackett, p. 93 3) idem 4) Aristóteles (1995). Les Grands Livres d`Éthique (Magna Moralia). Évreux: Arléa, 1192 a , 5, p. 102
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GENTILEZA E MAGNANIMIDADE Gentil vem do latim gentile, que significa pertencer a uma família, a uma gens. E magnanimidade vem do latim magnanimitate, que significa grandeza de alma. A gentileza é uma virtude relacionada com a pequena escala e a magnanimidade, com a grande escala. Uma e outra dizem respeito às honras. Tal como a generosidade é a virtude do dar em pequena escala, também a gentileza é a virtude da honra em pequena escala. A relação da gentileza com a magnanimidade é semelhante à relação da generosidade com a magnificência. Tal como a generosidade, a gentileza não permite a obtenção de nada grande, mas estabelece uma atitude recta em assuntos de pequena e média grandeza. Tal como o dar e o receber dinheiro admite um meio termo, um excesso ou uma deficiência, também podemos desejar a honra em demasia ou menos do que deveríamos e podemos desejar a honra através de meios rectos ou vis. As pessoas apaixonadas pela honra amam-na mais do que deveriam e, regra geral, procuram obtê-la a todo o custo, não olhando aos meios para atingir tal fim. Às pessoas que assim procedem não podemos chamar virtuosas, porque não são capazes de deliberar prudentemente, ou seja, mostram-se incapazes de escolher os meios rectos para atingir os fins. Estas pessoas pecam por falta de capacidade de deliberação. No pólo oposto dos apaixonados pela honra, estão os insensíveis à honra, ou seja, aos que se mostram indiferentes a serem alvo de honrarias, ainda que tenham praticado acções excelentes. Neste caso, estamos perante uma deficiência. No primeiro caso, estamos perante uma pessoa que ama a honra mais do que está certo. No segundo caso, a pessoa revela uma deficiência em relação à honra, mostrando-se insensível para a apreciar. O correcto é a pessoa desejar a honra, na medida certa, pelos meios apropriados e na altura certa. Mas, qual é a definição apropriada para gentileza? Aristóteles diz-nos que a gentileza é o meio termo face ao sentimento de hostilidade. A pessoa gentil controla os seus sentimentos de hostilidade, mas também se zanga quando há razões para isso. Mas fá-lo apenas nos momentos certos, com as pessoas que merecem, na forma apropriada, e durante o tempo considerado adequado à injúria ou falta cometida contra ela. A diferença entre a pessoa gentil e a pessoa irascível é que a primeira está mais disposta a perdoar do que a segunda. O contrário da gentileza é a irascibilidade. A pessoa incapaz de se irar, mesmo quando há razões para isso, por exemplo, nos casos de ofensa pessoal grave, revela uma deficiência a que Aristóteles chama de incapacidade para se irar. Essa pessoa é digna de reparo, uma vez que as pessoas que não se zangam quando há caso para isso, revelam insensibilidade. Qual é a diferença entre a pessoa irascível e a que é insensível à ira? A primeira é a que se zanga com as pessoas erradas, na altura errada e mais do que está certo e por mais tempo do que o adequado. A segunda é a que não se zanga quando há caso para isso, na forma correcta e pelo tempo considerado adequado. Num caso, estamos perante um excesso e, noutro, perante uma deficiência. Em qualquer dos casos, são estados que se afastam do meio termo e, portanto, da virtude. As pessoas irascíveis zangam-se com facilidade com as pessoas que não merecem, na altura errada e mais do que está certo, mas costumam pôr termo a esse estado, com rapidez. As pessoas coléricas zangam-se não só facilmente, como rapidamente e em excesso, com toda a gente e a propósito de tudo. Pior do que os 78
irascíveis e os coléricos são as pessoas azedas que se zangam com facilidade e em excesso, embora contenham as suas emoções, e dificilmente se reconciliam e quase nunca perdoam. Restam as pessoas irritáveis, as quais estão a meio caminho das irascíveis, e que se irritam com o que não devem, durante mais tempo do que está certo. As pessoas irascíveis, coléricas e azedas estão mais afastadas do meio termo do que as pessoas que revelam deficiência, isto é, as insensíveis à ira. Aquelas são, também, mais difíceis de curar. Pelo contrário, as pessoas no estado intermédio são as mais louváveis, pois não se desviam nem por excesso nem por deficiência, e só se zangam com as pessoas que merecem, sobre as coisas certas, na forma apropriada e na altura certa. O excesso e a deficiência são de censurar e a censura será tanto maior quanto mais as pessoas se afastam do meio termo. As origens dos vícios que se opõem à gentileza são similares às origens dos vícios que se opõem à amizade. São elas, a excessiva preocupação com a opinião dos outros ou a excessiva indiferença. Quando as pessoas se preocupam excessivamente com a opinião dos outros, tendem a ser mais irritadiços, irascíveis e coléricos. Quando as pessoas são indiferentes às opiniões dos outros, tendem a ser insensíveis à ira. Estas atitudes excessivas resultam de uma atitude errada face à honra. Os irascíveis e os coléricos prezam a honra em demasia, mas da forma incorrecta. Os insensíveis à ira parecem manifestar pouco apreço pela honra. Vejamos, de seguida, a magnanimidade. A magnanimidade é forma latinizada do vocábulo megalopsichia, que significa literalmente ter uma alma grande. É uma virtude relacionada com a honra em grande escala, nos seguintes aspectos: a) como e para quê uma pessoa tem honra e estima por si próprio; b) em que é que ele espera que os outros o honrem; c) que outros pessoas ele honra e pelo quê; d) que outras pessoas ele quer que o honrem. A pessoa magnânima revela uma atitude correcta face à honra: nem a ama em demasia, nem a despreza. Por vezes, diz-se que a ética aristotélica não aprecia a humildade, visto estar tão preocupada com a honra. Essa apreciação não tem fundamento. Com efeito, Aristóteles considera que a pessoa virtuosa não devia ignorar e desprezar a honra, porque ela é um bem genuíno, desde que tomada na altura certa, na proporção correcta, de forma adequada, tendo em vista uma finalidade recta. Apesar disso, convém notar que, ao contrário da ética cristã medieval, que colocava a humildade em grande conta, a ética aristotélica não lhe faz referência. Neste aspecto, a ética aristotélica situa-se nos limites e na grandeza da civilização clássica grega, para a qual a magnanimidade e a magnificência eram virtudes superiores à humildade e à modéstia. Foi preciso esperar pela mensagem evangélica, trazida até nós por Jesus Cristo e pelos Apóstolos, para situar o homem na sua verdadeira pequenez face à grandeza de uma transcendência que o ultrapassa e que os gregos da época clássica ignoravam. O homem virtuoso de Aristóteles não se isolava da opinião dos outros, uma vez que não é possível ser feliz sem os outros. Contudo, também não exagerava na procura da honra e, sobretudo, não mentia acerca dos seus méritos com o fim de conseguir que os outros o honrassem. Assim sendo, não parece haver uma verdadeira oposição entre a humildade cristã e a magnanimidade clássica, tal como Aristóteles a entendia. Além do mais, não é possível encontrar nos textos de Aristóteles qualquer menosprezo pela humildade e pela modéstia, embora recuse os seus excessos. A pessoa magnânima é a que se considera merecedora de grandes coisas e é realmente merecedora delas. Aquele que se considera merecedor de grandes coisas sem as merecer, não só não pode ser considerado magnânimo, como se arrisca a ser chamado 79
de parvo ou insensato. A pessoa que é merecedora de pouco e se considera merecedora de pouco não pode ser considerada magnânima, mas sim temperada. Quais são os contrários da magnanimidade? O seu excesso é a vaidade e a futilidade. A sua deficiência é a pusilanimidade. A pessoa que pensa ser merecedora de grandes coisas sem o ser, é vaidosa e fútil. A pessoa que é merecedora de grandes coisas, mas considera que não tem valor para tanto, é pusilânime. Quanto mais merecedora é de grandes coisas e menos se considera, mais pusilânime se é. Quanto menos se é merecedor e mais se acha, mais vaidoso se é. A pessoa magnânima é boa e costuma reunir, em si, todas as restantes virtudes. Para se ser magnânimo não basta ser capaz de coisas em larga escala. É preciso, também, ser detentor das restantes virtudes. Os que pensam ser magnânimos apenas por serem capazes de grandes coisas, mas não possuem a virtude, limitam-se a querer imitar o magnânimo sem o serem (1). A pessoa magnânima faz o bem sem gostar de receber. Embora não procure o perigo, é capaz de o enfrentar numa grande causa. É moderado a mostrar a sua superioridade sempre que está na presença de pessoas vulgares, mas quando encontra pessoas de grande reputação, é capaz de mostrar toda a sua grandeza. A verdadeira superioridade da pessoa magnânima manifesta-se, também, pelo facto de estar mais preocupado com a verdade do que com as opiniões dos outros. Notas 1) Aristóteles (1985). Nichomachean Ethics. (Introdução, tradução e notas de Terence Irwin). Indianapolis: Hackett, 1124 b 5, p. 101
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BEM-QUERENÇA E CONCÓRDIA O bem-querer é uma espécie de generosidade e a concórdia uma espécie de harmonia. A concórdia visa a união, a paz, a moderação. O bem-querer pode evoluir para a amizade quando o objecto da nossa bem-querença se encontra próximo de nós. O contrário do bem-querer é o mal-querer. E o contrário da concórdia é a discórdia, a dissenção, a desavença e a confusão. Aristóteles refere-se a estas duas virtudes no capítulo XII do livro II da Magna Moralia. Começa por referir que a bem-querença é do mesmo domínio que a amizade, mas não é a mesma coisa que a amizade: "muitas pessoas sentem, por vezes, nascer, dentro de si, bem-querença por alguém, pelo simples facto de ver ou de ouvir dizer qualquer coisa em seu favor. A partir daí, somos nós também amigos dessa pessoa, ou não? Se alguém mostrasse sentimentos favoráveis a Darius, quando ele se encontrava na Pérsia, como poderia bem acontecer, não é verdade que pudesse haver uma amizade entre esse alguém e Darius. Por outro lado, a bem-querença pode, por vezes, parecer o princípio da amizade e transformar-se em amizade, se a ela se acrescenta o desejo de fazer o bem ao objecto do nosso bem-querer, quando isso é possível. A bem-querença pertence a um caracter ético que se dirige a outro caracter ético. Com efeito, não se pode dizer que uma pessoa quer bem ao vinho ou a qualquer outro objecto inanimado, ainda que sejam bons ou agradáveis; ao invés, se alguém for eticamente bom, esse alguém será objecto de bem-querer. Ora, a bem-querença não existe separada da amizade, pois ela pertence ao mesmo domínio. Assim, tem-se a impressão que ela é a amizade" (1). A concórdia está, também, muito próxima da amizade. A concórdia não se manifesta no domínio intelectual, mas no domínio prático e não na medida em que se pense a mesma coisa que a outra pessoa, mas sim na medida em que, ao pensar-se o mesmo, se fazem as mesmas escolhas, em função dos mesmos objectivos. A concórdia é, na realidade, o facto de se estar de acordo no pensamento, no domínio prático, com uma vontade idêntica (2). E Aristóteles exemplifica: "suponhamos, com efeito, que duas pessoas aspiram a exercer um cargo, cada uma pensando em exercê-lo sozinha, haverá ou não concórdia entre elas? Ao invés, se eu quiser exercer um cargo, e a outra pessoa quer, também, que eu o exerça, nestas condições, há verdadeiramente concórdia." (3). Neste último caso, estamos perante uma manifestação evidente de concórdia, porque as duas pessoas convergem para a defesa da mesma pessoa na escolha de quem vai exercer o cargo. É, por isso, que a concórdia é uma virtude secundária, embora importante, que só se manifesta no domínio prático. Não se pode manifestar em questões teóricas, mas apenas quando há necessidade de deliberar sobre questões de utilidade prática. Evidentemente que, tanto a bem-querença como a concórdia são afeições necessárias à amizade e é, na amizade, que elas melhor se podem manifestar. Os amigos caracterizam-se, sobretudo, pela bem-querença mútua e pela manifestação da concórdia em todas as questões práticas que a vida levanta e coloca.
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Notas 1) Aristóteles (1995). Les Grands Livres D`Éthique (Magna Moralia). Évreux: Arléa, 1212 a, 10, p. 209 2) idem, 1212 a, 20 3) idem, 1212 a, 20, p. 210
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A GENTILEZA E A POLIDEZ A gentileza está para a magnanimidade como a generosidade está para a magnificência e o contrário da gentileza é a irascibilidade. A pessoa que se zanga com as coisas certas, das pessoas que merecem a nossa zanga, da maneira correcta e no momento adequado, não pode ser considerada vil. A pessoa gentil também se zanga quando há caso para isso, mas fá-lo de maneira apropriada, na altura certa e durante o tempo necessário. A irascibilidade é uma deficiência na gentileza e, como deficiência, é de lamentar, porque se trata de a pessoa se zangar com as pessoas erradas, na altura inapropriada e por mais tempo do que o necessário. A gentileza tem algumas semelhanças com a polidez. Há quem duvide que a polidez seja uma virtude. Um nazi polido pode ser considerado uma pessoa virtuosa? Evidentemente que não. A gentileza, tal como a polidez, é uma virtude de etiqueta e, por isso, é ambígua e insuficiente. Não se pode bastar a si própria. Um pessoa vil não deixa de ter mau carácter pelo facto de ser polida. Grande parte da ignomínia alemã deveu-se ao facto de o extermínio de judeus ter sido preparado e conduzido por uma elite inteligente, civilizada e polida. Mas, pior do que isso, o holocausto nazi foi feito com a cumplicidade ou, pelo menos, a aceitação forçada, de um povo civilizado, ilustre e polido. A gentileza e a polidez não fazem parte propriamente da ética e da moral. A estética pressupõe uma certa gentileza e polidez. Uma e outra têm mais que ver com as boas maneiras do que com a moral. São mais uma aparência de virtudes do que virtudes propriamente ditas. A gentileza e a polidez nem sempre inspiram a bondade, a equidade, a complacência e a gratidão. São mais virtudes da aparência do que do interior da alma e, no entanto, só as apreciamos devidamente quando deparamos com a falta delas. A rudeza e a grosseria são, respectivamente, o contrário da gentileza e da polidez. Só quando deparamos com uma pessoa rude é que podemos dar o devido valor a uma pessoa gentil. Um excesso de gentileza e de polidez pode até incomodar. É, por isso, que o povo diz "é polido demais para ser honesto". O gentil e o polido em excesso passam por pouco verdadeiros, porque, por vezes, a honestidade, a seriedade e a verdade exigem que se desagrade a alguns. "Levada muito a sério, a polidez é o contrário da autenticidade. Os muito polidos são como crianças grandes demasiado bemcomportadas, prisioneiras das regras, iludidas pelos costumes e pelas conveniências" (1). Notas 1) Comte-Sponville, A (1995). Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. Lisboa: Editorial Presença, p. 23
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O AUTODOMÍNIO O autodomínio é uma virtude singular que procura ultrapassar o conflito gerado pela oposição entre a razão e as paixões. A sua ausência constitui uma das três coisas que nos podem tornar vis, a par dos vícios e da bestialidade. Aristóteles analisa esta virtude nos capítulos IV e VI do livro II da Magna Moralia (1), começando por criticar a tese socrática que negava a existência do autodomínio, pois dizia que ninguém pode escolher o mal sabendo o que é o mal. Na verdade, ao contrário do que pensava Sócrates, as pessoas que não têm autodomínio escolhem o mal, sabendo que estão a escolher o mal, não porque o prefiram racionalmente, mas porque se deixam vencer pelo império das paixões, não tendo força de vontade para lhe resistir. Pode-se perguntar, no entanto, se esse conhecimento é um verdadeiro saber ou uma mera opinião? No primeiro caso, a pessoa que faz o mal merece ser censurada. No segundo caso, a pessoa que não tem autodomínio faz o mal apenas porque possui uma vaga opinião do mal e não um saber verdadeiro e, nessa medida, não mereceria ser censurada. No entanto, todos sabemos que as pessoas incapazes de autodomínio estão muito mais sujeitas do que as outras a optar pelas más acções, quer por frouxidão quer pelo facto de não saberem aplicar aquilo que sabem. Oiçamos Aristóteles: "por conseguinte, não tem domínio de si, aquele que tendo um conhecimento das coisas boas, não o põe em acto. Cada vez que ele não põe em acto esse saber, pode-se dizer, sem cair no absurdo, que ele faz o mal, sabendo o que é o bem. O seu caso é semelhante ao das pessoas que dormem". (2). O filósofo avança, ainda, uma outra explicação: é possível ter-se um conhecimento geral sem se saber como aplicá-lo a casos particulares. Neste caso, a pessoa pode deter o saber, mas erra ao aplicar esse saber à resolução de um conflito particular. As pessoas sem autodomínio poderão cair, com facilidade, nesse erro e é, por isso, que embora conheçam o bem, são incapazes de resistir ao mal, sobretudo quando essa opção pelo bem as obriga a renunciar a prazeres. Neste caso, as paixões e os apetites tornaram inactivo o conhecimento e a pessoa deixa de obedecer à razão. Ao invés a pessoa com autodomínio é aquela que é capaz de obedecer à razão, embora seja confrontada, amiúde, com o desejo de ceder às paixões e aos apetites. Convém, no entanto, distinguir o autodomínio da resistência. O autodomínio diz respeito aos prazeres. Aquele que se autodomina é senhor dos seus prazeres, enquanto que a resistência diz respeito às penas e às dores. Aquele que resiste às penas é um homem resistente, mas não é, forçosamente, um homem com autodomínio. Aristóteles faz um outra distinção entre a ausência de autodomínio e a moleza. Enquanto a moleza significa a incapacidade para resistir à dor, a ausência de autodomínio significa a incapacidade para resistir aos prazeres indevidos, impróprios ou excessivos. E o que é o oposto do autodomínio? Aristóteles defende que é o deboche ou a vida dissoluta. Oiçamos Aristóteles: "existe um certo tipo de homem que chamamos dissoluto. Será o mesmo tipo de homem que aquele que não tem autodomínio? O dissoluto é aquele que pensa que os seus actos são os melhores e os mais úteis para si e que não possui nenhuma razão para se opor ao que lhe parece ser agradável. O homem sem autodomínio, pelo contrário, possui uma razão que o opõe aos fins em direcção aos quais o seu desejo o empurra" (3), mas não consegue resistir ao apelo dos seus desejos e paixões.
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Qual é o mais facilmente corrigível? O homem dissoluto não usa devidamente a razão, pois opta pelo mal, pensando que o mal lhe é mais útil e agradável. O homem sem autodomínio dispõe de razão, mas é incapaz de resistir aos desejos. Repare-se: o dissoluto não tem qualquer noção do bem, mas o homem sem autodomínio tem. O primeiro tem as características de um ser vicioso e vil por natureza, mas o segundo não, embora se possa também tornar vicioso, graças ao hábito. No entanto, é mais fácil alterar os maus hábitos do que uma má disposição natural. É, por isso, que o homem dissoluto é mais difícil de corrigir do que o homem sem autodomínio. Será que a pessoa com autodomínio é sinónimo da pessoa prudente? É verdade que o homem prudente também possui autodomínio e que, portanto, não apenas possui uma recta razão, mas também é capaz de agir em conformidade com a recta razão. Contudo, ser prudente exige mais do que ter autodomínio, porque a pessoa prudente também é capaz de escolher os melhores meios para atingir os fins rectos.
Notas 1) Aristóteles (1995). Les Grands Livres d`Éthique (Magna Moralia). Évreux: Arléa 2) idem, 1201 b, 15, p. 157 3) idem, 1202 b, 5, p. 163
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A PRUDÊNCIA A prudência é uma virtude do pensamento que é uma condição da virtude. Na Antiguidade Clássica e na Idade Média, era considerada uma das quatro virtudes cardinais, a par da justiça, da temperança e da coragem. Encontramos referências à prudência em Platão (1), mas também nos estóicos Diógenes e Cícero e, sobretudo, no pensamento cristão medieval de Santo Ambrósio, São Agostinho e São Tomás de Aquino. A prudência anda associada ao bom-senso, à moderação, à circunspecção e à ponderação. O seu contrário é a imprudência e a loucura. O vocábulo prudência vem do latim prudentia, o qual vem de providere, que pode significar prever e prover. É uma qualidade que permite detectar os perigos e evitar os erros. Os gregos usavam a palavra phronésis para a designar. Aristóteles considerava que se tratava de uma virtude intelectual, na medida em que tem que ver com a verdade, com o conhecimento e a razão. Para o estagirita, a prudência é a virtude que permite deliberar correctamente acerca do que é bom para a pessoa e agir de acordo com isso. Não cabe à prudência a eleição das finalidades, mas apenas a escolha dos meios adequados para atingir as finalidades. É a virtude da boa deliberação. Enquanto a virtude moral assegura a rectidão do fim que perseguimos, a prudência trata dos meios para alcançar esse fim. Tomás de Aquino (2) considerava que "para bem agir, é necessário não apenas fazer alguma coisa como também fazê-la como deve ser, ou seja, é necessário agir de acordo com a escolha correcta, e não apenas por impulso ou paixão. Mas, como a escolha incide sobre os meios em vista de um fim...é necessário que exista, na razão, uma virtude intelectual que lhe dê a perfeição necessária para bem se comportar relativamente aos meios a adoptar. Esta virtude é a prudência". A prudência não reina, mas governa e, nessa medida, é imprescindível à boa deliberação, à boa decisão e à boa acção. A prudência é uma espécie de disposição que permite escolher e realizar os actos cuja realização depende de nós. Aristóteles distingue a prudência de outras virtudes do pensamento, visto ser entendida como a virtude da boa deliberação, a qual constitui uma espécie de inquérito. Será que a boa deliberação é uma espécie de conhecimento científico ou uma crença ou uma aposta? Ou será uma espécie de sabedoria? Aristóteles nega que a prudência e a sabedoria sejam uma e a mesma coisa. A sabedoria tem por objecto aquilo que existe por demonstração e que é sempre da mesma maneira. A prudência refere-se a coisas que estão em mudança e que podem ser de várias maneiras. A prudência refere-se às coisas úteis, as quais não têm a propriedade de serem imutáveis. Uma coisa útil hoje pode tornar-se inútil amanhã. Ora, a prudência permite determinar a utilidade das coisas, tendo em consideração as circunstâncias particulares e o momento. A prudência também não é uma habilidade, embora se possa dizer que uma pessoa prudente é hábil. Mas nem todos os homens hábeis são prudentes, pois são conhecidos muitos homens vis que também são hábeis na maldade. Conhecimento científico não é, porque não se inquire o que já se sabe. A deliberação pressupõe um calculo racional, tendo em vista tomar uma decisão. Ao contrário dos estóicos, que viam na prudência a ciência das coisas a fazer e a evitar, Aristóteles não concordava com a identificação da prudência com uma forma de
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conhecimento científico, uma vez que só existe ciência do necessário, e a prudência trata apenas do contingente. Ao contrário da ciência, a boa deliberação supõe a incerteza, o risco, o acaso e o contingente. Apenas se delibera quando não se possui o conhecimento científico. O conhecimento científico não visa nem calcular nem tomar decisões. Também não pode ser uma simples crença, porque a boa deliberação exige correcção e rigor. Também não é uma aposta, porque esta não exige o raciocínio e é feita rapidamente, ao contrário da boa deliberação que pressupõe o cálculo racional e é feita com lentidão. A prudência é um saber-fazer. Pressupõe estar atento, circunspecção e cautela. É a virtude da paciência e da antecipação. Determina o que devemos escolher e o que devemos evitar. Não pode, contudo, confundir-se com receio e, muito menos, com cobardia. Os franceses utilizam a palavra sagesse para a designar, mostrando bem que a boa deliberação anda sempre associada à inteligência. Santo Agostinho dizia que a prudência é um amor que escolhe com sagacidade. Como a boa deliberação exige o uso da razão, parece não haver dúvidas que pertence ao pensamento. Mas não pode ser qualquer tipo de pensamento. Uma vez que a boa deliberação é uma espécie de deliberação correcta, importa saber o que é uma deliberação correcta. Para Aristóteles (3), " a boa deliberação é correcção que reflecte o que é benéfico, sobre a coisa certa, de forma correcta e no tempo certo". A boa deliberação só é incondicionalmente boa se promover uma recta finalidade. Haverá uma relação entre prudência e inteligência? Aristóteles pensa que sim: "se ter deliberado bem é próprio de uma pessoa inteligente, a boa deliberação será o tipo de correcção que expressa o que é expediente para a promoção do fim acerca do qual a inteligência é uma suposição verdadeira" (4). Uma vez que há diferentes espécies de correcção, é preciso distinguir a correcção da deliberação da pessoa inteligente, dos outros tipos. Aristóteles defende que a boa deliberação não é apenas a descoberta dos meios mais eficazes para a promoção dos fins. A boa deliberação visa alcançar o bem. Não é possível uma boa deliberação que vise um fim vil. O bom deliberador e a pessoa inteligente e virtuosa devem alcançar a conclusão correcta, utilizando o método adequado. A inteligência é uma virtude do pensamento que significa a boa deliberação sobre as coisas que contribuem para a nossa felicidade e que resulta numa correcta decisão sobre os fins rectos. Aristóteles, na Magna Moralia, afirma que é a prudência "que vigia todas as faculdades e é a governanta porque é ela que dá as ordens. Talvez ela seja como o intendente numa casa. De facto, é o intendente que organiza tudo, mas ele não governa tudo. A sua tarefa é a de fornecer tempo livre ao senhor da casa, a fim de que este não seja impedido pelas tarefas necessárias e não se veja impedido de aceder a alguma das nobres tarefas que lhe convêm. É, da mesma forma, que a prudência é uma espécie de intendente para a sabedoria, fornecendo-lhe tempo livre para completar a sua obra, ao controlar as paixões" (5). No capítulo III do livro II da Magna Moralia, o estagirita considera que a deliberação correcta diz respeito ao mesmo domínio da prudência, porque ambas tratam de escolher as acções que devemos eleger ou evitar. Por isso, está correcto dizer que a prudência não reina, visto não ter a função de escolher os fins, mas governa, porque lhe cabe escolher os meios adequados para os fins rectos. Na Magna Moralia, Aristóteles levanta, ainda, uma outra questão importante: pode a pessoa injusta ser prudente? A resposta do filósofo é negativa. O homem injusto não possui as características do homem prudente. É típico do injusto a incapacidade para discernir bem, para avaliar a diferença entre o bem e o mal e para controlar as paixões e apetites. 87
Com efeito, o homem injusto é incapaz de visar o bem absoluto e apenas distingue os bens que lhe fazem falta sem olhar aos outros. Ao contrário, o homem prudente caracteriza-se por saber discernir bem e por considerar as coisas de forma recta. No homem prudente, a parte sensitiva da alma está em paz com a parte racional. No homem imprudente, a parte racional da alma deixa-se dominar pela parte sensitiva. O injusto sabe, de uma maneira geral, que o poder, a riqueza e a autoridade são bens, mas não vai além de saber em que circunstância e de que forma são bens ou em que circunstâncias deixam de o ser. É, por isso, que o homem injusto não sabe usar correctamente a autoridade, a riqueza e o poder. Podemos mesmo dizer que quanto mais riqueza, autoridade e poder o homem injusto tiver, mais mal ele fará aos seus amigos e a si próprio. É interessante notar que Aristóteles, na Magna Moralia, coloca alguns problemas que não são abordados nas outras éticas. Um desses problemas é a questão do conflito de virtudes. Será que a pessoa pode ver-se perante um conflito de virtudes? E o que deve fazer? E dá o seguinte exemplo: "quando não é possível realizar, simultaneamente, acções corajosas e acções justas, quais devem tomar a precedência? Na realidade, no caso das virtudes naturais, já o dissemos, basta que se tenha o impulso para o bem sem ser necessário o concurso da razão. Mas, se uma pessoa depara com uma escolha, essa escolha terá de se exercer com a razão e com a parte racional da alma. Embora a pessoa tenha, ao mesmo tempo, que escolher a presença da virtude perfeita, nós dizemos que ela é acompanhada da prudência e do concurso do impulso natural para aquilo que é bom. Não haverá mais oposição de virtudes. Com efeito, uma virtude está por natureza submetida à razão: como esta ordena, a virtude inclina-se na direcção para onde a razão a conduz, pois é a razão que escolhe o melhor. De facto, as outras virtudes não podem nascer sem a prudência, nem a prudência perfeita sem as outras virtudes, e elas cooperam e seguem a prudência " (6). Considerada por Santo Agostinho como a virtude que separa com sagacidade o que lhe é útil e o que lhe é nocivo, a prudência é uma sabedoria utilitária que permite decidir bem. Tomás de Aquino, na Suma Teológica, considera que a prudência é uma virtude intelectual, que faz parte da razão, e que permite a escolha dos melhores meios a tomar. Ser prudente é ser razoável, não é ser cobarde. Jean Guitton afirma que "ser prudente é fazer prevalecer em si o homem de longa duração sobre o homem do instante" (7). E, mais à frente, acrescenta: "esta virtude dispõe, com efeito, a razão prática para discernir em qualquer circunstância o nosso verdadeiro bem e para escolher os justos meios para o realizar. Como disse Aristóteles, a prudência é a regra justa da acção. Não se confunde nem com a timidez nem com o medo, nem com a duplicidade nem com a dissimulação. Conduz a outras virtudes indicando-lhes regra e moderação. Guia o julgamento da consciência" (8). Notas 1) Platão (1987). República. Lisboa: Publicações Europa-América 2) Aquino, T.(1993). Suma Teológica. Tomo 2. Ed. du Cerf, p. 352 3) Aristóteles (1985). Nichomachean Ethics. (Introdução, tradução e notas de Terence Irwin). Indianapolis: Hackett, 1142 b 25, p. 163 4) idem, 1142 b 30, p. 16 88
5) Aristóteles (1995). Les Grands Livres d`Éthique (Magna Moralia). Évreux: Arléa, 1198 a, 10, p. 136 6) idem, 1199 a, 5, p. 147 7) Guitton, J. e Antier, J-J. (1999). O Livro da Sabedoria e das Virtudes Reencontradas. Lisboa: Editorial Notícias, p. 193 8) idem, p. 193
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A INTELIGÊNCIA E O CONHECIMENTO CIENTÍFICO A inteligência e o conhecimento científico são virtudes do pensamento. Aristóteles considerava a existência de dois tipos de virtudes da alma: as virtudes do carácter e as virtudes do pensamento. As virtudes do carácter exigem o exercício correcto da razão. O que é que isso significa? O exercício correcto da razão pressupõe a capacidade para escolher a condição intermédia e evitar tanto o excesso como a deficiência. Para se compreender melhor a classificação de Aristóteles, é preciso ter presente a sua teoria das duas partes da alma, uma parte racional e uma outra não racional. Por outro lado, importa acentuar, também, a existência de duas partes da alma racional: uma parte que estuda os seres cujas origens não podem ser de outra maneira, i.e. não podem mudar; e outra parte que estuda os seres cujas origens podem ser de outra maneira, ou seja, podem mudar, sendo, por isso, contingentes. A primeira parte, a qual incide sobre os seres necessários, cujas origens não podem mudar, é a parte científica da alma racional. A segunda parte, que estuda os seres cujas origens podem mudar e são, portanto, contingentes, é a parte do cálculo racional da alma. Resulta daqui que a pessoa virtuosa deve possuir, simultaneamente, a capacidade para decidir correctamente e deve ter a virtude do pensamento prático. Aristóteles considera que há três capacidades da alma que controlam a acção e a verdade: a percepção, a compreensão e o desejo. A virtude do carácter é um estado que decide e a decisão exige uma deliberação prévia. Para a decisão ser boa, a razão deve ser verdadeira e o desejo correcto, para que o que a razão afirma, seja o que o desejo procura. Neste caso, estamos perante pensamento e verdade preocupados com a acção. O pensamento preocupado com o estudo só está interessado em distinguir a verdade do falso. Nem a acção, nem a produção, fazem parte das suas preocupações. Apesar de as virtudes do carácter e as virtudes do pensamento serem distintas, há algo que as une. Esse algo é a decisão, a qual necessita de usar a compreensão e o pensamento (virtudes do pensamento), mas também as virtudes do carácter (cálculo racional e temperança, por exemplo), uma vez que a decisão é a origem da acção e fazer uma acção boa ou má requer tanto o pensamento como o carácter. Para que a alma seja capaz de atingir a verdade é necessário fazer uso de cinco estados: conhecimento prático, conhecimento científico, inteligência, sabedoria e compreensão. Neste capítulo, vamos apenas estudar dois: a inteligência e o conhecimento científico. Aristóteles procura definir o conceito de inteligência, através da caracterização da pessoa inteligente. Então, o que é próprio de uma pessoa inteligente? É alguém capaz de deliberar bem sobre o que é bom e benéfico para ele, não acerca de uma área específica, mas acerca do que promove a vida boa em geral. Não se espera que alguém delibere sobre o que não pode ser de outra maneira ou sobre o que já está demonstrado. Da mesma forma, é impossível fazer uma demonstração de uma coisa que pode ser de várias maneiras. Também só podemos deliberar sobre o que é contingente e não sobre o que é necessário, porque o que é necessário impõe-se, por si mesmo, à nossa deliberação e à nossa decisão. Decorre de tudo isto, que a inteligência não é o mesmo que conhecimento científico, nem o mesmo que conhecimento prático. Não é o mesmo que conhecimento prático, porque a inteligência diz respeito à acção e o conhecimento prático refere-se à produção. 90
Resta-nos, por isso, definir inteligência como um estado que permite alcançar a verdade, através do uso da razão, no que concerne à acção sobre o que é bom ou mau para o ser humano. Ou seja, a inteligência diz respeito à acção e não à produção. A produção tem a sua finalidade fora dela, mas a acção tem o seu fim nela própria, já que é próprio da acção fazer bem a si própria e fazer bem é a essência da inteligência. Se é próprio da inteligência a acção de fazer o bem, para nós próprios e para os outros, então tem de existir uma estreita ligação entre a inteligência e a temperança. Assim é porque, para se ser inteligente, é necessário saber controlar, através da razão e do hábito, aquilo que dá prazer e dor, a fim de que o nosso julgamento não seja corrompido pelos apetites e pelas emoções e paixões. Então, temos de reconhecer que não se pode usar a inteligência para fins vis, porque isso seria abusar dela. Ao contrário do conhecimento prático, que pode servir para fins rectos ou fins vis, a inteligência só serve para os primeiros. Vejamos, agora, o que Aristóteles entende por conhecimento científico. Ao contrário da inteligência, que diz respeito ao que é contingente, o conhecimento científico está relacionado com o que é necessário e não pode ser de outra maneira. Oiçamos o estagirita: ""aquilo que nós conhecemos cientificamente não admite ser de outra forma; e aquilo que admite ser de outra maneira, escapa sempre à observação, pelo que nós não podemos verificar se é ou não. Por isso, aquilo que é conhecido cientificamente é-o por necessidade; pois as coisas que são incondicionalmente necessárias são eternas, e as coisas eternas são indestrutíveis" (1). E Aristóteles acrescenta: "para além disso, toda a ciência é ensinável, e tudo que é conhecimento científico pode ser aprendido. Mas todo o ensino vem do que já se sabe...; certo ensino é feito por indução e outro por inferência dedutiva. A indução procura a origem, isto é, o universal, enquanto a inferência dedutiva procede dos universais" (2). Ou seja, tanto o ensino indutivo como o dedutivo requerem conhecimento prévio. Por isso, o conhecimento científico requer a demonstração a partir de premissas indemonstráveis. Resulta daqui, que o conhecimento científico é um estado demonstrativo e que, para alguém o possuir, é preciso ter uma certo nível de confiança apropriada e o conhecimento das origens. O conhecimento científico, chamado pelos gregos de episteme, é um estado cognitivo da alma, o qual contrasta com a doxa, entendida como uma mera crença. Um episteme, ou seja, um corpo organizado e racionalmente justificado de conhecimentos científicos, exclui tudo aquilo que não pode ser explicado e demonstrado racionalmente. É essa a razão pela qual o estagirita não considerava a ética, nem tão pouco a "ciência" política como ciências. A estas falta-lhes a exactidão própria das verdades necessárias. É, também, por isso, que a inteligência não é ciência. Notas 1) Aristóteles (1995). Nichomachean Ethics. (Introdução, tradução e notas de Terence Irwin). Indianapolis: Hackett, 1139 b 20, p. 151 2) idem, 1139 b 25, p. 151
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A COMPREENSÃO E A SABEDORIA A compreensão é uma virtude do pensamento preocupada com os primeiros princípios. O conhecimento científico diz respeito ao que é universal e necessário. Tudo o que é demonstrável tem origens e a compreensão é a virtude do pensamento encarregada de perceber as primeiras origens. Ao contrário da compreensão, que procura perceber as origens, a inteligência, a sabedoria e o conhecimento científico procuram estudar apenas aquilo que não é contingente e que, portanto, não muda. Os gregos usavam a palavra nous para designar a compreensão. Uma pessoa que tem o nous é a que compreende o que está a acontecer e a que faz uso do pensamento racional. Aristóteles distingue o nous teorético, aplicado aos primeiros princípios da ciência demonstrativa, a qual trata das verdades necessárias, e o nous prático que percebe as características relevantes de casos particulares, o qual trata de verdades contingentes. A sabedoria, ou sophia, em grego, aplica-se a quem é especialista num determinado campo do saber, teórico ou prático, ou a quem possui o conhecimento mais excelente. Nesta última concepção, a sabedoria diz respeito ao conhecimento científico e à compreensão, não à acção. Contudo, a sabedoria é, ainda, mais exigente do que a compreensão, pois refere-se apenas à forma mais exacta de conhecimento científico e, nessa medida, é conhecimento científico mais compreensão. Os romanos utilizavam o vocábulo sapientia para designar o discernimento e o conhecimento das coisas e dos homens. O contrário da sabedoria é a ignorância e a loucura cega. Aristóteles distingue a sabedoria da inteligência. Desde logo, a sabedoria não se interessa pela acção, mas apenas pelo conhecimento científico. A inteligência interessase pela acção e pelo saber prático. Quer isto dizer que a sabedoria só diz respeito ao que não muda e ao que não pode deixar de ser tal como é, i.e., ao necessário e não ao contingente. A inteligência, ao invés, diz respeito ao que muda e ao que pode ser de várias maneiras. Pode-se ser sabedor sem ser inteligente? Aristóteles parece responder afirmativamente quando se refere a determinados casos particulares. Oiçamos Aristóteles (1): "o que dissemos torna claro que a sabedoria é, simultaneamente, conhecimento científico e compreensão sobre o que é mais honorável por natureza. É, por isso, que as pessoas dizem que Anaxágoras ou Thales são sabedores, mas não inteligentes, quando as pessoas verificam que eles ignoram aquilo que os beneficia. E, assim, as pessoas dizem que o que eles sabem é extraordinário, surpreendente, difícil e divinal, mas sem uso, porque eles não procuram bens humanos". Uma das referências mais antigas à importância da virtude da sabedoria pode encontrar-se no Antigo Testamento, no Livro da Sabedoria, no qual o rei Salomão apresenta a sabedoria como a fonte da felicidade sobre a terra e o garante da imortalidade. Jean Guitton afirma que "a sabedoria é a procura de um método de vida e de acção, a construção de si próprio pela concretização das virtudes: a justiça, a prudência, a força e a temperança; a fé, a esperança e a caridade, dando acesso às três virtudes segundo Platão: o belo, o bem e o verdadeiro. Mas o sábio é também o acordado: aquele que se espanta com tudo, que desfruta tudo, aqui e agora. Para isso, é necessário dominar o tempo: encontrá-lo, pará-lo, saboreá-lo" (2).
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Notas Aristóteles (1985). Nichomachean Ethics. (Introdução, tradução e notas de Terence Irwin). Indianapolis: Hackett, 1141 b 5, p. 158 2). Guitton, J. e Antier, J-J. (1999). O Livro da Sabedoria e das Virtudes Reencontradas. Lisboa: Editorial Notícias, p. 207
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AS EMOÇÕES Aristóteles (1) procede a uma análise das emoções (ira, calma, amizade, inimizade, temor, vingança, vergonha, desvergonha, amabilidade, piedade, indignação, inveja e emulação) no livro II da Retórica. As emoções são "as causas que fazem alterar os seres humanos e introduzem mudanças nos seus juízos, na medida em que elas comportam dor e prazer: tais são a ira, a compaixão, o medo e outras semelhantes, assim como as suas contrárias" (2). O estagirita começa a sua análise das emoções, pela ira. E define a ira da seguinte forma: "admitamos que a ira é um desejo acompanhado de dor que nos incita a exercer vingança explícita por causa de um desdém manifestado contra nós, ou contra pessoas da nossa convivência, sem haver razão para tal. Se a ira é isto, forçoso é que o iracundo se volte sempre contra um determinado indivíduo, por exemplo contra Cléon, mas não contra o homem em geral; e que seja por algum agravo que lhe fizeram ou pretendiam fazer; a ele ou a algum dos seus; além disso, toda a ira é acompanhada de um certo prazer, resultante da esperança que se tem de uma futura vingança" (3). A ira vem acompanhada do desdém, o qual pode revestir-se de três formas: o desprezo, o vexame e o ultraje. Quem desdenha despreza o que julga não ter valor. O vexame é uma forma de afronta e de humilhação. O ultraje consiste em fazer ou dizer coisas que possam fazer sentir vergonha a quem as sofre. O ultraje visa provocar desonra e desonrar é desprezar. As pessoas que se encolerizam facilmente ficam mais dispostas a desdenhar, a desprezar e a ultrajar os outros. Em que situações é que a pessoa se encoleriza com mais facilidade? "O ser humano encoleriza-se, se alguém se opuser à sua acção ou se alguém não colaborar com ele, ou se, de alguma forma, alguém o perturbar quando está em tal estado" (4). Contra quem se encoleriza o iracundo? Contra quem escarnece dele, mostra desprezo pelas suas acções, age contra os seus interesses, se regozija com as suas desgraças e dá ouvidos a maledicências. E o que faz cessar a ira? O tempo faz cessar a ira. Dar tempo ao tempo é o melhor remédio para a ira. O tempo tudo cura, diz o povo. O contrário da ira é a calma. A calma é uma forma de apaziguamento e pacificação da ira. As pessoas mostram-se calmas com os que reconhecem as suas faltas e se arrependem e com os que agiram mal por erro e sem intenção. Quando é que a ira cessa, dando lugar à calma? Quando o alvo da ira mostra arrependimento, quando se deixa humilhar e, regra geral, com os necessitados e suplicantes, porque revelam humildade. Há situações propícias à calma: no jogo, nas festas, nos dias felizes, num negócio bem sucedido, na prosperidade e, em geral, na ausência de dor. Vejamos, agora, a amizade e o seu contrário, a inimizade. A amizade é uma forma de amar. É querer para alguém aquilo que pensamos ser uma coisa boa, por causa desse alguém e não por nossa causa. Quem é nosso amigo? É aquele que "se regozija com as coisas boas e se entristece com as nossas amarguras, sem outra razão que não seja a pessoa amada. Todos nós nos alegramos quando acontece aquilo que desejamos, mas todos nos entristecemos com o contrário, de tal sorte que a dor e o prazer são sinais da vontade. Também são amigos aqueles que têm por boas e más as mesmas coisas, e por amigos e inimigos as mesmas pessoas. Daí resulta, forçosamente, querer para os amigos o que se deseja para si próprio; de modo que são amigos aqueles que, ao quererem para si o que querem para a pessoa amada, mostram com toda a evidência que são amigos dela" (5). 94
E quem é que nós amamos? Amamos os nossos benfeitores, os amigos dos nossos amigos, os que estão dispostos a fazer-nos bem, quer em dinheiro quer em segurança e, ainda, os que nos dão prazer com a sua companhia e os que são agradáveis no trato e na convivência. A camaradagem, o parentesco e a familiaridade são espécies de amizade. Quais são as causas da inimizade? São, precisamente, a ira, o vexame e a calúnia. Basta supormos que uma pessoa manifesta tais sentimentos, com facilidade e sem justificação, para não gostarmos dela. O tempo cura a ira, mas não o ódio. Vejamos, de seguida, o temor e a confiança. Por que razão temos medo? "O medo consiste numa situação aflitiva ou numa perturbação causada pela representação de um mal iminente, ruinoso ou penoso" (6).Só os males que nos podem causar mágoas profundas é que nos metem medo. Não receamos os males longínquos, nem os que não estão prestes a acontecer. Todos os jovens sabem que vão morrer um dia, mas os jovens não receiam a morte, porque ela lhes parece muito distante. Os velhos, no entanto, receiam a morte, mais do que todas as coisas, porque ela lhes parece próxima. O perigo consiste na proximidade do que é temível. Receamos a injustiça dos poderosos, o ódio e a ira de quem tem poder para fazer mal e as calúnias e injúrias dos maledicentes. Regra geral, tem-se tanto mais razões para temer quanto mais dependente se está dos outros seres humanos, porque os homens deixam-se dominar, facilmente, pelos apetites, pelas paixões e pelo desejo do lucro. Quando é que temos razões para recear? "Os que podem cometer injustiça são temidos pelos que podem ser vítimas dela, porque, a maior parte das vezes, os seres humanos, se puderem cometer injustiça, cometem-na. E o mesmo sucede com os que foram vítimas de injustiça ou acham que foram, uma vez que estão sempre à espreita de uma oportunidade. São também temíveis os que cometeram injustiças quando dispunham dessa capacidade, porque, também eles, por sua vez, temem a vingança" (7). Quem são as pessoas que não têm medo? As pessoas que crêem que nenhum mal lhes pode acontecer, nomeadamente as que são possuidoras de grande riqueza, força e poder, ou as que pensam já ter sofrido toda a espécie de desgraças e as que já perderam a última réstia de esperança. As pessoas confiantes são o contrário das pessoas receosas. A confiança é o contrário do medo e as coisas que inspiram medo não trazem confiança e vice-versa. Inspiram confiança os meios de salvação em quantidade adequada e à mão de serem utilizados. Os nossos amigos também inspiram confiança. Quem são as pessoas confiantes? Regra geral, são "os que pensam ter alcançado grandes êxitos e não sofreram qualquer desaire, ou os que muitas vezes estiveram à beira de perigos e deles escaparam. Porque os homens tornam-se insensíveis por duas razões: ou porque não têm experiência ou porque têm meios à sua disposição" (8). Aqueles que nunca cometeram injustiças contra ninguém são os que têm mais razões para estar confiantes. Vamos passar, então, à vergonha e desvergonha. Aristóteles (9) começa por perguntar que tipo de coisas provocam a vergonha e o seu contrário, diante de quem e em que disposições nos envergonhamos? A vergonha é um certo desgosto ou perturbação de espírito relativamente a vícios, presentes, passados ou futuro, susceptíveis de resultar numa perda de reputação. A desvergonha é uma forma de insensibilidade à perda de reputação. As coisas que provocam a vergonha são os vícios que consideramos desonrosos, para nós e para as outras pessoas. Todos os actos injustos, intemperados, mesquinhos ou 95
cobardes podem provocar vergonha. Por exemplo, é vergonha abandonar, cobardemente, o campo de batalha; tirar proveito de pessoas que estão na nossa dependência ou estão abandonadas; não socorrer quem precisa da nossa ajuda quando estamos em condições de o socorrer; não suportar canseiras que os mais idosos ou os doentes são capazes de suportar; falar aos quatro ventos de si próprio e de tudo vangloriar-se. A vergonha é tanto maior quanto maior for a nossa culpa na prática dos actos censuráveis. É correcto não sentir vergonha daqueles que merecem o nosso desprezo ou são sistematicamente infiéis à verdade. Também está certo sentir mais vergonha daqueles que são nossos conhecidos do que daqueles que nos estão distantes ou nunca mais voltamos a ver. É, ainda, vulgar, sentir vergonha, não só dos nossos actos vergonhosos, mas também dos actos dos nossos antepassados, ou de quem nos une algum grau de parentesco. É a altura de passar à amabilidade. Ser amável é fazer um favor a alguém, que tem necessidade desse favor, sem exigir nada em troca e só no interesse do beneficiado. Quanto maior for a necessidade maior é o favor. As circunstâncias também podem aumentar a importância do favor, pois quanto mais críticas e difíceis as circunstâncias, mais o favor é necessário, e mais ele é apreciado pelo beneficiário. Àquele que se recusa a prestar um favor a alguém que já o beneficiou, noutra altura, quando tem condições para o fazer, diz-se que é ingrato. O mesmo se diz daquele que aceitou um favor e é incapaz de reconhecer o seu benfeitor. Ser amável não é a mesma coisa que ser piedoso. A piedade consiste numa certa pena causada pela aparição de um mal destruidor e aflitivo, afectando quem não merece tal desgraça, principalmente quando esse mal ameaça alguém que nos é ou está próximo (10). "É evidente que, por força das circunstâncias, aquele que está pronto a sentir piedade, se encontra numa situação de tal ordem que, há-de pensar que ele próprio, ou alguém da sua proximidade, acabará por sofrer algum mal, idêntico ou muito semelhante ao que referimos na nossa definição" (11). Sentimos piedade quando algo de mal acontece a quem não merece. Quando algo de mal acontece a quem merece, por exemplo, a quem mata sem razão, não sentimos piedade, mas sim alívio pelo castigo merecido. Quais são as causas que podem provocar piedade? São as causas dolorosas ou destruidoras, como por exemplo, a morte, a doença ou os maus tratos, e os males causados pela falta de sorte, como por exemplo, a fealdade ou a invalidez. A indignação é o contrário de piedade. Enquanto a piedade é a pena que se sente por males imerecidos, a indignação é a pena experimentada por êxitos imerecidos. Não se confunda, no entanto, indignação com inveja. Tão pouco a inveja é o contrário da piedade. A inveja é uma pena perturbadora que concerne o êxito, não de quem não o merece, mas de quem é nosso igual e semelhante (12). A inveja é um obstáculo à piedade, pois quando uma pessoa sente tristeza de algo de bom que alguém possa vir a ter, necessariamente sentirá prazer pela sua privação ou perda. As pessoas que adquiriram, recentemente, um bem imerecidamente, provocam mais indignação. É o caso dos novos-ricos, cuja súbita fortuna, pode suscitar não só inveja, mas também indignação. Quando um homem de bem não obtém o que é proporcional à sua virtude, isso é motivo de indignação. Na Magna Moralia, Aristóteles define a indignação como meio termo entre a inveja e o mal-querer. O sentimento de indignação diz respeito às coisas boas que acontecem por acaso a quem o não merece. É uma espécie de pena. É, então, susceptível de indignação aquele que pode provocar pena em tais circunstâncias. 96
A inveja é o oposto da indignação. O invejoso terá pena simplesmente do sucesso de qualquer um, quer mereça o sucesso quer não. Da mesma forma, o malquerente rejubila indistintamente com a desgraça tanto de quem a merece como de quem não a merece. E a emulação? O que é e em que condições se sente a emulação? Que coisas a provocam? Aristóteles (13) define a emulação como "um certo mal-estar ocasionado pela presença manifesta de bens honoríficos e que se podem obter em disputa com quem é nosso igual por natureza, não porque tais bens pertençam a outrem, mas porque também não nos pertencem (razão pela qual a emulação é uma coisa boa e própria de pessoas de bem, ao passo que a inveja é desprezível e própria de gente vil; assim, enquanto uns, através da emulação, se preparam para conseguir esses bens, outros, pelo contrário, através da inveja, impedem que o vizinho os consiga). É forçoso admitir, então, que émulos são aqueles que se julgam dignos de bens que não têm, mas que lhes seria possível vir a conseguir, uma vez que ninguém ambiciona aquilo que lhe é manifestamente impossível". E quem é mais dado à emulação? Os jovens e os magnânimos, antes de mais. Mas também os que possuem muitos amigos, riqueza e cargos públicos elevados. E quem é que suscita a emulação? São, sobretudo, aqueles a quem muitos desejam igualar-se ou a quem muitos admiram. É o caso das pessoas muito corajosas, muito sabedoras ou que têm muito poder. O contrário da emulação é o desprezo, assim como o facto de sentir emulação é o inverso de desprezar. Naturalmente, desprezamos as pessoas que não admiramos ou que não queremos igualar. Vejamos, agora, a inveja. A inveja consiste numa certa pena sentida contra os nossos semelhantes, motivada pelo êxito alcançado. Não sentimos inveja de quem não está próximo de nós ou de quem não é da nossa estirpe, parentesco, idade, disposição, reputação e posses. Os ambiciosos são mais invejosos do que os que não têm ambições. E os que são grandes amantes da glória também são propensos à inveja. "O mesmo sucede com os que têm ou chegaram a adquirir tudo quanto nos caberia ter tido ou alguma vez tivemos: é por isso que os velhos têm inveja dos jovens, e os que esbanjaram muito em pouca coisa, dos que adquiriram muito por pouco. Também os que a custo conseguiram alguma coisa, ou nem a conseguiram, invejam os que tudo conseguiram rapidamente" (14). E o que é o sentimento da gravidade? Na Magna Moralia, Aristóteles refere que a gravidade se situa entre a arrogância e a complacência. Diz respeito às relações humanas. O homem arrogante é o que se considera mais do que todos os outros, não achando ninguém digno de se equiparar com ele. O homem complacente é o que se dá com toda a gente, de qualquer maneira e em todas as ocasiões. Nenhuma destas duas atitudes extremas é louvável e é o homem grave que merece elogio. O homem grave é o que se relaciona, por palavras e acções, com quem é digno desse relacionamento, de forma apropriada e nas circunstâncias certas (15). Vejamos, por último, o pudor. O pudor é o meio termo entre o impudor e a timidez e diz respeito quer às palavras quer aos actos. Com efeito, "o impudico é o que fala e age ao acaso, em qualquer circunstância e com toda a gente. O tímido é o oposto, é o que se abstém de toda a acção e palavra, com toda a gente ( um tal homem é incapaz de agir)" (16). Ao invés, o homem pudico é o que se situa entre aqueles dois extremos. Por isso, é capaz de agir e de dizer o que é preciso e quando é necessário. O pudor anda associado à decência, à discrição, à reserva e à modéstia. O seu contrário é o impudor, a indecência, a indiscrição e a provocação. Vem do latim pudor, 97
que significa moderação e de puritas, que significa pureza, e de pudere, que significa ter vergonha. O pudor em excesso pode cair no puritanismo e na pudibundice. O pudor, sem excesso, impede-nos de dizer ou fazer aquilo que pode ferir a decência, chocar o gosto dos outros ou de incomodar moralmente os outros sem necessidade. O Catecismo da Igreja Católica enuncia, da seguinte forma, a importância do pudor: "a pureza exige o pudor, parte integrante da temperança. O pudor preserva a intimidade da pessoa. Designa a recusa de mostrar aquilo que deve ser escondido...Protege o mistério das pessoas e do seu amor. Convida à paciência e à moderação na relação amorosa. O pudor é modéstia. Inspira a escolha do vestuário, mantém o silêncio ou a reserva onde transparece o risco de uma curiosidade malsã. Torna-se discrição" (17). Sobre a necessidade de reencontrar a virtude do pudor, Jean Guitton esclarece: "eu espero e acredito nisso (no regresso ao pudor). Que século mais impudico que o nosso! Sem intimidade, iniciação, mistério. Sem silêncio à volta das palavras. Resultado: nós estamos em breve enjoados de impudor. Dissipa a beleza, como os Orientais o sabiam, quando inventaram as roupagens, as pregas, os véus. Amanhã, a moda reencontrará o vestido e o véu; nós redescobriremos o fato, a demora, o mistério, a expectativa e o silêncio" (18).
Notas 1) Aristóteles (1998). Retórica. (Tradução e notas de Manuel Júnior, Paulo Alberto e Abel Pena). Lisboa: INCM 2) idem, p. 106 3) idem, 1378 b, p. 107 4) idem, p. 109 5) idem, p. 115 6) idem, p. 118 7) idem, p. 119 8) idem, p. 121 9) idem, p. 121 10) idem, p. 127 11) idem, p. 127 12) idem, p. 130
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13) idem, p. 135 14) idem, p.134 15) Aristóteles (1995). Les Grands Livres d`Éthique (Magna Moralia). Évreux: Arléa, 1192 b, 30, p. 105 16) idem, 1193 a , 5, p. 107 17). Catéchisme de l`Église Catholique. (1992). Cidade do Vaticano: Ed. Mame e Plon, artigo 2521 18) Guitton, J. e Antier, J-J. (1999). O Livro da Sabedoria e das Virtudes Reencontradas. Lisboa: Editorial Notícias, p. 199
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O CARÁCTER DO JOVEM, DO ADULTO E DO IDOSO Existem diferenças significativas entre o carácter do jovem, do adulto e do idoso? Aristóteles (1) crê que sim. "Os jovens são propensos aos desejos passionais e inclinados a fazer o que desejam. E de entre estes desejos há os corporais, sobretudo os que perseguem o amor e face aos quais são incapazes de dominar-se; mas também são volúveis e rapidamente se fartam dos seus desejos; tão depressa desejam como deixam de desejar...Também são impulsivos, irritadiços e deixam-se arrastar pela ira. Deixamse dominar pela fogosidade; por causa da sua honra não suportam que os desprezem, e ficam indignados se acham que são tratados com injustiça". Os jovens gostam mais de vitórias do que honrarias e a sua relação como dinheiro é de uma certa displicência, porque ainda não têm a experiência da necessidade. São optimistas por natureza, preferem o belo ao conveniente e caem, com facilidade, no excesso. Quando cometem injustiças é mais por insolência e ignorância do que por maldade. As pessoas que estão no auge da vida não são "nem demasiados confiantes (o que é temeridade), nem demasiado receosas, mas mantêm a justa medida em ambas as situações; nem confiantes em tudo, nem totalmente desconfiados, antes emitem juízos conforme a verdade; não vivem só para o belo nem para o útil, mas para ambas as coisas; não vivem só para a frugalidade, nem para a prodigalidade, mas para a justa medida. O mesmo se diga relativamente ao arrebatamento e ao desejo. Nos adultos, a temperança vai acompanhada de coragem e a coragem de temperança. Nos jovens e nos idosos, estas características estão separadas: os jovens são valentes e licenciosos, os idosos moderados e cobardes" (2). E o carácter do idoso? No fundamental, o idoso possui um carácter oposto ao do jovem. A experiência, a longa vida e os muitos enganos, desastres e acasos da fortuna fazem com que os idosos sejam cautelosos em demasia. São desconfiados e pessimistas e, não raras vezes, mesquinhos e cépticos. Têm mais propensão para a cobardia do que para a coragem, são frios de temperamento e nada mais parece entusiasmá-los. São mais egoístas do que o necessário, vivem mais virados para o útil do que para o belo e são pessimistas em razão da sua experiência, pois a vida ensinou-os que a maior parte das coisas que nos acontecem são más. Vivem de recordações mais do que de esperanças e gostam de falar do passado porque sentem prazer em recordar. Os seus desejos ou já deixaram de existir ou, a existirem, nem procuram dar-lhes cumprimento. Em tudo são mais calculistas que apaixonados. Andam sempre a queixar-se, não apreciam brincadeiras e gostam das lamentações. Será possível, também, fazer uma distinção entre o carácter dos que têm nobreza, dos que têm riqueza e dos que são poderosos? Aristóteles acha que sim. O carácter próprio da nobreza é a ambição, ou seja, o acrescentar bens aos bens que já se possuem. O nobre revela tendência para desprezar quem lhe é inferior. Embora o nobre seja aquele cujas virtudes são inerentes a uma estirpe, muitos deles são de vil carácter. E Aristóteles explica porquê: "nas gerações humanas há uma espécie de colheita, tal como nos produtos da terra e, algumas vezes, se a linhagem é boa, nascem durante algum tempo homens extraordinários, depois vem a decadência. As famílias de boa estirpe degeneram em caracteres tresloucados" (3). Os ricos costumam ser soberbos e orgulhosos, porque julgam poder comprar tudo com o dinheiro. Gostam do luxo e da ostentação. São petulantes e, às vezes, grosseiros, porque estão habituados a ver satisfeitos todos os seus desejos. Os novos-
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ricos possuem os mesmos caracteres dos ricos, mas revelam possuir os vícios dos ricos ainda em maior grau. Os novos-ricos são, por natureza, intemperados e insolentes. Os que têm poder possuem caracteres muito semelhantes aos que têm riqueza. Os poderosos são ambiciosos, mas costumam ser mais diligentes e temperados do que os ricos. "Também são mais diligentes porque têm mais responsabilidades e são obrigados a velar por tudo o que diz respeito ao seu poder" (4).
Notas 1) Aristóteles (1998). Retórica. (Tradução e notas de Manuel Júnior, Paulo Alberto e Abel Pena). Lisboa: INCM, p. 136 2) idem , p. 140 3) idem, p. 141 4) idem, p. 142
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BIOGRAFIA DE ARISTÓTELES Aristóteles nasceu em 384 a.C., em Estagiros, cidade da Calcídia, onde se falava o grego, apesar de se situar a grande distância de Atenas e de estar na dependência do rei da Macedónia. O pai de Aristóteles, Nicómaco, era médico pessoal do rei Amintas II, pai de Filipe da Macedónia e a mãe, Faístias, era natural de Cálcia, na Eubeia, onde o filósofo viria a falecer, em 322 a. C., com 62 anos de idade. Tendo perdido os pais muito cedo, o filósofo foi educado por um tutor, Próxeno d`Atarneia, cujo filho, Nicanor, adoptaria, mais tarde. O ano de 366 foi marcante para o percurso intelectual do estagirita, já que foi, nesse ano, que ele se mudou para Atenas, com a idade de 17 anos, para estudar na Academia de Platão, onde permanecerá até à morte do mestre, vinte anos depois. Durante os 20 anos em que estudou e ensinou na Academia, Aristóteles teve oportunidade de privar com os grandes nomes da intelectualidade de Atenas, como Platão, Eudóxio, Heraclites de Ponto e Xenócrates. As relações entre Aristóteles e Platão estão envoltas em algum mistério, pois as versões contemporâneas são contraditórias e pouco fidedignas. Parece não haver dúvidas que foram amigos e que Aristóteles nunca deixou de admirar e apreciar a obra de Platão, embora discordasse de alguns aspectos, nomeadamente da doutrina platónica das Ideias. Na sua obra A Política, Aristóteles terá oportunidade de se distanciar de algumas concepções políticas de Platão, desenvolvidas, por ele, na obra A República, nomeadamente a comunhão de mulheres e a propriedade comum. Numa passagem da Ética a Nicómaco, Aristóteles faz a seguinte referência a Platão: "uma pesquisa deste género torna-se difícil, uma vez que a doutrina das Ideias foi introduzida por amigos. Mas será, talvez, de admitir que é preferível e para nós é também uma obrigação, se queremos ao menos salvaguardar a verdade, sacrificar até os nossos sentimentos pessoais, especialmente quando se é filósofo: apreciamos tanto a verdade como a amizade, mas para nós é um dever sagrado conceder a primazia à verdade" (1). Seja como for, Aristóteles só abandona a Academia após a morte do mestre, ocorrida em 347, em Atenas. Provavelmente, o facto de Platão ter escolhido o sobrinho, Espeusipo, para dirigir a Academia, não terá caído bem em Aristóteles que, decepcionado com a escolha, abandona Atenas e vai para Tróada, em Assos, na Ásia Menor, onde ensina durante três anos, sob a protecção de um antigo aluno, chamado Hérmias, tornado soberano de Assos. Aristóteles passa, nesse período, por uma fase de grande criatividade, tendo escrito aí, algumas das suas obras mais importantes e feito importantes estudos de biologia. Com a morte violenta de Hérmias, em 345, Aristóteles vê-se obrigado a fugir de Assos, levando consigo a sobrinha de Hérmias, Pítia, com quem viria a casar. O amor que Aristóteles dedicou à sua primeira mulher, Pítia, levou-o a incluir no testamento, após a morte prematura de Pítia, que os restos mortais dela deveriam ser misturados com os seus. Após a morte prematura de Pítias, o filósofo viria a casar com Herpília, da qual teve um filho, a que deu o nome de Nicómaco e a quem dedicou um dos seus mais importantes livros: A Ética a Nicómaco. Fugido apressadamente de Assos, Aristóteles refugiou-se em Mitilene, situada nas vizinhanças de Assos e ali permaneceu dois anos. Em 343, o rei Filipe da Macedónia pediu a Aristóteles que fosse para Pella, junto da cidade de Tessalónica, com o objectivo de se tornar preceptor do filho, o futuro rei Alexandre da Macedónia. Após o assassinato do rei Filipe, em 336, Alexandre sobe ao trono e inicia uma vaga de 105
conquistas sem paralelo na História da Humanidade. Descontente com o rumo dos acontecimentos imprimido pela política imperialista de Alexandre, Aristóteles deixa a corte da Macedónia e regressa a Atenas, para abrir uma nova escola, a que deu o nome de Liceu, por se situar próximo do templo dedicado a Apolo Lício, entre o monte Licabeto e o rio Ilisso. A criação do Liceu levou ao arrefecimento das relações de Aristóteles com alguns dos grandes nomes que ensinavam na Academia, como o seu amigo Xenócrates, entretanto nomeado director da escola platónica. Com a morte prematura de Alexandre, em 323, o partido anti-macedónico ganha força em Atenas e Aristóteles sente-se ameaçado e é considerado suspeito. Demófilo lança contra Aristóteles uma acusação de impiedade, pelo facto de ele ter sido protegido de Hérmias e de lhe ter, supostamente, dedicado um "hino à virtude", como se tratasse de um deus. Uma tal acusação podia levar à condenação à morte, pelo que o estagirita, conhecedor do infame processo movido a Sócrates, achou por bem abandonar, definitivamente, Atenas. Aristóteles refugiou-se em Cálcia, na Eubeia, cidade natal da mãe, onde possuía uma propriedade, vindo aí a falecer, aos 62 anos de idade, no ano de 322.
Notas 1) Aristóteles (1985). Nichomachean Ethics. (Introdução, tradução e notas de Terence Irwin). Indianapolis: Hackett, 1095 b 12, p. 8
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