1ª edição
Curitiba - PR 2010
Quem somos? A saga menonita: rompendo a barreira cultural Coordenação editorial: Walter Feckinghaus Edição: Sandro Bier Revisão: Josiane Zanon Moreschi Capa: Lilian P. Machado e Sandro Bier Editoração eletrônica: Lilian P. Machado e Josiane Zanon Moreschi Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Quem somos? 1930-2010 : a saga menonita : rompendo a barreira cultural / ; [Udo Siemens (org.)]. -- 1. ed. -- Curitiba, PR : Editora Evangélica Esperança, 2010. Vários autores. ISBN 978-85-7839-053-2 1. Igreja Evangélica Menonitas e Irmãos Menonitas - História I. Siemens, Udo. 10-08921
CDD-289.709
Índices para catálogo sistemático: 1. Igreja Evangélica Menonitas e Irmãos Menonitas : História 289.709
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AGRADECIMENTOS
a Hildegard Neufeld, idealizadora do projeto e incentivadora incansĂĄvel a Roseli S. Fast dos Santos, conectando todos a Lilian Pankratz Machado, por disponibilizar seus dons artĂsticos
Dedicatória
A nossos pais por sua fé e ousadia. A nossa geração, empenhada na transição. A nossos filhos, para que mantenham a fé em Jesus Cristo, o Senhor.
Sumário
Prefácio................................................................................................11 Introdução...........................................................................................13 1. Badensia, um nome surpreendente! .......................................17 2. Menonita, conte sua história! ...................................................21 3. Pacifismo e Serviço Militar: Excludentes ou complementares? ........................................... 57 4. Quando um raio transformou as pessoas ............................... 69 5. O multilinguismo nas comunidades menonitas .................... 71 6. Trabalho missionário das Igrejas Irmãos Menonitas no Brasil ....................................................................................... 77 7. Missões da Igreja Menonita - AEM .......................................... 93 8. Por que os menonitas são como são? Fé, sociedade e cultura ...............................................................109 9. Comida típica menonita ............................................................ 121 10. Alguns princípios característicos dos menonitas ................... 127
11. Igreja Menonita vizinha de uma Irmãos Menonitas. Por quê? ...................................................................................... 129 12. Arquitetura de igreja. Singularidades menonitas ................. 133 13. Brasileiros como estrangeiros na comunidade menonita.....135 14. Empreendimentos conjuntos dos menonitas no Brasil.........143 15. Sequestro em Witmarsum. A angústia de uma família aproximou toda a colônia....................................................................................... 149 16. Witmarsum: para conhecer e gostar ....................................... 155 17. Colônia Nova não fica tão longe assim ..................................167 18. Lapa e sua faceta menonita ...................................................... 175 19. Colonização Concórdia na Bahia.............................................179 20. Os menonitas e a arte ................................................................185 21. A história menonita no Brasil através de seus prenomes.....197 22. Menonitas que se foram. Emigração do Brasil.......................203 23. E os Amish? ................................................................................ 207 24. Visão panorâmica dos menonitas no Brasil ...........................213 Primeira confissão de fé anabatista / A confissão de Schleitheim................................................................................. 231 Autores................................................................................................ 233
Prefácio
E
ste livro é uma iniciativa do jornal Bibel und Pflug, jornal dos menonitas em língua alemã. Desde sua fundação em 1953 ele tem como sua motivação básica a comunicação entre os menonitas, o cuidado com sua história, a preocupação com o seu futuro. Hoje, depois de 80 anos de história no Brasil, a integração está bastante adiantada. Felizmente. O Brasil nos recebeu como imigrantes e hoje é a nossa pátria, a terra que amamos, cujo destino faz parte de nossos anseios. Para tanto tivemos que fazer uma série de transições. Tivemos que abandonar a língua e a cultura alemãs como pilares centrais da nossa identidade e nos reencontrar num novo contexto sócio-cultural. Durante o processo aconteceram solavancos e sustos, surpresas e desafios. Os resultados nos surpreenderam, nem sempre de modo agradável. Constatamos, com gratidão, que a fé de nossos pais anabatistas não está presa a uma língua ou cultura, pois ela se fundamenta na Bíblia. E a Palavra de Deus não passará. Ela transpõe as barreiras dos séculos e dos continentes, encontra uma expressão nova, sem nunca deixar de glorificar a Jesus Cristo, o Senhor.
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Quem somos?
Este livro dá testemunho dessa caminhada. Em outras línguas há um material bibliográfico muito rico sobre os menonitas. Em língua portuguesa o material ainda é muito restrito. Pretendemos com este livro contar nossa história e falar sobre nossas convicções. Bibel und Pflug, Curitiba, setembro de 2010.
Introdução
–M
ãe, eu perguntei, qual foi sua primeira impressão quando vocês chegaram ao Brasil em 1930?
Curiosidade de menino que nasceu aqui e não consegue imaginarse outra coisa senão brasileiro. Mas também sabe que seus pais não são desta terra, tiveram que vencer muitas dificuldades para sobreviver à perseguição dos comunistas na Rússia, viveram durante seis meses na Alemanha – de novembro de 1929 a março de 1930 – quando a crise econômica e social daquele país se aproximava do auge. – Filho, o impacto do Brasil sobre nós foi impressionante. Terra da liberdade, finalmente sem medo de vivermos a nossa fé, poder orientar os filhos para a vida segundo a fé que nos acompanha desde a Reforma. Talvez porque minha pergunta tivesse sido feita na cozinha, bem na hora do preparo do almoço, minha mãe lembrou-se de uma cena bem específica. – Sabe, filho, quando chegamos ao Brasil, fomos levados para a Ilha das Flores, no Rio de Janeiro. Precisamos ficar ali de quarentena. Por quê? Talvez tivéssemos alguma doença contagiosa, talvez sofrêssemos
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Quem somos?
de uma praga de piolhos, sei lá. O governo brasileiro precisava se garantir de que estava recebendo braços fortes e não mais um problema. Dormíamos em barracas de lona, sem grande privacidade. Mas o que lembro, nunca esquecerei, foi nosso primeiro almoço. A vida inteira eu tinha comido batatinha, muita sopa de legumes. Mas aquele primeiro almoço no Brasil foi muito marcante e exigiu uma acrobacia para nossos estômagos e nossas mentes. A fila caminhava em direção à barraca da cozinha, cada um recebendo um prato e uma colher. Havia ali um imenso tacho. Fazia muito calor, era o mês de março. Imagine, março na cidade do Rio de Janeiro, debaixo de uma barraca de lona! Lá estava o cozinheiro, sorridente, lindos dentes brancos, o primeiro negro de nossas vidas, servindo um caldo totalmente preto. E, enquanto ele mergulhava a concha para servir mais um esfomeado, víamos o suor do seu rosto sorridente pingando para dentro do tacho de sopa de feijão. Nossa fome falou mais alto do que os sentimentos confusos que esta cena provocava em nós. Há um período de muitas décadas entre aquele primeiro negro na vida de minha mãe e atualmente eu, como pastor, chamar um negro de irmão em Cristo. Para poder integrá-lo de coração como membro de uma igreja menonita foi preciso percorrer um longo caminho. Inicialmente nossos pais, e depois gerações sucessivas, precisaram transpor barreiras, não só culturais. Ao chegarem aqui nossos pais se viram confrontados com um choque múltiplo. Vindos da Rússia, mas profundamente ancorados na cultura alemã, estavam em minoria em um mundo de cultura latina. Como evangélicos pertencentes a uma minoria étnico-religiosa viram-se rodeados pelo catolicismo brasileiro, tão peculiar e diferente do catolicismo germânico. Provenientes de regiões em que a temperatura caía até 40 graus abaixo de zero precisaram aprender a sobreviver a temperaturas que chegam até 40 graus acima de zero. As características tão diferentes de solo e clima os obrigaram a mudar totalmente seus hábitos alimentares e de atividade agrícola. Some-se a isso seu despreparo total para começar a vida no Brasil, que nem sabiam onde ficava, assim como o despreparo das autoridades em compreender imigrantes apátridas.
Introdução
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Os menonitas não desistiram, simplesmente porque não podiam desistir. Nenhum outro país no mundo os aceitara. Querer sobreviver significava entender que Deus esperava deles gratidão pelo país ao qual ele os destinou. Nossos pais sempre foram gratos pela terra que os acolheu. Muito gratos. Este livro permite compreender um pouco essa caminhada extensa. O leitor irá entender nossa história desde o início em 1525, passando pela Prússia e pela Rússia, até chegar ao Brasil. Encontrará uma série de relatos bem variados mostrando como os menonitas, passo a passo, se espraiaram pelo Brasil, como eles conseguiram se desprender das amarras culturais e levar sua convicção mais profunda a todos que estivessem dispostos a ouvi-la: Jesus de Nazaré é o Senhor. Feliz daquele que se colocar debaixo do seu senhorio. Curitiba, nos oitenta anos da Imigração Menonita no Brasil J. Udo Siemens
Capítulo 1
Badensia, um nome surpreendente! J. Udo Siemens
–O
seu nome é bastante estranho, um dia eu disse a uma senhora, membro de minha igreja. – Qual deles? – Bem, o seu primeiro, Hildegard, é comum na língua alemã, mas o segundo, Badensia, salta aos olhos. De onde seus pais tiraram este nome? – Não tiraram. Foi imposto. – De que jeito? Quem poderia impor um nome a um bebê? – Ah, isto tem uma história longa. Minha mãe estava com a gravidez bastante adiantada quando embarcou no navio que a levaria, junto com um grupo de menonitas, ao Brasil. Já se aproximando da costa brasileira, faltando ainda três dias de viagem, ela ainda pensava que o bebê só nasceria dentro de algumas semanas. Mas aí, repentinamente, ela ouviu vozes nos corredores do navio, que em altos brados gritavam: –“Tem piratas a bordo, piratas!”
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Quem somos?
Eu tenho uma irmã três anos mais velha. A fuga da Rússia tinha sido muito difícil. O governo perseguia todos os descendentes de alemães, pois desconfiava de sua lealdade em relação à Rússia, mas não os deixava emigrar, pois desejava sua força e empenho para cultivar a Rússia. A única saída era fugir. Meus pais prepararam a fuga silenciosamente, não contando nada a ninguém. Não sei mais como foram os detalhes da fuga, pois soube da história apenas muitos anos mais tarde, mas sei que eles deram um jeito para chegar a uma cidade próxima da fronteira da Rússia e então, descobrindo que o controle era muito severo, com patrulhas controlando as proximidades da fronteira, eles esperaram que o inverno congelasse tudo e então, no meio de um frio intenso, às 3 da madrugada, colocaram seus poucos pertences sobre um trenó e atravessaram a fronteira formada por um rio congelado. Para trás ficou tudo como estava: antes de sair, soltaram suas vacas e cavalos, esperando que alguém se apropriasse deles, as portas da casa ficaram destrancadas, a propriedade e os pertences de uma vida inteira simplesmente abandonados para quem quisesse apossar-se, pegaram o máximo possível de cobertores, alguns sacos de pãezinhos torrados e partiram, clamando a Deus por proteção e libertação do regime comunista. Chegando à Alemanha, receberam a informação de que não poderiam ficar ali. O país se encontrava em uma grande crise financeira em 1930, crise que gerou o terreno propício para que Hitler mais tarde assumisse o comando do país com seu programa de “salvação nacional”. Muitos menonitas tinham ido para o Canadá, inclusive muitos parentes nossos. Mas aquele país fechou repentinamente suas divisas. Só restavam o Paraguai e o Brasil. Meus pais preferiram o Brasil. Ainda assustada pelos muitos contratempos da fuga da Rússia, insegura e suscetível a qualquer sugestão, minha mãe não conseguiu evitar que um medo, um pavor muito grande se apoderasse dela ao ouvir os gritos que anunciavam piratas a bordo. Salvos do comunismo, agora eram ameaçados por piratas.
Badensia: um nome surpreendente!
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Logo a seguir começaram as contrações. E o nascimento do bebê aconteceu nas horas seguintes. Nenhum pirata apareceu, apenas o capitão do navio, autoridade máxima e juiz supremo em alto-mar. Os tripulantes tinham trazido como presente um cesto de pão, que foi o meu primeiro bercinho. – E como se chamará a menina?, perguntou o capitão. – Hildegard Pankratz, respondeu minha mãe. – Muito bem, disse o capitão, a criança então receberá mais um nome. Em honra a este navio em que ela nasceu, receberá também o nome Badensia, pois nasceu no navio ‘Baden’. E cumprimentando meus pais se retirou da cabine sem admitir qualquer questionamento. Três meses depois recebemos um certificado de nascimento, emitido em Hamburgo, com a inclusão do nome Badensia. Quanto me consta são três os menonitas que nasceram a bordo de navios a caminho do Brasil. Outra menina também recebeu o nome do navio em que vinha, o Monte Olívia, e Olívia passou inclusive a ser o nome pelo qual ela foi conhecida por toda a vida. Não sei, se o irmão se interessa, mas a aventura da minha chegada a este mundo e a este país não se encerrou ali! – Por favor, eu gosto de histórias. – Minha mãe foi retirada do navio sobre uma maca. Uma senhora então se ofereceu para me carregar no colo na descida do navio. Não sei como se desce hoje de um navio, mas naquela época a descida era algo muito delicado. Descia-se por uma escada pendurada no lado de fora do navio, muito insegura e que balançava o tempo todo. E esta senhora estava descendo de um navio pela primeira vez na vida. E descendo de um degrau a outro, perdeu o equilíbrio e me soltou. Por um triz eu teria despencado no mar e aí não estaria mais aqui para contar. Felizmente ela conseguiu agarrar aquele pacotinho novamente e me salvou do afogamento certo.
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Quem somos?
Um navio bem menor levou os menonitas da cidade do Rio de Janeiro até Itajaí. Subimos até Ibirama de trem, de carroça até Witmarsum, próximo à cidade de Presidente Getúlio. Inicialmente foi construído um barracão grande, mas muito simples, coberto com folhas de bananeira, compartilhado por muitas famílias. Cada uma separava o seu ambiente com cobertores. A mata densa nos cercava por todos os lados. As cobras foram a parte da natureza brasileira que mais nos assustou nos primeiros anos. Elas estavam em todos os lugares e a toda hora. Não sabíamos distinguir as venenosas das não venenosas. E elas entravam nos barracões e apareciam dormindo debaixo de travesseiros. O meu cestinho então permanecia preso por uma corda em um dos troncos que sustentava o barracão, suspenso bem acima do solo e da terrível ameaça das cobras. Esta aventura toda e a apreensão pelos contratempos diários que meus pais enfrentaram, decididamente influenciaram no fato de que, em três meses, minha mãe não tinha mais leite. Um drama grande para aqueles tempos. Com o que ela iria me alimentar? Até então não havia nenhuma vaca nas imediações, da qual se pudesse obter leite. Ela estava sem leite próprio e sem nenhum alimento que pudesse dar para mim. Sem saber o que fazer, clamando a Deus por uma saída que permitisse a sobrevivência da filha, meus pais obtiveram a notícia de que tinha vindo uma ajuda financeira dos menonitas da Holanda. No dia seguinte meu pai foi até o povoado mais próximo e comprou uma vaca, cujo leite foi a minha salvação.