Esmeralda

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Esmeralda

Josiane Veiga


É proibida a distribuição total ou parcial dessa obra sem a prévia autorização da autora. Todos os direitos pertencem a Josiane Biancon da Veiga ISBN-13:978-1517118037 ISBN-10: 1517118034


Sumário Nota da Autora Parte 1 Capítulo 1 Capítulo 2 Capítulo 3 Capítulo 4 Parte 2 Capítulo 5 Capítulo 6 Capítulo 7 Capítulo 8 Capítulo 9 Capítulo 10 Capítulo 11 Capítulo 12


Capítulo 13 Capítulo 14 Capítulo 15 Capítulo 16 Capítulo 17 Capítulo 18 Capítulo 19 Capítulo 20 Capítulo 21 Capítulo 22 Capítulo 23 Capítulo 24 Capítulo 25 Capítulo 26 Capítulo 27 Capítulo 28 Capítulo 29


Capítulo 30 Capítulo Final Epílogo A ROSA ENTRE ESPINHOS Conheça os demais livros da autora


Nota da Autora Esmeralda é um dos meus textos secretos, daqueles que criei muito jovem e deixei guardado na mente, sem mexer nele, durante anos, querendo torná-lo algo pessoal, meu, que fizesse parte de meus projetos nunca realizados e, enfim, que morresse comigo, quando chegasse a minha hora. Até porque, sinceramente, depois de Kinshi e Jiyuu na Karada, como conseguir me desafiar novamente? Kinshi e Jiyuu foram meu limte. Eu havia dito que encerraria minha carreira literária depois deles. Porém, a vida tem dessas coisas... Tem de não deixar o autor em paz e tornar a vida dele um inferno pessoal, quando as vozes, normalmente abafadas dos personagens passam a gritar na sua mente, querendo se tornar reais. Então, lá fui eu. Estava destruída depois de Jiyuu, com muitas dores e bastante desgastada — física e mentalmente — , mas disse que escreveria apenas nas folgas e postaria no wattpad, para conquistar novos leitores.


Em dois meses encerrei o livro, quase me matei, e estou pior do que comecei. E, mesmo assim, estou com um sorriso besta na cara, que insiste em não sair dali. Quem diria... Esmeralda, meu texto mais... digamos... frágil, me trouxe muitos leitores, se tornou líder do ranking de históricos no wattpad e, então, veio a cobrança pro lançamento do Ebook. Então, amados, aí está. Mais um livro, mais um projeto, mais uma vez meu coração entregue a vocês. Como sempre, meus personagens são carregados de defeitos, como sempre meus textos questionam padrões. Como sempre, eu tento passar algo a mais que o mero divertimento. Se bem que, sim, vocês vão se divertir. Eu ri muito escrevendo esse livro, mas ele também me trouxe lágrimas. Que possa comover a todos, igualmente. Fiquem com Deus, e obrigada pelo companheirismo nessa jornada.

Josiane Biancon da Veiga Novembro de 2015.


Parte 1


Capítulo 1 A Rainha A voz suave ecoava pelo salão. A canção antiga relembrava guerreiros, ancestrais diretos da maioria dos que ali estavam, heróis inesquecíveis de tempos que haviam se findado há muitas eras. O tom triste era forçado. A dona da voz, uma jovem de treze anos, sentava-se diante de um violeiro enquanto sentia as lágrimas brotarem nos olhos e a garganta apertar como se mil mãos a estivessem sufocando. Não era uma noite feliz... Não para ela. Não para nenhuma das mulheres ali. Contudo, para sua sorte, ninguém a notava. Os homens, felizes demais em comemorar a vitória na Guerra dos Mil Dias, mal prestavam atenção à cantora e era na


bebida e na algazarra que seus instintos se focavam. Subitamente, a cantora olhou para o lado. Ao sul do salão, sentada ao lado do Rei, a rainha Brione mantinha-se inexpressiva, representando exatamente o nome que seus pais haviam lhe dado ao nascer: “aquela que tem força”. Sim, porque era necessária uma força sobrenatural para manter-se ali diante dos cabeças vermelhas, vendoos banquetear seus animais, beberem seu hidromel e deslizarem as mãos sujas em suas mulheres. Sua vontade era empunhar a espada — coisa que nenhum dos homens de Cashel parecia disposto a fazer — e escorraçar aqueles homens de seu lar. Fechou os olhos com força. Tudo aquilo era culpa do homem ao seu lado. O rei Lugus havia sido displicente em batalha, covarde nas escolhas e fraco no desfecho. O reino de Cashel, habitado por milênios pelo povo da pele escura e de olhos sombrios, viu-se sendo esmagado pelos brancos, pálidos e ruivos habitantes de Masha. O mundo, dividido entre os três reinos separados pelo mar, jamais seria o mesmo. Os mashianos unidos ao povo de Bran — outros brancos, contudo, de cabelos negros como a noite — e guiados pelo rei Atho, levaram menos de mil amanheceres para derrotar os confusos e despreparados casheanos.


A Rainha tremeu, apertando a palma da mão sobre o vestido escarlate, ansiosa por sair daquele lugar. Não bastava serem derrotados, ainda eram obrigados a assistir à comemoração daqueles malditos enquanto riam da forma como haviam matado sua gente. De soslaio, observou Lugus. O Rei, com seus quarenta e poucos anos, era descendente direto dos antigos deuses. Diziam que o sangue do deus Cashel — divindade que dera nome ao reino — corria em suas veias. Brione, de família pobre, mas presenteada pelos deuses por uma beleza singular, foi desposada por ele apenas por sua aparência. Certo dia, Lugus apareceu na humilde casa de tábuas velhas de seus pais. Olhou-a como se medisse uma égua no estábulo e comunicou-lhe sobre o casamento. Incapaz de defender-se ou negar-se ao desejo do homem, um mês depois era levada ao palácio para ser Rainha de todo um povo. Obrigada a deitar-se com ele, deu-lhe o filho homem — Randu — que o Rei tanto desejou. Silenciosa, ela aguentou todas as traições e covardias de seu soberano, e na única vez que lhe ergueu a voz, implorando-lhe que não entrasse na guerra (pois o Reino não era páreo para os outros mais poderosos) ele a esbofeteara, calando-a. Depois disso, deixou os homens com suas ideias.


O Rei e seus conselheiros sacrificaram muitas aldeias em nome de uma suposta conquista que louvasse seus egos. O motivo da guerra, Brione nunca entendeu direito. Atho, o rei de Bran, era um homem justo e bondoso. Jamais havia feito qualquer tipo de ameaça ao reino além do mar, e nunca esboçara uma provocação. Mesmo assim, Lugus havia decidido invadir o reino de Masha, o segundo mais importante e aliado direto de Bran, e conquistar-lhe as minas de esmeralda que lhes fornecia luxo e riqueza. A ideia surgiu tão logo o rei mashiano morreu, deixando o inexperiente príncipe Iran à deriva. O que Lugus jamais imaginou é que Iran e Atho eram amigos de infância. Mais que isso, viviam uma relação que, não fosse o amor de Atho pela esposa, provocaria comentários maldosos em todo o mundo. A guerra terminou e com ela veio a humilhação. Iran, o jovem príncipe, tão logo invadiu a principal cidade de Cashel, obrigou o Rei Lugus a oferecer-lhe um banquete, deixando as mais belas moças do reino à disposição de seus soldados, ansiosos por deleitar-se com as beldades de pele escura. Os cabeças vermelhas, como eram chamados os mashianos, eram ruivos sardentos, de intensos olhos verde-esmeralda. Diziam que Masha, a deusa que criou seu continente, gostava tanto de seus olhos que criou


minas com pedras que replicavam seu intenso olhar. Chamavam as pedras de esmeralda, e o preço delas era de um valor inestimável em qualquer lugar do mundo. Uma única gema compraria uma bonita casa. Entretanto, toda a fortuna pertencia ao Rei, deixando a seus inimigos apenas o papel de invejá-lo e odiá-lo. Repentinamente, a política saiu dos pensamentos de Brione. O burburinho de vozes chamou sua atenção para a entrada. Iran, o herdeiro do trono de Masha, entrou gargalhando no castelo. Nas mãos, uma garrafa de hidromel; nos lábios, um sorriso satisfeito de quem havia feito um bom trabalho. — Dizem que as mulheres de Cashel têm o peito mais preto que sua pele — ele gritou, lascivo, fazendo o estômago de Brione embrulhar. — Mamem nessas tetas o quanto puderem, meus amigos — disse aos seus soldados —, porque é uma brincadeira que só tem graça uma única vez. As casheanas não são dignas de uma segunda foda. Brione tremeu de puro ódio. Por que eram as mulheres as vítimas? Foram os homens que provocaram a guerra, então porque os mashianos não lhes arrancavam a calça e lhes enfiavam o pau sem piedade? Perdida em seus pensamentos, só se deu conta de que a canção parou de ecoar quando o grito agoniado da


menina cantora chegou aos seus ouvidos. Viu o desespero estampado nos olhos amendoados. Era ainda uma criança, mas o jovem príncipe não parecia se importar. — Essa aqui — apontou a garota, escolhendo-a. — Vou foder a putinha a noite toda — gritou raivoso — até que não sobre nada dela. Havia, naquela sala, dezenas de casheanos. Por que nenhum fazia nada? — Por favor — ouviu a voz delicada, que outrora cantava sobre glórias do passado, implorar. — Por favor, jovem príncipe Iran, ainda não sangrei. “Ainda não sou mulher”, sua justificativa parecia vã. O homem gargalhou enquanto a segurava fortemente contra os braços. — Você acha que me importo? Repentinamente, Brione inflamou-se. Diante de todos aqueles anos, desde que deixou a casa dos pais para servir como parideira de um rei que ela desprezava, diante de todas as humilhações, diante de toda angústia que vivia dia após dia, ela viu-se, pela primeira vez, esgotada. Ergueu-se de seu trono — não mais uma mulher abalada e quieta, mas uma Rainha.


— Solte essa criança, seu covarde! — disse, antes de avançar, tirando da bainha de um soldado próximo, uma espada. Erigiu-a contra o cabeça vermelha que não conseguiu controlar o riso. Para Iran, de súbito, a graça pendia para o outro lado. Largando a menina, ele visualizou as formas daquela mulher de aparência forte. Negra, linda, perfeita. Os cabelos crespos presos num coque à altura da nuca, o corpo delineado, coberto por um vestido de pele tingida de vermelho. Brione, como ele havia ouvido falar ser seu nome, era mais macho que o homem que se sentava, constrangido, no trono. — Não nego que fico profundamente admirado pela coragem de uma Rainha derrotada levantar a espada contra um Príncipe como eu — ele declarou. — Porém, ao mesmo tempo, a admiração apenas impulsiona meu desejo. O cheiro do álcool atingiu a rainha. Percebeu que ele estava bêbado. Entendeu que poderia derrotá-lo. Tomou posição de ataque e, mesmo diante do riso debochado dos outros homens, ela avançou. Contudo, não tinha experiência. E ninguém conhecia melhor a espada que Iran. Dois desvios depois, ele usou o próprio braço para cercar a garganta da mulher. A luta não durou um minuto. Ela foi rendida e humilhada enquanto ouvia o tilintar da espada caindo no


chão. O que se sucedeu ficaria em sua memória até seus últimos dias na terra. Erguida do chão, ela esperneou, gritando o nome do marido, implorando por ajuda; mas, vendo-se desamparada e abandonada, tudo que pôde fazer foi tentar lutar contra aquele homem maior que ela e que a submeteria sem piedade. Levada ao primeiro quarto vago que Iran encontrou, foi atirada na cama enquanto sentia as mãos firmes e fortes abrindo-lhe as pernas, erguendo seu vestido, desnudando-a, envergonhando-a de forma cruel. Um soluço escapou de seus lábios quando ele conseguiu se enfiar no meio de suas pernas. Sentiu um soco no rosto. Apanhava frequentemente de Lugus, mesmo assim, o ato não a intimidou. Adquirindo energia, colocou um dos pés na barriga máscula e o empurrou com todas as forças que tinha. Iran afastou-se um pouco, mas voltou-se novamente para o corpo frágil. — Lutar só vai piorar a sua situação — ele afirmou. — Porque nem a morte me faria desistir de você. Enfim, o mastro rígido tocou seu centro feminino. Aos berros, ela tentou desviar o corpo, mas estava tão firme na cama que não pôde se mover. Logo, aquele pedaço duro de carne a invadiu, machucando-a.


Duas, três entocadas, e ela sentiu o vômito surgindo na garganta, sufocando-a. Pouco depois, o líquido quente daquele homem a preencheu e, enfim, foi largada. Estática no leito, ela sentiu o peso de Iran aliviando seu corpo mitigado. Viu suas costas largas e a forma como ele sentou-se na cama, a cabeça baixa, um homem derrotado tanto quanto ela. Não... ninguém jamais estaria tão derrotado quanto ela. — Por que fez isso comigo? — indagou, quase sem voz, tentando compreender os motivos de alguém, que jamais a havia visto antes, tratá-la de maneira tão atroz. Iran não respondeu. Olhando adiante, ele parecia perdido em seu inferno pessoal. Repentinamente, a porta abriu, interrompendo aquele momento dramático. Um homem alto e bonito surgiu. Seus cabelos negros e sua pele pálida não negava a sua origem: um braiano. Eles não haviam comparecido ao banquete daquela noite. O que aquele fazia ali? — Como pôde fazer isso, Iran? — indagou, percebendo a nudez da mulher. Aproximando-se da cama, cobriu-a, piedoso. Brione não tinha condições de manter nenhum pensamento,


mas aqueceu-se perante aquele pequeno gesto de compaixão. — Não merece a minha amizade — o homem de cabelos escuros afirmou. — Sua amizade é medida pela quantidade de erros e acertos que cometo? — Iran gargalhou, porém, era um riso nitidamente falso. O som da sua voz parecia longe como se fosse apenas um vento a soprar. — Levante-se — o outro mandou. Iran se ergueu. Brione sentiu os olhos escurecerem, mas antes do abalo emocional destruí-la, viu, entre nuvens, o moreno arrancar do peito de Iran um cordão. — Não merece usar o símbolo de sua família — disse, firme e cruel. — Prometi ao falecido Rei de Masha que só lhe entregaria esse talismã quando seu filho fosse um homem honrado, mas, infelizmente, o fiz cedo demais. Provou-me nessa noite que não tem dignidade. Então, caminhou até Brione que recuou, temerosa. — Minha cara, deixo com você uma joia de valor inestimável. Não para lembrá-la da dor que sofreu, mas como símbolo de promessa de que eu, Atho, o rei de Bran, irei fazer justiça em seu nome. Depois disso, arrastando Iran pelo braço, deixou o


quarto. Volvendo os olhos para o cordĂŁo, a rainha viu, entre lĂĄgrimas, a mais bela esmeralda que jĂĄ havia vislumbrado em toda a sua vida.



Capítulo 2 O jovem príncipe Iran. Os olhos verdes e intensos observaram atentamente o trote dos cavalos à sua direita. A marcha de volta para casa era tão bela que parecia um desenho de um genial artista. Seus homens mal podiam esperar para chegar à costa e pegar as embarcações. A terra verdejante de Masha os aguardava. Baixou a fronte. Não voltaria para casa. Com as mãos amarradas, ele rumava junto com os braianos, na comitiva de Atho. Seria levado à corte marcial por estupro, assim como todos os soldados que, sob seu comando, se aproveitaram das mulheres de Cashel. Riu, baixo, desgostoso. A verdade? Uma única ordem e o exército de Masha se revoltaria contra Atho, iniciando uma nova guerra. Contudo, ele jamais faria aquilo. O som de botas aproximando-se fê-lo voltar-se ao


Rei de Bran. Sério, Atho cortou a corda que lhe cercava os pulsos, enquanto o media, com nítida decepção. — Temos a mesma idade — Atho murmurou. — Como podemos ser tão diferentes? — Insinua que sou irresponsável? — E cruel — completou. — Um homem jamais deve submeter uma mulher. Não conhece um princípio básico de moral? Princípios... Aquilo, para ele, era algo distante, inatingível. — O que fará comigo? Sou um príncipe e em breve serei coroado. — O testamento de seu pai é bem claro. Só será coroado quando eu o fizer. E, no momento, nada me parece mais distante. — E se nunca o fizer? — Seu filho, Cael, poderá ser um bom rei. Iran pensou no garotinho de três anos, a quem nutria apenas um leve interesse. Na verdade, desposar a Princesa Tae foi um ato realizado por obrigação. Ela insistiu para que consumassem o casamento, e engravidou nas poucas vezes que dividiram a cama. Morreu ao dar a luz, e sequer foi pranteada por ele. Cael foi deixado ao cuidado das amas e tampouco viu o filho para se despedir, quando foi à guerra.


— Pensa em criar meu filho? — Iran riu. — Não considera uma boa ideia? O menino precisa de cuidados. — Ele está sob cuidados. — Ele precisa de amor — Atho insistiu. — De pessoas que lhe abracem, lhe beijem, lhe digam palavras incentivadoras. — E a linda Rainha Lídia lhe dará tudo isso? — ironizou. Atho suspirou. — Não entendo porque não gosta dela. — E eu não entendo porque você gosta. — É minha esposa, eu a amo. Deu-me um filho varão, Cedric, que um dia será Rei, em meu lugar. Recebe-me sempre com um sorriso, me dá seu corpo e seu coração. Como eu poderia não amá-la? Iran desviou o olhar, incomodado. — Deixe Cael comigo, meu amigo. Criarei seu filho como se fosse meu. — Tocou seu ombro. — Você é meu irmão, Iran. Eu te amo tanto, eu morreria por você. Mas, não posso desviar meu olhar de seus erros. Sou um Rei. Mais que isso, sou o Soberano do Reino mais poderoso de todo o mundo. Tenho responsabilidades... — Eu sei.


— Por favor, facilite um pouco a minha vida. Encararam-se. — Desde que se tornou homem, tudo que faz é me trazer preocupações. — Podemos cortar os laços, se isso muito te incomoda — sentiu-se ofendido. — Não podemos cortar os laços porque são laços criados pelo amor — Atho negou. — Eu sempre olharei por ti, parte de minha alma. Depois disso, se afastou, deixando o jovem príncipe perdido em seus próprios pensamentos. — Parte de sua alma... — ele repetiu, murmurando. — Mas, foi ela que você escolheu. ***

A chuva começou no segundo dia da marcha. As terras de Cashel eram formadas por uma cadeia de montanhas ao longo da sua encosta. Ao chegarem às montanhas, perceberam a terra úmida deslizar, tornando quase impossível seguir a cavalo. Não havia desvios e, parar ali, a espera do fim da chuva, parecia um pensamento estúpido para homens que mal podiam esperar para verem suas esposas e filhos, a


quem deixaram há quase três anos. Assim, o exército de Masha decidiu ir à frente. Em fila, eles seguiram numa trilha arriscada, enquanto as rochas soltavam-se aos pés dos cavalos. Apesar da dificuldade, venceram o empecilho, chegando ao topo e avistando o mar, ao longe, com nítida felicidade. Porém, o trajeto daqueles mais de dez mil homens apenas tornou o solo ainda mais escorregadio e, quando o primeiro regimento de Bran pôs-se a caminho, seguindo seu corajoso e justo Rei, as dificuldades se tornaram perigosas e reais. Antes mesmo de avançar cem metros de subida, dois cavalos perderam o equilíbrio. Um precisou ser sacrificado, ao quebrar a perna. Iran, que até então estava no segundo regimento, abandonou a égua, deixando-a próxima de um soldado, e rumou a pé até seu amigo Atho. Com o coração aos saltos, ele parecia antever uma tragédia. E ela veio. Antes de conseguir se aproximar do amigo, viu-o, ao longe, lutando bravamente para manter o cavalo de pé. Não conseguiu. Tão rapidamente quanto os dias que passavam em sua mocidade, percebeu o cavalo deslizar, caindo no penhasco. O Rei, provido pelos instintos de sobrevivência, agarrou-se na relva verdejante que nascia próximo da queda. Contudo, a grama não aguentou seu peso e, num último olhar ao longe, ele viu


Iran, de olhos arregalados e lacrimejantes, gritar seu nome. Foi um dia de luto. Um dia para jamais esquecer. Iran desceu as montanhas correndo como um louco. Chegou até o corpo quebrado do amigo, a quem amava mais que tudo, até que a si mesmo, e o encontrou, já sem vida, de olhos abertos, a encarar o céu. Ajoelhou-se ao lado do cadáver. Puxando-o para seus braços, chorou com tanta dor que pensou que morreria ali, com ele. Só havia sentido aquela dor uma única vez, quando viu seu amado Atho desposar Lídia. Então, numa atitude impensada, ele lhe deu o único beijo que sempre desejou mais jamais se atreveu. Levando os lábios aos de seu amado, em segredo, lhe prometeu que jamais amaria outro alguém como havia lhe amado. E que cuidaria de Cedric, como se fosse seu próprio filho. ***

Os urros das carpideiras era tão alto que Iran sentiu que poderia ficar surdo, diante dos lamentos. O choro e a agonia, contudo, pareceram um alento ao seu coração. Subitamente, queria companhia para chorar.


Seus olhos estavam vermelhos e todo seu rosto inchado. Desde a morte de Atho, ele não havia parado de chorar um único momento. Assistiu ao embalsamento e correu com a viagem, para que Cedric pudesse ver o pai, antes de enterrá-lo nas terras que Atho tanto amou. O castelo continuava igual. Havia sido erguido há cinco séculos, por antepassados de Atho. De rochas sólidas e calcificadas, sua tonalidade branca trazia um bonito contraste à mata verdejante que o cercava. Ao seu redor, havia o feudo de casas bonitas e confortáveis, como eram, quase todas as casas de Bran. Não haveria jamais um Rei tão bondoso como Atho, que supria as necessidades de seu povo com o mesmo entusiasmo que cuidava de si mesmo. Iran arriscar-se-ia a dizer que Atho sequer comeria, se soubesse que qualquer plebeu, por mais pobre que fosse, não tivesse comida em seu prato. Não sabia de onde havia tanta bondade. Atho foi criado por professores, os pais morreram cedo, vítimas de uma peste que assolou o país, anos antes. Mesmo assim, seus olhos pueris sempre pareciam sorrir, e de sua boca as palavras eram gentis e carinhosas. Volveu o olhar para a carroça que trazia o corpo. Não haveria mais sorrisos nem palavras bondosas. Só havia o silêncio. Subitamente, o som das mulheres cessou. Iran


voltou-se novamente para o castelo e observou Lídia, com seu rosto desgraçadamente impassível. Ela já sabia da morte do marido, pois ele mandou uma missiva para o castelo no mesmo dia do ocorrido. Porém, não parecia em luto. E por que o estaria? Ao contrário dele, Lídia jamais amou Atho. Desviou o olhar daquela cadela desgraçada e se concentrou no garotinho de intensos cabelos negros. Cedric tinha dois anos quando Atho o seguiu para a guerra. Agora, com cinco, parecia não compreender a importância daquele homem deitado na carroça, mas, mesmo assim, tinha a sensibilidade suficiente para prantear sua morte. Caminhou até ele, ajoelhando-se à sua frente. — Olá Príncipe Cedric — cumprimentou, num tom infantil, tocando suas mãos. — Lembra-se de mim? O menino negou. — Sou o Príncipe de Masha, Iran, amigo de seu pai. — As palavras doeram e ele precisou conter o pranto que pareceu prestes a derramar-se. — Agora, eu serei seu tio, cuidarei de você até que seja um homem e se torne um Rei tão bom quanto Atho. O menino aceitou aquelas palavras com a docilidade gentil de uma criança. Iran então ergueu-se e encarou a Rainha. Aquela


satisfação doentia que viu em seus olhos lhe deu ânsia de vômito. Curvando-se, ele entrou no castelo. ***

— Permanecerá em Bran? A voz feminina ecoou pela capela enorme. No centro dela, elevado por uma escadaria, um palco recebia um quadro de pedras, onde o corpo de Atho era velado. Muitos da corte haviam comparecido ali, para despedir-se de seu jovem Rei, mas, quando o sol sumiu, apenas Iran permaneceu ao lado do corpo. — Anunciarei um regente para Masha e mandarei buscar Cael. Criarei os dois meninos juntos, como irmãos. Lídia subiu as escadas, postando-se ao seu lado. Seus dedos femininos ergueram-se, num carinho lascivo, nos braços musculosos do jovem Iran. — Gosto da ideia — murmurou, contra os ouvidos do homem. Iran engoliu a raiva. — Ele amava você — sussurrou. — Um tolo que amava todo mundo — ela riu, indiferente ao cadáver. — Ele amava até mesmo os cães. Já o flagrei acariciando a cabeça de um porco. Ele


gostava de qualquer coisa, parecia acessível a todos. Iran moveu a face, negando. — Não despreze os sentimentos puros de Atho. Pois, para ele, você era o que mais importava. — Sua voz sumiu, repentinamente, enquanto segurava um soluço. Mas, retornou, resoluta, em seguida. — Casou-se com ele, mesmo indiferente aos seus sentimentos — acusou. — Jamais entenderei como um rosto tão belo pode possuir um coração tão corrupto. Ela manteve o sorriso na face. — Você o amava — a mulher afirmou. — Amava um homem, enquanto desprezava meus sentimentos por você. — parecia se recordar. — Não havia vingança melhor. Enfim, Iran a encarou. — E o que acha que será agora? Crê que nossa convivência no castelo nos unirá? Em que sonhos asquerosos você vive? — O sonho de um dia ser possuída pelo único homem que amei — afirmou. — E o homem que mais odiei na vida, na mesma medida. Enfim, as palavras da mulher tornaram-se atos. Aproximando-se rapidamente, ela segurou o rosto do homem, atraindo-o para um beijo. Um beijo manchado pela imagem de Atho, descansando em seu caixão.


Enlouquecido pela raiva, Iran a empurrou com força. — Eu odeio você — gritou. — Eu odeio você — repetiu. — Vagabunda! Arrancou de mim a pessoa que eu mais amava — avançou. Lídia, repentinamente, deu-se conta de que diante de si estava um homem completamente descontrolado. Recuando, ela ouviu uma série de insultos que pareciam sair do fundo da alma masculina. Por fim, o pé falseou. Havia chegado às escadas. — Iran! — tentou lhe chamar a atenção, mas viu seu olhar maligno. — Cedric será um bom homem — ele disse, enlouquecido. — Um bom homem, como era seu pai. Eu prometi isso a Atho. E não vou deixar que uma cadela como você destrua isso. Em segundos, Lídia sentiu o corpo sendo projetado no ar. Rolando nas escadas, percebeu que Iran a empurrou com tanta força que parecia que seu peito rasgaria. O choque no chão doeu, mas a dor sumiu diante do apagar dos olhos. Com o pescoço quebrado, morria ali a Rainha de Bran, Lídia, a mais bela de todas as mulheres do Reino. Momentos depois, um dos criados entrou na capela. Assustado, encarou Iran, que simplesmente


murmurou. — Ela se matou — contou, como se não acreditasse em seus próprios olhos. — Não podia suportar a vida sem seu amado marido.



Capítulo 3 A vida. O ar frio invadiu o quarto através das janelas abertas. Brione, a Rainha de Cashel, apertou os braços ao redor de si, tentando aquecer-se, enquanto buscava uma manta de pelo de ovelha e cobria seu amado filho, Randu, que dormia ao seu lado. Sabia que era questão de tempo para Lugus vir a ela. Não mais para submetê-la na cama, já que, desde o ocorrido ao final da guerra, há três meses, ele não mais a procurava, e sim para tomar providências perante a descoberta da serva, naquela manhã. Olhou para o filho. Randu, o futuro Rei de Cashel, poderia ser a esperança ao seu sofrido povo. Teria ela forças para abandoná-lo a fim de garantir a oportunidade de Cashel ser governada, depois de tanto tempo, por alguém com um coração? Desde que Lugus fora coroado, os vilarejos eram submetidos a impostos altos e a violência dos soldados, para que o Rei pudesse esbanjar em festas regadas a orgias e vinho, e financiar guerras perdidas que pudessem elevar seu nome. Lugus estava ficando velho. E um velho sem


honras. Era questão de tempo para ele tentar provocar outra guerra. Seu maior sonho era ser o rei absoluto de todos os reinos. Com a morte de Atho, num acidente durante o trajeto de retorno a Bran, os caminhos do ambicioso Rei pareciam ainda mais definidos. A porta abriu. Brione não o olhou, angustiada, apertando-se com mais força. O medo fazia seu corpo tremer, e um suor gelado escorria em suas costas. — Beba — ele disse, dando a ela um cálice. Fazia três meses que não lhe dirigia a palavra. Por que a tratava como se ela fosse culpada pelos atos de Iran? Ele estivera presente no momento do ataque e nada fizera para ajudá-la. Sua covardia lhe rendeu um desprezo ainda maior por parte da esposa. — Não beberei — negou. Randu abriu os olhos. Com oito anos, já sabia exatamente o tipo de relacionamento que viviam os pais. Sentando-se na cama, o garotinho aproximou-se da mulher, segurando seu braço. Temia por ela. — Beba! — repetiu, o tom mais alto e enérgico. — Beba, vagabunda! — irritou-se. As ervas abortivas pareciam borbulhar sobre a água. — Não pode me obrigar — ela reagiu. — A lei


divina de Cashel diz que nenhuma mulher é obrigada a expulsar o filho do ventre. A lei me protege. Lugus baixou o cálice. Ela estava certa, e ele não se atrevia a desafiar o seu Deus. — Nenhuma mulher é obrigada a tirar, mas Cashel também diz que nenhuma é coagida a manter o filho de um abuso. — Isso quem decide é a mulher. — Quer manter um imundo dentro de si? Um filho de cabeça vermelha? Um branco? — cuspiu as palavras, com nojo. — Não me importa a cor que terá — retrucou, resoluta. — Não serei uma assassina de criança. Lugus engoliu em seco. — Sabe que, diante disso, nada me resta a não ser rejeitá-la como esposa e expulsá-la nua do castelo? Todas as mulheres de Cashel temiam a rejeição de um marido. Parecia o destino mais indigno e terrível possível. A rejeição significava não apenas um divórcio, mas também o desprezo da sociedade. Contudo, estranhamente, a ideia trazia certo alívio a Brione. — Sim, eu sei. Lugus parecia não acreditar. — Está demente, mulher?


— Nunca estive mais lúcida. — Abandonará o trono por um imundo? Brione pensou na palavra... Imundo. Todos os brancos ou os que descendiam deles... Eram assim que eram chamados no reino. Imundos... Seu filho seria um imundo em Cashel. Que pior destino poderia haver para uma criança? Olhou para o cálice. Era a salvação da criança. Morrer antes de nascer lhe pouparia toda a dor que viria. O martírio e a desgraça que o destino lhe preparava. Mesmo assim, desviou o olhar. Se Cashel havia permitido que aquela vida estivesse em si, não importava a cor da sua pele, ela não o rejeitaria. — Randu — o som da voz de Lugus tirou-a do devaneio. — Despeça-se de sua mãe, pois ela irá embora. A frase ecoou nela, atingindo-a como nada até então. Evitou olhar o filho, sabia que ele era a maior das vítimas. A que mais sofreria longe de sua presença. O peso de sua escolha caiu sobre seus delicados ombros. Optar pelo mais velho, ainda criança, que a segurava com os olhos inquietantes e lacrimejantes, ou pelo ainda sendo gerado, mas que ela já sabia possuir e pulsar um coração? — Não vou ficar longe da minha mãe — o garoto respondeu, a voz elevada, afundando o rosto contra o pescoço dela.


A lei religiosa de Cashel era justa. Ela sabia que mãe nenhuma era obrigada a abandonar o filho. Contudo, tirá-lo do reino era excluí-lo do futuro trono. Como poderia fazer tal coisa? — Randu — Lugus reagiu, exasperado. — Sou seu pai e seu Rei. É ao meu lado que deve ficar. — Se minha mãe ir embora, irei com ela — ele avisou. Era uma chantagem emocional infantil. Lugus amava o filho, mas não mais que o próprio orgulho. — Se for com ela, será deserdado. Será tratado como bastardo, e jamais porá os pés novamente no castelo. É isso que quer? — Eu não quero ser rei — o menino retrucou. — Eu só quero ficar com a minha mãe. Subitamente, Brione compreendeu uma das grandes verdades da vida. Nenhum poder e nenhuma riqueza no mundo valeriam mais que a presença de uma mãe. Ela chorou pela sua, quando teve que ir embora. Durante todos aqueles anos no castelo, em nenhum momento quis ser rainha. Quando a mãe faleceu, não pôde velá-la porque o reino estava em guerra. Perdeu toda a família quando Lugus usou sua aldeia como escudo contra o exército de Masha. Agora, pensava em abandonar o filho pequeno em nome de algo que não lhe traria felicidade?


Não que viver na antiga casa de seus pais em uma aldeia destruída poderia trazer alento a Randu. Contudo, era melhor uma vida simples com amor do que a solidão daquele castelo marcado pela crueldade de seu Rei. — Ouviu meu filho, Majestade — retorquiu. — Randu irá comigo, porque o fruto que uma mulher gera pertence a ela, mais do que a qualquer homem nesse mundo. O olhar frio a mediu. Percebeu o ódio ali, forte, vingativo. — Terei outra esposa, e muitos outros filhos — avisou. — E você terá apenas um bastardo e um imundo. Eu não poderia prever um destino melhor para uma vadia que abriu as pernas para um cabeça vermelha. E então saiu do quarto, batendo a porta. ***

Na noite que a Rainha Brione de Cashel foi estuprada, dezenas de outras mulheres também o foram. A monarca jamais soube quantas pegaram barriga dos cabeças vermelhas, mas teve certeza de que foi a única a se recusar a matar o bebê quando, ao chegar a frente do castelo, viu que não havia nenhuma outra mulher a ser rejeitada.


O velho sacerdote de Cashel se aproximou. Pareceu medi-la. Seu semblante, contudo, nada denunciava. Estava impassível, como se não se importasse com o desfecho daquela história. Vestida com um manto escarlate, seu corpo nu, embaixo dele, temia a vergonha. Porém, ela manteve o queixo erguido, como se não nenhum daqueles muitos olhares que se arrodearam dela pudesse atingi-la. Uma multidão compareceu ao castelo, naquele dia. Todos ansiosos e preocupados. Havia piedade na maioria dos olhos, e acusação em outros. Brione sabia que teria que cruzar a cidade nua, mas o pensamento confortador de que Randu a aguardava no final do trajeto lhe deu forças. Tudo que ele levaria consigo era a roupa que vestia, e o cordão que o Rei Atho lhe deu, meses antes, numa promessa que não pôde cumprir. — Mulher — o sacerdote falou, alto. — Trouxe vergonha sobre sua casa e seu marido — comunicou, como se ela não soubesse. Com o canto dos olhos, encarou Lugus. Ele parecia zangado, e ela desejou com todas as forças de que ele morresse antes de conseguir desposar outra. Não por ciúme, mas por raiva. Covarde! Era culpa dele! Tudo era culpa dele! A guerra, o banquete, o estupro. Se pudesse, matá-lo-ia com


as próprias mãos. — E agora essa vergonha está em seu ventre. Um ventre imundo — o sacerdote repetia as palavras célebres, ditas sempre que ocorria situação semelhante. — Um ventre amaldiçoado — prosseguiu. — Cashel, o Deus mais justo e piedoso dos três reinos, entretanto, lhe concede perdão, caso você demonstre arrependimento, aceitando expulsar essa criatura que cresce em si. Tome o chá e liberte seu ventre. Depois, se Cashel lhe abençoar, poderá conceber novamente, dessa vez uma criança que limpará para sempre qualquer traço de imundície que ficar em ti. Novamente o cálice foi oferecido a ela. — Confortem-se com as palavras que quiserem. Qualquer um que oferece esse cálice a uma mulher e qualquer mulher que o aceita, prestará contas do ato perante a justiça divina — ela afirmou. — Não há Deus no mundo, nem em Cashel, nem em Masha, e nem em Bran, que tolere a covardia contra uma criança. — Respirou fundo. — Eu não vou beber — anunciou. — Podem chamar meu filho de imundo, sei que é o que farão, mas ele crescerá e se tornará um homem melhor do que todos que aqui desejam sua morte. O cálice foi afastado. — Eu lamento muito, minha soberana — o sacerdote murmurou contra seus ouvidos.


Então, ela sentiu que o manto lhe era arrancado. Ouviu suspiros e leves gritos de choque. Contudo, não cobriu nem os seios, nem o sexo. Que olhassem! Que vissem o que Lugus se aproveitou durante anos e o que Iran tomou contra sua vontade. Que fossem testemunhas de sua nudez, nada lhe interessava. Em passos firmes e retos, andou à frente, descendo as escadas e cruzando pelos homens e mulheres que se amontoavam na multidão. — Não é mais minha senhora — ouviu a voz de Lugus. — Não é mais minha Rainha. Repudio-te! Estancou, volvendo o corpo para trás. — Foram as palavras mais belas que já me disse, meu Rei — retrucou, voltando-se novamente para frente e seguindo seu rumo. ***

Randu baixou a fronte quando avistou a mãe. Sentiu vergonha por ela, e logo lhe estendeu o manto, para lhe cobrir a nudez. Ela sorriu para o filho, deslizando as mãos em seu rosto amado, e lhe agradecendo o auxílio. — Você tem certeza da sua escolha, meu amor? — questionou. — Se voltar atrás, seu pai ainda lhe aceitará. — Sou criança, mas sei o que quero, mãe — ele afirmou. — Eu vou cuidar da senhora e do meu


irmãozinho. Lágrimas brotaram nos olhos da mulher. — Seria um Rei tão bom — murmurou. — Agora, tudo que terá é uma casa velha e uma terra assolada pela morte e pela dor. — E terei você — ele sorriu, mostrando a fileira doce e branca de dentes. — É o que mais me importa. Assentindo, Brione segurou sua mãe e pôs-se a andar. Era um longo caminho até seu vilarejo. Para sua sorte, muitos aldeões lhe queriam bem e com certeza ela conseguiria pouso e comida, durante o caminho. Acariciou o ventre. Havia feito uma escolha difícil, mas estava orgulhosa dela.



Capítulo 4 A Morte Brione nunca havia olhado para o teto do casebre. Não, ao menos, que ela se lembrasse. Recordava-se de, na infância, deitar próxima da janela, e observar as frestas da mesma, o luar claro entrando no quarto, tocando-a no leito. Mas, nenhuma vaga memória de olhar para cima, para as tábuas escuras e velhas que ficavam ali, formando desenhos abstratos. Contudo, naquele dia, ela encarava o teto. Era a única coisa que tinha para se firmar. Focar-se em algum ponto imaginário que pudesse lhe transmitir alento. — Empurre, minha Senhora — a voz da velha entrou em seus ouvidos e ela choramingou. Empurrar era o que ela fazia há quase três horas. Três horas de dores ininterruptas, onde ela sentiu os ossos se partindo e todo o seu centro feminino rasgar. Quando chegou ao vilarejo de sua infância, Brione se surpreendeu pela boa noticia de que haviam sobreviventes a passagem dos Mashianos. Os homens de Iran de Masha tinham poupado os velhos. E era exatamente uma senhora de cabelos tão brancos quanto a


neve que a ajudava a colocar seu filho no mundo. Repentinamente, uma contração a ajudou e ela se curvou. Enfim, o alívio. Encarou a velha, que deu um leve tapa no bebê. O berro alto da criança fez a rainha sorrir, mas seu sorriso morreu ao encarar a velha. — É um imundo — a velha parecia assombrada. — Um imundo de cabelos vermelhos — reafirmou, piedosa. Brione sentiu o coração sangrar. Ela havia tido uma esperança, mesmo que pequena, de que o filho nascesse um casheano puro, pois Lugus havia a submetido alguns dias antes de Iran. Voltou a observar a velha, estendendo os braços. De repente, percebeu o olhar assombrado da idosa. — É uma menina. Os braços de Brione caíram, exaustos, sobre a cama. As costas logo resvalavam, enquanto um pranto descontrolado invadia sua garganta, fazendo-a soluçar alto. Por Cashel! Uma menina! Que destino terrível! Um homem, por mais imundo que fosse, ainda teria esperanças de poder se proteger. Mas, uma mulher... Uma garota? Qual seria seu destino? O estupro? O abuso? A perseguição? Uma branca de cabelos vermelhos em uma terra de


negros que odiavam aquela raça. — Devemos matá-la, senhora — a velha aconselhou. — Matá-la é o ato mais piedoso nesse momento. Brione ergueu os olhos. Viu as pequenas perninhas brancas esperneando, enquanto chorava. Aquele pequeno ser, a procura de algo, era tão indefeso diante do horror que o aguardava. — Dei-me minha filha — pediu. A velha lhe estendeu o bebê. O contraste da pele branca contra os seios negros fez Brione sorrir. A menina, sentindo o tato da mãe, instintivamente buscou seus seios. Assim que sua boca capturou um mamilo, Brione riu. — Eu enfrentei um rei por essa criança. Não vou desistir dela. Era uma verdade que se confirmaria até seus últimos dias. ***

— Como vamos chamá-la? Brione encarou seu pequeno Randu e sorriu. A verdade é que, apesar de ter se passado três meses do nascimento da pequena, ela ainda não tivera coragem de


lhe dar um nome. Como poderia? Temia tanto lhe dar afeto, ao mesmo tempo em que lhe apertava contra o peito e lhe acariciava as bochechas cor de leite. Parecia questão de dias, horas... para que a vida lhe arrancasse a menina. — Não sei — respondeu. — Como você acha que devemos chamá-la? Randu a encarou, deslumbrado. Estavam sentados à mesa de madeira, diante de papeis e velhos livros. Brione aprendeu as letras no castelo, e fazia questão de transmiti-las ao filho. Conseguiu numa das casas abandonadas pequenas folhas brancas e pergaminhos sem uso. O grafite foi dado a ela pela velha que ajudou sua filha a nascer. — Ela tem os olhos da cor da pedra — ele apontou. — Como se chama a pedra? Brione havia posto o colar na filha tão logo ela nasceu. Era uma lembrança, um aviso, do quanto lutara para tê-la. — Esmeralda. — Então, mãe — ele sorriu. — Esse será o nome dela! A mulher riu, diante da empolgação. Subitamente, o som do lado de fora da casa, chamou sua atenção. Buscou um punhal, única proteção


que tinha, e mandou o filho ficar perto do berço. — Quem está aí? — gritou. Havia pânico em sua voz, e ela se repreendeu. Havia, com o pai, aprendido a manejar uma espada. Contudo, não havia lâminas compridas ali. Mesmo assim, lutaria como uma leoa para defender suas crias. — Um viajante, senhora — o homem avisou. — Procuro pouso. Abriu a porta levemente, e percebeu um compatriota solitário do outro lado. — Está sozinho? — Desde que vim ao mundo — ele riu. — Pode me indicar um celeiro? — Não há celeiros por aqui. Existem casas abandonadas adiante, poderá dormir em uma delas — aconselhou. O homem assentiu. Nitidamente, não era uma ameaça. Quando ele lhe deu as costas, Brione percebeu o martelo em uma bolsa, atada contra ele. — É um ferreiro? — questionou, ansiosa. Reconhecia os instrumentos. Era a profissão de seu pai. — Sou o melhor forjador de espadas do reino – se exibiu.


Os olhos da mulher brilharam. — É casado? — Não, Senhora. — Precisa de uma mulher? Era tão direta que o homem arregalou os olhos. — Perdoe-me, senhora. É a mais bela das mulheres que já cruzaram meu caminho, mas sou apenas um... — Não quero casamento. Quero saber se precisa de uma mulher para se aliviar. Todo o corpo do homem eclodiu em uma agonia pecaminosa. — Bom... — O único porém é que não pode se satisfazer dentro. — Ela apontou o berço, aproveitando que a manta escondia a cor da menina. — Já tenho dois filhos. Não posso ter mais nenhum, pois não terei como sustê-los. O homem assentiu, compreensivo. — Faça duas espadas. E traga para mim. Uma para um homem, outra mais leve, para ser segurada por uma mulher. E depois disso, terá um prêmio. Sem mais delongas, fechou a porta. ***


Brione sabia que o processo de criação era longo e dificultoso, ainda mais sem uma bigorna – que não existia no vilarejo. Mesmo assim, três dias depois, o homem surgiu diante dos seus olhos. Pegou as espadas na mão, observando-as, uma a uma, reparando em cada detalhe, hipnotizada pelo serviço bem feito. — Randu — gritou para o filho, que terminava de colher os morangos que haviam plantado tempos antes. — Mãe — ele aproximou-se, curioso. — Vá a floresta colher framboesa. Traga-me muitas. — Mas, é longe — a criança pareceu curiosa, já que a superprotetora genitora nunca o deixava se distanciar muito. — Não importa — retrucou. — volte apenas quando tiver muitas. Enquanto o menino se afastava, Brione entrou na casa com o homem. ***


O tilintar das espadas invadiu o ambiente. Randu recuou, enquanto via a mãe avançando, com força, contra ele. Era diferente quando, ainda pajem do pai, manejou a arma pela primeira vez. — Não terá tempo para aprender beleza da arte, Randu — a mãe insistiu, assim que ele caiu contra o solo, machucando o bumbum. — Precisa se tornar homem antes do tempo, preciso muito de você, meu filho, para proteger sua irmã. Levantou-se, assentindo. Novamente a mãe avançou. — À direita — ela avisou. — Proteja sua direita. Projeta-se muito para o outro lado, não sabe de onde partirá o ataque. Mais uma vez, as espadas bateram uma contra a outra. Repentinamente, a mãe parou. — Randu — seu chamado lhe fez erguer a face, curioso. — Sim, mãe? — Prometa-me que sempre cuidará dela. — Eu prometo, mãe. A resposta era imediata. Ora, ele também amava a irmãzinha dos olhos verdes e cabelos de fogo.


— Precisará ensiná-la a lutar, Randu — disse, fria. — Deve aprender a arte das espadas. Mesmo quando não tiver mais nada que aprender comigo, deve praticar todo dia, e se aperfeiçoar. E depois, repassar tudo a sua irmã. Entendeu, filho? — Sim, mãe. A mulher assentiu, com lágrimas nos olhos. — Não deixe que a machuquem — murmurou mais uma vez. E então voltaram ao treinamento. ***

Brione, a antiga Rainha de Cashel, sempre soube que iria morrer jovem. Não, não era nenhuma profetiza ou adivinhava o futuro. Apenas, havia uma sensação mórbida que a acompanhou durante seus dias, e que se intensificou assim que a filha nasceu. Então, enquanto ela lutava para respirar, deitada no leito, tomada pelo intenso frio que parecia lhe cortar os ossos e lhe tirar o oxigênio, ela deslizou as mãos nos cabelos ruivos e cacheados da menina de um ano e meio, que se sentava perto da mãe. — Mãe, beba.


Randu lhe levou um chá amargo nos lábios, e ela o sorveu apenas para lhe fazer a vontade. Parecia tão maduro, um rapaz, apesar da sua idade. — Você me prometeu um dia, meu amor... — começou, mas a tosse a calou. — Já lhe fiz tantas promessas, mãe — ele riu, tentando despertar nela qualquer alegria. — Nunca abandone a sua irmã. — Eu jamais faria isso, mãe. Ela é meu sangue. Ela vem do mesmo ventre que eu. Brione assentiu. — Merecia ter sido rei, meu filho — murmurou. — Mas, se tornou algo ainda melhor que isso — fechou os olhos. — É um homem de valor. E nunca mais disse uma única palavra.


Parte 2


Capítulo 5 O Rei e a Imunda. O perfume de jasmim invadiu as narinas de lady Lyn, que sorriu diante da visão majestosa. À sacada de uma das muitas varandas do castelo de Bran, ela mexeu nos longos cabelos escuros, enquanto imaginava como seria sua vida dali a duas semanas. Uma rainha. A Rainha de Bran. O casamento ocorreria no mesmo dia da coroação de Cedric, e ela não poderia estar mais ansiosa e feliz. Um matrimônio perfeito, o posto mais alto dos três reinos, e a beleza e a sedução de um homem que arrancava suspiros de todas as suas compatriotas. Cedric de Bran herdou do pai o coração amável e o sorriso acolhedor. Mas, sua melhor qualidade, para ela, sem dúvida, viera da falecida Rainha mãe, Lídia. A beleza aristocrata, os cabelos negros bem alinhados com olhos da mesma cor. A boca generosa, o corpo de fazer inveja a qualquer lacaio... Cedric era uma mistura pueril de docilidade com sexualidade.


— Lyn! O som da voz masculina fê-la volver-se ao seu futuro marido. Haviam se conhecido muito jovens e, desde o princípio, o olhar daquele homem havia se fixado nela. Cedric a escolheu entre todas as braianas do reino, não por uma boa linhagem ou por sua beleza espetacular, e sim porque ele acreditava que ela seria sua predestinada, um convite romântico a um amor inesquecível. — O que faz aqui, nesse frio? O homem retirou o casaco e colocou sobre seus ombros. Era, como sempre, um cavalheiro. — Eu gosto de olhar para as flores. Cedric sorriu. Lyn era tão delicada quanto elas. — Ansiosa? — Pelo casamento? Não, eu tenho certeza absoluta de que serei feliz. Ele mal conseguia conter a satisfação nos lábios entreabertos. — Eu a amarei até o final dos meus dias — prometeu. — Eu também... As palavras foram seguidas por um beijo casto. Apesar de Cedric invadir os sonhos femininos e lhe deixar febril por debaixo das saias, Lyn sabia que, antes


dos votos, nenhum avanço poderia acontecer. Ela respeitava as regras, e o futuro Rei era ainda mais conservador. — Penso — ele murmurou, assim que os lábios se soltaram —, em irmos até Cashel em nossa lua-de-mel. — A terra dos negros? — Dizem ser um lugar lindo — insistiu. — Com montanhas tão altas que podem até tocar o céu. Os criados me contavam que meu pai adorava aquele lugar verdejante. É uma pena que o velho Rei Lugus seja tão arrogante e presunçoso, pois seria de muito agrado para mim visitar Cashel. As notícias sobre Cashel nunca eram muito boas. Apesar da singular beleza que os homens que frequentaram a Guerra dos Mil dias costumavam discorrer durante os festivais, o lugar era pobre e governado por um Rei corrupto. Ao vencer a guerra, Atho não destronou Lugus, apenas estabeleceu impostos maiores. Foi um erro. Lugus não deixou de viver confortavelmente, apenas fazia seu sofrido povo bancar seus luxos. Cedric pensou que, após sua coroação, poderia mudar aquilo. — Nunca foi para lá? A indagação feminina lhe trouxe novamente para a conversa.


— Não. Sei que alguns brancos vão para lá para comprar especiarias, mas... Uma visita formal? Não tenho notícia de algo do tipo. Ela assentiu. — Sinceramente, eu prefiro passear no reino de Masha, nossos irmãos. Cedric sorriu. A imagem de Cael lhe veio à mente. Sim. Irmãos. Havia sido criado pelo tio Iran, que, mesmo não sendo coroado, era soberano de Masha. Compartilhou a vida e a infância ao lado do único filho do tio, Cael, a quem nutria profunda afeição e amor. — É claro, meu amor — concordou, imediatamente. — Cada desejo seu é uma ordem para mim. Erguendo as mãos da noiva, beijou-as, com devoção. — Leve-me para passear no jardim — o pedido era acompanhado de um sorriso gentil e sem malícia. Oferecendo seu braço, o casal saiu da varanda. ***

Cael enfiou as mãos dentro do prato e ergueu o maior pedaço de carne de cordeiro que havia lá. Enfiou


tudo na boca, socando como podia o alimento para dentro de si, e depois encarou o rapaz a sua frente. — Você é nojento. As óbvias palavras de Kian, seu amigo e escudeiro, lhe fizeram sorrir. A imagem daquele ruivo de olhos verdes com a boca abarrotada de comida deu vertigem ao moreno, braiano de nascimento e criação, que simplesmente virou os olhos. — Comer é a alegria da vida — Cael murmurou, deixando escapar pequenas cuspidelas. O outro o deixou engolir o alimento, antes de prosseguir: — E foder — completou Kian, provocando seu lado cômico. — Ou vai me dizer que o bordel de lady Grace não lhe traz muitas alegrias? O outro assentiu, rindo. — Tem razão, meu caro amigo, eu adoro foder. Quanto maior a mulher, mais me dá prazer. Adoro uma carne suculenta, que eu posso dar uma boa apalpada, enquanto mordo e meto sem dó nem piedade. Kian gargalhou, atirando a cabeça para trás. — Tem sorte de não ter uma noiva, ou uma irmã, ou qualquer coisa do tipo, para que o Deus Bran não o puna por suas palavras. — O Deus Bran não faria nada. Mas, a Deusa


Masha, pode acreditar, não iria gostar nada de me ouvir falar assim. Por sorte, estamos bem longe de minha terra Natal, e os ouvidos femininos dela não escutam tão longe. O som de botas os calou. Logo, Iran de Masha entrava no aposento, encarando os dois jovens, medindoos. — O que faz aqui? O questionamento era dirigido ao filho. Cael ergueu, temeroso, o olhar para o pai. Iran, apesar de já estar próximo dos cinquenta anos, ainda mantinha em si uma aura de severidade e poder. E, Cael sabia mais que tudo, que o poder do pai era avassalador. Desde pequeno, foi maltratado por ele. Sempre renegado, sempre recebendo palavras ríspidas e desencorajadoras. Ele lutou, durante todos aqueles anos, para não ser destruído pelo pai. Mesmo assim, ainda que já fosse um adulto, lhe dava calafrios dividir um recinto com ele. — Sempre irresponsável, Cael — Iran disse, alto. — Tão diferente de Cedric — comparou-os, como era de costume fazer. — Por que não fez o que lhe ordenei? — Porque não sou seu lacaio — disse, enfrentando-o. O bofetão quase o derrubou. Apesar disso, não perdeu a rigidez do corpo. Aquelas pequenas frases,


aqueles pequenos desafios, eram ordens que havia dado a si mesmo, durante os anos. “Não o tema! Enfrente-o!”. Contudo, só tivera coragem de pô-las em prática quando se tornou um adulto. Cada vez que usava as táticas do retruco, era agredido em retorno. Porém, a violência fazia parte da sua vida desde que se lembrava. Havia levado a primeira surra aos três anos, quando, logo que chegara ao palácio de Bran, derrubara um brinquedo de madeira que Cedric possuía, quebrando-o. O choro de Cedric, ao ver o brinquedo destruído, sucedeu-se ao seu, que foi severamente surrado com varas de marmelo, que lhe deu as primeiras cicatrizes nas costas. De lá, para cá, as cicatrizes aumentaram. Todas, sem exceção, envolveram Cedric. Apanhava por qualquer palavra errada ao jovem rei, ou por qualquer coisa que pudesse magoá-lo. Sabia, apesar disso, que Cedric desconhecia as agressões. O pai nunca havia feito nenhuma menção de surrá-lo na frente do outro. Simplesmente o chamava para conversar, e o levava de carroça até uma choupana, onde lhe amarrava os pulsos em estacas e batia até perder a força das mãos. Depois disso, o fazia vestir um casaco por cima da camisa branca ensanguentada, e lhe prometia muito mais torturas caso alguém soubesse das punições.


Um filho jamais devia desonrar um pai. Era uma lei, em qualquer dos reinos. Apesar de as religiões terem alguma diferença em seus dogmas, os três deuses que regiam o mundo eram unânimes naquela determinação. E Cael, apesar de todos os defeitos, nunca desonrou Iran. — Lavar minhas botas e limpar meus armários — Iran salientou — devia ser um direito de cada filho para com seu pai. Um direito? Mesmo que fosse um dever, Cael o faria com todo prazer, se aquele pai merecesse. — Eu serei o Rei de Masha, e... — Nunca será o Rei — Iran o interrompeu. — Não pude convencer Cedric a se casar com uma mashiana, porque ele está completamente apaixonado por lady Lyn, mas acredite que farei tudo para que o filho de Cedric cumpra esse dever. O sangue de Atho se unirá com o sangue de Masha, tornando os dois reinos um só. E, para isso, você não deve ser coroado. Cael o encarava com nítido ódio. Era seu direito, como podia ser privado disso? — Sou seu filho — murmurou, tentando trazer luz ao pai. Iran riu. — Meu filho é o filho de Atho, Cedric. Você é só


o resultado de uma foda nojenta que tive que cumprir com aquela cadela que te deu a luz. Kian, silencioso até então, arregalou os olhos diante das palavras, completamente em choque. O leve movimento de seus braços, contudo, desviou o assunto. — Como punição por sua desobediência, quero que leve o ferro derretido no fogo da casa das espadas até o rio, e depois volte. — O quê? O ato parecia cruel, até mesmo para o pai. — Vai queimar-me as mãos? E me humilhar mais do que já o faz? — Use um latão de ferro — determinou. — E aproveite a escuridão para cumprir seu dever, porque caso não o faça, pode ter certeza que as mãos serão sua última preocupação. ***

— Devia fugir — Kian sugeriu, ao vê-lo encher o latão com o ferro quente. — Para onde? Cashel? — riu. — Olhe para minha cara. Sou branco, os casheanos me matariam se me pegassem sozinho.


Kian suspirou, resignado. — Não cumpra isso. É loucura. E seu pai não tem como saber que você irá cumprir o trajeto. — Ele saberá — Cael afirmou. — Ele sabe de tudo. Ele sabe de todas as coisas. Acredite em mim, é melhor queimar a mão do que ser levado à choupana. O outro assentiu, vendo-o enrolar as mãos em uma tira de pano, tentando protegê-las. — Esse velho filho da puta — Cael murmurou. — Ele sabe que é pesado. Provavelmente, deseja que eu derrube o líquido em mim mesmo e morra. Sua frase chocou o amigo, que não escondeu o semblante surpreso. — Ele tem medo de Bran e de Masha. E o temor aos Deuses é tudo que o impede de me matar. Assim, deseja que eu mesmo dê cabo a minha vida. — gargalhou. — Mas vai esperar sentado, porque eu jurei a Masha que eu o enterraria. Kian também enrolou as mãos, e ajudou o amigo a colocar o latão sobre os ombros. Assim que sentiu o peso em cima de si, Cael gemeu. — Pode ir — disse, ao outro. — Não precisa passar por essa vergonha. O outro negou. — Não importa. Irei com você.


A lealdade fez Cael sorrir. Seguindo adiante, ele saiu do local de trabalho do ferreiro, e pôs-se a andar pelo trajeto indicado pelo pai. ***

— Existe uma antiga lenda — Cedric murmurou, colhendo uma rosa, e dando-a a amada —, que diz que, quando Bran criou seu reino, percebeu que as rosas não tinham perfume. Então, pensou seriamente em qual devia ser o odor e, naquela noite, ao ir até Masha para lhe indagar a questão, sentiu que o perfume da deusa era tão bom, que resolveu dar aquele cheiro as suas flores favoritas. Lyn sorriu. — Você acha que os deuses se amam? — Não sei — foi sincero. — Alguns dizem que Masha, Cashel e Bran são irmãos. Outros, que são inimigos... — Adoraria conhecer os deuses — ela o interrompeu, animada. — Quem não? — brincou. — Mas, há muitas eras que não são vistos mais. O sacerdote diz que vivem sobre nós, nas nuvens, a nos vigiar, punir e proteger, conforme nossos atos.


Lyn assentiu. Repentinamente, o som de passos fez Cedric voltar-se para o lado esquerdo do jardim. Pareciam homens, mas não havia nenhum autorizado a cruzar pelo jardim naquele horário, a não ser seu tio e Cael. — Fique aqui — disse a ela, pondo-se a caminhar naquela direção. Porém, não chegou a dar dois passos e a figura de alguém saindo por entre as roseiras surpreendeu-o. Trombaram-se e, antes que pudesse se dar conta do ocorrido, sentiu algo quente escorrendo por sua face e deslizando por seu corpo. Algo muito quente... O rosto pegou fogo, enquanto seu grito rompia o silêncio da noite. — Cedric! — era Cael. Sem conseguir mais suportar a dor, caiu no chão, desmaiando. ***

O único som que se ouvia em uma extensão de mil metros era o leve crepitar das folhas ao serem pisadas pelo pé firme. O homem negro, de quase dois metros,


olhou adiante, tentando encontrar, entre as inúmeras árvores daquela floresta, qualquer traço da cor escarlate das mechas, o tom que denunciava sua caça. Haviam ido em três homens, naquela manhã, até a casa de Randu, filho imérito do Rei Lugus. Dias antes, esconderam-se ao redor da casa, tentando verificar a rotina familiar do rapaz e de sua irmã, a imunda Esmeralda. Ao nascer do sol, os irmãos trabalhavam na horta e, depois do almoço, o rapaz ia sozinho até as plantações de milho enquanto a garota permanecia na habitação, limpando-a. Ao final da tarde, eles treinavam com a espada. Ambos, o homem pensou, eram muito bons no manejo com as armas, mas, ele sabia que uma mulher, sozinha, não era páreo para três homens fortes e grandes. Desde que os homens da aldeia mais próxima descobriram que uma imunda morava numa das casas próximas à montanha, em um vilarejo abandonado, eles não descansaram até armar uma emboscada, com o desejo de estuprar e matar aquele sangue maldito de Masha. Contudo, nada saiu como planejado. A maldita dos cabelos longos e cacheados, em nada se assemelhava a frágil mulher que seus ombros delicados denotavam. Era um demônio, tão rápida quanto uma cascavel, e derrubou seus amigos em poucos minutos. Cansou-se, porém, após o segundo combate, mas, ainda assim, quando ele


avançou, ela conseguiu desequilibrá-lo e correu para a floresta. Mal podia esperar para pôr as mãos nela. Queria invadir aquele corpo, meter até perder as forças, e depois esganar aquele pescoço branco, torcendo-o até que o ar lhe faltasse e ela morresse asfixiada. Dois passos. Estancou. Um som ao longe fez seu sangue gelar. Parecia o som masculino... um homem a gritar o nome da irmã. Randu voltara? Ele era um guerreiro poderoso, treinado pessoalmente pela antiga Rainha, e tinha sangue de Cashel, o Deus, em suas veias. Não havia homem no mundo que não temesse o sangue real. Voltou-se em direção a voz. Entretanto, antes que pudesse raciocinar, uma figura miúda surgiu em sua frente. Os olhos verdes esmeralda brilharam, satisfatórios, antes que a espada cravasse em sua garganta. Ele queria matá-la sufocada. Foi ela que conseguiu aquele intento. O homem a encarou, enquanto o sangue lhe invadia a laringe, e ele sentia o ar faltando. Caiu no chão, as mãos na garganta, indeciso entre deixar o sangue correr ou estancá-lo. — Esmeralda! O som ao fundo era agora mais claro. Ela permaneceu parada, encarando-o enquanto agonizava.


— Por Cashel! — agora a figura de um homem surgia ao lado. — O que você fez? E então tudo se apagou. ***

— Nossa mãe não me ensinou a arte da espada para sair matando por aí — Randu a repreendeu. Enfiado dentro de um buraco, ele cavava de forma assídua a cova onde colocaria os três corpos. Esmeralda encarou o irmão através de suas costas largas. Randu era um homem muito bonito. Sua pele escura mesclava-se com olhos intensos. Alto, musculoso e forte, ninguém diria, encarando sua aparência, o quanto era gentil e doce. Só ela, que o conhecia tão bem, sabia daquela característica. Desde que conseguira segurar uma espada, o irmão a ensinou a manejá-la. Mesmo que a intenção do rapaz fosse instruí-la a se defender, Esmeralda nunca aceitou aquilo e passou a treinar por conta própria, a fim de atacar, avançar, destruir. A garota estava sentada próxima dos corpos. Seu semblante não denotava nada. Com as mãos pálidas, ela brincava com o pingente de pedra preciosa, enquanto ouvia o irmão tagarelar.


— Sabe o que farão assim que perceberem que esses homens não voltaram para casa? — Suas esposas, provavelmente, levantarão as mãos para o céu e agradecerão a Cashel. — Não estou brincando! — ralhou. — Poderão tentar vingança. — Que venham — deu os ombros. — Irresponsável! — ralhou. — Não sabe o que poderão fazer com você caso... — Caso me peguem — interrompeu. — E isso nunca vai acontecer. O buraco ficou pronto. Randu saiu dele e foi até a irmã. Estendeu a mão, ajudando-a a se erguer. Encararamse. — Eu temo por ti, minha irmã — ele assumiu, os olhos angustiados. — É um tolo — amenizou as palavras com um sorriso enigmático. — Ninguém me destruirá antes que eu cumpra meu destino. Soltou-a, suspirando. — Já lhe ordenei esquecer isso — pegou as mãos do primeiro cadáver e começou a arrastá-lo até o buraco. — Vou matar aquele homem — ela afirmou. — Vou vingar a nossa mãe.


— Nossa mãe nunca pediu vingança. Seu desejo era apenas que nós vivêssemos em paz. Os olhos femininos chisparam de ódio. — Você teria sido Rei, não fosse aquele mashiano desgraçado. — Quando me ouviu reclamar do meu destino? A pergunta, enfim, calou-a. Desviou o olhar, incomodada. Randu voltou ao segundo homem morto, e também o puxou em direção ao buraco. Enquanto ele prosseguia em direção ao terceiro, ela meditou na diferença de personalidade. Enquanto tudo nela se resumia a um crescente ódio, ele era generoso e piedoso. Um arrepio cruzou sua espinha ao pensar que, talvez, precisasse se separar do irmão para prosseguir em seu plano de vingança. — Você não sabe quem é ele — Randu pareceu ler seus pensamentos. — Eu tenho uma pista — ela apontou o pingente de esmeralda. — E acha que poderá sair pelo reino de Masha indagando quem é o dono do cordão? É uma boba! — Eu darei um jeito — perseverou. — Vou descobrir quem é esse homem e irei arrancar sua cabeça com minha espada. Por fim, os três desafortunados que cruzaram seu


caminho estavam dentro da cova. Randu voltou à pá, e começou a encher o buraco com terra. — Nosso mundo é um lugar difícil, minha irmã. Não só em Cashel. Nenhum dos três reinos é um bom lugar para uma mulher. Principalmente uma imunda. Ela sabia. — Vamos apenas viver em paz — pediu. — E ver nossos dias passando, enquanto alimentamos nossa raiva por tudo que de nós foi arrancado? Você, seu trono? De mim, minha dignidade? O rapaz largou a pá e foi até a irmã. — Um dia descobrirá que nada disso importa quando estamos perto de quem amamos, de nossa família. Ela recusou as palavras, mas sabia que eram reais.


Capítulo 6 O Monstro Aquele leve ruído ao fundo fê-la suspirar. Assemelhava-se ao som de uma leve chuva a bater contra o telhado, fazendo todo o corpo de Esmeralda relaxar diante de seu sonho bom. Em algum lugar de sua mente, recordou que o dia fora de céu claro e sol intenso. A noite chegara sem uma única nuvem no céu. Então... chuva? Abriu os olhos e percebeu o único aposento do casebre que vivia iluminado por fogo. A fumaça deixou sua visibilidade escassa, mas ela conseguiu chegar até o irmão, que dormia no seu costumeiro canto, cansado do dia intenso de labor. Não precisou dizer nada. Sacudiu-o e o homem ergueu-se, assustado. — O rapaz pode sair — uma voz masculina se sobressaiu à noite, do lado de fora da casa. — Mas, a imunda deve queimar, para limparmos nossa terra desse


sangue amaldiçoado. Esmeralda encarou o irmão. Randu não parecia assustado, ao contrário, seu semblante denotava o quão farto estava daqueles ataques. Desde os três homens que ela matou, outros sete apareceram nos dias que se seguiram. Dois deles foram surrados por ela, e ele deu cabo dos outros cinco. Agora, punham fogo na única casa que tinham. Por que os odiavam tanto? Sequer saiam daquele pedaço de terra! Nunca davam as caras fora do limite de sua casa. — Pegue sua espada — ordenou à ruiva. —Nessa noite teremos que derramar muito sangue. O sorriso que se sucedeu a ordem causou um mal estar no coração do homem negro. Ele não gostava da forma como Esmeralda parecia se contentar com a menção da luta. Havia nela uma sombra, algo quase maligno. Provavelmente, herdara aquela característica do pai, pois Brione era doce e avessa à violência. Ergueram-se, e rumaram em direção à saída. O irmão, munido da espada e de algumas facas, saiu à frente. O fogo no teto já havia se alastrado para as paredes, e eles respiraram aliviados o oxigênio da parte externa da casa. — Vão embora! — Randu ordenou, encarando cerca de dez homens montados a cavalo. — Essa casa


pertencia a minha mãe. Nenhum cidadão de Cashel tem direito de destruir o que não lhe pertence. Era quase cômico usar a religião para tentar aliviar o clima. Havia ódio nos olhares que recebeu. — Nada temos contra você — um dos cavaleiros avisou. — Não queremos derramar sangue sagrado de Cashel, filho de Lugus. É essa imunda que nos interessa. Os reis e suas famílias, dos três reinos, segundo a crença, eram descendentes diretos dos deuses. Randu tinha sangue divino, mas Esmeralda, por ser filha da antiga plebeia Brione, era considerava apenas um animal, para eles. Contudo, mal sabiam eles que o sangue de Masha borbulhava na mulher de olhos verdes. Antes mesmo de Randu conseguir abrir a boca para retrucar o homem, uma lâmina cruzou o céu, cravando-se na garganta do que ameaçara. Quando o primeiro homem caiu do cavalo, Randu olhou de soslaio para a irmã, tentando recriminá-la. Não teve tempo. Sozinha, ela avançou com a arma em punho, atacando o primeiro dos homens. Naquele pequeno pedaço de terra em uma floresta antiga e desabitada de Cashel, uma batalha se travou por alguns minutos. Esmeralda e Randu protegeram a retaguarda um do outro, enquanto bramiam com força suas espadas. O irmão negro era mais forte. Em contrapartida,


a irmã ruiva era extremamente rápida. Enquanto os que lutavam contra o rapaz acabavam perdendo a vida pela energia que ele impunha contra eles, os que avançaram contra a mulher mal conseguiam vê-la, enquanto ela rodopiava ao redor deles, cravando o metal gelado em suas costelas, cortando gargantas, lutando como um felino em proteção própria. Mais tarde, diante dos cadáveres, Esmeralda limpava a lâmina com calma, observando a casa destruída e meditando no tempo que demorariam em reerguer o casebre. No entanto, seus pensamentos foram interrompidos pela voz potente do irmão. — Vamos embora. Não era uma pergunta. Ele estava relatando a ela sua decisão. — O quê? Para onde? — Vamos para o litoral. Na última vez que estive no vilarejo, ouvi rumores que existem imundos trabalhando nas docas. Então, provavelmente, a situação lá é mais calma para você. Ela negou, revoltada. — E eu vou trabalhar com o quê? O único ofício para uma mulher nos portos era a prostituição. — Vamos conseguir uma casa, e você ficará nela,


enquanto eu trabalho. Ela o odiou profundamente pela ideia. Porém, ao mesmo tempo, sabia que o irmão estava fazendo tudo ao seu alcance para protegê-la. — Esmeralda... — seu tom era cúmplice. — Não temos escolha. Não podemos permanecer matando todos que aparecerem. Um dia, fracassaremos. Ninguém vence uma guerra para sempre. Assentindo, ela enfim concordou. ***

O quarto estava escuro apesar do sol alto no céu. As enormes janelas estavam cobertas, e a única indicação de que não estava sozinho ali era o volume no leito. Cael suspirou, aproximando-se de um candelabro. Acendeu o fogo, usando a pólvora que lá se encontrava. Então, foi em direção à cama e encarou Cedric. — Eu... — Não quero que diga nada — a voz forte interceptou-o. — Foi um acidente, irmão — Cedric afirmou, convicto. Cael sentiu as lágrimas virem aos olhos. — Foi — concordou. — Eu jamais... —


emudeceu-se, impedindo-se de descontrolar-se perante ele. — Faz uma semana — apontou. — Queria ter vindo antes, mas... Pensou nas palavras. As mentiras demoraram a surgir. — Mas, eu não tinha coragem — disse, falso. A verdade é que o pai o havia infligido uma tortura sem igual. Após ter tido a pele das costas praticamente arrancadas com o chicote de pregos, foi abatido por uma forte febre. Soube, pelas criadas, que o estrago no rosto de Cedric era irreversível. O calor do ferro derretido deformou completamente o lado direito do rosto do outro, transformando-o em um monstro. Talvez fosse por isso que, desde o acidente, Cedric não saia do quarto. — Amanhã é o seu casamento — murmurou, aproximando-se da cama. A custo, manteve o semblante impassível diante da deformidade. Era um milagre que Cedric não houvesse perdido a visão, pois a carne da lateral do rosto parecia ter sido arrancada de si. A imagem era tão horrenda que ele quase desviou o olhar. — Não vejo Lyn desde o incidente. — Eu tenho certeza que os sentimentos dela... — Eu sei — o futuro Rei concordou. — Lyn e eu


nos amamos há muitos anos. Se algo do tipo houvesse ocorrido com minha noiva, não mudaria em nada o que sinto por ela. Confio que ela também... — Pareceu esmorecer, no entanto. — Ela também me ama, não é? Cael assentiu. — Você quer vê-la? — indagou, sentindo que aquele encontro precisava acontecer antes de ambos estivessem diante do sacerdote e de todo o povo de Bran. Cedric assentiu. — Eu pedi para tio Iran trazê-la, mas... — Eu falarei com ela. Cedric sorriu. — Obrigado, meu irmão. Cael nunca devolveu aquela alcunha carinhosa. Mesmo que não o odiasse, havia, em seu íntimo, uma tristeza absurda por saber ser preterido em favor dele. Quantas vezes, durante a infância, observou Cedric aninhar-se em seu pai, enquanto ele era desprezado e surrado? Quantas vezes, o príncipe de Bran era abraçado e confortado, felicitado ou simplesmente apoiado, a tempo que ele era renegado, humilhado e espancado? Não... chamar Cedric de irmão era uma mentira que não sairia de seus lábios. Curvou-se diante do outro, mesmo ambos sendo futuros reis.


Sorriu, diante do pensamento indigesto. Seu trono parecia longe. Provavelmente, teria que provocar uma guerra para tomar o que lhe era de direito. Saiu do quarto em passos retos. Logo, estava diante do jardim, local onde havia destruído involuntariamente o rosto de Cedric, e local onde Lyn permanecia o máximo de tempo que pudesse. — O Príncipe quer vê-la — disse, resoluto, assim que a avistou. A mulher de longos cabelos negros e de olhar intenso o mediu. — Não tenho coragem de vê-lo — assumiu, sem vergonha. — Eu tenho medo de... — Amanhã é seu casamento — Cael estava sem paciência para a pieguice feminina. — Terá que vê-lo diante de um sacerdote, e depois o receber em sua cama. — mordeu os lábios, antes de prosseguir. — O que há com você? Não é o homem que você ama? A mulher assentiu, acanhada, insegura. — Uma das criadas que disse que ele está horrível. — Está — confirmou, sério. — Mas, ainda é Cedric. Ele perdeu a beleza do rosto, não a personalidade ou o caráter. Ainda é o homem que ama você, que a escolheu entre todas as braianas e que deseja torná-la sua


rainha e sua esposa. Lyn voltou-se e encarou as rosas. — Eu quero ser rainha — admitiu. — Quero ser rainha — repetiu. — Mas, eu... — Vá vê-lo logo. Se quiser recusá-lo, que o faça antes de subirem ao altar. Porque, se o fizer diante de todo o povo de Bran, eu arrancarei sua cabeça antes mesmo de conseguir sair da catedral. Aquela ameaça surtiu efeito e, enfim, Lyn pareceu concordar. Sem mais, Cael lhe deu passagem e a acompanhou até a porta. Assim que ela entrou no quarto do rei, ele respirou resignado. Mesmo que não amasse Cedric como um irmão, entristecia-se pelo destino do outro. Ninguém merecia uma mulher daquelas. ***

Lyn acostumou os olhos à escuridão. Ela respirava de forma sôfrega, nervosa, enquanto sentia as mãos tremerem e o ar faltar aos pulmões. Deu dois passos, estancou. Cedric estava em pé, ao lado do leito. Ele também parecia nervoso, apesar da luz das velas não atingirem sua


imagem. Apenas, o som descontínuo de sua respiração dava a ela essa impressão. — Amanhã é o dia do nosso casamento. — A voz máscula soou, fazendo-a estremecer. — É o dia que mais espero desde que a vi, anos antes, a passear pelo jardim real. A moça apertou os braços em torno de si. — Mas, você sabe... Estava presente quando aconteceu aquele acidente... — Sim. — Preciso saber se é capaz de suportar minha aparência. Cedric deu dois passos em sua direção e, então, parou. A sua frente, a única mulher que amou parecia escandalizada. Ela levou as duas mãos à boca, enquanto seus olhos eram tomados pelo horror. — Você é um monstro! — o grito dela invadiu sua alma e o destruiu. Então, Cedric a viu volvendo-se em direção à porta e saindo correndo de seu quarto. Quando a entrada se fechou, o amoroso e gentil futuro Rei de Bran estava morto. ***


Cael não interceptou a mulher que disparava em direção aos corredores. Ele esperava por aquela reação, mesmo que tal lhe causasse extremo desconforto. O grito masculino, dolorido, destruído, atingiu-o e ele quase correu até o quarto para amparar Cedric, mas estancou diante da imagem de Iran, que apareceu no corredor oposto. — Você... — as palavras pareciam arder. — Você armou isso. Subitamente, estava mais claro que o dia. Cedric no jardim, Cael levando sobre os ombros um latão de ferro quente... Uma mulher fútil... Um homem deformado. — Sou um homem próximo da velhice — Iran não negou. — E não quero morrer sem ver Masha e Bran unidos pelo laço do sangue. — Você machucou Cedric para conseguir isso — parecia irreal. — Veja bem — Iran se aproximou do filho —, digamos que Lyn engravidasse no primeiro ou segundo ano de casados. Nós ainda teríamos que esperar uns vinte e poucos anos para que a criança tivesse idade suficiente para se casar. E, depois, quem garante que o menino ou menina aceitasse um matrimônio arranjado? Não quis


arriscar com o destino. Cael quase cuspiu em seu rosto, tamanho o nojo que sentiu. — Além disso, foi uma prova de amor a Cedric. — Amor? Você o destruiu! — Eu mostrei o tipo de mulher que é lady Lyn. — E que mulher de Masha se casará com um homem desfigurado? — Matheo, o regente, já escolheu uma menina órfã, criada pelos tios, praticamente um estorvo em casa. Não tem sangue nobre, nem é de família rica, mas ao menos é uma mashiana legítima, cabelos tão ruivos quanto o fogo, olhos tão verdes quanto às esmeraldas de Masha, e se casará quer queira ou não. — Respirou fundo antes de prosseguir. — Assim que eu convencer Cedric do casamento, você irá buscá-la. — Eu? — Sim. O regente a enviará até Cashel, e lá você irá pegá-la, e a trará para cá. Um casamento de meu agrado, meu sonho para meu querido Cedric. Quando Iran se afastou, Cael murmurou sabiamente para si mesmo: — Não sei o que é pior: receber seu ódio ou seu amor.


Um dia, ele iria descobrir.


Capítulo 7 Rhianna Os olhos de Iran demoraram alguns segundos para se acostumarem à escuridão do quarto. Contudo, tão logo conseguiu perceber o vulto sentado diante da janela fechada, ele aproximou-se, solidário. Sentou-se ao seu lado, encostando uma das mãos no ombro do rapaz, e sorriu. — Por que não sai do quarto? — indagou. — O sol está tão bonito lá fora. — Ainda não me acostumei à máscara — Cedric disse, baixo. — Então, prefiro ficar aqui. — Não é bom permanecer na escuridão, meu filho — aconselhou. — Dê uma volta pelos arredores. O silêncio que se seguiu denotou o quanto o futuro Rei de Bran não estava disposto a prosseguir na conversa. — Precisamos falar sobre seu casamento, Cedric. — Não irei me casar.


A afirmativa dura fez Iran suspirar, resignado. — Eu entendo sua dor, mas já se passou quase um mês que lady Lyn rompeu o noivado. Precisa prosseguir... — Não! — a interrupção foi obtusa. — Não quero nunca mais me apaixonar... — O casamento não é um enlace que envolve amor, meu filho — Iran remexeu-se na cadeira, a fim de buscar uma posição mais confortável. — É basicamente um acordo político. Um rei precisa de uma rainha. Não precisa amá-la, apenas, se casar com uma mulher. E, eu tenho uma mashiana tão especial a sua espera... — Já disse, não! — Cedric. — O tio saiu da cadeira e parou diante de si. — Lady Lyn já está noiva de outro homem. Ela está seguindo com sua vida, e você deveria fazer o mesmo — foi duro. Contudo, arrependeu-se diante do olhar assombrado diante de si. Claramente, Cedric não sabia que a ex-noiva já estava com outro. — Sei que a amava — amenizou. — Mas, não era correspondido na mesma medida. Essas coisas acontecem, inclusive a um futuro Rei. Porém, diga-me, seu povo precisa ser punido por sua desilusão amorosa? Acredito que concorde comigo: O valente povo de Bran merece um Rei e uma Rainha. Silêncio. Entretanto, aquela ausência de som era positiva, pois Iran percebia a dúvida dominar os olhos escuros do seu amado filho de criação.


— Eu tentei convencer seu pai a se casar com uma mashiana — mentiu. Na verdade, Iran tentou convencer Atho a não se casar. Com ninguém. Nenhuma mulher. Seu ciúme e sua possessividade marcaram a vida do melhor amigo. — Porém, ele não me ouviu porque estava apaixonado por sua mãe. Nesse momento, pelo que sei, você não tem sentimentos por nenhuma braiana. Cedric baixou a fronte. Ele tinha, mas a braiana Lyn não o queria. — É a chance de unirmos os reinos, torná-los irmãos. Seu filho será Rei de Bran e Masha. — Mas, o Rei de Masha será Cael. — Que a Deusa me perdoe, mas, Cedric, Cael não nasceu para ser rei. E, definitivamente, ele não se importa. Ganhou uma ilha além de Masha da avó materna e, provavelmente, se enfiará nela assim que puder. O banimento do filho sanguíneo estava em seus planos futuros, mas não tinha nem tempo, nem disposição, para pensar nisso naquele momento. — O clero é contra um casamento de raças distintas. — Eu sei — Iran voltou a se sentar, percebendo que, naquele momento, havia esperança no tom da voz de Cedric. — Os casheanos, por exemplo, chamam as


crianças nascidas da união de dois diferentes de “imundos”. E, sinceramente, nada no mundo deve ser pior que ser um imundo. Porém, sabemos que Masha e Bran eram muito próximos. A nossa religião cita várias vezes o quanto ela cantava para Bran, e que Bran até mesmo colocava seu perfume em flores, para senti-lo. Cedric o encarou. Nunca havia ocorrido um enlace entre mashianos e braianos. Diferente do que acontecia ao povo de Cashel, onde, frequentemente, suas mulheres eram estupradas por brancos, dando a luz a imundos, tal coisa não ocorria entre os brancos. Mashianos e braianos se respeitavam tremendamente. — Eu sinto... — murmurou — que é a vontade de Bran. Que é a vontade de Masha. Há muito tempo, sinto que nossos povos devem ser um só. Cedric respirou fundo e por fim assentiu. — Meu filho — Iran sentiu as lágrimas virem aos olhos. — Meu amado filho — o abraçou. — Enfim, os deuses terão sua vontade cumprida. Mais tarde, ao afastar-se do quarto, contudo, em nada ele se lembrou dos divinos. Seu único pensamento se focava em Atho. — Meu amado... Enfim, nossos sangues irão se mesclar. Era simbólico, mas de muito lhe valia.


***

Randu adentrou a porta do pequeno quarto alugado em uma viela próxima das docas. Forte e grande, ele conseguiu emprego tão logo chegou ao porto. Descarregar os caixotes de mantimentos dos navios que chegavam não parecia nada ruim. Acostumado ao trabalho braçal, ele cumpria seu ofício com discrição e responsabilidade. Não fez amigos, naqueles primeiros dias. Não podia arriscar a vida da irmã. Percebeu que havia imundos ali, mas eram todos homens. Soube, a boca pequenas, que os rapazes de olhos verdes, antagonizando com a pele escura, eram castrados a fim de não se reproduzirem. “Mas, como se castraria uma mulher?”, questionou um dos descarregadores, rindo, ao explicar porque não havia imundas nas docas e nem nos bordeis. “Logo essas pragas se reproduziriam. Então, é melhor matar logo!” Ele ouviu tudo num silêncio mórbido, imaginando o que faria com a irmã, naquele lugar. Talvez tivesse sido uma má ideia, mas... para onde ir? Que lugar no mundo uma imunda estaria em segurança? Os imundos homens tinham a vantagem de permanecerem com a pele negra. Só aquilo já os ajudava


a interagirem com os casheanos. Porém, as mulheres imundas nasciam sempre brancas. Uma única característica as denunciava. Com rubor, espantou os as reflexões, fugindo daquele pensamento estranho. Suspirou, encarando o ambiente limpo. A irmã estava sentada à janela, a olhar pelo canto da cortina. Ao seu lado, a espada e a pedra de fiar pareceram ocupá-la durante a tarde. — Limpou tudo — ele comentou, puxando assunto, quando a viu volvendo-se para ele. — Duas vezes. Repentinamente, ela se ergueu. — Não posso viver escondida aqui, meu irmão. Eu poderia sair, usando o capuz. — Quando chegamos ninguém a percebeu de capuz por dois motivos: primeiro, porque estava escuro. Segundo, porque fingimos que era minha esposa e eu resmunguei para qualquer um que te olhasse. A dona do quarto até acha que eu sou um marido terrível, que não permite que minha esposa veja a luz do sol. Esmeralda gargalhou e ele não resistiu e riu junto. Porém, o riso era triste e ambos sabiam disso. — Eu quero ser livre, meu irmão. — Eu te daria a lua e as estrelas, se pudesse. Mas, assim como os astros não estão em meu poder, a sua


liberdade também não. Ela assentiu, constrangida. Sabia que Randu fazia o melhor que podia por ela. Contudo, estava farta. Já fazia alguns anos que havia cruzado suas vinte primaveras, e o pobre irmão era praticamente um escravo, vivendo por ela, sustentando-a de todas as formas, protegendo-a como um escudo. Não era justo. Randu merecia mais. Assim que ele lhe deu as costas para ir buscar água a fim de que ela se lavasse – já que ele tomava banho no banheiro comunitário do casarão – a mulher sentou-se novamente à janela. Escondida atrás da cortina, seus olhos esmeralda brilharam. Precisava de um plano... e precisava logo. ***

— Dizem que o rosto dele é completamente deformado — a prima Adela gargalhou, fazendo uma careta. — Dizem também que ficou louco. Que se tranca em seu quarto, vivendo nas sombras, e que não permite que ninguém olhe para o seu rosto. Rhianna ergueu a face, encarando a prima. A moça, dois anos mais jovem que ela, parecia feliz demais pelo seu desafortunado destino. — Papai me comentou que ele come bebês, desde


que enlouqueceu. Rhianna desviou o olhar, baixando a fronte. — E agora, será a esposa dele! — Adela gritou, batendo palmas. — Que destino justo. — Justo? — Por ser bela, por ter roubado todos os meus namorados... Masha não dorme, orei todas as noites para que Ela te recompensasse por sua alma invejosa e perversa. Rhianna não respondeu. A prima, infelizmente, não fora abençoada com a beleza comum as mashianas. Baixa demais, magra demais, sem peitos, sem bunda, sem nenhuma qualidade – física ou psicológica – que pudesse destacá-la, não levou muito tempo para ser desprezada pelos pretendentes. Como a família não aceitava que era a falta de atributos que fizeram com que a única filha daquela casa não se casasse, logo acharam um culpado pelo tal. Rhianna perdeu os pais muito cedo. A mãe, pela febre, o pai, na Guerra dos Mil Dias. Assim sendo, foi levada a casa dos tios. Tão logo chegou lá, a mãe de Adela morreu no parto do irmão mais novo da prima, que também não durou muito. Amaldiçoaram-na, mas não a desampararam, pois temiam a mão da Deusa, que era clara em dizer nas suas escrituras e pergaminhos que ninguém poderia desabrigar um parente em dificuldades.


Viveu as sombras. Comia as sobras da mesa dos familiares. Era uma ratinha, um estorvo, que se escondia nos cantos, para que ninguém a notasse. Contudo, um dia, foi percebida. Os pretendentes da prima a viram, e lhe desejaram. Os pedidos de casamento surgiram, mas o pai de Adela, revoltado pela situação, prometeu que Rhianna não se casaria antes de sua filha. E como ninguém queria Adela, ela passou a ser igualmente uma mulher solteira. E, naquele mundo cruel, o que poderia ser pior para uma mulher? A única finalidade de suas vidas eram parir e dar filhos aos homens. Se não se casavam, de que serviam? Seu destino, no entanto, pareceu mudar a uma carta do regente. Iran, o Rei por direito de Masha, escolheu-a, entre todas, para ser a Rainha de Bran. Parecia um destino dos sonhos, não fosse as lendas que circulavam por aquelas bandas. Cedric, diziam, era um rei deformado, que se escondia atrás de uma máscara, a fim de ocultar tanto horror. O acidente que lhe levara a beleza e a noiva havia ocorrido há alguns meses e, desde então, ele se enfurnou em seu quarto. Às vezes, se comentava que aparecia em público usando uma máscara, mas que tal acessório só constrangia ainda mais os que o cercavam. Porém, poderia um destino ser pior do que aquele


que vivia? Se Cedric de Bran era verdadeiramente um amargurado, ele sequer desejaria sua presença. Não teria um marido, no sentido real da palavra, mas teria a liberdade de andar pelo castelo sem se preocupar em ofender alguém pela sua existência. Escondendo um sorriso, ela, enfim, indagou. — Quando me levarão? O som de passos fizeram as moças se erguerem. Um mashiano de meia idade entrou na sala de chá, e as observou. — Em breve — ele respondeu, demonstrando que havia ouvido sua questão. — Em breve — Adela a encarava, enigmática. — Em breve você será devorada por aquele monstro.



Capítulo 8 Cabeças vermelhas. As escrituras diziam que, quando os reinos foram separados, Masha chorou tanto por Bran que a enorme cratera que dividia os reinos se encheu de lágrimas e se tornou o mar. No balançar do enorme e abastado veleiro, Cael observava as águas de tom verde, imaginando como alguém poderia chorar tanto a ponto de preencher toda a extensão que dividia os reinos, afinal de contas, por mais que ele houvesse – vergonhosamente – chorado muito durante sua vida, nunca chegou ao ponto de preencher sequer um balde. Repentinamente, sentiu a presença de outra pessoa e encarou o amigo, Kian, que o acompanhava em sua viagem. — No que está pensando? Cael deu os ombros, ignorando a questão. — Meu pai te disse algo, antes de nos enviar nessa viagem? Kian olhou para frente. O reino de Cashel já estava à vista, e ele podia avistar as figuras miúdas andando de um lado para o outro no porto.


— Fale — ordenou. — O mesmo de sempre — Kian murmurou. — Você conhece o seu pai melhor do que eu. O conselho antes de embarcar era: caso ocorresse algo que pusesse a vida de Cael em risco, o escudeiro nada devia fazer. “Deixe o destino cumprir sua vontade”, Iran lhe avisou, com um sorriso sarcástico nos lábios que quase fez o jovem braiano sacar sua arma e lhe convocar para um duelo. Ergueu novamente a face. O olhar do melhor amigo estava longe, naquela terra que aos poucos se aproximava. Cael era tão sozinho, tão abandonado que, mesmo sem entender seus sentimentos, viu-se a tornar-se seu mais leal companheiro. Estava sempre ao seu lado, nos bordeis ou nas noites que ele chorava escondido no quarto. A espreita, tentava protegê-lo, mesmo não interferindo nas “lições” agressivas de Iran. Ninguém devia se envolver numa relação entre pai e filho, e ele cumpria as sagradas leis. Contudo, quando elas terminavam e Iran ia embora, era Kian que ajudava Cael a vestir a camisa branca e era ele que o levava nos braços até próximo do castelo. Às vezes, as surras eram tão enérgicas que o jovem Príncipe de Masha quase morria. A febre o atingia, e ele ficava vários dias e noites trancado no quarto,


lutando para sobreviver. Kian estava ali. Estava em todos os segundos que o ruivo respirava. E respiraria por ele, se necessário fosse. — Então — mudou de assunto, tentando fazê-lo sorrir —, faz muitos anos que não vê alguém de Masha além de seu pai, não é? — Vejo as mashianas pelas figuras dos livros — ele concordou. — São muito belas. Kian anuiu, apesar de nunca ter visto alguma durante a sua vida. Mas, era inegável que aquelas figuras de longos cabelos vermelhos eram excessivamente atraentes. Sempre sorria ao olhar para os livros. — Como a jovem se chama? — Rhianna. — Por que quiseram entregá-la no reino de Cashel? — A única finalidade de encurtar a viagem foi à urgência que meu pai tem para a realização desse casamento. Mais um mês no mar não teria me feito nenhum mal. Além disso, eu adoraria ver novamente a terra de minha mãe. Mas, Iran não se importa com nada que não envolva seus planos. A resposta lacônica fez Kian baixar a fronte. — Se o casamento...


— Estou indeciso entre a guerra e o exílio — respondeu, mesmo sem a questão completa. — Um lado meu me impele a lutar pelo que me é de direito. O outro está cansado demais e acha que morar naquela ilha isolada além do reino de Masha, não seria de todo mal. — Talvez... — A lei divina me impede de matar meu pai — Cael prosseguiu, sem se ater a fala do amigo. — Mas, e se eu matasse Cedric? Kian ficou chocado e quase o sacudiu, diante de uma frase tão terrível, mas foi interrompido pelo riso cômico do outro. — Estou brincando — advertiu. — Mas, se eu pudesse... Eu faria qualquer coisa para atrapalhar os planos de meu pai. As palavras tiveram um efeito profético. Kian volveu novamente para frente, e ficou a encarar o reino. Dali, a visão era deslumbrante. A cadeia de montanhas, a mesma que tempos antes havia sido a responsável pela morte do justo Rei Atho, se erigia quase até o céu. Era possível visualizar também a verdejante floresta ao sul, e a praia de areia branca ao norte. Era uma visão dos sonhos. ***


Cael não aceitou ajuda para descer do veleiro. Pela primeira vez, em muitos anos, um mashiano pisava em Cashel, e ele ficou pasmo com a quantidade de imundos que ali viu, todos negros de olhos esmeralda, e de olhar atônico, diante de um branco. Ignorou-os, volvendo para um dos homens que serviam ao seu pai, no porto. Nam era um casheano que não se rebelou durante a guerra, ao contrário, vendeu comida ao exército de cabeça vermelha, adquirindo, assim, fortuna. Passou a ser um burguês do porto. Comprando e vendendo toda sorte de mercadoria que até ele chegava. — A noiva do Príncipe Cedric já chegou? — indagou, sequer cumprimentando o homem. — Estamos esperando por ela — o homem respondeu. — Deve estar no porto, no mais tardar, até amanhã. Enquanto isso, seria uma honra receber o Príncipe de Masha em minha humilde casa. A “humilde casa” era um palacete erguido pelo suor dos muitos imundos que Nam empregava, em regime de escravidão. Cael incomodou-se com o fato de que, entre aqueles pobres homens, não havia ninguém que lutasse por qualquer direito. Na verdade, um imundo, na visão dos reinos, era menos que um animal.


Subitamente, percebeu que o filho de Cedric e Rhianna também seria um imundo. Talvez, um Rei imundo de Bran mudasse um pouco as coisas entre os reinos. Quem diria que um plano de Iran poderia ser benéfico? — Aceito sua oferta. Mas, estou há mais de um mês no mar, e quero andar um pouco em terra firme. — Seria uma honra que alguma de minhas filhas o acompanhasse. A menina, de prováveis catorze anos, o encarava atrás do pai, acanhada. — Eu quero ir sozinho. Kian apenas se curvou quando ele se afastou. Todos nas docas sabiam da presença dele. Não havia perigo, porque desconheciam o tipo de amor que ele recebia do pai. Ninguém se atreveria a fazer-lhe mal, temendo represaria. O lugar fedia a peixe e esgoto. As docas eram horríveis, sem cor e sem alegria. Homens cruzavam por ele, andando como sonâmbulos, sem realmente nada ver. Imundos trabalhavam mais, ele percebeu. Mas, os outros negros também pareciam cansados e exaustos. Andou por cerca de duzentos metros, quando avistou uma mecha escarlate de um transeunte. A pessoa, encoberta por um capuz, andava com a cabeça baixa, e não parecia ser notada por ninguém.


Seria... Uma mulher? Uma mashiana em Cashel? Hipnotizado, ele a seguiu. ***

Ao completar três meses trancafiada dentro do quarto, Esmeralda percebeu que poderia enlouquecer. Sabia, sem precisar de palavras, que o irmão já estava arrependido de terem ido ao porto. Imaginavam que estariam mais seguros ali, mas a situação das imundas não era boa em canto nenhum. O cheiro do casebre onde alugavam um quarto fedia a mofo. Estava cansada daquele lugar escuro e precisava desesperadamente caminhar um pouco no sol, e respirar ar puro. Prendeu os indomáveis cabelos cacheados e vermelhos num coque, sem perceber que uma longa mecha se desprendeu dos grampos. Depois, colocou a capa e o capuz. Discretamente, saiu da casa e pôs-se a andar em direção a floresta ao sul do cais. Só queria respirar, caminhar, esticar as pernas. Em meia hora, talvez menos, ela estaria de volta ao quarto. Não se sentia insegura, apesar disso. A espada


estava na sua bainha, amarrada a cintura do vestido. Esmeralda tinha certeza que poderia se proteger, caso necessário. Seguiu diretamente às árvores frondosas. Respirou aliviada quando chegou até elas. Ergueu a mão, tocando a casca do caule, sentindo o ar puro invadindo suas narinas, tranquilizando sua alma. — Ei! O som fê-la virar-se. Momentaneamente, esqueceu-se de que devia se esconder. Estava ali para caminhar e não para lutar. Se Randu soubesse que ela o estava desobedecendo, tudo poderia acontecer. Porém, quando voltou-se para a voz que chamava, sentiu os olhos se arregalando. Era um branco... um branco de cabelos vermelhos como os dela. Nunca havia visto alguém que não fosse negro. Estranhou, completamente, aquela palidez de pele, mas, subitamente, percebeu que o espanto era dividido pelo homem que a seguiu. Ele deu dois passos. Ela recuou, levando lentamente a mão até a espada. Porém, o rapaz não pareceu temê-la, e andou reto em sua direção, tocando seu rosto. — Como...? — ele murmurou.


— Quem é você? — Ela indagou, incomodada, afastando suas mãos. Repentinamente, ele levou as mãos até sua camisa. Rasgou-a, assustando-a. — O que está fazendo, imbecil? Esmeralda tentou cobrir os seios rapidamente, e fechou novamente a blusa. Porém, os botões haviam sido arrancados e ela não foi muito feliz no seu intento. — Uma imunda... — ele murmurou. A única característica que as separava das mashianas puras eram os seios. Na maior parte, medianos, eles possuíam uma enorme aréola preta. Ele havia conhecido uma imunda braiana num dos bordeis de Bran. A mulher, filha de uma negra e um branco braiano, havia sido levada pelo pai ao final da guerra, para servir em sua casa, e escapar da perseguição em Cashel. Porém, assim que chegou lá, com cerca de dois anos, foi expulsa da casa pela esposa do genitor. Acolhida por um sacerdote, viveu em um templo até cerca de dez anos, e depois, descoberta, foi escorraçada e, desde então, precisou se prostituir para sobreviver. Nos reinos de Masha e Bran, imundos, normalmente, não eram mortos. Mas, provavelmente, sofriam perseguição ou eram escravizados. Cael se lembrava de ela contar que não seria mãe.


Que quando as ervas falhavam e ela pegava barriga, enfiava uma agulha longa na vagina e cutucava até matar a criança. “Parece cruel” ela disse, seu semblante era uma incógnita. “Mas, mais cruel é nascer imundo. Eu odeio meus pais por isso”. — Sim — ela o encarava, firme. — O que quer? O olhar de Cael, de repente, se ateu em seu rosto. Mashianos eram por si só muito parecidos, mas... Levou a mão ao bolso, retirando dele um pequeno espelho. Estendeu a ela. A garota não se moveu. — O que é isso? Pasmo, ele riu. — Nunca viu um espelho? O olhar dela respondia a questão. — Ele reflete sua imagem — explicou. Os olhos esmeralda se arregalaram, espantados. — É mágico? — Não, apenas... Se olhe, por favor. Ela então levou a mão ao espelho. Com o movimento, a blusa voltou a abrir, mas Cael, estranhamente, não se excitou com a visão daqueles seios bonitos.


A mulher ergueu o objeto até o rosto. Sua boca abriu, surpresa, e então, seus olhos desviaram para ele. Depois, ela voltou a encarar a própria imagem refletida. Era a primeira vez que se via. Jamais imaginou que sua boca fosse tão generosa, nem que seu nariz era tão reto. Mas, havia algo a mais naquela visão. — Somos... — Iguais — ele completou. — Você nasceu durante a Guerra de Mil Dias? — Um tempo depois. Cael poderia apostar que eram parentes, mas o único de sua família que havia ido a guerra era seu pai, Iran. E Iran odiava as mulheres. Deitou-se forçado com a sua mãe, sempre preferindo o leito masculino. Cael foi testemunha da quantidade de homens que entrou e saiu do quarto do pai durante aqueles anos. Não... aquela jovem imunda não devia ser sua parente e, provavelmente, alguma explicação plausível estava bem diante do seu nariz. Contudo, ele não conseguia realmente pensar direito, já que outro pensamento se impunha com força em sua mente. — Diga-me, não deve ser fácil ser uma imunda em Cashel... Ela devolveu o espelho, repentinamente sentindo que não precisava temê-lo.


— E é fácil ser uma imunda em algum dos três reinos? Gostou da resposta felina. — Como se chama? — Sou Esmeralda. — Cael — ele curvou-se perante ela, e a mulher riu. — Eu tenho uma proposta, cara Esmeralda. Uma proposta que vai te salvar de todos os seus problemas. A gargalhada feminina fê-lo sorrir também. Definitivamente, ele gostava daquela imunda. — Um salvador? Era só o que me faltava. Dando-lhe as costas, ela voltou a cobrir-se com o capuz. Andou rapidamente, quando percebeu que estava sendo seguida. — Não quero ser antipática, mas não gosto de desconhecidos ao meu encalço. — Posso te salvar da sua situação. — Não me interessa sua proposta, mashiano. — Posso te dar tudo que deseja — ele prosseguiu. — Posso te conceder teu mais profundo desejo. Ela volveu-se para ele. — Meu maior desejo? Pode me apontar o homem que estuprou minha mãe? Cael fraquejou.


— Bom, não seria fácil descobrir, mas eu posso tentar... — Eu tenho uma pista. — Tem? Qual? — Ainda não — ela murmurou, pensando no seu cordão, escondido entre suas roupas, no quarto. — Quando eu cumprir a minha parte, você cumprirá a sua? — Sequer quer saber o que eu tenho a propor? Os olhos esmeralda brilharam. — Pela cabeça daquele desgraçado — ela disse, firme —, eu faço qualquer coisa. ***

— Não entendo — Kian encarou o jovem Cael com a mashiana ao lado. — Rhianna não devia chegar amanhã? — Esmeralda — ele apresentou-a ao melhor amigo. — Ela se chama Esmeralda. Mas, esqueça esse nome. A partir de hoje, você irá chamá-la de Rhianna. — Eu... — Escute — Cael foi claro. — Vamos trocar a mashiana de sangue puro por uma imunda — deixou claro seu plano. — Vou destruir o plano de meu pai.


— Uma imunda? — Kian ergueu as sobrancelhas. — Cedric não descobriria a diferença assim que eles se deitassem juntos? Assim que ele lhe visse sem roupa? — Cedric ama Lyn e não quer se deitar com nenhuma mulher. — Cael afirmou, seguro. — Tudo que temos que fazer é trocar as damas, e depois ver meu pai agonizar por seus planos falharem miseravelmente. Contudo — voltou-se para Esmeralda —, caso o Rei queira dormir com você... — Eu me submeterei — ela aceitou, de imediato. — E saberei esconder a minha condição. Não se preocupe. Se você cumprir com sua palavra, eu cumprirei com a minha. Kian a encarou. Estranhamente, ela lembrava muito Iran, apesar de ser praticamente igual à Cael. — E a jovem Rhianna? — Deixe ouro para Nam entregar a moça, e depois a despache para as ilhas ao sul de Masha. Até ela conseguir voltar para casa e contar o ocorrido, a “nossa Rhianna” já será rainha. O coração de Cael batia muito forte enquanto os planos se arquitetavam em sua mente. Mais que destruir o pai, ele queria a decepção de Cedric. Queria vê-lo agoniado, assim como ele esteve, durante todos aqueles anos. — Quando partiremos?


— O mais breve possível. Esmeralda irá apenas se despedir do irmão. A mulher assentiu. Não era inteiramente verdade. Ela sabia que Randu jamais aceitaria que ela cometesse aquela loucura, confiando cegamente num homem que jamais viu. Porém, olhando de soslaio para Cael, seu coração abrandou. Havia algo entre eles, ela não sabia exatamente o que era, mas sabia que poderia confiar sua vida a ele, uma conexão que talvez apenas Cashel pudesse explicar. Mais tarde, quando ela voltou para o quarto alugado, buscou grafite e papel, para sua carta de despedida. Reafirmou o quanto amava Randu, e o quanto queria vê-lo feliz, casado, próspero, e não escravizado por uma irmã imunda. Estava livre, agora. Que fosse feliz. Enquanto isso, ela buscaria pelo pai. O mataria, estava certa disso, e quis falar ao seu amado irmão o que faria após isso, mas, com franqueza, a sua vida acabava ali. A vingança era a única coisa que a impulsionava a respirar. “Eu te amo”, ela finalizou. “Por favor, um dia, quando puder, perdoe-me”. Ela assinou com os olhos transbordantes de lágrimas. Porém, precisava ser forte. Por ela. Por ele. Por Brione. Escondendo o cordão nos bolsos da saia, ela


olhou mais uma vez para o casaco do irmão. Depois, deu as costas. — Mãe — murmurou, ao fechar a porta do quarto —, farei aquele homem amaldiçoar o dia que colocou as mãos na senhora. Era uma promessa que Esmeralda cumpriria, a custo de muitas lágrimas.


Capítulo 9 O Homem de pele escura. Randu imaginou o cais durante o verão, enquanto caminhava de volta para o quarto alugado. Mesmo no frio que fazia, durante aqueles dias que morava ali, o cheiro era horrível e ele podia ver ratos cruzando o tempo inteiro pelas ruas enlameadas. O calor só pioraria aquele lugar. Estava decidido, Esmeralda e ele iriam embora. A irmã estava de péssimo humor desde que se tornara uma prisioneira, e ele não podia culpá-la. Contudo, para onde ir? Soube, por alguns imundos, que haviam ilhas inabitadas depois do reino de Masha. Havia boatos que alguns imundos haviam ido para lá, esconder-se em cavernas. Eram apenas histórias... Mas, era uma esperança. Cruzou por seu senhorio, cumprimentando-o com a fronte. Depois, entrou no quarto. Abriu a boca para cumprimentar Esmeralda quando, chocado, percebeu o lugar vazio.


Era de se esperar que ela escapasse. De personalidade incontrolável, permaneceu tempo demais trancada naquele quarto, a espera do irmão. Preparou-se para dar meia volta e ir atrás dela pelo porto, quando seus olhos notaram uma folha em cima da mesa. Marchou até ela. O coração temeu seu conteúdo, e as palavras escritas lhe trouxeram lágrimas nos olhos. Tola! Idiota! Não conhecia o mundo? Como poderia crer que encontraria o homem que havia submetido Brione? Sentou-se em um banco, enquanto amassava o papel, tentando controlar a raiva. Teria que ir atrás dela, mas... Como um casheano entraria em Masha? Sim, porque a tola com certeza tentaria se passar por mashiana. Se duvidasse, já estava em algum navio, em direção a terra dos cabeças vermelhas. Não sabia, já que ele sempre ocultou, que a mãe havia sido estuprada por alguém da família real. Ela nunca conseguiria se aproximar de Iran! Passaria a vida em um lugar inóspito, em busca de algo inalcançável, até que fosse descoberta e, possivelmente, morta. Erguendo-se, deu meia volta, e saiu do quarto. ***


— Como assim, desistiram? A jovem mashiana segurava entre os dedos, com toda força que podia, uma pequena bolsa de linho, onde duas mudas de roupa e um livro repousavam, únicos bens que ela possuía em sua vida. — Parece que não vai ter casamento — Nam respondeu, cruel. A mulher encarou o homem negro e gordo, enquanto ele mordiscava uma enorme laranja, atirando sobre ela, pequenos gotejos do alimento. — Mas... — insistiu. — Ninguém avisou nada... Colocaram-me no barco... — seu desespero era nítido. — Disseram que... — Olha, só estou avisando o que me falaram por carta. — Como voltarei para casa? O ouro deixado por Cael ardia em seus bolsos, mas Nam não fez sequer menção de tocar nele. — Não sei, mashiana. Abra as pernas para algum trabalhador do porto e compre sua passagem de volta. Abrir as pernas? A mulher não entendia absolutamente nada que o burguês falava. — Senhor... — Escute — ele deu os ombros —, eu tenho


compromissos. Já entreguei o recado. Adeus. Dando-lhe as costas, ele voltou o corpo grande em direção à ruela que parecia sem fim. Por alguns minutos, Rhianna admirou aquelas formas enormes, como se hipnotizada pela gordura latente. Por fim, ela começou a caminhar lentamente e, quando deu-se por conta, já corria atrás do homem. Seu sonho de liberdade... seu desejo mais forte... tudo havia sido arrancado de si. No momento, precisava desesperadamente voltar para Masha, afinal, não podia permanecer ali, numa terra de casheanos, sendo que possuía cabelos ruivos e pele branca. Depois, precisava esgueirar-se novamente para o porão da casa dos tios, onde passaria seus dias solitários, mas, em segurança. Trombou em alguém. Olhou de relance e percebeu ser um casheano de cabelos compridos. Por alguns segundos, ficou fascinada. Jamais viu cabelos tão negros e tão crespos quanto aqueles. Porém, em seguida, deu-se conta de que era uma armadilha. — Olha só o que temos por aqui — ele murmurou. — Ei, rapazes — voltou-se para um grupo de cinco homens, à direita. — O que acha de nos vingarmos um pouquinho de Masha? Rhianna deu dois passos para trás. Apavorada, logo perdeu o equilibro e caiu no chão. — Deixem a garota em paz.


O que falou era igualmente negro, mas tinha olhos verdes. Ela já havia lido sobre ele nos livros. Era o que chamavam de imundo. — Fala isso porque é castrado — o homem de cabelos compridos riu. — Mas, que casheano de pau no meio das pernas deixaria passar essa oportunidade? Em meio aos risos, ela viu-se sendo agarrada por outros dois homens. Gritou, mas sua voz parecia ecoar e perder-se em meio às galerias. Foi atirada contra um paredão de concreto, num beco sem saída. Defendeu-se quando o primeiro avançou, empurrando-o e esperneando como podia. Então, veio a tontura característica depois de um soco. Amoleceu, tentando voltar a se concentrar em sua defesa. Porém, a batida foi muito forte e ela havia perdido das forças. Quando sentiu o vestido sendo erguido e o ar gelado tocar-lhe suas pernas, viu que tudo estava perdido. Contudo, a esperança retornou em seguida ao ver um homem negro, alto e bonito, surgir do nada, em meio à escuridão. Ele bramia uma espada como um herói dos contos que ela lia em seu porão, e derrubou dois dos homens ao mesmo tempo. Depois, ergueu a espada para o que já estava em cima dela. Rhianna não conseguia gritar, mas tinha certeza que, caso conseguisse, berraria como louca. O guerreiro


havia decepado a cabeça do homem que se atracava a ela. Ele volveu-se para o imundo e outro rapaz, que permaneceram parados. — Eu não iria estuprá-la, mesmo que quisesse — o de olhos verdes explicou, apontando para seu baixo ventre. Tão logo disse isso, ele e o companheiro saíram correndo, em direção à escuridão. Só então o guerreiro a encarou. Seus olhos pareceram confusos por alguns segundos, e Rhianna, desesperada, nada conseguia dizer. Então, fez a única coisa que conseguiu, encolheu-se, diante da masculinidade latente diante de si. Como era em Cashel? O que ele faria agora? Havia a salvado ou apenas expulsara os outros homens para submetê-la? — Você não é Esmeralda... O murmuro masculino fê-la arregalar os olhos. — Quem? — Minha irmã. Ele tinha uma irmã mashiana? Como seria possível? Então, recordou-se novamente dos livros. Ao contrário dos homens imundos, as imundas nasciam com a aparência de uma mashiana comum, com exceção dos seios.


O homem deu-lhe as costas, e começou a caminhar na direção contrária. Rhianna ergueu-se rapidamente. Parecia loucura, mas, até aquele momento, ele era o único homem que conhecera naquela terra que se mostrava de confiança. — Por favor. O olhar masculino a mediu. Rhianna tremeu. — Machucaram seu rosto. A afirmação dele foi seguida pelo toque gentil em sua face. Apesar de a jovem ruiva ter testemunhado o quanto ele era forte e agressivo em batalha, sua amabilidade era nítida pela maneira que estudava seu rosto. — Fui largada em Cashel — ela contou, subitamente, precisando desabafar. — Preciso de ajuda. — Não posso ajudá-la. Minha irmã está desaparecida. — Prometo ajudar a encontrá-la. Apenas, imploro, não me deixe sozinha. Randu, como ela saberia ser seu nome alguns minutos depois, pensou que, caso fosse Esmeralda naquela situação, ele gostaria que um homem de honra pudesse protegê-la. Então assentiu, retirando a casaco com capuz e vestindo-a. Engenhosamente, escondeu os cabelos ruivos


dentro da capa, e pediu que ela andasse de cabeça baixa. — Obrigada — Rhianna murmurou. — Não agradeça, é uma troca. Me ajudará a encontrar Esmeralda. Assentindo, ela invejou teimosamente a imunda Esmeralda pelo amor leal que ela recebia daquele irmão protetor. ***

— Sabe comer adequadamente, sabe escrever, sabe falar como uma dama — Cael apontava, num tom cômico, enquanto encarava a ruiva. — O que você não sabe fazer? Brione havia passado todo conhecimento que podia ao filho Randu. Este, por sua vez, repassou-o a irmã, tentando, de alguma forma, ajudá-la, caso um dia ela precisasse. — Sinceramente, achei que passaríamos esse mês no mar tentando ensinar a jovem Rhianna — Kian usou o nome falso, tentando acostumar-se a ele — a portar-se como uma lady, mas acredito que não será necessário. — De fato — Cael concordou. — Diga-me, jovem Rhianna — seu tom permaneceu cômico, e a mulher riu —, o que você não sabe fazer?


— Não sei lutar. O que era aquele brilho no olhar? — É claro que não — Kian rebateu. — Mulheres não sabem lutar. Deseja que eu a ensine? — Não, Kian — seu olhar estava centrado em Cael. — Quero lutar com o Príncipe — sugeriu, sorrindo. — Pois ouvi os homens do veleiro dizerem que ele é um dos melhores em manipular a espada. Os dois homens encararam-se, rindo. Em segundos, o trio estava na parte superior do veleiro. ***

Os gritos masculinos se espalhavam pelo convés enquanto as duas espadas se chocavam, com força, numa luta extremamente agressiva e bem trilhada. Cael respirou fundo, afastando-se um pouco, para respirar. Era o segundo maior espadachim dos reinos. Perdia apenas para o pai, que era considerado um demônio com a espada na mão. Contudo, claramente, ele estava em desvantagem contra aquela imunda menor que si. Esmeralda era muito parecida com ele, como percebera na primeira vez que a viu. Contudo, o olhar que agora ela lhe dirigia, assemelhava-se bastante a Iran, com


o mesmo tom maldoso, como se lutar não fosse algo imposto para se defender, e sim um grande divertimento. Bramiu a espada com mais força, tentando desestimulá-la. Não queria passar vergonha diante dos homens do navio. Contudo, subitamente, ela pareceu desaparecer da sua frente. Mais rápida do que os olhos dele puderam acompanhar, a mulher desviou-se por baixo e ergueu a espada contra ele, parando-a exatamente na sua garganta. Kian, ao lado dos homens, sequer respirava. Cael de Masha havia sido derrotado por uma imunda de Cashel. Aguardou, apreensivo, que Cael se revoltasse com o fato, mas o viu rindo, como uma criança. — Incrível... — Achou que a voz havia saído de sua boca, mas a palavra havia sido dita pelo filho de Iran. — Você é incrível. Ela sorriu. Houve algo mágico entre os dois ruivos, enquanto trocavam olhares. Kian suspirou, um tanto enciumado, um tanto acanhado. De certa forma, ele sempre soube que perderia Cael para alguém, um dia.



Capítulo 10 O roubo. O gosto acre em seus lábios foi a primeira sensação do dia. Rhianna abriu os olhos, deparando-se com o quarto escuro e embolorado. As manchas de umidade na parede lhe deram arrepios e, por alguns segundos, ela imaginou onde estava. Então, a memória voltou, como um raio. Salva pelo jovem Randu, o homem lhe deu abrigo, enquanto procurava pela irmã. Alguém que se parecia com ela, mas que era uma imunda, filha de um estupro praticado por um homem de sua raça. Esmeralda, como ele a chamava, havia desaparecido no dia anterior e, enquanto a procurava, Randu ouviu seus gritos de socorro e a salvou de um estupro coletivo. Sentou-se na cama de solteiro. O homem já estava de pé. Olhava desafiadoramente para um papel amassado, enquanto sua mente parecia fervilhar em mil pensamentos. — O que vai fazer? — Rhianna indagou, levantando-se e deslizando a mão no vestido, para desamassá-lo.


Randu a encarou. Eles haviam conversado um pouco na noite anterior. Nada muito íntimo, apenas, trocaram informações como nomes e como ambos haviam chegado até aquele porto. — Ela não está no porto — ele afirmou. — A procurou de madrugada? — Em cada canto. — E se algum casheano a raptou enquanto ela andava pelas ruas? Não queria ser pessimista, mas o toque asqueroso daqueles homens ainda ardia em sua pele. — Esmeralda teria derrotado os cinco em menos tempo do que eu o fiz — ele explicou. — Ela é tão rápida com a espada que eu mesmo me apavoro, quando treinamos. Rhianna abriu a boca, espanta. — Uma mulher que sabe lutar? — Parece chocada. — E estou. Uma mulher... — balbuciou. — Achei que só podíamos procriar e cuidar da casa. Jamais imaginei uma de nós lutando. — Minha mãe lutava — ele explicou. — Esmeralda herdou seu dom. Não era uma afirmação totalmente verdadeira.


Brione não tinha nem um terço da habilidade que a filha demonstrava. — Uma mulher pode ser muito mais do que te falam — ele afirmou. — Uma mulher pode ser o que ela quiser. Rhianna abriu os olhos, admirada. — Você acha isso mesmo? — É claro — sorriu. — Você não? — Nunca foi me dada à chance de pensar diferente. Ela sentiu o coração acelerar diante do sorriso casto dele. — Qual a verdadeira diferença entre um homem e uma mulher que não seja unicamente o que temos entre as pernas? A indagação masculina a fez enrubescer. — Sempre me disseram que as mulheres eram frágeis e incapazes de qualquer ato mais corajoso. — E você acredita em tudo que as pessoas falam? Veja bem, Rhianna, existem dois tipos de pessoas no mundo. E, não... Não creia que há outros, apenas dois: vencedores e derrotados. Ambas as classes escutam palavras desmotivadoras o tempo inteiro. Coisas como “Você não nasceu para isso”, “Desista!”, “Você não tem capacidade...”. O que vai determinar em que classe você


está é como você reage a essas palavras. Ele pigarreou antes de prosseguir. — Se enxergar a si mesma como uma fracassada, é isso que você será. Mas, se, ao ouvir essas palavras, você sentir em seu íntimo seu ser desafiado, então, mesmo que você não atinja a meta, você já é uma vencedora. O semblante espantado dela fê-lo amenizar as palavras. — Bom, agora você é livre, não é? Desistiram do casamento que te ofereceram, e só voltará para a casa de seus tios se essa for a sua vontade. — Mas, se não voltar, para onde irei? — Pode ficar comigo e com minha irmã — ele ofereceu. — Assim que eu encontrar aquela maluca, iremos para as ilhas isoladas além de Masha. Ela já ouvira falar daquele lugar. Era aterrorizador, pelo que diziam. Montanhas cheias de árvores que abrigavam animais perigosos, cavernas, e o total isolamento. Havia muitas histórias sobre o lugar, mas, subitamente, ela perdeu o medo de tais. Quem temia o futuro se tinha a proteção daquele homem? — Tenho certeza que Esmeralda embarcou em direção à Masha — ele interrompeu seus pensamentos. — Tenho um plano — encarou-a. — O que acha de ser minha senhora?


— Como? — Ser minha senhora — repetiu, unindo os pulsos, numa demonstração de escravidão. Aquela prática ainda existia? — Em que mundo você vive? — ele riu. Ela não recusou. — Assim você entraria em Masha sem problemas —pareceu seguir sua linha de pensamento. — Mas, como conseguiríamos dinheiro para a viagem? E para ficarmos lá? Se eu tenho um escravo, teria que ter renda para poder me hospedar em algum lugar. Ele assentiu. — Eu tenho algum ouro guardado, ganhado no trabalho. Daria para comprar nossas passagens. Mas, para pagarmos uma hospedagem... — respirou fundo. — Comprarei as passagens — disse, encerrando o assunto. — Mas, e depois? — Não se preocupe com o depois. — Como não me preocupar? — Comprarei as passagens para a primeira hora da manhã. Alguns minutos antes, eu vou invadir a casa de Nam, e o roubarei. Ele aparentava ser um homem bom. Portanto, foi muito estranho para ela vê-lo falar daquela forma.


— Não tenho escolha — ele desculpou-se. — Eu preciso ir atrás de minha irmã. Naquele instante, Rhianna soube que Randu faria qualquer coisa pela imunda de cabelos escarlates. ***

As passagens foram adquiridas prontamente. Antes mesmo de o sol raiar, Brianna e ele estariam em mar aberto, em direção as terras dos cabeças vermelhas. Ele não tinha noção do que faria após chegar lá, mas, até então, sua única preocupação era chegar em Masha. Como Esmeralda pudera ser tão... insana? Ela devia ter pensado melhor em sua atitude. E o bilhete, então? Um simples aviso de que ia atrás do homem que estuprara a mãe deles, um pedido de desculpas e uma curta declaração de sentimentos. Afastou os pensamentos, concentrado no que vinha a seguir. O sol nasceria em poucas horas e, em menos de meia hora, ele e Rhianna deviam embarcar no veleiro. Contudo, antes, precisava roubar Nam. Não que a culpa o dominasse pelo ato, porque sabia que aquele filho da puta explorador bem merecia ter seu ouro confiscado, mas era seu código de ética que o incomodava muito. Como imaginava, os imundos que faziam a


segurança do lugar estavam dormindo. Nam os colocava de vigília, mas não os permitia descansar durante o dia. Nenhum ser humano ficaria dias sem dormir, então, era óbvio que ele conseguiria passar pelos homens facilmente. E, realmente, pé ante pé, ele deixou os guardas para trás e escalou uma janela. O palacete estava escuro e silencioso. Era extremamente luxuoso, tanto quando o castelo que ele viveu quando menino. Sem focar-se na beleza do lugar, ele começou a seguir por entre os corredores. A intenção era chegar no quarto de Nam. Ouvira falar que o homem guardava o ouro consigo, não confiando a ninguém a posse de seus bens. Porém, ao cruzar uma porta entreaberta, ele ouviu um choro baixo. Parou, observando pelo vão. Sentiu as pernas adormecerem diante da imagem do homem feio nu, diante de uma menina. Não uma qualquer, mas, sim, a filha dele, de catorze anos. — Já te disse, Maya — a voz invadiu os ouvidos de Randu, horrorizando-o. — Não gosto que chore quando é a mulher do papai... Não precisou pensar muito para entender que aquele desgraçado não era apenas cruel com os que o serviam. Ele também submetia a própria filha a imundície de sua lasciva.


Não pensou. Não mediu seus atos. Apenas abriu a porta e rumou em direção ao homem. Não houve reação, Nam mal o enxergou. Simplesmente, Randu puxou a faca, e o degolou tão rápido como a irmã costumava ser, em luta. A garota sequer murmurou diante do ato. Seu olhar, um misto de susto e alívio, volveu ao jovem negro que parecia revoltado a sua frente. Porém, quando o olhar dele a atingiu, suavizou imediatamente. — Menina — chamou. — Onde seu pai guarda o ouro? A garota sorriu. Não se importou de dar todo o ouro do pai ao seu salvador. Até porque, como mulher, não podia herdar nada daquele homem. Seria enviada aos tios para ser criada e depois, entregue em casamento, já que o pai não mais existia entre os vivos. Que, então, aquele dinheiro fosse bem aproveitado pelo homem que a livrou do bárbaro que abusava dela desde os cinco anos de idade. — Guarde isso — ele disse, dando a ela uma pepita. — Não deixe ninguém ver, é sua proteção — explicou. — Se um dia precisar, eu me chamo Randu, filho de Lugus de Cashel. Quando me estabelecer, darei um jeito de avisá-la. Ajudou-me, e eu lhe devo. Ela sorriu. — Nada me deve — retrucou. — Salvou minha


vida. Não disseram mais nenhuma palavra. O homem seguiu seu rumo, e a garota só avisou da morte do pai quando o sol já estava na metade do céu. ***

Kian observou o par a sua frente. Sentados no coche, eles dirigiam-se em direção ao palácio de Bran, onde o casamento que uniria os povos ocorreria no dia seguinte. Havia sido uma viagem sem percalços. O mar estava calmo, e não houve tempestades naquele retorno. De alguma forma, pensou o escudeiro braiano, era como se Masha e Bran desejassem verdadeiramente aquele enlace. Contudo, a mashiana de cabelos ruivos e olhos esmeraldas não era a que esperavam. Kian estremeceu diante do receio de serem descobertos. Sabia que tinha a proteção de Cael, e que o ruivo estava a um passo de provocar uma guerra para subir ao trono de Masha, mas, mesmo assim, temeu por todos eles. Esmeralda, ou, como ele agora a chamava, Rhianna, o encarou. Seu sorriso era enigmático e parecia verdadeiramente satisfatório. Ele sorriu de volta, mesmo


contra a vontade. Cael e ela passaram aquele tempo no mar unindo-se em artimanhas mil, planejando, criando histórias e interagindo, numa estranha amizade. O ciúme o corroía, mas reconhecia que a mundana não incentivava um romance. Cael, tampouco, parecia interessado em algo a mais. Eles eram simplesmente crianças manipulando o destino. Sorriu. O olhar volveu ao rapaz. Há muito tempo não o via tão animado. Ambos, Príncipe e imunda, pareciam otimistas com o futuro. Ele iria destruir os planos do pai, e ela teria o apoio do futuro Rei de Masha para descobrir o homem que havia estuprado sua mãe. Que a Deusa protegesse tal pessoa, porque nas poucas vezes que a via com a espada em punho, soube que não havia guerreiro que conseguisse se sobressair a Esmeralda. Enfim, seu olhar deixou-os e voltou à estrada. Pela pequena janela do coche ele viu, emergindo entre a vegetação, o enorme palácio de Bran, onde Cedric, o futuro Rei, a aguardava. Porém, quando pararam em frente à entrada principal, o noivo não estava à vista. Kian desceu primeiro, estendendo a mão. Conforme instruída, Esmeralda fingiu-se de frágil, e segurou seus dedos, acanhada. Seu olhar verde então se volveu para o castelo, e ela abriu a boca, pasma,


admirada, fascinada. Queria dizer mil coisas. Falar que jamais imaginou algo tão gigantesco. Queria rir e apontar cada detalhe como uma fascinada visitante, mas a presença de um homem mais velho, à entrada, lhe cortou os pensamentos. Aqueles olhos... Aquele rosto... Por que parecia tão familiar? — Rhianna — Cael surgiu ao seu lado, puxandolhe delicadamente pelo braço. — Esse é meu pai, Iran de Masha. O homem sorriu. Sua satisfação em vê-la era visível. Ele estendeu as duas mãos até seus ombros e os apertou, num cumprimento excêntrico. — Bendita seja Masha que deu luz aos meus olhos para que eu pudesse ver sua beleza. — A voz potente a arrepiou. — Não sabe como esperei por isso, minha querida. O beijo que recebeu na testa a assustou por alguns segundos. Era uma sensação curiosa, algo que a afligia e a aliviava, ao mesmo tempo. — Cedric? — Cael indagou, um tanto desmotivado. — Rhianna o verá amanhã no casamento — Iran explicou.


Não sentia disposição para explicar que o futuro Rei não desejava vê-la, pois não se interessava por mulher nenhuma que não fosse sua tão idolatrada Lyn. — Não acha que Rhianna devia ver o rosto dele antes de irem até o sacerdote? — Uma mashiana não se recusará por uma pequena deformidade — amenizou o tom, voltando os olhos para a mulher, que sorriu. — Esse sangue quente que nos rege não nos acomoda diante da vida, não é, minha querida? — Certamente, pai. A frase intencional caiu como uma bomba sobre Iran. Conforme previsto por Cael, ele adorou a denominação. Esmeralda e ele conversaram muitas vezes sobre a necessidade de Iran gostar dela, para que o plano funcionasse. — Venha — chamou-a. — Vou mostrar seu quarto, minha querida. Claro, usará apenas nessa noite. Amanhã já estará desposada e compartilhando o leito com meu amado Cedric. A jovem sorriu, aceitando aquela gentileza. Antes, porém, de afastar-se definitivamente, ela deu uma última olhadela para Cael, que parecia feliz demais em ver seus planos dando certo. A parte interna do lugar era ainda mais abastada e fascinante. Já no rol de entrada, rosas vermelhas e


amarelas contrastavam com a cor branca, a favorita do deus Bran. Iran lhe comentou sobre algumas baboseiras sobre os deuses, conforme iam andando pelo corredor e ela ia conhecendo o ambiente. Contudo, ao chegarem à escada, estancaram. Ao topo dela, um homem alto e de corpo forte surgiu. Estremeceu diante dele, não pela máscara pavorosa que lhe dava um aspecto fantasmagórico, e sim pelo olhar negro e intenso, que pareceu despi-la e corroêla. Naquele instante, Esmeralda de Cashel soube que era um caminho sem volta.


Capítulo 11 O casamento Esmeralda encarou, através do espelho, o homem atrás de si. Sorriu, diante do espanto que se destacava em seus olhos. — Estou bonita? — ela provocou, fazendo Cael rir. — Céus, eu nunca vi nenhuma outra mulher mais bela que você. — Diz isso porque somos parecidos? — Certamente. A gargalhada felina escondia um certo traço de melancolia, ao qual o príncipe ignorou. Porém, em seguida, a noiva volvia-se para ele, e seus olhos não ocultavam o quanto estava assustada. — Ele parece me odiar — admitiu. Cael não respondeu. — Ontem, quando nos encontramos, ele me


encarou com tanto... — perdeu as palavras. — O que ele poderia ter contra mim? — Nada — o outro respondeu. — Cedric odeia a si mesmo. — Caminhou até ela, apertando seus ombros. Era um gesto já costumeiro. — Ele ama Lyn, que o abandonou. Está sendo forçado a esse casamento, é natural que tente se mostrar insatisfeito. Esmeralda suspirou. — Você acha que ele... — Não — respondeu, antevendo a questão. — Ele não irá querer consumar o casamento. Para Cedric, seus sentimentos por Lyn são sagrados. Sempre afirmou que a amaria para sempre. De qualquer forma, não se preocupe. A moça assentiu. Iria dizer mais alguma coisa, quando Kian entrou no aposento. Seu olhar para eles pareceu assustado e ferido, mas ele nada comentou, enquanto informava que a cerimônia de coroação de Cedric já havia sido efetuada, e que todos a aguardavam para o ritual onde se tornariam marido e mulher. Cael beijou a fronte da mulher, e depois saiu do quarto. Iran chegaria em breve para levá-la a catedral e ele queria evitar um confronto vespertino com o pai. — Está muito bonita — Kian murmurou, não sabendo que palavras usar, o que dizer que pudesse quebrar o silêncio entre eles.


Esmeralda sorriu, aproximando-se dele. — Não me importo. Nem o Rei de Bran se importa — riu. — Kian, por que não me olha nos olhos? A indagação o assustou, mas foi salvo pela chegada de Iran. Curvou-se diante da noiva, e saiu. O homem mais velho sequer o encarou, enquanto deixava o quarto. Seus olhos focavam-se, orgulhosos, na mulher de cabelos vermelhos. — Uma mashiana — ele murmurou, aproximandose dela. — Uma mashiana legítima será a futura Rainha de Bran. Ela baixou os olhos. Não havia nada em seu íntimo. Nem arrependimento, nem culpa, nem apreensão. Apenas, o foco. O ódio latente que queimava como uma brasa em sua alma, que a impulsionava a dar cada passo. E, casar-se com o rei de Bran era um caminho que ela não se recusaria a andar para alcançar seu objetivo. Iran ofereceu seu braço e ela o aceitou. Enquanto andavam, ela tentou ater-se aos quadros nas paredes – retratos desconhecidos a seus olhos acostumados à gente de cor negra –, mas sua nítida apatia, repentinamente, tornou-se pavor. Estava indo se casar com um homem que desconhecia. Mais que isso, um homem que sofria pelo amor de outra mulher. Um homem que, diziam, havia sido um dos mais belos, e que agora ostentava um rosto


deformado, marca infinita que levaria ao túmulo. A catedral, ao lado do castelo, estava ordenada com ramos. Era tudo tão belo. Ela também estava bela, se conseguisse prestar atenção em si mesma, notaria. Cedric, porém, percebeu. A mulher entrou na nave da capela com os ombros retos, enquanto seu olhar parecia firme e convicto. Era linda. Qualquer idiota entenderia aquilo. Os cabelos rebeldes, cacheados e tão vermelhos quanto o sangue estavam presos em um coque bonito, enfeitado com pequenas flores do campo. O vestido branco lhe caiu bem, e arrastava-se enquanto ela andava, com os olhos fixos em si. Ele manteve o olhar. Por trás da máscara, sentia que estava assustado, mas agora, Rei de Bran, não esmoreceria perante uma mulher que ele não amava. O coração doeu. Nada naquele dia era perfeito. Aquela mashiana de beleza exótica não era sua doce Lyn. Era uma desconhecida, com quem ele não trocou sequer uma palavra. Porém, seria sua esposa, mãe de seus filhos... Estendeu a mão para ela, quando tio Iran a entregou. O olhar de ambos se encontrou. Tentou transmitir sua raiva através dos olhos negros, mas ela não pareceu se intimidar. Cedric queria gritar aos quatro


ventos que não era aquela ruiva que ele desejava como esposa, mas sabia que Rhianna não tinha culpa disso. Rhianna... O quão estranho pode parecer alguém ter um nome que não combinava em nada consigo? Diziam os sacerdotes e escribas que quando Bran criou o sol, ao sentir aquele leve e confortável calor, o chamou de Rhianna, numa exclamação juvenil. A Rhianna que estava diante de si em nada lembrava as moças alegres que circulavam pelos bailes da Coroa. Havia naquela mulher um misto de mistério e escuridão. Não havia alegria nem espaço para nada que não fosse sombrio. Cedric sentiu aquilo e se arrepiou. — Por favor, as mãos — o sacerdote pediu. Todo o discurso de casamento havia se passado e ele não havia prestado a menor atenção? Ergueu a mão e a entregou ao sacerdote. Rhianna fez a mesma coisa, porém, quando ela viu a lâmina afiada indo em direção à palma de sua mão, pareceu recuar levemente. O que estava acontecendo? Aquela mulher jamais havia assistido uma cerimônia de matrimônio? Não sabia que os noivos tinham a mão cortada, antes de unirem-se, para mesclarem o sangue, tornarem-se uma só carne e um só sangue? Enfim, a lâmina fez os cortes e ele segurou a mão dela. Percebeu que ela apertava os lábios, como se não


fosse acostumada à dor. Contudo, permaneceu firme. Mais uma vez os olhos de ambos se encontraram, e então ele se perdeu, por alguns instantes, naquele mar verde repleto de segredos. — Bran concede sua bênção a união de vossos sangues — o sacerdote jogou sobre as mãos deles uma espécie de óleo. — Rei e Rainha de Bran, Cedric e Rhianna, que seus laços produzam frutos e que a união de ambos perpetue a vida em todo o Reino. Cedric ouviu o suspiro de alívio quando ela afastou a mão. Então, um auxiliar do sacerdote enfaixou as mãos de ambos, e a cerimônia estava terminada. ***

Esmeralda entrou no quarto maldizendo a toda sorte de deuses que já ouvira falar. Bom, havia três, não é? Então, malditos sejam Bran, Masha e Cashel. Os odiava tremendamente! A mão que ela empunha a espada! Como ninguém lhe contara que teria que se submeter aquilo? Queria muito xingar Cael, mas quando o ruivo entrou em seu quarto, apenas o fuzilou com os olhos. — Parabéns pelo casamento. O tom debochado dele lhe deu nos nervos.


— Parabéns para você — ela devolveu. — Fez o Rei de Bran unir seu sangue com uma imunda. O que acontecerá quando descobrirem? — Cedric provavelmente tentará se matar — ele pensou. — Meu pai com certeza se matará — decretou. — De qualquer forma, está tudo andando conforme meu planejamento. — E por quanto tempo terei que manter essa farsa? — Tempo suficiente para Cedric nutrir afeição por seus lindos olhos verdes — aproximou-se, acariciando a face pálida. — Não ambiciono amor, sei que ele não vai se apaixonar por você. Mas, acredito que vai gostar da sua personalidade, quem não gostaria? Naquele instante, a porta abriu e o rei de Bran entrou. Esmeralda o observou, subitamente nervosa. Porém, seu semblante quase tornou-se horror ao perceber a face assustada de Cael. — Cedric — Cael chamou, tentando sorrir, falsamente. — O que faz aqui? — Como o que faço aqui? — o Rei deu os ombros. — É minha esposa, e irei consumar nosso enlace. Os ruivos se encararam. Aquilo, definitivamente não estava nos planos. Porém, como objetar? Cael afastou-se de Esmeralda, como se implorasse perdão com o olhar. Depois, saiu, deixando o par para trás, completamente angustiado.


Ao fechar a porta, deu de cara com Kian. O moreno o observou por alguns segundos, e então moveu-se no exato momento que Cael voltava-se em direção a porta, novamente. — Não, não pode — recusou. — Ela aceitou se submeter, caso Cedric quisesse... — Na verdade, ela só falou isso porque acreditou que não seria necessário. — De qualquer forma, a nossa “Rhianna” sabe o que está fazendo — Kian afirmou. — Chegou até aqui, não pode destruir o que planejou agora. Cael afastou-se das mãos, e caminhou do lado contrário do corredor. Quatro, cinco passos. Estancou. Voltou-se. Caminhou novamente. Kian se colocou no caminho. — Por que está tão interessado com o que acontece naquele quarto? — o moreno inquiriu. — Apaixonou-se por ela? — Está maluco? Cael riria, se o desespero em seu coração não fosse tão grande. Não, não era paixão. Então, o que era? Por que ver Esmeralda, que claramente era ingênua e sem prática nas artes do amor, trancada naquele quarto com um Cedric revoltado com seu destino parecia lhe corroer? — Está apaixonado por ela? — repetiu,


aproximando-se mais. Subitamente, Cael sentiu a mão firme de Kian segurar seu pescoço e puxá-lo. De olhos arregalados, sentiu a boca masculina do outro tocar a sua, como um sopro. O susto só não foi maior que a raiva. Empurrando-o com toda força que tinha, ele sentiu o sangue ferver, enquanto uma fúria descomunal o tomava. — Você é igual meu pai? — questionou, sem entender como não notara aquela característica em todos aqueles anos. — Sujo — empurrou-o novamente. — Nojento — esbofeteou-o, com raiva. — Cael...— Kian sequer tentou se defender. — Nunca mais se aproxime de mim — mandou. — Juro por Deus que se tentar, eu o mato. Momentaneamente esquecido da ruiva e do Rei dentro do quarto, ele saiu correndo, limpando a boca, enquanto lágrimas despencavam sem parar. Havia perdido seu único amigo... Não sabia ele que Kian estava em pior situação. O moreno havia perdido a única pessoa que amava em toda a sua vida.



Capítulo 12 Núpcias. Cedric viu, antes de entrar no quarto, o toque de Cael na face de sua esposa. Foi algo de relance, um momento curto, mas que serviu para inflamá-lo de muitas maneiras. Havia desposado aquela mulher, mesmo contra os desígnios de seu coração, e não permitira qualquer ato que pudesse manchar seu nome. Rhianna havia aceitado aquele casamento porque quis. Isso, claro, ele supunha, mas não tinha como ter certeza. Contudo, aquele olhar altivo e petulante não parecia o de alguém que se deixaria levar a um matrimônio contra a vontade. Quando Cael deixou o quarto, focou-se nela. Ainda estava vestida de noiva, e os cabelos longos permaneciam bem presos no coque alto. Porém, ele sabia, ou sentia, que bastaria soltar um grampo para que aquela cascata escarlate caísse pelos ombros. O sol já havia desaparecido no oeste. O quarto, agora, era iluminado pela fila de candelabros que adornavam todo o ambiente. Estava bem clareado, então, podia visualizar cada pedaço da face, e tudo que ela temia


transparecer. Tirou a máscara. Assim, cru, sem qualquer preparação ou palavra. Até porque, não se importava com os sentimentos dela, nem com o horror que ela deixaria vazar de seus olhos. Ergueu o rosto, encarou-a. Diante de si, a mulher ruiva permanecia exatamente igual ao segundo anterior a retirada da camuflagem. Era incrível como ela não permitia que sequer um pensamento cruzasse pela sua expressão. — Não dirá nada? — inquiriu, incomodado com aquela faceta fria. Só então a dúvida pareceu sobressair-se a tranquilidade. — Dizer? Dizer o quê? Era a primeira vez que ouvia sua voz. Era doce e gentil, ao mesmo tempo em que era forte e agressiva. — Está se fazendo de cega? Por acaso não percebe minha aparência? Ela permaneceu reta. — Comunicaram-me de seu acidente, então, eu já esperava. Inacreditável! — Não vai gritar? Chorar? Maldizer sua sorte?


— Não compreendo... É isso que deseja de mim? — Só quero uma reação além de você permanecer parada, como se não estivesse diante de uma árvore. A sobrancelha fina se ergueu. — Quer que eu seja autêntica e verdadeira, meu Rei e esposo? É isso? Havia provocação naquele tom. Cedric não resistiu e fez o jogo. — Por favor. — Bom — ela pigarreou, antes de começar. As mãos brancas apertaram o vestido e, pela primeira vez, ele vislumbrou uma réstia de nervosismo. — O que eu poderia dizer? “Oh, que triste, coitadinho de meu pobre Rei”? Acredito que não lhe agradaria a piedade, ainda mais vinda de uma completa desconhecida, da qual você não nutre sequer simpatia. E, claro, não existe piedade em mim, porque não sinto a menor pena. As palavras duras fizeram com que o homem arregalasse os olhos. — É um Rei, Cedric de Bran. Dorme em lençóis de seda, bebe vinho da melhor qualidade, possui uma guarda armada para protegê-lo, um povo para adorá-lo. Uma deformidade sequer devia incomodá-lo. Se o incomoda, não passa de um homem fraco, então, lamento muito pelo povo de Bran, que terá que arcar com um Rei


indigno do trono. Ele podia aproximar-se dela e esbofeteá-la pela audácia. Entretanto, simplesmente, pasmo, prosseguiu a ouvi-la. — Se o que na verdade você deseja é ver-me chorar, maldizendo meu destino, informo-lhe que existem destinos piores. Sabe o que são os imundos? Sabe o que é a vida deles? Escravidão, exploração, abusos e morte. Então, o que é o infortúnio de me casar com um homem saudável perto da vida de mulheres e homens por todo o reino de Cashel, condenados por um crime que não cometeram? Levou um tempo para ele compreender as palavras. — Então, honrado marido, tentarei ser complacente com seu rosto deformado. Não se preocupe. Era mais que petulante, ela parecia ansiar uma afronta. Todas as mulheres de Masha eram assim? Duvidava muito. Aquela é que era diferente de todo o resto. — Parece ter pena dos imundos — ele observou, colocando as mãos para trás, curioso. Só então, ela enrubesceu. — Bom, nossos filhos serão imundos. — Muitos na própria religião não veem assim, já


que serão brancos. Existem ramificações e discussões entre os sacerdotes que o problema é apenas com o povo de Cashel. — Problema? — Você sabe — ele murmurou. — A cor da pele. Algo no íntimo de Esmeralda explodiu. Contudo, ela nada podia transluzir. Sua vingança dependia do quão bom papel pudesse desempenhar perante o Rei. — Sim — murmurou. — Negros. — Pois então. Nossos filhos serão brancos. Talvez tenham cabelos pretos ou ruivos. Não importa. Mas, nenhum deles correrá o risco de ter a pele escura. Risco? Mordeu o lábio. A mão formigou. Daria tudo por sua espada, naquele instante. — Para mim — não resistiu —, todos os povos são iguais. — Iguais? Não sabe o que diz. Tio Iran disse que os casheanos são selvagens, blasfemos com os deuses e que devoram os próprios filhos, ao nascer. A mente da ruiva volveu-se a mãe da qual ela não se lembrava do rosto, mas que amava tremendamente. Brione... sua amada Brione que sacrificou tudo por ela. — Talvez um dia deva ver Cashel com seus próprios olhos, meu Rei.


Ele assentiu. Estudou-a mais alguns segundos, como se a analisasse. Aquela inspeção deixou-a ainda mais nervosa. Sentiu as mãos suarem. — Tire a roupa — ordenou. Só então, o rosto que até então era completamente frio, tornou-se uma brava viva, mesclada ao assombro. — O quê? — Tire a roupa — repetiu. — Quero possuir você de uma vez. Claramente, não era sequer um ato carnal. Era apenas uma obrigação. — Mas... — Farei isso na quantidade de vezes necessária para você engravidar. Se nascer menina, repetiremos o ato, até ter um filho homem. Depois, não pretendo mais tocá-la. Não sinto o menor desejo por você. Por algum motivo, oculto a ela mesma, sentiu os olhos encherem-se de lágrimas. Obviamente, reprimiu-as com todas as forças que sabia possuir. — Posso apagar as luzes antes? — Não — recusou. — Quero vê-la. O choque quase fê-la desmaiar. Ele não podia vêla! Não podia enxergar seus seios escuros, saberia seu segredo tão logo os visse.


— Por favor... — implorou. — Não me incomodará com suas lágrimas, não é? Esmeralda recuou ao vê-lo avançar. — Cael me disse que era um bom homem. Imploro que não me faça passar por esse constrangimento. Jamais estive com um homem, tenho muita vergonha de meu corpo. Prometo-lhe que mais tarde, quando já estiver habituada, eu irei fazer todas as suas vontades. Mas, agora... — E por que eu concederia esse desejo a você? — Porque sou sua esposa — respondeu, prontamente. — A mulher que não fugiu ao ver seu rosto, e que aceitou abandonar tudo, para desposá-lo. Me odeia tanto assim? O que eu te fiz? As palavras, enfim, parecerem tocá-lo e ela sentiu-o vacilar. Cael o chamou de fraco durante a viagem, mas, pela primeira vez, ela não concordava com ele. Cedric era forte o suficiente para ouvir o clamor de uma mulher, quando todos os outros homens do mundo se recusavam a fazê-lo. Bom... Nem todos. Havia seu amado irmão Randu. Recusou os pensamentos, não querendo sofrer mais do que já sofria pelo afastamento. Respirando aliviada, ela o viu caminhando em direção às velas. Uma a uma, ele as apagou, permitindo


que as sombras adentrassem no quarto. Por fim, só havia escuridão. Mesmo assim, era possível visualizar a silhueta daquele homem, parado diante dela. Não havia mais como recuar. Esmeralda não fazia idéia do que acontecia no leito entre um homem e uma mulher. Uma vez perguntara a Randu, mas o irmão disse que aquilo não era assunto para ser discutido entre eles. Contudo, ela não tinha mais ninguém para conversar, Cael e Kian foram as únicas pessoas além do irmão com quem ela trocou palavras, e jamais teria a chance de aprender qualquer coisa, sem que contassem a ela. Devia ter perguntado a Cael. Pelo menos, passaria aquela noite mais tranquila, e não tremendo tanto quanto estava naquele instante. Enquanto abria os botões de seu corpete, ela pensou no que ouviu dos homens de Cashel durante aqueles anos. “Vou te foder, imunda”. “Vou te arrebentar, imunda”. “Vou fazê-la sangrar, imunda”. Então, tudo que ela sabia era que machucava. E pela ânsia deles em feri-la, machucava muito. — Está demorando muito — ouviu a voz potente, fria.


— Me desculpe... — seu tom saiu embargado pelas lágrimas. — Eu... — Pelos céus, estava chorando! Ela! Chorando! Não! Mil vezes, não! — Eu... não... consigo abrir... Por fim, as mãos dele substituíram as dela. Enquanto sentia o rosto sendo lavado pelas lágrimas, a mente lhe ordenava que engolisse aquele pranto. O que importava ser usada por um braiano, se o resultado seria a cabeça do homem que destruiu sua mãe? O ar frio sobre seus seios fê-la intuir que o homem havia desnudado-a da parte superior. Estática, sentiu os dedos dele sobre seus seios. Era como se Cedric temesse tocá-la, tanto quanto ela temia aquele contato. — Nunca me deitei com uma mulher — confessou Cedric, a voz baixa. Houve uma estranha interação entre eles, naquele instante. Quase uma simpatia. — Acho que sou o único homem da corte que sempre respeitou as leis de Bran e se guardou para a mulher que viesse a amar. Esmeralda não conseguiu mais segurar seus soluços. Sentia pena dele... de si mesma... Duas almas perdidas naquele mundo vasto e cruel. — Mas, ela não me amou — o sussurro prosseguiu. — Eu não quero te machucar — continuou. — Eu sei que acredita que eu lhe odeio, mas não é verdade.


Eu sequer a conheço. Apenas, eu preciso dar um herdeiro ao reino. — seu hálito tocou-a. Mesmo no escuro, eles puderam captar o olhar um do outro. — Então eu tentarei ser gentil e você apenas cumpra seu dever até ambos estarmos livres dessa cama. Assentiu, enquanto sentia a boca unindo-se a dela. Era incrível, porque mesmo jamais tendo sido beijada antes, era como se Cedric já há houvesse tocado em muitas vidas. Não houve sequer estranhamento quando as mãos dele desataram o nó que seguravam a enorme cauda. Logo, o vestido caia diante de seus pés, e ela sentiu todo seu corpo sendo elevado, enquanto ele a erguia no colo. — Isso dói, não é? A frase escapou assim que ele deitou-a na cama. Amaldiçoou a si mesma pela covardia. Ora, quantas dores, na carne e na alma, já havia aguentado desde que nasceu? Nada que aquele homem pudesse fazer machucaria ainda mais sua existência já condenada. — Não faço a menor idéia. E então ele riu. O corpo firme e másculo em cima de si remexeu-se, enquanto Cedric gargalhava. Aquilo a enervou ainda mais. — O que é tão engraçado? — Você — ele comentou, puxando-a para um


beijo. — Tão altiva e petulante, mas está se borrando de medo. Era verdade, ela sabia. — Eu sou mulher, é natural. Pior é você que nunca dormiu com nenhuma mulher. Como pode? A boca de Cedric desceu até seus seios. Esmeralda segurou o ar. Ele agora lambia a parte que a denunciava. Era como uma armadilha, e ela não tinha certeza se queria escapar. O que significava aquilo? Como chamavam as mulheres que sentiam prazer nas mãos dos homens? Inferno!, era tão difícil ela captar alguma coisa, quando se escondia entre os arbustos e via o povo do vilarejo passar pelas trilhas próximas da sua casa, conversando. Putas! Isso! Ela era uma puta? A boca dele desceu mais. Logo, centralizou-se em seu centro, e Esmeralda mordeu os lábios para não gritar. Tudo nela tornou-se uma labareda de fogo e paixão. Cedric nunca havia tido uma mulher, mas parecia saber bem demais o que fazer com uma, pois a torturava num prazer angustiante. — É estranho — ele interrompeu seus pensamentos. — É como se eu já tivesse tido você nos braços, antes...


Uma vez Randu lhe contara que os deuses criaram as almas em duplas. Cada ser tinha sua própria gêmea, e passavam toda a vida, em sua busca. Muitas vezes, a pessoa nascia, sem que sua alma tivesse nascido também, e aquela pobre pessoa passava a ser solitária, sempre a espera de algo que não viria. Mas, quando morria, a alma voltava para seu deus correspondente, a espera de uma nova vida, onde haveria outra oportunidade de reencontrar alguém que tanto amou... que tanto necessitou. Balançou a cabeça, afastando os pensamentos. O que estava pensando? Seria o Rei de Bran a alma gêmea de uma imunda de Cashel? Os deuses não seriam tão maldosos. Tão logo Cedric descobrisse o erro, ordenaria que lhe enforcassem. Então, não devia se apegar a pensamentos estúpidos que só lhe trariam dor e confusão. Repentinamente, uma dor estranha e pungente a tocou. Arregalou os olhos, sentindo o ar faltar. Agarrou-se nos ombros musculosos dele, enquanto sentia o corpo do homem arquejar e forçar-se contra ela. Quis gritar, mas seus lábios foram preenchidos por um beijo cálido que a tocou profundamente. E então ele afastou o corpo, e voltou a enfiar-se nela. Uma, duas... cinco... seis... Esmeralda suspirou, a dor mesclada a uma sensação que parecia erguê-la até o


mais alto pico de Cashel e, depois, atirá-la de lá. Os movimentos se tornaram frenéticos, até que ela sentiu seu centro se molhar tanto que pingou no lençol de seda. Levou alguns segundos para entender que não era ela, e sim ele que havia derramado algo nela. Não se importou. O corpo pesado desabou ao seu lado. Silêncio. Quis perguntar a ele o que exatamente havia acontecido ali, mas a vergonha inibiu as palavras, e ela simplesmente puxou o lençol e se cobriu. — Faremos isso até eu engravidar? — ela questionou, por fim, após alguns minutos do ato. — Sim — foi tudo que recebeu em resposta. Mais silêncio. Havia grilos no lado de fora, e ela pôde ouvir o festejar da floresta. Sorriu. — Até que não será de todo ruim — comentou. Por alguma razão, aquela frase fez o sangue de Cedric ferver como nunca havia, até então.



Capítulo 13 O dia seguinte O sol adentrou o quarto, fazendo com que Esmeralda sentisse as pálpebras tremerem. No susto, abriu os olhos rapidamente. A iluminação do dia que iniciava fê-la olhar rapidamente para baixo. Os seios que ela tanto lutou para ocultar na noite anterior, agora emergiam sobre o lençol, alinhados, bonitos e nus. Olhou ligeiramente para o lado. O rei Cedric dormia, exausto, e sequer se mexeu ao balanço dela. A mulher se levantou. Em passos rápidos, buscou o bonito robe nupcial e cobriu-se, não sem antes observar-se no espelho, tentando ver se o tecido branco transparecia suas aréolas negras. Respirou aliviada ao perceber que estava protegida. Enfim, volveu-se novamente para o marido. Era a primeira vez que o via, inteiramente. Os olhos passearam nas pernas musculosas, no membro avantajado que dormia sobre a coxa e no tórax bem definido. Ele era grande, forte e viril. Sorriu, dando os ombros e pensando que em nada aquele homem bonito lhe lembrava das definições dadas por Cael.


Enfim, percebeu seu rosto. Aproximou-se mais, levando a mão até as marcas grotescas. O mashiano Cael havia lhe contado que antes do acidente, diziam às rodas de conversa, que Cedric era o rei mais belo que já havia nascido. Que havia puxado a beleza da mãe, uma mulher sedutora que virara a cabeça e a vida do antigo rei às avessas. Contudo, apesar da aparência, ele não usufruía dos prazeres carnais, guardando-se para uma braiana chamada Lyn. Esmeralda pensou na mulher que não conhecia, e no quão rasos eram os sentimentos dela. Como pudera abandonar um homem como aquele às vésperas do casamento, simplesmente porque ele havia perdido a beleza? Era no rosto perfeito que aquela mulher havia afirmado seus sentimentos? Não sabia ela que o tempo passava e que os anos levavam para longe a formosura? Afastou-se, dizendo a si mesma para não ter piedade. Não estava ali para nada além de enganá-lo, num plano de vingança de Cael. O que ele vivia, o que sofria, ou o que passara, em nada lhe interessava. Apenas... precisava ter foco. Seus pensamentos não deviam se desviar de uma única verdade: não era Rhianna, não era sua esposa, e não era uma pura. Ao contrário, era uma imunda, que cometera o mais alto dos pecados ao usufruir o leito com ele.


Porém, o pecado não a incomodava. Esmeralda não tinha fé. Como poderia, após nascer imunda? Os deuses em nada lhe agraciaram. Até mesmo bela haviam lhe criado, para que fosse ainda mais disputada pelos homens que adorariam destruí-la pelo sangue que corria em suas veias. O movimento na cama a tirou do devaneio. Afastou-se em direção ao banheiro conjugado ao quarto. Era a primeira vez que entrava ali e estava um tanto desnorteada com o tamanho. Randu e ela costumavam usar um banheiro de madeira, feito um tanto longe da casa. Não havia luxos e, ao ver o ambiente perfeito, ela sentiu uma estranha satisfação. Sim, era assim que devia encarar aqueles dias. Como uma experiência de vingança. Não era apenas para com o homem que havia destruído sua mãe, mas através de Cedric, ela se vingaria de todos os brancos puros, que veriam seu mundo desmoronar ao saber quem na verdade era a ruiva casada com seu Rei Maior. O homem surgiu atrás de si. Através do espelho, encararam-se. Contudo, ele não a observou por muito tempo. Volvendo-se em direção a uma bacia, lavou o rosto. Ela quis dizer alguma coisa, qualquer coisa, que quebrasse aquele silêncio estranho. Porém, antes mesmo de abrir a boca, a batida na porta a impediu de prosseguir.


Cinco empregados entraram no aposento. Encolhendo-se num canto, Esmeralda observou-os enchendo uma tina com água quente. Cedric sequer os encarava, enquanto faziam seu serviço, e nada disse, ao vê-los se retirando. — Depois de eu me banhar, você poderá usar a banheira — ele explicou, e a mulher imaginou o porquê ele tinha prioridade. Devia ser porque era um rei... — Depois? Não posso antes? Ele ficou espantado. — Quer tomar banho comigo? — Sua indagação não era maldosa, e sim despeitada. — Não, quero apenas saber por que tem preferência, e eu tenho que me banhar na sua sujeira. — Eu não sou sujo! — Sua voz rugiu como um leão. — Tampouco, eu. Então, porque tu não te banhas na minha água, ao invés do contrário? — Porque sou homem! — a resposta era óbvia. — O homem come primeiro, banha-se primeiro, satisfaz-se primeiro. Cabe a mulher aceitar sua posição e calar a boca. Quanta vontade de fazê-lo engolir aquelas palavras. Randu era o oposto. Para Randu, a irmã vinha


sempre em primeiro lugar. Aquele rei almofadinha não chegava aos pés de seu amado irmão. — Porque sou homem — ela o imitou, sem medo — Grande porcaria. O olhar furioso chegou a ela, e Esmeralda sentiu que havia ido longe demais. — Peço desculpas, meu Rei — reagiu, rapidamente. — Não sei o que me deu. — Pede desculpas com esse olhar que parece mais insultante que as próprias palavras. — Que culpa tenho eu se meu olhar não o agrada? Talvez preferisse olhos negros de uma braiana. Contudo, casou-se com uma mashiana, e é esse verde esmeralda que Masha me deu. Não posso simplesmente mudar a cor. Desistindo do embate, Cedric tirou o roupão e entrou na banheira. Suspirou, feliz, pela água quente, enquanto sentia a mulher bufar em volta de si, como um cachorro enjoado, a baforar nos seus ouvidos. Não, não era possível aproveitar aquele momento relaxante com a chata sentindo-se no direito de usufruir dos benefícios masculinos. — Está bem — desistiu do banho e se levantou. — Tome o banho que quiser. Ela permanecia estática, e Cedric soube que não estava abismada com sua nudez. Aliás, ela também não


parecia se incomodar com seu rosto deformado. Era realmente a pessoa mais diferente que ele já havia conhecido. — Agradeço meu marido. Pode me deixar sozinha? Era incrível o quanto era arrogante e presunçosa. Porém, era o primeiro dia do resto da vida deles, e Cedric não estava com ânimo de brigar logo depois... da noite que tiveram. Envergonhou-se, e afastou-se, em direção ao quarto. De alguma forma, sabia que havia quebrado a promessa a Lyn. Não, obviamente, jamais amaria aquela mashiana desaforada que parecia não temer ser incrivelmente petulante. Mas, o prazer que sentiu... Aquilo não era certo! Não com seus sentimentos tão duramente preservados por todo aquele tempo. Porém, a culpa era de Lyn. Se ela não o houvesse abandonado, não seria obrigado a desfrutar o leito com outra mulher. A porta do banheiro se fechou. Realmente, ela não queria que ele lhe visse a nudez. Será que também teria alguma deformação no corpo, e temia desapontá-lo? Como se ele se importasse! A única coisa que desejava era que pegasse barriga de uma vez! Então, nunca mais a tocaria...


Olhou para o leito desarrumado e estremeceu. Nunca mais... ***

— Parece incomodado com algo? A voz de Esmeralda fez Cael erguer a face da mesa, e encará-la. — Preocupado com você — disse, mas não era de todo sincero. Havia Kian, e o sentimento do amigo que descobrira na noite anterior, mas não estava disposto a meditar naquilo, naquele momento. Enquanto ela sentava-se ao seu lado, e pegava um morango que estava próximo do prato, Cael a mediu em um todo. Não parecia nervosa ou raivosa pela noite que foi obrigada a ter. No pouco que a conheceu, durante o tempo que estiveram juntos no barco, soube que ela era do tipo de pessoa que não media esforços ou reclamava das circunstâncias para alcançar um objetivo. — Foi sua primeira vez com um homem? Ela deu os ombros, como se não se importasse. Viu, pelo olhar acanhado, que aquilo não era inteiramente


verdade. — Não sei como me desculpar. — Não é necessário, sabíamos do risco. — Esm... — travou, pigarreando. — Rhianna — prosseguiu, corrigindo-se. — Se Cedric quer um filho, terá que tomar as ervas. Vou consegui-las ainda hoje para você. Ervas? — Do que fala? — Para evitar bebês. Esmeralda nunca ouvira falar daquilo antes. Não era sua culpa, claro, Randu nunca comentara nada porque jamais imaginou que a irmã fosse se acostar com um homem. — As ervas evitam que eu engravide? Cael assentiu. — Mas — sua voz baixou —, e se eu já estiver... — As ervas expulsarão o bebê de seu ventre. Não era certo de que ela estivesse prenhe, mas a possibilidade de matar uma criança lhe acovardou. Volveu-se para frente, sem saber o que dizer, o que pensar, como agir. De alguma forma, a mãe apareceu em sua mente, e ela soube que Brione precisou de muita coragem para seguir em frente. O que faria agora?


— Rhianna — Cael segurou seus dedos, como se a compreendesse. — Se não quiser tomar as ervas... — Mais um imundo no mundo — murmurou. — Assim que encontrarmos o seu pai — ele aproximou a boca da orelha dela —, e o matarmos — a arrepiou —, eu posso escondê-la em minhas terras além de Masha. Voltou-se para ele. — O que diz? — Ninguém reside naquele lugar. É isolado. Eu posso levá-la para lá. Esmeralda o encarou. Percebeu o sorriso acanhado. — Não me entenda mal — ela prosseguiu falando baixo. — Contudo, é tão estranho vê-lo a me proteger e tentando me ajudar. Ninguém nunca se importou... Cael riu, e então mordiscou o queijo. Ele pareceu pensar, enquanto comia. Só então a respondeu: — Não tenho família. Nunca tive ninguém. Sou tão sozinho quanto você. E, aquele mês em alto-mar foi o mais divertido e feliz que jamais tive. É a primeira amiga que possuo, e não vou te desamparar, eu prometo. Ela sorriu. — Sua primeira amiga além de Kian, é claro.


Silêncio. — E seu pai? Tens uma família, Cael. — Segundo ele, sou apenas o resultado de uma rápida foda. — Vendo o espanto nos olhos verdes, suspirou. — Como está sua mão? — a indagação mudou o rumo da prosa. Ela encarou o membro. — Cicatrizou muito rápido. Não sabia que cortavam... — Usam um bálsamo especial. A intenção era apenas unir o sangue. Mais uma vez ela meditou no tamanho da raiva que Cael sentia por Cedric, ao ponto de uni-lo a uma imunda. — Eu prometo que isso não durará muito tempo — sua voz novamente a trouxe dos devaneios. — O tempo que durar — ela lhe assegurou. — Não me importa. E de fato, nada lhe interessava. — Mas, diga-me, Rhianna? — Cael a encarou. — Como está o plano de tornar-se amiga de Cedric? A sobrancelha ruiva ergueu-se, soberana. — Muito bem — respondeu, sem receio. — Acredito que já somos os melhores amigos do mundo.


Capítulo 14 O jardim de lady Lyn — Insuportável! A pior mulher que já conheci! — Cedric bramou. — Não tem respeito às leis morais, não abaixa a fronte ao falar comigo. Não existe doçura em suas ações, nem a timidez exigida das jovens esposas. Parece uma serpente, sempre pronta a dar o bote. Iran o observou alguns momentos antes de indagar. — E no leito conjugal? Não te agradou? Dentro da sala real, onde Cedric governava politicamente o reino de Bran, o tutor Iran percebeu seu amado filho enrubescendo, como se não conseguisse encontrar palavras para respondê-lo. Diante daquilo, sorriu, satisfeito. — Se ela te agrada na cama, o resto não importa. Cedric não conseguia rebater aquilo. — Passou muito tempo sonhando com uma vida ilusória com Lyn, meu filho, mas o casamento é nada mais que tolerar a outra pessoa e ter algum prazer na cama. Não


carece se preocupar com quaisquer outros fatos. — Quero mais que isso — retrucou. — Quero uma companheira, alguém para amar... — Achei que não desejava o amor — retorquiu. Ao vê-lo incomodado com a observação, indagou: — E acha impossível amar Rhianna? — Ela é louca! — quase gritou. — Em menos de vinte e quatro horas de convivência ela já me tirou do sério tantas vezes! Iran ergueu-se, caminhando em direção à porta. — Não importa o que sente, estão unidos pelo sagrado laço de sangue. Faça um esforço, e poderá ter uma ótima vida ao lado dela. Cedric duvidava muito. ***

Mesmo odiando a personalidade, ao entrar no quarto, já noite, e vê-la sobre a cama de lençóis claros, ele sentiu todo o corpo inflar. Era impressionante que o tanto que a detestava psicologicamente equivalia-se no tanto que lhe atraia fisicamente. — Já tomou banho? — indagou, tentando não pensar no membro abaixo do ventre que resolveu dar sinal


de vida diante daquela ruiva. — Sim, senhor meu marido — a voz dela era irônica, e aquilo o irritou ainda mais. — Tomei primeiro, mesmo sabendo que como mulher devo me banhar em sua água... — alguns segundos — suja. Ah, que raiva! Bufando, ele foi até o banheiro. Lavou-se rapidamente, correndo. A respiração estava irregular e ele praticamente estava sentindo o quadril balançar no movimento praticado na noite anterior. Logo, voltou ao quarto. Ela prosseguia sentada, com aquela eterna cara de nuvem, sem nada que denunciasse suas intenções. — Posso apagar as luzes? — Não! — retorquiu. — Quer vê-la nua. Rhianna arregalou os olhos, como se não acreditasse naquelas palavras. — Mas, ontem... — Ontem fui bondoso porque era nossa primeira vez. — Entretanto, hoje também tenho vergonha! Ele riu. — Isso não é problema meu. Faremos no claro porque quero vê-la.


— Mas... — Mas? Que mulher chata você é! Sou seu marido e deve apenas fazer minha vontade! Ela titubeou por alguns segundos. — Posso pelo menos ficar de camisola? — Camisola? Que graça teria...? Subitamente, calou-se. Diante de si, ela ergueu o tecido até a altura das coxas. Aquela pele pálida era um convite que ele mal conseguia disfarçar a ânsia de aceitar. Por fim, resolveu fazer-lhe a vontade. Já era a segunda vez naquele dia! Dali um pouco seria um idiota manipulado pela esposa. Caminhou como um demente até ela. Pôs o joelho sobre a cama, e engatinhou até a mulher. Rhianna, ao menos, não escondia dele a satisfação de dividirem a cama. Ao menos isso, não é? Porque de resto ela era apenas problema e teimosia. Aconchegou-se entre as pernas dela. Sob a luz clara, percebeu aqueles olhos profundos observando-o atentamente. Envergonhou-se pela aparência, pela primeira vez, mas, surpreso, sentiu-a beijar-lhe o rosto deformado. Então, não mais se impediu de desfrutar a única coisa boa que vinha dela. Logo, enfiava-se no corpo delicioso, ouvindo os gemidos baixinhos contra as


orelhas. Balançando o quadril para frente e para trás, ele sentia o calor feminino envolvendo-o de tal forma que, em pouco tempo, suspirava de puro deleite. Agarrados, um no outro, eles dançaram juntos a melodia do sexo, da carne e da paixão. Não tardou ao chegarem ao clímax. E, ao sentir o gozo tomá-lo, Cedric percebeu que aquele casamento não era de todo mal. ***

A madrugada entrara sem que a ruiva conseguisse dormir. Logo que o marido desabou ao seu lado, num ronco baixo, ela volveu o olhar para o copo com o chá de ervas que Cael lhe trouxe durante a tarde. Não tivera coragem de tomá-lo. Agora, pela segunda vez, Cedric derramava sua semente dentro dela, e Esmeralda tinha uma dupla chance de pegar barriga, já que não conseguira beber o líquido assim que lhe fora entregue. — Eu estou ferrada — ela murmurou. Então, pegou o copo e foi até o banheiro. Derramou tudo sobre uma pia de louça, enquanto imaginava se tomara a melhor decisão.


Tudo bem... Era um risco, e se acontecesse, ela criaria o filho. Jamais esperou constituir uma família, mas, se era do desejo dos deuses, que assim o fosse. Apenas, não podia arriscar matar o bebê que já poderia estar gerando. Isso desonraria a memoria de sua mãe. Mesmo que não houvesse lugar nos reinos para ela e o bebê, ela daria um jeito. Com a espada na mão, ninguém poderia detê-la. Voltou-se para a cama e viu Cedric dormindo. Não... não se importava com ele. O conhecia a menos de dois dias, e ele em nada interferiria no amor que ela poderia nutrir por um provável filho. Assim como a mãe a amou, ela amaria o bebê, se viesse, não importando que ele fosse filho daquele braiano insuportável. ***

Pela primeira vez desde que Rhianna chegara ao palácio, Cedric percebeu a semelhança. A sua jovem e impetuosa esposa, sentada ao lado de Cael, ria de alguma coisa contada pelo jovem príncipe. E, entre eles, havia algo extremamente próximo, como se tivesse o mesmo sangue, a mesma identidade. Ambos estavam no jardim, próximos das rosas de Lyn, e tagarelavam sobre algo que o Rei desconhecia.


As bocas eram iguais. O nariz e o formato dos olhos, também. Até a pele, assemelhava-se. As sardas, comuns aos ruivos, também pareciam posicionadas nos mesmos sentidos. Contudo, não se alarmou. Os mashianos eram parecidos, diziam. Então, aquilo obviamente era uma coincidência. Todavia, o fato de sua esposa estar tão graciosamente alegre diante do olhar de outro homem logo lhe instigou a raiva, mudou o rumo de seus devaneios, e Cedric viu-se a marchar, na direção deles. O sorriso – de ambos – morreu assim que lhe avistaram. Encarando-o, eles pareciam esperar alguma palavra. E, as palavras vieram, com ligeira sofreguidão: — Este jardim não é aberto à visitação! Rhianna arqueou as sobrancelhas finas, num total estado de descrença, enquanto Cael parecia se envergonhar. — Achei... — a voz masculina começou, mas foi interrompida. — Você não acha, Cael! Sabe bem que esse jardim é sagrado para mim. O par se levantou do banco em que estavam. Cael pareceu perto de deixar o ambiente, mas a jovem mulher ruiva estava com o olhar fixo no Rei, com aquele mesmo semblante desafiante de sempre, enquanto a boca abria, audaciosa:


— E posso saber o motivo? — Sou um Rei. Minha palavra é lei. Não preciso dar motivos! — É um Rei, mas sou sua Rainha, e a mim deve sim explicações. Cael arregalou os olhos. Estava ao ponto de pegála nos braços e retirá-la dali. Como uma mulher podia desafiar daquela forma um homem? Não sabia Esmeralda que as mulheres deviam baixar a face diante de qualquer ordem? Ela não sabia que eram inferiores? — Como se atreve a me questionar? — Estava quieta aqui — ela se defendeu. — Estava conversando com Cael, sem tocar em nenhuma das suas tão amadas flores, e chegou revoltado, nos expulsando sem sequer explicar-se. — Já disse... — Quem já disse sou eu! Não arredarei o pé daqui enquanto não entender o porquê de não poder ficar no jardim! Cael tocou seu braço. Os olhos verdes volveramse para o ruivo. — Esse jardim... — murmurou. — Era o local especial de lady Lyn. Os olhos esmeralda voltaram-se novamente para Cedric e ele estremeceu.


— Está me expulsando do jardim porque era o local favorito da sua amada? Que me importa o que ela gostava ou deixava de gostar? — Cael sentiu o fogo nas palavras, e tentou contê-la, mas Esmeralda era muito rápida e logo se aproximava perigosamente de Cedric. — Aquela mulher lhe abandonou quando mais precisava dela, e você ainda a cultua, enquanto expulsa a mulher que aceitou desposá-lo? Não tem dignidade, homem? A mão de Cedric ergueu-se para bofeteá-la no mesmo instante que o ar faltou a Cael. Ele deu um passo à frente, pronto a defender a amiga, quando subitamente o Rei arrebentou-se no chão. O que havia acontecido, ali? Os olhos negros de Cedric focaram-se na mulher, enquanto a ruiva apertava as mãos, como se sentisse dor. Ela o havia socado? Fora tão rápida! ... Um momento... Uma mulher bateu num homem? Mais que isso, uma esposa, em seu marido? Aquilo era motivo para um divórcio e até uma execução. Cael sentiu, de súbito, que o momento de sua rebelião chegara. Não deixaria que pusessem as mãos nela. Contudo, os pensamentos foram impedidos pela nítida reação de Cedric. Ele não se vingaria? Era incredível, mas o orgulhoso Rei de Bran não fez sequer menção de chamar os guardas.


— Você é o próprio demônio, mulher! — Nunca mais ouse levantar a mão para mim — ela ordenou, numa ameaça direta. — E só não pisoteio todas essas rosas porque as coitadas não têm culpa de sua tolice! — Não te ensinaram boas maneiras onde cresceu? — Não me importa o que me ensinaram. Não vai me bater! Antes, eu corto sua mão fora. E saiu, em passos firmes, do local. Só então Cedric encarou Cael, que estava igualmente assombrado. — Onde tio Iran me arrumou essa mulher? — a pergunta era carregada de algo diferente. Levou alguns segundos para que o ruivo compreendesse que havia um tom cômico nas palavras. — Deve ter sido o destino — Cael murmurou. — Nunca vi o sangue de Masha ser tão latente em uma dama. Estendeu a mão ao outro, que se apoiou para levantar-se. — Ela quase me quebrou o nariz. — Por que não se protegeu? — Se eu tivesse visto o golpe, o teria feito! — ralhou Cedric. Subitamente, a gargalhada de Cael invadiu o


ambiente. O rei jamais havia visto seu irmão de criação rir tão alto. Fazia muito tempo que ele próprio não ria. Repentinamente, o gargalhar escapou de sua garganta e ele viu-se a divertir-se junto, como nunca havia ocorrido, até então. ***

Esmeralda bufava enquanto cruzava pelo corredor. Enquanto tentava acalmar as batidas do coração, ela respirava fundo, pensando que não podia por os planos de Cael a perder por culpa de sua instabilidade emocional. Porém, como Cedric a irritava! Em tudo, era diferente de seu perfeito Randu! Um prepotente, chato, enjoado, estúpido e, ainda por cima, se atrevia a lhe erguer a mão! Quem achava que ela era? Homem nenhum iria lhe bater! Não interessava o que diziam as escrituras, os livros da religião! Se Masha concordasse com a agressão as mulheres, que fosse a deusa a primeira a apanhar, a servir de exemplo, porque nela ninguém relaria um dedo. — Rhianna! A voz de Kian a atingiu e ela estancou, voltandose ao jovem moreno. Sorriu.


— Não o vejo há dias. — Estive longe das vistas — explicou-se. — Porém, queria lhe falar. A mulher aproximou-se, abraçando-o, o que lhe trouxe grande surpresa. Afinal, não sabia que ela havia sentido sua falta. — Somos amigos, não é? — Esmeralda indagou, tranquila. — É claro — sua resposta, contudo, não era totalmente franca. — Então, me diga, por que está triste? E por que sumiu? Kian sorriu. Era difícil não gostar dela, apesar do coração enciumado. — Eu tive uma briga com Cael, mas... — mordeu os lábios. — Não era disso que queria lhe falar. O silêncio dela lhe fez prosseguir. — Quero agradecê-la. — Pelo quê? — Hoje vi Cael rindo — ele respirou fundo. — Faz muitos anos que não o vejo tão feliz. Sei que é por sua causa. Então, estou simplesmente dizendo que torço para que sejam felizes juntos. Primeiramente, o rosto feminino pareceu surpreso.


Depois, ela gargalhou alto, como se ele tivesse contado a melhor das piadas. — Ficou maluco? — indagou, entre risos. — Mas... — Cael é meu amigo. Assim como você. Não me interesso por amor, tudo que quero — aproximou-se do outro — é a cabeça do homem que estuprou minha mãe na ponta da minha espada. Kian permaneceu estático, enquanto um misto de sensações se aprofundava em seu ser. A maior delas era a pena. — A vida é mais que a vingança, Esmeralda — disse o nome num murmuro, culpando-se por tê-lo usado. — A minha vida é apenas tal retaliação — ela retrucou. — Nada mais me importa. Depois disso, ela ficou na ponta dos pés e lhe deu um rápido beijo no rosto. Então, se afastou, deixando o jovem braiano pensativo.


Capítulo 15 O Sangue de Masha — Sabe o que dizem, sobre Masha, nas antigas escrituras? Randu observou a ruiva atentamente. Diante do espelho, ela arrumava os botões enfileirados do vestido justo. O olhar dela encontrou o seu pelo reflexo, e pareceu animada diante da conversa. — Que a Deusa era audaciosa e que suas mulheres enlouqueciam os homens, e não falo no bom sentido — Rhianna mesmo respondeu. — Diziam que ela era tão petulante, tão dona de si. Que falava de igual para igual com Cashel e Bran, jamais se intimidava e, por mínimas, coisas provocava guerra. — Então Esmeralda tem motivos para me deixar maluco — ele resmungou, calçando as botas. O riso feminino preencheu o ambiente. — Mas, então, os homens, não aguentando mais o poder que de Masha emanava, fizeram acordos com os


outros dois deuses. Unindo seus poderes, Bran e Cashel a derrotaram num combate e lhe impuseram obediência. Desde então, as mulheres de Masha, seguindo o modelo das de Bran e Cashel, não podem trabalhar, andar na rua sem seus maridos ou um acompanhante masculino, ou ter opinião dentro de uma casa. Devem apenas procriar, limpar, lavar, e servir seus homens, sempre que eles desejarem. Randu conhecia muito pouco as escrituras, e aquela história lhe surpreendeu. — Mas, Bran não a amava? — Ninguém sabe ao certo. Alguns dizem que eles eram irmãos, outros, amantes. Ainda há pessoas que dizem que os sacerdotes arrancaram das escrituras trechos em que Bran se arrepende de seus atos, e ajuda Masha a voltar a ter uma posição diante da sociedade. Contudo, como aquilo não interessava aos homens que governavam os homens, as mulheres permaneceram desamparadas. Randu assentiu, erguendo-se. — Com as escrituras manipuladas, jamais saberemos ao certo. — A única coisa que sei — Rhianna volveu-se para ele, encarando-o — é que Bran e Masha se amam, pois por ordem do Deus, todos os braianos devem sempre proteger os mashianos, e vice e versa, em qualquer conflito contra Cashel.


Randu assentiu. Depois, suspirou fundo, enquanto meditava nas palavras. — Cashel devia se sentir bastante rejeitado pelos outros dois deuses. Ela deu os ombros. Realmente, não sabia qual era a posição do Deus negro nas escrituras além do que ouvira, no templo. — Então, vamos? Encarou Randu, e o viu de mãos próximas. Conforme já estavam fazendo há uma semana, ela algemou suas mãos e o puxou, por uma corrente, para fora do quarto alugado. O sol de Masha tocou sua pele. Estava um dia incrivelmente quente, e ela percebeu isso tão logo chegou à rua. O calor parecia corroer ainda mais cada ruivo que cruzava por eles, deixando o ar cada vez mais carregado. Ao longe, era possível ver as pedras do calçadão brilharem, como se estivessem sobre forte pressão. Sem atentar-se muito na atmosfera, começou a andar, levando consigo o negro. Alguns mashianos os encaravam, surpresos. Provavelmente, era a primeira vez que viam alguém diferente, por lá. Mas, a escravidão do povo de Cashel era aceita e permitida no acordo após a Guerra dos Mil Dias, e ela não se intimidou pelos olhares assombrados.


Desde que haviam chegado, há cerca de uma semana, puseram-se a busca discreta de uma mashiana vinda do porto. Não podiam deixar claro o que Esmeralda era, portanto, empenhavam-se em indagar, discretamente, dentro das casas de ourives, se uma jovem havia aparecido, tentando descobrir a que família pertencia um colar com uma legítima pedra de Masha. Depois de uma curta caminhada, Randu e Rhianna se encararam. Diante de um casarão rústico, eles suspiraram pausadamente, antes de entrarem. — Estive esperando vossa senhoria, senhora Rhianna — um homem de cerca de quarenta anos surgiu, diante deles, com um sorriso nos lábios. — O rapaz dos recados me disse que queria um encontro em particular. A mentira dita, desde que chegaram, era de que Rhianna era uma jovem viúva muito rica, e que estava em busca de um novo marido para poder controlar sua fortuna. Como Masha era um reino grande, até os candidatos conseguirem qualquer informação mais precisa sobre a tal viúva, ela já pretendia estar longe dali. — Somos de uma família liberal — ela explicou, sentando-se na cadeira que lhe foi apresentada. — Permitiram-me que eu mesma escolhesse meu futuro esposo. — Certamente é uma dádiva. Não sabiam que ela era pobre. Hospedar-se na


melhor pousada daquela parte de Masha lhe rendeu boa fama. — Certamente, o é. Minha irmã, Esmeralda, esteve por aqui, para ver os candidatos antes que eu tomasse minha própria decisão. — Sua irmã? — Nenhuma jovem surgiu, mostrando um cordão de família com uma enorme pedra? Ele pareceu incomodado. — Infelizmente, não. Porém, tenho esperança de que mesmo sem ter sido pré-selecionado, a senhora se agrade de minha pessoa. Rhianna sorriu, sedutora. — Diga-me, senhora... — o homem encarou o outro, de pé, ao lado dela. — O que faz com um escravo? — Foi presente de meu falecido marido, em uma viagem que fez a Cashel. — Mas ele não é imundo — observou. — Parece que se deitou com uma das filhas de Lugus — ela riu, desavergonhada. — Foi castrado, e vendido, desde então. — E pensa em mantê-lo, após o casamento? A pergunta era incomodada. Obviamente o homem não queria um bonito negro ao lado de sua futura esposa.


— Não sei. Se meu novo marido não se agradar, posso vendê-lo. A conversa prosseguiu mais alguns minutos. Então Rhianna se levantou, despediu-se e saiu porta afora, puxando seu escravo. ***

— Seus pulsos estão machucados — ela murmurou, abrindo as algemas pesadas. — Eu lamento, Randu, por... — Não lamente. Está me fazendo um grande favor. — Não gosto da maneira com que olham para você. Estavam sozinhos no quarto. Nas mãos dela, um pano molhado tentava limpar o sangue dos cortes. Seus olhos também estavam úmidos, como se a culpa a dominasse por ter que fingir ser sua dona. — Eu não me importo com a maneira com que me olham, Rhianna. Eu sou negro, tenho orgulho de ser negro, e se eles não gostam disso, é um problema deles, não meu. A mim, tudo que interessa, é encontrar minha irmã. De resto... Subitamente, Randu sentiu seus lábios serem esmagados pelos dela, num beijo pueril. Permaneceu


estático, como se não acreditasse no ato, mas, por fim, deixou-a se afastar, abalada. — Me perdoe... — Está tudo bem — remediou. — Não! Não está tudo bem! — Rhianna quase gritou. — Por que não é como os outros homens? Por que me trata como se fossemos iguais, como se tivéssemos os mesmos direitos? Conversa comigo sem nenhum tom de desprezo. E você tem o sangue divino de Cashel, é o filho de um Rei! — Um filho desonrado de um rei — ele justificou. — Meu sangue divino não limpa o sangue de minha irmã. E, foi ao lado dela que passei toda a minha vida. Sei que Esmeralda é uma guerreira valorosa e uma mulher inteligente. Como poderia considerá-la inferior, se a amo tremendamente? — E sobre mim, o que sente? As palavras eram tão diretas que o rapaz se viu afastando-se, e a se aproximar da janela. — O que sinto, não importa. É uma mashiana e eu um casheano. Seriamos loucos se sonhássemos com qualquer coisa além da pura amizade. — Por quê? — Como assim, por quê? Não vê? Já pensou em termos filhos? Imundos que seriam perseguidos como


Esmeralda é? — O rei de Bran iria se casar com uma mashiana! — ela perseverou. — Iria! Mas, pelo que me disse, ele desistiu. E sabe os motivos? Porque provavelmente pensou bem e viu que não vale a pena lutar contra as leis religiosas! E isso que Masha e Bran são brancos. Nenhum filho branco seria tão perseguido quanto um de cor. — O que me importa as leis? — ela aproximou-se, tentando tocá-lo. — Quando tudo que elas me dizem é que não mereço ser feliz simplesmente por ser mulher, e quando tudo que vejo, ao te olhar, é uma vida de respeito e felicidade. — Escondida nas cavernas? Sem qualquer luxo? — devolveu. — Porque é esse meu destino, assim que encontrar aquela louca da minha irmã! É uma mashiana de sangue puro, pode... Mais uma vez, interrompido. Mais um beijo, carregado de significados. Mais uma vez, afastou-a. — Pare, Rhianna — disse, firme. — Por que me rejeita se sei que também gosta de mim? Silêncio. Lá fora, o sol já havia se despedido. Havia o som de grilos ao longe, e o farfalhar das árvores,


ao serem batidas pelo vento. — É por gostar de você — por fim respondeu — que não a condenarei a uma vida como a de minha irmã. — Afastou-se mais uma vez. — Se quiser vir conosco, será bem vinda, será como uma irmã para mim. Cuidarei de suas necessidades, cuidarei de você. Mas, não haverá amor e paixão entre nós. Até porque, sei que está apenas deslumbrada, por ter saído de seu casulo. Não vou permitir que condene sua existência a uma vida renegada como a minha. E por fim ele aproximou-se das cobertas no chão, e deitou-se de costas para ela. ***

— Mulher! — o grito ecoou pelos corredores do castelo. — Mulher! — a voz rouca e máscula chegou até ela, que apenas ergueu as sobrancelhas e a ignorou. — Mulher demoníaca! — por fim, Cedric surgiu à porta da biblioteca, rugindo. — Não me ouviu a chamá-la? — Não — respondeu, indiferente. — Ouviu-o a gritar “mulher, mulher”, mas como há várias no castelo, não sabia que era a mim que se referia. — Mulher dos infernos! — ele reclamou, alto. — Por que eu iria sair à noite pelos corredores chamando


por qualquer uma que não fosse a minha? Esmeralda deu os ombros. — Eu não sei, meu marido. Você não é muito bem do juízo. Enfureceu-se pela colocação, mas não reclamou. Até porque, estava nervoso. Já era tarde da noite e não a encontrou no leito, a sua espera, como era seu dever. — Estou indo dormir — anunciou. — Ah — ela abriu a boca, enquanto voltava os olhos para um livro. — Boa noite. — Como assim “boa noite”? Estou aqui porque quero você na cama, agora. — Não estou disposta. Ele abriu a boca, como se tivesse tendo um ataque. Como uma mulher podia ser tão desaforada daquela forma? — Mulheres não tem querer depois que se casam! — Eu tenho. — Não tem — reforçou. — Já para a cama! — Vai me obrigar? — Se for necessário. A risada irônica invadiu a biblioteca. — Cedric, por favor, você não faz o tipo que


forçaria uma mulher. — Uma mulher não! Mas, a minha, é meu direito! — Sua, sua... — ela repetiu, incomodada. — Tudo que pensa é em propriedade? Sou uma pessoa com sentimentos. A frase o calou. — Eu respeito seus sentimentos — retorquiu. — Poderia ter me divorciado hoje, depois do que fez. — Depois do que fiz? Ela ergueu-se num salto, furiosa, e ele recuou, já antevendo a tempestade. — Foi você que ergueu a mão para mim! — Porque ousou me afrontar — elevou o tom. — O que ousei foi me sentar às sombras das árvores do jardim de sua amada lady Lyn — retrucou. — Eu sou sua esposa, não devia me impedir de ver as flores porque sua querida ex-noiva gostava de estar naquele ambiente. Levou algum tempo, mas por fim ele percebeu o tom magoado na voz. Por algum motivo desconhecido, aquilo lhe encheu de satisfação, e não conseguiu escondêla, por mais que tentasse. — Está com ciúme? — Só para lembrá-lo, para o caso de ter


esquecido, nosso casamento foi arranjado. — E? — Como poderia ter ciúmes de um homem que não escolhi? Cedric sorriu. Não havia a menor determinação na voz feminina. — Aconteceu, é claro. Apaixonou-se por mim. Irritá-la era muito fácil. Ele podia ver o rubor na pele e o olhar recheado de ódio. — Isso nunca vai acontecer — ela jurou, fazendoo se arrepiar. — Eu jamais me apaixonaria por alguém como você! — Por conta de meu rosto deformado? — Seu rosto deformado, meu Rei, é o menor de seus defeitos. E saiu da biblioteca. Cedric não resistiu e a seguiu, de perto. — Explique-se — exigiu. — Acredito que minhas palavras sejam claras por demais. — Pois não foram — retorquiu. — O que quer dizer? Sabe que sou considerado um homem gentil e generoso? Que muitas braianas dariam a vida para me desposarem?


— Desde que cheguei, tudo que fez foi gritar comigo, como se eu fosse a culpada de seu infortúnio. — Voltou-se para ele. — Quando na verdade, tudo que desejo é que sejamos amigos. Observando-a atentamente, nada encontrava em sua postura que desmentisse as palavras. Porém, amizade? Com uma mulher? Não era para aquilo que foram criadas, não é? Deviam ser amadas, ou usadas. E, ele já não sabia mais o que fazia com aquela ruiva de postura autoritária. — Amigos não dormem juntos — protegeu-se. Aquelas palavras defensivas soaram mais desesperadas do que imaginava. Não queria afeição, não depois do que sofreu com Lyn. Contudo... quanto mais pensava na ruiva, mais cheio de ternura seus devaneios se tornavam. — Meu Rei e marido, podemos descobrir juntos como uma amizade pode beneficiar nosso relacionamento. A sugestão não pareceu descabida. Ao contrário, era docemente encorajadora. Por fim, Cedric assentiu, sem saber que na verdade caia em uma armadilha.


Capítulo 16 Imundos — Você está gostando de morar aqui? A indagação de Cael fê-la erguer os olhos em sua direção. Estavam andando na área frontal do castelo, lado a lado, como haviam se acostumado a fazer todas as manhãs. — É bom passar os dias sem necessitar me proteger da morte — ela admitiu, contrariada. Depois, riu. — E fora que a comida daqui é muito boa. Havia mais que isso. O compromisso noturno ao lado de Cedric, nas muitas noites que se prosseguiu desde que se casaram, afogueava-a. Cael bateu de leve na mão que descansava em seu antebraço. Sua respiração acalmou e ele pareceu relaxado. Gostava de estar ao lado de Esmeralda, como jamais havia gostado de estar ao lado de outra pessoa, além de Kian. Contudo, havia perdido o amigo, depois de lhe descobrir os desejos pecaminosos.


— Eu penso... — começou, e então se interrompeu, olhando para os lados. — Penso em reinar sobre Masha. No entanto, precisarei usurpar o trono... — Usurpar? Mas, ele é seu por direito! — Não enquanto meu pai não me coroar, e isso não vai acontecer. Então, quando declararmos a verdade, e vermos Bran cair em desgraça, vou reunir uma guarda armada e tomarei posse do reino à força. O semblante feminino era claramente preocupado. — Então... — ele parou, e ficou de frente para ela. — Quer invadir Masha ao meu lado? As sobrancelhas ruivas ergueram-se, inquisidoras. — Que convite estranho... — Preciso de uma guerreira como você. Mas, não apenas por suas habilidades — sorriu. — Confio em você. Esmeralda sentiu uma sincera emoção brotando em seu íntimo. Era impossível não amar Cael, e ela sabia que nutria tal sentimento pelo ruivo, da mesma forma que o nutria pelo irmão, Randu. — Darei minha vida para que consiga seu intento — afirmou, numa promessa. — Sua lealdade já está clara para mim, Rhianna — murmurou o nome falso. — Que outra mulher aceitaria dividir a cama com um homem deformado apenas para


ajudar um amigo? — E conseguir a cabeça de outro, na espada — ela completou, a fim de lembrá-lo da promessa. — Sim, tem isso. — riu. — Mesmo assim, muitas achariam que não valeria a pena. — Para mim vale, Cael. Eu faria qualquer coisa por vingança. Porém, havia mais que isso em suas emoções. Jamais admitiria, é claro, mas estava profundamente tocada pela convivência com Cedric. O bárbaro e estúpido Rei de Bran era, inacreditavelmente, doce entre os lençóis. O prazer partilhado ao lado dele não lhe incomodava, apesar de saber ser errado. — Cael — murmurou. — Me faça uma promessa... — É claro. Qualquer coisa. — Se eu pegar barriga por me acostar com Cedric, cuidará de meu filho. Como Rei de Masha, poderá abolir a perseguição aos imundos. Então ela não estava realmente bebendo os chás? —Eu prometo. — O homem assentiu. Subitamente, o som de passos fê-los girarem a quem chegava. Iran aproximava-se cuidadosamente, com o rosto denotando descontentamento. — Ficam por demais próximos — ele sequer


tentou esconder o que lhe incomodava. — Uma mulher casada deve permanecer ao lado de seu marido, querida — disse, sorrindo, para a jovem, como um mestre a ensinar sua pupila. — Cedric não se importa. — Ou talvez não queira demonstrar que se importe — objetou. Cael respirou fundo, tentando não demonstrar contrariedade, mas Esmeralda apenas riu, acariciando o braço de Iran. — Pai — disse, carinhosa. — Não carece se preocupar. Cedric e eu estamos nos dando muito bem. Acredito que em breve teremos um reizinho andando por Bran. O olhar de Iran tornou-se amistoso. — Está grávida? — Acredito que ainda não. Mas, pela impetuosidade do Rei... — Ele reclama tanto, pensei que estaria com problemas — admitiu. — Fico feliz que... — Pai — interrompeu-o, novamente. — Ele reclama apenas durante o dia. À noite, nunca o vi se queixar. Cael quase gargalhou. Como era manipuladora e engenhosa. Seria uma ótima rainha, não fosse uma imunda.


— É impressionante como você me lembra minha mãe — Iran assumiu, diante deles, espantando Cael. O pai não era dado a demonstrações de afeto, além das que dava a Cedric. Não se enciumou, mas ficou severamente assustado. Estaria Iran nutrindo sentimentos por Esmeralda? Subitamente, aquilo lhe foi muito caro. Ora, quão maior seria sua decepção diante da verdade? Precisou esconder uma gargalhada feliz perante a possibilidade. — É mesmo? — ela fingiu interesse. — Claro que todas as mashianas são muito parecidas. Porém, é a forma de olhar que nos difere, um dos outros. E você olha como minha mãe. O mesmo ar febril, como se nada temesse ao mundo. — Ergueu as mãos da mulher, e depositou um beijo cálido em seus dedos. — Minha mãe era como Masha, impetuosa e aguerrida. Morreu jovem, nas mãos do meu pai, que não aceitou aquilo. Claro que ele não a matou com as próprias mãos, mas a trancou em uma torre alta, para que destruísse sua personalidade. Sem ver o sol e as pessoas, logo o desânimo dominou seu corpo, e minha amada genitora acabou por perder o viço. Seus dias encurtaram, e a morte a levou quando eu era um garoto. — Eu lamento muito... — Rhianna — interrompeu-a. — Homens não gostam de impetuosidade. Refreie a sua, minha querida.


A jovem sorriu, pacífica, como se aceitasse o conselho. Entretanto, Iran desconhecia o quanto o fogo queimava em sua personalidade. A mãe de Iran morreu trancafiada. Esse destino jamais a acometeria. Ela mataria o marido antes, com a força de sua espada. De repente, deu-se conta do tamanho do ódio que havia em si. Era como uma doença, que não a permitia aliviar-se e descansar. Nada que se colocasse em seu caminho receberia piedade. Porém, era uma imunda, por que nascera com aquela personalidade? Não havia herdado aquilo da mãe, Brione. A antiga rainha de Cashel era doce e gentil. Corajosa, sim, mas não imprudente. Porém, a filha sequer meditava ao atacar. O corpo esquentava e ela via-se a agredir, como uma cega. O som de uma cavalaria afastou seus pensamentos. Volveu-se para a estrada ao longe, e observou que se aproximava muitos cavalos. Contudo, não pareciam vir na direção do castelo, e sim apenas cruzavam por ele. — O quê...? Sua pergunta morreu ao perceber o cortejo de negros sendo puxados por cordas amarradas em seus pulsos. Iam em fila indiana, um a frente do outro, num movimento ritmado, mas absurdamente anestesiante. — Escravos — Iran pareceu responder suas dúvidas. — Os estancieiros de Bran devem ter ido buscar


alguns imundos em Cashel. Randu uma vez lhe comentara o fato. Era o destino cruel dos imundos. As mulheres, mortas. Os homens, castrados e escravizados. O ar lhe faltou e ela sentiu lágrimas nos olhos. Repentinamente, porém, um calor confortável tocou suas mãos de leve. Cael estava ali, como se lhe desse forças. E ela precisava de todas as forças do mundo para não interromper a comitiva. — Aquilo... — apontou o dedo, quando uma figura pequena e cabisbaixa chamou sua atenção — é uma criança? Iran pareceu forçar as vistas, mas foi Cael que respondeu: — Uma menina — confirmou. — Provavelmente, uns dez anos de idade. A pequena de cabelos negros caminhava vagarosamente atrás dos homens. Era provável que havia sido escondida pela mãe durante algum tempo e, depois, descoberta. Tinha os cabelos negros e lisos, denunciando que tinha sangue braiano. A guerra já havia se findado há muito tempo, mas Esmeralda sabia que braianos e mashianos costumavam ir a Cashel, que mantinha um porto entre os dois reinos. Era nítido que numa dessas idas, um braiano havia estuprado uma das mulheres negras de sua terra.


— O que farão com ela? — Estuprá-la e matá-la — a resposta fria de Iran a congelou. — Que outro destino se daria a uma imunda? Esmeralda encarou Iran como se não acreditasse que aquelas palavras saíssem tão facilmente de seus lábios. — É uma criança! — disse, sem domínio. O toque de Cael em sua mão foi quase como um puxão. Ela precisava se controlar, mas não mais conseguia. — É a lei. — Que lei maldita é essa que pune uma criança que sequer tem culpa de ter nascido? Iran pareceu pronto para respondê-la, mas as palavras sumiram de sua boca. — Por que se importar? Deixe... Repentinamente, ela deu as costas a ele, e saiu correndo em direção ao castelo. Cruzou por criados, erguendo o enorme vestido, buscando a única pessoa que podia ajudá-la. As lágrimas começaram a despencar, enquanto ela sentia o corpo avançar por entre os corredores. A garganta secou e, pela primeira vez desde que se lembrava, Esmeralda sentiu-se desamparada.


Por fim, o viu. Cedric estava com um grupo de conselheiros, analisando uma papelada qualquer que não lhe interessou. Ingressou no aposento sem medir seus atos, jogando-se nos braços do marido, enquanto o apertava com toda a força, sequer dando-se conta da própria atitude. — Rhianna... — por fim, a voz do rei fê-la acordar. Enrubesceu, afastando-se, assustada com a intensidade dos próprios sentimentos. Desde quando amparava-se na força de alguém para suprir sua tristeza e desamparo? — Saiam — ouviu Cedric ordenar aos homens. Percebeu o olhar queimar sobre si. Uma mulher, mesmo uma rainha, não tinha autoridade para interromper uma reunião. Ela sabia disso, qualquer dama dos reinos conhecia tais leis, mas, suas emoções haviam lhe tirado o bom senso. Agora, perante Cedric, ela viu-se, pela primeira vez, indefesa. Esmeralda, completamente desarmada, não por ser imunda, mas por ser uma mulher. A mulher dele. — Saiam, eu já disse — a voz máscula rugiu, como um leão. Ela estremeceu, baixando a face.


— Mas, meu Rei... — um dos homens tentou intervir. — Não estão vendo que minha esposa está chorando? Naquele instante, Esmeralda percebeu que Cedric, assim como agia com ela, não era dado a paciência com os demais. Invejou a tal Lyn, que jamais viu, mas que, pelas palavras de Cael, despertava naquele rei amargurado a perfeita ternura. Um a um, os conselheiros deixaram a sala real. Assim que a porta foi fechada, Cedric voltou-se para ela. — O que aconteceu, Rhianna? Subitamente, percebeu que não havia justificativas. Uma mashiana criada dentro de um lar normal, não se afrontaria pela visão de imundos escravizados. As lágrimas voltaram. — Por Bran, mulher! Pare de chorar! — Não consigo — assumiu. De fato, não conseguia. E aquilo era estranho, pois em todos aqueles anos, Esmeralda não se lembrava de ter pranteado tanto, quanto naquele momento. E não lhe faltaram motivos nos anos passados em Cashel. Assustada, percebeu Cedric a puxando contra os braços. Um abraço...


Um abraço? Jamais imaginou que ele lhe demonstraria qualquer traço de cumplicidade. — Está tudo bem — a voz dele era calma e confortadora. — Apenas, me conte o que lhe incomoda. As mãos femininas, por fim, vencidas, ergueramse, e apertaram o ombro do homem. Ela jamais se imaginou abraçando Cedric. Aquele dia estava repleto de surpresas. — Um cortejo de escravos cruzou pelo castelo, agora a pouco — contou, tentando encontrar as melhores palavras. — E? — Havia, entre os homens, uma menina. Pai Iran disse que a estuprariam e a matariam, Cedric. — Sim, porque é o que se faz com uma imunda. A total apatia da voz dele fê-la recuar. Cedric notou aquilo, e deu um passo a frente, segurando suas mãos. — Rhianna, é o que a lei... — Leis? O que importa as leis para um Rei? — Mesmo um Rei está abaixo de Bran! — Mas um Rei quebrou as leis para se casar com uma mashiana! Sabe tão bem quanto eu que as leis


sagradas podem ser manipuladas para que se cumpra a vontade real. Ele a encarava como se a visse pela primeira vez. — Rhianna... — Um braiano saiu de suas terras, foi para Cashel, e estuprou uma negra. Nasce uma criança. Diga-me, bondoso Rei, de quem é a culpa pelo nascimento? Da mulher, subjugada? Da criança, que veio ao mundo sem o desejar? Ou do maldito que se impôs? Por que condenam o inocente e não perseguem o bandido? Esmeralda podia ver a confusão mental de Cedric. Claramente, ele jamais havia pensado naquilo, ou não sob aquela ótica. — Tem o sangue de Bran nas veias. É o Rei do maior e mais poderoso reino de todo mundo. Se aquela criança inocente for estuprada e morta, o sangue dela estará em suas mãos. Deu-lhe as costas, pronta para deixar a sala. Contudo, foi impedida. — Rhianna... Encararam-se. — Você tem razão. Cedric sentiu o coração bater tão rápido no peito diante do sorriso de sua esposa, que a mente embaralhou seus atos. Por fim, puxou-a contra si e preencheu seus


lábios com sua boca masculina. — Você é uma bruxa — riu, soltando-a. — E eu um tolo por fazer todas as suas vontades. ***

O trompete triunfal ecoou por entre as árvores. Os negros pararam, enquanto o som dos cascos dos cavalos tornaram-se cada vez mais audíveis. Por fim, o Rei, a Rainha e três guardas reais aproximaram-se do senhor feudal e seus escravos. O homem curvou-se diante dos monarcas, que pareciam ainda mais grandiosos em cima dos animais. — Que honra, meu Rei — disse, comovido. — Jamais imaginei vê-lo com meus próprios olhos. — E não vê — Cedric retrucou, mal humorado. — Não vê meu rosto, minha máscara não permite. A agitação no homem quase o fez rir. A maioria dos seus súditos fingia ignorar a deformidade. — Como se chama? — questionou o moreno. — Sou Arto, majestade. — Diga-me, Arto, esses escravos são seus? O homem assentiu.


— Comprei-os de um comerciante de Cashel. Todos imundos, filhos da guerra. — Todos? — Cedric arqueou as sobrancelhas, olhando de soslaio para a esposa, que permanecia silenciosa e séria, sentada em sua égua. — E essa menina? — Uma imunda mantida pela mãe, num porão. Parece que o homem que fecundou a mulher era um comerciante de nosso reino. — Eu vejo que ela tem sangue braiano, não precisa me dizer — respondeu. — O que fará com a menina? O homem pareceu espantado. — Ora, meu Rei... — Não ouvi, Arto! Sua dureza espantou o homem, que pigarreou antes de prosseguir. — Majestade, farei o que todos fazem. Então, Rhianna estava certa em dizer que a menina seria estuprada. Quantas vezes, só Bran saberia. Depois, obviamente, morta. Ou vendida para uma taberna. Nunca se sabia ao certo o destino de uma imunda. — Pois não tocará um dedo na criança — disse, voltando-se para a garotinha, que o observava com olhos assustados. — Mande que um de seus homens a leve de volta para a mãe, em Cashel. Se eu souber que alguém


tentou violá-la, terei a cabeça desse homem como enfeite de minha mesa, para meus chás da tarde. — Meu senhor... O susto era nítido. — Mas... — Você é surdo, homem? — Não, meu Rei... Apenas, eu a comprei... — A comprou e vai devolvê-la. Estou decretando que o comércio de imundas está proibido em Bran. — Mas... — Não sou homem de repetir minhas palavras — Cedric avisou. — Faça o que estou mandando, ou será você a enfeitar minha mesa. Depois, puxou a rédea do cavalo, preparado para afastar-se. Contudo, Rhianna permaneceu estática. — Diga-me — a voz da sua esposa o interrompeu. — E esses homens? Cedric arregalou os olhos. Entendia que ela tentava proteger as mulheres, mas os estancieiros precisavam da mão de obra para o trabalho e ele... — Meu Rei — Rhianna voltou-se para ele, interrompendo seus pensamentos. — Um trabalhador merece um teto para dormir à noite, e uma comida decente para nutri-lo. É justo, não? Mesmo um cavalo possui seu


estabulo e seu feno. Ela tinha razão. — Arto, mande construir casas para abrigar seus escravos, e lhes forneça alimento para compensá-los pelo trabalho. — Mas, a lei... A lei era clara em dizer que os imundos poderiam dormir sobre as estrelas e morrer de fome, mesmo trabalhando de forma decente. — Eu sou Cedric, o Rei deste Reino, e o descendente direto do Deus Bran. A lei sou eu. O homem curvou-se, submisso. Então, enfim, o Rei os deixou, seguido de uma Rainha satisfeita e por guardas espantados.


Capítulo 17 O Respeito aos Deuses Cael ergueu os olhos para o moreno que se aproximava, afobado. Não via Kian há algumas semanas, desde que descobrira que era o alvo dos desejos perversos do outro. Engasgou perante a aproximação, incomodado e, ao mesmo tempo, ansioso. Lhe custava admitir, mas, como sentia sua falta! Era seu melhor amigo, desde que se lembrava. Segundo filho de uma próspera família braiana, Kian havia sido entregue pela família, ainda pequeno, para ser pajem no castelo do Rei. Devia servir a Cedric, mas foi Cael que lhe chamou a atenção, com seus cabelos vermelhos e seus intensos olhos verdes. Viu-se despreparado diante dos próprios sentimentos, aos quais deu-lhes diversos nomes no decorrer dos anos: amizade, fraternidade, compaixão. Por fim, amor. É claro que aceitar tal emoção custou-lhe muitas noites de sono e tornou seus olhos negros, avermelhados de chorar.


Contudo, esconder o sentimento de si era de tal dificuldade que ele acabou por aceitar e remoer sua condição. Mesmo assim, nada se comparava a esconder suas emoções de Cael. Como o amigo leal que era, acompanhava o Príncipe aos bordeis, e o via flertando com as mulheres que cruzavam seu caminho. Nenhuma era um risco a sua paixão, mas Esmeralda era tão cúmplice de seu amado, que enredou-se em uma teia de ciúmes que culminou com a descoberta de Cael sobre seus sentimentos. Agora, perdera seu amigo. Ali, diante do ruivo, ele mal conseguia esconder o rubor na face, a vergonha tremenda pelas coisas que sentia, e a vontade de desviar o caminho e fugir de sua presença. — O que quer? A indagação do ruivo lhe doeu. O tom era carregado de mágoa. Mas, que culpa ele tinha? Por que Bran o havia criado com tal defeito? — Passava agora pela sala do Rei — disse, tentando não se ater no jeito estúpido do outro. — Seu pai estava tentando fazer a cabeça de Cedric contra a esposa. — O quê? — Cael levantou-se do estofado onde descansava e lia na sala de chá. — Como assim? — Parece que Es... — gaguejou — Rhianna conseguiu salvar uma imunda e convencer Cedric a dar uma lei mais humana aos escravos dos estancieiros.


Cael abriu a boca, abasbacado. — Ela fez o quê? — Não sei por que se arriscou tanto, mas é nítido que tal atitude não foi do agrado de Iran. E ambos sabemos que Iran pode ser muito cruel quando não gosta de algo, quando sente que pode estar perdendo seu controle sobre Cedric. Sem ficar para ouvir mais, Cael rumou em direção à sala real, seguido por Kian. Entraram no recinto sem se anunciar, e encararam o Príncipe Iran bufando ao lado de Cedric, que mantinha uma postura séria, mas firme. — Não é preciso ouvir o que sua esposa fala simplesmente porque é uma mashiana! — Iran afirmou. — Sei que, por sermos, Cael e eu, sua família, deve ter levado a sério demais as considerações... — Não ouvi Rhianna por conta do seu sangue, ou por qualquer tipo de sedução feminina, se é isso que quer insinuar — Cedric cortou. — A ouvi porque estava certa. — Ela é uma mulher, por amor de Bran! — Iran ergueu os braços, revoltado. — Uma mulher certa — Cedric reafirmou. — Uma mulher! — desprezou. — Uma mulher não entende de nada que não seja abrir as pernas e parir. Você tem conselheiros para ajudá-lo a governar, homens escolhidos a dedo...


— Homens escolhidos a dedo por ti, meu tio — Cedric objetou, interrompendo-o. — Homens que nunca me fizeram encarar a verdade sobre os imundos. — Porque em nada nos importa. É para os puros que governamos. Não para essa raça maldita, que devia ser extinta. — Eles sequer pediram para nascer — retrucou. — Se existem imundos, é porque puros dormiram com mulheres que não pertencem a sua raça. Aliás, é exatamente isso que estou fazendo no momento. — Não ouse comparar a união dos povos de Masha e Bran com a união, qualquer que seja, com aqueles pretos... — Cale-se! A interrupção veio de Cael, que sentiu como se cada uma daquelas palavras machucasse sua própria alma. Era quase inacreditável o poder que Esmeralda exercia sobre si. Não sabia sequer o porquê sua ligação com ela era tão intensa. Mas, jamais ouviria tamanha afronta em silêncio. — Como você ousa...? A revolta de Iran, ao voltar-se para o filho, foi novamente interceptada por Cedric, que pareceu exausto. — Quem é o Rei de Bran? A indagação, forte e viril, fez Iran volver-se


novamente para o moreno. — Cedric... — Responda-me — exigiu. — Quem é o Rei de Bran? Iran sentiu as mãos tremerem. — É você, meu filho. — Quem tem o sangue sagrado e inquestionável de Bran nas veias? O príncipe pai de Masha mordeu os lábios. — Sabe a resposta. — Mas, quero ouvi-la, meu tio. Iran assentiu. — É você. — E quem me convenceu a se casar com uma mashiana? — Eu. — Então, por todos os demônios do submundo, por que estamos discutindo? Iran baixou a fronte. Apesar de estar nitidamente revoltado, ele curvou-se levemente e afastou-se, como se recusasse a discutir com seu amado Cedric. Contudo, antes de sair, aproximou-se de Cael. — Aguardo você na choupana para conversarmos,


meu amado filho. Cael fechou os olhos, apertando-os fortemente, antevendo o horror que viria. Alheio a tudo aquilo, Cedric simplesmente voltouse aos seus papeis, como se a discussĂŁo jamais houvesse acontecido. ***

Esmeralda encarou-se no espelho. O vestido bonito, cor de rosa, com rendas brancas, parecia perfeito para ela. Adorava cada uma das roupas, todas feitas para uma rainha, carregadas de uma beleza que a tornava ainda mais bonita. Sorriu. Sequer acreditava no que havia acontecido. Cedric, seu amargurado marido, que sempre aparentava detestĂĄ-la, havia lhe dado um presente inesperado. O quanto mais conseguiria arrancar dele? Talvez, a alforria dos escravos? Talvez, leis mais justas para as mulheres? Entretanto, algo a incomodava: os motivos. Por que Cedric havia lhe ajudado? Ouvido? Amparado, enquanto chorava? O que havia nos olhos dele que a deixou tĂŁo


indefesa? Balançou a face, afastando-se do espelho e fugindo dos pensamentos. O amor era uma fraqueza. Uma fraqueza que a afastava do seu principal alvo. Vingança. Era para isso que ela nascera, era para isso que ela aceitava aquela farsa. Apaixonar-se pelo rei era uma armadilha que não podia cair. Até porque, o quão intenso seria o ódio do homem por ela quando lhe descobrisse as origens? Aproximou-se da janela. O ar puro tocou seu rosto e ela sentiu os olhos nublando-se pelas lágrimas. O rosto deformado não a incomodava. Mesmo que dissessem que ele era bonito, ela nunca se importou com as aparências. O que realmente lhe chamava a atenção era os olhos negros, inquietantes, que lhe faziam ferver. E, quando se deitavam na cama, ele era carinhoso e acolhedor. Provavelmente, tocara em algum ponto de sua alma, e ela precisava afastar-se disso, antes que não resistisse e acabasse amando-o. Amar Cedric... E se...? Negou com a face. Não, não estava apaixonada! — Rhianna! — o tom alto chegou-lhe aos ouvidos e ela correu até a porta.


Sorriu para Kian, feliz pela interrupção dos pensamentos nebulosos, mas o sorriso logo sumiu, ao perceber seu estado. — Aconteceu alguma coisa? — Iran levou Cael para uma choupana na floresta. A explicação devia ser clara, mas não foi. Confusa, ela deu os ombros. — E? — E ele vai matá-lo! ***

Iran de Masha era um monstro! Mesmo Lugus, tão defeituoso, não se assemelhava aquele desgraçado de sangue vermelho. Lugus, ao ser desafiado por Randu, o exilou e desertou, mas não o tocou. Esses pensamentos tomavam o coração da imunda, enquanto ela cavalgava com vigor em direção ao local indicado por Kian. Desde que desembarcara, estava sem a espada. Sabia que Cael a havia guardado para ela, mas desconhecia o lugar. Mesmo assim, caso necessário, ela daria um jeito de destruir aquele desgraçado. As coisas


que descobrira por Kian pareciam inacreditáveis. Iran precisava ser contido. Apertou as pernas contra a sela, tentando se equilibrar. Fazia muitos anos que não cavalgava. Na infância, o irmão laçara um cavalo selvagem, e tentara domesticá-lo. Ele a ensinou a trotear e cavalgar, para o caso de um dia ela precisar fugir. Porém, a tristeza do animal por estar preso era tamanha que eles decidiram libertá-lo. Percebeu agora que não havia sido uma boa ideia. Não estava acostumada a andar tão rápido em cima de um animal, e ele quase a derrubou, enquanto avançava floresta adentro. Por fim, viu a carruagem real e o cavalo de Cael. Antes mesmo de o cavalo parar, ao sentir a rédea ser puxada, ela já saltava de cima e corria em direção ao lugar. — Cael? — gritou, tentando aparentar naturalidade. — Pai Iran, estão aí? Houve silêncio. Ela não precisou ver para saber que o rosto de Iran devia estar sendo tomado pelo espanto e pelo assombro. — Rhianna? O mais velho surgiu à porta, abaixando as mangas da camisa de linho, observando-a estranhamente.


— O que faz aqui? — Estava cavalgando e vi a carruagem. Reconheci o símbolo, soube que era o senhor. Seu sorriso era o mais doce possível. Iran estudou-a por alguns segundos, e então sorriu, em resposta. — Estava tendo uma conversa de pai e filho com Cael, mas já acabamos — disse, afastando-se da porta, e caminhando em direção dela. Ficaram frente a frente. — Meu amor — ele murmurou, tocando seus dedos. — Nunca fique contra mim, porque não me queira ter por inimigo. — Por que diz isso, meu pai? Eu o amo! — mentiu, descaradamente. — Cresci sem pai, sabe disso, assim como Cedric. O vejo da mesma forma que meu marido o vê. Nosso amor pelo senhor é forte, poderoso e verdadeiro. Iran assentiu, mas ela não soube definir se ele havia realmente acreditado em suas palavras. Por fim, desviou-se dela e foi até a charrete. Em segundos, punha-se em direção do castelo. A se ver sozinha, por fim, ela correu até a choupana. Encarou Cael, que estava sentado em um banco, esfregando os pulsos. Suspirou aliviada ao percebê-lo


bem. — Ele não conseguiu? — Você chegou na hora que ele preparava-se para me surrar — contou, sem constrangimento. — Como soube? — Kian me procurou. Cael baixou a face, constrangido. — Por que se submete a tal coisa? Defenda-se! — As leis sagradas... — Fodam-se os deuses! — ela gritou, segurando seus ombros. — Por acaso é Bran, Masha ou Cashel que se submetem a essa tortura? O ruivo apertou seus dedos, tentando conter a gana feminina. — Não me atrevo a desafiar as leis, Esmeralda. Quando estiver diante Deles no juízo, quero saber que fui alguém que se esforçou por cumprir o que nos é ordenado. Ela deu os ombros. — Eu não me importo — afirmou, e era verdadeira. — Eu matarei o homem que é meu pai. E irei rir com sua cabeça nas mãos. E se os deuses se objetarem, cortarei a cabeça deles também. Cael podia ter se irritado, brigado ou rido da frase. Porém, tudo que fez foi puxá-la para seus braços e


compartilhar de um singelo abraço. ***

— Hoje eu te quero nua! A frase fez a mulher erguer os olhos do livro que segurava. O marido parecia determinado e afobado a sua frente. — Nós já falamos sobre isso — ela comentou, indiferente. — Mas... — Cedric, eu te disse que sinto vergonha. Ainda não estou pronta. Diante da resposta antipática da esposa, Cedric deu-lhe as costas. Muito lhe incomodava que ela não fosse gentil e submissa como Lyn, porém, subitamente deu-se conta de que até gostava da faceta. Repentinamente, volveu-se para ela, observando-a ler. Como teria sido se Lyn não tivesse cancelado o cancelamento e ele jamais conhecesse aquela ruiva avassaladora? Não gostou dos sentimentos que lhe tocou. Amava Lyn, não é? Amor não se apaga nem se esquece. Rhianna era apenas a mulher escolhida pelo tio para lhe dar filhos, sucessores do trono. Nunca a amaria...


Desviou o olhar da visão apetitosa e voltou-se para o espelho. Era um monstro, com aquela face derretida, marcada a ferro quente. Contudo, ela não parecia se incomodar. Por quê? Subitamente, sentiu os braços femininos cercando sua cintura e o apertando. Um abraço... Será que ao vê-lo diante do espelho, ela se apiedou? Sentiu o sangue ferver, e quis afastá-la, mas simplesmente não conseguiu. — O que fez por mim... — o sussurro feminino lhe chegou aos ouvidos, fazendo-o se arrepiar. — Ninguém nunca importou. Volveu-se para ela e percebeu as lágrimas. Mais uma vez, a surpresa e a constatação de que sua face não lhe incomodava. — Fala dos imundos? — São pessoas. — Manchadas pelo sangue negro... — Tem ideia do quanto é horrível que diga isso? O sangue casheano é vermelho como o teu e o meu. São pessoas, como qualquer um de nós. Aposto que se não soubesse da origem de alguém, jamais saberia a diferença entre um imundo e alguém de sangue puro. Esmeralda preparou-se para a guerra verbal, mas tudo que Cedric fez foi sorrir. — Uma Rainha que luta pela causa de quem


jamais teve alguém que lutasse por eles... — murmurou. Esmeralda soltou-o e voltou-se para o leito. Estava impaciente, não apenas porque não era verdadeiramente a Rainha e sim porque era uma imunda. De repente, Cedric saber seu segredo fez com que lágrimas surgissem aos seus olhos e a garganta secasse. Ele jamais a odiou, antes. Claro, no início do casamento, há algumas semanas, a desprezava, mas nunca viu ódio. Agora, temia aquele sentimento. Mais que isso, ela não o queria. Pela primeira vez, admitiu a si mesma que adoraria ser lady Lyn. Adoraria receber o amor daquele homem firme e justo. Mas, jamais conheceria essa sensação, não apenas porque Cedric ainda pensava na exnoiva, mas principalmente porque não sobraria nada da amizade que conquistara dele quando o Rei soubesse o que de fato ela era. Abraçou a si mesma, protegendo os seios. Seus seios pretos... Repentinamente, outro abraço a tocou. O quão emotivos estavam naquele dia? — O que me considera? Uma tola por pensar nos imundos? — questionou, fechando os olhos. — Estranhamente corajosa — ele riu, beijando sua têmpora.


— Está me elogiando ou caçoando? — Estou dizendo que estou feliz porque o destino me trouxe você. Volveu-se para ele, espantada. — Você ainda a ama, não é? — a pergunta foi à queima-roupa. — Por que brinca assim com meus sentimentos? Não somos amigos? — Estou casado com você — ele defendeu-se. — Mas, é nela que você pensa ao se deitar comigo! Por que estava com tanta raiva? Porém, não conseguia evitar. — É você que apaga as luzes, não sou eu! — Sabe por que apago as luzes! — Isso é o que diz. Porém, a vida me ensinou a nunca acreditar nas palavras de uma mulher. Percebeu os olhos femininos arregalarem, como se tivesse recebido um bofetão. — Escute — prosseguiu, não querendo animosidade entre eles. — O que importa o meu passado? Eu me casei com você e faço dos meus dias tentativas — muitas vezes fracassadas — de ser um bom marido. Estou tentando controlar meu temperamento explosivo, até mudei leis porque me pediu. Pode, pelo menos, tentar ser


mais pacífica? Aquele lago esverdeado encheu-se de lágrimas. — Não! — implorou. — Não comece a chorar! — Não mereço você, Cedric... A frase o assustou. — Ficou louca, mulher? Subitamente, a gargalhada. Mais repentino ainda, a forma com que ela puxou-o pela camisa e lhe tomou os lábios. Um pouco mais tarde, enquanto ele apagava as velas e se deitava com ela na cama, notou que Lyn não passava de uma lembrança, porque era no corpo da sua esposa que ele se afundava, apaixonadamente.



Capítulo 18 A esmeralda. — Ván[1]? Que nome bonito para uma ilha. Kian assentiu, sorrindo. Estavam novamente no jardim real. Esmeralda adorava o lugar, e pouco a importava se ele havia sido dedicado à antiga noiva de Cedric. Lyn não estava ali para aproveitar as flores e ela não se fez de rogada. — Sim, dizem ser uma terra muito abençoada, apesar de ficar no limite do mundo. Pertenceu a avó materna de Cael. Uma vez ouvi, à surdida, Iran dizendo que o baniria para lá. — Baniria? — Esmeralda arqueou as sobrancelhas ruivas. — Por que motivo? — Ele odeia o filho. A explicação parecia simples, mas era terrível. — Enfim, Cael uma vez foi para lá, ainda pequeno. Disse que existem muitas árvores frutíferas, e muitos animais, livres. É um lugar perfeito e maravilhoso. — Aproximou-se do ouvido dela, como se a contar um terrível segredo. — Alguns imundos fugiram para lá. Cael


sabe, mas diz que é lenda, que são boatos, e nunca ordenou que alguém os retirasse de lá. Esmeralda sorriu. — Cael é maravilhoso — ela sorriu ao amigo, sentindo o seu amor pelo ruivo aumentando ainda mais. — Eu sei disso — o outro deu os ombros, triste. — Ainda estão brigados? — inquiriu. — Ele nunca vai me perdoar — confessou. — Meu pecado é grave demais. — Pecado? Não entendo — ela murmurou. — Pelo que sei, desde que cheguei, tudo que faz é tentar ser o melhor amigo... — Eu o amo — disse, se supetão, interrompendoa. — E? A frase automática dela o assustou. — Como assim, “e”? É uma vergonha, um erro, um... — Olhe para mim, Kian — segurou seu rosto. — Você sabe o que sou. Acha mesmo que eu o condenaria? Enfim, ele sorriu, aliviado. — Não queria nascer assim — admitiu. — E eu não queria ser imunda. Mas, você e eu não temos escolha.


Assentindo, Kian suspirou. Era a primeira vez, desde que se lembrava, que ele estava confortavelmente aliviado. — Kian — o som feminino fê-lo olhá-la. — Como era Cedric, antes do acidente? — Fisicamente? Ela assentiu e completou: — E psicologicamente. — Bom, ele era doce e gentil — afirmou. — Nunca elevava a voz, nunca se irritava. Fazia todas as vontades de Iran sem pestanejar. E fisicamente era muito belo. Provavelmente, o mais belo dos homens. Apesar de seu rosto deformado, o corpo dele é uma perdição, não? — riu com ela, cúmplice. — Então, pense naquele corpo com um rosto perfeito. — Gostaria de saber como ele era — admitiu. — Não que me incomoda o homem que ele é hoje — falou, francamente. — Mas, apenas por curiosidade, gostaria de saber o que a tal Lyn tinha nas mãos. Kian riu. — Basta olhar os quadros do corredor dos quartos. Nunca os percebeu? Abriu a boca, pasma. — Não! Quer dizer, eu os via, mas nunca parei para observá-los com atenção.


O homem se ergueu. — Então, o que estamos esperando? ***

— Cada Rei e Rainha de Bran, Masha e Cashel está aqui — ele disse, indicando os quadros. — Dizem ser uma forma de perpetuar o respeito pelo sangue dos deuses, já que os reis são descendentes diretos. — Explicou. — Mesmo Lugus, apesar de ter provocado uma guerra, tem seu rosto estampado nesse corredor. Pararam diante do quadro do homem negro, de postura autoritária. Kian a observou, e viu as lágrimas camufladas. — Ele é o pai de Randu... — explicou. — Sente muita falta de seu irmão? — Tento não pensar nisso. Só quis dar a ele uma chance melhor. Uma oportunidade de ser normal. Kian a puxou levemente pelo braço, diante da mulher negra ao lado de Lugus. — Seu irmão é filho de Ester? — indagou. — A Rainha? — Não — negou, evitando os detalhes. — Minha mãe, Brione, era uma aldeã.


Kian prosseguiu a caminhada. — Atho — o homem do quadro era simplesmente esplêndido. — Bonito, não? Com certeza, era incrível. — E, por fim, Cedric. O rapaz desenhado no quadro em nada se assemelhava ao homem que se deitava com ela na cama. De um rosto maravilhoso, ele era extremamente bonito e de aparência doce. Estranhamente, aquilo a confortou. Aquele Príncipe não lhe atraia. Provavelmente, tão bonito assim, era, na mesma medida, superficial. O homem sofrido, abandonado, que foi entregue a ela, conhecia a sensação da dor e, por isso, conseguia se interligar a Esmeralda, como ninguém mais. — Aqui a mãe de Iran — Kian a chamou, no final do corredor. — Você é muito parecida com ela. Esmeralda aproximou-se do quadro, e sentiu o sangue gelar, ao ver o objeto. — Iguais, né? — ele questionou, ao perceber o assombro. Porém, não era para o rosto semelhante ao seu que ela se fixou. No busto da senhora lady de Masha, um medalhão ostentava um bonito pingente de esmeralda. Não qualquer um, mas exatamente aquele que ela possuía, guardado dentro de um bolso costurado de um dos


vestidos que ganhara de Cael. — Esse colar... — A Esmeralda de Masha — Kian contou. — É dado ao Rei ou Rainha, durante a coroação. É uma relíquia. — Não vi Iran com ele. — Porque Atho o arrancou do amigo, durante a guerra dos mil dias — contou. — Parece que Iran estuprou uma mulher, prática que Atho não aceitava. Então, Atho entregou o cordão à essa coitada, prometendo justiça. Porém, Atho morreu durante a viagem e, como você pôde perceber, aquela mulher jamais foi vingada. Kian não sabia, mas Brione de Cashel seria vingada. E em breve. ***

— Você — a mulher gritou, fazendo com que o guarda real arregalasse os olhos. — Me dê sua espada! O guarda pareceu assustado. — Mas, minha Rainha... — Agora! Estendendo a ela sua arma, viu a mulher empunhando o objeto com técnica. Ficou pasmo, mas


evitou tecer qualquer comentário referente aquilo. Simplesmente curvou-se ao vê-la desviar-se dele e caminhar, em passos retos, pelos corredores. Os olhos esmeralda buscavam um rosto. Um rosto para ela mais que conhecido. Pelo canto dos lábios, riu, percebendo a bondade de Cashel, que deu a ela a chance de se vingar tão rapidamente. Quem diria que Iran, o desgraçado que usara sua mãe, estava tão ao alcance de suas mãos? Diziam que o Príncipe pai era forte, mas Esmeralda era a encarnação da maldade. Ela era o ódio latente, a vingança em forma de mulher. Ela largou seu irmão, largou uma vida, aceitou-se assumir como outra mulher e até se deitou com um homem que nunca vira antes, em nome da cabeça de Iran. E agora a teria. Subitamente, estancou. Diante dela, Cedric surgiu. Apesar do rosto coberto pela máscara, ela percebeu a dúvida estampada nos olhos escuros. Ora, não era comum ver uma mulher com uma arma, e ela quase a ergueu contra ele, exigindo que saísse de sua frente. — Mulher! — Por que diabos ele sempre a chamava assim quando estavam fora do quarto? — O que faz com essa espada? Diante de sua mudez, Cedric insistiu: — Mulher! Está me ouvindo?


De repente, tudo se elucidou em Esmeralda. Os motivos de ela estar ali, casada com o Rei. Um nome emergiu no pântano escuro de seus sentimentos, e ela visualizou Kian lhe contando sobre as torturas que Cael sofria. Cael... Cael era seu irmão! Iran havia destruído sua vida, roubado dela o direito a liberdade; contudo, fora pior para Cael. Obrigado a viver ao lado daquele monstro, sendo humilhado e espancado mais vezes do que Esmeralda seria capaz de imaginar. Conhecendo agora Iran como conhecia, compreendia mais que nunca os motivos daquela vingança. Cedric era um caminho para atingir Iran. Cael percebera aquilo com o tempo, Esmeralda agora via mais nitidamente possível. Baixou a espada. — Estava procurando você, meu marido — murmurou. — Achei tão belas as espadas dos guardas. De que material é feito? Provavelmente, Cedric a considerou uma idiota por questionar aquilo. Ou, simplesmente, não se ateve ao comentário, pois era de uma mulher e, como todo bom homem dos reinos, ele imaginava que as mulheres não valiam uma explicação.


— O que está acontecendo com você? O tom não era recriminador ou desprezador. Era preocupado. — Como? — Está nervosa. E o que faz com essa espada? Iria atrás de alguém? Alguém a ofendeu, minha Rainha? O olhar cheio de gentileza a comoveu. — Não é nada — riu. — Bobagem feminina. — Vou devolver a espada ao guarda. A vingança de Esmeralda devia esperar. Até porque, Cael vinha em primeiro lugar. E, bem da verdade, caso seu inesperado irmão se saísse bem naqueles planos, seria o começo da queda de Iran. Era melhor que o desgraçado sofresse bem antes de ser morto. — Deixe isso aí — Cedric retirou a espada de suas mãos e lhe ofereceu o braço. Um tanto reticente, ela aceitou. — Estava pensando — ele começou a andar, ignorando o assunto passado — em viajarmos para Cashel. — O quê? — Esmeralda ficou nitidamente surpresa. — Você não gostaria de uma lua de mel, Rhianna? O assunto pareceu tão inesperado, que ela se viu


sem palavras. Chegaram ao rol de entrada do castelo, e se encararam. — Isso significa o quê, Cedric? — indagou, perturbada. — Nutre sentimentos por mim? — É minha esposa, e lhe tenho em grande estima. — Mas, não me ama. Por que lágrimas surgiram em seus olhos? Quando, em nome de Masha, ela já havia sido amada antes? Por que então não ter os sentimentos daquele homem lhe doía tanto? E, mesmo que ele viesse a amá-la, não seria a Rhianna, uma pura? Cedric de Bran era um Rei, descendente direto do Deus mais poderoso dos reinos. Ele nunca amaria uma imunda. — O que eu sinto por você é tão diferente do que sentia por Lyn — disse, contrariado, envergonhado, parecendo que a confissão doía demasiadamente. — Mas, não despreze meus sentimentos, porque não são banais. Assustou-se perante a frase. O quanto machucaria o coração daquele homem, ao descobrir a verdade? Cedric merecia aquilo? Contudo, antes de conseguir meditar direito no tanto que suas decisões mexeriam com a estrutura da vida em Bran, uma mulher rompeu o castelo, correndo em direção ao homem grande e forte.


Atirou-se em seus braços, apertando-o fortemente. Esmeralda assustou-se com sua interrupção, pois não perceberá ninguém à vista. Só quando ela desvencilhou-se dos braços masculinos de seu marido, foi que lhe notou a beleza do rosto, adornado por longos, lisos e macios cabelos negros. A mulher chorava, secando as lágrimas com a manga longa de um vestido branco, com pequenas flores vermelhas. Era com certeza a mais bela jovem que os olhos esmeralda já haviam visto. Porém, nada a atingiu mais ao ouvir o nome da jovem, ser sussurrado, como um pecado secreto, pelos lábios do homem que ela já sabia ser importante demais para ser ignorado. — Lyn!


Capítulo 19 Lyn Cedric observou as colinas ao fundo. A visão da enorme janela da sua sala real era uma das mais magníficas dos três reinos. Ao longe, era possível ver a imensidão verde, adornada por um bonito céu azul. O dia estava animador. O sol adentrava pela janela, cruzando a cortina clara e tocava o chão de madeira lustrada. O ar, puro, vinha de encontro com o balanço em seus cabelos negros, que caiam, como franja, sobre os olhos obscurecidos. Abandonando a visão, ele voltou-se para a mulher sentada. Lyn mantinha-se com aquela costumeira posição frágil, as mãos adiante os joelhos, como se estivesse muito envergonhada e machucada. — Você se casou — ela murmurou. Seu tom era praticamente uma acusação. Cedric abriu a boca, pasmo. — Você me abandonou e, em menos de um mês,


estava noiva de outro. O que queria que eu fizesse? Por fim, a morena se ergueu. — Cedric, eu estava confusa, machucada, assustada — justificou-se. — Foi uma loucura aceitar o noivado com outro homem. Por sorte, percebi a tempo que meus sentimentos por você são fortes... — Abandonou-me no pior momento da minha vida — o tom dele não era raivoso, apenas franco. — Não tem moral para me cobrar nada. Por fim, respirou fundo. Estranhamente, a visão daquela mulher não mexeu com seus brios como imaginou que aconteceria, caso a visse novamente. A beleza de Lyn permanecia inalterada, mas era a visão dele que se modificou. Não mais a achava acima do bem e do mal, passou a lhe ver os defeitos e, aquilo, destruiu, por fim, o altar simbólico que havia a colocado desde que se conheceram. — Por que veio? — Porque esse casamento com a mashiana é um absurdo — ela reclamou. — Ela não tem sangue de Bran! Além disso, você não a ama! Cedric não negou. — Casei-me com ela — retificou. — Um casamento é um acordo inviolável. — Mas, não consumou o casamento —


perseverou. — Pode conseguir uma anulação. Ele enrubesceu, sem querer. — Consumei — afirmou. — Meu sangue se uniu ao dela, tanto na cerimônia quanto no leito. Viu lágrimas. Incomodou-se. Pareciam falsas, e o pensamento era assustador. — Mentira! — Lyn gritou. — Nunca amou outra mulher. Somente a mim! Sou a única a quem deseja. Agarrando-se nele, como se pudesse, com a força de suas mãos, convencê-lo de voltar para ela. — Lyn, eu sou um homem de palavra — insistiu. — Muitos sacerdotes viram com maus olhos seu matrimônio. É o Rei! Sabe que pode conseguir uma anulação se dizer que Bran assim o quis. — Quer que eu minta? — Quero que volte para mim! — implorou. — Eu o amo, não posso viver sem você. Contudo, Cedric descobriu que podia viver sem ela. Encarando-a, percebeu que ainda gostava dos olhos negros e doces, e do tom da sua voz. Porém, apesar de ser difícil admitir, ele não se sentia disposto a anular sua união. Rhianna era louca, falava alto, chorava e ria nos momentos mais incomuns e se recusava a ficar nua para ele. Mesmo assim, ela fazia seu sangue ferver como nunca e gostava da maneira como não precisava ficar buscando


sua aprovação. Definitivamente, Rhianna e ele se entendiam. De muitas formas. Na vida e na cama. Aquilo bastava, por mais estranho que parecesse. — Precisa voltar para sua casa... — Vai me mandar embora? — Lyn inquiriu. — Meu irmão, Angus, veio comigo. Expulsará a nós dois? Claro que ele não faria aquilo. Respeitava todos os familiares de Lyn, incluindo-a. — Pretende ficar por uma temporada? — O tempo suficiente para que volte para mim. Negando com a face, Cedric simplesmente saiu da sala, deixando-a sozinha. ***

Ninguém costumava ir à torre. Contudo, Cael soube que era lá que Esmeralda se encontrava, assim que Kian o avisou da presença de Lyn no castelo. Era como um imã, magnetizando os ruivos. Ele quase podia ouvir os pensamentos dela e, alarmado, notou-os próximo do ciúme. — Não deve amá-lo — disse, assim que a viu. — Quando tudo acabar, Cedric vai anular o casamento, e Lyn


será sua esposa. — Você planejou isso? O ruivo negou. — Não, jamais. Sabia que ele anularia a união, mas imaginei que se casasse com outra mulher. Nunca me passou pela cabeça que Lyn fosse desistir de seu casamento e corresse atrás de Cedric. Esmeralda estava sentada em um banco, próximo da janela. Cael aproximou-se e sentou-se ao seu lado. Ela sentiu um estranho formigamento nas mãos. De repente, deu-se conta de que eram irmãos. Sangue do mesmo sangue. Um dia poderia contar aquilo a ele? — Esmeralda... — ele começou, mas foi interrompido. — Eu sei o que sou, Cael — disse, baixo. — Cedric jamais me amaria, mesmo que Lyn não existisse. Apenas — sorriu, triste —, de alguma forma acreditei que poderia... O silêncio despertou a curiosidade masculina. — O quê? — Passei a acreditar num sonho. Em ter uma família. Um marido e filhos. Apenas isso... O sorriso confortador de Cael fê-la desviar o olhar adiante, para o sol que radiava no céu,


— Eu posso ser sua família — ele se ofereceu, rindo e abrindo os braços. Esmeralda riu, sentindo os olhos desanuviarem. — Sabe — Cael murmurou. — Provavelmente não vou me casar. Meu pai fará de tudo para que eu não assuma o trono, e passo os dias pensando se uma guerra para assumir o que é meu de direito realmente vale a pena, então... — Claro que vale a pena! — ela retrucou. — Pense na quantidade de vidas que vão se perder — Cael a lembrou. — Meu pai quer que Cedric seja o rei absoluto. Sinceramente, ele seria um bom rei para Cashel, e não seria difícil convencer os mashianos da mesma coisa. Então... Por que não ir embora, simplesmente? Esmeralda pareceu pensar por alguns segundos. Ora, definitivamente, não havia vontade em machucar Cedric. Se ele quisesse Lyn, o caminho estaria livre. Não se vingar de Iran, em troca de uma vida ao lado de Cael, não era de todo mal. Não! — Por que não ir embora? — ela repetiu. — Porque temos muito a compensar. Eu não vou desistir dos nossos planos. — Segurou suas mãos. — Seremos uma família, Cael, mas só depois do homem que nos destruiu pagar seus pecados.


Ele riu. — Homens — corrigiu. A mulher enrubesceu. — Sim, é claro... Dos homens que nos destruíram os sonhos. ***

Cedric procurou pela esposa por todo castelo. Desde a entrada inesperada de Lyn, tudo que ele pensou foi em falar com a ex-noiva e resolver qualquer que fosse os problemas que a presença dela pudesse ocasionar. Não se ateve, naquele momento, aos olhos chocados de Rhianna. Especialmente porque não havia promessas entre eles. Sequer, amor. Havia simplesmente compromisso, em nome do Reino. E ele a buscava para destacar isso. Cedric era, acima de qualquer coisa, um Rei devoto e responsável, um homem honrado que não quebraria sua palavra. — A Rainha? — indagou a um dos guardas. O homem apontou a torre. Ninguém ia lá, que ele soubesse. Apesar da vista magnífica, a escadaria extensa desanimava a qualquer um. Mesmo assim ele direcionouse para a torre.


Subiu de dois em dois os degraus, ansioso para deixar tudo às claras. Sua vida com Rhianna estava bem encaminhada e não desejava que nada se opusesse a isso. Contudo, ao entrar na sala única da torre, encontrou sua esposa e Cael de mãos dadas. Não havia nada demais no ato, ao contrário, assemelhava-se a um conforto gentil. Mesmo assim, aquilo o enervou e ele sentiu o sangue queimando nas veias. — O que está acontecendo aqui? A voz saiu rude, irritada, alta. — Estávamos conversando — Cael explicou, como se ignorasse sua zanga. Soltaram as mãos. Cael era o irmão que ele não tinha. Não podia acreditar em qualquer tipo de ato que lhe trouxesse desonra, mas não conseguiu controlar o temperamento e se viu, em seguida, ordenando ao outro: — Saía! Quero falar com minha esposa. O ruivo se ergueu, fazendo uma reverência. Em segundos, desaparecia. Cedric fechou a porta da torre, não querendo ser ouvido nem chamar a atenção. Buscou o olhar da ruiva, mas ela lhe desprezou, volvendo os olhos para o céu. — Rhianna — começou —, eu quero te explicar...


— Eu não quero ouvir nada! — ela rugiu. Em um segundo, postava-se diferente do momento anterior, levantando-se, avançando contra ele. — Sua amada Lyn voltou! Acha que eu sou cega? Que não percebo que agora sou um estorvo à felicidade de ambos? Ele tentou falar, mas ela avançou mais, dando-lhe pequenos socos no peito. — Idiota! Ela te abandonou e você ainda a... Subitamente, calou-a com um beijo. Porque, definitivamente, nada mais faria aquela mulher calar a boca. Sentiu Rhianna tentar desvencilhar-se de seus braços, mas não a permitiu. Apertou-a forte contra si, impulsionando o próprio corpo contra aquele, frágil. Céus, como era perfeita... O corpo perfeitamente encaixada ao dele... Quase sem sentir, levou-a até uma parede. Não conseguia falar, tudo nele era paixão. Beijou-a novamente, enfiando a língua naquela boca delicada, desfrutando do gosto de cravo que ela tinha. Por fim, sentiu-se duro. Sempre acontecia, quando era com ela. E, pelo tempo que demoraria até anoitecer, ele não aguentaria esperar. Mais uma vez, a imagem de Lyn, mais precisamente a diferença entre elas, o tocou. Viveu ao


lado da morena por anos, sem sequer ultrapassar um simples beijo. Nunca avançou, nunca sentiu-se atiçado como ao lado daquela mulher ruiva e enigmática... Então, fez a maior de suas loucuras. Mesmo sentindo-a assustada com seu furor, levantou o vestido até a cintura, erguendo-a, apoiando-a na parede, e deixando-a totalmente a sua mercê. Enquanto uma das mãos acariciava os seios por cima do vestido, a outra desceu a própria calça. Retirou seu mastro duro, e logo o guiou ao centro feminino. Rhianna arquejou diante de sua penetração. Mesmo assim, era tão deliciosamente delicada em seus braços que ele sentiu-se contorcer. Meteu uma vez. Ouviu o gemido baixo, acanhado. Quis então, ouvir seus gritos, e não resistiu em provocar-lhe mais. Afastou o quadril. Avançou. Uma... duas... — Mais... — ouviu, o som baixo em suas orelhas quase fê-lo desfalecer. — Mais forte... Estremeceu, enquanto se afundava mais e mais no corpo delicado, numa dança carnal ritmada pela melodia dos seus sentimentos embaralhados. Por fim, sentiu-se explodir dentro dela, melando-a com sem sêmen. Soltou-a, o suficiente apenas para afastar o


membro já esgotado e colocá-lo na calça. Ouviu a respiração irregular, mas, não conseguia se focar inteiramente em tudo que havia ocorrido. Desde quando era tão impulsivo? — Espero ter sido um bom consolo — subitamente, a voz feminina o tirou do torpor. — Com certeza não chego aos pés da sua Lyn, mas pela forma como gostou e gemeu, ao menos lhe dou alguma satisfação. Encarou-a. Por que demônios estava nervosa e irritada? Não havia lhe provado que não trairia sua confiança? — Eu estou aqui, com você — afirmou. — Seu amor, está comigo? A indagação pareceu assustar a ambos. Percebeu que a frase escapou dos lábios dela, sentiu o quanto ela pareceu nervosa por ter expressado tal ideia. — O seu está? — indagou o rei, no entanto. Viu-a pestanejar. Irritou-se. — Lyn é minha convidada, respeito e admiro seus familiares. Além disso, foi minha amiga por muitos anos. Contudo, não é mais minha noiva. Foi com você que eu me casei. Espero que fique claro que não quero conflitos dentro do castelo.


Cedric quase podia ler seus pensamentos: “Autoritário! Mandão!” Mas, não voltou atrás. — Fui claro?— seu tom foi excessivamente rude. A respiração rápida deixava clara que ela adoraria voar no seu rosto e enchê-lo de sopapos. — Responda, Rhianna! Ela deu dois passos em sua direção. Os narizes quase grudados. — Se ela me provocar, a farei comer as palavras — ameaçou. — E, caso você tente me impedir, quem sofrerá é vossa majestade. Depois disso, deu-lhe as costas e saiu da torre, andando de queixo erguido, como uma rainha; que, aliás, o era.


Capítulo 20 Ciúme. Randu uma vez dissera a sua irmã algo que ela marcou no coração e jamais esqueceu: “O ciúme faz de um pequeno detalhe, um grande acontecimento”. Esmeralda não se recordava do porque da frase, nem do momento em que foi dita. Provavelmente, conversavam a respeito de Lugus, ou das moças da aldeia, em época de casar. Por fim, a ruiva riu e disse a si mesma que jamais passaria por essa situação, visto que ela se amava mais do que a qualquer um, e em seu íntimo não havia espaço para se sentir diminuída. Contudo, ao entrar na sala de jantar naquela noite, sentiu as mãos tremerem e os olhos se arregalarem ao perceber Lyn sentada em seu costumeiro lugar, ao lado direito de Cedric, o espaço reservado à consorte. Tentou ignorar. Tentou, é verdade. Respirou fundo, pensou em paisagens e coisas belas. Não funcionou. Então, pensou na sua vingança, motivo de estar ali. O


sangue esquentou ainda mais e ela não conseguiu evitar os passos retos em direção à moça. À mesa, Cedric estava compenetrado, conversando animadamente com Iran e outro homem braiano, sentados à esquerda do rei. Ao lado de Lyn, Cael parecia pensativo e constrangido. Mas, era na braiana bonita que ela centrou os olhos, fuzilando-a, sem nada dizer. — O que quer, querida? — Lyn indagou, olhandoa com desprezo. Impressão sua ou a ex-noiva de Cedric a tratou como uma serva? — Está no meu lugar — avisou. — Sempre me sentei aqui. — Sim, quando era noiva de Cedric — concordou. — Agora, é o meu lugar. Os homens interromperam a discussão, volvendo o olhar para a dupla feminina. — Esse é o lugar da Rainha — Cael interviu, solícito como sempre. — É só um lugar — Lyn riu. — Mas, então, você é a Rainha? — apontou o dedo para ela. Esmeralda estava cada vez mais nervosa. Lembrou-se mais uma vez dos conselhos do irmão Randu. Ele sempre dizia para ela contar até dez.


— Sim — respondeu. — Só não sabemos por quanto tempo, não é? Um... dois... — Lyn! — o outro homem, que Esmeralda não conhecia, ralhou. — Só estou sendo franca, Angus, meu amado irmão. Olhe para ela — volveu-se novamente para Esmeralda. — Não devia ter tentado roubar o que é meu, de direito... Três... Quatro... — Rhianna não roubou nada, Lyn — Cedric pareceu só então se dar conta do tom da outra. — Todos nós aqui sabemos os motivos do meu casamento. — Sim, todos nós sabemos que se pudesse escolher, jamais teria desposado uma criatura tão... lastimável. Cinco... Seis... Ah, vá para a puta que pariu! Antes mesmo que Lyn conseguisse voltar-se para Cedric, a fim de dar ao homem seu risinho debochado, ela foi agarrada pelos cabelos e puxada da mesa. Foi tudo tão impressionantemente rápido que a braiana só percebeu que estava esborrachada no chão quando a dor por um tufo de cabelo ter sido arrancado lhe despertou os sentidos. — Por Bran! — ela gritou. — Essa mulher é louca?


Esmeralda não respondeu. Até porque, já havia perdido os sentidos e o autocontrole. Sentou-se em cima dela e passou a lhe desferir tapas no rosto, um atrás do outro, até que foi puxada de cima da outra, por Cedric. Não precisou ver o marido para saber que ele estava furioso. Mas, pior estava ela! Lyn, a doce Lyn dele, a havia insultado, e ele nada fizera para protegê-la. Empurrou-o, não querendo ouviu sua ladainha. Que ficasse ali para consolar a sua amada, e a deixasse em paz. Correu em direção ao nada, segurando lágrimas que despencavam antes mesmo de ela conseguir sair pela porta da frente. Diante de si, toda a imensidão do Reino. E ela não pensou em nada enquanto corria naquela direção, cruzando pela mata fechada, buscando voltar aos seus tempos de moça em Cashel, onde sua única preocupação era proteger-se dos que queriam matá-la. Porque daquele tipo de inimigo, ela tinha defesa. Mas, nem a mãe nem o irmão a ensinaram a se proteger da dor profunda que ardia no peito ao ver Cedric tão feliz ao lado de Lyn. Por fim, foi segura. Estava correndo tão forte que quase caiu no chão. Contudo, as mãos fortes a protegeram. Voltou os olhos. Era Cael. Ele sorriu para ela, num consolo que pareceu abrandar sua raiva. Então tudo que fez foi abraçá-lo e deixar que as lágrimas despencassem


em encontro ao peito masculino. — Por que se apaixonou, Esmeralda? — ele perguntou. — Aliás, como conseguiu? Cedric é um antipático de rosto desfigurado. — E eu sou o quê? — apertou-o nos braços. — Ele esconde o rosto, eu, minha condição — riu, triste. — O mundo é tão injusto. Ele ama uma mulher mesquinha, que nunca se preocupou com seus sentimentos. Quanto a mim, que seria fiel e leal a ele, não teria seu amor, mesmo que ele se dispusesse a isso. Os dedos do ruivo acariciaram seus cabelos. Ela fechou os olhos, sentindo que aquele carinho provinha de algo mais intenso que o amor. De repente, seu ódio por Iran diminuiu. De todo o mal que ele lhe havia lhe feito, compensara, ao menos, com uma coisa boa: ela tinha um irmão. — O que diabos está acontecendo aqui? Desvencilharam-se, rapidamente, como se houvessem sido pegos em flagrante. Entretanto, nenhum deles era culpado de qualquer que fosse o crime moral. Esmeralda mal teve tempo encarar o marido, quando o viu avançando contra Cael. Era quase cômico que Randu costumava dizer que ela era rápida como uma cascavel, mas que, naquele instante, foi Cedric que assemelhou-se ao réptil.


Pegando Cael pelo colarinho, ele o sacudiu, já erguendo o punho, preparando-se para uma briga. — O que está fazendo? — ela agarrou-se no braço do marido. Que ousasse tocar em Cael! Ela o surraria até perder as forças! — É amante dele? — Cedric o soltou e voltou-se para ela. Esmeralda viu a raiva transbordando o olhar do homem e recuou. — Você ficou louco? — É ou não é? Responda-me! — gritou. Ela pensou se devia voltar a contar os números, para evitar a raiva. Porém, aquela estratégia já tinha se mostrado nula anteriormente e de nada lhe valeu. Assim sendo, preferiu enfrentá-lo. — Cael e Kian são os únicos amigos que tenho nesse lugar! A frase o estancou. — Sou seu marido! O único amigo que precisa! — Quer me fazer rir, Cedric? — reagiu. — Sua amada Lyn me afrontou na sua frente há poucos segundos e você não nada fez! Enfim, percebeu o rubor.


— Ela não é “minha amada” — disse, por fim. — E eu não pensei que ambas chegariam às vias de fato. Você é completamente descontrolada! — voltou a atacála. — Acha que é o único que se casou por imposição? Não importa os motivos, eu também estou aqui sem o desejar. Nunca pensei que fosse me casar, muito menos com um homem que me despreza. Mesmo assim, faço meu melhor, a cada dia. E você? O que faz? Aceitei esse casamento, mas não vou tolerar ser humilhada! — Sou um bom marido! — devolveu. — Lhe dedico todo o meu respeito. — Obrigando-me a tolerar aquela Lyn? — Tolerar? Ela mal lhe disse umas cinco frases e você já se portou como uma... Calou-se diante do olhar furioso. — Com licença — Cael interrompeu, prevendo que aquela discussão não tem fim. — Cedric, Rhianna é como uma irmã para mim. Muito me ofende você se enciumar por um puro e fraternal abraço. Tanto o olhar do homem quanto da mulher se arregalou, diante das palavras. — Enciumar? – homem balbuciou. Com certeza, Cael havia tocado em um ponto


fraco. Contudo, Cedric não negou as palavras e simplesmente deixou-os em meio à mata, voltando para o castelo, bufando de raiva. ***

— Não ficará marcas, irmã — o braiano encarou Lyn, enquanto ela segurava um pano úmido contra o rosto. A morena suspirou, raivosa. Desde que rompera o noivado com um lorde do norte, ela preparou-se para encarar a esposa de Cedric. Imaginou uma coitadinha sem voz, já que o histórico que lera era de que a moça fora criada pelos tios em um porão, mas nunca pensou que enfrentaria um furacão de cabelos escarlates. O irmão, Angus, parecia nervoso. Na verdade, a família não gostara nada do rompimento do noivado, mas ela chorou por dias, dizendo que não queria olhar para o rosto feio de Cedric. Então, lhe arrumaram um noivo belo de aparência, que lhe agradou imediatamente. Contudo, o homem era rude e, na primeira vez que ela lhe pediu um jardim, ele riu, dizendo-lhe que se ela queria rosas, que as plantasse. Lyn não era acostumada aquele tratamento. Cedric sempre lhe dedicou atenção e carinho. Por fim, não


aguentou as palavras ásperas do novo noivo e resolveu voltar para o antigo. Contudo, o desfigurado havia se casado. Por sorte, havia sido com uma mashiana, e ela teria o apoio dos sacerdotes, caso ele desejasse anular o enlace. E, sinceramente, Lyn esperava que Cedric voltaria para ela imediatamente. Porém, aquele homem que lhe recebeu no castelo não era o mesmo que ela lhe deu as costas, meses antes. — Como vamos nos livrar da ruiva? — Angus indagou, baixo. — Você disse que Cedric voltaria para ti imediatamente — acusou. — Com certeza, ainda está magoado. Dê-me mais tempo — pediu. — Se não conseguir, terá que se casar com o primeiro que arrumarmos. Não vamos ficar com uma mulher solteira em casa, é uma vergonha! Ela encarou o irmão, odiando-o tremendamente. — Eu vou conseguir, está bem? Pode me dar mais um tempo? — repetiu. Ele assentiu, não muito seguro. Contudo, a entrada obtusa do Rei os calou. — Angus, poderia dar-nos licença? O homem mal conseguiu esconder o sorriso de satisfação. Volveu para a irmã, e percebeu que ela também


se animou. Por fim, deixou-os a sós. — Estou bem, Cedric — ela adiantou-se. — Não fique preocupado. A postura dele era reta e firme. — Lyn — prossegue —, nunca mais provoque a minha esposa. Não era um pedido, era uma ordem. — Mas, Cedric... — Esse é o lar de Rhianna. Ela é minha mulher, eu me casei com ela, e estou satisfeito com meu matrimônio. Lyn levantou-se, encarando-o. — Ela o enfeitiçou? Aquela bruxa! — Talvez... — não negou. — Mas, não da forma com que acredita. A verdade é que Rhianna é verdadeira comigo, sempre diz o que pensa. Eu sei quem ela é, e ela sabe quem sou. Somos amigos. E, estranhamente, tudo isso me mostrou que você e eu — mordiscou o lábio inferior —, bem... Nós não somos. — Como pôde dizer isso? Conhecemo-nos há tantos anos! — Depois que sofri o acidente e você não veio me ver, enquanto conversava com Cael, disse a ele algo que, no momento, não me ateve, mas que agora me é nítido: Eu o questionei se você viria ou não. Sinceramente, eu não


sabia. Eu não sei o que esperar de você. Mas, em relação à Rhianna, eu sei. Ela não se incomoda com a minha aparência e, caso fosse ela em seu lugar, eu jamais indagaria tal coisa a Cael, simplesmente porque sei que ela estaria ali, ao meu lado. Lyn sentiu as lágrimas a tomá-la. — Você está se vingando de mim, não é? — Não! — negou. — Lhe tenho afeto. — Mas, não me ama mais? Parecia uma loucura, mas era apenas a razão a esclarecê-lo. — Acho que nunca a amei, Lyn. Amei apenas o que você representava. E sem mais, deixou-a embargada em suas lágrimas de remorso. ***

Angus saiu do quarto de Lyn com um sorriso enigmático no rosto. A família esperava com ansiedade a anulação do casamento do Rei. Era desejo dos pais que a filha fosse Rainha, e era dele, um título para ostentar. Porém, o sorriso morreu ao trombar com Iran. — Sua irmã está bem? — o mais velho perguntou.


— A Rainha Rhianna estava por demais nervosa, mas, por sorte, não feriu Lyn. Iran pareceu compreensível. — Uma mashiana nunca deixa brechas para outra mulher mendigar atenção dentro de sua casa. — Na base da violência? — Angus indagou, irritado. — Parecia uma plebeia. — Que seja! — Iran deu os ombros. — O sangue quente não é exclusivo dos pobres. Em Masha, todas as mulheres carregam em si a força da Deusa. — Mas, nenhuma Deusa pode com um amor poderoso como o de Cedric por Lyn. Iran aproximou-se mais do outro. — Nunca duvide de Masha — murmurou. — Por ela, seus súditos matariam Lyn e comeriam seu coração, para impedir algo que não a agrade. O braiano manteve a postura séria e indefinida. — Isso é uma ameaça, Lorde Iran? — Não sou homem de ameaças, Angus. Sou um homem de palavra. E eu prometi ao meu irmão Atho, décadas atrás, que nossas famílias seriam uma só. Cumpri com minha palavra, e não descansarei enquanto houver qualquer coisa, por mais insignificante que seja, que ameace a vida que escolhi para Cedric.


Irritado, Angus apenas se afastou. Era uma guerra fria. E ele nĂŁo tinha certeza se a venceria.



Capítulo 21 Alexandrina. A cidade de Mirna era uma das portuárias mais antigas de Masha. Datava-se da época que os deuses costumavam andar pelas ruelas, interagindo com o povo. Conta-se de que as esmeraldas de lá eram as mais belas e pesadas de todo reino, e que as mulheres que nasciam naquela cidade ostentavam a tonalidade da pedra em seus olhos com mais intensidade que no restante do reino. Rhianna não pensava muito nisso, ao observar a jovem mashiana a lhe servir o chá. Claro, percebeu o verde mais intenso, percebeu a beleza deslumbrante, mas não era nela seu foco. Sorriu, contudo, para a mulher, cheia de gentileza, enquanto o homem apenas dispensava a dama com um breve aceno de mão. — É uma pena que eu tenha me casado um ano antes — o ourives riu, nitidamente brincando. Pelo olhar carregado de afeto, estava ainda em plena lua de mel. — Porque, com certeza, a senhora perdeu um bom partido. Rhianna sorriu em resposta. Simpatizou com o homem. Simpático e engraçado. Porém, ela não estava no clima de confraternização.


— Com certeza. Depois, de soslaio, observou Randu. Mais uma vez, uma negativa. Mais uma vez, Esmeralda não havia sido vista naquelas bandas. Nos últimos meses haviam visitado todas as cidades de porto que puderam, falaram com todas as pessoas que conseguiram, desde ouvires a donos de pousadas. Não, ninguém como Esmeralda havia cruzado por ali. Onde ela estava? Mesmo sem conhecê-la, Rhianna a amava. Amava a pessoa que Randu compartilhou com ela, a irmã afetuosa, espirituosa e desesperadamente afoita em lutar por justiça. Sabia que Esmeralda seria sua irmã, igualmente, porque ela já se considerava mulher de Randu, mesmo ele não tendo aceitado suas investidas. Amava aquele homem negro. Lutaria por ele, e para ele. Para sempre. — Se me permite um conselho, senhora — o ouvires bebeu o chá, sorrindo, cortando seus pensamentos. — Tente um marido em Bran. A frase a surpreendeu. — Como? — Agora que o Rei se casou com uma mashiana, os casamentos entre os povos foram permitidos. Um casamento com um braiano seria de grande valia para a


senhora. Afinal de contas, os estancieiros de lá são muito poderosos. Randu segurou o ar, enquanto a mente de Rhianna entrava em fervor. — Eu não consigo entender — a mulher murmurou, por fim. — O casamento não foi cancelado? — Cancelado? Onde andava, senhora? Não se fala em outra coisa em Masha! — Tenho certeza que ouvi falar que o casamento foi cancelado, e que o Rei desistiu do matrimônio. — Meu irmão viajou para Bran a fim de ver a cerimônia. Aliás — o homem pareceu espantado —, a nova rainha tem o mesmo nome que o seu. Que sorte, não? Uma Rhianna havia se casado com Cedric? Como aquilo era possível? — O Rei Cedric se casou com uma Rhianna? — seus pensamentos se tornaram audíveis. Subitamente, ela entendeu tudo, imediatamente. Pela respiração irregular do homem negro ao seu lado, sabia que Randu também descobrira a verdade. Jamais encontrariam Esmeralda em Masha, pois ela não estava ali. Ao contrário, estava em Bran, no palácio! De alguma forma, a imunda conseguiu trocar de papel com ela em Cashel. Contudo, como ter certeza?


— Há boatos que Rhianna é, na verdade, bastarda de Iran, e por isso ele quis tanto esse casamento. Pelo jeito, o homem adorava fofocar. — Por que diz isso? — Por causa da Rainha Alexandrina. — Rainha Alexandrina? — A mãe de Iran. Rhianna é a própria, em carne, osso e alma. A semelhança é incrível. A verdadeira Rhianna, a que estava sentada diante daquele homem, não tinha nenhum parentesco com Iran. Mas, como Esmeralda poderia ter? As dúvidas a corroeram, e apenas uma certeza a tomava. Precisavam partir de Masha. ***

— Randu! — ela exclamou, assim que eles estavam a sós no quarto. — Seria loucura demais! Ninguém faria algo tão arriscado! — Exatamente por isso — o negro começava a guardar as roupas dentro das malas. — É ela! É Esmeralda! Ninguém é tão burro de fazer uma missão suicida como essa! Apenas a minha irmã. — Sentiu as lágrimas despencando, sem controle. — Imprudente!


Nunca pensou para agir. Ela só sabe atirar-se de cabeça em seus planos. Faria qualquer coisa para chegar até o pai. — Mas, o pai dela não é um mashiano? O que ela faria em Bran? — O pai dela é Iran! Subitamente, Rhianna perdeu o ar. — Então... Por isso... — Sim. A explicação do porque ela pode ser tão parecida com a tal Alexandrina é porque é neta da falecida Rainha. Subitamente, o homem sentou-se na cama. Parecia exausto e Rhianna foi até ele. Ao seu lado, ela pousou a cabeça em seus ombros. — Sempre soube que fervia ódio nela. Mas, nunca consegui acalmar isso. Agora, poderia ser tarde demais. — Mesmo assim — Rhianna murmurou. — Não podemos desistir. Ainda nos resta um bom dinheiro, não é? — Quase tudo que roubei de Nam. — Então, o que acha de comprarmos um barco? O olhar negro a mediu. — E arrumarmos um ou dois marujos? — Somos bons juntos — ela riu. — Era


exatamente isso que eu iria dizer. Randu a observou por alguns segundos, antes de perder-se em seus lábios. Já fazia algum tempo que não podia evitar as emoções que passou a nutrir pela mulher. Mesmo assim, era a primeira vez que as demonstrava. Quando as mãos claras o puxaram de encontro ao leito, ele deixou-se guiar. Era o caminho da perdição. Não se importou. ***

Cedric a encontrou dormindo na cama. Mesmo que fizesse poucas horas que o sol havia se posto, a Rainha Rhianna recusou-se a descer para o jantar e permaneceu no quarto, parecendo desejar isolar-se de qualquer proximidade com o marido. Definitivamente, não sabia o que fazer. A vida era bem mais simples, antes de ela surgir com aqueles cabelos escarlates em seus dias. Não lhe dera tudo que pediu? Até afrontara o clero mudando as leis referentes aos imundos. Agora, ela simplesmente parecia culpá-lo pela presença de Lyn. E por quê? Ele sequer se aproximava da antiga noiva. Ao contrário, fugia dela.


— Rhianna — murmurou, pousando a mão em seu ventre e atraindo-a contra seu corpo másculo. — Tire a mão ou eu a decepo — a ameaça era como ela, direta e agressiva. — Por Bran, mulher! — ralhou, retirando a mão. Enfim, parecia que definitivamente estava acordada. — O que eu fiz? — O que não fez? — Não sei — disse, saindo da cama, colocandose de pé, pronto para mais uma discussão. — Você só grita, xinga e ameaça! Estou perdido aqui! Só que então viu as lágrimas de novo. Inferno! Cacete! Caralho! Por todos os demônios do universo, por que ela chorava tanto? Estranhamente, foi exatamente essa questão que saiu de seus lábios. — Não sei por que choro — a resposta parecia dolorida. — Sempre soube meu destino, mas agora ele me parece tão injusto. Além disso, estou com os nervos à flor da pele... Meus seios doem, me sinto tonta, e quero matar você — murmurou. A gargalhada masculina a irritou ainda mais. Contudo, Cedric voltou à cama, aninhando-a. — Me mate, então. — Tolo! Não sabe o perigo que represento!


— Sei sim. — ele beijou-lhe a orelha. — Olhe o que fez comigo. Manipula-me a seu bel prazer. Rhianna o encarou, como se não acreditasse naquilo. — Um dos meus professores me disse que meu pai jamais dormia brigado com alguém. Talvez esse tenha sido o melhor conselho que ele me deixou. Então, francamente, não quero ir dormir brigado com minha esposa. O abraço trocado selou a paz, momentaneamente, entre eles. — Seu pai devia ter sido um bom homem — ela murmurou, de encontro ao pescoço dele, pensando nas palavras de Kian. Atho planejava justiçar sua mãe. E ela, destruía seu filho. Talvez... Talvez... Devesse ir embora. — Sei poucas coisas sobre ele, mais o que os servos me contaram. Diziam que ele amava minha mãe, Lídia, com toda a sua alma. Encarou-a. O olhar pareceu arder em ambos. — Um casamento com amor é uma dádiva. — Que nunca teremos? — inquiriu Esmeralda, triste. — Será que não? — a pergunta era mais que pertinente. — O que é o amor, Rhianna? Sempre pensei


que era o que nutria por Lyn. Contudo, aquela sensação em nada se compara ao que sinto por ti. Mais lágrimas. Ele respirou fundo, voltando a si irritar. Porém, ela logo lhe segurou o rosto, fazendo com que ficassem cada vez mais próximos. — Não sei o que é o amor — admitiu. — Mas, sei que sinto por ti algo mais forte do que tudo que jamais senti por qualquer outra pessoa. O beijo trocado naquela noite foi diferente de todos os outros. O sexo também. Parecia prenuncio de uma nova vida. Não fosse essa vida uma grande mentira. ***

— Cedric... Cedric... — os cutucões o fizeram gemer. — Cedric! Subitamente, um chute forte o empurrou da cama. Estatelado no chão, ele pareceu perdido, até visualizar a mulher de camisola, o observando de cima. — Rhianna? O quarto estava escuro e o breu tomava conta de todo país. Mesmo assim, ele reconheceu o corpo perfeito e delicado destacando-se na noite.


Ainda era madrugada, o que ela queria? — O que foi, mulher? — Cedric, preciso comer framboesas. Os olhos dele ardiam e a mente demorou a processar a frase, antes de adquirir forças e voltar para cama. — Mandarei colher para você, amanhã. — EU QUERO FRAMBOESAS AGORA! — gritou. Por Bran! Como ela gostava de gritar! — Mas, é de madrugada — argumentou, tentando trazer razão a mente diabólica. — Não me interessa! Vá — ordenou. — Vá agora. O que diabos estava acontecendo com Rhianna? Parecia diferente e, mesmo assim, completamente apetitosa. E, por que diabos ele estava colocando as calças e se preparando para sair? Não devia simplesmente mandála calar a boca e ir dormir? De pernas cambaleantes, ele cruzou pelo corredor escuro até chegar a uma porta. Bateu. Um Cael sonolento abriu, em seguida, parecendo surpreso pela visita inesperada. — Rhianna quer framboesas e eu quero morrer —


Cedric murmurou, tentando acordar completamente. — E eu com isso? O que estava acontecendo com as pessoas naquele castelo? — Não quero acordar nenhum guarda para me acompanhar. — Por quê? — estava pasmo. — Não quero que ninguém saiba que a minha mulher me chuta pra fora da cama à hora que quer. O que pensariam? A resposta pareceu coerente, e Cael simplesmente assentiu. — E a minha opinião? Não importa? — Você é meu irmão — Cedric rebateu, fazendo com que uma culpa descomunal atingisse o ruivo. — Não me importo que saiba minhas fraquezas. — Rhianna é sua fraqueza? — E minha força, talvez... Por fim, o ruivo o acompanhou. ***

Meia hora depois, Cedric surgiu no quarto com


uma vasilha cheia de framboesas apetitosas. A esposa dormia, provavelmente cansada de esperá-lo. Sacudiu-a de leve, ansioso para lhe agradar. Levou algum tempo, mas, por fim, ela abriu os olhos. Cedric sorriu diante do olhar esverdeado, mostrando a vasilha. — Não quero mais — foi tudo que ela disse, virando-se para o outro lado e voltando a dormir. Por algum motivo, naquela noite, o Rei Cedric de Bran percebeu que havia se tornado exatamente o homem idiota que sempre temeu ser.



Capítulo 22 Cumplicidade. O sol tocou os cabelos ruivos, fazendo-os dourar à sua luz. Cedric sorriu diante da visão, caminhando até ela, estendendo as mãos, e a levando para o passeio. Como a vida poderia mudar de tal forma? Jamais se imaginou conectado a outra mulher que não Lyn. Contudo, aquela ruiva cheia de opinião havia entrado em sua vida e avassalado tudo. Não conseguia mais imaginarse sem ela. Assim, fazia-lhe todas as vontades. E Rhianna tinha muitas, diga-se de passagem. Nada que o forçasse a uma vida difícil, mas, sim, anseios pequenos que ela sempre exigia, mais e mais. Especialmente na cama. Engraçado que, aos poucos, eles passaram a entrar numa rotina fantástica entre os lençóis. Faziam amor todos os dias. Ela ainda não o deixava ver-lhe o corpo, sempre camuflada pelo breu noturno, no entanto, ainda assim, o toque de sua pele contra a dele, o arrepiava até a alma. O próprio ciúme o deleitava. Não sabia exatamente o porquê ela acreditar piamente que o


casamento deles tinha um prazo de validade, e parecia aguardar o momento em que ele anularia a união para se vincular a Lyn, contudo, isso nem lhe passava pela cabeça. Comicamente, preferia aquela vida ardente ao lado da ruiva, que a enfadonha paixonite por Lyn. Agora, ao lado dela, percebia nitidamente. O que vivera com Lyn era uma paixão juvenil. Com Rhianna, ele era homem. — Vou mandar pintar um quadro seu — contou a ela, enquanto andavam pelo bosque. — É mesmo? — Para pôr na galeria do corredor. Ainda não tem nada seu lá. — Talvez devesse esperar mais um pouco. A resposta, mais uma vez, confirmou o quão pouco Rhianna cria em seus sentimentos. Contudo, havia uma vida toda para desfrutar ao seu lado, e um dia ela pararia de pensar tolices. — Meu Rei! O tom comedido e alto foi pronunciado por Kian, o escudeiro de Cael. Sorriu ao braiano, vendo-o se aproximar rapidamente. — Desejam sua presença no salão real — avisou.


Cedric apenas assentiu. — Faça companhia a minha esposa — ordenou. Kian encarou Esmeralda enquanto ela visualizava o marido se afastar. Depois, os olhos verdes voltaram-se para ele e, por alguns segundos, ambos pareceram apreensivos. — Não me condene — ela pediu, parecendo desesperada. — Não a condeno em nada, minha querida — Kian retorquiu. — Apenas, estou boquiaberto. Esmeralda deu-lhe as costas e prosseguiu o caminhar. Kian a seguiu. — Não está protegendo em nada sem coração — o homem observou. — Já tenho a confiança do Rei, estou apenas sob às ordens de Cael para o prosseguimento do plano. Não sei se me ordenará ir embora, ou avisará que sou imunda. Enfim, estou sem saber o meu destino. — Girou o corpo, ficando de frente para ele. — Contudo, sei meu presente. E meu presente é ao lado de Cedric. Não é muito, não é um sonho. Ao contrário, é uma vivência carregada de dor, sabendo que chegará a hora que ele me odiará. Mesmo assim, prometi a mim mesma aproveitar cada segundo que puder. — Esmeralda...


— Passarei meus restos de dias em solidão. Eu sei disso, sempre soube. Não me atormenta tal pensamento. Porém, agora, terei lembranças. Mesmo que sejam construídas em cima de mentiras, serão recordações que acalentaram meu coração. Kian sorriu, segurando suas mãos. — Eu entendo, Esmeralda — ele suspirou. — Eu daria tudo que tenho, cada respiração que exalo, por uma única lembrança romântica... — Com Cael — ela completou. — Sim, com Cael. Mas, isso nunca vai acontecer. Eu já me conformei. — E eu me conformei que meu tempo com Cedric está, a cada dia, mais curto. O som de passos os calou alguns segundos. Logo, o rosto de Cael surgiu diante deles, como se aparecido do nada dentre as árvores. Sorriu para Esmeralda, e apenas olhou de relance para Kian. — Rhianna — lhe chamou pelo nome de mentira. — Cedric me acordou de madrugada para procurar framboesas para você — contou, subitamente. — Isso me prova que, enfim, ele já lhe tem sentimentos. — Não sei que sentimentos são esses — ela devolveu. — Mas, acredito que estamos vivendo uma forte amizade.


O ruivo assentiu. — Está chegando a hora de finalizarmos o plano. Não quero que esteja aqui quando souberem que é uma imunda. — Achei que fosse essa a intenção — ela objetou. — Minha querida, eles vão te matar quando descobrirem. Nunca foi minha intenção arriscar sua vida. Estou a pensar na melhor forma de Cedric descobrir, sem que corra perigo. Esmeralda assentiu. — Vou conseguir uma passagem em um barco pirata. Vão te levar para além de Masha, para minhas terras. Lá, ficará a minha espera. Depois de destruir a imagem que Cedric tem de meu pai, e fazê-los sofrer, irei a sua presença para cumprir a minha parte no acordo. Mais uma vez, a mulher assentiu. Entretanto, em nada que Cael dizia, ela concordava. Não sairia de Bran sem a cabeça de Iran. E, de todas as formas que pudesse, tentaria magoar o menos possível a Cedric. — Cedric o ama — ela murmurou ao irmão, que arqueou as sobrancelhas, assustado. — Cedric não merece tal punhalada. — Cedric é a única pessoa que Iran ama — Cael retornou. — Não existe outra forma de atingir meu pai que não seja magoar Cedric. Infelizmente, não temos outra


saída. Mais uma vez, Esmeralda concordou. A cabeça trabalhando a mil, tentando encontrar uma saída para que conseguisse resolver o problema de Cael, e salvar Cedric. Por fim, pediu licença aos homens e voltou ao castelo. — Você teme que ela se recuse? — Kian indagou ao amigo, pela primeira vez, desde que ele chegara. Imaginou que talvez Cael o ignorasse. Não seria nenhuma surpresa. Contudo, o ruivo volveu-se para ele. — Ela tem palavra — Cael murmurou. — Mas, destruir Cedric vai destruí-la também. — E você não quer isso, quer? O ruivo encarou o braiano. — Esqueça isso, Cael. Esqueça a vingança. Esmeralda está sofrendo demais. Por que não contam logo toda a verdade, e permitem que ambos possam seguir em paz. Quando o verde dos olhos de Cael brilhou, Kian percebeu uma nítida semelhança que o deixou sem ar. — Isso nunca! — o rapaz negou. — Nada me faria desistir da minha vingança! ***


Kian correu pelos corredores, até chegar à ala em que ficava a galeria de fotos. Parou diante de Alexandrina, observando atentamente cada pedaço do rosto perfeito, belo e autoritário. O que diziam da falecida Rainha? Sim, impulsiva! Mandona! Gritona! Não baixava a fronte para nenhum macho. Não se curvava a ninguém. Todavia, havia qualidades. Contavam que era bondosa com as mulheres, crianças e idosos. Falavam-se nos corredores que, a contragosto do Rei, mandava os restos do castelo para os cachorros que viviam nas ruas. E, acima de tudo, a lenda que a circundava era mais do que a morte sofrida e solitária em uma torre. Alexandrina amou o Rei, seu marido, pai de Iran. Amou-o mais que tudo, com a sofreguidão e o desespero de um coração apaixonado. E, ao ser trancafiada, morreu de dor. Não apenas porque deixou de ver o sol, porque deixou de ver seus tão queridos animais, ou de interagir com seu povo. Era a falta do Rei que ela sentia, mais que tudo. Era a saudade dos seus beijos, da sua pele, do seu gosto. Alexandrina lhe lembrava Esmeralda. Mais que isso, era Esmeralda. Tanto a Esmeralda que chegou ao castelo instigando Cedric, desafiando-o, avassalando-o, quanto a mulher de agora, com o olhar apavorado diante do inevitável.


Como não percebera aquilo antes? — Kian — o som feminino fê-lo girar, e encarar a semelhante à mulher bela da pintura. — O que faz aí, tão compenetrado? — Iran estuprou uma mulher negra, durante a Guerra dos Mil Dias — ele contou, sem antes ater-se ao semblante de pavor que pareceu dominá-la. — Não uma aldeã qualquer, mas a mulher de Lugus, que foi expulsa do castelo, ninguém sabe o motivo. O homem voltou-se ao quadro. — Como é interessante pensar: Por que Lugus expulsaria sua própria mulher do castelo? Ela não o traiu, e sim foi violada. Era uma vítima. Cashel não a desampararia por isso, e Lugus não teria permissão dos sacerdotes para um divórcio. A não ser... Esmeralda baixou a fronte, constrangida. — A não ser — continuou — que a mulher estivesse grávida e se recusasse a abortar. Isso sim, seria um grande pecado, aos olhos dos clérigos. Um imundo, vivendo no castelo? Jamais seria permitido! Respirou fundo. — Você tem algo a me dizer? ***


— Tão cúmplices... — Kian sorriu, sem jeito. — Como eu invejei aquela cumplicidade, aquele magnetismo que parecia exalar de ambos. Era como se fossem metades de uma mesma laranja, como se um estivesse esperando um ao outro, como se estivessem conectados por algo mais forte que a própria existência. Esmeralda sentiu as lágrimas invadi-la. — Eu juro que não sabia, quando conheci Cael. — Masha realmente deveria desejar demais esse encontro, pois os uniu mesmo afastados por todo um mar, mesmo sem terem a mesma mãe, mesmo que estivessem afundados em dor e desejo de vingança. — Observou. — Quando descobriu? — Quando me mostrou o quadro — contou. — Há tão poucos dias? — O cordão — apontou. — Está comigo. Era a pista que eu dizia a Cael. O homem pareceu assombrado. — Contará a ele? — Não tenho coragem — admitiu. — Sabe o quanto Cael sonhou em ter uma família? O quanto ele queria alguém para simplesmente estar lá


para ele? E agora ele te encontrou. Cael sequer sabe o que os interliga, mas já te ama! — E o que eu farei com essa informação? — enfrentou-o. — Sabe o que foi a vida de Randu, meu amado irmão, até então? Viver as sombras, sacrificandose dia após dia para cuidar de uma imunda. Meu irmão devia ser o Rei de Cashel. Ele é o filho mais velho de Lugus! Devia ter crescido morando em uma casa enorme, comendo a melhor comida, vestindo as melhores roupas. No entanto, tudo que teve ao meu lado foi perseguição, miséria e medo. Não condenarei Cael a isso — decretou. — Esmeralda... — Se ele souber que sou sua irmã, fará tudo para me proteger, assim como Randu. E eu não desejo esse destino a ninguém, nem mesmo a Iran. Você não faz ideia do que é ser um imundo... Prometa-me que jamais contará a ele! — Não posso prometer tal coisa. — Mas, o fará! Preciso de sua palavra para ter paz! — Não fugirá para as terras além de Masha quando tudo acabar, não é? — questionou, ignorando o pedido. — O que fará quando conseguir sua vingança contra Iran? — diante do silêncio, exaltou-se: — Responda-me! Houve um estrondo no fundo. Repentinamente,


aquele dia que começara com sol, mudara. Nuvens grossas invadiam o céu, indicando que a chuva chegaria, sem tardar. — Irei me matar. Kian não conseguiu dizer nada, enquanto a via dando-lhe as costas e fugindo de suas perguntas difíceis e das implicações que suas respostas derivavam.



Capítulo 23 Ventre Esmeralda observava Lyn a distância. A bela morena mantinha a postura altiva, enquanto caminhava pelo jardim que levava seu nome. Os dedos delicados e brancos tocavam as rosas, e a mulher parecia fascinada pela beleza da natureza. Era uma formosa visão, Esmeralda admitiu, contra seus princípios. Lyn era exatamente como a haviam descrito, ainda durante a viagem que a levava a Bran: bonita, delicada, frágil e deslumbrante. Esmeralda suspirou. Sabia que a braiana se tornaria esposa de Cedric em breve, mas não confiava na mulher para fazê-lo feliz. Ela já o havia abandonado uma vez, por que não o faria novamente? Podia ser questão de tempo para que sua futilidade a levasse a outros braços, a outros anseios. E, então, Cedric ficaria novamente sozinho, abandonado, sem ninguém para lhe fazer companhia, vítima da sua deformidade, afinal de contas, causava horror pela sua aparência a todos que dele se aproximavam.


Esmeralda era a exceção. Para ela, Cedric não era tão feio quanto diziam. Ao contrário, ela via nele uma beleza que ia além da aparência. No tempo que viveu ao seu lado, soube disso. Tudo que fizera por ela, provara-a ser um homem de valor, alguém a quem ela dividiria a vida com alegria e orgulho. Porém, não aconteceria. — Rhianna — a voz a fez fechar os olhos com força, camuflando as lágrimas que brotaram. — O que faz aqui? Estava na sacada. Cedric observou a esposa atentamente, e depois seguiu seu olhar para longe. Quando viu Lyn, pareceu compreender. Mais uma vez, a insegurança dominava sua mulher? O que mais ele teria que fazer para conquistar a confiança dela? — Lyn me pediu para ficar para as festividades de Bran — comentou, como se estivesse indiferente. — Provavelmente, tentará um marido durante as festas. Rhianna o encarou. — Festas? — Sim, ocorrem todos os anos, na primavera. — Então, ela ainda permanecerá por aqui por um mês? — Sim — afirmou. Depois, pareceu pensar melhor. — O que eu necessito fazer para que não me olhe


com tanta mágoa? Quer que eu a expulse, e a seu irmão? Não desejo fazer isso, Rhianna, mas se for seu desejo, é o que farei. Esmeralda negou. — Não quero nada Cedric — murmurou. — Isso é um sim? — riu. — Nunca sei quando seus “nãos” são realmente “nãos”. Subitamente, ela riu junto. Contudo, aquele sorriso parecia triste e dolorido. O Rei começou a se angustiar diante daquela faceta. — Quando confiará em mim o suficiente para me dizer o que a atormenta? — indagou. — Quando chegou nesse castelo, vivia altiva e me desafiando. Agora, porém, parece tão amuada... Ao longe, um homem se aproximou de Lyn. Eles começaram a conversar animadamente. Esmeralda sabia que era Angus, o irmão da braiana. Até então, ele não havia lhe dirigido à palavra, o que ela agradecia imensamente. Não aguentaria ter que enfrentar dois rivais, quando tudo nela estava em tal estado de confusão. Iran não era mais uma prioridade. Cael era. Proteger Cael do monstro que ambos chamavam de pai. Depois, vinha Cedric. O Rei a conhecia há pouco, e a odiaria quando soubesse a verdade, então, imaginava ela, que o luto do homem não duraria muito. Assim sendo, aqueles últimos dias de vida, que ela imaginava estar


vivendo, passaram a ser atormentados por incômodos pensamentos. O que fazer? Como fazer? De que forma resolver a confusão em que havia se envolvido? — Eu me apaixonei por você — confessou, quase sem querer, diante do homem que arregalou os olhos perante as palavras. Cedric pareceu sentir o ar faltar. — Ninguém amaria um monstro — objetou, sem saber exatamente o que era aquela sensação que eclodia em seu coração. Esmeralda baixou a face. As palavras dele pareciam arder nela. Ninguém amaria um monstro? Ele não era isso. Um rosto desfigurado não o transformava em uma besta. Mas, o que dizer de uma imunda? Ninguém amaria uma imunda. Isso sim. Ninguém. Nem mesmo alguém cuja face estava marcada perpetuamente por um acidente. Ela mal sentiu quando os soluços escaparam de seus lábios. — Ei, eu disse que não era recíproco? — ele devolveu, acudindo-a, e despertando nela uma gargalhada histérica. Então, era isso que ele pensava? Que o seu


desespero se devia a um amor platônico? Tão tolo, Cedric... Se ela fosse uma mashiana pura, já teria chutado Lyn para fora do castelo e lutaria dia e noite pelo amor daquele homem. Mas, de que bastava despertar qualquer que fosse o sentimento em Cedric, quando tudo nele se transformaria em nojo ao saber da verdade? Repentinamente, as pernas falharam. O olhar embaçou, e ela ficou zonza, como se o sol simplesmente desaparecesse e a escuridão lhe tomasse as vistas. Segurou-se nele segundos antes de desmaiar. ***

— Chame o médico! — ouviu, momentos depois, ao sentir o corpo despertando, novamente. Cedric a havia segurado nos braços e a levava até seus aposentos. Enquanto ele cruzava o corredor quase correndo, ela percebeu que a sorte a acordou. O que faria, caso algum médico lhe visse o corpo? Aquilo minaria todos os planos. O pânico a invadiu subitamente, tão logo ele a colocou no leito. — Não! — negou, firme. — Não precisa, Cedric, estou bem. — Você desmaiou!


Aquele olhar contrariado a angustiou. — Não me alimentei direito, apenas isso. Vomitei hoje, após o café da manhã. Não chame nenhum médico, por favor. Não quero me sentir uma mimada por tão pouca coisa. Sem se anunciar, Iran entrou no quarto. A visão do pai embaralhou seus sentidos e o vômito voltou a sua boca. Por sorte, a vasilha onde ela lavava o rosto estava ao lado da cama. Despejou nela tudo que tinha no estômago, o que se resumia a um líquido esverdeado. — Desde quando ela está assim? A pergunta de Iran, dirigida a seu marido, fez a cabeça de Esmeralda girar. Quis gritar para que aquele desgraçado saísse de seu quarto, mas não tinha forças para nada além de chorar. — Começou a vomitar hoje... — Tem desejos? Cedric estranhou a pergunta. — Como assim, desejos? — De comer coisas diferentes em horários inconvenientes? A faceta embasbacada de Cedric respondia a pergunta com tranquilidade. — E está mais sensível?


— Onde quer chegar com essas perguntas, tio? — Quero saber se está com os nervos a flor da pele? Se chora sem motivos? Se durante o coito ela parece mais afoita? Esmeralda enrubesceu, mas nada se comparou ao marido, que pareceu chocado com a questão. — Jamais falaria o que ocorre entre mim e minha esposa na nossa cama. Que sorte a dela! Porque nas últimas noites ela gemia tão alto que acreditava que o castelo inteiro ouviria. — Rhianna está grávida. Iran não falou, ou sugeriu. Ele decretou. E a frase teve um efeito poderoso no casal. Tanto no homem em pé ao lado da cama, quanto na mulher que pareceu perder o chão. — O primeiro bebê com sangue de Masha e Bran. — A voz de Iran prosseguiu, feliz, aliviada, como se estivesse diante do cumprimento de uma profecia. — Quanto esperei por isso? Todos esses anos que o via crescer, meu filho — aproximou-se de Cedric, abraçandoo. — Todos esses anos esperando que os sangues dos dois deuses se unissem num só. E agora, está feito — aproximou-se da cama. Esmeralda recuou, instantaneamente. — O futuro Rei dos dois maiores reinos está em teu ventre, minha querida. Sinta-se honrada cada


dia de sua vida por isso. ***

Desde que Iran saíra do quarto, o casal permaneceu em silêncio. Esmeralda parecia afundada em seus próprios pensamentos, enquanto Cedric, sentado aos pés dela, olhava para a parede, sem conseguir acreditar que, de fato, ela engravidara. Não que fosse uma surpresa. Desde a primeira vez, pareciam dois coelhos. Ele mal conseguia disfarçar a ansiedade para chegar à noite. Às vezes, espreitava-a durante o dia no quarto, rapidamente, e a melava com seu ardor. Ainda assim, era a primeira vez que tinha a noção que seria pai. Sorriu. Uma criança... Um filho... Será que teria cabelos negros ou vermelhos? E os olhos? Pretos ou verdes? Menino ou menina? Subitamente, nove meses pareceram tempo demais e ele queria a criança imediatamente. Queria o filho nos braços, levá-lo para andar a cavalo, ou ensinar a sua menininha a dançar. — Agora não precisará mais fazer amor comigo... — o murmuro da mulher chegou até ele, e o homem a encarou. — Como?


— Lembra-se da nossa primeira vez? Disse que iria se acostar comigo até eu ficar grávida. Cedric gargalhou, puxando o pé dela. Sequer pensou, enquanto o erguia e beijava o tornozelo, deliciado. — Foi criada sem um pai e uma mãe, não é? A pergunta a assustou, subitamente, mas em seguida Esmeralda se lembrou que Rhianna também era órfã. — Sim. — Eu também — o marido completou. — Acha que seremos bons pais? Os dedos femininos tocaram o ventre. Repentinamente, os planos mudaram. Ok, não era mais matar Iran, salvar Cael e suicidar-se. A morte dela não fazia mais parte do esquema. Mãe... ela seria mãe. Por sorte, a espada daria ao filho o direito à vida. Precisava pensar rápido, precisava matar Iran antes de a barriga crescer, dar um jeito de Cael subir ao trono, e deixar uma carta explicando tudo a Cedric, da forma mais gentil que pudesse. Depois, fugiria. As cavernas lhe seriam uma boa casa. Ensinaria a filha ou filho a lutar. Daria a ele ou ela o mesmo presente que Brione havia lhe deixado. Ninguém tocaria naquela


criança, ninguém lhe faria mal. — Ei — a voz masculina foi seguida pela aproximação do esposo. Cedric achegou-se a ela, e a beijou nos lábios. — Não fique preocupada. Estamos juntos nessa. Encarou Cedric, puxando-o e retribuindo o beijo na boca. Queria transmitir tantas coisas em pensamento, mas tudo que lhe veio foi a certeza de que, ao menos, o fruto em seu ventre era do único homem que ela amaria, enquanto vivesse. — Não conte a ninguém, ainda, por favor — pediu. — Deixe-me acostumar à ideia. — É a mulher mais estranha que conheço, Rhianna — ele riu. — Espera um filho meu, mas sequer a vi nua — gargalhou. — E agora quer esconder o fato de ter meu bebê na sua barriga. — Subitamente, ficou sério. — Digame, esposa, quando foi que passou a me amar? A pergunta, apesar de repentina, não era estranha. — No dia que me abraçou, quando eu vi os imundos cruzando pelas estradas em frente ao palácio — admitiu, sem medo. — Se um dia me amar, também, Cedric... Não se esqueça de me contar quando aconteceu. Ele permaneceu em silêncio. Apesar de acreditar nos sentimentos dela, ainda não conseguia expressar tudo que nutria pela ruiva. Porém, sabia, nele, os sentimentos vieram antes. Na noite de núpcias, no momento em que ela


viu seu rosto e não recuou... Quando o chamou de fraco por envergonhar-se pela deformidade, pela força que demonstrou em se entregar para ele mesmo nunca tendo o visto antes. Se foi a misericórdia dele que despertou em Rhianna o amor, para Cedric, foi a força incomum daquela mulher que arrasou suas estruturas e lhe despertou para algo tão forte quando o poder dos três deuses juntos. ***

Cedric manteve sua palavra e não falou da gravidez. Entretanto, Iran não perderia por nada a oportunidade de apunhalar Lyn e Angus. Ao encontrar os irmãos, no bosque, próximo do lago, não se fez de rogado em dividir as boas novas. O olhar chocado e choroso de Lyn ele desprezou, mas foi a raiva incontida de Angus que lhe causou profundo prazer. Gostava de ver seus inimigos agonizando em seus planos fracassados. E saber que aquele homem, que muitas vezes lhe atirou na face o casamento que preparava para Lyn e Cedric, estava completamente frustrado, lhe alvoroçava como muito não acontecia. Porém, Iran sequer imaginava que sua ação


provocaria uma reação em cadeia que mudaria completamente os rumos daquele dia. Começou quando Angus gritou com Lyn, como se ela fosse a culpada pela gravidez. Depois, o homem saiu rapidamente do jardim, parecendo disposto a recolher suas roupas e ir embora, abandonando a própria sorte a irmã irresponsável, culpada pela sua perda de título. Lyn, então, ficou solitária naquele lugar, durante horas, chorando seu descontentamento, sentindo-se a pessoa mais derrotada do mundo, desejando ardentemente que a ruiva Rhianna desaparecesse da face da terra, e que ela jamais houvesse sido tão tola em desprezar Cedric, crendo que ele nunca amaria outra mulher. Contudo, no final da tarde, suas lágrimas cessaram. O motivo em nada se assemelhava ao conformismo. Ao contrário. Foi a maldade que limpou seus olhos e fez emergir nela um contentamento crescente. Rhianna surgiu ali, próximo do lago. A ruiva não há havia visto, já que caminhava como uma sonâmbula próxima da beirada do poço profundo – que a megera desconhecia, claro! Mas, Lyn havia crescido naquele lugar e sabia que o lago não era seguro! — e então a morena soube que havia uma solução. Não foi por amor a Cedric o que a guiou até a ruiva. Nem sequer o descontentamento do irmão. Era seu desejo em ser Rainha, e seu sentimento pelo trono


usurpado que a pôs a correr em direção à ruiva. Rhianna sequer a viu, quando foi empurrada em direção ao poço. Até tentou se agarrar a relva, mas, resvalou e foi engolida pelas águas escuras do lago. Lyn desejou ficar ali, a vê-la morrer. Contudo, a vida lhe mostrou que as coisas jamais saiam como se planejavam. Assim como ela surgiu do bosque sem que Rhianna esperasse, o ruivo Cael também apareceu, como um fantasma, e se atirou nas águas, atrás da compatriota. — Estou morta... — Lyn murmurou, sem conseguir se mexer. Havia tentado matar a Rainha de Bran. Pior que isso, a mulher que carregava no ventre o futuro rei. Porém, seu pânico desapareceu ao ver Rhianna sendo arrastada para fora do lago. O vestido branco colou no corpo curvilíneo. E então Lyn gargalhou, como a louca que era, diante de sua fortuna. — Imunda! — gritou, diante dos seios pretos. Venceu! A jovem braiana venceu!



Capítulo 24 Sem saída. Enquanto o formato feminino desaparecia entre as árvores e o horror mesclado a desesperação tomava conta de Esmeralda, Cael voltou-se para a mulher, sacudindo-a. Precisava trazê-la a razão antes que fosse tarde demais. — Vou atrasá-la — avisou, referindo-se a Lyn. — Mas, não há tempo a perder. Nada. Os olhos da ruiva pareciam mortos. No desespero, ele lhe deu um leve tabefe no rosto, para acordá-la. — Sua espada — enfim, conseguiu sua atenção. — Atrás da choupana há um velho baú. Eu a pus lá dentro quando chegamos ao reino. Vá para lá, e a pegue. Depois, parta para o leste. O sol à sua frente quando nasce o dia, o sol as suas costas, ao final do dia — explicou, para o caso de ela confundir-se. — Mandarei Kian atrás de você. Encontrar-se-ão no litoral. Vou arrumar quem lhe tire de Bran. — Cael... — ela murmurou, enfim, dando sinal de vida. — Vão matá-la — alertou, sabiamente. — Precisa


se salvar, Esmeralda. É agora ou nunca. Precisa correr, eles têm cavalos, e vão chegar até você muito rápido. Só há uma chance. Sentiu os braços femininos envolvê-lo, num abraço de despedida. Depois, ela afastou-se o suficiente para tirar a cauda do vestido, livrando-se do tecido pesado. De calções, enfim, correu na direção que ele indicava. Sem mais retroceder, Cael avançou em direção ao castelo. Correu como jamais havia feito, ansioso para atingir logo seu objetivo: Lyn. Logo a avisou, a subir as escadarias do palácio. Gritava como uma louca, e ele avançou o passo. Enfim, aproximou-se o suficiente para segurá-la. Só então se deu conta das coisas que ela dizia. — Imunda! Imunda! — gritava a mulher. Cael nunca entenderia os motivos de sua raiva acumulada ter-se sobressaído à própria razão. Tudo que sentiu, viu e vivenciou foi seu corpo forte atirar-se contra a braiana, arrastando-a ao chão. Em segundos, suas mãos violentas apertavam a garganta de Lyn com tanta força que ele soube que não pararia até que ela morresse, apodrecesse junto com sua alma torpe. Jamais a soltaria. Contudo, foi segurado por dois homens fortes, guardas reais, que surgiram atrás de Cedric, junto com


Angus e seu pai, Iran. O olhar dos homens era assustado, e Cael quase riu, diante do susto que parecia tomá-los. Ele, um Príncipe de Masha, estava tentando cometer assassinato público. Deviam pensar que fosse louco. Angus aproximou-se de Lyn e a segurou nos braços, como um irmão zeloso que só ele mesmo acreditasse que fosse. A braiana chorou, enquanto punha as duas mãos no pescoço, como se tentando conter uma insuportável dor. — Cael — Cedric bramou, aproximando-se do mashiano. — O que aconteceu? — Ele... — Lyn tentou falar, mas foi interrompida. — Cale a boca, sua vagabunda! Cael tinha consciência que era questão de tempo para a verdade vir à tona, naquele final de tarde. Contudo, cada segundo era importante. Precisava ganhar tempo para que Esmeralda escapasse. — Imunda... — Lyn murmurou, a voz fraca demais, como se não conseguisse falar. Angus, contudo, tomou à dianteira. — Meu Rei — dirigiu-se a Cedric. — Uma braiana legítima foi atacada dentro de seu castelo. Exijo uma resposta dos motivos.


Cedric encarou Cael. O viu recusando com a face, como se implorasse que deixasse o assunto para depois. — Não é óbvio — Iran riu, como se fosse o mais sábio entre eles. — Uma discussão de amor — apontou, indiferente. A braiana negou com a face, várias vezes, enquanto Cedric pareceu ler seu olhar. Não, não era uma discussão de amor. Era algo além do que ele pode imaginar. — Sua esposa — ela enfim conseguiu balbuciar. Mais uma vez, interrompida. Cael desvencilhou-se dos dois guardas e jogou-se contra ela. Contudo, dessa vez, quem o empurrou foi Cedric. E o olhar do Rei dizia mais do que mil mãos a contê-lo. — O que tem Rhianna, Lyn? — Nem sei, meu amado Cedric, se é esse realmente o nome dela — Lyn despejou, a voz voltando aos poucos. — O que quer dizer? — A vi se banhando com Cael no lago. E o tecido branco que vestia me mostrou seus seios. — afastou-se do irmão e achegou-se a Cedric. Havia um misto de alegria e alívio em seus olhos. — Ela é uma imunda, Cedric. Sua esposa não passa de uma puta imunda de seios pretos.


As palavras chegaram a Cedric junto com a imagem de Rhianna negando-se, terminantemente, a lhe mostrar o corpo. Contudo, é claro que não poderia ser esse o motivo. Apenas, Rhianna era avergonhada. Uma mulher com pudores. Ora, havia tantas assim. Já ouvira falar até de mulheres que faziam buracos nos lençóis para que o esposo não lhes tocasse o corpo com o seu. — Era só o que faltava... — a gargalhada de Iran o encontrou. O tom de desprezo era nítido. — Rhianna é filha de uma tradicional família mashiana, escolhida a dedo por meu regente em Masha, um homem que conheço desde minha infância e a qual confiaria minha própria vida. — Não sei quem é a mulher que se casou com Cedric, mas com certeza não é a mashiana pura de quem fala... Cedric sentiu as pernas bambearem, mas ele era um Rei. Não podia e não iria demonstrar fraqueza. Contudo, quando seu olhar voltou-se para Cael, ele pensou que fosse chorar. Havia culpa ali, nos olhos verdes. Mais que isso, havia desespero. — Onde está minha esposa? — disse, contudo, contra todas as provas que se confrontavam. Não queria desistir dela, não queria acreditar que tudo que viveram era uma mentira. Afinal de contas,


Rhianna ligou-se a ele como ninguém mais jamais havia feito. Rhianna era o ar que respirava, não conseguia imaginar seus dias sem sentir seu cheiro, beijar seu corpo, lamber seu gosto. — Está perto do lago, descansando. Não dê ouvidos a essa louca — o tom do príncipe ruivo era carregado de desprezo. Cael enfim afastou as mãos que o continha. — Irei para meu quarto — avisou a Cedric. — Quando sua esposa voltar, pergunte a ela porque Lyn pensa tamanha besteira. — Claro que é tamanha besteira — Iran, pela primeira vez em sua vida, ficou ao lado do filho. — Cedric dorme com ela todas as noites, não iria perceber se estivesse com uma imunda? A mão do Rei ergueu-se. — Ninguém sai daqui — avisou. — Que estejam todos aqui, quando eu retornar. — Girou em direção a dois guardas reais. — Venham comigo. Cael pretendia avisar Kian, mas, não podia descumprir a vontade de Cedric. Então, apenas caminhou até uma poltrona e se sentou, angustiado. Que Masha protegesse Esmeralda. ***


O sol parecia ter pressa em desaparecer. Esmeralda corria tão sofregamente que mal sentia a própria respiração. Por que estava tão lerda? Era a gravidez? A roupa molhada? De qualquer forma, era uma guerreira, não podia se abater. Por fim, viu a choupana. Continuava exatamente no mesmo lugar que se lembrava, mas a distância percorrida a pé em nada lembrava aquela a cavalo. Provavelmente, era por isso que sentia todo o corpo doer, apesar de não ter corrido mais que vinte minutos. Fez a volta à choupana. O baú indicado por Cael estava exatamente no lugar que ele lhe dissera. Aproximou-se do móvel, e abriu sua tampa. Quase chorou de alívio ao pegar sua amada espada nas mãos. Era como se nunca houvessem se afastado. Podia sentir seu peso fundir-se com o seu próprio. A espada foi sua companheira desde a tenra idade, e agora salvaria a jovem mulher do que quer que fosse. Ouviu o som de cavalos. Não conseguiria mais correr, estava exausta. Sorriu, diabolicamente, enquanto a certeza de que venceria quaisquer que fossem os soldados a atingia. Ninguém poderia contra ela enquanto estivesse com sua espada.


Deu à volta a choupana. Com a arma empunhada agressivamente, ela preparou-se para o combate. Entretanto, ao avistar o rosto de Cedric, toda a sua certeza caiu por terra. Baixou a espada. Não esperava vê-lo. Na verdade, acreditou que, ao se despedir de Cael, nunca mais olharia para o rosto do seu amado. E agora, estava ali, diante dela, encarando-a como se não conseguisse acreditar no que via. — Virem-se de costas — o Rei ordenou aos dois soldados. Esmeralda os viu cumprindo as ordens imediatamente. — Mostre-me teus seios. A garganta doeu e as lágrimas vieram aos olhos femininos. — Não é necessário, Cedric — murmurou, afogada em soluços. — Mostre-me teus seios, Rhianna! — ele gritou. E então ela percebeu que ele também chorava por trás da máscara. Aquilo a destruiu. — Eu me chamo Esmeralda — contou a ele, de supetão, desejando por vez enterrar aquele nome falso. — Não vou mais mentir. Não precisa ver meus seios, porque tudo que te disseram, corresponde à verdade. Meus seios


são tão pretos quanto era minha falecida mãe. Esmeralda sabia que ele não queria acreditar nisso. Mesmo assim, não esperou que ele fosse até ela, e lhe baixasse o corpete. A atitude surpreendente foi aceita pela mulher, que apenas fechou os olhos com força, como se a vergonha fosse mais forte que sua coragem. Ainda que a luz do sol já havia se posto, pelas tochas carregadas pelos soldados, ele viu a negritude das aréolas, e o desespero da mulher. As mãos do homem tremeram e ele afastou-se, obtuso. — Você mentiu para mim — ele balbuciou, em desespero. — Sempre mentiu para mim... — Sim, eu menti em tudo — A mulher assumiu. — Com exceção sobre meus sentimentos — admitiu. — Contudo, eu sei que eles não têm mais a menor importância. O olhar de ambos se encontrou novamente. Cedric abandonou o olhar atônito e tornou-se febril e raivoso. — Não, não tem — concordou. — Eu me casei com uma mashiana pura, não com... — apontou seus seios. Esmeralda os cobriu. — Levem-na! — ordenou aos homens. — Não! — o grito feminino fez os dois soldados pararem. Encararam o Rei, como se esperassem por uma segunda ordem. — Deixe-me ir, Cedric — Implorou. — Diga que não me achou, que desapareci entre as árvores.


Ele riu, como se ela houvesse contado alguma piada. — E por que eu faria isso? — Teu filho está no meu ventre, Cedric — disse, engasgada pelos soluços. — Sei que me odeia, mas a criança não tem culpa. Deixe-me ir, e jamais me verá novamente. Poderá anular facilmente o casamento, e ficar com quem sempre quis — apontou. — Quanto a mim e a criança, só passaremos de uma lembrança ruim. O Rei aproximou-se perigosamente. Ela sentia o ódio pungente dele escapando pelo olhar negro. Pela primeira vez, viu nele a fera que muitos declaravam existir. — Meu filho? — a indagação dele era fria e cruel. — Esse imundo que tem na barriga não é meu filho. Um Rei jamais seria pai de uma coisa que nem devia ser considerada humana. Nunca mais repita essa frase, sua cadela ordinária — segurou o queixo dela, erguendo a face, fazendo com que Esmeralda o encarasse. — Ainda não sei que fim darei a você, mas te prometo que será o pior possível. Nem em teus piores pesadelos, conseguiria pensar em algo tão cruel. Quando as lágrimas dela caíram em seus dedos, ele a soltou. — Prendam-na — ordenou novamente. — Levemna à masmorra, até que eu decida o que fazer.


E montando no seu cavalo, ele saiu, sem olhar para trás. ***

Esmeralda não lutou. Largando a espada no chão, ela permitiu que os soldados lhe amarrassem as mãos e a colocassem sobre o cavalo. Subitamente, conformara-se. Sempre soube que não havia futuro para ela, mas saber que ele se findaria pelas mãos de Cedric causava uma dor tão intensa que ela não conseguia suportar. Enquanto a levavam em direção à prisão próxima do castelo, ela meditou em todos os erros que cometera, até chegar ali. O pior deles... Não ter enfrentado Cedric. Por culpa do amor que ardia em seu peito, ela não o apunhalou com a espada. Agora, a maior das vítimas de toda aquela história pagaria por sua fraqueza. — Me perdoa — murmurou para o bebê, no ventre. — Eu nunca quis que você sofresse... A noite mais triste de Bran chegou naquele momento com uma chuva fraca. Eram as lágrimas dos deuses, que se uniam as dela. ***


Cedric adentrou no salão real. Todos os rostos se voltavam para ele, e percebendo-o completamente tomado pela raiva, entenderam que Lyn não mentira. O Rei rumou reto até Cael. Não pestanejou, enquanto avançava contra o ruivo e lhe desferia um forte soco no estômago. Cael não se protegeu, ao contrário, uma risada histérica escapou de seus lábios, e ele aceitou, confortavelmente, a punição que viria. Seu pensamento, porém, doíam por Esmeralda. Mas, ela sabia dos riscos. Ambos tentaram. Ambos falharam. Até nisso se conectavam. — Levem Cael até meu quarto, quero falar em particular com ele, mais tarde — ordenou a um dos guardas, que simplesmente segurou o ruivo pelo braço e o guiou escadaria acima. Depois disso, houve um breve silêncio. Era como se todos temessem se aproximar daquele homem ferido. Porém, o medo não durou muito, e logo Iran se beirava do mais jovem. — Filho, isso pode ser facilmente resolvido — amenizou. — Flagelos, um enforcamento e um simples ritual de purificação... — Ninguém toca nela — Cedric murmurou.


— Quanto antes matarmos a imunda, antes... — Cale a boca! — gritou, avançando contra Iran. — Eu sou o Rei! Ninguém toca na imunda, eu já disse! Ela é minha, para eu a torturar o quanto desejar! — avisou. — Cedric, você está alterado... — Estou? — o homem quase riu. — De quem é a culpa disso tudo, meu tio? Quem me convenceu a me casar com uma mashiana? — Como se atreve? — Iran o empurrou. — Fui tão enganado quanto você. Não percebe que tudo isso foi armado por Cael? Ele deve ter trocado as mulheres enquanto esteve em Cashel. — Isso eu saberei mais tarde, quando ter com ele — Cedric avisou. — Enquanto isso, se coloquem todos em seus lugares. Quem aqui dá as ordens é quem tem Bran queimando no sangue. Eu sou o Rei do mais poderoso Reino do mundo, e não vou ouvir críticas. Atreve-se, quem for, a me desafiar, e estará enforcado antes que o sol se levante! Preparava-se para sair, quando a morena Lyn colocou-se em seu caminho. — Cedric — ela alisou sem peito, num consolo gentil. — Percebe, meu amor, que isso tudo foi bom? Estamos livres, Cedric... A mão forte masculina pegou na dela. O olhar


gelado dele a arrepiou. — Nunca mais toque em mim, Lyn — avisou, afastando-a. — Arrume suas coisas e vá embora. Não quero ver sua cara nunca mais enquanto eu viver — decretou. — Se a vivência com a imunda me ensinou algo é que eu nunca te amei. — Está confuso, Cedric... — ela argumentou. — Não me chame de Cedric — gritou. — Sou seu Rei! Trate-me por “majestade”. Tenha-me respeito. O homem que um dia você conheceu está morto. E a mulher que o matou, vai pagar caro por isso. Não queira, você também, ser mais uma vítima. Tentou seguir. Ela permaneceu em seu caminho. — Mas eu te amo... — De minha parte, só existe nojo. Então, por fim, ele subiu os degraus, pronto a enfrentar Cael.



Capítulo 25 Confronto Reza a lenda que quando Masha e Bran se separaram, a Deusa chorou tanto que encheu o vão da terra, tornando-o mar. Contudo, enquanto os trovões ecoavam em volta de si, Cedric pensou na reação de Bran. Ao invés de chorar, o Deus bondoso e pacífico criou a tempestade, expulsando toda raiva que parecia acumulada. Engraçado... ele se assemelhava ao seu Senhor nisso também. Até então, não havia chorado, apesar dos olhos estarem nublados de lágrimas. Tudo que desejava era matar alguém, punir quem quer que fosse por seu infortúnio. Contudo, o sentimento desapareceu ao abrir a porta do quarto e observar Cael. O ruivo era o que ele mais próximo tinha de um irmão. Apesar de tudo que Iran dissera, ele não conseguia imaginar Cael tramando contra ele. Então, quando os olhos verdes-esmeralda encontraram o seu, tudo que Cedric buscou naquele olhar foi a inocência. Sim, porque caso Cael negasse envolvimento naquela armação, ele enfrentaria o mundo para defender o jovem.


Porém, todos os seus propósitos caíram por terra perante a indagação que veio, a seguir: — Ela conseguiu fugir? Cedric retirou a máscara, deixando-a em cima de uma mesinha lateral, onde a esposa deixava sempre as escovas de cabelo. — Foi capturada — avisou. Só então percebeu o pânico no olhar do ruivo, e estremeceu. — Vocês eram amantes? — É claro que não. — E eu devo acreditar nisso por quê? — Porque eu amo Kian. A boca de Cedric abriu-se, em espanto. Ele definitivamente ficou sem saber como reagir, que direção tomar. Sequer conseguia avançar contra Cael, a fim de lhe questionar todo mal que fizera. Todas aquelas verdades, caindo sobre ele, tão de repente, eram sufocantes e pesadas. — Você e Kian...? — Kian não sabe. Ele me ama, mas eu não tenho coragem de assumir isso para ele. Aliás, antes de ver Esmeralda estática, porque acabava de perder você, eu sequer admitia isso para mim mesmo.


— Mas, está assumindo para mim. — O que me importa o que você pensa? Cedric abriu a boca, pasmo. — Por que me odeia tanto? — Não sei, Cedric — riu. — Diga-me você — ordenou. — Por que alguém odiaria tanto o perfeito Rei de Bran? O outro foi até ele. — Você me casou com uma imunda. Tem noção...? — Esmeralda é a melhor mulher que eu já conheci. Não é você que devia se sentir ofendido por ter se casado com ela, e sim ela que devia se condoer em ter casado com você — devolveu. — Contudo, ela o fez porque eu lhe pagaria um preço. — Ela se vendeu, então? Como uma prostituta? Subitamente, sentiu as mãos de Cael o agarrando pela camisa. Não reagiu, mantendo o olhar. — O preço dela era a vingança. E, só eu sei o quanto vale a pena se vingar. — murmurou. — Ela queria a cabeça do homem que destruiu sua mãe, o homem cuja semente fez uma mulher casheana honrada se tornar mãe de uma imunda. Infelizmente, não poderei dar isso a ela... ainda — murmurou. — Mas, Esmeralda deu a mim o maior dos presentes. Ver seu olhar atônito, ver a vergonha de meu pai diante dos demais naquela sala... Ah, meu caro


Cedric, isso valeu cada segundo da minha existência. Cedric o empurrou, soltando-se daquele aperto. — Por quê? O que eu te fiz? Sempre te amei como a um irmão! — Amou como a um irmão? — a gargalhada do ruivo invadiu o ambiente. — Céus, além de tolo, é cego! — Como pode dizer isso? Repentinamente, Cael retirou a camisa. Diante do Rei, ele lhe deu as costas, mostrando a infinidade de cicatrizes, a maioria profunda, que se alastrava por todas as suas costas e ia mais abaixo, em suas ancas escondidas pela calça. — O quê...? A voz de Cedric se perdeu na risada de Cael. — Sério? Você ainda pergunta? — Estendeu as mãos para as costas, apontando uma abaixo das costelas, extremamente profunda. — Essa foi porque eu acertei uma questão que você errou, durante nossas aulas, quando ainda éramos crianças. — Volveu a mão para o outro lado. — Sabe essa que se parece com um circulo? Foi uma marca de ferro quente porque eu deixei um dos seus cavalinhos de madeira cair, quebrando-o. Voltou-se para Cedric. — A maioria foi simplesmente porque respondi rispidamente, ou porque meramente você não estava de


bom humor. As mais recentes, presentes por ter derrubado em teu rosto aquele latão de ferro que, na verdade, sequer foi minha culpa, pois foi você que trombou em mim. Cael então percebeu o vacilar, as lágrimas pareciam surgir, como se inconvenientes, no rosto do Rei de Bran. — Então, mais alguma pergunta, Cedric? Quer saber mesmo porque eu o fiz casar com uma imunda? — Quem fez isso em você? — devolveu, ignorando a questão. Simplesmente, não mais importava. — Não! — Cael negou, revoltado. — Não se fará de tolo na minha frente! Você sabe a resposta! Você sabe muito bem que eu sumia por uma ou duas semanas depois das conversas com meu pai na choupana. Sei que sempre foi egoísta e manipulado, mas não se fará de idiota para mim, tentando aliviar sua culpa. Cedric afastou-se de Cael, sentando-se na cama. — Tio Iran — murmurou. — Tio Iran sempre foi bom para mim. — É claro, você é filho do homem que ele amava, e eu sou apenas o “fruto da foda rápida”. Foi assim que ele sempre me chamou. — Cael se aproximou do outro, que estava de costas para ele. — E então, meu querido Rei? O que fará? Acha que vai me trancar numa masmorra? Está enganado. Eu sou tão Rei quanto você! Não fui coroado porque aquele filho da puta que chamo de


pai me tirou esse direito, mas vou tomá-lo a força. — Não é necessário — Cedric negou. — Eu nunca quis o trono de Masha. — Realmente, é um idiota, Cedric. Você nunca quis, mas meu pai queria. Por que diabos você acha que ele te casou com uma mashiana? Acreditou mesmo na baboseira religiosa da vontade dos deuses? Ele queria unir o sangue de Bran e Masha para que seu filho se tornasse o Rei das duas nações. Enfim, Cael se afastou. — Não me importo com o que fizer comigo. Se me matar, o povo de Masha vai iniciar uma guerra. É um pecado grave para Masha que o povo não proteja seus descendentes. Contudo, se tocar em Esmeralda, quem vai matá-lo sou eu. Pois, ao contrário de você, eu estou cagando para as consequências. Cedric não tinha nenhum pensamento em ferir a mulher. Queria puni-la, sim, mas isso não incluía castigos físicos. Não porque não pudesse, tirando Cael, ninguém se importaria com uma imunda; porém, a verdade é que não conseguia sequer imaginá-la ferida. — Se não pensa nas consequências, não serve para Rei — Cedric murmurou. — Um Rei sempre pensa primeiro em seu povo. A gargalhada de Cael fê-lo levantar-se e ficar diante do outro.


— Que bela lição de moral, senhor perfeito — desprezou. — Não passa de um cego, Cedric — ofendeu, novamente. —Tem consciência que a única coisa que realmente foi verdade nessa história toda é que Esmeralda ama você. — E você quer que eu acredite nisso? — Ela me derrotou a espada. E nós dois sabemos que sou o melhor espadachim depois de Iran. Caso Esmeralda quisesse impedi-lo de trazê-la, ela teria matado você antes mesmo que conseguisse sentir a lâmina cravando no teu peito. Mas, como a maioria das mulheres, ela se deixou limitar — disse, cansado. — Deixou-se prender porque matá-lo, para ela, nunca foi opção. E agora vai ser morta por conta do amor que nutre por alguém que não a merece. — Eu sou um Rei — Cedric murmurou. — E ela, uma imunda. — Você é um homem, e ela uma mulher. E, diga-se de passagem, a única que te amou. A única que você amou, também. Porque, se tem algo que Iran fez bem feito, foi tê-lo livrado daquela enfadonha Lyn. Uma pena que você só vai reconhecer isso quando for tarde demais, quando perdê-la para sempre, quando os anos passarem e tudo que terá dela serão as lembranças de como ela o fez rir, chorar, amar... E depois disso, Cael saiu do quarto, batendo a


porta. ***

O som da faca batendo nas alma. Esmeralda não era uma mulher desde que tiraram dela a espada e jaula, ela passou a temer o olhar guarda.

grades corroía sua de temer algo, mas, a jogaram naquela demoníaco de seu

— Uma imunda querendo ser rainha... O riso debochado do homem a enervou. Mais que isso, encolheu-se em um canto, subitamente apreensiva demais. Nunca sentira aquilo. Já que, antes, sempre havia sua arma para protegê-la. Agora, contudo, suas mãos estavam vazias e ela sentia o filho gerando-se em seu ventre. Pela primeira vez, desde que se lembrava, era indefesa. Pelas janelas altas e gradeadas, ela viu o relâmpago cruzar a cela. Aquilo a arrepiou. Estava frio, e ela tinha apenas o calção e o corpete para protegê-la. Ambos estavam molhados, ainda, da queda no lago que sofreu. Mesmo assim, o frio que parecia miná-la em nada se assemelhou ao pavor que teve, quando a porta da cela foi aberta.


Levantou-se. O guarda a mediu, de cima a baixo, lambendo os lábios, como se estivesse diante de uma deliciosa refeição. — É uma sorte que o Rei não mandou matá-la imediatamente — riu. — Poderemos nos divertir um pouco antes de você ser enforcada. Tudo aconteceu muito rápido, então. Esmeralda levantou os punhos, para se proteger. Mas, em nada sua força física se assemelhava a força masculina. Com a espada, ela era um guepardo, rápido e cruel; sem, não passava de um gato doméstico. Então, quando suas costas chocaram-se contra a parede fria, e o homem avançou, forçando-a, tentando arrancar seus calções, mordendo seu pescoço e peito, e tentando alisar seu centro feminino, ela gritou desesperada, pedindo socorro a Cashel, o Deus de sua mãe e de seu irmão, o único que sempre acreditou apiedar-se, mesmo que pouco, dela. Nunca soube se foi realmente Cashel que interveio. Contudo, teve certeza que era a mais sortuda das mulheres quando sentiu o corpo forte do guarda abandonando-a e sendo atirado do outro lado da cela. Kian... Como ele havia entrado ali? Como soubera que fora presa? Cael também estaria em dificuldades? Tudo nela tornou-se uma confusão de dúvidas, mas nada foi


realmente respondido, pois o moreno braiano jogou-se contra o homem e ambos se atracaram numa luta corporal, sem tréguas, pela honra ou indignidade daquela mulher impura. Por fim, o som de mais passos, e a luta cessou. O rosto de Cedric surgiu na escuridão, e ele encarou os dois homens, que se afastaram, curvando-se ao rei. — O quê...? — a frase começou, mas não terminou. Cedric não precisava de respostas ao ver o corpete rasgado e a pele pálida marcada por mordidas. Quando seus olhos encontraram-se com a falsa Rhianna, e viu as lágrimas que tanto o faziam vacilar deslizando pela face clara dela, ele revoltou-se. — Matem-no — ordenou aos guardas, indicando o estuprador. — Mas, senhor... — o homem tentou, ajoelhandose diante dele. — Ela é só uma imunda. Cedric aproximou-se. Esmeralda percebeu que ele a media, de cima a baixo, como se fosse a primeira vez que a visse. — O que estão esperando para fazer o que eu lhes ordenei? A pergunta era aos guardas. Os homens,


imediatamente, postaram-se ao lado do homem, levantando-o do chão. — Meu bondoso Rei! — o guarda exclamou. — Rogo por sua misericórdia e seu perdão. Cedric voltou-se para ele. Os olhos, frios. — Ninguém toca no que é meu. Quando o homem foi levado, Kian voltou-se para o Rei. Tanto o jovem, quanto Esmeralda, estavam temerosos do que viria a seguir. Cedric não parecia o mesmo homem, não tinha o mesmo olhar de sempre, parecia um carrasco diante de sua vítima. — Cael o enviou? — a pergunta era para Kian. O rapaz negou. — Soube pelo que aconteceu pelos empregados. — E veio resgatar a minha prisioneira? Kian balançou a cabeça, afirmativo, corajoso. — Vá, Kian — ordenou. — Antes que eu faça algo contra ti que me arrependa para o resto da vida. O rapaz ainda olhou para Esmeralda. Viu nos olhos verdes o pedido mudo para que ele escapasse. Sabia, mesmo que ela não dissesse, que a mulher não queria o fardo de levar sua morte nas costas. Enfim, ficaram sozinhos. Não eram mais um Rei e uma imunda. Nem um


marido e sua esposa. Agora, um diante do outro, eram um homem e uma mulher.



Capítulo 26 O homem e a mulher A chuva abrandou um tanto, naquela noite terrível. Esmeralda podia ouvir o som contínuo das gotas batendo contra a parede, o barulho das árvores movidas pelo vento, e o estrondo aterrorizador dos trovões, imponentes, ao longe. Porém, era o semblante frio e sério de Cedric a encarando que fê-la vacilar. Quis dizer muitas coisas a ele, quis verdadeiramente se explicar. Entretanto, o próprio Rei já havia lhe avisado que ela não receberia perdão. Então, de que adiantava falar? Explicar-se? Cedric nunca entenderia sua posição. — Amanhã — ele começou, diante de sua mudez. — Amanhã você partirá de Bran — o comunicado pareceu lhe cortar a alma. Havia um misto de emoções em Esmeralda. A dor pela perda de quem amava, o alívio pelo filho não ser morto. — Você me perdoou? — a pergunta tinha um propósito. Todavia, não foi atingido.


— Eu jamais a perdoarei. Porém, eu devo a Cael, tenho consciência disso. E, por ele, eu te permitirei partir. Irá para Masha, ao lado de Cael, que será coroado. — Cael conseguiu, então? A Coroa? — Iran ainda não sabe, mas eu o irei coroar, caso ele mesmo se recuse. Esmeralda quase sorriu. Pelo menos isso... Pelo menos seu irmão teria a sua recompensa. — Eu te agradeço, Cedric. A respiração dele, rápida, moveu-se junto com as pernas. Em segundos, Cedric a comprimia contra a parede. Mas, não de paixão, e sim de ódio. — Nunca mais me chame pelo primeiro nome — ordenou. — Aliás, nunca mais dirigirá a palavra para mim. Essa é a última vez que ficaremos de frente um para o outro. Afastou-se, caminhando para o outro lado da cela. — Eu não pedirei o seu perdão, Majestade — quase ironizou o título, mas conseguiu refrear a língua a tempo. — Apenas, saiba que eu nunca quis feri-lo. — E você acha que me feriu? — a risada dele magoou-a. — O que pensa? Que eu me apaixonei? Por favor, já se olhou no espelho? — Disse que tinha afeição — ela se protegeu, cada vez mais sentindo a dor de ouvir aquele tom


desprezador. — Afeição não é amor. Eu nunca te amei. Eu nunca vou amar você — afirmou. — Ainda mais agora, que sei que não passa de uma impura, uma imunda. Esmeralda sentiu as lágrimas caindo, e foi secando-as, uma a uma. O que restava de sua dignidade era recolhida, assim como seu pranto. — Eu sei disso. Eu sempre soube... — Eu tenho vontade de vomitar só de pensar que toquei em você — disse, colérico. — Eu devia matá-la, por ter se atrevido... — aproximou-se novamente, perigoso. — Você é tão falsa, tão mentirosa... — Eu nunca menti sobre o que sentia! — devolveu. — Eu te amei com todo o meu coração — confessou. — Mas, igualmente, eu sempre soube que não havia futuro. E, por isso, nunca quis te cobrar... — Você atrapalhou meus sonhos com Lyn — ele disse, parecia vitorioso, perante o olhar lacrimejante. — E agora, eu vou me casar com a mulher que eu amo. Terei filhos com ela, filhos puros, e você não vai passar de um objeto que usei, do qual sinto profundo desrespeito e vergonha. Não houve retorno. Esmeralda estava destruída demais para falar. — Espero que tenha um ótimo futuro em Masha,


criando um imundo, como você. Quando a porta da prisão bateu, trancando-a, a mulher caiu no chão. ***

A porta do quarto abriu. Cedric entrou no local, onde nos últimos meses vivera um sonho mágico de amor. Agora, mais nada restava. Nada... A não ser o cheiro dela. A camisola sobre a cama, os lençóis onde ela se entregava a ele, atrevida, o gosto dela que insistia em permanecer em sua boca. Sentou-se na cama. Arrancou a máscara, atirando contra a parede. Ao seu lado, um lenço de seda descansava ao lado do travesseiro. Pegou-o na cama enquanto sentia as lágrimas molhando a pele. O primeiro soluço chegou antes que ele conseguisse levar o lenço ao rosto. Cael o chamou de idiota. Era exatamente isso que ele era. Um idiota! Um tolo! Fora tão facilmente corrompido pela cena sensual dela. Definitivamente, havia se apaixonado por uma mentirosa. Sequer o nome daquela ruiva era o que ela lhe dissera.


E ainda se atrevia a falar de amor. Desde quando qualquer sentimento poderia passar pelo coração de um imundo? A religião sempre disse que... Lembrou-se das lágrimas dela. Queria feri-la, precisava disso. Queria que ela estivesse tão machucada quanto ele, porém, por que vê-la chorar pareceu lhe machucar ainda mais. O som na porta fê-lo girar em direção à entrada. Iran surgiu diante dele, como um pai zeloso que só buscava tranquilizá-lo. No entanto, agora, depois de tudo que soubera, depois de tudo que aquele homem fizera a Cael... Cedric sabia não ser mais o único a usar máscara dentro daquele castelo. — Meu filho... — Iran se sentou ao seu lado, querendo abraçá-lo. — Precisa ser rápido antes de levantar calúnias — disse. — Vamos matar a imunda... Cedric levantou-se, deixando-o sozinho na cama. — Ninguém toca na mulher. — Filho... — Não me chame assim, não sou seu filho — retorquiu. — Cael é seu filho. Um filho que você desprezou por anos. — Como pode falar assim comigo? Sabe que eu o amo acima de todas as coisas! — Mas não devia! Devia ser de Cael seu amor! —


balançou os braços, como se estivesse exausto. — Esmeralda partirá com Cael amanhã, bem cedo. Ambos irão para Masha. Cael é o Rei por direito, e eu exijo que o senhor lhe dê a Coroa, ou eu o farei, através da guerra. O destino da imunda estará nas mãos do Rei de Masha. — Permitirá que essa mulher parta? Isso seria um problema. Temia que não conseguisse. E se, quando a hora chegasse, vê-la sumir no horizonte destruísse seu resto de sanidade? — Ela está grávida — não era bem a resposta que Iran esperava. O bebê... Ela tinha um bebê dele dentro do ventre. Aquilo não lhe serviria de justificativa para mantê-la a si? — Um imundo! Repentinamente, Iran sentiu-se sendo empurrado na cama. A mão de Cedric levantou-se, em punho fechado, e o Príncipe não coroado de Masha soube que seria socado. Porém, numa última hora, a razão pareceu voltar ao Rei e ele se afastou. — Nunca mais fale isso da criança. — Só disse a verdade! Cedric riu. — De algo me serviu toda essa história — disse. — Agora eu percebo claramente o quanto você me manipulava, o quanto me tornou um Rei fraco, sempre


cumprindo a sua vontade, e não a minha. Isso acabou. — Decretou. — Se quiser ficar, será como um simples conhecido. Não me chame mais de filho, não me chame por Cedric. Contudo, espero que use seu resto de vida para arrepender-se dos seus erros e tentar obter o perdão de Cael. Ele merece ter uma família. Subitamente, o rei deu as costas ao homem. Estava exausto, queria deitar e chorar o resto de noite, antes de o dia raiar e ele, enfim, ver aquela mulher pela última vez. Porém, não teve tempo para isso. De repente, sentiu a mão de Iran cobrindo seu rosto, apertando um pano molhado contra seu nariz. Tentou se livrar, mas o homem pareceu ser muito mais forte, a cada segundo mais. Por fim, antes de desmaiar, Cedric percebeu que Iran não era o forte, e sim, que o que quer que fosse que o tio embebeceu o pano, tornou-o fraco. — Perdoe-me, filho — Iran murmurou, tocando o seu rosto. — Mas, a imunda tem que morrer. ***

Desde que soubera que a ruiva era uma imunda, Iran compreendeu que precisaria agir diante do que estava por vir. Não era cego, reconhecia a paixão, mesmo que


refreada, de Cedric. E um homem apaixonado era sempre um idiota, capaz das maiores besteiras. Então, voltou ao quarto, mesmo que o rei tivesse ordenado que todos permanecessem onde estava. Seu afastamento temporário foi apenas para pegar um pequeno vidro, onde havia uma poção feita com oleandro. Uma velha feiticeira, havia lhe dado a poção há muitos anos, e ele planejava usar em Lídia. Contudo, não precisou. Obviamente, jamais faria seu amado Cedric beber o conteúdo do vidro, mas usou o cheiro para apagá-lo. Só Masha sabia como a tal feiticeira havia feito aquela poção, mas bastava por um pouco sobre o nariz e a pessoa sentia os nervos em combustão. Logo, despencava, num desmaio que durava algumas horas. Iran sabia disso porque a usou, certa vez, num amante que queria contar tudo a Cedric. Quando o homem acordou, enquanto ele já planejava enterrá-lo, conseguiu enfiar o líquido na garganta do rapaz. Depois de matá-lo, voltou à feiticeira, que lhe deu mais em troca de ouro. Gostava de estar preparado, e agora o estava. Com Cedric fora do caminho, era questão de minutos para que a imunda fosse morta. — O Rei pediu para deixá-lo em paz — avisou a Lyn e Angus, que pareciam nervosos no andar de baixo. — Como tutor, tomarei as devidas providências para


resolvermos esse problema. Começou a se afastar, quando Lyn colocou-se em seu caminho. — Cedric não me quer mais? Por que ele não me deseja mais? Achei que me amasse! Por céus, era igual a Lídia. Chata, enfadonha, insuportável. Soube, naquele instante, que a braiana teria o mesmo fim que a mãe de Cedric, caso ela tivesse conseguido se casar com seu amado Rei. — Saía do meu caminho, tenho mais o que fazer — avisou. Angus puxou a irmã. — Acredito que devemos ir embora — o irmão disse, mais lúcido. — O Rei ordenou. Enquanto Lyn gritava chavões clichês de “eu não vou desistir dele!”, Iran sorriu ao jovem. — Sim, Angus, é o melhor. Cedric não está nos melhores dias, e tudo pode acontecer contra você, ou sua irmã. Deixou-os, em seguida, e rumou até a catedral anexa ao castelo. A conversa com o sacerdote não durou muito. Depois, se dirigiu a prisão. Em menos de dez minutos, estava diante de Esmeralda.


Encolhida em um canto, a mulher o encarou. O ódio que viu em seu olhar lhe fez rir. Ora, se ela o detestava pelo que fizera a Cael, levaria ao inferno seu ódio pelo que estava prestes a fazer contra ela. — Imunda — a chamou, com desprezo. — Hoje é o dia que você vai morrer. ***

A batida forte na porta fê-lo girar na direção da entrada. Correu até lá, para dar-se de frente com Kian. — O que aconteceu? — Cael indagou, já nervoso. — Eles foram até Esmeralda? — Cedric está no quarto. Seu pai foi vê-lo, e depois saiu sozinho. O segui. Entrou na igreja, falou com o clérigo, e depois foi à prisão. Eu acho que vão matá-la. O rosto de Cael enrubesceu. — Cedric é um covarde — decretou. — Deixou o trabalho sujo para meu pai, mas isso não ficará assim. Buscou a espada. Estava tão atordoado, que correu até o quarto do Rei. Dissera, uma vez, a mulher, que jamais tocaria no pai, mas, estava decidido a, depois de matar Cedric, tirar a vida do genitor. Seus planos, contudo, morreram ao ver o jovem


Rei deitado, desmaiado, no chão. — Kian... — murmurou ao amigo, às suas costas. — O que meu pai fez? O escudeiro correu até o Rei. — Está respirando — aliviou. — Mas, foi dopado. Você sabe o que isso significa? Cael deu as costas. Correndo, ele desceu as escadarias, pronto para a guerra que viria. Contudo, segundos depois, foi impedido por Kian, que lhe segurou no braço. — Não temos tempo — reclamou, assim que viu os olhos emocionados. — Tem algo que você não sabe — o moreno avisou. — Se é algo romântico, pode esperar. O braiano quase riu. Porém, as lágrimas impediram a gargalhada. — Esmeralda. É sobre ela. — Eu sei tudo sobre ela. — Não sabe o mais importante. Cael pareceu assustado. — E o que é? Um uivo ao longe indicava que um lobo estava próximo ao castelo. Depois da chuva, a noite se


encaminhava para um frio intenso que parecia corroer os ossos. — Ela é sua irmã. Era a primeira vez, na vida de Cael, que ele sentiu não estar sozinho naquele mundo vasto e cruel.



Capítulo 27 Reencontro O sereno da noite tocou-a. A chuva que durara praticamente toda a noite, já havia se dissipado e era possível ver as estrelas no céu, a brilhar, selvagemente, sobre o reino do Deus Bran. Arrastada como um animal, com as mãos presas por correntes longas, Esmeralda foi escoltada até uma elevação à frente do castelo. Os seus olhos verdes brilharam de terror diante do que via. Uma plataforma de madeira havia sido erigida de forma rudimentar. Nela, era possível ver uma estaca alta, onde uma corda com um laço na ponta parecia aguardá-la. — Cedric me prometeu liberdade — gritou para Iran, que caminhava a frente. — Os planos mudaram — ele comentou, rindo, enquanto se aproximava de um sacerdote. A mulher foi erguida pelas mãos dos homens, até ficar diante do carrasco, que colocou o laço em volta do seu pescoço, puxando a corda das mãos, unindo os dois laços, para que seu sufocamento fosse pior.


Volveu o olhar adiante. Não estava ali, nem Cedric, nem Cael. Sequer, Kian. Estava abandonada a própria sorte. Olhou para cima, como se buscasse novamente Cashel, mas soube que o Deus também já lhe virara as costas. Era o fim, então? Contudo, o sofrimento só devia estar começando. Afinal de contas, tão logo esses pensamentos a tomaram, ela viu, surgindo com uma faca na mão, o mesmo sacerdote que havia realizado o seu casamento. — Não! — gritou, em pânico. — Não faça isso! — Imunda, estou fazendo isso para o seu próprio bem. — O tom tentava ser confortador. — Antes de morrer, temos que esfolar seus seios, retirar essa pele preta, para que possa ser recebida pelos deuses em paz. Esmeralda começou a lutar contra as cordas, tentando escapar. Como estavam muitos firmes, ela se apoiou nelas para erguer as pernas e afastar o sacerdote. Contudo, isso era apenas prolongamento da agonia, já que tão logo fez isso, o carrasco e outro soldado a seguraram. Então, fechou os olhos, preparando-se para ter seus seios arrancados. Porém, os abriu em seguida, diante de um assovio. Olhou esperançosa, e quase chorou ao ver Cael, ao longe, empunhando uma espada.


— É sério? — Iran gargalhou. — Solte-a — o rapaz ordenou. — Não vou soltá-la. E você fará o quê? Vai me impedir de que jeito? Não pode lutar contra mim. Sou e sempre serei mais forte que você. Cael avançou. — Eu posso e irei. Iran tirou a espada da cintura e ficou defronte ao filho. Ambos se encararam, alguns segundos, antes do mais velho avançar. Cael tinha boa vontade, reconhecia Esmeralda, mas Iran era rápido. Tão rápido quanto ela. Só então deuse conta de onde herdara aquela habilidade. Mesmo assim, o rapaz esforçou-se para manter-se em pé, e não vacilou diante da espada que bramia com força contra si. — É mais tolo do que eu pensava, Cael— Iran gargalhou. — Não percebe ainda que é uma guerra perdida? — Na verdade, eu acabei de vencer — o filho sorriu. Naquele instante, o som de um corpo caindo da plataforma, fez o mais velho olhar rapidamente para lá. Ao longe, viu Kian cortando as cordas que prendiam a mulher e, puxando-a pelo braço, retirou-a do local. Fez menção de ir naquela direção, mas mais uma


vez, teve que se proteger contra o filho. Rugiu, como um leão, perante a audácia. Então, avançou como nunca contra Cael. Em segundos, o derrubava no chão, e só não o matou porque uma lâmina cortou o ar e o atingiu no braço. Não o machucou, mas o alarmou. Reforços? Pasmo, Iran viu um cavaleiro surgiu na negritude da noite, escondido por uma armadura, disparando em direção à mulher. Enquanto Kian lutava contra os guardas, o cavaleiro estendeu a mão e Esmeralda aceitou. Quando os dois desapareceram floresta adentro, Iran, pasmo, percebeu todos os seus planos dissipando-se no ar. Ouviu o riso de deboche do escudeiro braiano e o do próprio filho. Havia perdido aquela batalha, mas jamais perderia a guerra. ***

Esmeralda reconheceu seu salvador pelo cheiro. Aninhou-se às costas dele, enquanto sentia o cavalo cavalgar montanha adentro, num ritmo rápido e potente. Logo, chegaram a uma espécie de caverna. Lá,


uma mulher de cabelos vermelhos como os dela parecia aguardá-los. Assim que o cavaleiro puxou as rédeas, Esmeralda desceu, encarando a jovem, tentando entender o que estava acontecendo. — Você me deve muitas explicações — o irmão retirou o capacete, observando-a com o olhar rancoroso. — E trate de falar antes que eu lhe coloque no colo e encha essa bunda branca de tabefes! Esmeralda riu, jogando-se contra os braços do negro. Céus, que saudade! Sentiu que, mesmo contra a vontade, ele a envolveu num abraço carregado de amor. — O que faz aqui, Randu? — voltou-se para a mulher. — E você, quem é? — Sou você — ela sorriu. — Sou Rhianna. — A verdadeira Rhianna — Randu confirmou. — Aquela de quem você tomou o lugar. — Seu tom era condenatório. — Sabe o quanto sofri desde que sumiu? O que passei atrás de você? Estive até em Masha! Esmeralda parecia embasbacada. — Como entrou em Masha? — Rhianna me ajudou — ele apontou. — Ela se fingiu de minha senhora.


A ruiva impura encarou a outra. — Por que nos ajudou? — Foi Randu quem me ajudou. Quando levaram você no meu lugar, deixaram-me sem ouro ou ajuda para poder voltar para casa. Randu me protegeu de um ataque... — Cael deixou dinheiro — ela renegou, movendo o rosto. — Cael jamais desampararia uma mulher — subitamente, a imagem do irmão ruivo a tocou. — Eu preciso voltar — afirmou. — Preciso salvá-lo! — Voltar? Ficou louca? — Randu estava ao ponto de sacudi-la nos braços. — Temos um barco na encosta. Vamos agora mesmo para lá. — Não, eu preciso... — Não deixarei que se arrisque por ninguém. Aliás, foi esse Cael que a colocou nessa armação? — Sim, mas, por favor, precisa entender... — Se eu voltar lá, será para matá-lo! — Não, Randu! — ela negou. — Não tocará em Cael! Ele é meu irmão, como você. E eu o amo, mais que a minha própria vida — afirmou, sem medo. — E se eu não voltar, aquele filho da puta que derramou sua semente em nossa mãe vai matar Cael. — Segurou o irmão nos ombros. — Eu já sei que Iran de Masha é meu pai, e sei que você tentou me proteger por todos esses anos. Mas, agora, preciso que confie em mim. Eu te contarei toda a


história durante o caminho, mas preciso que me ajude. Cael se arriscou para me salvar. Não posso abandoná-lo agora. Randu pareceu ler aquele olhar. A irmã havia amadurecido muito, desde que se lembrava. Naqueles meses desde a última vez que a viu, ela se tornou uma mulher forte e convicta. — O castelo deve estar cheio de guardas — Rhianna murmurou. — Não será fácil invadir... — Meu objetivo não é o castelo — Esmeralda se interpôs. — Eu quero chegar até a choupana que fica dentro da floresta. — Voltou-se para o irmão. — Você tem mais uma espada, além da sua? Ele negou. — Eu tenho — Rhianna estendeu a dela para Esmeralda. — Seu irmão comprou para mim enquanto me ensinava a me defender — contou. — Espero que consiga salvar o tal Cael. Esmeralda pegou a arma. — Não me odeia pelo que fiz a você? — indagou, à mulher. — Você não me fez nada. Foi os deuses que quiseram tudo isso — disse, firme. — Masha e Cashel desejavam que eu conhecesse Randu, eu sinto isso do fundo do meu coração — sorriu. — Agora, somos irmãs


também — afirmou. — E eu farei tudo que puder para ajudá-la. Esmeralda sorriu. Depois de um curto abraço na jovem, ela voltou-se para o cavalo e observou o irmão. Era um longo caminho de volta, onde ela teria que narrar muito mais do que planejava. Precisava se abrir com Randu. ***

— Você sabe... — Iran murmurou, enquanto experimentava o chicote de pregos em uma mesa, próxima. — O casamento com a sua mãe foi uma imposição do meu pai — riu. — Me acha um péssimo pai, mas devia ter conhecido aquele velho. Ele pôs a própria mulher numa torre, e quase me matou quando descobriu minha paixão por Atho — aproximou-se do filho. — Então, ele me arrumou uma vadia que nem conseguia abrir a boca para falar comigo. — Bateu novamente o chicote na mesa. Depois, forçou a retirada dos pregos que ficaram presos na madeira. — Eu tive que fodê-la algumas vezes. Na verdade, várias. Ela não pegava barriga. Talvez porque eu sempre fazia com muita pressa. Enfiava, gozava e depois saia de dentro e tomava banhos demorados para tentar tirar o cheiro repugnante daquela puta da minha pele.


Caminhou até Cael. O filho permanecia em silêncio. — Acredite ou não, fiquei feliz quando ela engravidou. Eu não precisaria mais tocar naquela vadia, e podia partir de Masha. A guerra foi um alívio, pude permanecer o tempo todo ao lado de Atho. Primeira chicotada. O grito sufocado de Cael se seguiu a queda do rapaz, de joelhos, diante das estacas que prendiam suas mãos. — Mas a guerra acabou e ela morreu. E eu me vi com você, aquela coisinha nojenta e chorosa, que tentava o tempo todo chamar a minha atenção. Mais uma chicotada. Os pregos cravaram-se nas costas largas. Dessa vez Cael não conseguiu conter o grito de dor. — Quantas vezes eu torci para que morresse? Quantas vezes eu impedia os médicos de vê-lo, quando tinha febre? Quantas vezes soltei as celas dos pôneis que montava? Mas, seu desgraçado, você se recusou a morrer. Mais uma chicotada. Cael sentiu os olhos escurecendo-se, mas riu, desafiador, em tom de desprezo. — Você pode me matar agora — disse o jovem. — Cedric não é mais enganado pelas suas armações. Acabou, para você, velho desgraçado. Pode me matar, pois já alcancei meu objetivo.


Iran sentiu o sangue subindo no rosto. Levantou novamente o chicote, mas foi interceptado por uma lâmina no seu pescoço. Sorriu. Aquela noite, definitivamente, havia se tornado interessante. — Decididamente, é muito corajosa, imunda — comentou. — Voltou pelo seu amante? A mulher arrancou o chicote de suas mãos. A lâmina, fria, ainda firme contra a sua pele, conteve o ímpeto do pai. Iran viu um casheano entrando na cabana e correndo até Cael. Soltando-o. — Isso é entre você e eu, Iran — ela murmurou. Com a força da espada, levou-o até o lado de fora da cabana. Depois afastou-se um pouco. A espada do negro estava cravada no chão, e ela a atirou contra Iran, que encarou a arma com um tom claramente irônico. — Realmente, não teme a morte, imunda — ele provocou, firme. — Você teme? — ela devolveu a questão. — Não — negou. — Eu não temo a nada. Devia? — De fato, Iran de Masha, devia. — Esmeralda confirmou. — Contudo, o compreendo. Existem motivos para que eu também não a tema. — Deu os ombros. — Você gostaria de ouvir uma história? O negro saiu da cabana carregando nos braços o


filho de Iran. Cael encarou a mulher, sabendo que havia chegado a hora da vingança dela. — Se não for muito longa... — Iran sorriu. — Não sou do tipo que gosto de narrativas extensas. Esmeralda gargalhou. — Era uma vez... — começou. — Uma rainha linda, bondosa e gentil. A Rainha do povo de Cashel. Iran arqueou as sobrancelhas, enquanto baixava-se para pegar a espada. — Ela não era totalmente feliz, mas vivia em paz, até que seu esposo decidiu começar uma guerra, trazendo para sua terra um príncipe cruel e maldito, que a tomou assim que pôde. O olhar de Iran mudou. Subitamente, apreensivo. — Essa Rainha engravidou. Um filho de um príncipe estrangeiro... Você consegue imaginar a vergonha? Iran permaneceu sério. — Mas, essa Rainha se recusou a abortar a criança. Foi humilhada e expulsa de seu lar. Mesmo assim, ficou firme, e deu a luz a uma menina... Uma imunda. Iran levantou a espada. — Sabe por que deve temer a morte, Iran de


Masha? Porque diante de você está exatamente aquela que herdou a sua única qualidade. Esmeralda ergueu a lâmina. Ambos, um diante do outro, preparam-se para o confronto. — Eu, Esmeralda de Cashel, sou sua filha, Iran. E de você tenho tudo, incluindo a capacidade de odiar mais que a de respirar — Ela pareceu desaparecer por alguns segundos. Era rápida, e logo as espadas se chocaram. — Sou a vingança, Iran... Sou aquela que vai destruir você, desgraçado! — Mais uma vez, chocaram-se. — Sou a única que vê seus movimentos, sou a única que pode enfrentá-lo. Iran não conseguia sequer respirar, enquanto se protegia dos ataques. Esmeralda estava enganada. Ela não era igual a ele, era melhor, era mais rápida. Era sua versão aprimorada. Ele forçou as vistas para acompanhar os movimentos ritmados, enérgicos, que pareciam uma dança maldita diante de si. Subitamente percebeu, tudo aquilo era Masha o punindo pelos pecados. Mesmo assim, não se acovardou. Respirando fundo, decidiu que se defender não o faria vencer aquela batalha. Correu para a direita, tentando ganhar tempo. A mulher logo surgiu diante dele. O olhar dela pegava fogo, o verde jamais esteve tão esmeralda.


— O que vê, quando me olha? — ela riu. — Sua mãe? Ou Masha? — indagou. — Quantos pecados cometeu contra a sua Deusa? Deve estar desesperado, sabendo que agora terá que dar conta de seus atos perante a sua Senhora! — Ainda não me derrotou, imunda — ele devolveu. Mas, não havia convicção na sua voz. — Está enganado. Eu já atingi você. Só então, o homem olhou para baixo. Levou a mão abaixo das costelas e viu o sangue. Como aquilo acontecera? — Seu castigo é saber que eu sou mais rápida e melhor que você. E se não te destruí antes, foi por amor a Cael e a Cedric — aproximou-se. — Mas, Cedric me deixou para morrer, e você quase matou Cael. Então... não vou ter piedade. Chutou-o exatamente onde o atingiu. A dor invadiu o corpo inteiro de Iran, enervando-o, e ele gemeu, alto. Logo a filha que ele nunca reconheceu sentava-se em seu peito. O punho dela se ergueu. — Isso, é por Brione! — O primeiro soco o fez engasgar com o sangue. — Isso, por Cael. — Outro soco, e ele sentiu o ar faltar nas narinas, entupidas imediatamente pela agressão.


— Esmeralda! — o negro gritou. — Não faça isso! Não vale a pena! — Isso é pelo meu filho — outro soco, mais forte, com todo ódio do coração. A menção de uma criança trouxe lágrimas aos olhos dos dois homens, irmãos da imunda. — Esse é por Randu, meu irmão, que perdeu o trono por sua culpa — Mais um soco. —E esse, é por mim... Porém, não conseguiu dar aquele ultimo soco. Sua mão foi interceptada por Cael. Encarou o ruivo. — Não, Esmeralda — ele disse, com lágrimas nos olhos. — Deixe-o para trás — pediu. — Ele perdeu Cedric, porque depois de tudo, o Rei de Bran não vai mais aceitá-lo. E morrerá velho e sozinho, enquanto nós dois sempre teremos um ao outro. Puxou-a. — Eu te amei no exato momento em que te vi, nunca consegui entender o motivo. Mas, agora é tudo claro para mim — disse. — Estamos juntos, agora e para sempre. Deixe Iran de Masha com seus próprios demônios e vamos, nós, a uma vida feliz... porque é isso que nos espera. A mulher voltou-se para o velho, mais uma vez. Cuspiu então, nele, e saiu, abandonando-o, ferido, em


meio aquela floresta. Quando ficou completamente sozinho, um ataque de riso inundou Iran de Masha. Quem diria... havia cumprido mais que a vontade de unir seu povo e o de Bran. Havia unido seu sangue e o de Atho em amor. Estranhamente, aquilo nĂŁo lhe trouxe felicidade.



Capítulo 28 Irmãos O sangue tingiu todo o seu ventre. Iran de Masha, contudo, parecia ignorá-lo, enquanto avançava, em passos rápidos, naquela floresta em tom avermelhada, que assim estava pelo amanhecer que despontava no horizonte. Iran apenas se focava no seu destino, no lugar onde fecharia os olhos para sempre. Sim, havia chegado ao fim suas lutas, suas dores, seus infortúnios. Desde que fora humilhado pela derrota, ele decidira morrer. E não, não daria a ninguém o gosto de matá-lo. Obviamente, a imunda não o matou por escolha própria. Ela viveria até o fim com aquele arrependimento, pensou. O resto da humanidade sentiria alívio em escolher o perdão à vingança. Mas, a ruiva era sua filha. E ele podia enxergar a si mesmo dentro dos olhos verdes. E Iran odiava na mesma intensidade que amava. Então, se ele estivesse no lugar dela, teria cravado a espada na sua garganta. Porém, viu o amor que ela nutria por Cael em seu olhar desafiante. Escolheu a vida ao lado do irmão sem o peso do assassinato do pai nas costas. Como poderia culpá-la? Apesar de ter amado muitas


poucas pessoas na sua vida, Iran também afogaria seus próprios desejos pela felicidade daqueles a quem nutria sentimentos. Enfim, chegou à planície. Ali, adornado por rochas e tulipas plantadas há muito tempo, Atho descansava. Caminhou, sentindo uma pontada de dor nas costelas, e, por fim, sentou-se ao lado do túmulo, rindo, enquanto buscava o pequeno vidro com veneno, guardado dentro do casaco. — Eu criei Cedric — ele murmurou ao amigo, como se ele pudesse ouvi-lo. — Fiz o meu melhor, apesar de ter cometido erros — assumiu, abrindo o vidro. — Contudo, não é minha culpa que eu não consiga ser falso, não é, Atho? Fingir um amor por Cael que nunca senti... — riu. — E, depois, teve a imunda... Ao longe, um dos pássaros cantava a entrada de um novo dia. Momentaneamente, Iran se calou. Ficou assim, alguns minutos, como se ouvir aquela musica final lhe despertasse muitas emoções. — Eu uni os nossos sangues — a voz parecia se apagar. — Não da maneira como eu esperava, mas seu filho se casou com a minha filha, e ela tem no ventre agora, a nossa união. Sentiu as lágrimas a tomá-lo. Não chorava desde o funeral de Atho, e aquilo parecia lhe surpreender. Não esperava que fosse prantear no seu momento final.


— O problema, é que a criança também tem sangue casheano — contou. — Você pode me perdoar? — voltou-se para o túmulo, os soluços o tomando. — Tudo teria sido mais simples se tivesse me escolhido, Atho — afirmou. — Eu teria sido feliz, você teria sido feliz... — baixou o rosto até as pedras, parecendo abraçá-las. — Mas, isso não importa mais. Nada mais importa — reafirmou. — Agora, vou para o submundo, pagar meus pecados. Uma eternidade sem você — murmurou. — Mas, quem sabe, Masha tenha piedade, no final de tudo, e eu ainda possa vê-lo, uma última vez. Levou o vidro até os lábios. Derramou todo o conteúdo na boca, engolindo sem pensar direito no próprio ato. — Por fim, Atho, meu amor — murmurou. — Não consegui ser perfeito, mas pelo menos fui real — desculpou-se. — Até algum dia... Se os Deuses permitirem. ***

Cedric abriu os olhos. Deitado no chão do próprio quarto, ele sentiu a cabeça latejar, enquanto se erguia, pensando na cena da noite anterior. Imagens de uma suposta traição por parte de Iran lhe chegaram aos pensamentos, e ele quase teve que impedir as lágrimas de


decepção a tomá-lo, enquanto tentava se equilibrar nas próprias pernas. O corpo doía. Mais que isso, parecia que havia sido pisoteado por uma manada de búfalos. Todos os ossos, especialmente as pernas e braços, pareciam moles, e a cabeça girava, enquanto as vistas nublavam-se, constantemente, como se estivesse com vertigem. Até que, após alguns minutos, conseguiu colocar o raciocínio em ordem. Iran o havia lhe traído, enquanto... o que ele dissera, antes de apagá-lo? “A imunda...” A imunda o quê? O que era? Parecia mais um sussurro maldito, algo que lhe corroía. “A imunda tem que morrer”. Ergueu-se, lutando contra o próprio corpo. “A imunda tem que morrer”. Não! Iran não podia ter lhe traído de tal forma! Iran não a matou, não é? Cambaleante, chegou até o corredor. Não havia ninguém à vista, e aquilo o alarmou. Quis ser rápido, mas as pernas não lhe obedeciam. Levou um certo tempo para conseguir controle próprio, e quando sentiu que, enfim, seus membros passaram a ter coordenação, ele quase correu, escadas abaixo. — Iran! — gritou, a ninguém em particular. —


Onde está Iran? Um dos guardas que fazia a vigília a frente se aproximou. Parecia temeroso. — Meu Rei... — murmurou. — Ontem à noite... — O que aconteceu ontem à noite? A porta frontal estava aberta. Ao longe, ele pôde ver a plataforma de execução. Afastando o guarda, caminhou como um demente em direção a ela. Lágrimas lhe surgiram nos olhos, enquanto pensou que a havia perdido. Não como imaginava, não para Cael, mas sim para a morte. — Onde está Iran? — questionou ao guarda que o seguiu. Iran pagaria muito caro por aquilo. — Ontem à noite, quando lorde Iran ordenou a execução, Príncipe Cael e seu escudeiro a interromperam. Cedric voltou-se para o guarda. — Eles fugiram? — A mulher fugiu. Outro cavaleiro surgiu, ninguém sabe de onde, ninguém sabe quem é. Ele a salvou. Contudo, Iran prendeu Kian, o escudeiro na masmorra, e ordenou aos soldados que levassem o Príncipe até sua choupana de inverno e os deixassem sozinhos. Não foram mais vistos, desde então.


Cedric correu até a prisão. A masmorra não ficava longe e, em poucos minutos, ele encarava Kian, que parecia revoltado. — Cael! — o cavaleiro exclamou, antes mesmo do Rei conseguir se expressar. — Iran o matou? Cedric parecia mitigado. — Não sei. — olhou para um dos guardas. — Solte-o. O homem prontamente abriu a cela. — Quem foi que levou Esmeralda embora? — indagou. — Havia mais alguém a saber dos planos de Cael? — Não — Kian negou. — Não sabemos quem era, mas ela aceitou o braço estendido prontamente. Então, acredito que seja alguém que ela conhece. O Rei assentiu. Aquilo, no fundo, era um alívio. — Precisamos encontrar Cael — disse ao outro. — Só não sei se o acharemos com vida... Deu a volta, pronto para sair, quando outro guarda surgiu em seu caminho. — Senhor, encontraram lorde Iran — avisou. — Onde? — No túmulo de seu pai, o falecido Rei Atho. Aquilo surpreendeu Cedric.


— Tragam-no para mim — ordenou. — Ele está morto, meu Rei. Tanto Cedric quanto Kian não conseguiam esconder a surpresa. Iran... Iran estava morto? De que maneira? Ele era o melhor espadachim de todos os reinos! O homem mais forte já nascido! — Havia um ferimento nas costelas, mas não foi disso que ele morreu — o guarda parecia ler seus pensamentos. — Nas mãos de lorde Iran havia um vidro com essência oleandro. Iran se envenenou? — E Cael? — indagou. — Alguém o viu? — Alguns guardas voltaram da choupana há poucos minutos. Havia sangue no chão, tanto dentro quanto fora do local. Mas, Cael não estava em nenhum lugar. O riso feliz as suas costas fê-lo girar e encarar Kian. — Esmeralda o salvou. — O moreno não tentou esconder sua alegria. — Eu sabia! Ela não partiria e deixaria Cael para trás! Com certeza ela voltou e enfrentou Iran! Lágrimas de ódio formaram-se em Cedric, mas ele as reprimiu. — O que é tão engraçado? Não é a prova de que


eram amantes? — respirou fundo. — Fui enganado duas vezes. A primeira, por ela, que fingiu nutrir sentimentos por mim. Depois, por Cael, que jurou que a amava como amiga, que os sentimentos românticos que nutria eram por você. A frase fez a boca de Kian abrir-se, em espanto. — Cael me ama? — indagou. A felicidade era tão clara que Cedric quase avançou contra o jovem. — É óbvio que não! Não vê que ele fugiu com Esmeralda? Por fim, deixou-o. Caminhava rápido, mil planos formando-se em sua mente. Por mais que tivesse dado sua palavra de que Cael e a imunda podiam partir em paz, resolveu voltar atrás. Não! Não a deixaria em paz! Até porque, não poderia viver sem ela! Não a amava, era claro, mas não deixaria que desfrutassem de um amor romântico enquanto o tivessem feito de bobo. Sim, não era por amor! Era por vingança! Por vingança partiria atrás dela, e a traria, mesmo que fosse arrastada, consigo. — Meu Rei! — Kian o segurou no braço, impedindo-o de prosseguir. — Existem mais coisas... —


murmurou. — Mais segredos. Mais? Quando aquilo chegaria ao fim? — O que é? O filho que ela tem no ventre é de Cael? Kian riu. Aquilo o enervou ainda mais. — Está perdidamente apaixonado por ela, não é? — Não brinque com isso! — ralhou, alto, segurando-se para não bater no braiano. — Eu a odeio! — Invente o que quiser para si mesmo, mas não pode mais esconder. Eu vejo o brilho de seu olhar, eu vejo o amor que nutre por ela escancarado em sua face. Eu sei, eu também amei Cael da mesma forma, e também tentei esconder isso por muitos anos... — Irei atrás deles porque são amantes! — resmungou. — Por vingança. — Se é esse o seu motivo, terá que arrumar um melhor. Cael e Esmeralda não são amantes, são irmãos. A frase causou choque em Cedric, que arregalou os olhos. — É mentira! — Não, não é. Vá até as roupas da sua mulher e procure uma esmeralda. A pedra está costurada num dos bolsos de um dos vestidos. Pertencia a Alexandrina, avó de Esmeralda, mãe de Iran... A reconhecerá pelo quadro


que tem no corredor. Cedric negou com a face. — Iran estuprou uma casheana durante a Guerra dos Mil Dias. Você sabe disso, todos sabem disso. Era por esse motivo que Iran estava no regimento de seu pai e o viu morrer... — É apenas um boato. — Não é boato, e você sabe. Cael e Esmeralda são iguais, é nítido que são irmãos. Mais que isso, Esmeralda é um demônio com a espada, puxou a Iran. Sei que foi ela que resgatou Cael, porque é a única pessoa no mundo que conseguiria tal coisa... Enfim, as lágrimas despencaram dos olhos de Cedric. — Ela aceitou vir para cá, tomar o lugar de outra mulher, porque queria vingança. Queria matar Iran. Mas, ela se apaixonou. Sei que se sente traído, mas tente se colocar no lugar dela por um minuto — pediu. — Você prometeu a Cael que os deixaria em paz. Então, cumpra sua palavra, meu Rei. Esmeralda jamais vai importuná-lo novamente, e poderá se casar com Lyn — cutucou. — Não é o que você sempre quis? ***


Lyn observou o ex-noivo à distância. Ele parecia destruído, sentado nas escadas, enquanto segurava uma pedra esmeralda nas mãos, tão diferente do rei refinado que ela havia conhecido. Aproximou-se, vagarosamente, temendo ser rechaçada e, ao mesmo tempo, sabendo que aquela era sua última oportunidade antes de Angus levá-la embora. — Cedric — murmurou, mesmo sabendo que ele não queria mais que ela o chamasse assim. — Por favor, não fique desse jeito — pediu, graciosamente, sentando-se ao seu lado. — Eu sei que falhei com você, uma vez. Arrependo-me tanto disso, mas podemos recomeçar. Aconteceram tantas coisas, mas é a nossa chance. — Não teremos outra chance — decretou. — Por quê? Diga-me um motivo? Você me amou tanto. — Nunca te amei... — Cedric, me doí tanto quando fala assim. Por favor, eu sei que me amou. Eu sei que me ama... — Eu não amo você. — A voz, apesar de fraca, era firme. — É ela que eu amo — contou, volvendo os olhos para a morena, assustando-a. — Eu, o Rei de Bran, amo uma imunda — sussurrou. — Você consegue imaginar vergonha maior que essa? Lyn pareceu compreensiva.


— Mas, poderá esquecê-la. Não me esqueceu? — tentou ser amiga. — Poderá ser agraciado com sentimentos por outra mulher. — Não, Lyn! Você não entende! — negou. — É diferente! — Não, não é! — insistiu. — Poderá conhecer outra mulher e... — Eu não quero isso — riu, baixinho, escondendo as lágrimas. — Eu não quero outra mulher, porque nunca me conectei a nenhuma, como a ela. Nunca ri ao lado de uma mulher, como ao lado dela. Nunca senti nada parecido por outra mulher. Nem sentirei. — Levantou-se. — Eu quero ela, Lyn — afirmou. — E eu a terei, custe o que custar. Então, afastou-se. — Chame Kian agora — avisou a um dos guardas. — E mande preparar o veleiro real — ordenou. — O Rei irá partir. ***

— Quando buscamos um barco, encontramos Berdel e Carmo — apontou os dois imundos que


limpavam o convés. — Eles foram escravos de um navegador, e sabiam manejar um veleiro. Roubamo-los do antigo dono — riu. — Prometemos liberdade, nas terras além de Masha. — Deu os ombros. — Não sabemos se podemos cumprir isso. Randu terminou a atadura nas mãos da irmã. Haviam chegado ao final da manhã em um precipício ao sul do Reino. Abaixo da enorme ladeira, um barco estava ancorado. Dois imundos os aguardavam. Desceram com dificuldade, e tão logo estavam todos a bordo, os homens levantaram as velas e eles puseram-se à viagem. — Podem — ela sorriu. — As terras pertencem a Cael. Kian me contou que sim, há imundos lá, mas Cael fazia vistas grossas e ordenava que ninguém fosse verificar. Dizia que queria que o lugar se tornasse uma reserva para animais, mas que, no fundo, ele sabia que era um santuário para imundos. O irmão assentiu, voltando os olhos para o ruivo, que estava sentado ao longe, parecendo alheio a todos. — Esse Kian...? — Cael me contou que Iran mandou prendê-lo, mas sabemos que não passara disso. Kian é braiano e Iran não tem poderes para machucar um braiano. Só Cedric poderia fazer isso, mas não o fará. — Cedric... O Rei...


— É o pai do meu filho — ela completou sua linha de raciocínio. Randu assentiu. Era muito estranho para ele admitir que sua irmãzinha havia se deitado com um homem, mas tentou parecer frio. Aliás, precisava ser frio. Esmeralda precisava dele mais que nunca. — Ele a violentou? — Não, meu irmão. Randu estava prestes a explodir. — Enfim, quando chegamos a Bran, já era noite, e ouvimos um boato sobre uma execução — prosseguiu o relato, não querendo saber sobre o tal Cedric. — E veio me salvar — ela concluiu. — Estou com raiva de você — Randu assumiu, não conseguindo mais se segurar. — Mas, ao mesmo tempo, eu consigo entendê-la — respirou fundo. — Agradeço por não ter matado Iran. Nunca quis que se tornasse a assassina do teu pai, Esmeralda. Deixe a justiça com os Deuses. Ela riu, baixinho. — Você me perdoa? — indagou, cansada, as lágrimas já despontando nos olhos. — Imagino o que passou para me encontrar...


Randu mal conseguia encará-la. — Eu te amo — disse o homem. — Eu morreria por você, minha irmã. Eu vou perdoá-la, mas agora tenho que me controlar para não bater em você! Ela riu, entre lágrimas. — Eu também te amo. Instantaneamente, Esmeralda estendeu os braços e o apertou. Randu fechou os olhos, beijando o topo da cabeça vermelha dela. Tão logo se distanciaram, Rhianna surgiu ao lado deles. — Esmeralda — ela a chamou. — Venha, você precisa descansar... Enquanto a irmã seguia sua mulher, ele volveu-se para Cael, que permanecia sentado no mesmo lugar, num dos cantos do veleiro. Respirou fundo, e foi até ele. Só quando se aproximou, foi que notou que o outro tremia. — Você está bem? — Apesar de ser surrado desde criança — o outro contou —, meu corpo nunca se acostuma e eu sempre tenho febre. Randu pôs a mão na testa branca. — Está ardendo... — Encarou-o melhor. — Tire a camisa — mandou. O tecido havia grudado no sangue, e foi com muita


dificuldade que o mashiano conseguiu tirar a vestimenta. Randu ficou pasmo diante da quantidade de marcas que havia nas costas do outro, e apiedou-se instantaneamente. — Nossa, você é algum tipo de imundo? — um dos imundos que servia no barco se aproximou. — Sou o futuro Rei de Masha — Cael riu, achando graça do rosto assustado do outro. Um Rei tão desgraçadamente machucado assim. O que aqueles homens pensariam? Randu afastou-se um pouco, e voltou logo depois. Nas mãos, trazia óleo de peixe, e começou a passar o unguento nas costas do outro. Depois que imundo se arredou, Randu puxou assunto. — Esmeralda me disse que você não tem família... — Eu tinha Iran — murmurou. — Então, definitivamente, eu não tinha família. — Agora tem... — Randu prosseguiu. — Sim, encontrei uma irmã. — E um irmão. O ruivo encarou o negro. Por alguns segundos, ficou emocionado, mas depois gargalhou. O abraço que trocaram selou um novo tipo de irmandade. Randu e Cael tornaram-se irmãos de alma. E a


alma sempre foi mais forte que o sangue.



Capítulo 29 Masha, Cashel e Bran. Cedric estava abrasado pelo atraso em zarpar. Apesar de ter dado as ordens durante a manhã, seus servos levaram quase um dia inteiro para preparar o veleiro que o levaria para Masha. Atrás dele, enquanto perambulava de um lado para o outro, dando ordens aos conselheiros para que cuidassem do reino na sua ausência, Kian tentava, sofregamente, acalmá-lo. Pedia ao Rei que tivesse tranquilidade, que não agisse com imprudência, pois, se Cedric quisesse ter Esmeralda de volta, não era apenas Cael e a própria mulher que ele iria enfrentar, e sim todo o clero. — Sou o sangue de Bran! — O Rei quase gritava. — Nenhum sacerdote pode ir contra a minha vontade! Era uma verdade incontestável, mas, na mesma medida, Kian sabia que haveria burburinhos. De qualquer forma, quando o navio desapareceu no horizonte, no final daquela tarde exaustivamente carregada de afazeres, Cedric, já a bordo do veleiro real, parecia preocupado com outros assuntos, e não com o


pensamento religioso. Como ele tiraria Esmeralda de Cael? Qual argumento usaria para ancorar em Masha e enfrentar o novo Rei? Admitir a verdade, jamais. Assumir para ela que a amava, depois de tudo que ela fizera contra ele, seria o mesmo que assinar um atestado de idiota. Ela precisava sofrer. Mas, ao lado dele. Não importava as consequências, queria a mulher de volta. Deixou Kian para trás. Não porque suspeitasse de uma traição, caso Cael e ele declarassem guerra pela imunda, e sim porque precisava de uma força leal para manter o reino de pé, nos meses que se seguiriam à sua busca por Cael. Não jantou, naquela noite, apesar dos esforços dos servos em lhe agradar. Sozinho no convés, ele apenas encarava o horizonte, no mar que parecia brilhar diante das estrelas e da lua. Por fim, decidiu ir descansar. A viagem até Masha duraria meses. Cashel ficava no caminho, ele pisaria, pela primeira vez, na terra de Lugus, quando parassem para abastecer. Depois, rumaria em direção a terra dos cabeças vermelhas, sem pestanejar, atrás do que desejava. Desceu até seu luxuoso quarto. O local havia sido usado por seu pai, uma última vez, quando estava indo para a Guerra. Agora, o filho encarava aquele ambiente com respeito e admiração.


O local tinha cerca de cinco metros e era adornado por cristais e esmeraldas (presentes de Iran). Havia quadros nas paredes, retratos de seus antepassados, e a tapeçaria era rica e vistosa. A cama, no centro, era enorme, e estava coberta por lençóis de seda e linho. Lembrou-se da esposa. Mais precisamente da primeira vez que a viu, e na forma como ela o enfrentou, dizendo que ele era um felizardo por ter tanto luxo em sua vida. Naquele dia, não entendeu seus motivos, mas agora era claro. Envergonhado, baixou a fronte. Sim, era um rei mimado e fraco. Iran o tornou assim. Mas, as coisas iriam mudar. Subitamente, sentiu um arrepio no pescoço. Nervoso, voltou-se para trás, antecedendo que havia mais alguém no quarto, com ele. Nada. Atrás de si, apenas a porta de madeira, fechada, provava-o de que estava ficando demente. Contudo, ao se voltar para frente, deu de cara com a ruiva. — Rhianna... O murmuro foi em espanto. Como? De que maneira? Ela havia entrado em seu barco? Mas, os servos passaram o dia limpando tudo, como não a haviam visto. O riso debochado o encontrou.


— Errou meu nome... — a voz dela o atiçou. Deu um passo a frente, pronto para segurá-la nos braços, para nunca mais permiti-la se afastar. — Esmeralda! — afirmou, irritado e aliviado, ao mesmo tempo. — Errou de novo. Abriu a boca, espantado. Estava tendo uma alucinação? Subitamente, um homem alto e negro surgiu de um dos lados do quarto. No canto oposto, viu, com os olhos arregalados, outro, muito parecido consigo. Não conseguiu se mexer. O que era aquilo? — Vou te dar mais uma chance — a mulher riu. — Uma ruiva, um moreno e um negro. E então? Qual meu nome? Não era possível. Estava alucinado? — Masha — sua resposta foi um sopro, seguido da queda dos seus joelhos diante da Deusa. O riso dela foi seguido pelos outros dois. Cedric apertou os olhos com força, tentando afastar as imagens, mas, ao abri-los novamente, as três figuras permaneciam diante de si. — Somos reais — o negro falou, firme. Cashel era exatamente como diziam as escrituras. Forte, sério e marcante. Ao mesmo tempo, havia gentileza


no seu tom. — Há muitas eras ninguém tem a honra de ver os Deuses — murmurou, para si mesmo. — Isso não é real — negou. — É real. — Cashel insistiu. — Cedric, descendente de Bran, estamos diante de você, e poderá dizer a si mesmo que está louco quantas vezes desejar, mas não iremos desaparecer. Volveu o olhar para o seu Deus. Bran era sério, e o encarava com nítido desafio. Parecia querer um confronto, mas foi interceptado pela Deusa. — Cedric, você nos decepcionou. O Rei pareceu assustado. — Sempre fui fiel às escrituras! — defendeu-se. — Sempre fiz o que desejaram. Masha estendeu a mão a ele. Aceitando-a, ficou de pé. Ela parecia mais amorosa que os outros deuses, e aquilo o aliviou. — Meu querido — a voz feminina rompeu suas defesas e pareceu confortá-lo —, não somos os criadores do mundo. Somos criatura, como você — sorriu. — Mas, somos os primeiros, aqueles que o Deus criador fez antes de todos os demais, aqueles a quem deu imortalidade e confiou o destino dos reinos. Cedric nunca ouvira falar naquilo. Havia mais um


Deus, além daqueles? — O criador não era como nenhum de nós. Ele tinha cabelos claros, e olhos azuis. Mas, não criou nenhum dos seus descendentes sua imagem, pois não queria que houvesse raças distintas e, sim, que todos os povos se mesclassem, unindo-se. Ao nos criar, ele deu sua própria imortalidade, permitindo-se morrer, e nos confiou à felicidade de todos os povos, tão logo partiu. Bran se aproximou, atraindo sua atenção. — Contudo, logo percebemos que não era fácil. Nossos descendentes eram mesquinhos e cruéis. Então, criamos os livros sagrados, o clero, com regras simples, mas que serviriam para garantir a felicidade a todos. — Mas — era a vez de Cashel falar —, os sacerdotes mudaram as escrituras, mantendo apenas algumas das nossas leis. Não desafiar os pais, amá-los e protegê-los na velhice, assim como ser bondoso com um parente que está desamparado, são algumas das poucas coisas que permaneceram intocáveis. Porém, de resto, tudo é mentira. Aquilo era demais para ele. Parecia que os três cresciam diante de si, com tantas palavras que jamais ousaria sequer pensar. Tudo em que acreditava, até então, era falso? — Nunca houvera imundos, sempre foram humanos, dignos de amor e caridade. Não existem


imundos na criação. Todos são amados pelo Deus criador e por nós, os Deuses mantenedores. Mas, isso não servia ao poder de antigos reis, que desejavam escravos. Assim, junto com o clero, alteraram os livros, fazendo o povo acreditar numa falácia. — Masha apertou sua mão. — Levantamos, durante séculos, homens e mulheres que nasciam apenas para trazer à tona a verdade ao povo. Porém, todos foram mortos pelo clero. Então... — Por que não apareceram, diante de todos, e falaram a verdade? — inquiriu, nervoso, desconfiado, amargurado. Quantos erros Cedric de Bran praticara em nome de uma religião que acreditou ser real? — Porque ninguém é escravo dos deuses — Bran retalhou. — A humanidade sempre foi livre para escolher. Sempre foi nosso desejo que todos pudessem decidir de que lado lutar! Por isso, trouxemos os profetas... — Que foram destruídos por sacerdotes! — completou o Rei. — Que justiça...? — Entendemos que está revoltado — Bran o interrompeu. — Sua indignação é compreensível para nós. Contudo, entenda que existem leis cósmicas que jamais poderiam ser afetadas. Um breve silêncio se seguiu. A cabeça de Cedric parecia que iria explodir. Estava ferido, magoado e assustado.


— Mas, havia uma esperança — Masha prosseguiu. — Onde a razão perdera, a emoção podia prevalecer. — Como assim? — Ao invés de levantarmos, nessa geração, um profeta, preferimos levantar duas almas — sorriu. — Almas gêmeas — soltou sua mão, aproximando-se de Bran. — Não há lei nesse mundo que possa sobressair-se ao amor — afirmou. — Então, a ideia veio de meu irmão, Cashel. O Deus negro riu. — Sei que isso vai assustá-lo, mas todos, incluindo Iran, foram apenas instrumentos da vontade divina. Cedric respirou fundo. — Querem dizer que Esmeralda e eu... — Exatamente — Masha voltou-se para ele, adivinhando seus pensamentos. — Esmeralda tem meu sangue correndo nas veias, mas precisávamos do sangue de Cashel. Então... — pareceu envergonhada. — Iran olhou para uma bela mulher casheana, anos atrás, que havia recebido o sangue divino de Cashel através do matrimônio com Lugus... — Esmeralda é filha da Rainha? Como aquilo era possível?


— Antiga rainha — Masha negou. — De qualquer forma, havia em Brione o sangue de Cashel, e ela o deu para Esmeralda, quando a manteve no ventre. Cedric negou. — Falam em liberdade de escolhas, mas obrigaram Brione de Cashel a ter... — Não obrigamos ninguém! — Cashel elevou a voz. — Brione manteve a gravidez por desejo próprio. — Respirou fundo. — É claro que a escolhemos não apenas pelo sangue, mas também porque ela era uma mulher de verdade, de força e caráter exemplar. Sabíamos, de antemão, que Brione não faria o aborto, e que não encararia a filha como uma imunda. Sabíamos que ela a protegeria, como pudesse. — Como dissemos antes, com a mudança nas leis, o clero poderia fazer qualquer mulher abortar. A exceção era Brione — Masha se aproximou do negro. — Num mundo de mulheres desencorajadas por anos e anos de submissão, precisávamos de uma que fosse forte o bastante para dizer “não” para o “fácil” e “sim” para o “certo”. Cedric assentiu. — Então... Faltava apenas o sangue de Bran... — Que ela recebeu através do casamento com você — Masha completou. — Contudo, não é Esmeralda o centro do nosso plano, e sim o bebê que ela carrega.


Todos que nasceram, desde o começo dos tempos, ou eram mashianos, braianos, casheanos ou, como vergonhosamente o clero passou a chamar os mestiços, imundos. Nunca houve um bebê com o sangue puro e direto dos três deuses. — Sua filha — Bran se aproximou, pela primeira vez, colocando a mão em seu ombro — é quem escolhemos para liderar os reinos para a verdade. — Filha? Então, Esmeralda esperava uma menina? De alguma forma louca, o coração de Cedric começou a saltar no peito, e lágrimas inundaram seus olhos. — Uma filha nascida do amor do encontro de duas almas gêmeas, fruto do sangue dos três Deuses. Não há clero nesse mundo que consiga lutar contra tanto poder — Bran decretou. — Isso, é claro, caso a criança seja protegida, até ter idade de poder lutar por si mesma. — É exatamente aí que entra nossa decepção — Masha pareceu ferida. — Trocou o amor pelo orgulho, feriu a sua mulher cruelmente, chamou o bebê que você plantou em Esmeralda de imundo... Cedric baixou a fronte. As lágrimas espessas que ele tanto refreou, enfim desceram pelo seu rosto. Estava, de muitas formas, destruído. Tudo aquilo que ouvira naqueles minutos era real. Haveria perdão para tanta maldade?


— Se você a ama, não vá para o meu reino — Masha avisou. — Parta para além dele, para as terras de Ván. Esmeralda está indo para lá. — Ela nunca vai me perdoar — murmurou, vencido. — Confia muito pouco no tamanho dos sentimentos dela — a Deusa riu. — Enquanto um dos dois estiver respirando, o outro sempre estará em sua busca... ***

Depois de meses em alto mar, Cael sorriu diante da terra que surgia, ao longe, diante de seus olhos. — Céus — ouviu o murmuro de Randu ao seu lado. — Nem consigo acreditar... — Sim, meu irmão — riu para o outro. — Chegamos! Durante aqueles meses que aprofundaram a relação enquanto a barriga de Esmeralda crescia diante dos seus olhos, os dois irmãos da imunda traçavam planos para o futuro. De imediato, era necessário proteger o bebê. Ninguém sabia o que o clero ou o Rei faria diante de uma criança de três origens diferentes. Depois que o bebê nascesse e a irmã estivesse segura, Cael partiria para tomar Masha. Assim que fosse rei, mudaria as leis,


protegeria a irmã, e baniria os religiosos. Enquanto isso, o negro permaneceria na terra afastada de Ván, para cuidar de Rhianna e de Esmeralda. Quando o reino de Masha estivesse em segurança, então, todos se encontrariam lá, para prosseguirem com a vida. Contudo, agora, enquanto descia do veleiro e sentia os pés tocando a areia fofa, Cael imaginou que não seria de todo mal ficar ali, com sua família. O irmão, a cunhada, a irmã e o sobrinho que nasceria. Ora, o quão valioso era olhar para o lado e saber que não estava sozinho? Contudo, havia Kian, abandonado em Bran, e ele precisava de um lugar seguro para oferecer ao amigo. — Eu te ajudo — disse para Esmeralda, quando ela tentou saltar do veleiro. A barriga estava enorme. Mas, pelos cálculos que ele porcamente havia feito, ainda levaria cerca de um mês para que o bebê nascesse. — Eu quero ser ágil de novo — ela choramingou, fazendo-o gargalhar. — Mas, tenho certeza que todo esse sofrimento valerá a pena assim que tiver o bebê nos braços — incentivou-a. — Já imaginou, Esmeralda? Não será maravilhoso? Mal posso esperar para pegar meu sobrinho no colo. Subitamente, Randu surgiu ao lado deles, empunhando a espada.


— Escutem — pediu silêncio. Os ruivos olharam adiante. Havia apenas árvores e arbustos à frente, mas os instintos de Esmeralda se alertaram diante do chacoalhar das folhas. — O que querem aqui? O som vindo da floresta fez Cael levar à mão a espada. Atrás de Esmeralda, Rhianna tocou em seu ombro, como se pedisse calma. Não havia ninguém a vista, mas os quatro sabiam que não estavam sozinhos. — Queremos um lar — Esmeralda respondeu. — Sou imunda. Sem hesitar, ela levantou a camisa, mostrando os seios. Tanto Randu quanto Cael enrubesceram num misto de vergonha e indignação. — O que diabos está fazendo? — Cael fê-la baixar a roupa. — Estou cansada — ela avisou. — Estou cansada — repetiu, mais alto, para os que estavam escondidos. — Estou grávida, meu bebê é imundo também, e não aguento mais ficar em pé. Sei quem são, sou como vocês. Só queremos um canto para construirmos um abrigo e vivermos em paz. Repentinamente, surgiu um negro de olhos verdes. Ele encarou a mulher, piedoso. — Você é bem vinda — disse. — Mas, os demais


são puros. — Os homens são meus irmãos — ela retorquiu. — A mulher, minha cunhada. Os filhos dela também serão imundos, então, por favor, deixe-nos ficar. A terra pertencia a Cael, mas Esmeralda agia como se não o fosse. O ruivo logo percebeu que ela não queria que os habitantes lhe soubessem a identidade. — Há mais alguém entre vocês? — Dois imundos estão no barco — comunicou. — Podemos ficar? — insistiu, exausta. O homem curvou-se, gentil. — Sou Brog — se apresentou. — Eu sou o líder dos imundos que vivem aqui. São bem vindos entre nós. Esmeralda sorriu. — Obrigada Brog. — Havia profunda sinceridade em seu tom. — Prometemos não importunar. Conforme as pessoas iam se afastando dos esconderijos, eles perceberam um enorme grupo de imundos, naquele lugar. Repentinamente, olhou para Cael, sabendo que todos ali estavam vivos graças a seu irmão. Aproximando-se dele, segurou seus dedos. — Obrigada — sussurrou, sorrindo. Levou as mãos dela aos lábios e beijos os dedos


pĂĄlidos. Era um carinho que se seguiria atĂŠ o fim de seus dias.


Capítulo 30 O amor que não muda. Esmeralda de Cashel tinha certeza de poucas coisas na vida. Acreditava no amor de Randu, de Cael e na integridade de Rhianna. Confiava nos imundos com quem dividiu o barco, pois eles foram muito gentis com ela desde que souberam que estava grávida, e cria, totalmente, que Ván era uma terra boa e segura para criar seu filho. Enfim, resumindo, ela era uma mulher que confiava nos instintos e era fervorosamente leal aos próprios pensamentos. Contudo, suas certezas apenas se tornavam mais certeiras diante dos irmãos, e no quanto se sentia sufocada por ambos. Era um pensamento cruel? Sim. Eles faziam tudo por ela? Sim. Esmeralda sabia que era amada? Sim. Contudo, aquele amor e cuidado estava passando dos limites. Randu nunca a perdia de vista e Cael dormia na choupana de tábuas que eles construíram com o dedo enroscado em seu vestido, para que acordasse em cada movimento que ela fizesse. Então, aí estava outra certeza: ela não aguentava


mais, tanto Randu quanto Cael. Rhianna era mais respeitosa. Dava-lhe espaço, apesar de sempre a procurar para conversar, e saber um pouco mais o lado fraterno de Randu, que ela desconhecia. —Aff. — O resmungo escapou dos lábios. Ok, ela também não aguentava mais Rhianna. Que inferno, por que existia o amor? Por que a ruiva e o irmão tinham que ficar suspirando toda vez que se olhavam? Quando parariam de esfregar na cara dela o quanto estavam apaixonados? O quanto eram felizes na presença um do outro? Cael, pelo menos, tinha a decência de tentar esconder. Sim, ela sabia que ele pensava em Kian, mas, tentava desconversar, tentava aparentar que não sentia falta do outro... Enfim, tentava. Tentativas fracassadas, assim como as dela, que também fazia o possível para passar os últimos meses fingindo que Cedric nunca existiu. Porém, era só fechar os olhos e ela podia vê-lo, sorrindo para ela, enamorando-se de uma esposa que nunca teve. Afugentou as lágrimas, centrando-se nas últimas palavras do homem para ela. Ele antecipou que conseguiria a anulação e se casaria com Lyn. Teria filhos puros da única mulher que amou. Então, ela tinha que


superar aquele sentimento, até porque, assim como ela não era culpada do que Iran fez a Brione, o filho que mantinha no ventre era completamente inocente das palavras do pai dele. — Eu vou colher cerejas — avisou a cunhada, que estava cozinhando um ensopado no fogão improvisado de barro que Randu havia construído. — Mas, Cael e Randu foram pescar — ela pareceu incerta. — Eu sei. — Esmeralda, por que não fica aqui e vamos conversar sobre...? — Rhianna — interrompeu-a. Sentiu o próprio tom ansioso demais, e então tentou desconversar. — Irmã, só quero ficar um pouco com meus próprios pensamentos. Por fim, a ruiva pareceu compreender. Era sempre muito gentil, e prontamente deu passagem. — Por favor, apenas... Não vá longe — pediu. — Se o bebê... — O bebê está bem — avisou. — Mas, você teve dores ontem — intercedeu. — E hoje também... — São apenas dores abaixo do ventre que vem e vão... — ela deu os ombros. — Agora mesmo, estou ótima.


Nem Rhianna e muito menos Esmeralda tinham a menor ideia de como fazer um parto. Aliás, elas jamais haviam convivido com uma grávida e tudo era novidade para ambas. Porém, por sorte, no vilarejo ao centro da ilha morava um imundo que havia ajudado uma parteira de Cashel a colocar muitos bebês no mundo. Então, a grávida não estava nem um pouco preocupada com o que viria. Afinal de contas, parir era natural, não era? Diziam que doía um pouco, mas... ela era boa com a dor. Então, escapando daquela super proteção enjoativa, por fim, ela respirou o ar da liberdade. Caminhou bastante, o máximo possível que conseguiu para se afastar da cabana. Ao longe, era possível ouvir o som das ondas e aquilo era uma melodia que muito a acalmava. Porém, foi a floresta que ela procurou. Por algum motivo, o verdejante da mata trazia alento e sossego ao seu coração. Gostava de tocar o caule, sentir a aspereza da madeira nos dedos, e respirar o ar puro daquele lugar maravilhoso. Subitamente, o som de passos nas folhas secas fêla voltar-se para trás. Embasbacada, deu de cara com Cedric. ***


Meia hora antes, Cedric encarava um imundo de olhos verdes na praia de Ván. O barco havia sido ancorado há alguns metros, e uma embarcação pequena o levou até aquela ilha isolada nos confins do mundo. Alguns guardas haviam seguido consigo, mas ele não estava temeroso da recepção. Não estava ali para destruir ninguém, e sim para consertar anos e anos de opressão e maldade contra um povo que nada fizera para receber tanta injustiça. — Como podemos saber se o que diz é verdade? — O homem que o recebeu, chamado Brog, parecia indeciso diante de suas palavras. Também pudera! O Rei de Bran surgia na ilha informando que a escravidão seria abolida, a religião banida, dando espaço à outra, onde o amor e a fraternidade tomariam o lugar das regras incessantes das escrituras, e que o casamento entre os povos seria não só permitido como incentivado. — Eu sou o Rei de Bran — Cedric retrucou. — A minha palavra vale mais do que as esmeraldas de Masha. Brog permaneceu em dúvida. — Por que o Rei de Bran se importaria com os imundos? Desde o início dos tempos, os reis dos reinos


foram incapazes de olhar por nós. Cedric sabia que aquilo era real. — Uma mulher chegou a essa ilha — contou, nervoso, as mãos tremendo. — Ela se chama Esmeralda. Provavelmente veio com o irmão, Cael, um ruivo... — Como sabe disso tudo? — interrompeu-o. Então, não havia sido realmente uma alucinação. Masha realmente havia aparecido para ele e lhe falara a verdade? — Ela é minha esposa. Assumir aquilo lhe trouxe uma intensa satisfação. Por mais que as palavras do sacerdote uniram ele a uma Rhianna que não existia, o seu sangue tocou o dela. Esmeralda era sua esposa, sua mulher, sua alma gêmea. Nada o faria desistir dela. — Esmeralda? Como uma imunda se casaria com o Rei de Bran? Cedric respirou fundo, parecendo envergonhado. — É uma longa história. Contarei a você, assim que conseguir vê-la. Está grávida, está fugindo de mim desde que descobri sua condição. — É um belo argumento, esse. Contar-me que sua esposa fugiu de você porque é uma imunda — Brog retorquiu. — Por que acha que eu contarei a você onde ela está?


— Porque eu poderia vir aqui com várias mentiras, ou simplesmente trazer meu exército e destruir a todos da ilha. Mas, humildemente, como homem, e não como Rei, estou diante de você falando a verdade. Eu tratei minha esposa muito mal, a fiz crer que a odiava, ofendi o filho que ela tem no ventre — o meu filho —, e ela desapareceu da minha vida de forma nada amigável. Contudo, assim que sumiu, eu parti de Bran atrás dela. Viajei pelos reinos, até ter uma revelação. Agora estou aqui, diante de ti, afirmando que eu a amo, e pedindo que me deixe pelo menos poder falar isso a ela, pessoalmente. Brog volveu para trás, encarando dois imundos negros que estavam à suas costas. A troca de olhares foi significativa. — Escute — voltou-se para Cedric. — Esmeralda mora com os dois irmãos naquela colina — apontou para a elevação à direita. Dois irmãos? Além de Cael, ela tinha mais um? Cedric ficou muito impressionado. — Eu o permitirei ir até ela. Contudo, saiba que, caso aconteça qualquer coisa a mulher ou ao bebê, não sairá daqui vivo. Um dos guardas atrás de Cedric irritou-se com a ameaça. — Como ousa falar assim com nosso Rei? — disse, avançando contra o homem.


Contudo, Cedric pôs a mão em seu ombro, sorrindo, acalmando-o. — Eu agradeço sua generosidade, Brog — salientou. — Para que se sinta mais confortável, irei sozinho. — Antecipou. — E deixarei minha espada com meus soldados. Enquanto tirava a arma da bainha e a jogava no chão, Cedric encarou a elevação repleta de árvores. Depois de meses em alto mar, ele enfim estava perto da esposa e, apesar de ter tido tempo para pensar no que diria a ela, agora, todas as palavras pareciam lhe fugir. Fazendo uma breve reverência, ele deixou os guardas e os imundos para trás. Começou a subir o monte, enquanto memorizava as frases prontas. “Eu errei”. Não, ele não havia errado! Ela errou! Ela errou muito! Ela mentiu para ele, enganou-o! Não... Não... Tinha que perdoar, e respirar fundo. Precisava ter calma para falar com ela, porque perder o controle só a afastaria mais. Diabos de alma gêmea que os deuses foram arrumar para ele! “Volte para mim”. Sim, isso ele falaria. Obviamente, o pedido era apenas uma cortesia. Afinal de contas, ela não teria


escolha. Ele a levaria para casa, nem que fosse arrastada, carregada ou amarrada. “Eu amo a nossa filha”. Isso era totalmente verdade. Ele a amou desde o momento que Iran havia falado que a mulher estava grávida. Arrependeu-se de cada palavra dita, depois. Queria ter o poder de voltar ao passado, e corrigir aquele erro, mas tudo que havia feito era fruto da extensa dor que sentiu ao descobrir toda aquela armação. Enquanto agarrava-se na relva para subir um pedaço estreito da trilha, ele pensou nos irmãos dela. Cael não se atreveria a impedi-lo, não é? Bom, o ruivo era muito bom com a espada, mas eles eram amigos de longa data. Contudo, e o outro? Quem era? De que origem era? Casheano? Mashiano? Imundo? Com os seus pensamentos focados nisso, quase não a percebeu, quando a mulher cruzou por entre as árvores, quase a duzentos metros dele. Estava maior, a barriga grande, baixa, mas permanecia igual, o mesmo olhar desafiante que tanto o encantou. Sentiu as lágrimas tomá-lo ao ver-lhe grávida. Quando partiu, a barriga ainda não havia crescido. Agora, estava ali, prestes a dar a luz e ele não vivenciou nenhum daqueles dias ao lado dela, não segurou sua mão durante os enjoos nem a amparou nos momentos que precisou. Sentindo-se o pior pai do mundo, ele aproximou-


se, disposto a ser para ela tudo que um homem poderia representar para uma mulher. Levou um certo tempo para ela perceber que não estava sozinha, tão centrada estava na casca de uma árvore. Contudo, quando se voltou para ele, percebeu o espanto, o susto, e por fim, o improvável desespero. Sorriu, tentando se mostrar amigável. Ele sabia que Esmeralda era rápida, contudo, não esperava que com uma barriga grande daquelas, ela tivesse alguma força física e conseguisse, tão facilmente, derrubá-lo, enquanto corria na direção oposta. Tão logo viu-se no chão, Cedric ergueu-se num pulo. Queria falar com ela, explicar-lhe os motivos pelos quais estava ali, mas ela sequer lhe deu tempo, pois já corria para longe. — Esmeralda! — seguiu-a, tentando fazê-la entender que não estava ali para brigar. Por fim, viu-a contraindo-se de dor. Ao longe, percebeu que ela arqueava até o chão, com a mão na barriga. Porém, quando se aproximou, o baque de um pedaço de madeira quase o desacordou. Caindo novamente no chão, percebeu que ela havia lhe batido com uma vara mediana de bambu. — Mulher dos infernos! — gritou, mais irritado que nunca, enquanto tentava se erguer novamente.


— Fique longe de mim! — a voz feminina ordenou, enraivecida. — Se tentar machucar o meu filho, eu te mato! — Por Bran, mulher! Acha que eu viria do outro lado do mundo apenas para me vingar? — E que outro motivo teria? — os olhos arregalados para si quase o fizeram gargalhar, histérico. O que ele havia pensado, realmente, em dizer a ela assim que a visse? — Você me enganou — despejou. — Mentiu para mim! Eu sei que espera que diga que eu errei, mas você errou primeiro! — Definitivamente, não era isso. — Vai voltar para mim — avisou. — Nem que eu tenha que arrastá-la pelos cabelos. Isso também não! — Por acaso enlouqueceu? — Somos almas gêmeas — ele avisou. Estava nervoso e a boca começou a falar, sem controle. — O quê? — Masha que me contou. — O quê? — ela repetiu, dessa vez, erguendo a sobrancelha, segurando uma gargalhada. Contudo, o riso sumiu quando o rosto pareceu


reagir a uma intensa dor. A mulher ficou de joelhos. Cedric apavorou-se com a possibilidade de que ela pudesse ter se machucado enquanto fugia dela. Recebeu mais duas bambuadas no corpo, mas dessa vez ficou firme e conseguiu se aproximar. Ajoelhouse ao lado dela, segurando suas mãos, tentando transmitir qualquer conforto. — O que, de verdade, você quer aqui? — ela indagou, assim que a cólica pareceu ir embora. — Você — foi sincero. — Poupe-me, Cedric. Não sou tão tola. Você me avisou que se casaria... Beijou-a. Já tinha muito tempo que ele aprendeu que era a única forma de calá-la. Por mais irritada que Esmeralda estivesse, ela nunca recusava seus beijos. E, por fim, como manter uma guerra emocional entre eles quando o coração de ambos batiam na mesma sintonia? Contudo, dessa vez, Esmeralda não reagiu como sempre. Sentindo uma forte bancada no meio das pernas, ele contorceu-se no chão, enquanto a via girando o corpo e correndo na direção contrária. Todavia, daquela vez, ela não andou muito. Subitamente, volveu-se para ele. Ergueu, assustada, o vestido. Cedric viu as pernas molhadas e entendeu que havia chegado a hora da filha vir ao mundo.


Capítulo Final A liberta Brione Cedric deitou a esposa em um tapete verde formado por relva macia e por folhas secas. Ele não conhecia o lugar, então, não sabia aonde nem a quem pedir ajuda, assim, decidiu fazer ele mesmo o parto. Porque... Afinal de contas... Não era difícil. Né? — O parto é algo natural — disse a si mesmo, tentando transmitir coragem. Esmeralda gritou, enquanto sentia a mais forte das contrações até então. Cedric suava frio, mas, tentou conduzir tranquilidade, mesmo diante da respiração sôfrega da esposa e do seu olhar desesperado. — Fique calma — pediu, enquanto lhe tirava os calções. — Eu vou te ajudar... Olhou para o seu centro feminino dilatado. — Talvez seja melhor buscar ajuda — recuou, em


seguida, sentindo os olhos nublarem e a visão embaçar. — Não ouse desmaiar! — a ordem dela lhe despertou os sentidos novamente. — Não sou covarde — se defendeu. — Eu sou o Rei de Bran, tenho o sangue... — Vá à merda! Eu não quero discursos agora! — ralhou. — Cedric — baixou a voz, sentindo outra contração. — Cedric, eu estou com medo. — A frase era quase gentil, mas em seguida ela pegou o bambu. — Mas, mesmo assim, se tentar algo contra a criança, eu juro que te mato. Aquilo o esbraseou. — Eu já te disse que não farei mal a nossa filha! — quase gritou. — Inferno! Eu vim do outro lado do mundo para buscá-la porque a amo, e tudo que faz é me acusar... O olhar dela era quase descrente, mas a frase carregada de confissão pegou-a desprevenida. — Você me ama? — o tom, então, tornou-se deboche. — Esqueceu que sou uma imunda? — Não existem imundos, Esmeralda — negou. — Tudo o que nos fizeram acreditar era uma mentira. — O que quer dizer? Outra contração. Cedric segurou a mão dela, enquanto ela apertava fortemente. Por fim, o alívio.


— Vou buscar ajuda — ele levantou-se. — Que direção eu devo tomar? Subitamente, uma lâmina no seu pescoço. Esmeralda olhou adiante e viu Randu atrás do marido, com a espada pronta para ser usada. — Quem diabos é você? — o negro indagou, pronto para a guerra. — E por que está com o rosto escondido por uma máscara? Cedric ergueu as duas mãos, e se virou. Seu espanto foi maior do que tudo, até então. — Cashel! A sobrancelha do rapaz ergueu-se, inquisidora. — O quê? — Você é Cashel! O grito originado de uma nova contração interrompeu o momento. — É claro — Esmeralda disse, assim que aliviou — que para vir atrás de mim só podia estar maluco. Cedric negou, voltando-se para ela. — Não estou. Vou explicar isso melhor mais tarde, mas, agora, preciso ir atrás de ajuda. Você é o outro irmão, de quem os homens de Ván falaram? Os olhos negros de Randu iam do homem a irmã, e depois voltavam a ele.


— Quem é você? — Cedric! — Cael apareceu atrás de Randu, completamente espantado. — O que você faz aqui? — questionou. Ignorando a lâmina de Randu, Cedric foi até o ruivo, e o abraçou. Afinal de contas, apesar de tudo, Cael foi e sempre seria sua família. — Eu não a deixei para morrer! — disse, adiantando-se. — Eu sei — o outro retrucou. — Eu o vi desmaiado no quarto. Sei que foi meu pai... — Conversaremos melhor mais tarde — o moreno sorriu. — Iran está morto — adiantou. — Mas, agora, precisamos conseguir ajuda. O choque pela notícia era nítido no olhar esmeralda de Cael. Iran... morto? Como? De que maneira? O que havia acontecido, realmente, desde que deixaram Bran? Estranhamente, não houve pesar em seu coração, apesar de ser seu pai. Um novo grito interrompeu seus pensamentos. — Vá buscar ajuda, Cael — Randu ordenou. — E você — apontou a arma para Cedric. — Você ficará parado aí, bem quieto, ou eu te mato. ***


Rhianna apareceu pouco depois da saída de Cael, e foi a única a permanecer perto da parturiente enquanto o imundo de Ván realizava o procedimento que traria uma nova criança ao mundo. Afastados deles, Cedric, Cael e Randu permaneciam em silêncio, ouvindo os berros agoniados da ruiva. — Randu! — o negro fechou os olhos com força, diante do seu nome sendo gritado por ela. — Eu estava errada, Randu! Eu não vou aguentar tanta dor... Cael encarou o irmão de pele escura, tentando adivinhar o que ele faria. Contudo, Randu nem se mexeu. Quando abriu os olhos e o olhar deles se encontrou, ele simplesmente deu os ombros. — Quanto tempo isso leva? — Cael parecia nervoso. — É uma tortura... — Esmeralda levou três horas para nascer. Não sei quanto tempo o bebê dela levará... — Depois, voltouse para o moreno. — E você? O que faz aqui? Cedric o encarava assustado. — Vim atrás da sua irmã. — E por que motivo?


— Porque eu a amo. Estava muito difícil para o negro controlar a vontade de decepar a cabeça daquele desgraçado. — Você acha mesmo que eu vou acreditar nessa lorota? Está incomodado com a criança, não é? Tem medo de que, no futuro, o filho de Esmeralda vá atrás de você, como ela foi atrás de Iran. — É claro que não! E não ouse me comparar a Iran! Eu não abusei de sua irmã! Ao contrário, na maioria das vezes, era ela que abusava de mim! Cael teve que se colocar entre os dois para impedir Randu de brigar fisicamente com o outro. — Randu, eu sei que está nervoso, eu também estou. Mas, acredite em mim. Cedric não é um monstro como Iran. — Ele disse para Esmeralda que o filho que ela tinha no ventre sequer devia ser considerado humano — prevaleceu. — Que homem falaria isso para a própria esposa? Para o filho que ele pôs no seu ventre? — Sua irmã me enganou — o outro retrucou. — Eu me apaixonei por ela, vivíamos felizes, até que descobri que sequer o nome dela eu sabia! Aliás, a ruiva que está ajudando aquele homem — apontou a clareira onde a mulher dava à luz. — Eu o ouvi chamá-la de Rhianna.


— É mais uma história longa — Cael girou-se para ele. — Essa Rhianna é completamente inocente. Aliás, em tudo só há um culpado, e sou eu. — Não! — Randu negou. — O único culpado é Iran. Desde sempre! — Mas, agora — Cedric interveio —, Iran está morto. As coisas mudaram — puxou Cael pelo braço. — Eu vim buscar minha esposa e minha filha, Cael — avisou. — Não irei embora sem a minha família. Havia no olhar do Rei algo que arrepiou Cael. — Filha? — A voz de Randu era carregada de sadismo. — Virou adivinho, agora? Como sabe que será uma menina? — Masha me disse — assumiu. — Cashel e Bran também. Os três Deuses apareceram para mim. Contaramme tudo, incluindo que a mãe de Esmeralda era a rainha Brione, antiga esposa de Lugus. O que me faz pensar... Você é filho do Rei? — O mais velho — assumiu, sem medo. — Não acredita mesmo que eu vou confiar na sua palavra, não é? — Quando o bebê nascer e for menina, saberá que digo a verdade — foi franco. Cedric respirou fundo. Novamente, a mente processou as novas informações. — Então, foi assim que os Deuses a protegeram.


Você é descendente direto de Cashel, não é? Cael é de Masha e eu sou de Bran... Nós três estaríamos envolvidos com ela, de uma forma ou de outra... — completou. — É incrível como tudo agora é claro para mim... Os irmãos se encararam. — O que você fará, Cedric? — o ruivo indagou, nervoso. — Se tudo que diz é verdade, os Deuses quiseram proteger uma imunda. E então? O que isso significa? — Significa que tudo mudará — afirmou. — Tudo. — E você será o responsável por isso? — Randu indagou, irônico. — Não — negou. — Esse papel não é meu. — Apontou para o lugar onde Esmeralda estava. — Quem fará isso é minha filha, a futura Rainha dos três reinos. ***

Depois de quase quatro horas de intensa agonia, enfim, o choro de um bebê rompeu o silêncio dos homens. Correram naquela direção, ansiosos e nervosos, ao mesmo tempo, felizes e aliviados. Contudo, estancaram diante do olhar assombrado de Rhianna e do imundo.


— O que aconteceu? — Cedric questionou, o olhar lacrimejante, diante do homem que mantinha a criança enrolada em um largo pano de linho, — Nunca vi um bebê assim — ele assumiu, entregando-lhe o embrulho. Cedric sorriu, enfim, diante daquela miniatura de gente. Sim, não havia outro igual. De cabelos negros e lisos como os braianos, de pele escura como os casheanos, e de intensos olhos verdes-esmeralda como os mashianos, a filha era a perfeita união dos três povos. As perninhas remexiam-se, inquietas, e ela chorava, parecendo buscar algo, que logo ele entendeu ser a mãe. — É uma menina? — Randu indagou às suas costas. — É... — As lágrimas de Cedric não podiam mais serem seguradas. — É a mais linda menina que esse mundo já viu... — beijou as mãozinhas brancas, únicas partes claras do corpo de pele escura. Depois, ele encarou Esmeralda, que, apesar de estar esgotada, parecia em alerta, disposta a lutar, contra quem fosse, para proteger a criança. — Obrigado — ele murmurou. Por fim, ela pareceu acalmar-se. Então, Cedric se


aproximou e lhe deu a menina. Toda a dor que havia sentido, até então, pareceu desaparecer, ao olhar para aquela perfeição divina. — Oi... — o sussurro dela era extremamente amoroso. — Oi, meu amor... — sorriu. — Eu sou sua mãe... sabia? Rhianna aproximou-se e a abraçou, carinhosa. — Qual será o nome dela? — Brione — disse, sem pestanejar. — É uma bela homenagem, querida — Rhianna sorriu, satisfeita. Esmeralda olhou para o marido. Eles teriam muito que conversar. Ela sabia. Mas, naquele momento sorriu. Afinal de contas, quem diria que Cedric de Bran, o Rei mais mandão e mimado dos reinos, poderia ter lhe dado semelhante presente? ***

— Meu Rei — um dos soldados surgiu ao seu lado, na praia. — Já estamos aqui há duas semanas — murmurou. — Quando partiremos? Cedric o encarou, sorrindo. — Assim que minha esposa estiver em condições


de encarar uma viagem. Aquela confiança, na verdade, não era tão certa assim. Desde o nascimento da filha, ele mal conseguira falar com Esmeralda. Ia todos os dias ao casebre de tábuas verdes que Randu construíra, buscando sempre vêla e a filha, mas pouco conseguiu adiantar em seus planos. Esmeralda estava encantada demais com o bebê e mal o encarava. Subitamente, aquele leve arrependimento que ela nutria por tantas mentiras desaparecera. Ora, ela precisou de tudo aquilo para ter a filha. — Se fazê-lo sofrer foi o preço a pagar para ter minha bebê — dava os ombros. — O que importa seu sofrimento? — Muito engraçadinha — ele apertava os olhos, enquanto via o sorriso mais perfeito do mundo despontando contra ele. — Mas, eu te perdoo. — Eu definitivamente não estou pedindo seu perdão, Cedric. — Mas, eu te perdoo mesmo assim. — Então, eu o perdoo também — ela sorriu, retrucando. — Eu não pedi perdão — devolveu, a brincadeira parecia cheia de graça. — Você quase rastejou aos meus pés, ingrato! — Que mulher dos infernos você é — ele


resmungou. — Mas, fico feliz, então, com o seu perdão. Perto deles, observando o diálogo, Randu virava os olhos. — Vou vomitar — ele resmungava ao ruivo. Cael riu. — Eles se gostam — afirmou. — Se gostam muito. Eu acredito nos sentimentos de Cedric, ele sempre foi muito manipulado por Iran, mas, mesmo assim, veio atrás de Esmeralda. Se não a amasse, teria ouvido meu pai, acredite. Randu odiava aquilo, mas... Se era para a irmã ser feliz... Se era o preço... O que mais ele poderia fazer a não ser aceitar aquela reconciliação? — Cedric planeja enfrentar todo o clero e mudar todas as leis. Tem ideia do que é isso? — Cael murmurou. Não queria incomodar Esmeralda com o que estava por vir. — Ele me disse que precisará da união dos reis dos três reinos. — Você ajudará assumindo o trono de Masha, eu sei. Mas, duvido que o meu pai... — Não seu pai — Cael nevou. — Você, Randu... O Rei justo e honrado que Cashel sempre precisou. — Sou um filho deserdado — negou. — Não conseguiríamos o trono sem guerra. Então, tudo ficou claro para Randu. O Rei de Bran


e de Masha invadiriam novamente Cashel, dessa vez para destronar Lugus. — O seu pai, me perdoe pelas palavras, irmão, é quase igual ao meu. Lugus estupra as aldeãs, impõe altos impostos para financiar seus luxos, e criou os filhos com o mesmo pensamento. Cedric fez vistas grossas a isso até agora. Contudo, isso tem que acabar. Vai acabar. Cedric fará o que Atho devia ter feito, quando a Guerra acabou. Randu encarou novamente o par que conversava. Sabia que a vida de todos nos reinos mudaria, assim que eles saíssem de Ván. Subitamente, entendeu que aquela era a vontade dos deuses e ele não desapontaria Cashel. ***

Esmeralda aproximou-se do marido. Carregava a filha no colo, e sentou-se ao lado dele, nas areias claras de Ván. — Sentirei saudades daqui — ela assumiu. — É um lugar de muita paz. Cedric a encarou. — Decidiu ir comigo, então? — Claro, sou uma mulher submissa a meu esposo.


A gargalhada dele era tão alta que os imundos que pescavam ao longe pararam para observá-los. Depois, prosseguiram em seu trabalho. — É a mulher mais inconveniente que já conheci. E, mesmo assim, é a única que eu quero. Esmeralda o encarou. — E Lyn? — Eu nunca amei Lyn. Eu sempre soube disso, mas não queria que você soubesse... — E por quê? — Acreditava que o amor era uma fraqueza. — Não acredita mais nisso? — Meu amor por você me deu forças para lutar contra tudo de errado que assolou o mundo desde o início dos tempos. Você é a minha fortaleza. Aproximou o rosto do dela e lhe deu um beijo cálido. — Eu estou com medo, Cedric — ela assumiu. — Temo por Brione. — Ela tem um pai obstinado, e dois tios guerreiros. Não tenha medo de nada. Isso sem contar a mãe, que já me surrou tantas vezes... — riu. — Como você consegue me derrubar tão facilmente? Ela sorriu.


— Acha que eu vou contar o meu segredo? E se eu precisar surrá-lo mais vezes? Se me fizer conviver com outra Lyn? Mais um beijo, dessa vez mais apaixonado que o outro. — Lembra que um dia me pediu para lhe contar quando me apaixonei por você? — ele murmurou. — Sim, me lembro disso. — Então, foi na nossa noite de núpcias. — Bem que eu desconfiava que aqueles gemidos eram altos demais... — ela ironizou. — Não, tola. Não foi pelo sexo. Foi por sua reação ao meu rosto. Nunca imaginei que uma mulher fosse forte o bastante para encarar um monstro com tanta coragem. — Nunca foi um monstro, Cedric. — A voz altiva denotava firmeza. — É um homem marcado por um acidente. Isso para mim nunca foi empecilho. — Então, também me ama... — Você já sabe disso há muito tempo — retrucou. — Diga-me, marido... Qual será nosso próximo passo, agora? Cedric encarou o horizonte. — Cumprir a vontade dos deuses — afirmou. — E


ficarmos juntos — voltou-se para ela. — Isso é tudo que quero. Ao longe, o sol brilhou com mais intensidade. Cedric soube que Masha, Cashel e Bran estavam felizes.


Epílogo A vontade dos Deuses. — Brione de Bran — Masha murmurou, vendo, ao longe, o orgulhoso Rei Cedric estendendo a coroa para a filha mais velha, que se curvava diante da honra. — Digame, irmão — voltou-se para Cashel —, é a primeira Rainha que já existiu, não? — A assumir o poder absoluto? Sim. Os reinos sempre foram governados por homens. — Tenho certeza que ela fará um bom trabalho — Masha afirmou. — Nós mulheres nascemos para sermos as chefas. Uma gargalhada interrompeu a auto bajulação. — Quem aguenta essa Masha? — Bran murmurou. — Você, marido — ela resmungou. — Você me aguenta há muitos anos. — O que faz dele um mártir — Cashel debochou, recebendo um tapa da irmã.


— Idiotas! — ela ralhou. — Mas, meu plano deu certo, não deu? A Guerra travada há vinte anos para derrubar Lugus do poder, ocasionou a subida de Randu ao trono. Cashel observou o homem, seu descendente, ao lado da esposa ruiva, enquanto tentava disfarçar o orgulho dele. Depois de muito sofrimento, enfim, o seu povo passou a ser governado por um Rei bom e justo. — Incrivelmente, seu plano foi perfeito — assumiu. — É uma pena que Rhianna nunca pôde ser mãe... — seu tom era triste, e foi seguido pelo olhar compreensivo dos outros dois. — Mas, de certa forma, isso neutraliza problemas futuros, já que Brione e seus dois irmãos são os únicos a terem sangue real, os únicos que poderão assumir o trono. — Isso vale para o reino de Masha, também. Afinal de contas, Rhianna não é a única que não pode ter filhos. — O riso debochado de Bran interrompeu o momento triste. — Cael também não engravida. O olhar afogueado de Masha foi seguido de um chute no tornozelo de Bran. — Deixe Kian e Cael em paz! — ela ordenou. — Divindade dos infernos! — Bran esfregou o tornozelo. — Eu sou um Deus, como me faz sentir dor? — Porque merece! — ela o enfrentou. — Não sei onde estava com a cabeça em deixar minha descendente


Esmeralda se casar com Cedric. Bran sorriu. Eles brigavam na mesma proporção que o outro casal. Contudo, a vida deles também era repleta de amor um pelo outro, assim como seus descendentes. — Deixou porque sabia que eles se amariam, assim que se vissem — murmurou. — Assim como nós. O olhar dela abrandou, e a Deusa sorriu. — Enfim, fizemos o nosso trabalho, não é? — Bran ajeitou-se ao lado dela, estendendo as mãos e segurando as suas. — Não há mais imundos, todos são livres. Os reinos são governados por uma descendente direta de nós três. Cumprimos nosso dever e haverá paz entre as nações. Masha estendeu a mão livre para o irmão negro e sorriu para os dois. — Cumprimos... — afirmou. — Um final feliz, então? — Não haverá nada que eu pudesse desejar mais — Cashel a abraçou. Logo, Bran também uniu-se àquele carinho. Ao longe, a recém-coroada Rainha Brione observou o povo pela primeira vez como Soberana. Sorriu, volvendo os olhos para a mãe que, ao longe, a observava com o olhar carregado de orgulho, enquanto


segurava um dos irmãos gêmeos nos braços. — Eu te amo, filha — ouviu o pai declarar baixinho. — Seja a melhor Rainha que puder. Assentindo, ela voltou a encarar o povo. Ao longe, viu três pessoas trocando um abraço fraterno. Sorriu diante da imagem, sabendo que a fraternidade e o amor eram as maiores bênçãos que o povo poderia ter. E teriam...


A ROSA ENTRE ESPINHOS

Na maldade da vida, ela aprendeu a viver... M airi amou Ian M cGreggor no mesmo instante em que o viu. No entanto, a moça de olhos claros não imaginava que sua paixão pelo duque de York estava seriamente corrompida por uma maldição... E que o amor de seus sonhos se tornaria um pesadelo. Violada, grávida, destruída, ela se vê obrigada a viver ao lado de um homem que não mais conhece. O antigo amor tornou-se repulsa, e as crenças tão firmemente enraizadas em seu ser começam a tornar-se dúvidas. Nesse mar de sentimentos e incertezas, enfim, ela precisa saber se está pronta para perdoar. Nos braços de uma mulher, ele aprendeu a crescer... Ian M cGreggor viu sua vida virar do avesso. Acusado de assassinato, com a loucura da mãe, e fantasmas pelo castelo, o rapaz se vê tomado de ódio pela única mulher que amou. Sem escrúpulos, fere-a sem piedade, para mais tarde entender que o sofrimento dela não lhe causava nenhum alento. Como recuperar o amor de alguém que não o suporta? E como provar sua


inocĂŞncia duvidando de si mesmo?



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ref=hl [1] A tradução da palavra é Esperança.


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