Fragmentos do passado

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Fragmentos do passado Débora Rodrigues

(Obra registada no SafeCreative Copyright Registry sob o código 1808248118292 em 24 de Agosto de 2018)

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Para todos aqueles que amam

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"O passado nรฃo reconhece o seu lugar: estรก sempre presente..." Mรกrio Quintana

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Capítulo 1 — De quem é o casamento, querida? — pergunta a cabeleireira enquanto me analisa o cabelo. Inspiro fundo, tentando controlar o meu nervosismo. — Da minha prima — esclareço, a todo o custo mantendo a voz calma. Sai um pouco mais esganiçada do que pretendo. A senhora sorri através do espelho, o seu olhar encontrando-se com o meu. Ela endireita-me a cabeça e continua a tirar comprimento dos meus fios rebeldes. — Vi-a há dias com um jovem muito bem vestido. Ele trabalha em algum banco? Ou é empresário? — É rico — digo, simplesmente, cortandoPERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS lhe o raciocínio. — E tirou um curso qualquer de engenharia. Obviamente, não dou a entender que sei perfeitamente qual engenharia tirou ele. — Mas que ótimo! — Ela vira-se para a minha mãe, que está sentada num sofá com uma revista na mão, já com o cabelo pronto. — Que belo rapaz arranjou a Carolina! — Se a minha filha mais nova pudesse fazer o mesmo, eu sentir-me-ia realizada — Lurdes, a minha mãe, insiste em lembrar-me ao mesmo tempo que molha levemente os dedos e muda de página. — Não penso em casar-me tão cedo — afirmo, engolindo um queixume quando a escova que a cabeleireira segura encontra um nó. — Aposto que hoje vais ver muitos jovens bonitos e de boas famílias, Clara — diz a senhora que trata o meu cabelo. — Quem sabe, mulher? Quem sabe! PERIGOSAS ACHERON


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Assim que saio do estabelecimento, contenho a vontade de desmanchar o penteado simples e de atirar a minha mala que contém unicamente a minha carteira, o meu telemóvel e lenços de papel (só para o caso de eu perder a cabeça) para o chão alcatroado. Ao invés, caminho lentamente para o carro a par da minha mãe. Felizmente, é ela que guia até casa. Falta cerca de uma hora para a cerimónia começar. Noto os detalhes do meu vestido. Este é branco, comprido e tem uma bela faixa dourada que me adorna a cintura. O facto de ser branco é proposital. Calço as minhas sandálias de plataforma douradas e aplico uma maquilhagem leve, disfarçando o melhor que posso as marcas de acne que o meu rosto ainda possui aos vinte e cinco anos. Pego na minha mala e desço as escadas rumo PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS à cozinha, onde o meu pai já se encontra. — A mãe vai demorar muito? — questiono, apoiando-me na mesa, tentando conter um vómito que me sobe pela garganta. As palmas da minha mão estão suadas. — Sabes como a dona Lurdes é. — Guilherme, o meu pai, pisca-me o olho. — Tão cedo não chegaremos. Honestamente, Clara, a cerimónia não é tão importante assim. Sabemos em que quinta vai ser o copo-d’água, por mim é quanto basta. Os meus pais não são muito chegados à família próxima de Carolina. — É só que eu... — hesito. — Queria mesmo ver a cerimónia. Dizem que a banda de Núria é espetacular e que toca várias músicas até a noiva entrar. — Núria é a terrinha onde Carolina morava até tirar o curso de enfermagem. Como manda a tradição, o casamento propriamente dito dá-se na igreja da terra de onde a noiva é. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS — Nesse caso, — o meu pai aclara a garganta — Lurdes! Anda lá, amor, não temos o dia todo. — Ainda é cedo! — protesta a minha mãe do andar de cima. — A tua filha quer ver o casamento. Cinco minutos depois, a minha mãe desce. Enverga um vestido azul pelo joelho com mangas em renda, bem como um xaile. Abril não é um mês muito quente. O telefone toca mesmo no momento em que saio pela porta de madeira. Reviro os olhos, enquanto a mãe corre para o atender. — Estou? — Lurdes franze as sobrancelhas. Coloco um pé dentro de casa, tentando gesticular para ela se despachar. — Mãe? Abafo um suspiro, rezando para que Dora, a minha avó, esteja apenas a perguntar por que razão ainda não estamos à entrada da igreja. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS — Avariou? — Lurdes coloca uma mão na anca. — Tudo bem, passaremos por aí para te apanhar. Até já. Oh, não. Ela desliga o telefone. — Não a podemos apanhar depois? — É a neta dela, Clara. Não vamos deixar a tua avó à espera por tanto tempo. É num instante. Vamos chegar a tempo. Trinta minutos depois, percebo que é muito pouco provável chegarmos a tempo. A minha avó espera-nos com uma expressão zangada no rosto. — Por que demoraram tanto? — Quer ela saber, puxando o avô por um braço e sentando-se no carro ao meu lado. — Mãe, lamento informar mas a estrada não é só nossa. Apanhámos trânsito no caminho. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS Porém, Dora fita-me a mim, ignorando completamente a réplica da filha. — Estás muito linda, Clara — elogia. — Quase pareces tu a noiva. Sorrio perante as suas palavras e mordo o lábio inferior, interiormente esperando não borrar o batom. Queria eu que isso fosse verdade. — A minha Carolina vai tão linda. — O peito de Dora incha de orgulho. — Ela postou agora uma foto no instragã, eu vi. — É "Instagram", vó — murmuro de forma seca. — Que seja. Deviam ter visto os comentários! Tantas pessoas a elogiá-la e a desejar felicidades... ela não deve conhecer metade daquela gente. A minha avó continua a falar da Carolina, do noivo, do "Instragã", contudo eu só tenho olhos para a estrada. Desde quando é que Dora PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS tem Instagram? Assim que o meu pai para o carro um pouco longe da igreja, abro a porta com urgência e saio, tentando colocar o vestido em ordem e o penteado direito. Depois, corro. — Céus, Clara! O que se passa contigo? — diz a minha mãe, um pouco alarmada, mas eu já não a ouço. Apenas escuto o bater desenfreado do meu coração e imagino a cena que vou desencadear. Se houver alguém que se oponha a este matrimónio... Já não consigo segurar o fôlego. Uma lágrima escorre-me pelo rosto, todavia dou o meu melhor para a ignorar. Fui covarde pela minha vida toda, está mais que na hora de tomar uma atitude. A igreja é grande, as paredes são de um PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS branco sujo e a porta de madeira está entreaberta, pois vários convidados assistem à missa do lado de fora. Existem uns bancos em frente, pintados de verde, onde se encontram colegas da minha antiga universidade. Vê-los, recorda-me dos meus tempos como estudante e uma infinidade de sensações instala-se no meu peito. São sentimentos, memórias, pensamentos, cheiros, cores. Abano a cabeça. Não me posso desviar do meu foco. E o meu foco é Bernardo. — Com licença — peço, ofegante, tentando contornar o enxame de gente bem vestida que se concentra ali. — Com licença, com li... Sou engolida por uma nova multidão, desta feita vinda de dentro do edifício. As minhas mãos, que escudam o meu peito enquanto as pessoas passam por mim, passam a jazer sem vida dos dois lados do meu corpo. — Já acabou? — pergunto a ninguém em especial. PERIGOSAS ACHERON


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— Acabaram agora de assinar os papéis — diz-me uma tia qualquer. Assinto, tentando engolir o choro. Os meus avós e os meus pais chegam nesse momento. — Oh, eu não acredito que perdi o casamento da minha neta! — diz a minha avó com exasperação. — A Carolina disse que o padre não podia atrasar mais, mas... — O Francisco gravou, mãe. — Olga, a mãe de Carolina, filha de Dora e minha tia, passa o telemóvel do seu filho para as mãos da minha avó. — A parte do beijo e da troca de alianças, pelo menos. O vídeo só tem dois minutos. Sinto-me nauseada e procuro com os olhos uma casa de banho ou pelo menos um lugar com terra. Todo o recinto encontra-se alcatroado e não existe nenhuma sinalização que me indique uma casa de banho. Sem pensar muito, entro no edifício a cambalear com a mão perto da boca, para tentar prevenir o vómito. PERIGOSAS ACHERON


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— Clara? — Levanto os olhos e vejo Carolina e Bernardo, os noivos. Eles estão ao lado de um dos bancos de madeira, em frente ao altar. Não respondo, pois se o fizer, irei enchê-los com a mistura peganhenta que é os meus fluídos corporais e o meu jantar de ontem. Abano a cabeça e corro para as laterais do edifício, passando pelos bancos e entrando no compartimento que, presumo pela gravura na porta, é a casa de banho das senhoras. Depois de a aflição passar, a minha garganta ainda arde. Grossas lágrimas escorrem-me pelos olhos, borrando a pequena porção de maquilhagem que apliquei. Fito o meu reflexo no espelho com frustração. Atrás de mim a porta abre, fazendo-me instintivamente limpar os olhos e baixá-los para a torneira do lavatório. — O que se passa? — A voz de Bernardo está pejada de preocupação. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS Engulo em seco, sentindo a acidez dos fluidos estomacais ainda queimando. — Não podes estar aqui. — Os meus ombros tremem, e ele nota esse pormenor. — Eu sei. — Ele dá dois passos na minha direção, incerto. Os nossos olhos encontram-se no espelho sujo e estalado no canto direito e não consigo não reparar na perfeição do meu amigo. O seu cabelo acobreado está cuidadosamente penteado para trás, fazendo sobressair mais os traços firmes e belos do seu rosto — desde o nariz arrebitado, passando pela barba cuidadosamente aparada e terminando nos olhos verdes e expressivos. A sua indumentária também lhe assenta na perfeição, consistindo num fato azul-escuro que lhe salienta a largueza dos ombros, camisa branca e gravata vermelha. — Está tudo bem. — Fungo audivelmente. O fogo que me consumiu no caminho para a PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS igreja extinguiu-se, deixando para trás apenas o vazio, a angústia e o desapontamento. — Lamento não estar bem no teu grande dia. — Oh, Clara, — ele abraça-me, e o calor do seu corpo faz o enjoo voltar — agradeço que tenhas vindo, apesar do estado em que te encontras. Não sei o que faria se a minha melhor amiga não estivesse presente no dia mais feliz da minha vida. Os meus olhos picam com o incómodo das lágrimas. — Eu — começo, agradecendo mentalmente o facto de ele não me conseguir ver o rosto — não perderia o teu casamento por nada deste mundo. Ele afasta-me gentilmente de si, um sorriso incerto nos seus lábios fazendo o meu coração doer ainda mais. — Bem, agora vou deixar-te — diz o noivo, coçando a base da nuca. — Sabes como a Carolina é. Impaciente como o raio. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS Precisamos agora de sobreviver à chuva de arroz e pétalas de rosa. — Boa sorte — desejo, a minha voz fraca. Ele abre a porta, que chia ligeiramente. — Vemo-nos na quinta. Tivemos o cuidado de te pôr a ti e aos teus pais numa mesa perto da nossa. — Boa — murmuro, com uma alegria que não sinto. Bernardo retira-se e volto a olhar para o espelho, mergulhada agora num sentimento de autopiedade. Tenho agora de lidar com os frutos da minha covardia.

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Capítulo 2 É difícil dar um início à minha história. Ao porquê de me ter apaixonado por Bernardo. Não consigo precisar o momento em que tal aconteceu. Talvez devesse, por bem, mencionar os meus belos tempos do secundário. Não. Até aos dezoito anos, a minha vida é uma mancha bem confusa em que o que mais se salienta é o meu amor pela minha família e por História com "H" grande. Bem, já aí existia Bernardo. Sim, ele sempre foi uma constante inconstante na minha vida; um rio que enche até transbordar no inverno e seca até se lhe ver o fundo no verão. Mas esteve sempre lá. Parcial ou de forma completa, esteve sempre presente. Existem muitos fatores que levaram a este preciso momento. Decidi que queria tirar o curso de PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS História depois de ver a lista de todas as licenciaturas existentes em Portugal. Sabia que havia pouco emprego — a minha família fez questão de o recalcar — mas preferia ficar pobre a infeliz. Todos me comparavam com a minha prima — outra constante na mancha difusa — pois ela sempre quis medicina. Não por adorar curar pessoas, suspeito, mas sim pelo prestígio que a profissão dá. E vendo os planos ambiciosos de uma neta e comparando-os com os da outra, Dora não se cansava de me dizer que o meu destino mais provável era uma caixa de supermercado. — Para que é que queremos saber a História, querida? Precisas de te dedicar a algo relevante! — disse-me, certa vez. Obviamente, fiquei ofendida. — O presente é a chave do passado, vó. E acredito que o contrário também se verifica. A minha família desistiu de me tentar persuadir a mudar o que queria para o meu futuro. E assim, PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS entrei no meu curso e Carolina não entrou no dela por umas décimas. O seu destino foi enfermagem. É claro que a profissão de enfermeira continua a ser muito nobre. A minha, ao que parece, nem tanto. Pelo menos aos olhos da minha família. Relutante, depois de passar um pouco de batom nos lábios, saio da casa de banho. Ouço os sons de rejúbilo fora da igreja e, depois de passar a porta de madeira e descer as escadas, consigo vislumbrar o vestido branco e longo de Carolina a ser recolhido pela sua mãe, que de seguida fecha a porta da bela limousine branca alugada. O veículo está decorado com flores e laços nos puxadores e na antena. A minha mãe toca-me no ombro. — Nunca mais te vi. — Ela fita-me por uns instantes e depois tira um pacote de lenços da sua mala. — Toma. Estás com o batom borratado. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS — Oh. — Aceito os lenços e começo a limpar o canto da boca. Devo ter trincado os lábios e espalhado a pintura mal vi a bela limousine. — Estás melhor? — A pergunta da minha progenitora leva-me a fitá-la de olhos cerrados. — O Bernardo disse-me discretamente que não te estavas a sentir bem. — Estou. — É a minha resposta. — Tive apenas uma indisposição. — Foi o coelho de ontem, não foi? Estava demasiado condimentado. — Provavelmente. — Não queres ver o vídeo da troca das alianças? — Abano a cabeça. — O teu primo filmou à socapa, pois o padre não permitiu. Tens a certeza? — Sim, mamã. Depois da minha, err, indisposição, nem sei se quero ir para a quinta. Não me sinto bem. — Oh filha, não faças isso. Estás tão linda! — PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS Sorri com aprovação para o meu vestido. — Parece que estás a competir abertamente com a Carolina! — Que ideia, mãe! — Forço o riso mas o que me sai é mais parecido com o lamento de uma foca viúva. — Mas que azar estares assim hoje. Sempre tiveste o estômago sensível. Arrependo-me de ter deixado o teu pai temperar o maldito coelho! — Lurdes acena para a avó. Dora aborda-nos com uma vivacidade pouco caraterística na sua idade. — Ai, mas do que estamos à espera? A minha Carolina quer tirar uma foto connosco lá num dos jardins bonitos. Já devíamos estar na estrada! — Guilherme! — Chama Lurdes. O meu pai vem prontamente, o casaco já na mão, e a camisa azul dentro das calças salientando a sua barriguinha proeminente. — É para irmos? PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS — Já lá devíamos estar — resmunga a minha avó. — Oh, Clara, estás mesmo linda — observou, não pela primeira vez naquele dia. — ALBERTO! O meu avô conversava com o pai de Bernardo e a sua expressão é um pouco cómica ao escutar a minha avó a chamá-lo. Assim que nos instalamos no carro, estando eu na ponta esquerda, o avô na direita e a avó no meio, finalmente partimos. — A família da parte do Bernardo é muito sofisticada. — Dora retira da sua bolsa a caixa dos óculos e coloca-os. — Tenho de ver bem os seus grandes vestidos. Em animada conversa — leia-se diálogo entre a minha mãe e a minha avó — chegamos à bela quinta onde vai ser servido o buffet. De facto, já conhecíamos a quinta. Carolina escolheu aquele lugar devido ao grande salão do edifício, que tinha capacidade para albergar trinta consideráveis mesas redondas mais uma grande pista de dança, e aos grandes espaços verdes a toda PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS a volta que, obviamente, dariam para excelentes fotos. A viagem de quinze minutos é excecionalmente dolorosa. Deixei a oportunidade da minha vida passar, e agora tudo o que quero é chegar ao meu quarto, tirar as minhas belas sandálias de salto que já começam a incomodar e deitar-me em posição fetal. O que é ridículo, visto que sou uma mulher adulta, que tenta sempre ver as coisas com a maior racionalidade possível. Digo "tento" porque isso nem sempre acontece. O meu pai passa o grande portão de quase três metros de altura que se encontra escancarado para trás para receber os convidados. Sou inundada por uma variação interessante da cor verde, sarapintada apenas ocasionalmente por outras. Belos arbustos cuidadosamente cortados ladeiam a pequena estrada alcatroada que termina num amplo parque de estacionamento. Todos saem do carro PERIGOSAS ACHERON

animadamente,

os


PERIGOSAS NACIONAIS estômagos roncando. Arrasto-me pesadamente para fora do veículo e solto um suspiro de frustração quando a ponta do meu vestido fica preso na porta. Sem me dar ao trabalho de a abrir, puxo com pouca delicadeza o tecido que desprende mas que possui agora uma cor acinzentada. Reviro os olhos e sigo a minha família. Uma música animada soa e corta o burburinho geral, pois tal como nós, muitas outras pessoas, umas conhecidas e outras nem por isso, também saem dos seus carros e dirigem-se ao interior da quinta. A limousine dos noivos para no limite do parque de estacionamento, o altifalante nas mãos de Bernardo desmistificando a origem da música. As pessoas irrompem em palmas, o motorista buzina, o noivo sai da limousine e dá a volta ao veículo, abrindo a porta à noiva. Bernardo curva-se em reverência, estende a sua mão e Carolina ri e aceita-a. Viro costas, incapaz de ver tudo aquilo. E vejo Daniela a caminhar na minha direção. VêPERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS la faz-me sorrir, um sorriso torto e doloroso. — Olá, Clara — cumprimenta ela. Daniela foi minha colega de curso. Já não a via há pelo menos um ano. Como é amiga de ambos os noivos, a sua presença é justificada. E ela está bastante elegante no seu vestido azul-escuro comprido, deixando ver parte dos seus sapatos da mesma cor. — Olá — retribuo. — Viste a cerimónia? — Parte dela. — Hugo, o seu namorado, aproxima-se subtilmente e coloca a mão à volta do seu pescoço. — Foi tudo muito lindo até ao momento em que me senti nauseada. — Mas estás bem? — Franzo as sobrancelhas. Daniela troca um olhar cúmplice com o namorado. — Estou ótima. Não podia estar melhor, na verdade. — Ela sorri. — Estou grávida. A minha expressão simpaticamente alegre minga. Percebo que temos a mesma idade e ela já vai ter PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS um filho; Carolina e Bernardo acabaram de se casar; Mónica, a minha irmã, tem já duas filhas. Não queria tirar nenhuma conclusão desagradável, mas sentia-me uma Bridget Jones sem a parte do romance — porque a minha possibilidade de romance tinha acabado de morrer há uma hora atrás. — Parabéns! — Demoro um pouco mais do que devia a encontrar a minha capacidade de reação. — Estás de quanto tempo? — Quatro semanas. — Hugo beija afetuosamente Daniela. Ao ver a minha expressão visivelmente forçada, a minha antiga colega continua — Oh, Clara, está tudo bem contigo? Lembraste-te dele, não foi? Assim que me apercebo a quem ela se refere, os meus olhos enchem-se de lágrimas. Pisco com força. — Mais ou menos. — Oh, querida — PERIGOSAS ACHERON

Daniela

abraça-me


PERIGOSAS NACIONAIS inesperadamente. — Lamento tanto. — Já passou muito tempo. — Engulo em seco, sentindo-me terrível. — Tenho de seguir em frente. — Sinceramente, até Carolina e Bernardo noivarem, estava convicta de que tinhas ultrapassado. Olho por cima do ombro para os noivos, que tiram fotos com familiares e amigos. — Eu e Bernardo somos só bons amigos — sublinho, um nó na garganta impedindo-me de continuar. — Vejo agora que sim — diz Daniela. — Mas eu e o Hugo sempre pensámos que vocês dariam um ótimo casal. — Clara! — Dora puxa-me por um braço. — A Carolina está a chamar-nos para tirarmos umas fotografias. Despeço-me da jovem, abalada pelas suas palavras, e sigo a minha avó até Carolina. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS Um ótimo casal. Sim, claro. Carolina está com um copo de vinho branco na mão que um empregado da quinta lhe serviu e faz pose para o fotógrafo com uma jovem que eu não conheço. O homem acena para elas após alguns cliques e as jovens cumprimentam-se uma última vez, até que a rapariga que eu não conheço se encaminha para dentro do edifício. — Prima! — A noiva abraça-me com ternura, enquanto eu permaneço estática, surpresa pela sua reação. Nunca nos demos particularmente bem, por isso deduzo que o seu comportamento efusivo se deve à emoção. Até eu estaria emocionada no lugar dela. — Estás muito linda — comento, num tom de voz que, espero, soa neutro. Ela sorri abertamente, os seus dentes brancos contrastando com a sua pele gloriosamente morena e rodopia sobre si mesma, agarrando o vestido para poder concretizar tal ato. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS — As minhas belas netas — elogia a avó, fitandonos com ternura. O sorriso de Carolina morre um pouco. — Sorriam! — Pede o fotógrafo. Eu fico entre Carolina e a avó e o flash cega-me momentaneamente. Esfrego os olhos, apoiada em Dora e suspiro. — Vou ver qual é a minha mesa — anuncio. Preciso de sair dali, do meio daquela multidão de gente que deseja tirar fotos com os noivos. — Penso que vais ficar satisfeita com as alterações que fiz! — exclama Carolina, antes de abraçar a sua mãe e sorrir, mais uma vez, para a câmera. Fico perplexa com as suas palavras. Bernardo tinha-me dito que ficaria na mesma mesa que os meus pais. Decerto ela se referiu a outras alterações. Assim que entro no grande salão e me dirijo ao berrante e enorme cartaz azul-marinho, percebo o PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS que ela quis dizer. Nรฃo estou sentada com os meus pais, mas sim com colegas da faculdade e outros nomes que desconhecia, mas que deviam pertencer a pessoas da minha idade. No que estarรก a pensar a Carolina?

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Capítulo 3 Cruzo os braços tentando, em vão, decifrar o interior da cabeça da minha prima. O enorme salão está cheio de mesas redondas com duas toalhas cada: uma de um belo tom de azul por baixo e outra de renda branca. Ao centro está um arranjo de flores onde, preso por uma molinha, se encontra um coração recortado com exatidão com a foto dos noivos. Na pista de dança já se encontram homens com roupas formais a preparar os seus instrumentos. Uma mãozinha toca no meu vestido, o que faz a minha cabeça inclinar-se para baixo. — Tia Clara — Madalena, a minha sobrinha, fitame com uns olhinhos castanhos absolutamente adoráveis. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS — Que foi, querida? — pergunto num tom terno, baixando-me para ficar ao nível da menina. Ele estende os braços na minha direção e eu pego-lhe ao colo. — Estou a esconder-me da mamã, ajudas? — Não posso evitar rir com o seu pedido. — Oh, querida, não podes fazer isso. É errado! — Tento, em vão, repreendê-la. Mónica vê-me nesse instante, fazendo-me um gesto em tom de desculpa e pedindo-me para esperar e entreter Madalena por mais um tempo. Fito mais uma vez o cartaz. A minha mesa é a número treze. Procuro-a e noto que é uma das que se encontra mesmo a meio da divisão, vazia. Tenho uma visão mais ou menos privilegiada da mesa dos noivos, algo que não abona muito a meu favor. — A tia vai se sentar um bocadinho, está bem? — Sem esperar pela resposta de Madalena, dirijo-me à minha mesa e sento-me. Sirvo-me de um pouco de PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS vinho branco, com a minha sobrinha apoiada no meu peito e bebo um gole. — Quê isso? — pergunta a criança, interessada. — É uma bebida para os adultos — respondo, um pouco distraída. A minha distração deve-se puramente à entrada de Bernardo. O jovem tirou o casaco e, para meu desconforto, enverga agora o colete e a camisa. Tal visão faz-me sentir como se centenas de borboletas se debatessem para se libertar da prisão que é o meu ventre. Bernardo sorri assim que me vê e, para meu desespero, caminha na minha direção. Quero fugir, tenho de fugir. Não sei até que ponto sou capaz de aguentar esta agonia. Antes que possa pensar num plano de fuga viável que não cause incómodo a Madalena, ele abordame. — Adoro quando fazes de babysitter. — Ele ri. — PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS Faz-me lembrar do tempo em que odiavas crianças. — Eu nunca as odiei — retruco. — Elas é que não são propriamente minhas fãs. — A Madalena parece ser. — Bernardo aponta na direção da menina, que por sua vez olha para ele de boca aberta. Como eu a compreendo. — Oh, ela é um doce, não é? Não és um doce, princesa? — pergunto à minha sobrinha que sorri, absolutamente adorável com a sua franja e cabelo escuro preso por belos ganchos com lacinhos. — Porque estás aqui, Clara? — Bernardo muda abruptamente de assunto. Eu apenas olho para ele, os olhos muito abertos, completamente chocada. — O quê? O noivo aponta para a mesa. — Esta mesa é para os amigos da universidade e seus acompanhantes. Tinha ficado decidido que PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS ficarias com os teus pais e com a tua irmã. — A Carolina disse-me agora mesmo que tinha feito umas alterações — informo. Supostamente, devia ter ficado agradada com a mudança, mas apenas estou a chorar interiormente. — Estranho, ela não me avisou de nada. — Carolina sendo Carolina. — Apesar de não ser a minha intenção, pelo tom que usei, parece um comentário reprovador. — Bem, isto foi mesmo uma surpresa. — Bernardo levanta-se. — Tenho de ir falar com a banda para ver se a minha lista de músicas chegou às mãos deles. Se depender da Carolina, vamos ouvir "O lago dos cisnes" até à noite. — Fazes bem — concordo, apesar de gostar dessa melodia. — Não desejo a ninguém esse destino. Ele ri-se e afasta-se. Não me digno a olhar uma vez que seja na sua direção, pois sei que dessa forma vou apenas desmoronar. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS Mónica chega nesse momento e arranca-me a sua filha dos braços. — Então, ainda não te tinha visto. — A minha irmã fita-me com um sorriso. — Tivemos de ir buscar a avó e por isso não chegámos a tempo de ver o casamento. — Foi por isso que não te opuseste ao enlace? Porque chegaste tarde demais? — Ela lança-me um olhar sábio. — Mónica Maria, não percebi a tua insinuação! — As minhas mãos agarram com força a dupla toalha e forço mais um gole de vinho pela minha garganta abaixo. — Clara, Clara, Clara. — Mónica abana a cabeça. — Eu assisti à missa completa porque sabia que alguma porcaria ia acontecer. Tinha de acontecer! E qual não foi o meu espanto quando, durante a cerimónia, ninguém se opôs à união daqueles dois. O que aconteceu, Clara? Porque o deixaste escapar? PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS — Eu... eu não deixei ninguém escapar, Mónica, compreendeste tudo mal! — Um novo gole de vinho. — Sabes perfeitamente ao que me refiro. Desde o A.C até ao D.C, nunca deixaste de gostar dele. A minha questão, Clara, é o porquê de não teres tomado uma atitude... — Meu deus, Mónica, endoideceste de vez! — Levanto-me abruptamente. — Porque me martirizas com o passado? Porque insistes em ligarme a ele? A verdade nua e crua é esta: não existe nada entre mim e o Bernardo! — Calo-me abruptamente ao perceber que muitas pessoas nos fitam com interesse. Ótimo, Mónica, excelente trabalho. — Clara... — Quem és tu? — interrompo-a. — E o que fizeste à minha irmã? Mónica abre um sorriso trémulo e fala baixinho: PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS — Eu sou a tua consciência. — Uma pequena pausa. — Só te estou a dizer isto porque és minha irmã e te desejo o melhor. Sei o quão difícil tem sido a tua vida e noto a tua incapacidade de seguir em frente. Estou farta de te tentar ajudar. Antes que o possa impedir, os meus olhos enchem-se de lágrimas. — Já não há nada a fazer, Mónica. E com estas palavras em mente, caminho o mais rápido que consigo até chegar à casa de banho. Aí, puxo o papel do dispensador e limpo os olhos. Dou graças aos céus pelo facto de a casa de banho se encontrar vazia. — Tu consegues fazer isto, Clara — digo para mim própria, em frente ao espelho. — Só tens de seguir em frente. De novo. As palavras de Mónica causaram um grande abalo às minhas fundações. É o que dá ter uma irmã que me conhece melhor do que eu mesma. Porém, foi insensível da sua parte fazer todas aquelas PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS observações espinhosas. Já mais calma, regresso à minha mesa. A banda está a tocar a melodia de músicas da atualidade, e várias pessoas já se encontram na enorme divisão. Até a minha mesa está quase cheia. Assim que lá chego, as pessoas cumprimentamme com um sorriso. Quase todos lá andaram na minha universidade — Orieva. Daniela fez o curso de história e neste momento serve-se do seu conhecimento para escrever histórias verídicas, com personagens reais que viveram há muito tempo; Hugo, o namorado, era colega de curso de Bernardo. Assim que vejo Vânia e Fábio, a mesma sensação de desespero que me acometera assim que vi os seus nomes volta a percorrer-me. Eles eram os melhores amigos de César. Sentimentos e memórias que consegui, muito a custo, esconder de mim própria voltam a surgir, PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS mais fortes do que nunca. César é um tema demasiado doloroso para mim. Por essa razão, evito falar o seu nome. Aliás, qualquer pessoa que me conhece bem evita falar o nome dele, pois sabe perfeitamente o quanto me afeta. Foi por essa razão que Mónica tinha usado as abreviaturas A.C e D.C. Porque não, não são os AC/DC nem significam "Antes de Cristo" e "Depois de Cristo". Antes de César. Depois de César. Vânia leva um rissol à boca e manda vir uma caipirinha. O seu olhar é tão intenso que depressa baixo o meu, constrangida. — Então, Clara? Há tanto tempo. — Franzo o sobrolho. O que fazem eles aqui? Qual a sua relação com os noivos? Como se tivesse escutado a minha pergunta mental, Vânia continua. — A Carolina está muito linda, não concordas? Fui eu que a ajudei a escolher o vestido. Somos quase PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS melhores amigas agora. — Oh. — É a minha resposta. — Está linda, sim. O vestido assenta-lhe lindamente. — Estás empregada, Clara? — pergunta Fábio. — Sim, estou. — Como melhor aluna da turma durante os três anos que durou a licenciatura, era minimamente de se esperar. — E vocês, como estão? Daniela fita-me, apreensiva. Decerto sabe no que estou a pensar. — Estamos juntos. — Pisco, confusa, tentando fazer aquelas duas palavras ganharem sentido na minha mente exausta. — Juntos? — Sim. Namoramos, se quiseres atribuir um verbo à nossa relação — diz Fábio, a rir-se. — Oh. — De novo, a minha magnífica reação. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS A minha mente jรก estava bem longe.

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Capítulo 4 Recordo-me do meu primeiro dia na Universidade de Orieva como se fosse ontem. Com toda a minha inocência, entrei no auditório onde foram apresentados os diretores de curso bem como a comissão de praxe. César estava lá. Sorrindo. Vânia e Fábio também. Nessa época, Vânia namorava com ele, daí a minha estranheza à declaração dela. O ambiente era festivo e o reitor fazia o seu discurso de calorosas boas-vindas que repetia todos os anos. — E mais uma vez: muito obrigada pela confiança que depositaram nesta universidade. Obrigada por escolherem Orieva! Todos bateram palmas, inclusive eu. Não conhecia ninguém que tivesse vindo para o meu departamento, pelo que me sentia na mais completa PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS solidão jamais imaginada. Caminhámos a passos lentos para a saída do auditório e fomos todos informados que, depois de uma curta pausa, os alunos teriam uma aula com os seus diretores de curso na sala evidenciada no horário. Subi os degraus que me levariam ao segundo piso e admirei os quadros pintados que retratavam pessoas importantes e batalhas quase lendárias. Alguns alunos passaram por mim, tagarelando efusivamente e lançando-me alguns olhares de lado. À porta da minha sala encontravam-se alguns alunos, sendo um deles a Daniela, que me sorriu. Foi a primeira amiga que fiz na minha nova turma. Assim que uma mulher baixa e gordinha entrou na sala com um jovem alto a seu lado, todos os alunos do primeiro ano a seguiram e instalaram-se nas bancadas. Eu fiquei na da frente, óbvio. Principalmente porque queria observar aquele rapaz mais de perto. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS Usava uns óculos de armação negra que lhe assentavam na perfeição (César era míope, mas um míope com estilo) e a sua barba emoldurava a sua boca de uma forma tão bela que exalei um suave suspiro. Claro que ele não olhou para mim uma única vez. A mulher, Anabela Cardoso, apresentou-se e começou a falar em que é que consistia o curso, quais as unidades curriculares e as saídas profissionais. De seguida, apresentou o jovem: — Bem, chega de vos maçar. Apresento-vos César Montenegro, um dos finalistas do curso. É o melhor aluno do seu ano e confio que ele vos deseja dar uma palavrinha. César sorriu e tomou a palavra, a sua voz tão melódica e, no entanto, poderosa, que todos na sala estavam suspensos nas suas palavras. — Olá a todos! Fico feliz por terem escolhido o melhor curso desta universidade! — Todos riram. — Espero que tirem proveito da vossa vida académica, ainda mais no vosso ano de caloiros, o PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS melhor ano, sem dúvida. — Ele fez uma pausa, humedeceu os lábios e fitou-me de soslaio. — Tenho aqui uma folha que vou passar pela turma — agitou um pedaço de papel —, a qual espero que preencham com o vosso nome e contacto caso queiram comparecer no jantar de curso de amanhã. Recomendo vivamente! — Aí mirou a primeira fila, fixando os nossos rostos um a um. — Espero ver-vos na praxe de hoje! Engoli em seco nesse momento, pois sabia que eu com certeza, nunca, jamais seria praxada. É claro que os trajados me tinham abordado no dia da inscrição porém escapuli-me deles de fininho, alegando que a minha mãe estava à espera. Não tinha nada contra esse ritual, pura e simplesmente não gostava. Não me queria submeter aos trajados mais velhos simplesmente por serem mais velhos e eu uma pobre e triste caloira. Não, muito obrigada. Muitos alunos foram fazendo perguntas a César, que as respondeu com naturalidade e segurança. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS Inclusive, deu dicas sobre os melhores bares de Orieva, o que se podia esperar das festas académicas, a cadeira mais difícil do semestre... Assim que a folha chegou até mim, não hesitei. Rabisquei "Clara Castro" com toda a segurança do mundo e entreguei-a com um sorriso ao jovem, visto ter sido a última a receber o papel. — Obrigada — murmurou ele, nem seco, nem acalorado. Apenas murmurou. Mais tarde, os meus colegas compraram o kit do caloiro (inclusive Daniela, que embora não me conhecesse propriamente bem, não parava de reclamar sobre o erro que estava a cometer). Todavia, eu era fiel às minhas convicções. Não viera à toa para História. Bem, para além de ser uma louca apaixonada por romances históricos que adorava analisar os detalhes das ruinas de monumentos romanos no Google (porque não, não ia a muitos museus e não, não saía muito da minha pacata aldeia), também queria ardentemente estudar o homem enquanto ser pensante, a sua política ao PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS longo dos tempos e o modo de pensar das figuras históricas. Queria formular opiniões. Por outras palavras: era teimosa. E não me arrependi da minha decisão. Bem, talvez um pouco. Auxiliei Daniela a colocar o boné horrível que dizia "HISTÓRIA" em letras maiúsculas, pois o seu cabelo simplesmente não cabia todo dentro daquela pequena abertura. Raios, porque insistiu ela em levar um rabo-de-cavalo, mesmo? — Obrigada, Clara — agradeceu ela, puxando o fecho da sua mala, onde guardara o seu relógio, colar e pulseira. — Isto deve durar cerca de umas três horas. Podes esperar por mim antes de passares para o outro lado? — Sim. Eu fico no café da universidade, tudo bem — respondi, incerta. A verdade é que o que tinha na ponta da língua era um "não" redondo, porém ela tinha sido a única pessoa com quem falara no dia inteiro. O nosso departamento, bem como o de saúde, ficava no fim do mundo. Digo isto porque todos os PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS santos dias precisávamos de atravessar uma ponte gigante que parecia ter mais de cinco quilómetros (foi isso que eu disse aos meus pais. Uma porra de uma ponte no meio do campus da universidade. Porém, não tinha nem de perto cinco quilómetros. Na realidade, não chegava nem a 500 metros). E Daniela não queria atravessar essa ponte sozinha. É claro que teria de ficar longe da civilização por mais três horas, mas quem estava a contar o tempo, mesmo? Enfim. Passei as primeiras duas horas na cafetaria. Pedi um café e um pão com manteiga e poupei-os o máximo que pude. Assim que o relógio que estava na grande divisão indicou as cinco horas, perdi a paciência e decidi apanhar ar. Sabia vagamente onde era realizada a praxe pois escutava muitas pessoas a falar. Estavam reunidos atrás da cantina. Respirei fundo e sentei-me num banco em frente a esse edifício e esperei, enquanto apanhava banhos de sol. A ponte cumprimentava-me, mais ao longe, PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS parcialmente escondida pela vegetação. Mexi no meu telemóvel distraidamente. Uma publicação de Bernardo prendeu-me momentaneamente a atenção. Que deus grego. Fitei o visor. Seis da tarde. Decerto já terminara. Olhei para a cantina, à espera. E então vi-o. César, digo. Ele também me viu e, para meu espanto e embaraço, caminhou na minha direção. Não consegui evitar olhar para a sua figura com as vestes negras, a capa dando um certo ar de mistério à sua pessoa. Ele parou diante mim com uma expressão confusa na face. O que me fez ficar confusa também, obviamente. — Primeiro ano? — Sim, foram estas as exatas palavras que ele me dirigiu. Acenei lentamente com a cabeça. — Por que não foste à praxe? Ergui uma sobrancelha. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS — Porque vai contra os meus princípios. — A minha cara provavelmente tornou-se ameaçadora, pois ele simplesmente deu de ombros e fez um gesto de redenção com as mãos. — Claro, nada contra. Só penso que devias experimentar, nada mais. — Agradeço a sugestão, mas... — Pelo menos vais ao jantar. — Ele tirou a lista com os nomes do jantar e viu o último nome. — Ora, és a Clara Castro? — Sou. — Muito bem, então. — Ele deu um meio sorriso e afastou-se, a sua capa esvoaçando ao sabor do vento fraco. O meu “eu” racional gritava o quanto aquela visão era ridícula — Capa? Em pleno século XXI? A menos que seja um super-herói é um grande NÃO. Porém, a minha versão mais romântica estava PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS deslumbrada. Não apaixonada. Deslumbrada. Por enquanto.

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Capítulo 5 Tento concentrar-me no sabor suave do vinho. É um pouco difícil com tanta gente sentada naquela mesa a lembrar-me do meu passado. É quase desesperador, ao ponto de me começar a sentir de novo com náuseas. Talvez seja melhor evitar as bebidas alcoólicas. Talvez seja preferível não comer de todo. Reparo no jovem sentado ao meu lado. De todos na mesa, é o único que não conheço. — Olá — cumprimento, hesitante. — O meu nome é Clara. E tu, quem és? — Sinto-me estúpida e infantil. É óbvio que ele sabe o meu nome, já o disseram mais do que uma vez num curto espaço de tempo. E a maneira como me acabei de expressar é simplesmente ridícula. Mas ele sorri, graças a Deus. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS — O meu nome é Nuno — explica ele, abrindo um sorriso charmoso, a sua barba bem aparada captando a minha atenção. — Sou um amigo da Carolina. — Um amigo da Carolina, ein? — Para que foi o tom de voz sugestivo, Clara? — Bem, é um prazer. Eu sou prima dela. — Eu sei. — A sua pele morena contrasta com a camisa branca que enverga. O laço vermelho no seu pescoço dá-lhe um ar quase amistoso, mas aquele sorriso de canto que ele me dirige, diz-me para ter cuidado com aquele indivíduo. Porque ele sabe que sou prima da Carolina. — E o que mais sabes acerca dos seres humanos aqui em geral? — pergunto, impulsivamente. Por breves momentos, quase esqueço que estou no casamento de um potencial amor da minha vida com alguém que não sou eu. — Sei que a Carolina é enfermeira, o Bernardo é engenheiro e tu és professora de História. — Interessante — balbucio, sem saber o que dizer PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS mais. — E tu? Que profissão tens? O canto da sua boca descai ligeiramente. Nuno enche o seu copo até meio com vinho tinto. — Tenta adivinhar. — Analiso o seu corpo e postura de modelo e as suas mãos demasiado delicadas para evidenciar uma profissão “pesada”. E pelo seu olhar inteligente e as suas roupas de qualidade, ele com certeza teve os meios para frequentar a universidade. — Diria que estudaste direito, economia ou gestão. Olhando para as tuas mãos bem tratadas e para a tua postura, digo. — Contabilista da empresa do meu pai — diz com alguma surpresa. — O teu pai é empresário? Uau. — Bem, não o disse para me gabar. Na verdade, até me retira algum crédito, não é verdade? Dou-lhe uma pancadinha no ombro com uma familiaridade que me assusta. Daniela fita-me com PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS incerteza; Vânia e Fábio estão entretidos a trocar — Deus me salve — carícias quase infantis. Nesse momento chega Vanessa e o namorado — ambos enfermeiros — e eu percebo que esta mesa foi feita para albergar casais. Só que eu não estou com ninguém. E Nuno aparenta também não estar. A minha desconfiança aumenta. Olho para a mesa dos noivos, essa enorme e repleta de velas e flores, e noto Carolina a fitar-me, do alto da sua poltrona de um vermelho vivo, que é quase um trono. Volto de novo a atenção para o centro da minha mesa, o coração preso no arranjo com a foto dos noivos a incomodar-me. Será que a minha prima está a tentar juntar-nos? Engulo em seco. A sopa começa a ser servida. Um creme de cenoura bem cremoso com um aspeto ótimo. Levo algumas colheres à boca, certa de que o meu PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS emocional deve voltar ao seu estado normal em breve e eu deixarei de me sentir tão maldisposta. — Eu também gostava muito de história enquanto andei na escola — comenta Nuno, voltando a puxar conversa. Cada casal está perdido no seu mundinho particular, pelo que percebo que a única pessoa que ele tem disponível para ter um diálogo minimamente confortável sou eu. — Ai sim? — Tento esquecer o preconceito que sinto pois sei que Carolina escolheu Nuno a dedo para me tentar impressionar. Tenho a certeza. A questão é: por quê? — E eras bom aluno? — Era a minha melhor disciplina — informa, com algum orgulho. — Considerando que eu nunca fui particularmente um bom aluno. — Primeiro rei de Portugal? — pergunto muito rapidamente, fitando-o com intensidade, o meu rosto aproximando-se ligeiramente do dele. — D.Afonso Henriques — responde. — Primeira conquista que marca o início dos PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS descobrimentos? — Ceuta. 1415. — Ele sabe a data? — Reinado de qual rei? — D.João I. — Quando se deu a grande depressão? — Referes-te à quebra da bolsa de valores de Nova Iorque? 1929. — Franceses ou ingleses? — Ingleses. — Cão ou gato? — Ele sorri tão abertamente que tenho uma visão privilegiada dos seus dentes perfeitos. — Isso está meio deslocado, não? — comenta, com divertimento. Um desconhecido adorável. — A resposta é "Cão". Os gatos tendem a fugir dos seus donos mal tenham uma oportunidade. Um PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS cão é leal. — Mas os gatos são independentes. — Preferes estar com alguém independente ou uma pessoa leal? — Depende. Qual característica te define melhor? — Se ele não está a flertar, não sei que é aquilo. — Um “gacão”, portanto. — Rio-me da minha observação estúpida. Por qual razão insisto eu em ser tão imatura? Nuno levanta o copo. — Um brinde ao "gacão" da Clara! Eu sorrio e bato o meu copo no dele. — Ao gacão. Conversar com Nuno é fácil. Mas um vislumbre do rosto de Bernardo é tudo o que basta para o meu coração encolher. Isto não está certo. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS Levanto-me abruptamente. — Eu vou só apanhar um ar. — Nuno mira-me e volta a sua atenção para a sua bebida. Os casais na mesa ignoram-me completamente. Sinto-me sozinha e infeliz e sair do enorme salão onde se encontram quase todos os convidados é um alívio. Não aguentava nem mais um segundo estar na companhia de Nuno depois de perceber que a cobra da minha prima o tinha sentado ao meu lado para me tentar seduzir. Por mais simpático e aberto que Nuno seja. Porque essa era a única razão possível. Bernardo já tinha enfatizado o facto de eu estar destinada a ficar ao lado da minha família. Percorro o enorme jardim que possui arbustos cuidadosamente aparados em toda a sua extensão e tento procurar o banco melhor localizado no meio da imensidão verde. Visualizo uma pequena ponte de madeira que vai de um lado ao outro de um pequeno riacho e atravesso-a, decidida a afastar-me dos sons da PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS música e animação dos convivas. Sigo o riacho e noto que ele se abre mais à frente, numa enorme e redonda porção de água com alguns salgueiros-chorões à sua volta. Sorrio ao analisar as árvores. Acho-as belíssimas! Quando criança, recordo-me de procurar cobrir-me com a sua folhagem e sentir a textura do seu tronco. Noto um banco perto da água e é para lá que me dirijo. Sento-me e fico a olhar para o nada. Pensando bem, não estou perante um riacho; talvez um lago, sim. O que é que distingue um lago de um riacho? Levo a mão à testa e aperto a cana do nariz. Estou a divagar em vez de me concentrar nos meus problemas. Bernardo merece saber que eu o amo. Ou não? Qual o nível de egoísmo da minha parte PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS em revelar-lhe? Tive muitos anos e centenas de oportunidades. Talvez tenha de aceitar que o perdi para sempre.

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Capítulo 6 O jantar de curso começou atrasado. A entrada era supostamente feita às oito em ponto e a refeição servida às oito e meia e teve início apenas uma hora depois. Claro que isso não nos tirou a boa disposição. Éramos estudantes, tínhamos todo o tempo do mundo. Daniela estava deslumbrante com o vestido azul que trouxera. Eu decidira ser prática e optar por umas calças e uma blusa básicas. Sentia-me a ser despida com os olhos pelos trajados e levar um vestido curtinho decerto aumentaria mais as minhas inseguranças. — Quem é de história, canta vitória — César deu o mote no momento em que todos se sentaram; depois de intercalarem os caloiros com os restantes anos. — SABER OS ANOS, TOD'Á MEMÓRIA — os meus ouvidos zumbiram quando toda a divisão do PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS restaurante explodiu ao som de vozes dos trajados que se levantaram — É O CURSO CERTO, O CURSO CERTO! — O que é isto? — perguntei, baixinho, a ninguém em especial. A música era solene e cantada com tanto sentimento que um arrepio percorreu-me e os meus braços ficaram em pele de galinha, apesar de a divisão estar bem abafada. — E SALTE QUEM QUER SALTAR FORA, SEM DEMORA, SEM DEMORA! O MELHOR CURSO É HISTÓRIA: CELEBRAR VITÓRIA, CELEBRAR VITÓRIA! Com isto, os trajados, com o copo cheio de cerveja numa mão, levaram-no num movimento ensaiado à boca e beberam todo o seu conteúdo de uma vez. Ainda sentia uma espécie de eletricidade a correrme no sangue nos momentos seguintes à música cantada pelos estudantes mais velhos. Durante a refeição, tive contato com muitas pessoas que não conhecera até então. Todos eram PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS simpáticos comigo, todos eram prestativos e queriam saber como me chamava e de onde era. César e Vânia trocavam provocações perto de mim; riam-se um com o outro e competiam para ver quem conseguia beber mais. Senti-me um pouco deslocada com o passar do tempo, pois os meus temas de conversa possíveis não variavam em nada entre o curso e a universidade. Bebi um gole de cerveja, não por me apetecer, mas por ter uma sensação de que a comida ficara entalada na garganta. — Caloira! — chamou César no seu tom de voz profundo e autoritário. Olhei na sua direção, nervosa. — Hum? Ao ver que tinha captado a minha atenção, sorriu um pouco e instruiu: — Chega-me a cerveja, por favor. A enorme garrafa encontrava-se à minha frente. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS Suspirando, peguei nela com as duas mãos, levantei-me e tentei, a partir do meu lugar, chegarlhe a bebida. Depois de muitos malabarismos, ele conseguiu agarrar a garrafa e sorriu. — Podias simplesmente ter pedido à Dalila para me passar. Senti as minhas faces enrubescerem. Sim, isso podia ser verdade. Sim, teria sido mais fácil. Mas não acontecera porque não me recordara de que não estava sozinha na mesa com ele. Visto que ele estava do lado contrário e duas pessoas ao lado, faria sentido. — Aceitaria de bom grado um obrigado — resmunguei, certa de que ele não me ia ouvir. Mas ele escutou. Escutou e fitou-me com intensidade. — A Caloira quer um obrigado? — Ao ver os meus olhos arregalados e a minha expressão de um suave pânico, César sorriu. — Pois bem, podes PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS subir na cadeira, dizer o teu nome e fazer um poema. Se o restante público gostar, com certeza receberás um obrigado. — César! — repreendeu Vânia. — Ela já está assustada, pá! A expressão do jovem suavizou-se. — Vá lá! — Ele não estava a ser agressivo de modo algum. — Mas, é claro, se for contra os teus princípios, longe de mim obrigar-te. Ele estava a provocar-me por causa da nossa conversa anterior. Por eu ter dito que a praxe ia contra os meus princípios. Estreitei os meus olhos em duas frestas. Sim, teimosa como era, agora ia aceitar o desafio nem que morresse na sua concretização! Respirei fundo, subi a uma cadeira e esperei que todos se calassem à medida que tentava arranjar uma forma de me sair bem naquela embrulhada. As pessoas demoraram PERIGOSAS ACHERON

pouco

tempo

a


PERIGOSAS NACIONAIS silenciarem ao verem a caloirinha vulgo Clara do alto da sua cadeira. Pensei em peixes. — Sou a Clara — disse, num fio de voz. Depois continuei o poema ridículo que magicara em tão pouco tempo: — O Nemo está perdido, a Dori sem memória. Meus ilustres doutores, acabou-se a História. Um risinho baixo instalou-se nas enormes mesas. — Obrigado, Clara — agradeceu o César, alto o suficiente para todos conseguirem ouvir. — Obrigado, Clara! — repetiram todos em uníssono. Nessa noite, Vânia bebeu demais e andou a vomitar o caminho quase todo até casa. César, como seu namorado, acompanhou-a, enquanto o PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS resto das pessoas foram para a discoteca. Eu recusei-me a dançar e, assim sendo, também fui para o meu apartamento em Orieva. O meu tempo na universidade foi passando. Cada vez que via César, ele parava para falar comigo. Era óbvio que me estava a apaixonar por aquele ser isento de imperfeições. Sim, ele era lindo como Bernardo. E culto. E inteligente. Mas houve um dia em que os flertes inocentes dele foram longe demais. Estava a estudar na biblioteca do meu polo da universidade e ele veio sentar-se ao meu lado. — Olá — saudou. — Vou ter frequência ao cadeirão do semestre — informei. Pensei que fosse um aviso velado para que ele me deixasse em paz, porém ao invés ele puxou o meu cabelo para trás da orelha. Onde os seus dedos tocaram ficou um rastro de fogo na minha pele. Virei-me para ele. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS — Tens de parar com isso. Tens namorada e eu não consigo mais lidar contigo. Por favor, para de mandar... — Calei-me abruptamente. Não queria que ele pensasse que eu estava com esperanças de que ele nutrisse algum... sentimento de cariz romântico por mim — a caloira que falou no Nemo no primeiro jantar de curso. Ele baixou os olhos. — Desculpa, Clara. Eu não quis, err... — gaguejou, sem saber bem o que dizer. — Não quis ser impróprio ou desrespeitar-te de algum modo. Lamento se foi isso que aconteceu. O meu coração ficou mole, mas tentei manter uma expressão dura. — Eu apenas... estou perdida na matéria. — Tentei desviar o assunto. — Posso-te ajudar. Se quiseres, claro. — Sim — concordei apesar de, no fundo, saber que aquilo não me levaria a bom porto. — Isso seria ótimo. PERIGOSAS ACHERON


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Capítulo 7 De volta ao presente, recordo-me rapidamente da minha situação e descalço com destreza as minhas sandálias, expondo os meus pés à relva húmida. A sensação é ótima e acalma-me. Durante uns nobres segundos, consigo manter a cabeça em branco. Até que vejo Carolina e Vânia a passearem pelos jardins, do outro lado do lago. Por que não está a noiva com Bernardo? Tento disfarçadamente olhar para o lado oposto, para as árvores, e mantenho-me concentrada nessa visão até sentir que alguém se senta ao meu lado. Agora não tenho hipótese. Volto-me para encarar Carolina. — Então, o que fazes aqui? — questiono com curiosidade honesta. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS — O que fazes tu aqui com um gato solteiro na tua mesa? — Tento não espumar de raiva à sua frente. A última coisa de que necessito é de um jovem mimado escolhido a dedo pela minha prima mimada e em tudo diferente de mim. — E quanto ao teu noivo gato, ein? Tens muitas mais razões para estar lá dentro do que eu! — replico com leveza. — Ora, Clara, estou só a recuperar, sabes... — Carolina passa o dedo por debaixo da pálpebra, de modo a remover qualquer excesso de maquilhagem. — Francamente, não sei se sei. Nunca me casei. — Não quis que a amargura transparecesse na minha voz, porém foi exatamente assim que soei: amargurada como o raio. — É só que este é o dia mais feliz da minha vida. Vais compreender quando casares. Eu e Bernardo formamos uma boa equipa, somos mesmo o par perfeito. Tive sorte em encontrá-lo. — Hum. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS Carolina analisa o meu rosto. Tento não a fitar, sem sucesso. Tudo em si — desde a sua pele morena aos seus dentes brancos, passando pela beleza do seu vestido — é de tal forma cativante que é impossível não ficar a olhá-la demorada e estupidamente. — O que te vai na cabeça, prima? — Engulo em seco. Por que está Carolina a insistir em saber como me sinto? Ela nunca antes se importou comigo, por qual razão o começaria a fazer agora? — Ama-lo mesmo? — pergunto de supetão. Mas o que se passa comigo? A morena mantém-se em silêncio por um tempo, como se estivesse seriamente a pensar na resposta; resposta essa que consiste num simples sim ou não. — Claro. — Ela afasta-se para a outra ponta do banco. — Mas que pergunta foi essa, Clara? Sim, Clara, mas que merda estás tu a fazer? — Ótimo. — Forço um sorriso. — Não gostaria de ver nenhum dos dois magoado. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS Ela segura abruptamente no meu pulso. — Eu sei. — Fico feliz em sabê-lo, Carolina. — Não me estás a perceber: eu sei, Clara, da tua paixonite pelo Bernardo. Sustenho a respiração. — Eu... — Testo a minha língua, a minha voz, esperando em vão que uma explicação linda flua dos meus lábios. Mas há apenas o vazio. — Não há nada a justificar. Óbvio que vai passar, és uma mulher adulta e mulheres adultas não flertam ou tentam algo com homens casados. Pelo menos, uma pessoa adulta que se preze não o fará. O seu tom algo sombrio soa-me quase a ameaça. — Claro que não. Uma paixonite. — A voz faltame. — Uma paixonite idiota, podes ficar descansada. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS — Bom. — És a prova viva de que paixonites são facilmente ultrapassadas — comento. — Como assim? — Carolina franze delicadamente as suas sobrancelhas perfeitas e fita o lago por segundos. — Bem, não tiveste uma queda pelo Fábio? Ele hoje namora com a Vânia que é basicamente uma das tuas amigas mais próximas. Os olhos da minha prima ficam vidrados. Ela não responde por breves momentos. A sua única reação é levantar-se abruptamente. Instintivamente, levanto-me também. — Eu nunca tive uma queda pelo Fábio. — A minha testa enruga-se. Houve uma fase na Universidade em que ela não saía do departamento de História. Recordo-me dos seus risos enquanto conversava com César, Fábio e Vânia. — Bem, está na hora de regressar. Os convidados não podem ficar muito tempo sem a sua noiva. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS — Claro — concordo. — Eu acompanho-te. — Apesar de ser a última ação que desejo tomar, sinto que é o que é certo a se fazer. Voltamos a atravessar a ponte de madeira, que geme ligeiramente com o nosso peso e regressamos ao grande salão. Carolina não se dirige à mesa dos noivos, e sim para a zona da casa de banho e da cozinha onde a comida está a ser disposta em travessas. Estranho a sua atitude, porém sento-me no meu lugar e concentro-me no meu copo vazio. Encho-o com uma dose generosa de vinho branco e espero que a comida seja servida. Consigo ver que Nuno está entediado. — Então, a Carolina está melhor? — pergunta-me Vânia. — Ela não estava bem? — questiono, surpresa. Pensei que ela só me tinha abordado para me atirar à cara que era ela que estava casada com Bernardo e não eu. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS — Estava meia enjoada — esclarece Vânia. — Deve ter sido da emoção — comento, alisando o meu vestido e aproximando-me um pouco mais de Nuno enquanto sou servida por um dos empregados da quinta. Sinto a sua respiração no meu ouvido e um arrepio percorre-me. Ele só pode estar a provocarme. — Cá para mim, já temos um bebé no forninho — diz Fábio, alegremente. Alegremente demais. Respiro de alívio assim que o senhor que está a servir o bacalhau me separa de Nuno para o servir. Durante esse meio tempo ele fita-me com uma intensidade que me desconcerta. — Qual é a tua jogada? — inquiro, cansada, depois de estarmos os dois servidos. — Não sou jogador — responde ele, com um sorriso sacana. Engulo em seco. César já me dissera exatamente PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS o mesmo. Pior, estranhamente, aquele indivíduo fazia-me francamente lembrar César. O que me está a dar? Por que tenho de começar a ver fantasmas logo hoje? *** Era uma manhã de Dezembro. O semestre estava quase a terminar. Nesse dia, depois de uma aula particularmente longa com a diretora de curso, precisei mesmo de ir beber um café. Na cafetaria, concentrei-me no sabor amargo da bebida enquanto passava o dedo pelo Instagram. Carolina estava radiante com um biquíni vermelho, com a legenda "Volta Verão" na descrição da foto. Revirei os olhos perante o cliché ambulante que era a minha prima. Alguém se sentou ao meu lado e, só pela forma como o fez e a fragrância que se desprendeu da sua roupa, percebi logo quem era. — Ora viva — disse, seca, sem desgrudar os PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS olhos do telemóvel. Tentava manter a distância de César, mas essa tarefa afigurava-se cada vez mais difícil de cumprir. — Olá, Clara. — A profundidade da sua voz deixava-me sempre arrepiada. Especialmente quando ele dizia o meu nome. Suspirei. — Qual é a tua jogada? — Perguntei-lhe, irritada. Até que o observo atentamente. Os seus óculos de armação negra assentavam-lhe perfeitamente, os seus olhos tinham um formato tão belo e a sua camisa de ganga ficava-lhe tão bem, evidenciando os seus ombros largos... Bolas. Estava apaixonada por César Montenegro. E depois ele soltou uma resposta que fez o meu estômago revolver: — Não sou jogador. Deus. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS Tentei, com todo o meu autodomínio, não fazer nada estúpido tal como beijá-lo ou saltar para o seu colo depois da forma sexy como ele afirmou que não era jogador. — Então, o que estás aqui a fazer? Onde está a Vânia? — Nós acabámos, Clara. Sustive o ar. Ai. — César, lamento muito. Ele pegou na minha mão sobre a mesa de madeira e chegou a cadeira mais para mim. Estávamos, de um momento para o outro, tão próximos que os nossos narizes quase se tocavam. Quedei-me a admirar a sua face simétrica e a forma como ele contraía a mandíbula. Ele decidiu-se e afastou o meu cabelo para trás da orelha — como o fizera na biblioteca, havia não muito tempo — só que desta vez eu não reclamei. Estava cativa dele. Completamente enamorada. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS — Eu não. E assim, César Montenegro beijou-me, fazendo com que centenas de fogos-de-artifício estourassem nos meus ouvidos e um formigueiro se instalasse nos meus lábios.

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Capítulo 8 A banda está a tocar a "Happy" de Pharrell Williams porém neste momento sinto-me tudo menos feliz. Nuno não é um jogador. Que facto interessante. Ninguém é um jogador até ser apanhado a jogar, não é verdade? Como algumas batatas e bebo mais um pouco de vinho. Carolina ainda não voltou. Bernardo está sozinho na mesa dos noivos. Ele olha para mim e desaperta o colete. A temperatura parece aumentar. Ele esboça um "O que é que se passa com ela?" que só eu compreendo e eu encolho os ombros em resposta. Não sabia que se passava o que quer que fosse. Mas segundo Vânia, ela já não se sentia bem antes de se sentar ao pé de mim. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS Bernardo levanta-se e a sua expressão preocupada aperta-me o coração. Para meu nervosismo, ele anda na direção da nossa mesa e os seus olhos estão cravados nos meus, pelo que deduzo que seja eu o seu alvo. — Clara. — Ele baixa-se de modo a ficar ao meu nível. — Estou muito preocupado com a Carolina. Ela não se estava a sentir bem e foi com a Vânia lá para fora, e aí a Vânia voltou sozinha e disse-me que ficaste com ela. A Carolina disse-te alguma coisa? Para além de que sabe que eu gosto imensamente de ti e de me confirmar que o Nuno é obra dela? Não, nada de estranho. — Bem, não disse nada de mais — digo, com a testa enrugada. Ele encara-me, em súplica. — Mas, é claro, posso ver o que se está a passar com ela. — Penso que ela está na casa de banho. Eu teria lá ido, mas vá, sabes — ele sorri-me — sou um homem. Também tenho consciência disso, obrigada. PERIGOSAS ACHERON


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— Okay — concordo, um pouco exasperada interiormente. — Eu já volto. Levanto-me, mal escutando o agradecimento de Bernardo e percorro o caminho que me separa da casa de banho. Assim que lá chego, noto que só duas delas estão ocupadas, pelo que decido esperar um pouco antes de começar a berrar o nome da noiva aos quatro ventos. Uma das portas abre-se e uma senhora idosa sai. Assisto, pacientemente, a senhora a lavar as mãos, secá-las e a ver-se discretamente ao espelho. Também eu me miro por segundos até que, farta de esperar, a chamo: — Carolina! Não há resposta do outro lado da cabine. Respiro fundo, certa de que esperei tanto tempo em vão. Por que não veio Vânia no meu lugar, mesmo? Elas não eram agora praticamente melhores amigas? PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS O Bernardo que fosse para o inferno, porque eu não estou para aturar agora um ataque de nervos de noiva. Especialmente um ataque de nervos de uma noiva chamada Carolina. O meu sistema nervoso colapsaria. Talvez a procurasse na cozinha para tirar as teimas. Viro-me para sair da divisão quando a porta de um dos compartimentos se abre. Carolina sai de lá com o rosto vermelho. Ela ignora-me completamente, o seu olhar vidrado. — O que te aconteceu, mulher? — Toco-lhe ao de leve no rosto quando ela se aproxima dos lavatórios para lavar as mãos mas a minha prima repele o meu toque. Afasto-me ligeiramente, confusa. — Por favor, Clara. Preciso de... ficar sozinha. — Ela lava as mãos e limpa as mesmas e os cantos dos olhos, que estão ligeiramente borrados devido à maquilhagem, com papel de um dispensador. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS É isso. Posso ir embora de consciência tranquila. Ela não me quer perto dela e vice-versa. Mordo o lábio. O meu lado ético recusa-se a sair daqui sem fazer nada. — Há algo que eu possa fazer? — pergunto com o máximo de doçura possível. Aperto as minhas mãos em punho. Este é o dia mais feliz da vida dela e o dia mais infeliz da minha. Como é que ela pode ser tão egoísta ao ponto até de me tirar o direito de chorar, de sofrer, ofuscando sem pudor a minha dor? — Sai daqui, Clara — ordena ela num tom baixo e lastimoso. Quando eu não obedeço ela começa a gritar. — SAI! Arregalo os olhos perante tal explosão da parte de Carolina. — Só me vou embora de bom grado quando me disseres o que raio se passou contigo e por qual razão me estás a tratar com tanta agressividade — digo, calmamente. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS Ela bufa, com raiva, mira o seu reflexo no espelho e sai da casa de banho, deixando-me sozinha. Estou tão irritada que os meus dentes tremem. Tento acalmar-me e regresso à minha mesa. Olho de soslaio para a mesa dos noivos. Eles estão ambos sorridentes e erguem os copos para um brinde. Sem dúvida que ela se recompôs depressa. Quando me sento, os convidados começam a bater com os talheres nos pratos, copos, mesas, em tudo o que produza som. Alguns ainda berram "Beijo, beijo!". Toco fracamente com o meu garfo na borda do prato três vezes até considerar que é seguro parar. Termino de comer o que tenho no prato, que já está frio, e começo a contemplar a toalha de mesa no momento em que os noivos se levantam e beijam apaixonadamente. A comida começa a subir pelo meu tubo digestivo. Encho com rapidez um copo com água e empurro-a para onde pertence — ao meu estômago. PERIGOSAS ACHERON


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— O que é que ela tinha? — questiona Nuno. Encolho os ombros. — Ela não te disse nada? — pressiona Vânia. — Eram só gases — digo com casualidade mas com uma centésima de divertimento e satisfação. O restante está no apogeu do sofrimento depois de ver aquele beijo — e que beijo — entre os noivos. Na minha mesa, todos se riem da minha explicação. Nuno dá uma pancadinha nas minhas costas. — Quase me fizeste engasgar com a tua calorosa observação. Rio-me. — Ficaria ainda mais satisfeita se isso tivesse acontecido, meu caro. Ele sorri. Reparo que tem os três primeiros botões da camisa despertados. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS O que me recorda do meu primeiro ano de Universidade. *** Estar com César era fácil. Ele era culto, inteligente, tinha um senso de humor aguçado e — saliento este ponto — era lindo. Apenas discordávamos do assunto "praxe". Para ele era tudo — união, respeito, amizade — e para mim existia ainda associada àquele sentimento de humilhação e submissão. É claro que ele não me pressionava para aderir à praxe. Já passáramos dessa fase e ele respeitava as minhas escolhas. Era o que eu mais gostava nele. César tinha uma mota. Apesar de estar a cerca de quarenta quilómetros de casa, ia de mota para a sua terra ao fim de semana e regressava. Sempre que era preciso trazer alguma coisa, os seus pais vinham a Orieva de propósito. Foi após um mês de namoro que ele me convidou para conhecer os seus pais. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS Pela primeira vez, experimentei a sensação de usar esse meio de transporte e nunca me tinha sentido tão livre até então. Ter os meus braços a envolvê-lo, sentir o seu calor e o seu perfume... sentia-me plena. Deitei a cabeça nas suas costas e desfrutei da sensação de ter o ar a balançar os meus cabelos e a minha roupa. Assim que chegámos, os meus olhos arregalaramse. César vivia numa mansão! Para começar, o portão automático pintado de verde abriu-se à sua passagem. A mota avançou e tudo o que vi foi um imenso jardim contornado por arbustos milimetricamente cortados; havia palmeiras nos limites da enorme propriedade e, ao longe, conseguia ver uma piscina. A mansão era enorme! Pintada de branco, parecia um palácio de Buckingham modesto (mas mesmo assim um palácio!) e só de olhar para os degraus em mármore que levavam àquilo que supus ser o hall de entrada, os meus olhos doeram de tão reluzentes que eram. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS — Nunca me disseste que eras rico — comentei, rindo-me. César saiu da mota e tirou também o capacete, presenteando-me com o seu adorável cabelo em desalinho e com uma bela visão do seu pescoço e princípio do peito devida ao facto de ter os três primeiros botões da sua camisa desapertados. — Mudaria a tua opinião sobre mim? Beijei-o com vontade. — Talvez. — Pisquei o olho. O meu amor por aquele homem crescia a cada dia e esse sentimento a nada se devia ao tamanho da mansão. Era algo tão profundo que transcendia tudo o que era material.

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Capítulo 9 Os pais de César não eram como ele. Apesar de poder parecer um pouco arrogante à primeira vista, ele estava longe de o ser. Quem o conhecesse bem (o que era o meu caso) sabia que ele era modesto e não gostava de se vangloriar. A exceção fora sem dúvida aquele fatídico jantar de curso. Maria e Humberto Montenegro transpiravam arrogância e vaidade por todos os poros. O seu pai era filho de um empresário falido mas que acumulara grande riqueza, vim a saber mais tarde. Assim que entrámos no hall, dei por mim a olhar para cima, para o teto e para um magnífico candeeiro. Estava decorado com imensas plantas viçosas e com um móvel com um espelho. Havia um bengaleiro em madeira, bastante sofisticado, onde César disse para eu deixar o meu casaco. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS Finalmente, encontrei os seus progenitores numa enorme sala de estar. Via-se que aquela família era grande apreciadora de arte, a julgar pelas pinturas emolduradas e penduradas na parede e pelas estatuetas a enfeitarem os móveis. Tanto a mulher como o homem estavam vestidos de forma elegante, com roupas escuras. — Olá, família — disse César de um jeito brincalhão. Ele depositou um beijo na bochecha da mãe e sorriu ao pai. — Esta é Clara Castro, a minha namorada. Clara, estes são os meus pais, Humberto e Maria. — É um prazer conhecer-vos — afirmei, na dúvida se devia ou não fazer-lhes uma vénia. Eles lançaram-me olhares de lado como se eu fosse um objeto de estudo não tão importante assim mas que infelizmente ficou ao encargo deles. — Mas ela não se chamava Vânia? — questionou a mãe. Encarei César interrogativamente. Ele nunca tinha trazido cá a Vânia, ou a mãe dele jamais nos PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS confundiria. — Não. Esta é a Clara. Estou cheio de fome, o almoço ainda não está pronto? — Estamos à espera que a Rosa nos avise — esclareceu Humberto. Sem outra opção, sentei-me num dos sofás em pele castanha. A conversa foi estranha e cordial bem como o jantar em si. Senti-me um pouco constrangida quando as atenções se viraram para mim. — O que estuda, Clara? — inquiriu Maria com um meio sorriso. — História. — Também? — Maria limpou a boca ao guardanapo. — Está em que ano? — No primeiro. — Oh! — Maria virou-se para o filho. — Então PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS namoras com uma caloira? César parecia ainda mais constrangido do que eu. Revirou os olhos. — Sim, como podes ver. Passei o resto do dia a ver a enorme propriedade dos pais de César com ele a acompanhar-me sempre. Inclusive, atrás desta e a uma distância respeitável, existia um estábulo. Lá, havia dois belos cavalos castanhos. Afaguei o confidenciava:

focinho

de

um,

enquanto

— Gostava de ter aprendido a andar de cavalo quando pequena. — Ainda vais a tempo — contrapôs César com um sorriso. — Queres que te ensine? Depois de selado, César ajudou-me a subir. Uma vez equilibrada, César guiou a montada enquanto eu lutava para permanecer o mais direita e digna possível em cima da sela. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS — É como andar de mota. — Explodi em gargalhadas ante a sua afirmação. — Tem tudo a ver. Na semana seguinte, tive uma pequena surpresa depois de atravessar a ponte. César e Fábio conversavam com umas alunas de enfermagem, entre elas a minha prima. Juntei-me a eles, um pouco inquieta e sem saber bem o que significava aquilo. Já vira os alunos de história a falarem com caloiras de enfermagem antes todavia ainda não percebera a ligação entre eles. — Bom dia! — desejei, infiltrando-me no grupo. — Bom dia — repetiu César, dando-me um selinho. Escusado seria dizer o quão constrangidas e boquiabertas ficaram as colegas da Carolina, ela incluída. — Bem, era só isso que queríamos confirmar — disse Carolina, com embaraço. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS A um sinal da morena, as caloiras afastaram-se dos veteranos de História, entrando no seu departamento e deixando para trás dois jovens que fitavam os seus rabos e uma Clara ligeiramente irritada. Enfiei o meu cotovelo no estômago de César. — Ei! — resmungou ele. — Que mal fiz eu? Também tenho olhos, pá! Fábio riu. — Ai, como adoro ser descomprometido. O olhar que dirigi aos dois supostamente devia meter medo, porém apenas os fez entreolharem-se. — O que é que elas queriam? — perguntei com desconfiança. — Vai haver uma festa só para o pessoal deste lado da ponte. É um evento privado e elas quiseram vir confirmar se nós já conhecíamos o evento e se já o tínhamos divulgado ao nosso curso — esclareceu Fábio. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS — Oh. — Ergui uma sobrancelha. — E são elas que estão a organizar? — Não só. Alguns alunos do último ano de enfermagem e fisioterapia também estão na organização. — E vocês estão a pensar ir? — Perante o meu tom nada amigável, César puxou-me para ele e colocou o seu braço nos meus ombros. Com a sua respiração a fazer-me cócegas nas orelhas, ele disse: — Claro, Clara. Sabes que nunca digo não a uma festa. — O mesmo é válido para mim. — Fábio observou-nos por uns instantes, pensativo. — Bem, deixo-vos agora a sós. Vou tratar de informar os outros anos de História e já agora talvez também apanhe o Pedro de Arqueologia. Até logo! *** — Quero propor mais um brinde — diz Bernardo, PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS pela quinta vez. Depois de eles terem brindado ao amor, estou decidida a ignorar tudo o que os noivos disserem. Todos os convidados dispostos pelas mesas redondas se calam. Daniela olha para mim e revira os olhos. Demasiados brindes, parece dizer sem mover os lábios, Até parece que não sabem que as pessoas querem é comer. Apesar de já não sermos muito próximas, sempre me dei bem com Daniela. E conheço-a o suficiente para saber que estas seriam as palavras exatas que sairiam da sua boca se estivéssemos sozinhas. Ao vermos Bernardo de pé e a fazer gesto para que o restante pessoal se levantasse, assim o fazemos. Esticamos os copos à nossa frente e aguardamos em suspense. — Desta vez, vamos brindar à Clara, uma das minhas mais queridas e antigas amigas. Foi ela que nos apresentou. — Bernardo olha para mim com intensidade. — Se não fosse por ti, querida Clara, PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS talvez nunca tivesse verdadeiramente conhecido a Carolina. Será que ele realmente a conhece? Todos se voltam para mim, sorridentes, e elevam o copo na minha direção. Depois, brindam entre si, dizendo o meu nome em voz alta. Na minha mesa, todos me fitam e esperam que eu dê sinal para fazermos o brinde. Ao me verem, estática, não comentam e tocam os copos entre si. — Clara, parece-me que ficaste muito emocionada com o brinde — graceja Fábio. Nunca chegou a perder o seu jeito jovial. As minhas mãos tremem. Mas Bernardo ainda não terminou. — Clara, — de novo, as atenções estão todas na minha mesa — como nossa cupido oficial, convido-te para inaugurares a noite de karaoke, a seguir às sobremesas. O que dizes? Estou prestes a vomitar. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS — Diz que sim! — Carolina coloca as mãos afuniladas dos dois lados da boca. — Diz, prima! Fito-a com incredulidade. Ainda há pouco estava destroçada e agora transpira boa disposição e alegria. Mas que tipo de pessoa é ela? Quero sair daqui. Não aguento respirar este ar pesado nem por mais um segundo. Levanto-me e, para meu espanto, Nuno levanta-se também. — Ela aceita! — diz ele com naturalidade aos noivos, retirando, no processo, as atenções da minha pessoa. Miro-o, estupefacta. Agora ele fala por mim?

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Capítulo 10 Nuno pega na minha mão. — Anda, vem comigo até lá fora. — O seu toque é gentil e, estranhamente, transmite segurança. Não posso ficar neste lugar por muito mais tempo, portanto acabo por ceder. Ignoro os olhares que a minha irmã me deita da mesa dela e escuto Madalena a comentar: — Olha a tia! Posso ir à tia? Desculpa, Madalena, mas não estou propriamente disponível no momento. Nuno guia-me para um banco demasiado à vista. Puxo-o de volta e aponto para um salgueiro-chorão relativamente perto, para o qual não preciso de passar a pequena ponte de madeira. Ele ergue o sobrolho pois não há nenhum banco PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS nessa zona mas deixa-me guiá-lo. Assim que chego, coloco-me por debaixo das folhas da árvore, pego na saia do vestido e sento-me, encostada ao tronco. Nuno hesita por momentos até que respira fundo e se junta a mim, do lado oposto do salgueiro, imitando assim a minha posição. O silêncio reina entre nós durante algum tempo. Estou a ruminar acerca do rumo que a minha vida tomou. Sinto uma sensação pungente de fracasso apoderar-se de mim. Nunca esse sentimento estivera tão presente até este momento. Eu perdi. Carolina ganhou. Cruzo os tornozelos e fecho os olhos. E como se não bastasse ainda tinha de cantar karaoke. — És muito nervosinha, sabias? — Nuno inicia a conversa com um comentário pouco simpático. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS Fantástico. — Não sei a que te referes. — Sabes o quão aconselhável é desabafares os teus problemas com um desconhecido? Está comprovado que as pessoas se sentem melhor após isso; inclusive esse tal desconhecido pode oferecer uma solução viável para o mesmo. — A Carolina pagou-te para me manteres afastada do seu conto de fadas? Nuno cala-se. Remexe-se e clareia a voz, testando os meus nervos com mestria. — Não sei de que falas. Claro que não. — Estou cansada, Nuno. Este dia parece que vai durar para sempre. Já perdi tudo e há muito tempo que não me sinto tão derrotada. Sei que sou uma pessoa dramática, mas desta vez tenho razões para tal. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS O jovem permanece num estado de silêncio reflexivo. Contenho o impulso de me virar de modo a poder ver a sua face. — Ama-lo, não é verdade? — A sua pergunta não é, de todo, inesperada. Sei que não fui propriamente discreta e que tenho muita dificuldade em disfarçar os meus sentimentos. — Espanta-me ainda não teres percebido. — Sabes, — ele levanta-se e coloca-se à minha frente, fazendo assim contato visual — durante alguns meses, estive com a Carolina. Nunca soube que ela estava comprometida até ser tarde demais. De facto, pode-se dizer que estamos em posições idênticas. — Ao ver a minha expressão incrédula, ele sorri com tranquilidade. — Meu Deus. Tu e... — Exceto que eu consegui superar o meu encanto pela noiva — corta-me. — Ela é mesquinha, superficial e hipócrita. O seu jeito, antes deslumbrante, entedia-me. E eu sei, graças a todos estes eventos, que nunca a amei. PERIGOSAS ACHERON


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— Por que me estás a dizer isso? — pergunto, a boca seca, a mente num turbilhão. — Porque te encontras na mesma posição que eu. Se Bernardo se casou com a Carolina, talvez não seja melhor do que ela, sabes? Ele conhece-a há imenso tempo, sabe perfeitamente onde se está a meter. As palavras dele magoam-me e são como espinhos cravados na minha pele. Mudo de assunto. — Por qual razão é que ela te convidou para o casamento, nesse caso? — Sinceramente, não sei. — Nuno limpa a garganta. — Para que eu ficasse com ciúmes, suponho. Não esperava que eu aceitasse. — E por qual razão aceitaste? — Talvez quisesse provar que ela já não me afetava. Franzo as sobrancelhas. Estou cada vez mais PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS confusa com esta história. Contudo, é imperativo que Bernardo saiba com que mulher acabou de casar. — Se ela andava a traí-lo contigo, sabes que tenho de lhe dizer, certo? Preciso de contar ao Bernardo que a Carolina não é o que parece. Nuno sorri mas não há ponta de humor na sua voz. — Também me apercebi que ela estava de alguma forma a tentar juntar-nos. Alguma sugestão sobre o porquê? — Ela sabe que eu gosto do atual marido dela. Agora escuta-me, eu preciso... — Se achas que algum bem virá dessa revelação, és livre para contar. Calo-me abruptamente. Lágrimas picam-me os olhos. Um pouco de mel no meio de um rio de leite azedo; uma memória querida, uma revelação. A minha prima escolheu demasiado bem a pessoa PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS que sentou ao meu lado. — Porquê, Nuno? Isto é algum castigo divino? E tem logo de ocorrer no dia do casamento de Bernardo? O jovem franze a testa sem entender. — O quê, Clara? Não percebo. — Não percebo o porquê de seres tão parecido com ele! Porquê, Nuno? — começo a tremer. Ele agarra nas minhas mãos delicadamente mas eu afasto-o com rudeza. Tento levantar-me mas ele segura-me. Continuamos olhos nos olhos por longos momentos até a minha respiração desacelerar e o meu pânico diminuir. — Quem é "ele"? — questiona Nuno, segurandome os pulsos. Seguro a respiração. — Respira, Clara. Fecho os olhos com força, desejando voltar a ser criança. Sentimentos loucos como o amor podem PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS ser perigosos — tão perigosos que por vezes a decisão mais sábia é fechar o coração a sete chaves. Quero a minha inocência de volta, esquecer todos os meus traumas e amores fracassados. Porque a minha sanidade mental não aguenta mais. Lágrimas grossas correm agora pelas minhas bochechas. Deslizam, impertinentes, pelo meu queixo, percorrem a minha garganta e desaguam no meu decote. — Por favor, deixa-me em paz. Eu não consigo, eu não... — Clara, tu precisas de ajuda. Talvez deva chamar a tua mãe ou... — Não! — berro em pânico. — A minha mãe não... Eu apenas não consigo pronunciar o nome dele. — O nome do Bernardo? — Agora o jovem está mesmo perplexo. Decerto sente que o meu lugar é no hospício, bem longe da sociedade. Não discordo. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS — Não — respondo, levantando-me, bem como ele. Nuno tem mais uns quinze centímetros que eu mas os saltos diminuem um pouco a diferença de alturas. Aproximo-me mais e mais dele até sentir a sua fragrância adocicada. — Vamos para dentro. E nem uma palavra sobre o que aconteceu cá fora, entendido? Ele acena em concordância. — Ainda não estás em condições de entrar. Nem eu tenho particular vontade de o fazer. Queres ficar mais um pouco? — questiona ele. Ao que eu concordo.

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Capítulo 11 Assim que chego ao meu lugar, noto que os pratos foram retirados e a mesa das sobremesas está aberta. Depois de todos se servirem, terei de fazer o sacrifício de cantar karaoke. A minha voz não é particularmente bela, mas também não desafino. O que já é um começo. A maré de gente na mesa das sobremesas finalmente abranda e então levanto-me. Analiso os belos bolos, o leite-creme, as natas do céu, a mousse de chocolate. Por fim, os meus olhos param na cascata de chocolate quente que cai regularmente sobre si mesma. A bela fonte hipnotiza-me instantaneamente, e então não hesito em pegar numa espetada de morangos, que estão dispostas em vários pontos da grande mesa, e molhá-los naquela imensidão negra. Finalmente, um pouco de luz no meio da escuridão. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS Ao longo da minha vida, sempre idealizei como seria o meu casamento. O meu noivo seria belo e alto, o meu vestido seria do género Kate Middleton, o bolo dos noivos teria cinco andares e a cereja no topo seria aquela fonte de chocolate em específico. Tão majestosa que fazia crescer água na boca só de olhar. A Carolina está a ter o casamento dos meus sonhos e eu estou a contentar-me com uma fonte de chocolate. Uma bela fonte de chocolate, vá. Suspiro, perdida em pensamentos, e munida de duas espetadas de morangos. Enquanto regresso ao meu lugar, tento arranjar uma forma de comunicar ao Bernardo acerca da traição da minha prima. Mas como farei isso depois de Nuno me autorizar a fazê-lo, apesar de o colocar em maus lençóis no processo? E onde arranjarei forças para executar tal ação quando o jovem soara como César ao autorizar-me a cometer tal ato? Ao recordar a maneira como Nuno falou, sinto a minha face a aquecer. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS Os morangos achocolatados já não me sabem tão bem. Vou cortando pequenas porções da fruta com garfo e faca de pequeno calibre que tirei de uma mesa redonda, ao lado da das sobremesas. O sol já está a desaparecer. São no mínimo umas sete da tarde. A minha agonia vai durar bastante tempo. Nuno não está no seu lugar. Vanessa e o namorado migraram há uns pratos atrás para outra mesa, essa cheia de pessoas de enfermagem. Vânia e Daniela vão dirigindo-me algumas palavras. O namorado da última, inclusive, pergunta-me se eu tenho desejo de ser revisora das histórias da Dani. — Bem, eu gosto de ler — digo, conseguindo buscar um sorriso não sei onde. — Posso rever a credibilidade histórica ou a coerência da obra em si, mas não me peças para apontar erros de português. — Não precisas de PERIGOSAS ACHERON

fazer

isso,

Clara!


PERIGOSAS NACIONAIS Simplesmente gostava de ter mais opiniões. O Hugo não gosta muito do género de livros que escrevo. — Ora, prefere policiais? — Apoio o queixo no meu punho. Era bom poder distrair-me um pouco, por mais efémero que fosse tal alívio. Daniela ri enquanto Hugo esboça um sorriso. — Prefiro ler um jornal — explica ele ao mesmo tempo que a namorada assente freneticamente, comprovando. — Ou revistas sobre carros. De preferência, algo com pouco teor de texto e muitas, muitas imagens — acrescenta. — Ei! — exclama Hugo. — Se eu não te conhecesse melhor, diria que estás a tentar rebaixar-me. Que casal mais fofo. Continuo entretida na pequena briga que acabou de despontar até que noto que a banda parou de tocar. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS Aproxima-se o momento... — Já sabes que música vais cantar? — pergunta Fábio. Engulo em seco. — Depende da seleção de músicas que lá estiver. Já pensara em imensas possibilidades. A que mais se encaixava na minha opinião sobre este casamento era Mr Brightside, dos The Killers. Óbvio que essa música não estará entre as selecionadas, mas mesmo que estivesse, não a cantaria. Não quero ser o rapaz enciumado da música. É demasiado deprimente. Começam a montar o equipamento, noto que o cabo de um microfone está a ser ligado. Assim que vejo uma seleção de vídeos a ser projetada, o meu coração para por instantes até voltar a bater, desta vez a toda a força. Já sei que música vou cantar. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS É a favorita de César.

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Capítulo 12 A festa organizada pela minha prima e pelos restantes colegas de saúde estava ao rubro. O bar não era particularmente grande — tinha, inclusive, muitas pessoas do lado de fora, onde havia bancos em cimento e conseguia-se ver o rasto de fumo do tabaco, iluminado parcamente por dois candeeiros e pela lua cheia. César e eu chegámos juntos. Éramos oficialmente um casal. Vânia ainda não ultrapassara por completo o término com o meu namorado, por isso não tinha vindo. Fábio, porém, já estava com três copos cheios de cerveja na mão e a caminhar na nossa direção. César apertou-me o ombro e guiou-me até ao amigo. — Bons olhos vos vejam, casal maravilha! — PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS Entregou-nos com um sorriso bem-humorado as bebidas e apontou de seguida para o centro do bar. — Vou tentar ali a minha sorte com as caloiras de enfermagem, o que me dizem? — Eu desejo-te boa sorte — disse com sarcasmo. César sorri. — Vai-te a elas, mano. — E elevando o copo, César bebeu a penálti toda a bebida alcoólica como se fosse água. Fábio espetou o polegar na direção do amigo em assentimento, mas ele não precisou de fazer qualquer gesto já que as raparigas (que, já agora, usavam todas calções de ganga curtos e blusas decotadas) abordaram prontamente os veteranos. — Olá, jeitosos — cumprimentou Carolina. Depois olhou-me de cima a baixo. — Oh. Clara. Que bom que também vieste. — Carolina. — Fábio abraçou a morena com ternura. Talvez já estivesse bêbado. Ela hesitou por um momento mas depois também o abraçou de volta, dando duas pancadinhas nas suas costas. PERIGOSAS ACHERON


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— O Fábio hoje está muito... efusivo — graceja César. Dei um gole na cerveja. Ainda estava fresca. — Prometo que não se vão arrepender de ter vindo! — disse outra caloira de enfermagem. Vasculhei na minha curta memória por um nome. Sofia. — A noite ainda é uma criança, meus caros. As duas jovens que acompanhavam Carolina afastaram-se, mas a minha prima ainda continuou lá, com Fábio mesmo ao lado. De repente, começou a tocar uma melodia sobejamente conhecida por todos os que reconhecem a música como uma entidade que vai mais além de um Justin Bieber ou uma Britney Spears. César começou a puxar-me e eu, não oferecendo resistência, deixei-me guiar. Ele levou-me para um canto com menos pessoas e puxou-me pela cintura, colando os nossos corpos. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS "Hey Jude", foi assim que começou talvez a música mais icónica dos Beatles. César aproximou a boca do meu ouvido e sussurrou: — Esta é a nossa trilha sonora. — A forma tão doce e carinhosa a que ele se referiu à música deixou o meu coração dormente. — Por qual razão? — questionei de volta, fitando-o com intensidade e decifrando o seu sorriso. — Por nenhuma em especial. Gosto da música. Encaixei a minha cabeça na curva do seu pescoço e deixei-o conduzir-me. Foi o momento mais belo e feliz da minha vida. "Remember to let her into your heart Then you can start to make it better." (Lembre-se de deixá-la entrar no seu coração Então você pode começar a ficar melhor) Apesar de suspeitar que ele sabia a música de cor, PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS ele não pronunciou parte nenhuma da letra, talvez com receio de estragar aquele momento mágico. E não obstante algumas pessoas na multidão cantarem de volta, eu e César permanecemos na nossa bolha privada, desfrutando da companhia um do outro. Era como se não houvesse mais ninguém no mundo. E, de facto, a Hey Jude permaneceu sempre no meu coração até ao dia de hoje. Assim que a música terminou e a magia se desvaneceu, tanto eu como César voltámos a estar cientes do mundo à nossa volta. Carolina e Fábio fitaram-nos de volta, o veterano a sorrir-nos de forma aprovadora. — Vou buscar mais bebida — informou César. Agarrei-lhe a mão e deixei-o arrastar-me de novo. Não queria estar afastada dele nem por um segundo. Ainda me sentia tonta depois do momento espetacular que ele me proporcionara. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS Quando cheguei ao bar em si, pedi uma caipirinha preta. O meu namorado pediu mais uma cerveja. Bebericámos um pouco, encostados ao balcão e notei, enfim, que Carolina se agarrava ao Fábio mais uma vez. Ela olhou na nossa direção com um sorriso provocador e beijou o veterano nos lábios demoradamente. *** Todos os convidados estão de olhos postos em mim. É incrivelmente constrangedor ser o centro das atenções. Sinto-me a tremer, prestes a asfixiar, atormentada até à alma. Mas estou resoluta. E corajosa. Bernardo direciona-me um polegar levantado para cima, como quem diz "Tu consegues, miúda!". Oh, querido, se fosse tão fácil. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS Nuno está de volta ao seu lugar de costume, ao lado da minha cadeira vazia. Ele não olha para mim, está concentrado na sua mousse de chocolate. Carolina, por outro lado, não desvia a sua atenção por um segundo que seja, o canto do seu lábio repuxado para cima em claro sinal de despeito. Respiro fundo. Dá-se início à parte instrumental da música. Começo a balançar a anca quase involuntariamente, envolvida num sentimento de nostalgia que quase me faz levitar. Levo o microfone aos lábios. — Hey Jude — começo, a minha voz ligeiramente rouca. —Don't make It bad (Não fique mal). A expressão da Carolina muda radicalmente. A letra está a ser projetada atrás de mim mas não PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS preciso de me virar por um instante sequer. A luz do projetor encandeia-me por momentos. A minha prima mira-me com intensidade. — Take a sad song, and make it better (Pegue uma canção triste e torne-a melhor). Parece que o vejo a entrar no salão, de fato preto e rosa branca ao peito. Os meus lábios mexem, sei que sim, mas já não estou a prestar atenção ao que digo. Porque César está aqui, eu sei que está. Ele sentase no meu lugar, e ninguém na minha mesa parece dar conta da sua existência, estando todos demasiado ocupados a verem-me a cantar. César acena-me e balança a cabeça em aprovação. Sorrio, não sei por qual razão pois isto é simplesmente triste. Mas a sua aparição é tão reconfortante que não me atrevo sequer a pensar que não é real. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS Uma lágrima solta-se do canto do meu olho contra a minha vontade no momento em que já estou a cantar o refrão pela terceira vez. Talvez não esteja a cantar da forma mais afinada, a emoção tolda-me o julgamento. Contudo, tenho a certeza de que estou a cantar com sentimento. E é talvez esse quesito que me vale uma salva de palmas no fim. Forço-me a sorrir e olho para onde César está. Ele está com aquele seu sorriso lindo, tirou o casaco e o colete e tem os três primeiros botões da camisa desapertados. Amo-o. Como me posso esquecer, apesar de ter sido há tanto tempo?

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Capítulo 13 Saio do pequeno palco e dirijo-me o mais controladamente possível para a casa de banho. Lavo a minha cara e pisco com força para tentar reter a todo o custo as lágrimas. Apoio as mãos no lavatório e respiro fundo. Fito a torneira durante bastante tempo, tentando acalmar-me. Estou a ficar louca. A porta abre-se e uma imensidão de branco envolve a divisão. Um autoclismo é puxado e uma mulher sai de uma das cabines. Não lhe dou atenção. Estou demasiado ocupada a encarar Carolina. Um silêncio pesado instala-se. A senhora lava as mãos e vai-se embora. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS Agarro com força na saia do vestido para não arrancar o cabelo pela raiz. O meu ou o da minha prima, não sei dizer. A sua testa morena está enrugada, os seus olhos cerrados. Os seus lábios perfeitos estão fechados numa linha fina. — O que queres, Carolina? Ela não responde de imediato. Assim que o seu corpo volta a ter vida, ela move-se espantosamente depressa para o volumoso vestido que enverga e desfere-me uma estalada na bochecha. Com força. Agarro a minha face, sentindo-a latejar e fito-a com raiva e confusão. As suas narinas estão dilatadas. Não sei como, mas pelos vistos fiz algo que a irritou. — És uma cabra, sabias? — Ela cospe as palavras com repulsa e sinto os meus olhos a arder. Cravo as unhas na pele da palma das minhas mãos com força mas não adianta. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS Dou um passo em frente e retribuo a cortesia dela, Carolina tenta desviar-se, porém ainda a atinjo. Ela mostra os dentes e tenta arranhar-me mas agora eu já estou à espera do ataque e seguro as suas mãos. Empurro-a contra a porta de uma cabine e ela abre-a com o seu peso, por pouco não caindo dentro da sanita. — Eu sou a cabra?! — A minha voz sai esganiçada, o meu cabelo está despenteado, a minha cara tensa e dorida. — Fizeste da minha vida um inferno, sabias que eu gostava do Bernardo e fizeste dele teu namorado e estás sempre — sempre! — a comparar-te a mim, a tentar rebaixarme a todo o custo. Ah, e como me esquecer do teu lindo affair com o Nuno, a tua magnífica traição ao Bernardo que tiveste a sensatez de convidar para o teu casamento. Não passas de lixo, querida, e qualquer pessoa com meio cérebro consegue chegar a essa conclusão. Ela grita de raiva. Olho por segundos em volta. A minha tia já está no compartimento, bem como a minha mãe e mais algumas mulheres. Ouço ao PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS fundo a voz de Bernardo a reclamar para que lhe deem passagem. Mas Carolina ignora tudo e todos e volta a focar o seu ódio em mim. — E isso foi o pagamento pelo que me fizeste há anos atrás, no começo da universidade. — Ela engole em seco. O primeiro vestígio de vulnerabilidade. — Tu sabias que eu gostava dele, Clara. Eu sei que sabias. — Não sei a quem te referes. É outra vez a mesma história com o Fábio? — Tento perceber a razão pela qual ela está tão enraivecida. Que raio de memórias lhe terá despertado a Hey Jude? — Queridas, por favor, queiram acalmar-se. — A minha tia tenta colocar-se no meio de nós sem sucesso. Mónica também está na casa de banho e não parece muito admirada com a nossa briga. A minha irmã tem esta caraterística peculiar — parece que consegue ler as pessoas, saber logo de cara se alguém esconde algo e quais os seus traços de PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS personalidade. Costumava usar isso para ter vantagem sobre mim, porém nestes últimos tempos tenta ajudar-me a endireitar a minha vida e quase sempre consegue precisar os momentos em que tenho uma recaída. — Mãe, não te metas. Deixa-me em paz. — Carolina está determinada a mostrar-me que eu sou a vilã da história. Da sua história, pelo menos. — Eu nunca cheguei a seguir em frente, sabes? Não, não sei. Não sou como a Mónica, preciso de um pouco mais de informação para conseguir alcançar os teus pensamentos. — Não, não faço ideia do que raio estás para aí a dizer. — Até beijei o tolo do Fábio para que ele me notasse, para que ele percebesse o quão insossa eras. Tu não o merecias. Mas tudo bem. Seguro a respiração. Repentinamente, sou incapaz de encarar a noiva, dedicando toda a minha atenção ao piso de mármore negro. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS — Como? — A minha língua atrapalha-se, sou incapaz de formular a pergunta. — Por quê? Mas tu... — Cala-te — ordena ela, os olhos vermelhos e a mandíbula cerrada. — Não te finjas de santa. Mataste-o. Graças a ti, César está morto. Sinto uma tontura quando ela menciona o nome dele e diz que eu basicamente o matei. Soluço, desolada, e recuo até sentir a fraca segurança que o mármore que envolve os lavatórios me transmite. Bernardo já aqui está e encontra-se chocado com a discussão que se desenrola diante de si; consigo vê-lo através da sua expressão facial e da maneira como ajeita a gola da sua camisa, nervoso. — Eu sei — afirmo, as lágrimas jorrando em cascata. Os ecos do passado chegam aos meus ouvidos e são tão angustiantes que me torno surda ao mundo que me rodeia. *** PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS Faltava duas semanas para o baile de finalistas dos alunos de História, Arqueologia e Antropologia e César tomara o risco de àquela altura do campeonato ainda não ter comprado o fato. Obviamente que eu abanei a cabeça em desaprovação e obriguei-o a tirar o fim-de-semana para escolhermos a sua indumentária. Já comprara o meu vestido — apesar de não ser finalista, era acompanhante de César. Consistia num vestido comprido num tom pastel lindíssimo, com um folho delicado na zona do decote e costas abertas. Sabia que ele ficaria boquiaberto no momento em que me visse com ele. Mal sabia eu que esse momento não ia acontecer. Entrámos numa loja de fatos de uma das muitas ruas do Porto. Já não me recordo do nome, porém lembro-me perfeitamente de um espaço agradável, pequeno, com sofás ao centro e três vestiários tapados por uma espessa cortina vermelha. César escolheu um dos muitos fatos da loja e foi experimentar. Assim que a cortina se abriu, senti PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS um arrepio percorrer-me a espinha e as minhas faces ruborizarem. Ele estava lindo! O fato preto assentava-lhe na perfeição, acentuando os seus ombros largos e a sua excelente forma física. A camisa estava demasiado desapertada, na sua preguiça e mania irritante de deixar mais de dois botões desapertados. — Anda cá — suspirei, rezando para que ele não notasse o meu abalo momentâneo ao ver a sua figura. Eu apertei os restantes botões e senti a minha face corar ainda mais. A sua respiração quente na minha testa era simplesmente enlouquecedora. — Estás bem? — questionou o meu namorado, avaliando-me com um sorriso malicioso. — Estou ótima — respondi, dando-lhe duas palmadinhas no peito, quase para enfatizar. — E tu também não estás nada mal. Ele sorriu e deu uma volta sobre si mesmo, rindo de troça de seguida. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS — Penso que estou apresentável, hein? — Não olhou uma vez que fosse ao espelho. Fitava-me com intensidade, avaliando as minhas reações. Engoli em seco. — Levas esse? Ele não hesitou. — Sim. — Encaminhou-se para o provador. — Não quero arriscar ver outra vez esse olhar de predadora na tua cara se me atrever a experimentar outro. Tive a certeza de que a minha face ficou escarlate. — Convencido! — resmunguei com toda a convicção que consegui juntar. — Nem sei como é que caí na tua conversa. Do outro lado do provador, fechado à vista das outras pessoas pela espessa cortina vermelha, saiu uma grande gargalhada. — Parece que tive sorte, então — disse ele, PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS depois do seu ataque de riso. César comprou a sua indumentária e, quando passámos por uma florista, pediu um instante e entrou na loja. Fiquei a segurar o saco dele, sem entender nada. César saiu dois minutos depois com uma rosa branca na mão e um sorriso bem-disposto. — Uma rosa branca para ti, minha querida. — Ele beijou-me a bochecha, tirou-me o saco da mão e deu-me a flor. Os espinhos tinham sido aparados e ela ainda estava em botão. Era linda. — Por quê uma rosa branca? — perguntei com curiosidade. César encolheu os ombros. — Baseei-me puramente no teu nome — explicou no seu tom de historiador. — Se te chamasses Gema, terias uma rosa amarela. Como és a Clara, bem, acho que percebeste... PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS Dei-lhe um encontrão e tapei um sorriso com a boca. — A sério que escolheste uma flor com base na constituição de um ovo? Muito romântico, César Montenegro. — Obrigada, minha querida. O tempo passou a voar até faltar dois dias para o baile. César decidiu que seria ótimo sair naquela última quinta-feira até se tornar oficialmente um adulto à procura de um emprego bem remunerado. Eu não discordei. Escolhi para esse dia um vestido floral curtinho, que evidenciava os atributos do meu corpo — que, francamente, não eram nada do outro mundo. Fomos a pé para a Praça, onde se situavam os bares mais frequentados de Orieva. De dia, fazia-se lá uma feira porém, de noite, o lugar transformavase completamente e um espírito libertino e festivo apoderava-se dele. O nome do bar em que entrámos era iluminado por luzes néon e havia um segurança à porta, a quem tínhamos de mostrar as nossas PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS identificações para provar que éramos maiores de idade. O segurança fez sinal para entrarmos e nós assim fizemos. O espaço era acolhedor — acolhedor de uma maneira barulhenta e desorganizada. Tinha dois andares, e chegava-se ao piso de cima através de umas escadas pejadas de bêbados — e a noite ainda mal tinha começado! César mencionou que o piso de cima teria menos gente e que dessa forma não ficaríamos como sardinhas enlatadas. Pedimos as bebidas e deixámos que a onda funk que passava nos arrebatasse. Não era música delicada como a da festa do outro lado da ponte em que fôramos — onde tocara até a Hey Jude! Era uma melodia que nos ordenava que abanássemos o rabo, o tipo de música que era inebriante e viciava, apesar de não ser o género da pessoa. Por volta das duas da manhã, uns rapazes, cobertos de tatuagens e dois deles com a cabeça rapada, abordaram-me. Elogiaram-me as pernas, PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS penso. Era impossível ouvir o que eles me diziam, porém as suas expressões e gestos diziam-me que estava em apuros e que precisava de me afastar deles o mais depressa possível. Senti o cheiro a álcool nos seus hábitos e enruguei o nariz com repulsa. Então, um dos carecas deu-me uma palmada no rabo e nesse momento César irrompeu no meio da multidão e esmurrou o nariz do jovem. Atrás dele ficavam as nossas bebidas, derramadas no chão, que ele tinha ido buscar. O grupo olhou César com ódio e o seu oponente, cujo nariz sangrava, revidou, empurrando César. — Não! — gritei, histérica. O meu coração estava a mil, suor escorria-me pela face. César lançou um olhar mortífero ao careca, os seus dentes cerrados de raiva. O jovem que eu não conhecia pontapeou César na barriga, o que o fez contorcer-se e agarrá-la por momentos. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS Os seguranças chegaram e arrastaram César e o careca para o exterior, para a praça. Tanto eu como o restante do grupo odioso os seguimos. Os seguranças advertiram que não queriam que houvesse qualquer rixa à entrada do bar e que "se queriam andar à porrada" teriam que o fazer noutro sítio. Corri até César e puxei-o na direção oposta à do grupo de maltrapilhos. — César, por favor, vamos... Ele hesitou e esse momento saiu-lhe caro. O jovem que fora agredido abordou o meu namorado por trás, puxando-o até ao chão, na direção de um beco escuro, na periferia da praça. — Parem com isso! — Agarrei-me ao agressor, que me empurrou para o chão como se fosse um inseto incómodo. César tentou levantar-se, mas o único do grupo que tinha cabelo colocou o seu pé no peito dele, colando-o ao chão. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS O meu companheiro fitou-me e eu vi preocupação espelhada nos seus olhos. Não por ele, mas por mim. — Clara, foge! — gritou, antes de ser esmurrado pelo careca que agredira momentos antes. Engoli em seco, as lágrimas ruindo em cascata pelas minhas faces. Tinha os joelhos esmurrados e o vestido amarrotado mas a minha atenção estava centrada nele. Em César. O grupo juntou-se em volta dele e começou a pontapeá-lo. Uma. Duas. Três vezes. — Parem! — Eu gritava histericamente. Alguns estudantes que passavam, pararam e observaram a cena, chocados. — Por favor! Voltei a aproximar-me deles, que me forçaram a PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS recuar sem dificuldade. Cada segundo que César passava naquele estado era uma tortura agonizante. Sentia a minha cabeça a girar, as minhas têmporas doíam de tanto chorar. O grupo afastou-se do corpo de César passado o que me pareceu uma eternidade. — Acho que ele está morto — observou o cabeludo. — Vamos embora antes que chamem a polícia! — gritou o careca, ainda com o nariz esmurrado. Eles fugiram e eu finalmente me aproximei do corpo. Estava irreconhecível. As minhas mãos tremiam enquanto tocava os lábios do meu amor. — Alguém chame uma ambulância! — gritei para a multidão que se aglomerava à minha volta. Um jovem que reconheci vagamente por andar na minha universidade aproximou-se e ajoelhou-se ao meu lado. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS Ele colocou dois dedos de lado no pescoço de César e aguardou, enquanto tentava sentir a pulsação. O silêncio foi desolador. — Lamento, — disse o jovem, depois de uns segundos — não estou a conseguir sentir grande pulsação. Está muito fraco. Abracei-me ao corpo de César e recusei-me a deixá-lo. O destino era demasiado cruel.

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Capítulo 14 César morreu na ambulância, enquanto era transportado para o único hospital de Orieva. Não consigo parar de chorar. É verdade, se não me tivesse vestido de forma tão provocadora, se não tivesse chamado a atenção daquele grupo odioso, César ainda estaria vivo. Ele lutou por mim. Sacrificou-se por mim. — Eu não o merecia — balbucio. — Sei que não. Mas não entendo. É essa a única razão para este casamento? Por isso é que estás com Bernardo? Não por gostares dele, mas por saberes dos meus sentimentos? Nenhuma de nós encara Bernardo. Sinto que neste momento ele deve estar a sentir-se o ser mais enganado e injustiçado do planeta. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS Mas o meu coração está completamente lacerado e à vista de todos e por isso estou ainda mais vulnerável do que ele. Carolina parece tão desorientada como eu. Engole em seco, nervosa. — Sim, no início — diz, por fim, empinando o queixo com o orgulho que lhe resta. — Mas eu gosto mesmo de ti, Bernardo. Cada vez mais. Carolina fita o noivo com uma expressão suplicante. Bernardo olha para nós as duas e baixa a cabeça, uma expressão de puro sofrimento no seu rosto. — Quero o divórcio, Carolina — diz, sem ponta de emoção na voz. De seguida, abandona a casa de banho feminina. A mãe de Bernardo segue-o, mas o resto das mulheres continua a fitar-nos. — Anda, Carolina — diz a mãe desta. — Tens muitas explicações a dar. A noiva caminha hesitante na direção de Olga até que estaca quando vê a nossa avó a adentrar a PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS divisão. — A que se deve esta demora? Estou a olhar para aquele maldito bolo dos noivos há mais de meia hora. Carolininha, então, filha? Parece que esta é a gota de água que faz o emocional dela extravasar. A minha prima desaba então no chão e deixa que as lágrimas caiam dos seus olhos para o vestido e deste para o chão de mármore. Mónica puxa a minha avó para um canto, atualizando-a da situação e eu não consigo ficar no mesmo espaço que Carolina nem mais um segundo. Saio da casa de banho, desorientada mas resoluta e começo a correr. — Clara, espera... — Nuno tenta parar-me no momento que passo pelo salão porém eu recuso-me a ouvi-lo. Não quero parar. Descalço as sandálias e cruzo o enorme portão verde da quinta, pegando na saia do vestido depois PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS de quase tropeçar e cair no piso alcatroado. Não sei para onde ir e por isso deixo que os meus pés me guiem na escuridão da noite. Sei que é estúpido sair desta maneira, com a noite já instalada, mas não me importo. Sinto o chão a lacerar a pele enquanto corro, pequenas pedrinhas perfurando a minha carne macia, mas eu só consigo pensar no quanto mereço isso. Se eu não tivesse usado aquele maldito vestido floral... Um carro buzina atrás de mim, os faróis iluminando o meu caminho, e então ocorre-me que devia ficar na berma da estrada. Por outro lado, talvez seja para o melhor se eu for atropelada. Talvez o meu lugar seja ao lado dele. Uma pequena parte de mim pensa em Bernardo. Como estaria ele? Decerto se sente mal com o que aconteceu, mas pelo menos não morreu o amor da sua vida. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS Uma mulher que descarrega dois sacos de compras do seu carro encara-me, atónita, e pergunta: — Está tudo bem consigo? Abano a cabeça. Espeto o meu pé em algo pontiagudo, o que me obriga a abrandar o passo. O que vem mesmo a calhar porque não muito à frente passo por um parque com um escorrega e um enorme jardim a toda a volta com alguns bancos à sombra de árvores de troncos grossos e robustos. Decerto as árvores são mais úteis de dia, quando o sol está alto. Dirijo-me pesadamente a um desses bancos e analiso o meu pé. Extraio um espeto de tamanho considerável que se alojara por baixo da pele e fito o meu calçado com repulsa. Fecho os olhos e inclino-me para trás, deixando que o encosto do banco suporte as minhas costas. Não penso em nada. Tento manter a mente em branco. Já tive emoções PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS mais do que suficientes no dia de hoje. Sinto-me fraca e desmoralizada. Sem vontade. Vontade de lutar, de me mover... de viver. Fico na mesma posição por um tempo, ainda na esperança de acalmar o meu coração espezinhado, até que sinto alguém sentar-se ao meu lado. Franzo as sobrancelhas, atónita. Abro os olhos e o meu queixo cai. Bernardo fita-me com uma expressão pesarosa no rosto. — Há espaço para mais um no banco das lamentações? Mantenho-me muda por um tempo. Assim que o olhar dele se torna demasiado penetrante para sequer pensar, baixo a cabeça e encaro o meu colo. — Lamento, Bernardo — digo e sei, bem lá no fundo, que sou sincera. Lamento que tenha sido uma covarde. Lamento que os sentimentos da PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS Carolina não sejam sinceros. Lamento que ele esteja magoado. — Eu também — comenta ele. — Por ti e por mim. Engulo em seco e não respondo. Não sou capaz. — Nunca cheguei a saber bem o que aconteceu ao César. Mas tenho pena que ele se tenha ido. Era um tipo fixe. Fungo, pressentindo que um novo ataque de choro se avizinha. — Era o melhor dos melhores. Um novo silêncio. Bernardo suspira e recosta-se no banco. Cruzo as pernas, tentando encontrar uma nova posição confortável. A noite envolve-nos e uma brisa gélida faz-me esfregar os ombros. O noivo repara, despe o blazer e entrega-me. Começo a negar o gesto, mas ele insiste. Cubro-me com o tecido e inspiro o cheiro da água-de-colónia de Bernardo. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS — Sei que estás perturbada — tenta ele de novo. — E por isso segui-te até aqui. És a minha melhor amiga, Clara. Uma das pessoas mais importantes para mim. Sei que nos afastámos na universidade, e hoje percebi que... — Ele engole em seco. — O que é que eu estou para aqui a dizer? — Suspira. — Não quero falar de mim, Bernardo. Por isso vim para aqui. Para não ter de explicar o que acabou de acontecer a ninguém. Sim, está escuro e sim, sou uma idiota impulsiva mas sou uma pessoa adulta. E neste momento gostaria de ficar sozinha. — Olho em volta. — Como é que sabias para onde eu ia? — Também estava a tentar escapar de tudo o que aconteceu. Estava numa zona mais resguardada da quinta, perto dos chorões e afins, e por acaso vi quando saíste a correr. Consegui ver que eras tu, mesmo na escuridão — ele sorri — porque os candeeiros da quinta iluminavam com mestria o teu vestido branco. E foste a única pessoa que se atreveu a vir de branco para um casamento. Seguite até aqui. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS — Hum. — Foi a minha resposta ao seu esclarecimento. Não sei o que posso mais dizer. Consigo perceber que ele se está a debater com algo pela maneira como entrelaça as mãos. — Clara, durante este tempo todo nutriste sentimentos por mim? — questiona Bernardo de supetão. Sinto a minha garganta secar. Sabia que este momento ia chegar, mas julgava que Bernardo teria a delicadeza de não me fazer A pergunta agora. — Sim, Bernardo, gosto de ti. Gostava. Não sei, a minha cabeça está quase liquefeita. Acho que neste momento não quero falar sobre isso. Neste momento não quero gostar de ninguém além de mim mesma. Compreendes? Bernardo não é como César, penso. Ele aperta todos os botões da sua camisa, não me dá flores brancas em honra do meu nome; não me manda recitar poemas nem me provoca de forma carinhosa e, ao mesmo tempo, maliciosa, como César fazia. E todo este plano da Carolina para me fazer sofrer PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS trouxe todas estas memórias à tona — memórias que demorei anos a ultrapassar. Talvez não tenha sido covardia, afinal de contas. Talvez a razão para não me ter declarado a Bernardo antes seja César. Ele estará sempre comigo. O jovem aproxima o seu rosto do meu e sinto o coração a bater mais forte no meu peito. Ele vai beijar-me. Enrugo o nariz. Não quero ser beijada. Não, por favor. Mas ele surpreende-me com um beijo terno na testa. Não consigo ver bem a sua expressão, pois os nossos rostos são parcamente iluminados pela luz da lua e por um candeeiro de rua solitário. Porém, penso que consigo ver um fantasma de um sorriso na sua face. — Vou voltar. E tu vens comigo. Vamos abrir a pista de dança e divertir-nos como nunca, Clara. A Carolina pode ficar ou vaporizar-se em pleno ar, não me interessa minimamente. Mas esta noite é nossa. Porque nós merecemos. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS Ele levanta-se e estende-me a mão. Agarro-a com um sorriso, até me lembrar que ainda tenho as sandálias na mão. — Um momento. — E calço-me de novo, esperando conseguir reabilitar o meu coração esta noite. Nós merecemos.

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Epílogo Dois anos depois Aquele casamento desastroso permanecerá para sempre na minha memória. Não aconteceu nada demais depois de eu e Bernardo regressarmos à quinta. Dançámos juntos durante grande parte da noite (tudo em nome da nossa grande amizade) e o ex-noivo deu luz verde para se proceder à abertura do bolo. Meses mais tarde, Daniela teve uma filha lindíssima. Chamou-lhe Cecília e é o bebé mais fofo e rechonchudo do mundo. Suponho que o casamento de há dois anos nos tenha aproximado mais e a sua amizade é mais do que bem-vinda. Mónica, a minha irmã, ajuda os meus pais num negócio que eles montaram há pouco tempo — uma pequena livraria caseira, que tem o total apoio de Daniela. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS A minha avó Dora, neste preciso momento, deve estar à procura do traje ideal para o casamento do seu neto. Francisco, o irmão de Carolina, vai casar. Segundo Dora, este evento vai ser como uma lufada de ar fresco depois do que acontecera com Carolina e Bernardo. Devo confessar que não tenho grande vontade de comparecer a tão glamouroso evento, porém, penso que o devo a esta família, depois da rixa que houve entre mim e a minha prima. Vânia e Fábio estão oficialmente juntos há um ano e já têm planos para começar uma família. Que bom para eles. A Carolina voltou a ingressar na universidade. Finalmente confessou que enfermagem não é para ela e que a sua paixão é o jornalismo. Ao início, os nossos familiares não receberam a notícia propriamente com entusiasmo (bem-vinda ao meu mundo, prima) mas suponho que terão entendido que não fazia sentido que ela continuasse a fazer algo de que não gostasse. Penso que todas as nossas divergências tenham ficado no passado. Nunca PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS seremos propriamente amigas, mas depois de eu ter abertamente mostrado o meu apoio à sua decisão, creio que o ambiente entre nós já não esteja tão gélido. E Bernardo... bem, devo dizer que nunca chegámos a ser um casal. Talvez tudo o que sempre existirá entre nós seja uma bela amizade, algo puro e genuíno que nenhum de nós se atreverá a estragar. E por mim, tudo bem. E eu? Consegui finalmente afirmar-me como uma mulher independente, vivo sozinha e ensino história. Sou feliz e consegui perdoar-me a mim própria e aprender a amar-me. A sala de aulas está finalmente vazia. Acabo de arrumar os meus pertences e retiro alguns bocados de borracha que um aluno da fila da frente deixou espalhados pela sua mesa. Com um suspiro de contentamento por ser sextafeira (preciso mesmo de uma pausa!), fecho a porta e viro-me para enfrentar o corredor. Este é colorido PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS e luminoso, com alguns adolescentes a correr de um lado para o outro, os seus rostos iluminados. Quedo-me por um tempo a observá-los, sentindo falta dos tempos em que eu era assim. Jovem e irreverente. Apoiando os manuais de história contra o meu peito, dirijo-me até à sala dos professores. Assim que chego, Jorge, um colega, informa-me que o telefone acabou de tocar e que alguém me espera na receção da escola. Franzo o sobrolho mas logo depois sorrio e agradeço a informação, pousando todos os meus pertences à exceção do telemóvel num dos sofás da sala e saindo desta logo de seguida. Quem poderá ser?, remoo com curiosidade. O elevador parece levar uma eternidade a chegar ao piso zero e já estou a morder o lábio de nervosismo quando ele apita, avisando que cheguei ao meu destino. Dirijo-me à rececionista e abro a boca para a PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS interpelar quando o vejo. Nuno. Não temos contato desde o maldito casamento. Ele deu-me o seu número de telemóvel mas nunca lhe cheguei a ligar. Nunca tive coragem. Ele sorri, um sorriso charmoso que faz o meu coração acelerar. Fito-o com estranheza. — Olá — diz ele por fim. Não sei como reagir. O que faz ele aqui? Tento procurar por uma explicação mas a minha mente cansada não consegue encontrar nenhuma com um mínimo de sentido. — Ei, estranho — cumprimento. Coloco as mãos nas ancas e estofo o peito. — Há quanto tempo, não? Ele coloca a mão no seu queixo e adota uma posição pensativa, dizendo de seguida, de forma dramática: — Não muito. Dois anos, um mês e sete dias, PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS talvez. Não que eu esteja a contar, mesmo. Foi um casamento horrível. — Um senhor contabilista. Bem, tenho de concordar contigo. Foi bem... inesquecível. Engulo em seco. Nuno está diferente. Parece envolto numa aura luminosa. Ainda mais confiante. Isento de vulnerabilidades. — Porque é que estás aqui? — questiono, por fim. Ele parece meditar por uns segundos na sua resposta. Um arrepio percorre-me enquanto vejo o seu pomo-de-adão subir e descer. Talvez ele esteja um pouco desconfortável, afinal. — Pensei que me fosses ligar, Clara. — A forma como pronuncia o meu nome deixa-me nervosa. — Não ligaste. Não parece magoado, apesar de tudo. Apenas continua a olhar-me intensamente com um sorriso matreiro nos lábios. PERIGOSAS ACHERON


PERIGOSAS NACIONAIS — Bem, nunca me pareceu boa altura — digo, colocando uma mecha do meu cabelo castanho atrás da orelha — ligar-te, suponho. — Pensei que o fizesses, mais cedo ou mais tarde. E como não tinha o teu número, tive de recorrer a outra pessoa para te conseguir contatar. Ou pelo menos, saber onde trabalhas. — Carolina — murmuro. Ele assente. — Sim. E então... — Ele dá-me o braço e caminho com ele até à porta do edifício, longe dos ouvidos indiscretos da rececionista. Saímos para o exterior, onde há um jardim e alguns bancos, que ficam à esquerda de um enorme campo de futebol. A esta hora do dia, quase não se vê por cá nenhum aluno. — Queres jantar comigo, um dia destes?

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