REVISTA-LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO DA FACULDADE CÁSPER LÍBERO #43 - 1º SEMESTRE DE 2008
cinema
Por que os cineastas querem contar a mesma história? imprensa
Veja nas bancas, a primeira revista semanal de informações
Uma banana para a ditadura
Uma entrevista com o crítico Olívio Tavares de Araújo sobre o universo das artes plásticas em 1968 fotografia
saúde
economia
tortUra
O fotojornalismo que denunciou os anos de chumbo Um Brasil que crescia 14% ao ano seções: sites, Beleza, moda, Livros, Língua, música, filmes, ali na esquina
A incrível evolução dos transplantes cardíacos O relato de quem sobreviveu à barbárie
eDiTOriaL Revista-laboratório do curso de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero
Fundação Cásper Líbero Presidente Paulo Camarda Superintende Geral Sérgio Felipe dos Santos Faculdade Cásper Líbero Diretora Tereza Cristina Vitali Coordenador de Jornalismo Carlos Costa
a voz da
experiênCia
Professora responsável Rosangela Petta
Participaram desta edição Ana Cristina Kleindienst, Ana Luisa Baars, Ana Paula de Deus, Ana Paula Perche, Andressa Trindade, Andrezza Alves, Anna Carolina Oliveira, Antonio Costa, Beatriz Corrêa, Bruna Stuppiello, Camila Mendonça, Camila Taira, Carolina Lopes, Caroline Arice, Ciro Barros, Daniel Gasparetti, Daniela Rosolen, Daniele Pecchi, Diego Sammarco, Eduardo Zanelato, Evandro Pimentel, Felipe Vilasanches, Fernanda Bonadia, Fernanda Silva, Filipe Pereira, Gabriel Carneiro, Gabriella de Lucca, Gaia Gonçalves, Gustavo Sanches, Gustavo Uribe, Ivan Torraca, Jacqueline Manfrin, José Roberto Gomes, Júlia Alquéres, Juliana Ranciaro, Kaléo Dalcin, Karina Gomes, Kauanna Navarro, Kelly Bruna Ferreira, Laura Hauser, Lecticia Silveira, Leonardo Paraíso, Ligia Hercowitz, Livia Ascava, Luana Alves, Luiz Felipe Fustaino, Lívia Lucas, Lygia Haydée, Magiu Pinheiro, Marcelo Cabrera, Mariana Palma, Mariana Pereira, Mariane Rodrigues, Marina Domingues, Mirella Mazola, Natália Dourado, Natália Guaratto, Natalia Julio, Natália Manczyk, Nathalia Pazini, Nettie Carreira, Paulo Scheuer, Ralph Izumi, Raphael Scire, Rubens Nogueira, Samanta Lobo, Sarah Mund, Stela Jordy, Stéphanie Concistre, Thais Harari, Thais Lima, Wilson Saiki Agradecimentos Adalton Diniz, Ana Cristina Kleindienst, Camila Mendonça, Carlos Costa, Cláudio Arantes, Erivan de Oliveira, Gabriella de Lucca, João de Freitas, Leandro Buarque, Luana Alves, Newton Molon, Renato Assada, Tetê Cruz, Welington Andrade Agradecimento especial aos fotógrafos Juca Martins, João Bittar e Nair Benedicto pela cessão de imagens Impressão Eskenazi Indústria Gráfica Ltda. Av. Miguel Frias e Vasconcelos, 1023 Jaguaré — São Paulo Telefone: (11) 3766 4011 Fax: (11) 3768 5501 Núcleo de Redação Avenida Paulista, 900 — 5º andar 01310-940 — São Paulo — SP Tel.: (11) 3170-5874 E-mail: esquinas@facasper.com.br Site: www.facasper.com.br/jo/esquinas
ROSANGELA PETTA
Olhar o passado e tentar entendê-lo sob a perspectiva de hoje tem sido uma das principais motivações dos estudantes que participam da produção de ESQUINAS. Foi assim em diversas edições do tempo em que este órgão laboratorial do Curso de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero era um jornal, e assim é desde que foi transformado em revista semestral, em 2007. Impulso universal de qualquer pessoa, o olhar curioso e interessado sobre a História recente ganha ainda mais importância quando são olhos de jovens repórteres, surpreendidos pelo fato de que a vida é processo complexo e contínuo, fluindo entre um antes e um depois. Neste 2008, onde rigorosamente toda a imprensa profissional lembra dois anos tão marcantes — os idos de 1958 e os de 1968 —, uma publicação que se propõe ser o laboratório do exercício da reportagem não poderia deixar de, também, se interessar sobre o assunto. Não pela efeméride, mas pela oportunidade de conhecimento. O ponto de partida foi o agitado ano de 1968, e o resultado obtido é tão variado que vai da ciência médica à autocrítica dos chamados “jovens rebeldes”, da ditadura olhada de dentro de casa ao autoritarismo criticado nas artes plásticas, das modas e modismos, do extraordinário crescimento
econômico do Brasil ao relato de quem sofreu a barbárie da tortura. Nas primeiras reuniões com dezenas de alunos, surgiram cerca de 25 pautas. Nem todas foram, de fato, realizadas, e isso tem pelo menos duas explicações. A primeira é que a depuração do conteúdo é natural em qualquer atividade experimental e pedagógica desta natureza, onde uma suposição sucumbe após a pesquisa ou, ao longo da apuração, se modifica a ponto de se transformar em outra coisa. A segunda é que, a partir do momento em que põem o pé na reportagem propriamente dita, muitos jovens estudantes descobrem que jornalismo é uma tarefa que requer, sobretudo, enorme dedicação. O rigor na informação checada, a entrevista realmente pertinente, as muitas idas e vindas da matéria, das imagens e da paginação, o respeito aos prazos do lado operacional da indústria da comunicação, tudo requer do jornalista em formação (para não falar do mais experiente, ao longo de sua carreira) um misto de empenho e comprometimento. Ao final, aprende-se que não se trata tão somente de escrever um bom texto: fazer jornalismo é experenciar momentos de frustração, questionamento, descoberta. Para quem quer fazer bom jornalismo, é claro.
Manifestantes seguem em passeata pela morte do aluno secundarista José Guimarães, durante a briga entre estudantes na rua Maria Antônia, em outubro de 1968.
REPRODUçãO
Monitoria Editores Priscila Zuini Rafael de Queiroz Designer Renata Miwa
ESQUINAS 1º SEMESTRE 2008
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SUMÁRIO
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06 FILHO DE MILITAR, FILHO DE MILITANTE
Três pessoas contam como seus pais, envolvidos com a direita ou com a esquerda, trouxeram a ditadura para dentro de casa
10 PROCURADOS
A reportagem de ESQUINAS foi atrás de cinco jovens militantes de esquerda dos anos 1960. Eles contam como vivem hoje e fazem um balanço de suas juventudes na clandestinidade
14 HORA DE RECOMEÇAR
Como retomar a vida depois da tortura? Em depoimento a reportagem de ESQUINAS, três ex-presos políticos, durante a ditadura, respondem como sobreviveram à experiência
20 BRASIL GRANDE
A economia do país já cresceu numa taxa de 14% ao ano entre os anos de 1968 a 1973. Era o Milagre Brasileiro
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ESQUINAS 1º SEMESTRE 2008
30 24 EM BUSCA DE UM NOVO CORAÇÃO
Foram realizados, em 1968, os primeiros transplantes cardíacos no Brasil. Em nenhum deles, o paciente sobreviveu por mais de um ano e meio com o novo coração. A medicina descobriu a ciclosporina, droga que tornou o transplante um sucesso. No ano passado 136 cirurgias desse tipo foram realizadas no país
30 UMA BANANA PARA A DITADURA
Antonio Henrique Amaral pintou bananas, João Câmara fez retratos de Getúlio Vargas e Cildo Meirelles ateou fogo em galinhas. Em entrevista a ESQUINAS, o crítico Olívio Tavares de Araújo desvenda as metáforas que os artistas plásticos usaram para protestar contra o regime militar nos anos 1960
38 VEJA, COMO TUDO COMEÇOU
A editora Abril lançava, há quarenta anos, a primeira revista semanal de informações do Brasil. A novidade foi baseada em revistas americanas como Time e Newsweek
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42 42 FOTOJORNALISMO
As imagens dos fotógrafos Juca Martins, João Bittar e Nair Benedicto que denunciaram o regime militar nos anos 1970
52 PAULO FREIRE REINVENTADO
As idéias do educador pernambucano são adaptadas à atualidade e usadas na alfabetização de crianças e adultos
56 EIS QUE CHEGA A RODA VIVA
No dia 22 de maio de 1968, a peça Roda Viva, de Chico Buarque, se apresentou no Teatro Ruth Escobar, em São Paulo. Depois de assistir ao espetáculo, dezenas de jovens, que consideravam a montagem subversiva, invadiram o teatro e agrediram o elenco
64 A DITADURA NO CINEMA
Desde o lançamento de O Que É Isso Companheiro?, em 1997, outros trinta filmes estreiaram nas telonas do Brasil com o regime militar como pano de fundo para seus enredos
52 SEÇÕES 03 EDITORIAL 18 SITES 28 TECNOLOGIA 36 BELEZA 37 MODA 50 LIVROS 55 LÍNGUA 60 MÚSICA 68 FILMES 70 ALI NA ESQUINA
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INFÂNCIA
Roseli (de maiô escuro) com os pais e a irmã. A profissão do pai era motivo de orgulho
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filho de
MIlItAr, filho de
MIlItANte
Histórias mostram como o envolvimento dos pais com a ditadura influenciou a infância e a vida de três pessoas REPORTAGEM LYGIA HAYDÉE e PRISCILA ZUINI (3° ano de Jornalismo) IMAGENS ARQUIVO PESSOAL
Para algumas crianças a ditadura foi mais do que dizem os livros de história. Roseli Canela, filha de militar, conta no primeiro depoimento nunca ter sofrido preconceito pela profissão do pai, mas que era difícil vê-lo “sempre a disposição da instituição” e nunca saber “onde ele estava ou o que estava acontecendo”. No segundo depoimento, Edson Teles, filho de pai e mãe militantes, sofria do mesmo mal. Muitas vezes não sabia onde seus pais estavam e, até certa idade da infância, não podia saber nem mesmo “os primeiros nomes dos pais”. Já o terceiro depoimento conta a história de Fernando Solano, que nasceu de um relacionamento entre um militar e uma militante. Para ele, a divergência política entre seus pais deixou algo de bom e o ensinou a aceitar uma “convivência pacífica das opiniões”. Roseli Canela, Edson Teles e Fernando Solano contaram à ESQUINAS como suas vidas ficaram marcadas pelo envolvimento de seus pais com a ditadura.
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Meu pai era da Guarda Civil do Estado de São Paulo e trabalhava na rua fazendo patrulhamento a pé. Quando a Guarda Civil se juntou à Polícia Militar, que era mais violenta, eles não estavam preparados para isso, não eram assim. Eu lembro que houve uma insatisfação muito grande, da Guarda Civil, que não queria e não gostava da fusão. Eles trocaram de farda e tinham que estar sempre a disposição, porque qualquer coisa que acontecia vinham buscá-los em casa. Eu me lembro de que muitas vezes meu pai foi trabalhar e não voltava porque ia para algum tipo de ocorrência. Muitas vezes emendava um turno no outro, eles tinham que ficar disponíveis para qualquer eventualidade e meu pai respeitava muito essa condição. Na época em que ele foi para a Policia Militar minha mãe ficava muito preocupada, pois enquanto ele não chegava a gente ficava desesperada. Não tínhamos telefone, então não tinha como saber onde ele estava ou o que estava acontecendo. Eu me lembro de um ano novo que ele ficou mais de um dia fora de casa, só chegou no dia 31 já bem de tardezinha. Mas ele não teve como avi-
sar, porque não tinha mesmo como se comunicar, então muitas vezes ele ficava trabalhando e a gente não ficava nem sabendo, só sabia se estava tudo bem na hora que ele chegava em casa. Meu pai chegou a ficar quatro dias de plantão fora de casa e nós sempre ficávamos sozinhas. Sentíamos muito a ausência dele porque ele era um pai muito presente, sempre foi. Do tipo que fazia tudo junto, andar comigo e com a minha irmã para todo lado, sempre que podia. Meu pai poupava muito a gente como filha de ficar sabendo, de ficar dizendo se ele participou de alguma coisa. Nunca ouvi ele comentando sobre alguma ação. Pode ser que para a minha mãe ele tenha comentado, mas eu nunca o vi dizendo sobre ações que fazia. Eu acho que ele nunca participou, eu acredito nisso. Mas, sei que, indiretamente, participava porque tinha que ficar a disposição da instituição. Na minha infância nunca houve preconceito por eu ser filha de militar. Todo mundo gostava dele, então a gente nunca sofreu nenhum tipo de discriminação nem na escola, nem na vizinhança, nem na família. Nunca sentimos isso. Nunca tivemos problema nenhum de falar que nosso pai era militar. Eu tinha outras amigas que os pais também eram militares. Eu também fui policial. Entrei para a polícia quando já tinha 19 anos. Mas não foi por influência do meu pai, não, ele jamais influenciou nisso. Sempre apoiou tudo o que a gente fazia. No dia em que eu decidi que eu ia prestar o concurso para a Polícia Militar, ele me deu o maior apoio. E no dia em que decidi que não ia mais ser policial, ele fez o mesmo. É muito puxado o dia-a-dia na escola militar, é muito sofrimento e eu jurei que nunca mais ia passar por aquilo. Sofrimento físico e psicológico. Tem que ter uma disciplina mil por cento. Eu posso dizer tranquilamente que eles ganham muito pouco para tudo que sofrem lá na polícia. A pressão psicológica lá dentro é muito grande.”
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Edson e sua irmã, Janaína, com quem passou a maior parte de sua infância. Hoje, eles movem um processo contra o homem que comandou a tortura de seus familiares
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Quando criança, eu me sentia numa vida normal, mas é claro que eu sabia de coisas que eu não poderia falar para os meus amigos. Os meus pais já avisavam: ‘olha, isso não pode’. Depois de um tempo você até aprende o que pode e o que não pode. Então, um dos maiores problemas que eu sentia na minha infância era ter que mentir. Na minha casa moravam eu e minha irmã e nós tínhamos que inventar algumas histórias para contar na escola, na rua, do tipo, onde estava meu pai, que era uma pergunta recorrente, porque ele ficou quatro anos preso. Então, a gente inventava uma história de que ele estava em um sanatório cuidando da saúde, em Campos do Jordão, onde o ar era mais puro. Eu não tinha um sentimento de que a culpa por eu mentir era dos meus pais. Eu via que eles estavam em uma posição ética, dos valores do bem e, para mim, a ditadura representava o mal. Era como se eles não tivessem opção frente àquilo ou como se eles tivessem uma visão mais apurada do que fosse o correto e, por isso, atuavam contra o governo militar. Meus pais tinham as atividades clandestinas de militantes, mas tinham uma vida não clandestina também, com emprego, carteira de trabalho, documento real. Eu e minha irmã não tínhamos documentos falsos. O que nós tínhamos de limite é que não sabíamos, até uma certa idade, os primeiros nomes dos nossos pais e nem da
nossa tia que morou com a gente um tempo. Então era pai, mãe e tia. Na verdade isso foi até uns 4 ou 5 anos de idade, que foi quando nós fomos presos. Mas, já estávamos acostumados a chamar só de pai e mãe. No dia da prisão estava eu, minha irmã e minha tia dentro de casa. Os policiais já chegaram arrombando a porta, derrubando as coisas, porque eles queriam achar documentos ou armas. Estavam armados com metralhadora, revólver. Eu senti uma agressividade, mas mantinha aquela ingenuidade de criança. Por exemplo, eles nos colocaram no camburão e deixaram um monte de armas. Teve um certo momento que eu fui tentar pegar uma delas para brincar e eles pularam em cima de mim dizendo que eu era um terrorista. Nesse primeiro dia, nós fomos separados dos nossos pais e levados para uma casa do exército. Lá a gente ficava preso em uma cozinha e uma militar ficava encarregada de dar comida e de olhar para que a gente não fugisse. Nós passamos quase duas semanas nesta casa, em São Paulo, e, diariamente, éramos levados para o lugar onde nossos pais eram torturados. Destes momento de tortura eu me lembro de uma cena só. Foi o primeiro dia que eu fui levado lá. Eles me colocaram próximo aos meus pais e minha mãe me chamou. Eu olhei e não a reconheci fisicamente, já que ela estava muito machucada, toda roxa. Eu me lembro de ter olhado para ela e pensado: ‘puxa, ela tem a voz da minha mãe, mas não é a minha mãe. Que situação estranha’. E me veio essa idéia na cabeça: quem será essa pessoa que tem a voz da minha mãe, mas não é ela? Aquilo ali não fez sentido para mim e me chocou ver alguém com a voz tão parecida com a dela, mas, para mim, não ser minha mãe. Depois, eu e minha irmã fomos mandados para Belo Horizonte, para a casa de um tio que a gente nunca tinha visto e que tratava a gente como prisioneiro. Durante os seis meses que ficamos lá diziam que os nossos pais haviam nos abandonado, que eles não nos queriam mais. Na simplicidade de pensamento infantil eu achava que a culpa era minha, que eu tinha feito alguma coisa de errado. Nós só ficamos sabendo alguma coisa da real história quando voltamos a São Paulo.. Com certeza isso me fez amadurecer mais rápido. Ter um amadurecimento intelectual e das atitudes. Aprendi cedo a tomar algumas medidas de adulto. Fiz seis anos de terapia, na época eu não entendia, mas hoje eu vejo como isso foi benéfico para esse problema de maturidade precoce e me ajudou a entender tudo aquilo que eu passei durante aquele período.”
Fernando, no colo da mãe, com seus irmãos mais velhos e seu pai. As diferenças entre seus pais lhe ensinaram a respeitar as divergências de opinião e valorizar ainda mais sua família
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Meu pai era de uma família de militares, meu avô é militar das antigas, daqueles coronéis superconservadores. Eles estavam na profissão por vocação, não pleiteavam títulos, ou vida política, não queriam trabalhar em gabinete. O negócio dos dois era ir para rua, fazer patrulha, trabalhar com as pessoas. A minha mãe tem uma origem diferente. O pai e a mãe dela eram porteiros de prédio. Minha mãe estudava no Caetano de Campos, um colégio tradicional de São Paulo e foco da resistência, por isso ela tinha envolvimento com a militância. E o irmão do meu pai também estudava lá. Então, eles se conheceram através do meu tio. Meu pai era cinco anos mais velho que a minha mãe. Quando começaram a namorar, minha mãe tinha 13 anos, aos 15 anos noivou e aos 18 anos já estava casada. Meu pai foi o primeiro namorado da minha mãe. Ela nunca beijou outra pessoa. Coisa que é cada vez mais rara. Não era o casal perfeito também, pelo amor de Deus, longe disso, tinham suas discussões, tinham os seus desentendimentos como casal. Claro que tinham, tinham ciúme, brigas, sem dúvida nenhuma, mas sempre tudo na base do diálogo. Sempre. Meu pai morreu quando eu tinha 14 anos e eu não tive a oportunidade de falar diretamente com ele sobre a ditadura. Não que fosse um assunto proibido na minha casa, longe disso, mas é algo que nunca entrou em pauta. Sei de algumas histórias que fiquei sabendo por outras pessoas. Uma delas é de uma manifestação. Meu pai era um tenente recém-formado e minha mãe professora. Ele sabia que a polícia estava ali, pronta para cumprir a ordem de não permitir manifestações e é um preceito dos militares não descumprir ordens superiores. Ele sabia que as manifestações naqueles dias não seriam permitidas e que se usaria força se fosse necessário. Meu pai avisou minha mãe para tomar cuidado e não ir às manifestações. Na hora em que ele chegou com o pelotão para pedir para as pessoas saírem, minha mãe e minha tia estavam lá, fazendo a manifestação. Um olhou para o outro e perceberam que ia dar confusão. Então, meu pai fez um sinal para ela sair, como quem diz, ‘eu disse que não era para vir, nossa ordem é tirar todo mundo daqui’. E eu sei que ela saiu mesmo, porque realmente essa manifestação foi debelada como tantas outras. O que eu acho muito legal nessa história é a convivência pacífica das opiniões. Cada um tem a sua, e eu nem sei ao certo se as do meu pai eram diferentes das da minha mãe quanto ao regime, a prender as pessoas.
Prefiro pensar que ele era um funcionário que estava lá fazendo o trabalho dele. E se você me perguntar se tenho vergonha do trabalho que ele fazia vou dizer não, porque eu aprendi dentro da minha casa que a convivência entre as pessoas pode ser pacífica. Aprendi na minha casa que as pessoas devem ser tratadas como iguais. Acho que isso é fruto da liberdade de opinião de cada um. Uma outra coisa que eu acho legal nos dois é que ambos eram muito religiosos. Um militar e uma militante que iam rezar. E a gente sabe que o envolvimento da Igreja com a esquerda era muito grande e quando o padre começava a usar a Igreja para fazer pregação, não no âmbito espiritual, mas no âmbito político, os dois se incomodavam. Eu não tenho como afirmar que meu pai não participou e nunca levou ninguém para o DOI-Codi. Eu não sei. Se eu acredito que ele tenha levado? Acredito. Porque meu pai era um tenente jovem em 1963, por isso eu acredito que ele tenha prendido gente sim. Agora, qual a avaliação que ele fazia disso? É uma pergunta que eu me faço sempre. Gostaria muito de saber o que o levou a fazer isso, se era porque ele não tinha consciência, se era porque ele estava seguindo uma ordem, se era porque ele acreditava que ele estava fazendo o que era certo, se era porque ele achava que as pessoas estavam conspirando mesmo, que eram comunistas e iam acabar com o universo. Não sei. Infelizmente, não tenho como afirmar isso. Viver sem família para mim não tem sentindo. Se eu pudesse passar um valor para a minha filha agora, pequenininha de apenas três meses, eu passaria que a gente deve respeitar as pessoas do jeito que elas são e que a família é uma base muito importante na vida de todos.”
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reBeldIa
Procurados rocurados Por onde andam os jovens rebeldes de 1968? ESQUINAS procurou cinco deles para saber que rumo suas vidas tomaram com o fim da ditadura
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REPORTAGEM BRUNA STUPPIEllo, KElly BRUNA FERREIRA (1º Ano de Jornalismo) e lEoNARdo PARAíSo (3º Ano de Jornalismo) IMAGENS REPRodUÇÃo
É característica da juventude questionar o que lhe é imposto. Os jovens da década de 1960, que participaram dos movimentos contra o governo militar, deixaram ainda mais explícita essa rebeldia. Muitos se filiaram a partidos políticos e, consequentemente, passaram a viver na clandestinidade. ESQUINAS tentou descobrir onde foram parar esses jovens rebeldes, que davam a própria vida pelos seus ideais e para proteger os companheiros de luta, e o que eles fazem hoje, 23 anos após o fim do regime militar. Muitos desses jovens entraram para a luta armada ainda cedo, com 15 e 16 anos, como é o caso do jornalista Celso Lungaretti, que ainda hoje defende a idéia de que a “geração 68” não deveria deixar de lado seus ideais após o fim da ditadura e se conformar com uma “situação boa de poder e riqueza”. Para Jamil Murad, militante político que hoje pleiteia um cargo de vereador por São Paulo, a juventude de hoje está em um novo processo de conscientização e, para ele, “o envolvimento na luta política é
diferente porque a história política é outra”. As mulheres também participavam da luta contra a ditadura, como Ana Wilma Moraes que acredita que elas sofriam tanto quanto os homens nas mãos do governo militar. “Na hora da tortura, a mulher apanhava igual”, recorda-se. Um exemplo de jovem que teve sua vida modificada devido ao seu envolvimento com o comunismo é o do aviador aposentado, Daniel Bonfim. Apesar disto, ele garante que não reclama do que viveu. Para ele, “essa história de que ‘perdi minha juventude’ é tudo papo furado”. Marco Antônio Tavares Coelho, que já militava no PCB em 1968, acredita que o maior erro de sua geração foi acreditar que alcançaria o que queria sem o apoio da população. Mas, apesar disso, continua defendendo “a luta pela igualdade e pelo interesse da maioria”, qualquer que seja a situação do país. Pela Porta da frente Navegando na internet, Gabriel se surpreendeu ao ver que sua avó, Ana Wilma Moraes, havia sido homenageada em pleno Congresso Nacional
no Dia Internacional da Mulher. “Vovó, não sabia que você era terrorista. Que maravilha!”, disse ele para Ana Wilma. Na realidade, a cerimônia reuniu, no dia 8 de março deste ano, sete mulheres anistiadas pelo governo federal em 1979 para oferecer a elas uma indenização em reconhecimento às dificuldades que enfrentaram durante sua militância na luta contra a ditadura. Em 1968, Ana Wilma era secretária de Octavio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Filho na Folha da Manhã. Participava politicamente da “esquerda festiva”, que ela mesma define como o grupo que marcava presença nas passeatas, mas não tinha uma consciência política séria. Foi na Folha que Ana Wilma se apaixonou a primeira vista pelo repórter comunista, Carlos Penafiel, com quem viveu por 27 anos. “Quando fiz um ano de casada com meu segundo marido, conheci o Carlos Penafiel. Catorze dias depois estava morando com ele”, relembra. Nos anos seguintes, o casal manteve contato com freis dominicanos, que faziam oposição ao regime militar, e integrou a Ação Libertadora Nacional (ALN). Ana Wilma se lembra que auxiliava na fabricação de passaportes falsificados e cedendo a casa para reuniões secretas ou para hospedar clandestinos. Ela foi presa seis vezes entre os anos de 1969 e 1979 – quando foi promulgada a Lei de Anistia aos perseguidos políticos. Durante esse período, teve quatro filhos – Roberta, Pedro, Fabrício e Paloma. A primogênita tinha apenas dois anos quando Ana Wilma foi levada para a cadeia pela primeira vez. “Roberta demorou muito para se ajustar. Ela fez muita terapia e só quando já era adolescente começou a melhorar”, conta. Desempregados, ela e o marido sustentavam a família como podiam, vendendo quadros e objetos de artesanato. Mudaram diversas vezes de cidade e chegaram a viver em comunidades de filosofia hippie. Quanto à participação feminina nos movimentos de esquerda de 1968, Ana Wilma acredita que esta foi tão intensa quanto à masculina. Para ela, não existia preconceito e as mulheres tinham as mesmas tarefas que os homens. “Na hora da tortura, a mulher apanhava igual”, compara. Na prisão, no entanto, ela assume que as mulheres eram muito mais hostilizadas pelos militares. “Eles tinham inveja ou rancor por nós também sermos cabeças pensantes”, relembra. Ana Wilma chegou a apanhar por carregar na bolsa pílulas anticoncepcionais e diz ter recebido uma proposta do delegado Sérgio Fleury enquanto era torturada. “Se você quiser, eu te solto agora e te sustento”, teria dito o delegado segundo ela. Atualmente, Ana Wilma não está mais casada com Penafiel, trabalha como secretária na empresa de serviços gráficos dos filhos e não vota desde 1992, quando se decepcionou com a vitória de Fernando Collor para a presidência. No futuro, planeja largar o vício do cigarro e aprender a mexer em softwares gráficos, como o Photoshop. Orgulhosa de tudo o que fez, Ana
Wilma acredita que os indivíduos deveriam se esforçar para manter um convívio justo e fraterno entre todos - uma proposta que chama de revolução interna. “Fiz isso e me tornei uma pessoa melhor, tanto como mãe, amiga e cidadã”, conta. Na homenagem que recebeu no Congresso Nacional neste ano, Ana Wilma ressalta que entrou pela primeira vez em um órgão do governo pela porta da frente, sem capuz na cabeça e com os pulsos livres de algemas. Náufrago de utoPIas Celso Lungaretti era um tímido secundarista de 16 anos quando, em abril de 1967, conheceu Maria. Quinze minutos de conversa com a garota - militante de um movimento de esquerda - foram suficientes para que ele trocasse o curso de exatas pelo de humanas
A clandestinidade fazia com que vários militantes não tivessem fotos ou documentos guardados. Ana Wilma, na imagem acima, se lembra de ter tirado esta fotografia dois dias antes de ser presa
ESQUINAS 1º SEMESTRE 2008
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Celso Lungaretti apareceu em cartazes feitos pela ditadura como um terrorista assassino. Na imagem abaixo, Lungaretti é o sétimo da esquerda para a direta
ESQUINAS 2º SEMESTRE 2007
e se interessasse por escritores brasileiros de orientação revolucionária. Durante as férias escolares, Maria convidou-o para um curso de marxismo. Foi nesse período que Celso se tornou Júlio, uma das identidades que adotou durante sua trajetória política na clandestinidade. “Em 1968, eu era um menino que estava tentando fazer política e desempenhar um papel”, diz Lungaretti, 40 anos depois de começar a participar dos movimentos de esquerda. Em pouco tempo, entrou também para a luta armada e passou a ser militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). No movimento guerrilheiro, ocupou o cargo de comandante de inteligência até que, em abril de 1970, foi preso enquanto esperava por outro companheiro para uma reunião secreta. “Nós éramos mais descartáveis. Não tínhamos pais famosos e nem famílias influentes. Só depois de preso consegui refletir e avaliar”, afirma. Durante 30 anos, Lungaretti foi acusado de ter delatado o líder da VPR, Carlos Lamarca. A fim de provar sua inocência e revelar detalhes de sua trajetória política, escreveu Náufrago da Utopia, no qual ressalta que a geração de 1968 teve grande importância, pois representou a desaprovação popular frente ao regime autoritário. “Acho que a gente salvou a alma da nação. Se não houvesse essas poucas centenas de combatentes, o Brasil ficaria identificado como o país em que todos se submeteram à ditadura e à tortura sem reclamar”, enfatiza. Hoje, ele é jornalista e diz que seus artigos têm espaço restrito nos veículos de comunicação. Ele acredita que para aqueles que não defendem o poder o sistema se fechou e não há mais oportunidades. Em relação aos seus companheiros de militância, Lungaretti é enfático: “É triste, mas, depois de uma vida de luta, a velhice chega e as pessoas acabam se conformando com uma situação boa de poder e riqueza. Já que não construíram o mundo que queriam, pelo menos têm um mundinho dourado para passar os seus últimos dias de vida”. De jovem mIlItante a PolítIco Enquanto Lungaretti considera que a sociedade impõe barreiras para a participação mais efetiva da juventude na política, o médico Jamil Murad acredita que os jovens estão no início de um novo processo de conscientização social. “Já existe uma camada de jovens que participa e que se dedica. Tanto a juventude de 1968 como a de hoje tem um imenso valor. O envolvimento na luta política é diferente porque a história política é outra”, opina Murad. Formado em medicina pela Universidade de São Paulo (USP), em Ribeirão Preto, ingressou no Partido Comunista do Brasil (PC do B) em 1964. Murad afirma que suas concepções políticas continuam as mesmas daquela época. “A minha motivação de 1968 é a mesma de hoje. Eu não participo da vida política por vaidade. Sou incentivado pela minha consciência” garante. Murad já cumpriu quatro mandatos
como deputado pelo PC do B: duas vezes estadual e duas vezes federal, todos pelo Estado de São Paulo. “Nunca me envolvi com falcatruas que resolvessem o meu problema e deixassem o povo a ver navios. Segui sempre o caminho da fraternidade e da luta transformadora”, conta. Segundo ele, muitos dos jovens de sua época se incorporaram à sociedade capitalista e hoje propagam uma imagem negativa daquelas idéias. “Muitas vezes, o idealista de 1968 faz uma bela promoção midiática, renegando as lutas do passado e dizendo que aquela luta foi um erro. Aqueles que permanecem fiéis aos princípios básicos têm como recompensa sua consciência tranqüila”, constata Murad. “Vou Bem, oBrIgado” “Se um sujeito não se colocar contrário às ordens estabelecidas quando é moço, dificilmente o fará quando for mais velho”, afirma Daniel Barbosa Bonfim, que era aviador quando teve seu primeiro contato com o Partido Comunista Brasileiro (PCB), em 1961, atuando como coordenador na célula de base dos aeronautas do partido, em São Paulo. Em 1964, logo após o golpe, Bonfim foi demitido do quadro de pilotos da Varig devido ao seu envolvimento político com o PCB. Pelo mesmo motivo seu nome figurou na lista de procurados pela polícia. “A geração de 68 era muito mais politizada do que a de hoje porque o momento exigia. As pessoas são agentes de um determinado processo histórico em um determinado espaço de tempo”, acredita. Para ele, o movimento da juventude durante aquele período foi válido por ter sido uma tentativa da sociedade de lutar pela democratização do país. Bonfim não se queixa pelo que passou durante a repressão e é enfático em relação aos que agem desta maneira. “Essa história de que ‘perdi minha juventude’ é tudo papo furado”, conclui. Em março de 1975, foi preso pelo Destacamento de Operações e Informações do Centro de Operações da Defesa Interna do II Exército (DOI/Codi/II Ex), acusado de envolvimento em atividades políticas do PCB. Em seguida, foi encaminhado ao Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo (Dops), de onde saiu em maio do mesmo ano. Voltou a ser retido dois meses depois, por denúncia da Procuradoria da Justiça Militar, desta vez acusado de ligação com gráficas clandestinas e com a entrada ilegal de dólares no país para a sustentação do partido, o que, até hoje, alega ser mentira Em 1988, esteve na Faculdade de Leningrado, na ex-União Soviética, a fim de aprimorar seus conhecimentos sobre a ideologia socialista e percebeu então que o regime imposto naquele país estava em decadência. Atualmente, mesmo diante da ascensão do capitalismo e de sua decepção com a esquerda brasileira, continua adepto do socialismo. Mesmo assim, Bonfim reconhece que a concepção que os revolucionários de 1968 sustentavam faliu. “Hoje em dia é mais difícil convencer um sujeito que está se benefi-
ciando das delícias do consumo de que ele tem que fazer a revolução”, constata. O aviador aponta a impunidade como uma das heranças dos “anos de chumbo” da ditadura. Para ele, o fato da Lei da Anistia ter inocentado militares e militantes envolvidos em delitos aumentou ainda mais a sensação de que ninguém neste país paga pelos crimes que comete. Bonfim aponta como prova disso um encontro que teve, por acaso, com o seu torturador, o mesmo que matou Vladmir Herzog, muitos anos depois do fim da ditadura. O homem parou e perguntou: “Como vai você, rapaz?”. Bonfim, sem reação, simplesmente respondeu: “Vou bem, obrigado.” erros e lIções O maior erro da juventude de 1968, para Marco Antônio Tavares Coelho, foi traçar uma conduta política que não estava de acordo com a realidade e que não contava com o apoio da população. Marco Antônio, atual editor da Revista de Estudos Avançados da USP, foi eleito deputado federal pelo PCB do Rio de Janeiro em 1962, e, portanto, acompanhou todas as tensões políticas antes e depois do golpe de 1964. Na Câmara, a política que adotou foi moderar suas idéias comunistas, de modo que fossem aceitas naquele contexto. “Em nome do partido eu já atuava com deputados nacionalistas, que era uma grande expressão de oposição contra o imperialismo”, afirma. Desde jovem, quando estudou em um colégio de inclinações fascistas em Minas Gerais, já se posicionava contrário a condutas ditatoriais. Foi convidado para participar do Partido Comunista Brasileiro (PCB) aos 17 anos, após fazer um pronunciamento em que pregava idéias anarquistas durante um concurso de oratória na Faculdade de Direito de Belo Horizonte. Em 1964, Marco Antônio era um dos líderes do PCB. Passou a ser perseguido e a levar uma vida clandestina, que só terminou onze anos depois, quando foi preso. Durante esse período, orientou vários jovens sobre a atitude que deveriam adotar na oposição ao regime. “Discuti muito com esses estudantes para mostrar que o que eles estavam fazendo não daria certo. A vida estava ensinando que o caminho era outro”, conta. Para ele, o importante na luta era obter o apoio das massas. A juventude deveria ter ingressado em organizações já existentes, como os sindicatos e centros acadêmicos, a fim de buscar novos adeptos para o movimento. Em seu livro Herança de um sonho – As memórias de um comunista, ele também julga como errôneo os caminhos adotados por alguns líderes como Carlos Marighela e Carlos Lamarca após o AI-5. Na obra, ele relembra a força da oposição em 1968, que pôde ser constatada em momentos como a Passeata dos Cem Mil e em sua representação nos jornais e no próprio Congresso Nacional. Para ele, é importante lembrar que apesar dos erros, a luta pela igualdade e pelo interesse da maioria continua.“Temos uma bandeira e que não devemos nos afastar dela: a luta pela liberdade”.
“Se um sujeito não se colocar contrário às ordens estabelecidas quando é moço, dificilmente o fará quando for mais velho”, afirma Daniel Bonfim
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TORTURA
hORA DE RECOMEÇAR Como retomar a vida depois da tortura? Militantes que foram presos falam sobre as marcas deixadas pela ditadura em cada um REPORTAGEM E IMAGENS LUANA ALVES (4º ano de Jornalismo), NATÁLIA GUARATTO e RUBENS NOGUEIRA (2º ano de Jornalismo)
Foram muitos os personagens dos anos de chumbo no Brasil. Centenas de homens e mulheres que arriscaram suas vidas por um ideal. Depois de quarenta e quatro anos do início da ditadura militar, inúmeras pessoas foram presas, tantas outras torturadas e o número exato de mortos e desaparecidos ainda é desconhecido. Para a maioria dos ex-presos políticos, a batalha não terminou. Eles continuam agarrados aos seus ideais, dividindo suas experiências e exigindo a preservação da memória dos fatos e de seus companheiros mortos. Protagonistas de histórias emocionantes, três militantes torturados pelo regime militar falaram à ESQUINAS como reconstruíram suas vidas após esta experiência. A primeira história é a do filho de comunista, Ivan Seixas, que entrou para o Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT) quando ti-
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nha 16 anos. Seixas foi preso e torturado em 1971, junto com seu pai, Joaquim, que foi morto dois dias depois da prisão. Ele ficou seis anos na cadeia sem nunca ter sido julgado. Depois de libertado, percorreu o Brasil lutando pela abertura dos arquivos oficiais da ditadura. O segundo depoimento é de Raphael Martinelli, que participou da fundação da Ação Libertadora Nacional (ALN), organização clandestina criada para combater o regime militar. Foi preso em 1970 e torturado por 12 dias seguidos. Atualmente é membro do conselho diretivo do Fórum de Ex-Presos e Perseguidos Políticos. A terceira história é de Criméia de Almeida, que participou da guerrilha do Araguaia e foi presa quatro vezes durante a ditadura, em uma delas estava grávida de sete meses. Até hoje, ela luta pela anistia dos torturados políticos, trabalhando na busca dos desaparecidos.
Ivan Seixas visita o local em que foi preso e diz que não se considera nem herói nem vítima. Na foto ao lado, o militante Paulo Roberto Jabour deixa a prisão após ser anistiado, como ele muitos militantes políticos tentaram reconstruir suas vidas após a prisão
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Falar das marcas psicológicas é complicado. Sou de uma família de operários e comunistas. Não entrei na luta, eu nasci dentro dela. Meus pais eram militantes comunistas. O bairro onde eu nasci, em Porto Alegre, tinha uma base do Partido Comunista. Nós fomos para a luta armada e dissemos ‘vamos tomar o poder’. Eu não fui preso por engano, eu era militante, linha de frente, fiz um monte de ações armadas, eu conhecia a maioria dos líderes. O Lamarca morou na minha casa, o Marighella era amigo do meu pai. Então eu não tinha nem condições de dizer ‘não sei do que vocês estão falando’. Por uma trágica coincidência eu fui preso junto com o meu pai e eles decidiram matar 50%. Mataram meu pai. Poderiam ter me matado, só que o meu pai era um dirigente, um comunista histórico, um operário. É óbvio que iam matá-lo. Eles iam me matar depois, só que começou a ter muita denúncia porque eu era um menino de 16 anos, mas eu não tinha nenhuma ilusão de sobreviver. O que fizeram contra mim eu não tomei como pessoal. Eu nunca tive pesadelos a noite lembrando da tortura. Isso porque eu também dei tiro nos caras e nem sonhei com isso. Da mesma forma que eles deram tiro em mim e eu também não tive pesadelos. Se fosse necessário, dentro do processo revolucionário, matar os caras, eu mataria. E eu falo isso abertamente. Se fosse necessário eles me matarem, eles me matariam. Vou ter pesadelos a
noite com isso por quê? Eu não fui nem herói nem vítima, fui um personagem histórico. Essa participação não pertence a mim. Eu usava um nome de guerra que ficou conhecido como Teobaldo. O Teobaldo foi um personagem histórico. Lembro todo dia da prisão porque tenho uma vértebra que foi quebrada durante a tortura, por causa disso tenho um problema de coluna muito grave. Outras marcas externas são as cicatrizes do choque elétrico que levei na mão. Saí da prisão, estudei e virei jornalista. Aí fui reconstruir a minha vida. Trabalhei na Prefeitura de São Paulo, casei, tive três filhos. Hoje eu tenho 53 anos, estou sobrevivendo com bicos. Faço parte do Fórum dos Expresos e membro da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos. Toda pressão que eu posso exercer em relação à memória da ditadura, eu faço. Não fui indenizado porque eu não fui julgado, eu era inimigo do regime e fiquei preso durante seis anos. Ano passado, finalmente, eu pedi a minha indenização e o processo está correndo. Mas sei que vai demorar. A tortura é só um pedaço da história. Sabe qual é o resto? A censura que não permitiu que uma geração inteira formasse lideranças. Eles mataram um pedaço do país. A tortura é a conseqüência que nós pagamos por lutar pela democracia. O preço maior que a ditadura deixou foi mutilar o Brasil.”
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Raphael Martinelli, preso por três anos durante o governo militar, continua na luta pelos direitos dos presos e torturados durante a ditadura
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Eu saí da prisão e fui trabalhar na área de transporte ferroviário. Um amigo meu do sindicato me ajudou, mas foi difícil, porque eu tinha saído da cadeia fazia 30 dias. Que entrevista que o cara ia fazer comigo? Se eu era bom ou se eu não era bom? O meu amigo que disse para o diretor quem eu era. Quando a gente fazia palestra na juventude, em qualquer faculdade, ninguém sabia nada do que foi a ditadura, parecia segredo. Perguntavam: ‘Mas o senhor foi torturado? Como é a tortura?’. No geral, parece que ainda é um segredo. Fui anistiado em Brasília há dois anos. E agora faço parte da Comissão de Anistia, criada em 2001 pelo então governador Mário Covas. Levei dez meses para treinar os jovens doutores que fazem parte da comissão. Eles tinham sido indicados pelo Ministério Público, pela Secretaria de Segurança Pública, quer dizer, não entendiam a nossa proposta. Costumavam me dizer: ‘Mas não está provado que ele foi torturado, Martinelli’. Eu pegava o depoimento e estava lá que o cara foi inquirido das 22h às 4h. Eu completava: ‘olha aqui, ele foi torturado esse tempo todo no pau de arara, no choque. O lado de lá não vai dizer que conseguiu o depoimento por tortura’. Não ficam marcas. Hoje, nós temos 180 dias para finalizar um proces-
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so. Nós estamos com mais ou menos 350 processos para despachar e já despachamos 1.700. Em São Paulo, já são 2.500 companheiros que foram presos e torturados. Que se apresentaram, né? Porque tem gente que não se apresenta. O Fórum dos Ex-Presos e Perseguidos Políticos do Estado de São Paulo existe há uns cinco anos. Agora está unificado, com prestígio, mas no começo houve divergências. Em uma reunião tinham uns 150 companheiros de mais de 27 organizações revolucionárias. Se você ficou no pau de arara e entregou um companheiro, era um problema. Aí todos acabavam se encontrando e um metia o pau no partido do outro. E eu cheguei a dizer: ‘essas coisas para mim não interessam. Aqui todos para mim são compatriotas, são revolucionários’. Hoje é uma família, porque todos a sua maneira lutaram contra a ditadura. Isso que é importante. Foi assim que eu acabei com aquela briga. Me deram soco inglês nas costas, tudo isso e estou aqui. A idéia é essa: do lado de lá é o inimigo. Você acha que o inimigo vai se consertar, não vai. O nosso lado vai mudar? Também não. Tem gente que critica os companheiros que falaram, mas eu não critico. A gente tem formação diferente, cada um aprende de um jeito. Eles pegavam os depoimentos torturando, massacrando.”
Criméia de Almeida estava grávida de sete meses em uma das vezes em que foi presa e torturada. Para ela, aqueles dias na prisão ainda são um pesadelo
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Eu entrei na luta política antes de 1964. Era o caminho de quem não se conformava com o corte que teve na sociedade do Brasil. Minha primeira prisão também foi naquele ano. Depois fui presa em 1968, no Congresso da UNE em Ibiúna, no final de 1972, no boicote da Tutóia e em 1987, quando a gente fazia uma pintura debaixo do viaduto da avenida São João, reivindicando os direitos da mulher na constituinte. A pior vez foi em 1972, por eu estar esperando um bebê. Tinha um cara, que chamavam de doutor, que disse para não me colocar no pau de arara e nem dar choques que normalmente eles davam nos ouvidos, na vagina, no nariz, no ânus e em tudo quanto é buraquinho. O general dizia: ‘Você vai ser solta. Se for o caso, a gente mata, mas a gente não vai te processar, porque, politicamente, você vai usar isso contra a gente.’ O fato de terem usado uma mulher grávida de sete meses. Meu filho foi torturado na minha barriga. Depois que nasceu, foi torturado também, porque eles o usavam
como instrumento para me torturar. Não me deixavam amamentar e me separavam dele. Meu filho, em 52 dias que esteve no hospital do exército, teve três gastroenterites [infecção no sistema gastrointestinal]. Eles davam água sem filtrar, davam qualquer leite. Ele nasceu com 3 quilos. Com 30, 40 dias ele estava com 2,7 quilos. É peso de uma criança prematura. Logo que saí, fui para casa da minha tia, mas vivia em uma liberdade vigiada. Os militares me levaram até lá descaracterizados como se fossemos quatro passageiros num carro. Eles estavam bem armados e eu achei que eles, nesse meio tempo, fossem me matar. Tanto que, quando eu descia porque estava muito quente, pedia para sair do carro e falava: ‘eu não vou fugir. Estou com as mãos para cima’. Os caras ligavam e iam na casa da minha tia pra saber se eu estava lá. Eu saí, mas não em liberdade. Só quando peguei meus documentos, consegui, com um advogado, denunciar as ameaças que o general tinha feito durante a prisão. Meu filho tinha medo de dormir. Quais os motivos para um bebê ter pesadelos? Por que tinha convulsões e pesadelos com oito meses, com dois anos? Por quê? Por que, quando tocava a campainha, ele entrava debaixo da cama? Criança faz isso? Em geral, criança corre na porta dizendo ‘é a vovó, é o vovô, é num sei quem’. Na minha casa, corriam para debaixo da cama, choravam, pediam para não abrir a porta. Essa sensação ruim não passa. Se eu escuto jovens gritando na rua durante a noite, acordo e penso que alguém está sendo espancado, que alguém está sendo torturado. A tortura é um crime imprescritível porque quem sofre um dia vai se lembrar dela o resto da vida. Não é uma lembrança que você diz que seja coisa do passado. É uma lembrança torturante.”
RAFAEL DE QUEIROZ
em bUscA dO pAssAdO
Memorial da Resistência Largo General Osório, 66 - Luz - São Paulo/SP Telefone: (11) 3337-0185 Horário de funcionamento De terça a domingo, das 10h00 às 18h00 Ingressos R$ 4 e R$ 2 (1/2 entrada). Grátis aos sábados. Estudantes e idosos pagam meia entrada. Crianças com até 11 anos não pagam.
Às 21 horas do dia quatro de julho de 2002, um lugar também viu sua realidade se transformar, assim como a vida dos presos e torturados pelo regime militar. O prédio do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), localizado na Rua General Osório, no centro de São Paulo, passou a ser o Memorial da Liberdade. A restauração, coordenada pelo arquiteto Haron Cohen, custou ao Estado cerca de dez milhões de reais. As paredes negras, a madeira envernizada e a nova iluminação dada às celas deixam quase distante a sensação de que muitas pessoas foram torturadas e mortas naquele prédio. No dia 1º de Maio deste ano, o local mudou de nome e passou a se chamar Memorial da Resistência. Segundo Claudinéli Moreira Ramos, coordenadora da Unidade de Preservação do Patrimônio Museológico da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, “o Fórum de Ex-Presos e Perseguidos Políticos solicitou que houvesse uma mudança. Entendemos que a solicitação deles era muito pertinente porque o principal marco desse espaço foi de resistências. O prédio do Dops foi um cenário de torturas”. O Fórum pediu ainda que fossem restauradas as características originais da cela, para que o local realmente lembrasse o que existia ali no passado. “De
acordo com o nosso pedido, a cela será reformada como era no nosso tempo. Escrita, banheirinho, só coisas que a gente fazia na cadeia. Porque os estudantes chegam lá, olham e parece um apartamento”, explica Raphael Martinelli, conselheiro do Fórum de Ex-Presos e Perseguidos Políticos. Para atender a solicitação, a Secretaria está desenvolvendo um novo projeto museográfico e museológico que deve ser inaugurado em dezembro, mês que tem como marco a decretação do AI-5. Ainda no Dia do Trabalho, o Memorial da Resistência inaugurou também a exposição fotográfica Direito à Memória e à Verdade – a Ditadura no Brasil: 1964-1985, concebida pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. “Essa exposição surgiu da necessidade de levantar informações sobre os 21 anos de ditadura. São 110 fotografias feitas pela imprensa da época”, afirma Claudinéli Moreira Ramos. Para ela, os principais objetivos da ação são a preservação da memória, a reflexão sobre a história e a defesa da democracia. “A intenção da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo é a de requalificar esse espaço constituindo um memorial para marcar a história que ele testemunhou e impedir que essa trajetória se perca”, explica a coordenadora.
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SITES REPORTAGEM rafael de queiroz (3º ano de Jornalismo) IMAGENS reProduÇÃo
A rede dos militares eles já não mandam na américa latina, mas sua história no continente pode ser visitada em páginas na internet É PROIBIDO PROIBIR
Não era só a imprensa que sofria com a censura. dois sites mostram os critérios que os censores usavam para proibir músicas e filmes e como os artistas driblavam o problema http://www.censuramusical.com a música Papai me empresta o carro da cantora rita lee foi considerada “atentatória a moral e aos bons costumes” pela divisão de Censura e diversão Públicas (dcdp). Na canção, um rapaz implora ao pai que empreste o automóvel para sair com a namorada, “eu só quero meia hora no seu carro com meu bem”, diz a letra. desenvolvido por andré rocha, Gabriel Pelosi e lucas Mota, para um trabalho de conclusão do curso de jornalismo da universidade Presbiteriana Mackenzie, o site oferece documentos oficiais do dcdp em formato pdf, com as anotações e pareceres dos censores, que atingiram de odair José a Chico Buarque. No site há 13 entrevistas. foram ouvidos historiadores, jornalistas, ex-censores e músicos, como aldir Blanc, zé rodrix e a dupla dom e ravel. quem quiser se aprofundar no tema, pode escolher dentre as 40 dicas de livros e 33 links sobre censura. http://www.memoriacinebr.com.br o formato do site lembra um grande arquivo, a imagem de fundo mostra duas prateleiras repletas de pastas do chão ao teto. a figura é uma boa representação do endereço, patrocinado pela Petrobrás e pelo Ministério da Cultura, que dá acesso a mais de seis mil documentos relativos a censura de mais de 400 filmes, sendo a maioria deles pornochanchadas. Há também entrevistas com cineastas e censores, artigos e matérias veiculadas na imprensa sobre os filmes censurados. a ferramenta de busca é detalhada, procura os filmes por assunto, diretor ou ano de produção.
BEM NA FOTO
http://www.cliohistoria.hpg.ig.com.br/bco_imagens/bco_imagens.htm o endereço é um banco de imagens com fotos dos principais acontecimentos dos anos de chumbo, como uma imagem, na qual o presidente João figueiredo, em traje de civil, canta o Hino Nacional, na comemoração do dia do Soldado de 1979 alinhado numa fileira de militares. além de capas de revistas, jornais e reproduções de cartazes contra ou a favor do golpe, como na propaganda, do Grupo Votorantim, que diz “pense, brasileiro, do nada se fez uma nação, 64 é o Brasil e depende de você”. um dos destaques do site é a seção “para ler, ver e ouvir”, com 23 indicações de livros, 15 filmes e 34 músicos.
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O REGIME E A ACADEMIA
http://www.gedm.ifcs.ufrj.br O Grupo de Estudos sobre a Ditadura é um órgão do Departamento de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Ufrj) criado para desenvolver pesquisas acadêmicas sobre a história do Brasil de 1964 a 1985, período em que os militares estiveram no poder. O menu do site, no topo da página, tem sete opções para o internauta navegar: bibliografia, acervos, legislação, documentos, cronologia, textos e links. O endereço tem uma ampla bibliografia sobre a ditadura e uma lista de 41 acervos documentais, todos com endereço, site e telefone. O link “legislação” dá acesso às leis que o regime militar usou para fundamentar seu governo, como os Atos Institucionais e os Atos do Comando Supremo da Revolução .
O GOLPE NA FGV
http://www.cpdoc.fgv.br O site é do Centro de Pesquisa de Documentação História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (Cepdoc/FGV) e em seus arquivos existem quase dois milhões de documentos com acesso livre ao público. A consulta ao acervo é pública e os documentos estão sendo disponibilizados na internet. Recentemente, foi digitalizado todo o arquivo do ex-presidente Ernesto Geisel, o site permite o acesso a fotos, documentos oficiais e manuscritos. Há também artigos sobre a ditadura e mais de 5 mil horas de entrevistas, do programa História Oral, que colheu, desde 1975, depoimentos de quase mil personalidades que atuaram na vida política nacional.
PARA NÃO ESQUECER
http://www.desaparecidos.org O endereço é dedicado à memória dos desaparecidos políticos durante as ditaduras em toda a América Latina. O site, apesar de ser argentino, é bilíngüe, espanhol e inglês. No canto direito ficam os links para as seções de cada país. Na página brasileira pode se ter acesso a uma lista, elaborada pela Arquidiocese de São Paulo, com os nomes de 125 pessoas desaparecidas entre os anos de 1970 e 1974. A página dedicada à Argentina é mais elaborada, os principais destaques são documentos oficiais, notícias recentes e o perfil de 30 torturadores argentinos.
DIREITA VOLVER
http://www.historiadopoder.com.br Pessoas que participaram da vida política do Brasil no século XX relatam no site como os militares chegaram no poder. As entrevistas, realizadas entre 1999 e 2005, feitas pelos jornalistas Florestan Fernandes Júnior e Alberto Dines, geraram cinco filmes e três livros. Podemos assistir aos vídeos editados ou então cada um dos 70 depoimentos na íntegra. Dentre os entrevistados estão Delfim Netto, Dom Paulo Evaristo Arns e o General Octavio Costa. Há ainda a opção de se ouvir os relatos divididos por temas, como “Milagre Econômico”, “A cassação de deputados pós 64” ou “O apoio da Igreja e da classe média ao golpe de 64”. ESQUINAS 1º SEMESTRE 2008
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ECONOMIA
BRASIL
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GRANDE
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Geradora de um quarto da energia consumida no Brasil, a usina hidrelétrica de Itaipu, uma obra do Milagre, quase dobrou a capacidade instalada de gerar energia no país, passando de 16 mil megawatts para 30 mil megawatts, nos anos 1980
Inflação controlada, exportação, investimentos em infra-estrutura. Essa foi a receita dos militares para o país crescer numa média de 11% ao ano
REPORTAGEM ANDRESSA TRINDADE, RAPHAEL SCIRE (1° ano de Jornalismo), LUIZ FELIPE FUSTAINO (3° ano de Jornalismo) e KARINA GOMES (2° ano de Jornalismo) IMAGENS REPRODUÇÃO
Nunca se viu na história deste país um crescimento econômico como o que ocorreu entre os anos de 1968 e 1973. O período ganhou até apelido: Milagre Brasileiro, uma alusão ao forte crescimento que levantou das cinzas a Alemanha e o Japão, os perdedores da Segunda Guerra Mundial. O Produto Interno Bruto (PIB) atingia taxas de crescimento iguais ao da China atual. O aumento do PIB saltou de 3,7% em 1967, para 9,8% no ano seguinte, chegando a 14% em 1973 (ver quadro na página seguinte). ARRUMAR A CASA Os anos de 1960 foram de estagnação econômica, por isso, assim que tomaram o poder com o golpe de 1964, os militares lançaram seus planos para a economia. Foi no governo Castello Branco (1964-1967), que Roberto Campos e Octavio Gouvêa de Bulhões, ministros do Planejamento e da Fazenda, respectivamente, criaram o Plano de Ação Econômica do Governo (Paeg). “A gestão dos dois ministros preparou o Brasil para esse círculo de crescimento virtuoso”, analisa Renaut Michel Barreto e Silva, diretor-adjunto do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Os principais objetivos do Paeg eram conter a inflação, que em 1963 estava em mais de 80% ao ano, e aumentar as taxas de investimento e emprego. As reformas do Paeg foram a base do crescimento dos anos seguintes. O editor de economia do jornal O Estado de S. Paulo, Rolf Kuntz, destaca a reforma do setor externo, “a grande alavanca na época do Milagre Econômico, além do mercado doméstico, é o setor externo. Ao substituir importações, você produz domesticamente. Você tem um mercado doméstico trabalhando bastante. Para evitar gargalos na balança comercial, você exporta. E aí você gera também uma política de exportação, promoção ao setor exportador, incentivos fiscais à exportação”. Para
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Nem todas as obras foram um sucesso: a rodovia Transamazônica, com 2.600 quilômetros de extensão, deveria integrar a região Norte ao resto do país, mas 36 anos depois da inauguração segue inacabada conseguir esse resultado, o governo criou leis que estimularam as exportações e permitiam o acesso de empresas brasileiras a bancos estrangeiros. O MINISTRO Embora o trabalho de Roberto Campos e Bulhões tenha sido fundamental, foi Antônio Delfim Netto quem “ficou marcado como o ministro do Milagre”, diz Manuel Enrique Garcia, professor de economia da Faculdade de Administração e Economia da Universidade de São Paulo (FEA-USP). Responsável pelo Ministério da Fazenda durante os governos Costa e Silva (1967-1969) e Médici (1969-1974), Delfim foi “habilidoso na política de incentivos fiscais e de exportação”, conta o economista. Nestes governos, quando a ditadura foi
mais violenta, o Estado intensificou os investimentos. Ampliou a infraestrutura do país, sobre tudo nos setores de energia elétrica, transportes, comunicações e petróleo. E construiu obras, como a ponte Rio Niterói, a rodovia que cruzava o Norte do país, a Transamazônica e a usina hidrelétrica de Itaipu, que começava a ser erguida para que refletisse a imagem que os militares queriam dar ao país, de “Brasil potência”. A classe média pôde realizar sonhos antigos, como adquirir a casa própria, colocar os filhos em escola particular, ter convênio médico e freqüentar um clube. Foi durante o Milagre que João Valério, hoje com 64 anos, começou a construir tudo o que tem. Trabalhou no Banco de Santos, atual Banco Safra,
Crescimento do PIB nos anos do Milagre Brasileiro em porcentagem
16 13,96
14 12 10
9,80
9,50
10,40
1968
1969
1970
11,34
11,94
1971
1972
8 6 4 2 0
Fonte: IBGE
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como chefe de seção até chegar ao cargo de gerente regional. Conseguiu comprar seu primeiro carro, um Fusca 1968, e sua primeira casa. “Foi uma fase muito boa, quando consegui minha estabilidade financeira”, relembra Valério. Luís Eulálio Bueno Vidigal Filho, ex-presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), conta que o Milagre também abençoou o empresariado. “Houve um decreto lei que dava incentivos fiscais e crédito da seguinte forma: limitava a correção monetária em 14% e juros de 4% ao ano em todos os empréstimos do BNDES”, recorda o empresário. Isso significava dinheiro a custo baixo para investir, que Vidigal usou para expandir a sua empresa, a extinta Cobrasma, fabricante de peças ferroviárias, “nós tomamos um empréstimo muito grande. Fizemos uma fábrica imensa em Sumaré, interior de São Paulo.” PERDEU O RITMO Mas, o Brasil não sustentou esse crescimento. Já em 1973 a economia dava sinais de enfraquecimento. O jornalista Rolf Kuntz lembra que um dos problemas do Milagre foi ter colocado o país em uma situação de dependência da importação de bens de capital, de maquinaria, insumos e do petróleo. Para ele, independentemente das crises mundiais, a economia entraria em crise, pois o governo preferiu importar equipamentos a investir na produção nacional, o que causou um estrangulamento no balanço de pagamentos. Em 1973, após o primeiro choque do petróleo, quando o barril subiu de 3,37 para 11,25 dólares, a economia mundial parecia perder seu brilho. O Brasil, no entanto, se manteve na mesma rota, aumentando o en-
Na primeira fila, da esquerda para a direita: Olavo Setúbal, Jorge Gerdau Johanpeter, carlos Bardella, José Mindlin, luís Eulálio Vidigal e Amador Aguiar. O empresariado assiste cerimônia de posse de José Sarney, o primeiro presidente civil em vinte anos dividamento externo. A dívida brasileira deixou de ser administrável e o país deu as boas vindas aos anos 1980 com uma situação econômica crítica. A ilha de prosperidade, como o Brasil era conhecido, começava a afundar. Para Vidigal, por mais que o período tenha sido positivo, no que se refere à expansão dos seus negócios, o sentimento que ficou foi o de decepção: “Ficou uma desilusão muito grande. Porque o governo era o principal e o maior investidor, e ele não investiu. Ele quebrou na década de 1980”. O QUE SOBROU DO MILAGRE Para o professor da FEA-USP, Manuel Enriquez Garcia, a estrutura montada durante a ditadura militar ainda está presente na economia. “Toda a parte institucional que está aí foi feita naquela época. Ninguém mexeu uma página no que foi feito. Banco Central, todo o mercado de capitais. As grandes mudanças foram feitas naquela época. Reforma bancária, reforma do mercado de capitais, reforma tributária”, afirma. O economista do Ipea, Renaut Silva, acredita que o Brasil está passando por um excelente momento na economia e que a perspectiva de crescimento do Brasil assemelha-se à da época e vai além da meta de 5% estipulada pelo governo. Para isso, defende a presença mais forte do Estado na economia, bem como uma redução na taxa de juros e uma desvalorização no câmbio, para fortalecer as exportações. “Estou bastante otimista, mesmo com um quadro externo menos favorável [do que na época do Milagre], pois nossa economia está preparada para resistir a qualquer turbulência internacional”, afirma.
OS MILAGREIROS ROBERTO cAMPOS E BulhõES Arrumar a casa. Foi para isso que Campos e Octavio Bulhões assumiram os ministérios do Planejamento e da Fazenda durante o governo Castello Branco. Com o objetivo básico de controlar a inflação, criaram o Paeg – Plano de Ação Econômica do Governo (19641967), um pacote de reformas econômicas repleto de medidas impopulares, tais como a contenção do crédito e a redução do poder aquisitivo dos assalariados. Com eles, o governo do marechal Castello Branco deu mais ênfase às reformas institucionais do que às grandes obras públicas.
ANTONIO DElFIM NETTO Foi nos anos em que Delfim Netto comandou o Ministério da Fazenda que o PIB do Brasil cresceu de forma excepcional – nunca esteve abaixo de 9% ao ano, índice que jamais voltou a registrar. Ao mesmo tempo em que indicadores econômicos brasileiros batiam recordes, a política nacional de desenvolvimento era criticada pelo rápido aumento da desigualdade. Com empréstimos obtidos em bancos internacionais, sua gestão aumentou os gastos e construiu grandes obras, como a ponte Rio-Niterói.
MÁRIO hENRIQuE SIMONSEN A política salarial do Paeg de Campos e Bulhões foi formulada pelo economista Mário Henrique Simonsen. Ministro da Fazenda no governo Geisel, herdou as conseqüências da grande festa proporcionada pelo crescimento econômico nos anos anteriores. Austeridade e contenção de gastos foram as palavras de ordem do ministro, que preferiu a racionalidade econômica à popularidade. Simonsen temia o endividamento do Estado e por isso diminuiu os gastos da máquina pública.
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TRANSPLANTE
Imagens, como esta tomografia computadorizada, permitem avaliar a situação das veias do coração sem o uso do bisturi
Em busca de um novo
CORAÇÃO As primeiras cirurgias pareciam coisa de ficção científica. Hoje, com a evolução na medicina, quatro mil transplantes são feitos anualmente no mundo
REPORTAGEM LigiA Hercowitz (1° ano de Jornalismo) e rAFAeL De QUeiroz (3° ano de Jornalismo) IMAGENS reProDUÇÃo
João Ferreira da Cunha deixou seu coração no Hospital das Clínicas de São Paulo, na madrugada de 26 de maio de 1968. Tinha sido vítima de um atropelamento. A equipe médica já aguardava a entrada de um possível doador. Seis meses antes, Christiaan Barnard realizara, na África do Sul, o primeiro transplante de coração humano. Agora era a vez do paulista de Guaratinguetá, Euryclides de Jesus Zerbini, cardiologista chefe do Instituto do Coração (Incor), realizar a façanha. Na expectativa de um coração também estava João Boiadeiro, um lavrador do Mato Grosso, sofrendo com a insuficiência cardíaca, prestes a morrer. O doutor Zerbini levou quatro horas para retirar o coração do peito de um João e fazê-lo bater no peito do outro. Mas Boiadeiro viveu apenas por mais 28 dias com o novo coração. Outras duas ten-
tativas foram feitas em 1968. Em nenhuma das operações o paciente viveu por mais de um ano e meio. “A medicina evoluiu. Na época, não se tinha o conhecimento que se tem hoje a respeito da imunologia”, revela o doutor Ronaldo Honorato Barros Santos, cirurgião coordenador de transplantes do Incor. O órgão doado era reconhecido pelo sistema imunológico como um intruso que deveria ser atacado, e por isso desenvolvia rejeição. Os primeiros transplantes foram suspensos pela maioria dos centros médicos do mundo que realizavam a operação, inclusive pelo Incor. “Quando há muito óbito, a gente pára, investiga o que está errado”, explica Santos, “mas, o importante foi mostrar que a operação era factível.” ESTRANHOS COMEÇOS Nos anos 1950,
os cirurgiões passaram a investigar novas soluções para os problemas cardíacos. Na Inglaterra, John Gibbon, com o auxílio da IBM, desenvolveu uma máquina que oxigenava e dava pressão ao sangue, fazendo as vezes de coração, o que ficou conhecido como circulação extra-corpórea. Houve ainda nessa década, a circulação cruzada, que usava a corrente sanguínea do pai ou da mãe, que conectada por tubos, para oxigenar o coração do filho. Muitos animais foram usados nas primeiras experiências. Em 1964, nos EUA foi realizado um transplante de um chimpanzé para um homem. O doente estava em estado terminal e o coração do macaco bateu em seu peito por apenas algumas horas. “Evidentemente, que esse coração deteriorou por causa da incompatibilidade entre a
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raça humana e o símio”, comenta o médico. Para Santos, o intuito dessas experiências era “comprovar que você podia tirar um coração de um peito, passar por um período sem o sangue e colocar no peito de outro ser e bater.” O sucesso das operações era simbólico, porque os pacientes não resistiam. A solução foi dada só em 1979, mais de dez anos depois do primeiro transplante de coração, graças a uma droga isolada de um fungo chamada ciclosporina. “Um potente imunossupressor, capaz de suprimir a reação do organismo frente ao órgão transplantado”, define o cirurgião. SANTO REMÉDIO A ciclosporina contornou o grave problema da rejeição. Novas técnicas, como a diminuição do diâmetro do fio para suturar o coração, antes de algodão, hoje de nylon, tornaram a cirurgia menos agressiva. A medicina teve grandes avanços de lá pra cá. Diagnósticos, hoje, são feitos com tomografia computadorizada e ressonância magnética, no tempo de Zerbini se baseava na ausculta com o estetoscópio, no levantamento do histórico do paciente e na interpretação das chapas de raio X. O impacto desse novo medicamento pode ser observado nas estatísticas. Segundo dados do International Society for Heart and Lung Transplantation – Sociedade Internacional para Transplantes de Coração e Pulmão (Ishlt), no ano de 1982, foram re-
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alizados 189 transplantes em todo o mundo, ainda em caráter experimental. No final da década de 1980, já com a ciclosporina aprovada e aplicada nas salas de cirurgia, esse número passava da marca de três mil operações e com maior índice de sucesso na sobrevida dos pacientes. DE PEITO ABERTO A cirurgia desenvolvida nos anos 1960 ganhou novas formas de execução. A chamada técnica clássica, utilizada por Zerbini e Barnard, a bicaval e a heterotópica. A clássica não retira totalmente o coração do receptor, deixa parte dos átrios, as câmaras superiores do músculo cardíaco. “Atualmente, nós usamos mais a técnica bicaval”, diz Alfredo Fiorelli, chefe da equipe de transplantes do Incor e cirurgião do Hospital Alemão Oswaldo Cruz (Haoc). A técnica bicaval retira mais tecido do coração doente, fica apenas um pedaço do átrio esquerdo. “Essa técnica tem se demonstrado mais eficaz, mas a escolha da técnica depende primordialmente da situação do paciente e do órgão doado”, completa o médico. Na técnica heterotópica, por exemplo, os médicos não retiram o coração antigo, apenas implantam um órgão novo, conectado por meio de um tubo. “Nós a usamos quando o coração doado é pequeno demais para o tamanho do paciente, mas em boas condições de ser aproveitado”, explica Fiorelli, “mas essa técnica é aplicada em menos de 5% dos casos.”
SALA DE ESPERA O transplante de coração deixou de ser coisa de ficção científica, somente no ano passado foram realizados 136 cirurgias desse tipo no Brasil, segundo dados da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (Abto). Mas há um outro problema que aflige os corações de médicos e pacientes: a baixa oferta de doadores. O cirurgião Ronaldo Santos lamenta, “não conseguimos passar dos quatro mil transplantes no mundo anualmente, esse número está estacionado há décadas”. Não tem coração para todos que precisam. Em torno de 30% são rejeitados por contra-indicação médica, apenas corações de indivíduos com menos de 55 anos são aceitos. Outros 30% não são doados por recusa das famílias dos possíveis doadores. De acordo com o cardiologista Ronaldo Santos, as doações não aumentam porque há pouca discussão do tema por parte das famílias e de instituições, como hospitais e escolas de medicina, e na dúvida que a população leiga tem em relação à morte encefálica. “Existem graus de perda de consciência, a morte encefálica é irreversível, mas as pessoas confundem com o coma, ficam inseguras e não doam”, conta Santos. CORAÇÃO DE PLÁSTICO O Incor faz de 20 a 25 transplantes por ano e atualmente tem 33 pessoas na fila de espera por um coração. Para essas pessoas pode haver uma alternativa, um coração artificial que chega
a custar até 120 mil euros. Trata-se de uma cavidade de poliuretano, que é implantada no peito do paciente, no lugar do coração, e que recebe o sangue bombeado por uma máquina, uma versão moderna da circulação extra-corpórea desenvolvida pelo inglês John Gibbon, nos anos 1950. O coração artificial não substitui o órgão, mas pode salvar o paciente, como conta Santos, “é uma bomba, que tira o paciente daquele risco iminente de morte. Ele está com o coração em frangalhos, não bate praticamente nada, então enquanto não chega o transplante você tem que oferecer condições de o corpo não se deteriorar”. O coração artificial ainda tem a vantagem de poder ser estocado e usado quando necessário. Em caráter de pesquisa, com apoio da Fundação Zerbini, nove pacientes tiveram o coração artificial transplantados no peito, no Incor. Ao custo de 150 mil reais cada. Mas Santos alerta, “para atendimento à população alguém vai ter que pagar a conta e é um dinheiro que nós não temos”. De cada dez pacientes portadores de insuficiência cardíaca, mal que demanda a troca de coração, quatro morrem após um ano da doença diagnosticada. “Eles estariam mortos, em dois anos”, diz Santos, “mas se o transplante chegar a tempo nós oferecemos a ele mais dez anos de vida, talvez até, 15, 20, 30 anos.” Uma eternidade para quem estava a beira da morte.
Enquanto esperam um doador, os pacientes podem receber um coração artificial de poliuretano. Após implantado em quatro horas de cirurgia, o equipamento funciona com o auxílio de uma bomba pneumática externa movida a bateria
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TECNOLOGIA REPORTAGEM GABRIELLA DE LUCCA (3º ano de Jornalismo), MAGIU PINHEIRO, MARIANE RODRIGUES e THAIS LIMA (1o ano de Jornalismo) IMAGENS REPRODUÇÃO
VIDA MODERNA Já pensou viver sem celular, e-mail, caixa eletrônico e iPod? Veja como as pessoas se viravam sem tudo isso quarenta anos atrás
TV à VALVuLA
Televisão a cores Alceu Massini, de 49 anos, coleciona televisões antigas. Dentre seus mais de mil aparelhos está o da marca Colorado, modelo Iguaçu de 23 polegadas, preto-e-branco, grande sucesso na época. A televisão colorida só se popularizou no Brasil na metade dos anos 1970, mas havia um jeito de simular a TV em cores. “Já tinha camelô em 1968 e eles vendiam uma tela de celulóide que se prendia na frente do tubo. Você via colorido, uma coisa psicodélica, típica da época”, lembra o colecionador.
SEM QuEIMAR O FILME
Máquina fotográfica Nos anos 1960, a novidade eram as máquinas fotográficas de fácil carregamento dos filmes, como a Instamatic, da Kodak, lançada em 1963. Severo Pereira Filho, 53 anos, expositor da Feira de Antiguidades da Paulista lembra, “os equipamentos eletrônicos com respostas rápidas foram a marca da época”. A Instamatic, fabricada no Brasil a partir de 1967, usava filme colorido, tinha foco fixo e flash embutido. Isso significa que era de fácil manuseio, não precisava ser um profissional para clicar e obter uma boa foto. Por isso, a Kodak vendeu, entre 1963 e 1970, mais de 50 milhões dessas câmeras no mundo todo.
VIRE O DISCO
Vitrola A vitrola era sonho de consumo de muitos adolescentes no final dos anos 1960. Era bem maior que um Ipod, o aparelhinho tem, em média, 6,35 cm e cabe no bolso, já um disco de vinil tem 30 cm de diâmetro. Mas como tamanho não é documento, o Ipod sai ganhando. Não tem os chiados da vitrola, nem precisa virar o disco. Estefano Carrieri, 52 anos, que atacava de DJ em sua Pick Up, versão mais descolada do toca-discos, nas festas de seus amigos, nos anos 1970, diz que os aparelhos de som, hoje, são melhores, “não só pela qualidade, mas pela praticidade que temos atualmente. As vitrolas davam muito trabalho.” Se ter que carregar o Ipod pode parecer falta de comodidade, é porque você não conheceu a vitrola de perto. Os discos tinham encartes mais elaborados, mas era preciso limpá-los sempre, se juntasse pó o som era prejudicado e a agulha tinha que ser trocada. Além disso, não seria tão fácil ouvir sua vitrola no metrô.
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ME Dá uM DINhEIRO Aí...
Caixa-eletrônico Em 1968, quem precisasse sacar dinheiro ou pagar uma conta tinha mesmo que enfrentar a fila. Apesar disso, o movimento nos bancos não era tão intenso como hoje e os clientes – que passavam por lá pelo menos uma vez por semana – eram conhecidos de caixas e gerentes. “O relacionamento era mais humano, mais pessoal”, afirma o empresário Marcello Pillar, 72 anos. “Eles buscavam agradar o cliente para conquistá-lo, havia uma concorrência entre os bancos. Serviam até café”. Marcelo relembra que na época o estacionamento das agências era gratuito e as pessoas costumavam utilizar cheque ao invés de dinheiro, para não perder tempo nas filas.
CAIu A FIChA
Telefone Há 40 anos, São Paulo criava 200 novas linhas e mudava os prefixos de telefone de dois para três dígitos. Ter uma linha telefônica era caro e havia fila de espera. “Logo quando saiu o plano de instalação, eu comecei a pagar”, afirma o aposentado Francisco da Silva, de 82 anos. Para atender a população, em 1971, foram instalados telefones públicos nas calçadas. A novidade tinha uma cobertura de fibra de vidro cor de laranja que ganhou o apelido de orelhão. Antes os aparelhos públicos ficavam em lojas, bares e padarias, que só abriam em horário comercial.
bATER à MáQuINA
Máquina de escrever O computador se tornou popular só no fim dos anos 1980. Antes disso, para fazer documentos era preciso usar a máquina de escrever. O aposentado Luiz Silva, 75 anos, era escriturário em São Paulo e conta que na época já existia a máquina elétrica, que possuía teclas mais sensíveis ao toque e por isso as mãos do datilógrafo precisavam ficar suspensas. “Se o dedo encostasse em alguma letra já saia no papel”, lembra, “dependendo do documento o trabalho tinha de ser feito de novo, mas na maioria dos casos era possível apagar. Usava uma tinta branca de correção, tinha que tomar cuidado para não sujar tudo e estragar o papel.”
CORREIO ELEGANTE
Correio Mandar um e-mail, passar um fax, ouvir uma pessoa do outro lado do mundo pelo celular? Em 1968, nada disso era possível. O jeito era escrever uma carta, selar e enviar pelo correio. Podia se esperar dias para a sua mensagem chegar ao destino, mas era o modo mais seguro e garantido de matar as saudades. “O fluxo de cartas não diminuiu”, conta o Antônio Esteves, funcionário dos Correios há 37 anos, “antes, as cartas eram pessoais, agora há mais correspondência comercial, cobrança de contas”. Mas, nas datas festivas, as pessoas ainda usam os Correios, contrariando quem pensa que o teclado aposentou o papel e a caneta. “O movimento no dia das mães, Natal, dia dos namorados aumenta quase 100%. Acho que é um jeito mais afetivo e pessoal de se lembrar da pessoa querida”, comenta Esteves.
SupER O Quê?
Super-8 Em 1965, a Kodak lançou o Super-8, um sistema de equipamentos cinematográficos fácil de ser usado por amadores. A câmera registrava imagens numa película de 8 milímetros, que depois era revelada e exibida num projetor caseiro. O Super-8 teve seu auge nos anos 1970, quando Adriana Passarelli, 44 anos, estudante na época, lembra que usava o aparelho para “fazer trabalhos de escola, mas principalmente para documentar as viagens.” Nos anos 1980, o aparelho perdeu espaço para o vídeo, que dispensava a revelação e o projetor. O Super-8, que não filmava à noite nem em lugares com pouca luz e era impossível de se rebobinar para gravar de novo, virou tecnologia do passado. Mas ainda deixa saudade, “sua graça era o evento que acontecia cada vez que íamos assistir a algum filme, caseiro ou não. Chamávamos os vizinhos e quem mais pudesse vir. O Super-8 possuía um certo romantismo, aproximava as pessoas”, conta Adriana. ESQUINAS 1º SEMESTRE 2008
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ENTREVISTA
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Ou várias, amassadas, na “maçaroca” de Antonio Henrique Amaral. Em entrevista, o crítico Olívio Tavares de Araújo conta como os artistas reagiram aos militares REPORTAGEM ANA CRISTINA KLEINDIENST, CAMILA TAIRA e RAFAEL DE QUEIROZ (3° ano de Jornalismo) IMAGENS RAFAEL DE QUEIROZ (3° ano de Jornalismo) e REPRODUÇÃO
No conturbado ano de 1968, os artistas levaram a contestação política para dentro dos ateliês. O endurecimento da ditadura e o sucesso da Pop Art mundo afora influenciaram as artes plásticas no Brasil. Os quadros abstratos e concretistas, que eram a tendência dos salões das Bienais até então, deram lugar às telas figurativistas, ou seja, os artistas passaram a pintar figuras para protestar contra o regime militar. Em seu apartamento no tradicional bairro paulistano de Higienópolis, Olívio Tavares de Araújo, um dos mais respeitados críticos de arte do país, conversou com ESQUINAS sobre o universo artístico de 1968. Olívio é um crítico que não gosta muito do termo, “eu escrevo sobre arte por prazer, não pra botar defeitos em alguém”, ele explica, “a crítica deve ajudar o público a entender as artes”. Assim, Olívio nos ajuda a compreender o que estava acontecendo nesse universo quarenta anos atrás.
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ESquINAS quando se fala do ano de 1968, do que você se lembra? OLÍVIO TAVARES DE ARAÚJO A vivência que eu me lembro do momento, evidentemente, é a Revolução de Paris, o chamado Maio de 68, que era uma revolta que estava no jornal. E a outra coisa que eu lembro de 1968, que também entrou muito na minha geração e na minha pessoa, foi o famoso AI-5 (Ato Institucional nº5). Olha que coincidência, eu nunca vou me esquecer do dia 13 de dezembro, porque foi o dia em que eu viajei para Belo Horizonte para fazer o meu primeiro e único filme de ficção, Puro Fantasma. Além de ser o dia em que o governo militar acabou com o pouco que restava de um Estado de Direito no Brasil. Deste dia eu me lembro muito bem. Eu estava dentro da Câmara Federal de Brasília para tratar de assuntos do filme e ouvi, do lado de fora do plenário, a hora em que começaram a aplaudir e a cantar o Hino Nacional. Então, eu ouvi os aplausos e as cantorias e fiquei sabendo que não aprovaram a licença
“É impossível numa tela abstrata o artista fazer uma obra política” para processar o Márcio Moreira Alves [deputado federal que, às vésperas do dia sete de setembro de 1968, fez um discurso no qual pedia às jovens brasileiras para não namorarem militares]. Saí da Câmara, passei onde eu morava, troquei de roupa e fui para o aeroporto. Quando cheguei, às seis horas da tarde, pela primeira vez na minha vida pediram a identidade na hora de embarcar. Lembro-me muito bem de que eu falei assim: ‘Escuta, onde estamos? Esse é um país democrático. Sou um cidadão livre e pago meus impostos em dia’. Por sorte, [os militares] não estavam muito bravos ainda, senão eram capazes de me prender. Examinaram meus documentos e lá fui eu para Belo Horizonte. É um dia que eu nunca vou esquecer, 13 de dezembro de 1968 [nessa data entrou em vigor o AI-5, que fechou o Congresso em resposta ao discurso do deputado Márcio Moreira Alves].
ESquINAS O que estava acontecendo nas artes plásticas nessa época? OLÍVIO Para explicar o que estava acontecendo, precisamos voltar um pouco no tempo. Antes de 1968, os
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salões e exposições premiavam as obras abstratas e concretistas. Tanto abstração quanto o concretismo frutificaram basicamente em São Paulo, sobretudo o concretismo. Isso porque, apesar de também existir no Rio, o concretismo ortodoxo é um fenômeno muito paulista. Podemos analisar e dizer que realmente tem mesmo mais a ver com São Paulo do que com o Rio. Porque o Rio é uma cidade mais sensual, circular, de sol e de praia. São Paulo é uma cidade cinza, feita de concreto, rua, engarrafamento e poeira.
ESquINAS quem fazia esse concretismo paulista? OLÍVIO O grande teórico era Waldemar Cordeiro, que talvez só tenha ficado conhecido na época. Agora, Luiz Sacilotto é outro concretista com uma importância de qualidade. Ele era um artista de Santo André, que tinha trabalhado com esquadrias, vindo disso a própria ligação com a geometria e tal. Um outro é Ermelindo Fiaminghi, que começou o concretismo trabalhando em publicidade. Tanto ele como o Sacilotto pegam algumas regras da época, tal como o mínimo de interferência subjetiva. A arte concreta pretende ser uma coisa objetiva, uma coisa fora de você. Desse modo, como cor é emoção, o quadro concreto ideal seria preto e branco, um xadrez preto e branco é certamente menos emocional que um xadrez preto, branco, laranja, amarelo e azul. E outra coisa que é regra, não pode colocar o pincel deixando rastros, porque o rastro da mão do pintor também tem subjetividade. Outro ideal para o concretismo é a textura zero. Resumindo, o quadro concreto era feito numa superfície tipo fórmica, na época chamava-se masonite, um quadrado de um por um, usando tinta automotiva com pistola e em preto e branco.
ESquINAS Você parece não simpatizar muito com o concretismo. OLÍVIO Eu tenho até uma certa antipatia por ele, sim, porque é uma camisa de força. Eu não tenho nenhum quadro concretista, porque geralmente não me toca muito. É uma coisa que eu acho relativamente sem alma, não me diz muito. Mas, logo depois ecoando o que existia lá fora [do país], vem uma abstração que não tem forma e que tem mancha. Action paiting é isso levado aos extremos. Jackson Pollock é o artista que criou essa action painting. São vários nomes para essa pintura: abstrata informal, abstrata lírica, expressionismo lírico ou tachismo [tachismo vem do francês taxe, que significa mancha]. O Pollock era um tipo neurótico, alcoólatra. Ele punha no chão a tela que ele ia pintar e ia jogando as cores. Espirrava tinta, cortava o pé e o sangue do pé
se misturava com a tinta e ficava na tela. É um processo bem neurótico de criar e esse foi o apogeu desse tipo de pintura. Essa nova abstração triunfa no Brasil até 1965.
ESquINAS E o que vem depois? OLÍVIO Em 1966, vem o pessoal que está retomando a
estopim que faltava para formatar uma arte absolutamente figurativa e engajada.
ESquINAS quais os motivos para essa arte se manifestar no Brasil? OLÍVIO Esse ressurgimento tem duas origens: a influên-
nova figuração. Eles reagem a essa abstração, já com um forte componente de politização, de ironia. É quase que impossível numa tela abstrata o artista fazer arte politizada. Como exemplo dessa reação, a gente tem o [Rubens] Gerchman, que faz uma crônica baseada um pouco no espírito da Pop Art. Apesar de não parecer visualmente, porque não tem aquele colorido e aquela alegria, ele busca da Pop Art essa coisa de pegar o cotidiano da vida, com um sentido mais social.
cia da arte internacional e também o golpe [militar de 1964]. Os jovens artistas brasileiros começam a fazer arte figurativa para contestar esse regime daqui, mas também como conseqüência de Maio de 68, na França, e do AI-5, mais pro fim do ano.
ESquINAS A Pop Art já estava no Brasil? OLÍVIO Nós somos caudatários, estamos no rabo da coi-
ESquINAS Como eram as obras desses artistas? OLÍVIO Gerchman e Antonio Dias gostavam de pintar
sa, na cauda. Todo movimento de vanguarda acontece muito tempo depois do que aconteceu lá fora [do país]. Em 1966, o Brasil ainda estava atrasado.
coisas viscerais. Vergara não seguia isso. Roberto Magalhães também não, ele era um gravador expressionista de natureza fantástica. Fazia demônios e retratava conflitos, mas não pintava ninguém torturado. Já o Gerchman fazia uma crônica do subúrbio. Suas obras têm uma linguagem deliberadamente de mau gosto. Ele tem uns quadros chamados Lou, que é uma assassina de namorados. Essas obras até que são bonitas, mas ele não podia retratar um universo tão machucado e dolorido com uma pintura bonitinha. O Antonio Dias neste momento, 1965 e 1966, começa a fazer uma obra visceral. Ele mostra como nós estamos distantes do abstrato lírico, que é bonito e agradável de ver. A obra do Antonio Dias nesses anos é muito incômoda. Com 21 anos, em 1965, ele ganhou a Bienal dos Jovens de Paris. Enfim, Antonio Dias foi o grande pintor dessa geração.
ESquINAS Então, de que ano é a Pop Art? OLÍVIO Em 1962, nos EUA e na Inglaterra despontava a Pop Art, que é absolutamente figurativa. Em 1962, Roy Lichtenstein e James Rosenquist expunham em Nova York. Na verdade, na Inglaterra, já estava ocorrendo o movimento. Mas nós sofremos a influência da Pop Art americana. Em 1963, a VII Bienal foi a primeira que eu vi. Mas os premiados ainda foram artistas líricos abstratos. Aqui no Brasil, a chegada da Pop Art só acontece em 1967, o ano da IX Bienal de São Paulo. Foi quando eu descobri com maravilhamento a Pop Art. A gente estava acostumado a ver aquela abstração, e, de repente, nessa Bienal tinha um grupo de obras chamado Environment USA, que quer dizer, o ambiente americano. Na verdade, era a Pop Art. Foi a primeira vez que ela chegou aqui. Tinha duas séries do Andy Warhol. Uma se chamava Os desastres. Eram grandes fotos de um metro e oitenta centímetros de altura, de acidentes de trânsito nas estradas americanas. Ele trabalhava em alto contraste. A gente nunca tinha visto aquilo, era uma forma de fazer uma arte engajada referindo-se ao universo de lá. Era uma coisa comovente. Também tinha o Roy Lichtenstein, que é aquele que faz a figura de quadrinhos super ampliadas. Tinha o Claes Oldenburg, que vai depois fazer uma coisa que eu acho mais bonita que são aqueles sanduíches de plástico enormes. Ele faz um hambúrguer de um metro e vinte por um metro e vinte, numa escultura mole. Então, foi essa Bienal que sacramentou para a minha geração essa volta à figura. E foi o último
ESquINAS quem eram os principais expoentes? OLÍVIO Há quatro artistas emblemáticos dessa volta à figuração: Antônio Dias, Carlos Vergara, Roberto Magalhães e o Rubens Gerchman.
Da esquerda para a direita: Idéia Visível (1956) de Waldemar Cordeiro, Lou, a Gioconda do Subúrbio (1975) de Rubens Gerchman, Parangolé (1966) de Hélio Otitica, Revolta (1968) de Cláudio Tozzi e, de Lygia Clark, Bichos (1965) com dobradiças para o público manipular
ESquINAS Como que Hélio Oiticica e Lígia Clark se encaixam nesse contexto? OLÍVIO O Hélio Oiticica participava do grupo carioca dos neoconcretos. Nos anos 1950, a arte do Oiticica é basicamente geométrica. O experimentalismo que caracteriza posteriormente sua obra, aqueles objetos que não são artísticos no sentido habitual, como um pedaço de pano velho e o Parangolé para as pessoas vestirem, apareceram a partir da década de 1960. É nesse momento que ele deixa aquele tipo de obra concretista e vai para uma obra mais social. Ele pretende que os Parangolés sejam obras de participação coletiva, pois foram feitos para as pessoas vestirem em escolas de samba e sairem dançando, eram fantasias. Já a Lígia fazia uma experimentação de interação mais restrita. Ela, assim como Helio, fez parte do movimento neoconcreto. Anos depois, por
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Da esquerda para a direita: Bananas e Corda (1973) e A morte no sábado - tributo a Wladimir Herzog (1974) de Antonio Henrique Amaral; trouxas atiradas no rio Arrudas (1970) de Artur Alípio Barrio e 1945 II (1975) de João Câmara
volta da década de 1960, em 1964, eles migraram para estilos completamente diferentes do neoconcretismo. Ambos partiram para uma arte profundamente investigativa, experimental, criadora de projetos e idéias. Quando Hélio pega um copo e põe uma terra cor de rosa e um pedaço de jiló saindo, isso é uma negativa da idéia do artesanato artístico, uma negativa da idéia de que o artista precisa usar sua mão para dar forma ao objeto. A Lygia Clark, em 1965, fez uma das coisas mais lindas que eu acho na arte brasileira, ela faz Bichos. São unidades de alumínio, recortadas geometricamente, articuladas por dobradiças, que eram uma obra aberta, pois o público dá forma à obra. A arte está contida num limite, do próprio tamanho das peças, mas a formatação dos elementos constituintes é você quem dá. Isso é participação do espectador em grau máximo e é obra aberta. A Lygia, depois, entra para uma área em que ela é a própria inventora de suas teorias psicanalíticas. Ela faz obras que implicam numa interação entre corpos.
ESquINAS Como assim? OLÍVIO Por exemplo, ela faz uma obra em que duas roupas são interligadas por um tubo, é um umbigo ligando duas pessoas. Há obras em que ela propõe que as pessoas se abracem. A Lygia Clark vai mais longe que o Hélio Oiticica. Quando ela morou em Paris, inventou a Baba tropicalista. As pessoas jogavam, atiravam fios uma em cima das outras. Daí fica todo mundo babado de fios todos coloridos. Felizmente, não é baba líquida [risos]. No fim, ela abandonou as artes plásticas e foi fazer terapia, mas uma terapia ao modo dela.
ESquINAS A arte deles era engajada? OLÍVIO A Lygia Clark e o Hélio Oiticica não estavam envolvidos com o movimento de engajamento político que ocorria em 1968. Num sentido lato, você pode dizer que a arte do Hélio pretendia ser política, mas era um político muito mais individual que coletivo. Não tinha mensagem política, não dizia para você seguir um lado e não outro. Ao contrário de todos aqueles que fazem uma arte figurativamente engajada, como o Rubens Gerchman, Carlos Vergara e o Antonio Dias.
ESquINAS Houve censura às obras de arte no período da ditadura? OLÍVIO Mais do que censura. Em 1968, na data da inauguração da II Bienal de Arte da Bahia, em dezembro daquele ano, houve o fechamento da exposição e a destruição de obras. No caso das artes plásticas, isso é censura máxima. Os militares tinham acabado de baixar o AI-5 e já estavam trogloditas. Siron Franco, um artista conhe-
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cido, conta que duas obras dele foram destruídas pela repressão. Salvou uma, que paradoxalmente recebeu prêmio de aquisição. Então, é muito engraçado, a polícia vai lá e destrói duas, e a que se salva o júri dá prêmio. É até de propósito, porque o júri não estava a serviço do governo. Essa intervenção na Bienal da Bahia foi a primeira intervenção militar e armada contra as artes plásticas no Brasil. A censura, mesmo depois de 1964, nunca tinha sido uma censura armada. Quer dizer, a primeira coisa que eles censuravam era teatro e cinema, porque são artes mais sociais
ESquINAS E essa censura máxima repercutiu em algum protesto dos artistas? OLÍVIO Em 1968, junto com o AI-5 e o fechamento da Bienal da Bahia, [o artista] Antonio Henrique Amaral começou a fazer [quadros de] bananas. As primeiras bananas não faziam nenhuma alusão a questões políticas. Mas tinham obviamente ligação a questão nacional. Ele não era um artista hiperrealista, não queria mostrar o virtuosismo dele pintando bananas. Ele pintava bananas como metáfora das repúblicas da América Central e Costa Andina que eram chamadas de Repúblicas das Bananas, porque a fruta era o principal produto de exportação. Não era o povo que era banana.
ESquINAS Os ateliês foram se transformarando num espaço de contestação política? OLÍVIO Sim, mas não só os ateliês. Teve um momento de contestação política muito importante nas artes plásticas nesse período em que os militares foram mais truculentos. Em 1970, aconteceu em Belo Horizonte, uma manifestação de vanguarda, chamada Do Corpo à Terra. Participaram dela alguns artistas muito jovens, como o Cildo Meirelles e o Artur Alípio Barros. O Cildo estava com 22 anos na época. Ele armou uma estaca, chamada de Tiradentes: Totem-Monumento, nela amarrou vinte galinhas e ateou fogo diante de uma platéia assustada. Imagine o impacto que isso foi, o cheiro dos bichos chamuscados, o barulho das galinhas, era perturbador, insuportável. E o Barrio atirou no maior rio da cidade umas trouxas de roupa branca pintadas de vermelho por fora, contendo ossos e carne. O aspecto era de um corpo ensanguentado largado na margem do rio. Não eram telas pregadas na parede, eram ações, por isso só ficou o registro fotográfico. Mas mesmo assim foi uma reação ao Estado paramilitar, que torturava e matava.
ESquINAS O governo não censurava essas obras? O que o governo fazia era barrar as obras mais críticas de participarem de exposições internacionais. Por exem-
plo, certa vez, o Museu de Arte Moderna do Rio escolheu alguns artistas brasileiros para a Bienal de Paris, mas a censura decretou que suas obras eram indecentes e incapazes de representar o Brasil e proibiu a exibição dessas obras lá fora.
ESquINAS E como os estrangeiros viam isso? OLÍVIO Houve um grande esvaziamento na Bienal daqui. Isso repercutiu muito rápido na mídia e, em 1969, Pierre Restany [crítico de arte francês nos anos 1960], um bon vivant que adorava vir ao Brasil, coordenou um boicote internacional a IX Bienal de São Paulo. Em junho desse mesmo ano, foi feita uma reunião, no Museu de Arte de Paris, com 321 intelectuais de grande importância mundial e eles assinaram um manifesto contra a Bienal. Foi ruim para o Brasil, vários artistas aderiram ao boicote e deixaram de expor suas obras aqui.
ESquINAS E qual foi a reação no Brasil? OLÍVIO Foi justamente nessa época que começou a florescer uma produção mais engajada no país. Ela já vinha sendo preparada desde a década de 1960, com a Pop Art, e por exposições como a coletiva Opinião 65, que reuniu artistas de várias áreas e vertentes. Mas o boom mesmo foi em 1972, quando o Antonio Henrique Amaral começa a pintar bananas penduradas, bananas espetadas e até esmagadas. Isso era uma metáfora clara da repressão de um Estado ditatorial. Quando morreu Wladimir Herzog [jornalista morto pela ditadura], Antonio Henrique Amaral fez uma homenagem a ele, pintando uma banana como uma maçaroca. Em 1974, uma outra obra política apareceu no Brasil. Um pintor pernambucano, chamado João Câmara. Ele pintou dez enormes quadros entitulados Cenas da vida cotidiana. Era uma metáfora da primeira ditadura do Brasil, a de Getúlio Vargas. O inimigo daquele governo era o mesmo do golpe de 1964: o comunismo. João Câmara faz uma obra em que não havia alusões explícitas à tortura, à sanguinolência, mas você olha a tela, vê Getúlio pintado ali e sente que a obra é inquietante. Isso é genial! No entanto, ele consegue ser inquietante sem mostrar sangue.
ESquINAS Você, como crítico de arte, chegou a ser censurado? OLÍVIO Como crítico, não. Mas em 1976, eu fui escolhido pelo Itamaraty para ser o comissário brasileiro para a Bienal de Veneza. Então, eu fui incumbido de escolher as obras que iriam representar o Brasil na Itália. O tema da Bienal de Veneza, nesse ano, era Arte e Ambiente. A minha primeira idéia foi mandar uma exposição relacionada ao índio brasileiro. Porque o índio tem a natureza
como arte. Eles não fazem quadros para botar na parede. Só que o Itamaraty não gostou da minha idéia. Não deixaram. Oito anos depois do AI-5 ainda havia muito medo no ar. Porque uma das acusações feitas no exterior era de que o regime militar matava índios. Houve censura à minha idéia.
ESquINAS A vida do artista hoje é mais fácil? OLÍVIO [O artista] Alfredo Volpi fez sua primeira [exposição] individual aos 46 anos. E quando ele fez não havia galerias de arte em São Paulo, teve de fazer numa loja alugada no centro da cidade, em 1942. Era mais difícil, porque os artistas não dispunham dos espaços que existem hoje. E também não contavam com o empenho da instituição pública. Não havia nem os museus. O Masp [Museu de Arte Moderna de São Paulo] foi criado em 1949. Um ano depois criaram o do Rio. Esse boom foi resultado do fim da Segunda Guerra. A vitória dos Esta-
“Oito anos depois do AI-5 ainda havia muito medo no ar” dos Unidos causou uma certa inquietação e euforia. Daí, criaram-se os museus de arte moderna para promover a circulação dessa arte. Também, ao longo da década de 1970, o espaço para a arte se ampliou incrivelmente. Nessa época houve o Milagre Econômico [leia matéria na página 20]. Havia muito dinheiro entrando no Brasil. Empresários que estavam ganhando muito nesse período começaram a aplicar dinheiro em arte, porque sabiam que era negócio. Nenhuma pessoa, atualmente, compra uma obra de arte de mais de 20 mil dólares sem pensar no lucro que terá depois, na valorização que poderá ter daqui uns anos. Então, hoje, se o jovem artista, que nasceu numa família intelectualizada, não conseguir inscrever sua obra numa Bienal fica triste. Porque aos 25 anos, já tem muitos artistas que estão batalhando por sua exposição individual. Dessa maneira, é mais fácil expor hoje em dia. Além disso, os artistas plásticos podem ficar ricos. Antes de 1960, no Brasil, só Portinari conseguiu ficar rico. Hoje, artistas como Ianelli ganham dinheiro vendendo quadro. Então, eu acho que o espaço aumentou muito, tanto econômico quanto geograficamente falando. O artista plástico hoje é muito visível.
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BELEZA REPORTAGEM SARAH MUND (3º ano de Jornalismo) IMAGENS REPRODUÇÃO
BELÍSSIMA A tecnologia melhorou - e muito! alguns itens de beleza e higiene
CABELOS Xampu Com três diferentes ingredientes: ovo para os cabelos normais, limão para os oleosos e lanolina para os secos, o xampu era novidade em 1968 e, assim como o sabão da época, agredia o cabelo. Hoje, os xampus são levemente ácidos e divididos para cada tipo de cabelo. Calvície Na época, a única alternativa para os carecas era a peruca de cabelos naturais ou artificiais. Segundo o Dr. Luis Torezan, melhor opção são os implantes e transplantes de cabelo que dão um aspecto mais natural. Este tipo de tratamento só surgiu em 1989. Atualmente, uma alternativa são os produtos que previnem a calvície, como xampus e cremes.
CUIDADOS COM A PELE
Tinturas Os componentes químicos das antigas tinturas para cabelo eram tão fortes que irritavam o couro cabeludo. Quarenta anos depois, além de evitar esses problemas, as indústrias conseguiram aliar componentes hidratantes às fórmulas das tinturas para que o cabelo não sofresse esta agressão.
Maquiagem De acordo com a Profª. Dra. Ediléia Bagatin do Departamento de Dermatologia da Unifesp, os produtos para maquiagem mudaram muito: “são menos gordurosos, contém menos perfume e corantes e os conservantes utilizados tem menor risco de irritação ou alergia.” Protetor Solar A pasta d’água já era utilizada para proteger a pele do sol, mas “tinha uma eficácia muito baixa e provocava alergia”, disse o Dr. Luis Torezan, dermatologista membro da Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD). Hoje os protetores possuem diferentes índices de proteção e não saem com facilidade na água. Cirurgia Plástica Mulheres famosas sempre ditaram as tendências da cirurgia plástica. Nos anos 1960, por exemplo, as mulheres queriam ter a boca igual à de Brigitte Bardot. Mas nunca se operou tanto como hoje. Segundo dados da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, em 2000 cerca de 350 mil pessoas realizaram cirurgias estéticas. Antiidade Em 1968, não existiam cosméticos que prometessem suavizar rugas, como os de hoje, que têm ativos que prometem acabar com as marcas na pele. “O que havia eram hidratantes que, de tão espessos e gordurosos, provocavam acne”, conta o Dr. Luis Torezan.
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hIgIEnE PESSOAL Sabonetes Segundo a Profª. Dra. Ediléia Bagatin do Departamento de Dermatologia da Unifesp, diferente dos antigos sabonetes, os atuais “limpam sem agredir e não removem totalmente a gordura da superfície da pele que é necessária para mantê-la hidratada”, pois contém ativos como a uréia e o lactato de amônio. Absorventes íntimos Folhas de papiro, pedaço de madeira com linho, esponjas marinhas e lã já serviram como absorventes íntimos femininos. O que antes era feito artesanalmente, sem cuidados com higiene, hoje é fabricado por métodos industriais modernos, controlados pela Agência Nacional de Saúde (ANS) e pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).
MODA REPORTAGEM ANNA CAROLINA OLIVEIRA E LYGIA HAYDÉE (3º ano de Jornalismo) IMAGENS REPRODUÇÃO
QUARENTONAS Conheça as peças que eram usadas em 1968 e voltaram para as ruas
ACESSÓRIOS
Os acessórios exagerados ditavam moda quatro décadas atrás. Óculos, brincos, relógios, colares e pulseiras eram a marca da época. “Usava-se um brinco só que ia até o ombro, relógios enormes, pulseiras de plástico, de vinil, coloridas, luminosas”, relembra Raquel Valente, coordenadora do curso de Moda da Faculdade Santa Marcelina. Os óculos e os relógios gigantes voltaram para os dias atuais.
SAPATOS
Nos pés, a tendência da época eram os sapatos de verniz com saltos grossos ou então as sapatilhas baixas, que surgiram em 1966. “As sapatilhas com placas de metal estavam presentes”, conta Valente. Hoje, estes calçados voltaram para a sapateira das mulheres e compõem os mais variados visuais nas ruas.
MINISSAIA
Em 1968, a peça, criada pela estilista inglesa Mary Quant e pelo francês André Courrèges, era usada com um casaco tipo redingote e meias coloridas para não chocar demais. Com o decorrer do tempo ganhou novas versões, como a jeans ou com pregas, e continua fazendo sucesso, principalmente entre os mais jovens.
MODA MASCULINA
“Eu tenho um cunhado com quase 70 anos que ainda usa barba, porque é um símbolo de rebeldia”. Valente explica que a barba tinha mais que um valor estético, ela também carregava um significado de protesto. Nos dias de hoje, a barba e o cabelo comprido são apenas uma questão estética. “O que é uma barba? Hoje você olha para um homem com barba ou sem barba e tanto faz, ou você gosta ou você não gosta.” A moda masculina também foi influenciada pelo psicodelismo. Cores fortes e estampas eram usadas nas camisas pólos, camisetas e calças. O xadrez é uma das marcas da época que voltou para os guarda-roupas.
CABELOS E MAQUIAGEM
Os olhos marcados por delineador em cima da pálpebra e cílios postiços longos e cheios, como os da modelo Twiggy (na foto acima), voltaram mais discretos. Os cabelos lisos continuam em alta, mas o ferro de passar roupa, antes utilizado para alisar os fios, já não é usado. Os métodos de hoje prejudicam menos o cabelo e o couro cabeludo. ESQUINAS 1º SEMESTRE 2008
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IMPRENSA
VEJA,
como tudo
começou Há 40 anos, chegava às bancas a revista pioneira das semanais brasileiras, com o desafio de conquistar um novo leitor
REPORTAGEM Eduardo duartE ZanElato e JaCquElinE Manfrin (3° ano de Jornalismo) IMAGENS rEprodução
A primeira edição da revista Veja chegou às bancas no dia 11 de setembro de 1968. A Editora Abril lançava o novo título no mercado editorial com uma proposta audaciosa: firmar-se como a primeira revista semanal brasileira. Criada em 1950 por Victor Civita, a Editora passava por um bom momento, editando publicações de histórias em quadrinhos, revistas de fotonovelas, femininas e de moda – lucrando com essas publicações. Faltava, entretanto, um título capaz de firmar o grupo politicamente, tornando-se referência no cenário nacional, o que se materializaria em Veja. A sede de conquista da primeira semanal de informação do país surgiu quando Roberto Civita, filho de Victor, trabalhou como trainee na Time, em Nova York, por mais de um ano. Roberto recebeu um convite para trabalhar no Japão e, ao invés de aceitar a proposta da redação norte-americana e ir para Tóquio, Civita seguiu os
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conselhos do seu pai, voltou para o Brasil e, juntos, foram responsáveis pela criação da revista Veja, seguindo os moldes de editoras norte-americanas. Um dos maiores sucessos da Abril foi a revista Realidade, lançada em 1965. Seus bons resultados sustentaram o lançamento da Veja, segundo Roberto Civita, presidente da Editora Abril, em entrevista à revista Plug, em fevereiro deste ano. “A gente apanhou, não vendia nada, perdia dinheiro a rodo, quase quebrou a Abril na época”, lembra. Segundo Civita, foram quase seis anos de crise e prejuízo nas publicações da Veja. “Não é uma revista, ou pelo menos não era na época. Não atraia número suficiente de leitores por semana para funcionar só na banca. Então, tivemos que inventar o aspecto de assinatura”, conta. ADEQUAÇÃO AO CENÁRIO Por outro lado, a Abril oferecia bons salários e não atrasava os pagamentos. A idéia era perigo-
sa e, para a primeira equipe de jornalistas da revista, até mesmo inapropriada para a situação política que o país vivia. A ditadura militar, desde 1964, dava sinais de que o regime viria a endurecer cada vez mais e, com isso, a censura à imprensa também ficaria mais intensa. Para Mino Carta, diretor de redação da revista Veja entre 1968 e 1976, os Civita não faziam idéia do contexto político brasileiro no lançamento da revista. Numa análise, 40 anos após o primeiro exemplar, Mino diz ser incongruente lançar uma revista com um posicionamento crítico em relação à política e economia em pleno governo militar. “A Editora Abril lançou-se numa empreitada sem perceber as conseqüências. Porque no meu entendimento, do ponto de vista político, a Abril estava muito atrasada. Tinha má compreensão do país, tinha má compreensão da situação política”. Carta justifica sua anuência ao projeto de forma direta: “E eu [permaneci]
A primeira redação de veja
1- George duque Estrada 2 - adilson pereira 3 - léo Gilson ribeiro 4 - Eliane Machado 5 - anthony de Christo 6 - nello p. Gandara 7 - Guiomar ferreira 8 - luis Gutemberg 9 - Sérgio oyama 10 - raimundo pereira 11 - José ramos tinhorão 12 - raul Cruz lima 13 - Ênio Squeff 14 - Geraldo Mayrink 15 - antônio C. augusto 16 - tariq de Souza 17 - Glauco Carvalho 18 - Celso Ming
dias lopes era repórter, Sérgio telles era correspondente em fortaleza e Cristiano Mascaro era fotógrafo, todos da revista Veja. os três vasculharam suas lembranças para ajudar ESQUINAS a identificar as pessoas da foto. “poxa, por que vocês tem que nos lembrar que isso já faz quarenta anos?”, indagou Mascaro. o editor Mino Carta teve a idéia de levar parte da redação da primeira revista semanal brasileira até a gráfica da Editora abril, para uma foto que seria publicada no editorial do primeiro número. nem todos puderam ir, dias lopes é o único que aparece na foto.
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37 - Silvio Sena 38 - thereza linhares 39 - leia ancona lopez 40 - Geisa Mello 41 - laerth pedrosa 42 - ulysses alves de Souza 43 - neide Martins 44 - José Maria Mayrink 45 - Hélio nogueira da Gama 46 - Eda Maria romio 47 - Geraldo Guimarães 48 - Gabriel Manzano 49 - roberto Muggiati 50 - alexandre daunt Coelho 51 - Beatriz Horta 52 - Mino Carta 53 - isa Basbaum 54 - Cecilia finger
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19 - Guilherme Veloso 20 - Carlos Souilé do amaral 21 - dias lopes 22 - tão Gomes pinto 23 - dirceu Brisola 24 - roberto pereira 25 - Bettina Scheier 26 - ademar assaoka 27 - talvani Guedes 28 - Henrique Caban 29 - roberto Muller 30 - Maria da penha délia 31 - Caio fernandes abreu 32 - Hayle Gadelha 33 - Cláudio lachini 34 - luis trimano 35 - américo ietto filho 36 - Hélio de almeida
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Veja surgiu como um empreendimento editorial da Editora Abril. Deu prejuízo no começo, mas, devido a insistência da Editora, tornou-se um dos títulos mais lidos do país, com uma tiragem atual de 1 milhão de exemplares. Abaixo, as primeiras capas da revista
militar muito severa”.
quieto, porque quando me mudei para a Abril exigia uma autonomia muito grande. Eu discutiria com os donos da casa a linha política, discutiria a linha editorial e, uma vez feito isso, acabou: eu seria o dono do pedaço. E isso me dava grande autonomia, grande liberdade de vôo”. Civita apresenta
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opinião diferente: “Quando lançamos não sabíamos que vinha o AI-5. Não sabíamos. O que sabíamos era dos primeiros quatro [anos], de 1964 a 1968, em que o Brasil teve um período glorioso. Porque embora fosse uma ditadura militar, foi um momento em que (pausa). Primeiro não era uma ditadura
COMO SE FAZ UMA SEMANAL Para criar e executar o projeto, Carta saiu do Jornal da Tarde e passou uma temporada fazendo estágios em revistas semanais de informação fora do país. As experiências foram nas americanas Time e Newsweek. A proposta do novo título era levar ao leitor uma revista enxuta, com um texto agradável capaz de conquistá-lo. De volta ao Brasil, o editorchefe escalou um time com quem trabalhara no JT. Segundo Gabriel Manzano Filho, que passou de copidesque do jornal a redator de Veja, Mino convidou, num primeiro momento, a equipe que formaria a cúpula da revista, como editores e sub-editores. Nessa onda, chegaram a Veja nomes como Roberto Guzzo, Tão Gomes Pinto, Roberto Muggiati e Sérgio Pompeu. Com eles, Carta treinou a equipe fazendo 13 “números-zero” da revista, ou seja, edições experimentais que nunca chegaram às bancas e serviram para testar o modelo que seria usado na publicação. “Os números-zero foram uma boa escola”, afirma Cristiano Mascaro, fotógrafo que chegou à redação em abril daquele ano. Como toda a equipe inicial vinha de jornais diários, existia uma grande dificuldade para aprender a escrever para uma revista semanal. Para que a publicação não perdesse em qualidade logo de cara, Mino Carta explica que as edições experimentais serviram para identificar os principais erros. “Nem o público estava acostumado com este tipo de publicação e nem nós, jornalistas, sabíamos ao certo como era produzir uma revista semanal de informação”, conta. A partir disso, foram chegando outros nomes, não só do Jornal da Tarde, mas também a convite da equipe de editores subordinados a Carta. Data desse período a chegada de Gabriel Manzano, do fotógrafo Cristiano Mascaro e
“Nem o público, nem nós, jornalistas, sabíamos ao certo como era uma revista semanal de informação”, diz Mino Carta do jornalista Dias Lopes. Nesse momento, a redação começava a se completar e chegava à marca de 83 profissionais apenas em São Paulo. Com colaboradores, bureau e correspondentes, a equipe total envolvida na produção de Veja era de 157 pessoas. SÓ ALEGRIA Gabriel Manzano chegou à revista duas ou três semanas antes da estréia, a convite de Tão Gomes Pinto. “Com 22 anos vemos o galo cantar e já queremos ir para a festa”, conta, lembrando a empolgação da época. Também data dessa época – mais precisamente abril de 1968 - o ingresso de Mascaro, que chegou à revista após indicação de Claudia Andujar, na época fotógrafa da revista Realidade. Dias Lopes teve uma trajetória extensa em Veja. Nos 22 anos ininterruptos que passou na redação da semanal atuou tanto como jornalistapesquisador (que basicamente, segundo ele, “comprava livros” nessa função), quanto como editor, passando por especialista em livros e repórter de religião. Apesar da correria de uma redação de revista semanal não era difícil encontrar histórias curiosas. Mascaro ressalta que os fotógrafos lidavam diretamente com a censura e a força do regime militar e que nas coberturas de protestos e passeatas a equipe de fotografia da revista tinha de lidar com a apreensão de filmes ou, em momentos mais tensos, a apreensão da máquina e a retirada truculenta dos filmes por policiais. Mas, segundo ele, isso apenas aumentava o estímulo: “Saíamos loucos para flagrar algo.” RESSACA Essa festa, misto de intensa preocupação editorial e forte exigência profissional em relação aos repórteres, custou caro à editora. O lançamento da revista consumiu um milhão de dólares em publicidade. Some-se a isso uma redação enorme, mesmo em relação aos padrões da época, e muito bem remunerada. Apostando alto, o
primeiro número teve uma tiragem de 700 mil exemplares. Para se ter idéia do risco que corriam, hoje, 40 anos depois, entre assinaturas e vendagem em bancas, a revista tem uma tiragem de, aproximadamente, um milhão de exemplares. “Ela [Abril] criou no público a impressão de que iria chegar uma revista semanal ilustrada, concorrente da Manchete. Não era nada disso. Era uma revista de leitura”, conta Mino. Ele acredita que assim como o público não estava preparado para receber uma revista no estilo das semanais norteamericanas, a própria equipe de jornalistas e repórteres não tinha condições de desenvolvê-la. “A revista não estava boa a meu ver, muito pelo contrário. Mas já era muito corajosa”, completa. O Brasil não possuía um público leitor capaz de absorver tantas informações em uma semana e isso se refletiu diretamente na circulação da revista, que aos poucos foi diminuindo. A segunda edição tirou 500 mil exemplares e trazia na capa a questão da Igreja no Brasil e já foi recolhida das bancas pela censura. A terceira saiu com 250 mil exemplares, a quarta, 100 mil e a quinta, apenas 50 mil exemplares. Além da censura, a revista passou por um momento crítico: com a baixa nas vendas, era hora de fazer cortes na redação. Manzano relata que Carta reuniu toda a equipe, contou o que estava acontecendo e listou os nomes que fazia questão que continuassem na revista. Aos demais, pediu que se pudessem, saíssem assim que encontrassem uma boa oportunidade. Foi nesse momento que Gabriel Manzano recebeu uma proposta da revista Realidade, e aceitou. “Paralelamente houve uma crise na Realidade, surgiu uma oportunidade e eu fui”, relata. ALTOS E BAIXOS Carta tinha um acordo com os Civita: eles não interfeririam no
conteúdo da revista, mas poderiam fazer uma análise crítica do que havia sido publicado e repassar isso ao diretor de redação. Foi em sua gestão que foram publicadas entrevistas históricas. À Veja, Nelson Rodrigues afirmou em 1969: “Eu sou um anticomunista”. No mesmo ano, o cientista do projeto espacial americano Werner von Braun foi taxativo: “Haverão estações espaciais orbitando a Terra, e muitos vôos para os laboratórios no espaço”. Em 1972, foi a vez de Tarsila do Amaral polemizar. “Quis fazer um quadro que assustasse o Oswald de Andrade”, disse, justificando Abaporu, obra de 1928. E mais adiante, em 1975, o ditador chileno Augusto Pinochet declarou: “Não existem presos políticos. Há pessoas detidas em virtude do estado de sítio ou por haverem cometido crimes comuns” Carta assinou o expediente de Veja ao longo de sete anos e passou por muitos altos e baixos. O último deles provoca polêmica até hoje. Ele atribui sua saída a um acordo entre seus superiores e o governo militar. A Abril receberia 50 milhões de dólares para quitar dívidas externas e, em troca, mudaria o tom da cobertura jornalística feita até então. Carta saiu em 1976 após longas férias, depois que o acordo inicial de não interferência fora descumprido: Plínio Marcos havia sido censurado em sua ausência. Carta retornou e demitiu-se. Com ele, saíram de Veja: Nirlando Beirão, Tão Gomes Pinto, Armando Salem, Fernando Sandoval, Hélio Campos Melo e Silvio Lancellotti. Por mais fortes que sejam as críticas em relação à mudança da linha editorial da revista após a saída de Mino Carta da chefia de redação, Veja manteve seus princípios originais, pautados pela audácia e coragem da editora de lançar no mercado editorial brasileiro, diante de um regime militar, uma revista semanal de informação. Culpa dos Civita ou não, o fato é que Veja se tornou um produto rentável já na década de 1970 e, com a explosão das assinaturas, em 1980, tornou-se o título mais lido do país - depois superado por Caras, na década de 1990 - e, mais influente instrumento político do grupo. Veja, que há 40 anos era um primo pobre do Pato Donald, primeira publicação de sucesso do Grupo Abril, tornou-se o Tio Patinhas do mercado editorial brasileiro. Colaborou Ana Luisa Ribeiro
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fotografia
fotoJorNaLiSMo O
As fotografias que denunciaram a repressão e a violência do regime militar REPORTAGEM CAROLINE ARICE (3° ano de Jornalismo), DANIELE PECCHI, RALPH IZUMI (2° ano de Jornalismo) e LAURA HAUSER (1º ano de Jornalismo) IMAGENS JUCA MARTINS, JOÃO BITTAR e NAIR BENEDICTO
O movimento político do período da ditadura trouxe transformações na imprensa e na fotografia brasileira. A importância da imagem nas páginas do jornal cresceu a partir do momento em que elas passaram a relatar o que o texto não podia dizer por ter sido censurado pelo governo militar. Simonetta Persichetti, jornalista e crítica de fotografia, explica que a imagem estava em vantagem, pois não era completamente compreendida já que os censores sabiam ler textos, mas não sabiam ler fotos. Por isso, raramente, elas eram censuradas. Isso significou uma grande contribuição para a imprensa e o fotojornalismo, permitindo que as imagens feitas durante os anos 1960, 1970 e 1980 passassem a ser mais do que registros de páginas de jornais e se transformassem em um legado para o resgate dos acontecimentos importantes do período. A ditadura reprimiu a livre circulação de idéias e de expressão, no entanto, com criatividade e inteligência, a imprensa soube driblar a censura da época. A dificuldade dos censores em decifrar a linguagem fotográfica favoreceu o trabalho dos fotógrafos no retrato crítico da ditadura militar. “A gente já sabia da importância da fotografia, o país estava passando por uma revolução social e os fotógrafos iriam ficar de braços cruzados? Não”, conta o fotógrafo Juca Martins. Foi o período da geração de fotojornalistas que se formou na prática, regulados pela realidade política do governo militar. Segundo Simonetta Persichetti, “os grandes fotógrafos que trabalharam durante a ditadura conseguiram passar a informação de uma forma muito metafórica, simbólica. Porque eles não podiam ser explícitos. Mas, de alguma maneira, eles contavam o que estava acontecendo. E são estas imagens que a gente resgata hoje para contar a história do período da ditadura no Brasil”. O fotojornalismo daquela época traz mais do que fotografias que despertam lembranças ou curiosidades de fatos passados. Vai além e estimula nossas emoções e reflexões, permitindo que aqueles que não viveram o período formem suas impressões dos acontecimentos a partir do que restou em imagens. “A fotografia é documento histórico desde que entendida não como ilustração de um texto escrito, mas como fonte primária de informação, portanto como portadora de sentido e significados por si própria”, esclarece Persichetti. No entanto, a foto é sempre o ponto de vista de alguém e para compreendê-la é preciso conhecer o ângulo de quem estava por detrás da câmera. Selecionamos três repórteres fotográficos para contarem como era o dia-a-dia da profissão durante o governo militar. ATÉ O FIM PELA MELHOR IMAGEM Português, criado em São Paulo, Juca Martins iniciou sua carreira como fotógrafo profissional nos anos 1970, na Editora Abril. Suas imagens foram publicadas no jornal Folha de S. Paulo, e nas revistas Realidade e Quatro Rodas. Martins foi também editor do jornal Movimento. Para ele, a liberdade
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de trabalhar sem carteira assinada era um vantagem para o fotógrafo durante a ditadura. “A censura acontece nas publicações, mas não no click”, afirma. Em 1976, fundou uma agência de fotografia, a F4, juntamente com Nair Benecdito, Ricardo Malta e Delfim Martins. “Não queríamos uma direção controlando o trabalho da gente, queríamos fazer o que achávamos que era certo”, completa. Segundo ele, a censura usava vários meios de impedir a publicação e a venda de
As duas imagens (na página anterior e acima) mostram a Catedral da Sé antes e depois da polícia reprimir uma manifestação de estudantes. Para Martins, valia tudo para conseguir uma boa fotografia
“O risco que eu corria era do policial me bater com o cacetete. Mas eu queria fazer essa foto”, lembra Juca Martins
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alguns veículos da época: “muitas vezes os caras vetavam fotos do Movimento não pelo conteúdo, mas para que o jornal ficasse feio e não vendesse na banca. A censura tinha aspectos políticos e também econômicos”. Juca teve um papel importante no período ditatorial cobrindo greves como a do ABC e protestos a favor da anistia e das eleições diretas. O fotógrafo conta que no dia da votação das diretas “surgiu um ‘quebra-quebra’, o pessoal começou a derrubar vidro, quebrando o [banco] Bradesco, de raiva”, e garante que não tem e nunca teve medo de tirar esse tipo de foto, “isso aí é tudo fácil de tirar, tudo manifestação”, completa. Durante a manifestação estudantil de 1977, no centro de São Paulo, Juca presenciou o conflito entre os estudantes e a polícia e garante que só saiu de lá depois de conseguir uma boa imagem. “Essa manifestação dos estudantes, antes da anistia, é o início do movimento contra a ditadura. O único risco que eu corria era do policial virar na minha direção e me bater com o cacetete. Corria o risco de levar “porrada”, mas eu queria fazer essa foto”, conta. Outro momento importante que rendeu uma série de fotografias de Juca foi a Assembléia dos Metalúrgicos, em 1980, na cidade de São Bernardo do Campo. “Eu vi na multidão um sujeito com uma bandeira do Brasil, aí eu saí do palanque e fui lá pro meio e fiz uma série de fotos, porque aquela bandeira rasgada mostrava bem quem eram aqueles brasileiros”, recorda Juca. Juca foi um dos primeiros fotógrafos brasileiros a cobrir guerras internacionais, como a de El Salvador e a do Líbano. “Lá [em El Salvador] a Guarda Nacional e o exército tinham respeito pelos jornalistas, eles precisavam recebê-los bem porque queriam parecer simpáticos.” Ganhou diversos prêmios, entre eles o Prêmio Esso de Fotografia, em 1980, e duas vezes o Internacional Nikon, no Japão, nos anos de 1979 e 1981. Juca se considera um fotógrafo envolvido com as questões do tempo em que vive e garante que “o mundo atual não poderia ser pensado sem a fotografia.” FOTOGRAFIAS CONQUISTADAS Por conta dos inúmeros jornais que seu pai levava para casa, João Bittar se interessou cedo pela notícia e aos sete anos decidiu que um dia seria jornalista. Com 15 anos, foi até a Editora Abril pedir um emprego e conseguiu uma vaga de office boy na área de fotografia. Foi lá que conheceu seus ídolos da revista Realidade – como Walter Firmo, Maurren Bisilliat, Cláudia Andujar e Geraldo Mori – que emprestavam câmeras e filmes para Bittar, que aos poucos começou a se aperfeiçoar na fotografia. Dois anos depois, começou a trabalhar como fotógrafo. A partir de então Bittar passou a fotografar para vários veículos do país. Colaborou, como free-lancer, para os jornais Diário de S. Paulo e Última Hora, ambos em 1969. Trabalhou na revista Veja em dois períodos: de 1969 a 1971 e de 1983 a 1984; na revista Exame permaneceu por dois anos (1971 a 1973) e no jornal Folha de S. Paulo, de 1994 a 2002, trabalhando
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como editor de fotografia. Algumas de suas principais fotos tratam das greves do ABC paulista, ocorridas no período da ditadura e que deixaram os militares sem reação. Para João Bittar, que registrou esse momento “o ABC Paulista era o palco das grandes montadoras de carros. Por este motivo, tinham ao seu lado sindicatos modernos que protegiam a classe dos metalúrgicos”. Bittar diz que os fotógrafos eram vistos com maus olhos pelos grevis-
A foto acima é para Bittar como um prêmio. Ele fotografou diversas manifestações e greves, principalmente, no ABC paulista e diz que apesar do clima tenso valia a pena.
“O Lula não queria me deixar tirar uma foto dele com o jornal. O jeito foi esperar ele dormir e... click”, relata João Bittar
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tas. “Os operários ficavam nos olhando com cara feia. Só sorriam para as fotógrafas (risos).” Bittar relembra que o ambiente era tenso.“Eles batiam os cartões de ponto e paravam. Mas, apesar de todo esse clima, nos tratavam como a um jornal sindical, pois a revista IstoÉ, da qual eu fazia parte, colocou o assunto na capa, com o título ‘A Greve – São Bernardo do Campo, 23 de março de 1979’, fizemos uma intensa cobertura dos eventos na época”, explica. Para ele, algumas de suas fotos são como prêmios que foram conquistados. “A foto do Lula dormindo, com um jornal na mão, sob a manchete: ‘Decretada a intervenção nos sindicatos’ é a única dele dormindo. O Lula não queria me deixar tirar uma foto dele com o jornal. Bom, o jeito foi esperar ele dormir e... click.” Além disso, Bittar fez uma foto na qual mostra a intervenção da polícia em uma sindicato. Para ele, essa foto é única. “No dia da intervenção, por causa das noites sem dormir não estava totalmente consciente. Quando os policiais invadiram, fiquei ao lado deles. Quando me perguntavam de onde eu era, eu falava que era ‘da casa’, ou seja, da polícia. Eles consentiam e eu continuava tirando muitas fotos do local. Só eu consegui entrar neste dia”, conta. UM CLICK PARA SEMPRE Nair Benedicto começou a fotografar profissionalmente em 1972 para a agência Alfa Comunicações. Para ela, a fotografia surgiu como uma possibilidade de trabalhar com maior independência e liberdade no desenvolvimento de pautas próprias, sem um chefe ou um grupo que limitasse suas fotos. “Eu nunca fui e nunca quis ser funcionária, era free-lancer por opção. Eu não queria minhas fotografias enquadradas em um formato”, conta. Nair acredita que isso faz com que o seu trabalho seja diferenciado de outros fotógrafos por poder escolher o que registrar. “Eu tenho a pretensão de que a minha fotografia não envelheça. No dia em que eu tirei essas fotos pode ter acontecido uma pauleira que eu não cobri, mas eu tenho a certeza de que as fotografias que tirei permanecerão para sempre”, constata a fotógrafa. A foto mais famosa de Nair, capa do livro A greve do ABC, retrata uma assembléia de metalúrgicos que aconteceu dentro da Igreja Matriz de São Bernardo do Campo e ilustra muito bem a participação da Igreja nos movimentos contra a ditadura no Brasil – fato novo e raro quando se refere à América Latina da época. “Parece uma coisa tão singela uma reunião dentro da igreja, mas enquanto estávamos lá, os helicópteros da polícia faziam ronda e o pau comia o tempo inteiro”, conta a fotógrafa. Ao falar sobre as greves do ABC, Nair, que esteve ligada ao movimento de agitação política na época, contou como era conviver com o líder sindical Luís Inácio Lula da Silva. “Eu tenho uma relação ótima com o Lula, eu era inclusive fiadora do imóvel em que ele morava”, diz. Em 1991, fundou a N Imagens, agência de fotografia em que trabalha até hoje. Nair têm fotos publicadas em revistas do mun-
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do todo. Para as nacionais, fez imagens para Veja, IstoÉ, Marie Claire, Claudia, Ícaro, Vaccance, e também para as internacionais Stern, Paris-Match, BBC-Ilustré, Zoom, NewsWeek, Time, GeoMagazine, Science e Figaro Magazine. Além disso, suas fotografias integram os acervos de alguns museus importantes no mundo como o MoMa, de Nova York, o Smithsonian Institute, em Washington, o MAM, no Rio de Janeiro e a Coleção Masp/Pirelli, em São Paulo.
Nair era uma das poucas mulheres de fotografavam as manifestações contra o regime militar. Para ela, a independência de ser freelancer não tinha preço
“Enquanto estávamos lá, os helicópteros da polícia faziam ronda e o pau comia o tempo inteiro”, conta Nair Benedicto
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LIVROS REPORTAGEM priscila zuini (3º ano de Jornalismo) IMAGENS reproduÇÃo
Releituras
confira a seleção que esQuinas preparou dos livros lançados ou relançados em comemoração aos 40 anos do ano que abalou o século 20
1968 dEStInOS 2008: PASSEAtA dOS 100 MIL
De Evandro Teixeira o fotojornalista evandro Teixeira começou sua carreira em 1958 e teve a oportunidade de estar presente em um dos acontecimentos mais marcantes do ano de1968, a passeata dos 100 mil no rio de Janeiro, na qual uma multidão se reuniu em um protesto contra a ditadura. Teixeira fotografou a passeata de uma maneira que, apesar da quantidade de pessoas presentes no acontecimento, é possível identificar os rostos de algumas pessoas. neste livro, Teixeira conta a trajetória de 100 pessoas que aparecem na imagem e o que aconteceu em suas vidas nos últimos 40 anos. os selecionados foram novamente fotografados e recordam o que os levou a participar da passeata. além disso, o livro traz textos de alguns personagens importantes para os movimentos políticos e estudantis da época, como Vladimir palmeira, Fernando Gabeira, marcos sá corrêa, augusto nunes e Fritz utzeri.
EM 68: PARIS, PRAGA E MÉXICO
De Carlos Fuentes o escritor carlos Fuentes conta neste livro os acontecimentos que presenciou e acompanhou em três lugares distintos do mundo no ano de 1968: em praga, no méxico e em paris. Fuentes viajou com Julio cortázar e Gabriel García márquez para praga. na cidade francesa viu de perto as manifestações estudantis e operárias em maio daquele ano. no méxico, presenciou o massacre da plaza de las Tres culturas. o livro traz textos escritos pouco após esses acontecimentos nos quais Fuentes mostra suas impressões pessoais sobre os momentos que viveu nestes lugares.
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1968, POR AI... De Mouzar Benedito o jornalista mouzar Benedito escreveu este livro para relatar suas próprias experiências em 1968. o autor veio de minas Gerais para estudar Geografia na universidade de são paulo. em 1968, por ai...Memórias Burlescas da Ditadura, Benedito relata as diversas revoluções que mudariam a sociedade, como a cultural, a social e a sexual do ponto de vista de quem era jovem naquele ano. além disso, o autor fala sobre os principais acontecimentos do movimento estudantil em são paulo.
1968 - O AnO quE nÃO TERMInOu E 1968 - O quE FIZEMOS dE nóS
De Zuenir Ventura Quando, em 1988, Zuenir Ventura lançou 1968 - o ano que não terminou foi um sucesso, teve mais de 40 edições e ganhou um Prêmio Jabuti. A publicação já estava esgotada há algum tempo. Aproveitando o aniversário de 40 anos de 1968, Zuenir Ventura relança 1968 - o ano que não terminou. Neste livro, ele recria momentos daquele ano que mudaram o panorama político, cultural e comportamental do país, começando pelo réveillon de 1967, que para o autor já indicava que o ano que estava chegando seria decisivo para todo o século. Zuenir fez diversas entrevistas e teve acessos a materiais importantes do período, como a gravação da reunião que, em 13 de dezembro daquele ano, decidiu sobre a imposição do AI-5. Juntamente com a reedição deste livro, Zuenir aproveita para lançar 1968 - o que fizemos de nós. Nesta publicação, o autor faz uma análise das heranças que restaram daquele ano, incluindo alguns depoimentos inéditos de ícones do âmbito cultural e político no Brasil, como Caetano Veloso, Fernando Henrique Cardoso, José Dirceu, Fernando Gabeira, Franklin Martins, entre outros.
1968 - ELES Só quERIAM MudAR O MundO
De Regina Zappa e Ernesto Soto Os jornalistas Regina Zappa e Ernesto Soto fizeram uma série de entrevistas com personalidades que marcaram a época, como Chico Buarque, Fernando Gabeira e Edu Lobo e traçaram uma retrospectiva, mês a mês, dos principais acontecimentos do ano no Brasil e no mundo. Além das entrevistas, o livro reúne letras das músicas que foram sucesso e fotografias. Esse almanaque ilustrado do ano que marcou o século passado traz ainda algumas colaborações exclusivas como a de Frei Betto, falando sobre a Teologia da Libertação, a jornalista Iesa Rodrigues, que fala sobre moda e Pedro Butcher, analisando o cinema da época.
MAIO dE 68
De Sergio Cohn e Heyk Pimenta Este livro é uma edição especial em comemoração aos 40 anos das manifestações de operários e estudantes que ocorreram na França em maio de 1968. Os organizadores, Sergio Cohn e Heyk Pimenta, reuniram entrevistas, algumas inéditas, com protagonistas de movimentos da época, como Marcuse, Adorno, Edgar Morin, Timothy Leary e Allen Ginsberg. Destaque para a entrevista feita por Jean-Paul Sartre com o líder estudantil francês, Cohn-Bendit. Além disso, Maio de 68 traz ainda informações sobre eventos essenciais para tentar compreender a importância de 1968 no contexto social e cultural e as mudanças desencadeadas por este ano na sociedade em geral.
1968 - O AnO quE ABALOu O MundO
De Mark Kurlansky O pesquisador Mark Kurlansky faz, neste livro, um acompanhamento detalhado dos eventos que repercurtiram no ano de 1968, principalmente na política e na cultura. Kurlansky destaca como alguns conceitos foram modificados e reconstruídos ao longo destes quarenta anos, transformando a sociedade. O autor considera 1968 como um ano em que houve uma “combustão espontânea de espíritos rebeldes no mundo inteiro” e cita alguns acontecimentos internacionais, como os assassinatos de Martin Luther King e Robert Kennedy, o fechamento da Bienal de Veneza e do Festival de Cannes, como prova de que o futuro não seria o mesmo sem aquele ano.
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EDUCAÇÃO
PAULO FREIRE
reinventado O educador buscou fugir do métodos tradicionais de ensino e aproximar o conteúdo do universo do aluno. Após algumas adaptações, seu método continua a alfabetizar e ensinar muita gente em todo país
REPORTAGEM LÍVIA ASCAVA, NATHALIA PAZINI (3° ano de Jornalismo) e NATALIA JULIO (1° ano de Jornalismo) IMAGENS DANIEL GASPARETTI (4º ano de Jornalismo)
A mobilização popular é um dos mais fortes traços da década de 1960, marcada por uma efervescência cultural e política que deixou mais perguntas do que respostas. Na educação, Paulo Freire transformou a concepção da pedagogia e da educação ao apresentálas a serviço da classe mais pobre. Quarto filho de uma família recifense, Paulo Reglus Neves Freire nasceu em 19 de setembro de 1921. Apesar das dificuldades enfrentadas pelos pais para garantir os estudos do filho, ele costumava afirmar que sua alfabetização tinha acontecido no quintal de sua casa, à sombra de uma mangueira, com o chão como lousa e os gravetos como giz. “Paulo Freire foi o pedagogo do óbvio. Ele pensou a educação a partir do olhar do oprimido e de sua trajetória, em que pode sentir no próprio corpo o que é ser marginalizado”, afirma Ana Maria Freire, viúva e segunda esposa do educador. A partir dessa perspectiva, seu método educacional ficou conhecido como uma idéia que ajuda a gerar outras idéias novas, assim como desejava: “Seguir-me é não me seguir, é reinventar-me”. Institutos, escolas, cátedras, centros e núcleos de estudos, diretórios e centros acadêmicos desenvolvem pesquisas e projetos educacionais pela perspectiva do educador em todo o mundo. A experiência de Paulo Freire em Angicos, município do Rio Grande do Norte, em 1962, alfabetizou 300 operários em 45 dias. Esse trabalho foi realizado a partir do levantamento do universo vocabular e temático
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dos operários, além dos limites das cartilhas do método tradicional que utilizam palavras e frases soltas. Uma das ferramentas utilizadas era o diálogo. Para ele uma relação horizontal, em que professor e aluno são atuantes no processo de educação, garantia um reflexo positivo na conscientização política e na vida do sujeito. Paulo Freire acreditava que toda forma de educação era parte de um ato político, que poderia servir tanto para libertar quanto para oprimir. EXPERIÊNCIAS NO MUNDO Após o golpe militar, Paulo Freire ficou preso por 70 dias, acusado de atividades subversivas. Saiu da prisão direto para o exílio. Foi nessa época que o educador escreveu seus primeiros livros, entre eles Pedagogia do Oprimido e Educação como Prática de Liberdade e consumou diversas ações educativas fora do país. No Chile, coordenou o programa de alfabetização dos camponeses. Na Suíça, foi consultor especial no Departamento de Educação no Conselho Mundial de Igrejas e professor na Universidade de Genebra. Na África, assessorou diversos projetos de educação de adultos em Cabo Verde, GuinéBissau, São Tomé e Príncipe. Apenas em 1979 Paulo Freire regressou ao Brasil, como professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e logo em seguida na Universidade de Campinas (Unicamp). No final da década de 1980, voltou a escrever livros e começou a trabalhar na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, durante o governo de Luiza
Erundina, sua companheira de militância no Partido dos Trabalhadores (PT). MANTER O EDUCADOR VIVO Entre as inúmeras instituições que levam seu nome, o Instituto Paulo Freire (IPF), criado em 1992 na cidade de São Paulo, é um dos maiores pólos irradiadores de seu pensamento. Uma das atividades do IPF é a consultoria pedagógica a instituições municipais e federais de ensino. “Os projetos são desenvolvidos de acordo com a demanda de cada região”, explica Jason Mafra, coordenador pedagógico do Instituto. “O que não abrimos mão é da educação libertadora”, completa. Osasco, Nova Iguaçu, Sorocaba e Guarulhos estão entre as redes de ensino que já contaram com o auxílio do IPF. O Programa Escola Cidadã (PEC), que tem como eixo a discussão sócio-ambiental para todas as disciplinas, é uma das reinvenções do método de Paulo Freire. Em âmbito nacional, o Instituto trabalha com uma adaptação do Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos e, desde 2003, conta com o apoio da Petrobras e da Federação Única dos Petroleiros em seus projetos. Embora seja difícil mensurar o quanto de Paulo Freire se faz presente nas escolas de São Paulo, em alguns casos a presença é latente e inconfundível. Na periferia paulistana, entre a Comunidade do Godoy e o Capão Redondo, uma das 14 unidades do Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos, no Campo Limpo (Cieja – CL) é um
“O professor é tutor, mas não é protagonista. Ele faz a intermediação e a interferência, mas quem faz o curso é o aluno”, conta a diretora do CIEJA, Eda Luiz
Jovens e adultos se beneficiam do método elaborado por Paulo Freire, que aproxima o conteúdo escolar do cotidiano do aluno
exemplo dos bons frutos colhidos a partir da concepção freireana. O Centro oferece aulas para 1300 alunos acima de 16 anos. Os professores são divididos por áreas de conhecimento e não por disciplinas e o material didático é produzido pelos próprios educadores. “Não é como em uma escola estadual na qual minha aula foi programada sem que eu tenha participado de sua construção”, explica Cirlene Silva Souza, professora de Ciências da Natureza, referindo-se às cartilhas adotadas pelo governo. Além das aulas normais, uma vez por semana, são realizadas diversas oficinas de alfabetização, arte-educação e filosofia, nas quais são desenvolvidos projetos paralelos e interdisciplinares. É o caso do “Vizinhar-se”, mutirão organizado pela escola para realizar benfeitorias à comunidade. As salas do Cieja – CL apresentam-se de forma pouco convencional. Com carteiras coletivas para seis pessoas, sem formar fileiras, as mesas se espalham aleatoriamente. “Aqui ninguém fica atrás de ninguém”, explica a diretora Eda Luiz, ex-aluna de Paulo Freire. É difícil distinguir professor e aluno. “O professor é tutor, mas não é protagonista. Ele faz a intermediação e a interferência, mas quem faz o curso é o aluno”, completa Eda. Um dos maiores viabilizadores dessa dinâmica de respeito na relação entre educando e educador é o Piso Azul, um espaço onde são realizadas assembléias semanais em que alunos, educadores e funcionários discutem problemas vinculados à comuni-
dade ou à escola e sugerem soluções. Já na escola Mauro Faccio Golçalves Zacarias, localizada no Jardim Ângela, zona sul de São Paulo, a coordenadora pedagógica, Olgair Gomes Garcia levou os conceitos freireanos para o ensino regular e conseguiu implantar mudanças notáveis. Junto aos professores da escola, Olgair, que trabalhou com o educador durante seu mandato na Secretaria de Educação Municipal de São Paulo, tem buscado formas de reinventar Paulo Freire e o ensino no colégio, dando especial atenção, por exemplo, ao cuidado com o ambiente. A entrada da escola é decorada com
o rosto dos próprios alunos estampados em paredes e painéis. “Nós procuramos dar cara a nossa escola, deixá-la alegre”, conta Olgair. No entanto, a escola, situada em uma das regiões mais perigosas da cidade e ao lado do cemitério Jardim São Luís - um dos que tem maior número de jovens enterrados em São Paulo - tem trancas por todos os lados, suas caixas de som são protegidas por grades e constantemente ocorrem roubos e furtos. A escola Zacarias também lidera um projeto de formação do educador que, desde 2002, oferece cursos anuais aos professores de oito escolas municipais de
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“Nossas reuniões tornaram-se um espaço social de dois saberes distintos: o empírico e o científico”, explica a professora de enfermagen, Ivone Cabral
Para os seguidores de Paulo Freire a escola deve ter a cara do aluno e todos, sem exceção, devem ser tratados como iguais. Até a disposição das carteiras é feita de modo que nenhum aluno fique atrás ou à frente do outro
ensino fundamental da região do M’Boi Mirim. Um dos resultados positivos do programa é a publicação do Projeto Valorização do Educador, o PROVE. ALÉM DA SALA DE AULA Para Jason Mafra, Paulo Freire ultrapassa o limite da pedagogia. Segundo Mafra, é comum o Instituto receber contato de profissionais de diversas áreas que procuram nas idéias do educador um eixo para seus trabalhos. É o caso de Ivone Cabral, professora associada da Escola de Enfermagem Ana Nery da UFRJ, que também buscou em Paulo Freire
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conceitos para trabalhar na reabilitação de crianças com deficiências físicas. Foi com o Círculo de Cultura, formado por estudantes, professores, pesquisadores e familiares dos pacientes, que a professora conseguiu levantar questões importantes para o tratamento de doenças, como a administração de remédios. “Nós partimos do pensamento de que as pessoas não são uma tábula rasa. Nossas reuniões tornaramse um espaço social de dois saberes distintos: o empírico e o científico”, explica Ivone. Essa idéia surgiu quando ela percebeu
que o oprimido muitas vezes tem medo de se expressar e em uma consulta médica, por exemplo, ele não pergunta nada por medo de perder a vaga. “Dessa forma vimos que levar em conta um aprendizado informal pode ajudar na estratégia para a promoção da saúde”, conclui. Outro exemplo é o de Estêvão Teixeira, músico e professor do Conservatório Estadual de Música de Juiz de Fora (MG), que baseado nas idéias de Paulo Freire, criou o Teclado Didático para o Ensino de Música, ou Tedem. Um teclado de madeira, sem som, com teclas móveis, que tem como objetivo ensinar a música a partir da percepção das estruturas, como os acordes e notas. O professor toca ou canta uma seqüência de notas e os alunos levantam as teclas correspondentes aos sons produzidos. “Em um ensino tradicional, a tecla volta para a sua posição original e isso causa confusão. Com o Tedem o aluno percebe fisicamente o som que quer produzir, colocando em evidência a geografia musical”, explica o inventor do método que já é aplicado na Escola Municipal Áurea Bicalho, em Juiz de Fora. Dessa forma, fica estabelecido um aprendizado intuitivo e não sistematizado pelas partituras. Para Estêvão, o ensino tradicional pouco se alimenta da habilidade do músico popular, que aprende música sem recursos. Daí a ligação com a filosofia de ensino freireana, que valoriza a cultura popular e busca técnicas que se encaixem na realidade brasileira.
LÍNGUA REPORTAGEM CAROLINA LOPES e MARIANA PALMA (2º ano de Jornalismo) IMAGEM GUSTAVO SANCHES (3º ano de Publicidade e Propaganda)
E aí, broto?
A linguagem também sofreu o impacto de 1968. Conheça algumas gírias e expressões utilizadas durante a década de 1960 BICHO
Muitas gírias de 1968 ainda são usadas por alguns saudosistas da época, que continuam reverenciando a década de 1960. “Uso muito ‘bicho’. Usei o termo para chamar um amigo e ele ficou ofendido, acho que não entendeu”, relata Maurício Hornek, de 21 anos. A gíria serve para se referir a um amigo ou algum conhecido.
BROTO
MANOLITA/ BARÃO
DAR TáBUA
BALADA
“O broto displicente nem sequer me olhou/Insisti na buzina, mas não funcionou”. A famosa música Parei na contramão, de Roberto Carlos, traz uma gíria muito comum da década de 1960. A palavra broto era usada para se referir a qualquer garoto ou garota atraentes, assim como “pão” e “sereia”. “Era o que as meninas faziam quando recusavam nossos convites para dançar. Recebi várias!”, lembra Paulo de Agostini, 66 anos. A expressão equivale a “dar um fora”.
BICHO GRILO/ PONCHO E CONGA
“Bicho-grilo” tinha o significado de hippie ou, conforme a fama, de pessoa mal vestida. “Poncho-e-conga”, termo cunhado pelo jornalista Telmo Martino, colunista do Jornal da Tarde em 1970, se referia também ao grupo que vestia roupas coloridas e usava bolsas.
FOOTING
“Era quando chegava o domingo e as moças ficavam dando volta no parque e os moços ficavam de pé observando elas passarem”, lembra Álvaro Gomes, 62 anos, advogado. A prática se estendeu para o interior e até ruas muito freqüentadas, como a Rua Augusta. A expressão entrou em desuso com o surgimento de outros lugares para passeios, como os shoppings.
Com a mudança das moedas, a maneira de se referir ao dinheiro foi se modificando. Até 1968, a moeda era o cruzeiro. A nota de um era chamada de “manolita”. As notas de cinco traziam a imagem do Barão de Rio Branco, e por isso, eram chamadas de “barão”. “Tinha diversas maneiras para falar sobre dinheiro. Manolita, barão, bufunfa...” conta Brígida Nilze, 74 anos, aposentada. “Hoje, os jovens dizem que vão para a balada, ou seja, vão para a noite. Antes, balada era uma música lenta, daquelas que tocavam no rádio”, relata Paulo de Agostini, aposentado de 66 anos. Não foi apenas a palavra balada que se transformou, muitas gírias podem adquirir mais de um significado ou sentido diferentes com o passar do tempo. Para J.B. Serra e Gurgel, autor do Dicionário de Gírias, este é fenômeno já esperado. “As gírias são modismos, portanto, temporais. Vão e voltam”, explica.
MORA
Na época a expressão era muito utilizada nas músicas da Jovem Guarda. Por exemplo, no trecho: “É mesmo barra-limpa/Ele é uma brasa, mora?”, da canção Barra Limpa, de Martinha. “É uma brasa, mora?” pode ser associada à expressão“É muito legal, entende?”.
TEATRO
mas eis que chega a
RODA
VIVA
Dirigido por Zé Celso, o espetáculo de Chico Buarque foi atacado pelo Comando de Caça aos Comunistas, o CCC
REPORTAGEM PRISCILA ZUINI (3º ano de Jornalismo) e ANA PAULA PERCHE (1º ano de Jornalismo) IMAGENS REPRODUÇÃO
Em meio à efervescência cultural de 1968 a peça Roda Viva, escrita por Chico Buarque, marcou o teatro brasileiro e a vida de muitos que estavam envolvidos no projeto. Com direção de José Celso Martinez Corrêa, após uma curta e bem sucedida temporada no Teatro Princesa Isabel, no Rio de Janeiro, a peça chegou a São Paulo em 22 de maio daquele ano. “O Zé Celso me ligou numa quarta-feira aqui no Rio e me convidou para fazer o personagem que já havia sido interpretado pela Marieta [Severo] e eu fui para São Paulo. Cheguei na quinta com a minha malinha, entrei ali no Teatro Ruth Escobar e ensaiei o primeiro ato na quinta, o segundo na sexta e no sábado eu entrei.”, disse a ESQUINAS a atriz Marília Pêra. Na temporada paulista o teatro foi destruído e os atores, agredidos por membros do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) que consideraram a peça uma subversão. Roda Viva contava a história de Benedito Silva, interpretado por Rodrigo Santiago, que, mesmo sem talento para a música, virou ator com a ajuda de um empresário, apelidado de Anjo da Guarda. Benedito abandona sua esposa Juliana e vira Ben Silver, seguindo as tendências de internacionalização da música e para cativar a imprensa, chamada de Capeta. Com a constante mudança do mundo da música, em pouco tempo Benedito descobre que a moda é ser brasileiro e deixa de ser Ben Silver para ser Benedito Lampião. O cantor faz sucesso no mundo todo, mas ao voltar ao país já não
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agrada mais seu público e precisa dar lugar a um novo ídolo. Juliana, que passa a ser Juju, toma seu lugar como um sucesso de vendas, provando que a indústria da música se renova a todo instante. Para o crítico de teatro Sebastião Milaré, Roda Viva era um retrato do desenvolvimento do mercado musical. “De repente, você vê surgir uma máquina, com o fenômeno do rock, a televisão e o mercado de discos se transformam nessa máquina que vai devorando as pessoas. Esse era o espírito da coisa que o Chico estava colocando.” Roda Viva foi um acontecimento singular na história do teatro brasileiro. A atriz Margarida Baird, que fazia parte do coro do espetáculo, acredita que havia um clima fértil, com muita esperança de que mudavam o mundo. Para Marília Pêra era uma voz que se levantava contra as arbitrariedades que estavam acontecendo no Brasil. O crítico Sebastião Milaré pensa que foi um fenômeno de contexto, da época. Hoje a peça Roda Viva se fosse encenada novamente poderia ser avaliada pelos seus próprios valores artísticos, mas não ultrapassaria esse âmbito. “Não tem mais sentido, não tem clima para isso. Não tem uma situação colocada, a sociedade não está numa berlinda como naquela época”, afirma. Assim como Milaré, Armando Sérgio da Silva, doutor em Teatro pela Universidade de São Paulo (USP), acredita que em função da mudança de época o teatro hoje tem um poder muito grande de debate e reflexão mais do que de movimen-
tação política, por isso o impacto que ele causa hoje não seria o mesmo. ESTÉTICA REVOLUCIONÁRIA O espetáculo marcou uma ruptura no teatro ao eliminar a “quarta parede”, ou seja, a linha invisível que separa a platéia do palco e, também por isso foi considerado um teatro de agressão. “Em Roda Viva, o importante foi uma quebra da divisão entre palco e platéia. Essa entrada no espaço da platéia provocou na época uma espécie de novidade no teatro e muitas pessoas entenderam isso como agressão. Hoje, se for ver, não era tão agressivo assim. As pessoas é que tinham muito medo”, afirma Armando Sérgio da Silva. O diretor da peça, Zé Celso, aprofundou a linha estética que havia começado em Rei de Vela, de 1967, tentando sempre provocar o público em seus valores. Para isso usava elementos católicos e familiares como a imagem de Nossa Senhora. “E tudo era exagerado. A peça era um tanto exagerada, o Zé Celso dirigiu e eu me lembro de coisas como um cara comendo fígado, que hoje seria grotesco, mas naquela época era algo que impactava. Eram signos que chocavam muito naquele momento”, explica Milaré. Zé Celso aproveita essa nova estética e modifica a peça de Chico Buarque, fazendo com que a montagem represente mais do que o próprio texto. “O Chico era o menino de esquerda, olhos azuis, bem comportado, bom moço. Roda Viva não é o Chico, é o Zé Celso”, afirma Armando Sérgio da Silva. Em função disso o próprio Zé Celso confirma
que foi um choque. “A montagem foi um estupro. Todos tinham a visão do Chico lindo, perfeito, o genro, e de repente, um susto para quem estava no poder, pois havia uma multidão que assistia”. Essa revolução estética fez com que a peça fosse um sucesso de público e despertasse uma reação de amor ou ódio pelo espetáculo. “Duas ou três semanas depois da estréia, aquilo era um sucesso absoluto”, confirma a atriz Marília Pêra. Para Sebastião Milaré o público freqüentava o espetáculo por que era cúmplice e se projetava no ator, que fazia aquilo que a platéia não podia fazer. “As pessoas ficavam chocadas, mas ao mesmo tempo elas gostavam daquela mexida, e era um sucesso extraordinário o espetáculo”, afirma a atriz Margarida Baird. SENSO CRÍTICO Nem todos se sentiam satisfeitos em pagar por uma agressão e também por isso o espetáculo não foi bem aceito por parte da crítica, que segundo Armando Sérgio da Silva não estava apta a avaliá-lo. “A crítica não estava preparada para receber aquele espetáculo, eu tinha aula de teatro aqui na ECA [Escola de Comunicação e Artes da USP] e os professores falavam que o Zé Celso tinha que resolver os problemas particulares dele, ao invés de colocar aquilo no teatro. Então, não estavam preparados para entender Roda Viva.” Um exemplo disso foi a resposta do crítico da Folha de S. Paulo, Paulo Mendonça, ao convite de Ruth Escobar para assistir a peça. Ele alegou que não gostaria de ser insultado e que o alertaram para sentar-se longe do palco ou teria sua roupa manchada. O sucesso de público chamou a atenção dos radicais da direita que, em 18 de julho de 1968, ao final do espetáculo, invadiram os camarins, depredaram o teatro e agrediram os atores. Em 1993, João Marcos Flaquer, um bemsucedido advogado que faleceu em 1999, disse em entrevista para a Folha de S. Paulo que planejou e comandou a ação contra Roda Viva. Flaquer considerou o ataque um “ato patriótico”, que teve tanto êxito quanto a peça. O líder do CCC disse que “Roda Viva era um prato cheio para causar repercussão e consolidar a organização clandestina. A peça era uma droga. Só gente feia. O elenco agredia o público. Mas fazia sucesso e isso nos interessava. Estudomos por cinco semanas o teatro antes de invadí-lo.” Para Milaré o exagero da montagem provocou o ataque. “Eles entenderam a peça como uma agressão ao próprio sistema instalado no Brasil. A ditadura e os paramilitares como o CCC viram isso como uma agressão a essa nova ordem”, afirma. Já Silva acredita que a agressão não ocorreu só por causa do conteúdo, mas pelo fato de que o teatro já incomodava a direita há um tempo. O Comando de Caça aos Comunistas planejou o ataque e ocupou grande parte da platéia da sala O Galpão, no Teatro Ruth Escobar. “Esse era mais um dia de teatro cheio. Nós olhamos pelos buraquinhos das cortinas e vimos que estava muito cheio de homens, até comentamos que eles eram
Zé Celso (abaixo) chocou o público com a peça, que tinha Marília Pêra (acima) no elenco
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ARQUIVO MULTIMEIOS/ Divisão de Pesuisas
O coro (acima) provocava o público na peça escrita por Chico Buarque
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muito bonitos e jovens”, lembra a atriz Marília Pêra. Naquele dia, Margarida Baird, sentiu a platéia um tanto diferente. “O público sempre reagia bem às piadas, mas dia foi uma reação mais contida”, recorda. TEATRO DE AGRESSÃO Ao final do espetáculo, enquanto os atores se dirigiam aos camarins o grupo começou a agir. Os homens estavam armados com cassetetes, soco-inglês e revólveres e se dividiram: vinte ficaram fora do teatro, dez na Rua dos Ingleses e o restante entrou no teatro para atacar aos atores. “Foi uma coisa muito rápida por que a gente mal saiu de cena, já começou toda a quebradeira, mal deu tempo da gente trocar de roupa. Foi rapidíssimo, pois eles estavam muito bem organizados, como a direita costuma estar sempre”, lembra Margarida Baird. Marília Pêra conta que quando chegou ao camarim já ouviu um ruído fortíssimo de coisas quebrando. “Eu abri um pouco a porta e vi um cara batendo a cabeça de uma das meninas do coro contra a parede. Eles quebraram tudo, todos os instrumentos, rasgaram todas as roupas, mas a gente não sabia o que estava acontecendo”, relata Marília Pêra. Segundo Margarida, os homens foram levados para fora do teatro e as mulheres foram atacadas. “Eles me tiraram a roupa, eu fiquei sem roupa no meio do corredor, a minha calcinha estava estraçalhada quando eu a encontrei no meio dos destroços e eles apertaram o meu seio gritando: ‘Isso é que é revolução! Isso é que é revolução’”, conta a atriz. Já Marília Pêra diz que apesar da violência ela não chegou a apanhar. “Tinha um corredor polonês e a gente passava ali no meio apanhando, eles gritavam palavrões e mandavam a gente sair. Mas não me bateram por que eu passei muito devagar olhando para eles e perguntando por que. Quando eu cheguei lá fora eu lembrei que tinha deixado no camarim um anel, de meu pai, que havia morrido um ano antes. Voltei, entrei e passei por tudo aquilo de novo. Fui até o camarim desesperada, chorando, procurando entre os vidros quebrados, eles quebraram todas as minhas maquiagens, quebraram tudo. Achei o anel, enfiei no dedo e atravessei aquele túnel mais uma vez até chegar à rua”, lembra. Muitos atores sofreram agressões graves, a camareira de Marília Pêra estava grávida e perdeu o filho, a bailarina Jura Otero ficou com uma lesão pulmonar, Rodrigo Santiago ficou com uma fratura no pé, e Eudósia Cunha foi encontrada em choque num canto por Margarida Baird, com um cassetete enfiado dentro da roupa. Calculase que o ataque tenha durado entre três e cinco minutos. “Foi rapidíssimo, mas parecia que tinha durado a vida inteira”, afirma Margarida. Augusto Boal, dirigia e encenava a peça Primeira Feira Paulista de Opinião no mesmo teatro acredita qualquer espetáculo poderia ter sido vítima do ataque. “O que eu me lembro é que havia muitas ameaças antes do Roda Viva. Nós tínhamos medo que acontecesse com a gente, sim. Roda Viva foi o caso mais espetacular, mas podia ter
acontecido com qualquer um”, conta Boal. Depois do ocorrido, os atores buscaram ajuda da polícia e apesar da presença de duas viaturas na porta do teatro, pouco foi feito. Os policiais prenderam alguns membros do CCC, mas foram liberados mais tarde. “Nós todos tivemos de ir a várias delegacias para contar o que tinha acontecido. Nessa época, o cidadão não tinha direito a nada, nós estávamos numa ditadura”, diz Marília Pêra, “fomos todos presos nesta noite. Depois o CCC escreveu para os jornais dizendo que eram 110 homens no ataque e chamava Operação Quadrado Morto, o contrário de roda viva.” O dramaturgo Augusto Boal relembra que alguns atores passaram a buscar alternativas para se proteger. “Depois disso nós começamos a treinar tiro e alguns atores iam para o teatro armados, porque nós sentíamos que o risco era real”, conta. Mesmo assim, houve apresentação do espetáculo na noite seguinte, mesmo com os instrumentos quebrados e as roupas rasgadas. O teatro estava lotado e Chico Buarque junto a Zé Celso agradeceu a valente presença do público antes do início da peça. Depois de São Paulo, a montagem foi levada a Porto Alegre, onde, mais uma vez, os atores sofreram ameaças e agressões. A censura logo tirou Roda Viva de cena.
Integrantes do CCC destruíram o cenário e espancaram os atores. “Eles tiraram a minha roupa, apertaram o meu seio e gritaram: ‘Isso que é revolução! ‘“, conta a atriz Margarida Baird
Roda Viva, segundo o crítico Marco Antônio de Menezes para o Jornal da Tarde em 1968 “A cortina já está aberta quando você chega: enormes rosas à esquerda, enorme garrafa de CocaCola à direita, enorme tela de TV no fundo, uma passarela branca avançando até metade da platéia. [...] A campainha toca três vezes, a platéia faz silêncio, ruídos estranhos saem dos alto-falantes, na tela de TV aparece uma frase: ‘Estamos à toa na vida’. [...] Entra o coro, com longas túnicas vermelhas e mantilhas pretas. Canta um triste Aleluia, rodeia Benedito. Aparece o Anjo da Guarda, o empresário de TV, com asas negras, cassetete de policial na cintura, maquiagem de palhaço de circo: ‘Benedito não serve, nós precisamos de um ídolo! Você será Ben Silver!’ E o coro joga para trás as túnicas e mantilhas, é agora um grupo de jovens iê-iê-iê [...].O espetáculo não está somente no palco, o coro invade a platéia, conversa com ela e o empresário pede um minuto de silêncio em homenagem ao ídolo: cada participante do coro olha fixamente um espectador (agora todos já entendem por que a bilheteria insistiu em vender ingressos da primeira fila). [...] O minuto termina, Ben Silver é carregado para o palco num grotesco andor feito de long-plays e fotos de cantores. [...] No fim do primeiro ato o levam embora, deitado sobre uma cruz de madeira, nu, cansado sob o peso do próprio sucesso. [...] Ben Silver procura o consolo de
sua mulher [...] para uma linda cena de amor que é repentinamente interrompida pela câmara (sic) de TV e pelo Capeta (o jornalista desonesto) [...]. E juntos, o jornalista e o Ibope decretam o fim da carreira de Ben Silver. A solução é transformá-lo em Benedito Lampião, o ‘cantor de protesto’, vestido de nordestino, falando de ‘liberdade’ e de ‘vamos lutar’. A esquerda festiva o aclama. O Ibope, vestido de papa, decreta novo fim para Benedito Lampião. Para manter o prestígio, ele deve suicidar-se. [...] A platéia sai do teatro evitando sujar os saltos dos sapatos Chanel nos restos do fígado de Benedito Silva que o coro das fãs devora no final. [...] Os atores se dirigem agressivamente à platéia, fazem perguntas, pedem assinaturas em manifestos, sacodem e encaram os espectadores (a censura de 14 anos me parece muito pouco severa para o espetáculo). Ben Silver se encontra com a esposa coroado de espinhos, nu, como o Cristo. A tentativa de salvar o ídolo em decadência é encenada como uma procissão, liderada pelo Capeta (seria a peça toda uma Missa Negra?) - que satiriza o jornalista marrom - usando como cruz o conhecido ‘X’ de lâmpadas empregado pelos fotógrafos. A primeira cena entre Benedito e sua mulher é uma caricatura da Visitação de Nossa Senhora. [...] José Celso, celebrou Roda Viva”.
MÚSICA REPORTAGEM ANdREzzA AlvES E ThAIS hARARI (2º ano de Jornalismo) IMAGENS REPROdUÇÃO
Protesto em canções O futuro da música nacional não seria o mesmo sem 1968 e o movimento Tropicalista. Chico Buarque, Roberto Carlos, Gilberto Gil e outros ícones da MPB revolucionaram a sociedade da época com suas músicas
GIL, NARA LEÃO, GAL, MUTANTES, CAETANO E TOM ZÉ
Tropicália ou Pani s Et Circencis Este álbum pode ser considerado um dos mais importantes do ano de 1968 na música nacional. Responsável pela origem do Tropicalismo, movimento de vanguarda que transformou a música brasileira da época, este álbum é uma fusão de diferentes músicos e estilos. Baião, samba, bossa nova, rock e pop integram esta mistura na busca por uma nova música que servia, também, como protesto contra a situação política do país. “O Tropicalismo foi a internacionalização da música brasileira através da mistura de elementos nacionais e internacionais”, explica o músico, crítico e escritor, Carlos Calado. Jotabê Medeiros, crítico de música do jornal O Estado de S. Paulo, lembra ainda que “a música erudita estava presente em todo o projeto graças à participação do maestro Rogério duprat no movimento da Tropicália”. O disco inovou também nas letras, que dialogavam e se pareciam com obras concretistas, como algumas composições de Gil, Caetano e dos letristas e poetas Torquato Neto e Carlos Capinan, como a canção-manifesto Geléia Geral, escrita por Neto e musicada por Gil e a faixa Batmakumba, escrita por Gilberto Gil tem a forma de uma poema concretista.
WILSON SIMONAL
Alegria, Alegria vol.2 Este álbum traz sucessos dançantes como Sá Marina, em parceria com Antonio Adolfo. Canções como essas deram origem a um ritmo conhecido como Pilantragem. “Essa corrente brasileira, chamada de ‘toada-moderna’, tinha traços de originalidade da música pop com uma maneira brasileira e ainda influenciada pela soul music”, explica Carlos Calado. A performance irreverente do cantor também impressiona. “Simonal faz parte de uma escola de entertainers única no cenário brasileiro”, opina Sérgio Martins, crítico da revista Veja.
GAL COSTA
Gal Costa Mesmo tendo sido lançado em 1969, o primeiro álbum de Gal Costa sem a companhia de Caetano veloso é resultado do espírito tropicalista do ano anterior e hits clássicos do movimento, como Baby e Divino, Maravilhoso. Esta última, de Caetano e Gil, conquistou o terceiro lugar no Iv Festival de Música Popular Brasileira da Tv Record e foi responsável por mostrar ao público uma nova Gal: os trajes hippies usados no dia do festival chocaram a platéia. “Este álbum foi fundamental no pós-tropicalismo, pois mostrou um desenvolvimento do movimento”, afirma o crítico e escritor Carlos Calado.
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GILBERTO GIL
Gilberto Gil lançado em maio de 1968, o disco tropicalista de Gilberto Gil tem influências diversas que vão desde os sanfoneiros que o músico encontrava nas feiras, passando pela psicodelia dos Beatles e a guitarra elétrica de Jimi hendrix até o regionalismo de luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro. “A influência de Sgt. Peppers – dos Beatles – é enorme neste álbum”, confirma Carlos Calado. O álbum traz faixas famosas que fizeram muito sucesso na época como Domingo no Parque e Marginália 2, escrita em parceria com o poeta e letrista carioca, Torquato Neto.
CHICO BUARQUE
PAULINHO DA VIOLA
Chico Buarque de Holanda v.3 Em meio à explosão do movimento de crítica do Tropicalismo, Chico Buarque reinventa a música de outra maneira: através da linguagem. “A música dele é língua. Ele é um músico poeta. O Chico não se rebela contra as gírias, ele as reinventa, colocando-as a serviço da poesia”, analisa Jotabê Medeiros. E essa poesia, que nas entrelinhas critica a ditadura, se faz presente em seu terceiro disco solo, com sucessos como Roda Viva e Carolina, que consolidaram sua carreira ao serem apresentados em festivais.
Paulinho da Viola “É um disco importante em termos de evolução da música brasileira,” afirma Carlos Calado. Primeiro álbum solo de Paulinho da Viola, que até então havia gravado com Rosa de Ouro e o conjunto A Voz do Morro, traz a faixa Coisas do Mundo, Minha Nega. A música, samba preferido do compositor e instrumentista, foi inscrita na I Bienal do Samba da TV Record e ficou com o sexto lugar. “Em 1968, Paulinho já era um sambista conhecido, assim como Martinho da Vila, e já fazia coisas interessantes”, explica Walter Garcia, professor de jornalismo cultural da Pontifícia Universidade Católica (PUC/SP).
CAETANO VELOSO
Caetano Veloso Peça chave na formação do Tropicalismo, o primeiro álbum solo de Caetano também se trata de um rock psicodélico orquestrado por compositores consagrados. A mistura ainda conta com arranjos de metais em meio a sambas. No disco há clássicos como Soy Loco por ti, América, de Gil e Carlos Capinan, a canção de crítica à ditadura Alegria, Alegria, e Tropicália. “Este álbum é feito sob a estética da Tropicália. É um disco significativo de um momento especial da música brasileira”, analisa Carlos Calado.
ROBERTO CARLOS
O Inimitavel Responsável por marcar uma transição na carreira de Roberto Carlos, O Inimitável é um disco no qual o rei enche as faixas com músicas de grande sucesso -na época e ainda hoje- como Ciúme de você, Eu te amo, te amo, te amo, e Se você pensa, as duas últimas escritas em parceria com Erasmo Carlos. “Em 1968, Roberto já estava deixando de ser da Jovem Guarda mais radical, do iê-iê-iê inspirado nos Beatles, para alçar vôo como cantor brasileiro romântico de carreira internacional”, contextualiza Walter Garcia.
MUTANTES
TOM ZÉ
Tom Zé Este foi o primeiro disco solo do baiano Tom Zé. Uma das faixas de destaque do álbum é a música São São Paulo, que ganhou o IV Festival Record de MPB, em 1968. Influenciado por uma mistura de ritmos regionais nordestinos com a música de vanguarda Tropicalista que conheceu na Universidade Federal da Bahia, Tom Zé inova a cada nova faixa. “A ele coube o lado mais experimental da tropicália” diz Carlos Calado. “Este disco tem sementes do que Tom iria levar mais ao extremo nos anos seguintes”, completa.
Os Mutantes Primeiro disco do trio constituído por Rita Lee, Arnaldo Baptista e Sérgio Dias, Os Mutantes apresenta um rock experimental, com a psicodelia dos Beatles, a música erudita do maestro Rogério Duprat e o samba tipicamente brasileiro. Com músicas como Panis Et Cirsensis, O Relógio e Minha Menina, o álbum é considerado inovador por críticos e leigos. “Os Mutantes definiram o que conhecemos hoje como pop”, comenta Jotabê Medeiros. “Antes deles, o que se fazia eram cópias de artistas internacionais”, explica Carlos Calado, “a criatividade e a inovação da banda tornam este álbum realmente importante”, complementa o crítico. ESQUINAS 1º SEMESTRE 2008
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MÚSICA REPORTAGEM Juliana RanciaRo e Samanta lobo (2º ano de Jornalismo) IMAGENS RePRoDuÇÃo
Nas
vitrolas
do mundo 1968 trouxe novas vozes e ritmos. confira a seleção dos discos que fizeram a cara daquele ano e cumpriram com a principal proposta dos artistas da época: revolucionar a música internacional
THE BEATLES
The Beatles este foi o disco que trouxe os beatles de volta as suas origens. lançado em novembro de 1968, o conhecido White Álbum simplesmente estourou e no mesmo mês atingiu o primeiro lugar entre os mais vendidos nos eua. “Diferente do Sgt. Peppers, disco lançado em 1967 que inovava com psicodelia e experiências da música pop, o álbum branco explorou uma música mais tradicional da inglaterra”, comenta Sérgio martins, crítico de música da revista Veja.
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MILE DEVIS
JIMI HENDRIX
Electric Ladyland “o Jimi tem muitos discos importantes desta época. o Electric é um dos mais”, afirma o crítico e escritor carlos calado. neste álbum, Hendrix incorporou o funk e os sons mais psicodélicos dando forma a um dos melhores discos de rock da era. este foi o último disco de estúdio a ser profissionalmente produzido sob a supervisão de Hendrix. Jotabê medeiros, crítico de música do jornal O Estado de S. Paulo, garante que “de todos os seus álbuns este foi o trabalho que mais influenciou gerações de cantores e compositores e isso é muito, se considerarmos que todo músico que valorize a perfeição na guitarra o tem como guia”.
Miles In The Sky a importância deste álbum vem da inovação de miles Davis na criação de composições musicais e experiências com teclado e guitarra, criando o estilo jazz-rock. “nos anos 60, o jazz sofreu uma mudança muito grande. tentou se aproximar de uma vertente mais pop, incorporando elementos do funk e do soul. o músico que teve melhor resultado com essas experimentações foi ele. no jazz, poucas coisas foram mais influentes do que miles Davis”, recorda Jotabê medeiros.
JOHNNY CASH
Live At Folsom Prison nos anos 1960, Johnny cash passou por uma fase bastante obscura da sua carreira. Sua relação com as anfetaminas começava a interferir na sua sociabilidade e produção musical. este momento contribuiu para trazer o tom melancólico que fez com que a gravação de Live At Folson Prison fosse uma das melhores produções de 1968. o álbum é fruto de um show em uma prisão, tendo apenas os detentos como platéia. “Há uma quebra de padrões neste disco”, comenta Sérgio martins, “cash compôs para sua audiência, englobando temas como a solidão, o crime, a perda e a fé.”
ARETHA FRANKLIN
Lady Soul O Lady Soul comprovou que, não por mera casualidade, Aretha podia ser considerada a sensação da música pop. O disco tinha uma densidade musical mais forte do que seus trabalhos anteriores. Nas palavras de Sérgio Martins: “Este é o típico disco que tem a cara do músico”. O álbum conta com uma mistura de canções originais e versões de músicas dos melhores compositores do pop e soul, além da participação de Eric Clapton. “Foi o auge da carreira de Aretha porque a parceria com Eric Clapton acrescentou muito a ela”, diz Calado.
PINK FLOYD
A Saucerful of Secrets Este disco cravou o conceito de rock psicodélico, com as criações de Syd Barret. Remember a Day e See Saw são as faixas mais aceleradas. Em discos anteriores a banda começou a mapear as batidas repetitivas que os caracterizaram. Bandas como o Kraftwerk afirmam ter influências sutis, porém fundamentais desse disco. “Este álbum merece ser lembrado pelo cruzamento de rock com pop, algo que hoje é praxe na maioria das produções musicais comerciais, mas que naquela época era visto como ousadia”, diz Jotabê Medeiros.
THE ROLLING STONES
Beggar’s Banquet Este álbum foi um regresso às raízes do blues e foi aclamado como um marco da carreira dos The Rolling Stones. Para o crítico, músico e escritor, Carlos Calado, esse “é um álbum muito bem cultuado”. A música Street Fighting Man é uma reflexão do momento que o mundo vivia e, por isso, foi considerada uma das trilhas mais inovadoras da banda. O disco superou expectativas e, ainda hoje, ocupa o top dos melhores discos de rock. “Beggar’s Baquet não pode ser ignorado”, reforça Sérgio Martins.
THE BYRDS
Sweetheart Of The Rodeo Este disco representou o primeiro grande momento de afirmação do country-rock. Sweetheart of the Rodeo deu um novo rumo estilístico para os futuros trabalhos dos The Byrds. “Antes era bem psicodélico e nesse álbum eles partiram para música country de raiz”, afirma Sérgio Martins. Apesar disto, o álbum não foi tão bem visto aos olhos do público daquele tempo que estava acostumado com o estilo do disco anterior, e só ganhou verdadeiro prestígio alguns anos depois.
MARVIN GAYE
In The Groove “É importante lembrar da música black americana como um dos ícones do pop. Este disco era a bíblia do Tim Maia, por exemplo. O soul do Marvin Gaye e o funk do James Brown se misturaram com a música brasileira”, destaca Jotabê Medereiros. O disco mostra o encontro de sons percussivos como o do baixo, dos atabaques e da percussão, com outras batidas, criando um ritmo mais dançante e bem elaborado.
VAN MORRISON
Astral Weeks Astral Weeks é geralmente considerado um dos melhores álbuns da história da música pop e deu a Van Morrison uma credibilidade que o manteria no ápice da carreira por vários anos. Por toda a sua fama, o disco ficou conhecido como uma receita exemplar de rock and roll. Ao contrário do que pode parecer, este não é apenas mais um álbum de rock da década de 1960. Seu diferencial está em misturar diversos ritmos como o folk, o jazz, o blues e ainda músicas clássicas. “Com uma emocionante expansão vocal e instrumental, o disco tem poder único”, diz Sérgio Martins. Apesar das vendas modestas da época, Astral Weeks seria aclamado como um clássico da música e ao longo do tempo influenciaria diretamente grandes artistas como Elvis Costello e Sting, do The Police. ESQUINAS 1º SEMESTRE 2008
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CINEMA
A DITADURA
NO CINEMA Nos últimos dez anos, a ditadura militar foi a estrela de quase trinta filmes brasileiros, e os cineastas querem ainda mais
REPORTAGEM FERNANDA BONADIA, JULIA ALQUÉRES e NATÁLIA MANCZYK (3º ano de Jornalismo) IMAGENS REPRODUÇÃO
O roteiro de Batismo de Sangue (no alto) é a adaptação de livro homônimo de Frei Betto, já o de Cabra-Cega (acima) foi escrito a partir de entrevistas com 11 exmilitantes políticos
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O filme O Que É Isso Companheiro, de 1997 inaugurou uma nova leva de filmes sobre os anos de chumbo, com a história do seqüestro do embaixador americano, Charles Bruke Elbrick, em 1969. Depois dele, ainda foram lançados O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, A Dona da História, Benjamin, Cabra-cega, Zuzu Angel e Sonhos e Desejos. Diretores e roteiristas descobriram que o período é cheio de histórias para se contar e acham até que o número de produções sobre o tema é baixo. “Em função do tamanho da produção brasileira, esse número representa menos de 10% do que foi feito de 2000 até agora”, é a opinião do professor de Cinema Brasileiro da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), André Gatti, “o Brasil fez quase 200 filmes nos últimos três anos.” A cineasta Marta Nehring dirigiu o documentário 15 Filhos, no qual a ditadura aparece na versão contada pelos filhos de militantes presos. “Eu sou filha de um cara que foi morto pelos militares”, conta a diretora, “a versão oficial da morte do meu pai falava em suicídio e não mencionava a tortura”. Como o regime militar nunca assumiu a responsabilidade pelas mortes, a cineasta acredita que a realização do documentário foi uma forma de mostrar que o Estado brasileiro cometeu esses crimes. LAMBENDO AS FERIDAS “Para a sociedade curar as marcas de uma ditadura militar demora muito tempo. Porque os indivíduos demoram para rever suas experiências”, diz Nehring. Ela acredita que vinte anos sem democracia deixaram raízes
de medo e silêncio. O tempo de maturação acabou e o que vemos agora nos cinemas é a vontade dos cineastas de resgatar esse passado recente, “é um processo gradual, não adianta dizer, ‘ah, acabou a ditadura então vamos fazer filmes sobre isso’. Não é assim”, enfatiza a cineasta. Para a professora doutora de História da Universidade de São Paulo (USP), Maria Aparecida de Aquino, o regime militar ainda assombra os brasileiros. Ela explica que haverá amadurecimento e mais histórias aparecerão, mas é preciso tempo. “Aconteceu o mesmo no processo de ‘desnazificação’ da Alemanha. Depois que a guerra acabou, o cinema alemão, poderoso nos anos 1920 e 1930, ficou calado durante muitos anos até ressurgir brilhantemente na década de 1970, com os novos cineastas”, diz Aquino. ASSUNTO INTERESSANTE A professora reforça a necessidade do distanciamento para se conseguir pensar sobre o período e conta que, em 1994, tentou fazer um encontro para lembrar o golpe, em vão. “Em um dos dias de palestra, com sete convidados, apenas cinco pessoas compunham a platéia”. Porém, dez anos mais tarde, realizouse um evento em parceria com a Unicamp, o “Simpósio Internacional 40 anos do golpe de 1964”. Desta vez, os anfiteatros lotaram. Assim como cresceu o interesse das pessoas pelo tema, aumentou também o interesse dos cineastas. A historiadora sugere que “talvez, 30 anos depois do golpe não fosse o momento, as pessoas não estivessem interessadas e aquela reflexão não
dissesse nada a elas. Eu sinto que de uns tempos pra cá isso mudou. Os diretores também têm esse feeling”. O cineasta Toni Venturi, que dirigiu os filmes Cabra Cega, No olho do furacão e O Velho – a história de Luiz Carlos Prestes, faz também uma reflexão positiva das produções cinematográficas sobre o assunto, que foram possíveis graças ao fim da Guerra Fria e o distanciamento temporal que hoje se tem do período. “Isso faz com que uma nova leva de filmes venha com um olhar mais multifacetado e não tão maniqueísta. Então, nesse sentido são filmes mais fecundos, tridimensionais e matizados, que trazem uma reflexão mais profunda”, diz. DIFERENTES OLHARES O professor Gatti, da Faap, vê nessa nova leva de filmes que retratam a ditadura uma tentativa de se entender a história sob diferentes pontos de vista. “Um é o olhar da mãe, em Zuzu Angel, o outro da criança, em O ano em que meus pais saíram de férias, o outro a visão das pessoas que estavam envolvidas naquela história, como Cabra-Cega, Batismo de Sangue e Vlado: 30 anos depois.” Gatti acrescenta, “do ponto de vista da narrativa cinematográfica se busca trabalhar o tema de maneira diversificada.” A diversidade dos fílmes é essencial para Marta Nehring. “A história é um mosaico e não existe uma única versão dela”. Assim, a cineasta explica que a melhor forma de resgatar o passado é exatamente pelos diferentes pontos de vista. Como o cinema é construção imaginária, para Nehring ne-
nhum dos filmes jamais dará conta de retratar a realidade. “Cada um tem uma visão e a verdade depende muito de quem conta e de quem vê, por isso é importante ter muitos filmes sobre um assunto tão polêmico.” Diferentemente do curta-metragem 15 Filhos, de Marta Nehring, o documentário Hércules 56, de Silvio Da-Rin, traz a visão de pessoas que participaram ativamente dos conflitos políticos da ditadura. O filme revê a história do seqüestro do embaixador americano, a partir de relatos dos prisioneiros políticos que foram trocados pelo embaixador, como José Dirceu e o jornalista Flávio Tavares, e da narrativa dos próprios idealizadores do seqüestro, como o jornalista Franklin Martins. Já o documentário de Nehring, produzido em 1996 para o seminário “A Revolução Possível” – evento da Unicamp em homenagem às vítimas do regime militar –, trata da ditadura a partir dos relatos de pessoas que eram crianças quando os pais foram presos e torturados. “Existe uma diferença muito grande entre o ponto de vista de um ex-guerrilheiro, que fala em primeira pessoa, e o ponto de vista dos filhos dos militantes”, comenta Nehring. Como boa parte desses filmes revê a história partindo das pessoas que se envolveram politicamente, a cineasta buscou fazer algo diferente, descobrindo a identidade dos filhos dessas pessoas. “Fazendo o filme, nós descobrimos algo em comum, a clandestinidade. Cada um tinha vivido isso de um jeito muito isolado e solitário.” Além dos variados pontos de vista, o pro-
A nova safra de filmes aborda diferentes perspectivas. Do menino que vai morar com o avô, porque seus pais tem que viver na clandestinidade, em O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias (no alto), aos frades dominicanos que colaboraram com a luta armada, em Batismo de Sangue (acima)
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O embaixador americano, Charles Elbrick foi seqüestrado em 1969. O resgate foi a troca do diplomata por 13 militantes presos. A história aperece nos filmes O Que É Isso Companheiro, de 1997 e Hércules 56, documentário de 2006
fessor Paulo Menezes levanta outra questão referente aos filmes sobre a ditadura que retratam a realidade de forma crua e dura. “Se você consegue uma estratégia inteligente e interessante nos filmes, que permite impactos sem obrigatoriamente sair todo mundo vomitando do cinema, você consegue uma eficácia de público maior”, explica. A FICÇÃO COMO REALIDADE A roteirista Dani Patarra, do filme Batismo de Sangue, também reflete sobre o modo como os filmes retratam esse período histórico. Para ela, os filmes brasileiros sobre a ditadura não chegam a mostrar tão drasticamente o que foi a tortura. No entanto, Batismo de Sangue trata do ponto de vista de quem foi torturado, por isso, segundo ela, tem momentos de violência explícita. Numa das cenas, frades dominicanos, que apóiam o grupo guerrilheiro de Carlos Marighella, são obrigados a ficar nus, têm suas mãos e pés amarrados, são pendurados em barras de ferro e submetidos a choques elétricos, pauladas, socos e outras atrocidades. “Quisemos mostrar como realmente acontecia a tortura, porque é importante que as pessoas saibam”, conta a cineasta que em seguida pondera os limites de representar uma sessão de tortura. “O que a gente mostra é pouco na verdade, não mostramos mil coisas: eles esquartejavam, jogavam do helicóptero, cortavam os dedos e amassavam o crânio”, afirma Dani Patarra. Já o roteirista de O ano em que meus pais saíram de férias, Cláudio Galperin, preferiu adotar uma linguagem mais simbólica que naturalista. Ele exemplifica com uma das cenas do filme: o personagem Mauro assistia o Brasil fazer um gol em um dos jogos da Copa do Mundo de 1970 e, ao invés de
comemorar como os outros, corre ao encontro de Shlomo, que acabara de ser interrogado pelos oficiais da ditadura. “Essa cena pra mim tem um impacto muito grande, talvez maior do que ver alguém apanhando naquele momento”, afirma Galperin. “O filme foi uma tentativa de olhar pra isso [ditadura militar brasileira] de uma maneira que não fosse banalizar”, completa. Di Moretti, roteirista dos filmes Cabra Cega e O Velho – a história de Luiz Carlos Prestes, aponta que o cinema começou a colocar a ditadura como pano de fundo de suas histórias com a abertura e a liberdade de imprensa. Ele explica que o regime militar brasileiro foi dramático e isso é muito bom para o cinema, que trabalha com drama e conflito. “Não tem nada mais dramático do que um país cerceado por uma ditadura. Isso gera milhões de histórias, e eu acho que nem todas foram contadas ainda”, enfatiza. “Ainda falta construir a história das pessoas que não foram à guerrilha, das pessoas que ficaram em casa, mas que nem por isso deixaram de sofrer”, diz a historiadora Maria Aparecida de Aquino, para quem essa temática ainda está ganhando maturidade no cinema brasileiro. BANDIDOS E MOCINHOS O ano em que meus pais saíram de férias, do cineasta Cao Hamburger, é um dos filmes que evidenciam novidades no tratamento da ditadura. Segundo a professora, ao falar de pessoas comuns, sem tratar do militante, daquele “politizado que sofreu pra burro”, esse longa-metragem rompe com as histórias estigmatizadas em que existiam só “os mocinhos, que eram aqueles que pegavam em armas, e os bandidos, que eram os torturadores”. O filme mostra que existiam muitas
outras pessoas no meio disso. Para o professor de Cinema Documental do Departamento de Sociologia da USP, Paulo Menezes, a filmografia brasileira sobre a ditadura é ainda muito pequena para o que ela significou para o país, “não existe reflexão e a própria existência de poucos filmes sobre o tema mostra quase um nível zero de pensamento sobre isso”. Menezes compara a produção brasileira com a argentina e afirma que nossos vizinhos refletem muito mais sobre a ditadura que vivenciaram. “A Argentina, com menos condição econômica e muito menos recursos para a cinematografia, tem uma produção imensa perto da nossa. Eles fazem reflexão quase cotidiana sobre o período. Nós não fazemos”. O sucesso de O ano em que meus pais saíram de férias e de Zuzu Angel, segundo o professor Gatti, ocorreu porque se utilizou melodrama para contar as histórias. O primeiro trata de um garoto que sofre com o exílio dos pais. “Na história do cinema você vai achar um monte de filmes com meninas e garotos, pois é um olhar mais suscetível para o público de um modo geral”, explica Gatti. Ele ainda acrescenta que o filme de Sérgio Rezende, Zuzu Angel, teve um grande público por retratar a dor de uma mãe que perde seu filho, um jovem militante. OLHAR ROMANTIZADO O cineasta gaúcho Carlos Reinchenbach também destaca a importância da intimidade do cineasta com o tema. “Os diretores e dramaturgos abordam a ditadura porque viveram no final do período ou porque são parentes de vítimas do regime militar”, Reinchenbach acrescenta, “para você tocar com seriedade um assunto desse ele tem que fazer parte do seu
cotidiano”. No entanto, muitos dos filmes dessa nova onda têm diretores que eram crianças na época da ditadura, como Marcelo Santiago, diretor de Sonhos e Desejos nascido em 1961. O resultado disso, segundo Carlos Reichenbach, é que “alguns filmes tem um viés mais romântico como Sonhos e Desejos e o Cabra-Cega, isso me parece uma visão meio idealizada da ditadura militar, feita por quem não viveu o período.” DENTRO DO ROTEIRO Di Moretti, que redigiu o roteiro de Cabra-Cega, nasceu em 1961, era criança quando os militares mandavam no Brasil. Mas para ele o importante é a pesquisa anterior à produção de um roteiro. “O roteirista tem que ser profissional e competente para ele se transportar para um período que não viveu, que não sofreu”, entusiasma-se o cineasta, “ele deve ter sensibilidade”. Moretti conta que para escrever Cabra-Cega, entrevistou onze militantes da luta armada que foram torturados; leu livros sobre o período; conversou com algumas pessoas; viu muito material, entre eles diversos filmes. Apesar da divergência quanto à relevância da quantidade de filmes produzidos sobre a ditadura e à maneira de se abordar o assunto no cinema, os profissionais da área concordam em um ponto: a reflexão cinematográfica é essencial para superar as marcas deixadas pelo regime militar no Brasil. Para o diretor Carlos Reinchenbach, a função dos filmes sobre o período militar brasileiro é fazer com que os erros não se repitam. Para ele, a arte deve causar desconforto. “A grande função do cinema, da dramaturgia e da arte em geral é provocar a curiosidade das pessoas e espalhar o vírus do inconformismo”, justifica o cineasta.
Patrícia Pillar viveu Zuzu Angel, a estilista que teve o filho Stuart, interpretado por Daniel de Oliveira, morto pelo regime militar nos anos 1960. O filme levou mais de 600 mil brasileiros aos cinemas em 2006
FILMES REPORTAGEM GABRIEL CARNEIRO (1º ano de Jornalismo)
CINEMA
IMAGENS REPRODUÇÃO
SUBVERSIVO O clima de contestação do final dos anos 1960 atingiu as telonas. O ano de 1968 foi repleto de filmes com linguagem e estética inovadoras
O ESTRANHO MUNDO DE ZÉ DO CAIXÃO
De José Mojica Marins, 1968 Zé do Caixão é o nome popular de Josefel Zanatas, personagem criado pelo cineasta José Mojica Marins. O Estranho Mundo de Zé do Caixão conta as histórias macabras que permeiam o ambiente do personagem. O cinema de Mojica sempre foi muito popular, feito para um público amplo, que hoje se tornou cult. Para o crítico Rubens Ewald Filho, o filme “era da fase em que ele [Mojica] tinha aprendido a fazer cinema, sabia mais de técnica, perdendo bastante do charme do naïf, da originalidade”. Mesmo assim, continua sendo um de seus filmes mais celebrados e o que melhor mistura o terror e poesia.
ERA UMA VEZ NO OESTE
BEIJOS PROIBIDOS
De François Truffaut, 1968 É um dos filmes mais importantes de François Truffaut, um dos representantes da Nouvelle Vague francesa, e retrata a terceira parte da vida de Antoine Doinel, alter-ego de seu autor. O movimento buscava a ruptura com o cinema convencional francês dos anos 1950. A Nouvelle Vague ocorreu quase que simultaneamente na França e no Japão, cada qual com suas características.
De Sergio Leone, 1968 Outro gênero que marcou presença em 1968 foi o western-spaghetti, conhecido no Brasil como bang bang à italiana, em que releituras de faroestes americanos eram feitas usando muita violência. Um caso à parte, segundo o cineasta Carlos Reichenbach, seria Sergio Leone, diretor de Era uma Vez no Oeste. “Os faroestes espaguetis estão para os italianos assim como as chanchadas estavam para o cinema brasileiro. Ambos mimetizavam o cinema americano à sua maneira. Leone enxergou no gênero a possibilidade de falar de política, ideologia e sua visão pessoal de mundo”, opina Reichenbach.
ROBERTO CARLOS EM RITMO DE AVENTURA
De Roberto Farias, 1967 Walter Khouri fazia um anti-Cinema-Novo, Mojica deslumbrava com sua esquisitice, e Roberto Carlos se inspirava nos Beatles e em seus filmes, e fazia cinema para se autopromover. Foram filmes muito populares na época, que hoje, segundo Rubens Ewald Filho estão esquecidos. “Roberto Carlos foi quem sobreviveu, o filme nem tanto”, explica. O filme é dirigido por Roberto Farias, importante cineasta carioca. “Farias começou na chanchada, ou seja, nasceu no cinema comercial, sem preconceitos idiotas que só vieram com a militância política do Cinema Novo, embora tenha sido absorvido pelo movimento”, diz Ewald Filho.
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ESQUINAS 1º SEMESTRE 2008
O BEBÊ DE ROSEMARY
De Roman Polanski, 1968 Estrelado por John Cassavetes, um dos maiores destaques do cinema americano em 1968, esse filme é um marco para o cinema de terror. O Bebê de Rosemary, de Roman Polanski conta a história de um possível filho do demônio. John Cassavetes costumava utilizar a renda obtida em suas atuações no cinema hollywoodiano para financiar seus projetos autorais.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA
De Rogério Sganzerla, 1968 O cinema marginal começou em 1967, com A Margem, de Ozualdo Candeias. Porém, foi com o primeiro filme de Rogério Sganzerla, lançado um ano depois, que uma geração ficou marcada. “Depois de O Bandido da Luz Vermelha, o cinema brasileiro não foi mais o mesmo. O filme foi dinamite pura para a época. Veio para subverter forma e conteúdo no cinema brasileiro que àquela altura se acomodara no sucesso que fazia na Europa. Sua influência deflagradora resiste até hoje”, comenta o cineasta Carlos Reichenbach. O cinema marginal buscava romper com o padrão cinema-novista, estruturando-se no deboche e na farsa, sem se levar a sério. O filme de Sganzerla se baseia num fato verídico, mas contado de maneira fabulesca.
O PROFUNDO DESEJO DOS DEUSES
De Shohei Imamura, 1968 Marco da Nouvelle Vague japonesa, o filme mostra uma face mais política do movimento. O filme de Imamura, um dos mais importantes diretores do movimento, fala de um engenheiro que viaja para uma ilha primitiva e se envolve nos dramas de uma família local. “A japonesa foi antiamericana por excelência. A francesa foi buscar nos cineastas independentes norte-americanos uma de suas principais fontes de inspiração”, compara Reichenbach.
FACES
De John Cassavetes, 1968 Além de ator, Cassavetes foi um dos precursores do cinema independente e Faces é resultado disso. “É um marco do cinema independente americano. Ele caiu como uma bomba de inventividade quando foi lançado”, afirma o editor da revista Paisà Sérgio Alpendre. O filme fala sobre as angústias matrimoniais e para Alpendre “o olhar de Cassavetes para as fraquezas humanas faz com que o filme seja sempre impactante.”
2001 - UMA ODISSÉIA NO ESPAÇO
De Stanley Kubrick,1968 Dirigido por Stanley Kubrick, o filme é uma adaptação do conto O Sentinela, de Arthur C. Clarke. A obra tornou-se uma das mais importantes do cinema, subvertendo a linguagem, a estética e o conteúdo. “2001: Uma Odisséia no Espaço fez avançar o cinema como linguagem em 20 anos. Nunca um filme gerou tanta perplexidade e incompreensão como este, nem mesmo Cidadão Kane”, conta o cineasta Carlos Reichenbach. “2001 é um filme revolucionário, autoral e experimental, feito com milhões de dólares. Uma reflexão sem precedentes sobre a origem e o futuro da humanidade. Kubrick inventou a viagem lisérgica sem aditivos líquidos. A elipse do primata arremessando o osso na direção da espaçonave, ao som da valsa de Strauss, é o momento definitivo do cinema moderno”, opina.
AS AMOROSAS
De Walter Hugo Khouri, 1967 Walter Hugo Khouri é um dos mais notáveis cineastas brasileiros, com um estilo único, soube usar o erotismo com elegância. As Amorosas narra a história de um jovem rapaz inconseqüente, que só quer aproveitar a vida e as mulheres. “O filme é uma resposta aos cineastas do Cinema Novo, que o acusavam de ser alienado. Khouri faz então um filme em que defende o direito de ser alienado”, explica o cineasta e professor de cinema Eduardo Aguilar. ESQUINAS 1º SEMESTRE 2008
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ALI NA ESQUINA REPORTAGEM DANIELA GABRIEL ROSOLEN (3° ano de Jornalismo)
A BATALHA da Maria Antônia
O então líder estudantil, José Dirceu exibe a camisa do jovem morto na briga entre alunos da USP e do Mackenzie
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ESQUINAS 1º SEMESTRE 2008
Quarta-feira, dois de outubro de 1968. A confusão tomou conta da rua Maria Antônia, onde ficavam a Faculdade de Filosofia, Letras, Ciências e História da Universidade de São Paulo (Fflch-USP) e a Universidade Presbiteriana Mackenzie. Estudantes da USP ocuparam a rua pedindo pedágio para o movimento estudantil. Sérgio Sister, aluno de Ciências Sociais daquele ano, lembra que “os estudantes do Mackenzie não gostaram de ver os uspianos atrapalhando o movimento da rua”. Sister conta que José Dirceu, presidente da União Estadual dos Estudantes em São Paulo (UEE) na época, tentou negociar com o Mackenzie, mas não teve jeito. As agressões verbais começaram. A USP chamava os adversários de “gorilas fascistas”, que revidavam gritando “guerrilheiros fajutos”. Os grupos só se dispersaram quando a polícia chegou. Durante a noite, foram feitas assembléias nas duas faculdades e ambas decidiram não atacar primeiro. João Castanho, que morava
no Edíficio Caio Prado na Maria Antônia, ouviu um som estrondoso naquela madrugada, “as pessoas do prédio desceram para ver o que havia ocorrido: tinha explodido uma bomba no colo de alguém dentro de um carro.” Nunca se soube quem foi o responsável pela explosão, mas ela foi o estopim para uma verdadeira guerra de ideologias entre os mackenzistas, de direita, e os uspianos de esquerda. Na manhã seguinte, a trégua não foi respeitada. Os xingamentos viraram pancadaria e logo os estudantes trocaram pedras, coquetéis Molotov e até tiros. Um estudante da Filosofia foi ferido com uma bala na perna. A polícia disparou tiros de alerta para dissipar os estudantes. Um deles atingiu José Guimarães, de 20 anos, aluno secundarista que engrossava as fileiras do lado da USP. Sua tarefa era recolher pedras usadas como munição. Após sua morte, a polícia pôs fim ao conflito. Com o prédio destruído, a USP decidiu não continuar na Maria Antônia. O Mackenzie ainda está lá.
“Antonio Henrique Amaral começa a pintar bananas penduradas, bananas espetadas e até esmagadas. Isso era uma metáfora clara da repressão de um Estado ditatorial”, Olívio Tavares de Araújo, página 30
Campo de Batalha 3 - 1973 Antonio Henrique Amaral