ANO 24 | Edição 64 – 1º semestre de 2019 | revistaesquinas.casperlibero.edu.br REVISTA-LABORATÓRIO DA FACULDADE CÁSPER LÍBERO
O riso, o choro e a vida São Paulo é palco para todos os tipos de espetáculos teatrais
Dossiê
CAOS À BRASILEIRA
As violências que se perpetuam no País
Editorial 64
Revista Esquinas, órgão-laboratorial da Faculdade Cásper Líbero
A LEI PARA OS MAIS FRACOS FACULDADE CÁSPER LÍBERO Diretor Carlos Costa Coordenadora de Jornalismo Helena Jacob ESQUINAS Editor-chefe Márcio Rodrigo Editores Pedro Garcia e Thiago Bio Revisão Paula Leal Mascaro e Rafaela Bonilla Editor de Arte Henrique Artuni Diagramação Larissa Basilio e Luana Jimenez Projeto Gráfico Beatriz Fialho e Guilherme Guerra Participaram desta edição Aaron Leite, Amanda Prado, Ana Clara Giovani, Beatriz Biasoto, Beatriz Calais, Beatriz Gil, Beatriz Salvia, Bianca Quartiero, Carolina Grassmann, Cecilia Marins, Elias Leite, Gabriela Sartorato, Gabrielle Guimarães, Guilherme Alferes, Guilherme Goya, Gustavo Ramos, Gustavo Volponi, Helena Leite, Henrique Artuni, Isabella von Haydin, Ji Choi, Júlia Pereira, Karolyne Oliveira, Larissa Basilio, Laura Ferrazzano, Leopoldo Cavalcante, Leticia Giollo, Luca Castilho, Lucas Del Papa, Luis Enrique Barrero, Maria Allice de Vicentis, Maria Laura Saraiva, Maria Luiza Reghini, Mariana Martucci, Marina Baldocchi, Matheus Fernandes, Nicola Ferreira, Pedro Brienza, Pedro Garcia, Pedro Ramiro, Renan Lima, Susana Terao, Tainá Freitas, Thiago Bio, Vanessa Nagayoshi, Victor Kiyoshi, Vinicius Marques, Vitor Correia e Yasmin Luara Capa Arte de Henrique Artuni; Foto de Victor Kiyoshi Núcleo Editorial de Revistas Avenida Paulista, 900 – 5º andar – 01310-940 – São Paulo – SP Tel.: (11) 3170-5874/5814 E-mail: revistaesquinas@gmail.com Site: revistaesquinas.casperlibero.edu.br
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Em 1981, Hector Babenco alçou à fama o adolescente Fernando Ramos da Silva, que protagonizou um dos filmes mais importantes da carreira do diretor: Pixote, a lei do mais fraco. Escancarando nas telas as asperezas de uma infância e juventude atiradas ao crime e à total falta de perspectiva, o longa-metragem anteviu a ascensão da violência no País, um problema que ganharia contornos cada vez mais dramáticos na realidade brasileira. Em 1987, o próprio Silva – após viver uma fase de glória na mídia brasileira devido à projeção internacional do filme de Babenco – seria assassinado por policiais militares numa favela em Diadema, em São Paulo. Uma situação que, infelizmente, segue sendo rotina em todas as cidades do Brasil, onde a morte e a sorte de crimes violentos parecem cada vez mais perder seus contornos dramáticos e se tornar banais aos olhos da maioria das pessoas. Documentário produzido pelo jornal carioca O Globo no final de 2017 indica que, entre 2001 e 2015, a violência no País matou quase 787 mil pessoas. Uma média, portanto, de mais de 52 mil mortes por ano ou um contingente de vidas perdidas maior do que as tiradas a cada ano na Guerra da Síria. Mergulhado numa espécie de guerra civil não declarada, mas nada silenciosa, em que 70% das mortes são causadas por armas de fogo contra jo-
vens negros, o Brasil discute a partir de agora, com a chegada de Jair Messias Bolsonaro à Presidência da República, mudanças na Lei do Desarmamento, o que poderá facilitar a posse de armas para a maioria da população “de bem”. Em contextos complexos como esse, cabe ao jornalismo abrir espaço para o debate aprofundado a temas tão áridos como a violência e seus efeitos no tecido social. Em reportagens que buscam ouvir personagens dos mais diferentes grupos que atuam e interagem nacionalmente, esta edição que chega às suas mãos traça um retrato humanizado e sem retoques das violências não apenas como crime, mas também como qualquer tipo de violação aos diretos humanos básicos dos cidadãos. Ao mesmo tempo, respiramos e exalamos esperanças ao fazer desfilar nas páginas seguintes histórias como a da cartunista Laerte, da percussionista Sivuca ou dos teatros em São Paulo, metrópole que aprendeu a se transformar em palco para as maiores tragédias, mas também para as maiores comédias humanas. Uma síntese do Brasil que pede transformações urgentes e precisa superar seu velho hábito de violar regras elementares de sobrevivência para que possa, de fato, ser entendido como um lugar onde a paz e a justiça social não sejam apenas utopia do topo da pirâmide social. Boa leitura! Por Márcio Rodrigo, editor-chefe revistaesquinas.casperlibero.edu.br
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Sumário Revista Esquinas, órgão-laboratorial da Faculdade Cásper Líbero
SEÇÕES
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07 ALI NA ESQUINA 31 ARQUIVO
68 HQ 70 CRÔNICA
08 A filosofia do corpo livre O naturismo gera polêmicas pela nudez social ao mesmo tempo que melhora a autoestima dos praticantes
10 Natureza em xeque Com conflituosas leis de proteção, o Brasil enfrenta problemas diante da conservação ambiental
18 O registro do horror Violências no Brasil intimidam a vida da população
28 “A luta por democracia não é temporária” A cartunista Laerte Coutinho fala sobre sua vida pessoal e os combates políticos no País
32 Luta em aberto Completando 40 anos em 2019, a Lei da Anistia ainda não foi efetiva para todos os afetados pela Ditadura Militar
36 O riso, o choro e a vida Teatros de São Paulo conquistam público com sua diversidade
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Revista Esquinas
44 Bora pro choque! Silvanny Rodriguez marca presença no mundo do samba e em ações nas periferias
46 Antiquada ou atemporal? A cartilha Caminho Suave traz rotas tortuosas para o ensino, mas permanece entre as opções didáticas de educadores
54 O País que deixou de acelerar A decadência do automobilismo nacional questiona qual o futuro brasileiro no esporte
58 Fantasmas de concreto No Centro de São Paulo, edifícios ruem pela história da cidade sem perspectivas de solução
60 Novos embalos e antigos problemas A Rua Augusta se agita entre inovações comerciais e disputas ultrapassadas de espaço
62 Antídoto de esperança Atividades e movimentações confrontam o assunto do suicídio entre a população do Brasil
65 Censurada, mas sempre utilizada Práticas de prostituição menos exploradas se tornam mais frequentes na região central da capital paulista
Sumário
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O mundo neste semestre
Revista Esquinas, órgão-laboratorial da Faculdade Cásper Líbero
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As Eleições de 2018 foram marcadas por uma onda conservadora. Porém, é possível observar avanços na diversidade. O Congresso Nacional conta com o maior número de mulheres da história brasileira: 15% das vagas de deputado federal serão ocupadas por elas. É a primeira vez que três mulheres transgêneros terão
VALTER CAMPANATO / AGÊNCIA BRASIL
Debandada cubana Cuba decidiu encerrar a participação no programa Mais Médicos após declarações do novo presidente brasileiro, Jair Bolsonaro. Cerca de oito mil profissionais foram orientados pelo governo cubano a deixar o País até o fim de 2018. As vagas remanescentes serão ocupadas por brasileiros e a seleção ocorrerá por editais. A saída pode gerar uma emergência humanitária nos próximos meses na área da saúde, apontam especialistas. Áreas mais remotas do Brasil, como a Amazônia, não tiveram médicos inscritos nos editais lançados pelo governo.
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Revista Esquinas
Os indesejados Caravanas de migrantes partem da América Central, majoritariamente de Honduras, para buscar refúgio nos Estados Unidos. Os refugiados estão atravessando países a pé e com ajuda de carona para chegarem à fronteira com o México e pedirem asilo, que pode demorar meses para ser aprovado ou recusado. O movimento migratório tem irritado e preocupado o presidente Donald Trump.
cargos políticos a partir de 2019 – Erica Malunguinho, Erika Hilton e Robeyoncé Lima, todas eleitas pelo PSOL. Além disso, uma indígena, Sônia Guajajara, concorreu ao cargo de vice-presidente de Guilherme Boulos, também do PSOL. São singelos progressos que precisam ser cada vez mais ampliados.
VALTER CAMPANATO / AGÊNCIA BRASIL
O ducentenário Museu Nacional, no Rio de Janeiro, pegou fogo na noite de 2 de setembro de 2018. As chamas só foram contidas na manhã seguinte. Com a tragédia, foram destruídos itens importantes para a história nacional e mundial: de múmias egípcias a fósseis como Luzia, o esqueleto pré-histórico mais antigo das Américas. Até o fechamento desta revista, não foram confirmadas as causas do incêndio e os projetos prometidos pelo Governo Federal não saíram do papel.
REPRODUÇÃO
TANIA REGO / AGÊNCIA BRASIL
Passado destruído
Pequenos passos
Mito x Resistência Jair Bolsonaro (PSL) foi eleito presidente do Brasil com mais de 49 milhões de votos. O político agrada parcelas mais conservadoras da sociedade e os descontentes com os últimos governos ligados ao petismo. Contrapondo o que era visto até então, Bolsonaro venceu as Eleições sem tempo de televisão e sem ir a debates, realizando sua campanha pelas redes sociais. A vitória desagrada setores progressistas da sociedade: antes e depois das votações, grupos realizaram atos de resistência, como o movimento #EleNão, iniciado por mulheres no ambiente virtual.
Goodbye, União Europeia A saída do Reino Unido das instituições europeias – como Comissão, Parlamento e Corte de Justiça – deve começar a partir de março de 2019. Até dezembro do ano que vem, haverá um período de transição, sendo que o Estado deverá pagar uma indenização de 39 milhões de libras à União Europeia. O Brexit, como ficou conhecido, está sendo discutido desde junho de 2016 após um plebiscito que teve apoio de 17,5 milhões de britânicos a favor da saída. A Escócia, por sua vez, teve 66% da população desejando a permanência. O Partido Nacional Escocês ameaça levantar uma causa separatista por não aceitar que o País seja “removido à força” da UE.
ALI NA ESQUINA
Na contracorrente do automático O movimento Slow Living propõe o resgate de costumes que foram perdidos com a pressa do dia a dia Texto por Júlia Pereira
O
despertador toca às 6h, você levanta da cama, toma café da manhã em dez minutos, arruma-se em 20, sai antes das 7h. Chega, bate o ponto, lê e-mails, agenda reuniões, preenche relatórios, almoça um salgado em cinco minutos. Mais algumas horas e vai embora, passa estresse com o trânsito. Chega em casa, pede um fast-food, toma um banho rápido, engole os remédios para dormir, deita a cabeça no travesseiro já planejando o dia seguinte que ainda nem começou. Até onde o cotidiano apressado e automático vale a pena? Será possível viver de forma mais desacelerada na cidade de São Paulo? É isso o que o Slow Living sugere: um estilo de vida com resgate do afeto, valorização das relações e mindfulness, ou seja, atenção plena para o momento em que está se vivendo e nas atividades que se está praticando, sem fazer as coisas de forma involuntária. Para os adeptos da prática, essa forma de vida é algo que foi perdido a partir do momento em que o cotidiano passou a ser vivido de forma automática. Diversas atividades estão sendo realizadas na cidade com o objetivo de dar uma pausa na rotina caótica. Em setembro de 2018, aconteceu o Dia Sem Pressa, organizado pelo Desacelera SP. O evento levou aos convidados a reflexão sobre a
“
A gente anda com uma vida muito corrida. Uma hora tem que dar uma pausa até por uma questão de autoconhecimento Mayra Mattoso, analista de sistemas
rapidez no dia a dia e a vivência no automático. Foi por isso que Mayra Mattoso, de 38 anos, marcou presença no evento. A analista de sistemas não faz parte do movimento Slow Living, mas procura algumas atividades para “desacelerar”, como a meditação, que pratica há cinco anos. Mattoso percebeu que estava só observando a vida passar e, por isso, sentiu a necessidade de dar uma pausa. “A gente anda com uma vida muito corrida, com muito estresse, ansiedade, e acho que uma hora tem que dar uma pausa até por uma questão de autoconhecimento”, comenta. O evento foi organizado pelo Desacelera SP, uma consultoria de pessoas e negócios que tem como propósito contribuir na divulgação, difusão e propagação de um estilo de vida mais desacelerado. O Dia Sem Pressa reuniu atividades e palestras estruturadas em oito temas: comer, fazer, pensar, brincar, viver, conviver, trocar e oferecer. Assim como o evento, o Slow Living também é estruturado em diversos nichos, mas a área que deu início foi a alimentação. O movimento nasceu em Roma, no ano de 1986, com o Slow Food, que tem como princípio central o direito ao prazer da alimentação, produzida de forma que respeite tanto o meio ambiente quanto o trabalho dos produtores, que atuam no campo e muitas vezes não são valorizados. Naquele ano, o jornalista italiano Carlo Petrini liderou um grupo que protestava contra a abertura da primeira loja do McDonald’s no país. Aquelas pessoas estavam se opondo ao fast-food, uma forma de alimentação em que o que importa é apenas a praticidade. “Em determinado momento, começou uma alta valorização da produtividade e o ato de cozinhar perdeu espaço para o prático e rápido, perdeu a qualidade e o valor real do tempo de se comer junto e de toda a valorização sobre o alimento”, explica Cláudia Mattos, chef de cozinha e militante do movimento Slow Food, que também preza pela preservação
Devagar e sempre Para combater a agitação das metrópoles, o estilo de vida propõe mudanças em diversas frentes, como a alimentação e a medicina, valorizando o trabalho artesanal e se opondo aos produtos industriais e valorização de todos os atores da cadeia alimentar: campos onde os alimentos são produzidos, trabalhadores que atuam no processo, cultura alimentar e receitas que perpassam gerações. Outra área que compõe o Slow Living é a da medicina. “O Slow Medicine é um resgate da medicina com foco na relação médico-paciente, um contraponto à ‘Fast Medicine’, caracterizada por consultas rápidas, excesso de exames, diagnósticos e tratamentos”, explica Suzana Vieira, endocrinologista. A médica é colaboradora do Slow Medicine Brasil, grupo de especialistas que atuam com a medicina convencional, mas que colocam os princípios deste movimento dentro dos consultórios nos quais realizam atendimentos. Eles fazem isso utilizando de forma apropriada e sem desperdício os recursos disponíveis, inclusive os tecnológicos, e mantendo uma relação sem pressa com o paciente, ouvindo e considerando seus valores, expectativas e desejos para os tratamentos. Desde a Revolução Industrial, estamos vivendo um estilo de vida cada vez mais acelerado. A pressa está no viver, comer, medicar, pensar, agir, fazer. Tudo é “para ontem”, urgente, automático. Mas o Slow Living está tentando fazer com que as coisas mudem, ou melhor, voltem a ser como eram. Seja por meio da alimentação, da medicina ou de qualquer outro aspecto da vida cotidiana, o objetivo é o resgate da relação valorizada e desacelerada com o mundo e com a vida.
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ESTILO DE VIDA
A filosofia do corpo livre Prática antiga, o naturismo atrai adeptos e choca pessoas conservadoras por causa do tabu da nudez Texto por Pedro Garcia e Thiago Bio
P HENRIQUE ARTUNI
utaria, sacanagem, pedofilia. Essas foram algumas das coisas que o carioca Pedro Ribeiro, de 60 anos, escutou. Tudo porque decidiu aderir à prática naturista nos últimos 35 anos. De acordo com a Federação Naturista Internacional, que reúne as organizações naturistas oficiais de todo o planeta, “naturismo é um modo de vida em harmonia com a natureza, caracterizado pela prática da nudez social, que tem por intenção encorajar o autorrespeito, o respeito pelo próximo e o cuidado com o meio ambiente”. Como Ribeiro aponta, é uma filosofia de vida. Na adolescência, durante a primeira metade da década de 1970, Ribeiro já se
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Revista Esquinas
reconhecia como naturista. Lia revistas de naturismo do exterior, como a norte-americana Health and Efficiency e a alemã Freies Leben, já que as brasileiras eram censuradas pela moral vigente na época e imposta pela ditadura militar. “Esse tipo de revista era considerado pornográfico, então era dificílimo ter acesso a elas”, recorda. As práticas começaram de fato somente dez anos depois, com a reportagem da Praia do Pinho, em Santa Catarina, publicada em 1984 pela extinta revista Manchete. As edições da publicação se esgotaram rapidamente e a praia se tornou um fenômeno. Hoje, Ribeiro é presidente da Federação Brasileira de Naturismo (FBrN).
Quando o carioca passou a se envolver com as práticas, o naturismo era escondido e incipiente, vivendo quase um “período de ostracismo”, como ele mesmo classifica. “Havia essa opressão oficial a respeito de qualquer coisa que não correspondesse à linha de pensamento da época, que era uma linha militar, de bons costumes. Tudo isso era considerado imoral”, comenta. O naturismo chegou tarde no Brasil. Ele começou no final do século 19, na Alemanha. Um dos seus precursores foi Adolf Koch, um professor de Educação Física e líder do movimento Freikörperkultur (cultura do corpo livre, em tradução direta). Koch, tendo dificuldades em implantar o exercício físico nu nos colégios alemães, criou o seu próprio instituto de educação nudista com o apoio do governo prussiano e com 3.000 alunos matriculados em 1929. A atriz e dançarina Dora Vivacqua, que ficou conhecida pelo nome artístico Luz del Fuego, destacou-se na implementação do naturismo no Brasil mais tarde, entre os anos 1940 e 1950. Foi a fundadora do primeiro reduto naturista da América Latina e a primeira nudista brasileira. “A perseguição ao comportamento e aos ideais de Luz del Fuego foi constante durante toda a sua vida. Reprimida pela família e pela sociedade, foi acusada diversas vezes de atentado ao pudor, internada em hospícios, presa, submetida a interrogatórios em delegacias de costumes e suas publicações sofreram perseguições, censuras”, escreve a edição de maio de 2017 da revista de cultura do Diário Oficial do Espírito Santo. Luz del Fuego só pararia em 1967, quando foi assassinada por dois pescadores a pauladas,
ARQUIVO / HEMEROTECA DIGITAL
na Ilha do Sol, no Rio de Janeiro, recanto do naturismo brasileiro onde morava. A postura e a ousadia de Fuego foi o gatilho para outras pessoas se afeiçoarem à linha de pensamento do naturismo, como Pedro Ribeiro e Eduardo Rossetto. Este é designer gráfico e presidente da Nós Naturistas (NN), atuante na cidade de São Paulo. Rossetto passou a fazer parte do naturismo na faixa dos 40 anos de idade: sempre teve interesse pelo movimento, mas apenas sua terceira esposa aceitou a ideia de pôr em prática as filosofias. Dessa maneira, começou a frequentar locais onde era possível exercer as ideias que tanto lhe eram atrativas. O designer explica que, sempre que possível, divulga o naturismo. Amigos, familiares e colegas de trabalho sabem das práticas, e ele tenta esclarecer eventuais dúvidas. “Não é putaria, que é o que a maioria das pessoas pensa. Quando eu percebo que não é o que ela está procurando, já digo com todas as letras que aquele não é o lugar dela”. Rossetto faz questão de acabar com os tabus e as confusões que surgem nas redes sociais principalmente. Ele conta que é comum que os não-praticantes confundam a filosofia com swing – relações sexuais entre dois ou mais casais.
Luz del Fuego ficou conhecida por disseminar as atividades naturistas e pelas danças com cobras consideradas sensuais. Também foi escritora e lutou pela emancipação das mulheres no Brasil
REPRODUÇÃO REPRODUÇÃO
O presidente da Federação Brasileira de Naturismo, Pedro Ribeiro, lia revistas estrangeiras para conhecer melhor as ações naturistas, mas só passou a pôr esses pensamentos em prática com a reportagem da Manchete de 1984
SEM FRESCURA. A defesa dos naturistas pela filosofia está no conceito de “aceitação do corpo”. “Seu corpo tem defeitos e qualidades. E o dos outros também tem”, explica o presidente da FBrN. Ao lado de Rossetto, Isabel Fantucci tem 55 anos, iniciou as práticas com o marido Oswaldo há cerca de seis e é a atual vice-presidente do NN. A mulher, que trabalha como policial civil na cidade de São Paulo, conta que os benefícios do naturismo são os de “uma vida sem frescura”. Além de melhorar a autoestima das pessoas, a rede de contatos e amizades que se estabelece a partir de então é muito importante. “É conhecer as pessoas o mais profundo que se pode conhecer, sem rótulos, marcas, clichês”. Ela diz nunca ter se sentido assediada durante as práticas naturistas e frisa que, caso alguém tente algo que está fora do que é permitido pela FBrN, essa pessoa é expulsa das reuniões e dos locais permitidos para as ações naturistas. “O naturismo é uma grande família com pessoas de 2 a 80 anos”, resume o presidente do NN. O grupo, oficializado pela FBrN, realiza uma série de eventos, como festas em sítios, natação em uma piscina indoor no bairro da Saúde, em São Paulo, aulas de yoga, ensaios fotográficos e também competições de culinária, o Nós Chefs Naturistas, que ocorreu em Arujá, a quase 50 quilômetros da capital. “Somos todos como formiguinhas tentando ensinar que a liberdade é possível, mas jamais desrespeitando o direito do outro, inclusive o de não ser naturista”, relembra a vice-presidente.
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MEIO AMBIENTE
Natureza em xeque Conflito entre ambientalistas e ruralistas ameaça a legislação ambiental brasileira Texto por Beatriz Biasoto, Beatriz Gil e Helena Leite
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Revista Esquinas
HERIS LUIZ CORDEIRO DA ROCHA
O
s ativistas ambientais estão preocupados com as declarações do novo presidente da República quando o assunto é meio ambiente. “Não podemos continuar admitindo fiscalização xiita por parte do ICMBio e Ibama prejudicando quem quer produzir”. Falas como essa, de Jair Bolsonaro, os deixam em alerta. Temem a perda da proteção da fauna e flora e, consequentemente, da identidade nacional. A preocupação tem fundamento. Segundo dados lançados em um relatório da Trase, plataforma que acompanha a produção de commodities agrícolas, seis das maiores companhias que comercializam soja (Bunge, Cargill, ADM, Louis Dreyfus, Amaggi e Cofco) foram responsáveis por 58% das exportações do produto no Brasil e causaram 68% do risco direto de desmatamento entre 2006 e 2016 no País. Os índices têm maior força na região do Matopiba – que compreende os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia –, uma vez que foi a área que mais perdeu vegetação nativa para o plantio do grão no cerrado. Atualmente, a legislação ambiental brasileira é considerada uma das mais completas do mundo. Com o intuito de proteger e conservar a biodiversidade do País, são 17 leis principais, aplicadas tanto a pessoas físicas quanto jurídicas. Quando o impacto ambiental gerado por alguma ação é de grande porte, o responsável pela fiscalização e acompanhamento do caso é a união entre o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e outros órgãos federais. Para efeitos de médio porte, quem toma a dianteira são as secretarias estaduais. Já quando a repercussão é pequena, a secretaria municipal do meio ambiente de cada cidade aplica as devidas penalizações. Porém, algumas mudanças polêmicas afetaram recentemente a legislação ambiental, como alterações no Código Florestal Brasileiro, e os rumos da proteção ambiental se tornam incertos no governo Bolsonaro, assumidamente apoiado pelos produtores agropecuários. Para a engenheira ambiental Vivian Guerra, essa é uma tentativa de desburocratizar processos. “Pontos extremamente relevantes social e ambientalmente passam a ser engolidos pelo sistema”, critica. PAPEL GOVERNAMENTAL. O Código Florestal tem como função estabelecer as leis que protegem a vegetação nas áreas rurais do país. Teve sua primeira versão assinada pelo presidente Getúlio Vargas em 1934. Na época, o regulamento atendia mais a industrialização do que preocupações ambientais, visando segurar os preços dos produtos produzidos e garantir o abastecimento nacional. Assim, a lei que previa a preservação de 25% das áreas cultivadas não chegou a ser de fato colocada em prática. Apenas em 1965, 31 anos depois, quando a lenha e o carvão não eram mais o foco governamental pela chegada dos combustíveis fósseis, a ideia de uma nova reserva florestal começou a existir. Além disso, a preocupação global em relação ao meio ambiente passou a ser maior, influenciando nas decisões internas. “Acredito que a sociedade está ficando cada vez mais crítica e não aceitando decisões que não sejam para o bem comum”, afirma Guerra, que cita como exemplo a reação massiva quando Bolsonaro mencionou uma possível unificação dos ministérios da agricultura e do meio ambiente. Em plena ditadura militar, o então presidente Castelo Branco cria os dois instrumentos que dizem até hoje quanto e como cada propriedade pode ser explorada. Os antigos 25% de vegetação nativa que deveriam ser preservados, chamados de “quarta parte”, passam a ser chamados por “Reserva Legal”. O tamanho da área a ser preservada passa a variar de acordo com cada bioma. Além disso, institui-se a definição da Área de Proteção Permanente (APP), espaço que deve ficar intocado e não pode ser explorado economicamente de nenhuma forma. Após o código de 1965, apenas o de 2012 teve mudanças efetivas e gerou debate em relação à flexibilização do uso da terra. Mesmo assim, as APPs e as Reservas Legais continuam existindo. O atual Código Florestal surgiu a partir de um projeto de lei de 1999 idealizado pelo deputado da bancada ruralista Sérgio Carvalho, de Rondônia. Após várias modificações, a lei final pen-
Apenas 7% da vegetação original da Mata Atlântica ainda existe 1º semestre de 2019
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Na Mata Atlântica, entre 2016 e 2017, o desmatamento caiu
no País ainda é muito recente. O evento Rio-92, por exemplo, foi o primeiro encontro que reuniu países para discutir a questão ambiental e ocorreu há menos do desmatamento da de três décadas. “Os adultos Amazônia foi causado de hoje não tiveram educação ambiental nas escolas, algo que pela agropecuária hoje toda criança aprende”. em relação ao Para ele, os resultados dessa período anterior educação virão a longo prazo. De agosto de 2017 a O rompimento da barrajulho de 2018, o bioma gem em Mariana, também em perdeu quase 4 mil km2 Minas Gerais, em 2015, revela conclusões inquietantes: desde área verde, o que truiu quase toda a cidade, sem do desmatamento equivale a cerca de contar os recorrentes danos aos teve como causa ecossistemas do Rio Doce, responsável pelo abastecimento de a pecuária e a do Pantanal já 230 cidades mineiras; 11 espéagricultura foi desmatado estádios de futebol cies de peixe do rio estão ameaçadas de extinção; a mancha de lama que seguiu o fluxo da Fontes: Imazon, SOS Mata Atlântica, Ministério do Meio Ambiente, WWF Brasil água fluvial foi parar no mar, deu para o lado do agronegócio, flexibili- bem aplicadas”, afirma. Siqueira cita a Se- próximo ao litoral do Espírito Santo; e os zando as normas de proteção ambiental, cretaria do Meio Ambiente de Arcos, inte- efeitos dos rejeitos no mar continuarão como anistias de multa, redução das áreas rior de Minas Gerais, em que existe ape- por mais de cem anos. Apesar dos danos protegidas e diminuição da recomposição nas uma pessoa para fazer a fiscalização e catastróficos, a situação ainda não foi reda vegetação. “[O novo Código Florestal] outra para o controle hidrológico. “Falta solvida. “A punição não chega e a recureduziu o alcance dos instrumentos de funcionário, estrutura, gente trabalhando, peração do ambiente deixa de ser discupreservação ambiental e anistiou os pro- reconhecimento. Falta dar poder ao Ibama tida”, afirma Thiago Siqueira, provando dutores que desmataram ilegalmente até como órgão de conservação para não ser sua posição em relação às leis brasileiras. julho de 2008”, explica Vivian Guerra. A submisso a interesses. Além de faltar polí- “São boas no papel, porém um tanto atualização gerou embates: de um lado, ticas que fomentem o desenvolvimento sus- quanto falhas na prática”. ambientalistas reclamando da diminui- tentável”, argumenta o especialista. ção da proteção; de outro, ruralistas coSiqueira apresenta uma visão cética, FACES DA MESMA MOEDA. Ao se falar do memorando a “evolução” do País e o fim como ele próprio afirma, para a preocupa- constante embate entre proteção ambienda “ditadura ambiental”, como afirmou ção dos brasileiros com o meio ambiente. tal e avanços do agronegócio, Marcelo a então senadora Kátia Abreu em 2011. O gestor ambiental diz que essa discussão Marcelino, diretor de pesquisa, avaliação
No Cerrado, o desflorestamento diminuiu. Apesar dos esforços, metade do bioma não existe mais
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LEI SUFICIENTE? Apesar da Constituição cumprir sua parte, a realidade é outra. A fiscalização não é fácil: órgãos como o Ibama e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), citados pelo novo presidente no início desta reportagem, são os principais responsáveis pelo controle e aplicação de penas a quem desrespeitar as leis ambientais. Contudo, a grande extensão territorial dos biomas e a violência por parte de latifundiários, muitas vezes pegos com mão de obra análoga à escravidão e irregularidades ambientais, dificultam esse processo. Tal cenário foi comprovado pela ONG britânica Global Witness, que ranqueia o Brasil na primeira posição para a morte de ativistas ambientais, com 57 assassinatos em 2017. O dado, porém, foi contestado pelo Palácio do Planalto ao afirmar que parte dos crimes contabilizados tinham a ver com outros aspectos, como tráfico de drogas. Para o especialista em gestão ambiental Thiago Siqueira, o principal impasse em relação às leis é a falta de aplicabilidade delas em âmbito municipal. “A gente vê que nos municípios mais afastados as leis ambientais não funcionam bem e não são
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O Pará é o estado com maior índice de desmatamento da Amazônia Legal
ADRIANA MATTOSO / SMA
Apesar de ser o bioma brasileiro mais devastado, a Mata Atlântica possui áreas de preservação, como as de Minas Gerais
EVANDRO RODNEY / AGÊNCIA MINAS
e monitoramento do ICMBio, afirma haver solução para os problemas ambientais. Ele menciona a exploração do minério de ferro na Floresta Nacional dos Carajás, área de conservação federal administrada pelo instituto, localizada ao sul do Pará. “Essa atividade ocorre mediante a conciliação dos interesses de exploração pela [mineradora] Vale das jazidas de ferro com os nossos interesses de conservação do patrimônio de biodiversidade da floresta. Essa conciliação segue o princípio de que haverá a admissão e a tolerância
de perdas que, porém, jamais poderão representar o desaparecimento definitivo e irrecuperável dos elementos de biodiversidade”, explica Marcelino. O presidente do departamento jurídico da Associação do Vale do Rio Pardo (Assovale), José Odilon, afirma que se sentiu prejudicado pelas leis ambientais, uma vez que “o desconhecimento do legislador, somado a interesses políticos, é capaz de atravancar o setor que alavanca o PIB nacional”. Mas concorda que a legislação é essencial para mediar as áreas agricultá-
CRISTINO MARTINS / AGÊNCIA PARÁ
veis e as áreas de preservação. A proposta dos agricultores, segundo ele, é melhorar a tecnologia para aumentar a produção sem mudar a área, não interferindo na preservação e conservação ambiental. Já quanto à nova perspectiva política para os próximos quatro anos, Odilon acredita que será boa para os agricultores em especial. Para ele, isso ajudará a desvincular a imagem do produtor rural à de um criminoso ambiental por trabalhar com tecnologia de ponta, minimizando os impactos e possibilitando uma produção considerada sustentável. Odilon espera que um cenário melhor no campo, “sem a criação de sanções e imposição de multas descabidas e execução de termos impossíveis de cumprimento”, possa aumentar a geração de empregos, produção de alimentos e de energia. Caminhando na linha tênue entre interesses ativistas e agropecuários, a legislação ambiental brasileira, apesar de ser uma das mais completas, apresenta algumas falhas claras. A tendência do governo Bolsonaro é que ele atenda mais aos interesses agropecuários, acarretando em uma possível melhora na economia, e levando a uma perda dos direitos conquistados em relação à preservação do tesouro nacional ambiental. Atingir o equilíbrio entre conservação do ambiente e exploração responsável é um desafio a ser encarado pelo País como um todo, afinal, até que ponto o agronegócio, a mineração, a indústria e o meio ambiente podem conviver em harmonia?
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SAÚDE
A violência do não vacinar Após décadas de progresso, Brasil decai nas taxas de imunização, resultando na volta de doenças erradicadas US FOOD AND DRUG ADMINISTRATION
Texto por Beatriz Calais e Maria Laura Saraiva Fotografia por Beatriz Calais
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o ano de 1904, um surto de varíola levou o médico e sanitarista Oswaldo Cruz a iniciar uma campanha de vacinação obrigatória. O ato não agradou as camadas mais populares do País que, sem maiores esclarecimentos sobre o que era o antiviral, recusaram-se a aderir à campanha. Assim, no Rio de Janeiro, eclodiu a Revolta da Vacina. De lá para cá passaram-se mais de cem anos, mas algumas coisas permanecem iguais. Ainda existe quem faça propaganda dos malefícios da vacinação, afirmando ter dados que comprovam seus malefícios. Nas últimas três décadas, o Brasil passou por grandes vitórias de imunização. Em 1989, registrou o último caso de poliomielite (conhecida como paralisia infantil, é uma doença viral que pode afetar os nervos e levar a paralisia ou até à morte também), recebendo, cinco anos depois, da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), o Certificado de Erradicação da Transmissão Autóctone do Poliovírus Selvagem. Os últimos casos de sarampo (doença infecto-contagiosa viral extremamente contagiosa que pode levar à morte) ocorreram em 2000 e, após essa data, todos os casos confirmados foram importados ou relacionados à importação, sendo o último deles em 2015, entregando ao País o certificado de erradicação da doença. Infelizmente, as vitórias duraram pouco. A menos de dois anos da última condecoração internacional, o cenário mudou. Em 2018, o Brasil voltou a registrar casos de sarampo, e apresentar uma baixa preocupante nas taxas de imunização contra a poliomielite. O sarampo, sem casos no Brasil em 2017, no ano seguinte passou de 1.553 registros de acordo com o Ministério da Saúde. Esse surto pode se relacionar a dois fatores associados: a falta de imunização prévia e a alta da imigração venezuelana no Norte do País, local com maior concentração de casos. A Venezuela é um país que sofre de surtos de sarampo. A partir da imigração para o Brasil, há o encontro com uma população que acredita estar imune à doença e, portanto, não se previne, espalhando o surto novamente. Segundo Isabella Ballalai, presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), as pessoas não estão se preocupando com a prevenção e a responsabilidade de estar com a cobertura vacinal em dia é do Brasil, não de outros países. Além da volta do sarampo, a poliomielite apresenta taxas baixas de proteção. De acordo com dados divulgados em julho de 2018 pelo Ministério da Saúde, há 312 municípios brasileiros com menos de
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Revista Esquinas
Vacina através dos tempos
1989
É registrado o último caso de poliomielite no Brasil
1904
Oswaldo Cruz inicia a campanha de vacinação obrigatória
2000 Últimos casos de sarampo no Brasil
2015
2018 Volta do sarampo para o Brasil
Novos casos de sarampo no Brasil decorrentes de importação
50% da população vacinada contra a paralisia infantil, sendo que a recomendação é de 95%, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). Para tentar reverter esses números, o mês de agosto de 2018 foi preenchido por vários Dia D, em que ocorreram campanhas de vacinação infantil para sarampo e pólio. Mesmo com o mês inteiro de campanha, a meta não foi alcançada. “Pais jovens nunca viram a doença e, muitas vezes, protelam a vacina. Não temer a doença faz com que a população relaxe com a vacinação”, afirma Ballalai. Por mais que o medo e a falta de informação com as vacinas sejam partes da problemática, a população não é a principal, responsável de sua proteção. Há outras questões, como o horário de funcionamento dos postos e a falta de vacinas. No dia 31 de agosto de 2018, a unidade básica de saúde de Ponte Grande, zona leste de São Paulo, estava sem as vacinas dpaT, preventiva do tétano, coqueluche e difteria, e da meningite C. A auxiliar de enfermagem do local relatou que tal situação se repete todo o mês e quando não falta uma vacina, falta outra. Em nota para o G1, o Ministério da Saúde informou que a empresa que produz as vacinas, a Fundação Ezequiel Dias, tem atrasado as entregas de compostos. Já o laboratório, divulgou estar com problemas atípicos na área de produção. A nota também dizia que a situação seria normalizada naquele mesmo mês. “ACHOLOGIA”. As fakes news possuem grande consequência nesse assunto. Um exemplo desse tipo de boato surgiu em 1998, na Inglaterra, quando o médico Andrew Wakefield publicou um estudo com dados falsos que relacionavam a vacina do sarampo com casos de autismo. Wakefield perdeu o direito de exercer a Medicina, mas esse boato ainda é disseminado. Esse tipo de publicação causa pânico até hoje, levando parte da população a questionar sobre a importância e a obrigatoriedade da vacinação. Desse modo, alguns vão procrastinando a dose anual da gripe e remediando a presença dos filhos nos postos. A escola e o pediatra cobram com frequência a carteirinha, mas, segundo Isabella Ballalai, mesmo com a carteira de vacinação irregular, não é possível impedir que uma criança tenha acesso à educação. “O problema da evasão escolar é ainda maior, as crianças não podem ser impedidas de estudar”, opina. Mesmo assim, quando os pais são questionados sobre a responsabilidade de imunizar seus filhos, alguns afirmam que a possibilidade de serem presos é preferível à injeção de “venenos” em suas crianças. Luana Ribeiro*, mãe de duas meninas, procura por médicos e instituições que não fazem exigências de vacinação, mas gostaria que essa decisão não fosse complexa. “Diversos países não colocam a va-
cinação como obrigatória por entenderem que isso não é papel do governo”, relata. Não é difícil encontrar grupos no Facebook que defendem a não vacinação. As postagens são semelhantes, tratam de efeitos colaterais graves e da toxicidade da vacina. Nos comentários, estão frases como “elas [as vacinas] não me protegeram, mas graças a Deus estou viva, pois pela vacina eu teria morrido”. Nesses grupos, os próprios membros afirmam e ratificam teorias e dados e censuram publicações que apontem o bem que as vacinas causam.
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Não temer a doença faz com que a população relaxe com o compromisso da vacinação Isabella Ballalai, presidente do SBIm
“Eu chamo de um movimento de ‘achologia’: a ciência do ‘eu acho’. O movimento anti-vacinas é ignorante”, afirma Lucy Vasconcelos, médica e diretora da Sociedade Paulista de Infectologia. A doutora ainda alerta que a não vacinação afeta a sociedade como um todo, por ser uma questão de saúde pública.
usa bengala e sente alguns incômodos na perna. Mazé diz não chegar a sentir dores, mas sensações estranhas, que a fazem evitar andar demais e pensar que ninguém vai querer sair com ela, já que caminha lentamente. Além das dores, teve de lidar com o preconceito. Suas diferenças físicas se ressaltavam com o uso de aparelhos de aço e botas ortopédicas, resultando em gozações dos colegas de escola. “Bullying tinha e fica, principalmente na adolescência. A gente se acha inferior”, relata. Mazé contraiu o vírus em 1949, quando vacinas de imunização contra a paralisia infantil ainda não existiam. Em 2018, as vacinas já conseguiram erradicar a doença, levando a preocupação para outra questão: o porquê as pessoas não estarem vacinando seus filhos. Os perigos do sarampo, da poliomielite e de tantas outras doenças são reais e podem ser prevenidos com a vacinação. Como alerta a médica Lucy Vasconcelos, o problema de não vacinar não diz respeito apenas a uma criança, mas sim a sociedade como um todo.
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A fonte pediu para não ser identificada
Os horários de funcionamento dos postos de saúde e as faltas ocasionais de estoque de vacinas são componentes da problemática da imunização no Brasil
RELATO PARA OS OLHOS VENDADOS. Vinte e nove e 34. Apenas quatro números de diferença que representam inúmeras implicações quando se trata de uma sequela vitalícia. Esses são os números dos calçados de Maria José Mallozzi, de 71 anos, vítima da poliomielite. Ela tinha dois anos quando sintomas de gripe e uma dor de garganta constante fizeram com que sua mãe a levasse em um médico e fosse diagnosticada com paralisia infantil. Mazé, como é conhecida, teve seus membros inferiores do lado direito paralisados, resultando em uma perna mais curta e mais fina que a outra, além da diferença de tamanho de seus pés. Mesmo com sequelas, Mazé relata que teve sorte. Na época em que ia ao hospital, costumava ficar envolta por crianças com sequelas maiores que a sua. Paralisias amplas, pessoas que nunca mais poderiam correr ou jogar bola sem a ajuda de aparelhos. Já no seu caso, mesmo com suas limitações, sempre trabalhou o corpo. Fez balé quando criança e hoje pratica pilates, hidroterapia e reforça seus membros com fisioterapia. Mas ainda possui empecilhos em sua vida. Caminhar é algo raro. Há oito anos,
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MEDICINA
O médico e os monstros Quase 60% dos profissionais de saúde já sofreram agressão no ambiente de trabalho, aponta pesquisa Texto por Maria Luiza Reghini e Matheus Fernandes
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uitas são as reclamações em relação aos erros de diagnóstico, atendimento desumanizado e negligência. Contudo, casos de violência que fazem do médico a vítima, apesar de pouco aparecerem nos noticiários, são mais comuns do que se imagina. As agressões podem ser físicas, verbais e até mesmo abusos psicológicos e sexuais. Em 2013, a cirurgiã plástica Renata Magalhães publicou em seu perfil do Facebook um texto no qual substitui a figura do médico por um motorista de ônibus. “Te dão um ônibus todo sucateado para dirigir. Vaza óleo, sua cadeira está com espuma faltando e isso começa a te causar dor nas costas. Você se cansa de reclamar para o seu chefe sobre as condições daquele ônibus, que são perigosas para os passageiros… e ninguém faz nada!”, escreveu, utilizando “ônibus” como uma metáfora para o “sistema de saúde”. “Até que um belo dia, o freio do ônibus não funciona, e todo mundo culpa você, dizendo que barbeirou”. O objetivo dela era denunciar a realidade desconhecida da profissão. Nesse sentido, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), em parceria com os Conselhos Regionais de Enfermagem (Coren-SP) e Farmácia (CRF-SP), realizou uma pesquisa em agosto de 2018 com 6.832 profissionais da saúde. A sondagem mostrou que 57,7% dos entrevistados já sofreram algum tipo de agressão no ambiente de trabalho, sendo que 75,6% dos casos se deram na rede pública. O estudo revelou ainda que quase 80% dos médicos não realizaram denúncia após a agressão, principalmente pela sensação de impunidade e falta de apoio da instituição pela qual atendiam.
Tipos de agressão sofridas Física Verbal
90%
89%
Outros
47% 34% 21%
18% 7%
4% Enfermagem*
Medicina
*Permitido mais de uma resposta
1%
Farmácia* Fonte: Cremesp
REPRODUÇÃO / MEUS NERVOS
O anestesista Solon Maia criou o blog Meus Nervos para denunciar os abusos da profissão por meio de cartuns
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Revista Esquinas
Faixa etária dos agredidos
Gênero dos agredidos
até 40 anos de 41 a 60 anos mais de 60 anos
Feminino
84%
Masculino
77%
84%
76% 57%
63% 43% 30%
23%
16%
18% 6% Enfermagem
7% Medicina
13% 13%
Farmácia
Enfermagem
Medicina
Farmácia Fonte: Cremesp
Os três conselhos lançaram no mês seguinte a campanha “Quem cuida merece respeito” para o combate à violência contra profissionais da saúde. “Precisamos reverter esse quadro, nos aproximando cada vez mais desses profissionais e de seus locais de trabalho, dando todo o apoio para que se sintam acolhidos e com segurança para denunciar as agressões sofridas”, afirma Lavínio Camarim, presidente do Cremesp. Há quase cinco anos, Felipe Audi, então plantonista de um pronto atendimento infantil, ficou entre salvar a vida de um paciente ou a própria. Após um conflito armado entre duas gangues rivais próximo ao hospital, começaram a chegar alguns pacientes baleados. “Um desses casos chegou e evoluiu com parada cardíaca, e iniciamos reanimação do paciente. No meio das manobras, ficamos sabendo que quem baleou o paciente estava questionando se estávamos tomando partido para a outra gangue. Uma ameaça. Chamamos a polícia no mesmo momento, mas as autoridades simplesmente não apareceram”, lembra. Desde então, não trabalhou mais no local. Nos casos de violência por um atestado médico, Viviane Dolácio é especialista. Dentro do Sistema Único de Saúde (SUS), a médica passou por apuros quando foi ameaçada de morte. Toda segunda e sexta-feira, uma de suas pacientes passava por consultas, sempre com os mesmos sintomas relatados. A frequência das visitas e a falta de justificativas aparentes chamou a atenção da doutora. Dolácio relatou que negava os atestados médicos e que sofria inúmeras ameaças de morte vindas da mulher. Um dia, a
médica descobriu que a “paciente dos atestados” trabalhava em uma empresa de segurança como responsável por guardar os armamentos. O anestesista Solon Maia conta que já foi agredido inúmeras vezes. Em um dos casos, teve “a sorte e a agilidade” para escapar da violência. “Encaminhei para a maternidade uma gestante no início do trabalho de parto. Como a ambulância estava demorando, o acompanhante veio reclamar comigo. Respondi, educadamente, que não poderia fazer nada, que só restava esperar. Então ele pegou o chinelo e atirou em direção ao meu rosto. Só não acertou porque consegui desviar”, relata. PROBLEMAS ALÉM DOS PACIENTES. Para identificar esses casos de violência dentro da Medicina, Maia criou o blog Meus Nervos em 2011. Unindo a paixão por medicina e a habilidade de desenhar, ele encontrou nas tirinhas uma forma de expressão e alívio. “Antes de entrar na faculdade, eu via o médico como uma figura respeitada, admirada, bem remunerada, que trabalhava em condições dignas. No final do curso, já havia percebido que não era bem assim”, recorda o profissional. Era bem pior do que esperava. O médico chargista também criticou a carga de trabalho de 120 horas semanais — o dobro do que é permitido pela lei 3.999, de 1961 — e cerca de 30 pacientes a serem atendidos no período de duas horas. Desistiu da residência em 2012. “Enfrentei Burnout, depressão e ansiedade. Engordei e cheguei a ficar hipertenso. A minha vida só foi melhorar quando saí da atenção básica, do SUS e dos prontos-socorros”.
O estresse gerado pelas situações de violência e as ameaças por parte de pacientes possibilitam o surgimento de diversas doenças, como as que Solon Maia adquiriu. O nome da Síndrome de Burnout, por exemplo, vem da palavra inglesa vinculada à ideia de “esgotamento”. A psicóloga Luciane Nepounuceno, pós-graduada em Psicologia Hospitalar, explica que o transtorno acomete os médicos de maneira silenciosa, quase que imperceptível. Dentre os sintomas, a sensação de isolamento, a competitividade excessiva e a perda de interesse nas atividades do dia a dia afetam não apenas o ambiente médico. Daniel Ferrari, médico generalista que atende em prontos-socorros de São Paulo, é capaz de notar os efeitos do Burnout em menos de um ano de formação. Ele cita a inexistência de horas de sono ou repouso frente à pesada carga de responsabilidades como uma das principais causas para o transtorno. “Existe um tabu muito grande que é a dificuldade que os médicos têm de detectar o próprio sofrimento, em se verem como pacientes e terem que procurar ajuda”, comenta Nepounuceno sobre a possibilidade de desenvolver sintomas mais graves da síndrome. Estimular melhor qualidade de vida, meditação, psicoterapia, esportes e boa alimentação são algumas soluções para evitar o transtorno. Longe de serem apenas números que colaboram com estatísticas, os casos de agressão se tornam relatos marcantes tanto na vida profissional quanto na pessoal de muitos médicos. A violência que ocorre dentro de hospitais e consultórios ainda é pouco retratada, apesar de colocar em risco a integridade dos responsáveis pelo bem-estar da população.
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DOSSIÊ
HECTOR BABENCO FILMES LTDA.
Registro do horror Atos de violência intrínsecos à sociedade brasileira geram cenário de guerra no País
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s dados das pesquisas assustam. Um em cada três brasileiros teve amigo ou parente assassinado, segundo o Datafolha. Já o ensino fortalece a desigualdade entre brancos e negros pelo território nacional, revela a ONG Todos pela Educação. O Datafolha também afirma que metade do Brasil diz sentir a presença do crime organizado na vizinhança de onde mora. Em 36 anos, cerca de 910 mil pessoas foram mortas com o uso de armas de fogo, de acordo com o Atlas da Violência 2018. Perante estatísticas nada animadoras, cabe a ESQUINAS realizar uma análise dos diferentes tipos de violência espalhados pela cidade de São Paulo e pelo País, dignos de um cenário distópico da ficção: desde as heranças históricas contra minorias sociais, passando pelos linchamentos públicos motivados por sede de vingança, até as atuais vítimas do cyberbullying. Resta a pergunta que não pode calar: existe um caminho de paz numa sociedade historicamente marcada pela violência e desigualdade social? Confira nas páginas a seguir. Em Pixote, a lei do mais fraco (1980), um menor abandonado foge do reformatório e passa a sobreviver no Rio de Janeiro como traficante, assassino e, inclusive, cafetão. Na imagem, nu, o protagonista corre do Camburão, símbolo do desamparo social e da opressão do Estado
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Revista Esquinas
No DNA nacional De agressões físicas a discursos que matam, a cultura da violência está plenamente disseminada pelo País Texto por Vinicius Marques
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ais um dia comum na Es- os crimes, seja qual for”, diz Carvalho. cola Municipal Ariosto “O ideal seria trabalhar para agilizar as Espinheira, na zona norte condenações, criar formas mais efetivas do Rio de Janeiro. Uma de investigação e garantir que o ambiente turma com alunos de 11 anos estuda prisional propicie maiores chances de resquando o tiroteio começa do lado de fora. socialização”. E é essa falta de políticas Tal qual um protocolo de terremotos, as de ressocialização e medidas preventivas crianças imediatamente se sentam no de educação que faz com que jovens crichão sob orientação do professor. Uma minosos, segundo o consultor, entrem em bala invade a janela da sala, atingindo um caminho difícil de se retornar. a garganta de um dos estudantes. Pouco Não há – e nunca houve – uma única tempo depois, uma ambulância parte da nação que tenha conseguido erradicar mesma escola. Mais um dia comum, em a violência. Segundo o relatório Estatísque o medo e a morte chegam e não são ticas Globais de Saúde: Monitorando a Saúde surpresas para ninguém em um País que para os Objetivos do Desenvolvimento Sustense acostumou a conviver com a chamada tável (ODS), divulgado pela Organização “cultura da violência”. Mundial da Saúde (OMS), 7,9 pessoas a Leandro Carvalho trabalha como cada 100 mil, foram vítimas de homicíconsultor de planejamentos no Instituto dio doloso em 2013. Em uma versão mais Papel de Menino, ONG de ressocialização recente deste mesmo relatório, de 2015, o Assim, a violência aqui segue gerando de adolescentes em conflito com a lei, que Brasil foi classificado como o nono país mais violência. Um jovem que é levado atua dentro da Fundação Casa. Para ele, com maior taxa de homicídios do mundo: ao mundo do tráfico por questões socioa violência física está diretamente relacio- 30,5 casos para cada 100 mil habitantes. econômicas, por exemplo, logo se torna nada às demais. “A cultura de violência mais um que incentivará as pessoserve como autorização para o agressor. as a declararem que “favelado não Taxa de homicídios por Uma sociedade que reproduz a violência presta”. E para todo ato e palavra no âmbito do discurso, em pouco tempo, 100 mil habitantes, em 2015 de violência, haverá uma resposta à cria as condições para autorizar a mesma mesma altura. Uma constatação de violência de forma direta”, argumenta. que a violência nunca tem fim. O que 85,7 Honduras Ele acredita que uma das principais raízes fazer então? Como lutar uma guerra deste cenário está na violência simbólica e aparentemente sem desfecho? nos efeitos de sua minimização. Para Gustavo Felício, o Brasil preEl Salvador 63,2 Segundo Gustavo Felício, funcionácisa “ampliar o investimento nas áreas rio público da Secretaria de Desenvolvisociais, o fortalecimento das institui51,7 Venezuela mento Social do Estado de São Paulo, o ções e o aprimoramento da cidadania tema está no “DNA brasileiro” há muito por meio da participação popular nas 48,8 Colômbia tempo. “Desde a colonização, a violência decisões sobre o orçamento”. foi utilizada como mecanismo de dominaJá Leandro Carvalho acredita que Belize 37,2 ção e poder”, comenta. “O contingente de o segredo está na educação. Um pripessoas pobres não ficou imune às diversas meiro passo seria o de reorganizar as formas de violência: física, psicológica, disfalas, “identificando a quais discursos Guatemala 36,2 cursiva, sexual e, sobretudo, institucional”. elas estão associadas e, na medida do E esse contexto violento não se resupossível, negar a reprodução desses Jamaica 35,2 me apenas aos “criminosos marginais”. discursos”. Em uma sociedade onde Segundo o Atlas da Violência de 2018, há o forte apelo de discursos agressiTrinidade e Tobago 32,8 produzido pelo Instituto de Pesquisa vos, especialmente vindos de figuras Econômica Aplicada (Ipea), o número públicas, haverá consequências prátide homicídios por intervenções policiais cas em todos os setores da população. Brasil 30,5 cresceu significativamente. Em 2006, o Para ele, espalhando a esperança em dado coletado era de 559 casos. Dez anos República Dominicana escolas e ONGs, consegue-se prevenir 30,2 depois, sobe para 1.374. a violência e possibilitar que o crime não seja a única opção. Afinal, a vioPOSSÍVEIS SOLUÇÕES. “O Brasil tem adotalência não deve ser entendida como do a estratégia de aumentar as penas para Fonte: World Health Statistics 2017 um beco sem saída.
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Justiceiros ou vingadores? No Brasil, os casos de linchamento são vistos por parte da população como uma forma de punir e superar a morosidade do sistema penal Texto por Mariana Martucci
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Brasil tem pelo menos um caso de linchamento por dia segundo o historiador José de Souza Martins em seu livro Linchamentos: a justiça popular no Brasil. Os primeiros registros documentais surgem na primeira metade do século XVIII, antes mesmo do surgimento da palavra “linchamento”. Nos últimos 60 anos, Martins estima que mais de um milhão de pessoas participaram de casos de violência coletiva. O linchamento surge de uma manifestação de um coletivo que tenta punir fisicamente a vítima, podendo resultar em morte e partindo de uma decisão repentina e, muitas vezes, imprevisível. Segundo Ariadne Lima Natal, pesquisadora do Núcleo de Violência da Universidade de São Paulo, as mortes em espaços públicos seguem o padrão de “homens jovens e adultos, pobres, de baixa qualificação profissional e moradores de comunidades periféricas”. A maior parte desses crimes ocorre em lugares onde as instituições, principalmente judiciárias, são tidas como falhas e precárias. A partir da manifestação coletiva de violência, a população deseja vingar um crime com rapidez e agilidade, algo que as instituições tradicionais não seriam capazes de fazer. “Não significa dizer que o Estado é inexistente. Ele só não é capaz de garantir a segurança que é esperada”, aponta Natal. Dentre as ocorrências, há sempre uma questão envolvida: o embate entre valores morais e condutas legais. Os linchamentos ocorrem principalmente como uma forma de vingança, e não por um anseio de “ justiça”. O coletivo pune a vítima por estar em desacordo com as concepções morais de quem é punido. Intensificando o discurso democrático de Justiça, a população nega a racionalidade do sistema jurídico, considerado caro e lento.
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Os crimes de linchamento não são previstos no Código Penal brasileiro. Cada agressão é classificada de acordo com sua natureza – homicídio e agressão física, por exemplo. Em muitos casos, a polícia é acionada por moradores que presenciam as agressões. “Antes, a presença da polícia era rara nas periferias. Porém, o quadro mudou e vemos aumentar cada vez mais o número de policiais nas ruas”, aponta a socióloga e professora da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) Jacqueline Sinhoretto. Conforme os números de
Souza Martins, 44,6% das vítimas de linchamento foram salvas, enquanto 47,3% foram feridas ou mortas. Em 2014, um jovem que roubava bicicletas na região do Flamengo, no Rio de Janeiro, teve suas roupas arrancadas, levou um golpe de faca na orelha e foi preso em um poste por um grupo de “justiceiros”. A foto do adolescente foi divulgada em diversos veículos e circulou pelas redes sociais, gerando um debate público acerca do tema. A âncora do telejornal SBT Brasil, Rachel Sheherazade, publicou no jornal Folha de S.Paulo o artigo Ordem ou barbárie, em que dizia compreender a atitude que o coletivo teve com o jovem amarrado. A publicação foi controversa, gerando apoio ou repúdio
por parcelas da população. Depois disso, a jornalista foi proibida pela emissora de exprimir opiniões pessoais durante as transmissões do telejornal. Dois anos depois, a dona de casa Fabiane Maria de Jesus, de 33 anos, morreu após ser linchada por dezenas de moradores do Guarujá, litoral de São Paulo. Ela foi espancada após circularem boatos, nas redes sociais, que afirmavam que a mulher sequestrava crianças para rituais de magia negra. Outro caso emblemático foi o do adolescente de 17 anos que, em 2016, teve a testa tatuada por dois homens que o acusaram de furtar uma bicicleta em São Bernardo do Campo, em São Paulo. Com os dizeres “Eu sou ladrão e vacilão”, Ronildo Moreira e Maycon Wesley dos Reis alegaram que queriam punir o rapaz pelo ato. Ambos foram presos por tortura, considerado um crime mais grave e, portanto, com pena maior do que o de furto. Noticiar a violência urbana de forma sensacionalista pode gerar um sentimento que legitime os casos de linchamento. A partir do momento que o criminoso é tratado como o problema final da violência, cria-se no imaginário popular que a eliminação do indivíduo traria também o fim da hostilidade urbana. As coberturas midiáticas sobre casos de violência trazem como eixo principal o contexto social para elucidar os casos, banalizando as ações coletivas de agressão. Para Natal, alguns setores da mídia têm um papel de destaque na perpetuação desse comportamento. Segundo ela, apesar de fazerem uma cobertura diária da situação da segurança pública no País, a abordagem se atém à exploração de tragédias e não discute com profundidade os caminhos a serem tomados para a superação dos problemas.
Pátria armada, Brasil Debate sobre mudanças no Estatuto do Desarmamento inflama opiniões que podem afetar toda a sociedade brasileira Texto por Isabella von Haydin
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iante da insegurança causada pelo aumento da violência no País, a sociedade busca novas formas de combatê-la. Entre elas, está o porte de armas. “Eu me sentiria mais seguro com uma arma. Mesmo que descarregada, assusta assaltantes, estupradores e outros” ou “Não dá mais para ser vítima de crimes e não poder fazer nada” são pensamentos comuns entre aqueles que são a favor do porte, como visto no discurso do atual presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, como proposta de segurança. Hoje, pelo Estatuto do Desarmamento, é possível ter uma arma considerando diversos critérios ministrados pela Polícia Federal (PF). É importante compreender que porte é diferente de posse. A primeira categoria permite o trânsito com a arma, enquanto a segunda, apenas a compra. O longo processo exige a comprovação de que o porte é uma necessidade, como para habitantes de áreas isoladas ou pessoas que sofrem ameaças, por exemplo. Após essa constatação, é preciso ter no mínimo 25 anos, ocupação lícita, apresentar documentação em dia e ter a ficha limpa. Testes psicológicos e de capacidade técnica também são requisitos, aplicados pela PF. Em 2005, durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, um plebiscito foi realizado para decidir se armas de fogo
e munições seriam comercializadas em todo o território nacional. No resultado, 63,9% da população foi contrária à proibição. Desde 2017, o Senado tenta emplacar um novo plebiscito para reavaliar o Estatuto do Desarmamento, revendo o conceito em áreas rurais e a permissão do porte e posse para qualquer um que esteja dentro da lei. Segundo a Constituição Federal de 1988, é dever do Estado proteger o cidadão. De acordo com Fernando Capano, professor da Faculdade Zumbi dos Palmares, em São Paulo, e advogado especializado em Segurança Pública, possuir uma arma é um direito daqueles que desejam. “Na sociedade em que vivemos, não dá para pensar em legítima defesa se você não tiver a oportunidade de reagir em iguais condições a quem está eventualmente atentando contra sua vida ou sua propriedade”, afirma Capano. Para ele, isso deve ser feito de forma regularizada, como já acontece hoje, porém mais flexível e com a inserção de investigações sociais. Em um País como o Brasil, discutir o porte de armas como uma resolução para a criminalidade é ignorar uma situação mais complexa: o tráfico de armamentos. A PF divulgou um estudo, no começo de 2018, que rastreou 9.879 armas apreendidas para analisar esse processo. As conclusões apontam que peças desmontadas, para despistar seu conteúdo, são enviadas dos EUA e, em seguida, já remontadas, transitam principalmente entre o Brasil e o Paraguai pelas mãos de traficantes. A mesma pesquisa aponta que 99% desse conteúdo entra no País por via terrestre. Com uma indústria que não rastreia seus produtos para comercializá-los mesmo com falhas, é fácil continuar com esses esquemas criminosos. Natália Pollachi, relações internacionais e membra do instituto Sou da Paz, considera o atual estatuto ideal, mas também observa que apresenta suas falhas. Ela conta
que os testes podem ser burlados por dependerem da honestidade de quem é avaliado, ainda que tenham sido feitos para evitar omissões e identificar características violentas e falta de controle emocional. “Neste momento de preocupação, as armas na mão da população parecem uma resposta imediata para todo o medo e frustração, mas é uma sensação falsa de segurança”, diz. A profissional julga importantes os estudos sobre o assunto, como o de Daniel Cerqueira, pesquisador e um dos coordenadores do Atlas da Violência de 2018, que conclui que o aumento de apenas 1% da circulação de armas reflete em 2% a mais nas taxas de homicídio. No plano de governo de Bolsonaro, o presidente cita que pretende reformular o Estatuto do Desarmamento para que o brasileiro possa exercer seu direito à legítima defesa, porém não afirma se será uma de suas primeiras medidas. Além disso, congressistas aliados ao político já se reuniram e se mostraram a favor da agilização de medidas para alterar a legislação.
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A rebelião contra o “sistema opressor” Texto por Henrique Artuni e Larissa Basilio
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erca de dez mil familiares que visitavam seus parentes encarcerados foram feitos de reféns no dia 18 de fevereiro de 2001, data da primeira megarrebelião no sistema prisional paulista. Trinta mil presos de 29 presídios do estado participaram do levante, possível graças à introdução da telefonia celular no ambiente carcerário, que agilizou a articulação entre eles. Foi o evento em que a imprensa se deparou com a sequência numérica 15.3.3 – ordem das iniciais de Primeiro Comando da Capital (PCC) no alfabeto. Mas, ainda que tenha tentado diminuir a sua exposição pública, o lema “Paz, Justiça e Liberdade” repercutiu nos noticiários. Os presos protestavam contra a transferência de alguns dos líderes do PCC da Casa de Detenção do Carandiru, na zona norte de São Paulo, para penitenciárias do interior do estado. Mais do que um susto, a rebelião exibiu poder, a capacidade de organização e a liderança do grupo. Criado no dia 31 de agosto de 1993, o Primeiro Comando da Capital era o nome de um time de futebol formado no Anexo da Casa de Custódia em Taubaté, o Piranhão, presídio de segurança máxima no interior paulista. A partir desse pequeno núcleo, em que oito presos perceberam que poderiam se unir contra a opressão dos demais e do sistema, surgiu o grupo que instauraria uma nova ética de autogestão com a “conscientização” dos encarcerados, criando regras como o veto ao crack nos presídios e a condenação da “caguetagem” e do estupro. Hoje, a facção domina 90% dos presídios de São Paulo. “O PCC nunca considerou que os ladrões são apenas sujeitos oprimidos pelo sistema, mas sempre considerou – e ainda considera – que o sistema é opressor. Ou seja, o sistema oprime, e os ladrões fazem guerra contra a opressão na visão deles. Guerreiros, mais do que vítimas, é como eles se veem”, afirma Gabriel Feltran, sociólogo e autor do livro Irmãos: uma história do PCC. O surgimento do grupo foi muito influenciado pelo massacre do Carandiru em outubro de 1992, no qual policiais
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militares acabaram com uma rebelião matando 111 presidiários. O PCC tomaria emprestado o lema “Paz, Justiça e Liberdade” da facção carioca Comando Vermelho, que havia surgido em 1979 no presídio de Ilha Grande com propósito similar de luta contra a opressão, mas que logo entrou para o mercado das drogas. O grupo paulista só aderiria ao tráfico em meados dos anos 2000, sob a liderança de Marcos Camacho, o Marcola. “O PCC costurou uma ampla rede de produtores, consumidores e distribuidores de drogas em todos os estados brasileiros a partir do momento que eles chegam nas fronteiras da América do Sul e acionam os grandes mercados produtores”, pontua Bruno Paes Manso, jornalista e autor de A guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil, livro que escreveu com a socióloga Camila Nunes Dias. Estima-se que o grupo tenha, hoje, quase 30 mil membros espalhados pelo País, responsáveis por manter girando um caixa que atingiu 200 milhões de reais em 2016, segundo o Ministério Público Paulista. Em levantamento da Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados de 2016, o mercado consumidor de drogas brasileiro produz uma receita anual de 14,5 bilhões de reais, usada na compra de armamentos e financiamento de outros crimes, além de contribuir para os avanços contra o Estado e a opressão violenta
Surgido após o Massacre do Carandiru, o Primeiro Comando da Capital se tornou um grupo criminoso de nível internacional sobre comunidades pobres. “Em vez da gente entender como funciona a indústria do crime, ficamos enxugando gelo, só prendendo e matando. É a linguagem de ataque ao ‘inimigo’, como se assim fosse resolver o problema”, critica Manso. Todo esse financiamento, que se tornou mais complexo a partir da entrada no mercado de drogas, sustenta a estrutura burocrática, financeira e também assistencial do grupo. Nas periferias, de acordo com o livro de Feltran, o grupo não aparece da mesma forma que no noticiário. “Na minha pesquisa, demonstro que Estado e mundo do crime coexistem como influências para essa parcela da população. Quando a pessoa tem um problema de saúde na favela, ela não vai procurar solução no crime, mas no Estado. Quando ela tem uma moto roubada, vai procurar alguém do crime para tentar reavê-la”, conta. Especula-se também que o grupo tenha influenciado na redução da violência em algumas regiões. No lugar dos ciclos de vingança, os assassinatos deveriam ter autorização do PCC para acontecerem. Menos mortes implicam menos atenção da polícia e, consequentemente, menos problemas para os negócios. Na Grande São Paulo, o índice de 60 mortes por 100 mil habitantes em 1999 – à época, dos mais violentos do País – diminuiu para dez. Ao mesmo tempo,
PCC CVRR
PCC
FDN PCC
CV
Bonde Comando dos 30 Classe A União do Norte
PCC CV Bonde dos 13
Mapa das facções no Brasil
PCC
CV
PCM Bonde dos 40 PCC
CV-CE PCC GDE
PCC
Máfia Tocantinense
Quadrilha do Perna
PCC
Uma facção Duas facções
PCC Família Monstro
PCC
PCC
Manos Bala na Cara Abertos Unidos pela Paz Primeiro Comando do Interior Os Tauros Os Brasas
Máfia Paranaense
IMPLICAÇÕES NACIONAIS. Para a ampliação de sua rede, o PCC adentrou o atacado das drogas, enviando a mercadoria a pontos varejistas sem exigir fidelidade ou filiação. Aos poucos, as ideias de se expandir pelo Brasil tomaram mais corpo. Ao mesmo tempo, o crime se expandiu por outras siglas. Nos primeiros dias de 2017, por exemplo, 56 detentos foram mortos na rebelião do Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, no Amazonas. Na época, Sérgio Fontes, secretário de Segurança Pública do estado, afirmou se tratar do maior massacre prisional amazonense. Os mortos faziam parte do PCC e foram executados por membros da Família do Norte (FDN) e do Comando Vermelho (CV). Em um intervalo de cinco dias, mais 33 pessoas foram assassinadas em uma nova rebelião, dessa vez em Roraima, em um presídio localizado na
PCC PCV
PCC PGC
Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública
conforme São Paulo ficava menos violento, os estados do Nordeste subiam no ranking da criminalidade.
PCC Bonde dos Malucos
CV ADA TCP
PCC
Três facções ou mais
PCC Okaida CV PCC
Comando da paz
Bonde dos Mercado do Malucos Povo Atitude Catiara
CVMT Família Monstro
PCC Okaida EUA
PCC
PCC CV-TO
PCC CV-RO
PCC CV Sindicato
capital, Boa Vista. A onda atravessou regiões: em Natal, no Rio Grande do Norte, outros 26 mortos entraram para os números da Secretaria de Segurança Pública. Segundo pesquisas feitas pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (Unodc), o consumo e comércio de cocaína na América do Sul teve aumento de mais de 50% entre 2010 e 2012, fenômeno oposto ao resto do mundo, que enfrenta quedas na comercialização da droga. Nas regiões Norte e Nordeste, há o aumento das taxas de homicídio e, consequentemente, de encarcerados nos presídios. O crescimento de presos contribuiu para a busca de novas formas organizacionais, muitas vezes margeadas pelo “modelo PCC” – algumas aliadas, outras inimigas da facção. Foi também o momento em que, face ao crescimento da hegemonia do grupo paulista, as relações entre CV e PCC deixaram o estado de “guerra fria”. Sem propostas efetivas em relação ao sistema prisional, as perspectivas de conter esse problema nacional ainda estão longe de se concretizar.
Movimentos de expansão O PCC articula um projeto expansionista pela rede carcerária com a criação de “Sintonias”, espécie de células vinculadas organicamente à estrutura paulista; Deslocamento de indivíduos foragidos, vinculados aos grandes grupos e, em geral, envolvidos em roubos a instituições financeiras; Surgimento de grupos locais em praticamente todos os estados, sejam eles aliados (como o Bonde dos 13-AC, Bonde dos Malucos-BA e Estados Unidos-PB), ou inimigos (como a FDN-AM, Okaida-PB, Sindicato do Crime-RN) do PCC; Expansão do CV por via da abertura de franquias em outros estados e de coligações com facções locais.
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Violência nossa de cada dia
Feminicídio, homofobia e racismo insistem em existir na sociedade brasileira
Texto por Beatriz Salvia, Bianca Quartiero, Karolyne Oliveira e Laria Faria
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or que certos aspectos da sociedade são tão difíceis de serem mudados? Por que aquele “tio homofóbico” persiste de geração em geração? Por que mulheres continuam recebendo menos mesmo exercendo as mesmas funções que seus colegas homens? Por que negros são os que mais morrem em um País em que são maioria? Para entender o porquê de violências contra determinados grupos ainda estarem tão presentes na sociedade brasileira, é necessário partir da ideia de violência estrutural. O conceito trabalha em uma esfera macro, a partir de toda uma estrutura que foi definida secularmente. Ela apresenta contrastes específicos e não são apenas atos violentos isolados, e sim motivados pelo ódio a um grupo específico. O historiador e professor René Duarte, formado pela Universidade de São Paulo (USP), defende que violência estrutural é tudo aquilo que retira direitos, marginaliza, exclui, consolida ou estabelece estereótipos dessas populações que são oprimidas há muito tempo. Entre essas minorias, estão negros, mulheres e a população LGBT. O professor Américo Maghoul, formado pela Universidade Católica de Santos também em História, reforça que é pela disparidade social e econômica que tais violências encontram seus caminhos até os dias de hoje. “A contínua desigualdade social e econômica, que cria cada vez mais excluídos, é provocada pela falta de acesso a uma educação de ponta, pelas injustiças, pelo
A expressão “feminicídio” foi usada pela primeira vez em 1976, no Tribunal Internacional de Crimes contra Mulheres, na Bélgica, pela ativista e escritora da África do Sul Diana Russell, que pesquisa a violência sexual cometida contra mulheres há 25 anos. No Brasil, o ato só foi ilegalizado em 2015, caracterizado como crime de ódio
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preconceito, pelo racismo, pela péssima distribuição de renda, pela falta de uma política fiscal séria e pela grande dificuldade de se levar à população os serviços mais básicos”, afirma. Maghoul acredita que as violências partem do período colonial, passam pela Independência, Império e chegam à República. Em todas essas fases, sempre foi possível identificar grupos pequenos – compostos por homens e de elite – que procuravam comandar tudo. Segundo René Duarte, não é do interesse das elites que a estrutura social mude. “É como se fosse uma conta: para uns terem privilégios, outros não podem nem ter direitos”, explica. A cada 19 horas, um LGBT é vítima de assassinato ou se suicida no Brasil segundo dados do Grupo Gay da Bahia (GGB). Por dia, morrem 12 mulheres vítimas de feminicídio segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Por sua vez, são os negros que constituem a maior parte da população (78,9%) dos 10% de indivíduos com mais chances de serem vítimas de homicídios conforme o Atlas da Violência 2017, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. CORES MANCHADAS. A causa LGBT ainda é um tabu para parte da sociedade. “Ser LGBT ainda é ser oposição, ser profano a várias coisas tidas como sagradas para uma sociedade heteronormativa e cisgênero”, afirma o jornalista Ciro Oliveira, formado pela PUC de São Paulo. Oliveira acredita que haverá uma regressão das pautas LGBT devido ao atual cenário político, porém afirma que o movimento nunca esteve tão fortalecido. O grupo é marginalizado às vezes dentro de sua própria família. A ativista e estudante Thaina Salomão ressalta a importância de existirem os grupos de apoio. “Eu acredito que os coletivos e os grupos são muito necessários para vivermos em sociedade, porque eles são um espaço de resistência muitas das vezes e nos permitem lutar com outras pessoas que sofrem o mesmo que nós”, defende. Oliveira acrescenta que a luta LGBT pode ser solitária e, por isso, esses coletivos têm um poder de gerar identificação.
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Ser LGBT ainda é ser oposição, ser profano a várias coisas tidas como sagradas para uma sociedade heteronormativa e cisgênero Ciro Oliveira, jornalista
O momento político atual não parece otimista. O presidente do Brasil a partir deste ano é Jair Bolsonaro, que já fez uma série de declarações consideradas homofóbicas e apresenta um discurso de viés conservador. “Infelizmente, as pessoas fazem política a seu favor”, critica Salomão. A estudante considera importante que existam “brasileiros de todas as formas, tipos e jeitos” nos movimentos políticos e dentro do Congresso. “Há uma resistência para entrarmos em lugares como a política, então é importante que cheguemos lá para mudar algo”. Apesar da situação, as Eleições de 2018 foram as que mais lançaram pessoas abertamente LGBT a candidaturas, totalizando 160 concorrendo a cargos políticos. É um acréscimo de 386% se comparado ao ano de 2016, segundo a ONG Aliança Nacional LGBTIQ+. Para os esperançosos, esse pode ser considerado um cenário promissor no que diz respeito à representatividade, sobretudo para a aprovação de leis que preservem as vidas de LGBTs e outras minorias. ELAS POR ELAS. Feminicídio é a morte violenta de mulheres em razão do gênero, que morrem simplesmente por serem mulheres. Criar uma legislação para esses casos é nomear algo até então ignorado. “A Lei do Feminicídio representa uma mudança cultural numa sociedade patriarcal”, destaca Eleonora Menicucci, ex-secretária especial de Políticas para as Mulheres, vinculadas ao Ministério dos Direitos Hu-
manos, durante o segundo mandato de Dilma Rousseff na Presidência. Ainda assim, só a lei não é suficiente. O Brasil está entre os dez países que mais matam mulheres do mundo. A atual relação de poder entre homens e mulheres foi histórica e socialmente estruturada. O patriarcado, em conjunto às crenças sociais, religiosas e culturais, oprime mulheres há séculos, e a formação da identidade feminina é o resultado determinado pelo que a sociedade espera do que é “ser mulher”. A violência contra mulheres vai de um comentário não requisitado sobre o seu corpo até a morte. O termo “feminicídio” foi usado pela primeira vez em 1976, durante uma fala no Tribunal Internacional de Crimes contra Mulheres, em Bruxelas, por Diana Russell, que tem se envolvido em pesquisas sobre violência sexual cometida contra mulheres há 25 anos. No Brasil, apenas em 2015 o ato se tornou ilegal de fato, sendo caracterizado como crime de ódio. Atentados contra a vida de mulheres foram tratados como assassinatos por terem sido anteriores à lei, como os casos da advogada Mércia Nakashima, da estudante Eloá Pimentel e da modelo Eliza Samudio. Em 2018, também houve uma renovação no Congresso Nacional para as mulheres: aumentou de 51 para 72 ocupando cadeiras. A advogada penal Priscila Pamela, que faz parte da Rede Feminista de Juristas, é rápida em sua resposta: aliada às
leis, a educação é o único meio de conseguir lugar de fala na sociedade, acabar com o machismo e, consequentemente, com o feminicídio. O coletivo de que participa é um grupo de mulheres cisgênero e transgênero que oferecem atendimento especializado por um preço simbólico ou gratuitamente para outras mulheres e promovem eventos, como palestras para fins educacionais. RESQUÍCIOS DO PASSADO. Uma terceira parcela da população que é dizimada e sofre o peso do preconceito são os negros. De acordo com a ONG britânica Oxfam, será somente em 2089, por exemplo, que brancos e negros terão renda equivalente no Brasil. Esse dado representa a superfície de um problema estrutural da sociedade brasileira: o racismo. Antonio Malachias, professor de Geografia formado pela USP e ativista negro, vê o racismo no Brasil como um resquício de mentalidade de um País colonizado e escravocrata. Fragmentos que inferiorizaram – e ainda inferiorizam – a população negra. A cada cem pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras de acordo com o Atlas da Violência de 2017. Uma ação sem treinamento e partindo de uma teoria racista faz com que os negros sejam o principal foco de morte pela ação policial, por exemplo. Os dados acabam por se cruzar, mas ainda se constata que boa parte dos mortos no Brasil atualmente são negros. Uma causa disso é o fato da
grande maioria da população pobre e de periferia, onde ocorrem agressões com mais frequência, ser negra. “Esses avanços [a favor de uma sociedade mais igualitária] são significativos, mas ainda insuficientes para promover de fato direitos e oportunidades iguais”, diz Malachias. Existe um grande bloqueio em aceitar a história escravocrata brasileira. Como lembra o professor, na Alemanha, existem museus que mostram o passado nazista e escancaram o extermínio de judeus, reforçando a lembrança coletiva dos erros do passado e impedindo que isso ocorra novamente. Apesar do cenário, existem maneiras de quebrar a estrutura racista brasileira. Malachias ressalta ações afirmativas como as cotas raciais, que deveriam ser vistas como parte do desenvolvimento nacional e precisam estar presentes no setor público e privado. Elas devem ser acompanhadas por campanhas educacionais para escolas e empresas. Diante desse cenário, o historiador René Duarte reconhece a complexidade das violências estruturais. “Se o mecanismo central, ou os mecanismos centrais, da nossa história e da nossa sociedade é marcado por essa ascensão da opressão, fica muito difícil mudar isso. Se a lei não funciona, a grande interrogação é como estabelecer políticas públicas que combatam essas violências estruturais”, declara. Um importante desafio a ser enfrentado por toda a sociedade brasileira o mais rápido possível.
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Cyber agressões Na era dos algoritmos e dos limites da privacidade sendo atacados, pessoas se veem de frente para outro tipo de problema: o assédio virtual Texto por Marina Baldocchi
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iovanna Bagio, de 18 anos, foi vítima de cyberbullying na pré-adolescência. No início, era uma brincadeira: uma amiga criou uma página no Facebook para, até então, elogiá-la. Após um desentendimento, a “fanpage” – como a menina chamava – mudou o nome de Giovanna Bagio, a perfeita para Giovanna Bagio, a puta. A garota não soube o que fazer e pediu ajuda para a mãe, que contatou advogados e a polícia. Bagio lembra que estava passando pelo término de seu primeiro relacionamento. Entrou em depressão. “Eu perdi toda a minha privacidade, era uma coisa super desconfortável. Tanto que, hoje, o Facebook é um trauma para mim, nem quero usar”. Ao contrário das agressões físicas, o cyberbullying – ou assédio virtual – tem um agravante: ele persegue a vítima onde quer que ela esteja. A popularização dos smartphones e das redes sociais entre os jovens faz com que as ofensas tenham maior alcance e afetem de forma significativa a vida das vítimas. Em 2017, o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) foi responsável por avaliar o comportamento dos jovens na internet. De cada quatro crianças e adolescentes, uma passou por ofensas no ambiente virtual, correspondendo a 5,6 milhões de pessoas entre 9 e 17 anos. Esse número cresce a cada ano: em 2014, o percentual de jovens que passaram por tal situação era de 15%, atingindo 23% dois anos depois. As vítimas ainda se veem de frente à outra situação desagradável: o desprezo por parte das autoridades de segurança. “Elas vão em uma delegacia e [os funcionários] desdenham dela, não dão crédito, não tratam realmente com a mesma seriedade, como se fosse um crime insignificante, menor, e não querem fazer B.O.”, diz o advogado especialista em crimes virtuais Jonatas Lucena. O problema também envolve a legislação atual do País, já que as punições para crimes virtuais são poucas. Ofensas na internet e perfis falsos são exemplos de impunidade. A professora infantil Cristine Braga, de 44 anos, passou por um caso de perseguição pela internet. Quando começou um namoro, em 2012, a ex-mulher de seu então
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namorado começou a mandar mensagens constantes para ela por um perfil falso no Facebook. “Começou a ficar bem bizarro, porque ela me mandava mensagem falando que ele estava lá com ela, ligava e desligava, essas coisas”, lembra. Ela fez um boletim de ocorrência denunciando a mulher e imprimiu as conversas que teve com ela para levar como prova. Essa perseguição pode se enquadrar como cyberstalking, um outro tipo de cyberbullying, considerado como crime contra a honra segundo Lucena. O caso acabou quando o juiz determinou que, se persistisse, a stalker seria obrigada a pagar uma indenização para o casal. Contudo, a perseguição no meio virtual ainda não tem uma lei específica para punição. Atualmente, tramita no Senado Federal o Projeto de Lei 236/2012 para a reforma do Código Penal, no qual o cyberbullying teria pena de dois a seis anos de prisão. Na opinião do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), dada por sua assessoria, a legislação atual ainda não é muito desenvolvida em relação aos crimes virtuais, um assunto relativamente novo para a sociedade e para a jurisdição – o cyberbullying poderia se enquadrar como injúria ou crime contra a honra, e não como um crime digital. Em 2012, o Código Penal foi alterado após a atriz Carolina Dieckmann ter sido chantegeada e fotos íntimas suas vazarem na internet. A lei criada passou a tipificar dentro da legislação os crimes de invasão de computadores para obtenção de vantagem ilícita, falsificação de cartões e de documentos particulares. O Marco Civil da Internet, por sua vez, garante os direitos fundamentais previstos na Constituição ao preservar privacidade e liberdade de expressão na internet. Mesmo sendo importante ao assegurar direitos no âmbito virtual, ainda falta muito para que essa legislação alcance o patamar ideal. “Não nos ajudou em nada, já que veio bem desatualizado”, opina Lucena. O advogado ainda afirma que a legislação atual é “completamente desatualizada, retrógrada e arcaica”, o que agrava os problemas de cyberbullyng e gera uma sensação de impunidade aos assediadores virtuais.
Utopia possível? Novas propostas, ideias e ações mostram como é viável alcançar uma cultura da paz Texto por Amanda Prado
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m dos casos mais emblemáticos que substanciam a cultura da paz é o processo de Independência Indiana, em 1947. Mahatma Gandhi, sem usar qualquer tipo de violência, lutou contra o sistema vigente em seu país. Segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), o termo “cultura da paz” é definido como “a resolução não violenta de conflitos”. Ao contrário do que enuncia o senso comum, o estado pacífico não exclui o conflito. Viver imerso em uma cultura da paz significa conviver bem com o heterogêneo, agregar o diferente e, inclusive, discutir. “É um conjunto de transformações necessárias e indispensáveis para que a paz seja o princípio governante”, define Feizi Milani, fundador do Instituto Nacional de Educação para a Paz e os Direitos Humanos (Inpaz). Essas transformações devem ocorrer tanto no nível do indivíduo quanto no das interações sociais mais amplas, como as relações governamentais e institucionais. Formas invisíveis de violência também costumam habitar macropolíticas econômicas e sociais, como aplicar a noção de meritocria em países com enorme desigualdade social. O Brasil é um exemplo. Como forma de preencher algumas das lacunas causadas pela exclusão social, ONGs e núcleos assistencialistas assumem
para si o papel de reerguer, ainda que pontualmente, a sociedade. Um exemplo disso é o Instituto Palas Athena, atuante em São Paulo e comprometido com uma educação que foque em soluções a longo prazo capazes de formar uma geração de pacifistas. O trabalho da instituição é baseado em pilares. Entre eles, a Justiça restaurativa. O advogado Luís Bravo, educador e pesquisador em projetos de Justiça restaurativa no Centro do Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo (CDHEP), explica o conceito. “É uma proposta de alternativas ao sistema de Justiça punitivista”, comenta. Para ele, o atual sistema de justiça é paradoxal e perpetua mais violência, pois se baseia na ideia de que um mal deve ser compensado por outro. “Ao mesmo tempo que a gente priva uma pessoa de liberdade, esperamos que ela aprenda a se ressocializar”, opina o pesquisador. O que essa alternativa de Justiça propõe é a restauração do que foi perdido em um crime ou conflito. Isto é, corresponsabilizar todas as partes e chegar em um acordo. O método parte do princípio de que os sofrimentos resultantes são causados pela quebra de uma ou mais necessidade humana, o que não implica apenas na reconciliação financeira, mas em uma reparação de significados. Isso pode ser feito por meio de um trabalho social ou acessando uma explicação para o acontecimento, por exemplo.
Na prática, o Instituto Palas Athena conta com o programa Gandhi e a Não-Violência, em parceria com a Fundação Casa, destinado à reabilitação de menores infratores no estado de São Paulo. Nele, instrutores voluntários oferecem cursos dentro do próprio Instituto e conversam uma vez por mês com 20 jovens mantidos dentro da Fundação. O programa é dividido em três dias: no primeiro, são apresentados os princípios que nortearam o ativismo de Gandhi. No segundo dia, é encenado aos menores detentos o monólogo Gandhi, um líder servidor. E no terceiro, ocorre uma roda de conversas para que todas as dúvidas sejam sanadas. João Moris, um dos voluntários, conta que o objetivo do projeto não é julgar ou moralizar os participantes, e é essa a razão de Mahatma Gandhi ter sido a figura escolhida para a mensagem que se pretende transmitir. “A gente, sem dúvida, acredita nesta ferramenta que é a arte para despertar reflexão”, declara. Além disso, a instituição realiza toda primeira terça-feira do mês o Fórum do Comitê da Cultura de Paz e Não Violência, que há 37 anos dissemina valores, princípios e metodologias de Gandhi. “A gente já teve muitos exemplos de jovens que ficaram tocados pelos depoimentos, mas não temos tempo hábil para criar um vínculo com eles, não só de confiança, mas um vínculo humano”, lamenta Moris. Apesar de caminhar a passos lentos, para o fundador do Inpaz, as prospecções por uma cultura da paz estão diante de um cenário frutífero. Feizi Milani acredita que a humanidade desloca-se rumo a um estado de união e generosidade mútuas. Para ele, o medo do desconhecido é o principal fator que impede a mudança por um mundo melhor. “Uma coisa é perceber que o modelo atual é insuficiente e ultrapassado, outra é construir algo que ainda não foi tentado. O ser humano tem uma tendência a temer o desconhecido e ficar apegado ao habitual, mesmo que tenha certeza de que aquilo não serve mais”, afirma. “Ele [o corpo] se fundamenta no reconhecimento da interdependência e na prática da cooperação, então não existe vida se não houver o reconhecimento desses dois princípios fundamentais”.
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ENTREVISTA ....EDITORIA
“A luta por democracia não é temporária” Laerte Coutinho, uma das maiores cartunistas do País, relembra o início da sua trajetória e comenta o atual momento político brasileiro Texto por Gabriela Sartorato e Renan Lima
N
ão é exagero afirmar que Laerte Coutinho, de 67 anos, é a maior cartunista transgênero do Brasil – aliás, ela é a única famosa. Ao lado de Glauco, Angeli e Adão Iturrusgarai, ela ajudou a elevar o cartunismo brasileiro a outro patamar. Laerte tem seu trabalho reconhecido, principalmente, pela representatividade de personagens como Suriá, uma menina negra trapezista, e Hugo/Muriel, que é homem ou mulher a bel-prazer. Ela ainda foi uma das primeiras figuras públicas a levantar a bandeira do crossdressing – ato de usar roupas e acessórios associados ao sexo oposto – e, posteriormente, assumir-se transgênero, o que culminou na criação da Associação Brasileira de Transgêneros (Abrat) em 2012. Tudo isso sem nunca perder o humor. Tamanha envergadura artística pode, em um primeiro momento, conferir-lhe uma aura altiva; embora tenha um
documentário inteiro para chamar de seu, o Laerte-se (2017), de Eliane Brum e Lygia Barbosa da Silva, ela raramente concede entrevistas. Fato curioso, pois é a própria quem recebe convidados em seu ateliê para conversar sobre os mais diversos temas no programa Transando com Laerte, exibido no Canal Brasil. Ainda assim, engana-se quem pensa que Laerte é dona de um ego inf lado. “É difícil me sentir orgulhosa dos meus trabalhos”, afirma. Ela também encontra dificuldade em enxergar motivos pelos quais se orgulhar diante de um período tão complexo para a política brasileira. Como alguém que, por meio de tirinhas e ilustrações, combateu e teceu ácidas críticas sociais contra a repressão da ditadura militar, ela frisa a necessidade da luta atemporal pela democracia. Confira abaixo a entrevista de Laerte Coutinho a ESQUINAS sobre sua vida, carreira e posicionamento político.
REPRODUÇÃO / LAERTE / FOLHA DE S.PAULO
ESQUINAS Você chegou a iniciar os cursos de Música e Jornalismo na USP, mas nunca os concluiu. Existe algum motivo para isso? Deve ter mais de um porquê, mas, para resumir, eu me desmotivei. Nunca fui muito de estudar, enquanto atividade disciplinada. Estudei e aprendi coisas em golfadas, pela vida, em classe ou de outras fontes. Entrei na Escola de Comunicação e Artes da USP (ECA) pensando em fazer Cênicas ou Cinema. Não havia o curso de Música quando entrei. Depois abriu e resolvi que era o caso, tendo alguma afinidade com piano e vontade de compor. Meu professor, Willy Correa, me fez ver que onde eu me expressava mesmo era no desenho. Tranquei matrícula e fui trabalhar. Depois voltei, para fazer Jornalismo, com uma pretensão acadêmica que nunca iria prosperar. ESQUINAS Como e quando decidiu ser cartunista? Desenho desde criança e, em algum momento, percebi que era desenhando que me expressava melhor no mundo. Em especial, gostava do desenho de humor, como via em revistas e em filmes de animação. ESQUINAS Ser cartunista é uma profissão valorizada no Brasil? No Brasil de hoje não há profissão valorizada. As relações de trabalho estão sendo demolidas sistematicamente. Se a pergunta se refere ao que é valorizado por essa estranha entidade – o “mercado” –, não sei dizer. A mídia impressa está num processo de crise e profissionais como cartunistas estão sendo, aos poucos, eliminados dos jornais e revistas.
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Revista Esquinas
As charges de Laerte já foram publicadas em veículos como Folha de S.Paulo, Gazeta Mercantil, Veja, IstoÉ e Placar
SOFIA COLUCCI
Desde que contou ser transgênero, em 2010, Laerte participa de obras que discutem a questão de gênero, como o curta-metragem Vestido de Laerte e o documentário De Gravata e Unha Vermelha
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REPRODUÇÃO / LAERTE
Apesar de hoje dedicar-se a charges e produções mais introspectivas, Laerte foi responsável pela criação de personagens clássicos do cartum nacional, como os Piratas do Tietê, Overman, Gato e Gata e Deus ARQUIVO PESSOAL
ESQUINAS Qual foi o trabalho que mais te deixou orgulhosa em toda a sua carreira? Não tenho um preferido. Aliás, é difícil me sentir orgulhosa dos meus trabalhos. Difícil no sentido de que é um sentimento custoso. ESQUINAS Em 1974, você fez trabalhos pró-democracia durante o regime militar. Como se sente e o que pensa sobre o fato de várias pessoas estarem pedindo a volta da ditadura? O esforço da luta por democracia não é temporário, ele tem que ser permanente. A própria ideia de democracia é algo em elaboração. Neste momento, envolve derrotar um sentimento radical de direita, que já foi mais reduzido, e se apresenta como ameaça concreta. ESQUINAS Você se assumiu transgênero em um período em que o assunto não era tão discutido como é hoje. Você nota alguma evolução na sociedade no que diz respeito à aceitação de pessoas trans? É uma questão que continua nebulosa, apesar de mais ventilada. Esse é o ponto em que estamos, aliás, há um avanço, acompanhado de feroz crescimento da agressividade e truculência. Fala-se e se elabora mais em segmentos da mídia enquanto se continua a perseguir e matar LGBTs pelo País inteiro. ESQUINAS Ao rever matérias da grande mídia e veículos alternativos do período em que você se assumiu transgênero, nota-se uma abordagem muito mais conservadora e heteronormativa da grande mídia. Você partilha dessa opinião? Sim, concordo com isso. Há um avanço nas abordagens sobre as questões de gênero em parte da mídia. Ao mesmo tempo, um crescimento dos ataques à discussão sobre essas questões, sobretudo em escolas, por meio de projetos de lei em pautas religiosas.
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Laerte Coutinho na década de 1990. A cartunista trabalhou ao lado de Angeli e Glauco, com quem formava o Los Tres Amigos
ARQUIVO
Um mundo sob ruínas No futuro distópico de Akira, Katsuhiro Otomo mostra uma cidade decadente e um governo em colapso
REPRODUÇÃO
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ano é 2019. A cidade de Neo Tóquio, erguida ao lado da cratera da antiga Tóquio, pulsa com a violência. Os movimentos sociais e a decadência são ofuscados pelos arranha-céus e suas vitrines que afogam a metrópole em luzes neon. Nos jornais, são noticiadas as manifestações da população desempregada após reformas fiscais de um governo corrupto que controla a cidade a punho de ferro. Escrito e dirigido por Katsuhiro Otomo, Akira, de 1988, revolucionou a forma de produção de animes. Para a época, novas técnicas de áudio e animação, como o prescoring, em que as bocas dos personagens são animadas realisticamente a partir dos diálogos gravados, foram pioneiras nas animações japonesas. O contraste entre o avanço tecnológico e a degradação do homem é o eixo principal da trama. A violência nas ruas é uma ferida aberta na capital ultra tecnológica. A corrupção que, como um câncer, toma conta de todas as esferas da sociedade faz do futuro fictício uma projeção distópica muito próxima do que podemos ver no presente. Nos “submundos” da Neo Tóquio, hordas de motoqueiros se enfrentam constantemente. Uma dessas gangues é liderada por Kaneda, um adolescente de 16 anos que incorpora a rebeldia contra o estado e o sistema de ensino autoritário que toma o controle da cidade. Durante uma perseguição entre gangues, Tetsuo, um integrante do grupo de Kaneda, se envolve em um acidente com uma estranha criança de aparência senil com poderes paranormais. Rapidamente, o Exército entra em ação para abafar qualquer suspeita sobre o ocorrido e Tetsuo é levado para testes em laboratório que despertam nele poderes telecinéticos. Parte da mágica da obra de Otomo reside justamente na forma como trabalha os limites entre o tecnológico e o sobrenatural, relacionando a estética cyberpunk ao xintoísmo e budismo – contrastes esses que caracterizam a cultura nipônica até hoje. Traumatizada pelas catástrofes nucleares após a Segunda Guerra, a Terra do Sol Nascente fica sob o espectro da total destruição seguida pelo renascimento. Marcado pela tradição religiosa, o anime retrata o ciclo de vida e morte de uma cidade hipertecnológica que se depara com o abismo de uma antiga destruição que novamente está presente no distópico 2019.
TEXTO POR GUSTAVO RAMOS
Em Neo Tóquio, o progresso técnologico e a degradação humana andam lado a lado
Paralelamente, a capital japonesa está à beira de um colapso causado pela disparidade social entre os grandes empresários e a população desempregada que vive na miséria. Diversos atentados terroristas abalam o governo, que não é mais capaz de conter a revolta. Nas ruas, a polícia reprime os manifestantes, que, no desespero, aderem a discursos messiânicos e fanáticos. Na busca por Tetsuo, Kaneda se relaciona com um grupo rebelde que espiona os militares cada vez mais presentes no controle do governo. Assim, descobre que diversos experimentos foram realizados em crianças. Uma destas, Akira, saiu do controle e resultou na obliteração da antiga Tóquio ficcional de 1988. A criação de Otomo embarca nas diversas histórias derivadas do fantasma da bomba atômica no Japão. Elas têm em comum ameaças tão misteriosas quanto destrutivas que colocam a humanidade em risco, a exemplo do monstro gigante Godzilla, criação de Tomoyuki Tanaka eternizada no cinema por Ishiro Honda. No making of do longa, o diretor diz que não há personagem principal ali. “Eu queria algo que fosse as divagações de Neo Tóquio”, afirmou. No final, a própria cidade se transforma na estrela do filme. Tetsuo é o protagonista para onde convergem os diferentes pontos de vista, que passa de um jovem franzino e inseguro para uma verda-
deira arma nuclear. A reviravolta é quando essa figura ressentida, até então frágil, se transforma em um personagem faminto por poder e destruição em busca de vingança contra seus opressores. Na mitologia do filme, existe uma energia bruta, responsável pela gênese e evolução do homem e do mundo. Tal poder é distribuído proporcionalmente aos seres e suas respectivas capacidades de modificação do universo – uma metáfora para a ciência e tecnologia. Em alguns casos, essa energia é concentrada em um único ser, como Akira e Tetsuo, e as consequências são o limite entre a criação e a destruição. Sob as obras da infraestrutura para as Olimpíadas de 2020, capturado pelos militares, Tetsuo encontra onde estão guardados os restos de Akira. No ápice do colapso do governo, o Exército toma o poder do estado em um golpe, focando todo seu ataque ao jovem com o poder superior ao que levou à destruição da antiga capital. Representando a insaciável sede de poder da humanidade, Tetsuo perde o controle tentando fundir seu poder ao de Akira e se torna em uma explosão de luz e energia que destrói mais uma vez a capital japonesa. No lugar de governos autoritários, ideologias fanáticas e um polo tecnológico, é deixado para trás apenas um amontoado de ruínas e cinzas.
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HISTÓRIA
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Luta em aberto Lei da Anistia divide opiniões em relação a seu impacto e possíveis interpretações Texto por Susana Terao
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m um cenário marcado pela ascensão da movimentação popular, falta de coesão entre as Forças Armadas e aumento das revoltas em quartéis, foi sancionada pelo então Presidente da República, o general João Batista Figueiredo, a Lei 6.693, conhecida como Lei da Anistia. Era 28 de agosto de 1979. A época era determinada também pela inflação estratosférica e pressão diplomática externa. A lei concedia aos perseguidos políticos, principalmente no caso dos banidos e exilados, a possibilidade de retornarem ao Brasil. Embora envolvida em diversas polêmicas, ela marca o início do processo de redemocratização brasileiro e regula os desdobramentos para a denominada justiça de transição. Conflitos internos na conjuntura militar, que inclusive comprometiam as estruturas do próprio governo do período, expunham a necessidade de uma transição para o fim do regime ditatorial. O general Ernesto Geisel, antecessor de Figueiredo, percebendo essa demanda, iniciou o que chamou de abertura “lenta, gradual e segura”. A partir do seu governo, essa abertura foi planejada meticulosamente para que a mudança para um sucessor civil fosse controlada pelos interesses dos militares e, assim, o País continuasse a ser conduzido a partir das decisões deles. Algumas medidas tomadas no fim do seu governo, por exemplo, foram a extinção do AI-5, a revisão da Lei de Segurança Nacional e a anulação do banimento de 120 exilados políticos. “A intenção das leis de anistia, ao final de regimes ditatoriais, em geral, é muito comum. Elas costumam ser um marco da negociação para saída de um período em que se predominou rompimentos institucionais. A articulação de quem está no poder é justamente pensar no seu desfecho e em como a normalidade democrática vai compreender esse passado”, aponta Mariluci Cardoso de Vargas, doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e ex-consultora de pesquisa da Secretaria Executiva da Rede Latino-Americana de Justiça de Transição (RLAJT) para a temática do desaparecimento forçado. O Movimento Feminino pela Anistia foi criado em 1975 em São Paulo por oito mulheres, responsáveis pelo documento Manifesto da Mulher Brasileira em favor da Anistia, no qual defendiam o indulto a todos atingidos pelos atos de exceção
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MATIZES IDEOLÓGICAS. A luta pela anistia política concretizou-se coletivamente a partir de 1975, quatro anos antes da lei, quando o debate público veio à tona. Foi o ano em que houve o culto em memória a Vladimir Herzog, jornalista torturado e assassinado nos porões da ditadura. A homenagem reuniu cer-
-americana, Rosalynn Carter, faz uma visita ao Brasil, Therezinha Zerbini entrega uma carta com um apelo para que ela pudesse sensibilizar as autoridades brasileiras para a questão da Anistia. O projeto de lei surge como uma tentativa de resposta aos governos internacionais, que estavam cientes das denúncias de graves violações de direitos humanos no país. A militante política Maria Amélia Teles, conhecida por Amelinha, foi presa e torturada em 1972, respondeu em liberdade a partir de 1973, teve seu julgamento dois anos depois, mas só conquistou a anistia propriamente dita em 1979 com a lei. Ela conta que, mesmo fora da prisão, ainda se sentia perseguida. “Você via que estava sendo seguida. Já cheguei ao ponto de começar a trabalhar e o Dops [Departamento de Ordem Política e Social] aparecer no local dizendo que a empresa não podia dar emprego para uma mulher que nem eu”, relata. Amelinha declara que recebeu uma “certidão de Anistia”, que carregava para todo canto como uma espécie
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É uma lei que surgiu a partir de um projeto articulado pelo governo militar Mariluci Cardoso de Vargas, historiadora
de alvará caso fosse questionada por seu nome e condenação anterior. O historiador Rodrigo Pezzonia, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, realiza pesquisas voltadas para a questão dos exilados. Pezzonia compara o caso do Brasil com o de outros países na América do Sul que também sofreram um golpe militar, como o Chile e a Argentina. “O exílio para os nossos vizinhos veio de forma massiva com a violência imediata do Estado contra grupos e indivíduos em escala numérica brutal”, analisa. AMPLA, GERAL E IRRESTRITA?. Para Pezzonia, a Lei da Anistia realmente favoreceu em diversos campos, mas não necessariamente foi um marco temporal que desencadeou uma onda de retorno ao País. “Quem se viu confortável e seguro de voltar antes voltou. Pessoas que não tinham processos vigorando na Justiça ou mesmo sentiam que a abertura era eminente, voltaram durante a década de 1970”. Ele cita que houve também quem não se sentiu seguro para voltar mesmo com a Anistia e só voltou na década de 1980 e também os que não voltaram por seguirem suas vidas fora do País. José Carlos Filho, doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e ex-conselheiro da Comissão de Anistia, aponta que a lei não foi “ampla, geral e irrestrita”, como os movimentos da época requeriam. Ela abriu uma exceção aos perseguidos que foram condenados pelos chamados crimes de sangue, envolvendo violência, como é o caso dos que participaram da luta armada e que estavam presos.
ARQUIVO / INSTITUTO JOÃO GOULART
ca de oito mil pessoas na Praça da Sé, no Centro de São Paulo, e foi considerada a maior manifestação pública contra a ditadura desde 1964. No mesmo ano, a ativista Therezinha Zerbini fundou o Movimento Feminino pela Anistia (MFPA), encampado pelas mulheres que tinham familiares perseguidos. O MFPA se formou com o intuito de unificar o País com pessoas de diferentes matizes ideológicas, dispostas a dialogar com Geisel e outras figuras militares. A pauta se amplia ainda mais após o surgimento dos Comitês Brasileiros pela Anistia (CBA) em 1978, que congregavam pessoas de diferentes partidos e tradições para fazer política. A participação popular também foi mobilizada por diversos outros movimentos que fortaleceram a oposição à ditadura, manifestando-se pelas minorias políticas, como o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, o Somos: Grupo de Afirmação Homossexual, a Associação de Favelas e o Movimento do Custo de Vida. Vargas pondera que, um ano depois, quando houve a reabertura partidária, os grupos que estavam concentrados na luta pela anistia desde 1975 tiveram a permissão de se articular nas questões partidárias. Dessa forma, as lutas foram diluídas nos programas de cada partido político. Segundo a historiadora, a negociação com o governo para trazer o corpo do ex-presidente João Goulart em 1976 para o Brasil, durante o exílio na Argentina, chama a atenção das autoridades no exterior. Tudo isso é ressaltado quando uma faixa escrita “ANISTIA” é colocada em cima do caixão de Jango. Ainda, quando a primeira dama norte-
Com uma faixa escrito “ANISTIA” sobre o caixão, o enterro de João Goulart gerou emoção e evidenciou um debate acerca da situação política do Brasil
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BEATRIZ MACRUZ ARQUIVO
Amelinha Teles, que foi presa e torturada na ditadura, prossegue na militância política até hoje
Nesses casos, houve a redução ou até a extinção da punibilidade para alguns. Muitos deles só foram anistiados após a Constituição de 1988 por meio de outros argumentos jurídicos. Amelinha reforça essas restrições ao relatar que, quando saiu a lista dos nomes nos jornais, ela e o marido foram anistiados. A irmã, presa por envolvimento na Guerrilha do Araguaia, não foi oficialmente processada e, por isso, não recebeu a anistia de imediato. O que sentiu no momento foi um “sentimento misto de alegria e tristeza”, em que se sentiu livre pela primeira vez em tempos, mas se entristecia pelos outros companheiros que, mesmo soltos, não foram anistiados e continuaram vivendo de forma limitada tanto em aspectos profissionais quanto sociais. A reciprocidade que a Lei da Anistia carrega é, possivelmente, o maior alvo de críticas. A partir do primeiro artigo da lei, atribui-se aos crimes cometidos pelos perseguidores a classificação como crimes conexos. Dessa forma, estes também acabam sendo beneficiados pela Anistia e, portanto, não podem ser levados a julgamento. Segundo Filho, o Poder Judiciário brasileiro ainda reafirma a mentalidade da ditadura. “O nosso País é o único da América Latina que não fez nenhum tipo de responsabilização aos agentes da ditadura. Assim que a ameaça ditatorial se afastou, o país precisava fortalecer seus sentidos e instituições democráticas”, afirma. Mesmo quando a Lei da Anistia é aprovada, o Congresso Nacional continua buscando revisões para ela. A Lei 10.559 de 2002 revoga alguns artigos
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da Lei de Anistia e estabelece direitos a quem tiver alegada a condição de perseguido político. Dentre eles, a declaração de anistiado político, a possibilidade de voltar ao serviço público e a estudar, a revalidação do diploma obtido no exterior durante o exílio, a contagem de tempo para efeitos de aposentadoria e a reparação econômica. A Comissão de Anistia é composta por cerca de 20 conselheiros indicados pelo Ministério da Justiça. Ela reúne todos os processos que já estavam tramitando nos diversos órgãos públicos no nível federal, que auxiliam na busca de documentos que afirmem a veracidade dos testemunhos. Ela não só analisou casos de reparação econômica, como também passou a preparar diversas políticas de memória, como as Caravanas da Anistia, realizadas em público com o intuito de resgatar a herança política do País, sensibilizando a audiência para os relatos pessoais. OBSTÁCULOS E CONQUISTAS. A Constituição de 1988 previu a anistia como reparação, mas não no âmbito penal. Ali se estabeleceram alguns critérios que, em grande parte, evocam a questão trabalhista na medida que a perseguição no Brasil aconteceu também no trabalho, tanto privado quanto público. As pessoas consideradas subversivas foram demitidas, colocadas em listas “políticas” e ficaram anos desempregadas. No campo jurídico, portanto, o testemunho é barrado. Dessa forma, a Lei da Anistia se sobrepõe à análise de documentos que dariam seguimento a um processo na esfera penal. Porém, os testemunhos enquanto registro de cons-
trução de memória não são impedidos de serem registrados e evocados. É possível se obter condenações no âmbito civil por ações declaratórias, que intitulam determinados perseguidores como torturadores por exemplo. É o caso da família de Amelinha Teles, que conseguiu mover, em 2005, uma ação declaratória que culminou três anos depois no reconhecimento do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra como torturador pelo Tribunal da Justiça de São Paulo. Para a militante política, há atualmente tanta distorção nos fatos históricos do país que esse tipo de condenação é muito importante para a memória, verdade e justiça do Brasil. “É preciso esclarecer os crimes cometidos para o País realmente construir uma democracia com transparência, sem essa dívida histórica com o povo”, conclui a militante. Mariluci Vargas afirma que o primeiro passo para compreender a Lei da Anistia é estar ciente das condições históricas nas quais ela foi criada. “É preciso notar que é uma lei que surgiu a partir de um projeto articulado pelo governo militar. Uma coisa é uma demanda social, outra é enxergar como o processo se desdobrou, dentro de um governo autoritário, e quais os limites da intervenção social para aprovação desse projeto”, explica a historiadora. A luta segue em curso para que a anistia possa favorecer os perseguidos – rotulados de “inimigos internos” –, e não os agentes estatais, que cometeram graves violações e crimes aos direitos humanos. “Não dá para se dizer que a busca pela anistia foi concluída quando a lei foi sancionada. É uma luta em aberto”, conclui Vargas.
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De olho nas liberdades Afrouxamento da censura no período militar deu espaço para a ousadia formal e temática na televisão brasileira Texto por Henrique Artuni
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m cara doce, um homem dos anos 1950, como meu pai, e que faz brincadeiras homofóbicas, mas é da boca para fora”. Foi assim que Regina Duarte, a “Namoradinha do Brasil”, descreveu o presidente Jair Bolsonaro, à época candidato ao cargo, em entrevista a Ubiratan Brasil, do jornal O Estado de S. Paulo em outubro de 2018. As novas gerações, que conhecem a atriz mais por declarações antipetistas, talvez nem imaginem que há 40 anos ela estrelou Malu Mulher, o seriado televisivo mais progressista de sua época. Na pele da socióloga Maria Lúcia Fonseca, a atriz quebrou os estigmas ancorados em seu apelido, dado em razão da fragilidade dos seus personagens românticos. Malu tinha pouco de “Namoradinha” ao enfrentar a violência de seu marido Pedro Henrique, interpretado por Dennis Carvalho, levar a cabo um processo de separação em plena década de 1970 e sair em busca de suas liberdades sexuais. “Passando no horário mais tardio da Globo, depois das 22 horas, Malu Mulher trouxe à baila assuntos que a TV não havia ousado até então por conta da censura”, afirma Nilson Xavier, pesquisador
No programa Abertura, Glauber Rocha experimentou com a linguagem televisiva e escancarou discussões implícitas sobre o Brasil
da teledramaturgia brasileira. O drama mostrava a mulher que questionava a tradição em busca da independência emocional e financeira. O programa dirigido por Daniel Filho abordava assuntos como aborto, orgasmo, sexo fora do casamento, anticoncepcionais, entre outros tabus. “O seriado tinha uma abordagem realista que não era calcada no folhetim, diferente do formato da telenovela”, diz o pesquisador, que considera a experiência ímpar na televisão brasileira até hoje. Contudo, Daniel Filho conta no livro Antes que me esqueçam, que, devido a pressões da emissora e do governo, a personalidade de Malu tinha que ser abrandada de episódio para episódio. Hoje, fica claro como Malu Mulher transitava entre morder e assoprar, sempre mostrando que sua protagonista não era uma feminista de carteirinha. METRALHADORA HISTRIÔNICA. Nesse mesmo 1979, a TV Tupi estreou o Abertura, um experimento dos mais originais e desregrados do telejornalismo brasileiro. Idealizado por Fernando Barbosa Lima, nasceu da necessidade de se falar de política e do Brasil na televisão. Lima levou o projeto a Petrônio Portela, então ministro da Justiça. “Esse programa só não vai ao ar se você não acreditar muito na democracia”, respondeu. Sem uma direção geral bem definida, o Abertura consistia em uma junção de blocos entre entrevistas e declarações de vozes malditas até então: de Darcy Ribeiro, Walter Clark e Nelson Rodrigues, passando pelo trabalho de jornalistas como Villas-Boas Corrêa, Sargentelli, Vivi Nabuco e outros. “O programa era bem caótico, quase como se fosse uma performance da própria abertura democrática”, conta
Em Malu Mulher, Regina Duarte encarnou a personagem mais progressista da teledramaturgia de seu tempo
André Corrêa, mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Apesar do programa ser gravado, parecia ser ao vivo, o que é bem significativo para um regime que até há pouco impunha a censura prévia. Mesmo sendo um marco por apresentar entrevistas com figuras como Ulysses Guimarães e Lula, quem roubava a cena era a histrionia de Glauber Rocha. “Na visão de Glauber, a televisão era um meio muito potente e que estava sendo mal explorado”, diz André Corrêa. Com claras influências da sua “estética da fome”, Glauber aparecia de camisa aberta e a câmera estava sempre incerta, desfocada, fechada no seu rosto. “As mazelas do subdesenvolvimento político e social traduzidas por um subdesenvolvimento imagético”, como resumiu o próprio cineasta. Prova maior de sua irreverência foi uma conversa de Glauber com Brizola – não o Leonel, que acabara de voltar do exílio. Brizola era o apelido de um jovem negro, morador da favela da Santa Marta, no bairro de Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro. Glauber metralhava perguntas a ele enquanto gesticulava, ordenando closes ao cameraman. Um tanto intimidado pelo vulcão do Cinema Novo, o entrevistado respondia a perguntas como “Você acha que você representa o povo brasileiro? Já ouviu falar em reforma agrária?” e até “Que bicho que vai dar amanhã?”, em clara referência ao jogo do bicho. Esse experimento, associado às suas últimas obras no cinema, cabe bem em uma proposta do cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard, também conhecido pelas técnicas vanguardistas e polêmicas: “amassar imagens e sons, sem perder de vista que o acaso é estruturado, como o inconsciente”. Com essa experiência na mídia de massa, o Abertura mostrou que era possível discutir política no Brasil em 1979. Acabou com o fechamento da TV Tupi, em junho de 1980 – pouco mais de um ano depois de seu lançamento.
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FOTORREPORTAGEM
O riso, o choro e a vida Palco para as maiores companhias teatrais do mundo, São Paulo abriga grupos das mais diversas vertentes Fotografia por Henrique Artuni, Larissa Basilio, Leticia Giollo e Victor Kiyoshi
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Theatro Municipal de São Paulo entrou para a história brasileira ao sediar a Semana de Arte Moderna de 1922, que revolucionou todo o sistema cultural do País. Ao longo de quase um século, a capital paulista viu florescer por suas ruas salas de espetáculo das mais diferentes vertentes teatrais. Do palco italiano à arena, passando pela ruas da metrópole, a Paulicéia Desvairada, antevista por Mário de Andrade, atualmente recebe montagens não apenas de companhias nascidas aqui, mas também das mais diversas partes do Brasil e do mundo. Somente uma cidade com a diversidade de São Paulo pode abrigar ao mesmo tempo encenações de rua como a Medusa Concreta, a efervescência eterna de Zé Celso Martinez Corrêa em seu Oficina ou a montagem de óperas absolutamente clássicas, como as que o ocorrem todos os anos no já mencionado Municipal. Do Teatro Brasileiro de Comédia à arquitetura ousada e libertária de Lina Bo Bardi para o Oficina, em comum, a cena teatral da cidade tem o respeito absoluto por todas as manifestações dramáticas. Se São Paulo pode ser vista como um palco, seus teatros são as coxias de uma cidade que, ao longo de sua história, aprendeu a receber “atores” da comédia e da tragédia humanas. Mesmo sem uma sala para limitar o espaço cênico, Medusa Concreta possui uma trilha musical ao vivo, poemas visuais e monólogos
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Medusa Concreta, encenada pela Companhia Les Commediens Tropicales, utilizou as ruas da Praça Pedro Lessa, no Centro, para discutir violência sexual e a cultura do estupro
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Na área central da cidade, próximo à Cracolândia, o Teatro de Contêiner Mungunzá se tornou referência numa das regiões cujas políticas públicas se mostram ineficazes
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As estruturas precárias dos ambientes em que Os Satyros atua contribuem para a criação de uma atmosfera underground
Eleito pelo jornal The Guardian como o teatro com melhor projeto arquitetônico do mundo em 2015, o Teatro Oficina Uzyna Uzona foi idealizado por Lina Bo Bardi em 1991, apesar da companhia existir desde 1958. Encabeçado pelo diretor Zé Celso, o lugar é reconhecido pelas experimentações ousadas em encenações de O Rei da Vela, Hamlet, Os Sertões, entre outros. Com apresentações trangressoras que se desenrolam, literalmente, nos subsolos da metrópole, o grupo Os Satyros, criado em 1989, é responsável pelas mais famosas interpretações da sexualidade violenta do Marquês de Sade no Brasil. 38
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Em briga judicial com o grupo Silvio Santos pelo terreno ao redor do Teatro Oficina, a companhia planeja usar o espaço para ampliar suas atividades
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O Teatro Popular João Caetano, na zona sul, já recebeu personalidades como Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre
Motivo de embates entre instituições desde o seu fechamento em 2008, não há perspectivas para a reinauguração do TBC
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Com capacidade para 90 pessoas, o Teatro de Arena foi palco de clássicos como Eles não usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri
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Entre os mais importantes palcos de São Paulo, destaca-se o Teatro Brasileiro de Comédia, inaugurado em 1948 pelo industrial Franco Zampari. Foi escola para Cacilda Becker, Paulo Autran e Fernanda Montenegro. De portas abertas desde 1952, o Teatro Popular João Caetano sedia espetáculos diversos, como dança, shows e peças infantis. Já o Teatro de Arena Eugênio Kusnet, com as mesmas características de sua concepção em 1953, foi um reduto da experimentação, abrigando muitas produções de Augusto Boal – que nomeia a sala principal.
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CE DO C/ FU NA RT E
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O Teatro Renault foi o primeiro cinema sonoro da América Latina e serviu de modelo para várias outras casas de São Paulo
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Apesar da modernidade da estrutura, o Theatro Net reproduz uma arquitetura à moda dos cinemas antigos
O Theatro Municipal de São Paulo é um dos símbolos cosmopolitas do século XX, no Centro da cidade. Com recursos provenientes dos barões do café, a alta sociedade desejava uma casa à altura dos valores culturais europeus. Tombado em 1981, o prédio de traços neoclássicos já passou por três reformas. Outra casa da cidade é o Teatro Renault, antigo Paramount e Abril, de 1929. Sofreu um incêndio em 1969 e foi reformado em 2000. Inaugurado em 2014, o Theatro Net, localizado dentro do shopping Vila Olímpia, é palco de grandes produções da Broadway.
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A รณpera Turandot, do italiano Giacomo Puccini, foi um dos destaques de 2018 no Theatro Municipal
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A percussionista Sivuca se destaca na música e em projetos sociais Texto por Elias Leite e Yasmin Luara 2014, Malala Yousafzai, em sua passagem pelo Brasil em julho de 2018. Apesar de todos os holofotes, uma coisa que Sivuca não abandona por nada é o trabalho social que realiza com jovens. ESPERANÇA E ACEITAÇÃO. Em São Miguel Paulista, na zona leste da cidade, Sivuca faz parte do projeto social chamado Banda Alana, ligado ao Instituto Alana,
organização da sociedade civil sem fins lucrativos, que nasceu com a missão de “honrar a criança”, promovendo o desenvolvimento integral dela. O grupo foi criado há 12 anos e ensina percussão aos jovens da comunidade. São Miguel Paulista é conhecido por ser um dos distritos mais perigosos da cidade. Já foi considerado, por exemplo, o bairro mais violento da cidade pela Organização das Na-
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PERFIL
Bora pro
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entada à mesa de uma hamburgueria, Silvanny Rodriguez, mais conhecida por Sivuca, transparece pouco seus 36 anos, talvez por seu estilo despojado e moderno. Para um observador desavisado, pode ser uma mulher qualquer, com suas roupas simples, dreads e fala descontraída. Mas trata-se de uma das mulheres mais empoderadas da percussão brasileira. O pai tinha preferência pelas exatas, a mãe, pela área de biológicas, e ninguém da família estava envolvido com o campo artístico. Ainda assim, Sivuca começou na música quando era pequena. Aos 7 anos, aprendeu a tocar pandeiro por conta própria, apenas observando um amigo da irmã mais velha. Com o apoio dentro de casa, passou a estudar instrumentos de percussão. Sete anos depois, dava a primeira aula em uma escola especializada em música. “Meu professor disse que eu tinha potencial e me botou para ensinar”, lembra. “Nunca pensei em trabalhar com música, mas acabou rolando”. O apelido veio do sanfoneiro paraibano Sivuca. Na escola de percussão, ela era a única menina e tinha mais facilidade que os colegas. Conseguia fazer movimentos diferentes em cada mão simultaneamente – habilidade conhecida como “independência de mãos”. Passaram a chamá-la pelo novo nome, usando a aparência do músico como provocação. O professor afirmou que aquilo era um elogio, já que o sanfoneiro era tão talentoso quanto a garota. Desde então, leva o apelido consigo para onde for. Paulistana de nascença, a paixão pela música só cresceu com as aulas. Ela é conhecida por sua habilidade com o timbal, instrumento baiano muito usado por artistas como Ivete Sangalo e Carlinhos Brown. Passou um ano em Salvador, na Bahia, aprendendo com aqueles que conheciam o instrumento desde o berço. “Comecei a me dedicar muito, vivi lá e tive bons mestres, como Neguinho do Samba, Gabi Guedes e Márcio Brasil”, relembra da época com gosto. A percussionista já trabalhou e ainda trabalha com músicos famosos da mídia, como o rapper paulistano Emicida, no álbum 10 anos de triunfo. Além disso, ministra aulas em blocos de Carnaval como o Me Lembra que Eu Vou, o Bangalafumenga e o “Bloquinho”, voltado para famílias e crianças. É a única mulher a comandar uma bateria mista na cidade de São Paulo, a Bateria Colorida. Sua empresa especializada em espetáculos musicais, a FBA Eventos, tocou para a ativista paquistanesa e ganhadora do Prêmio Nobel da Paz de
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A Sil me influenciou desde o primeiro dia, não apenas como músico, mas como pessoa Rodrigo Aleixo, músico
choque! ções Unidas em uma pesquisa publicada no jornal Folha de S.Paulo em 1998. Segundo o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, o bairro está na 36ª posição entre os 96 distritos policiais em taxa de homicídios, com um índice de 10,3 por cem mil pessoas. Essa taxa vem aumentando desde 2013. Ao lado de Guaianases, Itaim Paulista, José Bonifácio, São Mateus, Lajeado e Vila Curuçá, faz parte do “Cinturão do Latrocínio” de São Paulo.
“A Sil me influenciou desde o primeiro dia, não apenas como músico, mas como pessoa. Se não fosse ela, com seu jeito de mãe e mestra, talvez eu tivesse me envolvido com drogas e crimes ou poderia até mesmo estar morto”, afirma um de seus alunos, Rodrigo Aleixo, que hoje a auxilia no projeto. Cristina Linhares, outra aluna, tem uma opinião parecida. “Antes de conhecer a Sil, eu pranchava meu cabelo, pois havia muito preconceito com cabelo afro. Depois, deOTÁVIO ALVAREZ MOURELO
Durante as aulas no bloco Me Lembra Que Eu Vou, a musicista demonstra seu talento com diversos instrumentos
cidi aceitar as minhas raízes e mostrá-las sem vergonha”, conta. Sivuca carrega consigo um bordão pessoal: “bora pro choque”. O lema foi criado para representar atitude, não ter preguiça e estar sempre pronto para a ação, qualidades que a percussionista sempre carrega consigo. A frase se transformou em hashtag, utilizada pela artista em suas postagens e nos blocos sob sua supervisão. Tornou-se estampa de camisetas, bonés e instrumentos musicais, além de página no Facebook.
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TALENTO E INSPIRAÇÃO. Além dos projetos sociais, Sivuca trabalhou com profissionais que tiveram certa influência em sua trajetória, como é o caso do maestro, compositor, diretor e produtor musical Marcos “Xuxa” Levy, seu “padrinho de carreira”. “Desde que eu vi a Sil pela primeira vez, uns 20 anos atrás, percebi que ela tinha talento”, comenta. “Não era perfeito, mas potencial ela tinha. Poderia se tornar uma grande percussionista se continuasse a se dedicar. E foi isso que ela fez”. Para ele, a importância de Sivuca no mundo da percussão brasileira também vale para o que ela representa. “Apesar de ser talentosa, a Sil ainda não inovou nada no mundo da percussão, como o Carlinhos Brown fez. Mas ela é mulher, negra, lésbica e espírita, e tudo isso incomoda, mesmo no mundo da percussão que é um ambiente mais popular”, explica. Júlia Favero faz parte da Bateria Feminina FBA, criada em 2018 e formada apenas por mulheres, e pensa do mesmo modo que Xuxa. “Ver a posição que ela ocupa hoje de percussionista, mestra e professora faz com que mulheres musicistas como eu queiram atingir o mesmo nível um dia”, comenta. Todo o talento como musicista, professora e mãe para seus alunos não basta. Para Xuxa, ainda há pontos a aperfeiçoar. “A Sil precisa se arriscar mais, criar mais. Nos lugares em que ela dá aula e nas coisas que faz para ela mesma, ela ainda cria bastante coisa. Mas quando ela precisa sair da zona de conforto e tentar um trabalho diferente e mais arriscado, ela se contenta com aquilo que pedem para ela fazer”, critica. A percussão é, sempre foi e sempre será a maior paixão de Silvanny Rodriguez. “O meu coração pulsa para a música”, ela diz para todos do bloco Me Lembra que Eu Vou. Apesar de seu sucesso, a artista afirma que a maior herança que pode deixar é a música, principalmente para seus “filhos” do Instituto Alana. Sivuca carrega consigo o sonho de oferecer aos meninos de São Miguel a oportunidade de ter a música como trabalho e vida e pretende continuar levando o universo da percussão para crianças, adolescentes e adultos.
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EDUCAÇÃO Completando 70 anos de lançamento, a cartilha Caminho Suave continua com grandes vendas apesar de ser criticada por alguns professores e instituições Texto por Beatriz Calais e Maria Laura Saraiva Fotografia por Maria Laura Saraiva
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rem aprender o português e é exportada para países de língua portuguesa, como Portugal e Angola. Democrática, está presente em igrejas, ONGs e programas de alfabetização solidária. E não menos importante, com uma interrogação inclusa: o questionamento de sua atemporalidade. A dúvida fica cada vez mais relevante no decorrer dos anos. O contexto histórico e social em que foi escrita já não é mais o mesmo. Ademais, os avanços nos processos de alfabetização fizeram com que o método exposto nela fosse considerado antiquado, inclusive pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC), que não a recomenda.
Entretanto, algumas escolas ainda apresentam explicações lógicas para o uso do método. É o caso do Externato Santo Eduardo, escola particular, do primeiro ao quinto ano, localizada no Bom Retiro, Centro da capital paulista. A diretora Rita de Cássia Giongoli conta que para seu público, majoritariamente coreano, a cartilha se mostrou a opção mais eficaz. A associação entre imagens e sons, na opinião da diretora, é o principal diferencial e facilita o aprendizado entre estrangeiros e crianças com alguma dificuldade ou deficiência. Em um pequeno passeio pelas salas de aula, é possível perceber as crianças REPRODUÇÃO
fase da alfabetização é inesquecível para muitos. Talvez essa seja a explicação para a mais famosa cartilha de educação do País, Caminho Suave, redigida por Branca Alves de Lima, em 1948, estar completando 70 anos de lançamento. Após tanto tempo, ainda é possível encontrá-la nas bancas de jornal, nas escolas e em bienais do livro, não apenas como uma nostálgica lembrança do passado, mas também como a realidade de quem ainda persiste na utilização da obra como método de alfabetização infantil. Essa persistência fez com que, de acordo com a editora Edipro, que publica a cartilha, a Caminho Suave tenha alcançado apenas neste ano a média de 14 mil exemplares vendidos no Brasil, sendo seis mil em São Paulo. Já a estimativa de vendas desde a primeira edição até os dias de hoje ultrapassa a marca de 40 milhões. “Nossa visão é que a permanência da cartilha Caminho Suave está ligada à sua eficácia e facilidade no processo de alfabetização. Na idealização da autora a ideia é que os estudantes percorram um caminho suave no letramento”, opina Maíra Micales, coordenadora editorial da Edipro. Micales não é a única a confiar na eficácia da cartilha. A Caminho Suave ainda é vendida como método oficial de alfabetização em algumas escolas. Familiar, a publicação é comprada como método de reforço em casa. Inesquecível, é consumida como recordação por saudosistas. Internacional, faz sucesso com povos que que-
A cartilha Caminho Suave, escrita em 1948, ultrapassa a marca de 40 milhões de exemplares vendidos. Em 2018, foram compradas uma média de 14 mil unidades
Mesmo não sendo recomendada pelo MEC, algumas escolas apresentam justificativas para o uso da cartilha como metódo oficial de alfabetização
realizando cópias de trechos da Caminho Suave. O método tradicional não é criticado pelos pais dos alunos e harmoniza com as grandes carteiras de madeira e o antigo piano da recepção. “Aquilo que está dando certo, você não tem que trocar”, acredita Giongoli. Para a diretora, as tendências modernas na educação, como o construtivismo, possuem faces interessantes, as quais auxiliam na socialização do aluno. Porém, o ritmo lento e permissivo não a agrada. Sobre o debate da falta de diversidade exposta na cartilha, ela relata que a escola trabalha essas questões em outras disciplinas, pois a família “comercial de margarina” presente na Caminho Suave não é a realidade de muitos estudantes. Professora titular da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e presidente da Associação Brasileira de Alfabetização (Abalf), Maria do Rosário Mortatti explica o sucesso da Caminho Suave a partir do princípio de que a cartilha se mantém em sua proposta original pedagógica enquanto se adapta às mudanças do tempo, como exercícios e diagramação.
Construtivismo é uma corrente pedagógica inspirada nas ideias de Jean Piaget. O foco principal é a obtenção da aprendizagem relacionado à interação do indivíduo com o meio, desenvolvendo aspectos cognitivos, sociais e afetivos
“Eu não concordo com o uso de nenhuma cartilha. O problema da dificuldade do aluno em aprender a ler e escrever não se encontra no método nem na cartilha que o concretiza. O problema é de outras ordens, mais graves e mais sérias, como uma política educacional no país que não considera a educação como prioridade de fato”, observa. DEIXANDO DE LADO. A quase 63 quilômetros da capital paulista, na cidade de Mogi das Cruzes, a Escola Municipal de Ensino Fundamental I Monteiro Lobato abre suas portas para discutir os métodos de alfabetização. A diretora Andréa Pereira de Souza relata que ao lecionar em escola pública é necessário utilizar materiais didáticos recomendados pelo MEC e pautados no Parâmetro Curricular Nacional (PCN). Atualmente, esses materiais partem de uma abordagem sócio-construtivista, baseada em gêneros textuais. Eles partem do princípio de que o aluno tem direito aos mais diversos gêneros textuais e deve entrar em contato com eles durante a vida escolar, a fim de construir textos com compreensão e interpretação solicitadas na Língua Portuguesa. Assim, mais do que tudo, o estudante deve ser capaz de entender e refletir sobre o que está aprendendo, sem “decorebas”. Já no período em que a cartilha surgiu, alfabetizado era aquele que escrevia o seu nome. Hoje, essa discussão é muito mais complexa. O que antes era texto, hoje pode ser apenas um conjunto de frases. Um dos exemplos que Souza usou para exemplificar essa ideia foi que, na cartilha, a frase “Pedrinho é bonito e legal” seria desmembrada em: “Pedrinho é bonito” e “Pedrinho é legal”. Ou seja, não há o uso de conectivos e a construção de frases é prejudicada, afas-
tando o aluno das produções textuais. Embora as ideias sobre o que é aprender tenham mudado, algumas práticas tradicionais ainda perduram na dinâmica do professor. “Tudo é importante, é a dosagem disso que muda um pouco”, explica Souza. Assim, Souza finaliza explicitando que não se tira a importância do treino e da grafia, mas se foca muito mais nos quatro eixos da habilidade linguística: ouvir, escrever, ler e falar. Por parte dos pais, as opiniões divergem. João Matheus entrou cedo na escola e, com apenas 4 anos, já era apresentado à alfabetização pelo construtivismo. Sua relação com as palavras foi dada tão rapidamente que surpreendeu a mãe. Ana Raquel Mafra conta que tinha uma Caminho Suave em casa e pretendia usar com seu filho mas, quando se deu conta, João já estava alfabetizado e imerso no universo das letras. Já Jônatas Campos protagoniza uma história diferente. A mãe, Átila Maria Campos, conta que o processo de alfabetização de seu marido, Renan de Souza Campos, foi com a cartilha e ele sempre guardou ternas lembranças, o que o levou a comprá-la para seu filho. A mãe revela ótimas experiências com a obra, tanto como um método de reforço eficaz, quanto como uma forma de participar de um momento tão especial na vida de seu filho. Entre cartilhas e construtivismo, o sucesso ou fracasso da alfabetização no Brasil se mostram além das folhas didáticas. “ Não é mudando o método de ensino que se resolvem os problemas da educação no País. Isso é uma falsa solução. Tanto faz o método que escolherem, não será a solução, nem a perdição”, finaliza Mortatti.
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ECONOMIA
Futuro à deriva No Brasil, um em cada cinco jovens está fora do mercado de trabalho e não estuda, formando a geração nem-nem Texto por Gabriela Sartorato e Laura Ferrazzano
“T
enho poucos planos concretos para o futuro. Desejo trabalhar com o que gosto independentemente de renda. É bem clichê, mas tento deixar rolar”, afirma Vitor Augusto Ferreira, de 22 anos. Ele se formou no ensino médio em 2013, mas aos 17 anos ainda não sabia o que fazer. Na verdade, Ferreira conta que adiou ao máximo tomar a decisão, tendo em vista que sua única certeza era que não queria começar a trabalhar tampouco se interessava por alguma área de estudos específica. O rapaz está inserido na parcela da população conhecida como “geração nem-nem”, expressão utilizada para nomear os jovens que se encontram dentro da faixa etária de 15 a 29 anos e não trabalham ou estudam. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2015, os nem-nem contabilizavam 22,5% dos jovens dessa faixa etária. Caso essa porcentagem incluísse aqueles que buscam alguma ocupação, o total de jovens dessa categoria cresceria significativamente, indo de 5,3 milhões para 7,2 milhões de brasileiros. Ferreira, entretanto, pertence a uma classe social economicamente privilegiada, o que ilustra uma pequena parcela dos nem-nem. De acordo com
a pesquisa Quem são os jovens nem-nem?, desenvolvida pela economista Joana Monteiro para o Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da Fundação Getúlio Vargas, os números revelam que quanto menor a renda, maior seria a taxa de inatividade dessa parte da população. Para a pesquisadora, compreender a evolução da população jovem é necessário para avaliar o potencial econômico de um País. A pesquisa aponta para o fato de que, ao contrário de jovens como Ferreira, que se encontram em uma fase transitória, saindo da vida escolar para eventualmente integrar o mercado de trabalho, a maioria dos nem-nem não é composta por pessoas vivendo um momento passageiro. Dentre as pessoas consideradas no estudo, evidencia-se o crescimento da inatividade entre o sexo masculino, especialmente os menos escolarizados. Os homens com menor tempo nas escolas estão se afastando cada vez mais do mercado de trabalho, o que aumenta a demanda de mão de obra especializada no País e compromete a parcela popular que não teve acesso a níveis de ensino superior ou técnico. Outra particularidade mostra que, apesar da entrada da mulher no mercado profissional e queda da taxa de fecundidade no Brasil e no mundo, mais da metade
das pessoas que se encontram nesta categoria ainda são mulheres com filhos. “O fator que mais contribui para a condição nem-nem é ter um bebê, o que dobra a chance de uma mulher estar nessa condição”, explica Monteiro. Meire Carneiro tem 29 anos e está fora do mercado de trabalho desde os 18, logo após se casar e dar à luz ao seu primeiro filho. Hoje, tem moradia fixa em Camocim, cidade interiorana do Ceará, cuida da casa e toma conta de suas duas crianças. “Depois que me casei e o Lucas nasceu, eu não tinha com quem deixar o bebê. Tinha acabado de me formar na escola e acabei nem procurando um emprego”, explica. O maior sonho de Carneiro é ver os filhos formados. Não possui planos no âmbito profissional ou acadêmico por enquanto, mas quer voltar a estudar. “Às vezes, penso na possibilidade de fazer uma graduação em Psicologia”. A cientista social Miriam Müller, com estudos na prática global de pobreza do Banco Mundial, instituição financeira internacional que faz empréstimos para países que estejam em desenvolvimento, entrevistou 77 jovens pernambucanos de 18 a 25 anos de idade. Em seu estudo, Se já é difícil, imagina para mim..., a pesquisadora vê que a escassez de políti-
Distribuição dos jovens por situação, gênero e idade (%) Total no Brasil
Homens Mulheres
18-22 anos 15-17 anos 23-24 anos
Apenas estuda
49,6
50,0
49,1
84,7
36,7
21,3
Apenas trabalha
12,5
15,0
9,7
1,4
15,1
25,2
Estuda e trabalha
14,8
16,4
13,0
8,5
15,5
24,2
Nem-nem
22,2
17,5
27,3
5,0
31,2
28,7
Fonte: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
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Revista Esquinas
Pessoas de 15 a 19 anos que não trabalham ou estudam são 23% da população total brasileira nessa faixa etária A violência é um obstáculo: cresceu em 414% o número de mortes de jovens por arma de fogo de 1980 a 2010 A taxa de fecundidade entre adolescentes em 2015 foi de 68,4 nascimentos para cada mil indivíduos de 15 a 19 anos
EZ LUAN A JIM EN
cas públicas é também um obstáculo ao se tratar da geração nem-nem. Por isso, modificar esse panorama apenas seria possível com a implementação de uma série de intervenções específicas, como facilitar o acesso às informações sobre oportunidades e mostrar as transformações que elas poderiam trazer de forma concreta, estimulando também uma sensação de pertencimento. Da mesma forma, programas de apoio ou de mentoria se mostrariam igualmente relevantes ao fornecerem o suporte necessário para ajudar os jovens que têm dificuldade em lidar com os obstáculos acadêmicos e profissionais. Apesar da necessidade de colocar essas medidas em prática para reduzir a quantidade de nem-nem no Brasil, quando esta é comparada com a de outros países latino-americanos, a parcela de membros da geração nem-nem não se revela preocupante para a economia nacional. Os dados utilizados na pesquisa de Monteiro, retirados do artigo Idle Youth in Latin America, publicado em 2011 por Mauricio Cárdenas, Rafael de Hoyos e Miguel Székely, apontam para um cenário econômico que não sofre grandes impactos com a geração nem-nem brasileira. O Chile, por exemplo, com seus 17,2 milhões de habitantes, apresenta um dos maiores índices de jovens pertencentes à geração nem-nem, um total de 33,4% da população. Já o Brasil, que no mesmo período da pesquisa contava com 200,5 milhões de pessoas, possuía o segundo menor percentual de nem-nem: 21,9%, ficando atrás apenas da Bolívia com seus 18%. Isso não significa que essa taxa deva ser negligenciada pelo governo brasileiro. A pesquisa de Joana Martins aponta que o baixo índice esconde taxas de inatividade altas e crescentes entre alguns subgrupos da população. Jovens com ensino fundamental incompleto, por exemplo, estão extremamente vulneráveis a permanecerem inativos, principalmente depois do aumento de escolaridade que ocorreu nos anos 2000, o que tornou ainda mais difícil a entrada de pessoas pouco escolarizadas no mercado profissional. Além disso, dados de dezembro de 2018 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) indicam que fatores como o baixo rendimento escolar e a limitada quantidade de escolas, somados à alta taxa de informalidade e ao excesso de rotatividade entre os jovens no mercado de trabalho, confirmam o aumento dos nem-nem no País. A pesquisa também revela que a exposição dos jovens à violência se mostra como um grande obstáculo para que se dediquem ao trabalho ou aos estudos: o índice de mortes por arma de fogo nessa faixa etária cresceu cerca de 414% entre 1980 e 2010. Ainda, a quantidade de mortes entre adolescentes negros é 133% maior do que a de brancos.
Por mais que o panorama se mostre caótico em alguns momentos, nota-se que a situação brasileira não é de calamidade. Contudo, o fato de a geração nem-nem ter uma incidência maior entre classes menos favorecidas economicamente revela a necessidade de se ampliar a ação de políti-
cas públicas básicas. Elas possibilitariam melhores condições para que os nem-nem prosperassem nos âmbitos profissionais e acadêmicos. “Por aqui a gente não tem muito exemplo, o destino de todo mundo é parecido. Somos todos um pouco largados”, conclui Meire Carneiro.
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Opinião
Você não é nenhum salvador do mundo O heroísmo transfigurado em trabalho voluntário no exterior
“V
ai, gasta o dinheiro do seu pai fazendo trabalho voluntário fora do Brasil”, eles disseram, em silêncio. Aquilo ecoava na minha cabeça enquanto passava pela imigração na Etiópia. As fotos no Instagram de uma menina branca, loira, de olhos claros, com um tanto de sorriso branco no rosto de crianças negras ao seu redor não seriam postadas no meu Instagram. Neste caso, seriam crianças de olhos serrados e pequenos, de pele meio amarela, meio vermelha. A Etiópia era só a escala para chegar às Filipinas. Um destino divergente do estereotipado trabalho voluntário no continente africano. Em 2016, depois de anos de empenho voluntário e muita reflexão, eu descobri – ou me conformei, entenda como quiser – que as pequenas boas atitudes são fundamentalmente mais importantes do que as grandes e magníficas. Até então, embriagada pelo heroísmo ocidental, apesar de morar em um País extremamente desigual, pensava que todos tinham que parar tudo o que estavam fazendo e se empenhar em acabar com a fome no mundo – a necessidade mais básica para a sobrevivência humana que não somos capazes de suprir universalmente. E foi sabendo disso que eu fui para o outro lado do planeta fazer trabalho voluntário. Sem pretensão alguma de causar um impacto global ou de salvar o mundo com a minha prepotência branca e ocidental. Eu queria conversar com as pessoas, conhecer suas realidades e me fazer ajuda. Antes mesmo de me preocupar, disseram “sim, a língua oficial é o Tagalo, mas todo mundo fala inglês”. Mas eu perdi. O “todo mundo” a que eles se referiam era a classe escolarizada. Aqueles com quem eu queria realmente conversar, eu não era capaz.
O pouco que achei que poderia fazer dignamente havia perdido. E foi a partir disso que me coloquei onde deveria estar e onde todos que vão ao exterior trabalhar voluntariamente deveriam estar. No nada. Perdi o único desejo que eu tinha de conversar e conhecer realidades. E ainda bem que perdi. Aquilo não era a minha realidade, não era o meu lugar, não era para mim. Era pelo Outro. E para me encontrar com ele eu tinha que perder tudo. Perder minha cultura, meu conhecimento, minhas vontades, minhas ideias. Não importava de onde eu vinha, quanto dinheiro eu tinha, onde estudava ou onde trabalhava. Só me fazendo nada eu sou capaz de compreender o Outro e assim, talvez, ser ajuda. Aquelas pessoas estão vivendo e sobrevivendo àquela realidade há muitos anos, não sou eu quem vai mudar tudo. De forma alguma eu deveria agir como “essa é a ajuda de fora que faltava chegar para o mundo ficar perfeito”. Deveria, inclusive, encontrar caminhos para evitar essa interpretação da minha presença, já que só por ser estrangeira automaticamente representava superioridade – ainda que viesse de um país tão desigual quanto as Filipinas. E por isso eu agradeço pelo ambiente ter me feito nada. Se o encontro com o Outro efetivamente acontece, aquela cultura que antes não era passa a ser sua também. Aquela passa a ser sua realidade, com os sofrimentos e as alegrias. É uma imersão total às profundezas da alteridade humana. Se não é assim, o trabalho voluntário, dentro ou fora do seu país, é egoísta e megalomaníaco. Portanto, querido jovem do século 21, se seu pai, mãe ou seja lá quem paga suas contas pode também pagar passagem e sobrevivência em outro país para você trabalhar como voluntário, comece a repensar suas fotos do Instagram.
Ana Clara Giovani é graduanda do quarto ano de Jornalismo na Faculdade Cásper Líbero. Em 2017, viveu em Tagaytay, cidade no interior das Filipinas, por oito meses.
MULHER
Elas no gramado
No país do futebol, a falta de investimento na modalidade feminina do esporte cria um cenário de incertezas Parque São Jorge recebe partidas das campeãs brasileiras de 2018
O
futebol desde sua criação, é um esporte praticado predominantemente por homens, devido à origem do jogo, praticado inicialmente pela elite branca masculina inglesa. No entanto, uma ativista feminina de pseudônimo Nettie Honeyball foi a primeira a quebrar essa convenção com a criação do British Ladies Football Club, para promover a igualdade entre os sexos. No Brasil, a modalidade feminina vem engatinhando a curtos passos. Contudo, a Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) definiu que, a partir de 2019, as equipes devem “ter uma equipe principal feminina ou associar-se a um clube que a tenha” para poderem participar do campeonato Taça Libertadores da América. O São Paulo Futebol Clube se uniu ao clube da Prefeitura de São Paulo, a Associação Desportiva Centro Olímpico, para atender às novas regras. Com isso, conquistou o Campeonato Paulista, o Brasileiro e a Libertadores sub-17 em 2017. Na equipe, constavam atletas do Centro Olímpico e seis associadas da sede social do clube tricolor. “O São Paulo, no Brasil, é o melhor centro que tem de formação de base da modalidade do futebol feminino. Não é um trabalho tão antigo, mas que, comparado ao resto do Brasil, já está mais consolidado”, afirma Thiago Viana, técnico do futebol feminino são-paulino. Da mesma forma, o Centro Olímpico é um exemplo de investimento na modalidade. Criado em 1976, inicialmente buscava trabalhar na formação de atletas
Texto e fotografia por Luis Enrique Barrero
desde as categorias de base para torná-los profissionais. Porém, com a pouca visibilidade dada às mulheres dentro do esporte, a instituição passou a ser referência no País ao financiar as práticas desportivas para o sexo feminino. “A gente inicia com uma categoria sub-11 e vai até a sub-17. Entram meninas a partir de 9 anos, preparamos elas até os 17, e depois elas acabam sendo indicadas pelo clube, ou até mesmo sendo chamadas por outros grandes clubes do Brasil ou de fora para integrar o profissional. E é a Prefeitura que ajuda com uniformes, transporte e campeonatos”, explica a auxiliar técnica do Centro Olímpico, Thaís Cavalcante, que destaca que o diferencial da instituição é a exclusividade do trabalho com o futebol feminino, não incluindo o masculino. As peneiras para a seleção de atletas do Centro Olímpico ocorrem todos os meses. Letícia Cristine, de 14 anos, jogadora sub-15 do Centro Olímpico, estava em uma delas. “Eu ouvi falar do trabalho do clube, meus pais se interessaram e me inscreveram. Passei na peneira e estou aqui faz umas quatro semanas. É meu sonho ser jogadora profissional e defender a Seleção Brasileira. Mas não é um sonho só meu, todas as meninas aqui sonham com isso”, relata. O Corinthians é outro exemplo. Após uma parceria com o Grêmio Osasco Audax, a equipe alvinegra passou a ter gestão própria na modalidade. Para a meia-atacante Gabi Zanotti, o clube possui uma grande estrutura e praticamente tudo que o masculino tem, ape-
sar da pouca visibilidade. O Palmeiras, por sua vez, é o único clube dos grandes paulistas que não tem uma equipe feminina. Porém, Leila Pereira, presidente da Crefisa, patrocinadora do time, declarou em entrevista ao site Torcedores. com que o Verdão terá um time formado apenas por mulheres. Um exemplo de superação dentro do esporte, como lembra em publicação feita no site The Players Tribune, é de quando Marta Vieira da Silva, jogadora eleita cinco vezes a melhor do mundo pela Federação Internacional de Futebol (Fifa), foi impedida de jogar um torneio juvenil apenas por ser garota e não teve apoio da equipe. Segundo Thiago Viana, esse preconceito acaba sendo enraizado no Brasil, por ser um País machista. Julia Abou, ex-jogadora do São Paulo, destaca ainda que a opressão às mulheres no futebol vem desde cedo. “Quando pequena, não via os comentários como maldade, mas hoje percebo que eram reflexo de uma construção social frente aos estereótipos de gênero. Sempre que ia jogar com meninos que não me conheciam, eu era a última a ser escolhida”, comenta. Em um país como o Brasil, as mulheres ainda tem uma longa jornada a enfrentar para serem reconhecidas no esporte mais popular do mundo. Talvez a medida tomada pela Conmebol seja um passo para a exigência da modalidade. “Já que por boa vontade não acontece, acho que essa solução da entidade é um bom caminho para valorizar o futebol feminino no Brasil”, opina a jogadora Gabi Zanotti.
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FUTEBOL
Entre gritos de apoio e cotoveladas
Torcidas organizadas são marcadas por amor excessivo à camisa e situações violentas Texto por Gabrielle Guimarães, Pedro Brienza e Pedro Ramiro
FÉ DO TIMÃO.
Descrever o Sport Club Corinthians Paulista pode ser simples, mas há quem o veja como símbolo de fé. Não à toa, uma das torcidas se chama Gaviões da Fiel. “Posso dizer que a minha [religião] é o Corinthianismo”, brinca Alexandre Pereira, dono de várias “loucuras pelo clube”. Em 2017, foi a Campinas, a 80 quilômetros da capital, para uma partida. Sem ingresso, encontrou um amigo que lhe ajudou a entrar. “Ele estava com o ingresso dele. Eu, sem, atrás. Na hora que ele foi passar na catraca, já me empurrei junto, dei uma cotovelada no segurança e entrei correndo”, conta. A torcedora Maria Júlia Azuaga acredita que jogo fora de casa sem a torcida adversária é “a morte do futebol”. “Torcida única é o atestado de incompetência do Estado e da polícia”, comenta. Ela acredita que os seguranças das arenas têm um olhar diferente em relação às torcidas. “Sei de muitos relatos de abuso de poder sobre nós, torcedores”, critica, sem deixar de seguir sua “religião”.
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Revista Esquinas
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PAIXÃO CEGA E INEXPLICÁVEL.
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Entre os membros da Mancha Verde, organizada da Sociedade Esportiva Palmeiras, Brenda Menezes começou nos jogos com o pé direito: quando o clube foi vencedor do Campeonato Brasileiro em 2015. “Apesar das raivas e dos roubos, é quando eu me encontro”, afirma. Leandro Neublum teve sua primeira experiência nos estádios muito antes, em 1998, quando o alviverde conquistou seu primeiro título na competição. Porém, acha que o time tem perdido a graça. “Antigamente, era bem melhor. Cada jogo era uma história nova e algum imprevisto sempre acontecia”, diz. Guilherme Rodrigues também divide a bancada da organizada e se mostra totalmente contrário ao jogo com torcida única. “Acho um lixo”, aponta. Ele reconhece que a relação entre as torcidas adversárias não é boa nem mesmo entre as próprias torcidas do clube. As memórias são acompanhadas de paixão e loucura desmedidas. Nas palavras do jornalista Joelmir Beting, é impossível explicar a emoção de ser palmeirense a quem não é.
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Brasil se configurou como o “País do futebol” na década de 1940, quando foram fundadas grandes federações do esporte em diferentes estados. Na época, torcedores de um mesmo clube se uniram para torcerem juntos. “A primeira forma dessa manifestação é chamada por alguns pesquisadores de ‘torcidas voluntárias’. No início da história do futebol, se reuniam única e exclusivamente em consequência dos jogos e tinham como elemento comum a paixão que nutriam por um ou por outro clube”, explica José Correia Sobrinho, cientista social especialista no estudo de torcidas organizadas, formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
A Fundação Getulio Vargas (FGV) fez um levantamento do perfil dos torcedores das organizadas. São homens (86%), solteiros (72%), de até 40 anos (94%), com ensino médio completo (62%) e moradores de capitais (67%). Ainda, 60% deles afirmaram pagar uma “mesada” à torcida organizada, mas só 38% declararam ser filiados ao clube em si. Esses grupos exercem um papel fundamental para os times, mas se diferenciam de uma torcida para outra. Na mesma pesquisa da FGV, quase 60% dos torcedores se consideram dentro de uma torcida violenta. Na linha tênue entre paixão e hostilidade, ESQUINAS analisa os torcedores das organizadas dos quatro grandes clubes paulistas.
ORGULHO DE POUCOS.
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Os frequentadores da Torcida Jovem do Santos Futebol Clube dizem que a paixão pelo time vem do berço. Precisam apenas ter força para cantar e animar o time durante todo o jogo. “Você tem que viver o clube, amar de verdade, estar disposto a segui-lo e apoiálo”, explica Victor Ferreira. O torcedor-organizado precisa de um cadastro mediante apresentação de documentos como RG e comprovante de residência, além de um pagamento anual. Pablo Gonçalves vê a violência no estádio como algo que existe tanto dentro quanto fora dele. Para ele, fazer parte desses grupos o torna mais suscetível a situações violentas. Torcedores, no geral, acreditam que a medida tomada em 2016 para que partidas entre os “clássicos” paulistas sejam de torcida única é algo prejudicial para o “espetáculo” feito dentro da arena. “[Mesmo com proibição,] já fui infiltrado na Arena Corinthians, no Pacaembu e no Morumbi”, conta Gonçalves, mostrando que a paixão por estar próximo ao time do coração fala mais alto.
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Mais do que saudar o “amado clube brasileiro”, um torcedor deve ter “comprometimento com o time acima de todas as coisas”, segundo Valter Costa, o Magrão, diretor-chefe da Torcida Tricolor Independe do São Paulo Futebol Clube. Marcelo Fabbri é um desses. “Faz tanto tempo, que posso dizer que nasci são-paulino”, anima-se. O único empecilho que o fez parar de frequentar o Estádio Cícero Pompeu de Toledo, o Morumbi, foi uma briga de 1994 entre o time de coração e o rival Palmeiras. Afastou-se, mas filiou-se novamente aos 15 anos. Diogo, que prefere não ter o sobrenome divulgado, desaprova o processo de entrada na torcida. Por muito tempo, levava-se em consideração o esforço do torcedor em termos de frequência em caravanas e eventos do time. Agora, “é só chegar, pagar a taxa e está associado”. No fim das contas, a vontade do são-paulino é expressar sua paixão ao apoiar o clube. Acompanhado do amor que surge na infância e na família, ele se identifica por cantar o que, “entres os grandes, é o primeiro”.
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AUTOMOBILISMO
O País que deixou de acelerar Quais motivos levaram o Brasil deixar de ser uma grande potência automotiva para dar espaço a um lugar onde as grandes promessas são esquecidas? Texto por Nicola Ferreira
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final da década de 1980 e o início da de 1990 foram cruciais para a explosão do automobilismo no Brasil. Os títulos de Ayrton Senna, Nelson Piquet e Emerson Fittipaldi foram responsáveis pela popularização do esporte no País. O último, por exemplo, foi pioneiro na criação de equipes nacionais ao formar a Escuderia Fittipaldi, a famosa Copersucar. A equipe era toda nacional, ficou presente por oito anos na Fórmula 1 (F1) e alcançou duas vezes o segundo lugar. No entanto, as últimas crises financeiras, somadas às más administrações das confederações nacionais e federações regionais, levaram a uma adversidade nunca vista antes. O Brasil é o sexto país com mais pilotos e o terceiro com mais títulos, mas é a primeira vez em 48 anos que não há um representante brasileiro na principal categoria do automobilismo mundial, a F1. Para Sérgio Siverly, redator do portal Boteco F1, especializado na cobertura da modalidade, um dos principais problemas é a falta de vontade política e econômica de governos e empresas. “Se o menino quiser chegar na Fórmula 1, ele precisa sair do Brasil, ir à Europa ou aos Estados Unidos”, comenta. A falta de apoio ocorre, por exemplo, por parte das grandes fornecedoras, como Ford e Renault, que já patrocinaram as categorias de base nacionais. Para Reinaldo Rena, piloto do Campeonato Brasileiro de Endurance – em que as provas têm mais de três horas de duração –, o foco das categorias de maior visibilidade é o lucro, o que explica as pesadas taxas para participar da competição. Outra questão levantada quando se fala da crise do automobilismo brasileiro é a administração da Confederação Brasileira de Automobilismo (CBA). “[Ela] deixou de apoiar, passou a cobrar altos valores de inscrição”, critica Rena. Para muitos, ela é uma das responsáveis pelo afastamento de investidores para a base. O editor do site Projeto Motor, Lucas Santochi, acredita nisso. “Existem muitos pontos que pesam. Porém, não tenho dúvida
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Revista Esquinas
NORIO KOIKE / INSTITUTO AYRTON SENNA
A morte de Ayrton Senna ainda deixa um triste legado entre fãs e competidores
que o maior problema é a péssima administração da Confederação. E não estou falando apenas da atual ou da anterior, mas a das últimas décadas”, diz Santochi. A CBA foi procurada, mas não respondeu aos pedidos de entrevista de ESQUINAS. Além das marcas, empresas do setor financeiro também abandonaram os projetos de incentivo a jovens pilotos. Antigamente, houve casos como o do Banco Nacional, grande patrocinador de Senna. Em 2015 e 2016, o Banco do Brasil apoiou Felipe Nasr na sua breve passagem pela F1. Raros são os pilotos que possuem todas as condições necessárias para alcançar o sucesso no esporte. Muitos precisam optar entre participar dos campeonatos ou ter um acompanhamento físico e psicológico. “Hoje em dia, o certo é sair do país para alcançar maio-
res objetivos”, afirma o atual campeão brasileiro de Kart na categoria Novatos, João Luís Pocay. O caminho para o sonho é caro: o custo, segundo o programa Globo Esporte, da TV Globo, de um atleta no Kart nacional é de oito mil reais mensais para participar de um campeonato. A trajetória continua no Kart europeu, que chega ao 1,2 milhão de reais por ano. Em seguida, vem a Fórmula 4, com o mesmo custo do Kart internacional. Na GP3 ou na Fórmula 3, o valor atinge a casa dos quatro milhões de reais. Finalmente, a Fórmula 2 – último passo antes da F1 – demanda uma despesa de dez milhões de reais. PROBLEMA ALÉM DOS PILOTOS. As principais equipes brasileiras são apoiadas por pilo-
tos já aposentados ou que ainda correm profissionalmente. É o caso da equipe Cesário Fórmula, comandada pelo ex-campeão da F3, Augusto Cesário, que busca, por meio de incentivo próprio, manter vivo o que já foi um dos principais esportes do Brasil. Essas equipes sofrem sem um patrocínio master e vão à falência em algum momento da carreira, problema comum também entre os campeonatos, que não sobrevivem sem o apoio de terceiros. O engenheiro mecânico José Roberto Baldassin, da equipe Cesário Fórmula, vê que a crise afeta o setor há muito tempo. “Com a falta de pilotos, as equipes precisam se adequar ao faturamento e se segurar como podem. A crise é um dos principais motivos da F3 estar parada e quase todas as equipes, fechadas”, revela. Já as emissoras de televisão que transmitem o esporte sofrem com a queda na audiência. De acordo com o Ibope, o GP de estreia da temporada de F1 de 2018 exibido pela Rede Globo – único canal da TV aberta responsável pela transmissão das corridas – teve uma audiência de 4,4 pontos, valor muito abaixo dos 10,4 registrados dez anos atrás. Essa queda no público vai contra o movimento do resto do mundo. Segundo a Liberty Media, empresa que cuida da categoria, a F1 registrou um aumento de 6,2% de telespectadores em 2017 em relação aos números de 2016. A falta de categorias de fórmula nacionais ou sul-americanas representam um grande atraso no desenvolvimento de pilotos em comparação ao Velho Continente. O piloto Rei-
naldo Rena acredita que a falta de categorias de base deixa os pilotos órfãos. “São nessas categorias em que o piloto começa a aprender como ajustar um carro em determinada pista. O bom piloto é aquele que entende o que está acontecendo com o carro”, explica. Para Lucas Santochi, é essencial o Brasil ter uma categoria como a Fórmula 4. Ele também acredita que a CBA deveria ser mais atuante em ajudar os campeonatos e as equipes a acharem patrocinadores. O engenheiro da Cesário, por sua vez, enxerga essas categorias como relevantes para revelar não apenas pilotos, mas também outros profissionais, como engenheiros, mecânicos, publicitários e preparadores físicos envolvidos no meio automobilístico. AS ESPERANÇAS. Um dos poucos sinais de crença no automobilismo é no começo da carreira do atleta: o Kart. A categoria está recebendo um grande investimento da própria Confederação. A participação de mais de 500 pilotos no último torneio brasileiro de Kart mostra como as provas estão atraindo o interesse de um grande público. Para o jovem piloto João Luís Pocay, o kartismo está em um momento de destaque e isso ajuda na manutenção do esporte no Brasil, já que aparecem mais investidores que mantêm vivos os campeonatos. Um dos principais movimentos que ocorrem no automobilismo de base é a chegada gradual de mais pilotas. A exemplo, menciona-se o Campeonato Brasileiro de Kart que, em 2018, teve cinco mulheres competindo – número baixo se comparado ao total de 500 pilotos, mas cinco vezes maior que em campeonatos anteriores. CLÁUDIO REIS
O kart aparece como sinal de perspectiva para o futuro do esporte nacional
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O futuro do automobilismo no Brasil está ameaçado, porque não vejo perspectivas de incentivos governamentais voltados ao esporte a motor Reinaldo Rena, piloto
Essas competidoras são influenciadas por outras pilotas, como a norte-americana Danica Patrick, a primeira a ganhar uma corrida da Fórmula Indy em um circuito fechado; a britânica Susie Wolff, ex-pilota e atual diretora da equipe Venturi da Fórmula E; e Bia Figueiredo, brasileira que correu na Indy entre 2010 e 2011, hoje é a única mulher no grid de 34 carros da Stock Car, a principal categoria do esporte no Brasil. Fora do País, a Federação Internacional de Automobilismo (FIA) procura colocar mais mulheres nas principais categorias de várias formas. A tentativa mais recente foi a criação da W Series, campeonato exclusivo para mulheres. Para os organizadores, essa nova competição quebrará a barreira criada pelos patrocinadores em relação a pilotas. Enquanto a FIA busca apoiar a igualdade de gênero, no Brasil, ainda há um buraco nesse quesito e na questão do apoio do Estado para uma melhora no esporte. “O futuro do automobilismo no Brasil está ameaçado, porque não vejo perspectivas de incentivos governamentais voltados ao esporte a motor”, afirma Reinaldo Rena. Sérgio Siverly, por sua vez, acredita que o esporte só será novamente valorizado quando o país focar na importância tecnológica do automobilismo para os carros urbanos, e José Roberto crê que a diminuição nos preços de peças para os carros iria ajudar na manutenção brasileiro como um país importante no meio automobilístico. Os três acreditam no potencial do Brasil como um exportador de pilotos de alto nível. No entanto, todos confirmam o mesmo temor de que a falta de investimentos acabe com a carreira de grandes promessas do automobilismo nacional e que a sina de importantes nomes no cenário mundial continue por bastante tempo.
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Texto por Guilherme Goya e Luca Castilho
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ia 3 de agosto de 2016 sempre será lembrado pelos amantes do karatê. Foi quando os karatecas receberam a notícia de que o esporte seria a mais nova modalidade nas Olimpíadas de 2020, em Tóquio. Só no Brasil, de acordo com a Confederação Brasileira de Karatê, são mais de um milhão de praticantes registrados. Terceira colocada no ranking mundial de 2017, a maior Nação da América do Sul mostra sua força no novo esporte olímpico. Bicampeão Mundial, em Belgrado, na Sérvia, e Bremen, na Alemanha, o brasileiro Douglas Brose iniciou na modalidade aos 7 anos e foi um dos principais articuladores do projeto de inserção do esporte nas Olimpíadas. “Já tínhamos uma quantidade enorme de praticantes no mundo inteiro, todos os circuitos continentais, mundiais, jogos sul-americanos, europeus, asiáticos. A cereja do bolo que faltava era o karatê estar nos jogos olímpicos”, comemora. Não será fácil para os karatecas a classificação nas Olímpiadas. São dez vagas por categoria e apenas um representante por país. Uma vaga é assegurada para o Japão, sede do evento em 2020. Quatro vagas serão cedidas para os melhores no Ranking Mundial da Federação Mundial de Karatê, enquanto outras duas serão oferecidas de acordo com eventos continentais. As três vagas restantes vão para os melhores atletas do Evento Classificatório em Paris, previsto para maio de 2020. Para subirem no ranking mundial, os atletas precisam participar de mais de 20 etapas pelo mundo. A maioria delas acontece na Europa e na Ásia, e esse é o maior empecilho para os brasileiros. O custo com inscrição, passagem e hospedagem é elevado e são poucos os atletas que contam com apoio financeiro governamental e de patrocinadores. “Hoje o mais difícil para os atletas é ter recursos financeiros para se manter em nível competitivo participando de vários eventos”, ressalta Brose. O maior incentivo financeiro por parte do Governo Federal vem pelo Bolsa Atleta, que oferece um valor mensal aos esportistas. O auxílio se divide em seis
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RENATO AOKI / DIVULGAÇÃO
categorias: Base, EstuReferência entre os karatecas, dantil, Nacional, InDouglas Brose foi um dos envolvidos na incorporação ternacional, Olímpico/ do esporte nas Olimpíadas Paralímpico e Pódio. É a última que cede o apoio financeiro mais alto, com bolsas de oito a 15 mil reais por mês, e abrange apenas os atletas que figuram entre os 20 primeiros colocados no ranking mundial de sua categoria. Em agosto de 2018, foi publicado no Diário Oficial da União os atletas regularizados a receber o auxílio mais alto. Entre os karatecas, apenas quatro foram contemplados: Douglas Brose, Hernani Veríssimo, Valéria Kumizaki e Vinícius Figueira. Se para os atletas consagrados no karatê a dificuldade já é grande, para os jovens é maior. Juliana Oliveira, karateca de 18 anos, quer alcançar seu sonho de participar da competição. No início de 2018, o Ministério do Esporte cortou a bolsa atleta destinada aos karatecas, deixando muitos sem um dos principais incentivos financeiros. Para continuar lutando pelo seu objetivo, além dos incansáveis treinos, Oliveira tomou a iniciativa de vender doces como fonte de renda. “Eu não tenho patrocínio e sem o Bolsa Atleta ficaria impossível de conseguir dinheiro para as viagens. O governo voltou com o Bolsa Atleta. As inscrições abriram agora, ainda não recebemos o dinheiro, mas já é uma esperança. Com o Bolsa Atleta já é difícil, agora sem ele, é impossível”, relata. Outra fonte de incentivo financeiro vem por meio da própria Confederação Brasileira de Karatê (CBK). Segundo Luiz Carlos Cardoso, atual presidente, a CBK oferece auxílio nos custos com inscrições e hospedagens dos atletas sênior, além da gratuidade do uniforme para os atletas da seleção brasileira. Cardoso ressalta estar animado com a qualidade dos brasileiros e ansioso pelo resultado das Olimpíadas de 2020. “A CBK tem um projeto próprio de incentivo aos atletas conforme os resultados obtidos. DependenA jovem Juliana Oliveira, para poder do dos resultados em um ano, no seguinte eles têm realizar seu sonho de se tornar isenções de taxas e alguns custos para atletas que profissional, passou a vender doces entram na Seleção Brasileira”, completa o presidente para ter verba para os torneios da Confederação sobre os auxílios financeiros. JULIANA BRAGANÇA / DIVULGAÇÃO
ESPORTE
Suor dentro e fora do tatame
O karatê é uma das novas modalidades olímpicas. Entenda como funciona o desafio dos atletas brasileiros para participarem da competição em 2020
DIVERSIDADE
O Oriente também é aqui A militância asiática começa a se unir no Brasil e ganhar força com o intuito de debater as microagressões sofridas e compartilhar suas vivências Texto por Guilherme Goya e Ji Choi
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inha que ser asiático” e “sempre quis pegar acabar moldando o comportamento da criança para a vida toda e uma japa”. São comentários que amarelos é a pior parte das microagressões sofridas. escutam diariamente. Pela questão histórica, Pensando nisso, de março a maio de 2017, o ilustrador degeográfica e política, um asiático-brasileiro senvolveu e compartilhou em sua página no Facebook a série de é tratado de maneira diferente de um brasileiro com ascentirinhas Criança Amarela, em que retratava suas reflexões acerca dência europeia. Os amarelos, que formam 2% da população das microagressões que ele e muitos outros amarelos sofrem. As de acordo com o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e tirinhas serviam como uma espécie de desabafo. Entretanto elas Estatística (IBGE) de 2010, são vistos pelo senso comum como tiveram grande repercussão dentro da comunidade asiático-braestrangeiros que possuem ERIC HAN sileira, devido à identificação de dificuldade de falar portumuitos com as situações retratadas. guês, com sotaques fortes e Mas as microagressões não costumes exóticos. acontecem apenas na infância. Com a disseminação das “Historicamente, fetichização da informações pela internet, a mulher asiática vem principalmenmilitância asiática começou te da Guerra do Vietnã. Ao invaa ganhar força. Nas platafordir um território, o branco quer mas digitais, os ativistas da conquistá-lo e com as mulheres causa conseguiram um meio isso ocorria por estupro”, afirma para visibilizar suas lutas. a estudante de Ciências Sociais e “As minhas artes são formas colaboradora dos blogs Outra Code desabafo das minhas anluna e Perigo Amarelo, Gabriela gústias”, relata o ilustrador e Shimabuko. Ou seja, uma mulher tatuador Eric Han. O moviasiática precisava se rebaixar ao mento é recente no Brasil e se homem branco para sobreviver. inspira na militância asiátiAlém disso, a mídia japonesa disseco-americana que está mais mina os desenhos de animE, feitos consolidada. Exemplo disso por homens, que trazem a imagem é a Wong Fu Productions, infantil e sexualizada da garota jacanal no YouTube com mais ponesa. A questão da sexualização de três milhões de inscritos, das mulheres orientais pode ser que existe há mais de 15 anos comprovada com a indústria pore retrata vivências dos asiánográfica japonesa que, segundo ticos nos Estados Unidos. É reportagem da Agência Efe, possui uma referência para canais um faturamento de 4,4 bilhões de brasileiros como o semelhandólares por ano. te Yo Ban Boo, que conta O homem asiático, por sua com quase 50 mil inscritos. vez, é visto como calmo e asseAs microagressões, como xuado, característica reforçada apelidos e piadas, aparecem, pela piada do pênis pequeno. Nos principalmente, na infância filmes de Hollywood, por exemdos descendentes de asiátiplo, os personagens asiáticos são, cos. É comum que os amana maioria das vezes, secundários Pequenas ofensas na infância colocam amarelos relos sejam colocados dentro ou aparecem em grupos de nerds. em conflito com a própria identidade de “caixas” durante a fase esCom a maior disseminação de colar, pelo estereótipo de estuexperiências contadas pelos asiátidioso, calmo e bom aluno. Han relata que, quando criança, não cos, ocorre uma união contra atitudes preconceituosas. Grupos da entendia porque ele e seus familiares eram chamados de “japas”, militância, coletivos feministas e LGBT asiáticos mostram como a sendo que são descendentes de coreanos. “Precisamos tomar cuiunião é essencial para o fortalecimento da minoria, fazendo com dado com o que falamos para as crianças, pois isso impacta muito”, que o mundo possa enxergar que esses “japinhas” não são objetos afirma o ilustrador. Para ele, esse tipo de fala na infância pode sexuais a serem fetichizados e nem gênios anti-sociais.
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URBANISMO
GUILHERME ALFERES
Fantasmas de concreto Prédios históricos abandonados assombram o coração da capital paulista Texto por Guilherme Alferes e Gustavo Ramos
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o cruzamento das ruas Venceslau Brás e Roberto Simonsen, ao lado da Praça da Sé, a sede da Associação Auxiliadora Classes Laboriosas resiste ao tempo e ao esquecimento. Inaugurado em 1907, o edifício do número 22, também conhecido como Salão Celso Garcia, soterra em seus escombros as memórias de tempos áureos de luxo e luta. Com consultórios médicos e dentários, o prédio possuía diversos serviços de auxílio para mais de 20 mil trabalhadores da construção civil e carpintaria de São Paulo. Havia ali um auditório, palco de peças de teatro, encontros e assembleias para a discussão das atividades sindicais e dos direitos trabalhistas. Foi base de greves e revoltas operárias contra a Era Vargas que tomaram a cidade na década de 1940. Em 1953, foi o principal centro de debates relacionados à grande greve de trabalhadores, com participação de quase 300 mil sindicalistas. Milton Costa, morador há 16 anos do prédio ao lado e amigo de um antigo funcionário do edifício, lembra-se com entusiasmo da aparência interna da sede. “Eu costumava entrar lá, era um luxo da porra”. O tombamento histórico realizado pela Prefeitura de São Paulo em 1995, por ser um importante espaço de convívio artístico e político do início do século 20, não foi o suficiente para proteger o edifício do fogo. Em 2008, um incêndio consumiu a sede das Classes Laboriosas, deixando de pé apenas algumas paredes e a fachada em estilo art déco. “A fumaça subia e entrava nos apartamentos deste lado do prédio [ao lado do Salão]. Minha esposa viu a fumaça, descemos correndo”, recorda Costa. Dois anos depois, foi formalizado um projeto de recuperação do edifício, que nunca saiu do papel. Hoje, o esqueleto do salão é um dos 779 prédios notificados pela Prefeitura como ociosos. De acordo com o Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo de 2014, foram definidas três classificações para as construções que se encontram sem utilização, passíveis de notificação. A primeira, “imóveis não edifi-
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cados”, compreende terrenos com mais de 500 metros quadrados que não cumprem função social alguma. Em seguida, há os “imóveis subutilizados”, terrenos maiores que 500 metros quadrados com área construída menor que a permitida. Por fim, os “imóveis não utilizados” são os que estão há mais de um ano sem uso. Para a arquiteta Nadia Somekh, professora emérita da Faculdade de Arquitetura da Universidade Mackenzie e ex-diretora do Departamento de Patrimônio Histórico (DPH) da Prefeitura, os edifícios vazios no Centro não estão abandonados. “Eles têm seus donos, que os deixam lá esperando uma valorização”, afirma. Fora do mercado, colaboram para a chamada especulação imobiliária, que tem forte influência no déficit habitacional. “Isso faz crescer os preços fundiários e imobiliários da cidade, ou seja, reduz a oferta de habitação, aumentando os preços tanto para moradia, quanto para escritórios. Assim, reduz a oferta e aumenta o preço”. DESAPROPRIAÇÕES. De acordo com uma pesquisa da Fundação Getulio Vargas (FGV) em parceria com o Sindicato da Indústria da Construção do Estado de São Paulo (Sinduscon-SP), o déficit habitacional no Brasil estaria em 7,7 milhões de domicílios em 2017, isto é, famílias que vivem em habitações precárias, com mais de três pessoas por dormitório ou que gastam mais de 30% de sua renda com o imóvel alugado em áreas urbanas. Em São Paulo, de acordo com dados da Secretaria Municipal de Habitação (Sehab), o déficit abrange 358 mil moradias ao mesmo tempo que as pessoas de baixa renda são afastadas do Centro em decorrência dos altos valores para residir na região. “Uma vez identificado que o prédio está ocioso, a gente notifica o proprietário e ele tem um ano para dar uso a esse imóvel. Caso ele não consiga, será cobrado imposto progressivo até um valor máximo de 15% no período de cinco anos”, informa Heliana Lombardi, coordenadora geral do Departamento de Função Social da Propriedade, pertencente à Se-
cretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento de São Paulo. A partir do quinto ano sem uso, o imóvel pode ser desapropriado e o proprietário recebe títulos de dívida pública como indenização segundo o Plano Diretor. Como o decreto que formaliza o plano completa cinco anos somente em 2019, até o momento que esta reportagem foi escrita, não houve nenhuma desapropriação, mas 1.385 imóveis já foram notificados. Entretanto, somente 99 desses prédios passaram a cumprir as novas obrigações. Como consequência, pela falta de moradia, muitas pessoas recorrem a ocupações nesses edifícios. OCIOSIDADE E ESPECULAÇÃO. Atravessando a Rua Roberto Simonsen, em frente à antiga Classes Laboriosas, o também histórico Palacete do Carmo observa as pessoas andando pela calçada através de suas janelas quebradas e vazias. Erguido na década de 1920, o edifício pertence à Cúria Metropolitana de São Paulo, instituição administrativa da Igreja Católica. Já foi ocupado por conta da preferência das pessoas em se manterem no Centro, pelas oportunidades de trabalho e pela concentração de serviços na região como creches, hospitais e comércio. Em novembro de 2014, cerca de 300 pessoas tiveram que deixar a ocupação
do Palacete após uma interferência da Polícia Militar. Procurada pelos repórteres, a Cúria não se pronunciou sobre a ocupação ou sobre o edifício abandonado. “A história é meio obscura, a Igreja não conta nada”, diz Alexandre Lima, comerciante de uma loja de frutas no térreo do imóvel. O Palacete não é o único que já foi ocupado. De acordo com a Sehab, até maio de 2018, havia 45.872 famílias ocupando um total de 206 prédios pela cidade inteira. Só no Centro, eram 53 ocupações abrigando 3.300 famílias no total. Na opinião de Heliana Lombardi, não é porque os prédios estão ocupados que necessariamente passam a ter função social. “Não é solução, não tem segurança, não tem salubridade, não dá para classificar dessa maneira”, analisa. “É responsabilidade do proprietário deixar o prédio em condições e fazer com que ele tenha uso novamente, seja no mercado, seja para atendimento da população mais carente”. Além da espera pela valorização do imóvel, muitos donos encontram empecilhos burocráticos que dificultam sua posse integral. “São propriedades muito antigas, que passaram por várias gerações de herdeiros, e diversas delas têm problemas de registros de localização deles”, afirma Rita Gonçalves, coordenadora dos Proje-
tos de Intervenção Urbana (PIU) que lidera os estudos que subsidiam a Operação Urbana Centro. Essa é uma ação da Prefeitura, criada na tentativa de solucionar o problema de ociosidade nos prédios do Centro e que visa estimular por subsídios a requalificação urbana dessa região. “A operação, que está vigorando baseada na Lei 12.349 de 1997 deu muitos incentivos para o potencial construtivo de imóveis tombados”, diz Golçalves. Chamadas por Parcelamento, Edificação e Utilização Compulsórios (Peuc), as notificações sobre o IPTU progressivo para os edifícios sem uso são ainda a única forma da Prefeitura combater esse problema. “O que nós imaginamos é que a pressão da Peuc, combinada ao incentivo que será oferecido num futuro instrumento de disciplina da área central, favoreça a movimentação desses imóveis”, comenta. Para a professora Nadia Somekh, faltam programas que deem função aos edifícios ociosos no Centro. “Um projeto urbano é aquilo que está faltando para olhar aquela área como um pedaço do Centro da cidade que tem patrimônio histórico, que precisa ser preservado, mas precisa atender às necessidades contemporâneas da cidade”, afirma. Não adianta somente restaurar os prédios que estão caindo aos pedaços pelo abandono sem dar um propósito a eles. GUILHERME ALFERES
GUILHERME ALFERES
GUSTAVO RAMOS
GUILHERME ALFERES
Até o momento, poucas medidas estão sendo tomadas para exorcizar definitivamente os problemas em torno dos edifícios ociosos na Sé 1º semestre de 2019
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CIDADE
Com empreendimentos e um parque a caminho, velhas pendências urbanas da Rua Augusta persistem Texto por Gustavo Volponi Fotografia por Yasmin Luara
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Rua Augusta é o reduto da noite paulistana. No Alto Augusta – que recebe essa denominação por cruzar o bairro Jardins –, predomina a frequência de um público com maior poder aquisitivo: clientes dos bistrôs e espetáculos de teatros e ávidos consumidores das marcas de grife da Rua Oscar Freire. Em contraponto, o Baixo Augusta, que passa a ser chamado assim em meados de 2008, recebe a vida noturna, mescla as tribos e as calçadas ficam aglomeradas por causa dos bares e danceterias que fervem em agito. Durante o dia, o fluxo do Baixo Augusta é alto. O comércio varia de materiais de construção a sapatos voltados à comunidade LGBT. Esse universo multifacetado chama a atenção de novos investidores, levando modernos empreendimentos imobiliários à região. Com a inauguração da nova torre do Hotel Ca’d’Oro em 2016, pela Tegra Incorporadora, anexada a um conjunto de escritórios e condomínios, transformase o cenário da tradicional Augusta. O clássico hotel de antes foi demolido e deu lugar a um novo, que tenta acompanhar as mudanças da região. Como consequência, seu público também se remodela. “Nós, antigos proprietários do Ca’d’Oro, recebemos da incorporadora uma oferta
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de compra pelo nosso terreno, mas não o nome. Por isso, propusemos continuar administrando o hotel, e aceitaram”, comenta Gustavo Guzzoni, gerente de operações do empreendimento e neto do fundador do original. A alguns metros, as famosas casas noturnas da Augusta pouco a pouco foram deixando de existir. Poucas continuam no local, já que os clientes são quase sempre os mesmos. “Eles procuram se divertir, ter prazer aqui e continuam vindo”, confirma o gerente de uma casa de swing local, próxima ao hotel, que prefere não ser identificado. A rua se voltava exclusivamente à elite paulistana do começo do século 20 até o final dos anos 1970. O comércio de luxo era o carro-chefe quando os primeiros edifícios residenciais foram construídos. O Hotel Ca’d’Oro, por exemplo, foi o primeiro classificado na categoria de cinco estrelas da cidade, inaugurado primeiramente como restaurante em 1953. Recebeu personalidades como o sul-africano Nelson Mandela e o italiano Luciano Pavarotti. Com a construção de cinemas a frequência do público jovem na região se intensificou e influenciou a abertura de danceterias a partir da década de 1970, ganhando destaque a Klatu e o Nation Disco Club. A partir daí, houve uma crescente desvalorização imobiliária na área cen-
tral de São Paulo. É um fenômeno que acontece em quase toda grande metrópole do mundo. O centro da cidade se torna cada vez mais saturado e violento. Como consequência os escritórios e empresas são obrigados a expandir em outros bairros. Surgem, assim, novos “centros” em outras regiões da cidade, como foi com a Avenida Paulista e agora a região da Berrini, por exemplo. Somando-se ao crescimento da desigualdade social, os preços dos imóveis na região central caíram, facilitando a entrada de boates e prostíbulos. A decorrência dos preços baixos seguiu por muito tempo até os anos 2000, o “boom” imobiliário modificou o cenário — segundo um estudo de 2015 da Fundação Instituo de Pesquisas Econômicas (Fipe) e do site de classificados de imóveis Zap, após uma desvalorização prolongada desde os anos 1990, o preço subiu muito rápido a partir de 2005. DE TUDO E DE TODOS. A Augusta passou a ser identificada pela concentração do público LGBT. Junto a uma das ruas
adjacentes, a Rua Frei Caneca, formou-se um núcleo de moradores e frequentadores que se sentiram livres para se expressar e se locomover nas redondezas com a facilidade de estar próximo ao Centro. O Baixo Augusta se tornou região democrática, onde cada vez mais tribos passaram a frequentar seus espaços, com abertura de baladas e novos bares. Há dez anos, casarões abandonados e imóveis deteriorados foram derrubados para que condomínios e torres de escritórios ocupassem o local. Aumentando os investidores, a tendência é que os preços subam. Mas existe um risco de segregação urbana, que pode afetar moradores de renda menor, fenômeno conhecido por gentrificação. O termo é a tradução de gentrification, que significa um “processo de renovação e melhoramento de uma casa ou distrito de modo que esteja de acordo com o gosto da classe média”. A expressão foi cunhada pela socióloga inglesa Ruth Glass, que observou as mudanças ocorridas em Londres há 50 anos. O processo foi definido como um influxo de investidores que propiciam melhorias com construções de novos edifícios, muitas vezes descaracterizando uma área e expulsando moradores de baixa renda. Na Rua Augusta, não é diferente. Roberto Jerônimo é morador da rua há 16 anos e dono de um negócio local de materiais de construção. Ele explica a facilidade de viver na região, mesmo para alguém da terceira idade. Segundo Jerônimo, a Augusta é um excelente lugar para se morar. Existe qualidade de vida, uma vez que há fácil acesso a transporte público, não dependendo de carro ou rodízio, por exemplo. “É bom ver que velhos casarões abandonados são renovados e novos prédios são lançados”, defende. Segundo o morador, o preço do imposto sobre seus imóveis vale pela facilidade de se morar ali. “Na minha opinião não se paga muito de IPTU aqui. Eu tenho
um imóvel de 160 metros quadrados e ainda é um negócio barato. Óbvio, depende muito das condições e negócios de cada um. Minha filha, em Perdizes, paga quase o dobro do que eu pago por aqui, e tenho mais facilidade de locomoção”. VALORIZAÇÃO VERDE. A maior expectativa do bairro está no projeto do Parque Augusta desde 2002, uma das áreas mais reconhecidas da região. Foi levantada uma discussão em relação aos terrenos — são dois, um pertencente à Cyrela Realty e outro à construtora Setin Incorporadora —, em desuso desde 1969, quando ali havia um colégio para meninas rodeado por uma área verde de aproximadamente 24 mil metros quadrados. Diversos movimentos foram realizados para que o lote fosse entregue à população. Em 20 de setembro de 2018, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo homologou o termo de acordo que permite a criação do parque. A assessoria de imprensa da Prefeitura confirmou o acordo, explicando o processo de convergência que se fundamentou na aplicação da Transferência de Direito de Construir (TDC). Pela TDC, a municipalidade pode receber, em doação, imóveis privados onde há restrições de edificação, autorizando o proprietário a transferir para outro local ou alienar o ‘direito de construir’ definido para o imóvel pela legislação a fim de concretizar a política urbana prevista no Plano Diretor, podendo ser utilizada para implantar habitações de interesse social, melhoramentos viários e parques. Um bulevar deverá ligar o parque à Praça Roosevelt, a cerca de 350 metros da área. Tudo previsto para abrir em 2020. A Secretaria de Urbanismo assegura que o Parque Augusta será mais uma estação verde para a fauna silvestre, preservando não apenas o trecho de Mata Atlântica, mas as edificações tombadas do perímetro. Também levará benefícios de cultura,
esporte, lazer e educação ambiental à comunidade local. Com a inauguração, a região terá o quadrilátero mais caro da Rua Augusta, incentivo para novos modelos de negócios. As danceterias e boates continuarão por lá. Talvez o perfil dos clientes se altere mais ainda, elitizando-se. Nesse cenário único, novos moradores buscam a infraestrutura que o Centro oferece. Os antigos, por sua vez, esperam pagar seus impostos sem aumentos abusivos e que o Baixo Augusta mantenha sua tradição de zona democrática, livre e informal.
Os muros que circudam a grande área verde serão derrubados para dar acessso ao Parque Augusta
Apesar das recentes construções, o Baixo Augusta ainda será o reduto da noite paulistana 2º semestre de 2018
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PSICOLOGIA
Antídoto de esperança Instituições que atuam na prevenção do suicídio unem esforços para combater o tabu ao redor do assunto Texto por Amanda Prado e Vanessa Nagayoshi
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erto dia, Carmela Iandoli atendeu a uma ligação. Era uma senhora dizendo o quanto se sentia triste pelo falecimento do porteiro de seu prédio, pois era o único que a cumprimentava todas as manhãs com “Bom dia”, “Que lindo corte de cabelo”, “Sempre bom te ver firme e forte”, “Seu sorriso é contagiante”, “Essa blusa lhe caiu muito bem”. Mas ela não conseguia expressar a tristeza às pessoas a sua volta, já que, provavelmente, a responderiam com descaso. Aos seus 68 anos, sentia-se um “saco velho sem valor algum”. “Gostaria que as pessoas tivessem o 188 como uma alternativa em momentos de angústia, que fazem parte do nosso crescimento, do nosso aprendizado como ser no mundo”, afirma Iandoli, voluntária há 14 anos do Centro de Valorização da Vida (CVV), instituição sem fins lucrativos que presta serviço de apoio emocional e, sobretudo, de prevenção ao suicídio. Para integrar a equipe de voluntariado, não há restrições, basta ter boa vontade. “O que ela [a pessoa] tem que ter é vontade de se doar e se identificar com o trabalho”, explica a voluntária, que trabalha no CVV de São Caetano do Sul. O serviço é gratuito e feito por meio de ligação pelo número ao qual a senhora se refere, e-mail, chat ou presencialmente nos postos de atendimento espalhados pelo Brasil. Em 2017, em parceria com o Ministério da Saúde, o atendimento passou a ser nacional.
O Ministério da Saúde afirma que, por ano,
11 mil pessoas tiram suas vidas
no Brasil
Segundo a Organização Mundial da Saúde,
90% dos casos de suicídio poderiam ser
evitados 62
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De acordo com o Ministério da Saúde, quase 11 mil pessoas tiram suas próprias vidas todos os anos no Brasil. Ainda segundo o departamento, o suicídio é considerado a quarta maior causa de morte do País entre jovens de 15 a 29 anos. O tabu em relação ao tema é uma barreira que impede as pessoas de buscarem ajuda ou simplesmente falarem sobre suas angústias. “Um antídoto ao suicídio é o desabafo”, ressalta Sergio Batista, voluntário de 65 anos do CVV. Ele confessa, sem preconceitos, já ter utilizado o serviço quando precisou conversar com alguém. O mesmo conta Iandoli. Embora fique grande parte do dia atendendo às ligações, por vezes, é ela quem disca. “Sinto-me bem, reorganizo meus pensamentos e minhas emoções. O serviço é de livre acesso, é para todos, então não teria o porquê de eu não usar”, explica. Marília*, de 19 anos, passou a utilizar o CVV como alternativa no momento em que não estava fazendo tratamento psicoterápico. “Não havia ninguém perto de mim com quem eu pudesse conversar a respeito do suicídio”, conta. Ela usa o canal há mais de um ano e é uma das que atestam a qualidade do serviço. Descobriu a existência desse tipo de apoio navegando no Facebook, e seu primeiro contato com uma voluntária do CVV se deu por e-mail após uma intenção suicida. “Sempre que eu sinto necessidade de lidar com alguma emoção mais forte, que eu saiba que pode desencadear algo mais difícil, posso ir lá e conversar sobre isso com essa voluntária, desabafar com ela, tendo a consciência de que não vai me julgar, me abandonar, de que eu não vou ser exposta”, confessa a jovem. Para Marília, nos momentos mais complicados, o CVV é um refúgio em que sempre há alguém disposto a ouvi-la e com quem ela sente confiança ao se abrir. “Então eu posso ter essa regularidade que me dá a segurança de eu ter uma pessoa com quem posso falar dos problemas que eu talvez não consiga desabafar com outras pessoas”, conta.
79%
dos casos
no mundo ocorrem em países de
baixa e média renda
79% dos
suicídios são cometidos por homens
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FALANDO ABERTAMENTE. Ao longo da história, pessoas que sofriam de transtornos mentais foram deixadas à mercê da sociedade, acusadas de bruxaria ou de estarem possuídas pelo demônio. Em 1583, a austríaca Elisabeth Plainacher foi chamada de bruxa e acusada de ter enfeitiçado sua neta, Anna, que sofria de epilepsia. A doença era vista como uma forma de possessão demoníaca. Plainacher morreu na fogueira após confessar, sob tortura, ser uma bruxa. Hoje, essas ideias não possuem mais força, mas outros estigmas foram construídos: quem tem depressão é preguiçoso, ansiedade é agitado, bipolaridade é louco. A psicóloga Karen Scavacini, de 41 anos, explica que a psicofobia – preconceito por quem sofre de transtornos psicológicos – impede que as pessoas recebam o cuidado necessário. “Quando uma pessoa chega no hospital, ela é maltratada. Não é tão fácil achar locais que tenham atendimento sensibilizado o suficiente para não julgar”, afirma. Scavacini é cofundadora do Instituto Vita Alere, que atua na prevenção do suicídio e posvenção – termo que surgiu em 1970, na América do Norte, para explicar a prevenção das futuras gerações, sobreviventes e familiares daqueles que tiraram a própria vida. O Instituto Alere promove rodas de conversa, treinamentos para profissionais da área, palestras e atendimentos psicoterapêuticos. Instituições como o Vita Alere se concentram em estratégias para combater o preconceito. Uma das campanhas que visa quebrar o silêncio acerca do assunto é a hashtag #EuEstou. Em parceria com o CVV e a consultoria de Scavacini, o Facebook lançou uma ferramenta que agrupa vídeos de conscientização sobre o suicídio. Ele também oferece contatos emergenciais tanto para quem sofre de problemas psicológicos quanto para os familiares. “Recebi mensagens de pessoas agradecendo, dizendo que estavam pensando em tirar a própria vida, mas que a campanha as fez repensar que a morte não é o caminho, que há outra saída”, relata a psicóloga.
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A campanha as fez repensar que a morte não é o caminho, que há outra saída Karen Scavacini, psicóloga
Outra campanha promovida pelo CVV é o Setembro Amarelo, iniciada em 2015 e que recebe um investimento de 6,5 milhões de reais do Estado. Caminhadas, palestras, balões, pontos turísticos e edifícios costumam ser iluminados pela cor amarela, já que setembro é considerado o mês mundial de prevenção ao suicídio. Folhetos são distribuídos em locais públicos como maneira de informar sobre fatores de risco e formas de proteção. “A gente traz uma visão de saúde pública para não ter somente a visão de consultório, de que eu só posso prevenir o suicídio se a pessoa vier até mim”, conta a Scavacini sobre o treinamento que aplica em psicólogos profissionais. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), 90% dos casos de suicídio poderiam ser evitados se houvesse amparo. Estar em um ambiente de compreensão é fator decisivo para que alguém se sinta confortável e tenha força para lidar com problemas. As ligações para o 188 do CVV são anônimas e não há registros de gênero nem idade. “Conversamos de forma compreensiva e respeitosa. Nós não temos como direcionar um diagnóstico ou uma solução. Ela é um ser humano em crise e eu estou disposta a acolher”, explica Carmela Iandoli. A meta, segundo o Ministério da Saúde, é reduzir em 10% a taxa de suicídio até 2020.
“A vida corrida e o estresse em busca de resultados têm sido o motor de muitas doenças emocionais”, comenta Iandoli. No país, 79% dos suicídios são cometidos por homens, um número quatro vezes maior se comparado às mulheres. Segundo Scavacini, isso acontece por conta do sistema patriarcal que impõe a eles funções como a de provedor da família, gerando um sentimento de impotência quando não se obtém sucesso na vida. “Ele tem maior dificuldade de pedir ajuda por uma pressão cultural de que ele tem que ser muito bom e não pode falhar”. Buscar ajuda em momentos de extrema angústia, raiva, sobrecarga ou quando a situação parece não ter saída é a atitude primordial a ser tomada. “Ela [a doença], sendo diagnosticada, pode ser tratada. Assim, prevenimos um acúmulo de desordens que podem afetar o nosso equilíbrio”, comenta Iandoli. Para Scavacini, houve algumas conquistas de uns anos para cá. Embora ainda haja um longo caminho pela frente, ela acredita que, se comparado a cinco anos atrás, agora há uma abordagem maior sobre o suicídio nos meios de comunicação. “Hoje em dia, a mídia já entende que pode falar abertamente, mas com responsabilidade. Falar também salva vidas. Então acho que essa visão está mudando”, conclui a psicóloga. Diante da situação vivenciada com a senhora de 68 anos, Iandoli enfatiza a importância de se falar sobre a solidão, o abandono e, acima de tudo, o preconceito. A voluntária afirma ter sido capaz de dimensionar a ajuda que seu trabalho oferecia às pessoas naquele momento e, com suas próprias palavras, “o quanto de significado um olhar valoroso sobre nós contribui para continuarmos em frente”. Comenta, ainda, que ajudar nunca é uma tarefa fácil, porque, é necessário se despir completamente de qualquer “pré-conceito” para que seja verdadeiro e eficaz.
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O nome foi trocado para preservar a identidade da entrevistada
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Opinião
Para inglês ver A negação da identidade permanece há séculos no Brasil
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ais de 200 milhões de pessoas, filhas de inúmeros pais que vieram de países onde seus ascendentes partiram para se aventurarem na “pátria gentil” brasileira. Muita história para mencionar em algumas frases, mas a questão a ressaltar é a diversidade em que o Brasil se fundou. Para bem ou para mal. Há um detalhe: essa história é totalmente esquecida por nós. Não é por causa de ignorância ou falta de cultura, mas sim pelo desdenho que nós mesmos temos dela. É uma herança colonial que prevalece não só no Brasil, mas em todos os cantos do continente latino-americano. Desde o meu país, a Venezuela, aos meus amigos na Argentina e aqui. O que temos em comum é sempre acreditarmos que nossa cultura são sobras europeias e, por isso, temos que a depreciar. O desdenho às nossas origens — sobretudo àquelas que não têm origem francesa, inglesa ou alemã — nos faz escolher ídolos distantemente “sagrados” para orientar o futuro. É triste pensar dessa maneira, mas nossas vidas se espelham fanaticamente em culturas alheias tão diferentes que chegamos a imitar cegamente suas atitudes sem pensar nas consequências. Desde 1808, quando a Coroa Portuguesa foge de seu reinado e vem para a Colônia, as atitudes são feitas “para inglês ver”, questão que já diz muito sobre nós, sobretudo na política. Na era da globalização, os discursos
ditos na Quinta Avenida, em Nova York, ou nos Campos Elísios, em Paris, são reproduzidos na Faria Lima ou na Paulista. Isso é um padrão que se repete em todas as bolhas do País. Pessoalmente, nada contra. Porém, não tem como aceitar isso como paralelismo a nossa realidade. Essa ideia sobrevive no âmbito da violência. Lamentavelmente, vários setores da sociedade estão importando discursos e atitudes que nem os próprios países “civilizados” se dão ao trabalho de lembrar. Isso pode explicar coisas estranhas que acontecem na política como encontrar mestiços eugenistas, colonos nortistas xenofóbicos, comunistas libertários ou democratas totalitários. É uma mistura sem pé nem cabeça. Sinceramente, não me surpreendo pelos ataques xenófobos. É uma questão que prevalece há mais de 500 anos na América Latina. Uma história que se repete cotidianamente. Acostumamo-nos a fazer as mesmas coisas bárbaras que os franceses, alemães e estadunidenses fizeram nos seus territórios e colônias. A xenofobia, para mim, é só mais uma atitude mímica que tenta preencher a crise de identidade que vivemos há séculos. Afinal, não tem como explicar para um mestiço a incoerência de ser racista se nem ele mesmo sabe o que significa “ser mestiço”. É triste testemunhar, mas é o preço a pagar por usar a história como privilégio social, e não como identidade nacional.
Aaron Leite é estudante do 3º ano de Jornalismo da Cásper Líbero. Saiu da Venezuela e adotou o Brasil como novo lar. Pretende se especializar em jornalismo de moda.
COMPORTAMENTO
Censurada, mas sempre utilizada Prostituição masculina e de mulheres mais velhas em São Paulo revela traços dos hábitos sociais brasileiros Texto por Carolina Grassmann e Vitor Correia
VITOR CORREIA
“E
m uma sociedade patriarcal, onde ‘comer uma puta’ funciona como rito de passagem de tantos garotos, é desolador perceber o descaso da sociedade com estas mulheres, que se sujeitam a muitas condições desumanas para sobreviver”. É o que pensa Caio Novaes, antropólogo da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa e investigador associado ao Centro em Rede de Investigação em Antropologia (Cria). A prostituição, de maneira geral, é censurada no domínio público, oprimindo quem nela trabalha, mas exaltada no domínio privado. Para Novaes, a educação sexual em escolas é fundamental para que essas questões sejam melhor resolvidas e pensadas em sociedade. Entretanto, por mais que sejam maioria, não são apenas mulheres que se encontram na prostituição. Para Guilherme Passamani, pesquisador na área de Estudos de Gênero pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) – com a prostituição masculina como um de seus principais temas de pesquisa –, está no senso comum que a prostituição é uma profissão degradante, o contrário de uma vida digna. Apesar de a maioria das histórias de prostituição masculina demonstrarem vulnerabilidade, começou-se a observar uma possibilidade de escolha pela prostituição, que pode levar a uma história de sucesso. De acordo com Passamani, a maioria dos “michês”, denominação usada para homens que se prostituem, caracteriza-se como heterossexual, afirma-se ativo na relação e muitos possuem relacionamentos afetivos com mulheres. Existe uma separação entre prática e orientação sexual no discurso desses homens, ou seja, sua prática na prostituição pode ser homossexual, mas isso não define sua orientação sexual. Seja homem ou mulher, o perfil de pessoas na prostituição é mais diverso do que pressupõe o senso comum. De mulheres já com mais idade que não encontraram alternativa de sobrevivência a homens que optaram pela profissão, são muitas e diferentes as pessoas que vendem seus corpos, seja na rua ou por meio digital.
VELHAS “MENINAS”. No imaginário popular, a prostituição é ligada a mulheres jovens, bonitas, com corpos dentro dos padrões estéticos midiáticos e vestindo roupas curtas. Entretanto, no Centro de São Paulo, há um cenário que caminha na contramão desse estereótipo. A maioria das mulheres trabalhando nas ruas da região tem 40 anos ou mais. Em locais espalhados pela zona central da metrópole, estão mulheres mais velhas que oferecem seus corpos por valores que variam de 30 a 100 reais. O Jardim da Luz, ao lado da Pinacoteca do Estado de São Paulo, é um espaço histórico para as velhas prostitutas. Apesar de parecer abandonado, ainda é frequentado por determinado público: prostitutas com mais de 40 anos, que movimentam o local ao usarem como ponto de trabalho. Em plena tarde, durante a semana, as senhoras com vestidos estampados e bolsas transversais sentam-se nos bancos e esperam pelos clientes. Eles chegam, combinam o preço e outros detalhes, para então partirem para hotéis da redondeza. Em um dos assentos do parque, Maria, de 47 anos, que não quis informar seu sobrenome, fazia suas unhas. Ela se prostitui há dois anos, mas diz estar cansada da profissão, só esperando o verão para vender água em faróis. “Precisamos correr para onde estamos ganhando mais para poder comprar umas coisinhas. Aqui tá muito devagar”, justifica. Antes de se prostituir, era carroceira e se sentia explorada. A prostituição deu a Maria a possibilidade de ter um local para morar. Antes, dormia na rua ao lado de seus quatro filhos, mas perdeu a guarda deles há 18 anos para o Conselho Tutelar, por tê-los exposto aos perigos da rua, e até hoje não tem notícias deles. “A gente vai lutando como vai podendo”, completa. Antes do programa, já combina o preço e suas regras com o cliente. Para Maria, o risco de o cliente não pagar é inexistente. Caso isso aconteça, é só “pegar o que tiver pela frente, seja rodo ou vassoura, e sair correndo atrás do mau sujeito”. Em alguns casos também, quando não existe a possibilidade do pagamento, ela pega bens dele que poderá vender depois, como relógios. Mas
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dia com os exames ginecológicos e evita drogas e bebidas. Além disso, possui preferência por homens mais velhos, pois considera os mais jovens “encrenqueiros”. VIDAS EXTREMAS. Contrapondo os estereótipos da prostituição como uma atividade feminina, há também os garotos de programa. Nos arredores da Praça da República, encontra-se uma grande quantidade de “michês” que estão em situação de rua. Eles abordam os transeuntes em busca de algum trocado para a refeição do dia. É o caso de Lafon, como é conhecido por seus clientes e amigos, que pediu sigilo em seu primeiro e último nome. Ele caminha pela rua vestindo bermuda jeans e camiseta e nos pés um chinelo desgastado, além de exalar forte cheiro de álcool. “Eu sou viado, sou Lafon, me prostituo”, é como se identifica o carioca de 46 anos, que está em São Paulo há nove. Veio para a cidade com seu então marido atrás de uma travesti que o “pilantrou”. Logo em seguida, foi abandonado por seu companheiro e, desde Para atrair clientes, algumas prostitutas se apoiam em postes ou muros e abordam os passantes. Maria, por sua vez, faz as unhas no Parque da Luz para chamar a atenção. Outras preferem colar adesivos com seus telefones em orelhões
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Maria conta que é raro isso acontecer, já que muitos de seus clientes estiveram com ela mais de uma vez e, dessa forma, sabe que são de confiança. “É um serviço, não adianta. Do jeito que foi falado na rua, tem que acontecer no quarto”, interrompe a manicure de Maria, que costuma atender grande parte das prostitutas que trabalham no Parque da Luz. Maria acrescenta que, mesmo nos casos de agressão, não há irmandade entre as prostitutas. É cada uma na sua e por si. Na Luz, caso ocorra alguma briga, os seguranças intervêm, mas nada além disso. Para promover a cidadania e a garantia de direitos humanos das mulheres em situação de prostituição, existe a ONG Mulheres da Luz, localizada no Jardim da Luz, que auxilia prostitutas, dá auxílio médico, preservativos, oficinas de costura e até mesmo aulas de Português para alfabetizá-las. O maior objetivo da organização é garantir que essas mulheres se sintam acolhidas e tenham seus direitos respeitados. A organização é formada pela freira Regina Célia Corandin, e por duas ex-prostitutas: L.T., que pediu para não ser identificada, e Cleone, que não quis informar seu sobrenome. Também recebem auxílio de uma voluntária portuguesa chamada Gabriela Lopes. O espaço é uma pequena sala localizada embaixo da administração do parque. Corandin conta que o parque é o ganha-pão destas mulheres, que não tiveram muitas oportunidades na vida. Com o apoio de psicólogos, a ONG procura trabalhar com a autoestima delas, já que grande parte possui um preconceito consigo mesma. Sentem-se culpadas pelo fato de a maioria de seus clientes serem homens casados, que gastam dinheiro com elas em vez de prover suas famílias. “Nosso trabalho é reforçar que elas são cidadãs”, afirma Lopes. Algumas dessas prostitutas, antes de terem esse trabalho, eram empregadas domésticas, mas não ganhavam o suficiente com a profissão para sustentarem suas famílias. Muitas não eram registradas, não possuíam nenhum benefício trabalhista e ganhavam menos que um salário mínimo. A Mulheres da Luz, além de não aceitar qualquer tipo de preconceito, procura conscientizar as prostitutas a não terem relações sexuais sem o uso do preservativo. Além da problemática das doenças sexualmente transmissíveis (DSTs), uma gravidez indesejada também pode acontecer, situação em que a ONG não deixa de auxiliá-las. Procuram conscientizar as mulheres de que o pai deve estar presente na vida da criança e auxiliar com pensão alimentícia. Caso necessário, pedem apoio da Justiça. Já até fizeram o chá de bebê de uma dessas mães, mas contam também que essa não é uma situação muito frequente, por se tratar majoritariamente de um público mais velho. Mas as prostitutas de mais idade não estão somente no Parque da Luz. Na Praça da Sé, encontra-se Luana, de 57 anos. Óculos escuros no topo da cabeça, calça jeans, jaqueta de couro e cabelos loiros mesclados com fios grisalhos que entregam a idade. Não é casada nem tem filhos. Seu único contato com a família é sua irmã que mora no Rio de Janeiro. Sua ambição na vida é encontrar um emprego com carteira assinada, ganhando o suficiente para viver. Caso contrário, pretende se prostituir até quando a idade permitir. A prostituta veterana vivia no Rio de Janeiro e, há quatro meses, resolveu se mudar para a região central da capital paulista, pois sentia que vivia em uma cidade muito perigosa. Veio para trabalhar como camelô, porém, suas mercadorias eram constantemente confiscadas e estava farta de correr do “rapa”. “Eu não tenho mais idade para isso”, afirma. Arranjou um emprego sem carteira assinada em uma banca de jornais na Sé, mas não era o suficiente para se sustentar. Intercala seus trabalhos, sendo atendente na banca de jornais e se prostituindo no horário de almoço. Seu horário é das 9 às 16 horas, e se recusa a se prostituir à noite, por conta do perigo. Nunca passou por experiências negativas e se previne: sempre cobra o cliente antes, usa preservativo, está em
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então, está nas ruas, onde vive sozinho. Lafon se prostitui há 19 anos e trabalha de maneira independente, ou seja, não está ligado a algum proxeneta, vulgarmente conhecido como “cafetão”. A maioria de seus clientes são homens casados que se dizem heterossexuais. Ainda acrescenta que parte de sua clientela é formada por deputados estaduais e vereadores, situados inclusive em um campo mais conservador. Para encontrar clientes, relatou bater de porta em porta dos carros na rua. “Ainda mais que sou negão e tenho ‘neca’ grande, as mariconas param de carro e atendo todas elas”, afirma sobre sua rotina de trabalho. Lafon cursou Serviço Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e conta ter tido uma vida confortável antes de se mudar para São Paulo. “Eu tinha tudo, tinha carro, apartamento”, mas sua situação financeira mudou drasticamente quando chegou na metrópole e foi abandonado e enganado pelo ex-marido. “Tô aqui na rua porque sou uma idiota, besta, fui atrás de um bofe que me iludiu”, conta com lágrimas nos olhos e arrependimento. Também não possui o apoio da família, há anos sem contato. Ele destaca o relacionamento abusivo que tinha com o pai. “Eu quero que a minha família morra, meu pai é um pedófilo, que me estuprou”. Dentro os inúmeros arrependimentos, Lafon se orgulha de nunca ter roubado. “Sou mendiga, amiga, mas sou bicha honesta”, afirma e completa que seu legado é a honestidade, mas convive frequentemente com o oposto por viver nas ruas de São Paulo. Apesar de ganhar uma quantidade baixa com os programas, Lafon consegue fazer pelo menos uma refeição por dia ao pedir trocados para as pessoas que encontra em seu caminho. “Que vida é essa? Ficar se humilhando por um prato de comida, as pessoas pisam na gente”, diz. Todos esses traumas fizeram com que Lafon desenvolvesse uma dependência química em cocaína e álcool, além de se apegar à fé que possui em Jesus, única razão pela qual ainda não se suicidou. Sua única esperança para sair da rua é o Benefício de Prestação Continuada (BPC), da Lei Orgânica da Assistência Social (Loas). Trata-se de um salário mínimo mensal destinado a pessoas com deficiência, que dificilmente conseguirá, pois está pleiteando o benefício por ser soropositivo. “Tenho que ser forte, mas às vezes me dá vontade de desistir. Na rua, sem documento, negro, homossexual, que expectativa de vida eu tenho? As pessoas me veem e correm de mim. Eu queria ser uma bicha famosa, bonita, queria ter minha casa, mas tô longe disso. Sabe qual é meu destino? Caixão”, conclui. Em total oposição à história de Lafon, está Luka Petronetto, de 20 anos. Ele se prostitui há três anos e começou ainda menor de idade nas ruas de Goiânia, sua cidade natal. Um dia chegou em casa e se deparou com suas malas na porta: sua mãe havia descoberto o seu trabalho. Decidiu se mudar para São Paulo, cidade considerada a rota dos garotos de programa de todo o Brasil. Continuou se prostituindo nas ruas e saunas da capital paulista e começou a ganhar renome quando começou a utilizar sites que divulgam garotos de programa. Atualmente, considera-se um garoto de luxo, cobra 400 reais por hora e trabalha de três a quatro dias por semana, no máximo dois programas ao dia. Petronetto é bissexual, com maior atração por mulheres, mas seus clientes costumam ser homens, no geral jovens e, quando mais velhos, casados. Quanto à proteção, exige sempre o uso de preservativo e realiza exames de DSTs todos os meses. “Garoto de programa geralmente é mais limpo do que os clientes, a gente se cuida muito”. Para realizar seus programas, ele sugere
Luka Petronetto está cadastrado em diversos sites que conectam clientes a garotos de programa, inclusive internacionais
seu apartamento, mas, às vezes, clientes estrangeiros preferem nos hotéis em que estão hospedados. Nunca passou por nenhuma experiência negativa relacionada à prostituição e conta gostar muito da profissão. “Quando você ultrapassa aquela linha [de sair das ruas], tudo se torna bom”, afirma. Diz, orgulhosamente, que paga todas suas contas sem precisar de ajuda e pretende continuar se prostituindo, mas também revela que essa não é sua única fonte de renda, possui muitos investimentos. Petronetto ainda conta que conseguiu viajar o mundo em 2017 e teve uma experiência inesperada em uma de suas viagens. Em Dubai, recebeu a proposta de um ministro de um país asiático, que não quis nomear, para encontrá-lo na Malásia, com passagens pagas. Chegando no aeroporto, um motorista estava esperando pelo rapaz, e no hotel precisou entregar seu celular para um segurança. O cliente gostou muito do jovem e bancou um mês de férias na Tailândia. “Não é possível que ele tenha gostado tanto de mim, deve estar me usando para fazer lavagem de dinheiro, só pode”, comenta, rindo. “Acho que as pessoas têm uma visão do garoto vulnerável, que não tem opção, mas no fundo sempre temos outra escolha, só que essa vida ‘normal’ não me atrai, eu gosto de aventuras. A vida do garoto de programa não é fácil, é difícil como qualquer emprego, mas nossa diferença é que temos liberdade”, conclui.
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Por Cecilia Marins, Maria Allice De Vicentis e Tainá Freitas
Os anos 70 seriam o grande início da real decadência da Luz, dos prédios ao redor e do parque.
A venda de drogas, como o crack, se intensifica na década de 80.
há muitas pessoas pedindo dinheiro e fazendo atividades informais, como a compra e venda de ouro.
Na década de 90, a Luz está completamente modificada. Ela está irreconhecível.
Em 2000, tentativas de retomar o centro - como a Virada Cultural - começam a se intensificar...
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...mas, apesar da adesão por parte do público, o efeito é tímido na revitalização do bairro.
Décadas depois, o sucateamento da infraestrutura do espaço público continua presente.
A falta de segurança pública, as más condições de vida dos mais pobres…
E, no meio disso, elas. Sempre elas.
Este livro é sobre as mulheres que sempre estiveram aqui e ninguém viu.
O Parque da Luz é o ponto de trabalho de várias mulheres em situação de prostituição que se encontram e desencontram pela vida. Foi em uma dessas andanças que surgiu Parque das Luzes, reportagem em quadrinhos que foi o trabalho de conclusão de curso das repórteres. As ilustrações são de Cecilia Marins. Leia o trabalho completo em parquedasluzes.com
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CRÔNICA
Sermão sobre o fim do mundo Texto por Leopoldo Cavalcante nos últimos quatro anos, venho escutando arautos do Apocalipse. Lembra dos jovens na rua, buscando liberdades políticas e financeiras, aqui no Brasil e em outros países? Ouvi dizer que iriam (não vivi de perto para falar ‘iríamos’) vencer tudo e todos (tudo e todos, essa entidade etérea que nunca significa nada), e perderam, no limite. Hoje, ouço dizer que vamos perecer por conta daquela revolta, por conta de alguma parcela daquela juventude. Os clarins destas bandas do Inferno tocam para anunciar o fim do mundo novamente. Talvez eles estejam certos e estejamos indo para a merda. O que me indigna é o espanto daqueles pelo fim do mundo. “Sou do pensamento exposto no Sermão 81, da Queda de Roma, de Agostinho de Hipona. ‘Mais vale que te espantes de ver o mundo chegar a idade tão avançada’. O sermão é de 410. Estamos em 2019. Eu queria entender um pouco mais sobre História Antiga. Sei que, como humanos e ocidentais, superamos Nero e Hitler, Stalin e Leopoldo II. Mas teve gente que fez mais merda antigamente. E temos de lembrar que havia menos humanos. Ou seja, proporcionalmente, intensificavam-se as tragédias. Não creio que os arautos do Apocalipse de hoje imaginem o que seja o Abadom. Esse maluco, sim, é pesado. Saca só, o cara liderava um exército de gafanhotos com poder de escorpião. Eles não podiam matar os homens, só torturar a galera sem a marca na testa. Os homens ‘desejarão morrer, mas a morte foge deles’. Acho que, em geral, por termos esquecido a Bíblia, perdemos a noção de um fim absoluto – e até desejável (vide o katechon) – e acabamos por nos impressionar demais. “Essa é uma teoria condizente com a ideia de Schmitt sobre nosso esquecimento dos mitos ocidentais interiorizados. Outra teoria é que nós gostamos
do caos. A mídia sabe. Na Itália, o que apareceu depois da queda de Roma, os jornais trabalham com os três ‘esses’: (e)scandalo, soldi (dinheiro) e sesso (sexo). Hollywood também gosta de um fim de mundo, basta contar quantas distopias consumimos daquele lado do mundo. Somos, eventualmente, a geração da distopia. E isso é lindo! Como disse um Papa do século 15, ‘vamos nos divertir, o mundo conduz a si mesmo!’”. Gritei, cambaleante. Por enquanto, sei que, se eu cair, alguém me segura. REPRODUÇÃO
“P
orque o mundo tem de acabar!”, eu disse, entre risadas, bêbado e batendo no ombro do Gabriel, como se fôssemos cúmplices dessa queda. “Essa ideia do fim do mundo ronda minha cabeça há algumas semanas. Acontece que andei lendo Revelação e fiquei com algumas inquietações. Mas antes de falar sobre elas, deixa eu te lembrar do meu passado: nasci numa família laica, pai e mãe, que respeitava a liberdade de fé e a não imposição de dogmas religiosos. Não havia filosofia por trás desse comportamento, era puramente falta de Chamado e excesso de preguiça na salvação das almas. Para evitar brigas com as avós, fui batizado como protestante. Por falta de interesse, não fui à crisma. De terem jogado água na minha cabeça, nada contra. De não ter estudado o mínimo do Cristianismo, tenho um certo arrependimento. “Nos últimos meses venho lendo sobre teologia política, mais especificamente teorias sobre o katechon. Ele é uma figura que vem depois do domínio aparente do Demônio, segurando o Tinhoso em sua onda de destruição. Mas ela precisa ser derrubada para que o Sete-peles domine o mundo. Só depois que há a submissão total aos desígnios do Diabo, pode vir a vitória final de Cristo. A ideia do katechon, esse freio que precisa ser removido, é desenvolvida por Carl Schmitt, um dos filósofos do nazismo. A defesa para uma teologia política é a sensação de que há mitos fundadores esquecidos e que são recorrentes na história política ocidental. O momento do katechon, a figura que impede a destruição total e, consequentemente, a salvação integral, se repete naturalmente no Ocidente. “Por que isso é relevante ao nazismo? Não sei, não cheguei nessa parte, o livro é grande e difícil. Mas enfim, ao presente:
Detalhe da pintura Sermão e atos do Anticristo, do italiano Luca Signoreli (c.1450-1523)
Tirinha por Lucas Del Papa
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Prostituição
“Profissionais do sexo” fora do padrão sobrevivem
Naturismo Filosofia do nu causa polêmica
Crise ambiental Legislação brasileira para o setor pode sofrer retrocessos