REVISTA-LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO DA FACULDADE CÁSPER LÍBERO #59 - 1º SEMESTRE DE 2016
SECUNDARISTAS CULTURA: da película ao digital no cinema. COTIDIANO: o uso do véu por muçulmanas e judias. FOTORREPORTAGEM: protestos de março de 2016. PERFIL: a paratleta Paola Klokler. COMPORTAMENTO: memória e Alzheimer. RELIGIÃO: o calendário Wicca. ENTREVISTA: Fernando Anitelli, do Teatro Mágico
EDITORIAL
APRENDER A REPORTAR
Revista-laboratório do curso de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero
Fundação Cásper Líbero Presidência Paulo Camarda Superintendência Geral Sérgio Felipe dos Santos Faculdade Cásper Líbero Diretor Carlos Costa Vice-Diretor Roberto Chiachiri Filho Coordenadora de Jornalismo Helena Jacob Editora-chefe Bianca Santana Monitoria Editores Felipe Sakamoto, Naiara Albuquerque e Paula Calçade Revisão Ana Clara Muner, Carolina Moraes, Felipe Sakamoto, Naiara Albuquerque Paula Calçade Editora de Arte e Fotografia Guilherme Guerra Diagramação Beatriz Fialho, Giulia Gamba e Guilherme Guerra Participaram desta edição Ana Beatriz Issler, Ana Clara Muner, Ana Júlia Cano, Andressa Isfer, Bárbara Roncada, Bruna Araújo, Camila Junqueira, Caroline Huertas, Cecilia Melozi, Débora Lima, Denise Kanda, Enrico Weg Sera, Felipe Sakamoto, Fernanda Lucki Zalcman, Gabriel Gomes, Gabriel Xavier, Gabrielle Viana, Giovanna Forcioni, Guilherme Guerra, Guilherme Venaglia, João Pedro Siqueira, João Victor Marques, Leonardo Martins, Letícia Pralon, Letícia Sé, Maria Júlia Assis, Mariana Gonzalez, Marina Borges, Mayara Rozário, Naiara Albuquerque, Olga Bagatini, Paula Calçade, Pedro Caramuru, Téo França, Vitor Zocarato, Yasmin Toledo Imagem de capa: Pedro Caramuru Agradecimentos Catalina de Vera, Débora Pivotto Núcleo Editorial de Revistas Avenida Paulista, 900 – 5º andar 01310-940 – São Paulo – SP Tel.: (11) 3170-5874/5814 E-mail: revistaesquinas@gmail.com Site: casperlibero.edu.br/revista-esquinas Errata O aluno Erick Noin participou como fotógrafo da reportagem Na corda bamba da edição 58 da Revista Esquinas
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BIANCA SANTANA
Durante o primeiro semestre de 2016, cerca de 120 estudantes participaram das reuniões de pauta da Revista Esquinas, nas manhãs e tardes de segunda-feira. Propuseram temas, elaboraram pautas com o auxílio dos editores e desenvolveram 33 reportagens. Delas, 17 foram selecionadas para compor esta edição. Algumas outras seguem em processo de apuração, tomando o tempo necessário para que sejam grandes narrativas. Outras ainda estão quase prontas para serem publicadas online, quando lançarmos a Esquinas transmídia. As reportagens aqui impressas têm a cara de nossas alunas e alunos: desde a pauta, organicamente proposta e elaborada por eles; passando pela apuração cuidadosa, a checagem de dados, as fotografias, o design, a revisão. Um órgão laboratorial e experimental do jornalismo de profundidade, comprometido com o interesse público, que queremos espalhar, também, fora da faculdade. Secundaristas, a reportagem de capa desta edição, mobilizou os repórteres Gabriel Gomes, Jennifer Mendonça e Pedro Caramuru, que acompanharam por sete dias as manifestações e atividades de estudantes um pouco mais jovens que eles mesmos, permitindo-nos conhecer em detalhes aquilo que vemos por cima nos jornais e redes sociais. A viagem no tempo a que somos convidados por Ana Beatriz Issler, em sua re-
portagem sobre o Café Girondino, continua no texto de Guilherme Guerra sobre projecionistas de cinema, profissão importante no passado, e é aprofundada por Gabriel Xavier, João Victor Marques e Yasmin Toledo, que ouviram de idosos como é a convivência com a Doença de Alzheimer. Tempo que, muitas vezes, não se cronometra, e tantas outras é marcado pelos relógios ou calendários, como percebemos no infográfico sobre os ciclos da Wicca, elaborado por Bárbara Roncada e Marina Borges. A linguagem atual da infografia, aliás, foi bem explorada na reportagem sobre o uso de véu por mulheres judias e muçulmanas, e para explicar a COP 21, importante conferência da ONU para concretizar medidas que controlem as mudanças climáticas. Pauta política e ambiental, assim como o texto sobre veganismo assinado por Ana Clara Muner e Guilherme Venaglia. Nos preparativos para as Olimpíadas e as Paralimpíadas, Olga Bagatini elaborou o perfil da paratleta Paola Klokler, que joga basquete em cadeiras de rodas. Pelas singularidades de sua trajetória, podemos compreender a vida de muitos atletas. E pela voz de Fernando Anitelli, entrevistado por Mariana Gonzalez, Naiara Albuquerque e Paula Calçade, entramos no universo da música. Por Cecília Melozi, Débora Lima e Bruna Araújo, a adoção de crianças por casais homoafetivos. Das ruas, vieram tanto a narrativa da Feira Kantuta, com as cores e sabores andinos e a moda dos food trucks; quanto uma reportagem que mostrou os centros de acolhida para pessoas que moram nas ruas, outra sobre o machismo no futebol, dentro e fora dos campos e, por fim, uma sobre os Alcóolicos Anônimos. A leveza. E o peso. Na fotorreportagem desta edição, o clima político do país ganhou forma e cores nas manifestações emblemáticas que tomaram a avenida Paulista no mês de março. De forma plural, habilidosa e sensível, os estudantes Pedro Caramuru, Téo França e Vitor Zocarato registram o momento histórico e nos convidam a refletir sobre aquilo que nos aproxima. Muitas horas de entrevistas, pesquisas, observação, discussão e orientação para chegarmos a esta revista. Esperamos que vocês gostem! De nossa parte, estamos orgulhosos pelo resultado, mas, principalmente, por todo o aprendizado para chegar a ele. Bom mergulho!
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SUMÁRIO
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06 À ESQUERDA DO PALCO
22 “NÃO TEM ARREGO”
10 MAMÃE, MAMÃE
28 POR DEBAIXO DO VÉU
12 UMA VIAGEM NO TEMPO
32 HOJE TEM VAGA?
14 “QUAL O SEU NOME MESMO?”
36 MARÇO DE 2016
18 PEQUENA BOLÍVIA
44 MUDANÇA VEGANA
A arte e a política no cotidiano e nas obras de Fernando Anitelli, vocalista da banda Teatro Mágico
O sistema de adoção no Brasil, a partir da experiência de um casal lésbico
A história do Café Girondino, inaugurado em 1875, um dos mais tradicionais da capital paulista
As memórias de idosos diagnosticados com a Doença de Alzheimer
A diversidade da cultura andina preenche a Feira da Kantuta aos domingos
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A ocupação de secundaristas no Centro Paula Souza, pelo direito à merenda e por melhorias na educação
Os aspectos religiosos e culturais no uso da vestimenta por mulheres muçulmanas e judias no Brasil
A trajetória de pessoas que procuram abrigo em um centro de acolhida em São Paulo
O registro fotográfico das manifestações “a favor do impeachment” e “contra o golpe”
A busca por sustentabilidade e respeito aos animais orienta um novo estilo de vida
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48 CALENDÁRIO WICCA
64 COZINHA SOBRE QUATRO RODAS
50 PELO ESPORTE
68 COP 21
Conheça os principais eventos e datas celebrados na religião de origem celta
A Paralimpíada retratada no perfil da jogadora de basquete em cadeira de rodas Paola Klokler
54 NEM MAIS UMA DOSE
Participantes de reuniões dos Alcoólicos Anônimos falam sobre as dificuldades de superação do vício
58 OS MESTRES DA PELÍCULA
A mudança para o digital transforma o cotidiano de projecionistas de cinema
60 AS DONAS DA BOLA
Mulheres que buscam espaço no futebol driblam dificuldades e preconceitos
O boom dos food trucks como alternativa de negócio na gastronomia paulistana
As resoluções do Acordo de Paris e os compromissos assumidos pelo Brasil na redução de danos ambientais
SEÇÕES
03 EDITORIAL
06 ENTREVISTA 22 CAPA 34 FOTORREPORTAGEM 70 CRÔNICA
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ENTREVISTA
À ESQUERDA DO
PALCO
Levantar bandeiras pelos direitos humanos é o caminho escolhido por Fernando Anitelli, vocalista da banda Teatro Mágico REPORTAGEM MARIANA GONZALEZ, NAIARA ALBUQUERQUE e PAULA CALÇADE (3º ano de Jornalismo) FOTOGRAFIA NAIARA ALBUQUERQUE (3º ano de Jornalismo) DESIGN GIULIA GAMBA (3º ano de Jornalismo)
NOS TREZE ANOS à frente d’O Teatro Mágico, ele mostrou o rosto poucas vezes. O figurino, a maquiagem e as performances mudaram ao longo do tempo e o ajudaram a criar uma persona com a qual ele garante ser, de forma ainda mais entregue e crua, Fernando Anitelli. Fazia 14ºC na capital paulista e aquele era o mês de maio mais gelado dos últimos oito anos. Vestido dos pés à cabeça em diversos tons de roxo, que oscilavam entre o lilás e o vinho, todo seu corpo estava protegido da neblina do parque Buenos Aires, na Zona Oeste da capital paulista. Uma boina de veludo e cachecol de lã completavam a roupa.
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Naquela quinta-feira, fazia exatamente uma semana que Dilma Rouseff havia sido afastada da presidência pelo Senado Federal e o governo interino assumia o comando do país — cortando ministérios e eliminando as pastas da Cultura e dos Direitos Humanos. Nesse mesmo contexto, estudantes secundaristas do estado de São Paulo ocupavam, pela segunda vez em seis meses, as escolas públicas em sinal de protesto pelo desvio das merendas. À Esquinas, Fernando Anitelli falou sobre o atual cenário político, a ameaça à democracia e a trajetória d’O Teatro Mágico, que garante: “Vai continuar levantando bandeiras”.
NAIARA ALBUQUERQUE
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Estávamos no seu show do dia 13/05. Percebemos uma crítica política e um engajamento sobre a atual conjuntura do país. Como você vê o que está acontecendo no Brasil? O Teatro Mágico sempre se posicionou em relação a várias bandeiras e agendas, não a um partido. O que acontece é que, na maioria das vezes, essas pautas são defendidas por partidos políticos de esquerda. Hoje, discutir esses assuntos é falar sobre a democracia, é um debate que precisa ser feito. Nós falávamos disso antes também, sempre fomos contra a homofobia, o racismo, o machismo e exaltamos o empoderamento da mulher em todos os âmbitos; na música e nos nossos bastidores. Por que você chama o que aconteceu de golpe? Sentimos que todos estão se posicionando contra a corrupção, é uma pauta que nos unifica. Mas as pessoas não estão compreendendo qual filtro colocam para lutar contra isso. Então, no show, quando eu gritei “golpistas não passarão”, houve uma separação no público, que estava até aquele momento junto. Um pessoal falava “não vai ter golpe!” e outros, “tchau, querida!”. Alguns fãs ainda me escreveram depois do show, contando que foram embora quando ouviram eu me posicionar. Eu respondi que se quando eles escutam algo em relação à liberdade e isso os incomoda, só mostra que eles precisam rever alguns conceitos sobre como viver em meio à diversidade. É só ver o que ocorreu nos últimos dias, o presidente interino está fazendo atrocidades. Tiraram a primeira mulher presidente, depois tiram todas dos ministérios. A Lava Jato parou, onde está o Sérgio Moro agora? Tudo isso mostrou a fragilidade da nossa democracia e a parcialidade das grandes mídias, que cobriram só algumas manifestações. Estamos em um momento em que precisamos ter paciência e coragem para ocupar o que precisa ser ocupado e colocar a cara a tapa, além de passar que o amor faz revolução. Precisamos ser até didáticos para mostrar o que está acontecendo na política. Fernando, você acredita que a arte tem e cumpre essa função social? De ser didático sobre a política? Com certeza! Qual é o meio de comunicação capaz de transformar as pessoas para além de uma linguagem formal? A arte! Pode ser a música, pintura, livro, dança, pode ser o que for, todas essas expressões são fundamentais. Por isso, a primeira ação do Michel Temer foi acabar com o Ministério da Cultura, porque ele sabe que onde tem cultura, têm pessoas com corações e mentes abertas, e esses indivíduos não vão permitir um governo ilegítimo, com uma pauta de cortes e falta de representatividade, que jamais ganharia nas eleições. Você falou sobre os fãs que não concordaram com o seu posicionamento político. O Teatro Mágico se preocupa em desagradar parte do público? Nós defendemos o que está na nossa música. Eu dialogo de forma até pedagógica com os outros lados, temos que abraçar todas essas pessoas, porque é uma revolução que se faz com a poesia e com a música. Mas quando nós cantamos: “O preconceito eleito/ A culpa imoral/ A violência descabida/ Orientação sexual/ Falta de respeito/ No púlpito, no pleito/ Homofobia, quem diria! / Amplificada pela má fé! / Homem, mulher/ Somos todos bichos/ Nichos de mercado/ Datados! / Dotados de amor e querência / Por isso não esqueça: onde sobra intolerância, falta inteligência!”, está claro como vemos nossa política, traduz totalmente o que pensamos. Você esteve na ocupação dos secundaristas na Assembleia Legislativa de São Paulo, como foi a interação com os estudantes? É uma geração que já chega com bagagem, eu achei lindo! Eram sessenta jovens lá dentro e ninguém quebrou nada, todos sabiam muito bem o que queriam e porque estavam lutando. Pela primeira vez, aquela foi a casa do povo, naquelas cadeiras sentaram negros e negras, jovens e homossexuais. Eles estavam brigando pelo di-
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Qual é o meio de comunicação capaz de transformar as pessoas? A arte! Pode ser a música, a pintura, o livro, a dança, pode ser o que for, todas essas expressões são fundamentais
Fernando Anitelli, músico
reito à merenda, não é possível que os deputados estaduais não consigam juntar assinaturas para uma CPI, então eles precisaram ocupar! Mas esse foi apenas o primeiro passo, agora não vamos desocupar até o Temer sair. Precisamos compreender que estamos em uma luta e vamos continuar debatendo, para mudar o trajeto dos acontecimentos. Por falar em trajetória, queremos falar um pouco sobre a história do Teatro Mágico. Como o visual e a música acompanharam as mudanças de vocês? Desde o primeiro álbum, eu sabia que seria uma trilogia e já tinha na cabeça os nomes de cada um. O primeiro chama Teatro Mágico – entrada para raros, o segundo é Segundo Ato e o terceiro, Sociedade do Espetáculo. Depois, gravamos um álbum ao vivo combinando todos, precisávamos da interação com o público. Passaram-se dez anos de carreira, eu queria fazer um álbum menos colorido dessa vez. Pensamos então no Grão do corpo, um disco em preto e branco, que fala sobre discussões sociais. É denso e introspectivo. Mais tarde, queríamos trazer uma narrativa do cotidiano mais fluída, positiva e festiva de novo, com outro colorido. A maquiagem acompanhou toda essa transição. Para fazer novas músicas, vocês buscam influências e pesquisam outros artistas novos e antigos? É mais que uma inspiração? Exato, todo trabalho são horas de pesquisas. Se fizermos dez músicas em uma semana, apenas uma sai, porque sempre mudamos o tom e a letra. Escrever é como costurar com uma agulha pequena um vestido muito bordado ou lapidar uma escultura, leva muito tempo. Nas parcerias, componho mais rápido, porque tenho distanciamento já que é uma música para outra pessoa, mas quando são
WIKIMEDIA COMMONS/ LUIZ RODRIGUES
meus traba lhos, eu demoro. O medo é sempre a próxima estrofe, como disse o poeta Mário Quintana.
O Teatro Mágico sempre se apresenta com maquiagem de circo. Existe uma diferença entre o Fernando que entra no palco vestindo esse personagem e o de agora? A curiosidade é que quando estou todo pintando é o momento em que sou mais eu, uma hora de total entrega nos shows, é autêntico. Ao mesmo tempo que é um personagem, estou ali para sentir na pele tudo o que vier. Incorporo aquilo que posso remeter ao público, acabo me distanciando de mim mesmo para representar uma ferramenta que leva sentimentos, é como um ator. Como vocês lidam com a combinação entre dança, música e toda a pluralidade que está no palco no mesmo show? O primeiro de tudo é a música, o que queremos falar. Depois de ter a combinação entre ritmo e letra, nós mostramos para a equipe. Todos os músicos trabalham juntos nos arranjos e nas adaptações. Aí levamos as canções para as dançarinas e perguntamos em qual seria mais interessante uma performance e elas começam a ensaiar. No dia do show, nos juntamos e unificamos tudo, ensaiamos antes da apresentação esse encaixe. Às vezes, erramos e acabamos fazendo um improviso, que é bem-vindo quando se transforma numa cena positiva. O Teatro Mágico não tem vínculo com uma gravadora, até como uma forma de crítica. Como o grupo se sustenta no meio artístico? O Teatro Mágico também se caracteriza por isso. Nunca fomos um projeto de vanguarda, porque nunca foi novidade se pintar para cantar. Usar figurino na apresentação também não é algo novo, o
Tropicalismo já tinha feito isso. Na Grécia Antiga, o teatro usava máscara! Mas no Brasil dos anos 2000, não existia um grupo pop que falava sobre liberdade e pluralidade na música e a gente se transformou em uma bandeira. Eu tinha um trio antes da banda, que tinha vínculo com uma gravadora. Ela acabou engavetando nosso trabalho porque não queríamos adequar as canções a um estilo com o qual não concordávamos. Ficamos três anos sem gravar e acabou tudo, desfizemos o contrato. Mas depois de um tempo, meu pai colocou todas as minhas músicas na internet, ai tudo recomeçou. A atitude de um pai coruja fez com as pessoas ouvissem o nosso trabalho, porque não é um empresário que vai definir se suas canções devem ser tocadas, e sim o público que faz fila na porta de um show. Meu irmão mais novo, que é sociólogo, depois teve a ideia de colocar tudo para baixar no nosso site, essa é a arte livre. Nosso capital vem dos shows ao vivo e dos desdobramentos das canções, que são os CDs, as camisetas e os acessórios. A música não é só o produto, é toda a experiência que está envolvida nela. Como você vê o pessoal da nova MPB e seu posicionamento nesse contexto político e social? Eles estão cumprindo o papel de se engajar, como você disse no começo da entrevista? O artista precisa se colocar, senão acaba fazendo a arte pela arte, tem que trazer uma provocação do pensamento e da pesquisa. O Leoni sempre coloca essas questões nos shows, o Frejat também. O Criolo e o Emicida se destacam nas composições, junto com o Chico César e a Tulipa Ruiz, principalmente durante e depois das ocupações dos estudantes. A Maria Gadú esteve presente. Essa geração nova traz as questões que nos movem e cria uma faísca criativa, que empodera para a luta.
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CHAPÉU FAMÍLIA
MAMÃE, MAMÃE Conheça o sistema de adoção no Brasil e a história de um casal lésbico que adotou duas crianças REPORTAGEM CECILIA MELOZI (1º ano de Jornalismo), BRUNA ARAÚJO E DÉBORA LIMA (3º ano de Jornalismo) FOTOGRAFIA CECILIA MELOZI (1º ano de Jornalismo) DESIGN GUILHERME GUERRA (3º ano de Jornalismo)
YASMIN E THIAGO TINHAM 8 e 5 anos quando encontraram suas mães pela primeira vez. Lana se lembra de ter sentado na frente deles com Luna e perguntado: “Vocês sabem por que estamos aqui?”, as crianças apenas acenaram as cabeças afirmativamente. “Nós queremos ser suas mamães, vocês querem?”, a resposta foi mais acenos positivos. “Mas vão ser duas mamães, não vai ser uma mamãe e um papai, tudo bem?”, insistiu. Dessa vez, Yasmin, a mais velha, perguntou “mas vocês beijam na boca?”, elas responderam que sim, e então foi a vez de Thiago expressar uma dúvida: “Mas vocês beijam na bochecha também?”. Lana conta que, para os filhos, tudo era novidade, enquanto para o casal foi muito natural. Há três anos, Lana Nóbrega e sua esposa, Luna Meyer, entraram na fila de adoção. Lana é jornalista, professora universitária e, hoje, mãe de dois filhos. “Nossa decisão de adotar partiu de uma necessidade que sentimos de ser mães”, conta a jornalista. O processo se iniciou com o curso preparatório que é obrigatório para qualquer
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candidato a mãe ou pai. Quatro encontros durante um mês. Toda segunda, o casal foi aprender sobre a realidade dos abrigos brasileiros e, inevitavelmente, abordando o preconceito social. Lana conta que a equipe de Araraquara, onde foi dado o curso, é muito boa. “Eles deixaram bem claro que a bebê branca, idealizada por muitos pais, não é comum nos abrigos brasileiros”. Mas o término do curso não é, nem de longe, o fim dessa jornada. Para elas, levaria nove meses para terem seus filhos em casa. “O processo de adoção por si só é muito dolorido, porque é longo e envolve uma série de preconceitos que vão além da sexualidade”, lembra. Vários documentos são necessários, além da comprovação de término do curso e da visita surpresa de um assistente social. Com tudo isso feito e aprovado, Lana preencheu um documento com o perfil da criança desejada. A impressão dela, ao receber a ficha, foi de uma descrição superficial do possível filho. Entre os principais requisitos feitos pelos futuros pais adotivos estão a idade, sexo, cor, se a criança
tem irmãos ou algum tipo de deficiência física ou mental. Seis mil e quatrocentos é o número de crianças e adolescentes, entre 0 e 17 anos, que vivem em abrigos no Brasil, de acordo com dados do Cadastro Nacional de Adoção (CNA) de março de 2016. O curioso é que existem 35.106 pretendentes na fila de adoção, segundo os mesmos números do CNA. Ou seja, há mais pessoas esperando para se tornarem pais e mães do que crianças em abrigos. A explicação para a disparidade está na diferença entre as preferências dos adultos e a realidade dos abrigos brasileiros. O resultado de tais opções acaba criando, na verdade, um sistema de exclusão no cenário da adoção. Entre os pretendentes, 92,3% aceitam crianças brancas, sendo que 33,47% daquelas disponíveis para adoção seguem esse perfil, segundo relatório do CNA. Logo, é possível perceber que negros são preteridos nessa fila. A questão da idade também se apresenta como fator importante na escolha
CECILIA MELOZI
Em 2011, o Supremo Tribunal Federal aprovou a união estável entre casais homoafetivos, dando a eles o direito à adoção
dos casais. Quase 20% tem preferência por crianças com até 3 anos, mas daquelas sob a proteção do CNA apenas 3,53% estão nessa faixa etária. A idade com o maior número disponível para ser adotado são os adolescentes de 16 anos (9,73%), porém somente 0,05% dos pretendentes estão abertos a essa idade. E 66% dessas crianças possuem irmãos, mas apenas 29% dos casais aceitam mais de uma criança. “Se a gente fosse engravidar, não daria para escolher o filho. Decidimos fazer uma adoção tardia e que queríamos duas crianças”, conta a jornalista ao relatar que o casal optou por não restringir o perfil do filho adotado. A mãe afirma que acreditava estar preparada para tudo, mas essa ideia mudaria quando os nomes do casal entrassem no Cadastro Nacional de Adoção: “Ninguém nos preparou para o que viria em seguida. A partir do momento que nossos nomes entraram no CNA, recebemos a primeira ligação. Fiquei emocionadíssima”. Lana diz com pesar que, na mesma semana, o casal recebeu doze ligações e sete e-mails
a respeito de diferentes crianças disponíveis para adoção. O curso as havia preparado para uma longa espera, mas elas se viam na situação oposta. Para o casal, era impossível olhar para os nomes e escolher. “Até hoje, a gente recebe notificações nos oferecendo crianças, isto porque ainda existe muita resistência na adoção tardia. Infelizmente, esses jovens ficam atravancados em abrigos esperando a maioridade quando são soltas na sociedade sem nunca ter tido a referência familiar, o aconchego e afeto”, afirma a professora. Em uma quinta-feira, Lana recebeu mais uma ligação, conta ter sentido seu corpo inteiro se arrepiar quando ouviu os nomes: “Naquele momento, eu sabia que eram os nossos filhos”. O casal teve uma grande preocupação ao escolher a escola para os filhos. Dentro de casa, elas falam abertamente sobre tudo, mas temiam que as crianças enfrentassem algum tipo de preconceito na sala de aula. Lana recorda uma visita feita à coordenação de um colégio, quando falou a uma funcionária: “Meus filhos têm duas mães,
eles são negros e adotados, então motivo para bullying não falta. Eu quero saber se a sua escola está preparada para tê-los aqui”. Para a indignação do casal, a funcionária respondeu que não podia garantir o que os outros pais pensariam. “Minha reação foi automática: aqui eles não ficam”. No colégio seguinte, fez a mesma pergunta, mas recebeu uma resposta bem diferente: “Mãe, nós somos um centro educacional. Se a gente não preparar as crianças para diversidade, quem vai preparar?”. É lá que Yasmin e Thiago estudam até hoje. As crianças não costumam ter problemas com os colegas no ambiente escolar. Apenas em um dia, quando brincavam de casinha, uma amiga usou a palavra sapatão. Nesse momento, Yasmin, de personalidade forte, respondeu: “Não é assim que se fala, é desrespeitoso”. Lana afirma: “Eles têm uma percepção de mundo, de diversidade, de consciência e existência muito ampla. Se influenciou em algo o fato de ter duas mães, foi eles perceberem outras realidades de vida além daquela padronizada”.
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CIDADE
UMA VIAGEM
NO TEMPO Arquitetura e cardápio do Café Girondino contam a história de São Paulo REPORTAGEM ANA BEATRIZ ISSLER (2º ano de Jornalismo) FOTOGRAFIA ANA BEATRIZ ISSLER (2º ano de Jornalismo) DESIGN BEATRIZ FIALHO (1º ano de Jornalismo)
O CAMINHAR NA RUA, apressado e firme, fica para trás ao cruzar as arestas de madeira do Café Girondino. Faz-se silêncio. Pupilas relaxam e os olhos sobrevoam os pontos brilhantes do ambiente áureo. Os pés caminham sobre o piso de aparência fria e a cadeira, de mais ou menos sessenta quilo, range repetidas vezes. O vapor da água, o aroma puro do café e o tilintar dos talheres compõem a harmonia do local.
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Inaugurado em 1875, o Girondino é uma cafeteria tradicional da capital paulista, localizada em frente ao Mosteiro de São Bento. O aspecto boêmio e, ao mesmo tempo, acolhedor cria grandes contrastes com as acinzentadas e ásperas ruas do centro de São Paulo. Transforma o ambiente em um verdadeiro cartão postal. “Trabalho aqui há oito anos e gosto muito”, diz Neuton, 37 anos, um dos quatro gerentes do local, que tem o corpo preso dentro de
O local preserva a história do início do século XX, quando São Paulo começava a se tornar metrópole
um terno preto, cabelo penteado e uma impecável gravata vermelha. “Tem um pessoal que trabalha aqui perto e vem todo dia almoçar ou tomar um cafezinho. Mas, de final de semana, os turistas que visitam o centro passeiam no Girondino, faz parte da história da cidade”, conta com orgulho nos olhos. O início do século XX foi o período que concentrou a maior quantidade de mudanças em São Paulo. A então inaugurada ferrovia, a São Paulo Railway, os bondes elétricos e a febre cafeeira trouxeram as luzes do progresso, como está escrito no panfleto de cores pastéis, exposto no balcão do estabelecimento. O cardápio exibe na capa sua antiga fachada. Na foto preta e branca, é possível ver o letreiro “charutaria”, comércio que vende tabaco e fumos em geral e que crescia na época junto com as docerias, restaurantes e hotéis. Hoje, o menu é mais amplo. Entre os diversos tipos de cafés e sobremesas, como sorvetes, bolos e tortas, alguns pratos de massas e carnes desfilam sobre as mãos dos garçons. O Girondino funcionou, originalmente, na esquina da rua XV de Novembro com a Praça da Sé. Para quem está longe de ter vivido nessa época, as fotos amareladas pelo tempo, exibidas nas paredes antigas por rolo e tinta, trazem à imaginação do visitante como a terra da garoa ebulia no final da belle époque brasileira. Em 1998, apesar de reabrir em outro endereço — esquina do Largo São Bento com as ruas São Bento e Bela Vista — a memória da cafeteria foi restaurada e preservada. Projetado pelo arquiteto Mauro Bernardes, o ambiente com capacidade para 250 pessoas
conta com três espaços: a lanchonete no térreo, bar no mezanino e no piso superior, restaurante. Franciele, jovem aprendiz de 21 anos, confirma essa preservação, enquanto prepara carpaccios de entrada: “Eu gosto de trabalhar aqui. É aconchegante, tem um jeito antigo e as pessoas ficam impressionadas, sempre pedem para tirar foto”. A decoração do ambiente apresenta discretamente os exorbitantes contrastes entre nostalgia e atualidade. Ao lado do açucareiro de porcelana branca, acolchoado em seu pires por sachês de açúcar orgânico, Cecília lê atentamente folhas presas por uns clipes. “Sou frequentadora da cafeteria e aqui é um dos meus pontos de encontro, toda semana marco de tomar um café com uma colega de trabalho. É antigo e agradável”, comenta. No andar de cima, embaixo da TV de plasma, há o arcaico rádio Invictus corroído nas extremidades. Ao lado de uma moça talhada na madeira com vestimentas medievais, um vibrante cartaz azul-marinho, Nespresso. Um símbolo da convergência do antigo e contemporâneo, a tradução do Café Girondino. Apesar do lugar fazer esquecer o mundo por meio das vigas de madeira, basta olhar para qualquer um dos lados, que uma fisgada de São Paulo já belisca o estômago. De um canto, a loja de grife Dudalina, com luzes brancas e metálicas. Do outro, ao afastar a cortina, é possível ver a placa vermelha e branca da farmácia do outro lado da rua. Fecha-se a cortina e a tradição e as memórias voltam a dançar nas bandejas dos garçons.
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JOÃO VICTOR MARQUES
COMPORTAMENTO
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“QUAL O SEU NOME MESMO?” Memórias de quem vive com Alzheimer
REPORTAGEM GABRIEL XAVIER, JOÃO VICTOR MARQUES, YASMIN TOLEDO (1º ano de Jornalismo) FOTOGRAFIA GABRIEL XAVIER, JOÃO VICTOR MARQUES (1º ano de Jornalismo) DESIGN GUILHERME GUERRA (3º ano de Jornalismo)
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POR VOLTA DAS 16 horas de uma sextafeira, tocamos a campainha do prédio de Dona Miralda, diagnosticada com a Doença de Alzheimer desde 2014. Logo, fomos guiados até a sala de televisão, lugar pequeno, porém arejado, onde um sofá e uma cadeira estavam dispostos diante de uma grande estante. Após o convite para que nos sentássemos, a conversa se iniciou frente a uma sacada entreaberta, que tinha como vista alguns prédios do bairro Praça da Árvore. A Doença de Alzheimer (DA) é uma síndrome considerada demencial. Incurável, atinge o funcionamento do cérebro, ao degenerar neurônios de determinadas localizações de modo gradual e progressivo, atingindo funções cognitivas, como memória e linguagem. Sem exatidão de sua origem, pode ser tratada para levar maior qualidade de vida aos portadores e ao controle dos sintomas. Não há dados concretos sobre sua incidência no Brasil, porém, segundo pesquisas e dados do IBGE, pode-se estimar que 1,2 milhão de pessoas vivem com a doença atualmente. “Sobrenome? Ih, sumiu” — logo na primeira pergunta, Dona Miralda demonstra dificuldade para se lembrar de seu nome. Sua neta observava a entrevista de perto. Com calma e bom humor, não demorou para que soubéssemos mais sobre a história da senhora que, em meio a desordem de suas lembranças, compartilhava conosco sua vida.
Nascida em Adamantina, interior do estado de São Paulo, e atualmente com 81 anos, Miralda nos contou que morou na roça — modo como ela se refere à sua cidade — até os 15 anos de idade e que não gostava de realizar os serviços braçais do campo, como arar a terra. Para escapar dessas tarefas, ela se dedicava à arte de cozinhar: “Cozinhava de tudo! Doces, feijoada! Mas, hoje em dia, não cozinho mais nada. Agora, só descanso”, conta. Segundo a Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAz), a evolução dos sintomas da doença pode ser dividida em três fases: leve, moderada e avançada. A primeira apresenta-se com sintomas muito discretos e que não interferem na vida diária do paciente, já com perdas de memória e alterações neurológicas. Nesse estágio, a demência pode ser confundida com um esquecimento corriqueiro ou com sintomas de outras doenças, como a depressão. A fase moderada é quando já se tem características bem definidas, com dificuldades para executar as principais atividades. Enquanto na avançada, a pessoa muitas vezes pode perder a capacidade de cuidar de si mesmo. Torna-se necessária ajuda para tomar banho, trocar de roupa, tomar as medicações. Nos casos mais críticos, o paciente não consegue se alimentar sozinho e pode perder a habilidade de sentar e falar. “O Alzheimer não respeita isso. Nós que criamos essa classificação para facilitar de
alguma maneira nossa compreensão e as nossas condutas de como intervir”, de acordo com o neurologista formado pela Santa Casa de São Paulo Dr. Rafael Paternò Castello, de 30 anos. E diz: classificar a doença em três grandes estágios é uma maneira grosseira de rotular seus avanços, uma vez que acontecem de maneira progressiva. Com unhas e roupas rosas e produzida com acessórios pretos, Dona Miralda nos contou sobre seu casamento, e, em dois momentos distintos da entrevista, lamentou a perda de seu amado, Sr. Egídio. “O casamento foi muito bom, faz alguns anos que perdi o meu marido”, disse a senhora antes de ser lembrada pela neta de que vivera um casamento próspero por 49 anos, antes de se tornar viúva, em 2009. Ao se deparar, em meio a dois álbuns de fotos antigas de sua família, com uma imagem em que aparecia em cima de um cavalo, nos contou que sente falta de cavalgar pela roça. Além disso, a maior saudade Dona Miralda é de sua casa em Peruíbe, sobre a qual nos relatou repetidas vezes no decorrer da conversa. Lá, morou primeiramente com seu marido e depois sozinha por alguns anos, antes da descoberta da doença fazer com que seus familiares a trouxessem para morar junto deles na capital, “às vezes, eu choro por ter a minha casa e não poder morar lá. Sabe, é muito triste”. Umas das principais características do Alzheimer é a chamada Anosognosia, pala-
Dona Miralda foi diagnosticada com Alzheimer em 2014 JOÃO VICTOR MARQUES
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A pessoa não tem a capacidade de perceber se algo está errado consigo mesma. É por isso que fica repetitiva. Não sabe o que acabou de fazer
vra grega que significa ausência de conhecimento da doença. “A pessoa não tem a capacidade de perceber se algo está errado consigo mesma. É por isso que fica repetitiva. Ele não sabe o que acabou de fazer”, explica o doutor. O principal fator de risco para a doença de Alzheimer é o avançar da idade. De acordo com a ABRAz, os idosos a partir de 65 anos são os mais atingidos e, apesar da possibilidade de ser desenvolvida em pessoas de ambos os sexos, o gênero feminino é o mais afetado. “A causa disso não é devidamente esclarecida. Muitas pesquisas e fontes dizem que é pelo fato de as mulheres viverem mais que os homens, numericamente. Mas também pode existir uma relação hormonal que justifique a existência de mais mulheres com a doença”, conta. Por não possuir cura, o tratamento para DA envolve medicações cujo efeito principal é retardar sua evolução, fazendo com que ela caminhe de forma mais lenta. Quando na fase avançada, mesmo que os remédios não tragam mais benefícios para frear a degeneração dos neurônios, eles tendem a controlar sintomas comportamentais, como irritabilidade e agressividade. Atualmente, existem duas principais linhas de tratamento: medicações e cuidados paliativos, isto é, que interferem na manutenção da qualidade de vida do portador de Alzheimer. Segundo o Dr. Paternò, para o primeiro caso, o Sistema Único de Saúde (SUS) disponibiliza três medicamentos, permitindo que sejam beneficiados aqueles que se enquadram nos estágios leve e moderado da doença. No entanto, há poucos locais públicos que forneçam atividades como estímulo à memória, terapia e fonoaudiologia. Dona Miralda diz ser muito feliz morando com sua família, que a trata com dedicação. Mas cuidar de alguém diagnosticado com DA pode exigir muito tempo. Caso não haja possibilidade de cuidar do paciente
Dr. Rafael Paternò Castello, neurologista
por conta própria, uma das soluções encontradas, para aqueles que possuem recursos financeiros suficientes, é a estadia em uma instituição de longa permanência, onde o indivíduo irá dividir o espaço com outros e receberá o cuidado de médicos e enfermeiros em tempo integral. “É difícil, tem que ter paciência”, afirma Daiana Alves, enfermeira da casa de repouso Gênesis. Ela conta que vários pacientes já esqueceram o nome dela, ou acharam que ela fosse a mãe deles, também confessa que alguns idosos ficam agressivos com o avanço da doença, podendo até ameaçar fisicamente os enfermeiros. Lélia Rosely Barris, dona da instituição de longa permanência Hotel da Vovó, afirma que a presença de familiares durante o tratamento dos idosos é frequente e que os moradores recebem visitas quase todos os dias. A enfermeira Daiana também considera que a relação com as famílias cria confiança em relação à casa de repouso. “Eles criam uma segurança com a gente, ficam confiantes nos nossos cuidados”. Segundo Lélia, a mensalidade varia de acordo com o grau de dependência do idoso, partindo de um mínimo de R$ 2.500,00 podendo chegar até R$ 18.000. Para o Dr. Paternò, a decisão de institucionalizar um familiar ainda é um tabu muito grande no Brasil “Muitas pessoas ainda veem isso como uma forma de abandono, o que não é verdade. Na maioria das vezes, isso é feito na busca por oferecer cuidados melhores”. No entanto, alerta sobre as instituições de longa permanência: “Podem ser de boa ou má qualidade. Mas é importante que haja uma pesquisa pelo local mais adequado e uma constante supervisão da família”, explica o doutor.
“QUAL O SEU NOME MESMO?” Sorridente e receptivo. Foi assim que Vanderlei*, de 84 anos e portador de DA, contou sobre sua longa vida. Entramos pela porta da cozinha, e, após caminhar até a
sala, o senhor se sentou em um dos três sofás que contornavam uma mesinha de centro de vidro. A estante da sala era repleta de porta-retratos e uma televisão de tubo dos anos 90 ocupava a maior divisória. Logo após ter nos apresentado, Vanderlei* precisou perguntar nossos nomes mais de duas vezes durante os cinco minutos iniciais da entrevista. Com bom humor, contou a história de como começou a carreira de bancário, profissão exercida por longo período, a qual não se lembrava o número exato de anos. Embora tenha nos contado por três vezes o mesmo relato, se entusiasmou com cada uma delas como se fosse a primeira. Nascido em Tupã, interior do estado de São Paulo, Vanderlei* tinha 13 anos quando largou a escola por falta de condições financeiras e começou a trabalhar, inicialmente em uma loja de secos e molhados — nome dado a armazéns vende-tudo. Ao completar 16 anos, através da indicação de um amigo, foi trabalhar como contínuo — uma espécie de office boy da época — em um banco da sua cidade natal, e não saiu mais de lá, tornando-se bancário em seguida. Pelo que Vanderlei* se lembra, tem um filho e duas filhas, todos moradores de Itatiba (SP), e os visita uma ou duas vezes por mês. O entrevistado lembrava, também, que era avô, mas não sabia dizer quantos eram os seus netos. Ele diz que não se arrepende de nada do que fez e afirma ter uma boa vida, guardando boas lembranças, como o tempo em que foi jogador de futebol profissional, simultaneamente ao trabalho no banco e, quando ganhou na loteria uma quantia, segundo ele, hoje equivalente a cem mil reais. Quando perguntamos se tinha algum medo: “Tive uma vida muito boa, não tenho do que reclamar. O único medo que tenho é o de ficar doente”.
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Os nomes indicados nesta reportagem foram trocados para preservar a identidade dos entrevistados.
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CULTURA
PEQUENA
BOLÍVIA O encontro tradicional da comunidade andina na praça da Kantuta REPORTAGEM PAULA CALÇADE (3º ano de Jornalismo) FOTOGRAFIA MARIANA GONZALEZ (3º ano de Jornalismo) DESIGN GUILHERME GUERRA (3º ano de Jornalismo)
O TAMANHO DO encontro não fica claro na saída da estação Armênia, da linha azul do metrô de São Paulo. O cheiro de churrasco convida os pedestres da avenida Cruzeiro do Sul às primeiras barracas de comida da Feira Boliviana, na praça Kantuta. O espanhol é a língua oficial de quem pede e vende os sucos de K’sas, um líquido alaranjado de pêssego e ervas doce, e o pollo a la parilla, que enche um pequeno recipiente de plástico com carne de porco e frango, batata e mandioca frita. O almoço sai por 12 reais. O som das frigideiras, flautas e apitos disputa a atenção de quem adentra a praça da zona norte da capital paulista. Está acontecendo o 1º Festival de Danças Folclóricas da Bolívia, em que cerca de dez grupos se apresentam na tarde de domingo. Dali em diante, a competição se repetirá todos os
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anos, com inscrição de qualquer grupo de dança organizado. As cores vivas e os acessórios brilhantes estampam as roupas dos dançarinos aglomerados ao redor da praça, como a da boliviana Sarah Lurbakos, que é a integrante mais velha e tradicional de seu grupo, e explica que apresenta a dança Tinku, de raiz pré-hispânica, aos espectadores: “Significa encontro e não há encontro de povos sem luta, tem que ter morte para que a terra fique fértil”. Ela sorri constrangida com a força do que disse, mas se distrai com o chamado do apresentador do festival, é a vez do seu grupo entrar na quadra da Kantuta, cercada de famílias de origem andina e visitantes, atentos aos sinos pendurados nos sapatos dos bailarinos. A dança inicia e Sara se abaixa assim que as flautas começam a tocar. Parece cho-
rar ao lado de outras duas dançarinas que se ajoelham em volta do homem que se estende no chão. Ele finge estar morto. Duas bandeiras Whipalas, símbolo da união andina, se cruzam e elas levantam, todos balançam os braços de um lado para outro no ritmo da música e chocam seus peitos nos demais. Depois de poucos minutos, restam somente quatro dançarinos. Eles estão encerrando o embate e resistem à luta, parece que sobrevivem ao Tinku. A apresentação termina com o toque dos tambores e o agradecimento de todos dançarinos do grupo, que voltam para o centro da quadra. Dois degraus abaixo da praça, ao menos vinte barracas de artesanato e roupas se distribuem lado a lado pela rua lateral à Kantuta. Rosario Torrico está ajeitando os tecidos que estão pendurados no lugar
CHAPÉU
MARIANA GONZALEZ
MARIANA GONZALEZ
Cerca de dez grupos participam anualmente do Festival de Danças Folclóricas da Bolívia na praça Kantuta
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apresentou em La Paz e estão com roupas trabalhadas. “Você tem que assistir até o final!”. Eles são muito sincronizados e apenas um usa apito e está com a roupa de cor diferente do restante do grupo. É o Romário Rodrigues, jovem brasileiro e filho de bolivianos. “Eu adoro essa feira, nós trabalhamos a semana toda e domingo podemos nos divertir como na Bolívia. É sobre a feira que você queria saber, né” Romário diz eufórico com sua apresentação. Explica que o Caporal nasceu na capital boliviana recentemente, há mais ou menos 60 anos, mas que é inspirado em uma história muito antiga do país. O Caporal significa mestiço ou mulato e era o “capataz” dos negros escravizados que foram forçados a trabalhar na Bolívia, durante a época da Colônia. A vestimenta original dos dançarinos tinha um sombrero de aba
muito larga e um chicote, que fazia alusão direta ao personagem histórico e o ritmo da dança era mais agressivo, com passos firmes e pouco delicados. Romário afirma que muita coisa mudou e que hoje as roupas usadas são mais alegres e coloridas,além de trazem um apito em vez do chicote. A música também mudou e é cheia de fusões com ritmos de diversos países andinos, como Bolívia, Peru e Colômbia. A dança Caporal é repleta de acrobacias, agachamentos e as mulheres fazem giros rápidos com saltos. É impressionante toda a sincronia dos mais de vinte dançarinos e o encaixe dos movimentos de cada um. Um casal acompanha a dança junto com sua filha, ainda um bebê de colo. Vania é boliviana, assim como seu marido, mas sua filha nasceu no Brasil. Eles vão à Feira da Kantuta faz dois anos e dizem
O grupo artístico Lisos S.P Brasil mostra a convergência andina pelas vestimentas MARIANA GONZALEZ
que considera o seu “cantinho”. Ela olha e pergunta: “Você está procurando alguma coisa?”. Questiono por que todas as bolsas, lenços e casacos são tão coloridos e vibrantes. A mulher diz que os povos andinos se diferenciam pelas cores. Se uma região tem mais flores azuis, essa tonalidade predomina na vestimenta do seu povo. Se fizer muito sol em um lugar, o alaranjado se destaca nos tecidos produzidos pelos artesãos. “Trago tudo de La Paz”, diz satisfeita e aponta para uma moça que está vestida de amarelo forte. “Viu só? Ela é do Equador!”. Pergunto quanto custam os tecidos maiores. Rosario olha para eles e diz que esses saem por 80 reais. “Mas se você pagar em dinheiro, eu faço um desconto”, sorri. Rosario Torrico mora no Brasil há seis anos e desde que chegou aqui vai à feira boliviana vender seu artesanato. Ela explica que fica na sua barraca desde que as primeiras pessoas chegam, às 11 horas da manhã e vai embora só quando a praça está vazia, às 20 horas. Rosario entrega um cartão com seu nome e diz que posso fazer encomendas, se desejar. Olho para os lados e vejo que, depois da esquina da praça, ainda há muitas barracas espalhadas pelas laterais. São diversos tipos de enfeites e moda. Mais à frente, quatro mulheres sentadas em uma mesa na direção da barraca de Rosario estão tomando refrigerante e chamam minha atenção. Uma lona está encostada em uma das cadeiras com o logo “Equipe de Base Warmis – Convergência das Culturas”. Converso com a boliviana Jobana Moya, membro desse núcleo de mulheres imigrantes. Estão na Kantuta para divulgar a equipe, para comer e assistir ao festival de dança.“Hoje somos em trinta voluntários, entre brasileiras e imigrantes, mas é bastante rotativo, sempre entram novas participantes que queiram integrar um projeto que afirma a não discriminação e busca mais direitos para os imigrantes.” Essas mulheres querem estimular o diálogo entre culturas e lutar contra a violência que a comunidade de imigrantes sofre por meio da promoção dos direitos humanos. A pauta mais atual é o combate à violência obstétrica, que tem despertado muito o interesse de Jobana. “Nós fazemos algumas ações práticas, como a promoção do ‘Programa de Conscientização e Proteção ao Direito do Migrante da Faculdade de Direito da USP’, estávamos todas lá”. Elas se reúnem toda semana para discutir reivindicações e formas de divulgações da equipe, além de apoios efetivos a outros coletivos e associações. Pergunto se homens são aceitos no grupo, ela sorri e diz que se eles quiserem são bem-vindos, mas precisarão se dedicar como as mulheres. Passo pelos brinquedos para crianças e estou de novo na quadra. O apresentador chama o Caporal, o maior grupo que se apresenta no Festival de Danças Folclóricas deste ano. O boliviano Luís, parceiro da Sara do Tinku, enfatiza que são muito conhecidos, admirado. O grupo se
que a apresentação é a melhor coisa que já viram na feira. “A comida daqui é igual a da Bolívia também, mas o mais importante é minha filha conhecer o nosso país, por isso estamos aqui”. Ela olha para o marido e sorri, depois se atenta à apresentação do Caporal e o casal aponta para o grupo fazendo observações sobre os passos e as roupas dos dançarinos para a filha. Assim como o bebê de Vania, muitas crianças também estão na Kantuta. O público da praça é repleto de famílias e casais, além de grupo de jovens. Todos, na grande maioria, bolivianos ou descendentes de andinos. Lurdes é mais uma nascida na Bolívia, e acompanha seu irmão mais novo nos brinquedos grandes de ar, são poucos pula -pulas, escorregadores e gira-giras ao lado da quadra. Observando seu irmão que escorrega e corre, diz não sentir falta da Bolívia
e não gosta da comida da Kantuta, prefere morar no Brasil, mas traz seu irmão para que ele possa brincar com outras crianças. “Essa é a melhor parte da nossa feira de domingo” e é com outras crianças de descendência andina que seu irmão se diverte. O sol se põe e o movimento ainda é grande. Viro a esquina da quadra e vejo que muitos artesãos ainda estão vendendo seus trabalhos, mas duas barracas estão especialmente cheias. São dois cabelereiros que fazem cortes ali na rua lateral da praça. Uma fila de clientes, mais ou menos dez pessoas esperam ao lado de fora da tenda e estão atentos aos resultados. Os modelos estão no cartaz preso no espelho dentro das pequenas barracas, são todos exemplos masculinos, com topetes de cabelos pretos, curtos e lisos. Dois meninos que estão aguardando dizem ter vergonha de conversar, mas que
gostam muito dos cortes. Percebo um jornal em cima da mesa em que os cabelereiros depositam escovas, gel e tesouras, é a última edição do Latinos. A notícia da suposta amante do presidente Evo Morales estampa a capa, mas os últimos acontecimentos políticos do Brasil tem grande espaço logo em seguida, o destaque é o afastamento de Dilma Rousseff da presidência, tudo explicado em espanhol. Muitos anúncios completam as poucas folhas do periódico, todos de lojas de bolivianos em São Paulo. São joalheiros, eletricistas, pedreiros e restaurantes de comida boliviana. O leitor veio da Bolívia, mas mora e trabalha no Brasil e pertence a uma verdadeira comunidade. A estrangeira durante todo aquele domingo fui eu. Os visitantes caminham para o metrô. A Feira da Kantuta está vazia, esperando a próxima tarde de domingo.
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CAPA
“NÃO TEM ARREGO” A ocupação de estudantes no Centro Paula Souza em busca de melhorias na merenda escolar e contra a reorganização do ensino REPORTAGEM GABRIEL GOMES e PEDRO CARAMURU (1º ano de Jornalismo) e JENNIFER MENDONÇA (3º ano de Jornalismo) FOTOGRAFIA PEDRO CARAMURU (1º ano de Jornalismo) COLABORADOR LUCAS MARTINS DESIGN GUILHERME GUERRA (3º ano de Jornalismo)
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luvas nas mãos. Essa era a primeira manifestação da qual participava. Muitos outros adotavam medidas de proteção similares, devido ao histórico violento de embates entre os secundaristas e a polícia. Em 2016, a Polícia Militar (PM) do Estado de São Paulo foi denunciada por pais de estudantes na Comissão Interamericana de Direitos Humanos pelos abusos e repressões. Na caminhada, os estudantes pararam em frente à Secretaria de Educação, na praça da República, antes de finalmente chegarem ao seu destino: o Centro Paula Souza (CPS). A instituição é responsável por administrar todas as Etecs do estado. Diziam que outrora foram ignorados pela administração do Centro, na ocasião dos protestos de 2015. À frente dos portões fechados com cadeados, eles demandavam a presença da superintendente do Paula
Souza, Laura Laganá. Assessores informavam que Laura não se estava no prédio, mas que receberiam uma carta com as revindicações do ato. Os estudantes não acreditaram que ela estivesse ausente. “Ela nunca está”, retrucavam. Em vez de acatarem as explicações do Centro Paula Souza, começaram a gritar: “Se a Laura não descer, a gente vai entrar’’. Rapidamente, outra proposta chegou. Seria permitido que dez pessoas se reunissem com a superintentente, em sua sala, a portas fechadas. Segundo os estudantes, dez representantes era um número muito inferior ao das escolas mobilizadas. Divididos, alguns achavam melhor aceitar, outros argumentavam que, pelo caráter horizontal do movimento, todos os alunos deveriam participar da tomada de decisões. Após discussões, a presença de Laura era exigida novamente.
PEDRO CARAMURU
“A ESCOLA ELE fechou, a merenda ele roubou, o Geraldo é só caô’’. Cerca de 800 estudantes de diversas escolas técnicas estaduais (Etecs) cantavam contra as medidas tomadas pela atual gestão do Governo Estadual na educação, enquanto caminhavam na avenida Paulista. Cartazes, faixas e mochilas paravam o trânsito. Lia-se “Cadê a merenda?”. Os secundaristas protestavam contra a reorganização escolar, os cortes na verba repassada às escolas públicas e o esquema apelidado de “máfia das merendas”. Exigiam, também, que uma alimentação adequada fosse oferecida aos alunos. À frente, andava um cordão de isolamento que, ao mesmo tempo, protegia a marcha e mantinha a unidade do ato. Dos manifestantes que estavam adiante, a maioria cobria a face. Um deles, Lucas*, envolvia o rosto em uma bandana vermelha e usava
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Os nomes indicados nesta reportagem foram trocados para preservar a identidade dos entrevistados.
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NOTA DO CENTRO PAULA SOUZA
A assessoria do Centro Paula Souza reconhece o direito às manifestações, porém lamenta os danos causados a seu patrimônio, estimados em 80 mil reais em prejuízos. O comunicado relata que o repasse de insumos a 35 Etecs, emissão de diplomas e o processo de capacitação de professores foram prejudicados pela paralisação do prédio. Informam que o Estado comprometeu-se a disponibilizar almoço para todos os alunos de Etecs que estudam em período integral e ainda não recebem a refeição. A medida vai beneficiar 20 mil estudantes que ainda não têm alimentação.
OCUPANDO Por volta das duas da tarde, enquanto alguns sentavam no meio-fio esperando uma resposta, um trio de estudantes tomou a iniciativa e escalou a grade. Dezenas seguiram o mesmo exemplo. “Subiu um e pulou, aí uma menina pulou também. Eu fui um dos que segurou os primeiros que entraram. A gente não estava esperando. ‘Solta! Solta!’, gritavam. Fiquei com receio. Estava cuidando do patrimônio, não ia colocar minha vida em risco. Os meus colegas abriram o portão para a polícia entrar e jogar gás lacrimogêneo, mas eles resistiram. Se mantivesse fechado, eles [os estudantes] iam derrubar”, disse Renato*, segurança do Centro Paula Souza. Apesar da intervenção da PM, não era mais necessário pular a grade, todos entraram. Dentro do prédio, alguns policiais tentavam conter a entrada dos manifestantes. Os estudantes reuniam-se, tossindo devido aos efeitos do gás, no saguão de entrada. O acesso às outras áreas do Centro era bloqueado pelos seguranças, forçando-os a realizar sua primeira assembleia na recepção do Paula Souza. “Sentimos a necessidade de dialogar diretamente com ela [Laura] e não por meio de representantes, manifestos, cartas ou afins. Como essa solicitação, mais uma vez, não foi atendida, decidimos ocupar o prédio do CPS”, registraram em nota após a reunião. A polícia posicionou um bloqueio no portão do prédio, impedindo a entrada de qualquer pessoa. A saída era liberada, contudo, quem se retirasse não poderia voltar.
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Os representantes da administração do Paula Souza se mostravam nervosos e agitados, caminhavam de um lado para o outro buscando a melhor maneira de tratar a situação. “Estava apreensivo, com medo de um embate com a polícia. Nunca imaginei ter que lidar com isso’’, revelou o porta-voz André Bueno, responsável pela negociação entre o Centro e os manifestantes. Os secundaristas se espalhavam pelo saguão, misturando-se com os poucos jornalistas e funcionários ali presentes, todos aguardando a resolução da assembleia marcada para às 18h, que definiria os próximos passos do movimento. No final da tarde, foi decidido que manteriam a ocupação até que fossem instalados bandejões estudantis em todas as Etecs. Enquanto não fossem construídos, deveriam ser fornecidos vales-alimentação para todos os estudantes do período integral. Alimentos, cobertores e doações chegavam junto com novos ocupantes. A recepção do lugar se transformava em cozinha, despensa e refeitório. Os telefones e agendas foram retirados dando lugar a pães de forma, bandejas de frios, pacotes de bolacha e algumas frutas. Sucos em pó eram diluídos em galões de água improvisados. O único requinte eram caixas de chocolate Bis. No portão, o número de policiais era cada vez menor, e alguns secundaristas que acompanhavam a ocupação do lado de fora, conseguiam, por vezes, pular o muro. Na última assembleia do dia, às 21h, os ocupantes se dividiram em comissões:
alimentação, comunicação, segurança, atividades e limpeza. Participar dessa organização, embora voluntária, conferia ao aluno o título de ocupante, garantindo o direito exclusivo de voto nas assembleias. Para se tornar parte do movimento era necessário cuidar do ambiente e do bem-estar coletivo. À noite, era possível ver jovens varrendo o chão e limpando móveis com o pouco material improvisado disponível. Já os integrantes da comissão de alimentação organizavam as doações de pais e professores solidários ao levante. Dividiam por horários o consumo, preparavam lanches e cuidavam das necessidades individuais. Conforme escurecia, o frio se tornava um inimigo. A escada que leva ao segundo andar, e, consequentemente, ao resto do prédio, estava bloqueada por um par de seguranças terceirizados do Centro Paula Souza. Desatentos, não perceberam o grupo com cerca de quinze estudantes correndo em sua direção com o objetivo de vencer o bloqueio. Enfim, as suspeitas se confirmaram: durante a tarde, os controles do ar-condicionado foram postos em potência máxima e trancados. Os alunos supunham que era uma tentativa de espantar o movimento de ocupação. Preparados somente para encarar uma caminhada à luz do dia, dividiam os poucos cobertores, que foram doados ou trazidos pelos pais. Muitos tremiam e batiam os queixos. Alguns traziam as mãos junto à boca como tentativa de reanimar os dedos. As paredes de vidro e o mármore
PEDRO CARAMURU
Em 2015, os estudantes já haviam se mobilizado contra o anúncio do governo estadual de que 94 escolas seriam fechadas
do chão não ajudavam a manter a temperatura do lado de dentro. Dormir no chão era quase impossível. Depois de uma breve busca, alguns jovens encontraram um auditório de chão acarpetado, onde era possível se aquecer. Dormiram ali poucas horas, até que uma das seguranças que ainda rondava o edifício os acordou com ameaças de violência física. Apontando a lanterna para o rosto dos jovens recém-despertos e assustados, ela repetia frases como: “Eu vou chamar a polícia” ou “Eles vão jogar bombas aqui”. Na manhã daquele dia, sexta-feira 29 de abril, um técnico, responsável pela manutenção dos aparelhos de ar-condicionado, foi autorizado a entrar na ocupação. Segundo ele, se o sistema permanecesse funcionando da forma que estava, correria o risco de queimar e os estudantes seriam responsabilizados pelo dano ao aparelho. A tentativa de desligar o ar foi em vão, pois o único acesso possível era pelos elevadores que haviam sido desativados pela própria administração do Centro Paula Souza. Durante a semana, explorando rotas alternativas do prédio, os próprios ocupantes descobriram uma maneira de desligar o sistema.
ação, era necessário o comparecimento de um oficial de justiça que os notificasse por um mandado e, junto da presença do Conselho Tutelar e advogados, conciliasse a desocupação, o que não ocorreu. Às 9h30, a Tropa de Choque cercava o prédio. O então secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo, Alexandre de Moraes, coordenava a ação policial junto de
MÁFIA DAS MERENDAS
seus comandados do lado de fora. A imprensa e curiosos estavam limitados a acompanhar o que acontecia por detrás dos portões. Por volta das 10h, o Choque rompeu o cadeado do portão e entrou no prédio pela rua do Triunfo que dá acesso ao estacionamento subterrâneo. Por lá, subiram até a entrada principal, onde estavam outros manifestantes. Alguns secundaristas que dormiam nos
O escândalo é investigado desde janeiro de 2016 e envolve fraudes de contratos superfaturados para a compra de alimentos destinados à merenda da rede pública de ensino no estado de São Paulo, incluindo 37 prefeituras
O CHOQUE Na madrugada de 02 de maio, segunda-feira, foi protocolado, pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, o primeiro pedido de reintegração de posse do Centro Paula Souza. No documento constava que o prédio administrativo havia sido invadido por “pessoas incertas e não identificadas” e que, portanto, a ocupação não era legítima. A notícia gerou grande preocupação entre os estudantes, deixando-os apreensivos por toda a noite, aguardando a chegada policial. No entanto, antes de qualquer
Um ex-funcionário denunciou que a Cooperativa Orgânica Agrícola Familiar (Coaf), responsável pelo repasse das merendas, simulava e combinava preços superfaturados entre cooperativas ligadas a ela, e os valores podem chegar a mais de cinco vezes o valor cobrado em varejo Informações do jornal O Estado de São Paulo, de 15/06/2016
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auditórios foram acordados com sprays de pimenta pela polícia e direcionados para o saguão. Cerca de trinta soldados se alinharam na frente do acesso às outras áreas do prédio encarando os estudantes, que em ato de defesa se ajoelharam e levantaram as mãos acima da cabeça gritando “Sem violência’’. Outros jovens abriram o portão da rua dos Andradas, permitindo a entrada de jornalistas para o registro, como forma de defesa a uma possível agressão. O dia seguiu desta forma, ocupantes e policias dividindo o mesmo saguão, separados apenas pelos escudos do cordão tático. Os estudantes, protestando contra a presença da polícia, iniciaram um debate sobre as similaridades da truculência policial na ocupação com o periodo da ditadura. Sentavam-se em roda ao lado da força militar, com a intenção de incluir os homens fardados. Cada um tinha a vez de se expressar e as falas mais contundentes eram ovacionadas por palmas. “Eu quero contar para os meus filhos que a marmita que eles vão receber na escola veio de muita luta”, dizia Sofia*, durante o debate. No final da tarde, a ocupação secundarista recebeu a visita do Deputado Estadual Carlos Giannazi (PSOL-SP), da pré-candidata à prefeitura Luiza Erundina (PSOL -SP) e do Eduardo Suplicy (PT-SP), que prestavam apoio aos estudantes e tentavam negociar a retirada da polícia. “Vamos ouvir essa juventude, buscar uma solução negociada, acordada, sem ter que recorrer à justiça para uma reintegração de posse, pelo amor
de Deus, muito menos uma invasão da polícia. Isso é inaceitável!”, disse Erundina à imprensa presente. Pelos advogados e o Conselho Tutelar, chegavam aos estudantes a informação de que a polícia permanecia no prédio. Sem apresentação de um mandado, os policiais não poderiam ter invadido. “Não foi planejada uma reintegração de posse. A ação é para garantir a entrada dos funcionários no local”, explicava o coronel Cangerana para a imprensa do lado de fora. “Existia uma urgência que é o fechamento da folha de
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pagamento dos funcionários.’’ Essa atitude foi encarada como uma afronta pelos estudantes, pois com o prédio funcionando normalmente, era como se nunca o tivessem ocupado. “Trabalhamos tranquilamente”, contou um dos funcionários. A pressão pela retirada da polícia só aumentava. Os secundaristas reproduziram o cordão de isolamento utilizado nas marchas e perfilaram-se frente à frente com os policiais. Cantavam “Não tem arrego” e “Cadê o mandado?”. Por volta das 19 horas, o Juiz Luiz Manuel Pires, da central de mandados
Uma vez que os policiais militares são adultos e normalmente apresentam força física superior à dos jovens que ocupam o local, que a reintegração de posse ocorra sem qualquer espécie de arma
Luis Manuel Fonseca Pires, juiz
“Se a Laura não descer, a gente vai entrar”, gritavam os estudantes antes de pular as grades do Centro Paula Souza PEDRO CARAMURU
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do Tribunal de Justiça de São Paulo, determinou um prazo de 72 horas para o Governo do Estado esclarecer quem havia dado a ordem da invasão policial. A ata também cobrava a retirada imediata da força tática do prédio. A notícia serviu para inflar ainda mais os ânimos dos estudantes. Depois de 8 horas tensas, a polícia se retirou após o fim do expediente dos funcionários.
Na quarta-feira, dia 4 de maio, realizouse no Fórum Hely Lopes Meirelles, a audiência que decidiria como seria feita a reintegração de posse do Centro Paula Souza. Estudantes, defensores públicos e representantes dos interesses governamentais, reuniram-se com o juiz Dr. Luis Manuel Fonseca Pires. No parecer dessa audiência de tentativa de conciliação constava: “Quem se enfrenta é o Governo do Estado contra jovens estudantes [...] aqueles que integram e estruturam as expectativas futuras de uma sociedade que se espera melhor do que a presente. A situação, portanto, é extremamente sensível”. E prossegue: “Por isso, reconheço como uma conquista entre os interlocutores [...] o consenso sobre a não -utilização de qualquer arma, seja ela letal ou não, a exemplo de cassetetes, balas de borracha e gás de pimenta entre outros”. A decisão judicial requeria ainda a presença física de um membro do Conselho Tutelar e do então Secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo, Alexandre de Moraes, caso contrário a reintegração de posse seria suspensa e aguardaria por novos termos. A Secretaria de Segurança Pública e a polícia esperaram até às 19h da quinta -feira, no entanto, para anunciar que, por meio de um acordo com o desembargador Rubens Rihl, a reintegração estava marcada para às 5h da manhã do dia seguinte. Seria permitido o uso de armas pela polícia e não existia mais a obrigatoriedade da presença do Conselho Tutelar nem do Secretário de Segurança Pública. Após o aviso, poucos estudantes permaneciam na ocupação. Os secundaristas restantes buscaram apoio e reforços pelas redes sociais, mas a mobilização foi limitada, uma vez que muitos deles se dividiam em ocupações nas próprias escolas. Por volta da 1h da manhã, fecharam o portão e começaram a se preparar para uma nova tentativa de reintegração. No total, havia cerca de quarenta estudantes e oito jornalistas dentro do prédio. A prioridade dos estudantes era a segurança: montaram barricadas, negociaram com o comandante e estabeleceram rotas de fuga. Eram 4h da manhã quando a tropa da Polícia Militar chegou, em três caveirões (ônibus blindados), algumas viaturas, um ônibus e, pelo menos, cem policiais do batalhão do choque, isolando o quarteirão. Os estudantes não podiam mais sair e ninguém mais entrava. A ordem de reintegração foi entregue às 6h da manhã trazida por um delegado que, depois de anunciar a entrada da
PEDRO CARAMURU
O ESTADO DESOCUPA
Pais, professores e apoiadores doaram alimentos aos secundaristas durante a semana de ocupação
tropa, prometeu aos estudantes que não haveria violência. Enquanto isso, no cordão de isolamento do Choque, formava-se uma aglomeração. Com a ordem judicial em mãos, os ocupantes do Paula Souza decidiram, em sua última assembleia, pela resistência pacífica. Sentaram-se em círculo, deram as mãos e começaram a cantar uma das músicas de luta contra a ditadura: “Vem, vamos embora, que esperar não é saber, quem sabe faz a hora, não espera acontecer”, de Geraldo
Vandré. Nesse momento, a força policial do lado de fora estava arrombando o portão para entrar. Ao final, o Choque arrancava os estudantes que se recusavam a sair, um a a um. Três ou quatro policiais os pegavam e os arrastavam para fora. Alguns precisaram ser arrastados por mais de quatro policiais. Socos não foram poupados. Os últimos ocupantes do Centro Paula Souza eram, enfim, jogados na calçada, do lado de fora do prédio.
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JOÃO PEDRO SIQUEIRA
RELIGIÃO
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POR DEBAIXO
DO VÉU
O uso da vestimenta por mulheres muçulmanas e judias no Brasil REPORTAGEM CAROLINE HUERTAS (1º ano de Jornalismo) JOÃO PEDRO SIQUEIRA e LETÍCIA SÉ (2º ano de Jornalismo) FOTOGRAFIA JOÃO PEDRO SIQUEIRA (2º ano de Jornalismo) VETORIZAÇÃO GUILHERME GUERRA (3º ano de Jornalismo) PINTURA DIGITAL GIULIA GAMBA (3º ano de Jornalismo) DESIGN GUILHERME GUERRA (3º ano de Jornalismo)
NOS GRANDES CENTROS urbanos, diversas culturas se misturam e convivem. Segundo a Organização Mundial de Migração, em 2010, estimava-se que 214 milhões de pessoas residiam fora do país de origem. No ano passado, esse índice chegou a 244 milhões. Em São Paulo, a realidade vivida por mulheres que escolhem cobrir os cabelos como forma de devoção religiosa causa choque cultural. É difícil datar com precisão o surgimento da prática feminina de cobrir os cabelos em nome da fé, já que o costume pode anteceder o judaísmo, a mais antiga religião monoteísta. A Torá, escritura sagrada dos judeus, data de aproximadamente 1.300 anos a.C., já registrava passagens em que mulheres escondiam parcialmente sua feição e corpo ao perceberem a aproximação de um homem que, possivelmente, se tornaria seu marido. No islã, o uso do véu que cobre o colo e os cabelos, o hijab, é adotado pelas jovens logo após a primeira menstruação. O Alcorão, texto sagrado islâmico, contém ao menos duas passagens dogmáticas quanto à modéstia feminina. Antigamente, era
usado para diferir muçulmanas de não muçulmanas, e os homens também portavam turbantes, chapéus e roupas específicas. Há uma grande polêmica quando religião e política se confundem. O governo do Irã, por exemplo, obriga as cidadãs muçulmanas a usarem o véu desde a Revolução Islâmica, ocorrida em 1979. Por mais que muitas delas acreditem que tal obrigação é uma forma de respeito às leis islâmicas, outras se sentem reféns do governo. Em muitos casos, imposições políticas exercem a opressão contra mulheres, utilizando-se dos dogmas do islã. Na página do Facebook, My Stealthy Freedom, iranianas posavam sem o lenço, fazendo uma severa crítica ao governo de seu país e à perda do livre arbítrio. No Líbano, onde cerca de 54% da população é muçulmana, não há obrigatoriedade legal pelo uso do véu. No país e fora dele, mulheres de ascendência libanesa frequentemente optam por não cobrir os cabelos. “Não me sinto preparada”, explica Samar Yakzan, de 46 anos, que é filha de um lar multicultural, tendo sua mãe de origem italiana e seu pai, libanesa. “É um dever que
nos priva de muitas coisas, algumas mulheres têm problemas para encontrar emprego”. Ela explica que seu pai a ensinou o islã, mas que não era um homem muito religioso, portanto, nunca a impôs que usasse o hijab. “Muitas libanesas, do interior do Líbano, de família muito religiosa, são obrigadas [pela família] a colocar o lenço após a menstrução. Quando elas imigram para o Brasil, tiram o lenço, porque não estavam felizes. De que adianta, então? Tem que ser por Deus, pela fé. Se for obrigatório, perde o sentido”, afirma. A liberdade, em oposição à obrigatoriedade religiosa, merece um debate aprofundado. Michel Schlesinger, rabino da Congregação Israelita Paulista, aponta a importância de decidir quais práticas religiosas adotar. “As pessoas deveriam ter a liberdade de escolher o que vão ou não praticar da sua religião. Uma mulher que cobre sua cabeça por opção realmente livre, depois de refletir a respeito — e não por uma imposição que venha de fora — tem o direito de exercitar sua religiosidade dessa maneira”. Ele acredita que todas, independente da religião, devem ter a possibilidade de conhecer suas
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tradições para, assim, aderirem às práticas ou até mesmo questioná-las. Schlesinger explica que, no judaísmo, duas correntes se diferem e geram estilos de vida distintos. Os ortodoxos realizam uma leitura literal dos textos religiosos, acreditando também na imutabilidade da lei sagrada com o passar do tempo. Já nas interpretações modernas, também conhecidas como liberais, acredita-se que as normas precisam se adaptar às mudanças da sociedade. Portanto, é mais comum que práticas ancestrais sejam frequentes entre judias ortodoxas, o que não impede que a outra vertente possa usar dessa tradição também. “Na religião judaica, existe uma associação do cabelo da mulher com o fato de atrair outro homem [além de seu marido] e que isso pode ser um caminho para o adultério. Por isso, ele deve ser coberto por um lenço ou uma peruca, para que elas não atraiam olhares alheios”, conta o rabino. “Por ser uma religião milenar, o machismo e a submissão são bastante presentes. Não gosto disso e prefiro frequentar uma sinagoga onde mulheres e homens sentam juntos, meninas têm o mesmo nível de preparo para o bat e bar mitzva que os meninos e há uma rabina e um rabino”, conta a judia, de 19 anos, Victória Zanotto. Ela é contra a ideia de cobrir o cabelo pelo simples motivo de escondê-lo dos homens, mas entende o lado de muitas que fazem uso do véu como forma de empoderamento. Zanotto também questiona o conflito entre cultura e religião, explica que há uma controvérsia entre os livros bíblicos, já que o hábito de esconder os cabelos não está nas leis de Moisés – o que gera dúvida se o uso do lenço ou da peruca é uma regra religiosa ou apenas um aspecto de modéstia na tradição judaica. Por causa da complexidade do assunto, alguns casos sutis de preconceito acabam por aparecer na vida da jovem. As críticas quanto ao uso do véu, com o passar do tempo, vêm também formulando um debate político na comunidade internacional, principalmente na Europa. Em 2010, o então presidente francês Nicolas Sarkozy criou uma lei que proibia o uso da burca e do niqab. As controvérsias começaram quando mulheres muçulmanas disseram ter sua liberdade de expressão e religião limitadas pela lei. O principal questionamento legal foi feito por uma jovem francesa de 24 anos e demorou quatro anos para ter um resultado. A alegação era a de que tal proibição traria efeitos negativos para as vidas de mais de duas mil mulheres muçulmanas. No final das contas, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos entendeu que a lei possuía uma justificativa objetiva e razoável para ser aplicada. Samira Osman, pro-
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fessora de História da Ásia da Universidade Federal de São Paulo, compara a atitude de Sarkozy similar à atual postura do candidato à presidência dos Estados Unidos, Donald Trump. “Sarkozy fez isso porque precisava de uma polêmica para se eleger em 2007, como Trump faz hoje nos EUA, contra os refugiados”, compara. Ela ainda aponta uma controvérsia no fato da França ser um Estado laico e mesmo assim legislar sobre as religiões de seus cidadãos: “No Estado laico, eu faço o que eu quiser do ponto de vista religioso”.
“
ções de preconceito. “As pessoas zombavam e me chamavam de mulher-bomba”, conta. Ela entende que a origem dessa atitude se encontra na falta de conhecimento sobre o assunto e culpa o sensacionalismo midiático por difundir esses estereótipos. “Quando se usa o termo muçulmanos, o público logo o relaciona com terroristas e brincam como se fosse engraçado. Não é engraçado! É muito preconceituoso!”. Quanto às acusações se a religião muçulmana é machista, Nahda acredita na inexistência de diferenças entre o mundo
É tão opressor proibir o uso do véu quanto como obrigá-lo. As duas posições são extremamente autoritárias Michel Schlesinger, rabino da Congregação Israelita Paulista
Na Turquia, o uso do véu era proibido em instituições públicas até 2013. Diferentemente de países onde a vestimenta é obrigatória, lá a proibição era o que incomodava as mulheres por limitar suas liberdades, que existia desde os anos 1980, e só foi derrubada mediante muitas discussões. O rabino Michel Schlesinger vê esse tipo de proibição de forma tão grave como a obrigação do uso. “É tão opressor proibir o véuquanto como obrigá-lo. As duas posições são extremamente autoritárias”. “Na Arábia Saudita, onde se encontra a sagrada cidade de Meca, um dos maiores símbolos do islamismo, uma espécie de ‘mesquita central’, é exigido um código de vestimenta específico. Toda mulher deve usar o véu, sendo muçulmana ou não, e os homens também não podem usar nada acima do joelho ou cotovelo. Esse código é feito de modo a garantir o respeito à sacralidade do local”, explica Nahda Taha, uma jovem muçulmana brasileira estudante de odontologia. Ela é um exemplo de quebra de estereótipos, pois, ao mesmo tempo em que pratica suas crenças, é também uma influente militante feminista em grupos de discussão. Ela vê o véu como uma ligação entre a mulher muçulmana e Deus, mas acredita que seu uso não deve ser imposto. A estudante conta que o usa quando vai à mesquita rezar, e mesmo assim, sem o uso frequente, já sofreu graves situa-
ocidental e o oriental. “Acredito que o machismo ocorra da mesma forma e intensidade. A religião tem tradições muito antigas, mas não há nada no Alcorão que proíba a mulher de fazer algo que o homem possa fazer, não há essa distinção. Os direitos são iguais, mas a sociedade pratica de outra forma. É então que confundem o machismo do mundo com a religião”. A opressão à figura feminina presente em países do oriente médio seria consequência de interpretações distorcidas dos textos sagrados, e não da religião em si, explica. Já Samar pensa que os brasileiros e libaneses são distintos. O assédio verbal, sofrido por grande parte das mulheres brasileiras, é raro no Líbano. “Lá, o máximo que eles fazem é te olhar”. Ela ilustra também que, no Oriente Médio, ambos os sexos têm papéis sociais bem definidos. “O homem é o provedor, é a obrigação dele. A mulher pode trabalhar se quiser, mas deve cuidar dos filhos.” Samar ressaltou que o machismo não é muçulmano, e sim, árabe. “O árabe, não importando a qual religião pertença, é um homem que não gosta de que a mulher fale mais alto. Ele a quer quietinha, tranquila.” Mas a árabe, sutilmente, encontra maneiras de ter voz. “Fazemos com que eles pensem que estão no comando, mas somos nós que tomamos as decisões”.
PRINCIPAIS VÉUS ISLÂMICOS
BURCA
Véu azul ou marrom que cobre completamente o corpo e a cabeça, possuindo uma rede nos olhos para permitir a visão. Símbolo que remete ao Afeganistão.
HIJAB
É o mais comum e utilizado em grande parte do mundo. Significa esconder o olhar. Não oculta o rosto, apenas cobre os cabelos e o colo da muçulmana.
NIQAB
Mais usado na Arábia Saudita, cobre integralmente o corpo e a cabeça, possuindo uma abertura na região dos olhos.
XADOR
Tradição no Irã, também não esconde o rosto, mas cobre a cabeça e o corpo.
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NARRATIVA
HOJE TEM
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VAGA?
As histórias dos abrigados que frequentam os Centros de Acolhida em São Paulo MAYARA ROZÁRIO
REPORTAGEM DENISE KANDA E MAYARA ROZÁRIO (2º ano de Jornalismo) FOTOGRAFIA MAYARA ROZÁRIO (2º ano de Jornalismo) DESIGN GUILHERME GUERRA (3º ano de Jornalismo)
ESTAÇÃO ARMÊNIA. Principal ponto de referência para se chegar à rua Comendador Nestor Pereira, marcada por muros largos e poucas casas residenciais. Mais adiante da escola estadual e do campo de futebol do clube Estrela do Pari, encontra-se um complexo composto por quatro centros de acolhida com capacidade para atender 210 pessoas. Neste lugar, convivem casais, homens e mulheres desacompanhados e crianças com seus responsáveis. Há um total de 68 serviços de acolhimento como esse espalhados pela cidade de São Paulo. Tais albergues têm, além do objetivo de acolher moradores em situação de rua durante a noite, o papel de atuar na reinserção social por meio de oficinas e trabalhos técnicos, visando à autonomia das pessoas atendidas, e também oferecer alimentação, higiene pessoal, palestras com profissionais de Unidades Básicas de Saúde (UBS) da região, dentre outras atividades que variam para cada unidade. Ao virar a esquina, avistamos uma movimentação já rotineira no endereço que tem suas calçadas tomadas por homens e mulheres esperando pela abertura de uma vaga nas unidades do tipo I, que funcionam 16 horas por dia, abrindo aos finais de tarde para o pernoite; ou a especial, serviço de funcionamento permanente destinado a mulheres vítimas de violência ou com crianças, pessoas em tratamento de saúde e em situação de despejo ou desabrigo emergencial. O tipo II funciona 24 horas por dia, fornecendo trabalho sócio-educativo e acolhimento noturno com vagas fixas. Um pouco acanhadas, passamos por todas aquelas pessoas até adentrarmos a recepção, onde fomos orientadas a aguardar pelo coordenador responsável que nos concederiam, ou não, a autorização para fazer essa reportagem no local.
Sem saber se poderíamos entrevistar alguém, preferimos manter o silêncio, que logo foi quebrado pela pergunta: “O que duas meninas tão arrumadinhas estão fazendo aqui?”. Sérgio* nos questionou novamente: “Vocês querem saber da minha história?”. O homem que espera seu nome ser chamado pela recepcionista para finalmente guardar as bagagens, tomar banho e jantar, segura um celular com certa dificuldade devido ao pulso enfaixado por causa de um acidente no trabalho. De modo atencioso, conta que está nas ruas por se recusar a construir uma vida em São Paulo, pois deseja voltar ao Piauí, onde estão seus filhos e irmãos. Sérgio* está em regime aberto por estelionato, e relata que passou oito anos preso, sendo visitado apenas pela mãe e ex-esposa. “Quando eu era adolescente, com aproximadamente 15 anos de idade, via todos os dias, na rua de casa, um cara bem vestido, sempre acompanhado de mulheres lindas. Perguntei a ele o que fazia para ganhar tanto dinheiro, e, após certa insistência, esse homem me apresentou o motivo pelo qual conheci a rotina de um detento. Ele me levou para sua casa, abriu o computador e me ensinou como falsificar documentos”. Sérgio* ainda conta que, certa vez, foi até a loja Casas Bahia e comprou móveis com documentos falsificados. Ele revendeu os produtos, arrecadando 50 mil reais. O celular que está em suas mãos lhe pertence há cinco anos, e conta: “Minha mãe levou [o aparelho] para mim dentro de um bolo quando estava na cadeia. Eu não o largo para nada, é o único contato que tenho com a minha filha de 18 anos e com os meus outros filhos de 5 e 7, que nunca cheguei a conhecer”. Os caçulas são frutos de visitas íntimas da ex-esposa na prisão e, por escolha de Sérgio*, nunca o visitaram,
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pois considera a prisão um lugar inapropriado para crianças. Aguardando com ele a resposta de alguém do albergue, o segurança ronda a sala de recepção olhando com uma aparente superioridade às pessoas que ali estão. Um dos acolhidos, provavelmente incomodado com tal comportamento, devolve o olhar de reprovação ao guarda, que não se contém em insultar o rapaz: “Seu cuzão, sai daqui!”. Após não conseguir visitar o centro naquele dia, voltamos dois dias depois. Mais uma vez, encontramo-nos na mesma recepção, aguardando a autorização do coordenador para realizarmos a reportagem. Os minutos de espera resultam em um longo exercício de observação. Ao reparar a aproximação de um dos acolhidos, o mesmo segurança, interrompendo a leitura de seu livro, afronta novamente um abrigado. “Esse vagabundo tem casa e vem aqui tirar a vaga de quem precisa. Vou dar um jeito nele já, já”, reclama. Com um semblante satisfeito, a página do livro marcada com o dedo é reaberta, evidenciando a capa que contém a figura de Jesus crucificado. Após não permitirem a nossa entrada, saímos do centro de acolhida e nos aproximamos de um casal que estava sentado sobre um papelão próximo à entrada. Regiane Albuquerque, de 30 anos, e seu marido Renato Suciano. A primeira pergunta foi suficiente para a jovem sorridente pegar o gravador para si e revelar que viu sua família se desestruturar, devido a um incêndio ocorrido em 2013, na favela da Vila São Rafael, em Guarulhos. O fogo causou a destruição de 147 barracos e a morte de 14 pessoas da família de Regiane. A moça, em busca de uma vida
melhor, partiu para o Espírito Santo, onde conheceu seu atual esposo. Envolvida e aparentemente empolgada por ter sua história ouvida, Regiane cita de forma natural e sem entrar em detalhes, sobre o aborto espontâneo que sofrera de um bebê de cinco meses. O assunto é rapidamente interrompido com a aproximação de Miriam*, que logo é inclusa na conversa com a pergunta de Regiane: “O que vocês acham do centro de acolhida?”. Risadas irônicas tomam conta do ambiente. Miriam*, de 35 anos, grávida de dois meses, relata ser comum passar a falta de camas. Entretanto, ela ressalta que não é de todo mal dormir no chão, pois os colchões estão infestados de percevejos. “Se não te emprestarem uma roupa, você vai vestir a mesma cinquenta vezes e, na hora do banho, o xampu e o sabonete é por nossa conta, é só: água, água e água. Não tem sabão”, completa Regiane. A vinte metros da mesma calçada, uma abordagem policial surpreende a todos. A briga causada pela disputa por um gole de pinga chama a atenção da Polícia Militar que ronda a região. Mesmo sem saber o que está acontecendo ali, o homem fardado revista o outro grupo de acolhidos pelo albergue a nossa frente: “Encosta! Encosta! O que está acontecendo?”, fala em um tom intimidador. A ida da Polícia Militar acalmou os ânimos e o foco da conversa voltou a ser o centro de acolhida, Regiane e Miriam* contam mais um dos descasos de quem deveria prestar assistência. Uma senhora com pneumonia passou mal durante a madrugada e, mesmo pedindo por socorro, nenhum funcionário apareceu. As amigas que carinhosamente se chamam de cunhadas, por se considerarem da família, afirmam que
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Miriam* tem tatuado no braço o nome de seus filhos Matheus, Kathellen e Danilson
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se não fosse por elas, a idosa não estaria mais aqui. Regiane conta que, pela primeira vez, fez respiração boca a boca em uma mulher. “Fomos as heroínas da noite”, brinca. Os centros de acolhida são responsabilidade da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) de São Paulo e possuem diferentes coordenadores e responsáveis pela administração financeira e estrutural de cada unidade. Portanto, mesmo que sejam órgãos da mesma prefeitura, os albergues têm suas particularidades, rompendo ou não com as expectativas de seus acolhidos perante o atendimento local. Segundo o Censo da População de Rua divulgado pela SMADS, estima-se que há um total de 15.905 pessoas vivendo em situação de rua, e que 53,8% delas são usuárias de albergues. Avistando, com dificuldade, duas pessoas desconhecidas falando com suas colegas, o senhor que carrega o apelido de Pirata, por não ter um dos olhos, vem até a pequena roda que estava se formando e senta-se ao nosso lado. Trabalhou como “faz-tudo” em um circo, onde consertava e montava o palco dos espetáculos. Certa vez, aconteceu um acidente que o incapacitou de trabalhar. Ele sequer fala da família ou amigos próximos, apenas do trabalho que tanto gostava e sobre o contato que não possui com os filhos, mesmo eles morando em São Paulo. Regiane pergunta a ele o que acha sobre a comida do lugar: “É sem sal, sem açúcar, sem gosto nenhum”, responde o senhor entre gargalhadas. Vítima de uma catarata de origem não é identificada, Pirata tem dificuldade de enxergar durante o dia e aguarda uma cirurgia agendada no Sistema Único de Saúde (SUS) há dois anos. Ainda revela que 77 pes-
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Na fila do centro de acolhida, Regiane conta que trabalha como manicure e cabeleireira e, para algumas abrigadas, faz o serviço gratuitamente
soas estão à sua frente, mas por não ter um lar, o sistema, segundo ele, o coloca como última opção a ser atendida. De acordo com a assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Saúde, o primeiro requisito para entrar na fila do SUS é um endereço fixo para facilitar o mapeamento do paciente quando houver disponibilidade de vaga. Incentivada pela cunhada Regiane, Miriam*, já com lágrimas nos olhos, resolve contar o motivo pelo qual vive nas ruas de São Paulo. A primeira frase que sai da sua boca causa impacto. “Amor proibido”. Mãe de cinco filhos carrega seus nomes tatuados pelo corpo como forma de demonstrar seu carinho. Seus relacionamentos passados lhe proporcionaram não só a maternidade, como também uma vida confortável, a qual pôde optar por não trabalhar. A todo o momento conta sobre a saudade que sente dos seus filhos e de sua mãe, mas não se arrepende de hoje se relacionar com uma pessoa que a esperou por dez anos, mesmo detido. Tanto a família dela quanto a de Henrique* são envolvidas com o tráfico e, como em uma atualização do clássico Romeu e Julieta, de William Shakespeare, possuem uma rivalidade que os im-
pedem de permanecer juntos ou contar com qualquer suporte familiar. Cansado da teimosia da esposa, Henrique* foi até o albergue solicitar uma autorização para que Miriam* fosse a uma unidade de saúde dar início ao pré-natal e ao tratamento contra as picadas de percevejo, “passei pinga no corpo da minha mulher, porque aqui dentro [apontando para o abrigo] não tem álcool, não tem nada”. O corpo, agora com manchas vermelhas, pode abrigar um dos maiores sonhos de Henrique, sorridente, o rapaz torce para que ela esteja grávida de gêmeos. Henrique* morou na Rua 25 de Março e já foi viciado em crack. Conta que sua família tem boas condições financeiras, mas que, por causa do envolvimento com o tráfico, vive escondida. “Faz tempo que não vejo meu pai, mas se eu pedir um apartamento de um milhão, ele me dá. Mas eu não quero saber de nada”. Vendo-o conversar com a esposa, Regiane comenta que ele vem implorando o dia inteiro para que Miriam* fosse ao médico, também por causa de sua arritmia cardíaca. Sem intenções de ser entrevistado, um rapaz de estatura baixa, vestindo apenas
uma bermuda vermelha, de aproximadamente 25 anos, nos aborda e pergunta o porquê de estarmos ali. Dada a reposta, ele se surpreende e alerta sobre os perigos que nos cercavam e se despediu pedindo para que Pirata nos levasse em segurança até a estação Armênia. Na cidade, há 15.905 pessoas vivendo em situação de rua segundo a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas da Prefeitura. Cerca de 7.335 pessoas rejeita os centros de acolhida. Quando os termômetros atingem 13ºC começa a Operação Baixas Temperaturas. Segundo o site da SMADS, durante esse período, as vagas nos centros de acolhida são ampliadas e o trabalho de tentar levar pessoas a abrigos é intensificado. De acordo com o Instituto Médico-Legal, desde março de 2016, 113 moradores de rua morreram em São Paulo por doenças que foram agravadas com o clima frio e a falta de abrigo. Já na entrada da estação de metrô, no horário, nos despedimos, ouvindo um “Deus abençoe vocês” daquele gentil senhor, que sumira no meio da multidão.
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Os nomes indicados nesta reportagem foram trocados para preservar a identidade dos entrevistados
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FOTORREPORTAGEM
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PEDRO CARAMURU
MARÇO DE 2016
REPORTAGEM PEDRO CARAMURU (1º ano de Jornalismo), TÉO FRANÇA (3º ano de Jornalismo) e VITOR ZOCARATO (3º ano de Publicidade e Propaganda) DIAGRAMAÇÃO GUILHERME GUERRA (3º ano de Jornalismo)
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PEDRO CARAMURU
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TÉO FRANÇA PEDRO CARAMURU
JOÃO VICTOR MARQUES
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RAÍSSA VELTEN
TÉO FRANÇA
VITOR ZOCARATO
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MUDANÇA
VEGANA
Crescem alternativas em São Paulo para quem luta pela vida animal e busca sustentabilidade REPORTAGEM GUILHERME VENAGLIA (3º ano de Jornalismo) e ANA CLARA MUNER (4º ano de Jornalismo) FOTOGRAFIA ANA CLARA MUNER (4º ano de Jornalismo) DESIGN GIULIA GAMBA (3º ano de Jornalismo)
ESTÁ NOS COMERCIAIS, programas de TV e restaurantes. O prato do brasileiro é arroz, feijão, farofa, ovo e carne. Mas para uma parcela cada vez maior da população, os dois últimos itens já saíram do cardápio. Seja por ideologia ou pela busca por uma saúde melhor, as pessoas têm abandonado o hábito de comer todo dia proteínas de origem animal e buscado substituí-las por outros alimentos. A sabedoria popular, por vezes, contesta: não é possível viver sem carne, precisamos dela para suprir nossas necessidades básicas. Especialistas da área de saúde, no entanto, têm chegado a conclusões diferentes. Para Luiz Aburad, mestrando em Nutrição em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSPUSP), isso se deve à cultura carnívora da população brasileira, que construiu sua identidade em uma base rural e agropecuária. De acordo com a pesquisadora em Comunicação e Alimentação pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), Helena Jacob, não existe o mito de que nascemos para comer carne: “A espécie humana começou como coletora de raízes e frutas, no entanto, pela necessidade de proteína, nos tornamos caçadores e o nosso aparelho digestório foi se adaptando”, concluindo que
a grande questão é a industrializaçãodo alimento: “Ela aumenta absurdamente o consumo de carne e nos leva ao desperdício”.
SUSTENTABILIDADE E SAÚDE Dados publicados pela organização Water Footprint Network apontam que, para se produzir 1kg de carne bovina, são utilizados, indispensavelmente, mais de 15 mil litros de água, enquanto para alguns vegetais, como a batata, esse número é inferior a mil litros. Segundo a pesquisa feita pela Organização das Nações Unidas (ONU) para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), 70% de toda a água doce do mundo é gasta na agropecuária, sendo esta a maior causadora de poluição em rios, por liberarem fertilizantes químicos, resíduos animais e antibióticos que sobram na hora da produção. Os resultados são apresentados por ativistas do veganismo como forma de enfatizar a necessidade de conscientização a respeito da sustentabilidade e dos resultados que a nossa forma de alimentação causa no meio ambiente. Para o filósofo e professor da Universidade de Santiago de Compostela na Espanha Oscar Horta em sua tese chamada Ética e animais não humanos, é injustificado e desvantajoso a maneira como os seres hu-
manos tratam determinadas espécies. O conceito de especismo, utilizado pelo professor, diz respeito aos valores e direitos atribuídos em nossa sociedade em relação à vida de certos animais. Tal postura se baseia na crença humanista de que a racionalidade é algo superior e que, portanto, as espécies são desiguais entre si. O especismo guarda fortes semelhanças com o antropocentrismo, que coloca a relação humana como o centro do universo, no qual diferentes espécies ficariam em segundo plano para servir aos seres humanos. Nesse caso, os animais domésticos, portanto próximos ao ser humano, como o cachorro ou o gato, têm um valor maior do que outros utilizados como alimento, no caso do porco e da vaca. Mais que uma dieta, que exclui carne e derivados animais, como ovo, leite e queijo, o veganismo tem o caráter ideológico de combater a diferença de tratamento entre espécies, além de colocar a proteção da natureza, vida e liberdade animal como essencial. O poeta Jonas Workman, de 21 anos, se tornou vegano há dez meses ao assistir a uma palestra sobre o tema no Encontro de Culturas Alternativas (ENCA). Segundo ele, o veganismo o ajudou a entender aquilo que colocava no prato. Começou a olhar o rótulo
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ANA CLARA MUNER
A Natural Tech reúne vendedores, consumidores e produtos veganos no Ibirapuera, em São Paulo
de todos os produtos que comprava, a perguntar e a pesquisar sobre os ingredientes que iria ingerir e percebeu que tinha muita coisa que fazia mal para a saúde. “Eu medito todo dia e comecei a sentir que ficava disposto o dia inteiro, pois comecei a ingerir alimentos leves, que são digeridos mais rapidamente. O que não acontecia quando comia carne ou derivados, que me davam a sensação de ter comido muito e pesavam em minha barriga”. Saber o que estamos consumindo e seus efeitos é um dos primeiros passos para ter uma alimentação saudável. A falta de consciência sobre o assunto é um dos fatores que traz um distanciamento da origem do produto que compramos e de como
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são produzidos. Luiz Aburad lembra que o consumo de carne vermelha já é, comprovadamente, a principal causa de doenças cardiovasculares no Brasil. O veganismo, no entanto, não diz respeito apenas à alimentação. O designer Lucas Sales adotou o estilo de vida vegano há dois anos, conta que parar com a alimentação de proteínas animais o levou a pensar em outros produtos que consumia e, na primeira semana, descobriu que a pasta de dente deveria ser trocada, porque possuía um componente de origem aniaml ou fazia teste em seres vivos. “Mudei a marca do sabonete também, porque era feita com glicerina animal”, conta. Existem dois tipos desse composto presente nos sabões, o ve-
getal, carboidrato derivado de óleos vegetais, e o animal, constituído de resquícios da gordura, sebo bovino e suíno, vendido pela indústria da carne como sobras às empresas produtoras de cosméticos. Lucas Sales é integrante da Vegetarianismo Ético, Defesa dos Direitos Animais e Sociedade (Vedas), organização não governamental que faz intervenções artísticas nas ruas, como exibição de filmes na avenida Paulista sobre o tema, além de se dispor a conversar com interessados em entender o assunto. Jonas Workman também é ativista e divulga suas ideias através de poesias impactantes. “A floresta bate palma a cada ano quando um ser humano se torna vegano” é um de seus
“
O capitalismo nos distanciou dos alimentos, pois sua produção fica fora das grandes cidades. Estamos cada vez mais isolados
versos declamados nos saraus da cidade de São Paulo. Para ambos, a mudança na alimentação trouxe uma compreensão sobre outros tipos de militância. “Comecei a me envolver mais com protestos, como o parque Augusta, que está sendo ameaçado por construtoras que querem levantar prédios em parte de seu terreno. Se não fosse o veganismo, estaria só olhando para meu ego, fazendo as coisas que sutilmente me agradam”, explica o designer.
ALIMENTAÇÃO NO DIA A DIA Na avaliação de Luiz Aburad, um dos fatores que mais impede a adoção do vegetarianismo ou do veganismo por um
Helena Jacob, pesquisadora de comunicação e alimentação
número ainda maior de pessoas é a comodidade. “A cultura brasileira de comer carne faz com que todo lugar tenha muitas opções animais, um número menor para alguém que não come a proteína, mas se alimenta dos derivados, e baixíssimas opções para quem não consome nada de origem animal”, conta o nutricionista. No entanto, sob o ponto de vista nutricional, ele acredita que isso seja facilmente contornável. A carne contém todas as proteínas necessárias, mas estas se encontram em quase todos os vegetais. Aburad também aponta que o único produto de origem vegetal que contempla sozinho o lugar da carne é a soja, frequentemente utilizada para a preparação de versões vegetarianas de pratos que utilizam proteína animal. A única vitamina que pode vir a faltar para uma pessoa vegana, de acordo com Lucas Sales, é cobalamina (B12), contudo, o problema pode ser resolvido com o consumo de suplementos. A vitamina B12 não é produzida pelo corpo humano e ingerida exclusivamente pela alimentação de proteína animal. Os sintomas da falta dela são fraqueza, cansaço, anemia e formigamento nos pés. No entanto, não são todos os vegetarianos ou veganos que terão uma deficiência da substância, uma vez que nascemos com um estoque corporal individual. Mas, caso isso aconteça, devemos repor, através de medicamentos que podem ter origem animal ou sintético. A grande dificuldade enfrentada, segundo o nutricionista Luiz Aburad, pelas pessoas que se recusam, por ideal, a fazer esse complemento com a substância retirada de animais é o preço: “A indústria farmacêutica, na maior parte dos casos, cobra valores que até poderiam ser mais caros por serem mais difíceis de produzir, mas coloca preços ainda mais altos pela pouca variedade de opções”. O nutricionista ainda fala a respeito do consumo de ferro, mais fácil de ser absorvido por pessoas que comem carne vermelha, rica no consumo do tipo M dessa vitamina, enquanto os vegetais contêm o tipo não-M. Para driblar esse problema, ele recomenda refeições acompanhadas de um alimento rico em vitamina C, que estimula a captação da substância pelo corpo. “Um exemplo desse alimento é a goiaba.
Se comemos ela junto com esses vegetais, a absorção do ferro ‘não-M’ que antes era pouca, cerca de 60%, chega muito perto dos 100%”, recomenda. Seguir esse estilo de vida ainda está restrito a regiões e produtos que demandam uma elevada renda média mensal. “Onde eu moro, em Taboão da Serra, é mais difícil chegar informação. Se eu conheço três pessoas veganas na região, é muito”, afirma o designer Lucas Sales. Luiz Aburad observa que apesar do veganismo não ser, necessariamente, para pessoas de alto poder aquisitivo, ele, assim como outras causas, tem sido utilizado pela indústria como um produto a ser comercializado. “É comum que se cobre a mais, desnecessariamente, só por um produto ser vegano ou orgânico”. Para o designer, um grande impedimento para se tornar vegano é o mau hábito que ainda prevalece de não buscar um nutricionista para se informar a respeito de uma boa alimentação que seja também acessível. No entanto, o custo para uma consulta ainda é muito alto. “É, no mínimo, 200 reais, fora da realidade para o brasileiro, então vira um paradoxo”, conta Helena Jacob. Entretanto, o panorama atual está se modificando, novos movimentos, como o Permaperifa, espalha o mercado orgânico com preços acessíveis e fazem as informações sobre veganismo chegar a essas regiões mais afastadas. Facilitando o acesso a essas mercadorias, São Paulo possui um número maior de feiras de alimentos orgânicos, que preenchem a cidade, das periferias aos centros, durante os finais de semana. Segundo Marina Arenzon, garçonete de 21 anos, e vegetariana há um ano, foi procurando novos alimentos que começou a conhecer produtos diferentes que antes não tinha contato, como grãos e legumes. Para a pesquisadora em Comunicação e Alimentação, Helena Jacob, essa mudança de alimentação é uma forma de nos reconectarmos com algo que perdemos na era da industrialização. “O capitalismo nos distanciou dos alimentos, pois sua produção fica fora das grandes cidades, estamos cada vez mais isolados”. O veganismo é uma opção real por qualidade de vida e sustentabilidade do planeta. Os desafios são os de superar um forte padrão social, cultural e comercial de produção e consumo de carne.
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RELIGIÃO
CALENDÁRIO WICCA
Conheça a Roda do Ano com as celebrações mais importantes da Antiga Religião REPORTAGEM BÁRBARA RONCADA E MARINA BORGES (4º ano de Jornalismo) INFOGRÁFICO E DESIGN BEATRIZ FIALHO (1º ano de Jornalismo)
Caça às Bruxas, As Bruxas de Eastwick, Abracadabra, Convenção das Bruxas, A Bruxa de Blair, Jovens Bruxas. Muitos são os filmes que retratam, de forma cômica ou assustadora, os mistérios da feitiçaria. O que essas produções nem sempre abordam é que a bruxaria ainda existe nos dias de hoje, sendo uma de suas vertentes a religião Wicca, também conhecida como Antiga Religião. A crença tem raízes célticas e cultua a natureza. Diferentemente de muitas religiões, como o cristianismo, o judaísmo e o islamismo, é uma religião matriarcal. De acordo com as crenças, uma força grandiosa, uma entidade feminina, criou tudo o que existe na natureza. A Deusa da Wicca representa a Mãe da Natureza, a Terra, a Lua e todos os elementos. Apesar de ser a maior divindade da religião Wicca, a Deusa não segue seu caminho sozinha. Além de criar todo o planeta, segundo a tradição, ela deu vida também ao seu companheiro e parceiro sexual, o Deus Cornífero, o Sol. Alguns bruxos acreditam que o mundo em que vivemos está concentrado dentro do útero da Deusa e que, quando morrermos, voltaremos ao seu ventre para renascer. Talyta Villaescusa teve contato com a religião aos 13 anos após ler o livro As Brumas de Avalon. “Como eu nunca me identifiquei com a religião católica e nem a espírita — seguida pelos meus pais —, me senti conectada com o pensamento de que a natureza é uma forma ‘física’ da Deusa, me apaixonei instantaneamente”, contou. A Talyta é uma bruxa solitária, ou seja, ela pratica os rituais e a magia Wicca em seu altar sozinha em casa. Outros seguidores da religião se reúnem em covens, grupos praticantes de bruxaria de até 13 pessoas, guiados por uma Alta Sacerdotisa ou um Alto Sacerdote — bruxos mais experientes.
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Cada seguidor da tradição Wicca passa por um processo de estudo das tradições, que dura um ano no calendário celta (um ano e um dia no calendário cristão), até ser iniciado na tradição. A divindade feminina da Wicca é também chamada de Deusa Tríplice, porque assume três faces relacionadas ao ciclo lunar: a Virgem ou Donzela (Lua Nova/Lua Crescente), a Mãe (Lua Cheia) e a Anciã (Lua Minguante), invocadas em diferentes situações e cultuadas em diferentes rituais ao longo do ano.
OSTARA - 21 DE SETEMBRO Celebrado durante o Equinócio da Primavera, o ritual Ostara fala em fertilidade. É uma fase de união entre as forças da Grande Mãe, que se apresenta como Donzela da Primavera, e do Deus como Guerreiro, é um momento de equilíbrio entre as energias dos homens e das mulheres. Uma das tradições do Ostara é pintar ovos com cores e símbolos que representem nossos desejos e enterrá-los ou deixá-los nos pés de árvores muito floridas. Segundo a lenda nórdica de Eostre (Ostara), a Deusa pediu a um coelho que botasse ovos para ela. Deslumbrada com a beleza dos ovos, Eostre desejou que toda a humanidade pudesse conhecer aquelas pequenas maravilhas, e o coelho passou a viajar pelo mundo na época do Equinócio de Primavera para presentear as pessoas com seus ovos. Mais uma vez, um ritual pagão segue tradições que nos remetem aos eventos do catolicismo.
IMBOLC - 2 DE AGOSTO A palavra imbolc significa “no leite” e está ligada à amamentação, período em que as mães cuidam dos bebês. Embora o ritual seja celebrado no inverno, esse é o momento das luzes, pois por baixo da neve a natureza renasce, e o Sol já está por vir — lembrando que os rituais célticos nasceram em países frios do Hemisfério Norte. Em todos os sabbats, as bruxas usam madeira para acender fogueiras. Nesse tempo frio, é comum substitui-las por velas que mostrarão ao Deus Menino o caminho a seguir. O ritual nasceu na Irlanda e é o dia consagrado à deusa céltica do fogo, Brigit.
CHAPÉU BELTANE - 31 DE OUTUBRO Corresponde ao Samhain no hemisfério sul. Quando em um coven, grupo de bruxos que pratica os rituais em conjunto, os wiccanos dançam ao redor de um tronco decorado com flores segurando fitas coloridas, de forma a cobri- lo todo com adereços. É o chamado Mastro de Beltane, que representa o falo de Cornífero, e o envolvimento das fitas representa a união sexual dele com a Deusa.
LITHA - 20 DE DEZEMBRO Litha representa um momento importante da Roda do Ano Celta: é o solstício de verão, o dia mais longo do ano. Para a tradição Wicca, é tempo de celebrar a força do Sol e pedir energia e força para os próximos dias, que se tornarão cada vez mais curtos até o fim da época de luz. No ciclo de vida dos Deuses, Cornífero está no auge de sua força e fertiliza a Grande Mãe — o Deus se sacrificará nos próximos meses, será gerado pela Deusa novamente e nascerá no Yule do próximo ano. Os bruxos acreditam que todos os seres elementais da Terra (fadas, elfos, duendes) estão presentes nesse momento para celebrar o amor e a verdade trazidos pelo Sol.
LAMMAS - 02 DE FEVEREIRO Em Lammas, os bruxos agradecem aos Deuses por tudo o que viveram de bom e ruim nos meses que se passaram. Para os wiccanos, todos os acontecimentos se dão por um propósito evolutivo, uma vontade dos Deuses que pode não ser clara aos olhos humanos. Nesse sentido, o Lammas é um momento de reflexão sobre os caminhos e escolhas tomados e os obstáculos enfrentados. O Deus aqui aparece como Lugh, maior guerreiro da cultura celta, que concede sua energia vital à sua amada, que precisa de forças para dar à luz o filho.
MABON - 20 DE MARÇO Enquanto o Sol perde força e abre caminho para o inverno, a vitalidade do Deus se esvai em Mabon. Esse ritual tem a simbologia do Dia de Ação de Graças, é uma época de muita festa, celebração e agradecimento por todo o ano. Cornífero se sacrifica em amor à Deusa, vai ao Mundo das Sombras e tudo recomeça em Samhain.
SAMHAIN - 1º DE MAIO
YULE - 21 DE JUNHO
Celebra o fim e o início de um ano novo para os celtas. De forma geral, os sabbats wiccas são celebrações alegres, contudo Beltane (em 31 de outubro) é, sem dúvidas, o mais festivo de todos. Nesse momento, comemora-se a chegada da luz e do verão. Durante o ritual, um casal, que representa os Senhores da Primavera (os Deuses), acende duas fogueiras pelas quais os wiccanos passam e deixam as energias negativas para trás.
O Yule é celebrado durante a noite mais longa do ano, o solstício de inverno. Acredita-se que é o último dia da escuridão, da morte e do frio. Neste momento da Roda, a Deusa dá à luz seu filho, o Deus Sol. Segundo a tradição Wicca, a Deusa engravida de Cornífero, que morre e renasce no ventre de sua amada. Esse momento marca a esperança de um novo tempo, repleto de Sol e calor, representado pela face do Deus como Criança da Promessa.
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ARQUIVO
PERFIL
PELO ESPORTE A trajetória de Paola Klokler rumo às Paralimpíadas de 2016 REPORTAGEM OLGA BAGATINI (4º ano de Jornalismo) FOTOGRAFIA ANA JÚLIA CANO (3º ano de Jornalismo) DESIGN GUILHERME GUERRA (3º ano de Jornalismo)
TUDO COMEÇOU COM o desejo de interagir com outras crianças. Paola Kloker nascida com uma deficiência que a obrigou a amputar a perna quando tinha apenas um ano de idade, buscou no esporte um modo de encontrar o que não vivenciava no colégio. Aos 7, o primeiro esporte que tentou foi a natação, mas achou individualista demais. Então se arriscou no basquete paralímpico, por incentivo da mãe, ao recorrer a Associação Desportiva para Deficientes (ADD) que tinha uma equipe infantil. No entanto, habituada a usar prótese, teve que desconstruir o próprio preconceito em relação à cadeira de rodas. “Por que eu vou sentar nisso? Eu ando, alcanço as coisas no alto. Posso não andar igual outros colegas, mas eu ando, tenho liberdade”, pensava. A mãe não desistiu de incentivá-la. E, assim que se permitiu tentar, Paola apaixonou-se. Viu que a cadeira, com suas rodas curvadas, era uma maneira de alcançar a liberdade, o movimento e a velocidade que almejava, impossibilitados pela prótese. “Me apaixonei pela cadeira, pelo basquete. No começo era só uma brincadeira, mas foi virando algo sério. Acordava e dormia
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pensando em jogar”, conta. Tanto que se Paola fosse desobediente, o castigo não era ficar sem o videogame, mas a proibição de comparecer ao treino. “Isso realmente acabava comigo, então eu fazia tudo o que ela queria. Sempre fui muito competitiva”. Paola conheceu outras crianças da mesma faixa etária tão competitivas quanto ela, e juntos criaram uma equipe juvenil. O bom desempenho despertou a atenção da comissão técnica e dos demais atletas, que a aconselharam a treinar cada vez mais. Embora a ADD já tivesse um time masculino profissional, o Magic Hands, não havia equipes femininas em São Paulo. As regras do basquete paralímpico permitem, e até incentivam, que mulheres joguem junto com os homens. A Federação Paulista de Basquete sobre Rodas somente convidava as atletas paulistas para a disputa do Campeonato Brasileiro feminino. Logo em seguida, foi a vez de Paola. “Fui achando que seria mais uma, pois nunca tinha jogado cinco contra cinco, porque não tinham adolescentes para disputar comigo na mesma faixa etária. Achava que seria a reserva da reserva. Acabou que não.
Joguei, fui titular durante todo o Brasileiro, me destaquei e lá fui vista por Wilson Caju, treinador da Seleção Brasileira na época”, lembra a atleta. Caju repetiu o discurso à mãe de Paola: “Invista nessa menina, ela tem futuro. Deixe ela jogar, faça querer jogar”.
No mesmo período, Paola começou a defender outra equipe masculina da ADD, o Magic Wheels. No ano de 2015, passou para o Clube dos Paraplégicos de São Paulo (CPSP), onde está até hoje. A atleta divide o tempo com o time feminino da Associação Desportiva para Deficientes do Estado do
Ceará (ADDECe), onde joga o Brasileiro e alguns torneios regionais — ela apenas pode ser convocada para a Seleção se estiver em um time feminino. O foco, contudo, está nos treinos na capital paulista. Paola conta que é a única mulher da equipe. Saída encontrada pelas atletas que
querem muito jogar e não se satisfazem com um campeonato por ano. “Isso é muito bom para minha evolução, porque se eu não correr atrás o tempo todo, não vou conseguir entrar no lugar dos homens”. Além da competição, a atleta se esforça para ganhar o vigor físico necessário. “A melhor coisa é
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ANA JÚLIA CANO
Esposa de Paola, Suelen é a responsável pela preparação da paratleta para os Jogos Paralímpicos Rio 2016
saber que eu entrei, e um homem, não. Por mais que eles me apoiem e incentivem, é bom para o ego ver que consigo ter a mesma carga que eles”. A dedicação rendeu frutos. A primeira convocação para a Seleção veio em 2009, para a Copa das Américas. Desde então, foi convidada a disputar todos os torneios internacionais sob a bandeira verde e amarela. Foi para Mundiais, a Paralimpíadas de Londres 2012, Sul-Americanos e Jogos Parapan-americanos. Agora, vive a expectativa
de disputar os Jogos Paralímpicos do Rio de Janeiro, em setembro. Parafraseando o ditado, por trás de uma grande mulher, muitas vezes há outra grande mulher. Suelen surgiu na vida de Paola quando a atleta tinha apenas 18 anos. Ela estudava Educação Física e estava fazendo um documentário sobre acessibilidade. “Eu vi a Paola jogando e decidi que queria entrevistá-la. Depois a assisti fazendo uma apresentação de dança do ventre, achei incrível. Eu que tenho as duas pernas não
consigo ter metade do rebolado que ela tem. E, apesar disso, ela ainda tem um sistema bruto, é uma atleta de alto rendimento. Me vi nela”, contou Suelen. As duas viraram amigas, e a amizade evoluiu para algo mais. Paola foi morar com Suelen, que além de ser sua esposa é também a principal responsável pelo preparo individual da atleta. “Sempre trabalhei com futebol. Hoje não mexo mais com nenhum esporte, a não ser o basquete. Todo o dinheiro que ela recebe
O esporte paralímpico é subdividido em classes funcionais que vão de 1 a 4,5. Cada pessoa com deficiência tem uma classe. Quanto mais grave o grau de deficiência, menor sua classe funcional. Uma pessoa que não tem uma perna do joelho para baixo, por exemplo, é 4,5, porque tem todos os domínios do corpo. Já alguém incapaz de mexer da cintura para baixo, sem domínio de tronco, é classe 1. A somatória das classes de todos os atletas em uma equipe de basquete sobre rodas não pode ultrapassar 14. Times masculinos em que há uma mulher ou atletas menores de idade, esse número sobe para 15. “Se não fosse assim, o basquete seria um jogo para pessoas amputadas. Assim todos podem jogar, todos têm função e são necessários dentro de quadra”, explica Paola.
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Quero ser melhor do que sou, do que já fui, do que posso ser. A limitação só existe dentro da cabeça
Paola Klokler, paratleta
é reinvestido na modalidade. Eu trabalho para pagar as contas, e além disso, supervisiono seu treino na academia e cuido de toda a preparação individual dela, a parte física, e muscular”, disse Suelen. Além de praticar dança do ventre, Paola também faz trabalhos como modelo para complementar a renda. Hoje em dia, conta com patrocínio da Jumper Equipamentos, que fornece material esportivo, o que alivia as contas, pois uma cadeira de basquete custa, em média, oito mil reais, e ela quebra, em média, uma por ano. Mais do que o orçamento apertado, contudo, o que realmente incomoda o casal é o que chamam de “falta de cultura” da sociedade em relação às pessoas com deficiência. Comentários como “você é tão bonita para ser deficiente”, acompanhados de caras de pena, fizeram Paola tentar esconder sua diferença por muitos anos. Rejeitava a cadeira de rua e ainda usava prótese com enchimento e meia-calça para disfarçar. Extrovertida, Suelen ajudou a radicalizar o jeito sossegado da companheira. Recentemente o que incomodou Paola foi ser ignorada na São Paulo Fashion Week. “Fui com a minha cadeira e as pessoas simplesmente me ignoraram”, contou a atleta. Quando Paola chegou em casa, naquele dia, com auxílio de Suelen, arrancou o enchimento e estilizou a prótese, que ficou rosa-choque. Há quatro anos só a usa com o ferro à mostra. “Ela escondia que era diferente, falei que, se tivesse estilo e atitude, as pessoas respeitariam seu jeito. Queremos chamar a atenção para que todos a vejam como é”, explicou Suelen. Superar os obstáculos, tanto no esporte como na vida, virou o lema de Paola. Ela anda de caiaque, faz kart, nada em cachoeiras, e contradiz aqueles que acham que não é capaz. “Quero ser melhor do que sou, do que já fui, do que posso ser. A limitação só existe dentro da cabeça. Às vezes a família, de tanto proteger, acaba deixando a pessoa com medo. Mas sempre gostei de provar para os outros que sou capaz de fazer qualquer coisa”, conta a atleta. Todo o trabalho, esforço e dedicação de Paola e Suelen estão, neste momento, voltados para os Jogos do Rio 2016. A atleta, que carrega tatuagens com os logos do Parapan
As cadeiras de rodas de basquete custam, em média, oito mil reais
de Guadalajara 2011 e das Paralimpíadas de Londres 2012, não esconde a ansiedade para disputar o maior torneio do planeta dentro do próprio país. “Londres foi a realização de um sonho. Esse ano quero estar ainda melhor do que a gente esteve lá. Acredito que jogar em casa, sentindo nosso cheiro, comendo da nossa comida, com as pessoas que amo na plateia, será um sentimento inexplicável”. Ela foi realista ao falar em medalhas. Sabe que há seleções melhores, com estruturas muito superiores à do Brasil, como Estados Unidos, Holanda, Canadá e China, e afirmou que ficará com a sensação de dever cumprido se o time verde amarelo conquistar o quinto lugar. Só fica chateada ao lembrar como o basquete nas Olimpíadas recebe muito mais holofotes que nas Paralimpíadas. “Não tenho vergonha de falar. Acho mais bonito basquete em cadeira de rodas do que o convencional.
Gosto de todas as firulas, as cestas de três, mas não consigo enxergar o mesmo brilho. O esporte paralímpico preza pelo coletivo”. Ao ser questionada pela avó sobre o que faria se tivesse a chance de nascer de novo, sem deficiência, não teve dúvidas ao optar pela própria realidade. “Voltaria exatamente igual. Conheci o mundo pelo meu esporte, e ele veio através da minha deficiência. Nada disso muda o que eu conquistei. Gosto do jeito que sou”. Há pessoas que dizem preferir a morte à ficarem presas a uma cadeira de rodas, como bem lembrou Suelen. Paola Klokler é um exemplo de quem soube tirar muito das circustâncias. Sabia que viveria toda uma vida com a perna amputada. Obcecada pela superação, usou esse trunfo para fazer disso uma coisa boa. E do jeito que gosta provou para todos que era capaz de chegar ao mais alto nível do esporte.
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SAÚDE ARQUITETURA
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KOTIVALO
NEM MAIS UMA
DOSE
A Esquinas foi a uma reunião do Alcoólicos Anônimos e conta a superação de quem lida com esse vício REPORTAGEM ENRICO WEG SERA, GABRIEL SEIXAS GOMES, GABRIEL XAVIER, JOÃO VICTOR MARQUES, YASMIM TOLEDO (1º ano de Jornalismo) FOTOGRAFIA JOÃO VICTOR MARQUES (1º ano de Jornalismo) DESIGN GIULIA GAMBA (3º ano de Jornalismo)
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Os nomes indicados nesta reportagem foram trocados para preservar a identidade dos entrevistados. ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2016
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de outro alcoólatra a ajuda necessária para alcançar a sobriedade. O médico começou a reunir grupos de alcóolicos, em Akron, Ohio, nos Estados Unidos, ao perceber que conviver com outras pessoas em tratamento ajudava a encarar a doença. No Brasil, a comunidade Alcoólicos Anônimos teve seu primeiro registro em 1945. Finalizada a oração, foi declarada palavra aberta aos presentes. Cada um teve dez minutos para se pronunciar. Na frente
“
Um tratamento crônico para uma doença crônica
da sala, um dos frequentadores sentou na cadeira e compartilhou a sua história. Durante nove minutos, o único som presente na sala foi o de sua voz, ininterrupta e firme, além do cronômetro, que controlava o tempo de fala e que tocou, indicando apenas um minuto restante. Ao finalizar seu discurso, o homem agradeceu pela atenção e desejou a todos “boas 24 horas”, gesto motivacional comum entre os indivíduos em recuperação para não beberem pelo menos no dia que têm pela frente. O frequentador a falar depois teve suas palavras interrompidas por lágrimas
JOÃO VICTOR MARQUES
ENTARDECIA NA AVENIDA Paulista quando paramos em frente à igreja, onde supostamente ocorrem as reuniões dos Alcoólicos Anônimos (AA). Na porta havia uma placa sinalizando a realização de um bazar. Perguntamos confusos a um senhor parado no portão, se estávamos no local correto. Ele nos apontou um estacionamento, dizendo que as reuniões acontecem lá. Fomos para o local indicado, encontramos uma porta semiaberta e, além dela, voluntários organizavam cadeiras para o encontro. Antes de dar início à reunião, os membros presentes realizaram uma votação para determinar a nossa permanência no local. A decisão a favor foi unânime. No grupo, apenas homens de diferentes idades e classes sociais, todos voluntários ou alcoólatras. Apesar do AA não ser uma organização religiosa, a presença de rituais e objetos cristãos são marcantes nos encontros. Cartazes com os doze mandamentos e as doze tradições do AA ficam pendurados nas paredes, as cadeiras encontravam-se dispostas como em uma sala de aula, tendo uma mesa à frente utilizada pelo mediador que, em todas as reuniões, profere uma oração antes que os presentes possam falar. “Serenidade necessária para aceitar as coisas que não podemos modificar, coragem para modificar aquelas que podemos e sabedoria para distinguir umas das outras”, pede a prece que é considerada pelos membros da comunidade como um guia para permanecerem sóbrios. O AA surgiu em 1935, quando um cirurgião em recuperação encontrou nas ideias
Alexandre Araújo trabalha há 26 anos com alcoólatras na Associação Intervir
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e murmúrios. Era extremamente magro e segurava, tenso, um brinquedo em suas mãos. Próximo a um de seus polegares havia uma cruz tatuada. Envergonhado, pediu perdão e socorro para os presentes e para Deus. Trêmulo, tinha a fala enrolada e o corpo cambaleando pelo local. Estava alcoolizado. “A bebida tomou conta do meu corpo, e não desejo isso a ninguém”, confessou o homem. Durante as histórias, era possível perceber que a maioria dos presentes começou a beber na adolescência. Além disso, muitos contam que misturavam o álcool com outras drogas. Havia um sentimento geral de prepotência e incapacidade, gerados e alimentados pela doença. A religião se mostrou um ponto fundamental na vida dos participantes e o AA foi retratado como o único meio eficaz para vencer o álcool, apesar das visitas a psicólogos, psiquiatras, clínicas de reabilitação e terapeutas.
ALÉM DAS 24 HORAS “As drogas estão presentes, sempre estiveram e sempre estarão’’, afirma Aline Godoy, terapeuta ocupacional especializada em Saúde Coletiva pela Universidade de São Paulo. A maneira de lidar com as drogas em nossa sociedade pode dividir opiniões, estudos e métodos. O problema se torna ainda maior quando tratamos de substâncias legalizadas que, apesar de regulamentadas, não diminuem os danos causados às pessoas. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), há mais de quatro milhões de alcoóltras com idade superior a 15 anos no Brasil. O estudo Padrões de violência domiciliar associada ao uso de álcool no Brasil, realizado por participantes do programa de Pós-Graduação do Departamento de Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) em 2008, aponta que 50% de casos de violência familiar envolve agressores alcoolizados. Após um intervalo cronometrado de 10 minutos, outras falas foram compartilhadas. “Um tratamento crônico para uma doença crônica”, afirma um homem sóbrio há mais de vinte anos, sua fala remete ao status permanente da doença, instaurada no indivíduo por estágios que duram longos períodos de tempo até se desenvolver completamente, sendo necessário o mesmo processo inverso para o tratamento. Outro frequentador, em meio a um discurso descontraído, afirmou não querer mais causar problemas para sua família e se sentir inútil: “Não quero voltar para aquele inferno. Estou apaixonado pela minha filhinha recém-nascida, o que me ajuda no tratamento”. Entre os discursos e curtas pausas, os pontos fundamentais do AA foram relembrados, como os mandamentos e a necessidade de doação de membros da irmandade, que oferecem um pequeno valor em dinheiro para ajudar na manutenção do local, um ato que visitantes não podem realizar. Ao final da reunião, o mediador contou sua
WIKIMEDIA COMMONS/STURM
No estacionamento da Igreja São Luiz do Gonzaga, ocorrem as reuniões do Alcoólicos Anônimos
própria história e a relação com a bebida e, indagado sobre questões relacionadas à juventude e à demora para a identificação da doença, respondeu que, apesar da maioria dos alcoólatras começarem a beber ainda na adolescência, o vício geralmente é identificado no futuro, quando a bebida se torna um real transtorno. “Comecei a beber com 12 anos, mas só comecei a causar problemas com 18”, revela. Somente após o surgimento de órgãos, como o Alcoólicos Anônimos, que a dependência veio a ser estudada. A organização editou um livro homônimo, que define o alcoolismo como patologia. O reconhecimento definitivo da doença na medicina veio apenas em 1968. Apesar disso, ainda existem resquícios da imagem pejorativa que é atribuída ao doente, conta Alexandre de Souza C. Araújo, de 50 anos, que trabalha há 26 anos na recuperação e reinserção social de alcoólicos, como presidente da Associação Intervir para Dependentes Químicos e Outras Compulsões. De acordo com Alexandre de Souza, os dependentes químicos foram por muito tempo estigmatizados pela sociedade: “Em um primeiro momento, existia o olhar religioso, que os enquadrava como pecadores, culminando em uma visão moralista do dependente e levando a doença a ser interpretada como uma falta de caráter”. De acordo com o presidente da Intervir, essa visão é enraizada na sociedade, conduzindo o dependente à exclusão social.
OS ANÔNIMOS “Eu comecei a me alcoolizar ocasionalmente. Quando eu era menor de idade, na época da escola, saíamos eu e meus amigos para festas, quermesses e bares para beber”, afirma Marcelo*, de 28 anos, que começou a beber aos 13 e se identificou como alcoólatra aos 17. Festas e bares continuam sendo destinos comuns de jovens que consomem bebidas alcoólicas durante a época da menoridade, e a dificuldade para obtê-las é quase nula. “Era fácil conseguir bebida, e eu vi no álcool a solução para o meu problema de timidez, já que eu me relacionava melhor com as pessoas quando bebia”, afirma. Rafael* subiu ao palco da festa do banco em que trabalhava e pegou o microfone. Alcoolizado, causou constrangimento. Assim como quando tinha 18 anos, enquanto prestava CPOR (Centro de Preparação de Oficiais da Reserva), extrapolou na bebida em uma formatura do exército e recebeu uma punição. A percepção da doença que sofria veio anos mais tarde, quando as consequências de suas bebedeiras passaram a afetar suas relações familiares, como o episódio em que foi expulso de casa por sua ex-esposa. Mesmo sabendo que bebiam demais, Marcelo* e Rafael* não conseguiam parar, e só procuraram ajuda quando perceberam que suas relações com o álcool estavam causando impactos a pessoas próximas. “A primeira coisa que ele fez lá foi comprar bebida”, disse Vitória*, enteada de Rafael, referindo-se a um show que foram com o
intuito de passarem mais tempo juntos e se divertirem. “[No final do show] Ele já estava caindo. Isso foi muito pesado para mim, a gota d’água”. Vitória* contou que, quando o padrasto insistiu em dirigir, mesmo alcoolizado, ela se recusou a entrar no carro. “Nessa hora, minha mãe viu que tinha me afetado muito, então começamos a falar sobre o problema”. O ultimato veio quando a ex-esposa de Rafael* tirou a aliança do dedo e declarou o fim da relação enquanto ele não parasse de beber. Sobre os irmãos, Vitória* afirmou que as duas irmãs mais novas compreendiam com certa maturidade que o pai tinha um problema. “Minha irmã, de 11 anos, falava que tinha muito medo de que ele se machucasse”. Apesar de Rafael* ter buscado ajuda psiquiátrica, foi nas reuniões dos Alcoólicos Anônimos que, assim como Marcelo*, encontrou o incentivo e compreensão necessários para se tratar e, desde então, não teve recaídas. As mudanças de Rafael*, ao parar de beber, foram visíveis para Vitória*. A sobriedade e o autoconhecimento fizeram do padrasto uma pessoa mais calma. Para ambos, a família foi um dos principais fatores de motivação para pararem de beber. O apoio dos parentes se mostrou fundamental para a manutenção dos tratamentos. Ao final da entrevista, Rafael*, sóbrio há um ano, deu voz ao seu instinto paternal: “Um dia, minha filha disse que eu seria o melhor pai do mundo se eu não bebesse. É difícil ouvir uma coisa dessas. Hoje, eu sou o melhor pai do mundo”.
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CULTURA
OS MESTRES
DA PELÍCULA Projecionistas de cinema falam sobre a profissão em um período de mudanças do formato analógico ao digital REPORTAGEM E FOTOGRAFIA GUILHERME GUERRA (3° ano de Jornalismo) DESIGN GIULIA GAMBA (3º ano de Jornalismo)
TIRAR O FILME de seis diferentes latas em formato de pizza, verificar se a cópia não chegou danificada, emendar os metros de película em um extenso rolo. Checar o óleo, e flanelar os trilhos, janela, espelho e lentes do projetor para evitar que atrapalhasse a exibição. Inserir à torre o filme já na bobina que levará a película ao projetor. Ligar os amplificadores de som e deixar o filme pronto para rodar. Por fim, soltá-lo para os espectadores.
Há pouco mais de vinte anos, era essa a rotina de Fernando da Silva e Valmir Barbosa, projecionistas de cinema com mais de duas décadas de carreira. Hoje, ambos continuam na área, mas o cotidiano mudou drasticamente graças à facilidade do cinema digital: basta checar a aparelhagem de vídeo e som, ligar o computador e clicar o play. Desaparece todo o meticuloso tratamento que exige a película e, com ele, a profissão. “[Ainda] Existe o operador de
película, mas não o trabalho”, conta Fernando, funcionário desde 2007 do cinema Reserva Cultural, em São Paulo. A extinção da profissão é uma realidade no meio cinematográfico mundial, inclusive no Brasil. A digitalização das salas de cinema brasileiras saltou para 92% em 2015, em relação aos 62,5% do ano anterior, segundo relatório da Agência Nacional de Cinema (Ancine). Políticas governamentais, como o Virtual Print Fee (VPN), em que se concede
GUILHERME GUERRA
Projecionista do Reserva Cultural, Fernando tira a película da lata e une o filme ao rolo que será colocado no projetor
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GUILHERME GUERRA
CHAPÉU
Valmir, do CineSesc, limpa e prepara o projetor antes de exibir o filme às empresas crédito a longo prazo e juros baixos para a modernização das salas, incentivam reformas nos pequenos cinemas do país. Com um curso preparatório para dominar os softwares, abandona-se a película, cujo treinamento consiste em passar oralmente o conhecimento para o iniciante. Foi assim que Valmir parou dentro da cabine de projeção. DJ nos anos 1980, antes de ser atendente do CineSesc da rua Augusta, em São Paulo, foi convidado em 1995 para substituir o antigo funcionário prestes a se aposentar. Aprendeu as engenhocas e permanece até hoje exibindo filmes. Do vinil e da bilheteria, foi para a película. E da película, para o digital. Já Fernando entrou no ramo por persistência depois de trabalhar como porteiro: insistia em ajudar seus amigos da área, mas não sabia operar um projetor. “Eu vou aprender isso, afinal todo mundo conseguiu”, relata, e, sozinho em casa e também nas cabines, deu conta de dominar a película. Enfim, apareceu a oportunidade de trabalho em um cinema e foi admitido somente após o teste: exibir, para o filho do proprietário do cinema, o filme infantil Júnior (1994), com Schwarzenegger.
QUESTÃO ECONÔMICA “Minimizaram os custos, maximizaram os lucros”, afirma Valmir, que defende a projeção em película junto com Fernando.
Hoje em dia, não é tão óbvio diferenciar uma exibição digital da analógica. Muitas vezes, é exibido um filme em Blu-Ray, formato de home video com maior qualidade que o DVD, mas inferior à película, e, no fim, o público paga o mesmo preço que pagaria por uma exibição de cinema. Um pequeno disco rígido de um terabyte (1.000 gigabytes) pode armazenar algo em torno de dez longas-metragens, enquanto o filme é dividido em latas redonda e unido pelo operador. Em comparação, não há dúvidas de que o novo formato é vantajoso ao trabalho dos produtores, distribuidores e exibidores em todos os aspectos, exceto na cara manutenção dos novos equipamentos. O cinema digital impactou toda a cadeia de filmes devido ao baixo custo, desde a sua crescente utilização no final dos anos 1990. No entanto, essas mudanças não chegaram ao público que não viu uma queda no preço do ingresso ou mesmo uma expansão vertiginosa no número de salas de cinema. No Brasil, em 1971, eram 3.250 salas de cinema espalhadas pelo país, mas o número foi caindo até chegar a pouco mais de 1.000, em 1995. Entretanto, do final da década de 1990 para cá, houve recuperação na área. Em 2015, a Ancine somou 3.013 telas. O número cresceu graças à expansão de shopping centers e ao programa federal Cinema Perto de Você, que promove parcerias com
o empresariado para ampliar o circuito de salas. Em ambos os casos, contudo, a concentração permanece nos grandes centros urbanos, longe das periferias. Essa ausência de cinemas faz com que Valmir realize exibições de filmes na sua própria casa, em um bairro periférico da zona sul da capital paulista. Apresentou a seus vizinhos, por exemplo, o lançamento dos irmãos Dardenne, Dois Dias, Uma Noite (2014), em que uma mulher, interpretada pela francesa Marion Cotillard, deve convencer seus colegas de trabalho a abdicarem de um bônus salarial para que ela mantenha o próprio emprego. De certa forma, o retrato de desemprego do longa-metragem não destoa da realidade daqueles por trás do projetor. Os operadores assistem à própria profissão perder espaço no mercado de trabalho com a digitalização das salas, que reduz ou mesmo elimina a necessidade de uma equipe de projecionistas. Fernando fez cursos para voltar a atuar como porteiro depois de se aposentar. Valmir quer realizar uma licenciatura em história e promover, nas periferias, a reflexão sobre o cinema que, em suas palavras, faz pensar, tratando de realidades sociais e empoderando os jovens. Com Fernando e Valmir fora das cabines, o manejo da película continua a se transformar rapidamente na história.
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ESPORTE
AS DONAS DA BOLA Jogadoras, torcedoras e jornalistas que permanecem na invisibilidade no futebol buscam uma partida mais justa REPORTAGEM FERNANDA LUCKI ZALCMAN, GIOVANNA FORCIONI, LETÍCIA PRALON E MARIA JÚLIA DE ASSIS (1º ano de Jornalismo) ILUSTRAÇÃO CATALINA DE VERA (1º ano de Jornalismo) VETORIZAÇÃO BEATRIZ FIALHO (2º ano de Jornalismo) PINTURA DIGITAL GIULIA GAMBA (3º ano de Jornalismo) DESIGN GUILHERME GUERRA (3º ano de Jornalismo)
VOCÊ GOSTA DE futebol? Mas sabe explicar a regra do impedimento? Vindo com essa roupa no estádio, você não acha que está querendo aparecer mais do que o time? Até que para uma mulher você entende do esporte, né? Ser mulher e gostar de futebol, no Brasil, significa muitas vezes ser questionada e ter sua paixão pelo esporte desmerecida. E isso não é de hoje. Desde que a modalidade chegou ao Brasil, em 1895, se configurou como um ambiente essencialmente masculino. Os registros do governo federal apontam que as mulheres só deram seus primeiros passos como atletas 26 anos depois: a primeira partida exclusivamente feminina foi disputada entre os times Senhoritas Tremembeenses e Senhoritas Catarinenses, na cidade de São Paulo. Enquanto o futebol masculino se consolidava como um esporte de massa no país, o feminino caminhava em sentido contrário. Em 1941, o artigo 54 do Decreto-Lei 3.199 passou a ordenar: “Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza”. Por meio de tal determinação, o Estado Novo de Vargas proibiu a prática de certas modalidades pelas mulheres, entre elas o futebol. A comunidade médica da época alegava que atividades físicas intensas poderiam prejudicar o funcionamento do sistema reprodutor feminino e comprometer sua principal função social, a maternidade. Somente em 1979, quando quatro judocas foram inscritas com nomes masculinos no Campeonato Sul-Americano para que pudessem participar da competição e retornar com as medalhas no peito, o Decreto foi revogado, permitindo que as mulheres participassem do cenário esportivo. Em 1988 foi convocada, pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF), a primeira seleção brasileira feminina para participar da Women’s Cup of Spain, que derrotou as seleções
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de Portugal, Espanha e França, trazendo o primeiro título internacional para o futebol feminino no Brasil. Após essa vitória, em 1991, a FIFA realizou a Primeira Copa do Mundo de Futebol Feminino, sediada na China, na qual o Brasil foi o nono colocado. Cinco anos depois, o time feminino foi incluído nos Jogos Olímpicos e o Brasil alcançou o quarto lugar na classificação. Mesmo com esses ganhos obtidos a partir de 1980, a modalidade continua em segundo plano. “O futebol feminino merece olhos melhores. A nação por inteiro tem que olhar com mais brio, porque ele tem talento. A gente só não tem quem apoie isso”, como afirma a atleta da seleção sub-20 do Brasil Beatriz Menezes.
MULHERES EM CAMPO Ainda hoje, a modalidade mal é considerada uma atividade profissional, já que a maioria das jogadoras não tem carteira assinada: “Uma jogadora da seleção ganha uns 10 mil reais, já uma menina que está começando agora ganha 250 reais por mês. Quem vive hoje com 250 reais? A nossa realidade é totalmente diferente: a folha salarial não chega nem a 5% da dos homens”, afirma Beatriz Menezes, de 19 anos, que divide seu tempo entre os treinamentos no A.D. Centro Olímpico e a na seleção brasileira sub-20. Os baixos salários, geralmente, obrigam as atletas a conciliarem uma dupla jornada de trabalho e apostarem em meios alternativos de obtenção de renda. Beatriz, por exemplo, pretende sair do país para estudar fisioterapia em uma universidade que ofereça bolsa de estudo aos atletas, já que não enxerga boas perspectivas em seguir carreira nos clubes brasileiros. Além disso, a falta de investimento desde as categorias de base pode dificultar a evolução técnica e contribuir para a queda de rendimento das jogadoras. Segundo a jornalista Renata Mendonça, do site esportivo com foco nos esportes femininos Dibradoras: “Ainda há um ciclo no qual a CBF não investe e, tam-
bém por preconceito, nem a mídia nem os patrocinadores se importam”. Desse modo, o futebol feminino brasileiro carece de uma atenção essencial que ajudaria a impulsionar o desenvolvimento da modalidade. Mas o que fazer para quebrar esse ciclo e colocar de vez o futebol feminino em destaque? “Acho que o princípio é o governo, junto com as escolas, introduzir na educação física o futebol feminino, para formarmos gerações que pensem sobre ele”, destaca o coordenador de futebol feminino da CBF, Marco Aurélio Cunha, alguns aspectos que considera essenciais. Hoje, as brasileiras começam a treinar profissionalmente por volta dos 15 anos, o que para Marco Aurélio é algo inviável, já que essas meninas disputarão competições contra algumas, de outros países, que já praticam desde os 8 ou 9 anos. O coordenador destacou também a importância de competições equilibradas e longas. Enquanto o campeonato brasileiro masculino acontece em média por oito meses, o feminino dura três meses e apenas São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul têm campeonatos regionais razoavelmente bem organizados. Ele se refere à categoria profissional, já que no futebol feminino as categorias de base não existem. Daí a importância do investimento em educação salientada por Marco Aurélio, que estabelece um comparativo com as nações estrangeiras: “Nos países desenvolvidos, as escolas, assim como as universidades americanas, têm o futebol feminino”. Algumas iniciativas vêm sendo tomadas tanto pela CBF — que, apesar de ter nomeado um homem para a coordenadoria do futebol feminino, vem tentando mudar sua política desportiva e investir mais na modalidade — como por grupos independentes. Por parte da Confederação Brasileira de Futebol, o destaque vai para a seleção permanente. As atletas são contratadas pela instituição para poderem se dedicar exclusivamente à equipe nacional. Para Marco Aurélio Cunha essa foi, sem dúvida, uma
1941 O Estado Novo normatizou a concepção de feminilidade por meio do Decreto-Lei 3.199. Ao proibir as mulheres de praticarem modalidades esportivas, as atividades físicas de alto impacto eram vistas como prejudiciais porque, segundo o discurso daquele momento, masculinizavam o corpo da mulher e comprometeriam as estruturas reprodutoras.
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conquista. “Como é que você poderia dar qualidade a essas jogadoras se não fosse pela seleção permanente? Antes, várias atletas nossas iam ao exterior, o que não é bom para a gente, porque as tiram daqui. Se não fosse a seleção permanente, seguramente elas não teriam atingido esse nível”. Beatriz Menezes acrescenta ainda que a seleção permanente é um começo. “Ela dá entrosamento e tem evoluído bastante”. Em relação às iniciativas independentes, no mês de março de 2016 ocorreram, na cidade de São Paulo, alguns eventos que tinham como pauta o machismo no futebol. O Corinthians, por meio de seu núcleo de estudos (NECO), promoveu uma ação em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, afirmando sua responsabilidade no empoderamento feminino no esporte e na promoção de igualdade de gênero. Outra iniciativa partiu do Sesc Pinheiros, que abriu suas portas para um debate e um treino pela ex-técnica da seleção brasileira de futsal, Maria Cristina de Oliveira.
ALÉM DAS QUATRO LINHAS Engana-se quem pensa que a participação feminina no futebol se limita à atuação nos gramados. Presentes na modalidade como profissionais e torcedoras, as mulheres vêm ganhando espaço em um universo que é conhecido por ser masculino. Mas, segundo a avaliação da comentarista esportiva , do canal Esporte Interativo, Clara Albuquerque, “Se a quantidade de mulheres aumentou, este número não se reflete em oportunidades em todas as profissões da área”. De acordo com um levantamento feito pela consultoria especializada no público feminino, Sophia Mind, 80% das mulheres torcem para algum time de futebol, mas 75% delas não têm o costume de ir aos estádios. Entre os motivos que afastam as meninas das arquibancadas, a violência ocupa papel de destaque. A atmosfera violenta presente nos estádios fez com que
o pai de Thaís Bajano inicialmente resistisse à participação da filha na torcida organizada. A falta de apoio, porém, não foi uma barreira para a pontepretana, que entrou para a Torcida Jovem Amor Maior, agremiação da qual participa há 17 anos. A garota de Campinas viu o futebol e o amor pela Ponte Preta entrarem em sua vida de maneira muito espontânea, mas reconhece: “A mulher dentro de uma torcida organizada significa luta e conquistas diárias”. As dificuldades, porém, não se limitam aos estádios. Para as mulheres que escolhem trabalhar profissionalmente com o futebol, lidar com o tema é um obstáculo ainda maior. Renata Mendonça e Clara Albuquerque são exemplos disso. Ambas, como jornalistas esportivas, concordaram que a credibilidade daquilo que elas produzem, vez ou outra, é colocada à prova. A partir de sua experiência, Renata contou que não há muitas mulheres no departamento de marketing dos clubes ou nas partes administrativas. Ao se analisar a composição da equipe de propaganda da Sociedade Esportiva Palmeiras, um dos maiores clubes de São Paulo, de sete integrantes, apenas uma é do sexo feminino. O mesmo acontece na Agência Corinthians, grupo que assessora as decisões do departamento de marketing do time alvinegro e é composto por treze pessoas, todos homens. Um dos reflexos desse cenário está no fato de que 65% do público feminino sente falta de produtos esportivos específicos para mulheres, já que a maioria dos clubes não as enxerga como um nicho de mercado e não investe em campanhas direcionadas. Apesar dos obstáculos diariamente enfrentados por torcedoras, jogadoras e profissionais ligadas ao futebol, a modalidade parece ser uma paixão que não estão dispostas a abandonar. Elas querem provar que no esporte não existe público-alvo e que a inserção feminina é benéfica a todos, como afirma Renata Mendonça: “Sendo um esporte para os dois, todo mundo ganha”.
1965 Início do regime militar, a Deliberação Nº 4.377 decretava: “Não é permitida a prática de lutas de qualquer natureza, futebol de campo, salão e praia, rugby, halterofilismo e beisebol”. Em 1979, a ditadura atenuava-se e o decreto foi finalmente revogado. A regulamentação do futebol feminino, entretanto, veio apenas em 1983, quando foram instituídas as diretrizes da modalidade.
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GASTRONOMIA
COZINHA SOBRE
QUATRO
RODAS Como alternativa acessível a quem quer abrir um negócio, os food trucks ganham espaço REPORTAGEM ANDRESSA ISFER, CAMILA JUNQUEIRA e GABRIELLE VIANA (2º ano de Jornalismo) FOTOGRAFIA ANDRESSA ISFER e CAMILA JUNQUEIRA (2º ano de Jornalismo) DESIGN GIULIA GAMBA (3º ano de Jornalismo)
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ANDRESSA ISFER
OS FOOD TRUCKS fazem sucesso por onde passam: sejam independentes ou não. O que poucos sabem é que essa não é uma moda atual, trucks voltados para alimentação existem desde 1863. Criados nos Estados Unidos após a Guerra Civil americana, os chamados Chuckwagons eram cozinhas portáteis em carroças típicas antigas. Após a guerra, o mercado de carnes do Texas se expandiu e as trocas realizadas pelos vaqueiros começaram a ocorrer em locais de difícil acesso. Por isso, esses comerciantes precisavam ficar meses fora de suas casas, o que resultou na busca por adaptações nas estradas. Com o passar do tempo, na década de 1890, ainda nos Estados Unidos, esses caminhões foram se moldando, desta vez servindo refeições para operários durante
a madrugada das grandes cidades. A partir de então, os food trucks se assemelharam ao que conhecemos hoje. Junto com a expansão da cultura de food trucks no Brasil, desde 2014, surgiram empresas especializadas em adaptar veículos para essa finalidade. Muitos desenvolveram o próprio conceito, que envolve o tipo do produto e a criação do logo, economizando nos custos. O boom dos carrinhos de comida deve-se, principalmente, ao fato de serem um atrativo para o empreendedor que busca abrir o próprio negócio. O investimento é menor que de um restaurante fixo, o conceito itinerante é o que cativa milhares de empresários que mudam de vida para trabalhar no ramo gastronômico. Segundo Bruno Araki, sócio do truck de cervejas artesanais Amarillo Volksbeer, o investimento estimado
em um food truck é de 50 mil reais nos carros grandes e 15 mil reais nas bicicletas, um formato reduzido dos trucks populares. Felipe Camelo, dono do Graxa Food, rede especializada em hambúrgueres artesanais, conta que com o preço investido torna-se possível abrir um restaurante. No geral, uma parcela significativa dos donos de trucks veio de formações acadêmicas distintas da gastronomia. Julio Costa, do Panqueoca, formado em publicidade e jornalista por profissão, investiu em um truck de panquecas diferenciadas. Sua experiência como publicitário ajudou no processo de idealização da marca. “Desde pequeno, meu sonho era trabalhar com cozinha, mas para abrir algo fixo o investimento é enorme. Aproveitei a onda dos trucks, porque você pode sempre mudar, é um comércio versátil”.
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“
Aproveitei a onda dos trucks porque você pode sempre mudar, é um comércio versátil
CAMILA JUNQUEIRA
Já para os consumidores, a variedade está na possibilidade de encontrar locais especializados nesse ramo, além do ambiente acolhedor. No Vila Butantan Food Park, localizado na zona oeste de São Paulo, por exemplo, a música ambiente e as espreguiçadeiras espalhadas pelo local são um dos pontos positivos para o público, que contam também com o espaço amplo e arborizado. O truck de bebidas é justamente um exemplo de logística mais simples de se trabalhar. Araki também afirma que o carro do Amarillo Volksbeer não precisou de muitas adaptações, pois possui apenas as torneiras externas e o espaço interno para os barris. Foi um dos primeiros trucks que surgiram com essa finalidade. Um dos benefícios desse empreendimento pode ser, também, um problema. Para trabalhar com o carro na rua, é preciso seguir uma série de normas e protocolos junto à prefeitura da cidade, responsável por regulamentar o serviço. Ao abrir um negócio, é preciso registrar o Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) do estabelecimento com dois documentos essenciais, a Classificação Nacional de Atividades Eco-
A identidade visual dos food trucks é um dos atrativos para os consumidores
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Julio Costa, Pancaqueoca
Depois do boom, os comerciantes percebem uma queda de público dos food trucks
nômicas (CNAE) e o Cadastro Municipal de Vigilância e Saúde (CMVS). Depois, há a opção de trabalhar na rua, em um ponto fixo, ou em locais particulares, como os food parks, eventos corporativos. Caso o objetivo seja o primeiro, deve-se conseguir o Termo de Permissão de Uso (TPU), que delimita o local e horário de funcionamento do serviço, além de estabelecer uma taxa equivalente ao valor do metro quadrado do lugar escolhido. Porém, não é fácil conseguir a permissão, de 800 proprietários que tentam, apenas trinta conseguem, o que leva muitos caminhões a operarem apenas em locais particulares: “Eles dificultam o trabalho na rua quando o objetivo desse negócio é justamente esse.” aponta Araki. O espaço para armazenamento de alimentos e outros produtos como embalagens, guardanapos e talheres, assim como o de seu preparo, varia de caminhão para caminhão. Julio Costa, por exemplo, mantém seu estoque de alimentos em casa, enchendo a única geladeira e as prateleiras disponíveis no ambiente com o necessário para um dia de trabalho, com isso, comenta ele, às vezes se prejudica: “Se falta algum alimento, eu preciso ir até minha casa buscar, mas como não posso abandonar o caminhão, fico sem mesmo”. Já Alcebíades Júnior, dono do Candy Crush, truck de milk-shakes, sorvetes, churros e outros doces, optou por um formato diferente para seu estoque. Dessa forma,
ele carrega o fundo do caminhão com o necessário para duas ou três horas de trabalho, porém, se precisar de algo a mais, consegue repor rapidamente. A logística de funcionamento também é relativa: dependendo das operações — fases do preparo de um prato, como fritar, assar e cozinhar — o tamanho da cozinha varia, assim como a quantidade de funcionários. O que pode parecer apertado para muitos, é o suficiente para os chefs que se desdobram para entregar o melhor prato dentro do limite que possuem. A partir dessas exigências, o dono do caminhão opta por seu tamanho, o que pode gerar dores de cabeça no fim do dia, quando é preciso arranjar um estacionamento: “Em parques de food trucks, nós pagamos um aluguel e o caminhão dorme aqui. Porém, para os trucks que ficam na rua, muitas vezes esse é um grande problema. Alguns acabam alugando vagas em estacionamentos de postos de gasolina”, conta Julio.
MODISMO? O movimento também é algo relativo. Dependendo da proximidade de prédios comerciais ou residenciais e do serviço oferecido pelo caminhão, tudo pode mudar. “Perto de casas, o movimento é maior durante a noite, porque é o horário que as pessoas chegam do trabalho. Já perto de escritórios, à tarde é mais movimentada,
ANDRESSA ISFER
pois os funcionários saem para almoçar”, acrescenta o dono do Panqueoca. Apesar das inúmeras vantagens dos food trucks, o preço ainda é um problema. O valor, por ser similar ao de restaurantes, pode não ser um diferencial aos olhos dos clientes. Assim, correm o risco de cair no esquecimento e tornarem-se uma moda passageira. “A variedade chama mais atenção do que em restaurantes, mas acredito que o preço seja o mesmo”. É o que pensa Juliana, frequentadora do Vila Butantan Food Park. O declínio da atividade já é algo visível e palpável para os negociantes, que percebem a clientela diminuindo a cada dia. Kaique Oliviéri, dono do Barlivieri’s Sanduicheria, especializado em hambúrgueres artesanais, após apenas um ano e meio já vê a decadência do negócio. Por isso, pretende voltar a atuar como sub-chefe no restaurante em que costumava trabalhar. Os trucks surgiram como uma atividade extra no ramo da gastronomia. Porém, como tantas outras tendências comerciais, a fase atual vai definir se será um negócio definitivo ou passageiro. Felipe Camelo, do Graxa Food, acredita que é possível fazer sucesso em meio à crise. “Se você tem uma abordagem legal e cumprimenta os clientes, você provavelmente vai roubar a venda de todo mundo. Só quem faz o trabalho direito vai continuar para sempre nisso”, conclui.
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Esta reportagem foi baseada na anterior “PROJETO CINGAPURA EM DISCUSSÃO”, publicada na edição 9
MEIO AMBIENTE
Os compromissos do Acordo:
COP
O Acordo de Paris é um marco para conter as mudanças climáticas que afetam o planeta REPORTAGEM FELIPE SAKAMOTO (2º ano de Jornalismo) INFOGRÁFICO E DESIGN BEATRIZ FIALHO (1º ano de Jornalismo)
O objetivo principal do acordo é limitar o aumento da temperatura em, no máximo, 2°C até o ano de 2100
Em 2020, os planos entrarão em vigor para que os países mobilizem fundos financeiros para diminuir os efeitos climáticos
O PLANETA ESTÁ 1ºC mais quente do que a média do século XX, de acordo com a análise anual da agência nacional americana Nasa. A 21ª Conferência de Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP 21) aconteceu do dia 30 de novembro até 11 de dezembro de 2015, em Paris. Foi considerada um marco histórico pela participação de 196 países. Entre eles os que mais emitem poluentes, como China e Estados Unidos da América que, em conjunto, constituíram o Acordo de Paris. No Dia Internacional da Terra, 22 de abril, aconteceu a Cerimônia de Assinatura do Acordo, quando 175 países visaram o documento. O prazo para a ratificação do tratado é até 21 de abril de 2017. Se pelo menos 55 países-membros da COP 21, responsáveis por cerca de 55% das emissões de gases de efeito estufa do mundo, assi-
As metas internas de cada país signatário serão revisadas a cada cinco anos Os chamados países desenvolvidos investirão US$ 100 bilhões para o combate às mudanças climáticas e auxílio aos países em desenvolvimento 68
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Os compromissos do Brasil:
Recuperar 15 milhões de hectares degradados
narem o documento, ele entrará em vigor depois de trinta dias. Compareceram ao evento 45 mil pessoas, incluindo políticos, empresários, comunicadores e representantes da sociedade civil. A jornalista e professora da Faculdade Cásper Líbero, Cilene Victor, participou da conferência e acredita que as metas do acordo somente serão conquistadas se a temática da questão ambiental alcançar o cotidiano da população.
E O BRASIL?
Restaurar e reflorestar 12 milhões de hectares
Introduzir 5 milhões de hectares de integração de lavoura-pecuária-floresta
Em outubro de 2015, antes da COP 21, o Brasil foi um dos países a publicar os compromissos de combate às mudanças que afetam o meio ambiente, chamado Contribuições Pretendidas, Determinadas em Nível Nacional (INDCs, na sigla em inglês). O documento foi publicado pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA).
Garantir 45% de fontes renováveis na composição total da matriz energética
Incentivar a sustentabilidade nos setores agrícola, industrial, de energia e de transporte Dar fim ao desmatamento ilegal até 2030
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CRÔNICA
CRÔNICA
Outro dia,
TEXTO LEONARDO MARTINS (1º ano de Jornalismo) IMAGEM GUILHERME GUERRA (3º ano de Jornalismo) DESIGN GUILHERME GUERRA (3º ano de Jornalismo)
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ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2016
tanta coisa
É tanto que acontece na nossa vida, que nenhum texto abrangeria metade do que quero falar. Ainda mais nos últimos meses, enquanto tentava escrever algo que tirasse de mim todo esse desespero, esse azedo. Mas, se você se sente sozinho, a solução é tentar escrever uma crônica. Experimente. Todas as vezes que tentei, fui acometido pelos típicos obstáculos de quem precisa de um momento de atenção: a operadora do meu celular ligou setenta vezes para oferecer novos pacotes de internet, minha cachorra decidiu latir sem parar e o vizinho do andar de cima resolveu passear com a mobília pela casa. Passaram-se alguns dias. Fiquei pensando no que dizer e percebi que a nossa própria rotina já nos fornece assuntos. Todo dia, como de costume, acordo cedo e abro algum jornal. Vejo que o presidente interino fez uma reunião com seu “machistério” e aumentará os impostos, mas, acalme-se, não vamos pagar o pato! Poderia escrever outra crítica – ou uma peça de comédia – sobre isso. Mas quem liga? Pelo menos o presidente sabe usar mesóclise. Chego ao metrô, entro no vagão e, já que a estação não estava comportando a população da Índia em poucos metros quadrados, consegui mexer meu braço direito para continuar lendo as notícias no celular. Desço a página do aplicativo e vejo José Sarney falando sobre corrupção e delações premiadas. Seria perfeita uma delação premiada do Sarney. Saberíamos até por que Pedro negou três vezes que conhecia Jesus Cristo. Faço a baldeação na República e abro meu Facebook. Vejo uma imagem que repudiava o estupro coletivo da garota carioca, cometido por 33 homens. Sinto um misto de decepção e nojo. A publicação seguinte era uma troca de mensagens entre um filho que estava prestes a ser assassinado em uma boate LGBT, em Orlando (EUA), se despedindo de sua mãe. O assassino odiava gays, espancava a ex-mulher, tinha fácil acesso às armas, executou cinquenta pessoas. Retratá-lo apenas como terrorista é mera ignorância – ou má-fé. Piso na faculdade pensando no que esperar de um país que se sente violentado ao ver duas pessoas do mesmo sexo de mãos dadas, mas consideram chacinas parte da normalidade. Mas, também, como posso ser tão ingênuo em esperar empatia de um lugar em que Chico Buarque é xingado de burro, Alexandre Frota é conselheiro do Ministério da Educação e ler Paulo Freire é tido como doutrinação ideológica. Em um dia comum, lidamos com tudo isso. Nossa rotina é acometida por essa mistura de acontecimentos. Em nosso atual momento, falar sobre outras coisas é como estar dentro de um prédio durante um terremoto e, durante o desastre, comentar com o vizinho que amanhã à tarde vai esfriar. Tempos melhores virão. Amanhã há de ser outro dia, já dizia Chico Buarque. Outro dia para melhorarmos, outro dia para acordarmos. Mas eu sei que, no fundo, nada disso comove. Tudo bem, não pense em crise, amigo, trabalhe.
CHAPÉU
ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2014
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