Revista Esquinas #63

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ANO 23 | Edição 63 – 2º semestre de 2018 | revistaesquinas.casperlibero.edu.br REVISTA-LABORATÓRIO DA FACULDADE CÁSPER LÍBERO

Eleições determinarão o futuro do Brasil Crack

Devastação humana no Centro de São Paulo

Sistema carcerário

Prisões superlotadas não reeducam ninguém

Ciganos

Magia e preconceito de uma comunidade milenar



Editorial 63

Revista Esquinas, órgão-laboratorial da Faculdade Cásper Líbero

O ESTADO DAS COISAS FACULDADE CÁSPER LÍBERO Diretor Carlos Costa Coordenadora de Jornalismo Helena Jacob ESQUINAS Editor-chefe Márcio Rodrigo Editores Pedro Garcia e Thiago Bio Revisão Paula Leal Mascaro e Rafaela Bonilla Editor de Arte Henrique Artuni Diagramação Larissa Basilio e Luana Jimenez Projeto Gráfico Beatriz Fialho e Guilherme Guerra Participaram desta edição Ailane Roma, Ana Clara Matsuguma, Anna Capelli, Bárbara Correa, Bárbara Moura, Beatriz Biasoto Giovannelli, Beatriz Gil, Beatriz Salvia, Bianca Quartiero, Bruna Heloísa da Silva, Bruno Ascenso, Bruno de Lima, Camilla Millan, Carolina Campos, Fernanda Iyeyasu, Fernanda Talarico, Gabriela Junqueira, Gabriel Balog, Gabriel Saldanha, Georgia Ayrosa, Giullia Chechia Mazza, Gustavo Maganha, Gustavo Ramos, Heloísa Menegon Youssef, Henrique Artuni, Isabela Barreiros, Isabella Juventino, Isabella von Haydin, Jorge Carmo, Júlia de Oliveira, Karolyne Oliveira, Laís Martins, Larissa Albuquerque, Larissa Basilio, Laura Okida, Luana Gotardo, Luis Enrique Barrero, Luca Castilho, Lucas Del Papa, Lucas Ghedini, Lucas Ximenez, Malu Mões, Matheus Fernandes, Marina Baldocchi, Marina Lourenço, Mauricio Abbade, Mel Trench, Monique Polerá, Nathalia Freindorfner, Nathalia Lopes, Naty Falla, Pedro Garcia, Rafaela Bonilla, Rafaela Morozetti, Roberta Bernardo, Saulo Tafarelo, Seham Furlan, Susana Terao, Thiago Bio, Ully Nambu, Vanessa Nagayoshi, Yasmin Altaras Capa Henrique Artuni Núcleo Editorial de Revistas Avenida Paulista, 900 – 5º andar – 01310-940 – São Paulo – SP Tel.: (11) 3170-5874/5814 E-mail: revistaesquinas@gmail.com Site: revistaesquinas.casperlibero.edu.br Errata O dono da aspa em destaque na página 26 da edição 62 é, na verdade, o advogado Lucas Sada. As fotografias da reportagem “Casa de barro” da mesma edição são de Jhony Arai. Ainda, a grafia correta dos créditos das fotografias da página 55 da revista é Camilla Millan.

A nova edição de ESQUINAS que chega às suas mãos marca um novo momento da revista laboratorial da Cásper Líbero. Dando continuidade às mudanças iniciadas no início de 2017, no primeiro semestre de 2018, enquanto trabalhávamos neste exemplar, ganhamos um site de notícias com atualizações diárias. Desta maneira, além das reportagens cuidadosamente lapidadas que você encontra na publicação em papel, também é possível agora ler notícias “esquineiras” no mundo digital sobre temas quentes e importantes de São Paulo e do Brasil. Em um cenário conturbado como o das Eleições que se aproximam, cercadas por desafios econômicos e institucionais, ESQUINAS não poderia se furtar a falar do presente político do País, de seu passado complexo e dos projetos que precisam ser desenhados para um futuro bem breve. Futuro esse que hoje parece tão incerto quanto volátil quando o assunto são os rumos que a Nação irá tomar a partir de janeiro de 2019. Três décadas da Constituição Cidadã, troca de nomes de partidos, análises estruturais de legendas como o MDB e o PSDB se mesclam no dossiê desta edição sempre a partir da visão e dos valores plurais que marcam a posição dos jovens brasileiros sobre a política nacional.

Também aproveitamos o “gancho”, como se diz no jargão jornalístico, deste momento histórico do Brasil e do mundo para criarmos uma nova seção: a partir desta edição, assuntos antigos que dialoguem com a conjuntura atual serão resgatados em “Arquivo”. Para inaugurarmos a coluna, Fernanda Talarico escreve sobre “Os Sonhadores”, longa-metragem de Bernardo Bertolucci que tem como pano de fundo o célebre Maio de 1968, em Paris, que, não por acaso, está completando 50 anos como um movimento que uniu jovens em torno de questões políticas e comportamentais com desejos revolucionários. Por último, tentando delinear com mais precisão “o estado das coisas”, como denomina o editor Pedro Garcia, ESQUINAS traz em suas páginas reportagens como a da Cracolândia, em São Paulo, narrada a partir do ponto de vista participativo dos repórteres Ailane Roma, Monique Polerá e Bruno de Lima. Também exibe textos que discutem tanto a censura que a arte vem sofrendo neste Brasil em que é preciso duelar com o retrocesso sociocultural todos os dias quanto que falam de povos como os ciganos que, apesar de desterritorializados, seguem resistindo, inclusive no Brasil, pátria tão distante de seu continente de origem. Por Márcio Rodrigo, editor-chefe revistaesquinas.casperlibero.edu.br

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Sumário Revista Esquinas, órgão-laboratorial da Faculdade Cásper Líbero

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08 Empreendedorismo para quem? O que os jovens pensam sobre o mercado de trabalho e abrir seu próprio negócio

10 “De qual humanidade você é?” Entrevista com Ailton Krenak, uma das principais lideranças indígenas do País

14 O que está por vir As eleições e o futuro do Brasil a partir de 2019

26 “Maridas”de aluguel Empresa formada por mulheres realiza trabalhos comumente associados ao gênero masculino

34 Entre um chamado e outro Como está o funcionamento do Samu após os cortes de gastos ocorridos entre 2014 e 2017

36 A despensa de São Paulo Uma imersão na Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp)

ANT BASTOS

46 “É preciso tirar a máscara” A realidade do sistema carcerário brasileiro, sua superlotação e ineficácia

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50 Vitrine da devastação humana No Centro de São Paulo, a Cracolândia revela um lado da cidade que ninguém quer ver

54 Sala de aula na berlinda As escolas do estado de São Paulo enfrentam a problemática do tráfico de drogas

56 Vidas ciganas Os costumes e preconceitos sofridos por esse grupo milenar

60 Pancadão além da quebrada Como o funk inseriu-se em cenários distantes de sua origem na periferia carioca

62 Da invasão à imersão Jovem fotógrafo, Leonil Junior ganha destaque no Brasil e no exterior

64 Censura e obscenidade Em tempos de volta do conservadorismo, a arte contemporânea é atacada tanto na internet quanto presencialmente

SEÇÕES 24 INFOGRÁFICO 67 ARQUIVO 68 HQ 70 CRÔNICA Sumário

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O mundo neste semestre

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Apocalipse nacional Caminhoneiros de todo o País entraram em greve que durou 11 dias em maio. Os manifestantes fecharam rodovias e reivindicavam pela diminuição do preço do diesel e isenção da taxa de pedágios. O abastecimento, principalmente de combustíveis, foi prejudicado em todo o Brasil. Temer anunciou, para pôr fim à greve, a redução dos preços e das tarifas e o tabelamento do preço dos fretes.

Pibinho O PIB brasileiro teve um aumento no primeiro semestre de 2018. Em relação aos últimos três meses do ano anterior, o Produto Interno bruto cresceu 0,4%. Porém, a alta não pode ser de fato considerada um aumento, pelo fato de o valor ser ainda muito próximo do resultado anterior.

Novo inquilino na Prefeitura Após o afastamento de João Doria (PSDB) da Prefeitura de São Paulo, o vice Bruno Covas assumiu o cargo em abril. Doria saiu do posto para se candidatar a Governador do Estado de São Paulo após o colega de sigla, Geraldo Alckmin, também renunciar sua função no Governo para concorrer à Presidência.

Pixuleco virou realidade O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva se entregou à prisão no dia 7 de abril. As acusações que o levaram ao cumprimento de pena foram crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, relacionados ao caso do triplex do Guarujá. Seu pedido de habeas corpus para responder em liberdade e de prisão domiciliar foram sistematicamente negados pelo STF até o fechamento desta edição.

Encontro inusitado Em encontro histórico em junho, o líder norte-coreano, Kim Jong-un, e o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, assinaram um documento de mútua colaboração em Cingapura. Os papéis prometem a desnuclearização completa da Península Coreana, enquanto os norte-americanos se comprometem a proteger e garantir a segurança do antigo inimigo.

Rio interditado Como medida para conter a violência no Rio de Janeiro, o presidente Michel Temer decretou uma intervenção federal no estado. Pela primeira vez no Brasil, desde a Constituição de 1988, uma unidade federativa fica sobre o controle de um general do Exército, responsável pela Secretaria de Segurança Pública.

Joia da Coroa Em maio, o Príncipe Harry, do Reino Unido, casou-se com a atriz norte-americana Meghan Markle. Segundo o Bridebook, uma plataforma virtual de organização de casamentos, foram 600 convidados. O vestido francês de Markle custou em torno de 300 mil libras e foram pagas 30 milhões de libras à segurança do evento.

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DAN SCAVINO JR.

MÍDIA NINJA

Revista Esquinas, órgão-laboratorial da Faculdade Cásper Líbero

Marielle, presente Marielle Franco, vereadora da cidade do Rio de Janeiro, foi assassinada junto com o motorista Anderson Gomes no dia 14 de março no Centro carioca. A parlamentar atuava na área de Direitos Humanos e era relatora da Comissão da Intervenção. Sua morte comoveu o País e incitou manifestações. Até hoje as investigações sobre o crime não chegaram a resultados conclusivos.


ALI NA ESQUINA REPRODUÇÃO

Arte em expansão Periferia Invisível luta para criar um cenário cultural no extremo leste da capital paulista Texto por Pedro Garcia

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o andar pelas ruas do distrito de Ermelino Matarazzo, localizado na Zona Leste da cidade de São Paulo, são poucos os espaços destinados às atividades culturais. Algumas casas de show noturnas e pouca coisa além disso. Para mudar tal cenário, foi criada em 2008 a Associação de Arte e Cultura Periferia Invisível. O foco da organização que está completando uma década de atuação é democratizar o cenário cultural periférico da região onde se encontram. Com uma equipe composta por cinco pessoas, dois produtores musicais, uma fotógrafa e mais dois na área administrativa, a associação trabalha ajudando no gerenciamento da carreira de artistas independentes e também na parte administrativa e jurídica de eventos culturais, como, por exemplo, cedendo o número de seu Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) para grupos de teatros que precisam do documento para se apresentar em algum local. Atualmente, as ações da Periferia Invisível são focadas no ramo musical. Um exemplo disso é o projeto na ativa “Música por Minuto”. Nele os músicos, com uma ajuda de custo de cem reais, vão até a associação e utilizam sua estrutura, saindo de lá com um hit pronto e postado nas plataformas digitais de música e têm a divulgação da produção nas redes sociais. Binho Santana, um dos fundadores e presidente da Periferia Invisível, explica que o intuito das ações voltadas para a música é para sustentar a tentativa da criação de uma cena musical vinda da região. “Já existe o pessoal do funk aqui na

área, mas a gente queria emplacar também na MPB e no indie, por exemplo, queríamos artistas de vertentes novas. Queremos ser uma produtora de música de referência e periférica”, afirma. Por mais que a maioria dos trabalhos atuais estejam focados no ramo musical, a Periferia Invisível trabalha com outras manifestações artísticas também. A equipe da iniciativa realiza também a gestão de grupos circenses e teatrais e participa do grupo de gerenciamento da “Ocupação Cultural Mateus Santos”, localizada na mesma região da capital paulista. “Há uma escassez cultural da região. As pessoas não têm um meio para chegar no fim de semana e poder consumir cultura, então a Mateus Santos proporciona isso”, opina Santana. Ele enxerga a importância da ocupação, localizada em um espaço público, na possibilidade que ela dá aos moradores da região de poderem frequentar saraus, terem um espaço para leitura, frequentarem aulas de dança e entrarem em contato com fotografia e artesanato, por exemplo. Para manter seu funcionamento na ativa, a Periferia Invisível tem sua verba proveniente de diferentes fontes. Nos anos de 2015 e 2016, a associação ganhou verbas de editais públicos para tocarem dois projetos. Mas, nos últimos dois anos, tem se mantido por conta própria, com o dinheiro adquirido com alguma gravação, pois os artistas produzidos por eles cedem parte da porcentagem de seus lucros para viabilizar a continuidade do projeto. A Periferia Invisível também aceita doações, mas seu presidente revela que elas raramente são feitas. Atualmente, o foco da associação é criar uma cena musical vinda da periferia da Zona Leste de São Paulo

É na luta para produzir cultura e democratizar seu acesso que Binho Santana e sua singela equipe depositam seus esforços. Ao contrário do que consta no artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que afirma que “todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes”, São Paulo se mostra com o ramo cultural centralizado e com difícil acesso para os que vem de longe. Mas a Periferia coloca-se contra a norma observada e traz para sua região um alívio e esperança, no que diz respeito ao mundo das artes.

REPRODUÇÃO


MERCADO

Empreendedorismo para quem? O cenário econômico atual e a geração Y dāo o tom a um novo modelo de trabalho Texto por Bárbara Correa, Isabella Juventino e Naty Falla Fotografia por Naty Falla

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o terceiro ano do Ensino Médio, em uma escola pública, um amigo lhe contou que daria para abrir uma empresa pagando pouquíssimo por mês sem comprovar renda nenhuma. Matheus Balsis duvidou. Ouviu a vida inteira que precisaria ter muito dinheiro para iniciar um negócio. Quando chegou em casa, pesquisou na internet e viu que era, sim, possível. Resolveu então abrir a própria empresa e ver no que dava. Mas havia um problema: era menor de idade. Ao conversar com os pais, decidiram emancipá-lo. Com 17 anos, o jovem abriu a MB Marketing Digital e se deparou com um mundo totalmente diferente daquele que costumavam apresentar a ele. “É como se a gente estivesse morando em um jardim e existisse um muro, mas a gente nunca vê depois desse muro. Uma vez que a gente olha além desse limite e vê um jardim maior, nunca mais se sente confortável naquele jardim pequeno”, explica o empreendedor. Histórias como a de Balsis estão se tornando cada vez mais comuns entre os millennials – definição sociológica para determinar os nascidos entre os anos 1980 e meados da década de 1990 –, também conhecidos por Geração Y. Uma pesquisa realizada pela Mind Miners e o Centro de Inteligência Padrão (CIP), em 2016, analisou tendências sociais do trabalho e de consumo dessas pessoas. Ela aponta que 71% dos 1330 jovens consultados pretendem mudar de emprego ou atividade entre dois e cinco anos. Dentre eles, 51% querem seguir o ramo do empreendedorismo e do negócio próprio. “Eles consideram o mercado formal de trabalho rígido, com muitas regras, e enxergam o empreendedorismo como forma de dar vazão às suas ideias, sendo seu próprio patrão”, afirma a professora e pesquisadora da Fundação Escola de Sociologia e Política, Carla Dieguéz, doutora na área de Sociologia do Trabalho. Para Dieguéz, boa parte se emprega no setor informal por causa da retração dos empregos formais e a legislação trabalhista que “formalizou a informalidade”, acarretando na falta de perspectivas no mercado de trabalho e o chamado empreendedorismo por necessidade. De fato, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do primeiro trimestre de dezembro de 2017 a fevereiro de 2018, o número de empregados no setor privado com carteira de trabalho assinada caiu 1,8%, o que corresponde a aproximadamente 611 mil pessoas. Adriana Cubas fala de

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coaching para mais de 90 mil inscritos no seu canal do Youtube


A busca dos millennials por um novo modelo de trabalho significa a quebra de um paradigma. “Os jovens não querem mais uma vida estável, algo regrado. Querem trabalhar por um propósito, não por simplesmente trabalhar”, afirma Adriana Cubas, coach profissional e criadora do canal de mesmo nome no Youtube, que trata de desenvolvimento pessoal e profissional, com mais de 90 mil inscritos e 2,7 milhões de visualizações. Essa nova visão pode causar estranhamento nas gerações anteriores. No início, a principal dificuldade de Balsis foi lidar com a falta de apoio familiar, que não aceitava a escolha de seguir um caminho diferente dos demais ao não fazer faculdade e querer empreender. Hoje, aos 20 anos, após desistir do curso de Análise de Sistemas no quarto mês e investir no setor de marketing digital, o empresário trabalha em um coworking – local em que vários profissionais ou empresas compartilham o espaço – e afirma que teve dificuldades no começo. “Foi difícil, pois nem o notebook eu tinha e precisava muito dele para trabalhar”, relata. O jovem viu no empreendedorismo a chave para a sua ascensão social e hoje enxerga uma melhora em sua condição financeira e estilo de vida. Uma forma de empreender que vem ganhando destaque nos últimos anos são as startups. Segundo o Sebrae, startup é um grupo de pessoas à procura de um modelo de negócios repetível e escalável, trabalhando em condições de extrema incerteza. Basicamente, combina pessoas, uma ideia diferente que possa ser entregue em escala potencialmente ilimitada e a mínima possibilidade de dar certo. José Abuchaem, cofundador da ferramenta de gestão para lojas virtuais Nuvem Shop, relata que sua inserção nesse mercado, enquanto jovem, não foi marcada por impedimentos financeiros. “Na época, todos morávamos com os nossos pais e o dinheiro não era um problema, então conseguimos investir o nosso tempo para desenvolver este tipo de projeto”, relata. Casos como o de Balsis e Abuchaem se mostram excepcionais ao analisar o contexto econômico atual. Para grande parte dos millennials, a maior dificuldade está na falta de experiência ou de escolaridade exigida pelo mercado. De acordo com Carla Dieguéz, em um país de grande desigualdade econômica e social, no qual o acesso ao ensino superior ainda é restrito, boa parte dos jovens não alcança a escolaridade para obter melhores empregos com melhores salários. Eles se restringem ao mercado informal, com salários menores. “O contexto atual não é favorável a nenhum tipo de trabalhador, mas é mais difícil para os jovens, especialmente os menos escolarizados”, afirma. A experiência do empreendedorismo para Bianca Cavalcanti, de 20 anos, não foi tão feliz como aconteceu com Balsis e Abuchaem. A jovem que vive em São Matheus, periferia de São Paulo, viu na marca Cruz a oportunidade de expressar sua criatividade com a criação de uma linha de roupas femininas, quando existia apenas o masculino da marca. Após ingressar no negócio, investiu junto a dois sócios cinco mil reais, e lucraram todo o valor. O próximo passo era obter o dobro do lucro. Porém, uma dívida não paga no momento da confecção desencadeou a saída de Cavalcanti e a compra da marca por parte de um dos sócios. Hoje, trabalha no setor de beleza, realizando serviços a domicílio e conta que continua sonhando em seguir um negócio próprio mas, dessa vez, sozinha. Ainda que esse paradigma da geração Y preze por um modelo de trabalho com propósitos e ideais, o contexto econômico e social influencia diretamente nos resultados e experiências individuais. Cubas afirma que não se deve vender uma imagem glamourizada do empreendedorismo. “Ser empreendedor não é uma fórmula mágica e não é sinônimo de riqueza. São noites sem dormir, dificuldade financeira e muita burocracia. O empreendedorismo é ótimo, desde que se tenha os pés no chão”, esclarece a coach. Matheus Balsis abriu a MB Marketing Digital aos 17 anos de idade

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ENTREVISTA

DIVULGAÇÃO / PRODUÇÃO CULTURAL NO BRASIL

“De qual humanidade você é?” Nome conhecido entre as lideranças indígenas, Ailton Krenak fala sobre a vida e políticas relacionadas aos povos nativos brasileiros Texto por Camilla Millan e Seham Furlan 10

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ilton Krenak é uma das vozes que ecoam em favor da resistência indígena no Brasil. Em 1987, realizou um discurso impactante na Assembleia Nacional Constituinte no qual pintou seu rosto com jenipapo, em protesto à opressão sofrida pelas comunidades indígenas. Sua liderança resultou nos artigos 231 e 232 da Constituição de 1988, que garantem os direitos denominados originários, concedendo aos indígenas autonomia sobre suas terras tradicionais. Krenak é um importante protagonista em diversas iniciativas de lutas ameríndias, além de ser um dos fundadores da União das Nações Indígenas e da Aliança dos Povos da Floresta, assim como da ONG Programa de Índio. Na literatura, é autor de “O lugar onde a terra descansa” (2000), além de ter uma coletânea de entrevistas publicadas no volume 50 da Coleção Encontros, publicada pela Azougue Editorial. Aos 64 anos, Krenak persiste em sua luta pelos direitos indígenas, participando de debates e fóruns, como a Conferência Mundial da Água, realizada no dia 21 de março de 2018, em Brasília. Confira abaixo a entrevista de Krenak à ESQUINAS sobre as questões indígenas e do Brasil contemporâneo.

ESQUINAS Quais valores, em sua opinião, regem a mentalidade atual? Você acredita que elas podem ser alteradas? Não só no Brasil, mas globalmente, os valores que estão no topo são o egoísmo, individualismo e o “salve-se quem puder”. Em qualquer lugar do mundo, a radicalização dos pensamentos extremos está na moda. Você tem um coreano apertando o gatilho de um lado e Trump do outro. Mesmo quando fazem uma aproximação, essas são críticas oportunistas, cheias de desconfiança. Nós chegamos a um ponto em que é impossível a condição de escolher alguém para receber o Nobel da Paz, porque não tem nenhuma liderança trabalhando pela paz no mundo. Pode parecer uma visão muito ácida e sem esperança para alguém que está há quarenta anos em movimentos sociais, mas me parece que a possibilidade de mudança está nas camadas mais profundas do inconsciente. Mas eu acredito na mudança das mentalidades, porque se elas podem ser alteradas para pior, deve haver a possibilidade de serem alteradas para o que julgamos ser melhor. Quem sabe essas mudanças que estamos criticando sejam uma trajetória, um caminho entre o estágio, digamos assim, mais simples de entendimento da sociedade que estamos constituindo, que é global. Não temos mais o peso relativo das comunidades locais, regionais, porque o processo hoje é simultâneo: ao mesmo tempo que temos um evento local, há um correspondente global desse, na economia e no pensamento. ESQUINAS Em seu discurso ao receber o título de doutor honoris causa na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), você fala sobre a engenharia social, uma vez

ESQUINAS Quem foi um grande mestre na sua vida, cujos ensinamentos você busca compartilhar por meio do seu engajamento? Eu poderia dizer que foi meu pai ou meu avô, mas seria uma imagem muito resumida. Eu aprendi com todo mundo o tempo inteiro, a minha vida toda. Hoje já sou avô e estou aprendendo com a minha netinha, que tem quarenta dias, com os netos mais velhos, estou aprendendo conversando com você também. Eu tenho uma ideia de que nós podemos, o tempo inteiro, experimentar a realidade de viver numa comunidade de aprendizagem. Uma comunidade de aprendizagem é aquilo que ficou reduzido como escola, um lugar em que a experiência de formação ficou resumida. Para quem não teve a experiência dessa escolarização, aprender é participar de uma comunidade de aprendizagem, que é o mundo, é aberta, tendo todo tipo de influência e de informação. DIVULGAÇÃO

ESQUINAS Quais preocupações você tinha na época do seu discurso na Assembleia Nacional Constituinte e quais você tem atualmente? Há trinta anos, a realidade do Brasil era muito diferente do que vivemos hoje. Tínhamos uma campanha pelas Diretas Já, saindo de uma ditadura de vinte anos e as pessoas tinham muita disposição de reivindicar, de ir para a rua. Existia uma certa semelhança de expectativa entre pessoas do Norte, do Sul. Eu compartilhava dessa expectativa, de que virando o século XX, nós iríamos estar caminhando para um tipo de sociedade mais igualitária. Isso me animou a participar de uma campanha coletiva que resultou na minha intervenção no Plenário, de uma das Comissões da Assembleia Nacional Constituinte e propor o Capítulo dos Índios, que temos na Constituição hoje. Com relação aos direitos indígenas que nós projetamos, as garantias que conseguimos listar na Constituição estão sendo mantidas a duras penas, com uma constante violação desses direitos fundamentais. A diferença entre as minhas expectativas naquele tempo e agora estão descritas nesse quadro.

ressaltada pelo professor Darcy Ribeiro. Qual é a dimensão desse conceito para você e como ele te ajudou a entender o seu lugar no mundo? A aplicação da engenharia social que mencionei é a possibilidade de continuarmos atuando criticamente, mesmo vivendo em um ambiente totalmente diluído e alienado daquilo que seria um bem-comum. Eu posso atuar de uma maneira consciente no meio disso e ajudar a melhorar o circuito mais imediato de onde eu vivo, seja minha aldeia, minha casa, minha família. Isso é uma costura entre o sujeito e o ambiente em que ele vive. Quando disse que é uma engenharia social que o povo indígena mantém, característica dessas pequenas sociedades, eu estava exatamente falando dessa potência, dessa capacidade que é estimulada e apoiada, para que as pessoas não se percebam como indivíduos, no sentido sozinho, mas como sujeitos que integram outros coletivos, a ideia de sujeito-coletivo.

Em 1987, Krenak chocou a Constituinte pintando seu rosto com jenipapo

ESQUINAS No Brasil, há grande dificuldade de nos apropriarmos de nosso passado, tanto historicamente quanto em relação às nossas origens. Percebe-se na cultura indígena, a busca pela preservação da ancestralidade. Como isso pode ser proveitoso em outras realidades? Eu acredito que esse apego ao que seria uma memória, uma referência à ancestralidade não é algo que a gente possa transmitir uns aos outros, acredito que é o próprio exercício da memória. Ele é, ao mesmo tempo, orgânico, físico, uma herança cultural e o desenvolvimento dessa semente, desse contínuo. Tem um pequeno verso que diz “cantando, dançando, passando sobre o

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HENRY A.Y.N

HENRY A.Y.N

Ainda na ativa, Ailton Krenak continua participando de congressos

fogo, seguimos o passo dos nossos ancestrais no contínuo da tradição”. A ideia desse contínuo é a de algo sem começo e sem fim. É um mantra que algumas pessoas em alguns lugares do mundo – ciganos, índios, chineses, africanos – guardam e transmitem a suas linhagens. Eu tenho ainda dificuldade de imaginar como isso pode ser passado para outras situações, porque seria uma transmissão intelectual de herança cultural. Me parece que a própria ideia de ancestralidade é muito abstrata também. Quem são nossos ancestrais? O meu ancestral e o seu são os mesmos? ESQUINAS Creio que de uma certa forma, sim. Então nossa memória é remota a um tempo muito anterior a nossa herança imediata. Não é só essa coisa “de qual família você é? De qual tribo você é?”, mas “de qual humanidade você é?”. Se a gente pensar nesses termos, sim, a gente pode descobrir maneiras de compartilhar essa memória e estimular esse vínculo com valores que são ancestrais. ESQUINAS Você acredita que faz sentido a existência de um órgão federal como a Funai nos dias de hoje? Na Constituição de 1988 foi reconhecido pelo Estado brasileiro a capacidade de auto-organização das sociedades indígenas. Se você ler o artigo 231, é declarado que os índios são autônomos para viver nos seus territórios, demarcados e protegidos pelo Estado. Se a gente levar a termo isso, não tínhamos que ter uma agência do governo para tutelar os índios. A tutela foi superada pela Constituição de 1988. A Funai existe como uma agência do Estado brasileiro que deveria simplesmente reconhecer, promover a proteção externa, física dos territórios indígenas, documentar esses processos e não se meter na vida dos índios. Historicamente, ela é um obstáculo à autonomia dos índios. Ela se mantém apoiada na Lei 6.001, que é o Estatuto do Índio, do tempo da ditadura, feito em 1972 e promulgada pela Junta Militar. Se a gente fez uma campanha contra a ditadura, pelos direitos humanos e fizemos uma Constituição, é contraditório continuar mantendo uma coisa chamada “Fundação Nacional do Índio”. Ela é uma excrescência da ditadura. A Funai tinha que ser extinta.

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ESQUINAS E nada deveria ser colocada em seu lugar por parte do poder público federal? O Ministério das Relações Exteriores tinha que criar um departamento altamente especializado, com autoridades, diplomatas e embaixadores que falassem pelo menos vinte línguas indígenas, para tratar de questões externas, que são os povos indígenas. Os Yanomami falam português? Reconhecem esses símbolos: cartório, delegacia, enfermaria? Por que devem ser tratados como se falassem português, estivessem no Código Civil, como se tivesse toda cognição de um colono brasileiro? Eles tinham que se relacionar com alguém que fale Yanomami, que conheça essa cultura e que representasse o Estado brasileiro com os Yanomami e tinha que ser no Itamaraty, não na Funai. ESQUINAS Como os saberes indígenas considerados “não-acadêmicos” podem ser beneficamente incorporados ao sistema educacional? O trânsito entre esses mundos diferentes é pequeno, mas alguma coisa chega na literatura e nos livros de História, mas chegam por contrabando. Não é dado o crédito, a bibliografia, ele é apropriado. Tudo que é interessante e útil é utilizado, mas não diz de onde foi pego, tanto o acervo da biodiversidade, como da cultura é subliminarmente capturado, adaptado e pirateado. Mas isso acontece. Não existe um abismo entre o que nós vivemos no cotidiano, comemos, falamos e a cultura dos povos indígenas, os saberes. E são apropriados o tempo inteiro, na culinária, na linguagem, na geografia, na topografia. Se você olhar para um lado vai ver um lugar que chama Anhangabaú, mais para cima, Jaraguá. São nomes em língua Tupi. Tudo isso está no cotidiano, mas está como se fosse um fantasma. Aquilo que eu chamei de biodiversidade vem da Mata Atlântica, das florestas, o que está sendo usado na base de muitos dos nossos cosméticos. O conhecimento e tecnologia dos índios é apropriado pelo mercado, pelos brancos, sem crédito. Isso é biopirataria. Então, as universidades, os livros e bibliotecas estão cheios de saberes, apropriando-se de conhecimentos que não são acadêmicos. Depois que alguém fizer uma tese, um doutorado, isso vira produto deles também.


Opinião

O ensino do desespero A dor e a delícia de lecionar em um cenário caótico

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experiência com educação popular é como a música de Caetano Veloso: dois e dois são cinco. Seja na questão estrutural ou na forma como se dá o processo de aprendizagem, ela começa de maneira problemática. O projeto social em que fui um dos coordenadores e idealizadores, “Troca de Ideias”, visava proporcionar aos alunos do ensino médio da Escola Nide Zaim Cardoso, no município de Mairiporã (SP), uma espécie de curso preparatório aos vestibulares, mais especificamente ao Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Além da preparação, análoga a qualquer outro cursinho, o projeto visava sensibilizar seus participantes, alertá-los e estimulá-los sobre a competitividade do sistema educacional brasileiro. O nível de conhecimento dos poucos participantes do projeto era desolador, especialmente nas matérias de ciências da natureza e cálculo. Encontramos ali uma defasagem técnica preocupante. Não que os alunos não dominassem as somas e divisões, nem que não soubessem aquilo que causava a doença de chagas, eles simplesmente demoravam para chegar às respostas. E se o domínio de um conhecimento básico já estava precarizado logo de saída, os assuntos mais complexos também estariam. A culpa é de quem? Do Estado. A necessidade de um Projeto Social de Educação Popular, visando equiparar o quadro da Escola Pública ao da Particular, mostra uma lacuna: o poder público não chega em todas as camadas da sociedade. Seja no Troca de Ideias, ou, nos cursos oferecidos pela USP, como o Arcadas ou o Poli-USP, a mera idealização deste tipo de projeto é uma forma de resistência da sociedade civil em espaços ignorados pela política educacional. Outro efeito, de caráter mais individual, é como estas questões afetam o ânimo de quem vive essa situação. O aluno atendido por estes projetos, por vezes, quando tem a consciência daquela situação desfavorável de aprendizado provocada pela negligência do Estado, entra em um estado de desânimo.

Não é exagero dizer que ante uma situação socialmente complexa nem todos tenham a gana para lutar por uma vaga em universidade pública, por exemplo. E a situação tende a piorar. Com o congelamento de gastos pelo governo federal nas áreas de Saúde e Educação nos próximos 20 anos, entre outros campos do serviço público, fruto da aprovação da PEC 241 em outubro de 2016, o acesso à universidade também será paulatinamente prejudicado. É difícil imaginar que os gastos se mantenham os mesmos em duas décadas, sustentados apenas pela correção inflacionária. Então, aqueles que dependerão de uma escola pública, encontrão um cenário ainda mais sucateado do que o atual. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) divulgou em seu ranking da educação, do ano de 2017, que em um universo de 36 países, o Brasil amarga a penúltima posição, à frente somente do México. Outro levantamento, do ano de 2016, do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA), coloca o Brasil em 59º lugar em leitura, 63º em ciências e 65º em matemática. O número de países avaliados pelo PISA conta com 70 nações. É com esta realidade alarmante que convivemos hoje, e que possivelmente, só piorará com a redução de investimento na Educação. Assim, o ensino popular é apenas a ponta de uma crise educacional precedente. O sistema brasileiro está entre os piores do mundo, seja no quesito pedagógico, seja na estrutura pública, o que faz com que qualquer tentativa de solução imediata não passe de charlatanismo barato.

Gabriel Cruz Lima é graduando do 2º ano de Jornalismo na Cásper Líbero e de Letras na FFLCH-USP. Trabalhou com educação popular na cidade de Mairiporã (SP) no ano de 2017.


....EDITORIA DOSSIÊ

O que está por vir Eleições de 2018 são oportunidade para discutir o futuro do Brasil

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m tempos complexos, ESQUIse debruça sobre as Eleições, partidos políticos e movimentos juvenis para tentar entender o futuro que se avizinha Para compreender qual será o destino do Brasil nos próximos anos, é preciso compreender como as novas gerações se relacionam com a política. Ao mesmo tempo, há jovens ocupando seu lugar na política, enquanto outros preferem se manter isentos ou mesmo distantes da questão. Alguns buscam a filiação em partidos políticos ou criam seus próprios grupos, mas também existem os que preferem se isentar da política, por desinteresse, falta de esperança e confiança. A relação das gerações mais recentes com a política se dá de diferentes maneiras. Pode ocorrer na militância em um movimento no qual moças e rapazes se sentem representados, na escolha por um candidato, na predileção por partidos tradicionais e também na forma como se posicionam com opiniões contrárias. Mas, para entender as novas mentalidades no quesito político, é preciso se debruçar sobre as manifestações em que os jovens estão presentes e identificar suas motivações e anseios. A seguir, ESQUINAS realiza uma análise jornalística do que se pode esperar para o futuro do País. Um panorama de como os jovens estão agindo, das principais propostas e riscos que os candidatos à Presidência oferecem e como tem se dado as ações de importantes partidos políticos da Nação. Um mergulho no presente do Brasil para saber o que nos aguarda no futuro. Prognósticos necessários em forma de reportagens para se lançar luz a tempos obscuros. NAS


Dilemas da Constituição Cidadã Carta Magna completa três décadas sob mudanças e sem atingir seus principais objetivos Texto por Giullia Chechia Mazza

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Constituição de 1988, promulgada durante o governo do Presidente José Sarney e três anos após o fim do Regime Militar brasileiro, completa trinta anos em vigor em 5 de outubro de 2018. Naquela ocasião, Ulysses Guimarães acentuou o caráter fundamental da nova Carta Magna. “É o documento da liberdade, da democracia e da justiça social do Brasil”, disse. Isso caracteriza a “Constituição Cidadã”, como ficou conhecida. O apelido veio da garantia de direitos e liberdades individuais assegurada em seu corpo. Entretanto, muitos deles, grafados nos artigos em suas cláusulas, não são colocados em prática atualmente. Os direitos sociais fundamentais, como educação, saúde, moradia e segurança, em teoria deveriam alcançar todos os cidadãos. Na prática, não é exatamente o que acontece. O País é um dos 25 mais violentos do mundo e apenas metade dos seus residentes possuem o ensino fundamental completo, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). “O documento traduzia todas as aspirações, sentimentos e direitos aos cidadãos”, resume Mauro Benevides, vice-presidente da Assembleia Constituinte de 1987. Ele exaltou a comemoração dos trinta anos da Carta, que se concretizará com uma grande festa em outubro de 2018. Benevides afirma que o papel da Constituição vem sendo cumprido desde seu início até os dias atuais. Essas garan-

tias, que ele acredita serem passíveis de sofrer mudanças, conduzem o Brasil a um sistema democrático, podendo suprir todas as demandas da sociedade atual com a correção de alguma omissão ocorrida na sua formulação. RESQUÍCIOS DE AUTORITARISMO. Por outro lado, Marcelo Ferraro, advogado pela Universidade de São Paulo e historiador pela Universidade de Harvard, considera a Constituição brasileira frágil, apesar de bem-intencionada. Segundo ele, não há condições de sustentar um conjunto de normas que prezam pela democracia e pelo bem-estar social, mas que se sobrepõem a uma sociedade historicamente marcada pelo autoritarismo e pela concentração do poder em grupos específicos. Ferraro comenta que a extensão da Carta e a quantidade de emendas implementadas no decorrer dos trinta anos em vigor apresentam um indício da falta de saúde política no País. Mesmo apresentando uma problemática em sua execução, o acadêmico julga perigosa uma reforma estrutural política e a reformulação da legislação na conjuntura pública atual. Essa alteração, inserida em um cenário extremamente polarizado, seria impulsionada por interesses políticos, acarretando em uma Constituição pior para a população. O secretário de formação política do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), Gabriel Marcondes, conta que a sigla considera a Carta um reencontro da

sociedade brasileira com as liberdades, com a democracia, com direitos individuais e com avanços sociais. Ele também admite possíveis reformas sem alteração dos pontos essenciais do texto, enxergando um excesso de detalhamento no corpo legal. “Colocando em uma balança, precisamos de poucas reformas, já que boa parte do texto deve ser mantido”, afirma Marcondes. Diferente do psdbista, Mayara Paixão, filiada ao Partido dos Trabalhadores (PT), considera a Constituição avançada, uma vez que sua implementação se deu em um momento de redemocratização nacional. Todavia, o cenário brasileiro não corresponde aos direitos grafados na Carta já que o entrave para executá-los está na aplicação da legislação. Afinal, a legislação é movida por interesses políticos particulares, como a jovem diz. Paixão considera que a melhor medida a ser tomada para dar cabo a esse bloqueio da aplicação da legislação é a convocação de uma nova Assembleia Nacional Constituinte, a fim de rever e revogar medidas antipopulares implementadas e adicionadas à Carta nos últimos anos. Mesmo divergindo em diversos aspectos, Benevides, Ferraro, Marcondes e Paixão possuem um ponto em comum: todos compreendem a importância das Eleições de 2018, enxergando-as como o primeiro passo para a prática dos direitos que hoje são apenas uma utopia para a população brasileira.

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Os salvadores da Pátria Candidatos à Presidência defendem velhas propostas e ideias desgastadas Texto por Henrique Artuni, Larissa Basilio, Pedro Garcia e Thiago Bio

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escolha de um candidato para representar o mais alto cargo do Poder Executivo é algo que leva em conta diversos fatores. Um deles é analisar as propostas em aspectos importantes para o País, como economia, segurança pública e direitos humanos. Mas tudo o que é sugerido e idealizado pelos candidatos também possui contrapontos que merecem atenção. De forma suscinta, ESQUINAS traz um panorama geral do que pensam os candidatos mais bem colocados em pesquisas de opinião à Presidência do Brasil.

MARINA SILVA (REDE)

JAIR BOLSONARO (PSL) Um dos políticos mais polêmicos da atualidade, Jair Bolsonaro, se candidatará à Presidência pelo partido ao qual se filiou em março de 2018. Ex-militar, é deputado federal desde 1988, mas só tem duas propostas de lei aprovadas. Tem ganhado destaque na internet e, cada vez mais, cresce sua popularidade. Apoia o Estado mínimo, o espírito nacionalista, o fim do estatuto do desarmamento e se posiciona contra movimentos sociais. Caso eleito, existe a possibilidade de retrocessos nas liberdades individuais e direitos humanos.

Ex-ministra e senadora, Marina se lança pela terceira vez na corrida presidencial pelo partido que ajudou a fundar há três anos. Posiciona-se contra a reforma trabalhista e da Previdência, opõese às privatizações das empresas estatais e também pontua em seu discurso a polarização política. Integra um partido nanico e não tem fortes alianças, sendo criticada, inclusive, por outros fundadores de seu partido.

GUILHERME BOULOS (PSOL) Além de abraçar os movimentos sociais, defende a reestatização da Petrobras e deseja revogar a PEC que restringe por 20 anos os gastos públicos. No campo econômico, o político propõe o aumento do Imposto de Renda das faixas mais ricas da população e não apoia as reformas trabalhista e da Previdência. Boulos pode desagradar, e muito, a direita nacional com suas propostas políticas, o que aumentaria a resistência do Congresso para colocá-las em prática.

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HENRIQUE MEIRELLES (MDB) O ex-ministro da Fazenda de Michel Temer se filiou ao MDB. O político apoia o fim das intervenções estatais na Petrobras, no Banco do Brasil e na Caixa Econômica Federal. Defensor da manutenção da Reforma da Previdência, Meirelles pretende alterar a legislação trabalhista. Sendo um dos responsáveis pelo congelamento dos gastos públicos, considera a medida essencial para as finanças do País. Como emedebista, tem índices baixos de aprovação por conta do Governo Temer.


CIRO GOMES (PDT) Contrário à privatização da Petrobras, quer anular a reforma trabalhista de Temer e anseia adotar um modelo novo de aposentadorias, pautado na capitalização, além de querer integrar as polícias do País. Defende a tributação sobre dividendos e lucros dos acionistas, aumento do imposto sobre heranças e diminuição nas isenções tributárias. Nem à direita, nem à esquerda, ainda com um discurso pouco equilibrado, Gomes corre o risco de não agradar nenhum dos lados, dificultando sua governabilidade.

GERALDO ALCKMIN (PSDB) Defensor da reforma trabalhista de Temer e de mudanças no setor previdenciário, o pré-candidato tucano, em matéria de economia, dá destaque às privatizações e na atração do capital externo, vendo nas exportações uma via rápida para reativar a indústria e os empregos. Pretende criar uma Guarda Nacional, formada por jovens egressos do serviço militar obrigatório, que poderia também trabalhar nas polícias estaduais. Sua imagem, fortemente associada à de Temer e a reprovação interna que tem entre os eleitores do PSDB, não é o melhor cartão de visitas para essas eleições.

MANUELA D’ÁVILA (PCdoB)

ÁLVARO DIAS (PODEMOS) O senador propõe, caso eleito, “refundar a República” nos primeiros 100 dias de seu mandato. Para tanto, promete investir em mudanças no sistema político, numa reforma tributária para impulsionar a economia e na privatização das estatais. Defensor da flexibilização do Estatuto do Desarmamento, Dias vê essas reformas iniciais como necessárias porque mexem profundamente com interesses políticos e corporativos caros ao Congresso. A pressa, contudo, pode ser prejudicial a seu governo. O risco é grande e pode retomar as falhas de Temer, “retrocedendo” em mais alguns anos o desenvolvimento do Brasil.

Desde 1989 sem lançar um candidato à Presidência, o PCdoB aposta na gaúcha à disputa. A deputada federal assume como tema central de sua candidatura a política econômica e a retomada do crescimento do País, além de afirmar que colocará a economia a serviço da população. Em contrapartida, por ser parte da esquerda, a candidata enfrentará resistência no Congresso, além de precisar lidar com sua imagem fortemente vinculada ao PT, tão maculada nos últimos anos.

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Tempos de mesóclise Dominando a política há décadas, o MDB deixa o governo com desaprovação recorde Texto por Henrique Artuni

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m 2017, o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) tentava se preparar para a corrida eleitoral com algum candidato que abraçasse o legado do governo. Um ano depois e um “P” a menos, Temer deixou de ser uma possibilidade e Henrique Meirelles entrou como pré-candidato, disposto a bancar a própria campanha, longe da unanimidade no próprio partido e com poucas intenções de voto nas pesquisas (entre 0 e 1% para o Datafolha, em junho de 2018). “Não sou candidato do governo, como eu não sou candidato do mercado. Sou candidato do crescimento, do emprego e da renda. Nossa proposta é o avanço contra o atraso”, afirmou Meirelles em entrevista ao jornal mineiro O Tempo. Temer anunciou o ex-ministro como pré-candidato em um evento chamado “Encontro com o Futuro”, marcado também pelo lançamento de um documento homônimo com o balanço da administração emedebista. No documento, o MDB recorda a aprovação do teto de gastos, a reforma trabalhista e é dado destaque à recuperação da economia e à confiança no crescimento associado à iniciativa privada. Ainda assim, nem esse discurso, nem a realidade conseguiram garantir ao governo o mínimo de aprovação popular. Na última apuração do Datafolha, em junho, 82% dos entrevistados avaliaram o governo como ruim ou péssimo. Para o cientista político João Alexandre Peschanski, o governo acentuou um processo já corrente na Presidência de “um distanciamento das decisões em Brasília da realidade material das pessoas, em

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que os atos de governo acabam sendo, em demasia, influenciados pelas dinâmicas do que ocorre entre os Três Poderes”. “É um caso único de governo não eleito que não conseguiu atingir suas ambições. No modo como subiu ao poder [por meio do impeachment de Dilma Rousseff ], Temer teve todas condições institucionais e liberdades fiscais”, acredita Peschanski. Entre as causas desse malogro, a falta de coerência nas decisões econômicas, sem a presença de políticas propositivas, voltadas a minimizar os efeitos da crise. Em consequência, Temer não arranjou as condições de sua sobrevivência política ou mesmo preparou o terreno para Meirelles. Nada mais distante da mobilização que o MDB original causou anteriormente no Brasil – e que não ressurgiu quando o partido quis voltar a ser movimento. Com a instauração do bipartidarismo pelo AI-2 em 1965, o MDB reuniu os então extintos partidos e aglutinou interesses dos movimentos sociais e sindicais da época. Quase trinta anos depois, a sigla parece representar tudo, menos aquela mesma que apoiou as greves em 1979, ou que, encabeçada por Ulysses Guimarães, trabalhou arduamente pela “Constituição Cidadã”, em 1988. Para Peschanski, essa “mudança” pode ser explicada na análise da própria formação do partido. “O MDB não nasce como propositivo, mas como um partido anti-Arena, anti-ditadura. Ele é sempre definido por uma negação”, afirma. “É um partido que acaba englobando de tudo”. Em 1980, cria-se o PT, e em 1988, o PSDB, e neles vão-se os nomes com os perfis mais alinhados e com tendência

ao progressismo. No último racha, Fernando Henrique Cardoso, então líder do PMDB no Senado, chamou a associação de “clientelista e fisiologista”. Trinta anos depois, tais julgamentos persistem na boca de seus críticos, mas os valores do Estatuto do Partido atraem uma renovada ala jovem. Bruno Gabriel, presidente estadual da Juventude Emedebista em São Paulo, afirma que o perfil do movimento é “plural, democrático, com jovens espalhados pela periferia, pela classe empresarial, com os trabalhadores, integrada aos diversos movimentos ligados a cada uma dessas frentes”. Sobre o retorno à sigla MDB, acredita ele que a mudança resgata a história do partido “que sempre representou as massas, do qual todos os outros surgiram. Essa mudança da sigla nos dá a possibilidade de recriar o partido como um todo, investindo e formando novas lideranças”. Futuramente, nos livros de História, talvez o mandato de Michel Temer como presidente do Brasil fique como a mesóclise nas gramáticas brasileiras. O tipo de colocação pronominal restrita a formas verbais no futuro, praticamente abolida da fala do País, que gera discursos empolados e ações dúbias na maioria dos brasileiros que ouvem tal uso. Mesmo assim, o MDB figura entre as três maiores bancadas de parlamentares, com 51 deputados e 18 senadores que, mesmo não sendo todos da mesma opinião, cheios de brigas internas, são figuras de longa data no sistema político nacional, com muito poder de decisão. Quem quer que seja eleito em outubro, a menos que seja antidemocrático, terá que saber lidar com toda essa longeva elite.


Da sopa de letrinhas ao caça-palavras

Congregações políticas brasileiras abandonam as siglas e apostam em nomes sem o termo “partido”

Texto por Larissa Basilio

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ois mil e dezessete, ano pré-eleitoral, a movimentação nos partidos já se iniciava. Campanhas, bordões, escolhas de candidatos. Eis que, sem ninguém esperar, uma nova onda surge. É o momento de se afastar do termo “partido”. Legendas são rebatizadas ignorando a letra “P”. A ruína e o desmoronamento do cenário político brasileiro atingiram até os nomes e, para se desassociar de um cenário caótico, a aposta é adotar palavras de ordem que tragam um ar de novidade e representem, de algum modo, os anseios da população insatisfeita com a atual política nacional. Segundo João Alexandre Peschanski, doutorando em Sociologia pela Universidade do Wisconsin-Madison, nos Estados Unidos, e professor de Ciências Políticas da Faculdade Cásper Líbero, essa tendência pode ser encarada como uma busca dos partidos pela desagregação da ideia de política, já que, nos últimos anos, ela tem carregado um sentido negativo, quase pejorativo. “Por um lado, você tem um desgaste do instrumento político ‘partido’. Entretanto, nos últimos anos, num contexto onde tomar partido é uma posição de não conciliação, acredito que haja essa leitura de precisar se afastar do que é ser um partido. Por outro lado, existe uma tentativa, de certo modo, de modificar a expressão do que é juntar pessoas em um coletivo político”, afirmou Peschanski. O cientista lembra que isso acontece inclusive com organizações sociais. Elas mudam algumas siglas, mas não se modificam de fato. Carolina de Paula, pós-doutoranda no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) acredita que a mudança é algo mais

externo, é como se apresentam para a sociedade “Eles mudam a embalagem, por conta da Lava Jato, da rejeição. Tentam se desassociar, no fundo é uma novidade que de novidade não tem nada”, afirma. Avante, Democracia Cristã, Livres, Movimento Democrático Brasileiro (MDB), Patriota, Podemos, Progressistas e Rede Sustentabilidade, sem se esquecer do Democratas – antigo Arena, PDS e PFL, pioneiro nessa nova onda de alterações. Esses são apenas alguns dos exemplos de partidos que desistiram da letra inicial que comumente acompanha as siglas. Se eles perderam, ou desgastaram suas ideologias de origem, sobram-lhes apenas a marca. Os nomes se tornam slogans mercadológicos para vender uma ideia há tempos obsoleta. Se tomar partido gera descontentamento e as ideias não conquistam por si só, chegou a hora de comercializar a política: compre a ideia do “meu partido”. Um nome atraente e inovador tenta conquistar o eleitorado tão desiludido. Desde a Constituição de 1988, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) contabilizou 14 mudanças em nomes de partidos. O País possui mais 58 siglas partidárias pedindo registro no TSE e, desse número, 12 não utilizam o termo “partido” em sua nomenclatura. Existem ainda aqueles que, apesar de utilizarem a palavra em seu nome, solicitam à Justiça Eleitoral a utilização de um nome fantasia, sem o termo, como é o caso do Partido Novo, que costuma usar apenas a segunda parte do seu nome. Paula também afirma que, além de tudo, alguns movimentos novos, de fato, foram aparecendo, principalmente após 2013. Foram iniciativas de renovação política, que não viraram partidos. É mais fácil, para alguns deles, aliarem-se

aos partidos, que também buscam outros nomes para renovação. Segundo uma pesquisa realizada pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) de São Paulo, divulgada em outubro de 2016, apenas 7% dos brasileiros dizem confiar nas siglas partidárias. O Congresso Nacional, principal celeiro dos partidos políticos brasileiros, tem um pouco mais de credibilidade: o número sobe para 10%. Cabe lembrar que, no cenário internacional, isso também acontece, como destaca Carolina de Paula. Essa tendência, portanto, não é exclusividade do Brasil e indica que, lá fora, congregações políticas andam também um tanto quanto desgastadas. A dança de siglas pode trazer também situações inusitadas. Na Espanha, o Podemos, partido de esquerda criado em 2014, criticou o homônimo brasileiro, dizendo que estava surpreso por “amigos de Temer” adotarem o nome. Outros exemplos de nomes criativos que podem trazer desavenças futuras no cenário global são o En Marche!, que colocou Emmanuel Macron na Presidência francesa no início de 2017, e o Aurora Dourada, partido conservador neonazista grego. Esse movimento camaleônico não passa de mera formalidade. Alteram-se os nomes, mas as ideias permanecem. Em português claro: é trocar a sopa de letrinhas por um velho caça-palavras que distraia o eleitor dos velhos problemas da política brasileira e mundial. Na prática, a busca pelo nome “descolado” da vez é apenas a tentativa de criar uma espécie de sobrevida para partidos que estão fadados a imagens enraizadas no inconsciente nacional. Com o pleito de outubro de 2018, resta a pergunta: qual será a próxima palavra?

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Movimentos extremos em tempos complexos Marcados por sentimentos contraditórios, jovens brasileiros buscam novas maneiras de fazer política no Brasil Texto por Vanessa Nagayoshi

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pós o impeachment de Fernando Collor de Mello, em 1992, incentivado pelo movimento estudantil dos jovens caras-pintadas, o País silenciou. Somente em junho 2013, quando foi anunciado um aumento de vinte centavos na passagem dos transportes públicos, o Brasil novamente parou. De acordo com o Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope), 63% dos manifestantes tinham idade entre 14 e 29 anos. “Antes de 2013, nenhum assunto conseguia unificar todo esse sentimento de retrocesso”, afirma o estudante Vitor Fuks, de 19 anos. Ele é filiado ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e faz parte dos grupos Juntos e Movimento Esquerda Socialista (MES), que são duas das correntes da sigla. Fuks começou a se interessar por política no ensino médio, especialmente em 2016, quando ocorreram as ocupações das escolas públicas de São Paulo devido ao descontentamento diante das medidas educativas do governo de Michel Temer. Ao ingressar na faculdade, Fuks decidiu se filiar ao partido. O mesmo aconteceu com a estudante de Direito Mariana da Costa, também de 19 anos, que passou a ter uma proximidade maior com a política quando sua escola, ETEC Professor André Bogasian, em Osasco, participou do movimento secundarista em 2016. Negra e de classe baixa, conta que acontecimentos do seu dia a dia contribuíram para seu engajamento político. “Eu falava que queria entrar numa

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faculdade de Direito e as pessoas diziam ‘nossa, mas é muito difícil para você entrar lá’ e para a minha amiga branca, que fazia ensino médio comigo, diziam ‘você consegue’. Hoje nós estudamos na mesma sala de aula”, relata. Estudante de Publicidade e Propaganda, Vanessa Soares, de 23 anos, prefere não se pronunciar em relação ao seu posicionamento político por não ter conhecimento aprofundado sobre o assunto. Apesar disso, Soares defende a importância de estar sempre consciente do que está acontecendo no País, mas sem opiniões extremas. “É essencial saber, mas respeitar a opinião do próximo também”, diz a universitária. Em tempos de forte debate político, sobretudo nas redes sociais, o extremismo e a intolerância acabam se sobressaindo. Júlia Fróes, de 22 anos, ex-estudante de Jornalismo, precisou criar outro perfil no Facebook somente para o seu círculo social da faculdade por conta de perseguições. “Na época, eu apoiava o Movimento Brasil Livre (MBL). Quando descobriram isso foi um caos, ficavam o tempo todo atrás de mim”, conta. Imersa na política desde nova, Fróes declara que grande parte do seu interesse e engajamento provém de sua família. Seu pai é português e sua mãe, russa. Vieram para o Brasil fugindo dos regimes autoritários de Salazar e da União Soviética em seus países de origem. “Meu pai é historiador e tem um posicionamento mais de direita, enquanto minha mãe tem um viés mais social, então sempre tivemos um

diálogo mais equilibrado”, observa. Fróes era associada do Livres, do Partido Social Liberal (PSL), mas saiu após a filiação do deputado Jair Bolsonaro, por não concordar com seus posicionamentos. Durante a ditadura militar brasileira, sua mãe sofreu preconceito por ser filha de estrangeiros e participava ativamente do Movimento Tortura Nunca Mais. Naquela época, a repressão e o autoritarismo do regime fomentaram o surgimento de mobilizações estudantis, que promoviam protestos e reivindicações pelo Brasil e foram fundamentais para a resistência e fim do governo militar. Hoje, os espaços e instrumentos de atuação política mudaram, uma vez que a participação não tem se articulado somente de forma explícita, como ir às ruas. “Não acho que os jovens de hoje são alienados. A gente vê pelas manifestações, pelo debate político nas redes sociais, que as pessoas têm mais opiniões”, afirma Costa. Durante a história, a juventude sempre esteve na vanguarda. A cada geração, uma nova mentalidade se forma para quebrar tradições. No dia a dia, Costa pratica pequenas ações que refletem nos seus princípios e expectativas para o futuro. Na sua casa, sendo a primeira integrante da família a ingressar na faculdade, procura passar conhecimentos sobre política, a fim de gerar reflexões e senso crítico. “Essa é a principal tarefa dos jovens: ser locomotiva das grandes mudanças e transformações da sociedade. O que falta é a compreensão desse papel histórico”, conclui Fuks.


Sátira digital Memes já estão no museu e são cada vez mais usados como forma de expressão política no Brasil Texto por Luana Gotardo

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s memes podem ser entendidos como uma ideia em imagem digital, que viraliza rapidamente por meio da internet, correspondendo em geral à alteração humorística ou satírica de outra imagem. O termo vem do grego mimema, que significa algo imitado, copiado. O biólogo Richard Dawkins usou a expressão pela primeira vez em 1976 no livro “O Gene Egoísta”, em que descreve o ser humano como fruto de dois tipos de replicação constante: a de genes, por meio da formação do código genético, e a de elementos culturais, chamados de “meme”. O conceito, na época, dizia respeito aos componentes responsáveis pela formação social de um indivíduo, desde suas superstições até a política de uma sociedade. Com a chegada dos ambientes digitais, o conceito se tornou insuficiente. Pensando nisso, a Universidade Federal Fluminense (UFF) passou a proporcionar desde 2012 encontros regulares entre os alunos para o estudo dessa forma de expressão que só crescia. A iniciativa, em 2015, passou a ser o #MUSEUdeMEMES, “dedicado à preservação da memesfera brasileira”, como se autodefine. Viktor Chagas, coordenador do projeto, afirma que o museu surgiu da busca dos próprios alunos por bibliografias e conhecimento a respeito do tema. Memes são um caminho mais fácil para acessar diversos assuntos, como a política. Usando piadas simples, imagens e associações a ícones da cultura pop, eles simplificam e transformam acontecimentos complexos em entrete-

nimento, tornando-os mais atrativos. “Estamos acostumados a encarar a política como uma atividade séria e que demanda muito rigor. Mais pessoas ganharam acesso ao debate político, pessoas que não tinham o costume de debater política”, comenta Chagas. A criadora da página Esquerdogata Felinazi do Facebook, com cerca de 40 mil curtidas, que não quis ser identificada, acrescenta que esse processo de transformar uma ideia complexa em um conteúdo imagético simples, engraçado e que gere uma reflexão no leitor é o maior desafio de quem os produz. Eles tornam o debate público acessível, interessante, e podem ser o estopim para uma curiosidade maior pela política. João Victor Roubertie, de 19 anos, anarcocapitalista e dono da página República do Ancapistão, com 12 mil curtidas, não hesita ao declarar o papel que essa forma de comunicação teve na sua formação política. O meme fez ele se interessar e pesquisar sobre economia e o movimento que defende. Esse interesse pode ser gerado também pelo questionamento da veracidade das informações dos memes. Foi o que influenciou Gabriel Amorim, colaborador de 16 anos da Corrupção Brasileira Memes, com um milhão de curtidas. Por causa dessa dúvida, passou a se aprofundar no debate político e a preparar seu próprio conteúdo, divulgado entre amigos e em páginas da internet. Por mais que a viralização de memes envolva pequenas ações individuais, como curtidas e compartilhamentos em redes sociais, o coordenador do #MUSEUdeMEMES afirma que eles dão vazão a uma ação coletiva. Isso se dá pelo acúmulo das interações, o que chama atenção. Assim, o conteúdo está mais próximo da população e gera um maior sentimento de pertencimento dentro do movimento po-

lítico. Amorim relaciona a viralização à quantidade de pessoas que concordam com a ideia expressa no meme. Isso faz o jovem sentir sua opinião mais ouvida e o motiva a continuar a produção memética. Essa capacidade de retórica causada pela grande propagação também funciona como uma forma dos representantes políticos se aproximarem das camadas populares. Rômulo Teixeira, de 23 anos, é administrador do Partido Memista, com 18 mil curtidas. O jovem classifica a página como “de direita, mas que atira para todos os lados” e lembra até hoje do meme que o fez começar a pensar sobre ideologias políticas. Ele o descreve como um personagem usando um computador que não funcionava, antes deste exibir uma imagem do martelo e da foice, símbolos do Comunismo. O meme alude ao sistema como falho, que, tal qual o computador, “não funciona”. Essa forma de comunicação foi também explorada em 2016, durante o processo de impeachment de Dilma Rousseff. Na ocasião, aqueles que eram opostos à então Presidente disseminavam ideias machistas e difamadoras de sua imagem. Porém, ainda eram de produção e circulação popular. Chagas não pode afirmar com certeza qual o futuro dos memes, mas acredita que serão cada vez mais utilizados por membros da política para disseminar suas campanhas, o que será bastante observado nas eleições de 2018. Podem ser apropriados por políticos para a manutenção do poder, mas não deixarão de ser uma manifestação cultural de toda a população.

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O último ninho do tucanato

Há mais de duas décadas no poder paulista, o PSDB enfrenta os desafios trazidos ao partido pela Operação Lava Jato

Texto por Matheus Fernandes

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pesquisa realizada pelo Datafolha em junho demonstra que os maiores índices de in tenção de voto para as eleições do Governo de São Paulo pertencem ao Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Em um cenário com o antagonismo de Paulo Skaf, pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB), 22% dos votos vão para o partido. Sem a presença de Skaf, esse número sobe para 36%. A preferência do eleitor paulista pelos tucanos existe há 24 anos. Segundo Floriano Pesaro, deputado federal pelo PSDB em São Paulo, o partido teve duas fases importantes. A primeira foi a da reconstrução econômica do estado, que começou em 1995 com Mário Covas, e, posteriormente, continuou com os trabalhos de Geraldo Alckmin de 2001 a 2006. “Assumimos um estado em frangalhos, quebrado em 1995. Nos primeiros dez anos, o estado foi reordenado do ponto de vista gerencial, financeiro e orçamentário”, afirma Pesaro. O segundo estágio se deu com grandes investimentos durante os governos de José Serra, Alberto Goldman e Geraldo Alckmin, como afirma o deputado. Para o político, a população de São Paulo reconhece a boa governança do partido, elegendo e reelegendo governantes tucanos.

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Revista Esquinas

O cientista político e professor da Universidade de São Paulo, José Álvaro Moisés, ex-secretário do Audiovisual durante o segundo mandato na Presidência da República de Fernando Henrique Cardoso, explica que “o PSDB é um partido que tremula a bandeira da austeridade”, ou seja, preocupa-se com as contas públicas e com um controle fiscal rigoroso. Talvez por Mário Covas ter sanado os déficits deixados por Orestes Quércia, filiado ao MDB na época, mais eleitores se identificaram com o partido, como defende Moisés. Edison Petenussi, sociólogo e professor do Colégio São Luís, localizado na região da Consolação, em São Paulo, acredita que a Social Democracia é uma boa saída política, que vai ao encontro do anseio do cidadão paulista. Ele ressalta, porém, que políticos da sigla estão sendo investigados em escândalos de corrupção pelo País, o que pode reduzir os índices de intenção de voto do partido em outubro de 2018. Por sua vez, a reconstrução econômica citada pelo deputado tucano Floriano Pesaro é criticada por João Paulo Rillo, também deputado federal, que atua em São José do Rio Preto pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). “A partir de Alckmin, o que houve foi um imenso uso da máquina (partidária) pelo interior do

estado”, analisa Rillo. Ao ser questionado sobre a atual força eleitoral do PSDB, responde com firmeza que o programa de governo do partido nada tem de novo a oferecer. “Estão totalmente sem rumo e, mais do que nunca, temem as urnas”, diz. Na segunda parte da pesquisa mencionada no início dessa reportagem, o Datafolha questiona o índice de rejeição de cada candidato para o cargo ao Governo paulista. O PSDB fica em segundo lugar, com 33% das desaprovações, um ponto percentual a menos em relação ao partido mais rejeitado, o MDB com Paulo Skaf. Aliados à perspectiva proposta por Petenussi, os resultados da consulta do instituto do Grupo Folha indicam os efeitos da Operação Lava Jato na popularidade tucana em São Paulo, mostrando um possível enfraquecimento do partido nas eleições de 2018. Seja pela reorganização do Orçamento paulista, pelos investimentos ou pelas administrações aplicadas com moderação, casos apontados por Moisés, o Partido da Social Democracia Brasileira ainda possui forte apoio dos eleitores no Estado, legitimando sua história de quase 25 anos no comando de um dos estados mais importantes do País.


Opinião

Os eleitores do mito As dificuldades de realizar um diálogo político e preparar uma entrevista

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uinta-feira, 30 de novembro de 2017. Um lindo dia de sol e muito trabalho seguido de pendências da faculdade que me levam a dar uma pausa. Abro um portal de notícias, desses mais populares, e me deparo com notícias sobre o candidato à Presidência da República, Jair Bolsonaro. São de cunho polêmico e indicam quão ofensivos são os ideais em relação às comunidades quilombolas do ex-membro do Partido Social Cristão (PSC), que se elegerá neste ano com a ajuda do Partido Social Liberal (PSL). Não penso duas vezes e abro o Facebook para um pequeno protesto pessoal. Em vez de denunciar suas alegações e fazer um desabafo “à la textão”, sigo pelo lado reflexivo e faço uma pergunta aos meus colegas da rede social. “Como confiar no potencial de um candidato a Presidente da República que está há 26 anos no Congresso e não aprovou mais de dois projetos?”, digito. Em um primeiro momento, comentários que seguem a lógica da pergunta, muitos contra a figura política de Bolsonaro e risadas. E tudo se mantém na paz pelos meses seguintes. Outra quinta-feira, 1º de março de 2018. As portas se abrem para um novo horizonte, aquele horizonte jornalista do qual sempre quis fazer parte. Decido que vou escrever uma reportagem sobre o perfil dos eleitores de Bolsonaro e vou atrás desse público. Mais uma vez, abro o Facebook, agora para entrar num grupo pró-Bolsonaro para uma pequena pesquisa. “Olá, boa tarde. Sou radialista aspirante a jornalista e estou escrevendo uma matéria para uma revista, onde analiso o perfil dos eleitores de Bolsonaro. Se houver alguém interessado, chame-me pelo inbox para conversarmos e, assim, explicar como funcionará a dinâmica”, escrevo e publico em seguida. Surge o primeiro comentário. “É esquerdista?”. Antes mesmo que eu pudesse responder, outro perfil responde no meu lugar. “É, sim, não confie nela”.

Fiquei surpresa. A primeira reação foi uma pergunta sobre meu viés político, o que nos leva a crer que, antes de qualquer diálogo, o primeiro quesito para ele acontecer são as crenças políticas. Isso se torna contraditório, uma vez que a ética jornalística não permite que pontos de vista sejam expostos em entrevistas e matérias. Esse tipo de situação tem sido cada vez mais recorrente no âmbito político e social. O fanatismo está tão enraizado culturalmente que opiniões divergentes são motivos de briga e discussões, em vez de ser um incentivo para uma troca de conhecimento saudável. As ideologias têm passado por cima de qualquer ponto importante dentro da sociedade brasileira, dividindo-a em grupos aos quais os radicais se afiliam ou simplesmente repudiam. Por meio da rotulação e da divisão de grupos, surgem os discursos de ódio. Enfaticamente encontrados nas falas de muitos políticos brasileiros, eles reforçam grandes problemas sociais que enfrentamos no Brasil contemporâneo. Vão contra os grupos LGBT+, feministas, negros, entre tantos outros que são minorias e passam a ser demonizados por ideias caluniosas que são disseminadas nos meios de comunicação de massa. Por fim, gostaria de frisar o quão importante é esse tipo de situação, pois, como citei alguns parágrafos atrás, abre novos horizontes. Se não fosse pelo desconforto, jamais teria parado por um sequer minuto para pensar à respeito do ocorrido na tentativa de uma entrevista e, muito menos, escrito este artigo.

Ully Nambu é aluna do 2º ano do curso de Rádio, TV e Internet da Cásper Líbero. Membra do Centro Acadêmico Vladimir Herzog, preza pelo movimento estudantil.


INFOGRÁFICO

Bomba hormonal

Ao contrário do que se pensa, pílulas anticoncepcionais não trazem apenas benefícios ao corpo feminino Texto por Malu Mões e Mel Trench Ilustração por Henrique Artuni e Mel Trench

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m 1960, um avanço científico surge como uma possibilidade para a independência feminina e para o planejamento familiar. A criação da pílula anticoncepcional feminina permitiu que as mulheres tivessem mais liberdade e escolha, mas, com o passar dos anos, passou-se a questionar os efeitos colaterais que esse medicamento pode trazer para seus corpos. Segundo o relatório da ONU, de 2015, “Trends in Contraceptive Use Worldwide”, que levantou dados sobre mulheres e 15 a 49 anos ao redor do mundo e que estão em um relacionamento sério ou

são casadas, 63,6% delas utilizam algum contraceptivo e 8,8%, pílula. No Brasil, esse método é mais acentuado: 24,1% das mulheres optam pelo contraceptivo oral, sendo o segundo método mais utilizado no País, perdendo apenas para a esterilização feminina (28,4%), de acordo com o mesmo texto da ONU. Para compreender melhor os efeitos que os anticoncepcionais trazem para a grande parcela das brasileiras que o utilizam, ESQUINAS preparou um infográfico detalhado sobre o assunto com dados da bula do anticoncepcional da empresa farmacêutica e química Bayer.

SINTOMAS

Dor de cabeça Tontura Alterações de humor Dor nas mamas Náusea e vômitos COMPLICAÇÕES

Acidente vascular cerebral Infarto do miocárdio

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Revista Esquinas

Trombose e venosa profunda


Como funciona a pílula? Estrogênio

Progesterona

A mulher ingere o comprimido

A pílula libera hormônios e mantém seus níveis sempre iguais no organismo

Com a pílula, não há hormônios, nem ovulação

Efeitos Abaixo, algumas possíveis reações adversas que constam na bula do Yaz 24+4, uma das pílulas mais consumidas no Brasil, segundo a Cartilha de Assistência em Planejamento Familiar, organizada pelo Ministério da Saúde. Reações adversas comuns (entre 1 e 10 em 100 usuárias): Instabilidade emocional (alterações de humor), depressão ou estados depressivos, enxaqueca, náuseas, dor nas mamas, sangramento uterino inesperado (entre períodos menstruais), sangramento vaginal (sangramento não específico do trato genital); Reações adversas incomuns (entre 1 e 10 em cada 1.000): Diminuição ou perda do desejo sexual (libido); Reações adversas raras (entre 1 e 10 em cada 10.000): Eventos tromboembólicos, isto é, obstruções causadas por coágulos nas artérias e veias.

Níveis de LH e FSH

O corpo reconhece esses níveis e entende que não precisa produzir os hormônios LH e FSH, responsáveis pela formação do óvulo

Sem a pílula, o corpo produz os hormônios e há ovulação

Outros métodos DIU: dispositivo em forma de “T” que

é inserido no útero por um médico. Existem dois tipos. O de cobre, que por meio dos íons da substância, dificulta a mobilidade e a implantação do espermatozoide. Pode ser mantido durante 10 anos. O outro é hormonal, tem o mesmo funcionamento da pílula anticoncepcional e dura até 5 anos.

Injeção: pode ser combinada (com estrogênio e progesterona) ou conter apenas um deles. Seu funcionamento é igual ao da pílula, porém deve ser reaplicada de 1 a 3 meses, dependendo de qual for usada.

Diafragma: funciona como um bloqueador de espermatozoides. É feito de silicone e a própria mulher coloca no colo do útero a cada relação.

Nenhum dos métodos acima protege contra as DSTs. A camisinha (masculina ou feminina) é um importante contraceptivo por prevenir essas doenças e uma possível gravidez indesejada. 1º semestre de 2018

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....EDITORIA TRABALHO

“Maridas” de aluguel O Manas à Obra se diferencia no mercado oferecendo serviços executados por mulheres em um campo dominado por homens Texto por Nathalia Freindorfner e Rafaela Morozetti Ilustração por Rafaela Morozetti

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ulheres e membros da comunidade LGBT sabem que, ao contratar algum tipo de serviço simples de reparo para casa - como encanador, eletricista ou mesmo um empreiteiro para uma obra maior – eles devem tomar mais cuidado em relação à sua segurança. Ao receber um homem estranho em casa, eles se sentem vulneráveis a ataques, assédios e violências maiores. Diante desse cenário perigoso, surgiu o Manas à Obra. A fundadora, Priscila Vaiciunas, é técnica em edificações e, enquanto ainda estudava, teve a ideia de um negócio de prestação de serviços em reparos e obras, priorizando clientes mulheres e LGBT. Mas foi só em 2015 que pôde colocar a mão na massa e concretizar seu sonho. Na época, Vaiciunas estava desempregada e com dificuldade de voltar ao mercado de trabalho. Resolveu então reviver uma vontade antiga e abrir uma empreiteira voltada à sustentabilidade usando apenas mão de obra feminina. Começou a pesquisar e estudar meios de abrir uma empresa por conta própria e criou o Manas, priorizando a mão de obra feminina, mas contando também com uma equipe mista de mulheres e homens para

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Revista Esquinas

obras maiores. Como a empresa tem o objetivo de inclusão, a empresária também dá oportunidade de emprego às pessoas transexuais, por terem maior dificuldade de inserção no mercado de trabalho. A dona chama seus serviços de “mana de aluguel”, brincando com a ideia de “marido de aluguel”. As mulheres do Manas à Obra realizam manutenções simples, sejam preventivas, sejam corretivas, pinturas, repaginação e reforma de espaços. Elas tentam evitar que as clientes que as contratam se sintam constrangidas na presença de um homem estranho no ambiente doméstico. Levando em consideração que a divulgação do projeto foi feita, principalmente, boca a boca, sua visibilidade cresceu rápido. Inicialmente falando para os amigos, Vaiciunas criou a página do Facebook, atualmente com quase seis mil curtidas. Com apenas quatro meses de funcionamento, já estava com a agenda lotada. O empreendimento atende as regiões das cidades de São Paulo e do ABC Paulista. Os clientes da empresa variam de gênero e orientação sexual. Vaiciunas afirma que já escutou diversos relatos de pessoas que sofreram algum tipo de assédio em suas casas quando contrataram uma

obra e por isso resolveram procurar um serviço diferenciado como o dela. Bárbara Nascimento, uma das mulheres atendidas pelo Manas, procurou o serviço da empresa por uma questão de segurança e por valorizar o trabalho feminino em uma área dominada predominantemente por homens. Luciana Christante chamou a empresa duas vezes para trocar o chuveiro, furar a parede e reparar a descarga de sua casa. “Eu me sinto muito mais segura contratando uma mulher. Fico mais à vontade colocando-a dentro de casa por várias horas”, conta a moça. O Manas já sofreu preconceito por ser uma instituição que preza a mão de obra das mulheres. A própria fundadora passou por situações de discriminação apenas por ser do sexo feminino. Segundo ela, o pior tipo de preconceito é aquele que vem de outra mulher. “É como se uma mulher estivesse tentando silenciar a outra, sabe?”, admite pesarosamente. O próximo passo do Manas à Obra é oferecer serviços sustentáveis. A empresária fez um curso de energia solar recentemente e pretende começar a adaptar a mão de obra para a instalação em residências dessa fonte “amiga do meio-ambiente” como um dos seus serviços.


Opinião

A jornada da maternidade Como a gravidez transformou minha vida, para melhor

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natural do ser humano querer planejar cada fase da sua vida, traçar suas metas e buscar conquistas, seja na vida pessoal ou profissional. Mas, nem sempre tudo acontece da forma que esperamos ou no momento que desejamos. Comigo foi exatamente assim. Enxerguei minha vida, meus planos, meus medos e preocupações mudarem na madrugada do dia 15 de novembro de 2017, quando eu e meu namorado descobrimos que eu estava grávida. Depois de fazer dois exames de farmácia e um exame de sangue para confirmar, fomos tomados pelo desespero, não sabíamos o que fazer e muito menos o que pensar. Afinal, não estava nos nossos planos nos tornarmos pais tão cedo, aos 21 anos e sem pelo menos termos finalizado a graduação. Minha primeira grande preocupação era de como contar a notícia para os nossos pais, como eles reagiriam e o que iriam sentir, já que a novidade afetaria também suas vidas. Tudo que é inesperado apavora, e com eles não foi diferente, depois do susto e horas de conversa, veio o apoio tanto da minha família quanto da família do meu namorado, que desde então vêm sendo nossa força e nossa base para enfrentar essa nova fase, e os desafios que passamos e temos pela frente. Nos primeiros meses de gravidez, foram dias e dias de aceitação e bastante paciência para lidar com as náuseas e vômitos, que me fizeram pedir demissão do trabalho em pouco tempo. Já no caso da faculdade, ainda faltavam dois anos para eu me formar na época da descoberta e trancar matrícula nunca foi uma opção. Mesmo sabendo que seria complicado, a graduação permaneceria sendo uma das minhas prioridades, e assim durante o meu terceiro ano, em 2018, continuaria indo às aulas normalmente e apenas tiraria a licença maternidade. Fiz isso pois eu tinha medo de depois não conseguir voltar para terminar o curso.

Com isso, além de adaptar meus objetivos e sonhos individuais com as novas responsabilidades, mudei e ainda me vejo mudando muito como pessoa diante as experiências que vivo. Amadureci, passei a pensar diferente, ver que sou capaz de muito mais do que eu imaginava e, principalmente, dar valor e me preocupar com as coisas que realmente importam, esquecendo de futilidades que antes poderiam vir a me chatear, como julgamentos, opiniões e até mesmo as mudanças com o corpo. Da mesma forma, enxerguei a necessidade de dar mais atenção para minha saúde, minha alimentação, melhorar meu estilo de vida, ser uma pessoa melhor, pois qualquer descuido poderia afetar o desenvolvimento do bebê. Uma das minhas maiores alegrias foi descobrir que seria mãe de uma menina, o que sempre foi minha vontade desde que descobri sobre a gravidez, e rapidamente, decidimos que o nome seria Sofia. É inexplicável a sensação de gerar um ser humano, uma nova vida dentro de você, estar conectada com ela a cada passo e acompanhar cada fase do seu crescimento, imaginar sua aparência, jeito, personalidade, ou com quem ela vai ser mais parecida. Os meses, as semanas vão passando e os medos vão se transformando em ansiedade, o desespero em felicidade. Todos os pensamentos e planejamentos são voltados para ela, você se coloca em segundo plano em qualquer situação pois tudo que gira ao meu redor coloco ela como prioridade. Quando me dou conta ela é o motivo do meu sorriso, das minhas ações, das minhas evoluções, meu aprendizado e buscar o que há de melhor em mim. Não consigo imaginar nenhum detalhe minha vida na qual ela não esteja presente, que não mudaria uma vírgula dessa jornada, dessa experiência que ainda está só começando, e que hoje sem dúvidas, ela é a certeza da minha vida.

Ana Clara Matsuguma é graduanda no terceiro ano de Jornalismo na Faculdade Cásper Líbero e descobriu que seria mãe em novembro de 2017


BELEZA

Enrolados para sempre? Como a indústria de cosméticos se beneficia do discurso pró cabelos cacheados e crespos Texto e ilustração por Júlia de Oliveira

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e você não fosse meu, eu não seria tão eu!”. O comercial lançado pela Natura em 2011 gera estranhamento: desde quando a mídia faz propagandas promovendo a autoestima? Carol Soares, embaixadora da #Todecacho, linha especializada em cuidados capilares Salon Line, nem sempre teve uma boa relação com seus crespos. Em sua família, todos tinham o cabelo alisado e assim ela começou a alisar seus fios aos nove anos de idade. Essa padronização da beleza em torno do alisamento é uma prática difundida na sociedade brasileira tanto pela mídia quanto pela indústria. O American way of life, disseminado na década de 1940, ia além dos novos eletrodomésticos e carros. Estrelas de Hollywood ditavam a estética a ser seguida e serviam de inspiração para estilo de roupa e textura das medeixas. Em 1960, foram criados cremes para alisar roupas O mercado da beleza e a mídia reforçam os estereótipos que associam os fios lisos ao padrão desejável que também serviam para os cabelos e se tornaram febre de vendas. David Carvalho, dono do salão BeleContudo, propagandas como essa não Com isso, as pessoas entraram numa za Afro e expert em cabelos cacheados e configuram uma “humanização” das tentativa contínua de alcançar padrões es- crespos há dezoito anos, explica que, com empresas. E é no meio desse jogo mertéticos inatingíveis. “Comecei a me tornar o uso da progressiva a partir de 2003, cadológico que surgem novas peças como escrava da chapinha. Acho que a partir do alisar os cabelos se tornou algo acessível a #Todecacho. Kamila Fonseca, gerente momento que isso acontece nós perdemos e prático. “Antigamente, a pirâmide da de Marketing da Salon Line, revela que a nossa liberdade, nos tornando infelizes moda vinha de cima para baixo”, afirma. linha foi lançada por conta de um site para com nós mesmos”, diz Soares. Segundo O exemplo pode ser aplicado no que se blogueiras escreverem sobre suas experiuma pesquisa feita pela Kantar Worldpa- chama de “hierarquização capilar”: ca- ências com os cabelos crespos e cacheados. nel, que analisa os padrões de consumo, belos lisos no topo, ondulados no meio, O público começou a pedir produtos espe51,4% da população brasileira apresenta cacheados e crespos na base. cializados e, em 2015, foi atendido com o variações de cabelo cacheado e crespo. Segundo um estudo do Google Brand- lançamento de cinco itens da marca. A aceitação do cabelo natural e o conse- Lab em São Paulo, as buscas por transição Para Okereke, o papel da mídia e da quente reajuste da autoestima nos últimos capilar cresceram em 55% nos últimos dois indústria é atender às demandas da popuanos são um marco na história da beleza. anos. Por sua vez, o interesse por cabelos lação que busca atingir com seus produtos. Essa marginalização do crespo está afro cresceu 309%, superando pela primei- Já Fonseca afirma que a #Todecacho deseligada a questões histórico-sociais, como ra vez a busca pelos lisos. Não tardou para ja não apenas fazer produtos, mas também os casos de racismo no Brasil. “Desenhos as empresas notarem a lucratividade dos fios trabalhar ativamente na aceitação do cabelo tipo o da Barbie mostram a garota com naturalmente curvilíneos. Uma das primei- crespo no País. Tanto o pensamento da ino cabelo bagunçado, na forma de um ras foi a Dove, com o projeto “Retratos da fluencer quanto o da diretora de marketing black power. Aí quando ela vai arrasar Real Beleza” de 2013. Ela lançou um filme parecem consoantes ao excerto da seção na noite, faz uma progressiva”, aponta em que mulheres são representadas por um “Crenças”, do relatório anual da Natura: “A Tasha Okereke, influenciadora de moda artista forense segundo as descrições que busca da beleza, legítimo anseio de todo ser e cocriadora com a irmã gêmea, Tracie, fazem sobre si mesmas e depois retratadas humano, deve estar liberta de preconceitos do projeto Expensive Shit, blog que pro- pela descrição de outras pessoas que a co- e manipulações”. Quem sabe estejamos no move a autoestima de mulheres jovens, nhecem. A conclusão é que elas tinham caminho para que esse desejo, outrora utónegras e periféricas. uma visão distorcida da própria imagem. pico, consolide-se como verdade.

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Revista Esquinas


GAMES

Mulheres no comando Apesar de ser maioria entre gamers, o sexo feminino segue enfrentando forte preconceito na área Texto por Beatriz Gil, Gabriel Balog e Gabriela Junqueira

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para nomes masculinos a fim de evitar ofensas. Pieretti conta que não mudou o nome pois ele representa quem ela é: uma menina que joga. “Eu sei que vai parecer complicado quando te falarem que os games não são para você”, diz a garota, se dirigindo a outras gamers. “São sim. Se você gosta de fazer isso, sente que ali é o seu lugar: viva, seja você”. Mas ainda é uma luta difícil de ser travada. Lynn Alves, pós-doutora em jogos eletrônicos que leciona na Universidade do Estado da Bahia, afirma que tem observado esses problemas em sala de aula. “Duas alunas minhas desistiram de jogar League of Legends [game online]”, afirma. “Elas só queriam se divertir, mas não aguentaram ficar enfrentando xingamentos o tempo todo para ter um lugar ali. Por proteção, optaram por não jogar mais em rede”. Segundo Alves, é preciso lembrar que até pouco tempo o universo dos games era fortemente marcado pela presença masculina. “Como fenômeno cultural, no jogo tende-se a reproduzir aspectos da sociedade, como a cultura da violência, não só com as mulheres, mas também em relação a outras

LUANA JIMENEZ

s mulheres estão presentes e representam hoje, e cada vez mais, uma grande parte no nicho que consome cultura geek, desde quadrinhos, filmes, até videogames. Segundo a pesquisa Game Brasil de 2018, 58,9% dos gamers brasileiros são mulheres. No mundo, esse público representa 46% dos jogadores, de acordo com o Game Consumer Insights de 2017. Com tamanha projeção, por que elas ainda não são aceitas e respeitadas nesse campo? Ingrid Pieretti, de 17 anos, começou a jogar bem nova, em um videogame portátil e conta que um de seus jogos preferidos era Mario Kart. Quando criança, no dia de levar seu brinquedo favorito para a escola, levava o videogame. Desde cedo, os garotos não aceitavam muito bem o fato de ela ser uma menina e gostar de jogar – o que não a freou de continuar buscando novas experiências virtuais. A adolescente já presenciou em games como os da franquia Call of Duty, jogados em primeira pessoa e ambientados em cenários de guerra, muitas amigas sendo obrigadas a mudarem os seus usernames

As gamers adotam estratégias para evitar assédio virtual, como mudar seus usernames ou deixar de jogar em rede

minorias”, acredita. No começo de 2018, a organização americana Wonder Women Tech lançou a campanha #MyGameMyName (meu nome, meu jogo), na qual convidou youtubers homens para jogar online usando nomes femininos. Os ataques, o ódio e o assédio não foram diferentes, e os influenciadores registraram suas experiências desagradáveis em vídeos. “Parece que, em jogo online, independe você jogar bem ou não. Você é um problema para os homens e eles vão tentar te diminuir”, conta a estudante de Administração Jhennifer Barbosa, de 21 anos. Segundo ela, enquanto um homem, para ser aceito como gamer, precisa apenas gostar de jogar, uma mulher precisa provar que entende tudo sobre jogos e, mesmo assim, tem seu potencial sempre em xeque. A jovem já foi editora da Gaming Club, grupo de estudantes da USP apaixonados por games, e comenta que foi uma experiência bem interessante por ser a única menina em um grupo com 20 meninos, apesar de sofrer resistência de alguns membros. Bianca Luchiezi, de 18 anos, começou a jogar aos 12 anos, influenciada por youtubers gamers como Rezendeevil e VenomExtreme. Na época, não via muitas meninas ganhando destaque por falarem de jogos no Youtube. Desde os 13 anos, frequenta feiras e encontros e já presenciou cenas de assédio. Atualmente, Luchiezi joga League of Legends e acredita que em jogos como Counter-Strike, também online de tiro em primeira pessoa, o preconceito é maior. Para ela, a tendência é que o cenário melhore. “As mulheres estão conquistando espaço de uma forma geral, então, consequentemente também vamos ganhar espaço no mundo dos games”, afirma. Jogadores ou jogadoras, pouco importa. As mulheres no universo geek vêm, nos últimos anos, garantindo essa premissa e impondo seu espaço de direito, jogando os games, participando de eventos e conquistando cargos. Dessa forma, elas podem cumprir seu destino de não ser mais a princesa sequestrada e indefesa em um mundo virtual marcado por heróis, mas sim as protagonistas e donas do controle.

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CORPO

MEGALOMEDIA / DIVULGAÇÃO MEGALOMEDIA / DIVULGAÇÃO

O peso da balança midiática Programas de TV espetacularizam os corpos e prejudicam a saúde mental e física de pessoas gordas Texto por Fernanda Iyeyasu e Heloísa Menegon Youssef

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Revista Esquinas

esses shows como “Quilos Mortais” reforçam as dietas malucas, que podem afetar o organismo do indivíduo. Elas causam fraquezas, enjoos e queda da quantidade de minerais e vitaminas no corpo, já que há uma perda de peso muito rápida. Anna Beatriz Carneiro, blogueira que incentiva o body positive, diz ter escutado comentários assimilando seu sobrepeso a uma doença. Entretanto, a verdade é que ela é saudável. “A vida toda pratiquei esportes. Fui durante nove anos jogadora de vôlei. Hoje, faço academia funcional e pilates”, comenta a jovem. Outro aspecto negligenciado pelos programas de emagrecimento acelerado é o chamado “efeito sanfona”, ou o fato de que a maioria dos participantes recuperam quase todo peso perdido e, às vezes, até mais do que antes. Kevin Hall, especialista em metabolismo do Instituto Nacional de Diabetes e Doenças Digestivas e Renais (NIDDK) dos Estados Unidos, acompanhou os “perdedores” da oitava temporada de “The Biggest Loser” por seis anos. Segundo a pesquisa que ele realizou, iniciada em 2009, o metabolismo dos participantes do show diminuiu drasticamente e seus corpos não acompanhavam a nova realidade corporal, sem queimar as calorias adquiridas. E mais: já que a maioria dessas pessoas não pode pagar por um médico para acompanhar o andamento do corpo, muitas se frustram e ficam depressivas. Não há um acompanhamento psicológico adequado para esses indivíduos, não só nessas condições extremas, mas em qualquer situação de mudança de corpo. “A pessoa se sente inadequada, não aceita, pode ter crises de ansiedade e se sentir constantemente infeliz”, aponta a psicóloga Marina Costa. Ela afirma que essas influências negativas podem gerar transtornos psicológicos, assim como a não aceitação do corpo. Alguns problemas que podem surgir são depressão, ansiedade, anorexia, bulimia e vigorexia. BATALHA PESSOAL. O maquiador, fotógrafo e ator Klewisson Linhares passou por uma situação complicada. Entre os 13 e 16 anos, o profissional tinha vergonha do

MEGALOMEDIA / DIVULGAÇÃO

u assistia esses shows e pensava ‘é tão fácil. Se eu entrar nessa rotina direitinho, eu vou conseguir emagrecer e vou ser mais feliz’”, lembra Beatriz Pansani, estudante que perdeu 24 quilos e sempre lutou contra o próprio peso. A jovem já achou que emagrecer seria a solução de todos seus problemas e foi afetada pela imagem do corpo considerado “perfeito” que sempre é mostrada na mídia. Ela deu sua opinião sobre o reality show “The Biggest Loser”, um dos programas de emagrecimento mais famosos da televisão, estilo de atração em alta hoje. Eles reforçam o ideal de enfermidade e infelicidade de um corpo gordo e dramatizam a jornada da perda de peso. De acordo com Vivyane Garbelini, Mestra em Comunicação pela Faculdade Cásper Líbero, essa banalização do corpo presente nos lifestyle shows e nas redes sociais, principalmente por parte das influenciadoras fitness, tem consequências negativas na sua audiência. O público que assiste a esses programas se sente pressionado a ter um corpo considerado perfeito e se sente mal por ter um corpo gordo. A imagem está relacionada à sociedade do espetáculo, conceito cunhado por Guy Debord em 1967, que Garbelini retoma em seu trabalho. Não há necessidade de vivência ou prática, tudo é a imagem: uma reprodução constante, sugestiva e persuasiva, na qual qualquer ocorrência, por mais cotidiana que seja, é uma grande odisseia. “Esses shows ridicularizam o corpo obeso, ele não está ali para ser celebrado. Está ali para ser criticado veementemente, e para ser mostrado que ele é ruim, errado, inferior e precisa mudar”, a pesquisadora acrescenta. A pessoa gorda será considerada uma vencedora quando perder seu peso. Ao ser questionado sobre o ideal de saúde desses shows, para o nutrólogo Milver Paschoal, a perda de peso e a magreza não estão diretamente ligadas à saúde. “O corpo magro pode esconder diversas patologias e é necessário analisar a composição corporal e os hábitos de vida de cada indivíduo”, explica o médico. Ele reitera que

Cenas do programa “Quilos Mortais”, um exemplo de como pode ser criada uma imagem negativa do sobrepeso associando-o a doença e preguiça

corpo. Certo dia, foi ao clube da cidade para se divertir com os amigos e brincar na piscina. Na hora de entrar na água, lotada de banhistas, ficou aflito. “Tive que tirar a camiseta e deixá-la na mesa. No caminho, eu escutava as pessoas debochando de mim e do meu corpo, soltando piadas. A caminhada de 20 metros, parecia de 200 metros”, lembra com horror. Pansani também recorda sua história, que traz alguns dos problemas citados por Costa. A jovem estudante teve bulimia dos 14 aos 16 anos, quando a mãe descobriu a doença. A partir de então, teve outras crises, controladas com a troca do remédio que toma religiosamente. Apesar disso, muitas vezes a garota comia até não aguentar, ia ao banheiro, engolia dois comprimidos de laxante de uma vez até passava mal. No próprio dia da entrevista, Pansani não quis comer algo no almoço. “Conto cada refeição como uma vitória”, relata. Sinal de que há um longo caminho para que as pessoas façam as pazes com os próprios corpos.


ESPORTE

Novos desafios nas quadras Inclusão de transexuais em times esportivos amadores e profissionais ainda gera polêmica no Brasil Texto por Gabriel Saldanha, Jorge Carmo e Laís Martins

“Q

uando ela vai bem, a gente acha que ela tem vantagem, quando ela vai mal, a gente acha que ela está segurando. É difícil julgar, mas será que começando o tratamento depois dos 30 anos de idade ela pode ser considerada mulher? Se eu fosse uma menina e outras trans viessem jogar, será que eu conseguiria acompanhar?”. Essas foram algumas das questões levantadas por Suelle Oliveira, ponteira do time de vôlei Hinode Barueri após a contratação da atleta transexual Tifanny Abreu pelo rival Vôlei Bauru. Tifanny é a primeira mulher trans a jogar a Superliga de Vôlei Brasileira. Em sua temporada de estreia na liga feminina, já possui números expressivos dentro do campeonato e atingiu a maior média de pontos por set. Diante de tamanha performance, a atleta trouxe à tona a discussão sobre até que ponto a participação de transexuais no esporte influencia na competitividade. Aprovada pelo Comitê Olímpico Internacional (COI), Tifanny está dentro dos critérios que exigem para mulheres transgêneros o tratamento hormonal para reduzir a testosterona do corpo. Desde o início de 2016, o comitê não solicita mais a cirurgia de readequação sexual para ambos os sexos. Thomas Pereira, transexual e ex-jogador de rugby da Universidade Paulista (Unip), afirma que essa mudança de exigência é vista como um progresso para os trans, pois o gênero com o qual alguém se identifica não é necessariamente assumido e reconhecido apenas quando se realiza uma cirurgia. Entretanto, o critério de inclusão do COI apresenta falhas, pois, segundo Ale-

com os quais se identificam. Guilherme Abreu, atleta transexual de handebol do Centro Universitário Belas Artes, fez seu primeiro jogo oficial no campeonato deste ano e comemora a inclusão. “Com essa iniciativa, outros atletas trans serão incentivados a participar da competição e haverá uma quebra de vários preconceitos”, acredita. Outro exemplo da inclusão de trans é o time amador Meninos Bons de Bola. O projeto começou em agosto de 2017 e contava com apenas quatro homens trans. Hoje já são 30. “O time é importante pois os meninos conseguem fazer aquilo que eles gostam e também usam esse espaço para fazer amizades, trocar experiências e ter acompanhamento com psicólogo”, afirma Raphael Martins, coordenador e idealizador do time. Quando questionado sobre uma possível criação de uma liga própria para transexuais, Martins defendeu justamente o oposto. “Fazer uma liga separada só mostra o quanto somos marginalizados, excluídos e diferentes”. A ideia de inclusão por meio dessa suposta liga talvez geraria o efeito oposto, segundo Alexandre Camara. “A criação de uma liga separada não funcionaria por conta do número de pessoas que têm, pois são poucos atletas e muito menos transgêneros. Acredito que excluiria mais, porque seriam pouquíssimas pessoas que ficariam competindo”, opina. É fato que muito ainda precisa ser debatido. A inclusão de Tifanny Abreu abriu muitas portas, ao mesmo tempo que criou outros desafios para os transexuais. A participação desses atletas é necessária. Entretanto, a maneira que serão incluídos ainda é incerta e gera discussões.

Editoria

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JORGE CARMO

LAÍS MARTINS

O time Meninos Bons de Bola é destinado a homens transgêneros e busca a inclusão deles no esporte em um ambiente sem preconceito

xandre Camara, especialista em Endocrinologia do Esporte, a testosterona é um dos fatores que garante vantagens esportivas, mas não é o principal. O critério do COI estabelece o nível de 10 nanomols de testosterona no sangue, valor mínimo para o homem, que tem em média de 10 a 30. A média da mulher é abaixo de 3 nanomols. Para Camara, o comitê fez o critério com base no valor mínimo do masculino para dizer que tudo que está para baixo é relativo a mulheres, havendo um vão entre as médias masculinas e femininas, já que mulheres não chegam a ter 8 nanomol no sangue. Na visão do especialista, Tifanny teria vantagens no esporte pelo fato de ter iniciado o tratamento hormonal há apenas dois anos. “Por mais que fique um tempo regulando testosterona leva muito tempo para se igualar a uma pessoa que nasceu mulher”, explica. Porém, para ele, a solução não seria impedir pessoas transexuais de integrarem os times esportivos, mas sim a readequação dos critérios de regulamentação. Ao mesmo tempo que influencia para que outros atletas trans sejam incluídos em outros campeonatos, a participação da jogadora em uma das principais ligas esportivas do Brasil também gera desapreço. “Sou contra a participação da Tifanny, não pelo fato de ela ser trans, mas pelo fato que ela tem vantagem”, afirma Thaís Cristina, membro da torcida organizada do time de voleibol Loucos por Osasco. A inclusão de transexuais atingiu também o esporte amador e universitário. A Liga das Atléticas Acadêmicas de Comunicação e Artes (LAACA) determinou que, a partir de 2018, atletas transexuais podem jogar nas modalidades do gênero


FUTEBOL

Jogadores da liga Sub-17 enfrentam o Corinthians no tradicional estádio juventino, Conde Rodolfo Crespi

A Rua Javari resiste Diante de um cenário de elitização, o Juventus mantém suas raízes tradicionais bem firmes Texto e Fotografia por Luis Enrique Barrero

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uinze horas em ponto de um sábado. Juventus contra Oeste pela última rodada do Campeonato Paulista de Futebol, da Série A2. O clube da Mooca acaba de garantir sua permanência na segunda divisão paulista, enquanto o Galo de Itápolis busca sua classificação para disputar o acesso à primeira divisão do próximo ano. Cerca de 1270 torcedores ocupam a tradicional Rua Javari para acompanhar o querido time do bairro. Bares cheios, arredores vestidos de grená e branco e muita animação antecedem a partida no Estádio Conde Rodolfo Crespi, que terminou com o placar de 1 a 2 para a equipe da capital. Porém, o resultado foi o menos importante no dia. “O mais legal de assistir a uma partida do Juventus não é ver o time jogar, mas sim encontrar amigos, família e passar uma tarde gostosa junto a pessoas que gostamos”, declara uma torcedora após o final do embate. O Moleque Travesso, como é carinhosamente chamado pelos seus torcedores, ainda não chegou ao seu centenário, mas tem muita história para contar dos seus 94 anos de vida. Criado em 1924 com o nome de Cotonifício Rodolfo Crespi F.C., o Clube Atlético Juventus surge seis anos depois a partir da sugestão do Conde Rodolfo Crespi de criar um time como homenagem ao tradicional homônimo italiano, do qual era torcedor fanático. Influenciado pela colônia italiana que chegou em São Paulo no século XX para

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Revista Esquinas

trabalhar nas indústrias e na produção cafeeira, o Juventus sempre foi o clube de coração da maioria dos moradores do bairro da Mooca, na região Leste de São Paulo, obtendo pouco destaque nacionalmente em torneios de futebol profissional. Talvez sua maior conquista, até hoje, tenha sido o título da Taça de Prata, de 1983, da Série B do Campeonato Brasileiro. Ainda assim, o clube é conhecido no Brasil principalmente pela sua tradição de manter as raízes italianas bem firmes no cenário de modernização e elitização do futebol. Para o torcedor juventino José Sérgio, de 76 anos, “o Juventus não acompanhou o desenvolvimento de outros clubes de origem italiana como o Palmeiras, por exemplo, especialmente na questão do dinheiro e do investimento de empresários após campanhas melhores de outros times”. Caminhando pelo bairro da Mooca, é possível sentir um ambiente característico de interior paulista. Casas pequenas misturadas às ruas movimentadas pelo comércio, restaurantes que servem o melhor da culinária italiana, padarias exalando o cheiro de pão quente e pessoas sentadas nas calçadas tomando sol contribuem para criar um sentimento de pertencimento nos moradores da região. “Moro no bairro da Mooca desde que nasci. Meus pais sempre viveram aqui e para mim é tudo de bom, não tem coisa melhor. É o que eu conheço, se eu sair daqui eu vou me sentir meio perdido”, conta Sérgio Henrique , de 67 anos, comerciante que “respira” o bairro 24 horas por dia.

Assistir a um jogo no estádio da Rua Javari se tornou um dos inúmeros programas a serem feitos na cidade de São Paulo. Além das partidas, é costume experimentar as saborosas esfihas de carne do bairro e os deliciosos cannoli artesanais, doce frito enrolado em formato de tubo e recheado de creme de ricota. A proximidade dos jogadores com os torcedores impressiona. Ao final de cada jogo, os atletas saem dos vestiários e chegam perto dos fãs, algo impensável em jogos de grandes times. “Aqui no Juventus é como uma grande família. Há são-paulinos, corintianos, palmeirenses, mas todos se unem pelo Juventus. Você não vê briga”, celebra Sérgio Henrique. Os jogadores sentem esse clima de torcida. Todos moram nas redondezas e se sentem acolhidos pelos espectadores. O Juventus é o que restou do “futebol raiz”, sem os adornos do futebol moderno das arenas e da politicagem que envolve o esporte. “Ódio eterno ao futebol moderno” é um lema bastante difundido entre os torcedores da Mooca. Resta saber se o clube sobreviverá ao impacto da modernização do futebol e voltará a brigar por grandes títulos no futuro. Contudo, uma coisa é certa: “a paixão juventina será sempre a mesma, de geração a geração”, como diz José Sérgio, esperançoso por dias melhores nos resultados em campo, mas orgulhoso do desempenho do time no coração dos juventinos.


CIÊNCIA

Esportistas na prorrogação Atletas profissionais atuam por mais tempo por causa dos avanços na medicina esportiva Texto por Luca Castilho

E

m um passado não muito distante, um atleta era considerado veterano e estava próximo da aposentadoria aos 30 anos. Hoje, isso se alterou drasticamente e, com essa idade, o esportista ainda tem chances de atuar por mais tempo. Esse conceito não se limita ao futebol e atinge outras áreas, como o vôlei, basquete e tênis. Aos 33 anos, LeBron James atua em alto nível e é considerado um dos melhores jogadores de basquete da história. Roger Federer segue imbatível no tênis no auge dos seus 36 anos. O goleiro Gianluigi Buffon mostra uma ótima forma, mesmo já tendo ultrapassado quatro décadas de vida. Kristin Armstrong conquistou a medalha de ouro no ciclismo da Olímpiada do Rio de Janeiro. As novas tecnologias indicam a intensidade e quanto cada atleta se esforçou nos treinos e nos jogos. Uma das principais novidades é um aparelho de monitoramento em tempo real utilizado pelos atletas tanto nos treinamentos quanto a competição. Parecido com um sutiã, ele mede a frequência cardíaca do jogador, dados de GPS e até o potencial de arranque dos atletas. As informações são avaliadas pela comissão técnica e pela equipe de Fisiologia, que determinam um trabalho físico adequado para cada jogador e regulam a intensidade na preparação. Criar um departamento fisiológico mostra a preocupação com a saúde e o desempenho dos atletas. São feitos exames periódicos que indicam diversas taxas

dos jogadores, como o nível de cansaço muscular e a possibilidade de lesões. O centro pode até fazer um tratamento médico por meio de uma injeção de plasma enriquecido em plaquetas (PRP) no local da contusão para acelerar o processo de recuperação. Com todos esses artifícios, o setor é um dos novos pontos para prorrogar a aposentadoria de um atleta. Comentando sobre o futebol e abrindo o leque para outros esportes, o coordenador de Fisiologia do Núcleo de Saúde e Performance do Palmeiras, Thiago Santi, afirma que é difícil conciliar uma vida desregrada e os maus hábitos ao alto nível de um atleta profissional. “À medida que ele enxerga que de fato os resultados são positivos, com pouca incidência de lesão, ele passa a ter mais confiança no trabalho fora de campo e nos profissionais que o preparam no dia a dia”, explica o coordenador. O meia Zé Roberto se aposentou no final de 2017, aos 43 anos. Formou-se nas categorias de base da Portuguesa e passou por outros times brasileiros, como o Santos, Palmeiras e Flamengo, e por gigantes da Europa, como Bayern de Munique e Real Madrid. Ele começou a se preocupar com o corpo quando percebeu que esse era seu instrumento de trabalho. Então, passou a se alimentar, dormir e se cuidar melhor para sempre se manter em alto nível. “Você tem que estar sempre bem física e mentalmente”, diz o ex-jogador. Altair Ramos, preparador físico e bicampeão mundial e da Libertadores com

o São Paulo na década de 1990, fala sobre os maiores desafios físicos no basquete. “O desgaste [em especial, no joelho e no tornozelo] é muito grande nessa modalidade por conta dos muitos jogos em sequência”, explica. Torneios curtos exigem uma recuperação rápida do jogador, obrigando o envolvimento de diversos setores do clube como a nutrição, psicologia e o preparador físico. Considerado um dos maiores jogadores de basquete de todos os tempos, Oscar Schmidt exalta os avanços. Ele acredita que é difícil alguém se aposentar por lesão atualmente. “Hoje, é mais fácil, as contusões são menores. Ninguém para de jogar por uma lesão. A medicina, os materiais e o sistema de treinamento foram aperfeiçoados”, diz Schmidt. Já a maior pontuadora da história da Seleção Brasileira de Basquete Feminino, Hortência Marcari, revela como era quando treinava. “Na minha época, a preparação física era tratada separadamente. Hoje, a medicina, fisioterapia, fisiologia e a preparação andam juntas e ao mesmo tempo. Elas não são vistas para recuperar, e sim para prevenir”, comenta. O “Mão Santa”, Schmidt, ainda fala sobre as consequências de atuar por tanto tempo. Quando chegou ao seu limite profissional, se aposentou. Agora, tem “dores em todos os locais que você imagina”. Mas não se arrepende: parar de jogar veio da sua própria vontade e no tempo que julgou melhor. Não foi uma limitação precoce de sua idade.

ANDES/CÉSAR MUÑOZ

GAZETA PRESS

GAZETA PRESS

DJALMA VASSÃO / GAZETA PRESS

Oscar Shmidt, Hortência e Zé Roberto são exemplos de atletas que se aposentaram tardiamente

1º semestre de 2018

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SAÚDE

Entre um chamado e outro Samu tem serviços afetados após cortes de verbas federais entre 2014 e 2017 Texto por Bruna Heloísa da Silva

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voz do outro lado da linha pergunta: “192, qual a sua emergência?”. E assim se inicia mais um chamado no Serviço de Atendimento Móvel de Urgências (Samu). Após a orientação pela triagem telefônica dos médicos reguladores, há uma avaliação da necessidade de encaminhar uma unidade móvel ao local da ocorrência. Até agora, nada além do que já se sabe. Porém, nos últimos três anos, foram noticiados na mídia brasileira vários cortes para o setor de emergência na Saúde. As áreas afetadas compreendem desde o atraso na manutenção de ambulâncias até a redução de verbas sem previsão de retorno para o aumento de investimentos. Dentro do estado de São Paulo, as regiões mais atingidas são, consequentemente, as de maior densidade populacional. Entre

elas, a própria capital e Guarulhos, município vizinho. Segundo estimativas do site do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população da cidade de São Paulo, em 2017, era de cerca de 12,1 milhões de habitantes, enquanto a de Guarulhos, 1,35 milhão. O Ministério da Saúde afirma que é recomendável uma ambulância à disposição para cada 150 mil habitantes. Mas o cenário atual guarulhense compreende seis unidades básicas para toda a população, o equivalente a uma ambulância para cada 225 mil habitantes aproximadamente. Fatores como esse prejudicam o tempo de atendimento das ocorrências e colocam em risco a vida dos pacientes. Em entrevista ao O Estado de S. Paulo, em maio de 2016, o ex-ministro da Saúde, Agenor Álvares da Silva, admitiu que ALINA SOUZA/PALÁCIO PIRATINI-GOVERNO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL


só havia verbas disponíveis para serviços como o Samu e Farmácia Popular até o mês de agosto daquele ano. A saída seria o financiamento desses programas. O motivo para esse cenário estar ganhando vida é a redução de aproximadamente 5,5 bilhões de reais das verbas. Em nota oficial de 26 de abril deste ano, o Ministério da Saúde afirma que “o repasse de incentivo de custeio para o Samu 192 de todo o Brasil sempre esteve em conformidade, não há registros de eventuais atrasos ou ausências de pagamentos por parte da pasta”. Ele diz ainda ter repassado, em 2017, um total de mais de um bilhão de reais como incentivo de custeio para o Samu. Segundo o Sindicato dos Servidores Municipais de São Paulo (Sindsep), em 2017, foi implantado um projeto apelidado de “Samu – Linhas do Cuidado”, com o objetivo de racionalizar os recursos e integrar o serviço às unidades de saúde pública. A ideia era atender mais pacientes utilizando menos recursos e incorporando o Samu às coordenadorias regionais de saúde. Na prática, de acordo com o posicionamento no site oficial do sindicato, as alterações promovidas pelo projeto agravam o cenário da saúde, com cortes de verbas essenciais ao serviço, um número insuficiente de médicos para os atendimentos, fechamento de bases em postos estratégicos das cidades, falta de infraestrutura para

os socorristas e aumento do tempo de espera para auxílio à população. A Prefeitura de São Paulo, por meio de nota oficial, afirmou que, atualmente, conta com 1.150 servidores diretamente ligados à operação de atendimento, excluindo aqueles readaptados e administrativos. Em 2014 e 2015, o serviço contava com cerca de 1,6 mil funcionários e, em 2016 e 2017, 1,4 mil. Os principais motivos para a redução do efetivo na cidade foram “devido às aposentadorias e readaptações”, como diz a nota da Prefeitura. Bernardo*, um dos auxiliares de enfermagem de plantão do período noturno em uma das bases de Guarulhos, conta que um fator agravante no atendimento à população é a falta de precisão e detalhe das assistências por parte dos médicos reguladores na central. “Isso afeta diretamente o deslocamento das unidades móveis até o local de urgência”, afirma. No portal do Ministério da Saúde, há uma lista de sintomas que não precisam da utilização do Samu, como febre prolongada, vômito, diarreia, dores crônicas, cólicas renais, corte com pouco sangramento e qualquer outro tipo de situação que não caracterize emergência médica. Bernardo lembra que a base em que trabalha atende normalmente regiões a um raio de dois a cinco quilômetros de distância. Isso não quer dizer que será uma unidade móvel dali que atenderá um

O Ministério da Saúde afirma que é recomendável

uma ambulância à disposição para cada

150 mil habitantes

chamado próximo. Caso haja outra mais perto, de passagem, será essa a escolhida para o atendimento de urgência. A base de Bernardo, longe do Centro da cidade, é uma das únicas que atende aquela região. A única ambulância disponível na data de nossa conversa estava quebrada. Ele afirmou que seria levada para a oficina mecânica no dia seguinte, mas que, naquela noite, toda a áreateria o atendimento prejudicado. Durante seu plantão, cerca de seis chamados são atendidos por noite. Em São Paulo, o número de serviços realizados em 2016 foi de cerca de 328 milhões, enquanto, em 2017, esse número mais do que dobrou, com 664 milhões atendimentos registrados. Já em Guarulhos, os chamados anuais realizados saltaram de 20 milhões, em 2016, para 42 milhões, em 2017. Se as estatísticas seguirem essa tendência, o número de habitantes por unidade móvel será maior, aumentando também o tempo de atendimento e o sucateamento do serviço. Mesmo após a entrega de 300 ambulâncias para São Paulo pela Mercedes-Benz junto à concessionária De Nigris, apenas uma foi entregue a Guarulhos. O restante da frota foi distribuído para outros municípios de São Paulo, sendo que nenhum veículo permaneceu na capital.

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Os nomes foram trocados para preservar a

identidade dos entrevistados.

A Prefeitura de São Paulo afirma que conta com

1.150 servidores

diretamente ligados à operação de atendimento

Em São Paulo, o número de socorros realizados em 2016 foi de cerca de

328 milhões

Em 2017, foram registrados

664 milhões de atendimentos

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FOTORREPORTAGEM

A despensa de São Paulo A divisão e funcionamento da Ceagesp

Fotografia por Bruno Ascenso, Georgia Ayrosa, Isabella von Haydin, Mauricio Abbade, Rafaela Bonilla e Saulo Tafarelo No dia 21 de fevereiro de 2018, o ex-prefeito João Doria (PSDB) afirmou que a Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais do Estado de São Paulo (Ceagesp) vai mudar de local até 2020. A área de 600 mil m² hoje localizada na Zona Oeste de São Paulo, abrigará futuramente um Centro Internacional de Tecnologia e Inovação. No dia 16 de março, o Governo do Estado de São Paulo divulgou quatro propostas para a construção da “Novo Ceagesp ”. Todas as proposições para o novo local são próximas ao Rodoanel e os investimentos vão de R$ 1,3 bilhão a R$ 2,3 bilhões. Até a publicação desta reportagem, “não há nada definido ainda sobre a possível mudança”, afirma Inacio Shibata, da Coordenadoria de Comunicação da Ceagesp. A Ceagesp, conhecida por sua participação no mercado da hortifruticultura e armazenagem de grãos, foi inaugurada em maio de 1969 por meio da

junção de duas empresas mantidas pelo governo do Estado de São Paulo: as centrais de abastecimento (Ceasa) e a Companhia de Armazéns Gerais do Estado de São Paulo (Cagesp). Hoje, a Ceagesp possui a maior rede pública de armazéns, sinos e graneleiros do estado e é o maior entreposto da América Latina. Durante a paralisação dos caminhoneiros em maio de 2018, o abastecimento da companhia ficou comprometido, assim como os de demais centros comerciais do país. Nos dias que durou, ela acarretou no aumento dos preços de diversos alimentos. Em relação a semana anterior à paralisação, quando o volume registrado foi de 63.258 toneladas, houve queda de 46,5%. Assim, os atacadistas deixaram de comercializar cerca de 29.419 toneladas. O fluxo financeiro também caiu cerca de 45,5%, passando de R$ 158 milhões para pouco mais de R$ 86 milhões (dados fornecidos à imprensa pela Companhia). GEORGIA AYROSA

A Ceagesp é dividida em dez pavilhões, cada um destinado ao comércio de um produto diferente

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MAURICIO ABBADE

Com a greve nacional dos caminhoneiros em maio de 2018, a companhia de abastecimento foi afetada e houve uma drรกstica escassez de mercadorias GEORGIA AYROSA

BRUNO ASCENSO

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BRUNO ASCENSO

HORTIFRUTI. A barraca de Renan Torres, de 26 anos, dispõe dos mais diversos tipos de frutas, emolduradas por folhas de alface e os papéis pendurados com os preços das mercadorias por quilo. Qualquer um que passa por ali é cumprimentado com alguma fruta diferente, como pitayas amarelas, ou combinações exóticas, como morangos e tâmaras. Além de negociante e dono da barraca, Torres trabalha há 12 anos como feirante, sendo três na Ceagesp . Hoje com 26, ele comenta sobre como

foram os dias de trabalho no período de greve dos caminhoneiros, em maio de 2018. Ao passo que alguns produtos estavam em falta, as vendas não foram afetadas em certas barracas. “Não senti muita diferença, não. O povo que achava que nossos preços estavam altos por conta da falta de abastecimento estavam errados. Ainda tinha muita fruta armazenada aqui, então não teve tanto aumento no preço e nem faltou alimento. Caso tivesse continuado a greve, aí sim começaria a piorar”.

BRUNO ASCENSO

GEORGIA AYROSA

ISABELLA VON HAYDIN

O varejão, a feira na qual ocorre a venda para o consumidor direto, movimenta mais de 250 toneladas de frutas, verduras e legumes mensalmente

Renan Torres acredita que “o tabuleiro da feira é passado de pai para filho”

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BRUNO ASCENSO

GEORGIA AYROSA

BRUNO ASCENSO

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BRUNO ASCENSO SAULO TAFARELO

Semanalmente, no pavilhão das flores e plantas, circulam entre 10 mil e 16 mil pessoas e são comercializadas entre 800 e mil toneladas de mercadorias SAULO TAFARELO

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Revista Esquinas


ISABELLA VON HAYDIN

PAISAGISMO. De madrugada, a Ceagesp é um lugar frio e florido. Com flores, ervas, ramos e quase todo tipo de planta ornamental, e até comestível, que se pode imaginar. Além disso, vários vendedores conversam enquanto bebem chá ou café entre os carros de carga que passam quase atropelando qualquer um que resolva dar uma pausa para admirar as mercadorias. A maioria dos vegetais é vendida por atacado, mas é possível comprar até pé de morango e ora-pro-nobis, planta com alto teor de proteína, no varejo.

BRUNO ASCENSO

BRUNO ASCENSO

Apesar de ser destinado ao atacado, dependendo do vendedor, é possível fazer compras de pequenas quantididades

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RAFAELA BONILLA

Fundado em 1969, o espaço é local de trabalho para cerca de 800 pessoas entre licenciados, funcionários e carregadores autônomos

RAFAELA BONILLA

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PESCADOS. O cheiro de peixe é forte e o movimento, agitado. “Aqui é mais barato!”, gritam os comerciantes. Caminhões estacionados mostram a carga e descarga da mercadoria enquanto os visitantes passeiam pelos corredores. Em média, são comercializadas 200 toneladas de peixes de 97 espécies por dia. Os de água salgada representam 90% desse total. As importações são aproximadamente 6% das vendas, com destaque para o salmão chileno.

RAFAELA BONILLA

RAFAELA BONILLA

A Semana Santa é a época do ano que mais gera lucro ao atacado de pescados. O volume comercializado é triplicado e é justamente nesse período que ocorre, anualmente, a Santa Feira do Peixe. Nela, os comerciantes vendem frutos do mar no varejo e a preços especiais. Milhares de pessoas vão em busca de produtos para o almoço da Sexta-feira Santa e do Domingo de Páscoa, incluindo o famoso e tradicional bacalhau.

RAFAELA BONILLA

Botas de borracha são vendidas fora da Ceagesp a quem deseja circular pelo pavilhão encharcado por água gelada 2º semestre de 2018

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ESTILO DE VIDA

Onda verde Preocupções animais e ambientais têm cada vez mais influência no prato dos paulistanos Texto por Bárbara Moura e Yasmin Altaras Fotografia por Beatriz Biasoto Giovannelli

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riadora do blog Virando Vegana, Bruna Coutinho Matos é uma mineira engajada nessa vertente alimentar que vem criando corpo na sociedade brasileira. Por meio de sua conta no Instagram, com aproximadamente 50 mil seguidores, ela compartilha experiências e dá dicas a quem busca uma alimentação variada sem o consumo de produtos de origem animal. A blogueira enxerga o ato de comer carne como um comportamento naturalizado. Não se via como adepta do movimento, mas o que a motivou a cortar de vez a proteína animal foi uma reportagem de dezembro de 2017 publicada no site da Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB) sobre o projeto “Segunda Sem Carne”, que pede ao poder público que inicie projetos que substituam pelo menos uma vez por semana pratos de origem animal pela vegetal na refeição da população. Hoje, as pessoas falam muito mais sobre o veganismo e o vegetarianismo, considerados tabu antigamente. “Não se vendia o restaurante como vegetariano. Era vendido como comida orgânica e as pessoas nem percebiam que não tinha carne, por ser tão diverso”, comenta a psicóloga Ana Sanchez, proprietária do Super Natural Orgânicos & Saudáveis, estabelecimento de comida cem por cento vegetariana e orgânica na Zona Oeste de São Paulo. Sanchez é uma das agentes dessa maior visibilidade do vegetarianismo. Ela participou do “Mesa Tendências”, em São Paulo, um evento que traz nomes importantes da gastronomia nacional e internacional para palestras sobre o tema, onde teve a oportunidade de dar uma aula sobre carne de jaca e conversar sobre vegetarianismo. A questão ambiental também está envolvida nessa causa. Em 2014, foi lançado por meio de financiamento coletivo o documentário norte-americano “Cowspiracy: O Segredo da Sustentabilidade”, de Kip Andersen e Keegan Kuhn. Em setembro de 2015, estreou uma nova versão na plataforma de streaming Netflix, com novas informações adicionadas sob a produção-executiva de Leonardo DiCaprio. O filme vê a criação de animais para a alimentação como responsável por 30% do consumo de água mundial, fora que intensifica a liberação de gases agravadores do efeito estufa, como o gás metano. Sanchez acredita que qualquer um poderia ser vegano, independentemente do poder aquisitivo. O acesso às leguminosas é fácil, basta cozinhar. “Caro é o consumo de luxo dentro desse segmento. Nozes são mais caras e, no lugar delas, você pode consumir as sementes. Se trocar carnes por verduras, não sai caro”, comenta. A expressão “veganismo gourmetizado”

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é bastante adequada nessa situação, segundo Robson Fernando de Souza, autor do livro “Direitos Animais e Veganismo: consciência com esperança”. Leonardo Luvizetto, barman vegano da periferia de Campinas, entretanto, não acredita que seja tão fácil aderir ao movimento. Ele explica que há muitas pessoas que recebem cesta básica na periferia, que não conseguem comprar seus próprios alimentos. “A periferia não tem a consciência de olhar produtos veganos e orgânicos num supermercado e reconhecer que são para ela. Muitas vezes não tem o básico de informação sobre o assunto. Imagina então comprar um produto vegano. É bem complexo”, observa Luvizetto. Outra questão defendida pelos vegetarianos é a saúde. “Há alguns benefícios que as dietas vegetariana e vegana podem trazer para a saúde, como a diminuição do colesterol, o retardamento do câncer, a manutenção da glicose sanguínea e a prevenção de doenças cardiovasculares”, aponta a nutricionista Ana Bianca Sessa. O acompanhamento de um bom profissional, que planeje uma boa dieta vegetariana para suprir a falta da carne, facilita a obtenção dos nutrientes necessários como ferro, proteínas e carboidratos. Existem alguns restaurantes no mundo que não servem carne e possuem a estrela no consagrado Guia Michelin, uma das classificações gastronômicas mais importantes. Algo impensável há poucos anos. É a partir dessas pequenas manifestações de mudança nos padrões das refeições que a sociedade se alimenta de novas perspectivas e ideais. Na cidade de São Paulo, isso não poderia ser diferente.

O vegetarianismo é um regime baseado unicamente no consumo de alimentos de origem vegetal, como frutas, grãos e folhas. Já o veganismo é uma prática de hábitos sociais de pessoas que não utilizam qualquer produto de origem animal, seja refeição, roupa, sapato, maquiagem, entre outros.


ALIMENTAÇÃO

Cozinha a céu aberto Vendedores de comida de rua travam uma batalha diária para garantir seu espaço na gastronomia paulistana Texto por Gustavo Maganha, Lucas Ghedini e Matheus Fernandes Fotografia por Lucas Ghedini

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dades de Vigilância em Saúde (UVIS) do município paulista. “Com ouve uma intensa tentativa de silenciar as expressões uma capacitação adequada, boa estrutura e higienização correta, africanas durante o Brasil Colonial. Escravos não é possível garantir uma comida de rua boa tanto para quem vende tinham o direito de se expressar. Logo enxergaram quanto para quem compra”, comenta Boanova. na culinária a oportunidade de reviver suas origens. Um dos participantes do curso é o vendedor de espetinhos Começaram a vender suas comidas nas ruas a quem quer que Paulo Sérgio. Ele fala que as aulas auxiliam os comerciantes a passasse por ali, para resistirem culturalmente. aprenderem como garantir a limpeza e qualidade de suas reFabiano Batista, historiador e tutor da Unifesp, explica que é prefeições, como a Prefeitura exige. Mas ele reforça que de nada ciso valorizar as raízes africanas presentes no País, por não ter uma adianta o curso se não tiver o Termo de Permissão de Uso (TPU), identidade definida. Elas aparecem na origem das comidas de rua. documento obrigatório para vender comida na rua de São Paulo. “O cotidiano da rua vem da ideia de rotas comerciais. Foi trazido, A vendedora de caprincipalmente, pelos escrachorro-quente no mesmo vos”, explica o pesquisador. local há vinte anos, ElaiUm pipoqueiro que trane, que deseja não ter o balha na saída de uma estasobrenome divulgado, desção de Metrô de São Paulo cobriu que estava grávida e prefere não ser identificaquando sofreu um aborto do conta que sofre reprenatural após se assustar sálias constantes da Prefeicom a chegada de agentes tura. “Não é um trabalho da subprefeitura. “A gente com carteira assinada. Fico se liberta ao fazer e apreo dia todo na rua debaixo sentar o que sabemos”, diz. de sol e chuva. Eles vêm e Esse amor pela profissão recolhem tudo”, reclama. a incentiva a continuar Ele acredita que a vigilântrabalhando. cia sanitária é responsável “Aqui na rua é um trapela desvalorização balho cansativo, às vezes do seu trabalho, já até mais do que no escritório. que ela torna a reguSó que fazemos nosso horário e lamentação uma buestamos sempre em contato com rocracia de interesses. tudo e todos”, comenta Naldo. Por outro lado, AnEle é estudante de Direito pela drea Boanova, analismanhã e vendedor de doces e ta de saúde médica da salgados com o pai pela tarde em Coordenadoria de Vifrente à estação Jabaquara do gilância em Saúde da metrô. Já o comerciante de açaí Secretaria Municipal Manuel Raimundo conta como de Saúde de São Paulo o serviço é recompensador pelas (Covisa), destaca que amizades e aprendizados que as não há qualquer tipo ruas proporcionam. de perseguição da PreDa colonização aos dias de feitura aos vendedores hoje, esse comércio enfrenta de comida de rua. Ela resistências e um processo de explica que, além de “gourmetização”. “A comida de respeitarem as normas, rua virou gourmet e se tornou eles estão sujeitos às leis Histórias de como o trabalho de rua é uma massificado. Espaço público deve propostas pela Companhia de Engenharia importante fervem pela metrópole ser lugar de pluralidade”, defende Fade Tráfego (CET) e pelo Corpo de Bombeibiano Batista. As batalhas diárias dos vendedores demonstram ros. Ambos proíbem a permanência desses comerciantes em locais nada menos do que persistência. É na rua que tiram seu suspúblicos não demarcados pela Prefeitura. “Os vendedores ficam tento e passam por dificuldades para conquistarem seu espaço, em portas de faculdade ou estações de metrô, o que é proibido ameaçados pela rigidez da Prefeitura. A cabeça erguida e o por lei”, justifica. Mas o pipoqueiro ressalta que a Prefeitura cede sorriso no rosto dos vendedores são as únicas armas que possomente pontos ruins, onde o movimento e o lucro são mínimos. suem nessa luta diária pela sobrevivência. Luta que envolve a Há apenas uma exigência da Covisa para garantir a higienizasubsistência dos vendedores, a organização do espaço da cidade ção e boa qualidade dos produtos. Para auxiliar nessa questão, a e uma questão de saúde pública quando o assunto é o estômago Prefeitura oferece aos vendedores um curso de capacitação gratuito dos sempre famintos e apressados moradores de São Paulo. com duração de oito horas. A inscrição é realizada em uma das Uni-

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A superlotação do sistema carcerário brasileiro revela a falácia de uma estrutura que não sabe mais qual sua real razão de existir Texto por Anna Capelli, Isabela Barreiros, Laura Okida e Marina Baldocchi

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LUANA JIMENEZ

DIREITOS HUMANOS

“É preciso tirar a máscara”


ALCIDES VIEIRA/ARQUIVO PESSOAL

Alcides Vieira (de cabelo grisalho) e outros detentos na Colônia Penal Agrícola de Bauru, no interior de São Paulo. Foto tirada entre os anos 1996 e 1997

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jogo de baralho na companhia de um amigo foi interrompido para que Alcides Vieira colocasse outras cartas na mesa do bar. Aos 77 anos, impedido de trabalhar devido às dificuldades de locomoção, o homem vive com a ajuda da irmã e do Benefício Assistencial ao Idoso que recebe do Governo. Preso em 1975, enfrentou duas penas e 17 anos atrás das grades. Apesar de considerar que foi privilegiado durante a detenção por não ter cumprido pena em celas superlotadas, ele afirma que o sistema prisional brasileiro é medieval. Como Vieira admite, sua história pode ser considerada exceção da regra observada nos presídios brasileiros. A realidade é um País que tem a terceira maior população carcerária do mundo, com 726,7 mil pessoas em situação de privação de liberdade ocupando as insuficientes 368 mil vagas oferecidas, segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), feito pelo Ministério da Justiça em junho de 2016. A pesquisa ainda considera 64% da população prisional formada por pessoas negras e pobres. Dados de 2014 do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) apontam que todos os estados brasileiros estão com seus presídios abarrotados: existem praticamente dois detentos para cada vaga.

À superlotação se soma a falta de profissionais da saúde atuando nas penitenciárias – de acordo com o Ministério da Justiça, apenas 1112 dos 8605 profissionais do setor registrados no sistema prisional do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) são médicos. Como consequência, 62% das mortes dentro dos presídios são provocadas por doenças, como HIV, sífilis e tuberculose, conforme apontam dados de 2014 do Ministério. Ricardo Gouvêa, defensor público na capital paulista, afirma que o cárcere em si é o motivo responsável por esses altos índices. Os fatores que caracterizam a situação do sistema penal estão ligados ao desrespeito aos direitos humanos, ou seja, ao princípio de garantir aos indivíduos direitos que não devem ser invalidados pela sentença aplicada. “A gente não consegue tratar com dignidade essa pessoa presa. Nós realimentamos esse sistema”, afirma Gouvêa. CONFUSÃO GENERALIZADA. “Aqui temos uma baderna, não tem sistema nenhum, não tem coisa nenhuma”, foi o que disse a desembargadora aposentada Luzia Galvão, de 73 anos, quando questionada a respeito da atual situação carcerária brasileira. De acordo com a Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo (SAP-SP), apenas seis dos 84 presídios

do estado não são superlotados, o que resulta no caso de proliferação de doenças e revoltas prisionais. Inicialmente, essa problemática parece ser o principal foco das reclamações por parte da população prisional. Segundo um levantamento do Depen, 40% dos 600 mil detentos estavam em prisão provisória, sem julgamento na primeira instância. Prisioneiros que aguardam o julgamento final contribuem para o excedente do limite de pessoas nas celas. O ex-detento Leonardo Moraes Precioso, de 35 anos, dedicou sua vida ao esporte, chegando a jogar futebol profissionalmente em clubes grandes, como Corinthians e Palmeiras. Ao abandonar os campos, reencontrou alguns amigos da época de escola que estavam ligados ao crime e, por influência, envolveu-se com o tráfico de drogas. Foi preso em 2008 e permaneceu sete anos no cárcere, em sete centros de detenção diferentes. “Morei em celas com espaço para 12 pessoas, mas vivemos por um tempo em 60”, relembra. A falta de recursos ligados à saúde, saneamento básico, alimentação e qualificação profissional estão entre as piores dificuldades no cotidiano dentro do presídio. Agora, Precioso cursa Educação Física e é coordenador de esporte do Gerando Falcões, franquia social que tem como sonho transformar as favelas do Brasil.

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Fonte: Departamento Penitenciário Nacional. Dados de 2014 Outro problema é o alto número de casos de doenças infectocontagiosas nos presídios brasileiros. Entre a população brasileira no geral, são 33 casos de tuberculose para cada 100 mil habitantes, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Nas prisões, o número sobe para 932 a cada 100 mil habitantes, como aponta o levantamento de 2015 do Ministério da Saúde. A maioria das ocorrências se dão pela relação entre a doença e problemas com HIV, em consequência das falhas na imunidade das células do indivíduo, minimizando a capacidade de combate e controle da infecção tuberculosa. A combinação de superlotação, pouco espaço e ventilação, falta de higiene básica e medicamentos, assim como a negligência da assistência penitenciária de saúde leva ao que especialistas chamam de “morte silenciosa” no interior das prisões. O agente de segurança penitenciária Leandro Pelloggia afirma que a lotação é um dos fatores que colaboram para a proliferação de doenças e contágio nas celas. Segundo ele, o que contribui para essa problemática é a falta de incentivos dos governos estaduais para os profissionais da área da saúde, já que o teto salarial

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desses postos é baixo. Como os presos não estão completamente isolados do mundo exterior, uma contaminação não controlada entre eles também representa um grave risco à saúde pública. Já o desapoio da sociedade e a falta de iniciativa por parte do Governo são fatores que dificultam a melhora do setor. “Cadeia não dá voto”, alega a desembargadora Luzia Galvão. Assim, o dinheiro público não é aplicado no sistema prisional. Além disso, a realidade das mulheres dentro dos presídios femininos deve ser considerada no debate. Karine Vieira, ex-detenta de 36 anos, alega que a diferença da realidade dos presídios masculinos e femininos pode ser atribuída à herança machista que persiste na sociedade. Ela acredita que o homem é privilegiado e relata que as carências específicas dos presídios femininos são de necessidades básicas e afetivas. Em uma audiência pública na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, em 2017, Petra Silvia, a coordenadora nacional para a Questão da Mulher Presa da Pastoral Carcerária (CNBB), denunciou a falta de material de higiene íntima nos presídios, como o

racionamento de apenas três absorventes por mês para cada presa. Vieira também é assistente social e fundadora da empresa social Responsa, que tem como foco promover a empregabilidade e capacitação de egressos. Ela conta que uma das dificuldades enfrentadas quando foi presa foi o afastamento dela de seu filho, fato que ilustra a realidade de muitas mulheres presas. Segundo o Infopen Mulher de 2014, 80% das internas são mães. DESAFIOS DOS EGRESSOS. Emerson Ferreira, de 29 anos, ex-detento e criador do projeto Reflexões da Liberdade, que transforma pela educação a realidade de comunidades, afirma que ter passado pela prisão foi uma consequência de uma vida cheia de negativas. Condenado a uma sentença de oito anos por associação e crime de tráfico, hoje é psicólogo e atuante na área de Educação. “Resolvi ler todos os livros de Psicologia da prisão, mas foi difícil romper o crime e começar uma nova trajetória fora dele”, relata. Ele se empenha em ensinar os valores que, pela falta, o levaram à criminalidade, incentivando jovens da sua comunidade no


município paulista de Embu das Artes a tomarem controle das próprias vidas. A pesquisa do Infopen revelou que cerca de 75% dos detentos brasileiros não chegaram a cursar o Ensino Médio, 51% não concluíram o Fundamental e apenas 1% chegou a iniciar ou concluir o Superior. “Na prisão, percebi que eu realmente não tinha uma boa base educacional. Nunca tinha escutado sobre valores humanos, nunca tinha lido um livro por completo, não aproveitei e não evoluí muita coisa na escola”, manifesta Ferreira. Uma vez que a pessoa é presa, suas oportunidades ficam muito mais limitadas. A assistente social Camila Cristina dos Santos afirma que a diminuição do índice de reincidência deve ser responsabilidade do sistema carcerário e da sociedade, que tem uma cultura que não facilita a ressocialização do egresso. Ela defende a necessidade de um ambiente justo e igualitário, de forma que isso seja refletido no sistema penal. No entanto, para que a prisão possa servir como forma de ressocialização e “reparar” os danos prévios, é necessário apoio e auxílio de uma educação profissionalizante. Em 2010, as Diretrizes Nacionais para a Oferta de Educação para Jovens e Adultos em Situação de Privação de Liberdade nos Estabelecimentos Penais garantiram aos presos o direito à educação escolar. Mesmo assim, o Infopen mostra que apenas um pre-

sídio em cada dez tem acesso a esse tipo de atividade no Brasil. PUNIÇÕES ALTERNATIVAS. “São necessárias maiores ferramentas de despenalização e de cumprimento de penas restritivas de direito em vez de penas privativas de liberdade, especialmente dos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à vítima”, alega o defensor público Ricardo Gouvêa. Tais infrações dizem respeito a furtos, crimes de trânsito e estelionatos, por exemplo. A Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo informa em seu site que foram inauguradas 27 Centrais de Penas Alternativas entre 2011 e 2016, totalizando 68 em funcionamento no estado. Algumas das penas alternativas aplicadas pelo Governo são a prestação de serviços comunitários, a interdição temporária de direitos, a perda de bens ou valores e a limitação do fim de semana. As medidas podem ser aplicadas pela Justiça quando a pena for inferior a quatro anos, conforme determina o artigo 44 do Código Penal Brasileiro, ou quando o crime for culposo ou apresentar ausência de violência e grave ameaça. “Essa lei [Lei nº 9.099/1995, que trata das penas alternativas] ajudou muito, só que possui falhas e não é aplicada em alguns casos”, aponta a advogada criminal Paula Vilela. De fato, é possível constatar certa inexatidão em sua aplicação. Em

2011, somente 20% dos casos julgados tiveram como punição as chamadas penas restritivas de direitos, como apontado por pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada). Ricardo Gouvêa cita ainda que grande parte dos crimes que poderiam receber penas alternativas estão ligados ao tráfico de entorpecentes. Em 2006, a chamada Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006) passou por uma alteração com o intuito de traçar uma linha que diferenciasse usuário de traficante, sem descriminalizar o uso de drogas. Para Camila Cristina, enquanto não houver a legalização das drogas, o tráfico continuará sendo o crime responsável pelo maior número de prisões no Brasil – desde 2006, o aumento de pessoas detidas por essa infração foi de 339%, conforme apontam dados do próprio Ministério da Justiça. A Lei de Drogas, supostamente, colabora com a seletividade penal, visto que a classificação como usuário ou traficante fica a cargo, num primeiro momento, do policial e, então, do juiz. A aplicação de penas alternativas para estes casos permitiria importantes reduções no número de presos. “É preciso tirar a máscara, assumir que tem muita coisa errada e que somos todos culpados por não termos nos importado antes. Muito pode ser resolvido em quatro ou cinco anos, mas é necessário começar”, diz a desembargadora Luzia Galvão.

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Presos na área de lazer da Penitenciária Central de São Paulo, na Avenida Ataliba Leonel, na Zona Norte. Foto tirada entre 1992 e 1993

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POLÍTICA

Vitrine da devastação humana Cracolândia escancara as disparidades do Centro da cidade mais rica da América Latina Texto por Ailane Roma, Bruno de Lima e Monique Polerá Fotografia por Bruno de Lima

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o caminhar pela região ao redor da Estação da Luz, em São Paulo, ouvíamos a mesma frase da maioria das pessoas com quem conversávamos: “A Cracolândia está em todo lugar”. Bairro da região central, a Luz fica a apenas cinco quilômetros da Avenida Paulista, uma das maiores referências culturais e econômicas não só no Brasil, mas de toda a América Latina. A região de tráfico e uso de drogas nas ruas está em um dos bairros mais antigos da cidade, vizinho a

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ambientes protagonistas da vida artística paulistana, frequentados, sobretudo, por uma elite social e intelectual. Fomos à Praça Júlio Prestes. O espanto tomou conta de nossos olhos com a cena que estava à nossa frente. Cerca de mil e duzentas pessoas se concentravam no pior pedaço de São Paulo que alguém pode imaginar. Para quem nunca havia visto pessoalmente a Cracolândia, a realidade é chocante. Tudo em frente à Estação Júlio Prestes da CPTM, num retângulo entre a praça, a Alameda Cleveland e a Rua

Helvétia. Um clima inóspito, sete dias por semana, sem pausa para descanso. Enquanto Tarsilas e Debrets estão expostos na Pinacoteca e ingressos para assistir uma orquestra de música clássica chegam a centenas de reais na Sala São Paulo, a realidade com a qual nos deparamos do lado de fora dessas ilhas culturais é o oposto disso. Da maior sala de música erudita da capital paulista, vemos cenas degradantes e desumanas que condicionam as pessoas que ali vivem. O grupo é a personificação da exclusão social e ver


De acordo com a contagem da GCM, cerca de 1200 pessoas vivem no fluxo

a imensa dimensão do lugar é devastador para qualquer um. A história da Cracolândia teve início nos anos 1990, a partir da expropriação de hotéis e bares ligados ao tráfico de drogas da Luz por parte do poder público, que levou os antigos usuários e traficantes a ocuparem as ruas da região. Desde então, a área passou por oito operações diferentes, que no começo tinham o intuito de pôr fim, ou pelo menos amenizar, a realidade do local, mas não cumpriram seus objetivos iniciais. A Cracolândia é uma vitrine da miséria e da devastação humana. Pensamos em desistir. Não pela situação, mas por não saber que era daquela forma, naquela proporção. A desconfiança está impregnada na Cracolândia. O medo da exposição faz com que todos sejam reclusos e indiferentes: dos usuários e guardas municipais aos comerciantes e transeuntes. A repressão não escolhe cor, classe ou cargo. O usuário teme ser

rechaçado pela polícia seja lá por qual crime ele tenha cometido. A polícia teme ser repreendida pelo Comando Geral pelas declarações que ela concede. O comerciante tem medo por estar submisso àquele cenário. SINTONIA. Um funcionário da CPTM conversou conosco enquanto olhávamos para o caos à frente. Ele contou que os moradores da praça não costumam entrar na estação, somente para pedir ajuda a um ou outro passageiro. Porém, quando alguém realiza uma filmagem ou fotografia do lugar, há uma virada de fluxo na Cracolândia e cerca de cinquenta pessoas correm para pegar o aparelho de quem tentou expor o local. Fazer essa reportagem seria mais difícil do que imaginávamos. Já havíamos sido ameaçados pouco antes de conversar com o trabalhador enquanto tentávamos tirar fotos que representassem o nosso abalo com a cena que se perpetuava aos olhos. Um homem pas-

sou gritando: “Se vocês não guardarem a câmera agora, vamos estourar a câmera e vocês”. Gritos, acusações e hostilidade viriam após a simples pergunta: “Você pode nos contar a sua história?”. A alternativa era mudar a abordagem. Aquilo se tornou um exercício de sintonia, que começa com a oferta de um cigarro, um papo casual e, por fim, as intenções. Foi cedendo um cigarro que Caíque, também conhecido na região como Amendoim, aceitou conversar. A Praça Princesa Isabel, para onde parte dos usuários foi deslocada com a ação da Prefeitura em maio de 2017, a dois quarteirões de onde concentramos esta reportagem, estava cheia de moradores e transeuntes que aproveitavam o clima ameno para descansar. “Isso aqui é um inferno, sabia? Ninguém quer ficar aqui, não. Só que não tem jeito”, desabafa Amendoim. Ele não foi bem acolhido ao chegar à capital paulista na juventude. Logo na primeira semana, dormia em um albergue, onde teve

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As ironias pixadas nos muros da Cracolândia trazem mais vida ao local

Na praça, é encontrado todo tipo de sujeira; depois de limpa, a calçada parece nunca secar

o primeiro contato com as drogas. Tentou trabalhar como bartender. Ninguém o queria por perto porque usava tóxicos. Hoje, não lhe dão emprego por ser um dependente químico. Quando perguntamos se seria capaz de se recuperar caso recebesse algum tratamento, Amendoim riu. “Já passei por quinze internações. Sou quase um doutor”. Era cada vez mais complicado. A visão de uma câmera fotográfica atiçava a rivalidade dos usuários. A alternativa restante foi procurar outras opiniões. No começo da noite, abordamos o inspetor Ivan. Os 56 anos de vida se manifestavam nos cabelos grisalhos. Numa conversa receptiva e quase informal, descobrimos detalhes sobre o dia a dia de quem vive e trabalha lá. A Prefeitura de São Paulo possui os Atende, unidades de atendimento diário emergencial construídas em contêineres instalados na região da Luz, montadas para as pessoas em situação de rua dormirem em um primeiro momento quando procuram por ajuda e, posteriormente, fazerem parte dos programas assistenciais da Prefeitura. Conversamos com Cláudia, uma mulher que mora no Atende 3, e vimos como os benefícios prometidos pelo governo são uma das piores coisas já criadas. Os que vivem lá dormem em pequenos espaços sem circulação de ar. Além do programa de moradia, existe uma Unidade de Recomeço na Rua Helvétia, propriedade do Governo do Estado, que possui projetos de higienização básica como banho e corte de cabelo, academia, cursos e palestras para a inclusão social. Visitamos os dois locais. Enquanto entrar no Atende 2 foi a confirmação do que Cláudia compartilhou, a Unidade de Recomeço aparenta ser um local bem estruturado. Apenas alguns funcionários do local quiseram dar sua palavra. Saímos do prédio e procuramos outra pessoa para conversar. A segunda ameaça ecoou ao nosso redor. “Se eles não forem embora agora, vão levar tiro. Primeiro a loirinha, depois o cara”, alguém falou. Não ficamos para ter certeza se isso aconteceria naquela manhã, mas voltamos à tarde com o apoio, uma quase escolta, da Guarda Civil Metropolitana (GCM). No meio de uma conversa, descobrimos que a nova gestão municipal e estadual pretendefazer outra ação como a de 2017. O inspetor Ivan alegou que o que ainda barra a situação é “a falta de lugar para enviar essas pessoas”. FAXINA. Acompanhamos uma das limpezas a convite da GCM. A Cracolândia tem um som: a alguns metros de distância, já é possível escutar o barulho de várias pessoas conversando simultaneamente. Há ainda a presença de música. No momento que chegamos, estava

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tocando funk e o ritmo continuou quando saímos. O cheiro também é forte. A Cracolândia parece ter vida própria. A Prefeitura realiza três limpezas diárias: à meia-noite, às 10 horas e às 15 horas. Na Rua Helvétia, interditada nesses horários, a cena é degradante, o cheiro é insuportável e você não cansa de se questionar como alguém pode viver naquelas condições. Os moradores dali se acostumaram ao vai e vem dessas “faxinas”. Não é um processo rápido, podendo levar em torno de duas horas. Começa com a saída do fluxo, passa pela limpeza e pela triagem e termina com a volta do fluxo. A retirada é feita pelos assistentes sociais, que só têm a ajuda da GCM quando o usuário resiste em permanecer na praça. A limpeza começa em seguida. Enquanto funcionários da Prefeitura varrem o local, um caminhão de água passa por ali e finaliza com jatos de mangueira. Ao mesmo tempo, os moradores aguardam na Rua Helvétia, considerada uma segunda casa, já que mudam de lugar a todo o momento e suas calçadas parecem nunca secar. Quando a limpeza da praça termina, a GCM começa uma operação de triagem, em que são feitas duas filas, uma masculina e outra feminina, que serão revistadas por pessoas do mesmo gênero. É nesse momento que a polícia busca drogas e dinheiro de tráfico. Se a pessoa não tiver nada, pode voltar para o fluxo na Praça Júlio Prestes. Caso contrário, ela será revistada separadamente. Vimos três prisões no dia. Duas mulheres e um homem. Ele resistiu. Ivan contou que a norma da Prefeitura é recolher todos os pertences, até mesmo cobertores. Porém, ele não faz isso. Não vê necessidade de piorar ainda mais a vida de quem mora ali. A volta do fluxo traz o funk, os olhares perdidos para a vida e atentos ao redor, as fumaças, os cachorros e o nosso retorno para casa assustados com o que iríamos contar. “Nunca havia visto nada do que vi ali”, pensamos enquanto voltávamos para casa. Vimos enormes pedras de crack, tubos de cocaína e, pior, como a vida de quem está naquele cotidiano é cruel e sem perspectivas. Éramos três jornalistas em formação que tinham aprendido que o jornalismo é “a arte de sujar os sapatos”. Não imaginávamos que, cada vez que esses sapatos fossem atrás de uma boa reportagem, ela mudaria nossas vidas de alguma forma. A droga apreendida em um dos três flagrantes efetuados pela polícia no dia da limpeza

Barreira policial Revista (separada entre homens e mulheres)

Concentração

Da Estação Júlio Prestes, a Guarda Civil Metropolitana avança e começa a mover a concentração na Alameda Cleveland. Com uma barreira, desvia o fluxo para a Rua Helvétia e, no cruzamento com a Alameda Dino Bueno, a GCM faz a revista, separada entre homens e Guarda Civil mulheres. As pessoas Metropolitana permanecem ao longo da Helvétia e, terminada a ação, os usuários retornam ao ponto inicial. O processo é repetido três vezes ao dia.

Fonte: Google Mapas

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EDUCAÇÃO

Sala de aula na berlinda O contrabando de narcóticos nas escolas públicas se apresenta como um dos maiores desafios para o Estado de São Paulo Texto e fotografia por Larissa Albuquerque

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tráfico de drogas vem se expandindo cada vez mais no Brasil. De 2015 para 2016, foram mais de cinco mil pessoas encarceradas por crimes ligados a drogas, segundo dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen). Toda a criminalização e violência causada por essa questão atinge também os ambientes de ensino, que deveriam ser um lugar seguro de aprendizagem. Uma pesquisa de 2015 do portal educacional QEdu mostra que o tráfico dentro das escolas públicas atinge 35% do total de escolas no Brasil e, em São Paulo, tem um dos maiores índices do País, na casa dos 47%. A relação entre estudantes e traficantes é ocasionada pela ausência de políticas públicas mais bem definidas por parte do Governo Estadual de São Paulo. O sistema educacional oferecido a jovens e professores pelo Governo está sucateado e não trata os casos como deveria tratar. As drogas entram nas escolas com ajuda dos próprios alunos. Segundo pro-

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fessores e estudantes de uma escola estadual do bairro Jardim Paraíso, na região periférica de Guarulhos, o consumo e o tráfico começam na oitava série, mas se concentram no Ensino Médio. As quadras e os arredores são os locais preferidos para as atividades de compra e venda. O professor de Educação Física da escola comenta que as drogas entram pelo vão da quadra e por buracos nas paredes feitos pelos alunos, usuários e traficantes. “Os que trazem as drogas para dentro da escola não respeitam nem mesmo os horários das aulas. Costumavam usar a quadra enquanto a aula acontecia, grupinhos se juntavam e até pessoas de fora da escola entravam na minha aula para usar as drogas”, relata. Depois de muita conversa por parte dos professores, os alunos começaram a respeitar o ambiente da aula. A coordenadora da mesma escola apreende alguns “kits ilícitos”, que contêm cigarros de maconha, biqueiras e isqueiros, mas não possui estrutura nem poder para acabar de vez com os casos. “Tirar dos alunos as dro-

gas não faz com que eles não as consumam e tragam mais no dia seguinte”, afirma. Docentes, alunos não usuários e funcionários vivem na berlinda dentro desse esquema. Os incomodados não costumam denunciar, já que podem se comprometer perante ao tráfico no bairro e, paralelamente, afetar também a precária segurança da escola e da comunidade em que se encontram. A falta de segurança policial dificulta a postura de quem quer combater esse problema. Professores e alunos da escola relatam que não se sentem seguros naquele ambiente, não só pela ausência da polícia, mas também pela postura dela diante do tráfico. Em vez de trazer conforto e o sentimento de segurança, gera mais medo. Na visão dos alunos, o policiamento é agressivo. Episódios como a explosão de bombas após uma denúncia ou uma tentativa de interferir no tráfico de drogas já ocorreram no colégio guarulhense. PROBLEMAS NO ENSINO MUNICIPAL. Em fevereiro de 2018, foi publicada a Lei mu-


nicipal 16.867, que sanciona o projeto de prevenção ao uso de drogas nas escolas paulistanas. O Programa do Grupo de Educação e Prevenção às Drogas (Gepad) do estado de São Paulo promove a capacitação de docentes para lidar com questões de uso e tráfico dentro das instituições de ensino. Palestras também foram realizadas para a orientação dos docentes, pais, alunos e da Guarda Civil Metropolitana (GCM), para integrar o policiamento e a comunidade em geral. Apesar da lei ter entrado em vigor na data de sua publicação, dezesseis dos vinte professores da escola de Guarulhos retratada dizem que ainda sentem falta de uma preparação adequada para lidar com essa questão. Ao perceber uma situação de tráfico dentro da escola ou da sala de aula, muitos não sabem como reagir. Iniciativas como a da Escola Municipal Darcy Ribeiro, em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, ainda são escassas para se lidar com o tráfico dentro das instituições de ensino. Diego Mahfouz, diretor do colégio, fez um grande trabalho em seu cargo que lhe rendeu uma indicação ao Global Teacher Prize de 2018, o maior prêmio de educação do planeta. A Darcy Ribeiro era uma escola muito violenta antes da chegada de Mahfouz. Era comum presenciar alunos portando armas, as salas de aula pichadas e até incendiadas. No seu primeiro dia no cargo, ele foi recebido com atitudes agressivas e intimidadoras: jogaram água, frutas e lixo no diretor, além de colocarem fogo no banheiro. A partir do momento que ele disse aos alunos que ele estava ali para escutá-los, tudo mudou. Mahfouz abriu espaço para os estudantes, pais, e para a comunidade. Promoveu um trabalho de reforma da escola. Criou uma praça de leitura para incentivar a aprendizagem e o debate de livros no colégio, acompanhados pedagogicamente pelos professores ou pelo próprio diretor. As mudanças implementadas diminuíram a evasão escolar, incrementando apresentações de dança, música e teatro, com o projeto “Praça da Casa”, com participação de estudantes, pais e funcionários da Darcy Ribeiro. Em brigas, o diretor se senta com os alunos e media uma conversa para entender o problema. A estratégia de ouvir acima de tudo o aluno foi crucial. Antes de dar alguma advertência ou suspensão, Mahfouz incentiva o diálogo. Essas medidas a favor do bem-estar do aluno reverteram o quadro de violência e criminalidade dentro da Darcy Ribeiro. A escola, que era considerada uma das piores de Ribeirão Preto, agora é sentimento de orgulho para a comunidade ao redor dela. Serve de exemplo para outras escolas do estado de São Paulo e do País. Acima da questão da segurança pública, está a questão da educação pública. A repressão feita pelo policiamento não resolverá tal dificuldade, mas só uma política eficaz no setor educacional que acolhe o aluno e o equipara a todos. Como foi exemplificado por Diego Mahfouz, é preciso integrar as aulas, os professores e a estrutura das escolas, oferecendo melhores materiais, laboratórios e bibliotecas. Além de envolver os alunos, a comunidade e a escola. Quando todos esses núcleos se sentem integrados, os sentimentos de compartilhamento e aprendizagem entram no ambiente escolar. Se isso partir não só do corpo docente, mas também de todo o poder público, a eficiência e abrangência serão maiores ainda.

A quadra, dentro do ambiente escolar, é o principal local para a venda e consumo de narcóticos

Pelos buracos no muro, os traficantes passam os químicos que serão vendidos aos alunos

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SOCIEDADE

NATHALIA LOPES

As típicas vestimentas coloridas e “rodadas” são vendidas na Feira Cultural da Praça Oscar Silva para o grupo e adeptos do estilo característico

Vidas ciganas Surgidos antes da era cristã, membros dessa comunidade ainda são vítimas de preconceitos onde quer que vivam Texto por Carolina Campos, Lucas Ximenez e Nathalia Lopes Fotografia por Lucas Ximenez e Nathalia Lopes

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o município de Caieiras, nos arredores da Grande São Paulo, uma senhora de 84 anos, cabelos escuros e brincos dourados espera na porta de seu lar. Seu nome registrado na identidade é Júlia Marques de Lima, porém, ela é mais conhecida como Bibi Esmeralda. De vestido vermelho com bordados dourados, a senhora que ao todo possui três nomes, de acordo com a cultura cigana, recebe suas visitas com um enorme sorriso no rosto. Seguindo a tradição de seu povo, o primeiro nome não pode ser revelado e morre com o pai, com a mãe e com ela. O segundo, é o nome de sociedade, usado para registro. E o último, dado pela madrinha, é o seu nome dentro de sua comunidade. A matriarca declara sofrer preconceito por parte dos não ciganos, mas afirma esse ser apenas um dos problemas enfrentados pela sua comunidade. Os ciganos chegaram ao Brasil com os primeiros portugueses, quando ainda não existia a ideia de “nação brasilei-

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ra”. Sendo assim, esse povo fez parte da criação de uma identidade nacional. No entanto, de acordo com a antropóloga Florencia Ferrari, eles se recusam a serem reconhecidos como cidadãos e refutam essa identidade que ajudaram a construir. Para Ferrari, é como se essa sociedade estivesse fora de qualquer nação. Outro ponto interessante é que ser cigano é um estilo de vida e não uma cultura, como afirma a antropóloga. Não existe a cultura cigana. Existe como vivem determinadas pessoas em determinados lugares que se intitulam “ciganos”. Dentro da comunidade cigana há também a discordância do que é ser cigano. Em uma feira cultural, no dia 24 de março de 2018, na Praça Oscar Silva, localizada na Zona Norte de São Paulo, as ciganas Maura Ney e Bibi Esmeralda entraram em uma discussão sobre o que era e quem era de fato cigano. Uma afirmava que para ser cigano, era necessário saber a língua romani, típico idioma do

povo, mas as duas se recusaram a falar esse idioma uma em frente à outra, dando sinais de desconfiança. Além disso, outro ponto em questão é a visão sobre a lógica do sedentarismo, que não significa necessariamente morar em apenas um local. Um forte exemplo disso é que em um bairro de Jaboticabal, composto somente por ciganos, é possível encontrar diversas casas que são usadas de um modo particular. Cada casa possui um núcleo familiar, mas existe um trânsito permanente de pessoas, em que os moradores estão sempre recebendo visitas e parentes, tendo uma rotatividade enorme de todos. Como em qualquer sociedade grande, existem processos de segmentações, de divergências internas. Os ciganos podem criar uma dinâmica de vingança, em que certas famílias podem ter convivido com outras em determinada época e gerado algum tipo de conflito. De acordo com a antropóloga, esse tipo


de situação é comum e alimenta a rivalidade entre grupos diversos. Olhando sob este ângulo, também é possível citar o imaginário cigano, ou seja, pessoas que não são ciganas, mas praticam rituais, vestem-se, dançam e fazem festas ciganas. O cigano foi considerado pelo pensamento ocidental como uma espécie de “outro”, tanto pelo lado negativo, sendo visto como ladrão e bruxo, quanto pelo lado positivo, o da utopia, com fascínio e com a ideia de liberdade. Para Ferrari, os ciganos se apropriaram desse aspecto. Eles têm consciência de que são vistos dessa maneira e articulam isso para seu próprio bem. ORIGEM NÔMADE. Acredita-se que o povo cigano surgiu na região correspondente hoje à Índia, antes mesmo de Cristo, mas sua origem de fato ainda é um enigma. Existe uma grande diversidade de costumes e tradições e, por isso, usar o termo “cigano” é algo genérico, já que existem algumas subdivisões. No Brasil as mais numerosas e conhecidas são os Ron e os Calom. Os Calom chegaram ao Brasil na segunda metade do século XVI, durante as navegações que saíam da Península Ibérica. Diferem-se dos Ron pelas características físicas, dialetos e costumes. São mais acessíveis, mais pobres e necessitam do estereótipo da tradição para sobreviver. As mulheres usam a leitura de mão como fonte de renda, já que a maioria delas não têm escolaridade formal e tampouco sabem ler e escrever. Os homens têm o costume de negociar diversos objetos por onde passam. Do mesmo modo, independentemente do sobrenome que carreguem, para as comunidades ciganas, a família é sagrada. É uma entidade extensa que compreende os parentes com os quais sempre são mantidas relações de convivência, comunhão e interesses de negócios. Possuem frequente contato, mesmo se os membros de uma família viverem em locais diferentes. Também é uma característica de organização que as famílias sejam em sua maioria matriarcais, ou seja, o poder de decisão gira em torno da mulher mais velha. Ela é responsável também por aconselhamentos e possui a última palavra. Mesmo assim, as meninas não possuem liberdade e autonomia, os casamentos são arranjados e, na maioria dos casos, não é permitido namoro. Um forte exemplo de uma típica família dos Calon é a de Maura Ney, que trabalha com leitura de mão. Ela e seus parentes utilizam dos shows e feiras culturais para seu sustento. Ney afirma que quer proteger suas filhas das influências do exterior, não autorizando as menores a saírem desacompanhadas ou namorarem sem supervisão. Além disso, afirma que considera importante educar as crianças na escola, mas sempre que pode

passa nos intervalos e mantém um acompanhamento próximo. PRECONEITO. Há muito tempo, os ciganos sofrem com perseguições. Como nos tempos da Segunda Guerra Mundial, quando eram assassinados nos campos de concentração nazistas. Esse tipo de ataque, apesar de ter se tornado menos violento e mais disperso, existe até hoje. Conversando com ciganos e simpatizantes do estilo de vida, é possível ouvir uma série de histórias marcadas por violência à comunidade. E o caso de Esmeralda, que estava perdida numa estação de metrô, pedindo informação a quem passava, e mesmo com as roupas coloridas, joias e acessórios chamativos era ignorada por todos. “Eles falam que a gente é porco, rouba criança e come defunto. Já pensou comer defunto? Deus me livre”, exemplifica Esmeralda com alguns dizeres preconceituosos que já ouviu na vida. Da linhagem Ron, Lu Cigana, como é chamada, estava organizando um evento no qual as portas de um acampamento cigano tradicional em Guarulhos seriam abertas. Por mais que não more nesse acampamento, ela convive com vários ciganos nômades de São Paulo e região, devido ao serviço político e social que exerce na luta pela causa da comunidade. Lu relata que os preconceitos acontecem das mais diversas formas, como quando os vizinhos ateiam fogo e jogam lixo no acampamento. Mesmo assim, ela acredita ser inútil prestar queixa às autoridades, tendo medo que os moradores revidem de alguma forma, piorando a situação do ambiente. Pertencente aos Calom, Maura Ney, dos Calom, afirma que teve seus avós mortos por um incêndio criminoso, causado pela Polícia Militar. O pai foi um dos poucos sobreviventes. “O racismo contra nós é silencioso. Você não vê a mídia falar que invadiram o nosso acampamento”, afirma. Entretanto, existem ciganos que possuem uma visão diferenciada do assunto, como é o caso de Beto Cigano. “Não sofri nenhum preconceito porque eu soube me comportar em relação ao momento. Sempre percebi quando eu não era bem visto. e você percebe esse momento, você tem a paciência de aguardar que a pessoa se interesse, vai saber de onde você é e porque você está ali”, afirma. REALIDADE BRASILEIRA. No início de abril de 2018, no bairro de Bonsucesso, em Guarulhos, a cigana Lu organizou um evento para comemorar o dia internacional dos ciganos, com contribuição de verba do Programa de Ação Cultural (ProAC) do Estado de São Paulo. O local contava com músicos e dançarinos convidados. Eles se apresentavam na tenda central do acampamento. Também haviam barracas de comerciantes que vendiam produtos

Não há um consenso entre o que é ser cigano de fato. Para alguns é ser descendente de linhagens tradicionais e seguir rigidamente os costumes. Para outros, é saber falar a língua romani. Há ainda os que defendem que seguir o estilo de vida e se afirmar como membro dessa comunidade é o suficiente.

NATHALIA LOPES

Da linhagem Ron, Bibi Esmeralda é a matriarca de sua família

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misa, faltando apenas o chapéu de rodeio. Quando perguntado sobre o estilo musical, relatou que preferia mesmo um “modão” sertanejo. À margem do espetáculo, Fabrícia, uma cigana residente do acampamento, disse que se sentia indiferente com o que estava acontecendo ali, quando questionada sobre os motivos dela não participar das danças, respondeu. “Isso aqui não é nós (sic). Ninguém quer ver isso aqui, querem ver o bonito”. Mas não são todos os membros dessa

comunidade que levam a vida como Fabrícia. O estilo de vida cigano pode variar, indo desde os que são adeptos ao nomadismo até aqueles que possuem uma melhor condição financeira e preferem não frequentar as conhecidas feiras. Há muita discordância sobre o que é ser cigano de fato, até mesmo entre os que se identificam com esse estilo de vida. Não existe um consenso do que é ser cigano. Para cada indivíduo o que vale é a autoafirmação e o sentimento que carrega pelo seu povo.

LUCAS XIMENEZ

LUCAS XIMENEZ

tradicionais como roupas, acessórios e até mesmo o serviço de leitura de sorte. O evento reuniu simpatizantes do estilo de vida, mas os próprios ciganos residentes estavam à margem do espetáculo. Dentro de suas cabanas, os homens não se misturavam e as mulheres, preocupadas em tomar conta das crianças, com roupas menos chamativas que as dos não ciganos, nem sequer participavam do evento. Em chão de terra e um amontoado de lonas,

A dança é um ponto bem marcante e sempre presente nas datas comemorativas da maioria dos grupos

LUCAS XIMENEZ

Eles falam que a gente é porco, rouba criança e come defunto. Já pensou comer defunto? Deus me livre! Bibi Esmeralda, matriarca

na lateral do acampamento, atrás das vendinhas presentes no evento, encontrava-se a barraca da matriarca. Sentada ao centro de seu lar e com uma dúzia de presentes aos pés, Preta, de 55 anos, fumava um cigarro enquanto recebia os convidados e, de um em um, dava-lhes boas-vindas. Responsável pelas decisões, a senhora que observava tudo de dentro da tenda, pouco participava diretamente, mas relatou que tudo aquilo a ajudava, tanto pelas doações quanto pela visibilidade. Por ser um terreno com declive, o local no bairro do Bonsucesso é propício a alagamentos. As chuvas são um grande problema para os moradores, já que não existem muitas possibilidades de escoamento da água. Além disso, a falta de saneamento básico dificulta ainda mais a situação. Com a fiação instalada de forma irregular, a luz elétrica chega, mas pelo fato da propriedade ser privada, os ocupantes relataram que não há muito que a Prefeitura possa fazer por eles. São ao todo sete moradias, sendo algumas bem equipadas com aparelhos de televisão e até fogão e geladeira e outras bem mais simples. A organização e o cuidado são notáveis, e entre galinhas e gatos rondando o acampamento, o brilho reluzente das panelas chamam a atenção de quem examina o que há dentro de cada uma das tendas. Em meio a lonas laranjas, cinzas e azuis, um grande ponto rosa bebê se destaca: a barraca decorada com tecidos de cetim, bordados com corações, pertence ao jovem Tiago, de 16 anos, e sua mulher. Nascido em Santa Catarina, Tiago alega já ter viajado o mundo inteiro. Suas roupas se diferenciavam das vestimentas que os convidados do evento usavam. Enquanto os homens vindos de fora trajavam camisas coloridas e bem extravagantes, ele vestia o que mais gosta: calça jeans, botas, ca-

Dona Esmeralda possui em sua casa um cômodo decorado com vestimentas típicas e objetos tradicionais reservado para atendimentos das leituras de mão

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CIDADE

Trabalhadores invisíveis A ONG Pimp My Carroça luta pelos direitos e pela projeção dos catadores de materiais recicláveis Texto por Beatriz Salvia, Bianca Quartiero e Karolyne Oliveira Fotografia por Beatriz Salvia viaja o mundo colocando em prática o ideal proposto pelo Pimp, mudando a vida dos catadores além das fronteiras brasileiras. Receberam, inclusive, o prêmio International Award for Public Art de arte urbana, em Hong Kong, China. As razões pelas quais alguém se torna catador são inúmeras. Heleno Augusto Silva, de 60 anos, era motorista e pintor, mas hoje, desempregado, trabalha na coleta de materiais recicláveis. Tudo que ele deseja na vida é uma casa própria, maior qualidade de vida e um emprego regularizado. Ao ser questionado como foi parar na rua, o homem diz que a vida o levou e o ensinou a ser catador e, embora não goste da sua situação, não enxerga outras possibilidades para sua vida. “Não vou ficar parado e também não vou roubar. Prefiro trabalhar coletando papelão, latinha aqui e ali. Roubar nunca”. Rodrigo Lucena é catador há 25 anos e conheceu o projeto em 2014. Ainda na infância, encontrou um bebê no lixo e, desde então, mudou o conceito sobre o que encontra na rua. “Agora de dia quando eu saio pra vender algum material, ele [o carrinho] fica descoberto assim ó: exposto para a sociedade”, relata sobre sua rotina e carroça, reformada e equipada. Lucena ainda mantém contato com Mundano e considera o projeto do grafiteiro como parte de sua vida, já que não vê nenhuma ação partindo do poder público. Pedro Alma, que já foi grafiteiro voluntário, relaciona o grafite com o próprio trabalho dos catadores, pois ambos são marginalizados, estão começando a ganhar espaço agora. Para Alma, o significado do Pimp My Carroça é de resistência. Os voluntários fazem parte dos mutirões, feitos de duas a três vezes ao ano, de

Para Lucena, o projeto é parte de sua vida

acordo com a quantidade de capital adquirido pelos financiamentos virtuais via crowdfunding. Além de pintar as carroças e distribuir equipamentos de segurança para as pessoas amparadas pelo projeto, existem também os atendimentos voluntários, como dentista, oftalmologista, massagista, cabeleireiro, veterinário, auxílio jurídico, entre outros. A primeira edição foi realizada em 2012, no Vale do Anhangabaú, na cidade de São Paulo, e reuniu cerca de cinquenta catadores. O Pimp My Carroça quer quebrar os estereótipos e estigmas da sociedade sobre esses trabalhadores. Heleno Augusto e Rodrigo Lucena, cada um com sua respectiva trajetória, são apenas algumas das milhares de figuras que existem pelas ruas de todo o mundo. A certeza que eles têm é de que existe uma constante em suas vidas: falta de visibilidade, falta de respeito, falta de política públicas que reconheçam o valor socioambiental do serviço prestado por eles. CAROL GARCIA

UESLEI MARCELINO

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as ruas das cidades, estão os catadores de lixo, responsáveis por quase 90% de todo o material que é reciclado no País, segundo o Instituto de Pesquisa Aplicada (IPEA). É por meio de um punhado de tábuas de madeira, papelões e pneus carecas que surge a principal, e às vezes a única, fonte de renda dessas pessoas. Existe uma iniciativa que procura romper com a invisibilidade e resgatar a autoestima desses catadores: o Pimp My Carroça. Em meio ao cenário desanimador de falta de políticas públicas para esses profissionais, o grafiteiro ativista Thiago Mundano, de 32 anos, surge com a iniciativa de ir às ruas entender um pouco sobre as histórias e necessidades desses trabalhadores e promover ações para ajudá-los. Mundano pinta carroças desde 2009. O nome do projeto, que foi estabelecido como ONG, em São Paulo, em 2016, faz alusão ao programa da MTV “Pimp My Ride”, no qual se reformam carros. O principal objetivo da organização consiste em ter força para incidir em políticas públicas, por meio da pintura e promoção das ações do movimento dos catadores pelas mídias sociais do Pimp. Assim, espera-se que haja a regularização da profissão e, consequentemente, a garantia de direitos trabalhistas. Sustentado com o apoio de fundações internacionais, verba via Lei Rouanet e financiamento coletivo, a ONG atua como um serviço fundamental na área social, além de apresentar a arte como um instrumento para tirar da marginalidade social esses trabalhadores. Atualmente, o projeto possui reconhecimento internacional e seu idealizador

Nos mutirões, os voluntários reformam o instrumento de trabalho, o que os ajuda a recuperar a autoestima

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MÚSICA

Pancadão além da quebrada Discriminado no próprio País, funk se profissionaliza e ganha o mundo Texto por Carolina Campos, Gustavo Ramos e Marina Lourenço Fotografia por Carolina Campos e Gustavo Ramos

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uando não é pela fala que o público é cativado, é pela batida. Com seu ritmo envolvente e despretensioso, o funk arrebata qualquer ouvinte e quebra barreiras. O “som de preto, de favelado”, como diz a música de Amilcka e Chocolate, está em todos os lugares: festas universitárias, ruelas de favelas, boates internacionais, na televisão e internet. Um dos ritmos mais esperados em baladas frequentadas

GUSTAVO RAMOS

Cheio de estilo, Mc Diki possui mais de 770 mil visualizações no Youtube

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por jovens tem sido requisitado em espaços muitos distantes de seu ponto de origem. Festas em que o ritmo musical está presente ocupam um cenário longínquo em relação à realidade dos bailes de favela onde surgiram, contando com grandes investimentos, dependendo do público-alvo que se quer atingir. Em conjunto com produtoras de eventos, é criado um conceito sobre a festa e a confecção de uma identidade visual do projeto para servir como propaganda. É pensado o local, a atração, as experiências, o consumo de bebidas e comidas, os pacotes oferecidos e uma infinidade de outros detalhes. Algo que não é era corriqueiro quando se pensa nas raízes do funk. “Não tem evento no Facebook, acontece em fluxo, você chega na quebrada e tem que conhecer os picos onde tem o fluxo. Você vai vendo”, relata Mariana Vieira, jovem de 21 anos, frequentadora de bailes funk. Normalmente, as festas ocorrem em espaços abertos e quase nunca contam com seguranças e grandes estruturas. Caixas de som empilhadas formam o famoso “paredão” para animar os frequentadores com música. Por mais que esteja longe da realidade das festas elitizadas, a própria base das festas de funk tem sofrido algumas mudanças, contando com alguns estabelecimentos, como casas de narguilé, tabacarias e adegas. “O pessoal tem visto que a polícia tem barrado e tem tentado organizar”, completa Vieira. SOLTA O GRAVE. O funk surgiu nos Estados Unidos e, no Brasil, ganhou destaque nos bailes do subúrbio carioca na década de 1970. Foi só em 1989 que o funk nacional, após sofrer algumas transformações, surge e entra em evidência com o DJ Marlboro, que lançou na época a coletânea “Funk Brasil 1”, um sucesso de vendas mesmo sem apoio da mídia e não se limita apenas aos bailes, como atesta Silvio Essinger, autor de “Batidão: uma história do funk”. A produtora Furacão 2000 ganha importância na expansão do funk, preparando shows, CDs e hits. Em paralelo,

começa a surgir nos morros um formato do gênero que retrata e exalta a realidade da favela, escancarando a violência, a criminalidade e a pobreza enfrentada nesses locais. Com a chegada do novo milênio, o “pancadão” estoura, atingindo então ouvintes de classe média e alta. Por volta de 2010, ocorre a descentralização da produção carioca, surgindo em São Paulo o gênero “Ostentação”, que aborda em suas letras o consumo e a crescente aquisição de bens dos MCs, como são conhecidos os cantores desse estilo musical. É nesta fase que ocorre o desenvolvimento em plataformas audiovisuais, lançando nomes como o do diretor e roteirista brasileiro KondZilla, que apostam na produção visual. Para o produtor musical Alexandre Cocciolito, essa expansão no mercado pode ser explicada pelos temas retratados, “Quando chegou em São Paulo, o funk se tornou mais comercial, falando justamente das marcas. Foi um negócio que teve mais aceitação, porque não afrontava alguém ou um sistema, então ficou mais fácil de ser vendido”, aponta. Se por um lado a voz do funk ganha espaço, por outro, ela incomoda. Em junho de 2017, o empresário Marcelo Alonso lançou um projeto legislativo, com 21.985 assinaturas de apoio, que tinha como objetivo criminalizar o funk, mas foi rejeitado pelo Senado Federal. Evento que revela as contradições envoltas no assunto presente na sociedade brasileira, que consome esse estilo de música ao mesmo tempo que o ataca. Mesmo que em 2009, pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, o funk tenha sido considerado como um movimento cultural histórico e de caráter popular, os MCs, DJs e o próprio público ainda enfrentam a estigmatização. Muitas vezes o público que frequenta os bailes funks sofre com estereótipos. Um exemplo disso é Hellen Vitória, de 17 anos. Por aderir ao estilo desta cultura, é taxada por termos pejorativos, como “puta” e “drogada”. Mesmo com o preconceito, ela já participou da equipe de dançarinos de shows de funk.


CAROLINA CAMPOS

O ritmo pode ser apreciado em diferentes ambientes, dos bailes nas favelas às festas elitizadas, quebrando barreiras e se espalhando pelo Brasil e mundo

“O crime já está aí há muito mais tempo do que o funk. Cultura é tudo aquilo que o corpo e a alma podem expressar. Se funk não é cultura, o que é cultura então?”, questiona MC Diki, que possui mais de 770 mil visualizações somadas em suas músicas no Youtube. Por ser um gênero musical que expõe o que é visto na realidade das periferias brasileiras, a sexualidade explícita, a criminalidade e a aquisição de bens como forma de superação são temas que incomodam a elite. “Daí vem o preconceito. Por ser um movimento da periferia e por conta das histórias que a gente agrega”, afirma, revelando sua própria experiência como MC. Para Diki, as principais mudanças sentidas com o tempo foram das temáticas abordadas no gênero. As músicas retratavam bastante a realidade das comunidades periféricas, hoje já é colocado como foco as danças, festas e baladas. GLOBALIZAÇÃO. A partir do momento em que o funk toma proporções internacionais, como no recente exemplo da cantora Anitta, torna-se impossível colocar essa realidade embaixo do tapete. No que diz respeito ao reconhecimento e à valorização internacional, o Brasil toma consciência que o “batidão” está em vias de se igualar ao samba. Tendo o poder de influenciar e deixar suas marcas em um mundo globalizado. “Ver MCs indo para fora do Brasil, é como se fosse comigo, porque eu vivo o funk 24 horas do meu dia”, afirma com orgulho o DJ RB, de 20 anos, com o trabalho focado na produção musical do estilo desde 2010. “Estou falando com uns cinco produtores lá de fora, que estão de olho no funk”, revela o produtor Cocciolito com o sorriso no rosto enquanto mostra uma lista de contatos no celular. Ele faz isso de uma casa simples, localizada na Vila Esperança, bairro da Zona Leste de São Paulo, onde se pode escutar um som quebrando o sossego da vizinhança. Trata-se da produtora CP9, um estúdio caseiro. No segundo andar da casa, existe um quarto abriga um microfone, um computador e um teclado, para habilitar os trabalhos da empresa criada e administrada pelo produtor. Cocciolito trabalha em um cenário em que tem crescido a demanda pelo funk no Brasil, principalmente pelo público jovem. Muitas vezes é requisitado a presença dos próprios MCs para compor o conceito do evento, proporcionado uma experiência maior, mais envolvente. Para o Grupo Toy, responsável pela produção de festas com foco universitário, apesar de o funk ter nascido na periferia com o mundo conectado, todos têm acesso fácil a ele. O ritmo agrada diversos públicos, como os das festas que organiza, por ser um estilo musical mais ousado.

O DJ RB trabalha com o ritmo desde 2010

Com esse alcance, é gerado um mercado que promove a produção musical e o consumo deste estilo de música. As produtoras têm explorado ao máximo formas de ter lucro. A fácil adaptação aos cenários em que habita possibilitou a expansão do funk. Entretanto, com a chegada desta popularidade e com os olhos do mercado sobre este estilo de música, outros problemas devem ser levantados. Por ser um movimento cultural periférico que ainda vem de lá até hoje, esse estilo carrega consigo os símbolos de uma luta por espaço, por voz e pelo simples direito de existir. Para o produtor Junior Santos a solução é criar uma consciência de um tipo de música independente. Seu desenvolvimento representa a quantia de histórias e de vivências que as periferias possuem. Revela a hipocrisia de um País que está sendo representado culturalmente no mundo por uma população que é constantemente escondida e calada. Para o escritor Silvio Essinger, existem dois aspectos sobre essa expansão: o positivo, mostrando ao Brasil o que ele quer escutar; e o negativo, em que o País não quer ver a sua própria cara no espelho. GUSTAVO RAMOS

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PERFIL

Da invasão à imersão

Por meio de suas lentes, o fotógrafo Leonil Junior captura a religiosidade brasileira e ganha destaque no País e no exterior Texto por Thiago Bio

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entado no café do Instituto Moreira Salles (IMS), na Avenida Paulista, Leonil Junior espera. O jovem de cabelos cacheados e rebeldes, silhueta esguia, se distrai no celular para matar o tempo. “Sou bem ruim de fala”, avisa logo no começo da conversa. “Eu tinha uma professora de Semiótica que dizia que eu escrevia com a imagem, e não com o texto”. A verdade é que Junior, um jovem de apenas 22 anos, é um fotógrafo que roda o Brasil para capturar com a lente de sua câmera do “sagrado ao profano” nacional. Natural da cidade interiorana Joanópolis, a 120 quilômetros da capital paulista, ele cresceu “no mato, na roça”, como explica. A infância na zona rural proporcionou aventuras e brincadeiras que envolviam a imaginação fértil do pequeno Leonil. “Tinha uma piscina em casa, mas eu não gostava de tomar banho nela. Queria aproveitar das águas dos rios de Joanó-

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polis”, conta. Junior cresceu assim: teve muito contato com a natureza, a cultura popular local, as festas tradicionais do interior. Isso tudo, mal sabia, influenciaria seu trabalho anos mais tarde. Certo dia, depois de muito insistir, a mãe resolveu dar uma câmera fotográfica quando o menino tinha oito anos. Era uma digital, capenga, o que conseguiram comprar. A partir daí, começou a fotografar a paisagem de onde vivia. Mas o clique que o fez perceber que queria fazer fotografia de verdade veio somente quando uma nova vizinha surgiu no bairro. GIRO. Claudia Alcovér se mudou em 2010 para a chácara ao lado de onde a família de Junior vivia, quando o garoto tinha ainda 13 anos. KK, como prefere ser chamada, era uma fotógrafa da vanguarda paulista. “Quando ela se aposentou, me passou tudo que sabia de fotografia”, revela agradecido o fotógrafo. Depois de

várias conversas sobre o assunto pelo qual Leonil tinha tanta curiosidade, KK começou a ministrar um curso semanal na Casa da Cultura de Joanópolis, chamado “Oficina do Olhar”. Nele, o adolescente conheceu a fotografia documental, sendo essa a sua linguagem hoje. “Leonil se mostrava sempre muito empenhado e, ao término do ano, aconselhei que ele procurasse uma faculdade de Fotografia”, lembra Cláudia Alcovér. Ele terminou o ensino médio e, com o auxílio da bolsa do Programa Universidade para Todos (Prouni), foi estudar no Centro Universitário Nossa Senhora do Patrocínio (Ceunsp), em Salto, a 160 quilômetros de sua cidade natal. Ir para a graduação deu um giro na sua vida. Logo no primeiro dia de aula, havia uma entrevista com um professor da universidade. Filipe Salles, professor, cineasta, fotógrafo e o docente mais temido da instituição. A resposta de Salles


após muito observar o que o jovem lhe mostrava: “Sua fotografia é espiritual, sabia?”. Leonil não esperava isso. Não tinha ideia do que ele estava falando. Para ele, eram simplesmente fotos de cultura popular brasileira. Surgiu então seu segundo mestre depois de KK, que o lapidou para o trabalho fotográfico. PROCISSÃO. Com as sugestões de Salles, dedicou-se a buscar mais lugares e devoções pelo Brasil. Em 2014, viajou para o Vale do Jequitinhonha, ao norte do estado de Minas Gerais. Aos 17 anos, Alê do Rosário, colega e especialista em congadas e outras manifestações culturais do Vale, convidou-o para conhecer o Festivale, um evento de culturas populares da região. A paixão pela fotografia de Junior só crescia e o entendimento de que ela é uma ferramenta de mudança social, também. Começou a rodar o Brasil, de Norte a Sul. A convite do amigo também fotógrafo, Guy Veloso, foi registrar o Círio de Nazaré, no Belém, manifestação católica na capital paraense que acontece anualmente no segundo domingo de outubro. Para fotografar o Círio, foi para o meio da multidão, próximo à corda da procissão. Ele queria ficar do lado daquele povo, participar com eles, imerso. “Na primeira vez, ele foi para o local mais difícil de fotografar, que é a corda, onde dez mil pessoas se acotovelam para conseguir na mesma linha de cerca de 400 metros. Ele se arriscou em algo que só fotógrafo experiente faz”, conta Veloso, ainda impressionado com a ousadia do jovem. Em 2015, foi aberto um edital da Casa de Cultura Cavaleiro de Jorge, em Alto Paraíso de Goiás, para selecionar dois fotógrafos brasileiros para visitar uma aldeia multiétnica local. Escolhido, Junior viajou até o Centro-Oeste brasileiro, onde a relação com os indígenas se aprofundou. Os habitantes dali acreditavam que a sua câmera fotográfica capturava a alma dos indivíduos. O fotógrafo via essa alma como uma essência, que só se apreende estando lado a lado. “Você tem

Junior foi fotografar as aldeias em 2015 pela primeira vez em Goiás

que estar imerso realmente. Já fui fotografar, por exemplo, a Jurema Sagrada [uma tradição mágica religiosa nordestina]. Lá, tomei a bebida que vem de uma árvore de mesmo nome, participei da roda de dança e fiz as fotos”, conta. A imersão, na sua visão, diminui a noção de invasão que a câmera fotográfica carrega. O jovem fotógrafo usa somente lentes grande-angulares para fotografar a curtas distâncias. Ele lembra uma das mais célebres frases atribuídas a Robert Capa, húngaro famoso pelas suas fotos de guerra no início do século XX: “Se as suas fotografias não estão boas o suficiente, você não está perto o suficiente”. Essa é uma ideia que leva como rumo da vida profissional. Ele tenta se colocar no lugar do outro, porque acredita que a fotografia não é exclusiva do fotógrafo. Uma das fotos mais conhecidas de seu trabalho é a do Preto Velho. Foi ela que deu ao jovem fotógrafo projeção internacional. Ele conta que, quando alguém para

em frente a essa fotografia em uma exposição sua, a pessoa chora, sem saber ao certo o porquê. O motivo, ele acredita, é a fé que a imagem – assim como tantas outras de sua autoria – transmite. Uma pessoa viu a foto e a partir daí “o trem desencadeou de um jeito que assim… Quando eu vi, falei ‘meu Deus, estou em Londres’”, lembra Junior. Três meses fora do Brasil, levaram-no a Inglaterra e Bélgica, onde expôs seus trabalhos, e ao Marrocos, onde foi fotografar. O menino crescido na roça, do “interior do interior de São Paulo”, estava no exterior. No segundo semestre de 2018, o “Brasil: do Sagrado ao Profano” passará pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e pelo Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, em Fortaleza. Ao lado da família e amigos, Leonil Junior caminha para se tornar um fotógrafo melhor a cada imersão em alguma manifestação cultural e de fé. Seus próximos passos serão capazes de revelar um Brasil praticamente esquecido aos olhos da maioria de nós.

As fotografias de Junior acontecem após um processo de “mergulho” nas terras indígenas, nos terreiros de Candomblé, entre outros

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CULTURA

Censura e obscenidade No século XXI, a arte ainda encontra reações conservadoras em busca de limitar suas temáticas e a interação com o público Texto por Susana Terao

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nudez artística tem sido um dos principais alvos de boicote por grupos conservadores no Brasil atual. Alguns representantes do meio artístico receberam acusações de pedofilia, processos e até classificação de pornografia. Tal repercussão se deu, principalmente, como resultado de distorções motivadas por interesses políticos, uma onda reacionária e viralizações descontextualizadas nas redes sociais. Os artistas Wagner Schwartz e Maikon K foram alvos dessa manipulação pejorativa, por apresentarem nudez em suas performances. Maikon K teve sua performance “DNA de DAN”, participante do projeto Palco Giratório do SESC em Brasília, em julho de 2017, interrompida e teve seu cenário rasgado pela Polícia Militar do Distrito Federal. A PM justificou a intervenção alegando o recebimento de denúncias e afirmou que cumpria o Código Penal. “Eles me deram uma chave de braço, fui colocado atrás do camburão e levado escoltado com as sirenes ligadas. Precisei assinar um termo circunstanciado de ato obsceno, caso contrário, eu passaria a noite na cadeia e só sairia após um delegado me ouvir” relata K. A aplicação de termos circunstanciados se dá para infrações de menor valor ofensivo,

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que não demonstram necessidade de ações penais. Por sua vez, em setembro de 2017, Wagner Schwartz participava do 35º Panorama de Arte Brasileira, no Museu de Arte Moderna (MAM), em São Paulo, com sua performance “La Bête”, trabalho que dialoga com a série “Bichos”, de Lygia Clark, concebida no início da década de 1960. Devido a um vídeo publicado nas redes sociais, que mostrava a interação de uma criança tocando na mão, pé e tornozelo do artista, Schwartz foi acusado de pedofilia. Uma manifestação presencial em boicote à performance ocorreu também em frente ao MAM nos dias seguintes à polêmica. O Código Penal, de 1940, pode ser interpretado de diversas maneiras. As interpretações, evidentemente, variam de acordo com os costumes e a moral de cada época. Na maioria das vezes, cabe ao juiz analisar cada caso concreto de acordo com o contexto em que está inserido. O contexto artístico, no campo jurídico, é visto com algumas ressalvas. Para ser considerada como ato obsceno ou atentado ao pudor, é necessário que essa manifestação seja de cunho explicitamente sexual.


CAROLINE MORAES

Em 2017, a apresentação de Wagner Schwartz no MAM causou polêmica pela interação com o corpo nu

Erotismo É a tendência a se exaltar com o sexo, seja na vida, na literatura, ou na arte. A palavra deriva do grego Eros, deus do amor sensual e físico. Em obras de arte, o erotismo se manifesta na inscrição do sexo, do corpo, sua liberdade e limites.

Obscenidade

LAURO BORGES

Caráter do que fere o pudor, no área da sexualidade. Refere-se àquilo que não está de acordo com as regras de decoro do ambiente e, portanto, choca.

Pornografia

O artista paranaense Maikon K realiza performances que por vezes causam discórdia

ATAQUES DIGITAIS. Ambas as performances repercutiram e foram atacadas nas redes sociais, ambiente em que foram distorcidas. No sentido original, “La Bête” é uma performance que, assim como “Bichos” de Lygia Clark, precisa da interação do público para existir. A nudez do performer está intimamente relacionada em mostrar as articulações do artista tal como as dobradiças que unem as placas de metal das esculturas das obras de Clark, tornando-as articuláveis. Já em “DNA de DAN”, pensava-se em um corpo despido de códigos sociais, como algo que está sendo gerado, mostrando-se frágil e exposto. “Com o público presente no contexto da performance, há reflexão. Com o outro público que recebeu apenas um recorte manipulado, há confusão”, comenta Schwartz.

Outro alvo de boicote foi a “Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, promovida pelo Santander Cultural em Porto Alegre. A exposição queria questionar o museu enquanto instituição que carrega padrões heteronormativos e patriarcais, foi cancelada após receber críticas contra as obras expostas, dentre elas, acusações de zoofilia e pedofilia. Márcio Antônio Campos, editor de opinião do jornal Gazeta do Povo, conta que o ocorrido com o “Queermuseu” não se configurou como censura pois não envolveu uma intervenção da Justiça forçando o cancelamento da exposição. O que ocorreu, segundo ele, foi uma movimentação de pessoas insatisfeitas que fez o centro cultural recuar. Em contrapartida, a Escola de Artes Visuais, do Parque Lage, no Rio de Janei-

A obra ou produto feito com o intuito de explorar o sexo tratado de maneira chula, como atrativo, excitante e explícito. Nesse sentido, está mais próximo da obscenidade que do erotismo.

ro, lançou uma campanha de arrecadação coletiva na internet para levantar 690 mil reais e realizar a exposição no Rio de Janeiro, onde também foi cancelada pela gestão municipal de Marcelo Crivella. O objetivo da campanha foi expor, em junho de 2018, as 263 obras que compõem o “Queermuseu” no Parque Lage. No site de arrecadação coletiva Benfeitoria, onde foi feita a campanha para o financiamento, justifica-se tal movimentação em prol da liberdade de escolha, expressão e opinião e como uma forma de reparar um dano causado ao patrimônio artístico e cultural brasileiro. CAÇA AOS ARTISTAS. Segundo Maria Cristina Castilho Costa, coordenadora geral do Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura da

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LAURO BORGES

O próprio Maikon K considera a performance “Ânus Solar” obscena e não a realizaria ao vivo

Universidade de São Paulo (USP), o que acontece hoje em dia é a chamada “censura togada”. Essa censura é regida por processos judiciais. Não há mais um órgão estatal censurando, mas sim instituições, muitas vezes privadas, que agem para reprimir artistas cujo trabalho é considerado obsceno. Sobre as críticas feitas a algumas obras, Costa conta que um limite possível para arte seria o da opinião do público e também a proibição das obras que comprometam a dignidade humana. “Uma obra declaradamente racista ou que defenda pedofilia pode ser proibida por lei ou pela Justiça. Acho que há dois tipos de limites, os éticos e os legais, que não necessariamente se confundem”, observa. O porquê de a arte ser um alvo tão recorrente da censura é bem extenso. “O caráter transgressor da arte somado à forma direta que interage com a sensibilidade do público, causa incômodo. Além disso, há uma forte tentativa em calar e deslegitimar um grupo de contestadores que têm o poder de denunciar sistemas perversos”, indica a pesquisadora. Para ela o que aconteceu foi uma tentativa muito forte de amedrontar as instituições, os artistas e o próprio público. Frente à represália ao “Queermuseu” e às performances, o Museu de Arte de São Paulo (Masp), ao abrir a exposição “Histórias da Sexualidade”, impôs uma classificação restritiva aos visitantes, que após divulgação de nota pelo Ministério Público Federal, afirmando que “nem toda nudez possui caráter sexual ou finalidade lasciva”, se tornou apenas indicativa. Os menores de idade poderiam visitar a exposição com a autorização dos pais, e esse

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Revista Esquinas

público configurou 15% do público total. Fábio Cypriano, crítico de arte do jornal Folha de São Paulo, conta que a tentativa de amedrontar funcionou com o Masp, já que o museu se acovardou e perdeu a oportunidade de se afirmar enquanto instituição que propaga a cultura e promove debates. Essa atitude contra a nudez artística também é encontrada no Facebook. Em dezembro de 2017, a rede social proibiu a postagem de Laura Ghianda contendo a imagem da clássica estátua de “Vênus de Willendorf”, representação do nu feminino datada entre 27 mil e 30 mil anos atrás, justamente por apresentar nudez. Após críticas à atitude de censura, a imagem foi autorizada e a rede afirmou que há exceções para estátuas. No entanto, a restrição se repetiu em março de 2018 com o quadro do francês Èugene Delacroix “Liberdade Guiando o Povo”, pela presença de seios à mostra. Novamente, representantes do Facebook se pronunciaram e foi autorizada a circulação da imagem pela rede. Diante de todas as polêmicas que envolveram o cenário artístico, a justificativa era o comprometimento da moral dita ameaçada pela nudez. Tratar sobre a nudez virou um tabu por ter diversas conotações dependendo do contexto em que está inserida. Os artistas, ao explicarem a abordagem de suas performances, mostraram que não havia o objetivo de chocar ou polemizar o corpo nu. A polêmica é criada a partir do momento que a nudez proposta não está a serviço do mercado e, por isso, é vista como afronta. A nudez pornográfica, por definir seu campo e seu público, não causa tanta polêmica quanto a nudez artística em outros contextos. O corpo nu inserido em performances, por não explicitar qual seu sentido, causa ainda mais esse desconforto da indefinição. Associar tais manifestações artísticas à pornografia é ignorar o contexto das obras sem fazer uma análise crítica dos objetos. O problema, aponta Maikon K, não é a oposição do público à nudez e sim ao que é feito com ela em diferentes contextos. É com base nisso que os artistas alvos da censura em 2017 realizam em março de 2018 a peça “Domínio Público”. Maikon K conta que eles pretendem utilizar toda a experiência vivenciada para transformá-la em processo criativo. “Estamos buscando como revelar as entranhas desse mecanismo que tritura nossas ideias. É um encontro para refletir, processar e digerir isso para então encerrar o assunto e começar uma nova etapa”, diz. Os quatro artistas que farão o espetáculo são Wagner Schwartz, Maikon K, Elisabete Finger (coreógrafa e mãe da criança que interagiu com Wagner no MAM) e Renata Carvalho (travesti acusada de desrespeitar crenças religiosas com a peça “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, em São Paulo). Maikon K ainda ressalta que a definição de obscenidade é algo complexo. Ele afirma que, dentro de um contexto artístico, no qual se promove um sentido e reflexões são abertas, não se pode etiquetar exposições ou performances como algo simplesmente “obsceno”. O assunto não está encerrado e dificilmente o será. A arte e a censura sempre continuarão batendo de frente e a sexualidade e a nudez continuarão sendo instrumentos e fonte de inspiração para a arte. Na 33ª Bienal, que ocorrerá de 7 de setembro a 9 de dezembro de 2018, a temática da sexualidade e arte voltará à tona. O Brasil terá mais uma vez a oportunidade de refletir sobre a quantas anda sua moral e sua sensibilidade estética.


ARQUIVO

Os voyeurs da revolução Em “Os Sonhadores”, Bernardo Bertolucci embaralha os limites entre o público e o privado no Maio de 1968

N

da Cinemateca, Henri Langlois, e o único lazer do trio acaba. Nessa Paris povoada de manifestações estudantis, os jovens aproveitam uma viagem dos pais dos gêmeos e se fecham no apartamento deles. Na pura dependência dos pais e dos cheques que deixaram na casa, na intimidade, a amizade dos três se converte em uma relação mais profunda – e, para Matthew, de forma chocante. Afinal, Theo e Isabelle mantêm uma relação que beira o incesto: não têm pudores em relação à nudez, estão sempre juntos, um masturba-se em frente ao outro. Nessa situação, Matthew surge como um terceiro elemento necessário para os dois na construção de um “novo Éden”. Filhos de um mesmo pai, gêmeos siameses, Theo e Isabelle não são mais suficientes para revolucionar entre quatro paredes. Na conjuntura de 1968, o “trisal” já era polêmico e, mesmo hoje, depois de meio século da “revolução”, a situação ainda é desconfortante. Na emblemática cena na cozinha, Theo frita ovos enquanto Matthew e Isabelle transam. Descobre-se, então, que a menina era virgem e, no gesto mais passional do filme, ela lambuza sua mão e passa o sangue em sua cara e na do seu amante. Enquanto isso, lá fora, a tentativa de revolução é observada por Theo com certa indiferença, apesar de ele se apresentar publicamente como um ativista – contrário à autoridade familiar, anti-capitalista, leitor

RECORDED PICTURE COMPANY / DIVULGAÇÃO

o livro “Era dos Extremos”, de 1994, o historiador Eric Hobsbawm comenta que um dos slogans das manifestações de Maio de 1968 era “quando penso em revolução, quero fazer amor”. Logo após, pontua que, à época, “não se podia claramente separar ‘fazer amor’ e ‘fazer revolução’”. “Os Sonhadores”, filme do italiano Bernardo Bertolucci, de 2003, trata justamente de ambas as questões, revolução e sexo, de maneira revisionista. Mesmo descendo da Torre Eiffel (como faz nos créditos iniciais) e adentrando no calor daqueles momentos, não se dispõe a deixar de ver tudo com distanciamento. Matthew (Michael Pitt) é um norte-americano que, durante o ano de 1968, está em Paris para aperfeiçoar seu francês e também alimentar uma de suas maiores paixões: o cinema. Ele convive com jovens que, como ele, recém-saíram da puberdade, frequentam a Cinemateca de Paris, e, sentados nas primeiras fileiras da sala escura, ficam extasiados perante o telão. Matthew, ao menos, é consciente da projeção, dos limites entre ver e viver. Nesse ambiente, o jovem conhece e se encanta pelos irmãos gêmeos Theo (Louis Garrel) e Isabelle (Eva Green), estereótipos de franceses blasés, aventureiros e libertários. A cidade começa a ferver com os protestos gerados pela demissão do fundador

TEXTO POR FERNANDA TALARICO

Os gêmeos Isabelle e Theo trazem Matthew para se juntar a eles em uma relação a três, sem qualquer pudor

do Livro Vermelho, proprietário de vários bustos de Mao Tsé-Tung. Para essas revoluções que ocorrem lado a lado, o personagem de Louis Garrel só pode, efetivamente, contribuir com seu olhar. Matthew, espécie de alter ego de Bertolucci no filme, começa a enxergar certa puerilidade naqueles irmãos (dependentes dos pais, imaturos, cinéfilos, fãs da cultura pop) e os desafia a crescerem, a pararem com brincadeiras. Por fim, seu discurso pacifista é o que acaba levando-o para longe deles e de seus paradoxos. Isabelle surge como uma figura dominadora, num primeiro momento, mas surpreende ao se revelar virgem e sempre submissa às vontades do irmão. Sua infantilidade é mostrada na decoração de seu quarto: ela está apenas começando a crescer. Nas poucas manifestações que participam, ela grita “fascistas!”, mas suas provocações parecem vazias. Seu conservadorismo vai de encontro aos seus atos revolucionários, pois, enquanto de um lado vive e desafia as liberdades da carne e da autoridade familiar, diz que se mataria caso os pais descobrissem seus atos. Eis que, de volta ao lar, a mãe e o pai encontram um apartamento totalmente bagunçado e os três dormindo, nus, em uma tenda na sala. Tal situação, porém, só é revertida em conformismo. Deixam mais dinheiro debaixo de uma estátua e vão embora. Isabelle, sozinha, percebe o vestígio dos pais e tenta transformar sua culpa em morte. Com uma mangueira, desvia o gás da cozinha para o leito do trio, pronta para interromper aquela revolução. Maio de 1968, no entanto, desvia o gesto fatal. Uma pedra atirada da rua quebra o vidro da sala e os três acordam para aquele outro mundo. O caos ainda está instaurado nas ruas, atingindo o pico das ações mais combativas do movimento. Nessa cena final no mundo exterior, já não mais no paraíso artificial do apartamento, os gêmeos partem, sem pensar duas vezes, para a luta. Matthew, contrário àquilo, vira as costas para eles e desaparece na multidão. Em um ato impulsivo e fatal, os irmãos preferem o coquetel molotov na barreira de carros mais arriscada à primeira fileira do cinema. No plano final, com uma horda de policiais correndo em direção ao espectador, Bertolucci nos lembra da tela de cinema. Como aqueles fantasmas que sua obra tenta resgatar, na poltrona, não passamos de voyeurs protegidos pela telona.

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carlos nunca se encaixou nos padrões monogâmicos que via por aí.

e se houvesse outra forma de se relacionar, que não a dois?

algo como um...

Corações abertos

poliamor?

POR RAFAELA MOROZETTI

RESOLVEU PESQUISAR TUDO SOBRE ESSE TIPO DE RELACIONAMENTO.

logo percebeu que ler não era a melhor solução...

quando menos esperava, estava no meio de um

relacionamento poliamoroso.

clarice namorava maria...

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Revista Esquinas

...quando maria começou a namorar carlos.


então, clarice gostou de carlos e vice-versa.

aliás, as duas amavam rogério, que não tinha entrado na história ainda.

ah, carlos...

carlos estava apaixonado pela liberdade de amar...

...e por todas as outras graças de "poliamar". 2º semestre de 2018

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CRÔNICA

Valéria e Odila Texto por Roberta Bernardo

R

ua Cerro Corá, eu nunca tinha passado por aqui. Heitor Penteado, cheiro de sanduíche. O ônibus à noite parece mais sujo, é a luz. Me distraio e quando percebo já estou na Consolação. A porta se abre e duas mulheres entram. Preciso parar aqui, rápido, para que não se crie a imagem de duas mulheres quaisquer, essas mulheres exigem uma definição detalhada para que possam ser vistas de maneira fiel. Fascinantes, mas não pela beleza, já adianto que não eram bonitas. Odila e Valéria: mãe e filha, muito magras, elegantes sim, mas decadentes. Se eu fosse arriscar um rascunho, começaria pela forma de um S, eram extremamente corcundas. Odila, por volta de oitenta anos, cabelos brancos muito bem penteados, aquele tipo de cabelo curto e ondulado que se coloca firme no ar como a maré logo antes de arrebentar. Casaco escuro, de pele, talvez? Odila tinha o nariz pontudo, característica herdada por Valéria, eram parecidas. A filha beirava os cinquenta anos, cabelos lisos, grossos, castanhos e uma franjinha inadequada, se Françoise Hardy envelhecesse triste e paulistana, seria assim. Foi o que pensei quando nossos olhos se encontraram. Os olhos quase verdes contornados pela maquiagem escura, nada muito elaborado, lápis de olho. Rugas. Muito pequena, magra demais. Corcunda.

Veja bem, eu voltava do trabalho, não estava para caçar, mas aquela cara de bicho encurralado me intrigou. Subiram as duas no ônibus, Odila flutuando, impassível, Valéria atenta, me olhou bem nos olhos. Eu a vi. Ela não queria ser vista, mas eu a vi. Parecia mesmo a presa quando se dá conta de que uma vez percebida não tem mais jeito. Nesse momento tive certeza: essa mulher não está viva há muito tempo. Ainda não foi suficiente, não consegui traduzi-las, por isso, segue um anexo que pode ajudar: hienas, como as hienas do filme do Rei Leão. Verde escuro. Piso da varanda da Casa das Rosas. Fim de domingo. Livro amarelado. Olhar de gente doente. Briófitas, as plantas que não têm irrigação e por isso ficam perto do chão: musgos. Casa de pedra com musgos. Flor murcha. Música triste e grave. Janelas abertas com vista para a noite (fria). Duas mulheres. Entraram no ônibus, sentaram de costas para mim, não vi mais nada. Anotei no bloco de notas do celular: Valéria e Odila. Inventei dois nomes. As duas desceram na Avenida Paulista, dois pontos antes do meu. Desde então, não consigo parar de pensar nelas, tento descobrir como e por que esses dois fantasmas saíram pra passear, cheguei a três hipóteses:

1) Mãe e filha morreram na década de 1970 em acidente de carro, o irmão mais novo, na época criança, sobreviveu por um milagre e teve uma boa vida até que nessa noite, no auge de sua carreira como gerente administrativo de alguma multinacional, acabou tendo um infarto aos 60 anos. Valéria e Odila vieram busca-lo em seu apartamento no Jardins, de ônibus, porque têm trauma de carro. 2) Odila morreu primeiro por conta da idade, Valéria alguns anos depois, de câncer na laringe, mas por dividirem o mesmo mausoléu da família no Cemitério da Consolação acabaram por passar juntas a eternidade. Essa noite decidiram passear pela cidade, escolheram a Avenida Paulista como destino, por conta do agito, e foram de ônibus para ver a paisagem. 3) Valéria foi assassinada. Odila morreu alguns anos depois, e ao procurar pela filha no plano espiritual, não a encontrou e descobriu que Valéria andava ainda pela Terra assombrando a casa de seu assassino, a mãe desceu para convencer a filha a se libertar do desejo de vingança, mas acabou ficando por aqui. Hoje em dia assombram casas e passeiam pela cidade, se divertem interagindo com pessoas, fingindo que ainda estão vivas. Não sei.

Tirinha por Lucas Del Papa

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