Revista Esquinas #56

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REVISTA-LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO DA FACULDADE CÁSPER LÍBERO #56 - 2º SEMESTRE DE 2014

é dose

Da Cracolândia às farmácias, os diferentes usos e significados das drogas no cotidiano



EDITORIAL Revista-laboratório do curso de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero

Fundação Cásper Líbero Presidência Paulo Camarda Superintendência Geral Sérgio Felipe dos Santos Faculdade Cásper Líbero Diretor Tereza Cristina Vitali Vice-Diretor Welington Andrade Coordenador de Jornalismo Carlos Costa Professor responsável Heitor Ferraz Mello Monitoria Editora Heloísa D’Angelo Assistente editorial Mariana Gonzalez Editora de Arte e Fotografia Thaís Helena Reis Diagramação Débora Stevaux, Nathalie Provoste e Thaís Helena Reis Revisão Ana Beatriz Rosa, Débora Stevaux, Heloísa D’Angelo, João Hidalgo, Mariana Gonzalez, Nathalie Provoste e Thaís Helena Reis Participaram desta edição Alessandra Petraglia, Alexandre Gonçalves Júnior, Amanda Saviano, Ana Beatriz Rosa, Ana Carolina Siedschlag, Ana Júlia Cano, Ana Laura Pádua, Ana Laura Prado, Andressa Oliveira, Antonio Balbi, Aurélio Silva, Bárbara Blum, Bárbara Muniz, Beatriz Araújo, Beatriz Falcão, Beatriz Malheiros, Bruna Barone, Caio Simidzu, Camila Almeida, Camila Gregori, Carol Vbo, Carolina de Barros, Claudia Ratti, Daniel Gelbaum, Daniel Lopes, Daniela Rial Roig, Davi Sant’Ana, Débora Stevaux, Eduardo Csengeri, Elisa Espósito, Elle Gomes, Érica Azzelinni, Fernanda Figueiredo, Fernanda Grillo, Fernanda Ventura, Flávio Júnior, Gabriel Alves, Gabriela Monteiro, Gabriela Rodriguez, Giulia Gamba, Giuliana Saringer, Guilherme Venaglia, Hares Datti Pascoal, Heloísa Barrense, Ingrid Yurie, Isabela Moreira, Isabela Yu, Isabella Faria, Isabella Senise, Iuri Barcellos, Izabela Gama, Jeniffer Mendonça, Joanna Cataldo, João Hidalgo, Jordana Langella, Joyce Gomes, Julia Guadagnucci, Júlia Favero, Juliana Mezzaroba, Juliana Queissada, Karolina Bergamo, Kelly Miyashiro, Laís Franklin, Lanna Sanches Doggo, Larissa Moreira, Leonardo Ramos, Letícia Sabbag, Luana Toro, Luanna Martins, Mariana Agati, Marina Balbino, Marina Gabai, Matheus Cabral, Matheus Moreira, Mathias Brotero, Naiara Albuquerque, Natália Antunes, Natalia Melo, Nathalia Parra, Otávio Matenhauer Urbinatti, Paulo H. Pompermaier, Pedro Cardoso, Rafael Serra, Sarah Mota Resende, Stefany Oliveira, Stela Zeferino, Talita Monaco, Tami Rodrigues, Téo França, Thais Costa, Thaís Regina Santos, Thaís Varela, Victor Souza, Vitória Baraldi e Yasmine Luna

o cotidiano das

HEITOR FERRAZ MELLO

drogas

Uma roda se forma e eles começam a contar histórias. Um deles se lembra que aos 13 anos, ajudando uma mulher da pensão, levava sempre umas caixas de filme até uma rua próxima. Um dia, abriu as tais caixas e estavam repletas de papelotes de crack. Sem perceber, ele já estava dentro do tráfico. Outro puxa pela memória como começou a fumar, ou a beber, e de repente se viu numa espiral sem saída. E assim vai, com cada um relatando a sua trajetória no mundo das drogas. São todos personagens do chamado “Fluxo”, como é conhecida a Cracolândia, na região central de São Paulo. É também por esta área, por onde muitas pessoas temem passar, que anda Tina Galvão, uma senhora de 70 anos. Criadora do projeto Aquele Abraço, a assistente social leva um pouco de seu afeto e atenção aos usuários de crack, criando um estreito laço de confiança, por meio do qual ela vai adentrando na dura realidade dessas pessoas procurando auxiliá-las. Foi também por essa selva de pedras, de “meninos ficando azuis”, que Marcelo Almeida, aos 13 anos, se envolveu com entorpecentes. Hoje, jornalista, ele relata sua experiência no livro Crack, existe uma saída. Essas e outras histórias fazem parte deste número da Revista Esquinas, que aborda o universo das drogas e dos vícios. O assunto é sempre muito delicado, já que envolve não apenas políticas públicas, mas também questões de outra ordem e que podem gerar

uma série de equívocos e mal entendidos. O mundo entrou numa rota perigosa há cerca de quarenta anos quando resolveu se lançar numa guerra contra as drogas, usando como arma a violência e a repressão. O resultado, como vários estudiosos apontam, foi desastroso. Hoje, muitos países começam a rever essa forma de combate, como são os casos do Uruguai e dos Estados Unidos. Para tratar deste assunto, optamos pela reportagem de campo, pela busca de experiências variadas com as quais pudéssemos relatar o cotidiano do mundo das drogas, seja pelo ponto de vista de um ativista da legalização da maconha, que conversou com a equipe de reportagem na Praça do Por do Sol, em São Paulo, onde distribui panfletos; seja pelo ponto de vista de um policial, que já atuou nas ruas, mas que atualmente dá aulas no Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência (Proerd), da Polícia Militar. Com edição de texto de Heloísa D’Angelo e Mariana Gonzalez, revisão de Ana Beatriz Rosa e João Hidalgo e trabalho de arte de Thaís Helena Reis, Nathalie Provoste e Débora Stevaux, este número contou com a colaboração de 94 alunos da Faculdade Cásper Líbero, que se envolveram com o tema. Eles bateram pernas pela cidade e procuraram as histórias humanas mais significativas, no livre exercício da reportagem, que é sempre a aposta desta revista-laboratório. E deveria ser cada vez mais a aposta do jornalismo.

Imagem de capa: Raphaele Palaro

Núcleo Editorial de Revistas Avenida Paulista, 900 – 5º andar 01310-940 – São Paulo – SP Tel.: (11) 3170-5874 E-mail: revistaesquinas@gmail.com www.casperlibero.edu.br

No Esquinas #56, apuramos questões ligadas ao universo das drogas, por meio de reportagens de campo e de pesquisas. Nas páginas seguintes, o leitor vai desenvolver diferentes visões sobre esse assunto ainda tão polêmico.

RAPHAELE PALARO

Agradecimentos Gabriela Boccaccio, Patrícia Homsi, Rosane Di Giuseppe e Sofia Rossas

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SUMÁRIO

06

08

24

06 (I)legal

24 por baixo dos panos

08 cidade da pedra

26 indústria viciada

14 LAPIDANDO ESMERALDAS

28 bombando

18 barato histórico

30 MÃE DA RUA

22 alvo no peito

34 além da sensação

Os argumentos de políticos e estudiosos a favor e contra a descriminalização da maconha no Brasil

Um olhar aprofundado sobre a realidade da Cracolândia, na região central da cidade de São Paulo

Em entrevista ao Esquinas, Esmeralda Ortiz desvenda seu passado de moradora de rua e usuária de crack

Uma linha do tempo conta a trajetória de diferentes substâncias entorpecentes usadas pela humanidade

Entendendo a ética e o risco próprios dos jornalistas investigativos brasileiros

Caco Barcellos compartilha suas experiências jornalísticas entre traficantes e define a postura ideal do ramo

Por que os tóxicos fazem tanto sucesso no mundo do cinema, da música e do entretenimento?

Como funcionam os anabolizantes, compostos hormonais populares nas academias

Um perfil da assistente social aposentada Tina Galvão, “mãezona” para os adictos da Cracolândia

Como as drogas mais conhecidas agem na mente humana, segundo médicos e usuários

44 drogas ao redor

O dia a dia de quem trabalha com substâncias ilícitas, seja no combate a elas ou na luta por sua legalização

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52

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48 dentro da lei

Os famosos medicamentos tarja preta e seus impactos negativos e positivos no organismo

50 de dentro para fora

Na contramão da medicina alopática, as técnicas alternativas não usam drogas e ganham novos adeptos

52 x da questão

O papel dos remédios hormonais no processo de adaptação da identidade de gênero em transexuais

SEÇÕES 03 EDITORIAL 36 FOTORREPORTAGEM 66 QUADRINHOS 68 ALI NA ESQUINA 70 CRÔNICA

56 a grama do vizinho

O que mudou (e o que continua igual) nos países que regulamentaram a maconha

58 só por hoje

Uma equipe do Esquinas acompanhou três reuniões do Narcóticos Anônimos a fim de relatá-las

62 fugindo do vazio

Histórias de ex-usuários que venceram o vício e, hoje, trabalham no combate à dependência química

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brasil

(i

(

legal

A questão no fim da ponta: o Brasil deve descriminalizar a maconha? REPORTAGEM Bruna Barone, Marina Balbino (1º ano de Jornalismo), Mathias Brotero (2º ano de Jornalismo) e Thaís Varela (3º ano de Jornalismo) COLABORAÇÃO Daniel Gelbaum (1º ano de Jornalismo) IMAGEM DÉBORA STEVAUX (2º ano de Jornalismo)

Ela não é novidade. Há registros de seus poderes curativos que datam do século 50 a.C. Em 1961, foi incluída na lista das substâncias mais perigosas na Convenção Internacional de Narcóticos da ONU, levando o mundo a criminalizá-la – e parte dele, a repudiá-la. Diversão, vício, remédio: hoje, a maconha tem diversos significados e usos, ampliando a polêmica à sua volta. Na pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope), em setembro de 2014, 79% da população brasileira se posicionou contra a legalização da erva, tanto para fins recreativos quanto para usos terapêuticos. Afinal: quais são os principais argumentos que sustentam essa discussão?

NÃO Psicose, dificuldade de concentração e ansiedade. De acordo com a psiquiatra presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (ABEAD), Ana Cecília Marques, são estes os principais efeitos nocivos da Cannabis sativa, nome científico

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da maconha. O problema, segundo ela, vai muito além da saúde: “Não existem programas educacionais sobre os possíveis efeitos da droga”. Para Antônio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), a maior preocupação deve recair sobre os jovens: “Já é muito difícil controlar o uso de tabaco e álcool entre menores e o mesmo deverá acontecer com a erva, se for legalizada”, pondera. Por mais antigo que seja, o debate em torno da liberalização só chegou ao Congresso Nacional em março de 2014. O advogado Marcelo Carvalho, especialista em Direito Civil e Trabalhista, acredita que o maior problema são as falhas na fiscalização das leis no Brasil: “Não temos capacidade de sustentar juridicamente a legalização”. Seguindo esse raciocínio, o delegado Alexandre Zakir levanta a questão da segurança pública que, na opinião dele, não melhoraria com a legalização da maconha: o tráfico permaneceria de qualquer forma, como acontece na Holanda – sempre haverá, segundo o delegado,

pessoas oferecendo a droga a preços mais baratos à população. Os antiproibicionistas, por vezes, mencionam as propriedades curativas da Cannabis como argumentos para a legalização – ao que a presidente da ABEAD responde: “Pesquisas estão sendo feitas, mas as doses efetivas para os tratamentos ainda não foram estabelecidas”. Carvalho completa, defendendo que, enquanto a planta não for legalizada para fins recreativos, “a lei deve ser rigorosa e objetiva, evitando interpretações dúbias”. Assim, a descriminalização da maconha no Brasil enfrenta não só o pouco interesse dos pesquisadores em relação aos efeitos da droga, como também a falta de estrutura jurídica e policial para a fiscalização da posse e do transporte da Cannabis, caso a substância venha a ser legalizada. Apesar das divergências, é unânime entre os proibicionistas a opinião de que o Brasil não pode se equiparar aos países que tornaram a droga lícita, como Uruguai, Holanda, Canadá e alguns estados dos Estados Unidos.


É um tema no qual só se consegue avançar com a sociedade, o que demanda intenso diálogo, amadurecimento de opiniões e busca de consensos” Antonio Valadares, senador

SIM A legalização da Cannabis é defendida por três eixos argumentativos: saúde, educação e combate ao tráfico. Este, ligado à guerra às drogas, coloca as substâncias ilícitas como causa militar. A consequência é o racismo institucionalizado nas favelas, como explica Luciana Genro, candidata à Presidência da República pelo PSOL em 2014: “A estratégia tornou-se uma verdadeira guerra aos pobres e fracassou no mundo inteiro”. Em relação à saúde, Dartiu Xavier da Silveira, psiquiatra consultor do Ministério da Saúde, explica que a maconha pode combater enjoos causados pela quimioterapia, aliviar pacientes que estejam definhando e até retardar os sintomas da epilepsia infantil. Atualmente, porém, os brasileiros que optam pelo tratamento com a Cannabis precisam enfrentar a demorada burocracia es-

tatal e, por isso, muitos recorrem ao tráfico. “O Brasil sempre teve uma visão preconceituosa em relação à maconha, atrasando os estudos dos benefícios medicinais que ela traz”, lamenta o médico. Em novembro de 2014, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou a proposta do senador Antonio Valadares (PSB-SE) para uma reformulação na lei de drogas de 2006. Uma das propostas é a permissão da importação de produtos à base do princípio ativo da maconha (o canabinoides) para uso terapêutico. Hoje, cabe à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) inspecionar e permitir a importação. A alteração, segundo o senador, “mantém o controle sanitário, mas dispensa a autorização excepcional pela sede do órgão em Brasília”. A proposta também define a diferença entre traficante e usuário: uma quantidade equi-

valente a cinco dias de uso classificaria a pessoa apreendida como consumidora – até a finalização desta matéria, o volume diário ainda não havia sido definido pela Anvisa. Mudanças nas abordagens policiais também foram propostas pelo senador: “Precisamos eliminar o subjetivismo, suprimindo essas expressões que dão margem ao preconceito e criando o critério baseado em quantidade”. Até o fechamento desta edição, a “Nova lei da maconha” deveria ainda passar por quatro comissões do Senado. Segundo Valadares, “é preciso haver vontade política para isso”, já que a mudança seria uma questão pontual, que não exigiria modificações na política de drogas nacional. O senador conclui: “É um tema no qual só se consegue avançar com a sociedade, o que demanda intenso diálogo, amadurecimento de opiniões e busca de consensos”.

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sociedade

CIDADE da

pedra As histórias que revelam a identidade dos “invisíveis” moradores da Cracolândia

REPORTAGEM antonio balbi, IURI BARCELlOS, RAFAEL SERRA (1º ano de Jornalismo), ANA BEATRIZ ROSA, BÁRBARA BLUM, ELISA ESPÓSITO e JORDANA LANGELLA (2º ano de Jornalismo)

Sentados, eles formam pequenas rodas de conversa. Em pé, as expressões corporais durante o delírio falam por eles. Sozinhos, passam despercebidos aos olhos de quem caminha logo ao lado. Juntos, são notados, são marcados, são afastados. A maioria tem a cor da pele negra, contrastada com o colorido das vestes maltrapilhas. O ambiente é lúgubre. No chão, poças de água servem de lago para a ilusória pescaria de uma criança. No ar, a fumaça é resultado da queima da pedra alaranjada nos cachimbos prateados. Em frente, a construção imponente de arquitetura neoclássica é cartão postal da capital paulista – a antiga Estação Júlio Prestes, que trouxe grandes riquezas para a capital paulista, mas

que hoje serve apenas como um forte contraste. A região conhecida como Cracolândia localiza-se entre os bairros centrais de Santa Cecília e da Luz. Ela é percebida por qualquer morador, visitante ou mesmo turista. Dentro dela, uma área de 100m² cercada por cordas e pelos olhares atentos dos policiais, abriga o intenso consumo e tráfico do crack e é conhecida como “Fluxo” pelos usuários. “Isso aqui, hoje, é um parque de diversões”, compartilha Alex*, de 37 anos. Enquanto tocava seu cavaquinho, durante uma reunião dos Narcóticos Anônimos da região, revelou que fuma a pedra desde os 14 anos. Por causa do vício, cometeu crimes que o fizeram ser preso por oito anos – cinco deles

cumpridos em regime fechado, e os outros três, em regime aberto, na cidade de Franco da Rocha, em São Paulo. Foi lá que, depois de apenas uma tragada em comemoração a uma vitória no futebol de várzea, retornou ao vício no crack. Em 2006, estava de volta à Cracolândia. De acordo com ele, a situação está muito melhor do que na década de 90, quando ele morou pela primeira vez na região. O clima era bem mais pesado – usuários brigavam, no chão, por pedras de crack, como lembra Alex*: “Só de olhar para baixo, eu já me exaltava”. Os avanços observados por Alex* ainda são mínimos, se analisados superficialmente. No entanto, projetos sociais mais recentes, de iniciativa pública ou privada, são res-


ANA LAURA PÁDUA

ponsáveis por medidas mais humanas em relação à questão do crack. O Aquele Abraço é um deles. Fundado pela assistente social Tina Galvão, de 71 anos, seus integrantes buscam distribuir afeto aos usuários, que consideram a senhora uma mãe. Outro exemplo é o De Braços Abertos, colocado em prática pela prefeitura do município paulista no início de 2013. Após meses de estudo e treinamento de profissionais da saúde e de grupos de assistentes sociais, o projeto surge como uma alternativa às abordagens truculentas e pouco efetivas que vinham sendo realizadas até então naquela região, principalmente por programas que adotam a internação compulsória, ou seja, o enca-

minhamento forçado de usuários de drogas para clínicas especializadas, procedimento padrão da Polícia Militar de São Paulo. Em julho de 2013, foi instalada a “tenda” do De Braços Abertos, próxima ao Fluxo. Ela oferece aos frequentadores banheiros públicos e lugares para repouso, além de refeições gratuitas e atividades culturais. Com a concretização de um espaço físico do projeto, houve um período de vários meses de negociação entre o grupo de serviço social e os moradores da região da Cracolândia. Finalmente, chegou-se a um acordo: os que ali viviam seriam transferidos para hotéis da região, e seus barracos, desmontados. O coordenador do programa, Maurício

Dantas, explicou que há duas principais diretrizes no De Braços Abertos. A primeira leva em conta o conceito de housing first, que pode ser traduzido como “alocando primeiro” – ou seja, a prioridade é que os ex-usuários tenham onde morar. A segunda diretriz é a redução de danos, tanto no corpo quanto na mente dos beneficiários, conceito oposto ao da internação compulsória. O projeto busca oferecer suporte médico e psicológico, introduzindo atividades lúdicas e profissionais no cotidiano dos pacientes, com o objetivo de reavivar a cidadania, viabilizar o convívio social e criar o hábito do cumprimento de horários e regras. As ofertas de emprego para os compreendidos no programa são, quase sem-


ANA LAURA PÁDUA

chapéu

É fácil distinguir os usuários recémchegados – em geral, mais bem vestidos e de aparência saudável

pre, na limpeza pública. Não é à toa que nas ruas próximas à estação haja tantas pessoas usando macacões azuis escuro, uniforme de trabalho dos que já atuam na área. O esforço do De Braços Abertos tem dado frutos: a empresa Guima Conseco, especializada em serviços de limpeza, fechou uma parceria com o projeto, na qual dezesseis ex-usuários foram contratados. A atividade, com carga horária de oito horas, oferece salário, vale transporte e cesta básica. O programa tem buscado aumentar as opções de empregos. Exemplo disso é o projeto Fábrica Verde, desenvolvido pela Secretaria Municipal do Trabalho e Empreendedorismo (SDTE) de São Paulo. Trata-se de um conjunto de oportunidades para que os usuários possam aprender a trabalhar com a terra, como cursos sobre jardinagem e paisagismo. Paulo Sérgio, beneficiário do programa, acredita que esta é uma grande chance de aprendizado, tanto para o colaborador quanto para a empresa. Aos poucos, a

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independência financeira e a autoestima acabam reestabelecendo uma vida que muitos consideram condenada.

Além do Fluxo “Zumbis”. Esta é a maneira pejorativa e degradante pela qual a grande mídia e o senso comum tendem a rotular os usuários de crack. Entretanto, o que se vê na Cracolândia é “apenas a ponta do iceberg”, afirma Marcelo Almeida, jornalista, ex-usuário da droga e autor do livro Crack, existe uma saída. Para ele, apenas uma fração dos consumidores vive nas ruas. Há muitos, inclusive, em apartamentos de luxo. É comum a população não enxergar a amplitude da distribuição da pedra, acreditando que ela só ocorre nas regiões periféricas e que não atinge a população com maior poder aquisitivo: “Muito acontece nos bastidores, onde as pessoas menos imaginam”. As quadras poliesportivas, revela o jornalista, são um exemplo de local de venda. “Em qualquer cidade que eu visitava,

perguntava onde tinha uma quadra e ia comprar droga lá”, confessa Marcelo. O ex-usuário nega o “mito” de que a dependência ao crack é imediata e, inevitavelmente, conduz a pessoa a situações degradantes como a da Cracolândia. Segundo ele, existe um período de lua-de-mel, sem efeitos colaterais ou negativos. “O meu durou um ano”, lembra. A lógica, porém, é invertida, e o crack passa a consumir o usuário, caso não haja nenhum incentivo que se mostre mais sedutor que o vício. “Chega um ponto em que a psicose toma conta da cabeça. Então, a pessoa passa a ter um comportamento estranho, vende tudo pela droga, sai de casa”, conta Marcelo. Segundo o jornalista, é comum a presença de “novatos” na Cracolândia, que se destacam por usarem roupas em melhores condições e terem uma aparência saudável. No Fluxo, uma mulher branca, bem vestida, usando uma bolsa, óculos de sol grandes e brincos brilhantes chamou a atenção. Ela estava sentada no chão e fumava a pedra como


elisa espósito

Vivendo na Cracolândia, não se vê o tempo passar. Os hábitos de higiene são deixados de lado, inclusive a alimentação, o que explica a aparência esquelética” Marcelo Almeida, jornalista e ex-usuário de crack

todos ao seu redor. O que vem em sequência é conhecido: no primeiro dia, acontece uma troca dos objetos de valor pela substância; no segundo, roupas e sapatos são moedas simbólicas; em uma semana, o “novato” já está integrado – mal alimentado, sujo, fraco, apático. Pela aparência daquela moça, ela deveria estar em um de seus primeiros dias. Nas aglomerações, é fácil notar o consumo simultâneo de crack e outras substâncias, como o álcool, “a droga que mais mata”, segundo Odimar Edmundo dos Reis, coordenador técnico do programa De Braços Abertos. Corpos magros, com lábios muito secos, rachados e machucados. Feridas por toda a extensão corporal. “Zanzando” pelas ruas. Marcelo descreve a paranoia de quem consome o crack e não consegue ficar parado, senão enlouquece. “Vivendo na Cracolândia, não se vê o tempo passar. Os hábitos de higiene são deixados de lado, inclusive a alimentação, o que explica a aparência esquelética”, diz Marcelo, que foi iniciado cedo no mundo das drogas – aos 11 anos, já consumia álcool. Do pequeno gole no copo de bebida ao primeiro porre, rapidamente partiu para a benzina, o clorofórmio e o cigarro, todos por “curiosidade”, ou para “acompanhar os amigos”. “Quando a pessoa usa uma substância tóxica, está insatisfeita com o mundo e consigo mesma”, coloca. Para Marcelo conhecer o crack, bastou uma noite chuvosa: “Eu fui em

O jornalista começou a usar drogas aos 11 anos e escreveu um livro sobre o assunto busca da cocaína, mas ela estava molhada [o que inibe o efeito]. Eu estava na fissura, e a fissura não passa, não adianta. Foi aí que me apresentaram a pedra.”

alternativas de paz Se, por um lado, projetos como o De Braços Abertos visam mediar e minimizar as consequências do consumo de entorpecentes, por outro, ainda há situações que fogem a qualquer tipo de instituição. É o que se percebe ao acompanhar um amanhecer tumultuado na Cracolândia. O batalhão de operações especiais da Guarda Civil Metropolitana foi chamado às pressas para por fim à confusão que surgiu em pleno coração do centro de São Paulo. O conflito entre usuários de drogas e funcionários da empresa de limpeza da prefeitura foi causado pela proibição da montagem de barracos no Fluxo. A intensidade da represália fez necessária a presença dos policiais, mas a suposta tentativa de apaziguamento só gerou mais atritos, tornando

o clima mais violento, com bombas de gás lacrimogênio, balas de borracha e prisões quase aleatórias. O saldo: ao menos três feridos – entre eles, uma criança. A cena descrita ocorreu no início de uma quinta-feira de setembro, com a presença da reportagem do Esquinas na região. Ouvindo histórias, foi possível conquistar a confiança e aproximar-se dos moradores. Uma peça de teatro estava sendo apresentada pelos assistentes sociais do Centro de Estudos Cultura Contemporânea (CEDEC), atuante na Cracolândia. Nela, os usuários são representados por dois grandes bonecos, feitos à mão, com uma aparência muito semelhante a dos que ali frequentam: roupas sujas, geralmente largas, e pés sempre descalços. João* fazia parte dos que também escutavam a história, junto com os assistentes sociais Laura* e Miro*. Embora ficcionais, as histórias representadas pelos personagens do teatro eram inspiradas em trajetórias reais e comuns ao cotidiano da região, como o caso de João*,

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antonio balbi

chapéu

Ter trabalho ajuda? Ajuda – a comprar mais pedra, se não tiver consciência”

Fernando*, usuário de crack

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que perdeu um dos pés em uma intervenção da guarda civil no local. A partir de certo ponto, quem passou a conduzir a brincadeira foi a plateia: “É para eu contar minha história?”, pergunta um dos homens presentes, em tom desconfiado. “Sim, se você quiser”, Laura* rebate. “E o que eu ganho com isso?”, ele questiona. “Não ganha dinheiro…”, ela explica. “Vou contar mesmo assim”, termina o usuário. Seu nome é Fernando*, e ele é o primeiro a participar da roda. Ele tem uma barba densa, mas que preenche, curiosamente, apenas metade do rosto. A outra parte é lisa, dando a impressão de haver uma linha vertical delineando os limites da face, tal qual uma máscara. Com um cachimbo na mão, ele começa a narrar sua trajetória. Seu relato arrancou algumas risadas do grupo, que naquele momento somava aproximadamente quinze pessoas,

todos juntos em um círculo na beira do asfalto. “Quando eu tinha 13 anos, uma mulher na pensão começou a me pedir ajuda para carregar uns filmes até ruas próximas de onde eu morava. Era cada vez mais, sempre mais. Até que um dia eu abri uma das caixas. Esava cheia de papelotes de crack”, ele conta. O menino, hoje perto dos 35 anos, entrou no tráfico sem saber o que estava fazendo. A história não pareceu impressionar os ouvintes. Esta é a realidade de muitos que se aglomeram na região. O primeiro contato com a droga – geralmente cigarro e álcool – ainda na infância, passando pela cocaína e resultando no crack. Depois da pedra, qualquer coisa que “deixe louco” parece ser válida. Fernando* continua a sua narrativa: “Se me falassem que correr em direção a um muro e bater a cabeça na parede ‘dá brisa’, eu ia”. Fernando* já conta dezenove internações: “Não


chapéu

*

nome alterado para preservar a identidade do entrevistado

Na Cracolândia, um espaço de cultivo do vício foi delimitado: o Fluxo adianta se não tiver intenção própria, força de vontade. Ter trabalho ajuda? Ajuda – a comprar mais pedra, se não tiver consciência”. De fato, oferecer um emprego ou auxílio financeiro para o dependente químico não é o único caminho para a sua ressocialização, e medidas que se preocupam apenas com a via econômica da questão são alvo de críticas. Se, por um lado, os números do programa da Prefeitura ainda apontam algumas falhas, por outro, demostram mudanças consideráveis: em menos de um ano, 429 pessoas foram cadastradas no projeto; foram feitos cerca de 30 mil atendimentos médicos; o consumo de crack diminuiu de dez pedras diárias para cerca de cinco, reduzindo assim o consumo médio na região da Cracolândia. A ideia de criar um espaço para pensar a questão do uso ilegal e dos usuários de substâncias psicoativas deveria ser pauta das ins-

tituições. Para Antonio Nery Filho, psiquiatra e pesquisador baiano, “sair do discurso médico de ‘salvação’ e desenvolver um discurso social da questão” faz parte do plano para que se entenda a dimensão antropológica do consumo de substâncias psicoativas. É deslocar o enfoque da droga para o indivíduo. “São precisos outros subsídios, não só para compreender o fenômeno do uso de substâncias que modificam os sentidos, mas para conviver com isso”, explica o pesquisador. Para ele, projetos que trabalham com a ideia de redução de danos tendem a fazer algo que a maioria dos médicos em clínicas de reabilitação não faz: respeitar a autonomia e a liberdade das pessoas. “Não se pode propor simplesmente a abstinência, mas que cada um se proteja da melhor forma possível. Ajudar a reconhecer os riscos, sem retirar da pessoa o seu direito de fazer escolhas”, completa.

Retoma-se o olhar para os grupos sentados pelo chão da área cercada no centro de São Paulo. Juntos, eles seguem um fluxo próprio. Respeitam o código característico que conduz as suas ações. “É uma outra sociedade, disfuncional, com outros critérios”, define Marcelo. Algumas pessoas se perguntam se existe alguma forma de prevenção ou intervenção para esse problema, mas como é possível prevenir algo que acaba se tornando parte da vida de uma pessoa por todas as portas de entrada? As campanhas antidrogas de curta duração parecem não conseguir. “Defendo a ação para a proteção à vida. Quanto mais eu puder alcançar o outro, numa informação menos preconceituosa e mais perto da verdade, mais eficaz será o meu papel”, analisa Nery Filho. O que parece é que faltam ouvidos para entender aquelas rodas de conversa.

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ENTREVISTA

lapidando esmeraldas

Ex-moradora de rua, Esmeralda Ortiz viveu uma jornada em busca do próprio passado para poder escrever (e reescrever) sua história REPORTAGEM Luana Toro, Matheus Moreira, Nathalia Parra (1º ano de Jornalismo), Isabela Yu (2º ano de Jornalismo) e Isabela Moreira (3º ano de Jornalismo) imageM NATHALIA PARRA (1º ano de Jornalismo) ilustração DÉBORA STEVAUX (2º ano de Jornalismo) e THAÍS HELENA REIS (3º ano de Jornalismo)

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Superação e força marcam a vida de Esmeralda Ortiz

É uma segunda-feira quente do mês de setembro. Por um breve momento, uma brisa refresca o ambiente. “Isso é sinal de que aí vem chuva”, diz a mulher na varanda, sem se abalar. Na verdade, poucas coisas a impressionam ou a fazem sorrir. Alta, negra, com olhos atentos constantemente cobertos pelos cabelos cacheados, ela mira o passado. Seu nome é Esmeralda do Carmo Ortiz. Seus adjetivos, ex-viciada, ex-moradora de rua e ex-menor infratora. Foi no fim da adolescência que ela decidiu incorporar todos os “ex” que a definem hoje, aos 35 anos: recuperou-se, formou-se em jornalismo e teve seu filho, Kadu, de 9 anos, com quem mora atualmente em uma casa no bairro de Pirituba, na Zona Oeste de São Paulo. Com a ajuda do jornalista Gilberto Dimenstein, Esmeralda mergulhou no próprio passado, em um caminho de autoconhecimento e enfrentamento pessoal que rendeu um livro, Esmeralda – Por que não dancei. Esmeralda tem seu próprio tempo. Às vezes, para de falar e divaga sobre um novo assunto – o cheiro bom da comida que vinha da cozinha; a beleza de sua casa; a forma como educa o filho. Todas as suas experiências, diz ela, fizeram com que aprendesse a valorizar os pequenos privilégios da vida. Sua biografia, por exemplo, começa com a autora descrevendo o prazer de tomar banho em um chuveiro. Não é à toa: grande parte de sua vida não foi nada fácil. No começo da infância, Esmeralda morou em uma pequena casa com a mãe, os irmãos e o padrasto, com os quais dividia uma só cama. Enfrentou a violência de uma mãe alcoólatra, a fome e a dor do assassinato de uma irmã. Aos oito anos, a então jornalista fugiu de casa e ganhou

as ruas, mas o preço da liberdade foi alto. Esmeralda acabou dependente de crack, droga que também lhe tirou quase todos os amigos, além da dignidade. Resultado: cinquenta passagens registradas na antiga Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor (Febem), por tráfico de drogas, assaltos e furtos. Pedra rara, Esmeralda recusou-se a perder as esperanças. Por meio do Projeto Travessia, que busca garantir os direitos das crianças e dos adolescentes carentes no centro de São Paulo, ela começou o longo e árduo caminho para deixar o crack. Muitas recaídas depois, a jornalista venceu o caminho das pedras para tornar-se a pedra lapidada que é hoje. “Entra na internet e procura ‘Esmeralda do Carmo Ortiz’. As perguntas que me fazem são sempre as mesmas: como foi a sua vida na rua? Como era sua mãe? Como que é usar droga? Tudo o que eu já contei no livro. Quando você tem um autor vivo, quanto mais conteúdo diferente você tirar dele melhor”, diz. É este o objetivo da entrevista a seguir. Como foi investigar a sua própria história para escrever o livro? Eu tive medo, mas um medo corajoso. Até porque ninguém me conhecia, eu era uma pessoa anônima. Eu não queria fazer fama; queria mostrar que é possível lapidar Esmeraldas. Entre 1999 e 2000, quando eu escrevi o livro, as pessoas achavam que o problema da droga era coisa de preto, pobre e prostituta. Mas eu estava lá dentro e via o tamanho do monstro que era o crack, eu via a proporção que ele tinha ganhado. Era uma tentativa de alertar os leitores. Por meio

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Cada um tem o seu sonho; o sonho é meu, eu sonho como eu quero” Esmeralda Ortiz, jornalista

Com ajuda do jornalista Gilberto Dimenstein, a história de Esmeralda deu origem a um livro

da minha história, acabei fazendo uma denúncia da questão política e econômica dos jovens, crianças de rua da periferia e usuários de drogas, além da questão do abuso sexual. Como você vê a sua trajetória hoje? Qual o impacto dela? Hoje, estou um pouco mais madura. Sou mulher, não mais menina. Consigo ver que a minha parte eu fiz, mesmo que indiretamente. Talvez, em algum lugar do país, do planeta, tenha alguém lendo o meu livro e tendo uma outra visão sobre o outro, sobre si mesmo e sobre o mundo à sua volta. Acredito que essa é a maior felicidade de um autor: compartilhar com o outro. Ao confrontar fontes com a sua própria memória, houve algum momento de dúvida entre o que era ficção e o que era realidade? Não tinha ficção nem realidade. Se a droga tivesse um poder tão grande de destruir minha mente, eu não teria conseguido a clareza para contar a minha história de uma forma suave e sutil. Não é fácil falar de coisas pesadas. Tudo o que eu falei é real. Tudo o que eu falei aconteceu. A única dúvida que eu tive foi “cadê os meus amigos?”, porque todos eles acabaram mortos ou sequelados pela droga. Como o Gilberto Dimenstein ajudou nesse processo? Qual foi a participação dele no livro? Ele me respeitou muito. Não é que ele me deu liberdade, ele me respeitou. Ele foi um ouvido; acreditou em mim, pegou na minha mão e disse

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“agora você não está sozinha, vamos compartilhar sua trajetória” o papel dele foi fundamental, principalmente na coordenação do livro. Você ressalta no livro a sua paixão pela liberdade. Além disso, qual era o seu sonho na infância? Meu sonho era ter uma mãe que cuidasse de mim, que me desse apoio e amor. Mas eu não tinha muitos sonhos. Antes de ir para a rua, meu sonho era comer pão com mortadela, que para as pessoas não é nem um sonho, é uma vontade rotineira. Cada um tem a sua realidade e cada um tem o seu sonho; o sonho é meu, eu sonho como eu quero. E hoje, como é sua visão da rua? Mudou depois de tudo que você passou na vida? Muito, em todos aspectos. Primeiro porque, antigamente, na rua ficavam as pessoas pobres, que sofriam violência doméstica e familiar. Hoje, tem um monte de órfão de pais e mães vivos, gente que abandona suas mansões, suas grandes empresas, para ficar na rua usando droga, usando crack. Qual é a sua opinião sobre as políticas públicas direcionadas às pessoas nessa situação? Há despreparo? Os políticos podem até estar despreparados, mas, pelo menos, estão tentando fazer algo, coisa que antigamente não faziam. Um familiar meu, por meio do programa De Braços Abertos, conseguiu se internar em uma das melhores clínicas de reabilitação. Eu vou à Cra-


colândia levar mensagens inspiradoras para os dependentes químicos com um grupo anônimo e vejo tudo o que eles têm hoje; vejo tudo aquilo que eu não tive antes. Tem todo um aparato. Ainda não é o suficiente, mas é um começo. Antigamente, a gente era tratado só com polícia e paulada. Qual foi o maior marco da sua vida? Um momento que me marcou muito foi quando os educadores do Projeto Travessia foram atrás de mim. Eles me perguntaram o que eu poderia fazer para que eles me ajudassem. Foi aí que eu percebi que a responsabilidade estava na minha mão, não na mão dos outros. Eu vi que eu, realmente, precisava me dar uma possibilidade, e que eu nunca conseguiria parar com a droga se não tomasse, eu mesma, uma atitude. Hoje você participa de algum projeto como esses que te ajudaram? Dou muitas palestras, principalmente em escolas, mas não participo diretamente. Eu vou à Cracolândia falar da minha experiência, do Projeto Travessia, tento sempre dar uma força. Lá, me tratam com muito respeito, porque todo mundo me conhece, sabe da minha história, em algum momento leram meu livro e me têm como um referencial. Esse respeito também aparece porque eu respeito muito eles. Outras pessoas que tiveram problemas com dependência química vieram falar com você? Alguma delas marcou mais do que as outras? Não posso citar nomes, mas já recebi vários casos. Um menino me marcou muito. Ele estava na Febem e ia se suicidar, mas viu um vídeo institucional em que eu falava da minha trajetória e acabou conseguindo encontrar uma força dentro dele. Acho que minha ajuda, como eu falei, é muito indireta: já criaram uma ONG com base na minha história, já teve gente que parou com a loucura [da droga]

Hoje, a jornalista se orgulha de dar ao filho a vida que nunca teve

porque ouviu minha narrativa e também gente que começou a ter uma visão diferente daqueles que moram na rua. Você comenta no livro que não sabia o que era uma família. E hoje, você sabe? Sei. É mais do que uma unidade. Hoje somos só eu e meu filho, e é uma coisa muito bacana. A gente se ama muito, se respeita muito. Eu não gostaria de ter ficado pedindo esmola durante minha infância inteira. É humilhante. Hoje, estou ensinando ao meu filho o que é o amor, o que é a sensibilidade, o que é a felicidade pelas pequenas coisas. É isso que eu queria que a minha mãe fizesse comigo, mas não dava tempo, com sete filhos, cada um de um pai. Analfabeta, negra, pobre, dependente do álcool. Não dava tempo. Dentro do universo das drogas, a sua história é uma exceção à regra. O que você acha que é preciso para que menos pessoas acabem “dançando” por causa delas? Oportunidade. O problema é que as pessoas são muito preconceituosas. Se você vai arrumar um emprego e fala que foi usuário de droga, ninguém quer te contratar. Fica difícil recomeçar a vida. Acontece que, hoje, qualquer um vira usuário de droga. A gente vive uma nova era – a do “ter para ser”. A mídia nos diz o que ser, o que pensar, o que ter, como agir, o que falar. Por isso, hoje, as pessoas têm um vazio enorme e não sabem como preenchê-lo – e aí entra a droga. Antes, eu estava falando sobre meninos moradores de rua, mas hoje você passa na Cracolândia, ou em qualquer lugar, e vê que não é só morador de rua: é o menino rico que fugiu de casa, é o empresário, é a madame. Tem gente que tem todo tipo de oportunidade, mas não dá um passo para frente. É possível ter uma qualidade de vida, mas as pessoas têm que querer. Ninguém anda sozinho. Então, querer é realmente poder.

Esmeralda - Por Que Não Dancei, de Esmeralda Ortiz Editora: SENAC/ ATICA 208 páginas R$ 40

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tempo

barato HISTÓRICO Quais os diferentes usos e significados das drogas ao longo da história? REPORTAGEM ANA JÚLIA CANO, ANDRESSA OLIVEIRA, BEATRIZ ARAÚJO, CAROL VBO, ÉRICA AZZELLINI (1º ano de Jornalismo), LANNA SANCHES DOGGO e SARAH MOTA RESENDE (2º ano de Jornalismo) ILUSTRAÇÃO THAÍS HELENA REIS (3º ano de Jornalismo)

O ser humano e as substâncias psicotrópicas têm, juntos, uma longa história, repleta de altos e baixos. “São alguns dos produtos antropoculturais mais valiosos, assim como o alimento ou, em alguns momentos, até mais que ele”, define Henrique Soares Carneiro, historiador e professor da Universi-

dade de São Paulo (USP). Os primeiros registros dessa relação, ligada à necessidade de fortalecimento físico e psicológico, datam do período Neolítico: junto com as ervas comestíveis, a humanidade descobriu também aquelas que alimentavam o espírito, proporcionavam uma comunicação com o divino ou

despertavam a experiência dos cinco sentidos. Durante a Idade Média, desenvolveram-se tanto o uso popular destas plantas quanto um saber alquímico sobre elas, abrindo as portas para estudos e pesquisas que atravessariam os séculos e permaneceriam até os dias de hoje.

8 mil a.C. MACONHA: No barato da erva O cultivo da maconha é tão antigo quanto a descoberta da agricultura, há cerca de 10 mil anos. Originária da região dos atuais Afeganistão e Himalaia, a planta se espalhou rapidamente pelo mundo, chegando por último na América, de carona com as Grandes Navegações. Seu uso espiritual, atrelado a seus efeitos entorpecentes, é mais antigo ainda. Os hindus a chamavam de vijahia (algo como “a fonte da felicidade”), e a consideravam uma das cinco ervas sagradas. A Cannabis estava presente, também, em rituais dos assírios, dos taoístas e do candomblé, o que demonstra seu efeito enteógeno – ou seja, aparece em diversas culturas e épocas com a função de despertar o “deus interior” do indivíduo e expandir sua mente. Além disso, a maconha sanaria o corpo. Pelo menos, era nisso que se acreditava até o início do século 20. Luiz Carlos Rocha, em seu livro As drogas, conta que os cigarros de maconha “eram recomendados pelo Almanach Parisiense, de 1905, para os casos de asma, catarro e insônia, e vendidos livremente no Brasil”. No mundo inteiro, a planta e seus derivados eram considerados eficazes afrodisíacos e também calmantes. Atualmente, o seu uso, seja como fármaco ou como forma de recreação, é polêmico, restrito a casos de glaucoma e à amenização dos efeitos adversos da quimioterapia.

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800 a.C. Ópio: A cura que mata A Odisseia, de Homero, no século 8 a.C., já registrava os efeitos e usos do ópio. A planta fazia parte de várias antigas receitas egípcias, gregas e romanas, e era utilizada, principalmente, como analgésico e eutanásico. Foram os árabes que espalharam o estranho poder curativo da droga pela Europa. No Período Renascentista, a substância começou a ser vista como um “paradigma vegetal do fármaco” – ao mesmo tempo veneno e remédio –, ainda que, até o século 19, tenha sido considerada benéfica, já que aliviava dores e sofrimentos. Seu comércio, portanto, era livre. A importância do ópio era tamanha que ele chegou a ser o centro de dois conflitos envolvendo a China e o Império Britânico, no século 19. O vício da população chinesa na substância acabou afetando o crescimento econômico do país. Por isso, a dinastia Qing, dominante na época, proibiu-a, o que desestabilizou a Inglaterra, cujo único produto de câmbio era o ópio, produzido na Índia. A Grã-Bretanha declarou guerra à China, marcando a história com as Guerras do Ópio. Atualmente, a droga é ilegal. Apesar de ser considerada uma das substâncias mais viciantes que existem, possui propriedades anestésicas, e dela pode-se obter a morfina, a codeína e a heroína.

Século 16 Coca: A planta sul-americana A cocaína é uma droga extraída das folhas de um arbusto, e começou a ser utilizada em cerimônias religiosas pelos Incas. Pesquisadores indicam que a coca é originária da região da atual Bolívia, e que foi disseminada pela América Latina por meio da migração e interação cultural de diferentes grupos indígenas: Aruacs, Chibchas, Aymaras e Quéchuas. Estes grupos perceberam que mascar a planta estimulava a mente e aliviava a fome, além de anestesiar o corpo. No século 16, os colonizadores espanhóis interessaram-se pelas propriedades da coca e, então, levaram uma amostra para a Europa, onde pesquisas científicas passaram a ser desenvolvidas. A partir do século 19, a cocaína se popularizou e passou a ser usada para a produção de anestésicos, gomas de mascar, doces, cigarros e até mesmo Coca-Cola, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos. Foi nesse período que surgiram os primeiros casos de problemas decorrentes da inalação da droga. Por isso, na primeira década do século 20, ela foi proibida para todos os fins. Desde então, a cocaína é uma substância ilegal que passou a ser associada às áreas urbanas, como afirma o Henrique Carneiro: “Essa droga sempre foi associada a grupos particulares, como os músicos do jazz, nos Estados Unidos. Em 1970, a cocaína torna-se a droga do glamour e das elites financeiras”.

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1874 Heroína: Sensação superpoderosa O nome “Heroína” vem do alemão, Heroisch, que significa “semideus”; um filho de deuses com mortais. Mais tarde, o termo passou a caracterizar homens notáveis, chefes das tropas, heróis de guerra. É esta sensação de poder que os primeiros usuários da heroína, durante estudos iniciais, descreviam. Os efeitos da droga duram aproximadamente cinco horas, proporcionando prazer intenso, muitas vezes comparado a um orgasmo, além de bem-estar, euforia, elevação da autoestima e diminuição do desânimo, da dor e da ansiedade. Sintetizada pela primeira vez em 1874 pelo químico inglês Charles Romley Wright, a droga só começou a ser comercializada 23 anos depois, como um sedativo da tosse para crianças. A heroína era, também, usada para tratar viciados em morfina. Em 1910, entretanto, descobriu-se que ela convertia-se em morfina no fígado, sendo, ironicamente, mais viciante ainda.

1938 LSD: Além da mente e do corpo O nome científico do LSD já é complicado: Lysergsäurediethylamid. A sua história é mais ainda. Foi produzido em 1938, quando o químico suíço Albert Hofmann sintetizou a droga pela primeira vez e, acidentalmente, experimentou um pouco da solução. Foi uma viagem maluca: cores e formas estranhas invadiram seu campo de visão; a euforia o dominou; sua realidade ficou completamente distorcida. O efeito da substância, como percebeu Hoffman, era muito parecido com o da psicose. Por isso, começou a ser utilizado em tratamentos psiquiátricos na década de 40. Nos anos 1960, porém, a droga se popularizou, principalmente entre os jovens universitários e os hippies. Na época do amor livre, o ácido lisérgico tornou-se um dos símbolos mais representativo do conhecido festival Woodstock, em 1969. Foi nesse período, inclusive, que a droga ganhou a fama de expandir mentes – teoria defendida por intelectuais como Timothy Leary, um professor de psicologia de Harvard que preconizava um uso mais controlado e ponderado do LSD. Em 1967, os Beatles lançaram a música “Lucy in the Sky with Diamonds”, e, apesar de negarem a alusão ao LSD, a BBC de Londres proibiu a canção na época. Tornado ilegal nesse mesmo ano nos Estados Unidos, seus efeitos ainda não são totalmente conhecidos pelos cientistas, mas pode-se pontuar alguns deles, como o pânico seguido de alucinações.

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1984 Crack: O fundo do poço do mundo Entre 1984 e 1985, nos bairros pobres de Los Angeles, Nova York e Miami, surgiu o crack, uma droga em estado sólido. Os cristais eram fumados em cachimbos, e estalavam quando expostos ao fogo – daí o nome. A substância, obtida de um modo simples, quase sem gastos e a partir de um método caseiro, era utilizada em grupos, dentro de instalações precárias chamadas crack houses. A droga, extremamente barata, passou a atingir parcelas cada vez mais pobres e marginalizadas da sociedade norte-americana. Ela se disseminou pelo mundo inteiro, principalmente da década de 90 em diante. Pouco refinada, viciante e, em geral, misturada com várias outras substâncias tóxicas, ela acaba gerando grandes problemas de saúde em seus usuários, o que equipara seu custo final ao da cocaína.

Anos 1960 Tabaco: A droga legal Muito antes de ser o símbolo de status da era de ouro de Hollywood, a folha do tabaco já era usada por povos indígenas americanos como um poderoso remédio e um instrumento em cerimônias religiosas. A famosa expressão “cachimbo da paz”, por exemplo, é uma referência a tais rituais, que tinham como finalidade a aproximação com o divino e a previsão do futuro. Além de fumar o tabaco, essas tribos também preparavam chás e chegavam até a comer a folha. No período colonial, os europeus levaram para o Velho Mundo amostras da planta, que popularizou-se ao curar as enxaquecas da rainha Catarina de Médicis, da França. A Igreja Católica também rendeu-se à planta, e acabou inserindo o tabaco nas missas – não eram poucos os fiéis que fumavam durante o culto. Os médicos do período sequer consideravam o tabaco como uma droga: no século 17, foi publicado um tratado listando 59 doenças que, acreditava-se, poderiam ser tratadas com o fumo. Entre elas, estavam a diarreia, a sarna e a epilepsia. O historiador Henrique Carneiro conta, também, que o cigarro teve grande aceitação por outros motivos: “O tabaco é útil para a atividade de trabalho intelectual, sobretudo associado ao café e ao chá, drogas estimulantes oficiais da revolução industrial”. Hoje, cerca de um terço da população adulta é fumante, apesar dos efeitos comprovadamente negativos do tóxico, como doenças pulmonares, impotência sexual e câncer – a substância causa aproximadamente 10 mil mortes por dia. Encarado como vilão pela medicina, o cigarro vem sendo, aos poucos, excluído da sociedade: foi proibido em lugares fechados, sua publicidade foi reduzida a cartazes nos locais de venda e a própria embalagem é obrigada a apresentar uma lista dos riscos oferecidos pelo produto.

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jornalismo

alvo no

peito

Como trabalham os jornalistas que sujam os sapatos por trás do que mostra a mídia REPORTAGEM bárbara muniz, carolina de barros, fernanda grillo, izabela gama e jeniffer mendonça (1º ano de Jornalismo) imagem débora stevaux (2º ano de Jornalismo)

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Gravador na mão, bloquinho e caneta. O mais importante: pés na rua, sem medo da sujeira. Ser repórter significa entrar em contato com o mundo e torná-lo matéria. Hoje, entretanto, a notícia frequentemente aparece sem aura própria ou profundidade; um trabalho de escritório, feito por meio de algumas ligações ou de alguns cliques em sites de busca. Fugindo desta prática acomodada, alguns comunicadores buscam dar o máximo de vivacidade possível ao assunto tratado. No ramo investigativo do jornalismo, o contato mais profundo e direto com a fonte é essencial: é preciso ir aonde a notícia acontece, falar com personagens e protagonistas, sentir o clima local, desmentir. Investigar, neste caso, não significa apenas procurar pistas escondidas. É, também, saber encontrar todas as versões possíveis de uma mesma história. Apurar é a palavra-chave: cruzar informações, buscar várias fontes, entender todos os lados e, principalmente, hesitar. Cláudio Tognolli, um dos fundadores da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), define a área de maneira pragmática: “O jornalista investigativo usa o documento produzido por uma autoridade como ponto de partida, e não como um ponto de chegada”. A apuração deste tipo, no cenário atual, é um processo extremamente complexo e diferenciado, se comparado ao levantamento das notícias corriqueiras. Para Tognolli, o que rege uma reportagem investigativa é o fato de existir algo por trás do que é comunicado pela grande mídia. A cobertura de temas polêmicos desperta o interesse de muitos profissionais – pessoas que se dispõem a colocar o alvo no próprio peito pela redação de uma matéria. A partir do momento em que se decide esclarecer determinada pauta, todas as consequências devem ser inteiramente assumidas pelo responsável por essa divulgação. Segundo Tognolli, ameaças a jornalistas investigativos são muito comuns, mas acabam, também, evidenciando a qualidade de suas

informações. Ele não vê motivo para entrar em pânico: “Ou te ameaçam e te processam, ou te matam de uma vez”. No ramo, explica Tognolli, tudo depende de bom senso. O contato do profissional com a polícia, por exemplo, é relevante tanto para a questão da veracidade da informação a ser publicada quanto para a autoridade que é atribuída ao argumento desenvolvido. O contato com usuários e traficantes também, defende o diretor da Abraji, que confessa já ter fumado crack para infiltrar-se entre os que também faziam uso destas substâncias. É necessário, além disso, saber priorizar a verdade em detrimento da fonte, segundo Tognolli, já que a busca pela transparência de um acontecimento eleva o grau de exposição dos envolvidos. Como muitos entrevistados têm consciência disso, é neste ponto que a observação e o contato direto entram em ação, possibilitando a captação de dados além das aspas do entrevistado. No jornalismo investigativo, é comum o repórter bater de frente com a ética. A prioridade, nas palavras de Tognolli, é a veracidade da informação, o que justificaria expor a fonte, ainda que o profissional esteja sempre sujeito às consequências: “Nada é invasivo quando é de relevância social”. Mas o que torna uma questão privada algo de interesse público? “Se você cheira pó e recebe um caboclo no seu terreiro todas as noites, o problema é seu. Se você faz isso e tem um cargo público, o problema é nosso”, explica Cláudio Tognolli.

Droga na profissão A questão das substâncias ilícitas é constantemente abordada por reportagens investigativas. A grande relevância deste assunto para o leitor é uma das razões que o torna recorrente, em parte devido à existência de um grande e bem organizado comércio ilegal, que deve ser trazido a público, e também em decorrência do crescente número de usuários entre os brasileiros. Em geral, no Brasil, o moralismo em relação ao tema acaba impe-

dindo o aprofundamento, e é justamente por isso que muitos profissionais da comunicação decidem explorar o assunto. Denis Russo Burgierman é o atual editor-chefe da revista Superinteressante e autor do livro O fim da guerra, que discute soluções para o atual sistema de repressão às drogas em nosso país através das perspectivas de cinco nações que lidam com a maconha de maneiras diferentes. Para ele, o grande problema do assunto é o preconceito do próprio público: “As pessoas têm crenças muito profundas sobre drogas, mas não têm dados e fatos”. Com o livro, Burgierman pretendia fazer pais conservadores discutirem o tema, e não levantar a bandeira da legalização para leitores que já apoiam a causa. Ao tratar um tema polêmico e tão envolto em questões morais e éticas como a legalização da maconha, o jornalista investigativo encara obstáculos desde a desconfiança da fonte à rejeição de parte do público leitor. Burgierman conta que, durante a apuração para escrever O fim da guerra, conheceu quase uma centena de pessoas que cultivavam a erva em seus quintais nos Estados Unidos e nenhuma delas permitiu que o jornalista visitasse a plantação. Além disso, quando o livro foi lançado, o metrô de São Paulo recusou a publicidade para não incomodar os passageiros, que poderiam se constranger com o tema e com a imagem das folhas de maconha na capa. Diante dos problemas dessa área, Burgierman acredita que a função do profissional é apresentar os pontos positivos e os pontos negativos do assunto tratado em todos os âmbitos: social, político e econômico. Além disso, acredita que o maior desafio é tornar público todos os lados da narrativa: “Histórias lineares são fáceis de contar, mas histórias complexas, que têm muitos aspectos, são difíceis de costurar. É aí que entra o jornalista investigativo”.

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jornalismo

por baixo dos

panos REPORTAGEM carolina de barros, fernanda grillo e izabela gama (1º ano de Jornalismo) imagem fernanda grillo (1º ano de Jornalismo)

Um dos mais conhecidos jornalistas brasileiros, Caco Barcellos teve grande atuação em inúmeras reportagens de denúncia que trouxeram à tona diferentes versões de um mesmo fato. Hoje, ele está no comando do Profissão Repórter, programa de televisão focado em matérias investigativas, e é autor de livros sobre o universo do crime, entre eles Abusado – o dono do morro Dona Marta, que narra a vida de um dos maiores traficantes do Rio de Janeiro da última década. Em entrevista, ele fala sobre a área, as dificuldades ao seu redor e o que considera a conduta ideal destes comunicadores. Como você começou a trabalhar no ramo investigativo? Existe algum preparo para entrar nessa área? Comecei na rua, durante a Ditadura Militar. Acabei desenvolvendo uma dinâmica de ir atrás de fontes não oficiais, já que as oficiais atendiam muito mal a imprensa, quando atendiam. Aos poucos, fui me acostumando com a orientação dos veteranos, indo atrás das pessoas simples que tivessem conhecimento do fato, percebendo que é possível contar uma história sem ouvir autoridades. Foi um aprendizado natural diante das dificuldades e dos impedimentos que se colocavam à minha frente. Como é a aproximação jornalística do mundo do tráfico? Seria uma aproximação como qualquer outra, se nela eu não tivesse que lidar com criminosos armados a quem, muitas vezes, a imprensa só procura para falar mal. Os traficantes acham que todos são inimigos. Você precisa convencê-los de que está lá para contar a história deles sem discriminação, e isso exige certa cautela e uma apro-

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ximação progressiva. Depende de cada história, mas, no meu caso, costumo começar com alguém que mora naquela comunidade específica. Uma vez lá dentro, você consegue explicar qual é a sua missão e pode desenvolvê-la com mais facilidade. Qual foi a sua primeira experiência nesse universo? Foi bem no começo do trabalho, em 1973. Tive meu primeiro contato direto com traficantes no Rio Grande do Sul. Lá, havia um morro fortemente controlado por eles, onde a chefe era uma moça paraplégica muito brava que andava sempre armada e não perdoava inimigos. Ela vivia nos ombros de um cara que ela chamava de Cavalo. Eu a conheci, passei uma semana com ela e contei sua história, que me impressionou muito. Existem barreiras éticas e morais nesse tipo de reportagem? Como funcionam? Sim, existem. Gosto de lembrar que tudo o que vale para a minha vida cotidiana vale também para o trabalho. Eu prefiro me dar bem na carreira e, ao mesmo tempo, dormir com a consciência limpa. Tem que decidir com caráter e bom senso se determinada informação deve ser publicada ou não. Outra opção é dar a informação sem citar nomes nem mostrar a imagem. É um caminho criado no bom senso e na boa índole, porque cada história tem suas particularidades. Quais os riscos enfrentados pelo jornalista investigativo? Você tem medo? Tenho medo, mas isso não significa que eu esteja em


Jornalista investigativo, Caco Barcellos desmistifica a profissão

risco. Quase sempre busco abordar mais a narrativa da vítima do que a do acusado. Quando você está do lado do prejudicado, dificilmente corre riscos, porque as pessoas pedem para contarmos a história delas. Há aquelas que não querem ter a história contada, e a gente respeita. Então, não é tão frequente, mas acho que basta estar vivo para correr riscos. A cidade é muito violenta, mas não é só contra o jornalista, é contra todo mundo. Você acha que o tráfico influencia a comunidade em que está inserido? O tráfico não existiria se não houvesse cidadãos e policiais honestos e desonestos ao redor dele. A pessoa não corre o mesmo risco, mas usufrui da atividade ilegal. Por exemplo, um botequim com uma “boca” [local de venda de drogas] ao lado vende muito. Se a “boca” fecha, ele vai à falência. A igreja também recebe muita ajuda financeira do tráfico. Os policiais, sem os traficantes, não ganham o dinheiro deles por fora do salário, que já é miserável. Eu ouvi famílias de traficantes em que o rapaz queria abandonar o tráfico, mas a mãe não deixava, porque o dinheiro sujo trazia limpeza para a casa dele. É esse o jogo que explica a existência do traficante. É hipócrita a ideia de que só o traficante é criminoso. Quando você diz que eles são exatamente iguais às outras pessoas, elas estranham. Normalmente, a imprensa não fala da vida deles, só do

crime que eles cometem. Alguns jornalistas não sobem no morro e pouco sabem daquele universo, mas falam barbaridades sobre os bandidos. Além disso, as autoridades fazem pouco caso com o morro, onde não há cidadania. Em uma matéria, o envolvimento pessoal é bom ou ruim? É inevitável. É impossível ter uma postura extremamente fria, porque quando você conhece alguém, já está se envolvendo. Um jornalista que não se envolve pode não estar apurando bem, porque assim não dá tempo de estabelecer uma relação com a fonte. À medida que você quer saber mais sobre essa história, fica impossível não se envolver, e o envolvimento depende só da vontade do repórter de conhecer a fundo o universo abordado e seus personagens. Qual é o papel do jornalista na questão das drogas, além da denúncia? É o mesmo que em qualquer matéria. Para contar uma história, você deve estar o mais perto possível dos acontecimentos. Então, eu subo numa favela para contar a história de uma “boca” de cocaína da mesma forma que eu entro no Palácio do Planalto para contar a história de uma figura pública. Para mim, não existe nenhuma diferença. Eu vou tratar a nossa presidente do mesmo modo que eu trato qualquer um no morro.

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cULTURA

indústria viciada No final dos anos 1980, o músico Cazuza já dizia que seus heróis tinham morrido de overdose. Este é um dos fins mais trágicos e comuns entre celebridades. Jimi Hendrix, Janis Joplin, Amy Winehouse e Phillip Seymour Hoffman são apenas alguns dos nomes que não resistiram aos efeitos devastadores das substâncias tóxicas. Na opinião de Roberto Sadovski, crítico cinematográfico e atual blogueiro do UOL, as drogas relacionam-se com a arte, tornando-se parte deste território: “Muitas obras que conhecemos e admiramos não existiriam se fossem feitas por um bando de ‘caretas’”. Em Hollywood, essas substâncias transcendem as telas e se fazem presentes tanto na vida pessoal das celebridades quanto na cultura popular. O mundo do entretenimento parece viciado – literal e figurativamente. Em 2011, o ativista Johnny Green, responsável pelo portal The Weed Blog, realizou uma pesquisa sobre o tema, na qual concluiu que 33% das canções nas paradas Billboard eram relacionadas ao consumo de alguma substância entorpecente, como álcool ou maconha. Na TV e na telona, são frequentes as produções que abordam esse tipo de consumo. A droga pioneira em Hollywood foi o cigarro. Desde a era de ouro do cinema, que começou na década de 30, o tabaco tem sido

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um elemento comum nos filmes – prova disso eram os principais atores e atrizes da época, que sempre estrelavam os comerciais deste produto. A situação só começou a mudar em 1983, com a criação da Entertainment Industries Council (EIC), órgão sem fins lucrativos, responsável por fiscalizar produções audiovisuais que retratassem o uso de entorpecentes. Para Luiza Lusvarghi, crítica da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine), filmes e séries com essa temática não são suficientes para mudar a mentalidade do público. “Modificar comportamentos vai muito além do cinema. Requer um contexto político específico, leis, mudanças na educação”, afirma. Seguindo essa mesma linha, a opinião de Roberto Sadovski é de que a telona, por vezes, retrata a droga como algo degradante, mostrando suas consequências negativas: “A arte não precisa necessariamente dar uma lição, mas é importante que ela nos faça pensar no assunto”. Muitas campanhas antitabagismo e contra a glamorização do cigarro foram implantadas e os period dramas, séries e filmes de época, foram desestimulados a apresentar cenas que representavam o ato de fumar, a menos que fosse imprescindível para a trama. Luiza Lusvarghi concorda: “Se a cena envolvendo o consumo atender ao roteiro

ou ao personagem, tem que ser mostrada”. Jon Hamm, que interpreta o protagonista da série Mad Men, revelou ao jornal britânico The Independent que, em cena, todos os cigarros utilizados são herbais. “Senão, já estaríamos mortos”, brincou o ator. Mesmo com a campanha contra o tabagismo, uma pesquisa da University of California, San Francisco (UCSF) indica que, só entre 2010 e 2011, as cenas que envolvem tabaco aumentaram 7% entre os 130 filmes de maior sucesso do ano, e 36% considerando apenas as produções com classificação indicativa acima de 13 anos. As drogas ilícitas também habitam a fábrica de sonhos de Hollywood. Muitos dos filmes mais aclamados dos últimos anos envolviam o consumo de entorpecentes no roteiro. Anne Hathaway foi indicada ao Oscar em 2008 por sua performance como uma ex-viciada em O Casamento de Rachel. Ellen Burstyn também garantiu uma indicação em 2000 pelo filme Réquiem Para Um Sonho, um dos mais emblemáticos e tocantes retratos do mundo dos tóxicos no cinema atual. A trama remonta a história de quatro pessoas que têm suas vidas destruídas por diferentes vícios e preferem escapar da realidade por meio de de sonhos inalcançáveis. Sobre a obra, Sadóvski afirma: “É um filme que deveria ser obrigató-


A capital mundial do cinema tem uma história cercada de polêmicas em relação ao uso de drogas lícitas e ilícitas REPORTAGEM AURÉLIO SILVA, gabriel alves, júlia fAvero, Larissa Moreira (1o ano de Jornalismo) e daniel lopes (2o ano de Jornalismo) COLABORAÇÃO camila gregori (2o ano de Jornalismo) IMAGEM nathalie provoste (3o ano de Jornalismo)

rio em toda escola, e não só para maiores de idade”. O crítico conclui: “Você não impede o uso [das drogas] jogando para baixo do tapete; você impede mostrando o resultado”. Apesar de retratos trágicos como esse, o tema nas telonas continua gerando controvérsias. Obras como O Lobo de Wall Street, de Martin Scorsese, e Trainspotting, de Danny Boyle, mesmo que bem sucedidas entre público e crítica, foram acusadas de fazer do consumo de entorpecentes algo sofisticado ou “descolado”. Sobre isso, a opinião de Sadovski é de que “o filme nunca é sobre o vício em si. A droga tem um papel secundário, para ressaltar a personalidade de algum personagem em alguma cena”. Os maiores órgãos de controle deste tipo de representação, entretanto, discordam da posição do crítico. No início dos anos 2000, o Conselho Britânico de Classificação para Filmes lançou um relatório defendendo que mesmo produções que explorem o lado negativo dos narcóticos, como em Requiém para um sonho, poderiam influenciar os espectadores a experimentá-las. Para Sadovski, isto pode ser um erro: “A representação mais real possível do vício, que faz com que o medo de usar drogas apareça, parece a melhor solução”. Talvez, a indústria viciada de Hollywood esteja precisando de uma rehab.

Séries viciantes Elogiadas por crítica e público, Breaking Bad, Weeds e Skins são algumas das produções que fizeram sucesso explorando o mundo das drogas • Escancarando o altamente lucrativo tráfico de metanfetamina nos Estados Unidos, Breaking Bad também aborda o vício e suas consequências. O telespectador conhece os “palácios do cristal” (espécies de Cracolândia locais), a reabilitação de adictos e as ações de combate às drogas do Drug Enforcement Administration (DEA), um Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico (Denarc) americano. • Bem humorada, Weeds explora o tráfico de maconha em um cenário bastante inusitado: uma tradicional cidade no interior da Califórnia. Uma dona de casa perde o marido e, a fim sustentar a si e aos dois filhos, passa a vender maconha para os vizinhos. Além do comércio ilegal de drogas, a produção discute a legalização da Cannabis e a permissão do uso para fins mediciais, também com o DEA bastante presente na trama. • Adolescentes britânicos usuários de drogas protagonizam a série Skins. Álcool e substâncias ilícitas, consumidos como forma de diversão ou como válvula de escape dos problemas, são muito presentes na trama, que constantemente apresenta cenas polêmicas, abordando os processos de abstinência, overdose e reabilitação das personagens.

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corpo

b mband Dependendo da dose, os anabolizantes podem ajudar a manter a forma, tratar problemas de saúde ou fazer muito mal ao usuário REPORTAGEM Otávio Matenhauer Urbinatti, Stela Zeferino (1º ano de Jornalismo), Juliana Mezzaroba, Letícia Sabbag e Tami Rodrigues (2º ano de Jornalismo) imageM otávio Matenhauer urbinatti (1º ano de Jornalismo)

Corpos “sarados”, músculos definidos, flacidez zero. A busca pelo “corpo perfeito”, está relacionada a alimentos naturais e, principalmente, a exercícios. O caminho até o físico ideal, porém, pode ser longo, o que leva muitas pessoas a recorrerem a um atalho: os esteróides androgênicos anabólicos, popularmente conhecidos como anabolizantes – ou, simplesmente, “bombas”. Essas substâncias são sintetizadas a partir do hormônio masculino testosterona e nem sempre têm relação direta com a malhação. Em alguns casos de doenças que desgastam a musculatura, como câncer, Aids e anorexia, os anabolizantes podem ser recomendados como reconstrutores dos tecidos. “Pacientes com múltiplas fraturas e queimaduras também podem se beneficiar destes esteróides”, explica Paulo Zogaib, professor de medicina esportiva na Escola Paulista de Medicina. Nos tratamentos de saúde, porém, eles são usados em doses fisiológicas, naturais do organismo. No meio esportivo e estético, as quantidades são muito maiores. O uso destas drogas, se indiscriminado e sem acompanhamento médico, pode gerar graves problemas de saúde e, em casos extre-

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mos, levar à morte. De acordo com o cardiologista Gustavo Magnus Peres, alguns sintomas são imediatos, como o aumento do risco de ataques cardíacos. Além disso, podem surgir complicações como insuficiência renal, alteração do colesterol e impactos sexuais – nos homens, o uso pode levar à atrofia dos testículos e à ginecomastia (o crescimento das mamas), além de trazer o risco de câncer de próstata. Nas mulheres também há efeitos adversos: os pelos do corpo e do rosto aumentam, a voz engrossa, o ciclo menstrual é alterado e o clitóris sofre hipertrofia. “Como as doses são muito elevadas, é difícil não haver efeitos colaterais”, coloca Zogaib.

Alternativas bombásticas Além dos anabolizantes, existem substâncias ainda mais perigosas para o ser humano: os complexos vitamínicos de uso veterinário. O A.D.E., composto pelas vitaminas A, D e E, é um óleo para tratar a falta destes elementos em bovinos, suínos e equinos, mas muitas pessoas o consomem para aumentar os músculos. O efeito dessas oleaginosas também é ilusório, pois elas garantem um inchaço no local aplicado, o que faz com que o múscu-

lo só pareça maior. Com o uso prolongado, podem necrosar a musculatura, dano que só pode ser resolvido com uma amputação. Hoje, há diversas outras opções de suplementos alimentares, recomendados para pessoas que precisem suprir necessidades proteicas ou vitamínicas no organismo. Frequentadores de academia, por outro lado, costumam usá-las para ganhar massa muscular mais rápido e tentar atingir 0% de gordura corporal. Essas alternativas, apesar de sobrecarregarem os rins, não têm tantos efeitos nocivos quanto as “bombas” e podem ser comprados sem receita médica, apesar de o acompanhamento profissional ser desejável. Para o estudante de engenharia Vinícius Andrade, de 20 anos, que utiliza suplementos para o desenvolvimento muscular, os anabolizantes não têm um efeito real: “Por mais que você treine, não vai além dos resultados que já conseguiu”. O jovem confessa que já teve vontade de tomar “bomba” para chegar ao corpo desejado, mas comenta que desistiu ao descobrir seus efeitos colaterais negativos. Outro grande problema envolvendo os hormônios é que grande parte dessas drogas, de procedência desconhecida, entra no


?

As embalagens das “bombas” pouco se diferenciam das de remédios convencionais

Brasil de maneira ilícita e é vendida sem prescrição médica em academias. A falta de fiscalização é evidente. A internet e as redes sociais também potencializam o comércio descontrolado das substâncias, divulgando os produtos e, muitas vezes, funcionando como pontos de venda.

A “bomba” e os médicos Apesar das consequências negativas que podem ser causadas pelos esteróides, há quem aprove seu uso alegando que, com um bom acompanhamento médico, os efeitos podem ser positivos. É o caso de Yuri Martins Adad, de 30 anos, personal trainer e fisiculturista. Yuri usa anabolizantes desde a adolescência, influenciado por amigos mais velhos. Aos 24 anos, quando passou a levar a atividade a sério e a participar de competições, começou a se consultar com um médico endocrinologista e fazer exames regulares. Yuri teve alguns efeitos colaterais leves, como a mudança de humor. Zogaib explica: “Como essas drogas são estimulantes diretos do sistema nervoso central, podem deixar a pessoa mais agressiva”. Para o professor, o acompanhamento médico, além de impor-

tante, é indispensável: “Muitas vezes, os impactos mais sérios, como os danos ao fígado, demoram a aparecer. Então, a pessoa acha que está tudo bem, mas não está”. Outro detalhe importante para o consumo benéfico dos esteróides é respeitar seu modo de uso, como o horário e a dose, que são diferentes para cada produto. “Alguns devem ser usados todos os dias, outros duas vezes por semana e por aí vai”, explica Yuri. Mesmo com controle médico, Zogaib atenta para a dependência que essas drogas podem causar: “Quando a pessoa para de usar, o sistema nervoso central para de ser estimulado, o que leva a perda do ‘pique’ de malhar. Isso faz o usuário não querer parar”. Quer sejam usados de forma segura controlada, ou sem qualquer acompanhamento médico, os anabolizantes podem levar ao corpo desejado ou à morte. “Vale lembrar que os efeitos colaterais dependem da composição do medicamento, da quantidade administrada, do tempo de uso e do organismo”, conclui Zogaib. Se usado sem cautela, o que parece ajudar a construir o físico perfeito pode acabar desmoronando a mente e o corpo. Escolher o caminho é, literalmente, dose.

Características femininas nos homens e masculinas nas mulheres

Por substituir a testosterona, o anabolizante inibe sua produção natural. Assim, a hipófise, glândula responsável pela produção hormonal, não recebe sinais para que o corpo produza mais desta substância. Portanto, nos homens, é recorrente o aparecimento de características femininas, devido à queda da produção da testosterona, pois há grande quantidade do hormônio de origem estranha ao corpo – os esteróides. A consequência: características femininas, como o crescimento das mamas, a redução dos testículos e a queda da produção de espermatozóides. Nas mulheres, o processo é simples: o aumento da testosterona ressalta características masculinas no organismo, como o aumento do clitóris e dos pelos corporais, a diminuição das mamas e problemas na menstruação. Alterações no humor, acne, calvície e tendência a doenças cardíacas são sintomas comuns em ambos os sexos. ESQUINAS – 2º SEMESTRE 2014

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perfil

ana laura pรกdua


Mãe da

rua Militante por essência e religiosa por convicção, Tina Galvão defende os direitos humanos REPORTAGEM Eduardo csengeri, vitória baraldi (1º ano de Jornalismo), BEATRIZ FALCÃO e DÉBORA STEVAUX (2º ano de Jornalismo)

Pelo interfone, uma voz levemente rouca dá tom a um diálogo formal que logo é quebrado por um jeito brincalhão e sincero. Uma senhora de um metro e meio e cabelos curtos, totalmente brancos, surge na portaria de seu apartamento, no Largo de Santa Cecília. De semblante alegre, batom vermelho nos lábios finos e agarrada à sua inseparável bolsa estampada, ela se apresenta: “Sou parente de Frei Galvão, que é o primeiro santo brasileiro, e também sou parente da Pagu Galvão, aquela mulher libertária do feminismo”. Militante por essência e religiosa por convicção, a assistente social aposentada Maria Albertina Sampaio Galvão de França, ou Tina, como prefere ser chamada, carrega, no pescoço, um colar abençoado pelo Papa Bento XVI, e, no peito, a energia para entrar de cabeça em diversas lutas sociais – principalmente, na causa dos adictos da Cracolândia. Quem vê sua baixa estatura não imagina o tamanho de sua coragem. Sua personalidade simpática e aberta permite aos moradores de rua uma intimidade que nem mesmo outros assistentes sociais conseguem alcançar. Indo

além do trabalho de médicos de reabilitação e psicólogos, ela consegue estabelecer uma relação diferente com seus “pacientes”, sem nenhuma hierarquia, de igual para igual. Longe da frieza com que estão acostumados, tanto os moradores da Cracolândia, quanto os de outras ruas próximas à região central de São Paulo, se sentem mais à vontade com sua “mãe”: “Esta é uma palavra muito forte pra eles”, define. O respeito é tão grande que alguns não acendem o cachimbo em sua presença, enquanto outros se ajoelham aos seus pés e, com os olhos marejados, dizem sentir saudades. Ela lembra que um deles, apelidado de Piri, colocava um tapete vermelho para ela passar: “Eu era uma rainha para ele”. Com seu passo lento, a senhorinha caminha entre os moradores da região, buscando, em cada conversa, saber da vida de todos. “Eu acredito que o afeto quebra barreiras”, explica a militante, que tem no abraço sua principal arma de mudança social. A partir desse lema, surgiu o nome de seu projeto: Aquele Abraço. Idealizado pela própria Albertina, o movimento parte do carinho para lembrar

os usuários de que são humanos: “Eles me abraçam, me beijam. À noite, nem se enxerga muito bem, de tanta gente que vem”. Gente sem rumo e sem família, que corre para os braços confortadores da velhinha. Além dos abraços, a assistente social também promove, com a ajuda de comerciantes e moradores da região, festas como o Churrasco de Gente Diferenciada, que aconteceu em junho, e a primeira edição da Festa Junina da Cracô. Enquanto conversa e troca sorrisos com os usuários, Tina conta que o objetivo do Aquele Abraço é mesmo literal: “Nós saíamos para abraçar. Eu ficava melada, mas não recusava o abraço. Aos poucos, eles vinham e diziam ‘posso falar com a senhora?’. Eu ouvia, ouvia, ouvia...”. Ouvia tanto que acabava conquistando a confiança da pessoa. Ela então começou a usar a própria voz para chamar a atenção da população sobre a agressividade da polícia e a internação compulsória dos usuários de crack. Mesmo rouca, é uma voz forte e uma das únicas que fala por eles. Apesar da aparência frágil (Tina sofre de diabetes e pressão alta), essa grande e pe-


débora stevaux

Eu acredito que o afeto quebra barreiras” Tina Galvão, assistente social

O Projeto Aquele Abraço foi criado para levar amor aos adictos do Centro de São Paulo quenina senhora não baixa a guarda: “Com autoridade, eu falo de pé”. Foi durante o mandato da prefeita Luiza Erundina, quando aconteceu o primeiro levantamento da população sem-teto em São Paulo, que Tina passou a se envolver com os moradores de rua. O sociólogo Herbert José de Sousa (Betinho), um antigo amigo e fundador da campanha Ação e Cidadania Contra a Fome e a Miséria Pela Vida, de 1993, foi quem a influenciou. Na época, a dupla foi contrária à lei da internação compulsória, proposta pelo governo de Geraldo Alckmin. Vestindo a camiseta preta do Aquele Abraço com os dizeres “quem pita é quem apita”, Tina conta que os usuários odeiam esse tipo forçado de tratamento, mas sabem quando precisam das clínicas de reabilitação: “A rua destrói, é uma coisa medonha”. Preocupada, a assistente social frisa que o adicto é livre e deve ser tratado sem preconceito. “O problema fica sempre no pobre e no negro, nunca na classe média, que também usa a droga”, desabafa.

Casa de mãe Se, por fora, Albertina parece sempre pronta para encarar as desigualdades da selva de pedra, por dentro, permanece a nostalgia de Jaú – cidade onde ficava a fazenda de seus pais,

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Maria Renée e Oswaldo, e onde aconteciam as brincadeiras com os dois irmãos mais velhos, Oswaldo Filho e Maria Antônia. O apartamento, no 14º andar, é decorado com saudades diversas. Ela aponta: “Esses quadros de terra aí eu comprei porque me lembram o sítio.” Na cabeceira de sua cama, uma infinidade de colares serve para fazê-la recordar de várias pessoas queridas que já cruzaram o seu caminho. Em uma estante próxima, livros de biografias, como a de Getúlio Vargas, dividem espaço com bonecos matrioshka de lideranças socialistas e santinhos de madeira. Atualmente, Tina mora com seu ex-companheiro, Jerson, responsável por cozinhar, já que ela não gosta de serviços domésticos. A figura da menina calma e comportada nunca definiu a criadora do Aquele Abraço. Durante o ensino primário, que cursou em uma escola de freiras francesa, a assistente social aprontava poucas e boas: prendia a barra da roupa das irmãs na cadeira e olhava de soslaio o “pulinho” que elas davam ao tentar se levantar. “Eu era o diabo!”, gargalha a senhorinha, o batom vermelho contrastando com os cabelos brancos. Mas, se por um lado Tina era um demônio, por outro, tinha atitudes de anjo: desde criança, já estava habituada a ajudar pessoas em necessidade. Sua mãe

costumava levar refeições a moradores de rua e entregar merendas para as escolas públicas sem verba da zona rural. Albertina não imaginava o quanto essas iniciativas, desde cedo, influenciariam a sua vida. “Não me vejo fora disso. A assistência social completa o mundo, não muda”, desvenda a aposentada. A liberdade invadiu a vida da jovem Tina quando ela saiu do interior e chegou a São Paulo. Após ter experiência no ensino primário do Serviço Social da Indústria (SESI) enquanto cursava Assistência Social em Bauru, veio para a capital paulista já formada, pois a metrópole a atraía. Dividiu um apartamento com amigas na Rua Maria Antônia, ambiente cercado de universitários, principalmente da Universidade de São Paulo (USP) e do Mackenzie. “Mackenzista, pra gente, era palavrão!”, exclama, rindo. Amante de MPB, a aposentada não deixa de lado seu gosto por Chico Buarque, Gal Costa e Caetano Veloso. O Bar do Seu Zé, na rua em que morava, era o quartel general tanto da diversão quanto da articulação política nos Anos de Chumbo da Ditadura Militar. “Desde essa época, me chamavam de Esquerdinha”, conta a petista convicta. O apelido lhe caía como uma luva: esteve à frente de movimentos sindicais na época da Ditadura, protestou a favor das Diretas Já!, lutou pela criação do Estatuto da Criança e do Adolescente e pelo Estatuto do Idoso, além de apoiar organizações como a Marcha da Maconha. Dessa época, ficaram as lembranças mais estranhas, como a ocasião em que fez as vezes de viúva em um velório, em pleno carnaval. Ela namorava um integrante da Banda Redonda, o mais antigo grupo carnavalesco em atividade da capital paulista. O moço estava doente, e Tina o advertiu sobre a gravida-


ana laura pádua

Os moradores da Cracolândia têm Tina como referência de figura materna de de sua saúde. Caso não se cuidasse, dizia ela, ele morreria no dia de “soltar a banda”. Os dois se separaram, mas, de fato, o rapaz faleceu. Além de dar o aval para a banda passar, Albertina teve de receber os pêsames dos amigos bêbados e fantasiados no enterro nada convencional de seu ex-namorado. Ainda hoje, a “mãe da rua” preserva seu jeito “Esquerdinha”. No ponto de ônibus, um senhor entregava folhetos do candidato à presidência Aécio Neves, enquanto Tina distribuía outros, da candidata Dilma Rousseff. Provocadora, ela pediu argumentos para votar em Aécio e o homem respondeu, bruscamente, que a candidata dela havia sido terrorista na época da Ditadura. “Também sou terrorista, e se não parar de me seguir e de colocar as mãos em meus ombros, vou morder o seu braço, senhor”, retrucou a militante, enquanto apertava os passos.

Eu amo igual Morando em São Paulo, o contato de Tina com as causas relacionadas às minorias sociais só cresceu: ela esteve à frente de projetos voltados às prostitutas, aos usuários de drogas e aos homossexuais. “Eu fui a primeira assistente social a fazer um grupo de trabalho

com travestis”, comenta, enquanto bebe um gole de café, seu companheiro inseparável de todos os dias. Também participou da organização da primeira Parada Gay em São Paulo que, ainda sem recursos, teve de pegar emprestado um carro de alto-falante da igreja. Vocação é a palavra-chave que permeia a história de Maria Albertina com sua profissão. Trabalhou durante cinco anos na antiga Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor (Febem), atual Fundação Casa. Animada, ela passeava com os internos: levava-os a sessões de cinema e estimulava o debate sobre os filmes. Às vezes, ia com eles até Jaú ou à praia. “A criançada parecia ser mais calma do que é hoje”, lembra. O bem que a senhorinha fez na Febem reflete até o presente: Tina conta que um dos momentos mais marcantes de sua carreira foi a visita de uma ex-interna que acabou se casando e estudando Serviço Social na Pontifícia Universidade Católica (PUC). “Eu a reconheci, ela ficou surpresa e eu disse que as que dão mais trabalho são as que a gente lembra mais”, emociona-se a criadora do Aquele Abraço. Preocupada com o bem comum, Albertina parece exercer seu projeto social não só nos momentos em que vai à Cracolândia,

mas diariamente. Seu afeto é correspondido onde mora: é tratada de uma maneira especial, conversa com pedreiros que trabalham em frente ao seu prédio, moradores de rua e porteiros, além de conhecer pelo nome as garçonetes da padaria mais próxima. Contrariando o individualismo geral da cidade, Tina dificilmente passa por alguém sem dizer um sonoro e terno “bom dia”. Ela sempre está a par do que acontece no bairro, desde a venda dos ambulantes até as reuniões da subprefeitura e demonstra interesse por tudo e todos que a cercam. Andar com ela é sentir-se em um mundo incomum, onde as pessoas se preocupam umas com as outras. Quando está no “Fluxo” (concentração de usuários de crack na Cracolândia), com seu andar leve, é impossível não lhe conferir uma imagem materna. Ela trata a vida dos dependentes como um frágil botão de rosa, que necessita de cuidados; flores estas que às vezes têm espinhos e, ao mesmo tempo, um aroma envolvente. Flores humanas que, com o afeto de Tina Galvão, desabrocham. “Escuras flores puras, putas, suicidas, sentimentais. Flores horizontais, afogadas nas janelas do luar, carbonizadas de remédios, tapas, pontapés” (Elza Soares, em “Flores Horizontais”).

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mente

Além da

SENSAÇÃO

Um olhar sobre os efeitos dos diferentes entorpecentes no corpo humano REPORTAGEM matheus cabral , paulo h. pompermaier (1º ano de Jornalismo), FERNANDA FIGUEIREDO, TALITA MoNACO (2º ano de Jornalismo) e Gabriela MONTEIRO (3º ano de Jornalismo) IMAGEM NATHALIE PROVOSTE (3º ano de Jornalismo) ILUSTRAÇÃO THAÍS HELENA REIS (3º ano de Jornalismo)

“Falar sobre drogas é um tabu. Debates e opiniões sobre o assunto, quando aparecem, vêm cheios de paixão e fanatismo – a favor ou contra. Então, não é de se admirar que o terreno seja tão fértil para histórias mal contadas, lendas e mitos”, diz o jornalista Tarso Araújo no início de seu livro, Almanaque das drogas. Discutir o assunto pode ser, de fato, polêmico. Mas e os seus efeitos?

O estudo das substâncias ilícitas tem, cada vez mais, buscado entender como elas agem, o que causa a dependência e que outros usos, em geral benéficos, elas podem ter. A maconha, por exemplo, contém um princípio ativo capaz de curar a esclerose múltipla. O LSD, quando administrado em ambiente terapêutico, pode reduzir a ansiedade em que os pacientes fatais se encontram. Tomar

uma taça de vinho por noite contribui para melhorar a coagulação do sangue. Muito se fala a respeito dos malefícios causados pelas drogas. Entretanto, pouco se discute sobre seus reais efeitos psicoativos no corpo. A partir da visão de usuários, psicólogos e estudiosos, o Esquinas analisa as diferentes viagens e esclarece como algumas dessas substâncias agem no corpo.

A cocaína é derivada da folha de coca e conhecida como “a droga do trabalho, de quem está na bolsa de valores”, segundo Heloísa Dantas, acadêmica pesquisadora do assunto. O corpo desenvolve tolerância à substância, o que faz com que os usuários passem a consumir doses cada vez maiores. Entretanto, o cérebro não para de se sensibilizar. Assim, a ingestão de uma dose mínima pode provocar alucinações negativas. A usuária Bianca Leite*, 19 anos, confirma a euforia: “Uso quando estou com sono ou cansada, porque ela me desperta e eu posso ficar dançando na pista até mais tarde com meus amigos”. A estudante conta ainda que, depois de inalar o pó, fica “muito faladeira” e que, em algumas pessoas, esse efeito torna-se bastante incômodo. “Como eu só uso quando meus amigos usam, é legal, porque a gente fica conversando e dançando até altas horas”, conclui.

CRACK 34

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COCAÍNA

Derivado da cocaína, o crack – também conhecido como “medusa”, “pedra” ou “rocha” – apresenta-se em estado sólido e, por isso, tem efeitos físicos bem diferentes. Como é uma droga fumável, em segundos a substância atinge o sistema nervoso. “Tudo é muito rápido”, conta Heloísa Dantas. “Basta fumar a pedra para ela subir direto para o cérebro. O tempo entre início e fim do efeito é quase imperceptível”. Seus resultados são muito mais intensos. Assim, o usuário não espera a sensação acabar integralmente para consumir mais uma dose. É isso que torna o crack mais viciante que a cocaína, apesar de gerar os mesmos efeitos psicoativos. Outro fator que ajuda na popularização da pedra é o preço: ela é extremamente barata em comparação às outras drogas existentes. Unindo sua acessibilidade ao seu alto grau viciante e à rapidez com que o efeito se propaga, a “medusa” torna-se um dos entorpecentes mais perigosos do mercado.


chapéu

* Classificado como produto desodorizante, o lança-perfume começou a ser consumido nos bailes de carnaval no começo do século 20. Por isso, ganhou apelidos como “ânimo”, “folia” e “loló”. Depois de alguns acidentes que levaram usuários à morte, o Loló foi proibido no Brasil, em 1961. A substância atua no sistema nervoso, aumentando a adrenalina, acelerando os batimentos cardíacos e diminuindo a oxigenação do cérebro. Em entrevista para a Gazeta Digital em 2009, a médica Shirley de Campos advertiu que a droga “deprime o centro responsável pela respiração, podendo levar o usuário a uma parada cardiorrespiratória e, em casos extremos, ao coma.” Como é inalado, o lança-perfume tem um efeito muito rápido, causando um misto de euforia e percepção sonora alterada. Com o uso contínuo, a coordenação motora pode ser reduzida, a fala fica arrastada e, em casos extremos, o usuário pode desmaiar. “É uma ‘brisa’ muito rápida e engraçada. Os sons ficam diferentes e você se sente leve, mas passa rápido”, relata a usuária Lígia Silva*. “Dependendo do estado, eu escuto uma sirene, ou uns apitos. Além de esquentar um pouco meus pés e me dar um tipo de anestesia mental. Mas é rápido demais”, conta Thiago Medeiros*, que usou a substância algumas vezes.

LSD

LANÇA-

PERFUME

Do riso ao pranto, da excitação à depressão, o ácido lisérgico pode causar diferentes reações no organismo do usuário, definidas principalmente pelo seu estado emocional. Entre os efeitos de uma “boa viagem” estão cores, formas e contornos do ambiente alterados, além de sinestesias e euforia. Já a temida “má viagem” (ou bad trip) pode causar sensações de perseguição, depressão e pânico. Um dos problemas do LSD é que, como o ácido fica acumulado na gordura corpórea, ao fazer exercícios, um usuário pode ter um flashback, ou seja, uma revivência da alucinação. Pupila dilatada, pulso acelerado e sudorese são frequentes após a ingestão da droga. Consumido de várias maneiras, o LSD pode ser chamado de “bonequinha”, quando está na forma de bala, e “barril”, uma variação em forma de um comprimido marrom, além de “doce”, seu apelido mais famoso. Segundo o psiquiatra Jaime Luiz da Silva, “uma única dose de LSD pode causar um surto psicótico do qual a pessoa não sai nunca mais, embora isso dependa muito do metabolismo”. Helena Gonçalves* já foi usuária da droga e relata que sua experiência teve um significado espiritual muito importante: “Era como se eu pudesse ver a energia de todas as coisas. Comecei observar as plantas. Parecia que elas respiravam igual gente”.

“Banza”, “bagulho”, “ganja” ou, simplesmente, “erva”. A maconha é o terceiro entorpecente mais consumido no mundo, depois do tabaco e do álcool, segundo a Pesquisa Legal de Drogas de 2014. Seus efeitos físicos variam entre os famosos olhos avermelhados, a boca seca e a aceleração dos batimentos cardíacos, além da redução da coordenação. A perda de memória recente e da noção do tempo e do espaço são, também, dois dos efeitos mais comuns, bem como o riso exacerbado e a sensação de leveza. “Ela deixa os sentidos muito mais aguçados: toque, cheiro, olhar”, compartilha Mariana Carvalho*, que usou maconha esporadicamente enquanto esteve na faculdade. Dependendo do organismo do usuário, o efeito imediato da droga vai de um sentimento de calma e bem-estar até uma profunda angústia. “É importante lembrar que cada tem um ‘barato’”, adverte Heloísa Dantas. Mariana, em seu primeiro uso, teve alterações claras em sua percepção: “Eu olhava para a cara do meu namorado e ele começava e se transformar em um porquinho”.

ECSTASY

nome alterado para preservar a identidade do entrevistado

MACONHA

Procurado por alguns frequentadores de raves e clubes noturnos, o ecstasy é conhecido pelo efeito estimulante que pode durar até oito horas. Pouco alucinógeno, pode causar desejo de se comunicar, melhora na percepção de cores e músicas e uma sensação de proximidade com as pessoas ao redor. Durante o efeito, é comum a diminuição do apetite, a dilatação das pupilas, a aceleração do batimento cardíaco, o aumento da temperatura corporal, o rangido de dentes e a secreção do hormônio antidiurético. A longo prazo, a droga é responsável por fadiga, insônia, depressão e deficiências no fígado. “O ecstasy te deixa com vontade de mastigar as coisas e dançar muito, além de dar muita sede e ânimo”, diz a usuária Lígia Silva*. Apelidado de “molly” por seus usuários, foi muito usado nos anos 1960 durante o famoso festival de rock Woodstock, ganhando também o apelido de “a droga do amor”, por espalhar a sensação de afeto por todos os cantos.

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chapéu FOTORREPORTAGEM

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legalidade

ENTORPECIDA A linha tênue entre o proibido e o socialmente aceito REPORTAGEM Hares Datti Pascoal, Laís Franklin (1º ano de Jornalismo), Ana Laura Pádua, Daniela Rial Roig, Isabella Faria, Karolina Bergamo e Kelly Miyashiro (2º ano de Jornalismo)

HARES DATTI PASCOAL usou uma Nikon D90 - f/5,6- 105mm - ISO 2000 - 1/30s. As drogas lícitas não se limitam aos bares ESQUINAS – 2º SEMESTRE 2014

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KAROLINA BERGAMO usou uma NIKON D90 - f/4,0 - 18,3mm - ISO 400 - 1/200s. O tabaco é protagonista nas ruas de São Paulo 38

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Em um único final de semana, nas ruas movimentadas e características da cidade de São Paulo, é impossível não notar, misturados, os cheiros, as fumaças e as embalagens do lícito e do ilícito. Pessoas riem alto, passeando por vielas e titubeando em mesas de bar à procura de mais bebidas, enquanto tropeçam em garrafas de cerveja espalhadas pelas calçadas. Ao longe, um bêbado grita qualquer coisa, enquanto um grupo de jovens, totalmente entorpecidos, desce a Rua Augusta, tentando fugir de seus cotidianos anestesiantes e sem novidades. Já não se separam mais os odores do tabaco e da maconha. Somente quando raia o dia é que as bitucas de cigarro podem contar o que realmente aconteceu em mais uma noite agitada de sábado em São Paulo. Do oriente ao ocidente, elas já fizeram parte de religiões, provocaram guerras, ditaram moda e mexeram com a cabeça de muita gente. Assunto polêmico e divisor de opiniões, as drogas sempre estiveram presentes na história da humanidade. Hoje, ainda mais do que nunca, são pauta de sérias discussões morais e políticas. Responsáveis por modificar o funcionamento do corpo humano para fins alucinógenos, calmantes e medicinais, as substâncias psicotrópicas são divididas entre legais e ilegais. Mas quais são os critérios que separam os entorpecentes socialmente aceitos dos não aceitos? Permitidas por lei, as chamadas “drogas lícitas” são aquelas que podem ser produzidas, comercializadas e consumidas sem restrições legais. Entre elas estão o álcool, o tabaco e medicamentos benzodiazepínicos (utilizados para reduzir a ansiedade ou induzir ao sono) ou anorexígenos (protagonistas no controle do peso). Do lado oposto, estão as “drogas ilícitas” – maconha, cocaína, heroína, ecstasy e crack; substâncias ilegais, cuja venda é proibida pela justiça. As restrições ao uso de entorpecentes começaram na segunda metade do século 20, depois de sua proibição nos Estados Unidos e na própria Organização das Nações Unidas. Capazes de provocar os mais diversos efeitos e alterações do estado de consciência, cada vez mais, as drogas são associadas a comportamentos considerados inadequados, apesar de sua grande capacidade de cura. É assim que começa o impasse: vistas com preconceito pela maior parte da sociedade, alguns setores aprovam essas substâncias quando usadas para fins medicinais; outros, argumentam que elas podem causar efeitos negativos na vida de usuários das mais diversas classes sociais, idades e tribos. De um jeito ou de outro, a presença dos entorpecentes, sejam eles visíveis ou invisíveis, é marcante.

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LAÍS FRANKLIN usou uma Nikon D710018 - f/5,6 - 106,8 mm - ISO 3200 - 1/25s. Nem sempre é possível separar lícito e ilícito

ANA LAURA PÁDUA usou uma Canon EOS Rebel T3 - f/5,6 - 48 mm - ISO 3200 - 1/60 s. O cigarro é a entrada da noite paulistana 40

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KELLY MIYASHIRO usou uma Nikon D90 - f/4,0 - 26mm - ISO 800 - 1/5s. O álcool é a droga campeã em consumo no Brasil

HARES DATTI PASCOAL usou uma Nikon D90 - f/5,6- 105mm - ISO 2000 - 1/30s. Um terço da população mundial consome tabaco ESQUINAS – 2º SEMESTRE 2014

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ISABELLA FARIA usou uma SONY DSLR-A390 - f/5,6 - 50 mm - ISO 3200 - 1/125 s. Mesas de bar são disputadas aos finais de semana 42

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rotina

JULIANA QUEISSADA

NAIARA ALBUQUERQUE JULIANA QUEISSADA

NAIARA ALBUQUERQUE

NAIARA ALBUQUERQUE

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NAIARA ALBUQUERQUE


Drogas ao redor O mundo de quem vive a realidade dos entorpecentes REPORTAGEM NAIARA ALBUQUERQUE, THAiS COSTA, yasmine luna (1º ano de Jornalismo), JOÃO HIDALGO e JULIANA QUEISSADA (2º ano de Jornalismo)

Pode não parecer, mas elas estão sempre presentes – talvez, onde menos se espera. Do condomínio de luxo à comunidade carente; da mesa de bar ao divã do terapeuta; da balada à sala de cirurgia. Lícitas ou ilícitas, medicinais ou entorpecentes, pelas razões mais variadas, as drogas envolvem o dia a dia de todos. Em São Paulo, não é diferente. Esquinas foi às ruas conhecer a rotina de três cidadãos que, mesmo extremamente diferentes entre si, possuem algo em comum: o cotidiano ligado às drogas. Em um domingo na Praça Cel. Custódio Fernandes Pinheiros, conhecida como Praça do Por do Sol, na Zona Oeste, é difícil não sorrir ao contemplar o céu, limpo e azul, sobre a cidade que se estende morro abaixo. Naquele dia específico, antes das eleições, uma multidão de jovens se aglomerava na praça, chamando ainda mais atenção do que o es-

petáculo da paisagem. Foi nesse cenário que encontramos Gabriel Lindenbach, militante do Juntos!, um dos braços jovens do PSOL. Naquele rapaz de 22 anos, que panfletava pela legalização da maconha, identificava-se uma vanguarda travestida de utopia: a luta pelo fim da guerra às drogas no Brasil. “A maconha é muito mais uma porta de saída no tratamento de redução de danos do que de entrada a outras drogas”, pregava ele, enquanto distribuía os folhetos de forma discreta, para não atrair a atenção dos policiais que faziam ronda no local. Gabriel conta que seu ingresso no debate em relação ao tema das drogas surgiu justamente no Juntos!, coletivo de jovens fundado em 2011, a partir da discussão sobre “desmilitarização da Polícia Militar”, que cresceu após o desaparecimento do pedreiro Amarildo, em 2013. A militância, mesmo em um

final de semana ensolarado como aquele, não tinha folga – em pleno domingo à tarde, por volta das catorze horas, o jovem não interrompia sua propaganda. Responsável pela área de comunicação nas mídias sociais, ele contou que trabalhava em expedientes longos que refletem mais sua posição política do que a manutenção de um cargo nas eleições. Durante a semana, por exemplo, ele passava mais de doze horas na casa que abrigava o comitê eleitoral de seu candidato a deputado federal, Thiago Aguiar, cujos santinhos Gabriel também distribuía na Praça do Por do Sol. Às dez da manhã, de segunda a sexta-feira, o militante já estava passando pela porta do comitê improvisado, na Vila Mariana, bairro em que também foi realizada a campanha da então candidata à presidência Luciana Genro. Nas paredes amareladas, uma infinidade de cartazes do partido divi-

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A maconha é muito mais uma porta de saída no tratamento de redução de danos do que de entrada a outras drogas” Gabriel Lindenbach, militante do Juntos!

dia espaço com planos de governo escritos em cartolinas gigantes. O clima na casa era de tranquilidade, descontração e comunidade. Junto com outros militantes – todos voluntários –, entre panfletagens e eventos, Gabriel costumava cozinhar no local para não gastar muito dinheiro. Além disso, segundo ele, grande parte da verba utilizada para a realização da campanha do candidato Thiago Aguiar veio de festas realizadas nos fundos da residência, que é alugada. Na sala de Gabriel, o rosto do pensador Karl Marx refletia sob um laptop aberto e vários panfletos amarelos; uma bagunça, organizada apenas para aqueles que sabiam onde e o que procurar. Era ali, naquela pequena sala com vista para o quintal, que o jovem passava a maior parte de seus dias – e de sua luta, tanto virtual quanto física, pela legalização da maconha no Brasil. “Ou você criminaliza o usuário, ou você trata a droga como questão de saúde. As pessoas precisam de cuidados para sair dessa posição vulnerável”, defende o rapaz.

Rotina policial Nas ruas próximas ao 11º Batalhão da Polícia Militar do Estado de São Paulo, fomos brutalmente deslocados da realidade de Gabriel Lindenbach. Lá, conhecemos o cabo da PM João Marcos Nascimento de Queiroz, de

29 anos, enquanto ele entrava em uma das escolas em que dá aula. Dono de um olhar sério, mas de um riso fácil, ele vestia uma farda azul marinho com seu sobrenome costurado do lado direito do peito. Na contramão de Gabriel, ele é instrutor do Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência (PROERD) há quatro anos e está há oito na Polícia Militar. O batalhão onde o cabo trabalha é responsável pela patrulha da área central da cidade, que vai da Avenida Paulista à Chácara Klabin e ao Cambuci. Para ser instrutor no PROERD, além de motivação voluntária, é necessário seguir estritamente algumas condutas: os inscritos no programa não podem ser usuários de drogas lícitas, muito menos ilícitas, e devem passar por um curso intensivo de trinta dias, promovido pela PM. De acordo com Queiroz, “o curso é puxado”. O 11º BPM ficou responsável pela tutela e patrulhamento das manifestações de Junho de 2013 – o mesmo que foi alvo de inúmeras denúncias de repressão violenta neste período. Hoje, dentro do batalhão, existe um trabalho de mapeamento e organização da divisão de policiais responsáveis por acompanhar as manifestações. Semanalmente, há treinamentos no pátio do prédio para esse tipo de ocorrência, e Queiroz já participou de vários deles. Segundo o Tenente Coronel

JULIANA QUEISSADA

O ideal de Izilda Alves é a conscientização de jovens em relação aos riscos oferecidos pelas drogas

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YASMINE LUNA

A maioria dos jovens começa a usar entorpecentes na escola. Eu comecei com 11 anos de idade” José Luis, ex-usuário

Pignatari, responsável pelo 11º BPM, hoje acontecem por volta de três manifestações diárias na região. O dia a dia do policial Queiroz é bastante longo. Ele acorda todos os dias por volta das cinco e meia da manhã na Zona Leste para chegar a tempo ao batalhão, localizado na Rua Vergueiro. O cabo costuma dar aulas nos períodos da manhã ou da tarde, sempre conciliando outras atividades da profissão, como patrulhas e treinamentos. Queiroz explica que o PROERD transmite valores a crianças e adolescentes de todo o país, e admira a experiência que o programa lhe traz: “Tem alunos que nunca tiveram contato com os pais, porque eles estão presos. As crianças perguntam: ‘Ô policial, você quer ser o meu pai?’”. O peso de sua responsabilidade é grande, mas o cabo não desiste da labuta. “Os pais não têm tempo para seus filhos e acreditam que a polícia e a escola são os únicos responsáveis pela sua educação, o que é um engano”, reflete.

Luta diária Não tão distante do 11º BPM, às oito da manhã, uma van da Rádio Jovem Pan sai da emissora, na Avenida Paulista, e começa a circular pelas ruas já congestionadas de São Paulo. Dentro do veículo, Izilda Alves, 41 anos, jornalista e radialista, prepara-se para entrar em ação. É a van da Campanha Pela Vida Contra as Drogas, idealizada em 2002 pelo presidente da Jovem Pan, Antônio Augusto Amaral de Carvalho (Tuta), e coordenada por Izilda. O projeto consiste em levar ex-usuários de drogas para ministrar palestras sobre o tema em escolas públicas, privadas e em projetos sociais que ajudam jovens carentes no Estado de São Paulo – algo semelhante à luta de Queiroz, no PROERD,

José Luis usa a própria trajetória para afastar estudantes do vício

mas não muito distante da preocupação que o militante Gabriel tem em relação à saúde. Por volta das nove e meia, enquanto a van estacionava no projeto social Legião Mirim, na Vila Prudente, Izilda explicava que as duas pessoas que entrariam no veículo estavam em tratamento e nos acompanhariam na palestra daquele dia: os voluntários Joana Abreu*, de 60 anos e mãe de um ex-dependente químico, e José Luis (conhecido como Zé), de 41 anos e ex-usuário. O objetivo: conscientizar uma plateia composta por sessenta meninos de idade entre 12 e 18 anos. Para Zé, as palestras são uma importante arma para a prevenção: “A maioria dos jovens começa a usar entorpecentes na escola. Eu comecei com 11 anos de idade”. Ao chegar à escola, Izilda, com a ajuda de funcionários do local, dispõe as cadeiras no ambiente preparado para a palestra e arruma a aparelhagem de som, procedimentos diários em sua rotina. A jornalista inicia a discussão fazendo aos adolescentes uma pergunta aparentemente despretensiosa: “Qual de vocês já consumiu maconha e bebida?”. A reação dos jovens é unânime: todos riem, assumem que já usaram e julgam normal tal comportamento. Como resposta, os ouvintes recebem as histórias dos ex-usuários, tanto os trazidos por Izilda quanto aqueles que chegaram por conta própria, também voluntários. Joana* é a primeira a falar. Um pouco

tensa, ela lembra os momentos difíceis que passou quando o filho era dependente: “Meu marido era omisso e minha filha estava em depressão. Eu me via sozinha”, lembra. Carlos Maia*, ex-usuário de 47 anos que chegou depois da van da Jovem Pan, conta sua história logo em seguida: “Não enxergo do olho direito; fui atingido por um tiro durante um assalto”. Ele mostra as marcas de outros oito tiros espalhados pelo corpo. “Sou o único vivo das pessoas com quem convivia”, conclui. Depois das narrativas, o clima pesou. Izilda abriu espaço para as perguntas, mas os jovens estavam inibidos demais para falar. Sem desanimar, a radialista descontraiu o ambiente perguntando se algum dos presentes gostaria de gravar um depoimento para a Rádio Jovem Pan, contando suas opiniões em relação à palestra. A jornalista respondeu algumas dúvidas e, ao fim da apresentação, um grupo de jovens foi conversar e tirar dúvidas com os ex-usuários na porta da escola. Um pouco tímidos, os estudantes confessaram que estavam usando drogas e queriam saber como parar. A palestra surtiu o efeito desejado por Izilda: “O objetivo é plantar uma semente para que a escola, a família e os jovens se unam no combate às drogas”.

*

nome alterado para preservar a identidade do entrevistado

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SAÚDE

Dentro da

lei

500 mg

Apesar de autorizados, os remédios controlados podem ser tão perigosos quanto drogas ilícitas. Entenda como eles agem no organismo humano REPORTAGEM GIULIA GAMBA (1º ano de Jornalismo), BEATRIZ MALHEIROS, JOANNA CATALDO e MARINA GABAI (2º ano de Jornalismo) IMAGEM NATHALIE PROVOSTE e THAÍS HELENA REIS (3º ano de Jornalismo)

venda sob prescrição médica Contém 10 unidades


diz o engenheiro agrônomo, que foi diagnosticado com Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) e depressão aos 33 anos e, desde então, consome periodicamente antidepressivos. Segundo ele, o procedimento, aliado à psicoterapia, proporcionaram uma melhora significativa em sua qualidade de vida. A história do professor de mandarim Erasto Cruz, de 29 anos, é bem diferente. Ele conta que sofria com sérios problemas relacionados a insônia: “Eu tinha asma nervosa noturna, chegava a ficar três noites sem conseguir dormir direito”. Depois de várias tentativas de tratar o distúrbio com medicamentos mais leves, Erasto foi aconselhado pelo médico a tomar Prozac, indicado também para casos de depressão e ansiedade. Apesar da qualidade do sono ter melhorado, o remédio causava dependência e, com ela, efeitos colaterais – cansaço, malemolência e raciocínio lento. Hoje, livre das tarjas pretas, ele recomenda caminhos alternativos para tratar a insônia: “Fazer exercícios físicos e tomar remédios naturais, tentando sempre evitar medicamentos químicos”, aconselha.

Concentração de droga É na infância que costuma manifestar-se o Transtorno de Déficit de Atenção (TDA), cujos sintomas são falta de foco, desatenção e hiperatividade. Para tratá-lo, utiliza-se a Ritalina, droga que melhora a capacidade de concentração e o acúmulo de informações pelo cérebro. Esse remédio atua no sistema nervoso central, aumentando a produção de dopamina, substância responsável pelo controle do movimento e da memória. De acordo com dados da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, o Brasil é o

segundo maior consumidor de Ritalina do mundo, perdendo apenas para os Estados Unidos. Seu uso, contudo, ainda causa polêmica. Acredita-se que o remédio tenha ação semelhante à da cocaína, podendo provocar, além da dependência química, prejuízos para os sistemas endócrino e cardiovascular. O estudante de gastronomia Gabriel Correa, de 19 anos, descobriu que era portador do TDA quando ainda estava no colégio. Na época, seu rendimento escolar era abaixo do esperado e ele tinha dificuldade de se concentrar nas aulas. “Primeiro, fui a uma psicopedagoga e, em seguida, me encaminharam para uma neurologista, que fez alguns exames e descobriu que eu tinha Déficit”. A partir daí, Gabriel começou a tomar Ritalina. No começo, ele tomava dez miligramas do medicamento todos os dias pela manhã. Porém, como os resultados não estavam sendo satisfatórios, a dose teve de ser aumentada: em três anos, Gabriel multiplicou a quantidade por dez, provocando uma série de efeitos colaterais. “Sofri com perda de apetite, emagrecimento e depressão”, compartilha. Ele também lembra que, mesmo com acompanhamento médico, teve overdose duas vezes: “Em uma das crises, eu comecei a ver coisas, vomitei e desmaiei. Acordei passando muito mal”. Depois destes incidentes, o estudante de gastronomia percebeu que seu corpo não aguentava mais; estava dependente. Gabriel, então, resolveu interromper o tratamento: “Como os efeitos colaterais se tornaram insuportáveis, abandonei”. Assim, é preciso auxílio especializado constante para o uso dos “tarja preta” – drogas que, mesmo resolvendo um problema, podem acabar gerando muitos outros.

os remédios: RIVOTRIL • Indicado para o tratamento de epilepsia, transtorno de ansiedade, alterações de humor e problemas relacionados ao equilíbrio mental*

RITALINA • Indicado para auxílio de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), além de narcolepsia*

* Segundo informações da bula

Tristeza, ansiedade, insônia, dificuldade de concentração: ter estes sintomas, esporadicamente, é humano. Entretanto, quando eles se tornam recorrentes, o acompanhamento médico é indispensável. Segundo o psiquiatra Bernardo Gregório, essas sensações, muitas vezes, tornam-se tão intensas que atrapalham ações simples do cotidiano – é aí que elas passam a ser consideradas problemas psíquicos. “Em alguns casos, não basta somente falar sobre o assunto. O psicólogo, então, indica a ida ao psiquiatra, que pode receitar remédios”, esclarece o médico. A psiquiatra Ana Cecilia Marques, presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (ABEAD), explica que, hoje, existem diversos tipos de substâncias usadas nos tratamentos ligados aos problemas da mente. Todas elas têm como princípio a ação no sistema nervoso central, equilibrando o balanço dos neurotransmissores (hormônios cerebrais), processo semelhante ao de muitas drogas ilícitas. Segundo a especialista, esse tipo de remédio, popularmente conhecido como de “tarja preta”, cria no usuário a necessidade de doses cada vez maiores, assim como as drogas usadas para fins recreativos. A classificação vem, justamente, porque os medicamentos psiquiátricos apresentam risco de causar dependência. Gregório revela que muitas pessoas começam a tomá-los e não conseguem mais parar: “O Rivotril, por exemplo, trata insônia e está na moda ultimamente. Ele funciona, mas pode viciar”. Assim, a adição química é uma grande preocupação de médicos e usuários, ainda que existam métodos de terapia para preveni-la. O primeiro passo para evitar o vício é o acompanhamento de um psiquiatra. Gregório adverte que, se a verdadeira causa do problema não é tratada, não há cura. Por medo, vergonha ou falta de informação, muitas pessoas não procuram um profissional especializado em cuidar de problemas psicológicos. “As pessoas em geral pensam que, se não são loucas, não precisam ir a um psiquiatra’”, explica. Ele diz que, como o acesso a este tipo de medicação é bastante controlado pela Anvisa, o jeito mais fácil de conseguir comprá-los sem ter de apelar para um psiquiatra é por indicação de profissionais da saúde com outras especialidades: “O paciente reclama de algum sintoma e o médico acaba receitando o remédio. Como não é a especialidade dele, a orientação pode estar equivocada”. Ao tomar uma droga inadequada ou uma dose errada, o paciente pode passar mal e acabar traumatizado. Por isso, o auxílio qualificado é indispensável. Se a substância for realmente necessária, a alternância de medicamentos, prescritos pelo psiquiatra com dosagens controladas, pode ser a solução. O recurso, utilizado no tratamento de Luis Martins de Barros, de 51 anos, faz efeito. “Não me sinto dependente”,

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Equilíbrio

de dentro para

fora Com métodos menos invasivos, a medicina alternativa é uma forma de evitar as drogas nos tratamentos de saúde REPORTAGEM ana laura prado, téo frança (1º ano de Jornalismo), alessandra petraglia e luanna martins (2º ano de Jornalismo) imageM ana laura prado (1º ano de Jornalismo)

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“O HOMEM É parte do cosmos e só a natureza pode tratar seus males”. Essa frase, repetida pelo médico e filósofo grego Hipócrates aos seus pacientes, ainda hoje é uma das bases da medicina alternativa. Enquanto os métodos convencionais se concentram no tratamento específico dos órgãos, os naturais, como a acupuntura, a homeopatia e os florais, tomam o corpo como um sistema integral, buscando equilibrá-lo. Desde 2006, o Ministério da Saúde oferece o acesso gratuito a este modelo medicinal, por meio da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC). Três anos após a implantação, mais de 320 mil consultas foram realizadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), mostrando que a medicina alternativa tem se popularizado cada vez mais.

EQUILÍBRIO ENERGÉTICO Criada há 2 mil anos, a acupuntura busca ajustar os canais energéticos do corpo, chamados de “meridianos”, e fazer fluir uma energia conhecida como Qi. A partir daí, o terapeuta coloca agulhas em pontos já definidos pelo “mapa humano”: “É como se fosse um computador: cada ponto é uma tecla e o acupunturista, o programador”, explica Gilberto Agostinho, médico especialista em acupuntura pelo Instituto Brasileiro de Estudos Homeopáticos de São Paulo. A palavra “acupuntura” vem do latim – uma junção dos termos acus (agulha) e punctura (ponto). Apesar do nome, não é só das pontiagudas que vive a prática: o estímulo pode ser feito também com os dedos – acupressão ou shiatsu –, com pedras quentes, com laser e até com ventosas. O importante, explica Gilberto, é que a energia seja equilibrada. O especialista lembra, entretanto, que a cura não é o objetivo principal: “Nossa filosofia é a prevenção”. Hoje, a acupuntura está entre as poucas formas alternativas reconhecidas cientificamente, com estudos, trabalhos e comprovações internacionais. Seus efeitos positivos fazem com que ela seja aprovada pelo Conselho Federal de Medicina e pela Associação Médica Brasileira.

ANTÍDOTO SEMELHANTE Criada no século 18, a homeopatia é o segundo sistema médico mais utilizado no mundo,

Lúcia trabalha com florais de Bach e transmite conhecimentos para futuros profissionais perdendo apenas para a medicina convencional. Reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina em 1980, a prática baseia-se na cura pela semelhança. Ou seja: para tratar um indivíduo que está doente, seria necessário aplicar um medicamento que cause os mesmos sintomas que o paciente apresenta, estimulando o corpo a reagir por si só, de forma natural. Por isso, os medicamentos homeopáticos são ministrados em doses minúsculas e diluídas. De acordo com Moises Chencinski, médico especializado em homeopatia este recurso terapêutico visa tratar o corpo como um todo, e não só a doença. Segundo ele, há casos em que os medicamentos homeopáticos podem substituir os tradicionais, como em quadros virais, mas ressalta: “Em um paciente com diabetes, por exemplo, nenhum remédio pode substituir a insulina”. Além de receitar os medicamentos, o especialista dá dicas sobre alimentação, ati-

Outras vertentes da medicina alternativa Reiki: Esta prática espiritual se baseia na ideia de que a energia do universo pode ser transmitida ao paciente por meio da impostação das mãos do praticante. Acredita-se que as doenças sejam decorrentes do desequilíbrio energético do corpo. Urinoterapia: O paciente manipula a própria urina para beber ou passar no corpo. Pode ser utilizada tanto para fins medicinais quanto estéticos. Há, também, casos de ingestão de urina de animais, como a vaca, para a prevenção de doenças. Reflexologia: Afirma que a correta manipulação de regiões como os pés, as orelhas e o nariz pode gerar resultados em todo o corpo, inclusive nos órgãos internos. Iridologia: Postula que é possível diagnosticar fatores físicos, emocionais e psicológicos a partir da análise da íris do paciente. Cromoterapia: Propõe que as cores têm efeito curativo. Envolve desde a alimentação até a forma de se vestir, se baseando nos efeitos terapêuticos gerados pela visualização cromática.

vidades físicas e estilo de vida. Por isso, a conversa entre terapeuta e paciente é indispensável. Para exercer a função de homeopata, o profissional passa por uma especialização no curso de medicina, onde aprende como escolher o remédio mais indicado para cada pessoa. Segundo Chencinski, não há nada de esotérico ou psicológico na prática: “Nós somos tão médicos quanto qualquer outro”, defende o especialista.

CONHECIMENTO DE SI Na década de 20, o médico Edward Bach acreditava que o fator emocional impactava a saúde. Por isso, criou os chamados “florais de Bach”, cuja finalidade é reestabelecer o estado psicológico do paciente, evitando posteriores problemas e doenças. Eles devem complementar os tratamentos médicos convencionais, fortalecendo o usuário e facilitando a auto cura – a chamada “cura de si”. O processo varia de acordo com cada indivíduo e tem um grande fator psicológico, como explica Lúcia Maria Ferreira, especialista e professora das técnicas florais: “A pessoa precisa buscar o tratamento por livre e espontânea vontade e ter a mente aberta para obter resultados.” Bach elaborou 38 essências, afirmando que poderiam funcionar para qualquer pessoa. Cada uma delas possui um princípio ativo específico e característico, podendo agir contra ansiedade, medo, falta de atenção, traumas e outros inúmeros fatores. Atualmente, existem dezenas de vertentes dos tratamentos florais só no Brasil, embora todas se baseiem no mesmo princípio da “cura de si”. O procedimento não tem idade mínima ou máxima, podendo ser utilizado em bebês e até em animais.

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GÊNERO

da

questão A nova visibilidade (e a constante invisibilidade) do tratamento com drogas hormonais para transexuais REPORTAGEM Alexandre Gonçalves JÚnior, Thaís Regina Santos (1º ano de Jornalismo) e Natalia Melo (2º ano de Jornalismo) COLABORAÇÃO Guilherme Venaglia e Julia Guadagnucci (1º ano de Jornalismo) ILUSTRAÇÃO THAÍS HELENA REIS (3º ano de Jornalismo)

“Não se engane pela minha aparência. Estou vestida assim porque faço meu teatro para sobreviver”. Usando terno, gravata e sapatos muito bem engraxados, Carmem Maura de Moura, mulher transexual de 54 anos, continua: “A gente cresce em uma briga contra o espelho. Isso é uma coisa horrível na nossa vida”. Marginalização, preconceito e ignorância: é assim que vem sendo tratada, pelos mais diversos setores, a questão da transexualidade – identidade de gênero diferente do sexo designado no nascimento. A transfobia, como é chamada a violência contra pessoas trans*, se faz presente em diferentes situações, da hostilização em banheiros públicos à recusa em adotar o nome social do indivíduo (o nome pelo qual a pessoa trans* quer ser chamada). Segundo a travesti Amanda Palha, 26 anos, a grande

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maioria das mulheres transgêneras se prostitui, uma vez que, no mercado de trabalho, o preconceito muitas vezes acaba impedindo que elas sejam contratadas ou determinando a sua demissão. “A prostituição é um risco constante. A linha que nos separa da ‘pista’ está lá o tempo todo”, comenta. O processo de transição do gênero biológico para o de identificação ainda é, assim como a própria transexualidade, uma questão polêmica, embora desde 2009 possa ser realizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Para essas pessoas, a mudança é essencial, como explica a transexual Lorena Landim, de 18 anos: “Eu não nasci no corpo errado, tudo é adaptável”. Afinal, como funciona e quais são os riscos da chamada hormonização? Também conhecida como hormonoterapia, a transição de gênero acontece por meio

da aplicação, via oral ou intravenosa, de drogas hormonais. No caso das transexuais femininas (ou seja, pessoas designadas homens no nascimento, mas que se identificam com o gênero feminino), estes hormônios são o estrógeno, a progesterona, o estradiol e o anti-andrógeno, responsáveis por inibir as funções hormonais masculinas e aflorar as femininas: os pelos corporais e faciais diminuem, assim como a libido e o tamanho dos testículos, e a gordura corporal se desloca pelo corpo, modelando-o. Enquanto isso, para os transexuais homens (designados no nascimento como mulheres), é indicada a ingestão de testosterona, com a finalidade de reduzir a ação dos hormônios femininos no corpo, provocando o crescimento de pelos, o engrossamento da voz, a atrofia do tecido mamário, o bloqueio


O elemento x Já que, na Língua Portuguesa, não existe gênero neutro, a letra “x” tem sido usada para tirar a flexão masculina das palavras. Por causa disso, nesta matéria, optamos por usar o “x” nos intertítulos.

da menstruação, o aumento da libido e do tamanho do clitóris. Entretanto, os efeitos podem ser diferentes de pessoa para pessoa, como explica Marcia Forster, endocrinologista especializada nesse tipo de tratamento hormonal. Por isso, o acompanhamento médico é indispensável. Entre os riscos mais comuns de um procedimento inadequado, principalmente para as mulheres trans, estão a trombose, o infarto agudo do miocárdio e a esterilização. Já para os homens trans, as principais preocupações são o aumento do colesterol e a potencialização para algumas doenças genéticas, como câncer e diabetes. Com ou sem a ajuda de um profissional, Forster lembra que há riscos para todos os pacientes, mas que alguns efeitos colaterais são justamente o que se deseja mudar no corpo, como a voz e a quantidade de pelos.

Outra questão importante é o lado psicológico da mudança. “Eu quero me transformar, mas tenho receio de não me reconhecer”, resume Samuel Silva, transexual de 21 anos. Por essa razão, antes, durante e depois do processo, é recomendável que o paciente faça terapia por um período de, no mínimo, dois anos, até que os profissionais autorizem o início da hormonização e das alterações nos documentos. O prazo, segundo Forster, coincide com o tempo que a maior parte das transformações leva para acontecer. Após este período, o uso dos medicamentos é indicado apenas para a manutenção das características adquiridas pelos pacientes.

Para todxs? Atualmente, a idade mínima para se submeter à hormonoterapia e à transgenitalização

(mudança cirúrgica de sexo) é 18 anos, quando o corpo, em geral, atinge sua maturidade física. Entretanto, a comunidade trans* tem lutado para diminuir essa idade em dois anos, para retardar ao máximo o desenvolvimento das características sexuais secundárias com as quais não há identificação. É justamente este o caso de Lorena, que começou a terapia hormonal há pouco tempo. “No futuro, mais valerá uma silhueta do que uma barba”, explica ela, que trabalha como drag queen na noite paulistana. Mesmo jovem, Lorena considera a decisão tardia: “Decidi começar a tomar [hormônios] porque, se a minha barba começasse a crescer e meu corpo tomasse formas masculinas, o dano teria sido muito maior para mim”. O longo tempo de espera, além dos efeitos colaterais e da idade mínima, é outra

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THAÍS REGINA SANTOS

Eu me sentia uma travesti usando as roupas que minha mãe escolhia para mim” Samuel Silva, estudante

ter o conhecimento teórico; são necessários flexibilidade, respeito e entendimento do discurso do paciente. Por isso, alguns médicos têm preferido outros caminhos, como as terapias em grupo coordenadas pela psicóloga Maria Lúcia Pereira no Centro de Referência de Tratamento (CRT) para Travestis e Transexuais de São Paulo.

ARRISCADXS

Samuel Silva queixa-se do longo tempo de espera para o tratamento do SUS preocupação recorrente para os trans* que desejam passar pela hormonização. Samuel marcou a sua primeira consulta para iniciar o tratamento, mas o caminho é longo – quase seis meses para saber se pode ou não começar a tomar os hormônios. Para o primeiro estágio do procedimento, a fila é de três meses, no mínimo. Depois disso, o paciente é submetido a uma triagem, que inclui exames e consultas com médicos e psicólogos. Se o objetivo for a troca cirúrgica do órgão genital, a espera é ainda maior: pelo menos cinco anos. “Se a fila para a transgenitalização parasse agora, ainda demoraria 166 anos para o SUS realizar todas as cirurgias que estão na lista”, calcula Daniela Andrade, militante da causa trans*. Apesar de a saúde pública abranger a hormonização, no estado de São Paulo há apenas quatro postos que estão aptos a oferecê-la: o ProSex, do Hospital das Clínicas; o Ambulatório de Sexualidade Humana, em São Carlos; o Ambulatório Municipal de Saúde a

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Travestis e Transexuais, em São José do Rio Preto e o Ambulatório de Saúde Integral de Travestis e Transexuais (ASITT). Daniela explica que o tratamento é falho e que o atendimento é profundamente estereotipado e enraizado em preconceitos: “Muitas pessoas do próprio SUS não sabem lidar com questões simples, como o nome social dos pacientes” Ana María Rodriguez, integrante do Conselho Científico do Instituto Brasileiro de Transmasculinidade (IBRAT), concorda parcialmente: “A política do SUS é muito bem feita, ainda que as pessoas que fazem parte dela precisem de maior articulação e instrução”. Como a situação é delicada, muitas vezes os próprios médicos não estão preparados para dar o melhor diagnóstico, como lembra Luciano Palhano, articulador nacional do IBRAT e estudante de psicologia: “Um endocrinologista, uma vez, me disse que não iria colocar hormônio de homem em uma mulher, que aquilo não era possível”. Não basta

Devido ao tempo de espera, à burocracia problemática e, não raro, à transfobia dos próprios médicos e funcionários do Sistema Único de Saúde, muitos pacientes acabam recorrendo a um caminho perigoso: o tratamento hormonal por conta própria. Lorena Landim confessa que começou a intervenção sem acompanhamento por desespero. Sua primeira consulta foi marcada para quatro meses depois do agendamento, levando-a a automedicar-se a partir de conselhos de colegas trans*. “Eu sabia que o que funcionava nelas talvez não funcionasse em mim, e que, por isso, um endocrinologista seria indispensável”, lembra ela. A hormonização desacompanhada de um médico pode levar a erros que vão desde a má escolha do medicamento até a determinação da dose, o que aumenta os riscos à saúde e favorece os efeitos colaterais indesejados. Para homens trans, os perigos do autotratamento vão além da questão da saúde. Luciano conta que os hormônios utilizados são esteróides anabolizantes, extremamente controlados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). “Não tem como conseguir, a não ser por meio de tráfico”, denuncia. Ele confessa ter comprado os medicamentos a partir de um falsificador de receitas médicas, mas protesta: “Eu não posso comprar meus hormônios na farmácia, tirar meu peito, tirar meu útero, porque o meu corpo é extremamente vigiado”. Mesmo assim, o estudante frisa que pediu auxílio médico, para evitar problemas de saúde. Em relação ao uso destes medicamentos como forma de identificação, Lorena define:


chapéu

alexandre gonçalves júnior

julia guadagnucci

Lorena Landim e Amanda Palha destacam os estigmas sociais sofridos por mulheres trans*

“Sentir-se mulher não deriva dos hormônios, mas parecer mulher, sim”. Se o tratamento não é garantido, os efeitos psicológicos podem incluir diversos distúrbios, como depressão, anorexia, fobias sociais e, em casos extremos, automutilação e até tentativas de suicídio. Muitos pacientes, porém, ou não são atendidos devido à saturação do ambulatório, ou acabam sendo tratados com desrespeito, como ressaltado pelos entrevistados. Enquanto o tratamento público continuar lento e de difícil acesso, a população trans permanecerá sem opções para adequar seu corpo à sua identidade de gênero e, por isso, usa as ferramentas que tem à disposição, sendo elas benéficas ou não, em uma busca incessante para completar a puberdade. Ainda que reconheça muitos problemas em torno dos remédios hormonais, Ana María destaca que “o X da questão” não é o medicamento, mas o difícil acesso a eles. “É preciso continuar lutando e reconstruindo o SUS, um sistema que é feito pela e para a sociedade, para a inclusão de todas as pessoas”, conclui.

com ou sem asterisco? O asterisco é um termo

guarda-chuva,

ou seja, não se refere apenas às

mulheres & homens

transexuais,

mas também às pessoas

transgêneras e travestis ESQUINAS – 2º SEMESTRE 2014

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mundo

a grama

do vizinho

Como é a vida nos países que legalizaram a maconha REPORTAGEM CAIO SIMIDZU, CAMILA ALMEIDA, FLÁVIO JÚNIOR, LEONARDO RAMOS, VICTOR SOUZA (1o ano de Jornalismo), AMANDA SAVIANO e JOYCE GOMES (2o ano de Jornalismo)

Atualmente, a palavra “maconha” vem perdendo o sentido pejorativo. Movimentos como a Marcha da Maconha, que acontece no mundo inteiro desde 1994, mostram que muitas pessoas são a favor da regulamentação da droga. Novos estudos revelam como a substância pode ser utilizada, medicinal, religiosa e industrialmente. Holanda, Uruguai e parte dos Estados Unidos legalizaram a erva, mas a polêmica continua. Com diferentes políticas em relação à Cannabis, as nações que a regulamentaram traçaram destinos diversos.

Nos Estados Unidos, quatro estados liberaram o consumo recreativo em 2014: Colorado, Washington, Oregon e Distrito de Columbia. O comércio é restrito a maiores de 21 anos, que só podem comprar até 28 gramas da substância nos mais de mil coffee shops (postos autorizados de venda) do país. Conhecido por seu forte moralismo atrelado à repressão do uso da maconha, o país divulgou, em maio de 2013, um documento da Organização dos Estados Americanos (OEA) que analisa a legalização por outras perspectivas, incentivando-a como uma forma de combater o narcotráfico. O músico Michel Niremberg, de 25 anos, que mora em Silver Spring (Maryland), na região metropolitana de Washington, acredita que a política de guerra às drogas falhou no mundo todo e concorda com a legalização: “Ela vai tornar a sociedade melhor, principalmente se vier aliada à divulgação de informações a respeito das drogas e de como elas funcionam”. Em DC, o “sim” venceu com quase 70% dos votos, mas a lei ainda não foi implementada: faltam definições como quantidade para compra e porte individual e, ainda, onde o usuário poderá ou não fumar. “Ainda é um pouco cedo para saber como serão as coisas, mas as perspectivas são boas”, conclui Michel. Com a supervisão das autoridades norte-americanas no cultivo, comercialização e marketing da maconha, os governos do Colorado, de DC, de Oregon e da capital, Washington, mostram que deram um passo muito adiante se comparado aos demais dezenove países que liberam a droga apenas para fins terapêuticos e medicinais.

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O Uruguai foi o primeiro país a legalizar totalmente cultivo, comércio e uso da maconha, em março de 2014. Consumidores maiores de 18 anos podem comprá-la em farmácias autorizadas, plantá-la em casa (seis pés ou 480 gramas por ano) ou em clubes de cultivo (de quinze a 45 membros). Uma pesquisa do Lapop Uruguay de julho de 2014 indicou que 27% da população uruguaia é próregularização. Entre eles, Cristian Schröder, de 43 anos, lembra: “Há muito tempo já vemos o consumo nas ruas”. Ele crê na diminuição das mortes causadas pela droga, mas tem dúvidas quanto à violência. Cristian é eleitor do Frente Amplio, partido de centro-esquerda do presidente José Mujica, propulsor da legalização. Mujica, em entrevista a um repórter do Canal Montecarlo de televisão, resumiu suas convicções: “O Uruguai não está totalmente pronto, mas é como você, que se tornou jornalista quando te deram a oportunidade”. Mario Esposto, uruguaio de 44 anos, discorda: “A legalização é uma decisão populista clássica deste governo”. Para ele, o maior problema é que, assumindo o comércio, o Estado teria de contratar mais funcionários, favorecendo a corrupção. Ele acrescenta: “A violência vem de outra droga: a falta de educação do povo”. Desde a implantação da lei, as mortes por tráfico de maconha diminuíram – os traficantes parecem estar investindo em armas e drogas pesadas (as que oferecem grandes riscos à saúde).


A Holanda legalizou a venda e o consumo da maconha na década de 70, sem grandes alardes. O comércio e o uso são realizados nos coffee shops que, além de não disponibilizarem drogas pesadas, não comercializam a Cannabis a menores de 18 anos, não fazem propagandas e não vendem mais de trinta gramas por pessoa. As prefeituras determinam a existência e o número de postos por cidade – segundo dados governamentais, em 2000, 81% dos municípios holandeses não possuíam coffee shops. Um dos motivos para a legalização foi a redução de delitos relacionados ao tráfico. “Haveria mais violência se as pessoas conseguissem maconha com traficantes. Em um café, você consegue uma boa maconha”, acredita a holandesa Puck de Haan, de 25 anos, moradora de Hiversum, no norte da Holanda. O governo federal oferece programas de prevenção e combate ao crime organizado, além de promover campanhas educativas, como conta Puck: “Na escola, ressaltam que a maconha pode viciar e causar amnésia”. Assim, a preocupação do Estado é a não-marginalização dos usuários, e não sua criminalização. A situação é outra para os turistas: em 2013, o ministro da justiça, Ivo Opelstein, proibiu o comércio da maconha a estrangeiros. A polícia local, junto a uma equipe especial, o “A-team”, vistoria as fronteiras para evitar o narcotráfico para países vizinhos. Em Maastricht, no Sul da Holanda, o comércio a viajantes é proibido, mas os donos dos coffee shops alegam que o tráfico e a violência nos arredores têm aumentado, diminuindo o lucro – dos catorze pontos de venda legalizados, sete fecharam por não concordarem com a medida. No entanto, em Amsterdã, a entrada de turistas nesses cafés é permitida desde 2011.

No final de outubro de 2014, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou a “Nova Lei da Maconha” no BRASIL. A medida ainda deve passar por quatro comissões temáticas e, até o fechamento desta edição, não havia previsão para ser implementada. Hoje, o cultivo, o comércio e o consumo da Cannabis são ilegais no país. Para saber mais, volte para a página 6 desta edição do Esquinas.

legenda A maconha é ilegal a maconha é ilegal, mas seu consumo não é punido a maconha foi descriminalizada não há informações disponíveis

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perspectiva

só por Os detalhes de uma reunião do Narcóticos Anônimos e sua importância na recuperação de um adicto REPORTAGEM Ana Carolina Siedschlag, Claudia Ratti, Giuliana Saringer (1º ano de Jornalismo) David Sant’Ana (2º ano de Jornalismo) e Gabriela Rodriguez (3º ano de Jornalismo) ILUSTRAÇÃO HELOÍSA D’ANGELO (2º ano de Jornalismo)

A segunda-feira de inverno, que mais parecia de verão, terminava como qualquer outra na capital paulista. À medida que a avenida ficava para trás, o barulho dos saltos oculto no burburinho da multidão foi sendo substituído por poucas vozes que se afastavam pela rua lateral. Durante aquele por do sol, a pouca iluminação da rua criava a sensação de que estávamos no endereço errado. O prédio – uma construção de dois andares instalada entre dois grandes edifícios – passaria despercebido se não fossem as pichações e as janelas quebradas. Porta trancada, nenhum movimento. Pedimos informações, mas o porteiro do prédio vizinho ou desconhecia ou desconversou. Os dois rapazes sentados

na calçada tampouco souberam informar a natureza das atividades do lugar. Poucos minutos depois, um homem engravatado chegou, abriu a porta e entrou, acompanhado de um rapaz usando boné e bermuda larga. Contaminada pelos estereótipos de histórias mal contadas e sem saber exatamente o que esperar, nossa equipe do Esquinas participou de um dos 1 500 encontros dos Narcóticos Anônimos que acontecem no estado de São Paulo. O objetivo: quebrar o preconceito. Sete e meia da noite e só o engravatado e o moço do boné estavam presentes. O relógio tiquetaqueava e outros participantes foram chegando: homens e mulheres; jovens

e idosos; ricos e pobres, sem distinção. As noites dos frequentadores dos Narcóticos Anônimos passam longe dos bares e baladas da cidade, e são compostas de cadeiras posicionadas em círculo e por um sentimento de companheirismo e identificação difícil de encontrar em qualquer outro lugar. Os presentes retribuíam a curiosidade de nossos olhares com certo medo. Logo ao chegar, descobrimos que o grupo é regido por doze tradições. A última delas diz: “O anonimato é um princípio fundamental”. Câmera e gravador, instrumentos essenciais para um repórter, ficaram dentro da bolsa. Apesar da desconfiança, os “companheiros”– como os membros se chamam – se esforçaram para

h


hoje manter o ambiente agradável e afastar a tensão que normalmente os rodeia. Sorrisos e abraços carinhosos foram distribuídos a todos que participavam do encontro. O espaço não precisa de muito para que a reunião aconteça. Cadeiras, um mesa grande, “literaturas” (textos que regem o tratamento dos NA) e força de vontade são suficientes. Quase vinte pessoas lutavam, naquele dia, a mesma guerra, cada uma com sua batalha. “O colega que chegou agora gostaria de se apresentar?”, era a recepção dada aos atrasados. “Meu nome é Fulano, sou um adicto em recuperação e estou limpo há tanto tempo.” A frase, proferida na apresentação de todos, vai muito além de um simples clichê e revela

o grande paradoxo sentimental entre o sofrimento de tantos anos e a vitória conquistada aos poucos, com o esforço que é manter-se livre do vício “só por hoje”, como dizem os “adictos” (outra forma de tratamento dos NA). Nas reuniões, os participantes não citam o tipo de substância que gerou seus vícios. O que importa, segundo a política do grupo, não é mais a droga, mas a forma pela qual o ex-usuário deve vencer a própria compulsão. Durante as “partilhas”, momentos em que os frequentadores contam uns aos outros suas trajetórias sem as drogas, os pequenos atos mereciam grandes comemorações. “Boa, Fulano”, “parabéns”, “é isso aí” e outras formas de valorizar a ação ecoavam

pela sala. Todos tratavam-se com fraternidade e pareciam estar ali não só pela própria recuperação, mas pelos novos integrantes. A forma pela qual as reuniões são conduzidas varia de lugar para lugar e, dependendo do horário da sessão, o mesmo espaço pode ter diferentes funções. O ponto comum entre todos os encontros é a democracia: tudo é decidido pelo voto da maioria. Maria*, uma jovem sorridente, afirma com propriedade que o grupo foi fundamental para a sua recuperação: “O NA salvou a minha vida”, declara, explicando que foi a partir da compreensão das “literaturas” do grupo que ela conseguiu entender a gravidade do seu estado e dar o melhor de si para desvincular-se das drogas.


Citando um dos preceitos do grupo, Maria* lembra que “dor partilhada é dor diminuída”. Os adictos compartilharam os sentimentos mais íntimos com os companheiros, a segunda família que construíram em meio a seu terremoto emocional.

A primeira vez “Oi, meu nome é João*, tenho 29 anos e a droga está virando um problema na minha vida”, diz. Ele, que entrava pela primeira vez em uma congregação dos Narcóticos Anônimos, divide com o grupo sua história de dependência e confessa sua impotência para lidar com o vício. Ele queria parar. Um dos frequentadores mais antigos e assíduos do grupo, Pedro* toma a palavra

assim que João* termina sua apresentação. Começava ali o ritual de boas-vindas a mais um dependente das drogas. “O que eu vou perguntar agora, quero que seja respondido com sinceridade: tem alguém aqui que, por espontânea vontade, sem estar forçado a nada, deseja, de verdade, parar com as drogas?”, pergunta o veterano em meio a um longo silêncio. Poucos segundos depois, o novato João* erguem o braço, provocando uma imensa salva de palmas, assovios e gritos de felicitação. “Você é a pessoa mais importante desse grupo agora, seja muito bem-vindo, te desejamos bons momentos”, disse Pedro*, enquanto abraçava o novo integrante e lhe passava a primeira ficha que um membro do NA recebe ao entrar no grupo. A emoção refletia nos olhos de cada pessoa presente na pequena sala. Dinâmico, não demorou para que o evento chegasse ao fim, momento em que os participantes se abraçam, fazem uma oração e desejam “bons momentos” e “boas próximas 24 horas” para todos que ali estão.

Os doze mandamentos As reuniões têm duração média de duas horas. Amarelo, rosa, azul e verde são as cores das “literaturas”, que abordam diferentes reflexões e são o guia espiritual dos adictos. Elas foram democraticamente escolhidas, logo no início, e os folhetos, dobrados em três partes e distribuídos aos presentes para que acompanhassem a leitura. Eram, também, o único colorido da parte mais

importante do encontro: o momento em que os ex-usuários são sorteados e têm um tempo de quatro minutos para compartilhar o que quiserem com o grupo. A partilha começou com uma animada torcida dos companheiros, apesar de ter ficado evidente que a maioria queria ser escolhida. Eram poucos os que olhavam para a plateia. De mãos juntas e cabeça baixa, alguns falaram do “só por hoje”; outros, refletiram sobre o passado. As histórias vieram em fluxo, não de fatos, mas de sentimentos, o que fez do discurso universal e compreensível, inclusive para nós, visitantes. Frustração, indignação e culpa contrastavam com a esperança palpável que inundou a sala. Os adictos sabem que precisam de ajuda. Segundo a psicóloga Marlene Mota de Souza Lopes, do setor de psicologia que trata os dependentes do NA, os membros procuram auxílio quando são ameaçados pela polícia ou por traficantes, quando são convencidos de que estão doentes (geralmente por meio da terapia), ou quando a sua realidade social é afetada – brigas com os parceiros ou demissão do emprego. Dificilmente, a busca por apoio é uma iniciativa própria. Os doze passos e tradições, de acordo com a ideologia do NA, devem ser seguidos ao pé da letra para que o tratamento seja eficaz. Há também a oração da serenidade, ponto fundamental do encontro. Não é necessário acreditar em uma entidade ou ser adepto de alguma religião, mas a crença em um poder superior, responsável por guiá-los na luta contra as drogas, é comum. O Narcóticos Anônimos tem um protocolo particular de processo que, muitas vezes, serve como barreira para o tratamento psicológico externo. Marlene acredita que os dependentes só procuram psicólogos em

Portas abertas Como qualquer instituição voluntária, o Narcóticos Anônimos depende de contribuições financeiras para se manter. Propagandas, nem pensar. Os ambientes discretos, sem placas nas portas, mostram a concretização da 11ª filosofia do grupo: querem atração, não publicidade. Quase no fim da reunião, o saquinho verde começou a circular. Quinze reais e alguns centavos totalizaram o arrecadado: mais uma vez, conseguiram verba para não fecharem as portas. Porém, os visitantes não podem doar nem um centavo. O NA só aceita doações de adictos, os maiores interessados em manter a instituição funcionando.

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nome alterado para preservar a identidade do entrevistado


casos extremos, e que a maioria prefere as reuniões aos serviços de psicologia. Maurício*, um dos adictos da reunião, ressalta: “Já gastei muito com psicólogos e ajuda médica, mas foi aqui, entre iguais, que eu realmente vi a luz no fim do túnel”.

Vínculo sem vício “Sinto falta de vir às reuniões”, diz Helena*, limpa há 14 anos. Segundo Marlene, a necessidade de continuar frequentando os encon-

tros geralmente está ligada a algum tipo de carência ou à necessidade de nutrir-se das reflexões para evitar a recaída. O medo de chegar ao extremo do vício mais uma vez faz com que o sujeito, mesmo no controle pleno de sua vida há anos, continue encontrando forças para frequentar as reuniões. Todos, mesmo depois de recuperados, tentam manter contato com os “padrinhos” que ganharam no NA, independentemente de estarem livres do vício há semanas, meses

ou anos. Estes “padrinhos” são frequentadores mais antigos das reuniões e servem de conselheiros para a pessoa em recuperação. Não há contrato que os prenda ao grupo: os frequentadores do Narcóticos Anônimos estão ali porque sabem o quanto isso é importante para a vida que projetam. Novos caminhos, novas escolhas, novas pessoas e, principalmente, a consciência de que devem evitar cometer o erro que os levou para a pequena sala branca. Pelo menos, só por hoje.

Um dia de cada vez

Amor exigente

“Só por hoje” é uma expressão que comum e muito importante nos depoimentos da partilha. Em um primeiro momento, estranhamos o termo, mas após as duas horas de reunião, foi fácil compreendê-lo. Há uma grande diferença entre “ser limpo” e “estar limpo”. Aquelas pessoas sabiam, mais do que ninguém, da importância de conseguir passar pelo menos um dia sem pensar em usar qualquer tipo de entorpecente. Estavam limpas “só por hoje”, e é isso que importa aos adictos, já que não é possível prever os próximos dias.

“Eu sou dependente, mas não estou sozinho”. É assim que Marlene Lopes, psicóloga do NA, explica o ideal do Amor Exigente, grupo que oferece suporte emocional aos envolvidos diretamente com dependentes químicos (parentes e amigos próximos). Embora o ex-viciado seja o mais prejudicado pelo uso de drogas, a família também sofre e precisa de apoio emocional. Há mais de 570 grupos espalhados pelo Brasil, prontos para ajudar quem precisa, mostrando a importância desta iniciativa.

Frequentadores: E conheceram o NA por: (cada um podia dar mais de uma resposta)

49% Centros de tratamento e aconselhamento 47% Outro membro do Narcóticos Anônimos 31% Literatura do NA 29% Familiares

58% 42% Cujas idades são: Menos

Entre

Entre

Entre

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Mais

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anos

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SXC.HU/ MAGRIT RALEV22

diário

fugindo do

vazio

O relato pessoal de dois ex-usuários de drogas que percorreram o caminho mais difícil na retomada da própria humanidade REPORTAGEM Fernanda Ventura, Stefany Oliveira (1º ano de Jornalismo) e Ingrid Yurie (2º ano de Jornalismo) colaboração Natália Antunes (2º ano de Jornalismo)

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Agitação, festas, adrenalina. Muitos são os aparentes benefícios das drogas. Entretanto, grande parte das narrativas acaba sem final feliz. Essas substâncias podem curar e elevar o estado de espirito, mas, também, destruir vidas. João Blota e Carla Cruz da Costa tiveram suas vidas decompostas pelos respectivos vícios: enquanto viveram no universo dos entorpecentes ilícitos, ficaram cara a cara com sua face mais desumana e, ao superaram essas fases mais sombrias, perceberam-se diferentes do que eram. Suas escolhas os levaram a uma viagem aparentemente sem volta. Um mundo desenhado em linhas tortas, com perspectivas distorcidas, com perigos indecifráveis e muitos medos. Um mundo paralelo, em que todos parecem desencaixados porque devem submissão a uma única soberana: a droga. Todos presos e escravizados por uma ânsia irrepreensível, uma paranoia. “Todo drogado tem um buraco dentro do peito. Você tenta preencher esse buraco com o vício. Só precisa se drogar quem precisa fugir, e só precisa fugir quem tem algum problema”, define João Blota, limpo há 19 anos.

Escorpião na boca Hoje, bem-sucedido, dono da Agência Urbano de publicidade e eventos, casado, pai de dois filhos, feliz e, principalmente, grato. Esse sentimento é nítido, quase tátil: “Me sinto vivo, me sinto útil”, conta Blota. Após uma década de

vícios e desesperos, ele escreveu, com a ajuda do publicitário e escritor Rafael Júnior, o livro Nóia, em que descreve sua trajetória desde os primeiros contatos com as substâncias psicotrópicas, aos 9 anos, até sua redenção, aos 20: “Ficava um tempão sem usar, depois usava um pouquinho. Até o dia que eu fiz o acordo com o barbudo [referindo-se a Deus]. ‘Se eu fumar mais uma vez, você me leva embora porque eu não quero mais ficar aqui’”. João começou a usar drogas pelo caminho que, segundo ele, é percorrido pela maior parte dos usuários: curiosidade e falta de informação clara. O publicitário escondeu o vício da família por muito tempo; frequentava a escola e tinha uma vida aparentemente comum. Por baixo dos panos, porém, João usava todo tipo de substância que altera o estado normal de consciência: “Desde chá de lírio até chá de fita cassete, colírio, glaucoma. Tudo aquilo que você põe no nariz, que vende na farmácia e que te deixa muito louco; também usei cola, maconha e cocaína”, enumera. Seu mundo, entretanto, só desmoronou por causa de uma tragada específica: “Quando eu experimentei, eu falei ‘essa é a droga que eu quero’. Crack é a doideira, e é uma doideira muito esquisita, porque não dá prazer nenhum”. Por oito anos, João fumou, em média, quarenta pedras por dia. Dormia das onze da manhã às oito da noite, quando começa-

va a caça pela pedra nas favelas. O dinheiro, conseguia pedindo para os pais ou roubando, fosse em casa, fosse na rua. Aos poucos, perdeu os amigos e passou a conviver apenas com traficantes, usuários e policiais. Às vezes, ficava dez dias na Cracolândia, mas depois voltava para a família. “Você fica num mundo sujo, num mundo podre”, lembra. Nessa época, com apenas 16 anos, seus pais descobriram os vícios. Internaram-no muitas vezes, mas havia sempre recaídas: “Clínica é um ambiente horroroso, está todo mundo louco, desesperado, preso, trancado”. O crack tornou a vida de Blota uma viagem alucinada e dolorosa. Ele lembra que, dentro da “noia”, qualquer pedrinha branca pelo chão poderia ser um pouco de crack. “Eu achei que eu tinha guardado uma pedra de crack dentro do meu dedo, peguei uma faca e comecei a cutucar. Eu ia cortar o dedo, mas um amigo me segurou.” O ex-usuário lembra também que a droga roubou sua dignidade e seu amor próprio. Para ele, a pior fase foi quando todos já sabiam de seus vícios. “Comecei a fumar no meio da rua, dentro de casa, aí escancarou”, compartilha. Dentre os piores pesadelos do passado, João lembra-se de quando foi visitar o avô no hospital e chegou rindo no corredor: “Minha mãe não me reconheceu. Uma mãe não reconheceu o filho, de tão magro e sujo que estava”. Blota conta, também, que certa vez escapou por pouco da morte: “Um tra-

fernanda ventura

O publicitário João Blota, depois de deixar o vício, contou sua trajetória no mundo do crack no livro Nóia ESQUINAS – 2º SEMESTRE 2014

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fernanda ventura

Eu digo para os que não usam: ‘você colocaria um escorpião dentro da boca para experimentar? Então, não coloca droga’”

João Blota, ex-usuário e autor do livro Nóia

Hoje, casado e pai de dois filhos, Blota lembra-se de momentos difíceis ficante apontou a arma na minha cabeça, atirou, mas a bala não saiu”. Entre 19 e 20 anos, João se viu em uma encruzilhada: ou deixava o vício ou sua vida teria fim. “Abriu uma brecha e eu fugi”, explica. Desde então, Blota recebe cada dia como um presente e tenta agradecer seu renascimento. “Fui começando a perceber que tinha alguma coisa bem maior para eu fazer. Eu não faço isso porque eu sou bonzinho, faço isso porque eu tenho uma dívida e tenho que pagar”, conta. Hoje, o publicitário dá palestras, contando sua trajetória em escolas, hospitais e clínicas, sem cobrar nada. “Eu digo para os que não usam: você colocaria um escorpião dentro da boca para experimentar? Então, não

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coloca droga. Há coisas na vida que a gente não precisa viver para ter a experiência. Para quem está dentro, o jogo só acaba quando o juiz apita”, conclui.

Falsa liberdade O sonho de vida de Carla Cruz da Costa levou-a para a corrosão interior. A vida universitária de agitações e grandes paixões abriu as portas para o vício em sua vida. “Eu achava muito normal usar drogas e viver em uma casa em que as pessoas estavam traficando”, lembra Carla. Com quase 19 anos, ela experimentou cocaína em uma festa em Mogi das Cruzes, onde cursava odontologia: “Foi a melhor coisa que eu senti na minha vida. A autoestima vai lá em cima, você tem

a sensação de que pode tudo. O problema é que foi amor à primeira vista”. Sua propensão para aventuras perigosas começara muito antes. Aos 13 anos, Carla já pulava o muro do tradicional colégio de freiras Santa Clara, na Zona Oeste de São Paulo, para beber e fumar tabaco ou maconha com seus colegas de classe. “Desde sempre, a droga foi sinônimo de liberdade para mim, uma falsa liberdade”. Durante os primeiros anos na faculdade, morando fora de casa, a família de Carla desconfiava. No terceiro ano, sem saber como sair da situação sozinha, ligou para o pai: “Estou precisando de ajuda, estou usando drogas”, disse. No mesmo dia, ele e o irmão foram até a sua casa, que dividia com uma amiga. Diante da possibilidade de internação, Carla prometeu parar sozinha. Uma semana depois, recomeçou a rotina que parecia levá-la para o fim da vida. “Eu tinha certeza de que ia morrer de overdose”. Carla lembra que namorava um rapaz “barra pesada”, como ela define. A casa onde os dois moravam acabou se tornando um ponto de venda. O fim do namoro, porém, não acabou com os relacionamentos abusivos e ligados às drogas: Depois do primeiro, sucederam-se vários parceiros desse tipo, construindo uma teia da qual Carla não conseguia se livrar. “Eu sempre arrumava um namorado que pagava, que era rico, e depois descobria que o cara traficava”, lembra. Buscando os detalhes mais delicados de seu passado, a então universitária reconhece que sempre teve comportamento compulsi-


ingrid matuoka

Vários entorpecentes acompanharam Carla Cruz da Costa (que não quis ser visualmente identificada) desde a adolescência, mas foi a cocaína que modificou sua vida

vo: “Eu comia demais, bala demais, chocolate demais. Lembro de uma vez na praia em que eu não queria sair do mar até que meus olhos cozinharam; a combinação água do mar com sol assou toda a pele”. Ela conta que nunca aceitou sua vida como é. Não consegue lembrar de momentos felizes da infância, apenas da Carla triste. Guarda alguns espinhos no coração, como o relacionamento difícil com a mãe. “Ela era louca, explosiva, nervosa”. Seu pai era mais calmo, apesar de ter seus momentos de ira. Um deles foi aos 13 anos de Carla, quando ela namorava secretamente um rapaz e os dois foram descobertos: “Meu pai fez um escândalo, me bateu na frente de todos e me xingou de prostituta. Aquilo pra mim foi a morte. A dor que eu carreguei durante anos… Eu perdi o chão”. Um dia, Carla atingiu o fundo do poço. “Fiquei três dias fora de casa e, quando voltei, peguei o meu namorado e a minha amiga

na minha cama”. O baque emocional da situação, somado às substâncias químicas, resultou em combustão. Carla explodiu, destruiu a casa inteira e teve que ser contida por pessoas desconhecidas. Ligou mais uma vez para o pai: “Não estou conseguindo parar, estou trancando a matrícula e indo para São Paulo”. De volta à cidade natal, passou a fazer terapia três vezes por semana, a frequentar reuniões de Alcoólicos e Narcóticos Anônimos e a ir a um centro espírita para tratamentos em dependência química. O mais difícil, segundo Carla, foi parar de beber, pois o álcool é uma prática social muito incentivada pela mídia. Anormal é quem não bebe, reflete ela. “Cheguei a tomar álcool de limpeza várias vezes porque não conseguia ficar sem”. Após quatro anos envolvida com entorpecentes, Carla livrou-se do consumo de drogas, prestou vestibular para psicologia e iniciou o curso no ano seguinte.

Aos 38 anos, é formada pela Universidade Paulista (UNIP) e especializada em dependência química pelo Instituto de Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq/FMUSP), além de trabalhar em um centro de reabilitação de usuários e ter um consultório próprio. Muitos dependentes resistem às explicações sobre os vícios, alegando que quem está “do outro lado” não entende sua situação. “Você nunca passou por isso, como você pode entender?”, dizem, segundo Carla. Nesse aspecto, ela é diferente: provou os prazeres e os desgostos, as expectativas e decepções e, principalmente, os medos de quem está preso a uma substância. Hoje, a psicóloga sabe que feridas cicatrizam, mas as marcas permanecem. “Cheguei a um ponto em que não tinha mais vontade de usar, mas não conseguia parar. Usava e chorava. Ainda acho difícil viver. Sempre parece que está faltando algo, é o tal do vazio”, conclui.

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QUADRINHOS POR ThAÍS HELENA REIS (3º ano de Jornalismo)

Sou uma pessoa observadora e... ...por ser assim, quando vejo as pessoas na rua, algumas vezes penso:

Para adentrar um mundo interior ou para deixar de lado os vícios de se viver? Para fugir? E, se sim, então do quê?

Na realidade...

São mesmo só curiosidades... Eu gostaria de saber porque sou uma pessoa observadora.

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E nessas vias e passagens, todo dia de manhã, vejo que... bem, todos fazemos isso.

Não importam as maneiras... Os tipos, os meios, as razões, os horários, os motivos.

Nós temos nossas próprias drogas. (Eu sei porque sou uma pessoa observadora)

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ALI NA ESQUINA TEXTO NELLE GOMES, Heloísa Barrense, Pedro Cardoso (1º ano de Jornalismo), Mariana Agati (2º ano de Jornalismo) e Isabella Senise (4º ano de Rádio, TV e Internet) IMAGEM pedro cardoso (1º ano de Jornalismo)

arte Adepta à filosofia Waldorf, a Associação Comunitária Monte Azul aposta no desenvolvimento humano das crianças no combate ao tráfico de drogas

Em meio aos contrastes sociais da Zona Sul de São Paulo, onde prédios espelhados refletem os barracos ao redor, um dos poucos lugares em que as duas realidades se encontram é a Associação Comunitária Monte Azul. Nascida na década de 70, ela é fruto do choque social entre universos que raramente se encaram. A pedagoga alemã Ute Creamer, que lecionava na escola Waldorf Rudolf Steiner, no Alto da Boa Vista, percebeu que seus alunos precisavam de mais contato com a realidade social brasileira. Ute morava perto da favela Monte Azul e recebia, constantemente, crianças pedindo ajuda em sua casa. Foi aí que surgiu a ideia de reunir, em tardes recreativas, os alunos da escola e as crianças da comunidade. Os encontros aconteciam, no início, na casa da pedagoga. Depois de dois anos organizando essas reuniões, Ute passou a conhecer de perto o drama daqueles jovens e de suas famílias. Na época, a Monte Azul era um local sem nenhuma infraestrutura, repleto de vielas de barro, córregos a céu aberto e barracos de madeira.

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A ideia de criar a Associação foi ganhando forma e, em 1979, a Prefeitura cedeu à pedagoga um terreno ao lado da favela. Do princípio de construir pontes entre duas realidades sociais diferentes, que rege a Associação até hoje, surgiu também a proposta de atender a comunidade com programas diferenciados. Atualmente, eles são divididos em quatro núcleos: saúde, cultura, educação e meio ambiente, buscando atender sempre o maior número possível de moradores da região. Além dos programas, a Associação desenvolve atividades específicas, como o Pontinho de Cultura. De segunda a sexta- feira, das 17 às 20 horas, dois educadores oferecem brincadeiras na praça central da favela. O projeto nasceu da necessidade de combater o tráfico de drogas, que vinha crescendo ali diariamente. O Pontinho de Cultura propõe inverter essa situação: com recreação, artes circenses, jogos, teatro e outras atividades lúdicas, o projeto busca atrair crianças, adolescentes e seus familiares, além de ajudar a impedir futuros relacionados ao crime. “O tráfico es-

tava tomando conta da praça e os moradores tinham medo de deixar as crianças brincarem. Alguns preferiam dar uma volta maior só para não ter que passar por lá. Agora isso não acontece mais”, afirma Renate Keller Ignacio, gestora de Desenvolvimento Institucional e professora de música da organização. Desde 2012, a Associação Comunitária Monte Azul não atua mais diretamente no combate às drogas; hoje, reforça a causa apenas de forma indireta, por meio do Potinho de Cultura e outros programas educacionais e culturais, que acabam incentivando muitos participantes a seguir um caminho artístico. “Tudo o que fazemos, desde a creche, afasta os jovens das drogas. Principalmente a escola de música: temos muitos meninos que estão na corda bamba e, com a música, conseguimos segurá-los”, conta Renate. Apesar dos esforços da Associação, ainda há os que acabam se envolvendo com as drogas e o tráfico. No início, o programa Casa da Trilha era o responsável por oferecer o processo de reabilitação na comunidade.


Entretanto, devido à falta de financiamento, o projeto teve de encerrar suas atividades. Quando necessário, a Associação Comunitária Monte Azul encaminha jovens em dependência química para um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) ou para clínicas de reabilitação. O problema é que poucos lugares internam menores de idade e, considerando que muitos dos dependentes químicos começam a usar drogas com cerca de 15 anos, o tratamento aos 18 é extremamente tardio. Mesmo com convênios filiados à prefeitura, a Monte Azul sobrevive por meio de doações feitas no site, tanto por empresas quanto por pessoas físicas. Com um trabalho voluntário internacional, muito dos doadores são estrangeiros, principalmente da Alemanha, já que a Waldorf é um sistema de ensino germânico. Apesar disso, a Associação ainda enfrenta problemas para se manter: “Nos últimos anos, com a imagem do Brasil no exterior em contínuo crescimento econômico, o apoio que a gente recebe de lá está diminuindo bastante”, lamenta Renate.

Onde? Núcleo Monte Azul Avenida Tomás de Sousa, 552 Jardim Monte Azul - São Paulo - SP - Brasil Núcleo Horizonte Azul Rua Agatino de Esparta, 25 Jardim Horizonte Azul- São Paulo - SP – Brasil Núcleo Peinha Penha Rua Itapaiuna, 36 Jardim Santo Antonio - São Paulo - SP Quando? Mensalmente, a Associação organiza

uma visita guiada para aqueles que têm interesse em conhecer melhor as atividades desenvolvidas nos três núcleos. Quanto? Pede-se a contribuição de R$ 10,00 e 1Kg de alimento não perecível. Contato? (11) 5853-8080 (11) 3744-8718 (Jd. Sto. Antônio) (11) 5896-7208 (Horizonte Azul) monteazul@monteazul.org.br horizonte@monteazul.org.br peinha@monteazul.org.br http://www.monteazul.org.br/nucleos.php

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CRÔNICA TEXTO débora stevaux (2º ano de Jornalismo) Imagem sxc.hu/ mario alberto magallanes

dançando

no

ESCURO

Com uma mão queimada segurava o cachimbo, com a outra, um menino de uns 16 anos brincava de pescar lixo na água parada barrenta do Fluxo. No sentido literal, a palavra “Fluxo” simboliza abundância. Porém, o que é abundante em um quarto de um quarteirão destinado exclusivamente ao uso de crack? O Fluxo é a casa dos que não têm: partes de uma cama desmontada, colchões espalhados, cobertores, roupas aos montes, barracas improvisadas e lixo. Tudo competia pelos meus olhos espantados: em cada ângulo havia um cachimbo aceso de pedrinhas amareladas misturadas com cinzas de cigarro. Mas não só o crack é pedra aos olhos de Medusa do Estado brasileiro: os dependentes levados pela fluidez da Cracolândia são homens-pedra nos sapatos de qualquer tipo de política pública governamental. Com menos de cinco reais, apaga-se um pouco da própria chama na escuridão da Nova Luz. Vende-se tudo no shopping nóia: a vitrine da loja é feita de lona e os produtos à venda são inusitados, fruto dos furtos movidos pelo vício. Segregados não só pelas faixas plásticas de sinalização em volta de um quarto de terra batida, o olhar dos que lá estavam me contava muito mais sobre sua marginalização. Nitidamente destoante dos recorrentes no lugar, abrimos alas junto a Tina Galvão, que traçava as rotas na terra dos desterrados. Os olhares incomodados denun-

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ciavam que lá não era o nosso lugar. Um não-lugar para a maioria dos que, com passos apressados, nem sequer desviam os olhos do celular para ver a fluidez desatada daquela região central paulista. Com o bloco de notas em mãos, ao cruzar a esquina da alameda Dino Bueno, me tiraram pra dançar. A rua conhecida como buraco também era cova, em que muitos dependentes dormiam, alguns para nunca mais acordar. A pergunta vinha de um moço amorenado visivelmente alterado que, com chinelos de dedo e pés sujos, indagou ao som de um forró ensurdecedor de boteco se eu não sabia dançar. Respondi que saber mesmo, não sabia. Ele me tomou pela mão. Dançamos. Os pés desnudos, o cheiro de cachaça junto aos olhos vermelhos contrastavam com o meu All Star e a branquidão da minha pele. Depois dos descompassos e das voltas, a despedida. O beijo na mão. Pouco mais de duas horas de andança pela Cracolândia, entre bases de projetos governamentais e independentes, o reencontro. “Você quer dançar de novo?” Na rua do Fluxo, não havia melodia, os únicos sons eram os de vozes e tosses intermináveis. Quando perguntei sobre não haver música, ele pegou minha mão, colocou sobre o peito e anunciou – com a certeza dos olhos blindados de quem não enxerga a escuridão em que vive: “Mas essa é a música”.



“Eu não sei por que o mundo não vê o que está acontecendo, parece que colocamos uma venda sobre os olhos, como se a droga fosse uma coisa feia que não se pode mencionar” José “Pepe“ Mujica, presidente do Uruguai, em entrevista à Folha de S.Paulo (26/11/2014)


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