Revista Esquinas #57

Page 1

REVISTA-LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO DA FACULDADE CÁSPER LÍBERO #57 - 1º SEMESTRE DE 2015

REFLEXOS

DA ÁGUA A sua revalorização cotidiana e simbólica em plena crise hídrica


SEÇÃO TEXTO NOME DO AUTOR (Xº ano de Curso) IMAGEM NOME DO AUTOR (Xº ano de Curso)

2

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2012


EDITORIAL Revista-laboratório do curso de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero

Faculdade Cásper Líbero Diretor Carlos Costa Vice-Diretor Roberto Chiachiri Filho Coordenadora de Jornalismo Helena Jacob Professor responsável Heitor Ferraz Mello Monitoria Editora Mariana Gonzalez Assistente editorial Naiara Albuquerque Editora de Arte e Fotografia Débora Stevaux Diagramação André Valente, Carolina Mikalauskas e Débora Stevaux Revisão João Hidalgo, Mariana Gonzalez, Naiara Albuquerque e Nathalia Gorga Participaram desta edição Alana Claro, Alessandra Petraglia, Aline Tavares, Allan Baptista, Amanda Cavalcanti, Amanda Lemos, Amanda Ravelli, Ana Beatriz Azevedo, Ana Carolina Pinheiro, Ana Carolina Siedschlag, Ana Clara Giovani, Ana Cláudia Bettoni, Ana Laura Prado, Ana Lua Mendonça, Ana Luiza Couto, Ana Maria Barros, André Dominguez, Andressa Oliveira, Anna Beatriz Oliveira, Anna Mota, Antonio Balbi, Aria Park, Ayumi Fumayama, Bárbara Barros, Bárbara Gaspar, Bárbara Muniz, Beatriz Carvalho, Beatriz Issler, Beatriz Magalhães, Beatriz Vilanova, Bianca Gomes, Bianca Sandrine, Brenda Zacharias, Breno Zonta, Brida Rodrigues, Bruna Baddini, Bruna Rodrigiues Medina, Bruno Lima, Camila Junqueira, Camila Gambirasio, Carolina Moraes, Carolina Serrano, Cecilia Marins, Claudia Ratti, Débora Romanini, Elena Costa, Érica Azzellini, Felipe Minoru Sakamoto, Fernanda Baccaro, Fernanda Silva, Fernanda Ventura, Fidel Zandoná Forato, Flávia Piza, Gabriel Angelo, Gabriel Manzo, Gabriel Moreno, Gabriel Nunes, Gabrielle Vianna, Gabrielli Menezes, Giovanna Mercadante, Giovanna Sutto, Giuliana Saringer, Guilherme Guerra, Guilherme Martins, Guilherme Venaglia, Gustavo Oriente, Hares Datti Pascoal, Helena Pacheco, Heloísa Barrense, Igor Quilici Brunaldi, Isabel Cassab, Isabel Lima, Isabela Barbosa, Isabella Mori, Izabela Silva, Jeniffer Mendonça, João Hidalgo, João Pedro Petrini, João Pedro Siqueira, Júlia Favero, Julia Vizotto, Julia Zayas, Juliana Falanghe, Juliana Saiani Moyses, Juliana Santos, Julya Vendite, Karolina Bergamo, Laís Fernandes, Laís Franklin Vieira, Laís Glaeser, Lanna Sanches Dogo, Larissa Herrera, Larissa Rosa, Laura Marchezini, Lavinia Bartolomei Bortolotto, Leila Maciel, Letícia Furlan, Leticia Orciuolo, Letícia Riccio Vaz, Letícia Sé, Lívia Vitale, Lucas Resende Toso, Lucas Rocha, Luiza Ferraz, Lygia Ribeiro, Maiza Gondim, Marcela Correa, Marcela Schiavon, Marcelo Pepice, Maria Luiza Miserochi, Maria Victoria Poli, Maria Vitória Ramos, Mariana Capucho, Mariana Zonta d’Ávila, Marina Felix, Marina Ruiz Romano, Matheus de Souza Oliveira, Matheus dos Santos, Matheus Lisboa, Matheus Moreira, Mike Campos, Natália Koyama, Natalia Vieira, Nathalia Parra, Paulo Henrique Pompermaier, Pedro Daher, Pedro Parada, Pedro Queiroz, Rafael Rodrigues, Rafaela Abud Putini, Rafaela Artero, Raphaele Palaro, Raíssa Velten, Renato Lamanna, Sara Ferrari, Sofia Rossas, Stefany Oliveira, Stephanie Shih, Tainá Freitas, Thaís Lopes, Thaís Monteiro, Thais Nascimento, Ugo Sartori, Victoria Franco, Victória Leite, Victória Pegorara, Vítor Ferreira, Vitória Baraldi, Wagner Lauria Jr, Yasmine Luna, Yulia Serra Imagem de capa: Giovanna Gaddini Garcia Agradecimentos Bianca Santana, Giovanna Gaddini Garcia, Guilherme Venaglia, Helena Jacob, Helô D’Ângelo, Pedro Camargo, Raphaele Palaro, Thaís Helena Reis Núcleo Editorial de Revistas Avenida Paulista, 900 – 5º andar 01310-940 – São Paulo – SP Tel.: (11) 3170-5874 E-mail: revistaesquinas@gmail.com www.casperlibero.edu.br

ÁGUA, fonte de reportagem HEITOR FERRAZ MELLO

Desde o ano passado, a expressão “volume morto” entrou para a rotina do paulistano. E os níveis da Cantareira, Alto Tietê e Guarapiranga tornaram-se uma preocupação frequente. E se não chover muito? E se faltar água? Alguns bairros da cidade começaram a reclamar da torneira seca durante muitas horas ao longo do dia. As fontes oficiais racionaram a palavra “racionamento”, pois poderia ter um peso negativo nas últimas eleições. Assim, o cotidiano de muitas famílias passou por uma brutal modificação: muitos ainda não estão tomando banho de canequinha, mas o tempo embaixo do chuveiro reduziu bastante. Neste momento em que fechamos mais um número da Revista Esquinas, em junho de 2015, a preocupação continua grande. Os níveis das represas melhoraram um pouco, mas o volume morto continua sendo usado. Mantendo a tradição de abordar assuntos atuais, mas ampliando sempre o leque de possibilidades, sentimos, então, a necessidade de falar sobre a água, focando não apenas sobre a crise hídrica que estamos vivendo. Este é um número com várias repor-

tagens sobre a nossa relação material e até mesmo simbólica com a água. As primeiras ideias de pauta foram sugeridas pelas alunas do Núcleo Editorial de Revistas responsáveis pela publicação, em um encontro que contou com a participação criativa e afetuosa da professora Bianca Santana. Nas próximas páginas, o leitor poderá submergir em várias águas: na vida e sofrimento dos rios Tietê e Pinheiros, que abraçam a cidade de São Paulo; no drama dos moradores da cidade de Itu, que se tornou um símbolo desse momento crítico; no jornalismo meteorológico e alterações climáticas; nas profissões e esportes aquáticos; em situações de beleza e de muita vida, como o parto e a simbologia da água nas religiões. E até mesmo na antiga “terra da garoa”, que já não existe mais. A equipe da Revista Esquinas agradece a colaboração e o esforço de todos os 151 alunos envolvidos nesta edição. Se a água é fonte da vida, temos mesmo que defendê-la com todos os instrumentos que temos ao nosso alcance. No caso do Jornalismo, a força sempre vibrante da reportagem.

No Esquinas #57, tentamos entender a importância da água: diante da crise hídrica, as nossas equipes de reportagem saíram em busca dos diferentes significados deste recurso, do uso cotidiano às esferas simbólicas

GIOVANNA GADDINI GARCIA

Fundação Cásper Líbero Presidência Paulo Camarda Superintendência Geral Sérgio Felipe dos Santos

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

3


SUMÁRIO

6

12 06 ÁGUAS MARGINALIZADAS

28 TRADUTORES DO CÉU

Repórteres foram às margens dos rios Pinheiros e Tietê para entender a relação entre o homem e as águas que o cercam

Quem são e como trabalham os profissionais do portal Climatempo, maior responsável por informação meteorológica no Brasil

10 CIDADE DO CAOS

30 A VOZ DO TEMPO

12 SALDO DA CRISE

32 CAÇADOR DE NASCENTES

18 SOB O ASFALTO

44 COTIDIANO FLUIDO

22 TERRA DA GAROA

46 CONTA GOTAS

24 FUTURO ENGARRAFADO

48 RIOS VOADORES

Dentre os inúmeros fatores que explicam a crise hídrica, as soluções ainda permancem nebulosas

O Esquinas foi a Itu, palco de grandes protestos durante a seca, para entender os resultados da movimentação política

Rios invisíveis: as consequências do aterro e da retificação dos fluviais em uma cidade desenvolvida para os automóveis

O fim do fenômeno na maior cidade da América Latina

Nascente tem dono? O que diz a lei a respeito da privatização e do comércio da água engarrafada

4

20

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

Josélia Pegorim, uma das primeiras meteorologistas do país, conta sua trajetória e fala sobre os desafios da profissão

Adriano Sampaio e sua página Existe Água em SP narram a busca por fontes de água limpa pelo território paulistano

Profissionais dependentes de recursos hídricos falam sobre a relação com a água no dia a dia

A ação dos coletivos e organizações sociais que lutam pela melhor administração dos recursos hídricos

A importância do fenômeno proveniente da Floresta Amazônica durante o período de estiagem no Sudeste


24

46

50 LÍQUIDO SAGRADO

Da oferenda à purificação, a água assume diferentes significados nas crenças ao redor do mundo

54 IMERSÃO SINESTÉSICA

Em busca de respeito e protagonismo, mulheres se engajam pelo parto humanizado e optam por dar à luz submersas

58 AURA AQUOSA

Uma análise sobre o poema “A meditação sobre o Tietê”, considerado o testamento do escritor Mário de Andrade

54 SEÇÕES 03 EDITORIAL 20 ROTINA 36 FOTORREPORTAGEM 64 ALI NA ESQUINA 66 QUADRINHOS 70 CRÔNICA

60 CONQUISTAS SUBMERSAS

Atletas e treinadores de esportes aquáticos, grandes responsáveis por medalhas olímpicas, se preparam para os Jogos de 2016

62 PELA CONTRA-REGRA

Entrevistado pelo Esquinas, André D`Élia fala sobre seu documentário A Lei da Água - Novo Código Florestal

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

5


SÃO PAULO

Moradores, comerciantes e especialistas falam sobre a experiência de viver às margens dos maiores rios paulistas REPORTAGEM ALLAN BAPTISTA, THAÍS MONTEIRO, UGO SARTORI, VICTÓRIA LEITE (1º ano de Jornalismo) e KAROLINA BERGAMO (3º ano de Jornalismo) COLABORAÇÃO ANDRESSA OLIVEIRA, GUILHERME VENAGLIA (2º ano de Jornalismo) e FLÁVIA PIZA (3º ano de Jornalismo)

6

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015


UGO SARTORI

NO COMEÇO, ERA apenas uma vila — São Paulo de Piratininga — que cresceu no alto de uma colina, às margens dos rios Tamanduateí e Anhangabaú. Inicialmente, a região foi habitada por duas tribos indígenas, que depois dividiram o espaço com as missões jesuítas de catequização. Se as águas falassem, o relato do crescimento da metrópole ganharia o depoimento de quem muito contribuiu para o desenvolvimento local, mas que até hoje sofre as consequências da urbanização. Falariam, talvez, sobre como proporcionaram alimento e como serviram de caminho para desbravamentos de outras terras e, ainda, se queixariam dos seres humanos que soterraram os rios com asfalto e descartam, minuto a minuto, esgoto em suas margens. Entre os ruídos da metrópole, a pressa dos que por ali passam, a poluição sufocante e os prédios imponentes, há vida clamando por socorro. Suja, esquecida e quase inválida, a correnteza transformou-se em um fardo para quem passa ao seu lado. Suas curvas suntuosas e, ao mesmo tempo, suaves, foram modificadas pelo homem, tornando-se, assim, um longo corredor de concreto que corta a cidade, tanto no sentido geográfico, quanto no sentido humano. Hoje, os rios da capital paulista dão seus últimos suspiros, tentando transcender o turbilhão que acontece ao seu redor. Porém, na maioria das vezes, sem sucesso, desanimam sua expressão e continuam em seus cursos, rumo a um futuro incerto. Na tentativa de mostrar sua importância, as águas revelam-se fugazes e rebeldes. Transbordam aquilo que nelas está intrínseco e, com violência, levam tudo o que veem pela frente. Destroem casas, causam danos materiais e, até mesmo, vitais. Depois, acalmam-se e, lentamente, voltam ao estado normal, a espera da próxima tempestade.

VILAS SUBMERSAS São 15h. Uma garoa fina, quase imperceptível, cai sobre São Paulo. As nuvens estão cinzas e o tempo, completamente fechado. O Rio Tietê está calmo. De cor amarronzada, exibindo lixo e sujeira, segue tranquilamente seu curso, ao passo que os automóveis voam na Marginal que leva seu nome. Logo ao lado da via está o bairro de Vila Maria: um lugar sossegado e acolhedor. São muitas as esquinas que abrigam pequenos bares, onde senhores encontram-se para conversar. Além de sentir o inconfundível odor, ao olhar para o fim de uma das ruas, é quase pos-

sível ver o rio no horizonte, que estava sendo contemplado por Hedi Cléia, de 58 anos. Com o cigarro na mão, a professora de Educação Infantil estava na porta de sua casa, apoiada no parapeito da entrada. Ela diz ter saudades do tempo em que era possível nadar, praticar esportes e usufruir das águas do Tietê. Ao conversar com a equipe de reportagem da Revista Esquinas, a professora lembrou-se do dia em que entrou no rio para praticar remo: “Estava morrendo de medo, mas fui”, confessa. De geração em geração, ela sempre ouviu promessas de despoluir o Tietê, contudo mostra-se sem esperanças: “Eu vou morrer sem ver mudança nenhuma”. O alagoense Eduardo Vasconcelos, de 32 anos, morador do bairro há 10, já sofreu muitas perdas com as enchentes na região, porém, não guarda mágoas do Tietê: “Os rios têm um valor sentimental para mim, porque, se zelássemos por eles, não estaríamos passando por tantos problemas, como, por exemplo, a seca”. Saindo do Parque do Trote, área verde de mais de 180 mil metros quadrados no bairro de Vila Guilherme, próximo à Vila Maria, um grupo de adolescentes andava despretensiosamente ao lado de uma corrente de água. Segundo Daniele Santos, 17, os córregos não significam nada para São Paulo e só atrapalham a vida de quem mora por perto. Questionada sobre o destino do esgoto da sua casa, a jovem não soube responder. Também não considerou propor nenhuma solução para os diversos problemas fluviais, diferentemente de Willian Montagio, garçom de 30 anos e morador do bairro há 20, que é radical em relação aos rios: “O ideal seria cobri-los todos. Passar asfalto em cima para que nunca mais alaguem as casas”.

O GRANDE AFLUENTE Ao longo da Avenida Professor Francisco Morato, no Morumbi, Zona Sul da capital paulista encontravam-se os mais diversificados comércios e seus trabalhadores, numa tarde agitada de terça-feira, mesmo que fora do horário de pico. O Rio Pinheiros, poderoso e desinibido, apressava-se em levar seus parasitas, os insetos típicos do verão paulistano, para o mais longe possível — o Rio Tietê. Ainda que conectados, os dois fluviais apresentam diferenças de grande estranheza para os desatentos, que compreendem os afluentes pelos bairros que os cercam. Apesar de situado em uma área nobre da cidade, o Rio Pinheiros, naquele dia, portava mais resíduos sólidos que seu coligado. Era uma tarde de ventos fortes quando

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

7


KAROLINA BERGAMO

nossa equipe adentrou os bairros fronteiriços Morumbi e Butantã. Nas ruas, o cenário era outro. Não havia moradores apreciando a paisagem, afinal, a região é rica em escritórios, distribuídos em dezenas de prédios altos e espelhados. Por meio de um guarda de rua, conhecemos um casal que vive no bairro do Butantã há 53 anos: José Sérgio Toledo Cruz, economista e advogado, 82, e a esposa, Maria Ivone Toledo Cruz, professora de matemática, 80, ambos aposentados. Membro da Associação Comercial do Butantã e da Associação Amigos do Bairro, José Sérgio ressalta que coordenou uma reunião na Universidade de São Paulo (USP) com o objetivo de resolver uma questão que assombra os que vivem na região: o Córrego Pirajuçara. Ao desaguar no Rio Pinheiros, o Pirajuçara trazia enchentes e mau cheiro para a área. Há 15 anos, a batalha do aposentado e de seus vizinhos foi vencida com a canalização de parte de sua correnteza. Já em relação à limpeza do rio, o economista e advogado diz que o resultado depende de uma ação do governo e destaca que o setor industrial é o principal responsável pela sujeira. Hoje, ele diz que deve contentar-se com o “mal estar do rio Pinheiros”, queixando-se do aumento da poluição, que atrai mosquitos para a região. O mesmo incomoda Marina Pereira: professora de piano aposentada, de 74 anos, e há 36 residente do bairro, ela diz enfrentar um combate diário contra pernilongos em sua casa, usando como arma quatro tubos grandes de inseticida. Apesar dos infortúnios, a pianista tem o Rio Pinheiros como amigo desde a infância. Ela lembra, ainda, que sua

8

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

mãe lavava roupas às suas margens e refere-se a ele com nostalgia da juventude: “A água era um cristal. O fundo da casa dos meus avós terminava bem em frente ao rio, onde tinham árvores de frutas e as crianças brincavam”. Na área residencial do Butantã, ainda perto da Avenida Francisco Morato, encontra-se um estabelecimento que se destaca por uma fachada encantadora: casa térrea, com portas de vidro e um jardim decorado com estátuas. Trata-se do salão administrado por Paulo Machado Souza Filho, cabeleireiro de 53 anos que há 25 mora e trabalha no bairro. Ele ressalta a beleza do Pinheiros, apesar de, como muitos dos entrevistados, reconhecer que traz problemas: “Não dá pra pensar muito, se não você se decepciona”. Sobre a questão do saneamento clandestinos, Paulo preza a análise antes do julgamento de quem faz parte dessa estrutura, afirmando que “cada caso é um caso.” No entanto, assim como José Sérgio, considera duvidoso o destino dos esgotos, mesmo para quem conta com sistema sanitário. Por fim, conhecemos uma “paulistana da gema”, como ela se define: Maria Lúcia Campos, 68 anos, mora há 10 no Morumbi, é professora de inglês e português para estrangeiros e blogueira nas horas livres. Maria Lúcia mostra uma visão apaixonada pela cidade de pedra e seus bebedouros: “Eu persigo o rio e ele me persegue”, brinca. A professora, que diz dar preferência ao transporte público no cotidiano, sugere que São Paulo adote o transporte fluvial como alternativa ao trânsito e à superlotação. Ela lembra que algumas

das grandes civilizações da história, como a egípcia, próxima ao Rio Nilo, surgiram a partir dos fluviais, muito úteis para o comércio. Maria Lúcia ressalta, ainda, sua admiração por grandes fluviais da Europa, como o Tâmisa, de Londres, e o Sena, de Paris, sonhando que um dia o Pinheiros irá se orgulhar de ter história semelhante.

RAÍZES DO PROBLEMA Vanderli Custódio, professora especialista em Urbanização e Políticas Públicas do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, explica as origens da poluição dos rios desde o início, com a chegada da Light Company, empresa de energia que se instalou no Brasil no final do século 19. Para aumentar a produção de eletricidade, a companhia inverteu o curso do rio Tietê, que nasce em Salesópolis, interior de São Paulo: “A empresa foi até Santana do Parnaíba, onde fica a jusante do rio, e criou uma barragem de geração de energia, alterando o nível do Tietê e o regime hidrológico”. Depois da construção do reservatório Guarapiranga, foi construída a Represa Billings, abastecida com a água do Rio Pinheiros, que fazia o percurso da Serra do Mar até o Tietê, que também foi revertido. “Foi criada uma usina de tração com sistema elevatório, que bombeia toda a água do Pinheiros para cima, fazendo o movimento contrário. Assim, a água que subia a serra entrava no Tietê, voltava para o Pinheiros e enchia o reservatório Billings”, explica a professora. A energia produzida nas regiões favoreceu a industrialização da Baixa-

O Rio Pinheiros é margeado pelos bairros fronteiriços Butantã e Morumbi


da Santista e da Região Metropolitana de São Paulo, locais que concentravam residências, produção de energia, bondes elétricos e transportes de linha comum. Com isso, a cidade foi crescendo e produzindo esgoto descontroladamente. “De toda a água que entra em uma residência, 99% sai com dejetos. Por que se preocupar com o destino se este auxiliava, naquela época, um escoamento de necessidade primária?”, questiona a professora. “No começo do projeto de produção energética e maior desenvolvimento urbano e de seus moradores, foi nítida a falta de planejamento e pensamento ecológico”, ressalta. Após o início dos trabalhos da Light na capital paulista, na década de 30, o engenheiro Prestes Maia escreveu artigos que defendiam a construção de um plano de avenidas na cidade de São Paulo, que compreendesse a criação das marginais, circundando os principais rios da região. Em 1938, o presidente Getúlio Vargas indicou Prestes Maia para a prefeitura de São Paulo, cidade que governou até 1945, facilitando, assim, a execução do projeto, que consistiu no tamponamento de cursos d’água e na retificação dos rios. Naquela época, o conceito de urbanidade passava pela proposta de grandes vias que se tornassem artérias da metrópole, conduzindo a maioria de seus moradores por quilômetros de concreto. Mal sabiam os arquitetos que essas obras, realizadas ao lado das margens dos principais rios da cidade, destruiriam aquilo que um dia lhes era tido como uma imponente via fluvial.

modelo

europeu Na teoria, é simples: basta tratar a água e isolar os esgotos. Na prática, a despoluição dos rios Tietê e Pinheiros é um dos grandes desafios ambientais do Governo do Estado de São Paulo. A comparação é inevitável: um dos rios mais famosos da Inglaterra, o Tâmisa, chegou a ser conhecido como “o grande fedor” e causou suspensões de sessões do Parlamento inglês por conta do mau cheiro. Hoje foi despoluído e os turistas que visitam Londres podem passear de barco sem incômodos. O mesmo aconteceu com o Reno, que cruza grande parte da Europa, da Suíça à Holanda, e conseguiu ser tratado por um esforço conjunto de governos dos países que banha. Por que o mesmo não é possível com o Tietê? Uma das principais causas é o esgoto doméstico da região que, segundo os moradores, é despejado no rio por defasagem no saneamento básico. Além disso, há o lixo comum jogado na ruas, que acaba chegando ao Tietê por meio de afluentes.

O rio inglês Tâmisa conhecido anteriormente como o “grande fedor”, hoje é um famoso ponto turístico da região

WIKICOMMONS

UGO SARTORI

UGO SARTORI

Vanderli Custódio, professora de Urbanização da USP, explica as origens da poluição dos rios de São Paulo Maria Lúcia Campos mora no Morumbi e defende que São Paulo adote um sistema de transporte fluvial

UGO SARTORI

Eduardo Vasconcelos, morador da Vila Maria há 10 anos, já sofreu perdas com as enchentes na região

CAMINHOS DA ÁGUA Ao longo desta edição da Revista Esquinas, o leitor vai acompanhar os estágios de purificação da água, do esgoto à potabilidade, e algumas curiosidades, sempre na última página de cada matéria.

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

9


ATUALIDADE

caos

cidade do

Anunciada desde 2003, a falta d’água que atinge a vida dos paulistanos não tem solução imediata REPORTAGEM BRENO ZONTA, JOÃO PEDRO SIQUEIRA, MARIANA ZONTA D’ÁVILA (1º ano de Jornalismo), GUILHERME GUERRA e LAÍS FRANKLIN VIEIRA (2º ano de Jornalismo) IMAGEM MARIANA ZONTA D’ÁVILA (1º ano de Jornalismo)

O ANO DE 2014 foi marcado por polêmicas: Copa do Mundo, eleições presidenciais e manifestações foram temas recorrentes nas manchetes dos jonais brasileiros. Porém, um ano depois, um assunto permanece em pauta: a crise hídrica da região Sudeste. Após uma temporada de estiagem, o nível dos reservatórios baixou tanto que, em maio de 2014, o Sistema Cantareira, o maior entre os que abastecem São Paulo, passou a operar com a água do chamado “volume morto”. Em um país culturalmente acostumado com abundância de recursos naturais, a notícia pegou muitos de surpresa, apesar de estar prevista desde 2003. Não faltam teorias sobre as possíveis causas da crise, mas as soluções ainda parecem nebulosas. Os problemas começaram a aparecer no início de 2014: em janeiro, a Cantareira recebeu apenas 88 milímetros de chuva, quando a média do mês é de 260. Além disso, o nível pluviométrico chegou a 8,2% da capacidade, quando foi usada a primeira cota do volume morto — ou reserva técnica, em maio do mesmo ano. As autoridades têm proposto ações a curto prazo, que não comprometam os cofres públicos, como, por exemplo, descontos para desestimular o uso de água. Embora a prática de racionamento não tenha sido oficialmente divulgada, a população afetada pela medida afirma

10

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

não ter acesso à água durante os períodos da noite e da madrugada.

CUSTO POPULACIONAL Desde o início dos registros pluviométricos, em 1930, somente a seca de 1953 pode ser comparada à que vivemos no período atual. Porém, na época, a capital paulista abrigava 3,5 milhões de pessoas; hoje, são mais de 30 milhões distribuídas em 180 municípios. Devido ao crescimento populacional, foi criado, em 1974, o Novo Sistema Cantareira, cujos seis reservatórios abastecem, pelo menos, 8 milhões de habitantes no estado de São Paulo. Outros sete reservatórios ainda contribuem na produção de água da região metropolitana, no entanto, a fragilidade dos complexos foi colocada à prova em 2003, quando uma estiagem baixou o nível da água. Desde então, especialistas têm apontado a necessidade da construção de um novo sistema de abastecimento compatível com a população que sustenta. Júlio Cerqueira Neto, engenheiro especialista em túneis e barragens e membro do Conselho de Meio Ambiente da Federação de Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), afirma que, em 2003, a água disponível já era insuficiente: “O consumo era de 68 milímetros cúbicos por segundo e a disponibilidade era menor, de 66. Em 30 anos, são 10 milhões de pessoas a mais

e a disponibilidade do recurso é a mesma”, expõe. Para o engenheiro, a construção de novos depósitos amenizaria a escassez, considerando que a captação das águas da chuva seria mais eficiente, mas, “mesmo assim, a crise continuaria, já que não haveria reservatórios suficientes para todo mundo”. Outro aspecto que poderia diminuir os efeitos da crise hídrica é a troca dos canos subterrâneos danificados que causam vazamentos. “Esse desperdício é consequência da precariedade do sistema de saneamento que temos hoje. A perda durante a distribuição é de quase 30%, um dado brutal”, conclui Cerqueira Neto. Quando o assunto é abastecimento, a Agência Nacional de Águas (ANA), órgão federal fundado em 2000, propõe mudanças estruturais imediatas na região metropolitana de São Paulo, que custariam pelo menos quatro bilhões de reais aos cofres públicos. Porém, visando conter futuras crises, o investimento subiria para seis bilhões, incluindo conexões a sistemas integrados, construções de novos mananciais e adequação aos sistemas existentes. Para Camila Pavanelli, psicóloga e criadora da página Boletim da Falta d’Água, a ANA, apesar de sugerir boas ideias, erra ao conformar-se com a situação, enquanto deveria ser mais proativa. Ela questiona se não seria função da Agência, por exemplo, impor


seca histórica 1930

A maior crise hídrica da história: o Antigo Sistema Cantareira tem vazão da água com média anual de 39,44 m³/s

1953 Crise no Antigo Sistema Cantareira: vazão média chegou a 24,5 m³/s

1974

Entra em operação o Novo Sistema Cantareira, com capacidade para tratar 4,5 mil litros por segundo e abastecer 60% da população paulista

1990

Um rodízio de abastecimento de água afeta a Região Metropolitana de São Paulo

1994

Crise e dívidas na Sabesp: rodízio de abastecimento de água afeta 5 milhões de pessoas na Região Metropolitana de São Paulo e só tem fim em 1998

2004

sanções à Companhia de Saneamento Básico de São Paulo (Sabesp). Pavanelli faz questão de ressaltar, ainda, como é importante que os meios de comunicação se esforcem para reportar o problema de forma mais precisa à população. Por exemplo, se o aumento no volume das chuvas for noticiado sem contextualização, corre o risco de não ser corretamente interpretado pelo público, provocando comodismo. Para a criadora do Boletim da Falta d’Água, não há dúvidas de que é necessário relatar tais aumentos, porém sem deixar de relativizar a questão de forma mais ampla. A Sabesp anunciou desconto na tarifa para quem gastar menos água e multas para quem aumentar o uso. Apesar de impulsionar a economia doméstica do recurso, quem mais gasta são os setores da indústria e agricultura, incentivados a consumir graças a acordos com a Companhia — de acordo com a reportagem “Em plena crise hídrica, Sabesp ainda premia grandes consumidores”, publicada pelo jornal El País em fevereiro de 2015.

CRISE DE OPORTUNIDADE De acordo com o Plano Diretor de Recursos Hídricos da Bacia Piracicaba/Jaguari, o desmatamento e a falta de saneamento básico também interferem no desenrolar da crise hídrica. O documento reforça a ideia de que a ocupação rural, urbana e industrial dos arre-

dores dos reservatórios acontece sem o devido planejamento, acarretando a degradação do solo e, consequentemente, em impactos negativos para a qualidade e quantidade da água afluente ao Sistema Cantareira. Além disso, segundo a ONG Trata Brasil, apenas 52% do esgoto é tratado na região metropolitana de São Paulo, o que colabora para a contaminação dos mananciais, devido ao descarte irregular de lixo, coliformes e agrotóxicos de plantações próximas às nascentes. Lifeng Li, diretor do projeto internacional Água Doce, da World Wide Fund For Nation (WWF), acredita que a China tem muito a ensinar para o Brasil. Experiente em enfrentar problemas hídricos, como a enchente no rio Yangtze, em 1998, o governo chinês implementou novas políticas relacionadas à água para evitar o risco de inundações no futuro. O diretor é otimista: ele vê no momento de seca uma oportunidade para os setores público e privado elaborarem soluções e repensarem sobre a relação do país com a água. Para ele, precisamos de liderança governamental e colaborações do Estado com o empresariado para superar a crise. A lógica é simples: se a finitude da água é uma questão urgente, todos devem estar inseridos nesse debate. “A água não vem da torneira, vem do sistema hídrico”. E conclui: “Se nós não tomarnos conta da água, ela não cuidará de nós”.

GRADEAMENTO Remoção de sólidos grosseiros, utilizando grades de ferro. O intuito é proteger outros dispositivos do sistema, como as bombas e as tubulações.

Um documento do Departamento de águas e Energia Elétrica do Estado (DAEE) aponta, pela primeira vez, a insuficiência do Cantareira

2014

Surge uma nova crise: a Sabesp começa o sistema de recompensa para consumidores que reduzirem o uso doméstico e usa, pela primeira vez, duas cotas de volume morto

2015 Governo do Estado admite que existe racionamento de água e o Comitê anticrise estima que o Sistema só poderá ser completamente recuperado a partir de 2016

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

11


URBANIZAÇÃO

sob o

ASFALTO

A cidade tentou escondê-los, mas os rios invisíveis de São Paulo continuam se fazendo presentes no mau cheiro e nas enchentes REPORTAGEM GABRIEL MORENO, GIOVANNA MERCADANTE, JULIA VIZOTTO, LEILA MACIEL, SARA FERRARI, STEPHANIE SHIH (1º ano de Jornalismo) e ALINE TAVARES (2º ano de Jornalismo) COLABORAÇÃO BRENDA ZACHARIAS e DÉBORA ROMANINI (1º ano de Jornalismo) IMAGEM STEPHANIE SHIH (1º ano de Jornalismo)

NO INÍCIO DO século 20, os paulistanos viviam em uma cidade entrecortada por riachos e córregos e dividiam o espaço das ruas com as águas correntes. Porém, ao longo das décadas, com as ideias desenvolvimentistas ganhando força, parte dos recursos naturais disponíveis na capital paulista desapareceu — entre eles, os rios. Hoje, a maioria dos cursos de água sofre com a poluição ou encontra-se escondida metros abaixo das principais ruas e avenidas. Em todas elas, circulam, diariamente, milhares de automóveis e muitos de seus motoristas não têm ideia do que está sob eles. O crescimento instantâneo e ininterrupto, baseado na ideia do progresso, atropelou os empecilhos que a natureza apresentava. “A primeira intervenção na bacia hidrográfica aconteceu no Rio Tamanduateí, por volta de 1851, quando os princípios sanitaristas foram colocados em prática em prática”, ex-

18 ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

plica Odette Seabra, professora de Geografia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Com o aumento populacional, ainda no século 19, vieram os surtos de doenças ligadas à precariedade do sistema sanitário, fazendo necessária a criação da Comissão de Saneamento do Estado de São Paulo. “Os médicos detectavam os problemas de saúde gerados pelos rios e suas más condições e os engenheiros projetavam as obras”, completa. Na mesma época, surgiram duas outras propostas de intervenção do curso dos rios, formuladas pelos engenheiros Saturnino de Brito e Ulhôa Cintra. A do primeiro, no entanto, não se concretizou: Brito se preocupava com a estética urbana e previu a regularização do rio Tietê acompanhando o seu curso original. Conforme explica Gabriel Kogan, arquiteto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP especialista em

recursos hídricos no espaço urbano: “Brito sabia que não bastava resolver a drenagem e o abastecimento, mas sim, pensar questões relacionadas a lazer e energia, de forma integrada”. Porém, Kogan ressalta que o projeto ainda partia da ideologia desenvolvimentista do período: “Retificar os rios é típico de uma lógica industrial”. O arquiteto Ulhôa Cintra, por sua vez, teve sucesso com o Plano de Avenidas, em parceria com o engenheiro Francisco Prestes Maia, na época, chefe da Secretaria de Viação e Obras Públicas da Prefeitura de São Paulo. A retificação dos cursos de água se iniciou na década de 40. “Canalizamos os leitos menores dos rios para dar lugar às avenidas; 65% da metrópole se encontra nos leitos maiores”, comenta Alexandre Delijaicov, também arquiteto da FAU-USP. Para ele, esse trabalho foi resultado de uma visão de urbanismo voltado para interesses aquém


do benefício público e, como resultado, apresentou apenas malefícios. Dentre eles, o principal é a poluição difusa, grande parte proveniente dos escapamentos dos automóveis, que ganharam prioridade. “Essa visão mercantilista e rodoviarista nos fez construir uma cidade para os carros, e não para os pedestres”. Vale ressaltar, também, que a retificação de leitos não é a única vilã desse conflito: “Canalizar não é o problema. O erro é deixar os rios contaminados e sem utilidade”, afirma Delijaicov. As frequentes enchentes na cidade, portanto, raramente são associadas a problemas estruturais. Kogan explica: “Hoje em dia, o approach principal para as inundações é conviver com elas. Você chega à conclusão de que é impossível evitar inundações, e é verdade”. Os alagamentos são inevitáveis, mas não imprevisíveis: “As estruturas e as cidades são desenhadas de forma que a água

não suba, e mesmo quando o volume aumenta, você consegue conviver”. Não faltam opções para tentar reverter essa situação. Para Ana Moni, coordenadora e professora do curso de Engenharia Hídrica da Universidade Federal de Itajubá (UNIFEI), as soluções a curto prazo envolvem desde alertas em casos de emergência até a construção de casas de palafita: “Não significa que você não possa viver em áreas de enchentes, mas há obras específicas para isso”. A coordenadora sugere, ainda, medidas estruturais, como a construção de diques (represas) para conter a água. Já para Kogan, melhorar o sistema de esgotos deve ser prioridade: “Saneamento e abastecimento são dois lados da mesma moeda. O começo básico é expandir as políticas de tratamento de esgoto.” Outra sugestão vem do Colégio Guilherme Dumont Villares, escola sede da rede

Unesco, que desenvolveu um projeto de revitalização dos rios de São Paulo. Os alunos são responsáveis por fazer um levantamento histórico de um riacho ou córrego em questão e verificar a qualidade da água, do local até a nascente. “Os estudantes do terceiro ano do Ensino Médio, de posse dessas informações, elaboraram uma proposta para que os órgãos públicos responsáveis possam agir”, explica a diretora, Angela Perez Fonseca. A ideia teve sucesso e, hoje, se multiplica em 39 outras escolas da rede — cada uma realiza o trabalho no córrego mais próximo de sua região. Dentre essas possíveis medidas, contudo, poucas foram discutidas pelos órgãos administrativos ou reivindicada por uma parcela da população. A água é naturalmente insípida e inodora, mas, para os paulistanos, é tão incolor que torna-se invisível ao planejamento urbano.

DECANTAÇÃO PRIMÁRIA Remoção do resíduo sólido sedimentar dos esgotos e gorduras flutuantes, de modo a torna-los aptos a serem submetidos ao tratamento secundário.

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015 19


ESPECIAL

crise

Em meio à seca e protestos, a cidade de Itu se tornou o símbolo da crise hídrica no estado de São Paulo REPORTAGEM BEATRIZ ISSLER, HELENA PACHECO, NATÁLIA KOYAMA, RAÍSSA VELTEN, WAGNER LAURIA JR (1º ano de Jornalismo), JENIFFER MENDONÇA, LARISSA ROSA e ANTONIO BALBI (2º ano de Jornalismo)

12

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

LARISSA ROSA

saldo da


EM TUPI-GUARANI, Itu significa “queda d’água” ou “cachoeira” e a cidade já foi conhecida como o município mais rico do estado de São Paulo, por ter abrigado barões do café e outras grandes autoridades do país no período colonial. O lugar é símbolo turístico, conhecido como a cidade dos exageros, onde objetos como um orelhão ou um jogo de xadrez interativo chegam a alcançar a copa das árvores nas principais praças, como a dos Exageros, na região central. Durante 2014, contudo, Itu ganhou visibilidade e por seu estado hídrico alarmante. A água, tão banalizada no cotidiano da cultura brasileira, mostrou-se essencial quando parou de jorrar das torneiras. No decorrer de 2014, os ituanos precisaram se acostumar com uma nova rotina de banhos de caneca e incertezas, da qual nenhum cidadão saiu ileso: bairros ricos e pobres, comércio e poder público foram desestabilizados pelo problema. Moradores passaram a formar filas quilométricas ao redor de bicas e córregos, submetendo-se, inclusive, ao consumo da água insalubre de brejos; caminhões-pipa precisaram ser escoltados por segurança e as ruas do município foram palco de reivindicações populares que trouxeram notoriedade nacional para o problema. A cidade se tornou símbolo da crise de água que ainda afeta o estado de São Paulo. Buscando entender as consequências do mais recente período de seca, uma equipe de reportagem da Revista Esquinas foi até a cidade de Itu ouvir cidadãos, especialistas e autoridades sobre o assunto.

PROBLEMA SECULAR As atenções foram voltadas para o município e todos os ituanos sentiram na pele as dificuldades de uma crise hídrica. Isso criou uma expectativa de que, após o anúncio ofi-

cial do fim do racionamento, em dezembro de 2014, houvesse uma consciência positiva e que esclarecimentos do poder público fossem feitos sobre a questão. Entre os meses de fevereiro e março de 2015, a situação se normalizou, no entanto, o debate entre movimentos sociais parece ter esfriado e a população, regredido ao conformismo. O que poucos parecem perceber é que Itu apresenta um histórico secular de falta d’água e, assim, o caso de 2014 não foi isolado e não há garantias de que a crise foi vencida. O geógrafo ituano Murilo Rogério Rodrigues, pós-graduado em Geografia Física, Climatologia e Hidrologia pela Universidade de São Paulo (USP), dedicou-se ao estudo das questões hídricas do município em sua dissertação de mestrado, A escassez de água para abastecimento público e seus reflexos socioeconômicos no município de Itu, publicada em 2008. Murilo, que ainda reside na cidade e, atualmente, leciona no Colégio Divino Salvador, na região central, conta que o tema foi o que desencadeou sua escolha profissional: “Eu não aceitava a desculpa

oferecida pelo poder público de que a falta de chuvas era o problema”, explica o professor. De acordo com ele, os primeiros relatos de falta d’água na região datam de 1780. Localizada a 102 quilômetros da capital paulista e margeada pelas águas poluídas do Rio Tietê, a cidade de Itu apresenta sete bacias hidrográficas que abastecem a população. Córrego São José, Córrego Gomes, Córrego Braiaiá, Ribeirão Taquaral, Ribeirão Pirapitingui, Ribeirão Varejão e Ribeirão Itaim compõem essa lista, além dos poços artesianos para captação profunda, que somam mais de trezentos instalados por todo o território, segundo uma nota divulgada em agosto de 2014 pelo Ministério Público do Estado de São Paulo. Embora a atual fornecedora de água do município e instituições particulares, como o colégio onde Murilo trabalha, priorizem o armazenamento em poços artesianos, o professor salienta que não se trata de uma estratégia plausível a longo prazo. O principal obstáculo é a baixa quantidade de águas subterrâneas para o consumo diário, pois “o lençol freático diminui e demora de duzentos a trezentos anos para se recompor”, explica o geógrafo, sendo esta uma solução para situações emergenciais apenas. “A crise não é culpa da falta de chuva, mas da má utilização do recurso, o que é muito diferente”, frisa Murilo. Apesar do índice pluviométrico na região continuar alto durante o verão, de outubro a março, o principal problema destacado pelo geógrafo é o armazenamento de água durante o período de estiagem: outono e o inverno. A cidade já passou por crises similares à de 2014 em 1999 e 2001. Desde 2007, os serviços da concessionária de iniciativa privada Águas de Itu ocupou a atuação do antigo distribuidor, o Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE), responsável estatal

BEATRIZ ISSLER

A Praça dos Exageros, na região central, é conhecida como um dos ícones da cidade


LARISSA ROSA

Jorge Alexandre, dono de uma loja de materias para construção, destaca a alta procura por caixas d’água na cidade

desde 1970. Todavia, de acordo com Murilo, “a parte técnica não evoluiu junto com a demanda. Há falta de um projeto que a cidade nunca teve em relação ao recurso hídrico”. Por conta da situação alarmante e dos protestos populares, foi criado, em setembro de 2014, o Comitê de Gestão da Água, a fim de monitorar, amenizar e proporcionar soluções para a crise. O coronel Marco Antônio Augusto, secretário municipal de Segurança e Transportes e porta-voz do órgão, pontua que a incumbência do problema se deu pelo esgotamento hídrico dos mananciais. Com o baixo nível de chuvas entre setembro de 2013 e março de 2014 e a antecipação da estiagem prevista para os meses de maio a agosto do mesmo ano, os reservatórios não conseguiram prorrogar o fornecimento de água. “Quando chegamos em fevereiro, a concessionária fez um documento para a Agência Reguladora, que é representante da Prefeitura, e propôs o racionamento de três dias. Então, perceberam a necessidade do prefeito fazer um decreto. A situação estava realmente anormal porque já não tinha mais água em outros municípios”, explica o secretário.

14

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

CALAMIDADE PRIVADA Embora o Ministério Público tenha expedido uma Ação Civil solicitando um “decreto de situação de emergência ou de calamidade pública”, o coronel justifica que a medida não foi seguida por conta das alternativas proporcionadas pela servidora. A Águas de Itu passou a importar o recurso via caminhões bitrens, transporte que suporta carga líquida equivalente a 60 mil litros. As viagens totalizavam cerca de 6 milhões de litros do recurso, provenientes de outros municípios, como Sorocaba, Ilhas Fausto e Votorantim, para serem injetados nos reservatórios. Além disso, a Prefeitura confiscou parte dos trinta poços artesianos da Brasil Kirin para fornecimento direto à população, já que a empresa de bebidas predispõe de estação de tratamento próprio. Além disso, houve solicitação para a interferência do governo do estado que, por meio de um convênio com uma empresa de caminhões-pipa, concedeu 2 milhões de reais em transporte de água, correspondente a dois meses de fornecimento após um dos protestos realizados no mês de setembro em frente à Câmara Municipal de Itu. “A cidade gasta, diariamente, setecentos

litros de água por segundo, sendo quinhentos na região central e duzentos no bairro de Pirapitingui, principal manancial de abastecimento. Onde faltou água? Nos bairros altos, que passaram a ser alimentados pelos caminhões-pipa das 6h às 22h”, salienta o secretário, acerca do decreto do racionamento hídrico. Ele frisa, ainda, que condomínios situados em bairros baixos não chegaram a sentir a crise por conta da alta pressão da água e da aquisição de poços artesianos. O mesmo Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE) do Estado de São Paulo outorgou a promoção de obras para captação de água nos Ribeirões Mombaça e Pau D’Alho, que ficam no extremo sudeste da cidade, próximos a São Roque e Cabreúva, respectivamente. A medida foi tomada a fim de reforçar em cerca de trezentos litros do recurso por segundo a Primeira Estação de Tratamento de Água (ETA1) para os mais de 100 mil habitantes da região central. A ideia, segundo Murilo Rodrigues, é antiga e viável em longo prazo. Porém, não deve atender o cronograma previsto pela Prefeitura, que prevê o início do funcionamento para dezembro de 2015. As principais dificuldades apontadas, tanto pelo


professor quanto pelo secretário, são a insalubridade da água e a distância do curso, que passa por áreas rurais e privadas e está a cerca de 20 quilômetros da Estação de Tratamento. A previsão de entrega da obra, segundo Marco Antonio, era fevereiro de 2015. Porém, por conta do excesso de chuvas em novembro do ano anterior, cerca de 350 mililitros, de acordo com dados do Pluviômetro Instalado na Região do Bairro Rancho Grande, zona rural ituana, a ação foi adiada.

SOLUÇÃO CASEIRA No balcão da loja de materiais para construção em que trabalha, no mesmo bairro, Jorge Alexandre escutou as mais variadas narrativas sobre os efeitos da escassez. O estabelecimento que, entre outros produtos, vende caixas d’água, mangueiras, canos e bombas submersas, teve suas vendas multiplicada durante os meses de seca. O comerciante conta que o primeiro item foi o mais vendido, com demanda de oito a dez entregas diárias, e precisou ser trazido da Bahia por um caminhão, em uma viagem que durava de 15

a 20 dias. Apesar disso, o preço do produto não aumentou, já que houve um consenso por parte do fabricante, segundo o comerciante, pelo acesso restrito à aquisição da mercadoria, muito procurada no mercado. Durante algum tempo, uma lista com mais de trinta nomes à espera da chegada de caixas d’água compôs o cenário da loja. Embora a alternativa seja um meio paliativo, condomínios como o Campos de Santo Antônio, de classe média alta, não economizaram: “Até o lago do condomínio secou. Os moradores de lá vinham comprar caixas para fazer um sistema que levasse água aos andares mais altos. Foram 30 dias sem o recurso”, conta o vendedor, ao ressaltar que o bairro, que dá nome ao conjunto de apartamentos, situa-se num território baixo, dificultando a transposição hídrica por conta da pressão nos encanamentos. Além disso, os condôminos de áreas mais privilegiadas da cidade se uniram para pagar um caminhão-pipa que enchesse todas as reservas adquiridas. A caixa d’água mais em conta da loja era vendida

por 190 reais, e o quite todo, apelidado pelos clientes de “Kit Tuíze” (em referência ao apelido do prefeito Antônio Luiz Carvalho Gomes), que continha a caixa, mangueira, bomba e braçadeira, custava aproximadamente R$ 400. Em contrapartida, grande parte dos ituanos, sobretudo aqueles dos bairros mais periféricos, não puderam desfrutar das formas encontradas de driblar a seca. Solange Rossilva Taíde, dona de casa de 54 anos, divide um imóvel alugado no bairro Jardim Aeroporto, há dois anos, com dois filhos e três netos. Sua família foi uma das que não tiveram condições de comprar uma caixa d’água e viveu o período de seca da forma mais intensa possível. Ela descreve que, mesmo com o término da escassez há meses, a água ainda sai suja de sua torneira, trazendo uma enorme quantidade de cloro em seguida. Além disso, moradora da cidade há mais de 30 anos, Solange enfatiza que o período para encher os baldes era curto, pois a água “chegava às 2h e acabava às 5h da manhà”. Mesmo com a Prefeitura colocando à disposição caminhões-pipa para

HELENA PACHECO

O Córrego Taboão, na Avenida Dr. Otaviano Pereira Mendes, nasce no bairro Vila Leis e atravessa a cidade de Itu

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

15


o abastecimento da população, a dona de casa confessa que costuma ferver o líquido antes de consumi-lo, por receio à origem do recurso. No dia que antecedeu a visita da equipe de reportagem da Revista Esquinas ao bairro, a Solange havia se deparado com um líquido marrom barroso saindo das torneiras.

UNIDOS PELA ÁGUA

HELENA PACHECO

O município, que tem como frase de boas vindas “Jesus é o Senhor da cidade de Itu”, havia sido palco de uma procissão de fiéis organizada na Igreja da Candelária, em julho de 2014, com intuito de clamar por chuvas. No entanto, as reivindicações não se restringiram a São Pedro e as ruas da cidade foram ocupadas por manifestações, cartazes, pichações, pneus queimados e uma pergunta: “Cadê a água?”. Maria Isabel Garção é natural de Moçambique, tem 66 anos e é professora de inglês. Moradora da cidade há 40 anos, ela reconhece no Brasil a sua própria pátria. Apesar de sua aversão declarada a assuntos políticos e de nunca ter participado de movimentos sociais, a professora não pôde deixar de se indignar no momento em que a seca bateu à sua porta. “Quando faltou água na minha torneira, eu fiquei furiosa”, relembra, sobre o início de seu engajamento.

16

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2012

Maria Isabel, que atualmente reside em um hotel chamado Chácara Felicidade, enfatiza que precisou raspar sua caixa d’água por conta da sujeira proveniente no período de racionamento. “Parecia óleo. Tentei entregar aquela água para um lava-jato para não desperdiçar, mas não tinha como virem buscar”, lembra. Com isso, ela foi a manifestações e procurou conhecer moradores envolvidos com a questão hídrica na região. Ela ressalta que o início efetivo de sua atuação social se deu por “uma dessas pessoas [que] me disse que uma amiga sugeriu colar nas portas das casas os cartazes com ‘Itu pede socorro’. Eu disse: ‘Nossa, que legal! Já imaginou se todas as casas tivessem isso?’”. A partir daí, a moçambicana começou a comprar cartazes com a contribuição de vizinhos que passaram a aderir à causa. “Também recolhemos assinaturas para pedir intervenção do governo estadual. A única bica do bairro onde eu morava tinha filas de gente virando o quarteirão”, explica. Na internet, sua página pessoal do Facebook foi uma de suas principais ferramentas para a disseminação de ideias. A professora defende que há nascentes em Itu, mas estão sendo destruídas por soterramento. Por isso, deslocou-se até os locais que se estendem pelas regiões pró-

ximas ao município. Por meio de gravações em vídeo, Maria Isabel visitou, em outubro, a nascente do Ribeirão Mombaça e o do Pau D’Alho, atentando que obras não estavam sendo realizadas no local. Os movimentos sociais costumam dividir opiniões, mas, quando a causa foi a falta de água, um recurso básico, todos se uniram — o que explica os protestos que surpreenderam até o poder público por serem compostos por muitos jovens, mas também, muitos idosos. Maria Isabel afirma ser contrária a qualquer forma de violência, mas concorda com o uso da mesma se for necessária para que as pessoas sejam ouvidas. A professora, inclusive, relata que participou de uma queima de contas de água na porta da Câmara Municipal. “Os sentimentos que vêm por trás da impotência vão da falta de energia à reação violenta. Se não fizer escândalo, ninguém atende”, conclui. Não tardou para que, por conta do recente engajamento, Maria Isabel fosse convidada para ser palestrante na Assembleia Estadual da Água, na Faculdade de Direito de Itu. O evento contou com cerca de duzentas pessoas, dentre setenta entidades, movimentos estudantis e coletivos para debater a questão hídrica na cidade e no Estado de São Paulo.

Andreia Bianchi, ativista, defende que a água seja tratada como um bem público, não como uma mercadoria


ANTÔNIO BALBI

Os sentimentos por trás da impotência vão da falta de energia à violência. Se não fizer escândalo, ninguém vai ouvir Maria Isabel Garção, ativista

Maria Isabel Garção, 66 anos, descobriu o ativismo diante dos problemas hídricos da cidade

Segundo a ativista do coletivo Juntos!, Andreia Bianchi, as principais pautas da Assembleia são tratar a água como um bem público, não uma mercadoria; preservar as áreas de manancial para obtenção de água de qualidade; e transparência das prestadoras de serviços e gestores para a população. Todavia, a ligação das questões levantadas em relação ao governo do estado, segundo Bianchi, é zero. “Existe um comitê, mas ele é bem fechado e também não há possibilidade de participação em uma sociedade civil, mas o governador escolheu quais organizações não governamentais representam essa sociedade”, explica a ativista. Apesar de o Coronel Marco Antonio salientar que o comitê visa transparência e monitoramento constante da pluviometria da cidade, o professor Murilo atenta para a dificuldade de debater sobre a problemática da água em Itu. Não somente com as autoridades responsáveis, mas também com os próprios ituanos: “A população de Itu protestou muito no passado, mas não protesta no presente, porque está tendo água na torneira — até a hora que acabar, e não vai demorar muito para que isso aconteça.”

HISTÓRICO DE LUTA 29/09/2014 Cerca de 400 moradores foram à frente da Prefeitura com faixas, e narizes de palhaço, simulando o sepultamento da cidade. A manifestação aconteceu para pressionar o Município e pedir o decreto do estado de calamidade pública. Na data, bairros estavam sem água há mais de trinta dias. 12/10/2014 Depois de nove meses de racionamento na cidade, houve mais uma manifestação. A estratégia desta vez foi fechar a rodovia, construindo uma barricada de pneus queimados. Os reservatórios da cidade estavam com 2% de sua capacidade total e a prefeitura ainda não havia decretado estado de calamidade pública*.

$

23/10/2014 O Governo do Estado de São Paulo anunciou a verba de 2 milhões de reais para a compra de vinte caminhões pipas para a distribuição de água. A prefeitura ainda não considerava estado de calamidade pública, mesmo depois do Ministério Público reconhecer o estado crítico.

* Calamidade Pública é a constatação legal do poder público sobre uma situação crítica provocada por desastres.

DESARENAÇÃO Remoção da areia por sedimentação a fim de evitar desgaste nos equipamentos e tubulações, eliminar a possibilidade de obstrução em tanques e facilitar o transporte do líquido.

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

17


ROTINA

driblando a

SECA Como a população está lidando com a falta d’água em casa e no trabalho?

REPORTAGEM CAROLINA SERRANO, FIDEL ZANDONÁ FORATO, LETÍCIA FURLAN, MARCELA SCHIAVON, PEDRO PARADA e MATHEUS DE SOUZA OLIVEIRA (1o ano de Jornalismo) COLABORAÇÃO CAMILA GAMBIRASIO, THAÍS LOPES (1o ano de Jornalismo), ANNA MOTA e LAURA MARCHEZINI (2o ano de Jornalismo) IMAGENS CAROLINA SERRANO

CANTAR NO CHUVEIRO, lavar a calçada com mangueira e desperdiçar água foram hábitos abolidos por grande parte da população da região metropolitana de São Paulo, em resposta à seca causada pela crise hídrica. Uma equipe de reportagem da Revista Esquinas acompanhou as mudanças na rotina de algumas pessoas em casa e no trabalho, a fim de mostrar as transformações em seu cotidiano. A economia sempre esteve presente na casa do líder de produção Rosemir Marcos da Silva, porém, com a falta de abastecimento, um sistema de calhas que guarda água da chuva — ideia sugerida por sua sogra, ajuda a família a superar os dias secos. A solução foi pensada depois que sua casa começou a ficar sem abastecimento por períodos de dois a cinco dias. O sistema é simples, mas eficaz: a água da chuva desce por uma calha e é armazenada em uma caixa de 500 litros. Quando não chove, não tem água e os dias sem abastecimento se tornam muito difíceis: “A gente sempre teve água. Como o racionamento era alternado, dava tempo de encher as caixas de um dia para o outro. Agora que acontece em dias seguidos, sofremos mais”. Drama semelhante vive o estudante de Publicidade e Propaganda Muller Silva, que

20

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

vem tentado captar água do chuveiro e da chuva para usar em tarefas domésticas e até mesmo na higiene cotidiana. Outro incômodo é a quantidade de louça que se acumula durante dias e, recentemente, a notícia de que o aluguel ficará mais caro por causa do aumento da conta de água: “A dona da casa onde moro já disse que a Sabesp fez um reajuste nas taxas e ela vai ter que repassar o valor”. Para Muller, o problema da crise é resultado da falta de planejamento na gestão dos recursos hídricos do estado de São Paulo. A estudante mostra-se pessimista em relação aos próximos meses: “Todas as represas encheram, mas não muito, então a tendência, com certeza, é piorar”. O estudante do curso técnico de Administração Lucas Felipe Machado, assim como Muller, também sofre com a falta de praticidade na rotina: ao chegar em casa por volta da meia noite e precisa da “canequinha” para tomar banho, usando a água armazenada durante o dia — afinal, à noite as torneiras já estão secas. Lucas acredita que o governo estadual errou ao não estabelecer uma política rígida de racionamento de água; ele acredita que, com o controle do uso dos recursos hídricos, abastecimento das represas teria sido preservado. Porém,

ele se mostra confiante na recuperação dos níveis de água em cerca de dois anos. Com o armazenamento, a conta subiu, então, o esforço tornou-se ainda maior, como relata Fátima Machado, mãe de Lucas. Ela afirma que utiliza a água da chuva para lavar o quintal e a que sobra do banho na descarga. E complementa, contando que a escassez mudou os hábitos da casa: “Nós estamos nos reeducando e aprendendo com essa nova rotina. Antes, não usávamos a água com sabedoria”. Já para Antônia de Souza Gomes, da cidade de Mauá, a solução foi criar uma cisterna que coleta água da chuva em baldes. “A gente comprou pedaços de canos e a torneira mais barata. Meu filho foi lá em cima e pronto, já estava feito”. A água é utilizada na descarga e na limpeza da casa e isso gerou a queda no valor da conta, que chegou no mês de março a R$32. A família de Antônia chegou a passar finais de semana na seca. A senhora finaliza “Quem quiser a receita é só falar com o engenheiro (genro dela), nós o consideramos um engenheiro da água”, disse. Com ideias simples e eficazes diversas pessoas buscam manter a qualidade de vida em meio à crise hídrica que não tem prazo para acabar.


CHAPÉU

Baldes e garrafas são as principais ferramentas na luta cotidiana contra a falta d’água

Muller e Neuza compartilham como estão passando pelo período de racionamento e redução do fluxo hídrico PENEIRA ROTATIVA Constituída por um tambor filtrante, essa etapa tem como objetivo reter e remover sólidos de tamanho igual ou superior à sua capacidade, do fluxo de água a ser tratado.

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

21


HISTÓRIA

Terra da

garoa Entenda o fim do fenômeno poético que apelidou a cidade de São Paulo

GUILHOME GAENSLY

REPORTAGEM BÁRBARA BARROS, BEATRIZ CARVALHO, BEATRIZ MAGALHÃES, GABRIEL NUNES e GIOVANNA SUTTO (1º ano de Jornalismo) COLABORAÇÃO ISABEL CASSAB (1º ano de Jornalismo), ALANA CLARO, MARINA FELIX e MATHEUS MOREIRA (2º ano de Jornalismo)

46

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2014


FOI NO TOPO de uma colina escarpada, em volta de um colégio jesuíta feito de taipa de pilão, que nasceu São Paulo — tímida e modesta, numa completa antítese à capital das pontes e viadutos que haveria de se tornar com o passar do tempo. As sucessivas mesclas culturais dessa cidade deram os ares à Pauliceia Desvairada que amamos, mas também odiamos. Consolidando-se como a terra da pressa e da velocidade, a capital paulista já foi conhecida como “a locomotiva do Brasil” e como “a cidade que mais cresce no mundo”. São Paulo é a terra das luzes amareladas pelo gás mercúrio, do pão com mortadela no mercadão, do graffitti, das pizzarias de bairro e das padarias de esquina, onde clientes sorvem cafés pingados enquanto mastigam o pão na chapa, sagrado. Mas, talvez, nenhum desses elementos seja tão característico e tão enraizado na cidade quanto a típica garoa. O tempo voou na São Paulo da neblina. Há cerca de 80 anos, os paulistanos conviviam com os bondes (como o da foto ao lado, que retrata a Rua 15 de Novembro, em 1906) que, cruzando as vias sinuosas e ladrilhadas da região central da metrópole, carregavam homens com guarda-chuvas em punho, além dos chapéus e boinas de feltro protegendo-os do chuvisco constante e ininterrupto. Logo, esse transporte deu lugar aos ônibus superlotados, em que os passageiros lutam para fazer caber três pessoas no espaço de uma, e aos congestionamentos homéricos, guiados por motoristas apressados e furiosos. A garoa que fazia São Paulo ser chamada de “a Londres das neblinas frias”, do escritor Mário de Andrade, transformou-se na tempestade que alaga ruas e que se tornou parte do cotidiano paulista. A romântica terra da garoa se trans-

formou, num curto lapso de tempo, na megalópole desordenada dos alagamentos e outras catástrofes climáticas. Licenças poéticas à parte, o que seria, afinal, esse chuvisco que ao longo das décadas vem fomentando o imaginário artístico e popular paulistano? O pesquisador Carlos Nobre, especialista em meteorologia do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), explica que a garoa que, na década de 50, apelidou a cidade de São Paulo, é muito diferente do que conhecemos atualmente. Nobre explica que se trata de uma brisa marinha que vem do oceano, sobe a Serra do Mar e costuma ocorrer no início ou no meio da tarde. Por conta da altitude — São Paulo está situada a 750 metros acima do nível do mar —, esse sopro se condensa e forma uma nuvem, que chamamos de garoa. O que testemunhamos hoje é a evaporação das superfícies desta chuva fina. Algumas pessoas tendem a classificar esse fenômeno, equivocadamente, como smog, que, de acordo com Carlos Nobre, é a “combinação entre névoa e poluição, que acontece quando muitas das gotículas de vapor d’água se juntam aos poluentes emitidos pelos automóveis”. Um dos principais fatores relacionados ao fim dos tradicionais chuviscos em São Paulo são as ilhas urbanas de calor, fenômeno climático que acontece quando a temperatura de regiões centrais metropolitanas é muito maior do que de regiões periféricas. O aquecimento, assim, faz com que as gotas de água evaporem e se desprendam no ar, uma vez que é preciso muito vapor d’água na atmosfera e baixas medições climáticas para que a garoa se forme, não chegando sequer a se materializar. O saudoso chuvisco paulistano foi desaparecendo de maneira

gradual, com a elevação da sensação térmica: primeiro desapareceu no centro para, em seguida, conforme a vegetação foi sendo substituída por asfalto, desaparecer em toda a cidade. Apesar de extinta na capital paulista, algumas localidades próximas a Serra do Mar ainda vivem o fenômeno, como Paranapiacaba, distrito do município de Santo André, localizado na região metropolitana de São Paulo. As temperaturas elevadas, geradas pelas zonas de calor, provocam chuvas intensas que podem causar alagamentos, deslizamentos de encostas e, consequentemente, prejuízos econômicos e vitais. Nos anos 1940, era extremamente raro o paulistano presenciar um temporal com a intensidade que se observa hoje na cidade, explica Carlos Nobre. Pessimista, o pesquisador afirma, ainda, que essa mudança climática é irreversível: “São Paulo nunca mais voltará a ser a terra da garoa.” Uma medida a longo prazo que ajudaria a reduzir os danos causados por essas anomalias é a implementação de mais áreas verdes, entretanto, no caótico quadro atual, essa providência pode levar décadas para mostrar resultados. A garoa morreu em São Paulo e o que resta é apenas uma leve nostalgia de tempos antigos, em tom sépia. Aquele chuvisco fino que lavava a terra de arranha-céus é uma memória desbotada na lembrança da cidade e seus moradores, que ainda respiram e sobrevivem nos versos de Mário de Andrade, nas letras de Inezita Barroso e nas canções de Caetano Veloso. Foi o tempo em que os Novos Baianos podiam caminhar sob a garoa e curtir numa boa. Um tempo em que a garoa manchava as lentes dos óculos de quem passava.

Das chapeleiras às passarelas O chapéu sempre foi mais que um simples acessório: símbolo de status e elegância, sua origem remete à Grécia Antiga, quando eram usados exclusivamente como proteção para a pele e para os olhos. Tornou-se item de reverência e, com o passar do tempo, deixou de ser um apetrecho masculino e formal, conquistando as mulheres e os ambientes festivos. Adquiriram novos formatos, adequando-se às estações do ano. Na cidade de São Paulo, o chapéu era essencial, devido ao clima frio e à garoa, antes frequente. Com a mudança dos costumes e do clima, hoje em dia, restaram somente algumas das lojas tradicionais no centro. Uma das mais antigas da cidade, a Chapelaria Paulista, completou o centenário em 2014.

TANQUE DE AERAÇÃO O tanque de aeração é usado para manter plantas que podem ajudar no processo de limpeza da água, eliminando resíduos poluentes na água.

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

23


INDÚSTRIA LETICIA RICCIO VAZ

futur engarrafad

O

Das nascentes às garrafinhas: conheça a indústria da água, uma das maiores e mais lucrativas do mundo REPORTAGEM JULIA ZAYAS, LETICIA RICCIO VAZ, LUCAS RESENDE TOSO, MARIA LUIZA MISEROCHI, MARIA VITÓRIA RAMOS, RAFAEL RODRIGUES e VICTORIA FRANCO (1º ano de Jornalismo) COLABORAÇÃO LANNA SANCHES DOGO (3º ano de Jornalismo)

24

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015


AMPLAMENTE DISCUTIDO NA filosofia, o conceito de naturalização consiste em aceitar como naturais situações que, na verdade, resultam da ação humana, e como tais, são históricas. Se, a partir de hoje, indústrias resolvessem cobrar pelo ar que respiramos, pareceria absurdo. No entanto, foi exatamente o que aconteceu com a água. Nos anos 1970, com a estagnação das vendas de refrigerantes e a conscientização dos malefícios da bebida, as grandes companhias descobriram um novo meio para obter lucro: a água — que, até então, não era vista como um bem de capital. Como ilustrado pelo documentário The Story of Bottled Water [A história da água engarrafada], de Annie Leonard, o recurso passou a ser engarrafado e vendido em larga escala, seguindo o mesmo processo comercial das bebidas gaseificadas. Diante desse processo, questionamos: por que pagar por um direito básico, que flui das torneiras pronto para o consumo? A primeira batalha dessa guerra não declarada consistiu em criar demanda, alardeando e amedrontando a população quanto à qualidade da bebida fornecida pelo sistema público. Assim, criou-se uma fantasia em torno da água engarrafada. Em conjunto com a indústria propagandista, as grandes companhias seduzem os consumidores ao estampar nascentes repletas de natureza intocada nos rótulos das embalagens. Campanhas como a da Nestlé, que propagam que “água engarrafada é o produto mais sustentável do planeta”, demonstram que essa é uma guerra em que a principal arma é confundir o consumidor. As grandes companhias de refrigerante, portanto, transformaram a água mineral, antes tida como um produto de luxo, em um acommodity mundial, utilizando três estratégias básicas: assustar, seduzir e enganar. O documentário Bottled Life [Vida engarrafada], do suíço Urs Schnell, retrata como o mundo foi persuadido pela ideia de que beber água em garrafinha é cool, mais saudável e, até mesmo, mais sustentável. Atualmente, a taxa média de crescimento do consumo mundial da bebida engarrafada

é de 7,6% ao ano e o Brasil já ocupa o 4º lugar no ranking global de produtores. Segundo a Associação Internacional de Água Engarrafada, a Nestlé, maior vendedora do produto no mundo, é dona de mais de setenta marcas de água mineral e fatura, com esse setor, cerca de 9 bilhões de dólares por ano. Diante dos fatos, é inevitável questionar o funcionamento da chamada indústria da água: como se divide, desde a concessão das nascentes até a distribuição do produto, e quais são as leis que permitem a privatização de um recurso natural básico para a sobrevivência humana. Sérgio Antunes, procurador-chefe do Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE), explica que a permissão das nascentes para a industrialização da água é dada, não vendida: “Toda outorga é, em princípio, de uso exclusivo da pessoa que solicita o direito. Porém, com a autorização do outorgante, é possível transferir os direitos, dessa forma, as indústrias podem explorar livremente”.

NASCENTE DE QUEM? Perante a lei, existem diferentes classificações e jurisdições sobre as fontes e sua posse. De acordo com Antunes, o recurso é federal (ou seja, pertence à União) quando as águas superficiais (rios ou lagos) banham mais de um estado. Em contrapartida, um rio que nasce e morre dentro do mesmo estado, é posse do governo estadual. Assim, para conseguir uma licença de exploração de águas da União é necessária a autorização da Agência Nacional de Águas (ANA); quanto ao recurso que pertence ao governo estadual, a aprovação deve ser concedida pelo DAEE. A Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) é contratada pelos municípios para captar e fazer a distribuição entre os moradores. Para isso, o DAEE é responsável pelo recurso bruto (não tratado) e a Sabesp, pelo tratado. A água mineral, no entanto, não se inclui nessa norma pois é um minério e, segundo a Constituição, bens minerais pertencem à União. “Alguém precisa ser responsável

por todos os recursos hídricos para, assim, controlar do quanto é captado e quanto é gasto”, defende Sérgio Antunes. Hoje, no Brasil, são necessários dezessete documentos para o funcionamento de uma indústria de envasamento de água. Desses, dois são os mais importantes: o Alvará de Autorização de Pesquisa do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), responsável por permitir a procura de áreas exploráveis e seus potenciais, e a Concessão de Lavras (trabalhos e atividades de captação, condução, distribuição e aproveitamento das águas), outorgada pelo Ministro de Minas e Energia (MME), que permite a exploração e comercialização em si. Atualmente, o país conta com 1.073 concessões sendo exploradas, segundo Carlos Nogueira, Secretário de Geologia, Mineração e Transformação Mineral do MME. Não há, porém, restrições quanto ao número de concessões dadas a uma mesma empresa, permitindo que um único grupo, a Nestlé Waters, por exemplo, possua inúmeras marcas no mercado — São Lourenço, Nestlé Aquarel, Petrópolis e Pureza Vital — extraídas de diferentes lavras. Com o objetivo de manter a integridade de uma nascente, porém, o Código de Águas Minerais proíbe a realização de trabalhos subterrâneos abusivos no perímetro de proteção de uma fonte. “A fiscalização da exploração, em todos os seus aspectos, de águas minerais, engarrafadas ou destinadas a fins diversos, deve ser exercida pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM)”, explica o procurador do DAEE. As empresas que exploram o recurso, contudo, também têm suas obrigações. Análises químicas periódicas para verificação da composição da água, assim como exames bacteriológicos, são exigidas quatro vezes por ano. Além disso, a indústria responsável pelo engarrafamento deve dispor de maquinário automático ou semi-automático para o processo de envasamento, de acordo com as normas do DNPM. Por último, quando uma fonte estiver sendo explorada excessivamente, a concessão pode ser interditada até o res-

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

25


LETICIA RICCIO VAZ

A procura por água engarrafada, em tempos de crise hídrica, alavancou a indústria responsável por esse produto

tabelecimento das condições satisfatórias de uso — em casos extremos, a outorga pode ser revogada. “O intuito do Estado e da política de recursos hídricos não é punir ninguém, mas incentivar que tudo seja regularizado para que haja o controle efetivo de toda a água utilizada”, explica Sérgio Antunes. Diferente do que acredita o senso comum, água mineral e água tratada não são a mesma coisa. A primeira contém sais compostos de enxofre e gases, além de manter os níveis naturais de sódio e outros minerais. Porém, durante o envasamento, o recurso mineral recebe substâncias que equilibram o pH e enriquecem suas propriedades, de acordo com adequações definidas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Já a água tratada (ou potável) passa apenas por um processo de purificação, realizado por órgãos especializados em saneamento, com o objetivo de tornar o recurso próprio para consumo. Dados da Associação Internacional de Águas Engarrafadas indicam que o Brasil consome mais água envasada que países como Itália, Alemanha, França e Espanha. Mas nem sempre foi assim: segundo o IBGE, até a década de 90, mais de 70% das casas na região Sudeste do Brasil consumiam água dos filtros de barro. A que se deve essa mudança de hábitos? Segundo o biólogo Carlos Lehn, criou-se um mito em torno da água engarrafada: fomos convencidos de que as embalagens plásticas guardam um produto de qualidade superior ao que chega pelas torneiras, o que não é verdade. Lehn adverte

26

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

que nem todas as marcas de água industrializada são confiáveis, tudo depende, especialmente, da fonte de extração do recurso: “Sabemos que algumas têm uma quantidade de sódio elevadíssima. Isso pode ocasionar o desenvolvimento de cálculo renal ou outra disfunção nos rins”. O biólogo informa, ainda, que a água das garrafas pode não estar livre de componentes químicos como desinfetantes, fertilizantes e resíduos de produtos farmacêuticos. “Além da possível presença desses materiais, o líquido pode acabar contendo partículas plásticas liberadas pela embalagem”, alerta o biólogo. Letycia Janot, uma das idealizadoras do projeto Água na Jarra, que defende o consumo sustentável do recurso, trabalha para a desconstrução dos preconceitos que envolvem a qualidade da água proveniente das torneiras. No entanto, contrariando as observações de Lehn, Letycia não descarta o valor das garrafinhas: “A industrialização tem o seu papel. No caso de emergências, como no terremoto no Haiti em 2010, a água engarrafada foi essencial, já que não havia água potável suficiente”.

DESTINO INCERTO Rios e nascentes estão sendo destruídos; pagamos para receber recursos, muitas vezes, de baixa qualidade. Pouco é discutido sobre a produção e o descarte das garrafas após o consumo da água. Por isso, vale frisar: 80% das embalagens vão para aterros sanitários ou incineradoras, fonte de poluição tóxica; 20% é reciclado, processo que, diferente do


que é propagado, também causa danos ambientais. A extração e produção dos plásticos também são processos problemáticos: a quantidade de garrafas compradas pelos norte-americanos toda semana, enfileiradas, seria capaz de dar a volta ao mundo cinco vezes, de acordo com o documentário supracitado, The Story of Bottled Water. Frente aos dados expostos, a questã parece não ter solução. Segundo relatórios da Organização das Nações Unidas (ONU), mais de um bilhão de pessoas não têm acesso à água limpa no mundo. Combater a poluição, salvar rios e nascentes e cobrar órgãos públicos são medidas urgentes para um consumo sustentável.

TORNEIRAS ABERTAS

Enquanto um bilhão de pessoas não tem acesso à água potável no mundo, segundo a OMS, uma pequena parcela da população é consumidora das chamadas garrafas de grife, envazadas em aquíferos da Nova Zelândia ou cravejadas de diamantes.

$

Bling H2O Conhecida como “água de Hollywood”, o líquido passa por nove processos de purificação e sua embalagem é decorada com cristais. Pode custar até 5 mil reais.

Acqua di Cristallo A água, proveniente de Fiji, na Indonésia, é embalada em uma garrafa feita de ouro e prata e foi leiloada pelo equivalente a 120 mil reais.

Filico A garrafa, ornamentada com cristais, e a tampa, inspirada na coroa usada pelo imperador Frederico II, da Prússia, pode custar o equivalente a 450 reais.

MARIA LUIZA MISEROCHI

Diante do embate entre o setor público e as empresas que comercializam água mineral e filtros purificadores, uma questão acaba em segundo plano: o que, afinal, sai das nossas torneiras? A falta de informações claras, somada às ideias propagadas pelas campanhas publicitárias, confundem os consumidores e alimentam essa indústria. A água utilizada no abastecimento da população passa por diversos tratamentos químicos até atingir o padrão de qualidade recomendado para o consumo, porém, isso não garante que o recurso saia das torneiras nas mesmas condições. Mário Arruda, superintendente de captação de recursos da Sabesp, defende a qualidade da água distribuída pela companhia: “Temos que atender aos mais rigorosos padrões estabelecidos pelo Ministério da Saúde. Todo mundo pode e deve consumir direto da torneira”. “As pessoas acreditam que a água que fornecemos não é suficientemente limpa para beber, quando, na verdade, o problema da qualidade está na frequência de limpeza da caixa d’agua”, acredita. A desconfiança em relação ao que sai das torneiras aumentou quando o volume morto dos reservatórios começou a ser utilizado. O superintendente da Sabesp desmistifica: “Há 43 anos, em Campinas e região, todos que estão abaixo dos reservatórios do Cantareira bebem do volume morto. E não me parece que isso tenha causado mortes”, provoca. A crise hídrica, segundo Sérgio Antunes, está impulsionando ainda mais a indústria da água. Primeiro, por conta da desconfiança em relação à qualidade do recurso captado do volume morto dos reservatórios; segundo, porque dá aos marqueteiros uma nova justificativa para o consumo de água engarrafada. Além disso, diante da situação alarmante, o próprio governo estadual contribui para movimentar esse mercado: em fevereiro deste ano, o governador Geraldo Alckmin reduziu a cobrança de impostos sobre os galões de 10 e 20 litros de 18% para 7%, de acordo com a Secretaria da Fazenda. Além disso, Alckmin incluiu a água mineral na cesta básica. Medidas paliativas como essa nos afastam ainda mais do objetivo estrutural, que é garantir o acesso de todos a um bem primordial para a manutenção da vida.

água de luxo

Sérgio Antunes, procurador chefe do Departamento de Águas e Energia Elétrica, explica a legislação das nascentes

DECANTADOR SECUNDÁRIO Aqui, o esgoto sofre mais um processo de separação. O lodo, que é mais pesado, deposita-se no fundo do tanque, à medida que a parte líquida e límpida, é derramado pelas bordas do tanque e recolhida.

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

27


JORNALISMO

tradutores

DO CÉU Entre conceitos de comunicação, física e geografia, é impossível viver sem o estudo dos meteorologistas REPORTAGEM BÁRBARA GASPAR, ELENA COSTA (1º ano de Jornalismo) e MATHEUS LISBOA (2º ano de Jornalismo) COLABORAÇÃO RAFAELA ARTERO, YULIA SERRA (1º ano de Jornalismo) e CLAUDIA RATTI (2º ano de Jornalismo) IMAGEM BÁRBARA GASPAR (1º ano de Jornalismo)

AO OUVIR A palavra “meteorologia”, muitas pessoas pensam na previsão do tempo em jornais de televisão ou rádio, porém, a profissão explora muito além do que o enquadramento televisivo consegue captar. Segundo o professor Amauri Pereira de Oliveira, especialista em Ciências Meteorológicas da Universidade de São Paulo (USP), a área estuda o estado da atmosfera da terra, com o objetivo de prever o tempo e o clima. E, diferentemente do que imagina o senso comum, há uma distinção entre esses dois termos: o tempo registra o estado da atmosfera em um curto período e em uma localidade específica; o clima é uma condição mais ampla, que se aplica à região analisada e requer estudos mais prolongados, visando colher informações que ajudem a elaborar a média das características da localidade observada. Oliveira explica, ainda, que o estudo dessa área, no Brasil, foi mais efetivo na época do Império, durante o reinado de Dom Pedro II, com a fundação do Instituto Geológico Nacional. Nesse órgão, além do setor de Astronomia, havia pessoas interessadas em entender alguns aspectos sobre o clima e o tempo. As pesquisas eram feitas de manei-

28

2012 ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

ra incipiente e um dos aparelhos utilizados era o barômetro, sensores rudimentares de medição do vento e temperatura. A observação mais técnica do tempo e do clima se deu durante o século 20, com o surgimento de cadeias meteorológicas, distribuídas por todo o território nacional. Posteriormente, elas deram origem ao Instituto Nacional de Meteorologia (INMET) e ao Serviço Meteorológico da Marinha, ligado à Diretoria de Hidrografia e Navegação (DHN). De acordo com o professor, a meteorologia trabalha com um leque enorme de ciências, principalmente com os conhecimentos provenientes da Física e da Matemática, como temperatura, pressão e velocidade. Já a Química, é usada para estudar os componentes da atmosfera, como gases e os processos químicos das reações. Áreas de aviação, agricultura e saúde são beneficiadas com tais apontamentos, permitindo relacionar os acontecimentos atmosféricos aos ciclos de determinadas doenças e proliferação de micro-organismos. O curso de Meteorologia chegou ao Brasil na década de 60, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Na cidade de São

Paulo, este chegou primeiro na USP, em 1977. Segundo o professor, apesar de existir há vários anos na Universidade de São Paulo, a carreira tem pouca procura, pois ainda há muito desconhecimento em relação à área, apesar do surgimento nos últimos anos de empresas especializadas nessa atividade. Por outro lado, órgãos governamentais também absorvem esses profissionais, como o Instituto Nacional de Meteorologia (INMET) e a Aeronáutica, além disso, muitos alunos trabalham no ramo de pesquisas. Amauri acredita que existe um mercado em ascensão: em 2014, por exemplo, o INMET calculou que das cem vagas para o setor público, cinquenta foram para o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais. Segundo o site do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG), os setores em expansão no mercado de trabalho da profissão concentram-se nos estudos dos Recursos Hídricos, Agrometeorologia e a Modelagem Atmosférica. Além disso, há um mercado para explorar: a prestação de serviços industriais que utilizam os dados meteorológicos para modificar ou ampliar suas ações.


ESTAÇÃO METEOROLÓGICA Organização e observação diárias. Estas são as primeiras características destacadas por Samantha Almeida, pesquisadora da Estação Meteorológica do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP. Fundada em 1932, a Companhia é a precursora IAG e foi instalada no Parque Estadual das Fontes do Ipiranga. Esta substituiu o Observatório de São Paulo, localizado na Avenida Paulista, no começo do século 20. “Naquela época, o movimento intenso dos bondes fazia os instrumentos trepidarem, o que motivou a instalação de uma Estação em outro local”, relata o professor Mario Festa, meteorologista há 48 anos. A nova Entidade Meteorológica está localizada no bairro da Água Funda, Zona Sudeste da capital. Ela fornece dados específicos em relação ao clima para direcionar tanto aos cuidados com os animais do Zoológico de São Paulo, quanto nos estudos com as plantas do Jardim Botânico. Além disso, a empresa realiza observações diárias de pressão atmosférica, umidade do ar e temperatura que são transmitidas para o INMET e para o público em geral.

“Nosso centro de emissão não é automático. Ele precisa da intervenção humana”, afirma Samanta. Diferentemente de como acontecia no século 20, quando as informações coletadas pelos profissionais eram engavetadas e utilizadas para fins acadêmicos e científicos, hoje, a Central Meteorológica da USP divulga todo o trabalho em plataformas digitais abertas ao público, com a página da internet e os perfis sociais como Facebook, Twitter, Flickr e Scribd. Os boletins e relatórios presentes na página online também fornecem referências essenciais para o IAG e para a USP. “O jornalista e o meteorologista precisam trabalhar juntos”, diz Samantha Almeida, uma vez que são os primeiros que passam as informações produzidas pelos segundos ao público. Os antigos equipamentos convivem com a nova tecnologia: os resultados são sempre recolhidos em mais de um aparelho, transcritos em tabelas e gráficos pelos técnicos, que conferem os possíveis erros e atualizam as informações na internet. Além disso, a Rede é também um laboratório, onde os alunos da Universidade de São Paulo podem treinar o que aprendem

nas aulas e os meteorologistas amadores recebem auxílio e incentivo dos mais experientes. O público é convidado para visitas com o objetivo de difundir os conhecimentos básicos sobre a profissão e sua rotina, bem como participar de aulas. “Hoje, ninguém passa um dia sequer sem informação meteorológica, seja pela televisão, pelo rádio, pela internet ou pelo celular. A prática tem influência direta em todas as áreas: vida humana, vegetal e animal.”, afirma Mario. O especialista acrescenta que a previsão é, equivocadamente, interpretada como certeza, entretanto “a atmosfera é muito complexa e deve ser observada constantemente. A informação deve ser sempre atualizada e deveria ser transmitida e entendida como probabilidade”. É impossível cogitar uma vida, hoje, sem o estudo desses especialistas, que, por muitas vezes, evitam tragédias catastróficas. Os meteorologistas são profissionais que mapeiam o mundo através de uma lente sensível, carregam a curiosidade no bolso e o desafio como motivação, os tradutores do espaço podem ser conhecidos como os Sherlock Holmes do universo.

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

29


) ) JORNALISMO

)) 30 º

30 º

20 º

20 º

) tempo ) 10 º

A VOZ DO

10 º

Formada em uma das primeiras turmas de meteorologia da USP, Josélia Pegorim conta sua trajetória e destaca os avanços da profissão REPORTAGEM AMANDA RAVELLI, ANNA BEATRIZ OLIVEIRA e ANA CLARA GIOVANI (1º ano de Jornalismo) COLABORAÇÃO BÁRBARA GASPAR, ELENA COSTA e YULIA SERRA (1º ano de Jornalismo) IMAGEM ANA CLARA GIOVANI (1º ano de Jornalismo)

ADMIRADORA DO CÉU e dona de uma rotina apertada, ela acumula 25 anos de profissão: começou na TV Cultura, trabalhou na TV Globo e passou a maior parte da carreira na Rádio Eldorado. No dia de seu aniversário, Josélia Pegorim, uma das primeiras meteorologistas do país, recebeu uma equipe de reportagem da Revista Esquinas na redação do portal Climatempo, onde trabalha atualmente. Poucos dias antes do início do outono, sua estação do ano preferida, ela conta sua trajetória, desde o início, quando entrou na profissão por acaso, até hoje, como referência na área. Quais foram as suas primeiras experiências profissionais, em meteorologia? Meu primeiro trabalho na área foi durante a faculdade, na TV Cultura. Comecei a fazer um estágio porque conheci a chefe dessa área, que, como eu, era cantora. Ela me chamou para cobrir as férias e, então, acabei fazendo o atendimento para o grande público. Na central de meteorologia da TV, nós passávamos informações para a rádio, para a televisão e para o serviço de previsão do tempo da Telesp, antiga empresa operadora de telefonia. O departamento funcionava 24 horas por dia, sete dias por semana. Lá, eu tinha que redigir a previsão do tempo e responder as pessoas que ligavam perguntando se ia chover ou fazer sol. É difícil adaptar as análises meteorológicas para uma linguagem mais simples direcionada ao público?

30

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

É parte do processo. Às vezes, quando a condição meteorológica está complexa, eu tenho dificuldade de entender e de transformar isso em uma linguagem simples. Tem que ser um trabalho de postura clara, aberta e, ao mesmo tempo, profissional. Eu diria o seguinte: chegar nesse formato ideal, de pensamento simples, útil e meteorologicamente correto é um exercício diário. É nossa obrigação, para que a previsão do tempo e do clima seja bem aproveitada pelo público. Um dia, na TV Cultura, eu estava discutindo a previsão com a minha chefe e ela disse: “Josinha, se você não conseguir dizer para o cara que está lá fora se vai chover ou fazer sol, isso aqui não serve para nada!”. Essa é a maior lição. Com o passar do tempo e o advento da tecnologia, você notou mudanças na sua profissão? Houve a combinação de alguns fatores: primeiro, os meios de comunicação perceberam a importância e a necessidade da informação meteorológica. A Rádio Eldorado foi pioneira ao contratar os serviços de previsão do tempo, depois a TV Cultura e também a Rede Globo. Hoje, a demanda é grande e o profissional precisa se adaptar. Além disso, com certeza, a tecnologia alterou muito nosso trabalho: os mapas, antes, eram desenhados manualmente; agora, são feitos por computadores e nós fazemos a análise técnica e transformamos em versões mais simples. Aqui, no Climatempo, tudo é analisado dessa forma. A facilidade de acesso à informação também faz com que o profissional repense o timing.


MARIANA CANHISARES

Josélia Pegorim é meteorologista no portal Climatempo, mas fez carreira na Rádio Eldorado

Existe algum tipo de preparação para os jornalistas especializados em meteorologia? É essencial ter conhecimento científico. O profissional interessado tem que aprender um pouco sobre a área científica que ele está abordando. Há um curso de meteorologia específico para jornalistas, mas se esse profissional já tem a prática e convívio diário com a área, ele se torna capaz de traduzir os termos. Aqui, no Climatempo, temos pessoas dos cursos de Rádio e Televisão, Jornalismo e Cinegrafia. Essas pessoas, com o tempo, conseguem bater o olho em um mapa traduzido por um meteorologista e sair escrevendo, montar as manchetes e fazer a parte de matérias jornalísticas com foco meteorológico. Como funciona a área de comunicação do Climatempo? O Climatempo tem uma veia forte de comunicação, nós já começamos fazendo previsões para jornais. Temos que dar a melhor informação, a melhor tradução do pensamento meteorológico. Todos os dias nós temos reunião de pauta: eu e meus colegas discutimos o conteúdo e transformamos em dados meteorológicas úteis. É baseado nesse princípio que eu pergunto, sempre: “Você está conseguindo fazer com que o público entenda se vai chover ou não?”. Toda a nossa técnica se reduz a isso. Na prática, como você nota que a previsão meteorológica afeta a vida dos telespectadores?

Minha meta é sempre conseguir ajudar o público a se programar ao sair de casa, por exemplo. Se eu disser que

o feriado vai ser de tempo ruim, de chuvas frequentes e de pouco sol, a pessoa não vai poder desistir do pacote de viagens que comprou, mas, pelo menos, tem como se programar. A ideia é essa. Aqui, nós conseguimos prever o tempo com cerca de duas semanas de antecedência. Algumas noivas ligam para cá e podem encontrar uma previsão do tempo para os quinze dias que antecedem o casamento, assim, conseguem planejar se vão colocar cobertura no salão de festas ou não. Como funcionava seu trabalho na Rádio Eldorado? No que a prática radiofônica se diferenciava do seu trabalho aqui, no Climatempo? No começo, eu redigia todos os boletins, até que fui perdendo a necessidade dessa muleta. A forma como escrevemos nem sempre é igual à forma como falamos, e isso tem a ver com a segurança com que você fala, no caso do rádio, eles só me ouviam, é mesmo uma coisa de confiança, você a passa ou não. O ruim é ficar atrelada à programação, por isso digo que rádio nunca mais. Você é meteorologista, mas é comumente confundida com jornalista. Você se incomoda? Para mim é uma honra fazer um papel duplo. Eu gosto muito da escrita, do texto, do vídeo. Não adianta nada o meteorologista prever o tempo e não conseguir dizer isso em palavras, em linguagem comum, assim como no boletim exposto no site, nas manchetes. Esse é um exercício diário, um trabalho em conjunto.

RETORNO AO LODO Após passar pelo tanque de decantação secundário, o lodo retorna a aeração para decantar e terminar a separação dos sólidos, onde parte será descartada e outra continua no processo.

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

31


ANA CAROLINA SIEDSCHLAG

PERFIL


caçador de

nascentes Entre a natureza e a tecnologia, Adriano Sampaio e sua página Existe água em SP vêm ganhando destaque em tempos de crise hídrica REPORTAGEM BEATRIZ VILANOVA, JOÃO PEDRO PETRINI, RAFAELA ABUD PUTINI (1º ano de Jornalismo), ANA CAROLINA SIEDSCHLAG e ANA LAURA PRADO (2º ano de Jornalismo)

A EQUIPE DE reportagem da Revista Esquinas foi às ruas preparada para fazer uma expedição em busca de nascentes, ao lado de Adriano Sampaio, criador da página Existe Água em SP, no Facebook. O local marcado para o encontro foi inusitado: o casebre da Praça Waldir Azevedo, na Lapa, Zona Oeste de São Paulo. Em meio a árvores e pistas de caminhada, o lugar passava uma sensação de abandono, com paredes grafitadas e vidros quebrados, mas, ali, encontramos aconchego, café e, mais tarde, Adriano, o caçador de nascentes. O espaço, composto por uma cozinha e alguns cômodos, abriga uma sala repleta de mapas, onde estão marcadas as nascentes que vai encontrando pela cidade. Lá dentro, conhecemos um grupo de moradoras do bairro que também nos acompanharia durante a chamada “caminhada de reconhecimento”, que tem por objetivo buscar novas nascentes na região. Adriano demorou cerca de meia hora e, quando chegou, a conversa foi rápida. Ele vestia roupas leves, tênis e chapéu panamá, e seu passo ligeiro mostrava que ele não estava ali para ficar parado. O ativista, com pressa e, ao mesmo tempo, despreocupado, quase passava um

ar de presunção: respondia às perguntas com frases curtas e desinteressadas, ainda que não rudes. Quando começa a falar sozinho, porém, Adriano se transforma: o caçador vira narrador, quando filma, com a pequena câmera, mais um vídeo para sua página Existe Água em SP. O relato começou com certo entusiasmo: “Estamos aqui na região da bacia do córrego Bellini e encontramos uma nascente urbanizada vindo de um terreno baldio entre as construções. A corrente é forte e, provavelmente, há mais uma nascente por aqui”. Adriano documentava tudo ao redor, enquanto passeávamos pelos morros de Alto de Pinheiros, uma das regiões de São Paulo mais ricas em nascentes por conta do relevo acidentado. Durante o caminho, no subsolo de um prédio em reforma na Rua Realengo, o caçador se maravilhava com o rio que corria sob o alçapão na garagem. Onde deveria haver terra, havia um intenso fluxo de água: “Pra quem diz que São Paulo está seca…”, apontou ele. Na mesma rua, havia uma feira e Adriano começou a caminhar entre as barracas puxando conversa com os comerciantes. Para um deles, em especial, o ativista questiona sobre a água que

escorria pela calçada. O feirante explicou, enquanto presenteava Adriano com uma banana, que o córrego passa por ali toda semana, mesmo em dias de sol. Andamos mais um quarteirão, seguindo o fluxo das águas que corriam sobre o asfalto, quando encontramos André Huszka, um senhor de 70 anos. Hoje, dono de uma oficina de restauração de móveis, ele contou que trabalhou na Sabesp “no auge da companhia, durante os anos 1980”. Ele aponta para o asfalto sob nossos pés e diz que ali passa “um rio desta largura”, mensurando, mais ou menos, um metro. Mão esquerda no bolso, pé no degrau da casa, Adriano sorri como uma criança ao escutar sobre o tema que mais lhe agrada: os rios da cidade. Fascinado com o relato de Huszka, deixou-se levar pelo tempo. Mais tarde, quando se despediram, lamentou por ter que interromper a conversa, mas o restante do percurso estava à sua espera. Perguntamos sua opinião sobre o apelido ‘caçador de nascentes’, mas Adriano não deixou claro se lhe agrada: “Foram os jornalistas que inventaram. Parece que, quando eu encontro uma nascente, eu atiro e mato ela, acho engraçado”, conta, rindo.

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

33


ANA LAURA PRADO

Meu trabalho é resgatar a natureza, mostrá-la sob o asfalto, canalizada. Em contato com a natureza, a cidade fica mais feliz Adriano Sampaio, ativista

Adriano Sampaio é apaixonado pelos rios: desde criança, tem a pescaria como hobbie

O hobbie de Adriano é caçar nascentes nas periferias com os amigos: “Lá tem muita fonte de água limpa e as pessoas usam o recurso sem saber”. Ele contou, ainda, uma situação de risco durante sua caçada: Adriano e o grupo estavam em um beco, filmando, quando alguns homens armados vieram averiguar a situação. Por sorte, haviam feito amizade com uma moradora que acompanhava a atividade, e a situação foi explicada. O comando local, então, permitiu a gravação, desde que não mostrassem nada além do chão e da água que corria ali.

CURSO DE VIDA Formado em Administração e ex-corretor imobiliário, Adriano Sampaio abandonou o mercado para se dedicar integralmente a projetos ligados à água. Sempre com seu chapéu de palha, ele participa de seminários, planeja a recuperação de parques e, mais do que isso, aproveita a cidade — “de outra maneira, não poderia encontrar as nascentes”, explica. Apesar de ter um carro, a meta do caçador é conhecer São Paulo inteira a pé. Durante uma dessas caminhadas, surgiu o lago que hoje existe na Praça da Nascente, no bairro do Sumaré, na Zona Oeste: “Eu passava por ali e percebia que

34

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

o solo estava sempre encharcado. Um dia, comecei a cavar e encontrei uma nascente”. Assim como ele próprio, sua relação com os rios amadureceu: transformou-se em ativismo. A atuação por meio da página Existe Água em SP, criada em agosto de 2014, visa conscientizar as pessoas sobre o assunto. Em um cenário alarmante de crise hídrica, o tema entrou em pauta, mas, segundo o administrador, os rios ainda não recebem a atenção que merecem. Adriano valoriza intensamente a água e os benefícios que ela traz: nem da chuva ele foge. Os pingos fortes que começaram a cair durante a caminhada não foram capazes de desanimá-lo, enquanto nos mostrava, com brilho nos olhos, a área verde da região onde mora, Vila Clarice. O Parque Nacional do Jaraguá, localizado na região noroeste de São Paulo, um dos últimos remanescentes de Mata Atlântica na capital paulista. É também onde está localizado o Pico do Jaraguá, ponto mais alto da cidade. Ao andar pela grama, Adriano contava sobre os animais que já encontrou por ali, como macacos, sapos e cobras. Só quando a chuva se intensificou, ele aceitou se abrigar em um dos quiosques ao redor. Mesmo durante os diálogos mais in-

formais, a água está presente. Conversando, nota-se que o que realmente aborrece Adriano é a maneira como esse recurso vem sendo mal utilizado e mal distribuído. O administrador de empresas acredita que é possível e necessária a melhora do sistema atual de distribuição e defende que o problema não esta na falta de água, mas na maneira como lidamos com ela: “O que nós temos hoje não é uma crise hídrica, mas uma crise humanitária”. Adriano não hesita em detalhar a infância humilde: crescido na rua, jogando bola e soltando pipa, ele se orgulha de nunca ter tido um brinquedo de loja. Aprontava como qualquer menino, mas fazia coisas que outros sequer sonhavam em fazer: neto de pescador, desde cedo, o ativista viveu em meio às florestas e aos rios. Os relatos vívidos mostram de onde veio tamanha admiração pela água: “Passávamos dias no meio da mata, debaixo de árvores gigantescas. Gostava quando anoitecia e podia ver mais de mil vagalumes piscando”. Quando questionamos sobre seus hobbies, o caçador riu e disse, sem pensar muito: “cavar lagos”. Porém, nem só disso ele vive. Adriano ainda conserva a prática de pescar, herdada do avô. Quando peque-


no, costumava copiar seu comportamento e, vendo-o costurar redes de pesca, tentava pegar peixes com redes de embalar limões. Recebeu de presente, então, sua primeira tarrafa, nome pelo qual chamavam os entrelaçados. Ele lembra, com nostalgia, da primeira vez que entrou em um rio e pegou esquitossomose, doença contraída através do contato com água infectada. “O rio literalmente me contaminou”, brinca. Hoje, Adriano gosta de fisgar os peixes, sozinho no Rio Itariri, um dos afluentes do Rio Juquiá. O riacho, ameaçado de interferência pelo governo estadual devido à crise hídrica, ainda serve para a prática: “Gosto dessa solidão, fico horas pescando até anoitecer. É como se fosse uma meditação”. Com uma vontade crescente de estar em contato com a natureza, o administrador de empresas se mudou para Vila Clarice, onde desenvolveu uma relação ainda mais forte com os parques, os rios e a fauna. Durante as conversas, ele continua atento às árvores e ao solo, como se procurasse constantemente por nascentes e por animais. É nítida a importância que ele dá a viver em um ambiente verde, e seu desconsolo com o fato de as pessoas estarem perdendo esse contato. “Meu trabalho é resgatar a natureza, mostrá-la sob o asfalto, canalizada. Em contato com a natureza, a cidade fica mais feliz”.

ATIVISMO DUPLO Apesar de manter o foco nas iniciativas em relação à causa hídrica, esta não é a única luta que o caçador de nascentes costuma apoiar. Vizinho de uma aldeia guarani, Adriano conheceu a tribo depois de mudar-se para a região, no bairro do Jaraguá. Com sangue indígena correndo nas veias, ele conta que conhecer suas raízes foi como descobrir melhor a si mesmo. Preocupado, afirma que as aldeias sofrem com a urbanização, que afeta a vida e a tradição de seus habitantes: “Sem plantar, caçar e pescar, como o índio vai ser índio na cidade?”, questiona. Adriano conta, então, que a amizade surgiu de forma quase imediata: logo que conheceu o cacique, uma relação de convivência e companheirismo começou. Segundo ele, ainda, os guaranis se interessam muito pelo trabalho com as nascentes. “Uma coisa se juntou com a outra. A causa hídrica está relacionada com o Rio das Lavras, que passa dentro da aldeia. Eu e as lideranças da tribo temos um projeto de escrever um livro sobre a história desse rio”.

FESTEJAR A NATUREZA Com a participação de amigos e em conjunto com o movimento Ocupe&Abrace, Adriano organizou o Festival Praça da Nascente. O evento, que começou em 2013, teve sua sexta edição celebrada em março de 2015, visando

estimular a relação dos cidadãos com o espaço público que têm à sua disposição. Houve lanche comunitário, venda de artesanatos, feira de trocas, oficina de construção de cisternas e apresentações de dança do ventre e cigana, assim como um show de música africana e o coral das crianças das tribos. Também foram arrecadadas doações de roupas, alimentos e dinheiro para ajudar os índios. Era possível ver a alegria nos rostos de todos presentes, inclusive no de Adriano, contente pelo resultado positivo do festival e pela presença do público que compareceu mesmo de baixo de chuva. O ex-corretor de imóveis largou uma carreira estável para alimentar o amor pela natureza. Para ele, o que promove mudanças na cidade são atitudes como o evento na Praça: “é preciso começar a se articular, fiscalizar, cuidar do bairro e das áreas verdes. Não adianta cobrar do Congresso se a gente não faz a nossa parte, e a maioria das pessoas não faz”, alerta. As ações de Adriano têm repercutido em meio à crise hídrica, inclusive em veículos estrangeiros, como no jornal britânico The Guardian e na TV Al Jazeera, do Catar, que manifestaram curiosidade frente às suas atividades. Adriano não mede esforços quanto a espalhar as boas novas aos interessados: o plano é deixar cristalino que, se depender dele, muita água será encontrada em São Paulo.

ANA CAROLINA SIEDSCHLAG

O apelido “caçador de nascentes” surgiu depois que ficou conhecido com sua página Existe Água em SP, no Facebook ADENSAMENTO DO LODO Como o lodo contém uma quantidade considerável de água, deve-se realizar a redução de seu volume retirando parte dessa umidade de modo que transpareça o seu material sólido ao fundo do tanque de adensamento.

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

35


FOTORREPORTAGEM

EX

TRE

MOS

Cidade de contrastes: enquanto para uns a água é farta, para outros, cada gota é preciosa REPORTAGEM ANA LUA MENDONÇA, CECILIA MARINS, JULIANA FALANGHE (1° ano de Jornalismo), BRUNA BADDINI, HARES DATTI PASCOAL e JULYA VENDITE (2° ano de Jornalismo)

JULIANA FALANGHE usou uma SONY A55 - f/3,5 - 18mm - ISO 100 - 1/1250s. Céu nublado: cena rara na paisagem paulista durante 2014 36

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015


Já não são mais possíveis os banhos longos e relaxantes de 40 minutos. Nos dias de calor, fazer guerra de água e encher piscinas, nem pensar. Lavar o carro toda semana ou a calçada, dia sim, dia não, tornaram-se atitudes totalmente condenáveis. Entramos em estado de alerta: é assunto na televisão, no rádio, nos jornais e na internet. A ordem é economizar. O regime de chuvas do verão foi menor que o esperado e a Cantareira, que já não operava com sua capacidade total, sofreu uma brusca diminuição do nível de água. Na represa de Guarapiranga era possível enxergar grande parte das rachaduras no solo em 2014, auge da crise. Os medidores hídricos têm registrado aumento aos poucos, devido à volta das chuvas e às campanhas de consumo consciente, mas ainda está longe do considerado normal, principalmente diante do período anual de estiagem. Agora, em seus arredores, não há mais terra seca, e sim, uma grande quantidade de lixo. Ironia é ver que, enquanto nos desesperamos pela água que se vai, quem caminha pela Avenida Sumaré, na Zona Oeste de São Paulo, passa diariamente sobre um rio em forma de córrego. A calçada está constantemente molhada e poucos sabem o porquê. A chuva também se tornou uma grande contradição na capital paulista. O nível das represas está baixo e dias chuvosos são esperados durante meses. Mas quando ocorre, no meio da semana, no horário de pico, há quem reclame: os motoristas praguejam os semáforos quebrados e os pedestres equilibram, atrapalhados, os guarda-chuvas, enquanto atentam para não pisarem nas poças de lama. O caos sobrepõe os benefícios. Desde criança, aprendemos como economizar, mas agora, a teoria precisa ser colocada em prática. A água que lava as roupas sai da máquina e é usada para lavar o quintal e a água do banho vai para a descarga. Reduzir o banho pela metade, evitar gastos excessivos de energia elétrica, economizar, racionar, inventar, estocar. Nunca antes, nos supermercados, o corredor de engarrafada sesteve tão cheio de consumidores e as prateleiras vazias de garrafas. O setor cresceu 10% em um ano e o preço, 14,68%, segundo a Associação Brasileira da Indústria de Águas Minerais (ABINAM). Aquele futuro de seca, previsto para um futuro distante, chegou e pegou de surpresa uma cidade que, todos os anos, em janeiro, sofre com enchentes. A incerteza passa, agora, a fazer parte do cotidiano paulista.

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

37


BRUNA BADDINI usou uma NIKON D3000 - f/5,3 - 48mm - ISO 800 - 1/10s. O pesadelo do racionamento paira sobre o cotidiano

CECILIA MARINS usou uma NIKON D90 - f/10- 30mm - ISO 800 - 1/200s. Lavar o carro tornou-se uma atitude condenável 38

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015


BRUNA BADDINI usou uma NIKON D3000 - f/5,6 - 55mm - ISO 200 - 1/500s. O poluído Córrego Carandiru contrasta com o redor ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

39


HARES DATTI PASCOAL usou uma D90 - f/5,6 - 120mm - ISO 200 - 1/80s. O descarte irregular prejudica a pouca água que resta

JULIANA FALANGHE usou uma SONY A55 - f/6,3- 150mm - ISO 100 - 1/640s. Cai o nível de água, revelando a sujeira submersa 40

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015


HARES DATTI PASCOAL usou uma D90 - f/18- 50mm - ISO 200 - 1/80s. O nível de água ainda oscila na Guarapiranga

JULYA VENDITE usou uma NIKON D3100 - f/5,3- 42mm - ISO 1250 - 1/80s. Moradores de rua se banham no bairro do Sumaré ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

41


JULYA VENDITE usou uma CANON T3i - f/4,5 - 18mm - ISO 200 - 1/250s. A seca impulsionou a busca por embalagens plásticas 42

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015


CECILIA MARINS usou uma NIKON D90 - f/5,6 - 120mm - ISO 400 - 1/125s. A crise hídrica aprisiona o cotidiano paulista

ANA LUA MENDONÇA usou uma CANON T4i - f/5,6- 59mm - ISO 200 - 1/600s. Guarapiranga sob o céu claro, que não indica chuvas DIGESTÃO ANAERÓBICA Os microorganismos decompõem a matéria orgânica presente no esgoto, filtrando-as.

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

43


PROFISSÕES

mercado

FLUIDO

Conheça as profissões que, dentro ou fora da água, dependem desse recurso no cotidiano

REPORTAGEM FERNANDA BACCARO, LETÍCIA SÉ, MAIZA GONDIM, MARCELO PEPICE, VÍTOR FERREIRA (1º ano de Jornalismo), LETÍCIA ORCIUOLO e THAÍS NASCIMENTO (3º ano de Jornalismo)

JÁ DIZIA GUIMARÃES Rosa: “Água de boa qualidade é como a saúde ou a liberdade: só tem valor quando acaba”. Meio século depois, as palavras do escritor soam mais contempo-

râneas do que nunca. A seca e a ameaça de racionamento na capital paulista atingiram não só o uso doméstico do recurso, mas a rotina profissional de muitas áreas de atu-

ação. Restaurantes, salões de cabelereiros e academias de natação, por exemplo, diante da situação, se viram obrigados a repensar os hábitos para continuar trabalhando.

MAIZA GONDIM

Lavanderia

MARCELO PEPICE

Cláudia Telles trabalha em uma lavanderia no Jardim Paulista, Zona Oeste de São Paulo. O estabelecimento costuma lavar cerca de seis máquinas de roupa por dia e, até então, a dona não vê mudanças no movimento da loja por conta da crise hídrica: “Nós temos a opção de lavar a seco, que é nossa prioridade no momento, assim, economizamos água e não perdemos as vendas”. Apesar de preocupante, essa crise trouxe uma lição importante para ela, que diz valorizar muito mais esse bem tão presente em seu trabalho.

44 ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

Distribuidor de água Milton Ferreira, proprietário da distribuidora de água Ki Sede, conta que a falta de água está afetando positivamente suas vendas: “Isso porque as pessoas estão estocando água”. Por semana, sua empresa comercializa cerca de trezentos galões e a procura pelo serviço tem aumentado a cada dia. “Há alguns anos, comprávamos galões por R$3,50. Hoje não é possível comprar por menos de R$9,50. Isso é bom para nós”. Depois do anúncio da crise hídrica, ele calcula que o preço do galão de 20 litros pode chegar a R$10.


FERNANDA BACCARO

Lava rápido Paulo Silva, proprietário de um lava rápido no bairro do Tiquatira, Zona Leste de São Paulo, diz sentir mais os efeitos da crise financeira do que da crise hídrica. Além disso, ele acredita que o mau tempo espanta mais os clientes do que a seca: “As pessoas não querem sair de casa para lavar o automóvel e sair em baixo de chuva”. Paulo calcula que aproximadamente 20 litros são gastos por lavagem. Agora, ele usa água de poço para preparar os produtos de limpeza e a água da chuva nas descargas do banheiro. O empresário planeja, ainda, mais um passo: o reuso.

VÍTOR FERREIRA

Vendedor de pescados O comércio de peixes realizado pela distribuidora Santa Rosa não chegou a ser afetado pela crise hídrica, segundo o responsável pelo estabelecimento, Antônio dos Santos. Isso acontece porque cerca de 90% dos peixes que a empresa vende são de água salgada, ele explica. Na distribuidora, a água doce é mais usada em forma de gelo, para fazer a conservação da qualidade dos alimentos. Mesmo com poucos problemas, o comerciante mudou algumas atitudes depois da consolidação do panorama atual: “Afinal, sem água, nós fechamos. Não há como fugir disso”, conclui.

NELSON ALMEIDA FPA

Sereia de Aquário

LETÍCIA SÉ

Quem disse que sereias não existem? Mirella Ferraz, mais conhecida como “A Sereia Brasileira”, prova o contrário. A profissional, que já foi uma das grandes atrações do Aquário de São Paulo, explica sua preparação: antes dos espetáculos, ela pratica ioga e exercícios de alongamento. Suas apresentações exigem ensaios de seis horas consecutivas. Mirella, formada em Gestão Ambiental, conta que o que mais causa admiração no público é sua cauda, confeccionada por ela mesma: “Eu uso materiais de mergulho, como neoprene e nadadeiras”.

Mergulhador Luiz Alonso é instrutor de mergulho há 36 anos. Ele reforça para os alunos as regras de segurança da atividade, dentre elas, a de que não se deve jamais mergulhar sozinho: “No caso de uma falta de ar, por exemplo, os mergulhadores devem se ajudar”. As aulas teóricas são dadas dentro do Museu do Mar, instituição que o professor de mergulho fundou em Santos, em 1984. Paralelamente a esse espaço, Luiz cuida do Museu Marítimo, de acervo histórico-naval, legado de um amigo que faleceu na década de 90.

CONDICIONAMENTO QUÍMICO DO LODO É a mistura entre o esgoto bruto das estações de tratamento e o lodo ativado. Após ser totalmente sedimentado, o lodo ou é retirado para tratamento específico ou retorna ao tanque de aeração.

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

45


AÇÃO

conta

GABRIELLI MENEZES

ANDRÉ DOMINGUEZ GABRIELLI MENEZES

ANA BEATRIZ AZEVEDO

Eles ganharam destaque em meio à crise hídrica, mas não é de hoje que coletivos e movimentos sociais lutam por novas políticas de gestão da água

46

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

gotas REPORTAGEM ANA BEATRIZ AZEVEDO, GABRIELLI MENEZES, MARIA VICTORIA POLI, MATHEUS DOS SANTOS, NATALIA VIEIRA (1o ano de Jornalismo) e ANDRÉ DOMINGUEZ (3o ano de Jornalismo) COLABORAÇÃO HELOÍSA BARRENSE (2o ano de Jornalismo)


DIZER QUE A água é essencial para a sobrevivência humana é chover no molhado. No entanto, estamos acostumados a acreditar que esse é um recurso abundante e infinito. Mesmo antes que as manchetes de jornal transformassem a crise hídrica em um dos assuntos mais comentados, algumas organizações sociais formaram-se visando problematizar o uso e as políticas públicas da água. O coletivo Ocupe&Abrace, por exemplo, surgiu no início de 2013 com a proposta de revitalizar a Praça da Nascente, no bairro da Pompeia, Zona Oeste de São Paulo. A ação partiu da iniciativa “A Pompeia Que Se Quer”, que visa estimular a ocupação da praça e a renovação da natureza local. A iniciativa foi a mais votada em um concurso organizado pela ONG Cidade Democrática, atuante como plataforma de inovação aberta para quem quiser criar e expor suas próprias ideias para o bairro. Segundo Carla Federizzi, cofundadora do coletivo, “quando pensamos em revitalizar, a imagem que temos é a de criar vida. Mas, na verdade, o que estamos fazendo é trazer de volta a vida que já existia”. É certo que ainda há barreiras quando se trata de ocupar o espaço público. Carla explica que, no início, era difícil estabelecer métodos e ações, mas que em pouco tempo as pessoas começaram a participar das atividades e o coletivo passou a convidar os moradores a trabalhar em conjunto. Para ela, a dificuldade também está na exigência do movimento em grupo, uma vez que “não fomos educados socialmente para ter essa energia construtiva”, relata. Carla diz, ainda, que o envolvimento vem acontecendo aos poucos e que os festivais ajudam com a manutenção da horta orgânica, cultivada e aproveitada pela comunidade. A ocupação eco-cultural se desenvolveu através dos eventos organizados pelo Ocupe&Abrace. Porém, o constante questionamento sobre a legalidade das ações, das estruturas e da mecânica do projeto despertou o intuito de se tornar uma associação de bairro. Para isso, o coletivo mantém relações políticas com a prefeitura, de modo que o poder público também cumpra o seu papel, aparando a grama com frequência e mantendo o espaço limpo. Carla ressalta que “antes, nem tinha lixeira na praça, agora tem. E a parte da capina são eles [a prefeitura] que fazem”. Para o coletivo Ocupe&Abrace, a crise hídrica que se instalou em São Paulo pode ser vista como um momento de oportunidade: “É fundamental que as pessoas enxerguem a importância da água e repensem suas relações com esse recurso. É preciso se envolver com ela, não apenas utilizá-la. E só aprendemos isso quando falta”. Por fim, Carla classifica a proposta como um laboratório vivo de convivência onde as pessoas têm que ser propositivas: “O coletivo é, acima de tudo, aprendizado”, conclui.

O AR DAS RUAS Em contraponto ao Ocupe&Abrace, um conjunto de movimentos que reúne 65 núcleos de militância, tomou as ruas para criticar a atual situação hídrica e culpar o governo estadual

pela crise no abastecimento. Organizado pelo Coletivo de Luta Pela Água, o ato daquela sexta-feira chuvosa, 20 de março, se concentrou em frente ao prédio do Tribunal Regional Federal, na Avenida Paulista. A marquise do edifício ficou lotada de manifestantes de movimentos sociais — como a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e a Frente de Luta por Moradia (FLM) — além de transeuntes, que buscavam na cobertura um abrigo para o temporal. O primeiro manifestante a falar foi Jerson Flores, 55 anos, um dos membros mais ativos durante o ato: “Cadê a água, Geraldo?”, era a frase que conduzia seu discurso. Jerson disse que onde mora, na Zona Sul da capital, “as torneiras ficam secas três ou quatro vezes por semana”. O corretor de imóveis, natural da Bahia, diz que quando chega em casa, já tarde da noite, não consegue tomar banho. “O jeito é improvisar a ducha usando um balde. É desesperador”, desabafa. Durante os pronunciamentos, Erika Martins distribuía uma folha de adesivos com os dizeres “Pô, Alckmin, banho de caneca!?”, incentivando os presentes a colá-los nas capas de chuva. Demitida recentemente, Erika foi gerente administrativa da Companhia de Saneamento Básico de São Paulo (Sabesp) por mais de duas décadas. Mestra em Engenharia Sanitária, ela se mostra triste em deixar a companhia nas atuais circunstâncias: “Quando entrei, a empresa estava sucateada e ajudamos a reconstruí-la. Dei-

xaram a entidade saudável financeiramente para revendê-la, abrir o capital e transformar a água em mercadoria, dentro de uma metodologia neoliberal”, explica. Dentre as cerca de quarenta pessoas que se reuniam no local, um senhor de boina e barba branca chamava a atenção. Bacharel em Geologia, Delmar Mattes foi Secretário de Vias Públicas durante o mandato da prefeita Luiza Erundina (1989 - 1993) e, para ele, encontrar soluções durante o momento de crise não é o suficiente, mas, sim, começar a discutir uma nova forma de administrar a água: “A Sabesp lançou ações nas bolsas de Nova York e de São Paulo e mudou o sentido, o caráter da água como bem essencial para atender às necessidades da população”. Segundo Delmar, o anseio pela lucratividade distorceu as políticas sociais fundamentais. Por volta das 16h, o movimento dos professores estaduais em greve começou a caminhar em direção à Rua da Consolação e, quando passou em frente ao ato pela água, os grupos se juntaram em um gesto de apoio mútuo. A crise hídrica tem elucidado muitas pessoas a respeito da importância da água e sua escassez. Os coletivos formados nos últimos anos têm apresentado alternativas necessárias para a política de captação, gestão e distribuição do recurso. Mostrando-se cada vez mais ativos e capazes de unificar vozes com um objetivo comum, através de manifestações, eventos e projetos que buscam, com sucesso, conscientizar a população a respeito.

POLÍTICA DA ÁGUA Entenda as principais reivindicações dos coletivos e movimentos sociais que lutam por uma nova política de gestão dos recursos hídricos S O fim da lógica lucrativa de mercantilização da água S A alteração da logística de abastecimento e a fixação

de um plano de racionalização do uso deste recurso

S A melhoria da qualidade da água S O desenvolvimento de um sistema de transparência da gestão da água, com ampla participação social na fiscalização

S O fim da isenção de tarifas para as camadas mais ricas

da sociedade (especialmente os setores industrial e agropecuário) e da transferência do ônus para as populações pobres

S

FILTRO PRENSA DE PLACAS O filtro de prensa é formado por uma série de placas em que se ajustam telas filtrantes. Bombeia-se um lodo químico ao espaço existente entre as placas e o põe sobre pressão durante um determinado tempo.

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

47


CIÊNCIA INPE

RIOS voadores Da Amazônia ao Sudeste: entenda como eles se deslocam e qual sua importância no atual cenário de crise hídrica REPORTAGEM BIANCA SANDRINE, BRUNO LIMA, GUILHERME MARTINS, RENATO LAMANNA (1º ano de Jornalismo) e ALESSANDRA PETRAGLIA (3º ano de Jornalismo)

EM MEIO À crise hídrica, não são poucas as hipóteses que surgem para apontar as causas da falta d’água: estiagem, má gestão dos recursos ou a junção dos dois fatores são as explicações mais comuns. Porém, entre os especialistas, ganha espaço o estudo sobre os rios voadores, fenômeno meteorológico de grande importância para a estabilidade do clima tropical brasileiro. Eles atuam diretamente nas regiões Sul e Sudeste do país, econtribuindo com o aumento do volume de chuvas nessas áreas. Segundo as pesquisas lideradas pelo físico e climatologista do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC) José Marengo, apesar de pouco abordado pela mídia, esse movimento está diretamente relacionado à seca da capital paulista. Os rios voadores que correm pelo território brasileiro começaram a ser compreendidos graças ao trabalho de um francês: o

48

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

engenheiro mecânico Gerard Moss. Em seu projeto, que ganhou o nome de Brasil das Águas, Moss fez o levantamento da qualidade das águas de todo o país, mapeando o fenômeno em 1.100 pontos diferentes, durante 14 meses, à bordo de um avião de laboratório. “Conseguimos estimar que a quantidade de água vaporizada que chegou em apenas um dia a São Paulo foi o equivalente ao Rio São Francisco, em termos de volume de água”, afirma Moss. A formação desses verdadeiros rios flutuantes acontece através da evaporação da água acumulada no maior bioma do planeta, a Floresta Amazônica, somada às nuvens carregadas vindas do Oceano Atlântico. Essas massas de ar se encontram na região Norte do país e seguem em direção a Cordilheira dos Andes, onde se deslocam, levando chuva para o Sul, Sudeste e Centro-

-Oeste do território brasileiro. Em tempos de estiagem, essas correntes, que trazem umidade do Norte para o Sudeste, são de extrema importância. De acordo com Alexandre Correia, físico e climatologista da Universidade de São Paulo (USP), o conjunto de nuvens que compõe os rios voadores são junções complexas de fatores da natureza: “O fenômeno nasce no Oceano Atlântico Equatorial, formando as nuvens que trazem essas massas de ar em direção à Floresta Amazônica. Já na mata, as nuvens são recicladas, ou seja, precipitam e evaporam constantemente, dando início ao ciclo da água”, explica. Com a formação dessas massas úmidas e a constante evapotranspiração (movimento em que a água da superfície terrestre passa para a atmosfera em forma de vapor), os rios voadores se fortalecem. As árvores têm a


função de bombear as nuvens para o interior do continente, em direção à Cordilheira dos Andes. Essas nuvens passam pelo Pantanal e se dispersam no sentido Norte-Sul ou rumo ao Leste, alimentando alguns reservatórios do Sul e Sudeste brasileiros, podendo ultrapassar as fronteiras e chegar até a Argentina. De acordo com o climatologista Cesar Pellegatti, também da USP, “o que hoje chamam de rios voadores é parte fundamental de um sistema de precipitações por uma longa faixa diagonal no sentido noroeste-sudeste, o que, evidentemente, influencia as precipitações sobre o Sudeste brasileiro”.

ORIGEM DA SECA Dentre as teorias que tentam explicar a deficiência de chuvas e a consequente seca, algumas apontam o desmatamento da Amazônia como causa principal. Na visão de José Marengo, o desmatamento das florestas dessa área acarretaria uma redução

drástica da umidade das massas de ar que chamamos de rios voadores. Ainda segundo o físico, a retirada de árvores dessa região ocasionaria um aumento da concentração de gás carbônico, advindo, por exemplo, das queimadas. Isto aceleraria a circulação de ventos e causaria chuvas mais intensas em poucas horas. Essa situação levaria a uma maior incidência de enchentes, alagamentos e deslizamentos de terra na região Sul e Sudeste. A água das chuvas é importante tanto para o bem estar da sociedade quanto para a economia do país. Seguindo essa lógica, Correia explica: “a floresta funciona como uma bomba de água: tira umidade do solo, dos rios e dos aquíferos onde a árvore está localizada e leva para a atmosfera. Portanto, se a floresta for retirada, o funcionamento dessa bomba é prejudicado”. Em contrapartida, Marengo acredita que o desmatamento não é a principal causa da seca,

mas sim, as variações climáticas, como o aquecimento global. Segundo Correia, um dos principais fatores da crise hídrica está relacionado às ilhas de calor — resultado da intensa absorção de calor pelo concreto e asfalto nas áreas urbanas, além da emissão de gases poluentes que eleva a temperatura local, ao redor da região metropolitana. “A crise hídrica é multidimensional, ou seja, é um acumulo de problemas que culminaram nessa adversidade”, explica. Por conta dos impactos ambientais, os períodos do ano de maiores e menores precipitações tendem a se modificar, como já vem acontecendo nos últimos anos. A incidência de chuvas rápidas e intensas, seguidas por dias quentes e secos, também aumentará significativamente, explica Marengo, “assim, os rios voadores serão ainda mais mais intensos, porém, esporádicos, ou seja, totalmente irregulares”.

DIVULGAÇÃO

À bordo de um avião de laboratório, o francês Gerard Moss mapeou os rios voadores em mais de mil pontos Brasil afora SECADOR TÉRMICO Processo de desidratação do lodo, submetendo-o à uma calor de 350ºC e transformando o esgoto em material granulado apto para o uso como fertilizante ou combustível sólido, como o carvão vegetal.

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

49


RELIGIÃO

líquido

SAGRADO O lado divino da água: como as diferentes crenças utilizam e compreendem o recurso no cotidiano e na vida espiritual

REPORTAGEM AMANDA CAVALCANTI, FERNANDA SILVA, ISABEL LIMA, LÍVIA VITALE, LUCAS ROCHA, LYGIA RIBEIRO, VICTÓRIA PEGORARA (1o ano de Jornalismo), ÉRICA AZZELLINI, GABRIEL ANGELO, SOFIA ROSSAS (2º ano de Jornalismo) e JULIANA SAIANI MOYSES (3o ano de Jornalismo) COLABORAÇÃO BRUNA RODRIGUES MEDINA, IZABELA SILVA, PEDRO DE QUEIROZ (1o ano de Jornalismo) e RAPHAELE PALARO (3o ano de Jornalismo)

50

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015


A ÁGUA É um recurso primordial para a vida humana — sem ela, o homem é incapaz de viver mais do que quatro dias. Porém, para os adeptos de algumas religiões, não é só o corpo que depende do líquido para sobreviver: dentro de crenças atuantes em todo o mundo, a substância é sagrada e possui diferentes efeitos e representações. Carregada de signos ligados à ideia de purificação, a água atua, geralmente, em rituais de renovação e troca de energias positivas.

ESPIRITISMO Na religião, a água é vista como um elemento sagrado e fundamental. O recurso é utilizado no ritual espírita conhecido como fluidificação em que quem dá o passe (canalização de “energias” benéficas) em um tratamento espiritual auxilia doentes e pessoas desgastadas emocional e fisicamente. A água fluidificada é a mistura de água pura com fluidos curadores. A deposição destes pode ser feita pela ação humana (Fluidificação Magnética) ao colocar as mãos sobre o recipiente com água, ou pelos espíritos propriamente ditos (Fluidificação Espiritual) sem nenhuma intermediação humana. Segundo Israel Steinbok, palestrante e passista, esta água “é onde espíritos de luz e alguns médiuns depositam a energia do amor, abençoada, magnetizada por bons fluidos”. Steinbok acrescenta, ainda, que a ingestão dessa água, apenas para quem tem fé, pode trazer conforto, boas energias, diminuir a tensão e até levar à cura. Segundo ele, está é uma prática antiga, que existe “desde que o mundo é mundo”.

UMBANDA Fusão do kardecismo com crenças africanas, a umbanda é uma verdadeira manifestação do sincretismo religioso no Brasil. Segundo Albert Gieg, frequentador do Recanto de Umbanda Mãe Iansã, em São Caetano do Sul, “se você imaginar que a água vinda do

chuveiro é uma pequena cachoeira, é possível purificar seu corpo físico ou pedir que esse líquido ajude a descarregar a energia negativa de um pesadelo ou de alguma coisa ruim que tenha se aproximado”. A representação da água na Umbanda é essencialmente feminina e vinculada à renovação: Iemanjá é a mãe dos mares, geradora de vida, que traz tranquilidade e abençoa os pescadores e suas famílias. Oxum pertence à água doce — rios, lagos, cachoeiras — e representa a maternidade e o afeto. Nanã é a grande avó, encontrada nas águas lamacentas, chamada quando se busca acolhimento e libertação do passado. É a sabedoria que se adquire com a idade. A água, como elemento purificador e condutor de energias, é essencial também para a cura na Umbanda. “Se nós somos 86% de água, podemos transformá-las através de vibrações em um líquido sadio, que foi magnetizada com pequenas partículas direcionadas à saúde do doente”, explica Albert. O ritual é simples: frascos com o líquido são energizados e entregues ao enfermo.

IGREJA EVANGÉLICA Criada a partir da Reforma Protestante de Martinho Lutero no século 14, a Igreja Evangélica deu margem para surgimento de várias correntes religiosas. Wilson Borelli, membro da Congregação Cristã no Brasil, conta que, nesta crença, a água tem um valor espiritual por ser o líquido usado no banho simbólico, e um valor material, já que é essencial à vida. O batismo evangélico é dado apenas aos adultos, porque esses podem identificar seus pecados e escolher tomar o banho espiritual, como símbolo de arrependimento e purificação. Na Congregação Cristã, os banhos normalmente acontecem em tanques, construídos atrás do púlpito da Igreja. Porém, nada impede que o batismo aconteça em um rio ou piscina, desde que previamente escolhido pelos anciãos — subpastores,

líderes da igreja. Ministrado pelo Dirigente Ancião da Igreja, a prática consiste em mergulhar o fiel na água e realizar o batismo em nome de Jesus Cristo.

IGREJA CATÓLICA O batismo católico é, talvez, o mais conhecido ritual religioso que utiliza a água. O padre Marcio Silva, da Paróquia Nossa Senhora da Conceição de Sabará, Zona Sul de São Paulo, conta que este líquido é usado por estar presente no mundo desde a Criação. Além disso, segundo a tradição, trata-se de um elemento que faz com que a alma do fiel renasça do pecado para uma nova vida. Na celebração, há uma oração com a qual o sacerdote abençoa a água, que adquire valores físico e espiritual: “[...] Já na origem do mundo, Vosso Espírito pairava sobre as águas para que elas concebessem a força de santificar. Nas águas do dilúvio, prefigurastes o nascimento da nova Humanidade de modo que a mesma água sepultasse os vícios e fizesse nascer a santidade...”. O recurso é muito utilizado também na festa de Vigília Pascal, na qual acontece a renovação das promessas do batismo. Durante a missa, a água benta é espargida nos fiéis — ritual conhecido como aspersão — enquanto é recitada a oração em que eles pedem o perdão a Deus pelos pecados cometidos. Além de sua utilidade nas celebrações de bênção, na entrada de igrejas católicas há sempre um pequeno altar com uma pia ou um recipiente contendo água benta. Padre Marcio explica os que ali entram podem fazer a persignação, que é o gesto do sinal da cruz, como modo de benzer a si mesmo, a outras pessoas ou a objetos.

ISLAMISMO “A principal instrução que o Islã dá sobre a água é que ela é, sobretudo, uma dádiva, uma graça dada pelo Criador”, explica o sheik Yusuffo Ahmad Omar, membro da Federação das Associações Islâmicas do

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

51


VICTÓRIA PEGORARA

A água fluidificada, para os espíritas, tem a função de ajudar pessoas desgastadas

Brasil. Segundo o Alcorão, livro sagrado do Islã, tudo — os vegetais e os animais — foi criado a partir deste elemento. Nessa crença, acredita-se também na importância de purificação antes de cada oração. Esse ritual chama-se ablução: “Lavamos as mãos três vezes, até o pulso. Depois, bochechamos a água e limpamos as narinas três vezes, sempre utilizando a mão esquerda para esses órgãos”, demonstra o Sheik. “Lavamos o rosto e o braço direito até o cotovelo três vezes, assim como o braço esquerdo. Por fim, passamos a mão molhada sobre a cabeça, nos ouvidos, nas pernas e nos tornozelos”. Só então o fiel está pronto para iniciar sua oração. O Sheik acrescenta que esse ritual acontece cinco vezes ao dia, antes de cada oração, e que deve ser feito com, no máximo, um litro. A água, aqui, não tem como objetivo limpar as impurezas físicas do corpo, mas sim, purificá-lo espiritualmente. Dentro de cada mesquita há um local com pias e torneiras especiais para que os fiéis façam sempre a ablução.

HARE KRISHNA É uma crença de origem indiana, fundada em 1966 por Srila Prabhupada. É uma religião monoteísta, sendo Krishna o único deus que se apresenta em diferentes formas. Essa religião foi construída com base em sete propósitos fundamentais, dentre eles, a propagação de uma vida mais simples e

52

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

sustentável. Por conta disso, o Hare Krishna, até os dias de hoje, tem fortes relações com a natureza e seus signos. A água é usada como oferenda às deidades (estatuetas que representam as várias formas de Krishna) na cerimônia de adoração, a chamada Pantcha Tattva. De acordo com Boddahn Tattva, sacerdote há 24 anos no Templo Hare Krishna do bairro do Pacaembu, são oferecidos oito elementos: a água, o ar, o fogo, a terra, o éter; a mente, a inteligência e o ego. A água é utilizada diariamente com a finalidade de banhar as deidades: “Este banho é feito todos os dias às 7h30, na cerimônia de adoração da manhã. É uma lavagem normal, como se dá a um neném, só que neste de Krishna temos algo mais místico, acrescentamos pétalas de rosas e algumas ervas ao jarro de inox junto à água. O banho representa o asseio corporal de Krishna”, diz Boddahn.

JUDAÍSMO Segundo Ruben Sternschein, rabino da Congregação Israelita Paulista, a água é o único elemento anterior a todas as coisas, que não foi criado, mas sempre esteve aqui: “Ela é a base, o antes, o durante e o depois. A água é o que envolve tudo”. “A primeira história, o maior legado de liberdade para a humanidade inclui a famosa travessia do mar. Essa passagem também pode ser considerado uma grande metáfo-

ra: a água fecha, a água abre, a água libera”, contextualiza o rabino. Na prática judaica existem vários elementos vinculados à água, sendo um deles a dependência da chuva, na qual reconhece que o homem, embora tenha grande poder sobre a natureza, depende também de outras forças além dela. No judaísmo isso é visto como algo bom, para que o homem não seja muito arrogante, pensando que tudo está aqui para servi-lo. Nesse sentido, a água representa o equilíbrio: “Desde sempre, na tradição judaica, existiam aquelas pessoas que sabiam fazer chover e entendiam a chuva como uma retribuição de um comportamento ético do ser humano em relação a outro ser humano e, principalmente, em relação à Terra”, ele reforça. Outro elemento relacionado à água é a Mikveh, um banho ritual. Para isso, a água precisa ser completamente natural, ou no mínimo, ter um percentual de água natural estabelecido pela lei judaica. Esse banho existe na tradição há mais de dois mil anos, e é utilizado por mulheres mais ortodoxas a cada vez que terminam um período menstrual. É também quando as pessoas se convertem para o Judaísmo, como se terminassem um processo e iniciassem um novo. Esse banho ritual representa o ventre materno, como se nascêssemos de novo: “Nascimento de uma nova etapa, um novo trabalho, novo relacionamento, um novo ano”, ele revela.


LYGIA RIBEIRO

RAPHAELE PALARO

O ritual de ablução, no islamismo, consiste em purificar partes do corpo antes de cada oração

No batizado católico, a água é utilizada por ser um elemento que existe desde a criação

FERNANDA SILVA

No Hare Krishna, a água é dada como oferenda às divindades

PARA SE PRODUZIR 1 kg de carne bovina, gastam-se 15.400 litros de água, que equivalem a 1.525 galões. Já para se produzir 1kg de açúcar, gastam-se 1.780 litros de água, o que equivale a 176 galões.

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

53


r s e ã o m i

SINESTÉSICA Os benefícios e os desafios enfrentados pelas mulheres que, em meio à cultura da cesárea, optaram pelo parto humanizado REPORTAGEM ANA MARIA BARROS, ANA CAROLINA PINHEIRO, BRIDA RODRIGUES, GABRIELLE VIANNA, TAINÁ FREITAS (1º ano de Jornalismo), GIULIANA SARINGER, JULIANA SANTOS, NATHALIA PARRA (2º ano de Jornalismo) e AMANDA LEMOS (3º ano de Jornalismo)

54

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

ACERVO PESSOAL

MULHER


NA TH IA ÁL

MESES DE REUNIÕES e acompanhamentos médicos, de cólica e apreensão, de nervosismo, ansiedade e de um amor, até então, inimaginável. Quando chega a tão esperada hora do parto, as surpresas continuam para os pais. Afinal, é um jogo de tentativas e erros, alarmes falsos causados por dilatações e contrações, e a imprevisibilidade da hora e lugar do nascimento. Entre tantas novidades, há, ainda, mais uma escolha a ser feita: a forma como será realizado o procedimento. Cada vez mais, mulheres se engajam na luta pelo parto humanizado e essa escolha depende do diálogo e da análise dos prós e contras. As casas com essa finalidade tornam o momento ainda mais confortável, pois são espaços que ajudam a família a receber o bebê a partir de cursos, debates sobre o papel das doulas (acompanhantes) e da medicina alternativa. Mesmo quando a decisão é tomada e o local, escolhido, há a preparação do ambiente, que deve estar alinhado aos desejos da futura mãe: incensos, pouca luminosidade, óleos corporais, músicas de fundo, a companhia do parceiro ou quaisquer outros elementos que tragam paz de espírito para a parturiente. Somente a conexão entre mãe e bebê importa, em um momento que, por definição, é tão íntimo e único para ambos. A principal característica do parto humanizado é o fato de respeitar o tempo, a vontade e o protagonismo da mãe, dando a ela a possibilidade de conhecer e entender o próprio corpo. É importante frisar que existem duas diferentes do procedimento, que são comumente confundidas: o parto normal é aquele em que a saída do bebê acontece através da via vaginal; o parto natural é o realizado sem intervenções químicas, como anestesia, analgesia e ocitocina. Assim como outros tipos de parto, os realizados na água também têm protocolos próprios: dias antes do procedimento,

é essencial que a mãe preencha uma série de documentos informando quais elementos devem ou não existir na hora H. Os partos humanizados na água acontecem em casas especializadas, como a Casa Ângela, na Zona Sul de São Paulo e, em alguns casos mais esporádicos, em hospitais da rede particular. Lucila Pougy, doula, estudante de Obstetrícia da Universidade de São Paulo, explica as diferenças de preço entre os partos: o humanizado, realizado apenas com a doula, custa em média R$ 1.500, enquanto outros, amparados por uma equipe médica, podem chegar a R$ 4 mil. Porém, a escolha ainda causa polêmicas: muitos médicos aprovam, outros não aconselham, algumas mães sonham que seus bebês nasçam na água, outras nem ao menos conhecem a técnica alternativa. O parto natural é ainda muito raro no Brasil, prova disso são os índices que colocam o país como recordista de procedimentos cirúrgicos. A chamada “cultura da cesariana”— uma lógica socioeconômica — é reforçada pelos argumentos de que há muitos empecilhos para a realização do procedimento via canal vaginal: falta de dilatação, cordão umbilical enrolado no pescoço do bebê, bacia muito estreita e bebê grande demais são alguns dos mitos difundidos pelos médicos para reduzir o número de partos normais. A falta de dilatação, por exemplo, depende de tempo: aguardar a hora em que o bebê está pronto é demorado e independe da vontade ou da pressão do médico e dos pais. Outra questão sempre em pauta ao se tratar de parto normal é a dor: hoje, é possível dar à luz de forma muito mais confortável, graças à participação de profissionais como a doula. Porém, para Luzia Nascimento, 32, mãe que optou por dar a

luz a seu primeiro filho na água, a dor é prazerosa: no momento do parto, ela diz que estava animada com a chegada do bebê e que, por isso, as contrações foram a última de suas preocupações. As mulheres adeptas ao parto humanizado e a parcela da classe médica que apoia essa escolha se preocupam em divulgar informações que mostram a importância de mudar o cenário atual brasileiro: segundo dados do Ministério da Saúde, 43% dos partos realizados no Brasil são cesarianas, enquanto a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que essa porcentagem não ultrapasse os 15%. Existem ainda medidas mais simples e de baixo custo para humanizar o parto, que podem ser facilmente adaptadas ao ambiente hospitalar, deixando a mãe mais segura. Uma delas é a presença do acompanhante de escolha dessa mulher — um companheiro pode tranquilizar e ajudá-la a relaxar. No passado, acostumar os médicos a entregarem o bebê aos braços das mães foi um processo demorado, mas importante para elas, já que coloca a mulher no foco do processo. A cesariana é vista como método mais seguro, mas pode oferecer inúmeras consequências à saúde da mulher e do bebê, tais como hemorragias, maior tempo de recuperação pós-parto, dor após a operação, trombose nos membros inferiores. O parto cesáreo pode salvar vidas em casos de extremo risco, mas, segundo pesquisa da revista médica Lancet, se praticado de forma desnecessária, também coloca em risco a vida de mãe e da criança. Um dos casos que pode ser solucionado apenas pela cesariana é o fenômeno da placenta prévia total, que acontece quando esta se desloca, bloqueando a saída do bebê. Se a mãe fizer força para tentar dar à luz, pode ocorrer uma hemorragia grave e levar ambos ao óbito.

R PA

RA

AM

AN D

A

M

A S

L DA

MO

AN

LE

EM

OS

Maira Pinheiros é doula e destaca a importância de sua função

A pediatra neonatologista Vanessa Haddad defende o parto humanizado

O respeito foi o que levou Luzia Nascimento a optar pelo parto humanizado

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

55


PARTOLÂNDIA Dar à luz de forma natural traz benefícios, como a produção de hormônios ocitocina pela mãe, que protegem o recém-nascido de danos no cérebro, além de ajudar no amadurecimento cerebral, e prolactina, que favorece a amamentação. Luzia Nascimento descreve como “partolândia” o local onde o nascimento acontece. Segundo ela, “foi uma delícia, eu estava muito conectada com meu corpo e com o bebê”. A ideia de buscar casas que realizassem esse tipo de parto surgiu enquanto assistia a um episódio do programa A Liga, exibido pela Rede Bandeirantes, que abordava o assunto e foi reforçada quando ouviu que a água ameniza a dor.

Luzia Nascimento conta que, diante do momento do parto, a dor não a incomodou

56

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

Durante o parto, a doula tem um papel fundamental, pois é responsável por permanecer todo o tempo ao lado da futura mãe, dando suporte físico e emocional antes, durante e após o procedimento. “Ela desempenha um papel que é essencialmente de sororidade”, contou Maira Nascimento, doula e apaixonada pelo que faz. Trata-se de uma dimensão prática do feminismo contemporâneo, o sentimento de irmandade entre as mulheres, que incentiva a aliança no lugar da rivalidade. Além disso, para Maira, “é um privilégio participar desse momento de grande importância na vida de outra mulher. Trata-se de acolher a outra, sem esquecer que o protagonismo na gestação é dela, assim como no parto e no corpo”. Antes do procedimento, a doula é responsável pela orientação do casal acerca das expectativas para a concepção, além de explicar o passo a passo e ajudar a futura mãe a se preparar para o momento. Durante o nascimento, ela é a mediadora entre a equipe e a grávida: simplifica os termos médicos e atenua a distância profissional exigida pelo ambiente hospitalar. Após o nascimento, ela visita a nova família e oferece ajuda em questões como amamentação e cuidados com o recém-nascido. Ao definir o parto na água, Maira afir-

ma que “é uma expressão muito bonita do feminino que ainda é desconhecida. Nós vivemos escondendo o que sentimos e o que se passa no corpo. O parto é o contrário disso. É fluxo corporal, é barulho, é cheiro, é grito, é intenso, é se conectar com seus instintos”. Na opinião da doula, hoje, a falta de informação a respeito desse procedimento é grande. A maioria dos médicos não dá essa opção às pacientes, por estarem acostumados com as cesáreas e porque os hospitais não dispõem da estrutura necessária para a realização do parto na água, como banheiras, por exemplo. Em consonância à última parte do discurso de Maira, a pediatra neonatologista, Vanessa Haddad, afirma que a cesárea é muito cômoda para os obstetras, pois “há um grande volume de cirurgias feitas por dia”. A médica explicou que o parto na água gera dúvidas e falta de controle da situação e, por isso, muitos não são adeptos ao procedimento. Para a grávida, a melhor escolha é informar-se e consultar médicos diferentes para conhecer suas opiniões profissionais a respeito do parto. Segundo Corrêa, “escolher o lugar é um benefício, não necessariamente na água”. Embora seja um assunto sem consenso, a escolha deve ser sensata, discutida e, principalmente, capaz de tornar o nascimento um momento único na vida da gestante. Segundo Denise Costalonga, mãe que também optou por parir na água, “o respeito foi o motivo que me levou a procurar o parto humanizado”. Assim como ela, todas as mulheres têm o direito de se preocupar em como querem que o procedimento ocorra e como elas e seus bebês serão tratados.

ACERVO PESSOAL

Segundo Carlos Eduardo Corrêa, pediatra especializado em neonatologia, o parto na água se popularizou durante a década de 70, a partir do movimento feminista, quando a humanização do ato tornou-se uma questão de protagonismo da mulher. Para o pediatra, “a estratégia da água é válida e traz bem-estar para a parturiente, além de ser mais suave para o bebê”, já que a transição entre os universos uterino e externo é menos brusca. O estudo “Morte materna no século 21”, publicado em 2008 no periódico American Journal of Obstetrics and Ginecology, analisou mais de um milhão de partos e concluiu que a taxa de morte nos procedimentos naturais foi de 0,2 para cada 100 mil casos. Nas cesáreas, a proporção é 2,2. Claro que parte dos partos foi realizada em situação de risco para mãe ou filho, mas o aumento desse procedimento cirúrgico é preocupante.


MARI CURY

A natação infantil é benéfica para a respiração e o desenvolvimento físico

ro das p dent isc r o P Segundo Ivo Parizan, coordenador ina

s

da academia Competition, no bairro da Bela Vista e especialista em natação para bebês e crianças, quanto mais cedo os pequenos tiverem contato com a água, desenvolverão com maior facilidade todos os benefícios estimulados pela natação. Entre eles, estão o tônus muscular, o aprimoramento dos reflexos, a coordenação motora, o aumento do condicionamento cardiorrespiratório e o preparo psicológico e neurológico da criança para reagir em uma situação de afogamento. Para Parizan, não há uma idade mínima para introduzir os bebês ao mundo da natação: o especialista acredita que aos seis meses, o início é plausível, pois a maioria das vacinas já foi aplicada. Além disso, o coordenador da Competition enfatiza a importância dos pais no processo de aprendizagem aquática, pois há crianças que chegam às escolas de natação sem muita experiência com piscinas, dificultando o aprendizado.

to sem riscos r a P Apesar do que é propagado pelo senso comum, o bebê não pode se afogar ao nascer na água. Ao abandonar o ambiente uterino e imergir na piscina ou banheira, ele continua respirando pelo cordão umbilical, de modo que a água não pode sufocálo. A pediatra neonatologista Vanessa Haddad conta que durante a gestação, o feto fica abrigado na placenta, repleta de líquido amniótico. Nesse período, a criança engole e aspira os fluidos com os quais divide o espaço, já que o pulmão ainda não funciona. Ao entrar em contato com o ar pela primeira vez, o bebê chora e, assim, o pulmão abre e inicia as trocas de ar com o ambiente. “É falsa a crença de que o ginecologista obstetra dá um tapa no neném para ele chorar”, explica. “Ao cair na água, se o feto imergir diretamente, sem ter contato com o ar primeiro, não tem problema”, explica. Entretanto, se por algum motivo a criança nascer e depois entrar na água, ele bronco-aspira (a broncoaspiração acontece quando o alimento, saliva ou secreção faz o caminho errado), e pode ter pneumonia. O único papel do pediatra no parto humanizado na água é cortar o cordão umbilical e examinar o bebê, que é colocado junto à mãe.

CAMINHOS DE VOLTA Depois de tratada, a água percorre vários quilômetros de tubulação para chegar aos. Através do sistema de ligação domiciliar vai para as caixas d’água, e depois para nossas torneiras.

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

57


CÂMERA TRÊS FOTOGRAFIAS

LITERATURA

58

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015


aura

aquosa A poesia de Mário de Andrade pelas margens do Rio Tietê REPORTAGEM FELIPE MINORU SAKAMOTO (1º ano de Jornalismo), BÁRBARA MUNIZ e FERNANDA VENTURA (2º ano de Jornalismo) COLABORAÇÃO MARIANA CAPUCHO (1º ano de Jornalismo), LARISSA HERRERA (2o ano de Jornalismo) e JOÃO HIDALGO (3o ano de Jornalismo) IMAGEM ISABELLA MORI (1º ano de Jornalismo)

“ÁGUAS DO MEU Tietê, onde me queres levar?”, questionava o poeta Mário de Andrade, já calejado por tantas angústias urbanas. Assim, à deriva do rio, da cidade e de si mesmo, o modernista concebe os primeiros versos de “A meditação sobre o Tietê”, penúltimo poema de sua obra Lira Paulistana (1946), em que retrata a relação entre o caráter do homem de São Paulo com as correntezas lúgubres do rio. No início dos anos 1930, o Tietê passou a ser um esgoto industrial e urbano na capital, destruindo, assim, o lazer e a vida à sua margem. Em resposta à violenta poluição, foi criada, em 10 de janeiro de 1940, a Comissão de Investigações da Poluição das Águas do Estado, que fiscalizava e indicava uma média da quantidade de poluentes que os rios e lagoas pudessem suportar. Contudo, esse decreto não impediu que o rio morresse biologicamente. Tal era o contexto que Mário de Andrade se encontrava ao meditar sobre o Tietê, cada vez mais adestrado pela urbanização, pela qual poeta sentia-se sufocado. Outrora era o escritor atrevido da Semana de Arte Moderna de 1922, mas, já no fim da primeira metade da década de 40, o vemos diante do rio, escuro e oleoso em decorrência da poluição, e que, consequentemente, envolveu o autor em seus derradeiros momentos no mundo. A escuridão citada como alegoria em “A meditação sobre o Tietê” representa, além do processo de putrefação do rio, a futilidade e a superficialidade da sociedade paulistana, que Mário de Andrade tanto critica no poema: “Demagogia pura. Mesmo carregada de metáforas/Mesmo irrespirável de furar nas falas reles: Demagogia”, pois não impediu a morte do Rio Tietê e nem que fosse menos poluído. Em 1955, afinal, o esgoto de

todas as indústrias paulistanas passou a ser despejado em suas águas. Carlos Augusto de Andrade Camargo, sobrinho do escritor, que conviveu com o tio até os cinco anos de idade, revela esse momento específico da vida de Mário: “Em ‘A Meditação sobre o Tietê’ ele já era mais maduro, já tinha sofrido muito na vida, já tinha passado pela política, já tinha sido diretor do Departamento de Cultura e, no fim, havia sido demitido por razões políticas. Então, tentou fugir [por meio da poesia] e isso o amargou profundamente”. O poema é um náufrago de suas tormentas. Sem ar, o modernista apela para um conformismo revolucionário. Desconforta-se, pois dentro de si voa a “borboleta translúcida da humana vida”. Não há como separar os versos de Mário nesse poema sem persistir no tempo histórico de sua produção: “A Meditação sobre o Tietê” é considerado o testamento do autor, escrito treze dias antes de sua morte, com uma energia crítica e psicológica. O rio e o homem seguem a mesma corrente: a morte. A corrupção da civilização corrompe as águas limpas dos que não reagem. O homem é como o rio, visto que não reage à sujeira que a sociedade o impõe, assim, aceitando o sistema opressor que o faz sofrer até o fim da vida. Mário deposita no curso da água as amarguras, amores e desencantos que teve com a cidade de São Paulo. Carlos Augusto de Andrade conta, porém, que o tio também usava a cidade como fonte de inspiração em uma boa perspectiva: “Ele apreciava muito São Paulo e gostava, principalmente, de sentar e conversar com pessoas mais simples, que ficassem do seu lado e fizessem passar o tempo. Dessa forma, ele colhia material para os contos, para as histórias que

escrevia e, inclusive, para as poesias”. Mário não andava sem o seu caderno de anotações. O que via e ouvia, o que conversava e sentia, não se resumiu apenas à sua produção literária, mas também aos estudos históricos e linguísticos do autor: “Mário era apaixonado pela língua, especificamente por duas coisas: o folclore, que ele acreditava ser a raíz do Brasil; e a cultura brasileira, do tempo colonial”, conta Carlos de Andrade. É essa ânsia por interpretar o brasileiro que deixa o escritor à beira de sucumbir em seus últimos versos. Em “A meditação sobre o Tietê”, parece que o conhecimento a respeito das facetas vorazes da ambição humana satura o escritor, como fica explícito no seguinte excerto: “Não posso continuar mais, não tenho, porque os homens não querem me ajudar no meu caminho”. O enxofre da poluição entorpece as vias de esperança de um poeta que parece pressentir a efemeridade do fim da própria vida. Só que quem morre é o rio de Már-rio. Ele não pode morrer totalmente, porque há nele a vastidão do mar, do amar. Artista que é todo maresia: “E me salvo no eternamente esquecido fogo de amor (...) O amor do amor, Maria!”. Mário é amor de Maria. Marítimos são seus versos que nadam, mesmo imersos pelas sombras do Tietê. “Primeira voz sabida, o Verbo”, prega Mário, como um sacerdote das palavras. Como alguém que deixa a essência registrada para que ela vire mito, um homem que será homenageado pela Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) de 2015, setenta anos depois de ter escrito sua lápide: “Rio, o que eu posso/ fazer!/ Rio, meu rio... mas porém há-de haver com certeza outra vida melhor do outro lado de lá/ da serra! E hei-de guardar silêncio/ deste amor mais perfeito que os homens?”. O poeta não se calou.

PARA ONDE VAI? O Estado de São Paulo dispõe de cinco estações de tratamento de esgoto: ETE ABC, ETE Barueri, ETE Parque Novo Mundo, ETE São Miguel e a ETE Suzano.


ESPORTES

CONQUISTAS

submersas

Atletas e treinadores falam sobre a rotina na água e o futuro dos esportes aquáticos brasileiros a um ano dos Jogos Olímpicos REPORTAGEM AYUMI FUMAYAMA, GABRIEL MANZO, LUIZA FERRAZ, MARINA RUIZ ROMANO (1º ano de Jornalismo) STEFANY OLIVEIRA, VITÓRIA BARALDI e YASMINE LUNA (2º ano de Jornalismo) ILUSTRAÇÃO HELÔ D’ANGELO (3º ano de Jornalismo)

AMY KLINK, CESAR Cielo, Gustavo Borges, Poliana Okimoto, Felipe Perrone, Robert Scheidt e os irmãos Grael: brasileiros e atletas. Cair na água, para muitos, significa lazer e diversão; para outros, profissão. Os esportes aquáticos conquistam cada vez mais adeptos no Brasil e, entre amadores e profissionais, as atenções se voltam para as Olimpíadas de 2016 no Rio de Janeiro. Mesmo que os praticantes ainda constituam um pequeno grupo, eles são responsáveis pelas maiores marcas olímpicas do Brasil: das 108 medalhas conquistadas pela delegação brasileira em toda a história da competição, 29 foram na água. A vela é a campeã, com dezessete pódios, sendo seis de ouro. A natação completa esse quadro, porém, com apenas uma áurea entre doze medalhas. No entanto, não é só de vela e natação que vivem os atletas aquáticos brasileiros. Nas Olimpíadas, a disputa é acirrada, também, no nado sincronizado, no remo, no polo aquático, nos saltos ornamentais e na maratona. Independente da forma, a paixão pelas práticas de baixo d’água reluz os sonhos de nossos esportistas.

Polo Aquático Apesar de pouco conhecida e ainda menos praticada no Brasil, essa atividade foi o primeiro desporto coletivo a fazer parte dos Jogos Olímpicos. A prática, que cresce paulatinamente no país, se prepara para os jogos no Rio de Janeiro com grandes expectativas sobre as seleções feminina e masculina. Ives Gonzalez, atleta da equipe brasileira, acredita que o polo aquático é o esporte mais difícil do mundo: para ele, isso se deve à necessidade de muito preparo fí-

60

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

sico, pensamento técnico, tática e senso de coletividade, tudo em alto nível estratégico, combinado às habilidades esportivas e respiratórias da natação. Sobre as Olimpíadas de 2016, Ives mostra-se confiante: “Nossa seleção tem grandes chances de jogar de igual para igual contra as melhores e mais tradicionais do mundo’’. Nos últimos anos, houve grandes mudanças em relação à prática no Brasil — hoje, é menos comum encontrar jogadores

que precisam ter outra ocupação para sobreviver. O futuro parece promissor: a seleção brasileira conta com atletas de ponta, como o carioca Felipe Perrone, considerado um dos melhores do mundo, além do renomado técnico Ratko Fudic. Porém, nem tudo são flores: Ives queixa-se da falta de interesse das emissoras de televisão aberta pelo polo aquático, o que leva à falta de público e visibilidade, dificultando a conquista de patrocinadores importantes.


Remo

Nado Sincronizado Quando surgiu, apenas homens praticavam o nado sincronizado, cenário muito diferente do atual. O esporte expandiu-se, principalmente, através da nadadora australiana Annette Kellerman, após uma apresentação histórica na cidade de Nova York, em 1907. Porém, a regulamentação como modalidade olímpica só aconteceu quarenta anos depois, durante os Jogos de Londres. Ao combinar elementos da natação, da dança e da ginástica, a prática acabou atraindo desproporcionalmente mais esportistas mulheres do que homens, por isso, a modalidade masculina do nado sincronizado só foi regularizada no Brasil em 2014. Nas competições oficiais, os atletas são avaliados em quesitos como criação artística, sincronia dos movimentos com a música e qualidade técnica

da performance. Apesar de delicado, o nado sincronizado exige de seus praticantes habilidades como força física, flexibilidade e excelente controle de respiração dentro da água. “Nós estamos passando por um período complicado. Todo o investimento nacional está ligado às Olimpíadas”, explica Milena Maior, técnica da equipe do Corinthians. No clube paulista, as atletas têm de sete a quinze anos e uma rotina de quatro horas diárias de treino, que se dividem em preparação física, natação e coreografia. Milena alerta para a importância da relação entre atleta e piscina, que deve existir antes mesmo dos treinos de nado sincronizado: “O ideal é que os praticantes tenham boa adaptação aquática, resistência física e já saibam nadar as modalidades crawl e costas”.

Considerado um dos mais completos, o esporte britânico trabalha com intensidade exercícios aeróbicos e cardiovasculares, com destaque aos membros superiores — por isso, a atividade se popularizou entre os atletas paraolímpicos. O sonho de disputar a jogos do Barão de Coubertin leva vários adeptos à Raia Olímpica da Universidade de São Paulo (USP) semanalmente. Um deles, Kim Shaaban, 19, é estudante de Design de Games e comenta sobre a falta de divulgação do remo como prática esportiva: “Se você quer saber sobre a modalidade, tem que ir para a internet, já que a televisão não mostra”. Nascidas às margens do rio Tâmisa, em Londres, as competições de remo podem ser realizadas sobre superfície aquática de comprimento maior que dois quilômetros de extensão. Também há catalogação em relação ao tipo de barco, chegando a oito categorias que se diferenciam pelo número de atletas. No Brasil, o destaque da modalidade é Fabiana Beltrame, remadora campeã mundial eleita seis vezes a melhor do país pelo Comitê Olímpico Brasileiro (COB). Enquanto o foco de todos está em 2016, Kim mira os jogos de 2020: “Meu maior desejo é disputar as Olimpíadas de Tóquio”.

Natação Popular entre os brasileiros, o esporte é recomendado para melhorar a respiração e o fôlego das crianças (saiba mais na página 57 desta edição da Revista Esquinas). Para Adriano Klingelbt, técnico da academia de natação Hebraica, “a prática é benéfica graças à temperatura da água e, também, ao trabalho respiratório. Muitos dos grandes atletas começaram a treinar por recomendação médica, porque tinham bronquite asmática”

— ele cita, como exemplo, o brasileiro campeão mundial Nicholas Santos. Há quatro modalidades — costas, peito, borboleta e crawl — e o conjunto de todas na mesma prova é chamado de medley. Além disso, disputam-se provas em piscinas curta e longa. Os atletas dividem-se entre velocistas, que realizam de seis a oito treinos por semana, e maratonistas, que mantêm um cotidiano com cerca de doze treinos semanais.

“Tem muita gente boa querendo trabalhar, mas também tem muita gente ultrapassada competindo”, define Klingelbt, sobre o cenário atual da natação brasileira. O técnico acredita que muitos talentos desistem da carreira por causa da falta de estrutura. Por outro lado, ele vê com bons olhos a nova geração de nadadores, em especial a equipe feminina, com destaque para Etiene Medeiros.

ESGOTO ILEGAL Segundo o Instituto SocioAmbiental, 20% da população de São Paulo reside em lugares onde não há coleta de esgoto. Para elas, a saída é o despejo irregular.

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

61


ENTREVISTA

O filme A Lei da Água explicíta as relações do novo código florestal

62

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015


PELA

DIVULGAÇÃO

CONTRA REGRA

O cineasta André D’Élia diretor de A Lei da Água — Novo Código Florestal, fala de sua luta política contra a degradação ambiental REPORTAGEM CAMILA JUNQUEIRA , LAÍS FERNANDES , MARCELA CORREA (1o ano de Jornalismo), e JÚLIA FAVERO (2o ano de Jornalismo) COLABORAÇÃO ANA CLÁUDIA BETTONI, ANA LUIZA COUTO, IGOR QUILICI BRUNALDI, ISABELA BARBOSA, LAVINIA BARTOLOMEI BORTOLOTTO (1o ano de Jornalismo) e PEDRO DAHER (2o ano de Jornalismo)

ENQUANTO AGUARDAVA, ANSIOSO, o início da sessão de seu novo filme, André D’Élia cumprimentava a todos com a felicidade estampada no rosto. O Espaço Itaú de Cinema da Rua Augusta estava cheio de espectadores convidados, que faziam fila em frente à sala em que seria apresentado o documentário A Lei da Água — Novo Código Florestal. Com o banner luminoso do filme exposto ao seu lado, André conversou com a Revista Esquinas sobre seu trabalho e, principalmente, sobre a relação da produção do documentário com a crise hídrica que estamos enfrentando. Em um filme sobre ciência, agricultura, política e, principalmente, ecologia, o cineasta levanta questionamentos sobre a legislação ambiental e a redução das áreas de mata ciliar e de preservação, além da anistia para crimes ambientais. A Lei da Água — Novo Código Florestal é um documentário brasileiro que foi produzido na tentativa de esclarecer os efeitos práticos dessas normas: a produção, feita em formato didático, reúne diversos depoimentos de cientistas, políticos, produtores rurais e ambientalistas para mostrar a relação entre o novo Código Florestal aprovado pela presidente Dilma Rousseff e a atual crise hídrica brasileira, expondo a importância das florestas para a conservação desses recursos no Brasil. Entre outros exemplos, o filme apresenta técnicas agrícolas sustentáveis bem sucedidas e casos em que a degradação ambiental exacerbada impede a continuidade de qualquer tipo de cultivo ou criação de animais. Dessa forma, André D’Élia assume um compromisso com a sociedade brasileira, mostrando ao público como a lei ambiental afeta a vida de cada cidadão e expondo com a sua opinião de forma firme e resoluta.

A reforma do Código Florestal foi aprovada em 2012. Você logo pensou em produzir o filme ou a ideia foi amadurecendo depois, conforme o desenvolvimento da crise hídrica? Em 2012, quando aprovaram o Código na Câmara, eu tinha vontade de fazer um filme sobre isso, mas nós não tínhamos fôlego, nem as parcerias certas. A ideia concreta surgiu depois, com a necessidade de contribuir com a Ação Direta de Inconstitucionalidade. A iniciativa de complementar esses estudos científicos, de tentar traduzir, de criar uma peça mais didática e de fácil assimilação para o público como um todo veio de ONGs, do Instituto Socioambiental (ISA), da World Wide Fund for Nation (WWF) Brasil, do Instituto de Democracia e Sustentabilidade (IDS) e da Associação Bem-te-vi Diversidade. E como foi o processo de pesquisa para a realização do documentário? Foi um trabalho intenso. A pesquisa é grande parte do processo e foi segmentada por veículos: algumas pessoas ficaram só na mídia impressa, outras ouvindo rádio, assistindo televisão ou lendo jornais antigos. Além disso, tivemos ajuda do pessoal do Instituto Socioambiental, que tem um acervo de pesquisa e notícias relacionadas à causa. E eu tenho guardado reportagens que considero interessantes a respeito dessa discussão sobre o Código Florestal desde 2009. A crise hídrica estava sendo prevista há um bom tempo, mas, mesmo assim, a reforma do Código foi aprovada, prejudicando nascentes, rios, e lagos. Na sua opinião, por que, mesmo diante dos alarmes, a reforma foi assinada?

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

63


JÚLIA FAVERO

O diretor André D’Élia fala sobre o atual cenário da crise hídrica e outras questões políticas ligadas à água

Acredito que muitos dos parlamentares que estão no Congresso tomaram atitudes sem pensar no interesse social, mas sim no interesse de corporações, atendendo a grandes lobbies dentro da Câmara e do Senado. Principalmente em relação à questão da anistia, que envolve o perdão de multas. Nesse contexto, vários processos que já estavam sendo finalizados, ou até mesmo que já haviam sido julgados, foram revertidos. Houve uma grande insegurança no setor jurídico. E, quando a lei muda dessa forma, o Ministério Público fica sem ação. Então, acredito que a aprovação do Código aconteceu a favor do benefício político, não social. Do seu ponto de vista, o que prejudica a mudança da proteção da vegetação nativa das margens dos rios, lagos e nascentes, tendo como parâmetro o período de cheias, como era antigamente, e o nível regular da água, como é agora? Essa mudança parece pequena, mas acarreta consequências drásticas, principalmente, por conta da sazonalidade dos rios da Amazônia. Eles sobem e descem muito durante um ano. O Pantanal, por exemplo, tem um período de cheia em que atinge altas amplitudes. Quando muda-se a medição (o que indic o leito regular

64

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

passa a demonstrar a medida do rio quando seco) ocorre a desproteção das grandes áreas alagadas, de lugares de ecossistema sensível. Na Amazônia, a área afetada por essa mudança de regra equivale a 400 mil quilômetros quadrados — mais ou menos os estados de São Paulo e Paraná juntos. É muita floresta que agora pode ser destruída e desmatada em decorrência dessa mudança, que parece simples e inofensiva, mas que diz muita coisa. Se a Cantareira tivesse seus mananciais protegidos, como defende o filme, a crise hídrica seria menos alarmante? Com certeza. Essa degradação não é de agora. Não é só culpa do governo e dos proprietários atuais. Trata-se de um processo histórico, principalmente no nordeste do estado de São Paulo. Evidentemente, isso afeta a qualidade e a quantidade de água disponível. A pesquisadora Lilian Katz, especialista em Ectio fauna [peixes], faz o acompanhamento de 35 riachos e, desses, 31 secaram, desapareceram por completo. Os quatro restantes diminuíram e só um aumentou o fluxo. Este último é do único proprietário que aceitou participar do programa de restauração de nascentes. Então, é fato que a solução para a crise hídrica da Cantareira, que abastece a cidade de São Paulo, não é construir mais canos, nem mais


reservatórios, mas, sim, investir em restauração florestal, em médio prazo, de 9 a 15 anos. Assim, haveria um aumento significativo do fluxo de água nas nascentes e nos rios. A água de precipitação, de chuva, acabaria sendo captada para os reservatórios. Nas matas, a água entra em contato com o solo e evapora, ou é misturada com o sedimento, e já não fica mais própria para o consumo humano. Pela floresta, garante-se que 70% desse recurso realmente alimente o reservatório. Se assim fosse, por meio das chuvas que ocorreram nesse verão de 2015, o reservatório já estaria bem mais cheio.

dadão brasileiro. Além de dar a entender que desmatar vale a pena, tira totalmente a credibilidade do governo como tal. Existem leis pétreas, ou seja, que não podem ser mudadas. E quando isso ocorre, mostra-se que o não cumprimento de tais leis pode, futuramente, ser anistiado por um novo lobbie político. Portanto, quem desmatou depois de 22 de junho de 2008 foi anistiado — e nada impede que essa data seja prorrogada novamente. Para o Brasil, como instituição governamental, essa é uma medida realmente desastrosa, que ameaça a democracia e a Constituição Federal.

Informação e denúncia são elementos fortes no documentário. Você espera, dessa forma, conscientizar um número grande de pessoas? Sem dúvidas. Meu trabalho é dar informação, auxiliar nesse processo de formulação de conceitos, para que as pessoas possam se defender. A linguagem é a grande forma de combater um voto mal pensado, por exemplo. No entanto, vale lembrar que, mais importante que conscientizar, trata-se aqui de uma campanha de comunicação. O que estamos dizendo para as pessoas é: “A mudança na legislação florestal realmente foi muito ruim. Porém, você deve, sim, preservar sua mata ciliar, sua nascente.” Acho que as pessoas estão começando a entender que não podem depender apenas do poder público. Nós não somos máquinas que fazem só o que nos mandam. Então, se os congressistas em Brasília estão dizendo que desmatar vale a pena, não significa que nós devemos fazer isso. É essa a ideia que o filme pretende passar. Acho que é uma mensagem de esperança, e eu estou otimista, apesar do cenário político assustador. Temos uma maioria de ruralistas na Câmara e uma presidente que não consegue governar. O cenário é de uma crise hídrica severa, além de uma crise política e econômica, que se deve à falta de planejamento e a políticas energéticas equivocadas. De certa forma, a crise econômica está, também, relacionada ao meio ambiente, à economia do meio ambiente.

O documentário defende que água e agricultura devem ser coexistentes. No caso do gado, que provoca extenso desmatamento na Amazônia, quais são as possíveis medidas para evitar danos ao meio ambiente? A primeira medida é a delimitação de sua circulação nas beiras dos rios e das nascentes. O pisotear dos animais em áreas marginais pode prejudicar a água e a regeneração da vegetação nativa. A manutenção da reserva legal também é muito importante na questão pecuária, não só pela questão da água, mas pelo próprio pasto. Quando o proprietário degrada o riacho que existe em sua propriedade, não poderá mais usar a água que por ele era provida, logo, terá que trazê-la de outro lugar. Quando ele tem a água do riacho disponível — que é o caso de vários pecuaristas que os preservam adequadamente — a irrigação do pasto se torna possível e este, por sua vez, aumenta a produtividade, pois a quantidade de comida é muito maior. Então, para a pecuária, também é muito importante a restauração de nascentes, da vegetação e da reserva legal. O pecuarista ganha muito com isso. Ninguém gosta de morar em um ambiente desequilibrado. Não há quem queira se fixar em um local seco e quente.

Sabemos que a solução para a crise hídrica deve ser plural, ou seja, deve surgir de um conjunto de ações administrativas e individuais. O que você tem a dizer sobre as soluções viáveis? Eu acredito que esses projetos de pagamento aos serviços ambientais são muito interessantes. Por exemplo, tem um projeto na cidade de Extrema [interior do estado de São Paulo] que paga pelos serviços ambientais dos proprietários de terras: se o indivíduo é dono de uma nascente e ele a preserva, produzindo água para o município, nada mais justo do que o município pagá-lo, ajudando-o a manter o serviço. Há também a conscientização dos agricultores e do setor agropecuário mais moderno e mais interessado no futuro de seus investimentos, à medida que percebem que a atual forma de ocupação da terra não é sustentável. Depois de 6 a 8 anos, o campo de soja desses proprietários não produz mais tanto e o gado já está magro. Enfim, eu acredito que o próprio setor está optando por preservar e cuidar das florestas e manter a vegetação nativa dentro dos limites das suas propriedades. Dentre as mudanças propostas pelo Novo Código, qual você considera a mais prejudicial? Acredito que a Anistia é a que mais afeta a vida do ci-

Você acredita que o Novo Código Florestal poderia ter instituído uma condenação aos proprietários rurais que desmataram terras, independentemente de terem agido conforme a lei da época em que se deram os fatos? É difícil saber quando e quanto a pessoa desmatou. Dizem que por fotos de satélites é possível ter controle. Eu, particularmente, sou cético quanto a isso. Mesmo se fosse possível, punir quem estava agindo conforme a lei não é certo. Então, tem que haver um estudo para definir, de fato, quanto esta pessoa tem que restaurar da sua reserva legal. Em último caso, ela vai restaurar 50%, que é a metragem que valia até o Fernando Henrique Cardoso mudar as normas. Não é questão de ser a favor ou contra a restauração, tem que estudar o uso do solo com mais benefícios para a sociedade. Você pretende continuar explorando assuntos relacionados à água? Sim! Acho que a questão da água é importantíssima, tem muito assunto. Existem vários rios importantes do Brasil secando, micro bacias que estão se perdendo. Acho o problema da poluição industrial muito importante. Queria encerrar dizendo que o centro da questão, aqui, é falar de política sem falar de partidos. A ideia agora, especialmente considerando a gravidade da crise hídrica, é abrir o diálogo, independente de partido ou classe social. A situação atual é um momento de mudar os rumos da história, de sentar para dialogar com todo mundo e resolver o problema.

HISTÓRIA Em 1842, foi criado o primeiro projeto de captação e distribuição de água na cidade e, em 1876, a primeira rede de esgotos começou a ser construída. A Sabesp só foi criada em 1974, centralizando esses serviços.

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

65


QUADRINHOS POR HELOÍSA D’ANGELO (3º ano de Jornalismo)

66

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015


A MAIOR ESTAÇÃO DE TRATAMENTO DO BRASIL A maior estação de tratamento do Brasil é, também, a maior do mundo. A ETA Guandu, no Rio de Janeiro, produz atualmente 43 mil litros de água por segundo, abastecendo mais de 9 milhões de habitantes da região.

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

67


ALI NA ESQUINA

FUGERE

Entre nenúfares e vitórias-régias, o Lago das Ninfeias é um constante convite para escapar da vida urbana e aproveitar a natureza REPORTAGEM ARIA PARK, BIANCA GOMES, LAIS GLAESER, MIKE CAMPOS (1º ano de Jornalismo) e PAULO HENRIQUE POMPERMAIER (2º ano de Jornalismo) COLABORAÇÃO CAROLINA MORAES e GUSTAVO ORIENTE (1º ano de Jornalismo) IMAGEM MIKE CAMPOS (1º ano de Jornalismo) ILUSTRAÇÃO THAÍS HELENA REIS (4º ano de Jornalismo)

Nós precisamos da tônica da Natureza. Ao mesmo tempo que somos sinceros para explorar e aprender todas as coisas, nós queremos que todas elas sejam misteriosas e inexploráveis, que terra e mar sejam indefinivelmente selvagens, desconhecidas e insondáveis por nós. Nunca teremos o suficiente da Natureza. H.D. Thoreau

68 ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

SÃO PAULO: PROFUSÃO caótica de concreto, postes, edifícios, carros. Mas não é só isso: em uma de suas misteriosas veredas existe um refúgio idílico, afastado da correria da cidade. Rodeado por centenas de espécies nativas da Mata Atlântica, o Parque Estadual das Fontes do Ipiranga (PEFI) abriga o Jardim Botânico e as nascentes do histórico Riacho do Ipiranga. Entre as diversas atrações do parque, encontra-se o Lago das Ninfeias, um represamento do Córrego Pirarungáua. Construído entre 1929 e 1930, a lagoa chama atenção pelas curvas que a margeiam e, principalmente, pelas ninfeias, plantas aquáticas e coloridas que florescem de novembro a maio. Já na entrada do Jardim Botânico, o Córrego Pirarungáua, afluente do Ipiranga, orienta os visitantes. Depois de passar pelo Jardim de Lineu (que leva o nome de um médico, botânico e zoólogo sueco) e pelas estufas que simulam o clima do Cerrado e da Mata Atlântica, é possível avistar o espelho aquático, pontilhado pelas Ninfeias em sua superfície. A beleza exuberante do represamento é cenário, não só para os amantes da natureza, mas também para as lentes das câmeras. De acordo com a fotógrafa Mariana Moraes, do Empório Quatro Fotografia (grupo paulista especializado em retrato de bebês e famílias) que estava fotografando uma gestante, o lugar foi escolhido graças às flores: “Sem elas teria um aspecto mais sujo”. À frente do Lago, os caminhos são múl-

tiplos. Pode-se seguir a trilha que leva até a nascente do Riacho do Ipiranga, ou conhecer novas atrações, como o Jardim dos Sentidos e o Portão Histórico, por onde passava a água que abastecia a região sudeste da capital do Estado. A trilha para a nascente é suspensa, para evitar que o caminhar dos visitantes provoque erosões. Além disso, ela também permite o trânsito dos cadeirantes — a acessibilidade permeia vários ambientes do Jardim Botânico. Ao aproximar-se da nascente, a vazão de água é cada vez menor, até o ponto em que se resume a um pequeno filete, no qual se percebe a fragilidade das nascentes e a importância de conservá-las. De acordo com Matheus Bernardo, do Núcleo de Pesquisa e Educação para a Conservação, “o Jardim depende da água para sobreviver e a água depende da mata para se manter”. O Lago das Ninfeias é artificial, ou seja, foi planejado por ambientalistas. Porém, toda a água é proveniente da nascente localizada dentro do Jardim, que também é utilizada para irrigar toda a área verde do lugar. Segundo funcionários do núcleo de pesquisa do parque, essa medida gera uma economia de mais de um milhão de litros por mês. De acordo com Matheus Augusto e Ingrid Araújo, também do Núcleo de Pesquisa e Educação para a Conservação do Jardim Botânico, graças à nascente encontrada na região, a crise não afetou o volume hídrico do lago, nem os cuidados necessários para a sua manutenção.


O Lago das Ninfeias, no Jardim Botânico, atrai olhares e lentes dos fotógrafos

Ao todo, o Lago abriga mais de trezentos espécies de algas que, além de serem bioindicadoras de poluição, servem de alimento para vários peixes da região e, assim, produzem uma grande quantidade de oxigênio. Segundo o Instituto de Pesquisa em Vida Selvagem e Meio Ambiente (IPEVS), essas plantas “invisíveis” são responsáveis por produzir, aproximadamente, 55 % do volume de oxigênio do planeta. No todo, o Jardim é uma excelente opção, seja para fotografar, caminhar ou simplesmente escapar da cidade e respirar ar puro sem precisar ir muito longe. Área extensa de 540 hectares, a reserva ambiental pode servir de refúgio no meio da loucura urbana, uma espécie de Fugere Urbem (fugir da cidade), para a pura contemplação, como faziam os românticos.

Onde? Jardim Botânico de São Paulo Av. Miguel Estefano, 3031 - Vila Água Funda, São Paulo - SP - Brasil

Quando? O Jardim Botânico funciona de terça a domingo e feriados (incluindo feriados que caem na segunda-feira) das 9 às 17 horas.

Contato? (11) 5067-6000 (11) 5073-3678 http://jardimbotanico.sp.gov.br/ contato

Quanto? Ingressos: Público em geral: R$ 5. Estudante/idoso acima de 60 anos: R$ 2,50. Crianças até 4 anos e portadores de necessidades especiais são isentos de pagamento.

Estacionamento? Carro de passeio: R$ 8. Moto e afins: R$ 4. Vans, ônibus e micro-ônibus: R$ 20. Os valores cobrados são para o dia inteiro.

COMPOSIÇÃO DA ÁGUA A água no Estado de São Paulo pode ter composição diferente em cada região, já que as medidas são definidas de acordo com o local. O teor ideal é de 0,7mg/L (miligramas por litro), mas pode variar entre 0,6 e 0,8mg/l.

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

69


CRÔNICA TEXTO ANDRÉ DOMINGUEZ (3º ano de Jornalismo) IMAGEM DÉBORA STEVAUX (2º ano de Jornalismo)

dilema

novo MAIS AFOGADO QUE Ípsilonzê naquele estado, só mesmo o terceiro copo, de vidro, estaticamente bambolelê posicionado sobre a mesa de metal. Ao cabo de amargas flexões e reflexões de braço, a caricatura elevara o grau de espírito a níveis de invejar o mais dedicado dos monges-de-olhos-ovais. Cabeça pendular, ora terreno, ora divino, Ípsilonzê ouvira — não se sabe como — do senhoril da boemia uma advertência de causar espécie: “água lhe cairia bem, agora”. — Puf !, bufou a criatura: quem dera uma taça do chuveiro! A última que dei trato foi já faz climas. “Engula esta, direta vinda da biqueira”, triplicou o velho barbudo e redondo. Obteve, porém, apenas uma resposta em forma de tosseriso rouco e asmático. “Arre! Não faz sentido recusar recurso tão raso a essa altura, cabra! Caso sim, secas antes mesmo da represa”. Concentrado em seu mantra ébrio, Ípsilonzê não retrucou. Ao contrário, voltou a mergulhar-se no mar alcoólico e translúcido cujo fundo espelhava a cor amarelada da superfície que, ali, sustentava o mundo. Ípsilonzê nasceu em noite invernal, chuvosa, quase apocalíptica. Inato, o trauma a aquosidade guiou-lhe os passos e os

70

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2015

feitos desde a infância até a juventude, rumo ao afastamento completo — vindo a compreender o significado do líquido somente quando na maturidade. Agora no boteco, diante da última dose de aguardente que suas estruturas suportariam sem ceder ao caos, Ípsilonzê atravessava o dilema vital: diante do ziguezague dos olhos, ‘ser’ ou ‘não ser’ cabiam nas dosagens aritméticas das transparências ambíguas, conflitantes. Exausto, o proprietário do estabelecimento capenga cansara-se da metafísica do cliente e deixou Ípsilonzê sozinho, às conversas oblíquas com seus colegas envidraçados. A solidão não produz incômodo ao nosso personagem. Acostumara-se ao monólogo. Àquele dia, por exemplo, esteve consigo mesmo até o fim do expediente do bar. De volta à cena principal: ambos os copos, oferecidos a si tal quais as pílulas azul e vermelha, Ípsilonzê decifrou o enigma da esfinge de modo, no mínimo, cinematográfico. Figura corisca, copo em riste dividindo o rosto em metades simetricamente desproporcionais, Ípsilonzê encara o público, quebra a quarta parede e readapta o roteiro: — O sertão vai virar mar, e o mar vai virar sertão.

QUANTAS? No Brasil existe cerca de 7.500 estações de tratamento de água, uma das maiores, a Cantareira, abastece cerca de 8,1 milhões de pessoas.


SEÇÃO TEXTO NOME DO AUTOR (Xº ano de Curso) IMAGEM NOME DO AUTOR (Xº ano de Curso)

71

ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2012


“Sarcástico rio que contradizes o curso das águas E te afastas do mar e te adentras na terra dos homens, Onde me queres levar? ...” Mário de Andrade em “A Meditação sobre o Tietê”


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.