ESPECIAL 20 ANOS
REVISTA-LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO DA FACULDADE CÁSPER LÍBERO #58 - 2º SEMESTRE DE 2015
VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA
Nove anos depois da Lei Maria da Penha, ela continua perto de você
EDITORIAL
FICA, VAI TER
Revista-laboratório do curso de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero
Fundação Cásper Líbero Presidência Paulo Camarda Superintendência Geral Sérgio Felipe dos Santos Faculdade Cásper Líbero Diretor Carlos Costa Vice-Diretor Roberto Chiachiri Filho Coordenadora de Jornalismo Helena Jacob
bolo
Editora-chefe Bianca Santana Monitoria Editores Felipe Sakamoto, Mariana Gonzalez e Naiara Albuquerque Revisão Ana Clara Muner, Felipe Sakamoto, Guilherme Venaglia e Naiara Albuquerque Editora de Arte e Fotografia Carolina Mikalauskas Diagramação André Valente, Ana Carolina Siedschlag e Carolina Mikalauskas Participaram desta edição Alessandra Petraglia , Aline Tavares, Allan Baptista, Allan Correia, Amanda Ravelli, Ana Beatriz Azevedo, Ana Beatriz Fidelis, Ana Carolina Marcheti, Ana Carolina Pinheiro Alves, Ana Clara Giovani, Ana Clara Muner, Ana Isabella Cascione, Ana Júlia Cano, Ana Luiza Sheludiakoff Couto, Ana Maria Barros, André Valente, Andressa Isfer, Anna Beatriz Oliveira, Aria Park, Bárbara Gaspar, Bárbara Ligeiro, Bárbara Muniz, Beatriz Araújo, Beatriz Carvalho, Beatriz Issler, Beatriz Manfredini, Beatriz Vilanova, Brenda Zacharias, Breno Zonta, Bruno Ignácio de Lima, Bruno Macedo, Camila Almeida, Camila Gambirasio, Camila Junqueira, Carol Vbo, Carolina de Barros, Carolina Mikalauskas, Claudia Ratti, Daniela Demori, Denise Kanda, Erick Noin, Felipe Minoru Sakamoto, Fernanda Baccaro, Fernanda Silva, Fernanda Ventura, Fidel Forato, Flávia Piza, Gabriel da Costa Calvino, Gabriel Nunes, Gabrielle Viana, Giovanna Sutto, Giulianna Muneratto, Guilherme Venaglia, Guto Martini, Hares Datti Pascoal, Heloisa Barrense, Hênio Urtado, Isabelle Caldeira da Silva, Isadora Pinheiro, João Pedro Siqueira, Julia Guadagnucci, Júlia Storch, Julia Vizotto, Julia Zayas, Julya Vendite, Karolina Bergamo, Karoline Alves, Laís Fernandes, Laís Franklin, Laís Glaeser, Larissa Rosa, Laura Leite, Letícia Furlan, Letícia Sé, Lígia Neves, Lívia Figueiredo, Lívia Vitale, Lucas Cabral, Luísa Cortés, Luisa Panza, Lygia Ribeiro, Marcela Palhão, Marcela Schiavon, Marcella Salazar, Maria Vitória Ramos, Mariana Dib, Mariana Guimarães, Mariana Marvao, Matheus Moreira, Matheus Oliveira, Mayara Rozário, Nataly Paschoal, Nathalia Parra, Paulo Henrique Pompermaier, Pedro Daher, Pedro Ernesto Bettamio, Renato Brigati, Renato Lamanna, Samantha Soares, Tainá Freitas, Teó França, Thais May, Thaís Monteiro, Thaís Torres, Ugo Sartori, Victoria Schechter, Vítor Ferreira, Vitória Baraldi, Wagner Lauria Junior, Yulia Serra
BIANCA SANTANA
Há 20 anos, as esquinas viravam jornal. No primeiro editorial, a explicação: “pretende tratar das ruas e das pessoas que fazem das ruas um lar ou local de trabalho.” O objetivo era “quebrar o muro de vidro”, que separava as pessoas dos automóveis daquelas que ocupavam as calçadas, tanto pelas reportagens quanto pela distribuição dos exemplares, vendidos nos faróis por meninas e meninos de rua. Sob a responsabilidade de Luís Fernando Camargo de Araújo, arte de Toshio Yamasaki e apoio da então chamada Secretaria da Criança, Família e Bem-Estar Social e depois do Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua, a publicação ampliava a missão de ser um locus de experimentação jornalística para ser também uma possibilidade de renda para quem vivia nas esquinas de São Paulo. Em 1996 torna-se temático. Com Marcos Faerman, a publicação “mergulha apaixonadamente — com método, paixão, boa pesquisa, vontade de investigar coisas e personagens — nesta Paulicéia de neons e antenas”. Pela grande reportagem, “uma escola de jornal e um laboratório de textos, fotos e formas”. Aloysio Biondi, Carlos Costa, José Arbex Jr., Maurício Stycer, Igor Fuser, Rosangela Petta e Heitor Ferraz Mello foram os professores que seguiram na orientação das mais de mil reportagens produzidas por estudantes. Eu, que assumo agora este papel, volto à Esquinas dez anos
depois de ter sido repórter e editora discente. Honra e alegria incalculáveis. O tema desta edição? Vinte anos de Esquinas, vinte anos de Brasil. Pela releitura de 19 reportagens selecionadas pelos atuais editores Naiara Albuquerque, Felipe Sakamoto, Mariana Gonzalez e Carolina Mikalauskas, resgatamos o passado para reportar o presente. Na reportagem da capa, Lar Violento Lar, Letícia Furlan, Mariana Marvao, Bárbara Muniz, Claudia Ratti, Luisa Panza e Thaís Torres atualizam a abordagem publicada em 2002 por Maria Júlia Coutinho (sim, a amada Maju) e Marina Camargo. Infelizmente, 13 anos e uma Lei Maria da Penha depois, a violência doméstica persiste entre mulheres de diversas idades, etnias e classes sociais. Publicar as vozes de algumas delas é nossa forma de contribuir para o enfrentamento do problema, ao mesmo tempo em que exercitamos o ouvir apurado, a pesquisa e a observação, tão essenciais à boa reportagem. Para 2016, uma nova Esquinas está sendo planejada. Quais muros ainda precisamos quebrar? A que mergulhos apaixonados a Pauliceia convoca? Pela grande reportagem, que textos, fotos e formas estudantes de jornalismo devem experimentar? A colaboração para responder aos desafios dos novos tempos é mais que bem-vinda. Enquanto isso, boa leitura!
Imagem de capa: © Vitor Garcia Zocarato Agradecimentos Adalton Diniz, Adriana Nakasone, Daniela Demori, Eduarda Germano, Helô D’Angelo, Vitor Garcia Zocarato Núcleo Editorial de Revistas Avenida Paulista, 900 – 5º andar 01310-940 – São Paulo – SP Tel.: (11) 3170-5874/5814 E-mail: revistaesquinas@gmail.com Site: casperlibero.edu.br/revista-esquinas Errata A aluna Carol Vbo participou da reportagem Futuro Engarrafado da edição 57 da revista Esquinas
Na Esquinas #58, retomamos 19 reportagens publicadas ao longo da história da revista. Nossas equipes de reportagem foram para as ruas perceber o que permanece e quais as mudanças nas esquinas.
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SUMÁRIO
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08 MAPA SEM FOME
30 SEXO EM CENA
10 NO FLUXO DA RIMA
34 “É COMO SE EU NÃO PRESTASSE MAIS”
14 CORDA BAMBA
38 SAGRADA FAMÍLIA
16 MERCADO DA FÉ
40 LGBT
20 19 ANOS DE CINGAPURA
42 LAR, VIOLENTO LAR
24 CRIANÇAS CONDENADAS
48 POUCA GRANA
Como os programas sociais melhoraram a alimentação dos moradores da cidade
A qualidade dos beats e a crítica social reafirmam a importância do rap como manifestação cultural
A vida e a luta por direitos daqueles que se aventuram pelo mundo do circo
O consumo dos fiéis e a influência política das igrejas neopentecostais
O projeto social de Paulo Maluf que recebeu centenas de famílias paulistanas e reproduz uma política de segregação
A Esquinas visitou uma unidade da Fundação CASA, conversou com internos, seus familiares e representantes da instituição
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A retratação de mulheres objetificadas e o comércio pornográfico no centro de São Paulo
Ex-presidiários enfrentam estigmatização e preconceito depois de cumprirem suas penas
A influência de grupos e políticos religiosos nas votações do Plano Municipal de Educação (PME)
A invisibilidade das lésbicas, transexuais e travestis na luta por direitos, dentro e fora da militância
Mesmo após a criação da Lei Maria da Penha, a violência doméstica ainda é parte do cotidiano das mulheres
Quanto custam hoje os produtos que valiam uma moeda no início do Plano Real?
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50 MÃO NA CABEÇA E DOCUMENTO
68 SOB DUAS RODAS
52 PROTAGONISTA DA NOVELA NACIONAL
SEÇÕES 03 EDITORIAL 06 ESQUINAS 70 CRÔNICA
O abuso policial como consequência de uma política de guerra às drogas
A imagem do juiz Sérgio Moro e sua influência na Operação Lava Jato segundo especialistas do direito e da comunicação
56 QUEM MEXEU NA MINHA INFÂNCIA?
Como a prática ilegal do trabalho infantil continua naturalizada no ambiente urbano
A equipe da Esquinas ouviu opiniões de especialistas sobre a ciclovia da Marginal Pinheiros
58 HISTÓRIA EM CONCRETO
Casas antigas preservadas dividem a paisagem com o abandono de outras construções
62 PARECE BRINCADEIRA
A desigualdade na vida de duas meninas da zona norte de São Paulo
64 FAVELA CIDADÃ
Os moradores da comunidade Monte Azul em um cotidiano repleto de atividades culturais ESQUINAS – 2º SEMESTRE 2015
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ESQUINAS
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O QUE (NÃO) MUDOU de lá para cá
“O TEMPO É a minha matéria, o tempo presente... a vida presente”. Carlos Drummond de Andrade finaliza a obra Sentimento do mundo com esses últimos versos do poema Mãos Dadas. Escancarar o agora e pousar o olhar para o próximo são os temas mais marcantes destes versos, feitos por um poeta quase jornalista.
Desde 1995, a revista Esquinas é feita por alunos-repórteres que vivem o presente, escrevem histórias, publicam denúncias, pensam a sociedade e projetam um futuro. Para comemorar estes 20 anos, nós, Carolina Mikalauskas, Felipe Sakamoto, Mariana Gonzalez e Naiara Albuquerque, editores da revista, decidimos resgatar as
reportagens mais marcantes com o intuito de investigar como muitos dos assuntos abordados no passado seguem atuais. Ao final de cada uma das 19 reportagens desta edição, indicamos a original que a inspirou. Aqui, destacamos três temas relevantes do presente, que já estavam no nosso radar há mais de dez anos.
“‘As mulheres ficam com nojo delas mesmas. E, se são casadas, têm muita vergonha do marido,’ observa a psicóloga Elaine Silva (...). O sentimento de culpa é também frequente. As mulheres acreditam que, se não estivessem com determinada roupa ou se tivessem feito outro caminho, poderiam ter evitado o estupro.’’
edição 26, abril de 2002
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“Que o leitor tire suas conclusões; o que é tolerância, o que é intolerância, quem é santo ou herege, onde está céu, terra, inferno e o homem. Na dúvida, que o Divino ouça as palavras do polemista alemão Karl Krauss: ‘Senhor, perdoai-os, porque eles sabem o que fazem.’”
edição 26, abril de 2002
“‘Fui para a UAI (Unidade de Atendimento ao Interno) do Brás e batizado por um monitor com socos e cotós (murro na boca do estômago). Depois que caí, o monitor Jamaica me chutou várias vezes. Só podia me dirigir aos funcionários por senhor e senhora, tinha que olhar somente para baixo e ficar sentado o dia inteiro de mãos para trás’, denuncia S.Z.”
edição 24, agosto de 2001 ESQUINAS – 2º SEMESTRE 2015
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PROGRAMAS SOCIAIS
fome mapa sem
Segurança alimentar na cidade de São Paulo REPORTAGEM JULIA VIZOTTO, LÍVIA FIGUEIREDO (1º ano de Jornalismo), JÚLIA STORCH (2º ano de Jornalismo) e ALESSANDRA PETRAGLIA (3ºano de Jornalismo) IMAGEM GOOGLE MAPS DESIGN ANDRÉ VALENTE (3º ano de Jornalismo)
ENTRE AS DÉCADAS de 1990 e 2000 o total de subnutridos caiu, mas, as respostas mais significativas à fome no Brasil vieram em 2012, quando o país reduziu sua taxa de carência alimentar para menos de 5% de sua população. Ainda assim, de acordo com dados divulgados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), sete milhões de pessoas vivenciam condições de desnutrição no Brasil. Considerada um problema nacional, a desnutrição afeta principalmente as regiões Norte e Nordeste, atingindo respectivamente 36,1% e 38,1% da população. Em contrapartida, a Organização das Nações Unidadas (ONU) destaca que o país tem desempenhado um importante papel no combate à fome. Esse progresso está vinculado a programas governamentais como o Bom Prato, oferecido pela Secretaria de Desenvolvimento Social de São Paulo e do Bolsa Família, projetado pelo governo federal, que auxiliam no acesso mínimo necessário para a segurança alimentar de crianças, adultos e idosos. Apesar do sucesso dos programas criados pelo Governo Federal, ainda existem beneficiários que criticam as iniciativas. É o caso de Eduardo Wilson, de 49 anos, que trabalha como flanelinha na Praça Roosevelt há 15 anos e recebe o auxílio do Bolsa Família há menos de dois. Ele diz que “Quando está um dia bom de calor, de sexta e sábado, eu faço 150, 160 ou 180 reais, mais do que o Bolsa Família”. Todo final do mês, recebe o valor de 78 reais que são enviados por ele
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para Maceió, onde o recurso ajuda seu filho, pai de uma criança pequena. Segundo Eduardo, o dinheiro recebido é pouco. “Não dá para nada, antigamente com cem reais dava para ir ao mercado e comprar a cesta básica completa. Hoje, você pega dois ou três produtos e o dinheiro acaba. Assim, não adianta de nada o Bolsa Família”, critica. No Bom Prato localizado na rua 25 de março — uma das 49 unidades do programa que tem como objetivo garantir uma alimentação saudável e de boa qualidade a um preço acessível à população de baixa renda — Marcos, 47 anos, espera sua vez na fila, formada em sua maioria por homens com cerca de 40 anos e em situação de rua. Além da fome, carrega no braço direito cicatrizes das facadas que recebeu de um dono de restaurante que não aceitava pedintes famintos em seu estabelecimento. De fato, o álcool e o crack afetam integralmente sua vida, mas, por vezes, consegue trabalhar como pintor para garantir uma renda mínima, inclusive o um real necessário para o seu almoço no restaurante popular. Já na zona oeste da cidade, na unidade do bairro da Lapa, o Bom Prato apresenta um público mais diversificado: composto por mulheres, trabalhadores assalariados, idosos, deficientes físicos e até mesmo crianças. O artista Luís Fernando conta que há mais de 12 anos frequenta a unidade, onde entretem o público da fila com seu violão, que aprova o bom som, conseguindo alguns trocados por sua arte. A respeito dos mora-
dores em situação de rua que deveriam frequentar o local, ele comenta: “Tem uns que normalmente estão muito sujos, se sentem mal de vir aqui e acabam não comendo. O público daqui é mais seleto, são trabalhadores e lojistas da Lapa”. Para ele, a música popular é uma forma de amenizar a irritação dos que estão com a barriga vazia e ansiosos. A rede de restaurantes populares atende em média 1200 pessoas por dia e funciona a partir de subsídios governamentais, que custeiam parte das refeições. Entre seus fiéis clientes, está Paulo, um senhor aposentado cego e cantor de uma das igrejas católicas da região. Ele recebe diariamente atenção especial na unidade da Lapa, a qual sempre frequenta: logo ao chegar, é abordado pelos funcionários que o direcionam a um lugar vago na mesa e levam seu prato de comida. De acordo com a Secretaria de Desenvolvimento Social, todo alimento preparado é cautelosamente definido por uma nutricionista, que procura estabelecer uma dieta balanceada e saudável, com média de 400 calorias no café da manhã e 1200 no almoço. O cardápio varia de acordo com o dia da semana. Na unidade da Lapa, às sextas-feiras, são servidas porções de arroz, feijão, escondidinho de carne moída, farofa com legumes e salada. Isso tudo é acompanhado por um copo de suco e uma fruta de sobremesa. De manhã, pão com frios e café com leite são oferecidos ao valor de R$0,50. O público que frequenta o local costuma dizer que os pratos são saborosos e bem temperados.
Na imagem, as 22 unidades do Bom Prato da cidade de São Paulo. São 49 em todo o estado. Em destaque, os visitados pelos repórteres da Esquinas.
Esta reportagem foi baseada na anterior “MAPA DA FOME EM SÃO PAULO”, publicada na edição 29 do jornal Esquinas de SP, em junho de 2003
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© PABLO BERNARDO
MÚSICA
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no FLUXO
da RIMA
Além das denúncias às mazelas sociais, a nova geração do rap nacional se destaca pelos beats elaborados REPORTAGEM ANA BEATRIZ AZEVEDO, BEATRIZ ISSLER (1º ano de Jornalismo) e CAROLINA DE BARROS (2º ano de Jornalismo) COLABORAÇÃO LAURA LEITE (1º ano de Jornalismo), LAÍS FRANKLIN e PEDRO DAHER (2º ano de Jornalismo) FOTOGRAFIA ANA BEATRIZ AZEVEDO (1º ano de Jornalismo) e © PABLO BERNARDO (Flickr) DESIGN CAROLINA MIKALAUSKAS (2º ano de Jornalismo)
A MC Bárbara Sweet é conhecida por levantar a bandeira feminista em suas composições
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Para Eloy Polêmico, o rap deve transmitir uma mensagem e instigar o raciocínio
BEATRIZ ISSLER
É A MÚSICA de resistência. Vem das ruas, das batalhas e retrata as vivências. O rap é a poesia que vem da margem, que aos olhos dos mais privilegiados é menos valorizada e subversiva. “Eles querem que alguém que vem de onde nois vem seja mais humilde, baixe a cabeça, nunca revide, finja que esqueceu a coisa toda”, canta Emicida, em uma de suas mais novas composições, Mandume. Quem rima escancara a realidade, trazendo à tona as indignações dos movimentos sociais. A nova geração do gênero musical traz uma característica interessante em termos de composição, as referências. É muito comum encontrar menções a filmes, livros, personagens e, principalmente, outras figuras do rap, como por exemplo, o grupo Sabotage que faz referência ao grupo Racionais, Mc’s da zona sul de São Paulo: “som paloso, tenebroso, toca fita pionner, ouvindo Racionais passear no parque, 95 abalou, apavorou cidade quem é me compreende, quem é rap sabe”. Assim como o rapper Eloy Polêmico se refere ao personagem de quadrinhos inglês Juiz Dredd, “informação é dinheiro, assim nasce o diabo, na rua, o Juiz Dredd tupiniquim a mando de quem? Sambar na lei é hobby é só pra quem tem!”. O rapper e criador da festa Projeto Enxame, Zapi, da zona oeste de São Paulo, apresenta alusões musicais e acredita que esse estilo de música é algo produzido de forma orgânica, de dentro para fora. “Eu escrevo o que vem do coração e através das lentes da minha visão,
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da minha própria vivência, consigo interpretar a sociedade”, afirma. Reiterando o papel que o rap tem em apontar um questionamento a partir de uma visão individual, mas que gera uma emoção e compreensão coletiva. Muitas das rimas começaram de improvisos em batalhas de rap, que acontecem normalmente durante as noites em ruas e vielas. De boné, bermudas largas e tênis, os jovens que sonham em ascender na cena musical, se posicionam à meia luz debaixo dos postes. Em uma roda, quem assiste à competição fica em volta de dois oponentes que têm segundos pra rimar, um respondendo ao outro, na velocidade do momento, com um tema escolhido na hora. O vencedor é aquele que obtiver a maior intensidade de palmas e gritos da platéia. Grandes nomes do rap atual surgiram assim, principalmente na famosa batalha da Santa Cruz, que acontece em frente ao metrô homônimo. Foi o caso da MC Barbara Sweet, natural de Belo Horizonte, Minas Gerais, conseguiu visibilidade após viralizar com o vídeo em que responde insultos machistas durante uma batalha na Santa Cruz. Aos 13 anos, teve a primeira experiência com o estilo, ouvindo Racionais, Wu Tang, Dina Di e RZO e, por brincadeira, rimava e realizava o freestyle. Somente aos 16 anos encarou o segmento como algo sério para o futuro. O rap levanta bandeiras e denuncia problemas, Sweet traz o ímpeto feminista para
a sua rima e não teme em se afirmar feminista. O coletivo Minas no Mic, criado por ela em conjunto com outras MCs, Flocos, Kaká e Clara encorajam a presença de mulheres nesses espaços, majoritariamente formados por homens. Além dessa iniciativa, existe a Liga Feminina de MC’s, um duelo nacional de freestyle apenas para mulheres. Eloy Polêmico, MC de 27 anos e ex-estudante de filosofia, é mais um dos representantes da zona norte de São Paulo. Em seus quatro anos de experiência, não deixou a desejar em termos de lírica, beat e composição. Rimar para ele, sempre foi a necessidade de dizer algo. E, inclusive, um prazer: “Eu inventava histórias, às vezes, fazia algumas músicas para a mãe do meu filho, mas sem pretensão alguma. Até que me vi tão imerso naquilo que não conseguia mais parar, então pensei ‘Por que não falar de coisas mais sérias?’ Foi aí que comecei a escrever coisas mais maduras”, conta. A mensagem crua não é mais característica marcante da nova geração do rap. O objetivo é instigar o raciocínio, as letras devem formar uma mistura inteligente. Quando questionado sobre essa nova cara do rap nacional, Eloy comenta: “Quanto a música, e não a questão social que o rap envolve. Existe um estudo falando de técnicas de rima, modo de escrever, a maneira como você coloca uma palavra para rimar com outra, tudo isso engloba todo um método que você
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Os integrantes do grupo ALMA acreditam que diferentes grupos sociais podem contribuir para o rap
acrescenta na música para dar a sonoridade bacana para quem está ouvindo”.
APROPRIAÇÃO CULTURAL A nova geração do segmento, não advinda da periferia, que não sofre com o preconceito racial, está sendo acusada de apropriação cultural. Eloy Polêmico conta que “Existem várias críticas, mas eu não consigo enxergar algo negativo nisso, porque, querendo ou não, é um espaço que o rap está ganhando. Acho importante destacar que a crítica deve chegar no ‘filhinho de papai’ que não está ligado em nada na vida e não sabe o que está acontecendo na periferia. Tem muito cara que pensa ‘meu som é da periferia’, mas não dá para fechar as portas para os outros”, analisa. A função do rap é se preocupar com o próximo e realizar uma crítica com o intuito de alcançar o maior número de pessoas, acredita o integrante do grupo de rap paulista, Leal, “Eu não tenho preconceito nenhum, o cara pode ter milhões e gravar uma música. Todo mundo fala dos caras do Haikaiss [grupo de rap], que eles são ‘boyzão’, e daí? Eles tão fazendo um trampo sério. A crítica pode vir por outro olhar, eu posso não passar fome, mas posso falar de alguém que passa”. Zi, um dos integrantes do Nume, grupo formado recentemente da região de São Caetano do Sul, com suas origens distantes da periferia, explorou a questão do raio de alcance da mensagem, mostrando que a apropriação
cultural é na maioria das vezes construtiva: “acho que até expande o raio de crítica e de debate, sabe? Porque uma pessoa de classe baixa vai falar até onde ela vê, assim como uma pessoa de uma classe mais alta, então é um complemento, algo que se constrói em conjunto”. Entretanto, as noções de protagonismo juntamente com a discussão da apropriação cultural são pautas desse movimento musical. Ainda que a ampliação crítica e a conscientização sejam construídas sob uma nova visão, se tornando assim mais abrangentes, é preciso saber o lugar de fala de cada indivíduo. “É muito injusto isso. Mas também é uma parada que cai naturalmente, não vai ser extinta. O cara que não é da periferia, que é branco, não vai ter a mesma essência que um cara que vem da periferia”, pontua o integrante do grupo de rap ALMA, Wendel. Para Hardy, a voz daquele que vive na periferia tem mais credibilidade em comparação ao ‘‘turista’’, porque o rap é o seu cotidiano. “Você pode falar do que você entende, pode até estudar a fome, mas eu não sei como é isso de verdade. E se alguém que sente isso falar, vai ser muito mais considerado do que eu opinando”, conclui Hardy, integrante do Nume. Além da responsabilidade em termos de composição, é muito cobrado pelos MCs uma postura em suas vidas, sendo uma característica mais acentuada nesse gênero devida a carga de realidade que as composi-
ções trazem. Fazer rap não é somente escrever uma letra em um beat, é uma conduta e algo que você acredita. Joe Sujeira, também da zona norte, explica que em termos técnicos o rap é a música mais fácil de criar, somente com um beat e um microfone a pessoa consegue performar o estilo, o que dificulta é ter a inteligência de criar uma rima boa que chama a atenção. “O rap é muito ligado a você fora da música. Eu sempre falo: ‘por que você não gostou dessa música?’. As pessoas respondem que não entendem o que o cara estava falando, assim acabam não acreditando que aquilo é verdadeiro”. Sinceridade é um valor do rap, senão o público não acredita, essa característica é uma questão de conduta dentro do movimento, explica Joe. O gênero tem novas técnicas de rima, de beat, de flow, tem pessoas de todo lugar que fazem o som, mas a raiz continua viva cobrindo um buraco que a escola e a televisão nunca vão conseguir cobrir: o de ensinar a vida de uma maneira real em uma linguagem comum. “Essa é a causa do rap, educar de um jeito que a escola nunca vai conseguir”, diz o rapper Leal. O estilo é informação, que não depende do governo e muito menos da televisão. As rimas são bem pensadas e a coerência das letras é o diferencial. O estilo ecoa nas ruas, nos becos, na periferia, na cidade e dentro dos condôminos mostrando que a música, além de entretenimento, consegue realizar mudanças.
Esta reportagem foi baseada na anterior “PARADOXO CULTURAL”, publicada na edição 48 da revista Esquinas, em dezembro de 2010
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CULTURA
CORDA
bamba A realidade circense segue permeada por magia e falta de acesso a direitos REPORTAGEM BEATRIZ VILANOVA, THAIS MAY (1° ano de Jornalismo), HELOISA BARRENSE (2° ano de Jornalismo) e ERICK NOIN (3° ano de Jornalismo) FOTOGRAFIA THAIS MAY (1° ano de Jornalismo) DESIGN CAROLINA MIKALAUSKAS (2º ano de Jornalismo)
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TUDO ESTÁ ESCURO e, de repente, apenas o centro do palco é iluminado. Os artistas vão tomando o picadeiro, um após o outro. A bailarina é cheia de graciosidade, o malabarista se exibe com o fogo, o palhaço arranca gargalhadas das crianças e os acrobatas e equilibristas se aventuram em grandes alturas. O público fica maravilhado ao olhar o espetáculo e, ao final, as cortinas se fecham mais uma vez. É hora de desmontar tudo e seguir viagem. Assim é a rotina dos artistas que dedicam a vida ao picadeiro, que percorrem o Brasil afora. Leia dos Santos, trapezista e artista de tecidos do circo Spacial, conta que em uma de suas estréias, a chuva alagou a região e atolou a bilheteria. A solução foi pegar a enxada e puxar o barro para que a água pudesse descer. “Todos põem a mão na massa”. A estrutura do Circo Spacial conta com cerca de 35 trailers, 22 carretas e mais de trinta toneladas de ferro que a trupe carrega durante a andança. “É preciso ter muita fé, porque você coloca sua casa, com todas as suas coisas na estrada, correndo o risco de sofrer um acidente”, conta Marlene Olímpia Querubim, vice-presidente da União Brasileira de Circos Itinerantes (UBCI) e fundadora do Circo Spacial há trinta anos. Com uma rotina cheia de surpresas, a vida de itinerante encanta e atrai centenas de espectadores de todas as idades. As pessoas buscam algo que fuja de seus cotidianos, enxergando os artistas quase como super-heróis. Segundo levantamento da Associação Brasileira de Circo (Abracirco), existem cerca de 180 picadeiros itinerantes no Brasil. Porém, quem conversa com Marlene não sente tama-
nho desespero em seus planos para o Circo Spacial. Segundo ela, a chave para continuar em circulação e atrair expectadores é usar as redes sociais, como o Facebook e o Youtube. Além disso, acredita muito na capacidade dos artistas e na qualidade de seus funcionários. “O artista brasileiro é muito criativo, é só perceber o que temos hoje nas companhias do mundo inteiro. Nos destacamos. Por exemplo, temos mais de trinta pessoas que trabalham no Cirque du Soleil. Então por essa alta qualidade, somos referência para muitos lugares. Sempre arrumaremos solução, de uma maneira ou de outra”, afirma Marlene.
ADOLESCÊNCIA DIFERENTE Vivendo sob diversas emoções, a trapezista, Leia dos Santos, quando adolescente, descobriu a arte circense por acaso. Orientada a fazer exercício físico por um médico, foi atrás de uma escola de circo, onde se apaixonou pelo tecido. “Treinei por um ano, então o meu professor, que já trabalhava no Circo Spacial, me indicou quando a equipe precisava de alguém nesta área. Vim, fiz o teste, passei e estou aqui há sete anos”. Fazer planos, para Leia, está fora de cogitação. Sua vida é muito imprevisível e raramente tem certeza se terá disponibilidade para reencontrar alguém na próxima semana. “Eu sempre falo para os meus amigos ‘meu negócio é o agora’”. Essa ausência de rotina é outra razão pela qual decidiu trabalhar como artista circense. “Eu gosto de viajar e me incomoda ter rotina. Não me agrada esse padrão”. Independentemente dessa vida alternativa e de perder aniversários de família, Leia
afirma que sua decisão de entrar no mundo do picadeiro foi movida pelo amor, “Eu caí aqui e não pretendo sair, só se for para fora do Brasil, nem para outro circo eu quero ir”.
A ARTE LUTA Os picadeiros ainda enfrentam dificuldades no âmbito político. Criado em 2009, a União Brasileira de Circos Itinerantes, busca melhorar a qualidade de vida do circense. Atualmente, muitas das leis que regulam essa atividade são de ordem municipal, o que implica na execução do trabalho dos artistas, já que trocam de município a cada mês e a conquista de todos os alvarás para se instalar em uma cidade pode demorar cerca de trinta dias. Inclusive, o apoio da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) foi criada com o intuito de agilizar as reivindicações. A educação das crianças é garantida pelas leis federais 301/1948 e 6.533/1978, que inclui filhos de circenses e militares. Qualquer escola pública é obrigada a receber jovens nessas condições. A dificuldade está na adaptação, já que a mudança é repentina e frequente. Essa falta de endereço também interfere na saúde dos que vivem neste ramo. “Quando íamos fazer a carteirinha do SUS, os postos recusavam, pois não tínhamos endereço“, relembra Marlene. Outro grave problema enfrentado pelos artistas é a chegada da velhice. Sendo andarilhos, muitos funcionários têm idade para se aposentar, mas, como não possuem uma residência fixa, isso os deixa à margem do benefício de se hospedar em um asilo. Cabendo aos circos serem responsáveis por essas pessoas, mesmo sem as condições ideais.
O itinerário incerto é uma constante para quem vive no circo
Esta reportagem foi baseada na anterior “A VIDA NO PICADEIRO”, publicada na edição 48 da revista Esquinas, em dezembro de 2010
CONSUMO
FÉ
mercado da
Dízimo, consumo e prosperidade nas igrejas neopentecostais
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ANA CLARA GIOVANI
REPORTAGEM ANA CLARA GIOVANI, ARIA PARK, FIDEL FORATO, JULIA ZAYAS, LUÍSA CORTÉS, RENATO BRIGATI, TAINÁ FREITAS (1º ano de Jornalismo), CAMILA ALMEIDA e VICTORIA SCHECHTER (2º ano de Jornalismo) FOTOGRAFIA ANA CLARA GIOVANI (1º ano de Jornalismo) DESIGN ANDRÉ VALENTE (3º ano de Jornalismo)
“MINHA MÃE TINHA muitas dores. Então, um dia eu me lembrei de um pastor da igreja Deus É Amor que orava pelo rádio e prometia curar as pessoas. Pedi para ela deitar e coloquei o aparelho em cima de seu corpo. Depois de um dia, ela estava curada.” Laurita Palinha, de 63 anos, empregada doméstica, frequenta desde então os cultos dessa igreja pentecostal todos os sábados e domingos e segue as regras de vestuário: “Não podemos usar calça comprida, tinturas de cabelo, maquiagem ou esmaltes. Se quisesse viver de um jeito diferente das pessoas que frequentam a igreja, eu teria que sair de lá. Eles dizem que se Deus nos criasse com um cabelo preto, ele nos daria. Seguir a Ele não é brincadeira, então algumas pessoas acabam saindo da igreja.” Mãe de sete filhos, Laurita se aproximou da religião em busca de apoio em momentos difíceis, motivo comum entre os fiéis que
entram em grupos de oração a procura de identificação e acolhimento. Kenji Yano Ojima, de 29 anos, evangélico da Igreja Coreana Presbiteriana Sin Am, acredita que a demasiada secularização de valores está afastando as pessoas da espiritualidade, por prezarem o dinheiro, fama e sucesso. “A igreja precisa dar seu único valor que é Jesus, o evangelho” afirma. Para Victor Hwang de 17 anos, estudante e frequentador do templo Sin Am, os cristãos estão crescendo em números, mas os “de verdade” estão diminuindo. “Para mim, o cristão verdadeiro é aquele que quer conhecer mais a Deus e que se esforça para buscá-lo cada vez mais.” Já para Kenji Yano, o crescimento numérico do cristianismo representa uma inovação do modelo tradicional de igreja e sua expansão pelo mundo. As congregações evangélicas vêm sendo criticadas, não só pela mercantilização da
fé, mas também pelos posicionamentos ultraconservadores adotados por políticos evangélicos. Em 2015, o setor elegeu 78 parlamentares, entre eles senadores, deputados, e o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). Esse número surpreende em comparação com a bancada sindical e a bancada feminina. O posicionamento contrário a projetos de lei envolvendo casamentos homossexuais e aborto, por exemplo, tornaram-se polêmicas. Mas “evangélico” e “ultraconservador” não são termos intercambiáveis: Sin Am acredita em um modelo de igreja progressista, ao qual os novos fiéis possam trazer uma modernização. “O cristianismo é a religião que mais alcança e tira as pessoas da rua, das drogas.”, comenta. O fiel não vê problema algum em haver cristãos no poder em um Estado laico, já que, de acordo com ele,
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“
Ao comprar roupas de marcas evangélicas, o fiel acredita estar comprando algo que tenha a fé acoplada a este e que, ao adquirir aquilo, ele está sendo abençoado Andrey Mendonça, professor de Filosofia
a política democrática permite o direito de serem representados no Congresso Nacional e nas demais instituições do poder. Em um culto realizado no Templo de Salomão, no bairro do Brás, em São Paulo, frequentadores da Igreja Universal do Reino de Deus disseram se sentir confiantes de que os representantes do poder legislativo garantirão a permanência e o crescimento de sua fé. “Se fosse por esses outros políticos que não conhecem a palavra de Deus, a Universal já estaria com as portas fechadas” afirma a fiel Ana Patrícia Rodrigues, que diz ter conhecido primeiro a Igreja Assembléia de Deus e, depois, migrado por conta própria para a vertente fundada por Edir Macedo.
MERCADO DE LUXO Segundo dados do Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), nos últimos dez anos, o número de brasileiros que se dizem pertencentes a matrizes protestantes aumentou em 61%. O país conta hoje com 22% de sua população composta por esses, o que equivale a mais de 25 milhões de pessoas. A magnitude da arrecadação das instituições religiosas — por meio de dízimo e venda de produtos — evidencia o luxo de seus locais de culto. Construído no ano de 2014, o grandioso Templo de Salomão, localizado na região do Brás, obra da Universal, realiza celebrações diariamente com cerca de cem mil fieis, que são acomodados em cadeiras importadas da Espanha. As dimensões do templo passam dos cem mil metros quadrados, smaior que a soma da área de cinco campos de futebol. O custo da cons-
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trução foi de aproximadamente 680 milhões de reais, segundo dados da reportagem O bilionário mercado religioso, publicado na Revista C & S em 2015. Para facilitar o acesso ao templo, são contratados ônibus que realizam o transporte dos fieis das cidades da Grande São Paulo. Os eventos, segundo frequentadores, não se limitam a simples cultos: “Tem a Santa Ceia, os Batismos, as reuniões dos jovens. A Igreja busca abranger todos, desde os adultos até as crianças”, afirma Giane Longui, que começou a frequentar a Igreja Universal junto com sua família, por influência do padrasto. No salão da instituição religiosa, trombetas soam e cortinas se abrem para o início da celebração. O Pastor Márcio Carotti se apresenta e suas primeiras palavras fazem referência ao dízimo. “A oferta é uma coisa espontânea, tão santa quanto a palavra de Deus.” A partir de uma citação bíblica das ofertas de Caim e Abel, Márcio chama os fiéis a fazerem suas doações. Todos começam a se levantar. O pastor avisa: “Tragam o CD e a Bíblia do Templo que chegaram!”. O primeiro produto seria vendido por vinte reais e o segundo, por cinquenta. Seriam aceitos cartões. A fim de impulsionar as vendas, as músicas do CD começam a tocar, assim, louva-se, novamente, ao Senhor. Os fieis são constantemente estimulados a participar das atividades organizadas pelo Templo e a divulgá-las. Após as doações, o pastor anuncia o evento que ocorreria no domingo seguinte, a Santa Ceia. “Quem gosta de Jesus não tem vergonha. É preciso evangelizar, trazer as pessoas. E
amá-lo em suas atitudes e ações. Você vai convidar uma pessoa para a Santa Ceia e eu quero que você mude a vida dela. Esse é o papel de quem tem o espírito de Jesus.” Incentivar a divulgação pelo boca a boca é um artifício muito usado atualmente nas instituições evangélicas para conquistar mais frequentadores. Além disso, com as novas tecnologias, vêm surgindo estratégias com o intuito de conseguir mais fieis em divulgar os produtos do gênero gospel e facilitar o pagamento do dízimo, como a existência de cartões de crédito especiais para as igrejas, além de um aplicativo para celular, o iFé, para o pagamento de dízimo. É comum também a atuação nas redes sociais, como Facebook e Twitter por parte dos pastores, como Silas Malafaia, que promove a editora Central Gospel em suas publicações. Os fieis que vão para o Templo de Salomão passam por uma revista, incluindo detector de metais. Nada pode ser registrado
ANA CLARA GIOVANI
A arquitetura imponente do Templo de Salomão impressiona
dentro do culto: os celulares e as câmeras fotográficas são guardadas em armários próprios. Os assentos também são indicados por funcionárias sorridentes vestidas de branco. Tudo é muito bem vigiado, como se os que comandassem a congregação evangélica não confiassem plenamente no respeito de seu “rebanho” pelas normas, as quais poderiam facilmente ser subvertidas.
FÉ E CONSUMO A fatia do mercado representada pela população evangélica movimenta diversas áreas da economia. Turismo, indústria fonográfica, venda de bens e serviços e indústria da moda são alguns dos nichos direcionados a esse público. Segundo Andrey Mendonça, professor de Filosofia na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e coordenador do Programa de Religião e Espiritualidade no Consumo e nas Empresas (PRECE), as religiões arrecadam cerca de trinta bilhões de reais por ano.
Desses total, 60% correspondem ao valor arrecadado pelas igrejas evangélicas. As causa desses números expressivos pode ser compreendida de diferentes formas. Na visão do professor, esse elemento da religião é transcendente: “Ao comprar roupas de marcas evangélicas, o fiel acredita estar comprando algo que tenha a fé acoplada a este e que, ao adquirir aquilo, ele está sendo abençoado.” Outro valor que envolve o mercado evangélico é a Teologia da Prosperidade. De acordo com essa doutrina cristã, a busca financeira e material seria um sinal da predestinação divina. Assim, o fruto do trabalho bem-sucedido deve ser “devolvido” a Deus na forma de doações. O religioso não pode também, segundo os moldes tradicionais, ostentar a graça a ele concedida. O professor Andrey Mendonça acredita que, atualmente, tudo funciona de forma diferente: “Hoje, nenhum dos artistas gospel e pastores têm vergonha de ostentar
carros importados e viagens caríssimas. Não há nenhum problema quanto a isso, não basta receber, você precisa mostrar que é próspero”. As instituições de cunho neopentecostal, influenciadas por essa teologia, pertencem a uma das três grandes divisões evangélicas: protestantes, pentecostais e neopentecostais. A partir das quais se ramificam em diferentes grupos. A fragmentação das instituições evangélicas é, segundo Andrey, benéfica para o mercado, “Quanto maior o número de igrejas, mais opções o fiel tem para escolher a que mais lhe agrada”. Ainda de acordo com o professor, o mundo é fragmentado e líquido, sendo assim, as relações não têm a mesma fidelidade e finitude que tinham antigamente, “Hoje, você procura a melhor opção, a que mais lhe agrada e no mercado evangélico isso acontece da mesma forma”. Refletindo, portanto, na maneira como se estrutura o consumo na sociedade.
Esta reportagem foi baseada na anterior “EVANGÉLICOS DISPUTAM SUA ALMA”, publicada na edição 26 do jornal Esquinas de SP, em abril de 2002
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MORADIA
REPORTAGEM RENATO LAMANNA, ANDRESSA ISFER e MARIA VITÓRIA RAMOS (1º ano de Jornalismo) COLABORADORES ANA CAROLINA MARCHETI e MARCELA PALHÃO (1º ano de Jornalismo) FOTOGRAFIA RENATO LAMANNA (1º ano de Jornalismo) e HARES DATTI PASCOAL (2º ano de Jornalismo) DESIGN ANA CAROLINA SIEDSCHLAG (2º ano de Jornalismo)
Da favela aos edifícios, o que mudou na vida das famílias que foram beneficiadas pelo projeto habitacional
RENATO LAMANNA
19 ANOS DE
CINGA
PURA
HÁ QUASE DUAS décadas, na época em que Paulo Maluf ainda era prefeito de São Paulo, a criação do projeto Cingapura teve muitas objeções, dentre elas as apresentadas no vídeo A cidade de São Paulo e o Projeto Cingapura, que criticou as propostas feitas, como o número insuficiente de apartamentos a serem entregues. Produzido pela Rede Rua de Comunicação em parceria com a Pastoral da Moradia, Central de Movimentos Populares e vereadores como Aldaíza Sposati, Arselino Tatto, José Mentor e Henrique Pacheco. Ao descer na estação do metrô Carandiru, avistamos prédios com as cores laranja e branca, desbotadas pelo tempo. Após uma breve caminhada, alcançamos os portões azuis que limitam o espaço do conjunto. Dezenove anos depois e em número menor que o prometido, o Cingapura resiste. Caminhando pelas ruas estreitas que compõem o interior do conjunto habitacional, conhecemos um pouco das vidas de seus habitantes. Com olhares curiosos e respostas curtas, poucos moradores aceitaram compartilhar suas histórias. “Todos aqui se conhecem”, comenta um homem de cerca de trinta anos, que não quis revelar seu nome. Ao olharmos para cima, vemos algumas
antenas que competem por espaço dentre a infinidade de camisetas, calças e bermudas. Cada bloco tem uma entrada específica, decorada à sua maneira, assim como muitas janelas que recebem a decoração de cortinas coloridas e flores. Ainda receosos, os entrevistados preferiram manter seus nomes em sigilo, escolhendo responder perguntas sobre o Cingapura, e não sobre suas vidas. Ana* explicou que mora ali apenas por não ter para onde ir, já que a sujeira, o barulho e o uso de drogas são um tormento: “Antes, quando aqui era uma favela, os moradores respeitavam mais uns aos outros. Hoje em dia usam drogas na frente das crianças, sujam o chão e escutam funk alto domingo à noite. E se reclamar, ainda brigam!”. No entanto, a moradora explicou como a localização é um fator extremamente positivo, com a proximidade do Shopping Center Norte e da estação de metrô Portuguesa-Tietê. Ana* nos convidou para conhecer sua casa. No hall do prédio, diante das escadas, comentou: “Aqui não tem elevador. Os idosos precisam subir essa escadaria todos os dias, assim como nós, carregando compras ou qualquer coisa que quiserem trazer para casa”. Durante a subida, notamos
RENATO LAMANNA
que as portas eram diferentes uma das outras, havendo, algumas eram de tábuas de madeira improvisadas na tentativa de manter a privacidade das famílias, outras ornamentadas e com olho mágico. O apartamento de Ana*, localizado no quinto andar, é composto, como todos os outros, por uma sala, cozinha, dois quartos e um banheiro. Ela nos contou que recebeu aquele espaço totalmente vazio, sem pintura, apenas revestido com carpete. Além disso, relata como era complicado conviver com os cachorros de sua vizinha: “Aqui você pode ter quantos animais quiser, mas precisa de bom senso também, não é mesmo?”. Os habitantes com quem conversamos demonstraram extrema gratidão pelo projeto e pelo ex-prefeito Paulo Maluf. No entanto, o que alguns acrescentaram foi que, com a mudança, tornou-se necessário o pagamento de contas e de uma taxa fixa de 57 reais, o chamado Termo de Permissão de Uso (TPU) para a Secretaria Municipal de Habitações, o que não acontecia anteriormente. Alex*, morador do conjunto, que lavava seu carro em um dos estacionamentos, contou que para aquele lugar se tornar perfeito faltava educação entre os moradores. E que há pessoas sem condições de pagar outro aluguel levando mais de três famílias a ocupar o mesmo espaço. O morador lembra como achava que o fato de ter um endereço fixo o auxiliaria a encontrar um emprego, porém, depois de ter seu currículo descartado diversas vezes, acredita que habitar no conjunto acaba sendo um elemento desfavorável: “Não adianta tentar melhorar a imagem daqui, olha como está tudo desgastado! Não importa a fotografia que vocês tirem ou as palavras que vocês usem, o Cingapura vai continuar sendo visto de forma negativa”, conclui.
DIREITO À MORADIA
Há 19 anos em funcionamento, o Cingapura é criticado pela falta de infraestrutura
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Uma das opositoras ao projeto de Paulo Maluf, Aldaíza Sposati, professora da Pontífica Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e ex-vereadora do Partido dos Trabalhadores (PT) explica o Cingapura ser tão criticado: “Maluf apresentou [o projeto] como se tivesse uma solução para a questão das favelas em São Paulo. Ele deu um número grandioso de conjuntos, fez uma forte propaganda que certamente era enganosa. Não havia condições concretas para efetivar aquele volume de habitações no tempo que ele prometia”. Outra questão abordada pela professora é a continuidade na implementação de melhorias. Para Sposati, não há a infraestrutura necessária às famílias: “Me parece que houve o enfoque somente na construção. A ideia da manutenção do local, da continuidade, da adaptação e das relações ficou de lado”. A ex-vereadora acredita que a população deveria cobrar do Estado a qualidade anteriormente prometida.
POLÍTICA SEGREGACIONISTA A disposição dos prédios que compõem o Cingapura segue o padrão funcionalista e de produção em série: homogeneidade como fator barateador e o ordenamento em fileiras que visam à ventilação. Guilherme Wisnik, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP), mestre em História e doutor em Arquitetura e Urbanismo, afirma que o modelo era utilizado pelo socialismo, pois acreditava-se que, ao construir todos os prédios iguais, os indivíduos não se destacariam uns dos outros. Contudo, Wisnik afirma que essa forma de conceber a habitação popular acabou provando uma ideia muito menos igualitária e socialista. Visto que, na prática, tornaram-se lugares de segregação, não apenas pela estrutura e estética que revelam o caráter de moradia popular das construções, mas também por, normalmente, estarem em lugares afastados do centro da cidade. Neste sentido, o Cingapura Zaki Narchi é uma excessão. A produção em massa das edificações não vem acompanhada da manutenção e serviços básicos, como a segurança, que deve-
ria ser provida pelo Estado, acarretando em consequências explicitadas pelo urbanista: “Acabam virando espaço de tráfico de drogas e prostituição. O que se percebe é uma inversão dos ideais modernistas com uma realidade de crime e segregação”, afirma. Essa concepção de moradia popular pode ser interpretada como uma forma obsoleta e anacrônica. Em 1972, o enorme conjunto habitacional Pruitt-Igoe, nos Estados Unidos, em ótimas condições, foi demolido como símbolo do fim de uma política segregacionista. Esse fato histórico marca a passagem do modernismo para o pós-modernismo, segundo os pensadores Charles Jenks e Renato Ortiz, determinante para a estética arquitetônica que até então era marcada por formas geométricas, falta de ornamentações e repetições nas faixadas dos prédios. “Isto quer dizer que o mundo desenvolvido virou essa página em 1972 e nós não viramos até hoje. Estamos construindo Minha Casa, Minha Vida da mesma forma. E o Cingapura é um capítulo dessa história”.
*
Os nomes indicados nesta reportagem foram trocados para preservar a identidade dos entrevistados.
RENATO LAMANNA
Todavia, no senso comum se acredita que para quem nunca teve uma casa decente para morar, o oferecido à população se torna o suficiente: “Essa relação autoritária estabelece um ‘basta’, não admite que o outro queira qualidade”, critica Sposati. Outra polêmica foi a presença de gás metano que ameaçou tirar os moradores de suas casas em 2011. Os habitantes que ficaram com medo de perder seu lar acusaram o Estado de querer se apropriar do terreno para construir apartamentos luxuosos, uma vez que a localização é central e privilegiada: “Tudo aqui em volta era lixão. Por que só querem tirar as pessoas do Cingapura? E o shopping Center Norte pode continuar funcionando?” indagou Ana*. “Não vão nos tirar daqui. Já conseguimos contratar um advogado para nos defender” disse Alex*, com firmeza. Além disso, ele nos contou que todos os dias, funcionários da prefeitura medem o gás no local e que a quantidade de material encontrada não apresenta nenhum risco à segurança dos moradores.
O interior de um dos apartamentos do Cingapura Zaki Narchi
Esta reportagem foi baseada na anterior “PROJETO CINGAPURA EM DISCUSSÃO”, publicada na edição 9 do jornal Esquinas de SP, em junho de 1996
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ESPECIAL
C C
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Como a mudança da FEBEM para a Fundação CASA revela vestígios de um sistema que continua violento e punitivo
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REPORTAGEM FERNANDA SILVA, GABRIELLE VIANA (1º ano de Jornalismo), CAROL VBO, ISADORA PINHEIRO, MATHEUS MOREIRA, SAMANTHA SOARES, TÉO FRANÇA (2º ano de Jornalismo) e ANA CLARA MUNER (3º ano de Jornalismo) FOTOGRAFIA ANA CLARA MUNER (3º ano de Jornalismo) DESIGN CAROLINA MIKALAUSKAS (2º ano de Jornalismo)
“MÃO PRA TRÁS e cala a boca, senão apanha”. Essas foram as primeiras palavras que Paulo* ouviu ao ser preso e levado para a antiga Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM) hoje reformulada e chamada de Fundação Casa. O espancamento foi o cartão de boas-vindas. Aos 33 anos, o ex-interno relata que foi detido aos 15 anos, em uma época que, segundo ele, o sistema era mais violento do que o atual. A influência veio pelos amigos do bairro, na periferia da zona sul de São Paulo, onde mora até hoje. O crime era sempre o mesmo, sequestro relâmpago. Aos 17 anos foi internado pela primeira e única vez. Durante os seis meses e vinte dias em que esteve preso passou por três unidades diferentes. O cotidiano entre os colegas de cela era regido pelas leis da bandidagem, muitas das quais são impostas pelo Primeiro Comando da Capital (PCC). De acordo com o entrevistado, caso o interno fosse um delator ou tivesse se envolvido com delitos sexuais, como estupro, ficava no “seguro”, uma gíria que, simbolicamente, marca os jovens que serão os primeiros que “vão levar facada” ou
sofrer maus tratos no próximo momento de revolta do grupo. O ex-interno conta que um dia sua mãe desabafou com ele que sofria revista vexatória para ir visitá-lo. Esse foi um dos motivos para o início de uma grande rebelião na unidade do Brás: “A humilhação da minha mãe gerou revolta, começamos a tocar fogo, chamar o diretor, sequestrar o funcionário e faca na garganta”, conta. Quando o assunto são os defeitos do sistema carcerário Paulo* aponta o despreparo dos funcionários no tratamento com os adolescentes. Mas, apesar das lembranças, a expressão do seu rosto ganha leveza ao falar sobre os três cursos que fez na primeira unidade em que esteve, onde terminou o primeiro ano do Ensino Médio. Quando o sistema vigente ainda era o da FEBEM, os internos passavam o dia sem realizar qualquer exercício coordenado e sem atividades educativas obrigatórias, era bastante similar aos presídios. A unidade na qual o interno estudou era uma exceção da época. Para Paulo*, o novo modelo, chamado Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Fundação CASA),
‘‘A disciplina é o fator principal que rege os dias dos internos’’, segundo o diretor da unidade de Jundiaí. É rápida, contundente e compreensível a fala de Paulo* quando questionado sobre sua melhor lembrança da Febem: “nenhuma”, já que para o ex-interno o modus operandi segue, em linhas gerais, incorrigível.
A TRANSIÇÃO Operando desde 1967 no Estado de São Paulo, a FEBEM historicamente mostrou-se um ambiente problemático. Enfrentando condições semelhantes às das prisões, como superlotação e maus tratos, as unidades diversas vezes, foram alvo de rebeliões e conflitos internos. De 1998 para os dias atuais aumentaram os números de ocorrências, e só em 2003 foram contabilizadas 80 revoltas. Para combater este quadro, em 2005 a advogada Berenice Gianella, atual presidente da instituição, arquitetou o projeto de transformação da FEBEM em Fundação CASA. Sua primeira ação foi reunir os funcionários, ouvir as maiores dificuldades que enfrentavam e montar o planejamento
“
Só mudou o nome, é tudo fantasioso; colocaram uma aparência bonita na porta, mas lá dentro é tudo igual. Funcionário só respeita na frente [da família], quando a gente vira as costas é pancada igual antigamente
para a reforma. Em nenhum momento os internos foram chamados para fazer suas críticas ou opinar sobre as mudanças. A transição aconteceu de maneira muito rápida, afirma a diretora regional da Fundação CASA, Magali Taina: “Entendemos que estamos em processo e nós reconhecemos o que aconteceu. Havia uma cultura de violência que não vai mudar rapidamente”, reconhece. Ao tentar sintetizar a transformação, Magali ressalta os termos “enfrentamento e diálogo”: uma vez que enfrentam diariamente a violência e o preconceito da sociedade, dialogando diante de assuntos delicados e buscando mudanças factíveis.
APARÊNCIAS Houve uma descentralização da Fundação CASA, que tem atualmente 149 unidades ao longo da capital, diferente da época da FEBEM, quando eram poucas unidades. Segundo Magali, a violência contra os menores também teve mudanças: “Antigamente o funcionário descia a ripa nos meninos e não acontecia nada, hoje ele pode ser processado”, conta. Segundo o governo de São Paulo, observa-se grande redução nos casos de revoltas, se comparado com os tempos da FEBEM. Isso pode indicar uma melhora efetiva no sistema ou uma maior repressão no tratamento dado aos adolescentes. João*, de 26 anos, cujo irmão é interno há dez meses na unidade do Brás fica com a segunda explicação. conta que “Lá só tem tapa na cara, ninguém tá nem aí pra nada não. Eles [os detentos] só não contam pras mães”. É possível notar grande divergência entre os relatos de familiares e de funcionários sobre o ambiente interno da instituição, principalmente relacionados aos casos de violência, como conta Danilo*, padrasto de um interno da Unidade da Vila Maria: “Só mudou o nome, é tudo fantasioso; colocaram uma aparência bonita na porta, mas lá dentro é tudo igual” diz. “Funcionário só respeita na
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Danilo*, padrasto de um interno da Fundação CASA
frente [da família], quando a gente vira as costas é pancada igual antigamente”.
SOB VIGILÂNCIA Dentro da Fundação, os internos seguem uma rotina rígida. Da hora em que acordam até a hora que vão dormir, passam por aulas, banho, refeições e limpeza do ambiente, tudo com tempo definido. As unidades da região metropolitana de São Paulo oferecem cursos profissionalizantes, como os de pizzaiolo, padeiro e garçom. Idealizados para que os internos consigam se inserir no mercado de trabalho, porém na prática esta inserção se mostra muito mais complexa. São ocupações em que não há grande possibilidade de crescimento e o salário, muitas vezes, não é suficiente para as ambições ou a qualidade de vida esperada pelos jovens. Desta forma, o retorno para o crime acaba se tornando o caminho mais fácil e rentável. Todos os ambientes, incluindo banheiros e quartos, são vigiados dia e noite através de janelas ou portas vazadas. Uma das finalidades desse modelo é evitar relacionamentos homossexuais entre os jovens, que não são permitidos pela direção e pela larga maioria dos detentos. A separação dos quartos, de maneira seletiva, tenta deixar os jovens gays com outros considerados menos violentos. No campo da saúde, os diretores atestam que há médicos nas instituições duas vezes por semana, e que os jovens recebem atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS). Da boca dos familiares, porém, ouvimos, quase em uníssono, que o tratamento dado aos adolescentes não se parece em nada com o relatado: “Não vejo ninguém ser bem tratado nesse lugar, eles [os internos] não falam dos maus tratos porque têm medo”, afirma Jana*, 31 anos, mãe de um interno. Danilo* conta que seu enteado ficou doente e não recebeu atendimento médico decente, pois não havia profissionais habilitados no local.
Eliana*, uma senhora que visita o neto toda semana, não acredita na eficácia da Fundação CASA, “Não deixam mais pai e mãe bater nos filhos quando são pequenos, mas aqui não tem mais jeito de consertar. O moleque sai para o Dia das Mães, assalta e mata três fulanos. Se nosso país tivesse mais educação, respeito e saúde, a realidade seria outra”, critica.
A REALIDADE Quando discutimos a questão do jovem infrator, é importante lembrar a situação vivida pelos adolescentes em conflito com a lei. Segundo o Panorama Nacional do Conselho Nacional de Justiça, cerca de 57% desses meninos não frequentavam a escola antes de ingressar nas unidades. Muitos vêm de famílias desestruturadas, têm problemas com psicoativos e se envolvem com o crime, muitas vezes, para se sustentar. Os jovens são mais vítimas da criminalidade do que autores dela. De acordo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), no Brasil, entre 2002 e 2012, 33 mil adolescentes entre 12 e 18 anos foram mortos, em sua maioria, negros e pardos, pobres e moradores de periferia. A relação que a Fundação CASA estabelece com assuntos do sistema carcerário pode ser vista de forma moldada pelos modelos midiáticos. De acordo com Brenda*, ex-integrante do Primeiro Comando Capital (PCC), que atualmente cumpre pena condicional e faz trabalho voluntário de alfabetização na Unidade Vila Maria da Fundação CASA, a realidade é ludibriada pela mídia. Pessoas como Brenda*, que acompanham de perto o sistema carcerário, veem o modo falho e ineficaz com que o Estado vem tratando seus jovens, constituído de várias lacunas. Segundo a ex-detenta, o crime organizado carrega para dentro das facções e grupos criminosos, crianças e adolescentes que não têm estrutura familiar, psicológica e educacional. Ela, ainda, exemplifica como funciona
O refeitório da Fundação CASA
As aulas para os internos são oferecidas dentro da instituição
Os internos da Fundação CASA conversaram com a equipe da Esquinas
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essa transferência de “responsabilidade” do Estado, quando afirma que, “várias mães são obrigadas a deixar os filhos sozinhos ou, em muitos casos, com o mais velho que cuida dos menores porque não tem creche. A minha irmã mais velha cozinhava para nós, porque a minha mãe precisava trabalhar. Quem é que vai proteger esses meninos?”, questiona. Para Brenda*, o governo falha quando não dá o suporte legal necessário para as famílias que, na falta de assistência governamental, se enxergam na marginalidade: “Todo traficante é chamado de pai, toda traficante é chamada de mãe”. Chefes do crime usam seu poder e dinheiro para amparar essas crianças que, assim como eles, foram negligenciados pela sociedade, conquistando seu espaço na comunidade periférica. Quando o Estado deixa de proteger esses jovens das situações de desigualdade social, indiretamente os aproxima da violência e, uma vez lá, estão propensos a serem presos. Mesmo encarcerados, os internos ainda contam com os direitos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), cujo artigo 94 deixa claro que eles devem ter acesso aos objetos necessários para a higiene e aseio pessoal, como habitação em condições adequadas de salubridade, escolarização, profissionalização, além da possibilidade de realizar atividades culturais, esportivas e de lazer. Porém, isso não corresponde à realidade da larga maioria das unidades da Fundação CASA de São Paulo, onde encontramos jovens sem cursos profissionalizantes, aulas adequadas e sem produtos de higiene necessários. Um exemplo disso é a Unida-
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de Vila Maria. Brenda* afirma que muitos internos são malcheirosos, porque sequer têm acesso à produtos básicos necessários, como pasta de dente. A proposta ressocializadora da Fundação CASA não é atendida quando temos esse quadro de defasagem de bens primordiais. O próprio ECA é visto como falho pela advogada pecializada em criminalidade juvenil, Fabiana Saenz. Para ela o estatuto se mostra ineficaz na solução de problemas que envolvem os seus tutelados, enquanto pregam medidas de proteção e controle social. E que o perfil desses infratores só poderá ser mudado quando o Estado perceber a necessidade de políticas públicas, educação e melhora na saúde para jovens marginalizados. “É muito difícil ensinar alguém a viver ao privar este alguém da liberdade.”
PARA INGLÊS VER A mídia, muitas vezes criticada por ser sensacionalista, colabora para criar o estigma do menor criminoso, sendo que a crimina-
lidade para alguns jovens é algo bastante comum: “o adolescente está em uma fase de transição, da infância para a vida adulta, em uma condição conflituosa”, explica a advogada. Vale lembrar o padrão de crimes cometidos: atos contra o patrimônio (roubos sem porte de arma) correspondem a 52% da média nacional; em segundo lugar estão os crimes relacionados ao tráfico, segundo o Panorama Nacional do Conselho Nacional de Justiça. Em contrapartida, o número de adolescentes que cometem crimes violentos é irrisório, sendo justamente estas infrações que causam tamanho alarde, por serem as únicas reportadas pela mídia. A própria Fundação CASA participa desse sistema excludente. Criada para “atender os jovens”, a instituição ainda segue mais às leis da prisão do que sua proposta de inclusão social, deixando de lado necessidades como a de sociabilização. Saenz explica que o tratamento de adolescentes criminosos tem que ser diferencia-
As grades, cercas e arames se destacam na Fundação CASA de Jundiaí
do: “O Artigo 228 da Constituição Federal é uma cláusula pétrea, por isso não pode ser alterado, porque a infância é um direito constitucionalmente garantido”. O sistema prisional, que não funciona para adultos, fatalmente não funcionará para crianças. Em nossa visita à Fundação CASA, notamos que a maior parte dos internos e funcionários é contra a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 171/93, que reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos. “Eu não concordo com a redução, vamos acabar sofrendo ainda mais preconceito se fomos para a prisão. Se formos fichados, quem vai dar emprego para quem roubou?”, questiona Lucas*, interno da Fundação CASA de Jundiaí que sonha em apagar o passado da memória. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (IBOPE) de setembro de 2015, a aprovação desse Projeto de Lei tem, pela população, aprovação de 83%. Entretanto, as privatizações do sistema carcerário e a má representação midiática das realidades periféricas brasileiras e dos
conjuntos prisionais sugerem o aumento do interesse em superlotar cadeias com crianças que têm poucas oportunidades. Medidas como essa parecem ser coisa para inglês ver, limitando o diálogo e mitigando a busca por solução palpáveis e critérios a longo prazo. Quando perguntados sobre os delitos, os entrevistados concordam que essa vida [do crime] não compensa. Os que ficaram, ou foram presos ou estão mortos. Segundo Lucas*, nem todos os internos da Fundação conseguem enxergar a “oportunidade de ouro” cedida a eles: “Tem muitos que não querem sair desse meio [com envolvimento criminal], não percebem que estão jogando a vida no lixo”. Durante a apuração dessa reportagem, a fuga de 132 internos de seis unidades da Fundação Casa levou a Secretaria de Segurança Pública a autorizar Policiais Militares a fazerem o conhecido “bico oficial”. Hoje, apesar das mudanças ocorridas da FEBEM para a Fundação CASA, não se pode dizer que a base do sistema carcerário tenha mudado. A precarização da educação no país,
Esta reportagem foi baseada na anterior “FEBEM”, publicada na edição 24 no jornal Esquinas de SP, em agosto de 2001
que pode ser exemplificada com o anúncio do fechamento de 94 escolas estaduais no estado de São Paulo e o projeto para a redução da maioridade penal, acaba fazendo com que jovens pobres, normalmente negros (pretos e pardos), da periferia, continuem sendo mandados para prisões que muitas vezes não têm medidas educativas efetivas. Um dos internos da Fundação CASA de Jundiaí afirma que a mudança da FEBEM para Fundação CASA foi boa. ‘‘Antes tinha várias rebeliões, era muita bagunça. Hoje fazemos cursos para termos melhor oportunidade de vida, depois de estarmos aqui a gente começa a ver nossa capacidade”. Algo que pudemos reparar é que as opiniões de familiares e de ex-inernos acabam sendo, quando se trata da efetividade da Fundação CASA. Lucas* que conseguiu um lugar nas Olimpíadas de Conhecimento em São Paulo, quer ser engenheiro quando sair da Fundação e diz que fará de tudo para que esse sonho se realize. “Eu e os quatro que passaram nas Olimpíadas, quando conseguimos fazer algo assim, sinto que sou capaz de coisas muito maiores”. Os jovens brasileiros não podem perceber o valor social que têm quando já estão dentro do sistema carcerário. Conversando com atuais internos, a injustiça social fica ainda mais nítida. São meninos que passam por situações violentas dentro dessa estrutura e que tentam dar vazão à sua voz mesmo sendo coagidos.
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Os nomes indicados nesta reportagem foram trocados para preservar a identidade dos entrevistados.
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COMPORTAMENTO
SEXO EM CENA Do softporn à zoofilia: o mercado da pornografia no centro de São Paulo atrai consumidores e gera polêmica
REPORTAGEM GUTO MARTINI, LAÍS GLAESER, VÍTOR FERREIRA (1º ano de Jornalismo), JULIA GUADAGNUCCI e NATHALIA PARRA (2º ano de Jornalismo) FOTOGRAFIA LAÍS GLAESER (1º ano de Jornalismo) DESIGN CAROLINA MIKALAUSKAS (2º ano de Jornalismo)
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A FILA PARA comprar o ingresso é curta. Geralmente, à luz do dia é possível ver duas ou três pessoas no guichê aguardando a vez para entrar nas salas de exibição. O chão é um tanto pegajoso, de maneira que o sapato faz um barulho estranho a cada passo. Depois de pagar quinze reais para o funcionário atrás da cabine de vidro e passar pela catraca, nota-se uma cesta cheia de camisinhas presa à parede — há aqueles que passam por ela sem reação, outros aproveitam. Logo em seguida, há um bar mal iluminado com alguns clientes bebendo cerveja ao som do jukebox. A seleção musical contempla todos os estilos: de Chitãozinho e Xororó a Lana Del Rey. Depois da porta do bar, estão as duas primeiras salas de exibição do cinema. É um ambiente escuro, iluminado apenas pela claridade que emana das telas. As sessões do primeiro e do segundo andar são direcionadas ao público heterossexual, e as do terceiro destinam-se à exibição de filmes gays. Segundo o barman Júnior*, que preferiu não revelar o nome, o grupo que frequenta o Cine Roma da República é composto, em sua maioria, por homens: “Às vezes, entram uns caras aqui que vêm porque são casados e acabam ficando com vergonha de assistir aos filmes em casa e serem pegos. Mas é tudo igual, a putaria rola solta!”.
As mulheres constituem um grupo minoritário e, quando aparecem, costumam estar acompanhadas pelos maridos. Pode parecer estranho um casal se aventurar em um cinema pornô, mas Júnior* afirma que é comum: “Eles vêm para fazer swing com outras pessoas enquanto assistem aos filmes”. Alguns homens ficam à espreita de casais. No mundo da pornografia, eles são conhecidos como gaviões e, normalmente, se excitam ao observar outras pessoas transando. Outras vezes, eles participam do sexo ou apenas se masturbam. Além das salas de exibição, o Cine Roma abriga, em suas dependências, uma locadora onde o cliente pode alugar o filme e assistir sozinho dentro de uma cabine com TV acoplada — não raramente acontece de duas pessoas ocuparem a cabine ao mesmo tempo. As mulheres nas capas dos DVDs parecem sufocadas com o pênis em suas bocas e obedecem ao papel que a pornografia as designou: dominadas e passivas. O homem exibe seu falo com orgulho, viril, penetra o corpo feminino sem nenhuma delicadeza. É possível encontrar títulos tradicionais e outros de temáticas consideradas “mais pesadas”, como sodomia e zoofilia. A funcionária Esmeralda* afirma que os gays assumidos costumam frequentar mais a
locadora: “Nos cinemas entram mais as travestis e os enrustidos. Agora, na locadora, vai é quem não precisa ficar disfarçando”. As cabines são extremamente abafadas e têm um odor forte de suor e produto de limpeza. Não é difícil encontrar sêmen escorrendo nas paredes após um cliente usar o espaço, também não é raro ver gente brigando com algum funcionário porque, segundo eles, “o tempo acabou antes do combinado, eu paguei para usar vinte minutos e só foram quinze!”. Engana-se quem pensa que o estabelecimento descrito acima é uma exclusividade da Praça da República. Embora passem despercebidos devido ao cotidiano apressado e ao vai-e-vem das pessoas, essa região do centro de São Paulo está permeada por diversos cinemas especializados em pornografia. Outro exemplo famoso de estabelecimento do circuito erótico é o Cine Dom José; este, diferentemente do Roma, já foi um cinema tradicional frequentado por crianças e adultos. Hoje, seu projetor ilumina a tela apenas com cenas de sexo e, consequentemente, seu público ficou mais restrito. A faixa etária das pessoas que frequentam os cinemas eróticos varia, a única exigência é que tenham mais de 18 anos.
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As paredes das cabines dos cines eróticos são marcadas pelo prazer de seus consumidores
Inclusive, o gênero predominante no ambiente é o masculino e o grupo etário é composto por idosos. Homens velhos que, na fila de entrada, costumam ser discretos e rápidos, mas na sala de exibição parecem se sentir mais dispostos a encarar os outros a procura de algum parceiro. Enquanto os atores transam na projeção, os espectadores se dividem entre os que apenas assistem em um canto, os que se masturbam — uns olhando para o filme, outros prestando atenção na pessoa ao lado — e os que se agrupam para fazer sexo oral e anal. O indivíduo que está assistindo ao filme sozinho é, quase que invariavelmente, abordado por uma travesti em busca de cliente — muitas estão atrás de trabalho, indiferentes às placas de “proibido fazer programa” que alguns locais colocam na entrada. Na tela, as cenas apenas reforçam o fato de que a pornografia é mais do que um dos pilares responsáveis pela naturalização da violência contra a mulher. Os filmes são a demonstração de um contrato sexual pré-definido, no qual só os homens se beneficiam. Os espectadores assimilam a relação íntima à lógica da pornografia e passam a desejar fazer sexo com a mulher vendida por esse mercado, ou seja, com a “mulher-objeto” que se encontra disponível ao pra-
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zer masculino. A socióloga norte americana Gail Dines, feminista e professora na Faculdade Wheelock (Boston, EUA), em seu livro Pornland explica como é impossível ver imagens pornográficas sem ser influenciado por elas, principalmente aquelas com as quais nos masturbamos. Segundo Dines, a pornografia celebra a violência e a brutalidade contra mulher ao mostrá-las em situações de humilhação e crueldade. Nos filmes pornôs, diz a socióloga, apesar de toda degradação a qual são submetidas, o papel imposto a elas continua sendo o da submissa que implora por mais e não consegue dizer não ao homem.
DO OUTRO LADO DA RUA Em frente ao Cine Dom José, há uma sequência de lojinhas dedicadas aos materiais eróticos. Elas são discretas em suas fachadas; dessa forma, apenas os transeuntes mais atentos notam qual é o viés do comércio. Apesar de serem aparentemente genéricas, cada uma possui alguma característica que a diferencia das demais: às vezes é a disposição dos produtos ou a coloração das paredes, mas o decisivo na especificidade de cada loja são os funcionários e donos. Se existem aqueles que estão sentados atrás do balcão apenas para vender e se mostram
sem paciência para conversar sobre qualquer coisa que não resulte em uma venda, há também os que não se incomodam em receber algum curioso de passagem. A Diferenciada Mídia é um desses locais que se destacam pela boa vontade dos que ficam atrás do balcão. Ao atravessar a rua do Cine Dom José e adentrar o número 293, o transeunte encontra de cara uma vastidão de DVDs que pulam das estantes de todas as paredes internas. No estreito centro da loja, um grande display de vidro exibe produtos que variam entre pênis de borracha de todos os tamanhos, vaginas realistas, bolinhas tailandesas, substâncias que prolongam o orgasmo e outros brinquedos sexuais. Passando pela geladeira de bebidas alcóolicas, avista-se uma escada que leva para o andar de baixo, onde se encontram as cabines. Apesar de também serem abafadas e possuírem o mesmo cheiro das do Cine Roma, as da Diferenciada Mídia são mais claras e menos cavernosas – o que torna o ambiente mais confortável. A loja é propriedade de Juciê, como é conhecido. Embora ele não goste de ficar anunciando para todo mundo, “costumo dizer que sou ajudante de venda, fico mais na minha”, afirma. Mesmo assumindo essa postura mais reservada, seus contatos não
As vitrines dos estabelecimentos chamam a atenção dos transeuntes
são poucos. O comerciante é entendido do assunto, além de ser conhecido na região: “Às vezes vem gente fazer filme aqui, eles gravam algumas cenas num quartinho lá em cima”, diz o proprietário apontando para o andar superior. A equipe de reportagem da Revista Esquinas perguntou ao dono do estabelecimento quais filmes eram mais vendidos. Juciê contou que a preferência dos clientes são os protagonizados por travestis e lésbicas. Ele pegou um dos títulos da prateleira cuja capa retratava duas mulheres fazendo sexo oral e contou que conhecia aquelas atrizes: “Aqui, no Brasil, elas são desvalorizadas e a maioria faz programa na noite”, conta. Segundo Indianara Alves Siqueira, que é transexual, prostituta e ativista LGBT, tanto as mulheres cisgêneras quanto as trans, que não se identificam com o gênero imposto no seu nascimento, são desvalorizadas na indústria pornô brasileira. “Muitas atrizes completam a renda sendo prostitutas, mas não só elas, existem mulheres de outras profissões que acabam precisando fazer isso também, são as chamadas ‘putas ocasionais’”. Indianara ainda diz que, justamente pela desvalorização que sofrem, não existem tantas atrizes transexuais no mercado nacional, “97%, na verdade, acabam na prostituição”, pontua a ativista.
ANONIMATO PERMISSIVO Luiz*, que trabalha na Diferenciada Mídia há oito anos, é formado em Publicidade e Propaganda, mas, após alguns trabalhos na área, acabou indo para o ramo das vendas de pornô. “Comecei vendendo VHS erótico com um amigo, logo depois entramos na era dos DVDs e começamos a importar material exclusivo. Depois, em 2007, comecei a trabalhar com o Juciê”. O contato do publicitário com o mundo da pornografia permitiu que ele acumulasse um bocado de histórias sobre a região onde trabalha. Uma delas aconteceu em uma casa nas redondezas que tinha, entre outras atrações, um Glory Hole — parede com um orifício para colocar o pênis para quem estiver do outro lado —, “um homem enfiou o pinto no buraco e alguém o cortou com uma navalha. O cara ficou todo ferrado!”. A pessoa que atacou fugiu e não foi pega: “Muita gente vem para o centro da cidade consumir pornografia porque aqui é como se todo mundo perdesse a identidade. Ninguém sabe direito quem você é. Não tem parente, amigo, ou chefe por perto” conta o publicitário, que já encontrou até padres no local. “A gente só descobre que são religiosos porque eles acabam contando. Na maioria das vezes, vêm com uma
Esta reportagem foi baseada na anterior “VALE DO PORNÔ”, publicada na edição 47 da revista Esquinas, em junho de 2010
história de que estão assistindo aos filmes gays para estudar e apresentar um projeto de conscientização nas igrejas. Quem engole essa?”, ironiza Luiz*. Conhecer o mundo pornográfico do centro de São Paulo pode ser uma experiência chocante. A primeira sensação ao olhar para a maioria dos frequentadores é a de que estamos perto de viciados. De fato, o olhar vazio, os trejeitos vacilantes e a assiduidade com que algumas pessoas interagem com o lugar remetem a um ambiente quase tão perturbador quanto a cracolândia. Fazendo referência ao Antigo Testamento, a funcionária Esmeralda*, do Cine Roma, declara: “Quando o assunto é sexo e desvirtuamento, o que acontece nessa região é o mesmo que aconteceu em Sodoma e Gomorra”.
Sodoma e Gomorra, de acordo com a Bíblia (Gênesis, Antigo Testamento), teriam sido duas cidades destruídas por Deus devido aos costumes imorais e transgressores de seus habitantes.
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Os nomes indicados nesta reportagem foram trocados para preservar os entrevistados.
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LARISSA ROSA
PRECONCEITO
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“PRESTASSE
não
é como se eu
Relatos de quem saiu da prisão e enfrenta diariamente barreiras na tentativa de reinserção social REPORTAGEM BRENO ZONTA, YULIA SERRA (1º ano de Jornalismo), BEATRIZ ARAÚJO e LARISSA ROSA (2º ano de Jornalismo) FOTOGRAFIA LARISSA ROSA e BEATRIZ ARAÚJO (2º ano de Jornalismo) DESIGN CAROLINA MIKALAUSKAS (2º ano de Jornalismo)
VOZES DESPREZADAS PELO sistema, cidadãos com um passado que os condena e um presente que pode não oferecer novos caminhos, são prisioneiros de uma sociedade incoerente. “Existe uma tabela de preços para a moralidade do ser humano”, critica o ex-detento Antônio*, que vivenciou as injustiças, incongruências e negligências do sistema prisional brasileiro. Sete de setembro, um final de tarde chuvoso, duas realidades opostas se chocam na avenida paulista. Em nosso primeiro contato, Antônio* se dispôs a se locomover até onde fosse melhor para nós. O escadão da Gazeta foi o lugar escolhido. Usando roupas largas, barba branca e boné que cobre a ausência de fios de cabelo, ele se apressa em nos explicar o grande vão entre seus dentes da frente: “Foi em uma briga”. Ao sentarmos para conversar, o homem questiona: “vocês marcaram aqui porque não me conhecem e têm medo, não é?”. Constrangidos diante da constatação de nossa escolha, tentamos negar sua afirmação. Um “não” tímido e sem jeito foi o esforço que tivemos para contrariar a ideia que
sabíamos ser verdade. De fato, o preconceito nos deixou com medo. Quando agendamos nosso encontro, tudo o que sabíamos sobre Antônio*, além de seu nome, era que havia sido preso. Não conhecíamos seu rosto e tampouco tínhamos ciência sobre qual infração o levara à prisão. Preso aos dezoito anos por roubo, após cumprir a pena em regime fechado por quatro meses, hoje, aos 53 anos, Antônio* ainda encontra dificuldades para se reestabelecer na sociedade. Conta que entrou no crime por meio do uso de drogas e depois de ter saído da prisão continuou a cometê-los até seus 29 anos, quando o nascimento de seu único filho mudou o rumo de sua vida. Pelo currículo formal, poderíamos dizer que Antônio* é um sujeito de Ensino Médio completo que vive atualmente sem nenhum emprego fixo. “As pessoas acham que bico é coisa de bandido”, reclama. Antônio* pode ser considerado um pensador, um falador e um revoltado também. Entre uma pergunta e outra achou os ganchos que precisava para tecer críticas ao judiciário, às Forças Armadas e aos meios midiáticos.
REABILITAÇÃO Antônio* conta que, após sair da prisão, começou a ter consciência de seus direitos e chegou a conversar com aproximadamente 15 defensores públicos. Descobriu, a partir de então, a reabilitação criminal, prevista pelo artigo 93 do Código Penal, que garante ao ex-detento o sigilo a respeito de seu processo e condenação e retira os antecedentes criminais de sua ficha. O documento não é necessário caso o sujeito cometa uma nova infração e sua pena já tenha sido cumprida. Atestados ou certidões criminais não poderão ser fornecidos por autoridades policiais e auxiliares da Justiça. A conquista da reabilitação passou a ser um de seus maiores objetivos, que atribui o desemprego justamente à condição de ex-presidiário. Recentemente, Antônio* passou por mais um processo criminal. Desta vez não era o réu. Ele processou o shopping onde trabalhou por alguns meses como fiscal depois que seus chefes tiveram acesso aos antecedentes criminais e passaram a deixá-lo em condições precárias de trabalho até, por fim, demiti-lo. “Eu passava as noites em
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BEATRIZ ARAÚJO
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A jovem lembra dos dias de visitação serem os mais complicados devido à revista vexatória a qual eram submetidos os familiares ao chegarem e as próprias presidiárias ao se despedirem
um lugar afastado, tinha que andar uns 500 metros durante a madrugada se quisesse usar o banheiro”, relembra. O resultado do processo, entretanto, o colocou de volta em seu lugar de réu: Antônio* foi condenado a indenizar o shopping: “discriminação é crime e isso não foi levado em consideração, mas sim o poder econômico daquele que estava sendo julgado”. Além da dificuldade para conseguir um emprego formal e se manter nele, há o constrangimento a que foi submetido em abordagens policiais. Morador da periferia de Mauá, região metropolitana de São Paulo, relata as diversas vezes em que teve sua casa invadida sob a acusação de ser traficante e outras situações em que passou uma noites na delegacia até que descobrissem que ele não havia cometido nenhum crime. “Quando você tem passagem é diferente: você tem uma lepra social, vai ser sempre o cara podre, carimbado”, afirma. Com o livro O que a bíblia realmente ensina no bolso, Antônio* conta que veio lendo durante a viagem de trem e diz que é fiel somente a Deus e ao seu filho de 23 anos. O ex-detento conta que gostaria que seu filho tivesse as oportunidades que ele não teve durante sua vida. E conta que gostaria de trazê-lo para pas-
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searem juntos na Paulista, enquanto encara, com certo encanto no olhar, o movimento da avenida. O medo e a insegurança cultivados durante todos esses anos em que foi tratado como um risco social, atrelados a uma baixa condição financeira, impede Antônio* de fazer alguns passeios banais ao lado do filho. “Eu me tornei prisioneiro, carcereiro, juiz e executor de mim mesmo”. Diante das perguntas relacionadas às suas perspectivas para o futuro, ele é direto: “nenhuma”. O garoto de dezoito anos que queria entrar na Escola Preparatória de Cadetes do Exército (EsPCEx) para ser militar do exército — “não da PM”, enfatiza — , prestou vestibular para o curso de Direito na Pontíficia Universidade Católica (PUC) aos vinte e poucos anos, foi aprovado e não teve condições financeiras para se manter na faculdade. Hoje se mostra uma pessoa desiludida em relação aos próximos passos: “Vontade eu tenho, mas perspectiva não”.
MULHERES ENCARCERADAS Suzana*, de 22 anos, não estava disposta a conversar. Desconfiada sobre nossas intenções ao entrevistá-la, resistiu. Foi o irmão que a convenceu de que estava tudo bem em conceder a entrevista. Mesmo hesitante,
nosso contato foi realizado em uma sala no local onde seu irmão trabalha. Ela deixou explícito, logo de início, que não estava disposta a falar muito sobre sua vida. A postura de Suzana* era arredia e muitas vezes raivosa, como se enxergasse, à frente, uma válvula que poderia expor seus medos e anseios acumulados durante o período encarcerado. Assim como centenas de outras mulheres no Brasil, Suzana* envolveu-se com um traficante e guardava as drogas produzidas por ele com a garantia de que sua participação se restringiria a essa função. No entanto, após uma revista policial no local onde moravam, houve uma troca de tiros, seu companheiro morreu e ela foi presa sob a acusação de tráfico de drogas. Suzana* foi enviada ao Presídio Feminino de Santana, maior complexo penitenciário feminino da Grande São Paulo, trazendo nas costas, além do trauma que vivera, uma pena de quatro anos para cumprir. Dentro da prisão, se uniu a outras mulheres com histórias similares à sua, todas elas estavam ali por causa de seus companheiros. Ela conta de uma senhora que integrava o grupo de detentas do mesmo pavilhão e que, por ser mais velha, fazia o papel de mãe para muitas ali, inclusive para ela. A jovem lembra dos dias de visitação serem os mais compli-
Suzana*, de 22 anos, foi detida por guardar drogas de seu antigo companheiro e, por isso, cumpriu pena de dois anos
cados devido à revista vexatória a qual eram submetidos os familiares ao chegarem e as próprias presidiárias ao se despedirem. De acordo com o levantamento da reportagem A população carcerária feminina não para de crescer, da edição de agosto de 2015 da Revista TPM, mulheres enquadradas no crime de tráfico de drogas representam 63% do encarceramento feminino no país — sendo a pena aplicada a quem comete este delito a de crime hediondo, com reclusão de cinco a 15 anos, em regime fechado. “A maioria das mulheres presas hoje por tráfico no Brasil ocupam papéis insignificantes no crime. Geralmente, elas guardam a droga de outra pessoa em casa e acabam sendo levadas nas batidas policiais”, diz o defensor público Bruno Shimizu. A ex-detenta explica que, desde o primeiro momento em que foi presa no complexo, já imaginava sua saída: “Desde a hora que eu entrei só almejava sair daquele lugar. Pensava em fazer minha mãe sentir orgulho de mim de novo”, lembra. Para isso, entrou na fila para trabalhar em alguma das oficinas de artesanato oferecidas no presídio e, após oito meses, conseguiu uma vaga para produzir chinelos. É dessa forma que as presas de Santana conseguem uma ocupação e, a partir desta atividade, têm a chance de diminuir
a pena a qual foram condenadas. De acordo com o Artigo 126 da Lei de Execução Penal, há a diminuição de pena para o condenado conforme tempo de trabalho ou de estudo. Segundo o 1º parágrafo da norma, para cada três dias trabalhados, com jornada de seis a oito horas, é abatido um dia da pena. Foi assim que ela conseguiu diminuir a sua e, em dois anos, voltar para casa. Suzana* sabia que sua vida fora das grades não seria fácil. Por sentir vergonha de si mesma, não mantem contato com sua mãe e, assim, foi morar com o irmão e a cunhada. Mesmo vivendo com a família, sente preconceito pelo seu passado. A cunhada, por exemplo, não permite que ela cuide da sobrinha por muito tempo. “Eu me sinto suja. É como se eu não prestasse mais. Como se eu não tivesse mais valor. As pessoas não me dão estima e pensam que não tem problema fingir que está tudo bem. A gente percebe”. Ela completa “Não quero que tenham pena de mim. Eu sei o que fiz, mas já paguei. Só quero ter uma vida normal”, desabafa. Ela conta que foi à procura de emprego após ser solta e que chegou a fazer bicos entregando panfletos em faróis, mas foi dispensada assim que seu passado foi descoberto. Os sonhos de Suzana* são conseguir
morar sozinha, limpar o nome, dar orgulho à mãe e fazer enfermagem. “Acho que ainda tenho o direito de sonhar”, afirma. O psicólogo Moisés Felipe, que trabalha com ex-detentos, afirma a importância de gerar oportunidades a essas pessoas: “Se trato os ex-presidiários como coitados, eu os coloco em um lugar de exclusão e, assim, sou preconceituoso, não enxergando quem eles poderiam vir a ser”. É importante entender que privá-los de oportunidades apenas aumenta os riscos de uma volta ao crime. “Eles querem o pão, mas o nosso trabalho no Centro de Acolhida da ONG Coordenação Regional de Obras em Promoção Humana (CROPH) é despertar neles a ideia de que eles podem aprender a fazê-lo”. David* e Suzana* provavelmente nunca se viram, mas dividem a mesma realidade e a de tantos outros brasileiros. Eles seguem pagando por uma pena que veio depois daquela que receberam no tribunal: serem restringidos pelos olhares daqueles que sabem de seus antecedentes, e que os impedem de concretizar o sonho de um futuro melhor.
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Os nomes indicados nesta reportagem foram trocados para preservar a identidade dos entrevistados.
Esta reportagem foi baseada na anterior “MEU PASSADO ME CONDENA”, publicada na edição 20 do jornal Esquinas de SP, em abril de 2000
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IDEOLOGIA
SAGRADA FAMÍLIA
Influenciada por setores da Igreja Católica, Câmara de São Paulo derruba discussão de gênero na Educação REPORTAGEM ANNA BEATRIZ OLIVEIRA, CAMILA JUNQUEIRA, DENISE KANDA, MATHEUS OLIVEIRA, MAYARA ROZÁRIO (1º ano de Jornalismo) e GUILHERME VENAGLIA (2º ano de Jornalismo) FOTOGRAFIA JOSÉ CRUZ/AGÊNCIA BRASIL e TODODIA IMAGEM DESIGN ANA CAROLINA SIEDSCHLAG (2º ano de Jornalismo)
“VOCÊS QUEREM FALAR de gênero, né? Então vamos lá”. Foi com essa pergunta que Ricardo Nunes, empresário, católico e vereador pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) mudou o rumo da entrevista que concedeu para a Revista Esquinas. Responsável pelo relatório da versão final do Plano Municipal de Educação (PME) da cidade de São Paulo, aprovado em agosto de 2015, Nunes defendeu, no plenário, a retirada do termo “gênero” do Plano, em todas as oito vezes que este aparecia. O PME é uma legislação que deve estabelecer metas e diretrizes para a educação local, que, segundo a Constituição, abrange a responsabilidade por crianças entre um e 14 anos de idade. Após o Congresso Nacional aprovar o Plano Nacional de Educação (PNE), a discussão chegou aos municípios. Na Câmara Municipal de São Paulo, como em diversas cidades do estado, o assunto causou o envolvimento intenso de grupos religiosos e de movimentos feministas e LGBT com o debate sobre a inclusão ou não das discussões sobre gênero nas salas de aula paulistanas. O Brasil é um Estado laico, mas, historicamente, sua democracia é perpassada por influências religiosas. Na década de 1960, a
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Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP), organização católica da direita política, liderou a organização de protestos contra o então presidente João Goulart, acusado, em um contexto de Guerra Fria, de ser comunista. A manifestação mais forte que enfrentou, poucos dias antes do Golpe Militar de 1964, teve também um forte caráter de apelo à providência divina e o protagonismo da TFP: a Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Além dos responsáveis pela votação do Plano, a galeria do plenário da Câmara contava com membros da organização e de outros grupos católicos, como a Renovação Carismática. Após uma tarde na Câmara Municipal, o comprometimento do vereador com os casos ficou explícito: no debate sobre gênero, demonstrou ter pesquisado a fundo antes de tomar uma posição frente um projeto de lei que tramitou durante cerca de dois meses. Embora não assuma ter ligação direta com a Igreja Católica, Nunes reproduz os valores cristãos em suas atitudes, a começar pelo seu gabinete, decorado com alguns terços e imagens de santos. Questionado, diminuiu o papel da TFP em relação a esse caso: “Eles fizeram muito
barulho, mas isso não influenciou, não vieram me procurar”. O vereador comentou que recebeu, em seu celular, mensagens do arcebispo de São Paulo, Dom Odilo Scherer, apoiando sua atuação em pleno dia de votação definitiva e defendeu a atuação da Igreja Católica nesse ponto: “Dentro da Igreja há um núcleo muito preparado de pessoas que pesquisaram a questão”. E completa, atacando diretamente o movimento LGBT: “Pessoas que estudaram muito foram taxadas de preconceituosas, em um assunto que não tem nada a ver com preconceito, olha como é baixo o argumento do grupo LGBT”, afirma. Na opinião do vereador Toninho Vespoli, do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), relator do PME na Comissão de Educação, a inserção da temática do gênero visa a discussão em ambiente escolar sobre a igualdade entre homens e mulheres e o combate às descriminações por orientação sexual e identidade de gênero, principalmente para evitar o abandono dos estudos por parte de jovens vítimas desses preconceitos: “Em um mercado capitalista tão intenso, em que pessoas graduadas não conseguem emprego, imagina uma criança ou um adolescente que sofreu evasão escolar. Ver um homossexual na escola não pode, mas
As discussões acerca o PME opõe ativistas
TODODIA IMAGEM
O movimento feminista marcou presença no PME pela defesa da discussão de gênero na educação
TODODIA IMAGEM
Grupos religiosos se posicionaram contra a discussão de gênero
Esta reportagem foi baseada na anterior “A TFP NÃO É PRECONCEITUOSA, ACEITA ATÉ PRETOS”, publicada na edição 26 do jornal Esquinas de SP, em abril de 2002
JOSÉ CRUZ/AGÊNCIA BRASIL
ver esse mesmo jovem — que se ausenta nas aulas — se prostituindo, a sociedade permite. Para mim, isso é hipocrisia”, critica. Vivian Mendes, assessora da Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres, afirma que o objetivo em ser favorável à discussão deste projeto é de garantir que estereótipos de gênero, que reforcem a desigualdade entre homens e mulheres não sejam reproduzidos na sala de aula, ajudando as escolas a desconstruir estigmas e ideias que são culturalmente reproduzidas. Na visão do vereador Ricardo Nunes, um tópico que prevê uma educação voltada à não discriminação seria mais do que o suficiente para promover a igualdade entre os sexos. Além disso, alega que a ação dos movimentos favoráveis a essa inclusão têm como objetivo a destruição da família tradicional, já que, em sua visão, “se uma pessoa continua favorável ao projeto mesmo depois de ter o conhecimento dele, só mostra que ela pode estar mal intencionada.” Antes protagonista, a Igreja Católica perdeu espaço nas discussões políticas nacionais para a bancada evangélica, que liderou os confrontos contra votações de interesse da instituição, como a descriminalização de drogas e os direitos LGBT. No entanto, tem realizado movimentos recentes para recuperar essa posição, situação que Toninho Vespoli avalia com gravidade: “A Igreja Católica erra à medida que quer impor os seus valores para toda a sociedade”. Nunes reforça que ser religioso é apenas um dos aspectos de sua vida e, a despeito da camiseta pendurada em seu gabinete com os dizeres “Mais Família”, usada pelos manifestantes contrários às discussões de gênero alega: “Vejo muita coragem da Igreja Católica em se opor ao terror que é essa ideologia de gênero”. A ideologia que o vereador critica é por, supostamente, causar a destruição da família e não levar em conta as particularidades biológicas de meninos e meninas no ambiente escolar. “Mas não falem tanto dessa questão da Igreja, porque não se trata de religião, mas como alguém vai falar ‘não tem que dar carrinho para menino e boneca para menina? ’ Isso é errado? Quem tem filho não é a menina? É por isso que ela ganha uma boneca”, afirma. Ao fim de nossa entrevista o vereador se declarou um homem sem preconceitos: “Tem até um homossexual trabalhando na minha casa, o Dinho, que de noite é Dinha”. O vereador do PMDB defende a naturalidade de uma influência religiosa na política: “O Estado pode ser laico, mas não ateu.”
ATIVISMO
LT GB
Lésbicas e transexuais mostram como suas lutas ainda estão longe do fim REPORTAGEM BRUNO IGNÁCIO DE LIMA, GABRIEL NUNES, LUCAS CABRAL (1º ano de Jornalismo), ALLAN CORREIA, BÁRBARA LIGEIRO e GIULIANNA MUNERATTO (2º ano de Jornalismo) COLABORAÇÃO ALINE TAVARES (2º ano de Jornalismo) e ANDRÉ VALENTE (3º ano de Jornalismo) FOTOGRAFIA © PHILIPPE LEROYER (Flickr) DESIGN ANDRÉ VALENTE (3º ano de Jornalismo)
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DESCONSTRUA cisgênero
Informações retiradas da reportagem Cidadania Trans, disponível no site: cidadaniatrans.com
EM JUNHO DE 2015, a Suprema Corte dos Estados Unidos deliberou a legalidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo. A comunidade gay e simpatizantes do mundo inteiro entraram em festa: o país mais influente do planeta reconheceu a vitória de uma das principais lutas dos LGBT’s. Essa conquista concretizou uma tendência que segue se firmando nos países progressistas. Homens homossexuais cisgêneros são mais aceitos e integrados à sociedade, mas será que essa tolerância também tem se aplicado às outras letras da militância LGBT? Dados da Associação Nacional das Travestis e Transexuais, a ANTRA, assustam ao revelar que, somente em 2014, cerca de 150 transgêneros foram assassinados, dando uma amostra da intolerância social em relação a esse grupo. Quem traz essa estatísticas é Ariel Nolasco, de 21 anos, mulher trans que trabalha no projeto Transcidadania, da prefeitura de São Paulo, o qual busca reintegrar socialmente esta população marginalizada. Para ela, o preconceito é diário, sistêmico e começa no processo da transgenitalização: procedimento cirúrgico em que pessoas transexuais e travestis podem escolher readequar suas genitais a sua identificação de gênero. Nolasco explica que são feitas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), apenas 12 cirurgias por ano, pejorativamente chamadas de “mudança de sexo”. “Se eu entrasse agora na fila do procedimento, só conseguiria realizá-lo daqui a duzentos anos, literalmente”, critica. No lado L da sigla, uma das principais denúncias é a objetificação e a fetichização da mulher lésbica. Graziela Natasha, jornalista de 25 anos, relata como é enfrentar isso: “Às vezes estou com a minha namorada na rua e me deparo com palavras obscenas se referindo a nós”. Ela revela que o assédio é bem frequen-
preconceito contra pessoas transexuais, travestis e não-binárias
lesbofobia preconceito contra mulheres lésbicas
gênero
}
Quem nasce com um pênis e se identifica como um homem, ou com uma vagina no caso de quem se identifica como mulher
transgênero transexual
transfobia
Quem se identifica com um gênero diferente do qual foi designado no nascimento
te: “Isso, para mim, acontece de forma mais cotidiana possível”. Episódio similar ocorreu com a produtora Maria Clara Paes. Certa noite, em que estava na boate com a namorada, foi abordada por um homem que propôs sexo a três. Para ela, existe sim a fetichização sobre as lésbicas e ela acontece de modo diferente do que se dá com os gays. Em sua visão, a pornografia lesboafetiva é o maior símbolo desse processo: “O pornô lésbico satisfaz o público heterossexual masculino. Não diz nada sobre a intimidade feminina, que é sempre banalizada”, critica Maria Clara. Na abordagem da mídia, a luta por direitos homossexuais está sendo discutida. Porém, mulheres ou homens transexuais, não possuem quase nenhuma representatividade. “Quantas pessoas transexuais você vê na mídia? E aqui no Brasil? Nenhuma” denuncia Ariel. De acordo com ela, são poucos os filmes, séries ou programas televisivos que dão espaço para uma personagem travesti ou transexual e, na maioria das vezes, é um homem cisgênero que a interpreta. “Eu vivo em uma sociedade que diz o tempo todo que eu não sou mulher. Quando chamam um ator cis para representar uma trans é a mesma coisa”, afirma. Maria Clara acredita que quanto mais as massas têm contato com personagens LGBT, mais é criada uma identificação que é essencial para combater o preconceito. Renata Soares, de 23 anos, estudante de Publicidade e Propaganda e lésbica assumida desde os 17, fala de como uma visibilidade com pouca representatividade também tem seu lado positivo: “Algumas pessoas dizem que é ruim, que pode ser caricato, mas eu acho que é bom, porque começa a abrir a cabeça das pessoas no geral”. A falta de protagonismo das lésbicas e transexuais dentro do movimento LGBT
uma expressão de identidade que independe do sexo biológico
ainda é pautada pelo homem gay cisgenêro que acaba sendo porta voz de todas as reinvindicações. “A Parada Gay não é direcionada ao público LBT”, afirma Maria Clara. “Não existe visibilidade fora do movimento LGBT e nem dentro dele, porque hoje em dia é tudo voltado ao homem gay”, reforça Ariel. Outro ponto convergente às lutas é a forma como o machismo afeta tanto as lésbicas quanto as trans. Entretanto, segundo Ariel, as mulheres transexuais sofrem duplamente ao serem vítimas tanto da transfobia quanto do machismo. “Eu parei de ser chamada de traveco pra ser chamada de gostosa. E isso não é machismo?”, questiona. Na medida em que preconceitos e paradigmas são desconstruídos, conquistas são adicionadas à luta da militância LGBT, embora ainda se apresente problemática a falta da interseccionalidade dentro do movimento. A bacharela em filosofia, Leila Dumaresq, mulher transexual de 37 anos, afirma que a existência do preconceito é internalizado pelo movimento, pois nem todos os espectros marginalizados sofrem as mesmas opressões de gênero, classe, etnia e sexualidade. Além disso, a discriminação também se manifesta a partir do não envolvimento afetivo de gays e lésbicas com homens e mulheres trans, respectivamente. Não bastando as discordâncias internas, a comunidade LGBT vive em uma caça às bruxas incentivada pelos discursos de ódio de fundamentalistas religiosos que compõem o Congresso mais conservador desde 1964. Apesar das recentes conquistas, o movimento encontra-se, ainda, oprimido e fragmentado. Leila afirma ser difícil manter o otimismo em relação à sua luta e que apenas o reconhecimento da diversidade pelo desenvolvimento de nossa alteridade nos salvará da ignorância e da barbárie.
Esta reportagem foi baseada na anterior “QUANTO CUSTA MANTER O ORGULHO GAY”, publicada na edição 26 do jornal Esquinas de SP, em abril de 2002
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CAPA
LAR, VIOLENTO LAR No Brasil, a cada dois minutos cinco mulheres são vítimas no ambiente doméstico REPORTAGEM LETÍCIA FURLAN, MARIANA MARVAO (1º ano de Jornalismo), BÁRBARA MUNIZ, CLAUDIA RATTI, LUISA PANZA, THAÍS TORRES (2º ano de Jornalismo) e ANA CLARA MUNER (3º ano de Jornalismo) FOTOGRAFIA © VITOR GARCIA ZOCARATO (1º ano de Publicidade e Propaganda) ILUSTRAÇÃO HELÔ D’ANGELO (3º ano de Jornalismo) DESIGN ANA CAROLINA SIEDSCHLAG (2º ano de Jornalismo)
A PRIMEIRA IMPRESSÃO que a 2ª Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) da cidade de São Paulo passa é de intimidação e falta de acolhimento. Perto da porta de entrada há um balcão grande onde vários funcionários atendem as vítimas. O local, com pouca iluminação, é dividido em setores: a primeira parte é um espaço comum, destinado a todos os tipos de crime. Somente passando pelo corredor é que chegamos à DDM, separada por salas de atendimento. Também encontramos uma área com diversos brinquedos para crianças — as Delegacias da Mulher também atendem crianças e adolescentes de até 18 anos — a maior parte filhos que acompanham suas mães para prestar queixa ou, em alguns casos, também vítimas da violência doméstica. Após fazerem denúncias, as mulheres esperam em um assento de concreto junto à parede. Em nossa visita ao local, durante a semana, no período da tarde, presenciamos uma mulher aos prantos que aguardava, sem qualquer tipo de amparo ou cuidado.
A cena parecia ser corriqueira. Conduzidas até a sala da delegada responsável pela DDM, o boletim de ocorrência é feito e, dessa forma, iniciado o processo legal. Celi Paulino Carlota, titular da 1ª DDM de São Paulo, explica que as Delegacias da Mulher têm preferencialmente profissionais do sexo feminino como responsáveis por esse primeiro atendimento. Apesar disso, existe uma grande quantidade de policiais homens nesses espaços. A delegada Jacqueline Valadares, encarregada pela 2ª DDM, afirma que isso não intimida as vítimas e não faz tanta diferença no atendimento, pois todos os policiais civis, de ambos os sexos, são orientados a como lidar com os casos de violência. Ela ainda garante que muitos homens conseguem deixá-las mais à vontade que algumas policias mulheres. No entanto, Celi Paulino ressalta que, apesar do treinamento que os profissionais recebem, muitos reproduzem machismos, o que resulta em um mau atendimento. Ela acredita que operadores do direito, como
juízes e advogados, também precisam ser capacitados para essas situações. Mais do que o treinamento, é imprescindível que os profissionais aceitem e escutem a mulher, sem julgá-la, para que a encaminhem a uma equipe multidisciplinar, pela qual é oferecido o devido auxílio psicológico à ela e aos filhos. Neste momento, a ideia é que a vítima consiga romper a relação com O agressor, muitas vezes sendo inesperadamente este o próprio companheiro ou parente próximo. Segundo dados de 2014 da Central de Atendimento à Mulher, mais de 80% das agressões contra mulheres são cometidas por homens com quem elas têm ou tiveram algum vínculo afetivo. Ana*, 27 anos, vítima de violência doméstica, encaixa-se nesse perfil. Aos 19, foi espancada todos os dias no período de uma semana por Pedro*, seu ex-namorado, dois anos mais velho. “Foram chutes e socos em uma sequência tão rápida que eu não conseguia me defender”, relata sobre a primeira agressão que aconteceu após mais uma briga corriqueira do casal.
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“
Sempre falei para mim mesma que nunca sofreria qualquer tipo de agressão vinda de um homem. Achava que sim, em certos casos o cara é um escroto, mas em partes, se acontecesse, a culpa era da menina que deixou. Mas não, não é bem assim. Quando me vi já estava no meio daquilo tudo, e o pior, é que o motivo da discussão foi esquecido. Nós estávamos namorando havia dois anos, e estávamos quase morando juntos na casa dele. Certo dia ele quis sair com os amigos, ir ao bar da esquina. Como eu tinha aula no dia seguinte, fiquei dormindo. Por volta das quatro da manhã acordo e vejo ele sentado ao meu lado com o meu celular nas mãos. Notou que eu estava acordada e começou com os xingamentos de baixo calão. Perguntei o que estava acontecendo e visivelmente ele estava totalmente embriagado, sabe-se lá que outras drogas havia consumido, mas uma certeza era que não havia nenhum motivo, ou qualquer infidelidade da minha parte, porque eu realmente gostava dele. Quando me sentei, ele arremessou o celular longe, na vigésima vez que me chamou de puta e passou a me chacoalhar pelo braço, eu chorava e, para ele parar, dei um tapa na boca dele. Naquele breve silêncio, percebi que deveria apenas ter ido embora. Ele devolveu o tapa. Mas, existe uma diferença da mão masculina para a feminina. Não conseguindo me conter o empurrei, ele veio com a mão no meu pescoço e me jogou contra a cama, o chutei com todas as forças que tinha. Consegui me soltar e me virei de barriga para baixo em posição fetal, quando ele me deu três socos na nuca. A tia dele, que morava na casa da frente, ouviu o estardalhaço e veio bater na porta. Nesta hora ele parou. Eu me levantei e corri para a porta. Ele me alcançou, me segurou pelos braços e continuou me xingando, dizia que eu ia ficar lá e que se fosse embora era para nunca mais voltar. Por fim, fui embora direto para a delegacia, onde ele foi sentenciado de acordo com os termos da Lei Maria da Penha. Depois de três semanas e muitos pedidos de desculpa, a gente voltou. Hoje não namoramos mais, mas continuamos a ficar de vez em quando.”
Maria*, 21 anos, estudante e vítima de violência doméstica
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Eram chutes de bota em uma mulher nua de 45 kg, eu quicava entre a louça da privada e a da pia. Não houve denúncia e até hoje me sinto impotente
A delegada Celi Paulino acredita que investimento em educação e cultura seja essencial para o empoderamento feminino, pois assim, mulheres como Ana* conseguiriam denunciar o agressor à polícia logo no primeiro empurrão. Infelizmente, esse não foi o caso. A violência contra ela intensificou-se, chegando de o agressor deixá-la presa no banheiro por dias. “Eram chutes de bota em uma mulher nua de 45 kg, eu quicava entre a louça da privada e a da pia” relembra. O ciclo de agressões foi rompido graças a Ana*, que fugiu de Pedro*, apesar de não conseguir reconstruir sua vida. “Não houve denúncia e até hoje me sinto impotente”, lamenta. Ela quebrou o silêncio pela primeira vez durante esta reportagem, sua família e amigos mais próximos não sabem o que aconteceu durante aquela semana. Esse é um comportamento comum por parte das vítimas, segundo um estudo realizado pela Organização Mundial de Saúde (OMS): cerca de 20% das mulheres agredidas fisicamente pelo marido no Brasil permanecem em silêncio.
É PRECISO METER A COLHER, SIM!
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alcoolizadas ou drogadas agridem mulheres, quando, na verdade, as drogas psicoativas só agem como dispositivos que potencializam o agressor. “Existem homens de terno e gravata que batem em mulheres,’’ afirma. Tales Furtado, de 29 anos, é psicólogo e atende grupos de homens que já praticaram esse tipo de violência. Ele concorda que não há algo que diferencie os agressores, que homens comuns são os que a praticam, ‘‘Os frequentadores [do grupo] são uma amostra dos homens da sociedade. O que os difere é apenas um boletim de ocorrência nas costas. Grande parte deles chegam muito bravos e se sentindo injustiçados frente à Lei Maria da Penha. Acham que xingamento não é violência e que revidar fisicamente pode.’’ Além da violência física, existem mais quatro tipos de agressão doméstica: patrimonial, moral, psicológica e sexual. Segundo a delegada Jacqueline Valadares, os casos mais comuns são de violência física, sexual e moral. Júlia*, de 29 anos, mora com a família, onde ela e sua mãe sofrem, há cerca de um ano, agressões morais e verbais vindas de seu pai. Meses atrás, ao reagir aos xingamentos, foi violentada fisicamente. “Foi por reagir que eu apanhei, ele [o pai] extrapolou e bateu na minha cara”, conta. Assim como Ana*, ela não recorreu à Lei Maria da Penha, sancionada em 2006, que tem como principal objetivo proteger as mulheres contra crimes ocorridos no ambiente doméstico. Jacqueline explica que a Lei Maria da Penha não prevê novos crimes, mas sim, modos de tratar os já existentes quando ocorrem no âmbito do lar. A rigidez também é uma característica da lei. Por exemplo, quando uma vítima faz um boletim de ocorrência relatando lesão corporal, esse processo será levado adiante independentemente da vontade da vítima. “Mesmo que essa mulher perdoe o autor, o Estado não perdoa”. O psicólogo acrescenta um
LUISA PANZA
Pesquisa realizada pelo Data Senado em 2015 revela que, a cada dois minutos, cinco mulheres são agredidas no Brasil. Celi explica que apesar da excelência da Lei Maria da Penha no papel e no trâmite, esses números continuam altos. “Não se muda a mentalidade com lei”, declara. Dados do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) de 2013 revelam que entre a população, 54% conhecem uma vítima que já foi agredida por um parceiro e 56% conhecem um homem que já agrediu uma parceira. Logo, concluímos que a violência doméstica está presente no cotidiano da maior parte dos brasileiros e que não existe, portanto, um perfil para vítima ou agressor. Celi ressalta que é comum o pensamento errôneo de que apenas pessoas
Ana*, estudante e vítima de violência doméstica
motivo recorrente para as mulheres muitas vezes perdoarem seus agressores, “Elas, infelizmente, ainda dependem financeiramente dos homens, é o antigo ‘ruim com ele, pior sem ele’. Seu espaço sempre foi o privado, de cuidar da casa, dos filhos. E dos homens sempre foi o público, de trabalhar e viver na rua.”
A CULPA NÃO É DA MULHER Em 9 de março de 2015 entrou em vigor a Lei do Feminicídio que classifica a violência doméstica e familiar como homicídio qualificado em razão do gênero feminino. A nova lei torna a punição pelo crime mais rigorosa, com pena de até trinta anos. Um estudo realizado pela Agência Patrícia Galvão — ONG que atua na produção de notícias sobre os direitos das mulheres — divulgou que, no primeiro trimestre de 2015, de todas as denúncias feitas na Central de Atendimento a Mulher, o risco do feminicídio esteve presente em mais de 30% dos casos. Assim como a Lei do Feminicídio, para a Lei Maria da Penha ser aplicada, o crime deve ter sido cometido em razão do gênero feminino da vítima. No entanto, mais do que leis, a mudança desse cenário depende também de reconhecer o machismo como algo estrutural, e não natural da sociedade. A mulher ainda é apresentada como ‘‘culpada’’ e não é estranho ouvir expressões como “O que a senhora fez para ele te bater?”. Em 2013, o IPEA realizou uma pesquisa na qual 63% dos entrevistados concordaram total ou parcialmente que “casos de violência dentro de casa devem ser discutidos somente entre membros da família”. Essas formas de silenciamento impedem que se entenda, de uma vez por todas, que violência não deve existir nem mesmo entre quatro paredes.
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Os nomes indicados nesta reportagem foram trocados para preservar a identidade das entrevistadas.
SOCO NO
estômago “Vivendo num sistema machista e patriarcal Onde se espancar uma mulher é natural A dona do lar, a dupla jornada Sempre oprimida, desvalorizada Até quando eu vou passar despercebida” Flor de Mulher - MC Luana Hansen
uma mulher é estuprada a cada 10 minutos uma mulher é vítima de feminicídio a cada 90 minutos
Por ano, 1,5 milhão de mulheres negras são vítimas de violência doméstica no Brasil O número de assassinatos de mulheres negras cresceu 54% entre 2003 e 2013, enquanto o de mulheres brancas diminui 10%
3 em cada 5 mulheres já sofreram violência em relacionamentos
54%
da população conhece uma vítima de violência doméstica ou familiar
56% conhecem um homem que já agrediu a parceira vítimas de violência doméstica 31% das ainda convivem com o agressor 17% sofrem violência diária
FONTES: VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER/INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (2013) DATA POPULAR/INSTITUTO AVON (2013) MAPA DA VIOLÊNCIA/INSTITUTO SANGARI (2010)
MAPEAMENTO DAS DELEGACIAS DA MULHER NO BRASIL/UNICAMP (2008)
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Esta reportagem foi baseada na anterior “LAR, VIOLENTO LAR”, publicada na edição 26 do jornal Esquinas de SP, em abril de 2002
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ECONOMIA
Pouca
GRANA A inflação e como ela se materializa no aumento dos preços REPORTAGEM BÁRBARA GASPAR, BRENDA ZACHARIAS, CAMILA GAMBIRASIO, GIOVANNA SUTTO, MARCELA SCHIAVON, NATALY PASCHOAL (1º ano de Jornalismo), ANA ISABELLA CASCIONE e VITÓRIA BARALDI (2º ano de Jornalismo) COLABORAÇÃO ADALTON DINIZ ILUSTRAÇÃO DANIELA DEMORI (3º ano de Jornalismo) DESIGN CAROLINA MIKALAUSKAS (2º ano de Jornalismo)
A TAXA DE inflação pode ser entendida como o aumento médio do nível de preços de um conjunto de produtos ou serviços, em um determinado período, usados como referência, que é percebido pela população a partir dos que são consumidos por ela, como o pão ou o leite, que ficam mais caros com o passar do tempo. Além de também
ser a comparação desses preços com o aumento do salário mínimo. Explicar o funcionamento desse mecanismo e as razões que fazem com que esses reajustes aconteçam permanentemente é uma das principais questões e desafios encontrados pelos economistas. “Existem flutuações normais de mercado,
mas aumento ‘persistente’ de preços, generalizado por todos setores da economia, como é a situação atual, reflete um típico processo inflacionário”, explica o economista Flávio Chevis formado pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP) e Presidente da Addax Assessoria Financeira.
Desenvolvimento do salário mínimo no Brasil O salario mínimo foi instituído no Brasil pelo presidente Getúlio Vargas, através da lei nº 185 de janeiro de 1936 e pelo decreto-lei nº 399 de abril de 1938. Passando a vigorar a partir de 1º de maio de 1940, quando o decretolei nº 2162 fixou seus valores.
R$ 70 1994
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R$ 151
2000
R$ 300
2005
R$ 510
2010
R$ 724
2014
R$ 788
Hoje
O que custava R$ 0,50 na década de 1990 hoje custa:
Jornal Lance! R$ 2,50
Porta moedas R$ 1,00
O que custava R$ 1,00 na década de 1990 hoje custa:
Churrasco grego + suco de laranja R$ 3,50
Café expresso R$ 4,60
Passe para um ônibus em São Paulo R$ 3,50
Clássico erótico de quadrinho R$ 15,00
Tylenol R$ 4,50
Chocolate Bis R$ 3,35
Suco de Laranja Caseira R$ 5,90
Esta reportagem foi baseada na anterior “POUCA GRANA”, publicada na primeira edição do jornal Esquinas de SP, em 1995
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SOCIEDADE
MÃO NA cabeça
E documen Quando a polícia combate uma guerra, necessariamente será violenta REPORTAGEM BRUNO MACEDO (2º ano de Jornalismo), ANA CLARA MUNER, LÍGIA NEVES e MARIANA GUIMARÃES (3º ano de Jornalismo) COLABORAÇÃO PEDRO ERNESTO BETTAMIO (1º ano de Jornalismo) FOTOGRAFIA ROBERTO VIANA/AGECOM - COM MODIFICAÇÕES DESIGN ANDRÉ VALENTE (3º ano de Jornalismo)
FERNANDO*, MORADOR DO Parque Bristol, zona sul de São Paulo, voltava de uma festa com seus amigos utilizando transporte público quando, ao descer do ônibus, foi abordados por oficiais de maneira agressiva. “A partir do momento que eles vestem a farda, acham que têm o direito de chegar sem perguntar, com agressividade. Dependendo do horário em que você está andando na comunidade, a abordagem policial é violenta”, conta. Segundo o relatório mundial sobre direitos humanos da organização Human Rights Watch (HRW), no estado de São Paulo, os números de mortes causadas pela violência policial cresceram de 369 vítimas, em 2013, para 728, em 2014. Dados da última edição do Anuário de Segurança Pública revelam que em 2013, ao menos seis pessoas foram mortas por dia pelos policiais, revelando um número maior em comparação aos Estados Unidos. Maria Lucia Karam, juíza aposentada do Tribunal de Justiça do estado do Rio de Janeiro (TJRJ) e participante do Law Enforcement Against Prohibition (LEAP) — organização que busca reduzir os danos resultantes da chamada guerra às drogas —, explica que a demonstração de poder por parte dos policiais é alimentada pela ideia punitiva que sustenta todo o sistema penal. A construção da imagem do crimino-
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so como o mau e legitima os abusos contra pessoas que correspondem a esse estereótipo criado: “Os inimigos, que nessa guerra são os mais vulneráveis, como os produtores, comerciantes ou consumidores, são os pobres, os marginalizados, os desprovidos de poder”, afirma. Esta imagem, também é construída pela mídia, que é criticada por sustentar o símbolo de bandido como sendo homem, negro e de classe baixa.
GUERRA ÀS DROGAS Clara* estava celebrando a noite de Natal no Jardim São Luís, zona sul de São Paulo, onde, há treze anos acontece uma missa de motoqueiros, que comemoram a noite de 24 de dezembro em frente à igreja do bairro. Era a primeira vez que ela e seu namorado passavam a data juntos, então decidiram ir para casa assim que a passeata começou, porque não queriam confusão. Clara* relata que a polícia sempre ia ao evento para enfrentar os motoqueiros, “todo ano eles fazem isso”. Então, decidiram ir de moto para um bairro próximo, o Capelinha. Viram de longe vários policiais em uma rua perto da casa de seu namorado. “Os ‘homens de farda’ nem pediram para a gente parar, já foram logo batendo. Um deles acertou primeiro o meu namorado e, logo depois, eu”. A jovem afirmou que o policial mirou em sua cabeça, e
em seguida sentiu uma forte dor e caiu da moto. Nenhum oficial que estava no local prestou assistência. Ela acredita que só foi atingida porque naquela noite havia ocorrido um crime no Jardim São Luís e estavam à procura de algum culpado. “Quando a polícia vem para a periferia só quer resolver uma ocorrência e ir embora”, afirma Bruno Paes Manso, jornalista do coletivo Ponte, especializado em jornalismo investigativo, e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV), coloca como problema central da Polícia Militar a ideia de que sua função é como uma caça aos bandidos. “Esse é um sistema que reproduz raiva, ódio e ideologia do crime”, afirma Manso. A ex-juíza conta que é muito difícil encontrar policiais que atuem como agentes da paz, mas que isso é de grande importância não apenas para o Estado, mas também para a sociedade: “Só assim pode-se alcançar um convívio social harmônico.” No entanto, acredita que no Brasil e no mundo essa polícia não tem sido vista com a função de proteger a população, mas como adestradas e estimuladas a atuar em uma guerra. “Não há como buscar uma polícia mais humanizada quando esse setor é jogado no front. Quem combate em uma guerra, necessariamente será violento”. explica Maria Lucia sobre a urgência de desmilitarizar a política de segurança pública.
O abuso policial é parte do cotidiano da periferia
to “Bandido bom é bandido preso [ou morto]” é um pensamento comum entre parte da população brasileira. “É o explícito Estado policial para os pobres e o formal Estado de Direito para os ricos e as classes médias”, critica Maria Lucia. Quando a polícia entra em muitas comunidades e mata um cidadão do mal, ela, e o Estado, que autoriza essas ações são, muitas vezes, aplaudidos pelo restante da população. Porém, se alguém considerado cidadão do bem, visto inocente pela sociedade é atingido, a polícia é condenada. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou que, em 2013, 75% da população afirmou não confiar na Polícia Militar. Em 2014, apenas 33% dos entrevistados acionou a polícia em casos de violência. Para o Major da Polícia Militar José* “Não podemos esquecer que aquele funcionário que age fora da lei é um indivíduo comum, porém camuflado com uma farda e que não representa a corporação”, afirmando que não se pode generalizar o ato de uma pessoa para toda uma instituição. As complicações que sustentam essa violência são mascaradas pelas imagens do front e pelo sensacionalismo da mídia, que estampa as mortes nas periferias das grandes metrópoles e cria a imagem do inimigo, que acaba por legitimar as agressões policiais.
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Os nomes indicados nesta reportagem foram trocados para preservar a identidade dos entrevistados.
Esta reportagem foi baseada na anterior “MÃO NA CABEÇA E DOCUMENTO”, publicada na edição 30 do jornal Esquinas de São Paulo, em novembro de 2003
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POLÍTICA
Personagem da
NOVELA NACIONAL O retrato falado de Sérgio Moro: de salvador da pátria a vingador midiático REPORTAGEM FELIPE MINORU SAKAMOTO, JOÃO PEDRO SIQUEIRA, KAROLINE ALVES, LETÍCIA SÉ (1º ano de Jornalismo) e KAROLINA BERGAMO (3º ano de Jornalismo) COLABORAÇÃO AMANDA RAVELLI e ANA MARIA BARROS (1º ano de Jornalismo) FOTOGRAFIA JOÃO PEDRO SIQUEIRA e LETÍCIA SÉ (1º ano de Jornalismo) ILUSTRAÇÃO HELÔ D’ANGELO (3º ano de Jornalismo) DESIGN CAROLINA MIKALAUSKAS (2º ano de Jornalismo)
EM VÁRIOS MOMENTOS da história e da literatura surgem heróis, pessoas cujos atributos e atos servem de inspiração são como uma luz para problemas da sociedade. Provavelmente, Odete Starke Moro e Dalton Áureo Moro não imaginavam que seu filho viria a ocupar esse posto 43 anos após seu nascimento. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), no Paraná, a jornada do polêmico Sérgio Moro, hoje visto por alguns como herói brasileiro. Ainda jovem, Moro tornou-se especialista no combate em lavagem de dinheiro e crime organizado. Esse conhecimento fez com que ele fosse convidado pela ministra do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber, para auxiliá-la no famoso caso do Mensalão. Hoje, após seu mestrado, doutorado e um curso em Harvard, está no comando das investigações da Operação Lava Jato, uma batalha contra algumas das figuras mais influentes da República e do mundo empresarial brasileiro. Por ter seu nome mencionado incontáveis vezes pela mídia nos últimos meses,
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Sérgio Moro ganhou as graças do povo brasileiro e já é considerado a personificação da Justiça e a figura messiânica que poderá salvar o Brasil da corrupção. Apesar de sua atuação ser alvo de críticas de alguns de seus pares no mundo jurídico, Moro foi eleito o “Brasileiro do Ano de 2014” pela revista Isto É e uma das cem personalidades mais influentes do Brasil no mesmo ano pela revista Época. Na décima segunda edição do prêmio “Faz Diferença” do jornal O Globo, ganhou o prêmio de “Personalidade do Ano” por sua atuação no comando da operação Lava Jato. Tais premiações serviram para alavancar ainda mais a boa imagem do juiz, por mais que ele alegue não agir com intuito de ter seu rosto estampado nos jornais e revistas. Na opinião do jornalista João Paulo Charleaux, do NEXO, “essa aprovação [da mídia] dá um respaldo moral que alimenta o ímpeto dele [Moro]. É mais difícil cumprir esse papel estando contra a opinião pública”. Porém, alerta que os fatos retirados dos meios de comunicação não surgem do nada, apenas reverberam
e, assim, inflacionam a realidade e mostram como na construção da imagem de um heroi, a voz do povo exerce um papel relevante. Mas, então, como será que Moro é visto pelo grande público? Por pessoas que acompanham o caso bem de longe, por coberturas que, por vezes, estão fora de contexto? Lindamar Firmino, modelista freelancer, ao ser questionada sobre o que achava do juiz, respondeu com outra questão: “É aquele negro?”, confundindo-o com Joaquim Barbosa, que assumiu a relatoria do processo do Mensalão em 2006 e ganhou grande destaque na mídia em 2012. Os anos se passaram e podemos constatar que, para alguns, parece que a história e os personagens se repetem. Aldo Fornazieri, cientista político e professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESP-SP), no entanto, diz que as comparações entre ambos profissionais no campo jurídico não são contundentes, uma vez que os dois teriam funções completamente diferentes. Enquanto Moro é juiz de uma instância federal, Barbosa foi mi-
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JOÃO PEDRO SIQUEIRA
nistro do Supremo Tribunal Federal, ou seja, julgava casos de jurisdição privilegiada. Ainda, de acordo com o cientista político, no aspecto da exposição midiática, Barbosa, na época do Mensalão, se aproveitou da disposição da mídia para promover sua imagem, na medida em que permitiu a transmissão ao vivo de audiências. Já Moro adota uma postura mais discreta, uma vez que evita entrevistas. “Ele é um técnico precavido, que tem total noção do peso das palavras”, afirma Charleaux. O advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, conhecido como Kakay, responsável pela defesa do senador Aécio Neves, presidente do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), na Operação Lava Jato, acredita que a imagem de uma pessoa pode ser tanto destruída quanto construída pela mídia. Ao analisar esse processo, o cientis-
O cientista político Aldo Fornazieri pontua que a jurisprudência de Moro está dentro da lei
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ta político Aldo Fornazieri afirma que, por conta de o juiz evitar conversar com repórteres, são estabelecidos limites quando a mídia tenta retratá-lo.
APOIO MIDIÁTICO Mesmo com a recusa do juiz Moro em ser impulsionado pelos veículos midiáticos, pode-se afirmar que a imprensa brasileira, ainda assim, tenta conferir a ele uma imagem definida. Como consequência, seu nome passou a aparecer nas faixas e cartazes dos manifestantes que reivindicam o combate à corrupção. Na visão de Fornazieri, não há problema algum nisso: “É um apoio normal, pois se entende que ele está fazendo um trabalho correto nas investigações”, afirma o cientista político. Um exemplo desse apoio está nas manifestações contra o governo Dilma ocorridas
em 16 de agosto deste ano. Reuniram-se em São Paulo mais de 130 mil pessoas, segundo o Datafolha, onde muitas delas carregavam cartazes com os dizeres “Somos Todos Moro”, “Vai Moro” e “Moro Presidente 2018”. Sua atuação na Operação Lava Jato, somada aos esforços da mídia, resultou na figura de um herói da pátria. Na internet, os efeitos disso são visíveis e podem ser calculados. De acordo com o Google Trends — ferramenta criada para explorar tendências de tópicos de pesquisa no Google —, em agosto de 2015, na mesma época dos atos “Fora Dilma”, o nome do juiz foi 80% mais pesquisado que a Operação Lava Jato em si. De acordo com Charleaux, isso se deve “à postura dele que, ampliada pela reverberação da mídia, o coloca em um lugar que andava vago: o da figura que exorcizará os pecados da identidade nacional, assim como o [Joaquim] Barbosa fez anteriormente”. Na visão de Kakay, “juízes midiáticos são as piores coisas que existem. Se eu falar mal do Moro em uma praça, apanho. Ele é competente, porém, é um vingador que joga o poder judiciário contra a população. Prende e quando o tribunal solta, acaba ficando com a imagem de ‘vilão da história’”. Antônio Cláudio Mariz de Oliveira — advogado de Eduardo Hermelino Leite, ex-vice-presidente da Camargo Corrêa, também envolvido no escândalo, concorda com Kakay, e acredita que Moro reflete um problema. “A sociedade civil vê no direito penal a expectativa da culpa, da condenação. Quando não há punição, levantam suspeitas de que haja irregularidades na investigação”, justifica. Fora do campo midiático, em meio à classe jurídica, que conhece o Moro dono de uma cadeira na 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba, seus métodos e sua jurisprudência são contestados por supostamente ferirem pilares do direito, como a presunção de inocência e o direito de defesa. O criminalista Alberto Toron — que defende o dono da UTC Engenharia S.A., Ricardo Pessoa, envolvido no esquema — avalia que Moro já demonstrou a parcialidade de seu ponto de vista em diversas situações. Ele cita como exemplo o uso de informações da reportagem “As conversas impróprias do ministro da Justiça”, publicada na primeira semana de fevereiro de 2015 pela revista Veja, como base para decretar a 2ª prisão preventiva de alguns acusados que já estavam presos. Na visão de Toron, “a decisão de Moro foi parcial, pois ele não investigou para saber se houve realmente o tal encontro, ou para saber o que, de fato, foi tratado nele”, critica. O encontro em questão, de acordo com a revista Veja, teria sido realizado entre o Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e advo-
LETÍCIA SÉ
O jornalista João Paulo Charleaux fala sobre a imagem midiática do juíz Sérgio Moro
gados dos réus da Lava Jato. O ministro e os advogados teriam discutido sobre os rumos da operação. No fim das contas, em outra reportagem da mesma revista, foi exposto que, na verdade, o ministro havia chamado os advogados para pedir que controlassem o uso das delações premiadas. Entretanto, mesmo depois de os fatos terem sido esclarecidos, “ele [Moro] não revogou os pedidos, e nem pediu desculpas”, afirma o advogado. Entre os críticos da atuação do juiz no comando da Lava Jato, como Toron, um dos principais argumentos está no fato de pessoas serem presas ainda na fase de inquérito e tratadas como se fossem culpadas, ignorando algo primordial no direito: todos são inocentes até que se prove o contrário. Já Aldo
Fornazieri acredita que essas prisões, em fase de inquérito, conhecidas como prisões preventivas, não são um problema, uma vez que “as pessoas que cometeram crimes aparentemente continuavam a cometê-los mesmo durante as investigações”. Apesar de se manter firme nesse caminho, o juiz paranaense parece ter consciência de que o uso da delação premiada e das prisões preventivas pode trazer custos para o mundo do direito e deixar a justiça em uma posição delicada. Na tentativa de legitimar suas escolhas, ao dar uma palestra no congresso deste ano da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), questionou aos presentes se o custo não seria ainda maior se deixasse de adotar tais medidas. Em
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sua opinião essa é, de fato, uma indagação que vale a pena ser feita. “Fazer nada também é fazer alguma coisa, e nesse caso é se omitir diante do que está acontecendo. Então não existe opção fácil”, concorda Charleaux. O jurista se voluntariou a cumprir essa função de maneira engajada, o que o torna um personagem relevante na política. Para Fornazieri, Moro merece um voto de confiança no processo que ele está conduzindo. A convicção de que os detentores do poder — seja ele político, econômico ou religioso — não são julgados por seus crimes foi, no fim das contas, confrontada pelas ações de Moro e sua equipe. Sua figura hoje serve para desconstruir essa ideia de que os homens poderosos de nosso país estão acima das leis.
O QUE É A LAVA JATO? É a maior investigação de corrupção, desvio e lavagem de dinheiro realizada pela polícia federal na história do país. Começou no rastro de uma rede de doleiros, mas tomou grandes proporções, ao passo que foi desvendando um enorme esquema de corrupção na Petrobrás, que já dura, pelo menos, dez anos — envolvendo, além da estatal brasileira, empresários, políticos e um grande cartel de empreiteiras.
Esta reportagem foi baseada na anterior “CPI — UM REALITY SHOW”, publicada na edição 37 do jornal Esquinas de SP, em novembro de 2005
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DIREITOS
Quem mexeu na minha
INFÂNCIA? Situações veladas de trabalho infantil ainda refletem como a prática ilegal é ignorada pela população
REPORTAGEM ALLAN BAPTISTA (1º ano de Jornalismo) e MARIANA DIB (3º ano de Jornalismo) COLABORAÇÃO E FOTOGRAFIA JULYA VENDITE (2º ano de Jornalismo) DESIGN ANA CAROLINA SIEDSCHLAG (2º ano de Jornalismo)
EM VEZ DE um carrinho, de uma bola de futebol ou de uma boneca, em suas mãos está um martelo. Gedeão Andrade dos Santos trabalha desde os 8 anos em uma plantação de tomates no interior de São Paulo, onde começou a ganhar cinco centavos por cada caixa de madeira construída. Aos 10 anos, um acidente de trabalho mudou sua vida para sempre: um prego atingiu seu olho esquerdo, deixando-o cego.
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A história ganhou destaque na mídia porque foi a primeira criança a ter direito à carteira de trabalho e à aposentadoria por invalidez. Assim como ele, estima-se que hoje existam no Brasil mais de três milhões de menores na mesma situação, classificada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) como trabalho infantil. Diferentemente do que se imagina, não é preciso ir muito longe dos grandes cen-
tros para presenciar situações como esta, não se restringindo apenas às lavouras. É possível notar casos deste tipo em feiras semanais, onde o barulho e a barganha de vendedores e compradores são predominantes. Na feira do bairro Maia, em Guarulhos, região metropolitana de São Paulo, atrás dos balcões de muitas barracas, famílias inteiras se amontoam para atender a clientela que parece não perceber a figura
de duas crianças que empilham caixas de verduras jogadas no chão. Por serem ainda pequenos, mal conseguem juntos levar um caixote. Uma das mulheres que cuida da venda pede para que um deles traga mais dinheiro trocado. É neste momento que a equipe de reportagem da Esquinas aborda a responsável pelo comércio para questionar a situação dos menores “Estão só ajudando, são da família, só costumam vir aos finais de semana”, responde surpreendida. A resposta é rápida e logo a feirante direciona sua atenção para outro cliente. Os meninos continuaram inacessíveis no fundo da venda com seus afazeres. Segundos os dados do censo de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as regiões urbanas dos estados em que o trabalho infantil se faz mais presente são São Paulo e Minas Gerais, sendo a maioria do sexo masculino, com idade entre 10 e 17 anos, em regiões urbanas. São crianças que começam cedo nas feiras, como engraxates ou com a desculpa de que estão ajudando a família e logo passam a assumir outras responsabilidades, como ajudar no sustento de casa. “Quando as crianças não estão dentro de um processo natural, que seria frequentar a escola, brincar, conviver com os iguais, ela provavelmente enfrentará muitos problemas de baixa autoestima no futuro”, explica Marisol Barbosa, coordenadora pedagógica da escola municipal Crispiniano Soares, em Guarulhos.
NÃO É BRINCADEIRA Maria Cristina de Paula Ferreira, de 51 anos, que começou a trabalhar aos 12, em Minas Gerais como doméstica, mostra como o período influenciou sua vida. Foi em Alpinópolis, mais conhecida como Ventania, que cresceu sua família, composta por seus pais e dez irmãos. Logo cedo, viu muitos deles começarem a trabalhar cortando cana. Apesar de serem um pouco mais velhos que Cristina, também eram vítimas do trabalho infantil. “Um dia meu pai resolveu ir para Ribeirão Preto, interior de São Paulo, porque viu que estávamos com muita dificuldade. Foi quando ele nos colocou em cima de um caminhão e nos levou embora”, conta. Na cidade nova, sua vida se transformou. Antes trabalhava meio período, mas depois da mudança, passou a trabalhar o dia inteiro, revezando entre duas casas. Em uma delas seu patrão era um juiz que contratou Cristina e mais um menino para os serviços. “Eu tinha 14 anos e limpava dentro da residência, e ele a área externa, jardim, piscina, essas coisas”. Seus dias eram ocupados pelo trabalho de manhã e estudos à noite, como conta: “A gente só brincava nos fins de semana”. Ainda assim, era pouco para a diversão, já que sua mãe precisava de ajuda em casa.
Maria Cristina conta como as maiores dificuldades para uma criança com essa responsabilidade estão na ausência de diversão e na dificuldade para se empenhar nos estudos. “Até hoje tenho problemas com as palavras, porque não tinha muito tempo para ir à escola.” Aos 18 anos foi trabalhar em um shopping, onde ficou por dez anos. Quando engravidou de sua segunda filha, passou a vender roupas em sacola, de porta em porta. Depois de quase quatro anos nesse meio, conversou com o marido e explicou o desejo que tinha de abrir uma loja própria. Na época, mesmo sem muito capital, alugaram um espaço pequeno. Hoje, 18 anos depois, é dona da loja ‘Cris Ferreira’. Para Cristina, os estudos vêm em primeiro lugar. Prova disso são os conselhos dados à sua filha mais nova, que está na faculdade, de não se preocupar tão cedo com o trabalho e focar em sua educação. Mas, se, hipoteticamente, alguma mãe viesse pedir sua ajuda, buscando um trabalho para seu filho ou filha, explica o que faria: “Se a família estiver passando fome, não tem jeito. Se a criança precisar estudar e trabalhar, porque ela precisa para sobreviver, então eu acho que um trabalho leve faz sentido”. Muitas pessoas acreditam que trabalhar precocemente ajuda a educar e moldar o caráter dos jovens a fim de torná-los adultos mais responsáveis. Ou ainda, pensam que a ideia de uma criança estar passando por uma situação de trabalho infantil se restringe à condições de sofrimento. Paulo Roberto Fadigas Cesar, juiz que atua na Vara de Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de São Paulo, explica que a situação é mais complexa: “Muitos adultos submetem crianças a esse tipo de trabalho como, por exemplo, cuidar de alguém, limpar a casa, tratar o gado nas cidades do interior. O discurso de que não tem problema é falacioso, porque elas são privadas da liberdade e estão, na realidade, submetidas ao trabalho infantil.”
AMADURECIMENTO PRECOCE Bianca Brejan, de 13 anos, já se acostumou com a rotina incessante dos finais de semana em um buffet infantil no município de Santo André, região metropolitana de São Paulo. A adolescente contou à equipe da revista Esquinas que ganha trinta reais por festa, que dura aproximadamente quatro horas e meia. Sua função é cuidar de outras crianças mais novas, além de ajudar na montagem das decorações. Ela relata que o que faz é muito cansativo, pesado e mal remunerado: “Às vezes, a dona do buffet pede para eu ficar em duas festas seguidas. Acabo entrando às onze da manhã e só saio de noite, depois de ter desmontado tudo e ajudado a limpar. Isso quando não tem festa aos domingos ou no meio da semana. É cansativo e meus estudos ficam totalmente de lado.” A adolescente conta que escolheu trabalhar para ter seu próprio dinheiro. Além disso, diz que seus pais apoiam por completo sua decisão, mesmo que a situação financeira da família seja estável. O caso de Bianca é comum no Brasil, como comenta o juiz Paulo Roberto Cesar: “A mentalidade da população não mudou muito no sentido de considerar o emprego mais importante que o estudo. Enquanto esse raciocínio existir será impossível erradicar o trabalho infanto-juvenil”. Priorizar a educação é necessário, mas, é preciso que haja as condições que permitam que todas as crianças possam estudar e não trabalhar, exercendo papéis de adultos. Mais do que políticas sociais para reparar erros, é preciso rever a maneira como as pessoas encaram as situações de exploração. De acordo com o juiz, a denúncia ainda é pouca diante do número de casos: “esses crimes não chegam para a gente como denúncia, pois há uma convenção social de que trabalho infantil doméstico não é um tipo de exploração. O erro está em como a sociedade enxerga o que é ou não trabalho infantil”, afirma.
A INFÂNCIA ROUBADA EM NÚMEROS 3.406.514 crianças e jovens trabalham no Brasil 0,3% foi a queda do trabalho infantil entre os Censos de 2000 e 2010
1.107.471 estão nessa situação na Região Sudeste 553.912 crianças trabalham em São Paulo *Informações retiradas do Censo de 2010 (IBGE)
Esta reportagem foi baseada na anterior “A LUTA CONTRA O TRABALHO INFANTIL”, publicada na edição 20 do jornal Esquinas de SP, em agosto de 1999
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ANA BEATRIZ FIDELIS
ARQUITETURA
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História em
CONCRETO Casas antigas resistem a um tempo de verticalização da cidade
REPORTAGEM ANA BEATRIZ FIDELIS, FERNANDA BACCARO, MARCELLA SALAZAR, UGO SARTORI (1º ano de Jornalismo), CAROLINA MIKALAUSKAS (2º ano de Jornalismo) e FLÁVIA PIZA (3º ano de Jornalismo) FOTOGRAFIA ANA BEATRIZ FIDELIS e UGO SARTORI (1º ano de Jornalismo) DESIGN CAROLINA MIKALAUSKAS (2º ano de Jornalismo)
EM MEIO AO caos urbano e à implantação de edifícios desenfreados, a cidade de São Paulo guarda em suas ruas e avenidas construções antigas preservadas, muitas delas datadas do século 19 e do início do 20, enquanto outras, além de passarem despercebidas pela maioria dos paulistanos, esperam uma chance nas papeladas dos gabinetes que cuidam da parte de restauração e memória dos velhos casarões de São Paulo.
RELÍQUIA URBANA Castelinho. É assim que muitos chamam a antiga construção instalada na avenida Paulista, número 1919. A fachada centenária de 1912 desperta a curiosidade dos pedestres pela arquitetura. Dentro dos muros, um grande jardim circunda a casa, protegida por quatro grandes cães. Em seu interior, lâmpadas fracas iluminam os cômodos, onde grandes janelas se abrem para o quintal, enquanto as da frente permanecem fechadas junto às portas de ferro e vidro. Na mesa da cozinha conjugada, que hoje apresenta paredes mofadas, está sentado Renato Franco de Mello, aposentado de 67 anos e herdeiro do Castelinho, deixado por seu avô. Um longo corredor, com um asso-
alho de madeira escura, ainda brilhante, range a cada passo e conecta o recinto ao restante da casa. Todos os detalhes, seja na sala, em um banheiro, no escritório, na mobília ou em uma minuciosidade na parede, parecem sussurrar os anos dourados de sua criação. Atualmente, a obra de arte de um escritório de arquitetura francês está à espera de dias melhores. A moradia, que parece abandonada, pertence à família de Renato por gerações. Sem poder fazer nada pelo imóvel, o futuro está nas mãos do Estado. A Secretaria da Cultura diz que o projeto de restauração está pronto e passa pela análise do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (CONDPEHAAT), órgão responsável pelo tombamento da casa, em 1992. A residência será ocupada, Renato não sabe ao certo quando, pelo Museu da Diversidade Sexual, instalado atualmente na estação do Metrô República. Para o proprietário, o projeto é interessante, mas acredita que seja uma subutilização do local: “Meu pai tinha a ideia de remobilizá-la como antigamente, e abri-la para visitação pública.” Enquanto isso, a casa vai sentindo os anos
em suas paredes, em sua tinta descascada, em seus buracos, rugas, defeitos, e à espera do que será feito.
POR DENTRO Caminhando pelo bairro da Liberdade é difícil não notar um prédio localizado na rua Dr. Rodrigo Silva, número 85. O imóvel foi construído em 1909 por Antônio Olívio Rodrigues, na intenção de construir uma sede para a primeira ordem hermética estabelecida no Brasil: o Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento. A rápida expansão de adeptos paulistanos em busca de espiritualidade na primeira metade do século 20, foi um incentivo para sua construção que está bem conservada e foi tombada pelo Governo do Estado de São Paulo em 25 de março de 2010. São feitas reformas anuais para manter o caráter antigo do local, mas a modernidade também é presente no casarão, como afirma Eli Simões, atual presidente do Supremo Conselho do Círculo Esotérico da Comunidade do Pensamento: ‘’Não existe mais aquele aspecto de uma arquitetura completamente contemporânea de 1909, quando o prédio foi fundado. Mas claro, sempre preservamos os rituais e todas as
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simbologias envolvidas quando pensamos na modernização de um local como este, temos muito cuidado’’. Ao observar a casa por fora, temos uma interpretação completamente diferente daquela que encontramos em seu interior. Na fachada, a arquitetura envelhecida chama a atenção. Dentro do ambiente, uma decoração estilizada: molduras ornadas em ouro, o piso antigo de madeira, os detalhes da pintura do teto e os candelabros enchem os olhos dos visitantes.
ARQUITETURA PECULIAR Muitos frequentadores que passam em frente ao edifício Vila Penteado não sabem a preciosidade histórica que o bairro do Higienópolis guarda. Localizado na rua Maranhão, número 88, o palacete foi construído, no início do século 20, para abrigar
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a família do comendador Antonio Álvares Penteado, um poderoso fazendeiro de café empenhado na industrialização paulista. A vila está situada entre a avenida Higienópolis e as ruas Itambé, Sabará e Maranhão. Idealizada em 1902 pelo arquiteto sueco Carlos Ekman, a residência foi a primeira a ser construída ao estilo art noveau, que busca uma arquitetura baseada em linhas assimétricas, muitas vezes, com elementos que lembram formas da natureza. No Brasil, a inspiração austríaca, conciliava a tradicional visão de arte com a moderna fase tecnológica do século 21. Originalmente, o palacete possuí 14 quartos, além de quadra de tênis, espelho d’água, estufa, horta, bosque, garagem e cocheiras. Após a morte de Ana Lacerda Álvares Penteado, viúva do comendador, em 1938, o terreno foi dividido entre seus familia-
res e, durante oito anos, a vila permaneceu fechada. Em 1946, a construção foi doada pelos herdeiros de Álvares Penteado para a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-SP) e hoje abriga o Curso de Pós-Graduação da Faculdade. Em fevereiro de 1978, o edifício foi tombado pelo CONDEPHAAT por ser um documento histórico — e não somente artístico — da cidade de São Paulo, além de apresentar uma das poucas construções ao estilo Art Noveau no país.
MORADA HISTÓRICA Construída no início do século 17, a Casa Bandeirista é um imponente documento histórico da memória paulista. Estabelecida entre a esquina da avenida Brigadeiro Faria Lima com a rua Horácio Lafer, está próxima à sede da reconhecida empresa Google.
UGO SARTORI
O aspecto deteriorado é comum entre os casarões visitados pela equipe da Esquinas
O QUE É TOMBAMENTO? É permitir o reconhecimento da população pelo valor do patrimônio. Para isso, o Departamento de Patrimônio Histórico da cidade de São Paulo (DPH) estuda a importância da preservação do imóvel — a partir de uma solicitação ou dos inventários dos bairros — e encaminha para o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (CONPRESP), que é o órgão responsável pelo tombamento de construções antigas.
A casa que já foi utilizada como residência, clínica psiquiátrica e estacionamento, tem uma construção peculiar marcada pela arquitetura simples, retangular, feita com a técnica de taipa de pilão — à base de barro e cascalho com o objetivo de erguer uma parede — caracteriza as chamadas casas rurais paulistas, modo como são chamadas as obras residências arquitetônicas datadas no período colonial. O tombamento tardio do edifício, apenas em 1982, fez com que fosse também deteriorado pela ação do tempo. A maior parte da estrutura original encontra-se em situação de ruínas. Ainda como agravante, em 1990, a casa foi destelhada pelos proprietários danificando ainda mais sua configuração. O gesto foi considerado criminoso e o Ministério Público determinou a restauração do imóvel. Assim, a construção
passou a ser responsabilidade da Divisão do Patrimônio Histórico da prefeitura, que garante a preservação do edifício e dos dois mil metros quadrados de seu entorno. A alta valorização da região despertou o interesse de construtoras pelo tamanho do terreno. Deste modo, o escritório de arquitetura Botti Rubin desenhou todo o projeto do edifício Pátio Victor Malzoniem em busca de solucionar a divisão da construção entre dois prédios independentes, porém, ainda interligados, dando espaço a um vão central que tem 30 metros de altura. A compra do terreno garantiu a restauração da casa, que se iniciou em 2008. Os arquitetos Alberto Magno de Arruda e Helena Saia foram os responsáveis pelo projeto, respeitando o aspecto original do imóvel, as paredes se mantiveram brancas e as janelas e portas permaneceram em madeira. A restauração foi concluída em 2012, porém a casa ainda está sendo reformada, não sendo permitido se aproximar da área que está sendo reparada. A reparação, aparentemente sem motivo, levou o Ministério Público Estadual a determinar que o espaço deverá ser aberto ao público, sem o consentimento dos donos da propriedade. A expectativa é que, no futuro, o espaço se torne um centro cultural, ou até mesmo um local de memória da cidade.
ARTISTA BRASILEIRO Aos que trafegam na rua Lopes Chaves, na região do Barra Funda, e passam em frente à Oficina Cultural Mário de Andrade mal sabem que a casa, além de abrigar importantes obras do modernista brasileiro, guarda memórias da vida privada do poeta.
O imóvel foi onde o escritor e sua família, pais, irmãos e tias; moraram desde a sua construção, em 1920. Após sua morte, em 1945, seus familiares continuaram no local até 1960, quando todos faleceram. A partir daquele momento, o governo do Estado de São Paulo optou por transformar o espaço em um acervo, respeitando os desejos do próprio poeta documentados em uma carta-testamento, os destinos de suas obras. A construção foi tombada e toda a mobília original da residência foi transferida para o Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP). Apenas algumas lembranças da casa original permaneceram intactas, como as paredes e a própria arquitetura. Outras são apenas cópias — como a réplica do piano encontrado em um dos cômodos e que era utilizado por Mário para dar aulas — mas que, mesmo assim, instigam a curiosidade de quem passa por lá. Segundo Rosa Artigas, historiadora e coordenadora do IEB-USP, antes de se tornar Oficina Cultural, o imóvel teve outras funções, como: Museu da Literatura, Teatro Escola Macunaíma e Oficina da Palavra. Desde que se tornou Museu de Literatura, em 1998, a casa Mário de Andrade fixou-se ao Memorial da América Latina, onde recebe visitações e opera no desenvolvimento de projetos e cursos culturais. Apesar das burocracias estatais que atrasam o processo de ocupação desses patrimônios históricos, muito deles conseguem ser utilizados como um bem social, como a casa Mário de Andrade, que não só guarda um passado e demonstra em seu aspecto marcas do tempo, mas expõe em um museu a história daqueles que lá moraram.
Esta reportagem foi baseada na anterior “CASAS VELHAS E SUAS HISTÓRIAS”, publicada na edição 24 do jornal Esquinas de SP, em agosto de 2001
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DESIGUALDADE
Parece
BRINCADEIRA A realidade discrepante de duas meninas na zona norte de São Paulo
REPORTAGEM ANA CAROLINA PINHEIRO ALVES, LYGIA RIBEIRO, THAÍS MONTEIRO (1º ano de Jornalismo) e BEATRIZ MANFREDINI (2º ano de Jornalismo) COLABORAÇÃO GABRIEL DA COSTA CALVINO, ISABELLE CALDEIRA DA SILVA e LÍVIA VITALE (1º ano de Jornalismo) FOTOGRAFIA ANA CAROLINA PINHEIRO ALVES e LYGIA RIBEIRO (1º ano de Jornalismo) DESIGN ANA CAROLINA SIEDSCHLAG (2º ano de Jornalismo)
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TAS APESAR DA POUCA idade, batom, blush, pó e rímel já fazem parte da rotina das vaidosas Anny Pires, de 9 anos, e Beatriz Gomes Saldys de 7. As duas meninas, que moram na zona norte de São Paulo, estão separadas por nove quilômetros e a desigualdade brasileira. No bairro do Limão, próximo à comunidade do Agreste, Anny vive em uma pequena casa com mais quatro familiares. Mãe, irmã, cunhado e o sobrinho dividem o espaço: sala, cozinha e um corredor estreito, próximos a um córrego a céu aberto. Em um dos cômodos, divide uma bicama com a mãe, Cristina Pires. No fundo do quintal, a irmã mais velha mora com o filho de 2 anos e seu marido. Cristina trabalha como manicure domiciliar, diarista e, aos fins de semana, em um buffet. Quando está ausente, a garota se diverte com seus avós paternos. Ela conta que não cobra ajuda financeira do pai da menina, de quem é separada. Anny comenta que não gosta de funk ou de rock — ela se acha muito nova para deixar de brincar de bonecas e entrar na adolescência. Quando está na companhia do avô, a menina costuma frequentar a Igreja Congregação Cristã do Brasil, embora a mãe não frequente mais o local. O passatempo na igreja é brincar com seus amigos, ou conhecer pessoas de outros países — tem até uma participante que vai ensinar inglês para ela. Atualmente o pai de Anny vive nos fundos da casa do avô da menina, é casado e tem
pequenas Anny Uma legenda massaAspara a Naiara e o (à esquerda) e Beatriz Felipe colocarem bem aqui vai ser massa vivem um retrato da desigualdade
um filho desse outro casamento. A situação intriga a menina, que não pode brincar com seu irmão porque a madrasta não deixa, “Ela é muito controladora, ele não pode brincar que ela já chama. Não gosta que ele fique perto de ninguém, até de mim.”
DO LADO DE LÁ Beatriz vive no bairro do Tremembé, também na zona norte de São Paulo. Sua casa tem dois andares e, além das áreas comuns e dos quartos, há um amplo espaço de convivência nos fundos que conta com uma piscina retangular, churrasqueira e uma casinha de plástico — onde ela e sua irmã mais nova, Camila, de 5 anos, costumam brincar. As meninas também dividem um cômodo de brinquedos e uma suíte decorada. Em pouco tempo, a vizinhança não será mais a mesma: até o final do ano, a família se mudará para uma nova casa. As irmãs contam que cada uma terá seu próprio quarto. Beatriz já sabe como será sua nova decoração: paredes pretas, carpete e caveiras. O aposento pretende combinar com seu estilo e para isso procura referências na revista Casa. Beatriz acorda às 8h da manhã, normalmente, e adora comer waffles no café, principalmente se for com Nutella. Costuma fazer a lição de casa, usar seu celular e depois brincar com a irmã, até chegar a hora de ir para o colégio, que fica no Jardim São Paulo. Além do ensino regular, a menina tem uma rotina
agitada: participa das turmas de ginástica olímpica, natação, violão e inglês. O pai de Beatriz, Ricardo, é advogado e sua mãe, Karyna , dentista. Enquanto ambos estão fora, quem cozinha e toma conta dela e de sua irmã, é Itamara, a babá que, mesmo quando não está presente, mantém contato com as meninas pelo celular. Já quem cuida da casa é Osana, outra empregada. A menina conta que não ajuda nas tarefas domésticas, mas as supervisiona. São as duas mulheres que organizam o guarda-roupa lotado de vestidos, blusas de paetês e roupas estampadas das irmãs. Além de adorar escolher suas roupas para sair e ir à escola, Beatriz já usa alguns sapatos de sua mãe, agora que lhes servem. De manhã, se maquia todos os dias: “Eu passo [maquiagem] em casa e quando saio passo de novo, no lanche e na saída. Às vezes, na sala de aula, levo um espelhinho”. A menina também faz diversos tipos de penteados no cabelo, que ela trabalha duro para manter a cor loira. Como tem medo que escureça, igual o de sua mãe, usa água oxigenada para clareá-lo. Ainda que de classes sociais diferentes, ambas as meninas têm pretensões para o futuro. Enquanto Beatriz sonha em ser atriz de novelas infantis, chefe de cozinha ou cantora, Anny não sabe ao certo o que gostaria de ser quando crescer, mas diz, ao som da risada de sua mãe ao fundo que tem admiração pela profissão de perueiro, já que os “tios” que conhece são muito legais.
Esta reportagem foi baseada na anterior “MENINA RICA, MENINA POBRE”, publicada na edição 42 da revista Esquinas, em dezembro de 2007
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COTIDIANO
FAVELA
CIDADÃ
Cultura e educação na comunidade Monte Azul
REPORTAGEM ANA JÚLIA CANO (2º ano de Jornalismo) COLABORAÇÃO BEATRIZ CARVALHO, WAGNER LAURIA JUNIOR (1º ano de Jornalismo), FERNANDA VENTURA e PAULO HENRIQUE POMPERMAIER (2º ano de Jornalismo) FOTOGRAFIA WAGNER LAURIA JUNIOR (1º ano de Jornalismo) DESIGN ANA CAROLINA SIEDSCHLAG (2º ano de Jornalismo)
QUEM NUNCA PASSOU pela Favela Monte Azul, localizada na zona sul da capital paulista, desconhece sua intensa vida sociocultural. O cotidiano dos moradores da região inclui: vielas concretadas, casas de alvenaria, quadras, parquinhos, ambulatórios, centros culturais, escolas de música e de costura, mostras de dança, teatros e bibliotecas. É possível notar, ao final das tardes, crianças que brincam na quadra poliesportiva no coração da Monte Azul. Mesmo sem nos conhecer, não hesitam em nos cobrir de questionamentos. “Vocês falam que língua? Vieram de qual país? O que fazem aqui?”, perguntam. Elas explicam que parecemos mais alguns dos muitos voluntários estran-
geiros, que passam e colaboram na Associação Comunitária Monte Azul. A organização, criada pelos moradores com o auxílio da pedagoga alemã Ute Craemer, é o motor das mudanças vividas ali. Em 1985, a Associação construiu o primeiro ambulatório e desde então pensa em melhorias para a comunidade, como a criação de uma casa de parto, escolas, creches e áreas de lazer para as crianças, ganhando força para reestruturar todo o espaço. Wagner Oliveira, de 36 anos, morador da Monte Azul, confirma: “Eu praticamente nasci aqui, já vi muita coisa acontecer. Antes, boa parte dessas casas eram de madeira e com o pé direito mais baixo”.
Wagner é apaixonado pela ciência. Em cinco minutos de conversa, o assunto chegou de física quântica à origem do universo. Quando pequeno, era um garoto observador e se interessava em aprender. Desde então, começou a assistir à série Cosmos, de Carl Sagan, na época transmitida pela Rede Globo. Foi quando resolveu ler livros sobre a deriva continental que tudo se transformou: “Minha cabeça explodiu de imediato, aquilo me mudou radicalmente”. Advindo de uma formação evangélica, Wagner é autodidata e foi incentivado a aprender tudo com a base recebida na comunidade, conseguindo conciliar suas convicções evolucionistas com a fé. “Quando eu
HARES DATTI PASCOAL
BRINCADEIRA Patins é carro de pé Que me leva aonde eu quiser Fantoche eu brinco na creche Cinco marias Que brincassem comigo eu queria Boneca menino e menina podem brincar Mas só se gostar Bola. Rola... rola e os meninos adoram Quebra-cabeças É muito divertido Brincamos eu e meus amigos Gosto mais do meu vizinho Porque ele tem carrinho Adoro brinquedo E pé-de-moleque Kauã, 11 anos, vencedor do Concurso de Poesia
leio coisas da Bíblia, guardo para mim e as valorizo, mas quando alguém me pergunta como acontecem as coisas no mundo, uso a ciência, pois foi dessa forma que nós entendemos a realidade até agora”.
A JUVENTUDE Um dos espaços culturais voltados às crianças e adolescentes do Monte Azul é o Pontinho de Cultura. Próximo à quadra, onde a maioria dos jovens costuma ficar, tem como objetivo ocupar o tempo ocioso destes com brincadeiras e concursos. Julia Laura Santos tem 10 anos e está na quarta série da Escola Estadual Dr. Alberto Badra. Ela explica que o projeto do Pontinho existe há alguns anos. Além disso, conta sobre um dos festivais de que participou: “A gente teve um concurso de poesia, nele cantamos funk, mas um funk educativo; isso ensina as pessoas a pararem de cantar essas músicas que expõem as mulheres de um jeito ruim”. Os vencedores do Primeiro Concurso de Poesia do Pontinho foram Julia Laura e Kauã Bossolani. Kauã tem 11 anos, é extremamente expressivo e estuda na mesma sala que Julia. Faz aulas de violino na escola de música da comunidade e também frequenta o espaço cultural. Em nossa visita, recitou sua poesia.
A METODOLOGIA “Se tivesse que escolher um bairro para morar em São Paulo, seria este”, diz a coorde-
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nadora e monitora do Pontinho de Cultura, Juliana da Paz, de 31 anos, que também falou sobre suas idas e vindas à comunidade. Natural de Maceió, passou a adolescência na comunidade Monte Azul e depois voltou para Alagoas, onde se graduou em pedagogia, buscou um mestrado em educação e deu início ao doutorado. Sobre o desenvolvimento educacional das crianças, Juliana da Paz considera todas inteligentes e aptas a chegar ao ensino superior. Isso porque elas aprendem de formas diversas, seja nas escolas, que partem de ensinos mais tecnicistas e escolanovistas, — que não se atem à pedagogia tradicional; — exemplo disso é o Pontinho de Cultura e outros projetos da Associação Comunitária, envolvendo a metodologia Waldorf: que visa trabalhar o ser de uma forma mais ampla e espiritual, tendo um contato diferenciado com a natureza, respeito e solidariedade pelo outro e no bom convívio, influenciando nas transformações coletivas vivenciadas pelos moradores dali. Wagner conta sobre algumas atividades da metodologia Waldorf das quais participou, como a euritmia — dança relacionada ao equilibro, à arte de construir pela pintura e pelo grupo de coral. Assim como Wagner, Gerson Felipe, de 21 anos, tímido e sorridente, nasceu e cresceu na Monte Azul. Ele passou por todas as creches da Associação e aprendeu a tocar
“
Brincar com crianças não é perder tempo, é ganhá-lo; se é triste ver meninos sem escola, mais triste ainda é vê-los sentados enfileirados em salas sem ar, com exercícios estéreis, sem valor para a formação do homem
violino na escola de música. Atualmente, é monitor no Pontinho de Cultura e ministra aulas desse instrumento. A transmissão de conhecimentos para as gerações mais novas é característica do ensino antroposófico trabalhado nas creches e centros culturais da Associação Comunitária. Quem passa pela Favela Monte Azul nota que, de fato, muitos projetos sociais, culturais e educacionais obtiveram sucesso, mas não é a única que pensa em ações ou está imune a problemas. Muitas comunidades atualmente não contam com um grande número de políticas públicas, mas sim com o auxílio de organizações dos próprios moradores e ONGs — nacionais e internacionais — relacionadas à cultura, saúde e infraestrutura. A própria
Carlos Drummond de Andrade
Associação Comunitária Monte Azul é um exemplo disso: seus ideais são expandidos para outras comunidades, como a Favela da Peinha e o Jardim Horizonte Azul. Durante o dia vemos policiais que descem as escadas e rampas das vielas em busca de traficantes de drogas ou possíveis suspeitos. Também costumam fazer este percurso pela comunidade de moto, além de estarem equipados com armas, que passaram a ser comuns no dia a dia das crianças que brincam ao ar livre. Em nossa visita encontramos histórias que foram entrelaçadas a construção daquele espaço. Wagner é exemplo de que não é preciso um diploma para estudar e debater física; Gerson, que aprendeu a tocar violino
na favela e leciona música, mostrou como sua história contradiz preconceitos comuns relacionados aos moradores das favelas. Carlos Drummond de Andrade já parece ter pensado no papel da criança na constituição de uma nova sociedade, quando disse: “Brincar com crianças não é perder tempo, é ganhá-lo; se é triste ver meninos sem escola, mais triste ainda é vê-los sentados enfileirados em salas sem ar, com exercícios estéreis, sem valor para a formação do homem”. A comunidade Monte Azul se diferencia deste modelo tradicional criticado pelo autor, novos ensinamentos dentro e fora da sala de aula, e o convívio com a natureza são eixos da coletividade que se mantém viva pelas pessoas que a constroem.
Esta reportagem foi baseada na anterior “FAVELA CIDADÔ, publicada na edição 24 do jornal Esquinas de SP, em agosto de 2001
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MOBILIDADE
sob duas
RODAS
Especialistas analisam as ciclovias de São Paulo REPORTAGEM ANA LUIZA SHELUDIAKOFF COUTO e LAÍS FERNANDES (1º ano de Jornalismo) FOTOGRAFIA ANA LUIZA SHELUDIAKOFF COUTO (1º ano de Jornalismo) DESIGN ANA CAROLINA SIEDSCHLAG (2º ano de Jornalismo)
PROJETOS DE EXTENSÃO implementados pela Prefeitura de São Paulo levaram a equipe de reportagem da Esquinas a conhecer a ciclovia da Marginal Pinheiros, um dos lugares com maior circulação de carros da cidade de São Paulo. Inaugurada em 2010 é, atualmente, a mais extensa da cidade, com 21,5 km de comprimento, localizada entre o rio Pinheiros e a linha 9-Esmeralda trem da CPTM. Além da faixa vermelha pintada no chão, a segurança das pessoas que circulam é garantida por uma cerca, que mantém isolado o local. Quem pedala pela região conta com seis pontos de acesso: avenida Miguel Yunes, Vila Olímpia, Santo Amaro, Cidade Jardim, Cidade Universitária e Villa-Lobos/Jaguaré. Há também lugares de locação de bicicletas que ficam estrategicamente localizados nas regiões próximas à ciclovia. Para Felipe Aragonez Benevides, que já trabalhou como bikerrepórter da rádio Eldorado, e hoje é assessor da Prefeitura de São Paulo, a ciclovia da Marginal Pinheiros foi uma conquista, depois de 20 anos ter sido demandada. ‘‘É uma estrutura espe-
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cial, pois valoriza esse espaço. Estamos mais perto do rio e isso só aumenta a vontade de vê-lo mais limpo”. Na hora do rush, andar de bike pelo trajeto paralelo ao rio Pinheiros não é uma alternativa para fugir do trânsito, porque seu funcionamento é das 5h30 da manhã às 18h30, todos os dias. Já durante o horário de verão, esse período é estendido, operando das 5h até as 19h30. Essa restrição se dá por medidas de segurança, uma vez que o local não conta com postes de iluminação.
AINDA É O COMEÇO Sílvio Macedo, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), fala sobre os problemas das ciclovias de São Paulo que são fragmentadas e não estão conectadas umas às outras. “Não te levam para lugar nenhum e acabam de repente. Por isso, elas atendem mais à finalidade de lazer do que a de servir como alternativa para o fluxo de trabalho. Isso limita muito o seu uso”, pontua. Referindo-se à capital, onde as pessoas, em geral, não moram na mesma região em que trabalham. “O grande
problema da ciclovia do rio Pinheiros é a falta de acesso”, destaca o ciclista Felipe Aragonez. A maior problemática de acordo Macedo é que São Paulo ainda se encontra em um “estado embrionário” quando o assunto é bicicleta. Mais do que crescer, é preciso transformar a consciência da população paulistana que sempre viu o automóvel como o meio de transporte mais viável. “Campanhas como o Dia Mundial sem Carro são válidas para colocar o tema em discussão, mas não vão solucionar os problemas ambientais do mundo, seu efeito real é mínimo. A questão envolvida aqui é estrutural”. Segundo o arquiteto, mesmo que as ciclovias seguissem o plano ideal, o projeto teria que mudar o modo como às pessoas pensam: “Bicicletas custam relativamente barato e são acessíveis, mas ninguém deixa de comprar seu próprio carro para ter uma”. Caso contrário, Sílvio defende que é mais recomendável investir o dinheiro usado na instalação das ciclovias para melhorar o transporte público, em vez de aplicar em uma nova opção de transporte individual. “Aprimorar o metrô e o ônibus, que são usados por uma quanti-
A ciclovia da Marginal Pinheiros é a mais extensa da cidade com 21,5 km de comprimento
“
É preciso transformar a consciência da população paulistana que sempre viu o automóvel como o meio de transporte mais viável Silvio Macedo, professor de Arquitetura e Urbanismo da USP
dade muito maior de pessoas diariamente, seria mais válido”, afirma. Caso as ciclovias sejam realmente a prioridade de investimento, Sílvio afirma que o processo precisaria ir muito além da construção de mais faixas vermelhas. As empresas, por exemplo, precisariam fazer a sua parte também, abraçando a causa e instalando chuveiros nos banheiros, para
que seus funcionários possam usá-los depois de pedalarem, já que São Paulo não é uma cidade completamente plana, tem ladeiras que dificultam o trajeto de quem pedala e, em dias de calor, o ciclista sabe que vai suar muito. ‘‘Ninguém vai querer chegar ao trabalho já cansado e suado, é aí que está a importância de haver uma infraestrutura adequada dentro das empresas também.
Esta reportagem foi baseada na anterior “VÁ DE BIKE”, publicada na edição 50 da revista Esquinas, em dezembro de 2011
O ciclista Felipe Aragonez acredita que a sinalização e a fiscalização diante de quem desrespeita os ciclistas e as estruturas cicloviárias são as principais demandas de melhorias para esta forma de mobilidade. Cabe ao cidadão refletir quanto ao percurso que pretende seguir. Havendo a possibilidade de usar a bicicleta, porque, então, não começar a pedalar?
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CRÔNICA
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virá
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TEXTO HÊNIO URTADO (2º ano de Jornalismo) IMAGEM VÁLTER JÚNIOR DESIGN ANDRÉ VALENTE (3º ano de Jornalismo)
HÁ ALGO ALI. Ao se aconchegar com o céu, ruborizou o que era plácido. Fez do pálido pasmo. Um deus tão largo não se submete a essas loucuras por descaso, apenas por medo. Tarefa difícil essa de driblar líquidos. Os gargalos cedendo goles às gargantas. O suor pelo esforço dos copos. Olhos montados sobre mãos enérgicas, como se os braços fossem catapultas dos copos. Tudo anseia, até o devagar apressar-se. Tirar proveito do tempo tomando sua substância. Para assim, acabar como as cadeiras do bar: duras e roídas. Os mais espertos, não à toa, abocanham as unhas. Acabam por se mastigarem até não sobrar tanto para Cronos. Querem estragar sua degustação e ferir seu orgulho. Nós, tolos, sentamos no bar. As pernas, antes preocupadas em exercitar as panturrilhas subindo escadas, agora trançam, transam e dançam. Tornam-se criativas. Tem um fulano em meio aos sicranos. Jovem com os dias contados. Já faz X dias, Y meses, Z horas e insustentáveis segundos. Seu corpo cabisbaixo é tão opaco quanto um grito engolido. Puxado forte para o caixote de costelas. Alistou consigo amarguras especializadas em vociferar contra o novo. Quase como uma gastrite. Em suma, um trauma o ancora. Alguém da família morreu. O patrão brincou de capataz. O gato pulou da janela sem tela. A cerveja está quente. Ele esqueceu a tabuada do nove. Está viciado em alguma substância ilícita. Tanto faz. O tempo é trágico, mas não é seletivo. Quem tem passado sempre passa... Faz de tudo para virar museu de si. Os velhos, por exemplo, são loucos porque conviveram demais com o tempo. Aprenderam com ele a suceder de forma precisa. Por estarem definhando, quase perto de serem, percebem que o linear é apenas o gozo dos envergonhados. Não é mais preciso colocar um pé atrás do outro, o um após o dois. Ninguém se importa, pois seus tombos na calçada nunca são apresentados às gargalhadas. Eles são pisoteados pelas compaixões exaltadas dos receosos. Se assustam quando um velho não se levanta a tempo de cavarem um buraco e rezarem uma missa. Quanto ao fulano, nosso ébrio herói. É de se perguntar qual ainda é sua relevância. Está cansado de esperar um golpe narrativo que lhe atinja o queixo, sele a boca e impeça as águas de entrar. Sua raiva evaporou sua vereda, ferveu até estar impermeável. A ele resta criar essência, pois só os mortos conseguem ser algo sólido ao desfacelarem. Ao sair do bar, esqueceu que, como ele um dia, ali restavam outros: capitães de um barco a vela prestes a se afogarem. Quando alcançarem a profundidade correta do oceano deixarão, por um segundo, que suas mágoas virem espumas. O céu abre: o eterno retorno à água. O sertão vai virar mar, e o mar vai virar sertão.
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volta
“A busca de uma realidade exige uma linguagem capaz de captá-la. Esta linguagem não é uma fuga. É o único caminho para nos levar à débil captação de uma sociedade e de suas contradições. E da única coisa que interessa: o ser humano sufocado em sua vontade de ser.” Marcos Faerman em Com as mãos sujas de sangue