REVISTA-LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO DA FACULDADE CÁSPER LÍBERO #55 - 1º SEMESTRE DE 2014
PÁTRIA DE
CHUTEIRAS A paixão pelo futebol além das arquibancadas da Copa do Mundo
EDITORIAL
Fundação Cásper Líbero Presidência Paulo Camarda Superintendência Geral Sérgio Felipe dos Santos Faculdade Cásper Líbero Diretor Tereza Cristina Vitali Vice-Diretor Welington Andrade Coordenador de Jornalismo Carlos Costa Professor responsável Heitor Ferraz Mello Monitoria Editora Gabriela Boccaccio Assistente editorial Heloísa D’Angelo Editora de Arte e Fotografia Thaís Helena Reis Diagramação Débora Stevaux, Nathalie Provoste e Thaís Helena Reis Revisão Ana Beatriz Rosa, Gabriela Boccaccio, Heloísa D’Angelo, Júlia Barbon e Nathalie Provoste Participaram desta edição Alana Claro, Allan Correia, Amanda Saviano, Ana Beatriz Rosa, Ana Carolina Gama, Ana Carolina Siedschlag, Ana Ferraz, Ana Gabriela Verotti, Ana Laura Pacífico, Ana Laura Prado Stachewski, Ana Paula Ribeiro, André Valente, André Dominguez, Andressa Oliveira, Augusto César, Aurélio Silva, Bárbara Blum, Bárbara Muniz, Beatriz Falcão, Beatriz Manfredini, Beatriz Salles, Beatriz Santoro, Bruna Barone, Bruna Cavalini, Bruna Hara, Caio Sini, Camila Almeida, Camila Del Manto, Camila Gregori, Carla Bridi, Carmem Lúcia Melo, Carol Bueno, Carolina Moraes, Caroline Domingues, Catherine Rodrigues, Claudia Ratti, Daniel Lopes, Daniel Zalaf, Daniela Rial, Débora Fiorini, Eduardo Csengeri, Ellen Gomes, Érico Lotufo, Fernanda Fantinel, Fernanda Ventura, Francisco Marianno, Gabriela Rodriguez, Georgea Andrade, Giovanna Fontenelle, Giulia Gamba, Giulia Granchi, Giulianna Muneratto, Guilherme Dogo, Guilherme Venaglia, Gustavo Ribeiro, Hares Datti Pascoal, Heloísa Barrense, Ian Dawsey, Isabel Rocha, Isabela Yu, Isabella Carvalho, Isabella Cascione, Isabella Faria, Jeniffer Mendonça, Jéssica Cipriano, João Gabriel Hidalgo, José Adorno, Juliana Queissada, Júlia Favero, Julia Guadagnucci, Júlia Miozzo, Julia Storch, Juliana Bechelli, Juliana Milan, Juliana Ortega, Juliana Pasta, Juliana Santos, Jun Hyug Jung, Karolina Bergamo, Kimberlly Peixoto, Laís Vieira, Laura Uliana, Leandro Costa, Leticia Sabbag, Luana Toro, Lucas Sarti, Lucas Strabko, Marcelo Baseggio, Maria Clara Moreira, Mariana Agati, Mariana Branda, Mariana Canhisares, Mariana Gonzalez, Mariana Nogueira, Marina Balbino, Mateus Carreira, Matheus Cabral, Michele Marcelino, Natalia Melo, Natália Tomé, Nathalia Parra, Nathalie Bernasconi, Paula Calçade, Paulo Henrique Sartori, Paulo Nunes, Rafael Serra, Roberta Minhoto, Rodrigo Marques, Sarah Mota Resende, Stéfanni Meneguesso Mota, Stefany Oliveira, Talita Mônaco, Téo França, Thais Costa, Thaís Torres, Thiago Dutra, Victor Hugo Souza, Victoria Abel, Vinicius Elia, Vitor Brown, Vitória Baraldi, Vitória Vaccari, Yahisbel Adames, Yan Resende e Yasmin Wilke Imagem de capa: Raphaele Palaro Agradecimentos Patrícia Homsi e Yuri Andreoli, e aos professores Carlos Costa, Celso Unzelte e Welington Andrade Núcleo Editorial de Revistas Avenida Paulista, 900 – 5º andar 01310-940 – São Paulo – SP Tel.: (11) 3170-5874 E-mail: revistaesquinas@gmail.com www.casperlibero.edu.br
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copa cozinha HEITOR FERRAZ MELLO
No primeiro dia de Copa do Mundo não faltaram chutes. Dentro do Itaquerão, ou mais polidamente Arena Corinthians, com os jogadores do Brasil e da Croácia disputando a bola. E do lado de fora, e em várias cidades brasileiras, os manifestantes com faixas e cartazes enfrentando os policiais. Para tentar amenizar o clima pouco esportivo, os comentaristas, na televisão, tentavam a todo custo mudar o rumo do sentido do verbo “manifestar”, recorrendo a ele em vários lances da partida, dizendo que o jogador havia se manifestado com segurança, ou que manifestara seu talento etc. Não dá para tapar o sol com a peneira: esta Copa já entrou para a história (escrevo este editorial no primeiro dia de jogo, mas sem bola de cristal para espiar o futuro). Foram meses e meses de manifestações de rua, do famoso “Não vai ter Copa”. Uma tensão no ar que foi crescendo até os primeiros rojões do início da partida, na quinta-feira, 12 de junho, quando uma nova “pátria de chuteiras” bem mais complexa assistiu aos 90 minutos de jogo. Foi pensando nesta histórica Copa do Mundo e na velha paixão nacional pelo futebol que elaboramos este número da revista Esquinas. Mas desde o princípio evitamos nos pautar apenas pelo evento em si, apesar de não faltar assunto. Como a revista é semestral, a opção foi falar sobre futebol de modo geral, abarcando vários aspectos. A Copa tem data marcada para terminar, já a “cozinha” deste esporte não, com o cotidiano dos seus
torcedores apaixonados, dos jogadores de várzea, dos meninos que sonham em um dia pisar no gramado de um grande estádio, dos locutores de rádio e televisão (que já foram belamente chamados de “narradores”) e das nossas jogadoras, que driblam uma série de preconceitos, principalmente o machismo. Talvez seja aí que resida o verdadeiro futebol brasileiro, nessas histórias colhidas em campo pelos estudantes de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero, e não na plateia que esteve presente na abertura da Copa e que viu Itaquera de dentro de van, sem contato nenhum com o bairro. Mas como lembra Juca Kfouri, em entrevista ao Esquinas, apesar do momento tenso, e das críticas contundentes à organização deste megaevento internacional num país que ainda não conseguiu resolver seus históricos problemas sociais, não adianta torcer contra. “Uma coisa é política, outra é esporte”, diz ele. Para o jornalista, “isso continua sendo essencial”. Se já há um legado desse momento, é que torcer é mais do que vestir uma camisa verde-amarela, é também torcer e participar da vida fora dos estádios, sonhando com um país mais justo. Para este número, contamos com a edição cuidadosa das alunas Gabriela Boccaccio e Heloísa D’Angelo, com a revisão de Júlia Barbon e Ana Beatriz Rosa, e o trabalho de arte de Thaís Helena Reis, Nathalie Provoste e Débora Stevaux. Elas são a alma deste número. E fizeram seu primeiro gol nesta revista-laboratório. E ainda virão outros!
No Esquinas #55, o futebol foi além da ideia de Copa do Mundo, transitando através dos seus diversos significados. Nas reportagens a seguir, o leitor pode desfrutar de uma série de pontos de vista sobre o esporte.
RAPHAELE PALARO
Revista-laboratório do curso de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero
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SUMÁRIO
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06 Cara e coroa
26 CHUTES CONVICTOS
12 Além dos 90 minutos
30 mÍDIA DE CAMPO
15 FUTEBOL AME-O OU DEIXE-O
32 EI, JUIZ...
20 verde que te quero verde
44 PARA SER OURO
24 mostra tua cara
46 AMOR DE VÁRZEA
Com ações sociais, as torcidas organizadas vão além da violência e dos estereótipos reforçados pela mídia
O torcedor que vai ao Pacaembu deve enfrentar uma série de problemas para poder desfrutar de um jogo
Cinquenta anos depois do golpe, o uso do esporte por parte dos ditadores ainda é uma polêmica a ser discutida
Vanessa Andrade, palmeirense fanática, mostra a rotina de uma torcedora que dá o sangue pelo time
A representação da cultura brasileira através de músicas, produtos e celebridades na Copa do Mundo
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Entrevistado pelo Esquinas, Juca Kfouri mostra suas ressalvas em relação ao Mundial no Brasil
O aquecimento da imprensa para a cobertura do maior evento futebolístico do ano
O árbitro Ilbert Estevam prova que a função de apitar um jogo é, na verdade, uma tarefa que envolve tanto corpo quanto mente
A dura jornada das peneiras rumo ao sonho de ser jogador profissional
O futebol “varzeano” sobrevive em São Paulo com times centenários e Copas bem organizadas
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48 ITAQUERÃO PARA QUEM?
O que mudou nos bairros de Artur Alvim e Itaquera depois da construção da Arena Corinthians
50 CAMPEÃS INVISÍVEIS
O futebol feminino, apesar de vencedor, continua marginalizado e pouco valorizado
52 ”VOCÊS ME AGUARDEM”
A jogadora Érika dos Santos, vice-campeã olímpica, discorre sobre as dificuldades de ser mulher no meio futebolístico
SEÇÕES 03 EDITORIAL 36 FOTORREPORTAGEM 64 ALI NA ESQUINA 66 QUADRINHOS 70 CRÔNICA
54 mICROFONE FUTEBOL CLUBE
A história por trás das vozes mais famosas da narração esportiva brasileira
58 PRESENTE DO PASSADO
A nostalgia transforma alguns fanáticos em colecionadores, que resgatam as figurinhas, o futebol de botão e os uniformes
62 DAS QUADRAS AOS QUADRINHOS
O futebol ganhou outras perspectivas entre balões de fala e personagens inspiradas em ídolos do esporte
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VIOLÊNCIA chapéu
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& oroa ara
Das brigas às ações sociais, como as duas faces das torcidas organizadas constroem o futebol da maneira como ele é hoje REPORTAGEM AUGUSTO CÉSAR, CAROL BUENO, MARIANA GONZALEZ, ROBERTA MINHOTO, VICTOR HUGO SOUZA (1º ano de Jornalismo) e JULIANA ORTEGA (3º ano de Jornalismo)
Em meio a uma multidão de preto e branco, dois pequenos se destacavam na torcida do Corinthians no clássico entre o time do Parque São Jorge e o São Paulo, pelo Campeonato Paulista 2014. O motivo: os dois e a mãe vestiam a camisa do rival, protagonizando uma cena cada vez mais rara no futebol brasileiro. Era a primeira vez que Bárbara Rezei, de 12 anos, e seu irmão, Pedro, de 9, entravam em um estádio. Ambos faziam parte de um Pacaembu vibrante. No entanto, mesmo em um cenário que costuma encantar as crianças, a resposta de ambos quando questionados sobre como estava sendo seu primeiro jogo veio em coro: “Estou com medo”. O que eles sentiam pode ser explicado pela onda de violência e intolerância que vem permeando o futebol nas últimas décadas.
De acordo com o sociólogo Mauricio Murad, ex-coordenador do Núcleo de Estudos de Sociologia do Futebol da UERJ e autor do livro Para Entender a Violência no Futebol, “foi a partir da segunda metade da década de 1980 que as práticas de violência entre torcedores ditos organizados passaram das páginas esportivas para as policiais”. Segundo levantamento realizado pelo jornal esportivo Lance!, 236 pessoas foram mortas no Brasil em brigas motivadas pelo futebol desde 1988. Em seu livro, o autor defende que, para analisar a violência neste esporte, é preciso antes estudar a conjuntura social do país em questão. Na sua visão, fatores como ausência de educação, falta de consciência social, desagregação dos valores, crime organizado, tráfico de drogas, desemprego e subempre-
VICTOR HUGO SOUZA
go, assim como falta de policiamento efetivo, descaso das autoridades e, principalmente, impunidade e corrupção, são problemas estruturais presentes em quase todos os setores da sociedade, inclusive no futebol. A ideia é reafirmada pelo jornalista esportivo da TV Cultura e colunista do Lance!, Vitor Birner: “Não é que as torcidas estejam mais agressivas; a sociedade é muito mais violenta e maldosa. Os valores mudaram e as torcidas são parte desse pacote”. Mauricio Murad aponta, também, outras questões que levaram a uma maior agressividade no comportamento de torcedores: “Um aspecto desse agravamento é o envolvimento com o tráfico de drogas e de armas e as ligações do chamado ‘crime organizado’ que se infiltram nas torcidas”.
Culpa de quem? Se o debate sobre a violência no futebol é complexo, o mesmo acontece com a definição de quem são os culpados por ela. Para Mustafá Contursi, ex-presidente do Palmeiras, “a violência é responsabilidade só dos dirigentes das organizadas”, mas “receber ingressos gratuitos também facilita a baderna dos jogos”. Contursi ressalta, ainda, a ausência de poder policial da segurança privada dos clubes como algo que enfraquece a luta contra a violência. Para ilustrar, lembra o jogo entre Vasco e Atlético-PR, que aconteceu na Arena Joinville em dezembro do ano passado e chocou o mundo com cenas brutais entre os torcedores: “Havia uma fila de seguranças de preto do primeiro ao último degrau separando as torcidas. Quando elas se enfrentaram, não
havia nada que a segurança pudesse fazer. O Ministério Público diz que o policiamento não deve estar nos estádios. Se um segurança da Arena Joinville encostasse em um torcedor, sofreria consequências”. Em entrevista ao portal do canal Fox Sports, o pesquisador Felipe Lopes afirmou que a impunidade é outro motivo que dá margem a conflitos motivados pela vingança. “Quando o Estado não faz esse papel de punir, outros grupos assumem isso”, diz ele. Mauricio Murad aponta também a relação entre muitos diretores de clubes e as organizadas como um problema. “É um relacionamento promíscuo, um toma lá dá cá típico também da nossa cultura política.” Segundo ele, os diretores doam ingressos, ajudam no transporte, na hospedagem e na alimentação, para recebe-
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As torcidas organizadas também se mobilizam para promover ações sociais rem em troca apoio desses grupos nas políticas internas dos clubes e, eventualmente, nas pretensões desses diretores à política externa, quando se candidatam a cargos eletivos. Essa relação é reafirmada por Birner: “Sei que o Santos e o São Paulo ajudam as torcidas, inclusive para o Carnaval em balanço oficial. E o Corinthians é o que mais faz isso, porque o Andres (Sánchez, ex-presidente do clube) é muito próximo da torcida organizada”. O jornalista explica através de exemplos como esse auxílio acontece: “A renda do jogo entre Corinthians e Flamengo, disputado em 2009 pela segunda rodada do Campeonato Brasileiro, foi totalmente destinada aos gastos da Gaviões com o Carnaval. Tiveram ajuda para comprar passagem, mas não foi divulgada. Tinha cooperação do sócio torcedor, inclusive o Mário Gobbi recentemente falou que ia acabar com esse auxílio”. O ex-presidente do Palmeiras lamenta a violência que acontece nos estádios. “É tudo um jogo político de dirigentes que usam a torcida e depois não querem conviver com elas e com os problemas que têm de enfrentar com isso”, afirma. Mustafá afirma ainda que, em sua gestão, não havia benefícios para elas: “Dentro do clube, eles nunca tiveram regalias nem privilégios. Torcedor tem que pagar ingresso, independentemente de pertencer a uma organizada”. Quem também nega qualquer envolvimento com o clube é Claudio Cecílio, ex-presidente da TUP (Torcida Uniformizada
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do Palmeiras). Ele diz que nunca houve uma reunião com a diretoria, apenas conversas esporádicas, porque “o clube nunca teve essa abertura. Essa ideia de que recebíamos benefício é mito”. Claudio afirma que recebiam ingressos para vender na quadra, mas que depois repassavam o dinheiro para a diretoria. “O máximo que acontecia era quando, em um jogo fora de casa, cediam vinte ou trinta ingressos que eram praticamente impossíveis de comprar”, completa. Em fevereiro deste ano, cerca de cem corintianos invadiu o CT Joaquim Grava do Corinthians. Ele arrebentaram o alambrado e pularam o muro para cobrar mais resultados dos jogadores do time, chegando a agredir funcionários. Birner vê um exemplo de como essa ligação dificulta a punição dos infratores: “Eu tenho certeza absoluta de que muitas pessoas que estavam naquela confusão são habitués do local ou, no mínimo, se conhecem e conhecem os jogadores”. Ele aponta a dificuldade de se fazer uma denúncia, já que a pessoa em questão estará presente no próximo jogo. O medo não é só por parte deles, mas também dos jogadores: “Como acabar com isso? Como você destrói uma relação que não é uma relação, mas várias?”.
SER TORCIDA ORGANIZADA “Só participando para sentir. A torcida vira uma extensão da família, ou a sua família mesmo”, define Claudio Cecílio, ex-presiden-
te da TUP, da qual passou a fazer parte aos 13 anos. De acordo com ele, a parceria acontece até mesmo em viagens ou quando precisam comprar ingressos e lanches e todos ajudam. Vitor Birner, antigo membro da Independente, torcida organizada do São Paulo, concorda: “A torcida, para mim, era um jeito de ter uma turma para assistir aos jogos e viajar para ver o time”. Há ainda quem passou a integrar torcidas organizadas buscando experiências e emoções diferentes. Este é o caso de T.S.C., membro da Torcida Jovem do Santos que pediu para não ser identificado porque “às vezes a diretoria não gosta”. Para ele, “só quem é T.O. (torcida organizada) sabe como é carregar o bandeirão no ombro, enfrentar rival e PM, cantar e pular os noventa minutos, tremular bandeiras, levar o nome da entidade não só no pano, mas também no coração e representar o time sempre”. Para Claudio, que não só viu, como também se envolveu em brigas, é natural que se descambe para a violência em um ambiente onde as emoções estão afloradas. Segundo ele, “naquele momento, o torcedor rival era meu inimigo”. Já T.S.C. diz amar esse tipo de adrenalina: “ É uma sensação de atenção, ligeirice e sempre se proteger. Não pode ter dó, porque ninguém tem dó de você”. O fanático conclui que não vai atrás da guerra, mas também não foge dela. A violência, porém, não atrai a todos os
“Só quem é torcida organizada sabe o que é levar o nome da entidade não só no pano, mas também no coração” T. S. C., membro da Torcida Jovem do Santos torcedores. Um dos fatores que fizeram com que Vitor Birner optasse por se desvincular de torcidas foi exatamente a brutalidade. Ele conta que, certa vez, estava indo assistir a um jogo entre São Paulo e Vasco, no Rio de Janeiro, quando, ao entrar na Rodovia Presidente Dutra, começaram a atirar no ônibus da torcida. O jornalista afirma que não levou a situação da violência a sério até que ela realmente chegou perto dele. “Eu já tinha visto algumas brigas, mas se dizia que não era por rivalidade entre torcidas, era algo que o sujeito tinha na sua vida particular”, explica. Hoje, anos após a situação, Birner ainda sofre ameaças enquanto jornalista porque assume ser torcedor do São Paulo: “Já passei perto de apanhar várias vezes, quase fui linchado em estádio”, revela.
DONOS DA FESTA De acordo com pesquisas realizadas por Mauricio Murad, o percentual de integrantes de organizadas que têm atitudes violentas varia de 5% a 7%. Ou seja, é uma minoria dentro da pequena porcentagem que os torcedores organizados representam junto aos torcedores comuns. Essa maioria pacífica é a responsável por fazer do futebol um espetáculo. O corintiano Fabiano Haddad, de 42 anos, não tem dúvidas quanto à importância da torcida para a modalidade: “A gente não vem aqui só para ver o time, mas também a torcida e a festa”, afirma ele, que havia levado a família para ver de perto um clássico do futebol paulista, Corinthians e São Paulo. Como um 12º jogador, as organizadas não só torcem por seus clubes, como também marcam gols de placa ao realizarem campanhas sociais. Segundo Murad, “os torcedores pacíficos, maioria dentro de cada uma das organizadas, desenvolvem vários trabalhos de cunho social, como doação de sangue, conscientização para doação de órgãos, coleta de cestas básicas, ajuda aos mais necessitados e eventos culturais”. O sociólogo acredita que este lado deveria ser desenvolvido com o apoio das autoridades, dos clubes e das federações, o que, segundo ele, não acontece. Mustafá Contursi afirma que o Palmeiras também fez contribuições de caráter social junto a torcidas organizadas e até ao lado do Governo do Estado de São Paulo, como a criação de uma escola de computação e outra de cabelereiros. A TUP, de acordo com Claudio Cecílio, realizava trabalhos com crianças carentes da Barra Funda, bairro de São Paulo onde fica localizada a quadra da torcida,
além de manter um convênio com forças sindicais que dava direito a cursos profissionalizantes para os associados e suas famílias. A organizada, segundo ele, também realizava campanhas de arrecadação de agasalhos e alimentos. No entanto, nem todos os integrantes das torcidas participam dessas ações, caso, por exemplo, de T.S.C.: “Só vou nos dias de clássico, finais de campeonato, aniversário da torcida”, conta. Pelo fato desse tipo de ação ser pouco divulgado pela mídia, parte dos torcedores se diz prejudicada. “Tem todo um lado positivo, mas não interessa publicar, porque não vende
jornal”, afirma Claudio. Quem também critica o tratamento dado pela imprensa às organizadas é o pesquisador Felipe Lopes. Em entrevista à Fox Sports, ele argumenta que “quando você manda um repórter para cobrir a violência nas arquibancadas, tudo isso ganha visibilidade. Isso, junto com o tratamento sensacionalista que recebia, acabou servindo para uma construção discursiva dos estádios como um lugar ocupado só por vândalos”.
DRIBLANDO A VIOLÊNCIA Com o problema das agressões ainda muito presente nos campos brasileiros, especialis-
Eles viraram o jogo Até o início dos anos 1990, o Hooliganismo imperava na Inglaterra, com grandes confrontos entre torcedores dentro e fora dos estádios. A postura do país perante as brigas mudou após duas grandes tragédias. Desde então, o país se tornou um modelo no futebol mundial, com excelentes administrações dos clubes, incidentes cada vez mais raros e ótimas médias de público. Hooliganismo: (hooligan, em português, “vândalo”) Refere-se a um comportamento destrutivo e desregrado. É normalmente associado a fãs de desportos, principalmente adeptos do futebol e de modalidades universitárias. Primeiro Caso de Violência de Torcida: Um dos primeiros casos conhecidos de violência de torcida em um evento esportivo teve lugar na antiga Constantinopla. Dois times de corrida de bigas, os Azuis e os Verdes, foram envolvidos na Revolta de Nika, que durou cerca de uma semana, em 532 DC; quase metade da cidade foi queimada ou destruída e milhares de pessoas morreram.
Desastre de Heysel: Na final da Copa dos Campeões de 1985, uma briga entre os torcedores do Juventus, da Itália, e do Liverpool, da Inglaterra, resultou na morte de 39 italianos. Como punição, o Liverpool ficou proibido de disputar competições europeias por seis anos, e os outros times ingleses por cinco.
Desastre de Hillsborough: No jogo entre Liverpool e Nottingham Forest, 96 torcedores morreram pisoteados e esmagados contra o alambrado após superlotação do estádio. Embora o problema tenha sido causado por falta de organização e inconsequência das autoridades, a culpa recaiu sobre os torcedores.
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Os corintianos comemoram a paixão pelo time e a fundação do clube em dias de jogo
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tas vêm apresentando propostas para brecar a intolerância. Maurício Murad, por exemplo, defende a implantação de um plano estratégico nacional baseado em três fases. A primeira teria medidas de curto prazo, através de repressão dura. A segunda, de médio prazo, com uma política de prevenção. Por último, a terceira fase, de longo prazo, traria medidas de caráter reeducativo. Segundo ele, “tudo isso é para operar mudanças de cima para baixo, na cultura das torcidas organizadas, para implementar a parceria com os pacíficos e isolar os vândalos”. O sociólogo também apoia a criação de um disque-denúncia das torcidas organizadas, o que estabeleceria um link real e uma mediação entre a maioria pacífica e as autoridades públicas. Vitor Birner, por outro lado, já chegou a defender a “institucionalização da violência”. Ele explica que “tem gente que gosta de brigar e tem todo o direito, mas sem danificar o patrimônio público e privado, sem envolver ninguém que não goste daquilo”. Birner sugere algumas ações para diminuir a impunidade, como excluir do estádio o torcedor que brigou: “Se for alguma coisa que a lei fora do futebol determina, que o sujeito vá para a delegacia e faça algum tipo de serviço social. Se for alguma coisa mais séria, tem que prender o sujeito”, diz ele. Segundo ele, o que deveria ser feito é reunir as torcidas organizadas em um ginásio, escolher os dez melhores e colocá-los para brigar. “Acredito que eles tenham esse direito de partir para a violência, mas não na rua, nem pegando inocentes.” São muitas as soluções para o problema da agressividade entre torcidas, mas, por enquanto, elas não entraram em campo – ou melhor, nas arquibancadas. Para o torcedor pacífico, resta esperar o segundo tempo desta partida. Como conclui Murad, o futebol “não suporta mais tanta violência”.
Curiosidades Medidas que a Inglaterra adotou para diminuir a violência: - A capacidade de público foi reduzida - Ficar sentado passou a ser obrigatório para os torcedores nos estádios - Os clubes se tornaram responsáveis pelos atos de seus fãs nas arquibancadas - Grades e alambrados que cercavam o campo foram retirados - Punições severas passaram a ser aplicadas para os que brigam nos estádios - A venda de bebidas alcóolicas nos estádios foi proibida - Câmeras de vídeo foram instaladas nas arquibancadas Para assistir: 1) ID: Fúria nas Arquibancadas (ID) Ano: 1995 País: Reino Unido Direção: Philip Davis 2) Hooligans (Green Street Hooligans) Lançamento: 2005 País: Reino Unido e Estados Unidos Direção: Lexi Alexander 3) A Firma (The Firm) Ano: 2009 País: Reino Unido Direção: Nick Love 4) Violência Máxima (The Football Factory) Ano: 2004 País: Reino Unido Direção: Nick Love
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Além
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Os perrengues pelos quais passam os torcedores no Estádio do Pacaembu
Ele se aproxima de seu objetivo. Cansado, com a camisa suada, só tem uma coisa em mente: a bola no gol. Antes, porém, precisa driblar uma multidão de adversários, todos com o mesmo propósito. Sem deixar de lado seus colegas e pensando em seu time, ele perde a bola de vista, mas não desiste. Sob um sol que castiga o estádio, ganha espaço entre a massa de pessoas até que, finalmente, consegue vibrar com o gol. Não, não é o atleta que pula e comemora quando a bola balança a rede. Para assistir a uma partida de futebol, o torcedor tem que estar disposto, assim como o jogador em campo, a passar por algumas situações. Sujeira, lotação, problemas com o transporte e a alimentação são alguns dos oponentes que os fãs do esporte têm de enfrentar para prestigiar o jogo. Acompanhar a trajetória dos fanáticos ou admiradores comprova que, para ver o time do coração no gramado, é preciso muito mais do que amor à camisa.
Entrando em campo Um dos primeiros rivais é temido: a compra dos ingressos. Quem não adquire com antecedência acaba perdendo horas em uma fila desorganizada e barulhenta, coberta por um sol escaldante. A aquisição pode até ser feita no mesmo dia do evento, mas é preciso ter
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utos REPORTAGEM BEATRIZ MANFREDINI, GIULIANNA MUNERATTO, ISABEL ROCHA, LAURA ULIANA, LEANDRO COSTA, MARIANA BRANDA, PAULA CALÇADE, THAÍS TORRES (1o ano de Jornalismo) ANDRÉ VALENTE, NATALIA MELO e TALITA MÔNACO (2o ano de Jornalismo) IMAGENS Giulianna Muneratto, Beatriz Manfredini, Thaís Torres, Leandro Costa (1o ano de Jornalismo) e ANDRÉ VALENTE (2º ano de Jornalismo)
cautela, porque a bilheteria fecha cedo nos finais de semana. Para ver o jogo do São Paulo contra o Corinthians, Ariadne Stringhini veio de Sorocaba com o namorado e, mesmo saindo cedo de sua cidade, conta que quase ficou sem ingresso: “Ele teve que segurar a grade para a gente entrar e comprar as últimas entradas”. Para entrar no estádio pode ser tão difícil quanto, para os jogadores, chegar à grande área. As filas são como uma barreira de jogadores na defesa de uma falta, que tenta, a todo o custo, impedir os competidores de alcançar seu objetivo. Em meio à confusão da entrada, Luiz Carlos de Medeiros é uma figura singular: um torcedor cadeirante. Corintiano roxo, foi assistir ao jogo acompanhado dos amigos Ramiro Rodrigues e Willian Suzuki – os três moram em São Miguel Arcanjo, a quase 200 quilômetros da capital. “Tem que entrar assim que abrir a porta”, explica o cadeirante “senão, fica difícil por causa da muvuca”. A entrada de pessoas com mobilidade reduzida é feito por quatro portões específicos no Pacaembu, que levam a áreas adaptadas para a cadeira de rodas. “Ele vai ficar em um lugar onde está o maior sol e sem ninguém do estádio para dar assistência”, explica Ramiro. Para conseguir acesso ao setor, o cadeirante precisa realizar um cadastro pela internet e, de acordo com os dois amigos, é sempre recomendável que alguém compre o ingresso para
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BOLA NA GRELHA Entenda o cartão vermelho das comidas do Pacaembu Hot Dog com chips (R$ 6,00) Aparência envelhecida e textura ressecada: o gosto evidencia o armazenamento precário do alimento. Salgadinho (R$ 5,00) Frios e com textura de borracha. Eram poucas as opções disponíveis na lanchonete. Pipoca (R$ 5,00) Fria e, consequentemente, murcha. Apesar de chamar a atenção das crianças, sempre sobrava no pacote. Bebidas (R$ 5,00): O suco, de marca desconhecida, parecia água com corante. A cerveja, sem álcool, estava quente e os torcedores não quis arriscar comprá-la. A água valia a pena, mas um copo de 300ml era vendido a R$3,00.
acompanhá-lo no jogo: Luiz, que não tem movimentação dos braços e das pernas, já correu o risco de perder uma partida porque nenhum funcionário se dispôs a levá-lo até seu espaço reservado. Passando a confusão inicial, no portão, a defesa do oponente está em fila: todos os torcedores são revistados por agentes da Polícia Militar. A ação, apesar de importante para impedir o porte de objetos de risco no estádio, pode ser um tanto problemática se o espectador estiver carregando algo que seja barrado pelos policiais. Sem mais opções, a pessoa deve escolher entre descartar o objeto ali mesmo ou não entrar no estádio. Não há nada como um guarda-volumes para o torcedor que é pego desprevenido – o que é bastante comum, pois muitos objetos cotidianos, tais como cadernos e canetas, não são permitidos dentro do Pacaembu.
Manobra perigosa Antes mesmo das filas e da revista polical, os torcedores já se deparam com um grande obstáculo: como chegar ao estádio. O transporte público costuma ser a escolha da maioria. “Minha família e eu usamos metrô e ônibus. No fim de semana é mais tranquilo”, afirma Iara Araújo Visotto, que estava no Pacaembu com
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o marido e o filho. Entretanto, nos jogos de quarta-feira à noite, é muito mais difícil transpor a barreira. Ao sair do estádio, já se vê a enorme multidão caminhando em direção às estações de metrô mais próximas – gente que se mistura ao tradicional turbilhão de paulistanos que lotam o transporte público todos os dias. Além disso, o trânsito na região fica caótico devido à grande circulação de pedestres. Ir de carro pode parecer uma boa solução, mas o custo é maior. “Você tem que pagar vinte reais para um cara em quem você não confia. Você nem sabe se ele vai estar lá quando você voltar”, reclama a torcedora Lívia Ximenes. Apesar de serem espaços públicos, as ruas em torno do Pacaembu estão sempre lotadas de “flanelinhas” que se aproveitam da falta de opção dos torcedores e cobram preços abusivos para cuidar dos carros. Portanto, tentar neutralizar o oponente “de carrinho” é algo arriscado.
Impedimento Finalmente, o torcedor consegue entrar no estádio. A grama verde combina com o colorido das arquibancadas e tudo parece estar correndo bem. Entretanto, os desafios estão longe de acabar. O Estádio Municipal Paulo Machado de Carvalho é um dos muitos da cidade de São Paulo que ainda apresentam grandes problemas de infraestrutura. Além da acessibilidade, grande preocupação dos deficientes físicos como Luiz Carlos, uma das maiores reclamações dos frequentadores do estádio são os banheiros: “Sem a menor condição”, revolta-se Lívia, enojada, enquanto mostra que, no banheiro feminino, não há lixeira. Como a descarga não fun-
ciona, o cheiro de urina, de tão forte, chega a dar uma sensação de ardência nas narinas. Dentro dos boxes, o que espanta é o lixo: jogado ao lado do vaso sanitário, ele cria uma assustadora montanha de papel higiênico. Luiz Carlos reclama que é impossível usar os banheiros, que ficam muito lotados e não contam com cabines adaptadas. Para Ramiro, a situação é inadmissível: “Isso é um desrespeito com os cadeirantes”. Se o banheiro ganha cartão amarelo, as lanchonetes são expulsas na certa. Cercadas por grades para evitar a invasão do espaço, elas ficam com um aspecto sombrio e insalubre. Shayane Servilha, que frequenta o estádio com seu irmão e sobrinhos, explica: “Comer aqui é um verdadeiro assalto à mão armada. Por isso, almoçamos antes e levamos água para tomar no caminho”. A opção que resta para o torcedor é consumir os produtos industrializados, como chocolates, sorvetes e salgadinhos, cujos preços chegam até a quadruplicar dentro do estádio. Do lado de fora, há muitas mini-vans e barracas que oferecem uma variedade de comidas e bebidas. Ao contrário das lanchonetes internas, comercializam cerveja com álcool, o que já serve como grande atrativo para os fanáticos. Sanduíches de pernil, linguiça e churrasquinhos são algumas opções encontradas. O preço é mais em conta e o armazenamento, muitas vezes, é melhor do que o de dentro. Apesar disso, Karin Hatz diz que nem todas as barracas são confiáveis: “Tem uma que é de um amigo, então eu sei que é um lugar limpinho, mas algumas não são assim. Você não sabe de onde vem a salsicha, nem há quantos dias está ali”. Ela e todos os outros torcedores mostram que ir ao estádio demanda planejamento e muito amor pelo time.
DITADURA
FUTEBOL ame-o ou
deixe-o Da opressão à luta, o papel do futebol durante a Ditadura Militar brasileira foi fundamental para o cenário político do país REPORTAGEM EDUARDO CSENGERI, FERNANDA VENTURA, NATHÁLIA PARRA (1o ano de Jornalismo), BÁRBARA BLUM, JOÃO GABRIEL HIDALGO, MARIA CLARA MOREIRA, MARIANA AGATI (2o ano de Jornalismo), ANA GABRIELA VEROTTI (3o ano de Jornalismo) e ÉRICO LOTUFO (4o ano de Jornalismo) COLABORADORA CAMILA GREGORI (2º ano de Jornalismo)
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A Democracia Corinthiana trouxe o debate político para os gramados México, junho de 1970. A Seleção Brasileira contava com craques como Pelé, Rivelino e Tostão, mas sua maior marca foi a disciplina e um condicionamento físico jamais visto, que fizeram com que o Brasil vencesse todos os jogos no segundo tempo. “Se comparar os jogadores de 70 com os de 58 e 62, você vê que em 70 eles tinham um condicionamento muito melhor. Não à toa os daquela época eram todos fortes e bem preparados”, aponta Denaldo Alchorne, estudioso do Ludens (Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Outras Modalidades Lúdicas), da Universidade de São Paulo. “Para um militar, a disciplina é um dado fundamental. Se a Seleção Brasileira tem essa característica, isso vai ser passado para a sociedade”, afirma o estudioso. Enquanto isso, no berço esplêndido, os brasileiros viviam os Anos de Chumbo da Ditadura Militar, o que exigia comportamentos por parte da sociedade tão regrados quanto os dos jogadores da Seleção. Por causa da imposição, em 1968, do Ato Institucional número 5, qualquer desvio ideológico ou comportamental poderia gerar uma ficha no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS)
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e até uma visita aos temidos DOI-CODIs, centros de tortura dos supostos subversivos. “É como se o futebol fosse o espelho da nação”, explica Denaldo. “Cada um pega a modalidade e cria histórias sobre si e sobre a sua visão de Brasil”, complementa.
Apito dos militares “Seja ditadura ou democracia, qualquer presidente ou governante vai tentar se aproximar daquilo que está em destaque nos esportes”, diz o pesquisador. De acordo com ele, já na República Velha o futebol era utilizado com propósitos políticos. Na Ditadura Militar, não foi diferente: “Quando o futebol não ia bem, o governo sentia-se mais forte para intervir”, acrescenta. Após o fiasco do Brasil na Copa de 1966, cada vez mais militares passaram a fazer parte das instâncias do poder no esporte. As vitórias da Seleção Canarinha durante os Anos de Chumbo eram consideradas vitórias dos próprios governantes, que se beneficiavam do futebol para mascarar as perseguições, torturas e outras atrocidades do governo. Para garantir que os brasileiros vences-
sem, o governo precisou controlar pessoas como João Saldanha, técnico da Seleção que classificou o Brasil para a Copa de 1970. No auge do Regime Militar, um ano após a criação do AI-5, Saldanha teria contestado a sugestão do então presidente Emílio Garrastazu Médici de escalar o centro-avante Dario “Peito de Aço”, do Atlético Mineiro. A resposta do treinador, que lhe custou seu cargo, sugeria que o presidente cuidasse dos Ministérios, pois da Seleção cuidaria ele. O resultado não poderia ter sido diferente: João Sem Medo, como era chamado, foi substituído por Mario Zagallo, que comandou o Brasil tricampeão e deu espaço para as propagandas governamentais nacionalistas que exaltavam o “país do futuro” e a onda otimista que predominava em tempos do chamado milagre econômico. A eleição do almirante Heleno Nunes para a presidência da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), em 1975, foi outro momento de grande intervenção militar no esporte mais popular do país. Durante o tempo em que ocupou o cargo, a criação de estádios e o inchaço do campeonato nacional incentivaram o futebol brasileiro, que satis-
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yuri andreoli
Seja ditadura ou democracia, qualquer governante vai tentar se aproximar daquilo que está em destaque nos esportes”
Denaldo Alchorne, pesquisador fazia cartolas e alianças políticas: “Na época, a primeira divisão do Campeonato Brasileiro chegou a ter 94 times”, assinala Denaldo. A ARENA, partido dos militares, acabou virando piada nas ruas: “Quando a ARENA vai mal, mais um clube no Nacional. Quando a ARENA vai bem, mais um clube também”. Na Copa do Mundo de 1978, realizada na Argentina, a Seleção Brasileira teve até um técnico militar: Claudio Coutinho. “Nunca uma delegação brasileira de futebol em Copa do Mundo teve tantos militares quanto naquela”, acrescenta Denaldo. Essa é a Copa em que Brasil e Argentina se enfrentam no duelo conhecido como Batalha de Rosário, com os dois países em meio a um regime ditatorial. Antes, porém, do 0 a 0 contra os argentinos, os Canarinhos já haviam sofrido com a intervenção de seus militares. Reinaldo, atacante titular e artilheiro do Campeonato Brasileiro de 1977, foi retirado do time a pedido de Heleno Nunes e sua comissão, que analisavam as escalações de Cláudio Coutinho. A motivação, segundo o craque do Atlético-MG, era política: em 1977, Reinaldo deu entrevista ao jornal independente e anti governo O Movimento, criticando os militares. Também era conhecido por comemorar os gols com um punho erguido, gesto utilizado por movimentos de esquerda na época, como os Panteras Negras.
Denaldo Alchorne vê uma estreita relação entre futebol e ditadura a Luta entra em campo O futebol refletia a nação e Afonsinho, na época jogador do Botafogo, mostrou o que era considerado subversivo ao romper a regra do corte de cabelo “à escovinha”, que representava a disciplina dos militares. “[A barba era] uma demonstração de rebeldia própria de uma época de insatisfação, relacionando-se aos movimentos guerrilheiros”, diz ele, que, naquele tempo, ostentava cabelos nos ombros e barba semelhante à de Che Guevara. Entretanto, foi seu segundo ato subversivo que chamou a atenção dos militares. O jogador lutava pelo passe livre, que daria li-
berdade de negociação do atleta com relação aos times em que jogava. Apesar de o governo de João Goulart ter estabelecido que 15% do valor da negociação ficaria para o jogador em caso de transação de times, Afonsinho conta que “o clube não liberava [o dinheiro]”. Esta luta pode ter feito com que ele perdesse a chance de jogar nas Copas de 1970 e 1974, apesar de seu inquestionável talento. “A minha ausência foi motivo de manifestações na imprensa, de estranheza. Era lógico que eu podia ter uma convocação para disputar uma determinada posição.”
Enquanto Afonsinho era o principal expoente da moderada rebeldia no futebol durante o governo Médici, Pelé era o menino de ouro do regime por sua disciplina e obediência. Curioso, portanto, que tenha sido o “Rei” a dar nome à lei que, em 1998, garantiu a todos os jogadores o passe livre que Afonsinho conseguira para si 27 anos antes. Quando perguntado se valeu a pena, o “rebelde” considera que, apesar de a Seleção ter sido um sonho, “o viver político é uma necessidade, nenhum ser humano consegue ficar fora disso”.
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Torcedores unem-se aos jogadores na luta pela liberdade política Democracia CorintHiana Com dezoito anos de ditadura nas costas, o Brasil, em 1982, viu no futebol o reflexo do anseio por abertura política e liberdade: surgia a Democracia Corinthiana. É fato que, a essa altura, o regime militar já tropeçava nas próprias pernas e a estrutura que fundamentara o Golpe de 1964 começava a ruir. Este período, apesar de ser considerado mais “brando”, não diminui o caráter inovador do movimento político corintiano. Da autogestão às Diretas Já, as reivindicações da Democracia demonstram que o esporte, o povo e a nação estavam prontos para realizar mais um sonho impossível: opinar, contestar e debater publicamente, imunes aos olhos vigilantes. Como definiu Denaldo, “em termos simbólicos, aquilo ali era uma paulada na Ditadura Militar”. A Democracia resultou em uma relação próxima do futebol com a política. Até 1982, o Corinthians enfrentava uma estiagem esportiva e administrativa. No campo da bola, a péssima campanha de 81 resultou no 26º lugar no Campeonato Brasileiro e 8º lugar no Paulista. No campo da gestão, Vicente Matheus não mais podia se
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reeleger após seu mandato duradouro, que se iniciara em 1972. Sem resultados frutíferos, a torcida ansiava por renovações em todos os sentidos. No ano seguinte, o vice de Matheus, Waldemar Pires, assumiu a presidência do time, iniciando sua gestão indicando Adilson Monteiro Alves para a diretoria. Sociólogo, jovem e visionário: a personalidade de Adilson era perfeita para as revoluções no “Timão”. “Inicialmente, o movimento era voltado exclusivamente para o futebol, porém, devido ao momento político que vivíamos, acabou se desviando também para outras causas”, explica Washington Olivetto, publicitário que fechava o trio administrador com o cargo de vice-presidente de marketing. “Por amor ao clube, não teria por que cobrar salário”, diz. Recrutou nomes de destaque para a causa como a cantora Rita Lee, o “manda-chuva” da TV Globo, Boni, e o jornalista Juca Kfouri. A fonte do engajamento surgiu de forma paradoxal. A imagem de “jogador modelo” de postura ereta e cabelo raspado, que antes adulara o governo opressor de Médici, se revertia no estereótipo do rebelde com cabelos
longos e barba cheia. A nova bandeira hasteada pelos integrantes do Corinthians era a da liberdade. Apelidado de “Doutor Fantástico”, Sócrates foi o principal expoente do time e da Democracia Corinthiana. Filósofo no nome, rebelde na barba, médico na formação, jogador no talento, líder na luta política. Outros apoiaram o movimento: Wladimir, Casagrande, Zé Maria, Biro-Biro, Zenon, Ataliba, Eduardo. Além de questionarem a administração autoritária, ao calçarem as chuteiras mostravam um futebol de qualidade que resultou em dois títulos do Campeonato Paulista, aliviando o coração alvinegro. Apesar do sucesso dentro e fora de campo, o movimento não era aceito por todos: Emerson Leão, por exemplo, defendia o gol, mas não a Democracia Corinthiana. “Sempre há uma minoria que é resistente a ideias como essas”, esclarece Olivetto, “os motivos, cada um tinha os seus em particular”. As decisões eram tomadas por meio de votações. Todos os integrantes do clube tinham o mesmo poder de voto, dos jogadores aos roupeiros. Todos influíam na escalação do time, nas estratégias de jogo, nos horá-
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Sócrates liderou a Democracia e tornou-se símbolo do movimento político rios de treino, na contratação ou demissão de funcionários. Nas palavras do publicitário, “era um movimento em que os próprios jogadores geriam o destino da equipe. Optavam se deviam se concentrar ou não, votavam a respeito dos valores das premiações, elegiam o técnico e assim por diante”. O movimento era tão politizado que teve até um jornal para perpetuar sua ideologia: o Democracia Corinthiana, que teve 16 edições. Além de iniciar uma nova organização esportiva, o time e a torcida se envolveram em reivindicações da época como as Diretas Já. O lado politizado de Sócrates ofuscou sua paixão pelo Corinthians quando a proposta de emenda constitucional para a redemocratização do país foi rejeitada. O líder da Democracia, frustrado com o sistema político militar, decidiu abandonar o Brasil, por pensar que a mudança ainda estava no início do primeiro tempo: em 1984, o jogador foi para o time italiano Fiorentina. Casagrande também saiu da equipe, e Adilson Monteiro não foi eleito para a presidência. A soma desses fatores levou, em 1985, ao fim da Democracia Corinthiana. Os sucessores, por não
se enquadrarem em um perfil politizado, foram incapazes de continuar a revolucionária democracia no futebol e aceitaram os interesses dos cartolas.
Resquícios da ditadura? No dia 14 de março deste ano, aconteceu o evento “Copa: ame-a ou deixe-a”, na Praça Roosevelt. A mesa foi ocupada pelo padre Júlio Lancelotti, pelo professor de direito do trabalho brasileiro da USP, Jorge Luís Souto Maior, pela ex-deputada Luciana Genro (PSOL), pelo deputado federal Jean Wyllys (PSOL) e por representantes do movimento de militância feminista CSP – Mulheres em Luta. O tema do debate foram as ações políticas que tentam criminalizar os movimentos contra a Copa no Brasil. Até o fechamento desta matéria, a 35 dias do evento, cerca de dezesseis projetos de lei, apelidados de Antiterrorismo, estavam tramitando no Senado. A discussão levantou a questão: será que o Estado brasileiro está se pautando em um estado de exceção para garantir a Copa? Costa acredita que existe uma relação entre o negócio que o evento representa e os in-
vestidores, que precisam de lugares onde o governo aceite tais investimentos externos a um custo baixíssimo. Isso explicaria o deslocamento das Copas para países com o perfil de democracias frágeis, como o Brasil. “Acho que temos, ainda, muitos entulhos da ditadura para varrer e a Copa do Mundo acentuou isso”, conclui o geógrafo Maurício Costa, que estava no evento. Jean Wyllys discorda. Para ele, não estamos diante de uma nova ditadura, mas a paixão do povo brasileiro pelo futebol continua sendo um elemento de manipulação do poder para manter as pessoas na apatia e ignorância. O deputado lembrou, ainda, que na Copa de 1974 o futebol representou uma grande cortina de fumaça para ofuscar a opressão da Ditadura Militar. Wyllys baseia-se em um trecho da canção “Vai passar”, hino das campanhas Diretas Já, de Chico Buarque, para reiterar sua posição: “Dormia nossa pátria mãe tão distraída, sem perceber que era subtraída em tenebrosas transações”. E, em seguida, conclui: “Eu não diria que ela dormia, necessariamente, mas que ela assistia a uma partida de futebol”.
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ROTINA
VERDE QUE te quero verde Da pele tatuada às dívidas contraídas, Vanessa Amaral mostra o que é ser fanática e dar o sangue pelo time REPORTAGEM Jéssica Cipriano e Gustavo Ribeiro (1º ano de Jornalismo), BRUNA HARA, Joana Borges, Mariana Nogueira (2º ano de Jornalismo) e Gabriela Rodriguez (3º ano de Jornalismo)
A pequena casa verde se destaca entre as demais. Atrás do portão, a bandeira italiana simboliza a paixão latente pelo Palestra Itália. Vanessa Amaral, de 33 anos, cresceu no município de Guarulhos com sua família. O amor palmeirense surgiu aos 11 anos – em 1992, durante a final de Campeonato entre Vasco e Palmeiras. Na época, o jogador Edmundo já era reconhecido, e ainda jogava no time vascaíno. “Eu não sei se eu seria essa fã que sou hoje se o Edmundo não tivesse ido pro Palmeiras.” Em 1993, o amor alviverde se consolidou. A marcante final do Campeonato Paulista traçou o modo como Vanessa vive hoje. Ao entrar em seu quarto, os diferentes tons de verde são tão notórios que os olhos se perdem no meio das informações. Vanessa preencheu cada espaço vazio cuidadosamente: “Aqui, ninguém entra. Nem minha
mãe para limpar”. O que mais chama atenção é o teto, no qual a frase “Edmundo amor eterno” é formada por CDs, todos pintados de verde e branco. Jornais colados na parede, protagonizados principalmente por Edmundo e Marcos, já estão amarelados, mas lembram Vanessa todos os dias de sua história com o time. Seu guarda-roupas é único. Sentada na cama e tomando um energético – de embalagem verde – ela convida: “Abre aí, que vocês vão ver”. De um lado, calças e bermudas, e do outro, apenas camisetas do Palmeiras. As roupas básicas da torcedora perdem espaço e relevância no meio da esmagadora maioria de peças alviverdes. Ela é fanática, mas do seu jeito. Usa, na maior parte das vezes, roupas e acessórios verdes, mas não se incomoda em vestir preto
e branco. As cores do rival, Corinthians, já foram até mesmo usadas em tom de provocação pela torcedora palmeirense. Após uma briga envolvendo as duas torcidas, narra, orgulhosa, o episódio em que foi ao estádio do oponente assistir a um jogo de futsal entre os “gambás” – maneira como refere-se aos corintianos – e seu time de coração. Vestida de preto da cabeça aos pés, a fanática palmeirense surpreendeu ao expor a camisa verde que escondia por baixo de todo o disfarce. Aumentando ainda mais a afronta ao timão, ela registrou o momento com uma câmera fotográfica. Após divulgar a imagem nas redes sociais, Vanessa garante, dando risada, que os corintianos querem matá-la até hoje. Enquanto conta as loucuras já feitas pelo time, não parece preocupar-se com a repercussão que suas atitudes possam causar. Ao
GABRIELA RODRIGUEZ
ser questionada se não tem medo de sofrer algum tipo de agressão por parte da torcida rival, não hesita em afirmar: “Se eu morrer em jogo do Palmeiras, pode ter certeza que eu morri feliz”. A segurança e a firmeza na voz não deixam dúvidas.
Amor e ódio Em seu quarto, a palmeirense se mostra bastante à vontade, apesar dos cliques das câmeras, dos gravadores e dos repórteres vasculhando o aposento coberto do chão ao teto com o que ela chama de souvenirs. Da escova de dentes que comprou na farmácia, à luva de Marcos, que ganhou de Rude, filho do preparador de goleiros Carlos Pracidelli,: tudo parece ter um significado para Vanessa. Seu vício por tudo aquilo que remete ao Palmeiras chega a ser cômico. Certa vez, em
uma das lojas oficiais da equipe, ela esbanjou: “Era para gastar 80 reais, eu gastei 370. Minha mãe quis me matar, porque o cartão é dela. Eu não tenho cartão. Devo minha vida para o Itaú e para o Santander. Meu nome está sujo pelo Palmeiras”. Shoppings, farmácias ou qualquer estabelecimento com produtos palmeirenses são alvos de Vanessa: “Passei na banca e comprei quatro revistas. Se tem chaveirinho, eu vou lá e compro. Eu compro tudo se tenho dinheiro”. Com o mesmo entusiasmo com que compartilha as histórias de cada objeto exposto em seu quarto, ela faz suas críticas ao seu time do coração. Diferentemente de sua paixão pelo time, sentimento perene e rotineiro, a torcedora diz ter perdido o fervor pelo futebol nos últimos tempos. O amor é grande, mas não cego. A diretoria atual,
assim como os jogadores, fazem do Palmeiras alvo de suas colocações: “Eu odeio a gestão atual, odeio ganância, odeio ego. E o que mais tem no clube é isso”. Seu repúdio pela especulação futebolística, presente no clube alviverde, reduziu drasticamente sua gana em estar de corpo e alma junto com o “Verdão”. Vanessa acredita que somente uma boa administração e bons jogadores podem despertar-lhe a fissura novamente: “Eu vou no jogo porque é Palmeiras, eu vou tá lá de qualquer jeito, mas aquele tesão de ir, de dormir na fila, eu não tenho não”.
Paixão que risca a pele Não é necessário conversar com Vanessa para descobrir que seu coração é verde e branco. A pele da perfilada carrega histórias e afetos, e explicita o amor pelo Palmeiras.
JOANA BORGES
Hoje, já são 21 tatuagens: doze para o jogador Marcos, sete para Edmundo e duas para o time. Tudo começou com uma promessa: no dia em que conhecesse o ídolo Edmundo, Vanessa faria, em homenagem a ele, sete tatuagens – 7 é o número da camisa do jogador. Dado o encontro, em junho do ano passado, Edmundo pediu que ela não cometesse a “loucura” de fazer as sete tatuagens até seu aniversário em 2014, no dia 2 de abril. A torcedora diz não se arrepender dos traços que carrega no corpo, e estima ter investido cinco mil reais nas homenagens que traz na pele. “A única coisa é que eu queria fazer mais uma do Marcos, mas pra eu fazer mais uma eu vou ter que cobrir outra, senão sai da superstição [12 é o número da camisa do jogador]. Só depois que eu fiz a última tattoo dele é que eu pensei que podia ter feito uma dele comigo, até porque a minha sétima tatuagem para o Edmundo vai ser o desenho de uma foto que eu tenho com ele.” O amor pelo time, transferido por tinta e agulha para seu corpo, já lhe causou o fim de um relacionamento. Vanessa conta que seu último namorado sentiu-se incomodado com as várias marcas do alviverde em seu corpo. “Logo que comecei a fazer as tatuagens do Marcos, eu estava na quinta, ele falou que não dava mais, que meu corpo já estava feio”, comenta. Seu ex-namorado pediu-lhe que escolhesse entre ele ou o Palmeiras, e ela não pensou duas vezes: “Eu falei ‘segue sua vida que eu sigo a minha’. Aí depois meu irmão veio tentar contornar a situação, mas acabou
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ali mesmo”. Ela diz que várias amigas já ouviram a mesma pergunta de diversos companheiros e, no fim, todas entregaram seus corações ao seu fanatismo.
Segunda casa Pacaembu, quatro da tarde, tons de verde por todos os lados e um sol escaldante que faria muita gente preferir ficar em casa. Mas não Vanessa, que minutos antes do início do jogo entre Palmeiras e Ponte Preta já demonstrava sua energia. Vestida como de costume, “de palmeirense”, intima aos repórteres: “Bora?”. É hora de entrar no universo do futebol e sentir a emoção que a envolve nas tardes de domingo. A fanática diz que não existe uma preparação paras os dias de jogo. Superstições e promessas não fazem parte dos costumes da torcedora. No entanto, ela relembra uma única ocasião em que fez de sua vestimenta medalha da sorte. “Na Copa do Brasil, em 2012, eu vi todos os jogos com a mesma roupa. Foi superstição, porque o time estava mal no Paulista, aí eu fui para um jogo na Copa do Brasil contra o Atlético, que todo mundo falou que a gente não ia passar, mas a gente passou”, conta. Há vinte anos frequentando o estádio, Vanessa dispensa formalidades e socializa com a massa verde e branca como em um encontro de amigos. Os colegas não paravam de chegar. Cercada de conhecidos, a fã do “Verdão” posicionou-se em frente ao alambrado e fixou seus olhos no gramado.
Nada mais existia naquele momento. Era Palmeiras e Palmeiras. Logo aos três minutos do primeiro tempo, o inesperado: gol do time adversário. Os palmeirenses não desanimaram. Com as mãos na grade, Vanessa solta a voz e une-se aos dez mil torcedores presentes, entoando: “São cem anos de história, de lutas e de glórias, te amo meu Verdão”. O coro alviverde transformava a partida em festa. Por sorte, ao fim do jogo, o placar marcava 3 a 2 para o Palmeiras. A cada gol, a energia de Vanessa atingia níveis espantosos. Pulava, abraçava os amigos, agradecia e gritava como em uma final de campeonato. Sob o ruído do apito final do juiz, comemorou junto com toda a arquibancada, fazendo jus à “torcida que canta e vibra” do hino palmeirense. Como num ritual de despedidas, a apaixonada pelo “alviverde imponente”, em clima de festa, segue em direção à saída do estádio com um novo destino já programado: “o bar Alviverde, na rua de minha segunda casa”.
amizades e oportunidades Esse amor fanático pelo Palmeiras já lhe rendeu um emprego novo, em uma franquia na rede de restaurantes Spoleto. O cheiro da comida italiana sendo preparada perfumava o ar do restaurante enquanto Vanessa relatava como conheceu o atual gerente: “Foi no Palmeiras, nos jogos de basquete, em Mogi. Pegamos amizade e começamos a ir aos jogos juntos. Ele me chamou pra trabalhar no meio de 2013 e eu vim”. Diego Izar, de 27 anos, tam-
GABRIELA RODRIGUEZ Mariana Nogueira GUSTAVO RIBEIRO
“Vanessas” da Torcida Quem são os torcedores que agitam as arquibancadas dos estádios durante os jogos? • Jair, de 60 anos e Daniel Zuculo, de 31, são pai e filho, ambos sonoplastas. Sobre a violência nos estádios, Jair lembra: “Já teve tempo em que não havia separação de torcida”. • Os jovens Flávio, Felipe, Jéssica e Talita são todos primos e palmeirenses. No meio da família Alencar está Larissa Velasques, 18 anos, que revela: “Na verdade, eu não torço para o “Verdão. Sou são paulina, mas vim por causa dele [Felipe]”. • Gracy de Sousa Barroso e Suenildo da Silva Xavier são casados e agentes de trânsito. Foram acompanhados de Maurício Moura, cunhado de Suenildo, e dos filhos, Yasmin e Felipe, 9 e 11 anos. Gracy revelou que era corintiana, mas que “quando você nasce todo mundo é católico ou corintiano, depois que você muda”.
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GUSTAVO RIBEIRO
bém é palmeirense roxo e entende seu fanatismo pelo time. “Para ser liberada para um jogo, eu falo com ele e vamos juntos”, revela, sorrindo. De fato os dois mantêm uma relação muito próxima. O fanatismo não atrapalha seu desempenho e seu esforço no trabalho. Diego costuma mudar as folgas para que Vanessa consiga ir às disputas e torcer. Normalmente, ela vai trabalhar no dia seguinte, muitas vezes sem dormir por causa de jogos em outras cidades ou comemorações durante a madrugada. Se com ele a relação é de amizade, com os outros chefes há certas provocações, como Vanessa conta, dando risada: “Um dos patrões é são-paulino, nesse último mês, no envelope do pagamento, desenhou um símbolo do São Paulo”. Além da boa relação com os superiores, ela fez amizade com Juliana Carneiro, de 22 anos, sua colega de trabalho. As duas se divertem, riem e mostram muita intimidade durante toda a entrevista. A amiga, corintiana, afirma que entre as duas não há rivalidade, e até brinca, dizendo que não tem como discutir sobre futebol: “Ela sabe tudo, eu vou perder. Então eu não discuto, senão ela me bate”. Sua paixão é clara, e quando Cartola canta, em “Verde Que Te Quero Rosa”, “é verde o mar que me banha a vida inteira”, Vanessa faz coro em seu mar de recortes de jornal, pele e alma alviverde. Se tivesse participado da composição da música de Cartola, o rosa da canção perderia espaço para mais verde.
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O
CULTURA
mostra tua
CARA Em tempos de Copa, como os estrangeiros nos enxergam e como queremos ser vistos REPORTAGEM allan correia, ana laura pacífico, jeniffer mendonça, laís vieira, paulo henrique sartori (1º ano de Jornalismo), amanda saviano, daniel lopes, juliana milan (2º ano de Jornalismo) e FERNANDA FANTINEL (3º ano de Jornalismo) ILUSTRAÇÃO THAÍS HELENA REIS (3º ano de Jornalismo)
Uma foto ocupa a página inteira. O pano de fundo é o mar e o céu azul. Sob os morros cariocas, belas morenas com corpos esculturais e biquínis minúsculos tomam sol em um canto, enquanto rapazes musculosos jogam futebol. Quando se fala de Brasil para um estrangeiro, talvez esta seja a primeira imagem que aparece em sua cabeça. Desde que foi anunciado como sede da Copa do Mundo de 2014, o país, mais do que nunca, tem sido alvo do restante do mundo, seja de forma preconceituosa, curiosa ou divertida. Afinal, o olhar estrangeiro voltado à nossa nação reforça os estereótipos brasileiros ou procura se aprofundar na diversidade de nossa essência e de nossa cultura? Da escolha do mascote da FIFA e dos cantores da música oficial da Copa até as estampas de gosto duvidoso da marca Adidas, nada conseguiu solucionar a dúvida em relação a quem somos e o que representamos.
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SOMOS TODOS UM? Os apresentadores Fernanda Lima e Rodrigo Hilbert repercutiram na opinião pública durante Sorteio dos Grupos da Copa do Mundo de 2014, em dezembro de 2013 e fizeram sucesso na imprensa internacional. No entanto, há uma polêmica envolvendo o casal. Os atores Lázaro Ramos e Camila Pitanga, negros, haviam sido cogitados pela FIFA para a apresentação. A mudança gerou acusações de racismo contra a instituição. “A escolha causou furor no movimento negro. Ao conversarmos com a assessoria da FIFA, eles alegaram que nunca foi feito um convite oficial ao Lázaro e à Camila. O que acontece em relação ao racismo no Brasil é complexo e o movimento negro aproveitou esse caso para mostrar que, sim, está havendo discriminação”, declara Fernanda Alcântara, editora chefe da revista Raça Brasil, veículo engajado com a luta contra o preconceito
racial. Mesmo que tudo não tenha passado de um boato, Alcântara questiona a decisão da FIFA: “Por que não um casal mesclado?”. Outra questão levantada pela editora é a escolha dos norte-americanos Pitbull e Jennifer Lopez, em parceria com a brasileira Cláudia Leitte, para interpretar “We Are One (Ole Ola)”, música-tema da Copa do Mundo: “A própria música da Copa tem um histórico. A Shakira, branca, loira, fez a música da África do Sul. Eles poderiam falar que, em termos de cultura black, teríamos a Jennifer Lopez, mas ela é latina, não negra”. O clipe da Copa, gravado na Flórida, nos Estados Unidos, mostra os intérpretes cantando ao lado de passistas e do Olodum. Intercalando imagens de momentos do evento e rodas de capoeira, a festa e o futebol são os protagonistas do vídeo. Apesar da controvérsia, vale lembrar que, em outras Copas do Mundo, a canção também não foi interpreta-
da por artistas locais. A americana Anastacia encarregou-se da música tema na Copa de 2002, na Ásia, assim como Ricky Martin foi a voz da Copa do Mundo da França, em 1998. O sociólogo Leonardo Gomes Melo e Silva, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), aprofunda a discussão e alega que “não há interesse nos melhores cantores ou compositores nacionais, mas naqueles que estão dentro desse mercado. A música é escolhida em função do lado financeiro da Copa do Mundo, aliada ao aspecto comercial da própria cultura”.
IDENTIDADE NACIONAL Em tempos de Copa, os velhos clichês sobre o comportamento dos brasileiros foram reforçados. A Adidas, uma das patrocinadoras oficiais do evento, lançou, em homenagem ao país, uma linha de camisetas cuja estampa era um coração que remetia a duas nádegas com um fio dental. Criticada pelo teor sexual das peças, a marca tirou o produto do mercado. A própria FIFA também contribuiu para a propagação de estereótipos sobre o país: em março, a revista semanal Fifa Weekly publicou dez dicas para os estrangeiros que fossem visitar o país durante a Copa. Entre as recomendações da instituição estava a paciência que os turistas deveriam ter, já que, segundo o artigo, os brasileiros deixam
tudo para a última hora, abusam do contato corporal ao conversar e não respeitam filas. A publicação foi duramente condenada em um artigo de Juan Arias, correspondente do espanhol El País no Brasil, e a própria FIFA divulgou um pedido de desculpas, afirmando que não desejava ofender o país e que queria apenas demonstrar a descontração de seu povo. Nós ainda duvidamos se nos vemos mesmos refletidos na imagem que é vendida lá fora. “Críticos da globalização dizem que existe uma identidade nacional que está sendo corroída. Ela recupera uma onda de patriotismo, resgata uma memória coletiva”, pondera Leonardo. A visão do Brasil no exterior tende a ser pouco representativa, pois acaba se apoiando em estereótipos e preconceitos, ou então fugindo da realidade. A tentativa de produzir um evento a nível mundial como a Copa pode resultar em um reflexo generalizado do país, ao invés de focar em suas particularidades, como forma de agradar um público que inclui pessoas dos mais diversos países. No fim das contas, o Brasil de verdade ainda está para aparecer. É nisso que acredita Fernanda Alcântara: “É impossível controlar certas coisas. Quando mostrarem a cara da torcida, não a de dentro do estádio, que é branca, mas a de fora, vão mostrar a nossa cara, a de vários afrodescendentes”.
Pelo seu formato, o tatu-bola, que é um animal em extinção no Brasil, foi escolhido dentre 47 propostas de animais de seis agências brasileiras para ser o símbolo da Copa do Mundo de 2014. O mascote Fuleco foi desenvolvido por um grupo de mais de vinte pessoas. Suas cores, amarelo, azul, verde e branco, representam a bandeira do Brasil e a carapaça azul é uma homenagem ao céu e às águas brasileiras. O nome foi escolhido após 1,7 milhão de votos, segundo a FIFA, e é uma junção das palavras futebol e ecologia. Já o verbo“fulecar”, segundo o dicionário Michaelis, significa perder todo o dinheiro que se leva a um jogo.
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ENTREVISTA
chutes
Convictos O jornalista Juca Kfouri conversou com o Esquinas sobre Copa do Mundo, eleições e a relação entre política e futebol REPORTAGEM camila del manto, hares datti pascoal, jun hyug jung, lucas sarti, lucas strabko, marcelo baseggio, stefany oliveira, thais costa, THIAGO DUTRA (1o ano de Jornalismo), ISABELA YU, BEATRIZ FALCÃO (2o ano de Jornalismo) e DANIEL ZALAF (3º ano de Jornalismo) IMAGENS hares datti pascoal (1o ano de Jornalismo)
Assim que Juca Kfouri abre suas cortinas, o espetáculo começa. Da porta de sua varanda, o jornalista focaliza as arquibancadas do estádio do Pacaembu, nas quais já esteve presente inúmeras vezes, e onde ficam guardadas algumas de suas lembranças mais palpáveis sobre futebol. O grito do torcedor repercute em suas abarrotadas prateleiras, os pequenos apetrechos da Seleção e de seu time do coração, o Corinthians, cobrem as paredes brancas do escritório. Nascido em pleno ano da tragédia da Copa do Mundo de 1950, Juca foi diretor de redação das revistas Playboy e Placar, além de comentarista da Record e da Globo. Hoje em dia, é apresentador da ESPN, mantém um blog no portal UOL Esporte, é colunista da Folha de S.Paulo e também comentarista na rádio CBN. Com 64 anos, é saudosista ao lembrar da Copa de 1982, aquela que ele mesmo diz estar eternizada em sua memória. O futebol se espalha pela casa do jornalista, em meio a centenas de livros, objetos e registros históricos. Juca se orgulha ao mostrar os seus preferidos: uma foto tirada por seu filho em um jogo do Corinthians, no estádio do Morumbi; um quadro pintado pelo campeão do mundo, Paulo André, em 2012; e o gigantesco livro Nação Corinthians, de Pedro Sirotsky e Ricardo Bornhausen, que, em seus aproximados trinta quilos, conta detalhadamente os mais de 100 anos de história do “Timão”. Enquanto gesticula com as mãos, Juca se empolga e mostra ser um crítico ferrenho da maneira pela qual o Mundial foi preparado pelo país. Dos governantes que ele chama de “curvados” à FIFA aos elefantes brancos que foram construídos, o jornalista explica porque futebol e política têm que ser desconectados em alguns momentos.
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O que é o futebol para você? O que representa? É dessas coisas difíceis de definir. Não lembro de mim sem que o futebol fizesse parte da minha vida. A primeira lembrança que eu tenho é de fevereiro de 1955, quando o Corinthians ganhou o Campeonato Paulista, conhecido como o do quarto centenário: eu estava prestes a fazer 5 anos e me recordo de ter visto o jogo na casa de um tio, o único que tinha televisão. Depois, fui com minha família para o Parque do Ibirapuera comemorar. Hoje em dia, uso o futebol como referência da minha vida. Como você vê o cenário do futebol brasileiro atualmente? É a última instituição que vai mudar no Brasil. É uma superestrutura mais do que conservadora, é absolutamente reacionária. É avessa a qualquer tipo de mudança, profundamente corrompida e corruptora. Veja como o Brasil está reagindo ao Bom-Senso Futebol Clube. Qual é sua opinião sobre o Bom-Senso F.C.? O Bom-Senso F.C. foi a coisa mais séria que aconteceu no futebol brasileiro desde a Democracia Corinthiana. É mais profundo que a Democracia porque é uma coisa que não se limita a um clube. Não é apenas uma circunstância como foi nos anos 1980, uma coincidência de se juntarem ali quatro cabeças diferentes. Eu acho que o Bom-Senso F.C. fará o futebol brasileiro progredir, mas terá uma batalha longuíssima pela frente. A saída do Paulo André [ex-jogador do Corinthians] enfraquece o movimento pelo que ele tinha de simbólico: não era “o” líder, mas um porta-voz muito corajoso, que peitou o Marin [presidente da CBF]. Eu acredito que o Paulo,
Juca em sua casa: franqueza na fala e paredes lotadas por futebol
mesmo que ele não concorde, desempenhou politicamente um papel mais importante que o meu querido Magro, Dr. Sócrates. Mas você não acha que o Sócrates, em 1982, no auge das Diretas Já e da Democracia Corinthiana, foi mais importante e abrangente? É claro que o Bom-Senso F.C. ainda precisa comer muito arroz com feijão para chegar aos pés da Democracia. Qualquer um precisa crescer muito para chegar ao Sócrates. Mas o que eu quero dizer é que vejo muito mais chance do Bom-Senso dar certo do que a Democracia. O que aconteceu depois que o Sócrates foi para Firenze? Não ficou nada. Nada indica que, com a ida do Paulo para a China, o Bom-Senso vá desaparecer. Sobre a Copa do Mundo, você acredita que haverá uma segregação dentro dos estádios? Cada vez mais, infelizmente, o mundo do esporte é elitizado. Se você for ao Madison Square Garden, em Nova Iorque, você não vai ver ninguém do Bronx, você só vê “nego” (sic) de Manhattan. O presidente do Banco Central, Edmar Bacha, criou o termo “Belíndia” para descrever nosso país. Ele construiu a imagem do Brasil tendo
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uma porção belga e outra indiana. A Copa é para a parte belga, requintada e consumidora. A porção indiana não vai estar dentro dos estádios. O mais assustador aconteceu na Copa das Confederações, em Salvador, na qual o público do estádio era quase inteiramente branco, na cidade onde há o maior número de negros do país. Este é seu maior temor para a Copa de 2014? Não. Meu medo era dar merda na rua. Espero que as forças de segurança sejam capazes de prevenir, de não ir para guerra contra o povo. Se isso acontecer, pode dar errado. Acho que as manifestações foram o combustível da Seleção Brasileira na Copa das Confederações, no ano passado. Quem estava no estádio não eram os alienados, que não estavam nem aí para as manifestações. Não, quem estava lá eram os brasileiros que tinham poder aquisitivo, mas que, de alguma maneira, ao cantar o hino daquele jeito, vocalizavam o que estava acontecendo nas ruas. Era, para mim, muito mais uma atitude solidária com quem estava protestando do que outra coisa. Acho que isso pegou a Seleção. Basta você ver as entrevistas coletivas antes ou depois dos jogos comentando isso, principalmente o que o David Luiz [jogador da Seleção] falou a respeito das ruas. De alguma maneira, isso vai se repetir.
zadas passaram a se tratar como inimigas, e não como adversárias. Do mesmo jeito que o PT quer acabar com o PSDB e vice-versa, o corintiano e o palmeirense querem se matar. Porém, isso é uma burrice extrema, porque quando um acabar, o outro não será tão grande quanto é.
“
Não acho que o povo brasileiro seja tão burro a ponto de confundir uma vitória esportiva com a política nacional” Juca Kfouri, jornalista
Se o Brasil perder, o resultado das eleições pode mudar? Pode mudar ganhando ou perdendo, não há uma relação. Não acho que o povo brasileiro seja tão burro a ponto de confundir uma vitória esportiva com a política nacional. Claro que pode mudar o humor, e isto pode influenciar as eleições, mas não de forma decisiva. Quem ganhou a Copa de 1970 não foi a ditadura Médici, foram Tostão, Pelé, Rivelino, Gerson e o Jairzinho. O Médici não entrou para a história como o presidente do radinho de pilha que ganhou, mas é associado ao terror, à tortura. Mussolini ganhou duas Copas, e morreu empalado pelo povo italiano. JK foi campeão mundial em 1958, e morreu cassado. João Goulart era o presidente em 1962, e também morreu cassado. Não acho que tenha essa relação direta entre urna e campo de futebol. Há, então, alguma relação entre política e futebol? Nós estamos vivendo, já há alguns anos, uma “flaflulização” da política. Curiosamente, entre PT e PSDB, que não são tão diferentes assim, acabou nascendo uma rixa estilo Flamengo e Fluminense, e isso se transporta para outras esferas, como, por exemplo, as torcidas. Não há espaço para debate, mas para xingamentos e brigas. Com a impunidade em relação à violência, as organi-
Qual é a sua opinião sobre o real legado da Copa? Eu gostaria que ele fosse além da festa, mas, infelizmente, não será mais do que isso. Nós estamos construindo cinco elefantes brancos: em Manaus, Natal, Brasília, Cuiabá e Recife. Não era necessário fazer tantos estádios, foi megalomania nossa, e não uma exigência da FIFA. Oito sedes são o suficiente para uma Copa do Mundo. Aldo Rebelo [político do Partido Comunista do Brasil] diz que, sem estes estádios, não seria a Copa do Brasil, mas a Copa do Sudeste. Isso é uma bobagem. A Copa acontece onde tem futebol. O argumento dele retoma a ideia da ditadura, de integrar o país pelo futebol. Isso não é possível, a modalidade não é nem o começo da integração. Outro argumento é o fato de os estádios serem “multiuso”, porque poderiam ser usados também para shows. Vai ser como na África do Sul depois da Copa de 2010, ou como em Portugal depois do Campeonato Europeu de Futebol, em 2004, veja pelo estádio de Leiria. Todos eles estão abandonados, e as prefeituras cogitam implodi-los porque a manutenção é caríssima. Como você enxerga a construção da Arena Corinthians em uma cidade como São Paulo? Não faz nenhum sentido, tendo o Morumbi, você fazer o Itaquerão. O estádio do São Paulo está ao lado do hospital de excelência Albert Einstein e próximo ao projeto do monotrilho, que vai do Aeroporto de Congonhas até lá. Por que fazer um estádio novo em São Paulo sendo que temos, além do Morumbi, o Palestra Itália, que está sendo reformado, e o Pacaembu? Você vai me perguntar: “o Morumbi é o ideal para uma Copa?” Não, não é o ideal, mas o ideal é o estrangeiro quem faz. Para nós o ideal tem que ser a rede hospitalar, as escolas e o transporte público. Não é à toa que o padrão FIFA emergiu nas manifestações. Se nós somos capazes de fazer essas arenas tão magníficas, por que nossos hospitais são o que são? Você poderia perfeitamente “dar um tapa no Morumbi e fazer os jogos de São Paulo lá. Imagine como nós estaríamos recebendo a Copa do Mundo se o Aeroporto de Cumbica estivesse um brinco, se o Galeão estivesse outro brinco e as vias de acesso, todas reestruturadas. Mas nós não estamos vendo nada disso. Você torcerá para o Brasil em 2014? Sem dúvida! Não acredito que “quanto pior, melhor”. Nunca torci contra o Brasil. Em 1970, eu era aluno de Ciências Sociais da USP, mas não achava que cada gol atrasava a revolução brasileira. Na minha classe, me viam com desconfiança, e olha que eu era de grupo clandestino – claro que nenhum deles sabia disso (risos). No ano seguinte, houve uma decisão no Panamericano de Porto Rico, se não me engano, Brasil e Cuba no basquete masculino. Quando eu disse que ia torcer para o Brasil, meus colegas queriam me matar. Imagina, torcer contra o comandante Fidel Castro? Mas eu pensava: uma coisa é política, outra é esporte. Jogava basquete, então por que eu torceria para os cubanos? Eu não podia permitir que uma ditadura me roubasse o que eu tinha de mais íntimo, como me emocionar quando eu ouço o nosso hino. Afinal, era o hino do Brasil ou da ditadura? Para mim, isso era, e continua, sendo essencial.
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JORNALISMO
mídia de
campo Os jornalistas brasileiros se aquecem para a Copa do Mundo e contam os dribles necessários para fazer a cobertura em casa REPORTAGEM Andressa Oliveira, Georgea Andrade, Guilherme Venaglia, Marina Balbino (1° ano de Jornalismo) e Caio Sini (2° ano de Jornalismo)
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A Copa do Mundo é considerada um dos maiores eventos esportivos da atualidade e atrai milhões de torcedores ao redor do globo – além da imprensa internacional. Televisão, websites, rádios, jornais e revistas: todos os olhares estarão voltados para a competição e para o que está sendo falado dela. Sergio Xavier, editor da revista esportiva Placar, lembra: “Antes de 1990, você chegava no treino, conversava com um, conversa com outro, era bem mais aberto. Depois, já começou a ficar organizado demais. A cobertura se transformou, deixou de ser uma coisa caseira para se transformar em algo industrial”. A 35 dias da Copa, o clima nas redações estava fervendo. Entretanto, a preparação começa, efetivamente, cerca de dois anos antes da abertura do evento, com a procura dos melhores preços de hospedagem para os profissionais e de equipamentos como cabos de transmissão e satélites. Além disso, é necessário antecipar os programas e edições especiais, seus assuntos e a escalação dos repórteres, produtores e cinegrafistas que trabalharão no Mundial. Luciano Silva, chefe de reportagem da ESPN e responsável pela organização da cobertura da Copa, recorda: “Começamos com um grupo de trabalho que se reúne semanalmente desde 2012. Do financeiro ao marketing, passando
Ari Ferreira ANDRESSA OLIVEIRA
pelo figurino, cada um cuida da sua área. Isso é indispensável”. Como o orçamento é limitado, o planejamento é essencial. As emissoras precisam adquirir os direitos de transmissão da Copa e os serviços oferecidos pela FIFA, como a utilização de satélites, locação de uma unidade móvel ou passagem de cabos, que, segundo Luciano, podem ser obtidos em pacotes.
Treino de repórteres Detalhes fazem toda a diferença, um deslize pode impactar a cobertura do evento. “Nas narrações da TV aberta, às vezes os locutores falam o nome de um atleta estrangeiro e parece que é outro. Queremos evitar esse tipo de erro técnico”, explica Luciano. Por isso, a escolha dos profissionais que trabalharão no evento deve ser minuciosa, como define Sergio: “É feito um balanço de competência, atividade, senioridade, e assim são escolhidos os melhores”. A nata dos repórteres, assim como os jogadores, também tem de passar por treinamentos, tanto profissionais quanto de convivência – afinal, eles estarão juntos durante todo o período da Copa, seja em hotéis, nos estádios ou nas redações. Sergio comenta que, para evitar divergências e fixar muito bem a forma de transmitir os jogos ao público, são necessárias palestras, seminários e longas conversas, e todas essas atividades são realizadas na sede da revista. Luciano Silva problematiza, ainda, o âmbito pessoal e familiar: “Se você estiver no meio esportivo durante a Copa do Mundo esquece família, namorada e vida. O foco é no evento”. Para os repórteres fotográficos, foco é o que não falta. Ari Ferreira, fotojornalista do Lance! que cobriu a última Copa, destaca: “O equipamento é o mais importante e tem de estar sempre preparado”. Para conseguir capturar instantes quase invisíveis a olho nu, é necessário o uso de câmeras profissionais de alta qualidade, com lentes gigantes, de 50 a 400 milímetros, e que têm um tempo de disparo superior a 10 fotos por segundo.
Trabalhando em casa “Pensei que cobrir no Brasil seria fácil, mas é mais complicado do que fazer lá fora”, confessa Luciano. As manifestações contrárias ao evento, e as expectativas em relação à Seleção são alguns dos fatores que alteram a maneira de trabalhar na Copa. A elevação dos preços também é um problema, já que, segundo Sergio, algumas cidades tiveram aumento de aproximadamente 200% no custo dos hotéis. “O esporte não é alienado do mundo: o que acontece no futebol influencia as pessoas e vice e versa”, pondera Luciano. Outro problema de trabalhar em casa é a quebra da concentração do jornalista, como lembra o chefe de reportagem: “Quando você faz um evento como a Copa, você
Há dois anos, a redação da ESPN vem se preparando para fazer a cobertura do Mundial viaja e fica o dia inteiro totalmente voltado para o seu trabalho”. O êxito da cobertura está também ligado ao sucesso da Seleção. Segundo Xavier, a performance da Seleção Canarinho pode distrair não só o público, como também o repórter: “O Brasil estando bem, é uma cobertura alegre; ele estando mal, o nosso trabalho será mais crítico”. Ele ainda deixa claro que existe uma boa chance do evento naufragar caso eles percam e a que a imprensa não está preparada para isso. Apesar de o foco principal ser a equipe brasileira, os veículos de comunicação não podem deixar de cobrir as outras federações. Xavier deixa claro que, nas Copas anteriores, fora do Brasil, todos os olhares da imprensa nacional sempre se voltavam para a nossa Seleção, mas que isto vai mudar em 2014:
“Na revista, dávamos cerca de dezesseis páginas de Brasil e duas páginas para os outros países. Essa vai ser mais dividida, até pela facilidade”. Segundo o editor, praticamente metade dos times estará em um raio de 200 quilômetros de São Paulo. Para a ESPN, a concentração de seleções favorece muito a cobertura: “Nosso público está acostumado a ver futebol internacional”, reitera Luciano. Assim como um jogo de futebol, a cobertura da Copa é uma obra detalhada, tensa e, principalmente, feita em equipe. Em uma mesma transmissão, diferentes profissionais participam e, do cinegrafista ao repórter, todos têm funções importantes. “Você não pode fazer o trabalho sozinho. Se o áudio falha, é a sua matéria que falha. É um trabalho coletivo”, conclui Luciano.
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juiz... Árbitro, policial e ex-goleiro, Ilbert Estevam revela o homem por trás da figura mais insultada do futebol REPORTAGEM Ana Carolina Siedschlag, Beatriz Santoro, Ana Isabella Cascione, Júlia Miozzo, Paulo Nunes, Vitor Brown (1º ano de Jornalismo), André Dominguez (2º ano de Jornalismo) e Yan Resende (3º ano de Jornalismo) IMAGEM ANA CAROLINA SIEDSCHLAG (1º ano de Jornalismo) ILUSTRAÇÃO HELOÍSA D’ANGELO (2o ano de Jornalismo)
Vinte e cinco minutos do primeiro tempo. Palmeiras e Piauí fazem uma partida equilibrada pela Copa São Paulo de Futebol Júnior. Após um toque de mão na bola dentro da área piauiense, o árbitro mostra convicção e aponta a marca do pênalti. Vacila, escorrega, cai e torce o tornozelo. A dor é suportável até o fim do primeiro tempo, mas, depois do intervalo, a lesão torna-se lancinante até mesmo para o corpo preparado do juiz para acompanhar os jogadores. Depois de ser avaliado pelo médico do Palmeiras, decide seguir apitando a partida. O quarto árbitro, Matheus Marques, se aquece e fica na reserva. Mesmo mancando, Ilbert Estevam, o juiz em questão, da primeira categoria da Federação Paulista de Futebol (FPF), continuou apitando e ficou conhecido como o “juiz guerreiro”, tanto pelos torcedores quanto pela mídia. “Depois do jogo, o pessoal me reconheceu na rua. Nunca tinha sido aplaudido antes”, lembra. O apelido não poderia ser mais apropriado: Ilbert também é policial militar, e aprendeu com as obrigações da profissão a cultivar determinação e disciplina, além de seu condicionamento físico.
Do gol aos cartões A relação de Ilbert com o futebol começou de forma diferente: o árbitro era goleiro, e chegou até a se aventurar em no time Deportivo de Coca-Cola, de El Salvador, aos 22 anos. Após duas lesões, mais sérias do que as que viria a sofrer, no jogo entre Palmeiras e Piauí, o “guerreiro” desistiu da luta. Acostumado com a cobrança do pai, “Seu” Ivanildo, Ilbert aprendeu, desde cedo, a exigir sempre o melhor de si mesmo. Fracassar não era opção. “É uma característica dele. Ele sempre teve muita garra de ir atrás, de buscar, de conquistar”, reitera sua mãe, Maria Risonete. O ex-goleiro, tentando aproveitar seus anos de treino e dedicação, formou-se em Educação Física. Estava nos seus planos ser treinador de goleiro: “Era minha primeira opção, além de ser preparador físico”. A paixão por estar dentro dos campos fez com que procurasse o curso de arbitragem. Profundo conhecedor do esporte, ele enxerga nisso um diferencial, já que é capaz de distinguir se um jogador sofreu uma lesão grave durante um jogo ou apenas caiu. Enquanto torcedor, ele presta atenção a
detalhes que a maioria das pessoas ignora, como a movimentação do juiz e sua postura. Assim como a arbitragem, seu ofício na Polícia Militar apareceu por acaso em seu destino. Quando estudava Educação Física, seu irmão o incentivou a prestar o concurso da PM. No final, o irmão não conseguiu a vaga, mas Ilbert sim. Sua função inicial era ficar na rua, porém, isso prejudicava sua escalação nos jogos. Foi transferido para a área administrativa, onde realiza o cadastramento de autuações na Zona Sul, na 3ª Companhia de Policiamento de Trânsito, localizada no bairro do Ipiranga. Em dias de jogo, Ilbert procura pedir licença de seu cargo como policial. Muitas vezes, após trabalharem em meio expediente, alguns árbitros precisam fazer grandes viagens até a cidade onde acontecerá o jogo. O cansaço gerado por essa rotina, assim como possíveis problemas pessoais e familiares, pode aumentar a probabilidade de erro durante uma partida.
Apitando a vida Não foi fácil para Ilbert chegar à primeira cate-
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“Marcar um pênalti contra um time aos 48 minutos do segundo tempo ou dar um gol polêmico desfavorável, com milhões de torcedores assistindo, é um ato de bravura” Ilbert Estevam, árbitro
O policial sempre procura estar atento para não cometer nenhum erro em uma partida goria da FPF. A entidade, responsável pelo futebol no estado de São Paulo, aplica a cada seis meses uma avaliação rigorosa, composta não só de testes físicos, como também teóricos. Tudo isso para diminuir as chances de erro e manter um alto padrão dentro de campo. Para Ilbert, a rigidez tem motivo: em dez minutos de arbitragem, segundo ele, podem ocorrer tantos lances polêmicos quanto em 100 jogos. “Temos que estar bem preparados. Se não estudar, não passa”, reflete. Dedicado, sonha em apitar um grande clássico, como Corinthians e Santos, e afirma que não basta apenas ter conhecimento técnico: “Leio tudo sobre as equipes, além de analisar a súmula do jogo anterior. Ligo também para os árbitros e pergunto se nesse jogo houve algum problema”. Para ele, cada
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partida é uma aula na qual aprende com os jogadores a ser cada vez mais crítico, e com os torcedores a ser cada vez mais paciente. Apesar da preparação e de todo o esforço para ser exato, errar é humano – até mesmo para um árbitro. Nas oitavas-de-final da Copa São Paulo de Futebol Júnior, em 2011, Ilbert comprovou o ditado: durante a partida entre o América-MG e o Fluminense, em que os mineiros venciam por 2 a 0, o “juiz guerreiro” marcou um pênalti a favor do Flu. Mais tarde, revendo o lance, admitiu que não houve infração. Para sua sorte e alívio, o jogador errou a cobrança e o América venceu o jogo por 2 a 1. Segundo o “carequinha”, como é conhecido, o torcedor e alguns comentaristas não levam em consideração a humanidade de um
árbitro, sujeito a erros e imperfeições, assim como qualquer outro profissional. Para ele, a mídia esportiva tende a aumentar a dimensão de uma falha: “O árbitro não marca um impedimento de três centímetros. Por exemplo, se tinha um jogador na sua frente, como ele iria ver? Só que eles [a mídia] fazem daqueles três centímetros três metros”. Ilbert se cobra muito e é a favor do uso da tecnologia no futebol, mas, para ele, as falhas são inevitáveis: “Vejo o erro de um como o de todos”. Na sua visão, não é possível parar o jogo para tomar decisões; o árbitro deve sempre legitimar o resultado da partida, não importando a pressão da torcida e tampouco dos técnicos. Se Ilbert é simpático e alegre com sua família e seus amigos, dentro do campo, ele muda completamente: é enérgico com os jogadores e rigoroso consigo e com seus auxiliares. A coragem, que parece transbordar do corpo bem preparado de Ilbert, é outro pré-requisito quando está em campo: “Marcar um pênalti contra um time aos 48 minutos do segundo tempo ou dar um gol polêmico desfavorável, com milhões de torcedores assistindo, é um ato de bravura”.
Família em jogo Passar tranquilidade e confiança para Ilbert depois dos jogos sempre foi uma ação rotineira para Andréa, sua esposa. A professora, precisa ser bastante compreensiva, mesmo com os desencontros semanais e as ausências em almoços de família aos domingos. Apesar disso, ela não escondeu seu nervosismo ao ver seu marido lesionado durante
Ilbert recebe o apoio de sua esposa e de seus pais sempre que apita um jogo
• A duração média do curso é de 11 meses
• No dia a dia, o profissional deve chegar com antecedência aos jogos para vistoriar o campo e preencher relatórios. Após a partida, ele também é responsável por entregar a súmula
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• Nas aulas, são abordados temas como: regras do jogo, idiomas estrangeiros, noções de preparação física, psicologia do esporte e redação de súmulas - documento que resume o jogo
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a fatídica partida: assistiu ao resto do jogo de joelhos na arquibancada. Quem olha para as mãos de Ilbert durante uma partida, quando ele ergue um cartão, percebe que não há aliança: “Não podemos usar durante o jogo, mas sempre a guardo comigo para não perder”. A união do casal, porém, é clara. Sua esposa, sempre sorridente, o abraça durante a entrevista. Os compromissos com o futebol ganham tom de humor quando o casal projeta a chegada do primeiro filho: “Eu só quero ver no dia em que eu for para o hospital e você falar para mim que não vai poder ir porque vai apitar um jogo”, brinca Andréa, bem-humorada, apesar da ansiedade que a profissão do marido a faz passar. A compreensão se reflete no restante da família. A Mãe, Maria Risonete diz achar graça no tratamento que os árbitros recebem de torcedores exaltados. Em certa ocasião, quando acompanhava o trabalho de seu filho no estádio, chegou a se apresentar a um homem que a insultava indiretamente ao tentar atacar o árbitro. Espirituoso, Ilbert não se deixa ofender: “Eu tenho duas mães: a que eu levo para o estádio, e é xingada, e a que fica em casa”. Tidos por grande parte dos torcedores como os vilões do futebol, os árbitros levam uma vida difícil, realizando esforços físicos e intelectuais que não são reconhecidos, seja pela torcida ou pela mídia. Mas, para Ilbert, surpreendentemente, isto não é um problema. “Árbitro bom é aquele de quem você não se lembra depois que o jogo acaba”, resume.
• O mercado atual reflete que a procura pelos cursos tem sido grande, principalmente entre as mulheres. Há bastante oportunidade na área • Em São Paulo, o salário inicial é de R$150 por jogo na categoria de base • Um árbitro de nível internacional chega a ganhar cerca de R$2.500 por partida • As instituições que oferecem o curso são a Escola de Arbitragem, a Federação Paulista de Futebol, a Confederação Brasileira de Futebol, e a Brava Cursos à distância
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FOTORREPORTAGEM
PLURAL DO
JOGO Da periferia até o Alto de Pinheiros, do campo de terra à quadra coberta, o futebol é o hobbie dos mais velhos e sonho de futuro das crianças REPORTAGEM GIULIA GAMBA, JÚLIA STORCH, NATHALIE BERNASCONI (1° ano de Jornalismo), iSABELLA FARIA e karolina bergamo (2° ano de Jornalismo)
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Karolina Bergamo usou uma NIKON D90 - f/5,6 - 135mm - ISO 320 - 1/500s. A disputa pelo sucesso no Novo Glicério ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2014
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nathalie bernasconi usou uma NIKON D3100 - f/9 - 32mm - ISO 200 - 1/400s. Os jogos de rotina na Zona Leste da cidade
GIULIA GAMBA usou uma CANON T3i - f/11- 50mm - ISO 1600 - 1/1000s. O centro técnico do São Paulo forma bons atletas 38
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Isabella Faria usou uma SONY DSLR-A390 - f/5,6 - 50mm - ISO 800 - 1/2000s. O futebol vivido na pele dispensa chuteiras ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2014
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Espremido entre a calçada e a avenida, escancarado em quadras de luxo, preservado nos sonhos de crianças ou escondido entre os barracos da favela: o futebol está em cada esquina de São Paulo. Passando de esporte a identidade nacional, é parte importante do cotidiano dos cerca de 20 milhões de habitantes que compõem a cidade mais populosa do país. Aqui, as formas de jogar são plurais como seus moradores. Seja jovem, idoso, rico ou pobre, cada chute é único. O esporte é seu e une diversos tipos de realidades, costurando as diferenças em uma enorme rede, tão heterogênea e multicolorida quanto o Brasil. As lentes focam na Comunidade de Heliópolis, na Zona Sul de São Paulo. Três garotos jogam futebol ao lado de uma das avenidas mais movimentadas da região. Não se sabe o que é mais rápido, os dribles dos pequenos jogadores ou os carros que passam ao lado deles. Percebendo que estava sendo fotografado, um clama: “Um dia eu fico famoso!”. Ao adentrar um pouco mais na comunidade, descobre-se duas quadras, antigas e malcuidadas, mas recheadas de sonhos. Ao ser indagado sobre o porquê de gostar tanto do esporte, João Victor Oliveira, 10 anos, responde: “Porque é meu futuro”. Ele veste a camisa 10, que imita o uniforme da seleção brasileira, e seus pés se entrelaçam enquanto joga, criando uma bonita confusão que contrasta com seu sorriso claro e límpido. Cauã Santos, de 10 anos, é mais tímido, mas não deixa de pensar grande. Também quer jogar profissionalmente. Com os olhos fixos no céu, sonha: “Quero estar ao lado do Messi”. Em contraponto à situação dos pequenos grandes sonhadores, o Centro de Formação de Atletas Presidente Laudo Natel, localizado em Cotia, na região Oeste, tem uma estrutura reconhecida internacionalmente. Todos uniformizados, os garotos treinam na academia, na piscina e são acompanhados por médicos especializados: o campo recebe o rigor daqueles aspirantes a jogadores. Marcello Lima, coordenador do Centro, ressalta a importância da modalidade: “Quando eu comecei a trabalhar, meu principal objetivo era criar um esporte organizado, coisa que o futebol brasileiro não é”. De Heliópolis a Cotia, a ilusão de um futuro promissor que só o esporte pode proporcionar é o mesmo.
Em campo Moradora há mais de 30 anos da região do Glicério, no Centro de São Paulo, “Tia” Eva, como é conhecida, fundou o projeto Comu-
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nidade Novo Glicério: “Percebi que algumas crianças eram talentosas e que isso realmente as mudava. Procurei um lugar onde elas pudessem treinar”. O antigo campo provisório na Aclimação virou um espaço mantido pela prefeitura. Localizado na Sé, o projeto atende mais de 200 crianças de 10 a 16 anos. Uma delas é Jeferson Pereira, 9 anos. Sentado ao lado da portinha da cozinha, o garoto esperava ansiosamente o lanche que seria servido em alguns minutos. Com um brilho no olhar, afirma que, sem o futebol, sua vida fica “chata”. É visível a felicidade dos meninos, que correm atrás da bola sem hesitação. É como se o campo de terra batida exercesse certo magnetismo nos pequenos; como se não existisse mais nada ao seu redor. Nada os distrai do objetivo de chegar à grande área pintada no chão, sacudir a rede e comemorar o gol. Nada, a não ser a hora do lanche que Jeferson tanto aguarda. Da terra batida à grama verde, o Parque Povo Mário Pimenta Camargo, mais conhecido como o Parque do Povo, em Pinheiros, é palco do futebol por puro e simples lazer. A idade se perde, e os homens de 40 anos se unem aos de 16. Todos os dias, enquanto o sol vai se pondo, a bola passa de chuteira a chuteira. “Para mim, o futebol é um modo de relaxar depois do trabalho. Aqui todo mundo está feliz, é uma maneira de dar risada”, conta Mario Peixoto, de 31 anos. Já no Clube Escola Vila, o futebol é para quem tem muita experiência na vida e nos campos. Todos os jogadores têm mais de 60 anos, mas nenhum deles perdeu a vitalidade que as partidas requerem. No Clube, um grupo de cerca de 20 senhores se reúne duas vezes na semana para jogar na quadra já judiada pelas marcas das chuteiras. O simpático Mariano Nistico, de 83 anos, se gaba justamente por ser o mais velho da turma: “Nos reunimos há mais de 10 anos. Antes, jogávamos no campinho, mas agora estamos nas quadras”. Com muita disposição, os times ficam mais de uma hora correndo sem parar, mostrando que a idade é, assim como o placar, apenas um número. As vozes do futebol paulistano conversam entre si, o mesmo sonho passa pela mente de jovens e crianças para depois virar hobbie para os mais velhos. Enquanto carros circulam, enquanto o treinador apita ou enquanto a merenda aguarda, a emoção de estar com a bola nos pés, dominando aquele globo, ainda é a mesma, por mais que seja redescoberta diariamente.
Karolina Bergamo usou uma NIKON D90 - f/5,6 - 135mm - ISO 320 - 1/500s. Para os alunos, o lúdico se mistura ao jogo ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2014
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Isabella Faria usou uma SONY DSLR-A390 - f/5,6 - 50mm - ISO 800 - 1/2000s. Os jogadores se entregam durante a partida 42
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Isabella Faria usou uma SONY DSLR-A390 - f/5,6 - 50mm - ISO 800 - 1/2000s. Nem os carros interrompem a “pelada”
JÚLIA STORCH usou uma NIKON D3100 - f/5,3- 42mm - ISO 1250 - 1/80s. A idade não impede que o bom futebol seja jogado ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2014
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disputa
PARA SER O árduo caminho de quem sonha em se tornar jogador profissional através das peneiras REPORTAGEM Carla Bridi, Guilherme Dogo (1º ano de Jornalismo), Ana Beatriz Rosa, Ana Carolina Gama e Daniela Rial (2º ano de Jornalismo) IMAGEM CARLA BRIDI (1o ano de Jornalismo)
O sol castigava o Parque Ecológico Tietê, em Guarulhos, na peneira da Portuguesa, no dia 16 de março. O calor poderia ser mais um fator de dificuldade para os participantes em campo. Nada, porém, desanimava os pais dos adolescentes, que acompanhavam tudo de longe, atrás de grades, impedidos de entrar no campo. Muitos torciam e berravam conselhos: “Vai filho! Chuta! Passa! Corre!”. Quando escutavam, alguns meninos olhavam para eles, em busca de força; outros constrangiam-se com os incentivos. O acirramento da disputa é o que mais preocupa os pais: “Eu quero que meu filho passe, claro. Mas, ao mesmo tempo, eu o incentivo a ter outra paixão, não só o futebol. Sabemos que é muito difícil, é necessário ter um plano B”, afirma Renato Bortoloto, pai de Natan. O garoto, de apenas 11 anos, quer ser jogador, mas não descarta a opção alternativa de tornar-se veterinário.
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A lama é uniforme, densa; recolhida aos montes, é cuidadosamente peneirada. A procura pelo ouro é um processo trabalhoso e ingrato – por vezes, perde-se uma pepita ou outra entre o enorme mar de lodo que entra e sai da peneira. No mundo dos esportes, o instrumento de trabalho dos garimpeiros dá nome a um processo similar: a escolha de novos talentos, uma eterna busca pelas novas pepitas que enriquecerão o futebol. Há competições das quais chegam a participar 10 mil garotos, todos com a esperança de conseguirem traçar o mesmo destino de ídolos como Maicon, Cafu e Thiago Silva.
Peneirando Assim como a seleção das pepitas de ouro pelos garimpeiros, as peneiras do futebol são organizadas em etapas. No caso da Portuguesa, o primeiro passo – depois de pagar uma taxa de R$65 – é um cadastro online, no
qual nenhum detalhe é deixado de lado: são requisitados dados específicos, tais como a posição em que joga e a perna com que chuta, além da idade e do nome. Esse processo facilita a separação em times durante a seleção. Depois da triagem, acontece uma tensa e curta partida, seguida de um treinamento com a bola, para que o técnico observe o passe, o drible, a agilidade e a condução dos atletas. A peneira começa a ficar inquieta: a última parte do teste é o tão esperado jogo de trinta minutos, no qual o nervosismo pode atingir o ápice. Há um técnico com uma prancheta tomando notas específicas de cada concorrente em campo. O resultado pode demorar até dez dias para sair. Durante o período de espera, a apreensão e a ansiedade dominam não só os meninos, como também seus familiares. Entretanto, o percurso não termina por aí. Os aprovados ainda estão longe de se tor-
Apenas alguns dos garotos da foto terão a oportunidade de ser profissionais
nar ouro. Eles precisam passar também por outros testes dentro do clube: jogam por uma semana, como se fossem atletas da divisão de base. Depois, seguem para os jogos com a equipe da Portuguesa, divididos entre as respectivas categorias, para só então serem aprovados oficialmente. No final do processo, apenas quarenta garotos, dos aproximadamente 400 iniciais, são selecionados para a próxima fase. No caso da peneira do Palmeiras, o processo para a triagem de potenciais jogadores é diferente e conta com duas etapas. A primeira é realizada fora do estado de São Paulo e ocorre, no mínimo, duas vezes por mês. Nela são examinados cerca de 400 garotos. A segunda avaliação ocorre na própria sede do clube do Palmeiras, em São Paulo, no qual atletas já pré-selecionados ou indicados por especialistas devem mostrar suas habilidades para merecer uma chance. Os convoca-
dos permanecem no clube em observação, no período entre uma e duas semanas, onde passam por três avaliações internas mensais em grupos mais restritos, de 25 atletas.
Momento decisivo A bola pode mudar completamente a vida desses garotos. Grande parte deles vem de longe, e viaja apenas com o objetivo de participar do teste. No campo da Portuguesa, estava Emerson Vieira, baiano de apenas 16 anos. O jovem veio para a capital paulista junto com seu primo, que também está em busca de um futuro melhor através do futebol. É difícil para Emerson imaginar como será a sua rotina se for aprovado e seu sonho se tornar realidade. Com a voz trêmula, desabafa: “Deixei tudo para trás, não sei nem se volto para a Bahia”. A única coisa da qual não tinha dúvidas é de que teria sua vida completamente mudada, caso se profissio-
nalizasse no futebol. Assim como seus concorrentes, Felipe Gervazio, de Governador Valadares, tem grandes sonhos: “Se eu for jogador, quero ajudar minha família com o dinheiro. Mas tem que ter cabeça”. A possibilidade de tornar-se ouro da casa não é a única vantagem de participar dessas seletivas. O caso do Palmeiras exemplifica o que acontece em grande parte dos clubes: todo garoto aprovado recebe os benefícios referentes às categorias, como ajuda de custo, escola, plano de saúde, moradia (para maiores de 14 anos), alimentação e assistência social e psicológica. Caso se profissionalize, há o registro em carteira e salário. Edvaldo Marques, responsável pelo setor de captação e avaliação dos atletas do Palmeiras, conta: “Dedicamos um tempo especial para informar e orientar os garotos que não foram selecionados. Quem já foi atleta sabe o que é um sonho na vida de um jovem”.
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JULIANA QUEISSADA
VÁRZEA
Amor de várzea O futebol amador nunca perdeu a sua essência: alimentando sonhos, ele mantém a disciplina nas comunidades e oferece oportunidades aos atletas REPORTAGEM CAROLINA MORAES, RODRIGO MARQUES, TÉO FRANÇA, VINICIUS ELIA (1º ano de Jornalismo) e JULIANA QUEISSADA (2º ano de Jornalismo)
Não é apenas um campo de terra, são corações pulsando a cada grito do técnico, apito do juiz e aceno do bandeirinha. Não se trata de um estádio lotado com grandes astros. Tamanha comoção é obra de outro futebol, o de várzea. Falar sobre esta categoria é descrever a cidade de São Paulo, a cooperação nas comunidades e o amor pelo esporte. Pode-se frisar esse sentimento: a maioria dos praticantes trabalha em horário integral e tem a modalidade como lazer. “Quem joga na várzea está lá por paixão. O dinheiro é pouco”, afirma Daniel Português, atual diretor do time Serra Pelada, que joga na várzea desde pequeno.
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A categoria “varzeana” consiste em campeonatos paralelos aos oficiais, compostos por times não profissionais, normalmente, associados às comunidades onde os jogadores vivem, servindo como congregação dos moradores. O futebol de várzea é, preconceituosamente, relacionado à desorganização e à violência. Isto é equivocado: organização é a sua chave. Cada time tem a sua própria direção – alguns, inclusive, já existem há mais de cem anos – e a violência em jogos é passível de punição. “Disciplina é a palavra que define a categoria”, reitera Diego Viñas, jornalista esportivo e grande admirador dos campos de terra. Para Wilian Boré, jogador do
Lapenna, várzea é sinônimo de família. “Jogo há 14 anos. Tenho três irmãos, três sobrinhos e o meu pai, todos envolvidos no meio.”
Varzeando Amanhecidos e Lapenna se apresentaram no campo de Benfica um pouco antes das 15 horas do dia 23 de abril, para disputar as quartas de final da Copa Nove de Julho. O campo foi implantado sobre um rio transposto pelo Departamento de Água e Energia Elétrica de São Paulo (DAEE). A partida começou agitada, com os alertas do juiz, tensão dos atletas e as orientações dos técnicos. As equipes estavam muito bem preparadas e os
RODRIGO MARQUES
“Temos uma geração sintética do futebol brasileiro, coincidentemente atingimos nossas piores posições no ranking da FIFA” Diego Viñas, jornalista esportivo
goleiros suaram a camisa para não deixar a rede balançar. O placar final, no entanto, foi de empate: 1 a 1. O que permaneceu foi a mistura dos sentimentos da torcida, que acompanhava, atenta e vibrante, cada passe de bola dos jogadores. A Copa visa à arrecadação de fundos para a manutenção do time Nove de Julho da Casa Verde, organizador do evento desde 2010. O torneio, cujo prêmio é de 5 mil reais, acontece nos fins de semana, em cinco campos diferentes: Flamengo, Benfica, Botafogo Guaianases, Palmeirinha de Paraisópolis e Magnólia. Os locais de antigamente, por exemplo, estão quase todos extintos: a maioria deu lugar a
condomínios de prédios. Vinãs afirma ser saudosista quanto a isto, mas reconhece que a extinção foi necessária para a modernização da cidade. Segundo ele, os campos de São Paulo não acabaram, simplesmente mudaram de lugar – da região central, passaram às áreas periféricas. Outro modelo de campeonato, de maior porte e mais próximo do profissional, é a Copa Kaiser. Diferente da Copa Nove de Julho, ela conta com a participação de mais times e até com grandes patrocinadores para a organização, sem perder suas raízes na várzea. Ele começou com o patrocínio da Gazeta Esportiva e da marca de cerveja, em 1993. Em 2014, a Copa terá 375 jogos entre a primeira e a última rodada. Os clubes englobam as quatro regiões de São Paulo, e muitos recebem quantias em dinheiro para sustentar o time durante os treinos – os salários vão de 100 a 300 reais para cada jogador por partida. Em 2015, porém, o campeonato não acontecerá com o mesmo nome: a Cervejaria Heineken comprou a Kaiser e decidiu que não irá mais apoiar a competição, encerrando vinte anos de histórias.
Cem anos de conquistas Desde a década de 1920, o União dos Operários, situado no Belenzinho, luta para que a várzea não morra. O clube persiste trazendo consigo sua história e disseminando o gosto pelo futebol amador. Ao longo do tempo, ele
adquiriu melhor infraestrutura e atualmente conta até com campos de society. O campo principal tem um significado especial para o presidente Ubirajara Amâncio da Silva: “Nos orgulhamos disso, nosso sonho era reformá-lo, juntamos um grupo de amigos e conseguimos. Agora todos os times amadores querem jogar aqui”. Para arcar com as despesas, o presidente, também conhecido como Bira, conta com a ajuda de alguns ex-jogadores profissionais que frequentam o clube, como Ademir da Guia, Rivelino e Evair. Entretanto, não é o suficiente, e o União deseja passar a fixar transações na Federação Paulista de Futebol (FPF), a fim de lucrar com os acordos para preservar a escolinha de futebol. Afinal, como lembra Bira, “o Vinícius, hoje titular do Palmeiras, é revelação nossa, além de tantos outros que se foram sem recebermos nenhuma indenização”, aponta o presidente. No entanto, Ubirajara pondera que hoje são revelados menos jogadores que antigamente, pois clubes de várzea estão cada vez mais escassos. Bira reflete, ainda, que haveria mais jogadores se houvesse maior ajuda política. Diego Viñas vê uma grande relação entre a predominância dos campos de society e a qualidade do futebol nacional: “Temos uma geração sintética do futebol brasileiro, coincidentemente atingimos nossas piores posições no ranking da FIFA. Nosso futebol não tem muita identidade”.
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cidade
ITAQUERÃO PARA QUEM
Às vésperas da Copa do Mundo, os bairros de Itaquera e Artur Alvim passam por mudanças sociais e econômicas significativas REPORTAGEM ANA PAULA RIBEIRO, AURÉLIO SILVA, BÁRBARA MUNIZ, CARMEM LÚCIA MELO, CAROLINE DOMINGUES, CLAUDIA RATTI, ELLEN GOMES, JULIA GUADAGNUCCI, isabella carvalho, MICHELE MARCELINO, MATEUS CARREIRA, VICTORIA ABEL (1o ano de Jornalismo) e BRUNA CAVALINI (3o ano de Jornalismo) IMAGEM CLAUDIA RATTI (1o ano de Jornalismo)
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Itaquera sempre teve forte ligação com o futebol. Na década de 1950, dezoito campos de várzea estruturavam o bairro. O aposentado Eden Granja, morador da região, lembra com saudade no olhar: “Jogar bola era a nossa diversão”. Décadas depois, a região parece bem diferente: quando se chega lá, a impressão é de que se adentrou em um canteiro de obras. Quem sai da estação Itaquera do metrô, a 60 dias da Copa, e olha para o horizonte, enxerga, não muito longe, um coliseu feito de concreto e de aço. Da Radial Leste, como é mais conhecida a Avenida Alcântara Machado, o que se vê é uma mistura de operários, máquinas e poeira, os vestígios das obras do Itaquerão. De um lado, barulho, congestionamento, novos viadutos e avenidas. De outro, o gigantesco e moderno estádio de futebol. Sua imponência disfarça o fato de que o chamado Itaquerão está há mais de três quilômetros do centro de Itaquera e a apenas 650 metros de Artur Alvim.
Na sombra do Gigante Quanto mais se caminha pelos bairros, mais ampla é a visão sobre a influência da Arena. Devido à grande distância do estádio, a dona do restaurante O Casarão, Verônica Dionísio, não se sente ameaçada pelo movimento em dias de jogo e prevê somente uma diminuição da clientela: “Todo mundo fica em casa
ou vai para bares, onde tenha uma televisão grande”. É também a falta de investimento em reformas infraestruturais – como no sistema de transporte coletivo – que chama sua atenção. Segundo ela, as obras atenderão apenas os arredores do estádio e os usuários de transporte privado. A menos de um quilômetro da Arena, Artur Alvim vê outra perspectiva da Copa. “O Mundial está trazendo muito crescimento. Vai ter muita coisa boa para colher depois”, afirma, otimista, Francisco de Queirós, dono do Bola Bar, estabelecimento muito frequentado, especialmente em dias de jogo. O jornalista esportivo Vitor Guedes, morador da Zona Leste, tem seus receios: “A construção da Arena possibilitou obras como a da FATEC (Faculdade de Tecnologia), que não aconteceriam se não fosse pela Copa. Porém, não tenho certeza se essas mudanças continuarão”. O atual apresentador do programa de rádio BandNews pra toda obra – no qual faz a cobertura da construção do Itaquerão e dos principais acontecimentos relacionados ao seu entorno – conclui: “Na África do Sul, o estádio da abertura ficava em um bairro distante e periférico. As construções da região não terminaram a tempo: a vida lá não melhorou. No Brasil, não será diferente”. Para José Agostinho Nobre, atual presidente do Elite, clube da região, “a Copa e a construção
do estádio poderiam ser uma oportunidade de ter holofotes voltados para o bairro”. Seu medo, no entanto, é que, depois do evento, a região seja novamente esquecida. O Mundial também coloriu o bairro de vermelho, cor que simboliza o grande investimento de empresas como Coca-Cola e Brahma. “As multinacionais querem mesmo a marca delas na mão do pessoal. Fizeram um acordo com a gente para diminuirmos o preço da bebida – de quatro reais, a garrafa, para dois”, explica Francisco, dono do estabelecimento. Em um perímetro de dois quilômetros do estádio, apenas produtos licenciados pela FIFA podem ser comercializados.
Comunidade invisível Esgoto a céu aberto, chão de terra batida, falta de energia elétrica e de água encanada. Na Avenida Miguel Inácio Cury, ao lado do Itaquerão, essa é a realidade da Comunidade da Paz, composta por 300 famílias. Desde 1991, elas ocupam irregularmente o terreno fiscalizado pela Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo (COHAB). Entretanto, de acordo com o Plano Municipal de Habitação de São Paulo (2009-2024), estas pessoas deverão ser removidas para implantação do Parque Linear Rio Verde, parte de um processo de compensação ambiental. Isso ainda não aconteceu, apesar da ação
de reintegração de posse tramitar na Justiça, pois a medida liminar favorável aos moradores determinou a permanência das famílias, em processo judicial acompanhado pelo Ministério Público do Estado de São Paulo. Segundo o líder da associação de moradores da Comunidade da Paz, Pedro Furtado, a maioria deles quer ficar e não concorda com a remoção para conjuntos habitacionais distantes da região, tampouco com a bolsa aluguel de 300 reais oferecida pela Prefeitura. Pedro explicou que nenhum habitante foi removido; a informação foi confirmada pela defensora Ana Moraes, coordenadora auxiliar do Núcleo de Habitação e Urbanismo da Defensoria Pública de São Paulo, que também não forneceu mais detalhes sobre a atuação do órgão na defesa dos direitos da comunidade. Apesar da incerteza e da instabilidade, a condição difícil de quem vive no local não mudou muito. Porém, com a determinação da abertura do Mundial no Itaquerão, a Sabesp e a Eletropaulo estão com o projeto de regularizar o fornecimento dos serviços aos moradores, cadastrando os domicílios e negociando a prestação de serviços sociais. Furtado está intermediando a discussão com os órgãos públicos para regulamentar o fornecimento de água e energia para a região, e lamenta: “A favela agora é comunidade, e isso a sociedade não vê”.
mulheres
campeãs INVISÍVEIS A falta de interesse da mídia deixa o futebol feminino de escanteio, com salários baixos e pouco reconhecimento REPORTAGEM Bruna Barone, Luana Toro, Giovanna Fontenelle, Camila Almeida, Beatriz Salles, Giulia Granchi, Kimberlly Peixoto, Yahisbel Adames (1º ano de Jornalismo) ILUSTRAÇÃO THAÍS HELENA REIS (3º ano de Jornalismo)
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GIULIA GRANCHI
O Brasil é visto como o país do futebol, mas os grandes jogadores e a equipe masculina são o rosto do esporte nacional. A Seleção Brasileira de Futebol Feminino já conquistou duas medalhas de ouro nos jogos Panamericanos, em 2003 e 2007, além do segundo lugar nas Olimpíadas de 2004 e 2008. Porém, ainda que com grandes jogadoras, como Marta e Formiga, o esporte segue com pouca expressividade no país. A prática da modalidade chegou a ser proibida para as mulheres na Era Vargas. O artigo 54 do decreto-lei dos esportes determinava que elas estavam desautorizadas a treinar atividades “inadequadas à sua natureza’’. O Conselho Nacional de Desportos (CND) determinou, em 1965, que o futebol feminino, fosse de campo, de areia ou de salão estava estritamente proibido. Mesmo com a saída de Vargas do poder e a criação de uma nova Constituição, a legislação esportiva não mudou: continuavam proibidas de praticar o esporte. Porém, isso não impedia que algumas burlassem o sistema, disputando partidas beneficentes. O futebol feminino foi regularizado pelo CND apenas em 1983, mas ele ainda carrega uma série de preconceitos que dificultam sua expansão no país.
Vai ter Copa sim De quatro em quatro anos, as mulheres também ocupam os gramados de uma competição global: o Campeonato Mundial de Futebol Feminino da FIFA. Também conhecido como Copa do Mundo Feminina, ele acontecerá entre os dias 6 de junho e 5 de julho de 2015, tendo como sede o Canadá, único país que se candidatou a receber o evento. Considerado o torneio mais importante da categoria internacional, a primeira edição ocorreu em 1991, 61 anos depois da primeira Copa masculina. De 2011 para 2015, o número de times que podem participar aumentou de dezesseis para 24. A divulgação e o apoio, no entanto, deixam a desejar. Os locais de treino variam entre uma concessão da CBF (Confederação Brasileira de Futebol) e a liberação do clube oficial das atletas. Emily Lima, ex-jogadora de futebol e primeira mulher a se tornar técnica da Seleção feminina, acredita que a participação na próxima Copa pode ser motivo de muito orgulho para o Brasil: “Se o bom trabalho continuar sendo feito nessa nova direção, que foi assumida em 2012 e vai até 2016, dá para ser campeã mundial”. Quando se pensa em Copa do Mundo, o time dos homens é o primeiro que vem à mente. A mídia tem forte influência sobre a formação da opinião pública: os grandes jogos veiculados são, em sua maioria, masculinos, assim como os eventos mundiais – a Copa do Mundo e a Copa das Confederações. O Campeonato Brasileiro Feminino, por outro lado, é transmitido apenas pela emissora FOX Sports, à qual só se tem acesso pagando pacotes especiais. Há, portanto, pouco espaço para as mulheres, que, entre o desprezo e o preconceito, tentam garantir um lugar ao sol no campo. “A mulher é
Emily Lima luta para que meninas possam ser jogadoras obrigada a uma série de coisas que os homens não são. Não pode nunca errar, senão te mandam voltar para o fogão. Não pode trabalhar igual, tem que trabalhar mais”, denuncia Regiani Ritter, jornalista da Rádio Gazeta e primeira mulher a se tornar comentarista esportiva no Brasil. Ela ainda explica que, no modelo de negócio do futebol, não há vantagem financeira no investimento em algo que ainda está sendo construído. Para a radialista, a mídia ‘‘está interessada em produtos prontos, e não em fabricá-los”.
Em que campo? O ambiente de trabalho futebolístico é pouco propício para a entrada das mulheres. Emily Lima diz que muitas de suas companheiras precisam de um segundo emprego por causa do baixo salário obtido no futebol: “Eu tenho um exemplo de uma enfermeira que trabalhava a noite inteira, saía às 7 horas da manhã e tinha que estar no treino às 11 da manhã. Ela tinha que fazer outra coisa, porque não consegue viver do futebol”. Regiani Ritter se preocupa não só com os ganhos financeiros das jogadoras, mas também com a questão social. A jornalista questiona as grandes or-
ganizações que investem em escolinhas de futebol para garotos: “Estão preocupados em tirar os meninos da rua pelo futebol, mas o que acontece com as meninas? O esporte pode recepcionar todas essas crianças”. As mesmas mulheres que lutaram para ganhar destaque na área agora brigam para criar oportunidades para futuras jogadoras. Emily, por exemplo, fundou uma turma para meninas no Juventus: “Comecei com seis alunas. Perguntavam: ‘Mas você vai começar com seis alunas?’. Eu respondia: ‘Vou, porque são essas seis que vão espalhar que está tendo escolinha aqui no Juventus’. Hoje, são mais de 60 garotas lá”, conta. A ex-técnica lembra o quanto era difícil, mesmo para quem nasceu “amando o futebol”, realizar os próprios sonhos. “A procura é muito grande, é só dar oportunidade para as meninas’’, completa. Para Regiani Ritter, as que procuram e lutam pelo futebol valem ouro: “Faz tempo que não se vê homens jogando como as mulheres”. A jornalista conclui: “Há pouquíssimo estímulo, pouco tempo para treinar, pouca projeção, pouco investimento e, mesmo assim, as jogadoras brasileiras são vice-campeãs mundiais”.
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DEBATE
“
Vocês me
AGUARDEM”
Érika Cristiano dos Santos, jogadora da Seleção Brasileira, conversa sobre o mundo do futebol feminino, suas oportunidades e o preconceito
REPORTAGEM GIULIANA SARINGER, JULIANA SANTOS (1° ano de Jornalismo) e JOSÉ ADORNO (2o ano de Jornalismo) IMAGENS GIULIA GRANCHI (1o ano de Jornalismo)
No apartamento que divide com seis outras jogadoras, em Moema, Érika compartilha as dificuldades de ser atleta em um país que cultua apenas o futebol masculino. Aos 15 anos, vendeu bolos que sua mãe fazia para conseguir pagar a condução até o treino. Chegou a cursar seis meses de jornalismo, um ano de educação física, além de fisioterapia, mas a vocação pelo futebol sempre falou mais alto. Com experiência em times como o Santos Futebol Clube e o californiano FC Gold Pride, a jogadora, de 26 anos, conquistou títulos como a medalha de ouro no Campeonato Sul-americano sub-20, a de prata nos Jogos Olímpicos de Pequim em 2008, e a de bronze na Copa do Mundo sub-20 da Rússia. Érika é uma jogadora versátil e tem diferentes posições dentro de campo, é volante ou atacante nos times em que joga, e zagueira na Seleção. Quem te incentivou a entrar no futebol e por que você escolheu essa carreira? Aos 7 anos comecei a jogar na escolinha do Marcelinho Carioca. Fui a primeira menina a entrar lá, já tinha experiência jogando na rua. Tenho um único irmão homem, que era mascote do time da Portuguesa, e eu queria estar com ele. Onde quer que ele estivesse, com uniforme, chuteira, eu queria estar também, de qualquer jeito. Meus pais nunca vetaram, todos sempre me apoiaram, tirando umas tias distantes que diziam que era coisa de homem, que eu iria me machucar.
Érika não se deixou abater pelas dificuldades
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Quais dificuldades você encontrou na sua carreira? Falam que o preconceito é o que te desaba, mas passei por cima. Adorava quando me jogavam um monte de pedrinhas para me fazer desistir, porque com elas pude formar um castelo. De qualquer jeito, acho que até hoje temos dificuldade com incentivo à modalidade, e não só no futebol feminino, como também no esporte em geral.
Quase lá: medalha de prata conquistada nas Olimpíadas de 2008 pela seleção feminina
Tive muitas oportunidades de ir para o exterior, mas eu sempre pensei em conseguir formas de ajudar a minha categoria no país. Meti a cara em vários programas de televisão com esse objetivo. Mas para mim já deu, este é o meu último ano no Brasil. Por que você está indo embora? Tive várias propostas para jogar na Rússia e na Coreia, onde já estava com contrato assinado. Não aguentava mais ficar no Brasil desde a época em que o Santos acabou. Tinha que ir embora para fazer meu pezinho de meia. Tentei durante dez anos da minha vida ajudar o futebol femino no país, que cresceu aos poucos, permaneceu igual e caiu. Agora, vejo que estou com 26 anos e não dá para ninguém me sustentar. Tenho que seguir sozinha. Qual a diferença entre o salário no futebol masculino e no feminino? Há uma discrepância muito grande entre eles? Os salários são totalmente diferentes. Os meninos da base do Santos ganham muito, fora os patrocínios que conseguem. Dá para fazer um bom dinheiro. Agora, uma jogadora da Seleção feminina hoje, no Brasil, a que mais recebe deve ser a Formiga. Não sei exatamente, mas deve ser em torno de 7 ou 8 mil reais. Ela é a única a ter um salário assim. Se um dia eu ganhar isso na minha vida, estarei mais do que feliz. As outras ganham, no máximo, 4 mil reais. As que estão começando agora ganham de 900 a mil reais. Quando ganhamos a medalha de prata nas Olimpíadas, em 2008, não recebemos um real. Ficamos lá 35 dias: a diária do nosso hotel era de 35 reais, sendo que a da seleção masculina era de 1500. Como funciona o patrocínio? Ele é uma maneira de aumentar a renda das jogadoras? Não temos visibilidade. Por exemplo, se peço patrocínio,
vão me perguntar quando o jogo vai ser televisionado, e só existe a possibilidade de passar na Band, no final do ano. O patrocinador precisa que divulguem a marca dele e a gente não tem o que fazer. Por que ele daria seu dinheiro para algo que não vai vender a sua imagem? Eu tenho vários contatos que querem me patrocinar, mas não vai ter uma hora que eu vou jogar sozinha. Eu quero estar em um time bom, com um elenco bom, não quero só ganhar dinheiro. O que você pode dizer sobre a Copa do Mundo de Futebol Feminino, que acontece em 2015? Colocam a gente para treinar três meses antes da Copa, quinze dias em cada mês. Você fica treinando, depois volta para o seu clube e assim vai. Você tem que se virar até lá, com ou sem a estrutura que a Confederação Brasileira de Futebol dá. Vão começar a falar dela lá para 2015, ano em que ela ocorre de fato. Se sair na mídia, vão comentar uns três meses antes das Olimpíadas. Isso se forem falar. Se a gente ganhar, a CBF ajudou, se a gente não ganhar, é porque “as meninas amarelaram”. Você pode estar bem no jogo, mas caso os narradores digam que você está errando tudo, mesmo que não esteja, as pessoas vão criticar: “Essa mulher é ruim mesmo”. Você achou que chegaria onde está? Se você almeja alguma coisa, você batalha para ter aquilo. Eu corria atrás e aos poucos fui conquistando o que queria. Passei pelo Juventus, pelo Santos, depois fui para os Estados Unidos. A partir dali, fui para a categoria de base sub19, sub-20, isso com 15 anos. Subi até chegar na principal. Guardei uma redação da segunda série na qual escrevi que desejava ter tudo isso, ser jogadora profissional e atuar em times internacionais. Bem humilde mesmo, falando que ia conseguir. Conclui com: “Vocês me aguardem”.
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rádio
Clube
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F O O R N C I E M FUTEBOL CLUBE
Os craques da narração nacional que emocionaram ouvintes, levando grandes jogos para dentro dos lares brasileiros REPORTAGEM MATHEUS CABRAL (1º ano de Jornalismo), Mariana Canhisares e Natália Tomé (2º ano de Jornalismo) ILUSTRAÇÃO NATHALIE PROVOSTE (3o ano de Jornalismo)
O jornalismo se reinventa conforme o tempo, e na narração isso não é diferente. O esquema tático da locução esportiva mudou a cada geração de profissionais, mas a admiração e a inspiração montaram equipes que aqueceram o coração dos brasileiros em cada final decisiva. Antes da televisão, eles teciam com suas vozes as partidas de futebol no imaginário dos brasileiros que grudavam o ouvido no rádio. A cadência da fala dos locutores era bola, jogador, gol, vitória, tudo em uma mesma sonoridade. “Sou torcedor entusiasta, sim, mas do Microfone Futebol Clube”, como diria Oduvaldo Cozzi, que foi diretor da Rádio Mayrink Veiga, ao ser questionado sobre seu time do coração em uma entrevista para a Revista do Rádio. Inspirados nessa declaração, os repórteres do Esquinas escalaram um time de narradores capitaneado por Gagliano Neto, primeiro brasileiro dessa categoria, falecido em 1974. A bola passou de locutor para locutor, transferindo um legado para os ouvintes de cada geração. Os bordões perduram até os dias atuais e o calor da voz daqueles que já se foram ainda ecoam nas lembranças dos mais antigos e no talento dos mais novos.
Velha Guarda Em uma época em que as camisas não eram
numeradas, a fisionomia dos jogadores, fossem eles brasileiros ou estrangeiros, eram o único modo de reconhecê-los. Gagliano Neto teve de usar sua memória na transmissão do Mundial de 1938. Único locutor sul-americano, narrou 25 gols, dos quais quinze foram do Brasil, todos eles vistos de pé, perto do campo, e não da tribuna. Os rostos desfilavam e sua voz fluía no microfone. Jorge Curi, anos mais tarde, enfrentaria também os desafios de ser locutor esportivo. Contudo, sua maior adversária não era a técnica, mas a emoção. A voz do entusiasta do Clube de Regatas do Flamengo, criador do famoso bordão “é golaaaço”, descreveu os noventa minutos mais sofridos para a torcida verde e amarela: a final da Copa do Mundo de 1950. Uruguai e Brasil se enfrentaram no que ficou conhecido como o “Maracanaço”. Nunca foi tão difícil dizer “fim de papo”. Igualmente icônicos foram Pedro Luiz e Edson Leite, nomes da locução no final dos anos 1950. Tido como o “lorde dos locutores”, Pedro narrou onze mundiais entre 1950 e 1998, sempre estudando os confrontos com pelo menos um dia de antecedência e explorando sua capacidade de descrever os mínimos detalhes do espetáculo. Já Edson Leite transmitia os jogos de maneira contida, destacando-se por sua narração dinâmi-
ca. Lado a lado, ficaram conhecidos como “a voz do Brasil”, devido à parceria realizada nas conquistas dos mundiais de 1958 e 1962. Os dois serviram como técnicos para as gerações de locutores que estavam por vir, como no caso de Fiori Giglioti, que procurou se destacar tanto quanto eles e criou seus próprios bordões. “Crepúsculo de jogo, torcida brasileira” já estava na boca de crianças e adultos, e sua voz era imitada nas ruas pelos ouvintes. Sempre ligado ao futebol, Giglioti encerrou prematuramente sua carreira como jogador juvenil do Clube Atlético Linense para se dedicar ao seu sonho de criança: ser narrador. Dos dez mundiais que acompanhou profissionalmente desde 1962, deixou de narrar justamente o de 2002, ano em que o Brasil foi pentacampeão. A emissora em que trabalhava, a Rádio Record, não comprou os direitos de transmissão. Quatro anos depois, encerraria sua carreira como comentarista.
ESQUADRÃO DE OURO Não é exagero chamar Oduvaldo Cozzi de “locutor de todas as Copas”: foram mais de 2 mil jogos narrados, 134 deles em mundiais. Durante a transmissão da vitória brasileira contra a Tchecoslováquia, em 1962, ele clamou: “Eu levei vinte anos para poder gritar
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‘Brasil campeão do mundo’. Posso falar que agora não há por que temer. Por duas vezes um pobre homem do povo pode gritar ‘Brasil campeão do mundo’”. Além das finais dos Mundiais, Leilane Cozzi, uma de suas cinco filhas, destaca o milésimo gol de Pelé como um dos momentos mais emocionantes da carreira de seu pai. “No momento em que aconteceu o pênalti, enquanto a torcida gritava sem parar ‘Pelé! Pelé!’ enquanto se encaminhava para fazer a cobrança, ele disse: ‘Vocês estão prestes a testemunhar um momento histórico!’.” O público tinha um carinho especial por Cozzi. “Ele era constantemente abordado por torcedores na rua, que queriam saber sua opinião. Todos perguntavam qual seria a melhor escalação de um time e se tal jogador não seria melhor que outro em campo. Ele sempre atendia a todos com a mesma educação e paciência”, conta Leilane. Curiosos, seus ouvintes sempre se perguntavam para que time torcia, suspeitando que seu coração fosse fluminense, como desconfiava a imprensa na época. “Ele dizia que não tinha um time, e que torcia mesmo para ver um bom espetáculo. Mas nós, em casa, sabíamos qual era”, provoca sua filha. Mais do que aclamado pelos torcedores, Cozzi foi uma figura importante para o radialismo esportivo: criou a função de repórter de campo, como também a de repórter atrás do gol, no qual se posicionava estrategicamente no gramado. Desenvolveu o atual modelo de transmissão esportiva com comentários técnicos durante os intervalos.
“Foi ele também o primeiro jornalista a ter um programa semanal de resenhas esportivas. Muito do que se faz hoje em dia em termos de esporte – porque ele narrava também boxe, basquete, vôlei, corridas de cavalo e algumas Olimpíadas – se deve a ele. Por isso, era chamado pelos colegas de ‘O Professor’”, complementa Leilane. Para ele, o futebol era um verdadeiro espetáculo, motivo que o levava a fazer de tudo para que o ouvinte tivesse a ilusão de estar dentro do estádio. Se Oduvaldo era imparcial e pouco se envolvia emocionalmente nas transmissões, Geraldo José de Almeida era o contrário: fazia de um mero amistoso um jogo de Copa do Mundo. Sua transmissão também era marcada pelos muitos apelidos: na sua boca, o time brasileiro era a “Seleção Canarinho”; Pelé era o “Craque Café” e Rivellino, o “Garoto do Parque” – referência ao Parque São Jorge, onde foi revelado. São-paulino confesso, seu amor pelo tricolor transparecia não só nos exageros, mas também no fato de seus quatro filhos terem nascido nos anos em que seu time foi campeão paulista: 1943, 1945, 1946 e 1948. A equipe foi protagonista de um dos momentos mais icônicos de sua carreira na Rádio Panamericana: a derrota de 8x1 para o Milan, em 1951. Único locutor a conseguir os direitos de narrar o duelo, Geraldo gritava, inconformado, que os gols haviam sido roubados. As outras emissoras, acreditando que era verdade, passaram a reproduzir a notícia como se a tivessem recebido de correspondentes da Europa. Foi só no dia seguinte que
a rádio de Geraldo admitiu a “pegadinha” de primeiro de abril: uma maneira de denunciar as escutas que as concorrentes faziam da Panamericana.
Atleta da voz Com o legado do Microfone Futebol Clube nas costas, Nilson César, locutor da Jovem Pan, sabe o peso da camisa que veste. Seu time tem nomes como o de José Silvério, que já era titular da rádio quando Nilson começou a carreira. Até o final da Copa desse ano, Silvério, considerado até hoje “uma fonte de inspiração”, terá narrado metade de todos os mundiais e, por isso, não há dúvidas: ele está mais do que acostumado a balançar as redes. Nilson, mesmo com mais de trinta anos na rádio, ainda não se acostumou com a ansiedade: “Se a pessoa fala que não tem friozinho na barriga quando vai começar um trabalho é porque está na hora de parar. Afinal, a graça é você estar sempre com esse friozinho, com essa vontade de que a coisa saia bem feita”. Sua agilidade é outro atributo que encanta a torcida. Ele está sempre preparado em casos de imprevisto, porque, na hora da emoção, até os grandes narradores podem falhar: “Já aconteceu de estar no meio de uma transmissão e ficar sem voz. Por isso, falo: quando você não está 100%, não vá para o ar”. A centelha de talento que brilha em todo locutor está aliada à maturidade e ao improviso. Para Nilson César, “ou você nasceu para transmitir futebol, ou não adianta inventar”. A função de comentarista é, em sua opinião, uma vocação: “a narração esportiva no rádio é um dom divino”. Este dom é que consagra vozes e epítetos futebolísticos entre os ouvintes e os que ficam por trás dos microfones.
ACERVO PESSOAL
A cadência da fala dos locutores era bola, jogador, gol, vitória, tudo em uma mesma sonoridade
Oduvaldo Cozzi revolucionou o radialismo esportivo
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MARIANA CANHISARES
Cantinho da Saudade “Ouvir os jogos de futebol pelo rádio, de certa maneira, fez parte de toda a minha infância. Meu pai, meus irmãos e eu acompanhávamos os times de São Paulo através das emissoras da capital”, conta Oscar Ulisses, locutor titular dos jogos da Rádio Globo e apresentador do programa Globo Esportivo. A grande seleção de narradores, composta por Fiori Giglioti, Pedro Luiz, Edson Leite e Jorge Curi, reunia sua família em volta do aparelho. Carlos da Silva, de 74 anos, também sentiu isso na pele. Antigamente, se deliciava com as gírias criadas por Fiori. Até hoje, mesmo com o som ruim, ele não dispensa seu rádio de pilha. Além disso, muitas das suas memórias radiofônicas advêm do início da carreira de seu irmão, Osmar Santos. Aos 16 anos, o locutor, famoso pelos bordões “ripa na chulipa, pimba na gorduchinha”, levava a família para acompanhar transmissões. Consequentemente, não apenas Oscar, mas também seu primo, Ulisses Costa, e seus irmãos, Odinei e Osório, se tornaram radialistas. Com o passar dos anos, o amor pelo futebol só cresceu. Criativo, Osmar Santos introduziu músicas e efeitos sonoros nas partidas, que são usados ainda hoje. Até se esquece que foi gago antes dos 5 anos de idade. Infelizmente, a “voz das diretas” não pode mais animar os Canarinhos depois do tetracampeonato. O astro sofreu um acidente de carro em 1994 e precisou voltar mais cedo para o vestiário, sob cuidados médicos.
O aposentado Carlos da Silva é um dos torcedores que ainda vibra com a narração transmitida pelo rádio
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NOSTALGIA
presente
do
passado
Brincadeiras da “época do vovô”, como bater “bafo” com figurinhas e jogar futebol de botão, ainda atraem o interesse de crianças e adultos REPORTAGEM Alana Claro, Júlia Favero, Rafael Serra, Vitória Baraldi (1º ano de Jornalismo), Ana Ferraz, LETÍCIA SABBAG (2º ano de Jornalismo), Juliana Pasta, Yasmin Wilke (3º ano de Jornalismo), Ian Dawsey e Francisco Marianno (4º ano de Jornalismo) ILUSTRAÇÃO THAÍS HELENA REIS (3º ano de Jornalismo)
O SENTIMENTO PELO futebol vai além de torcer durante os jogos. Ele está presente nas conversas do cotidiano, nas brincadeiras de criança, no ato de vestir a camisa do time do coração e a da Seleção Brasileira como se fosse um manto sagrado. Faz parte de ser brasileiro. A sensação de que o esporte é algo maior permanece, tanto nas lembranças do passado quanto no presente. As camisas antigas que já coloriram os estádios viraram objetos de desejo de colecionadores e museus, alcançando altas cifras em leilões. O futebol de botão, brincadeira que ainda une gerações, virou esporte com campeonatos estaduais e nacionais. Os álbuns de figurinhas saíram das gavetas e se tornaram objeto de orgulho daqueles que conseguiram completá-los.
diversão esportiva O técnico organiza seus onze robustos jogadores, ajeitando-os no pequeno campo: cinco na defesa, cinco no ataque. No gol, posiciona um goleiro rechonchudo. Estala os dedos e prepara a mira. É hora de começar o jogo. Nada de pé: a regra, aqui, é usar os dedos. O cenário pode parecer infantil, mas atualmente o botonismo é considerado um esporte e tem até campeonatos. “Isso aqui é brincadeira! Isso aqui não é serviço.” Esta foi a primeira reação de “Seu” Marcelino Toscano, de 81 anos, quando o
filho Eduardo, que participava de campeonatos de futebol de mesa, pediu a ajuda do pai para confeccionar botões. O senhor pensava “que era botão de roupa”. Hoje, faz 30 anos que pai e filho trabalham juntos na Edú Botões. Vendem por volta de trinta jogos por mês, a aproximadamente 100 reais cada. Além de montar times oficiais para campeonatos, o fabricante conta que vende muitos botões personalizados, com nomes e fotos dos integrantes da família ou com jogadores escolhidos um a um. Marcelino explica: “Muitos clientes fazem coletânea dos melhores jogadores de todos os tempos, uma seleção dos preferidos”. As equipes mais procuradas são as europeias, como Barcelona e Chelsea, além das quatro grandes da capital paulista – São Paulo, Palmeiras, Corinthians e Santos. Os campeonatos de futebol de botão são disputados no Brasil inteiro, em competições estaduais ou nacionais. Cada federação é responsável pela organização do torneio local e a CBFM (Confederação Brasileira de Futebol de Mesa), além de oficializar os clubes, organiza a disputa nacional. Há ainda torneios regionais, entre eles o Centro-Sul, que teve esse ano sua 32ª edição, e o Nordestão, de 36 edições. O campeonato mais recente é a Copa do Brasil, que acontece anualmente, tendo apenas uma edição na categoria “livre” e duas na categoria “liso”. “Também existem os Pelés dos botões”, explica Marcelino, que lamenta a
falta de divulgação por parte da mídia. Quem sabe, assim, mais Eduardos e seus avós ficariam sabendo de Marcelinos e seus filhos.
Cola do tempo “O Brasil é um país de pouca memória”, explica Moacir Andrade Peres, desembargador e professor de Direito Tributário e Técnicas de Negociação da Fundação Getúlio Vargas. Talvez a lembrança seja o motivo pelo qual os brasileiros só se recordem dos álbuns de figurinhas na Copa do Mundo, mas foi justamente ela, somada à saudade dos tempos de infância, que levou o professor a se tornar o maior colecionador do Brasil. Entre cards, álbuns e figurinhas, coletou ao longo da vida mais de 600 itens. O que era uma simples forma de diversão para crianças – que muitas vezes conseguiam figurinhas novas na base da troca ou do “bafo” – se tornou mais do que uma brincadeira para os adultos. Moacir conta que o hobbie sai caro: no site Mercado Livre, é possível encontrar álbuns por 20 mil reais, enquanto no E-bay italiano, outros custam cerca de 3,5 mil euros. O colecionador explica, ainda, que a primeira edição de álbuns de Copa da Panini, de 1970, vale cerca de 15 mil reais. Febre no país até os dias de hoje, eles chegaram ao Brasil em 1950, meses após a derrota contra o Uruguai. Moacir, entretanto, acredita que a qualidade decaiu muito:
rubens basile
“Antes, eles eram artesanais, e o trabalho do artista gráfico era muito mais visível. Hoje, a economia de escala faz com que as figurinhas fiquem muito parecidas”. Segundo ele, a identidade visual de antigamente e o capricho com a diagramação se perderam. O professor ainda relata que elas nem sempre estamparam fotografias dos jogadores, caricaturas e desenhos já reproduziram os rostos de atletas antigos. O famoso “pacotinho” que contém cinco itens não foi o único formato de venda. No início, elas eram distribuídas como brindes em embalagens de cigarros e nas de Balas Futebol, de maneira avulsa, sem álbum para ser completado. Com o passar do tempo, o conteúdo das embalagens também mudou: expressões futebolísticas, mascotes de cada time, treinadores, diversos temas relacionados ao futebol ganhavam destaque. Além disso, as figurinhas chamadas de “carimbadas” tinham uma assinatura em alto relevo sobre o rosto do jogador, identificável somente pelo tato. Porém, a questão gerou polêmica e chegou a parar na Justiça. Quando começaram a ser fabricadas, na década de 1970, as carimbadas podiam ser trocadas por prêmios, como bolas de futebol, e deveriam ser produzidas na mesma quantidade que as figurinhas normais. Entretanto, com a impressão muito menor, tornava-se impossível completar um álbum. A dúvida sobre a
existência dessas figurinhas fez com que sua produção fosse proibida em 1996, pelo então governador de São Paulo, Mário Covas. Para o professor, um dos momentos mais prazerosos para um colecionador é encontrar figurinhas raras, novas ou até mesmo uma velha conhecida. “Eu me lembro de estar no colo do meu pai enquanto ele abria as Balas Futebol atrás de uma figurinha e encontrou a do Baltazar, jogador do Corinthians”, conta o professor, que vem construindo sua coleção há mais de quinze anos.
Manto sagrado Muito além das páginas do álbum da Copa, a paixão se manifesta pelo amor à camisa. A Seleção Brasileira de Futebol entra no gramado, a torcida vibra e mais um jogo começa. A primeira imagem que se tem é uma mescla de verde, amarelo e um pouco de azul, as cores da bandeira. No entanto, o passado da “amarelinha” é muito mais complexo do que parece e remonta uma parte da história do Brasil e do próprio esporte. É comum pessoas serem apaixonadas não só pelo time, mas também pela sua camisa. É uma representação física de um período do clube ou seleção. Um desses aficcionados é Leonardo Consani, de 24 anos, que defende que “o uniforme é um souvenir excelente, você não deixa na prateleira mofando”. Desse amor entende bem o publicitário Felipe Augusto Marx, de 39 anos, organizador
“
É uma emoção muito grande reencontrar algo que você colecionou quando menino. É um misto de descoberta com o reviver do momento”
Moacir Peres, desembargador
Rafael Serra
de Encontro de Colecionadores de Camisa de Futebol. Fanático, casou-se vestindo uma camiseta do São Paulo, de 2001, por baixo de seu fraque, e possui uma coleção com mais de 200 relíquias. Elas são, para o publicitário, algo que vai muito além do simples tecido. A sorte também joga contra ou a favor dos colecionadores. Ivan Torraca, de 30 anos, encontrou por acaso uma camisa da Seleção Brasileira de 1994 que há tempos procurava. Na ocasião, gastou apenas dois reais. Ele explica: “Quem não tem dinheiro vai em brechó, em bazar e encontro de colecionadores”. Com sites de compra e venda em alta, as camisas que antes eram pouco conhecidas passam a ser valorizadas, o que inflaciona o preço no mercado e torna a disputa cada vez mais acirrada. Dez segundos fazem a diferença em um leilão e é necessário focar na hora de começar uma coleção, “senão você sai comprando tudo que vê pela frente e não sai do lugar”. Camisetas, botões e álbuns são objetos que capturam o sentimento de nostalgia de seus colecionadores e a saudade de uma época em tons amarelados – seja pela camisa da Seleção, seja pelo tempo. O professor Moacir derrama-se ao falar da paixão de colecionador: “É uma emoção muito grande reencontrar algo que você colecionou quando menino. É um misto de descoberta com o reviver do momento”.
55 mm “Seu” Marcelino produz artesanalmente cada botão
6 mm • Futebol com os dedos •
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Quais são as regras e peculiaridades do futebol de botão?
Tipos de jogo existentes:
Sobre o campo, são dispostos vinte e dois botões no total incluindo os goleiros, com tamanhos que variam entre 50 e 60 milímetros de diâmetro, com até 6 milímetros de altura. No meio da mesa, de 2,2 metro de largura por 2,8 metros de comprimento, fica uma bolinha de 10 milímetros de diâmetro No jogo oficial são onze botões de cada lado: cinco no ataque, cinco na defesa e um goleiro para cada time. Os defensores são maiores para ocupar mais espaço e desempenhar melhor a sua função, enquanto os jogadores da frente são menores. Existem duas categorias para os campeonatos de botonismo: o “liso”, no qual os botões têm a parte de baixo preenchida, como uma moeda; e o “livre”, em que os botões são ocos.
Um toque: cada jogador encosta somente uma vez na bola.
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Três toques: cada um dá três toques no disquinho. Doze toques: Cada jogador dá três toques com um botão, pega outro, dá mais três toques, e assim sucessivamente, até chegar no 11º botão. No 12º, escolhe se vai chutar para o gol ou passar a bola para o adversário, mas, se qualquer outro botão (com exceção do primeiro) estiver em uma posição boa, pode arriscar um chute a gol antes de chegar no último. “Quando o adversário vai chutar, ele avisa ‘vai para o gol’, para que o outro jogador tenha tempo de posicionar o goleiro, que não pode se mexer na hora do chute”, explica o fabricante de botões.
• A HISTÓRIA DAS CAMISAS DA SELEÇÃO • 1914: Foi a primeira camisa oficial da Seleção, sendo usada na estreia do time: um amistoso contra o time inglês Exeter City, no Rio de Janeiro, no Estádio das Laranjeiras.
1958: O Brasil ganha um título inédito: se consagra campeão mundial. A Seleção teve que improvisar uma camisa para enfrentar a Suécia na final, que jogava de amarelo. As camisas azuis foram compradas em uma feira em Estocolmo. Nelas, foram costurados os símbolos recortados da “amarelinha”.
1968/69: Seis anos depois da segunda vitória na Copa do Mundo, a camisa da Seleção recebeu duas estrelas pelas conquistas dos títulos de 1958 e 1962.
1954: A aparição da clássica “amarelinha”, feita por Aldyr Schlee, que venceu o concurso para o design da nova camisa. Pela primeira vez, as cores da bandeira aparecem no uniforme da equipe.
1987: Em um amistoso contra o Chile, a Seleção exibiu, numa única ocasião, um patrocínio na frente da camisa; no caso, a Coca-Cola. A repercussão foi tão ruim que a CBF logo desistiu da ideia.
2014: A
camisa, com gola em Y, é feita inteiramente de garrafas PET recicladas. São necessárias dezoito embalagens para confeccionar cada uma. Neste ano, a camisa da Seleção Brasileira completa um século de existência. ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2014
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cartum
das quadraS aos
QUADRINHOS Um golaço de lápis e borracha que encheu as páginas de gibis e revistas com a paixão pelo futebol REPORTAGEM catherine rodrigues, STÉFANNI MENEGUESSO MOTA (1o ano de Jornalismo) e VITÓRIA VACCARI (2º ano de Jornalismo) COLABORAÇÃO ANA BEATRIZ ROSA (2o ano de Jornalismo) ILUSTRAÇÃO HELOÍSA D’ANGELO (2o ano de Jornalismo)
Ela é redonda, mas se encaixa perfeitamente no pequeno espaço quadrado. Se as linhas que formam os quadrinhos fossem as traves do gol, a bola de futebol balançaria a rede facilmente: de ilustrações noticiosas a personagens fanáticos pelo esporte, o mundo das HQs já teve alguns exemplos relacionados ao esporte que é considerado “paixão nacional”. Unir a bola aos quadrinhos não é novidade: antes da chegada da televisão, em 1950, eram as ilustrações que representavam o que rolava em campo. Os desenhistas José Roberto Maia e Haroldo George Gepp – dupla conhecida como Gepp e Maia – faziam ilustrações detalhadas para representar o passo a passo de uma partida, mostrando, com setas e desenhos, os passes e lances que levavam até o gol – algo parecido com o que se vê, hoje, no replay das transmissões de jogos. Atualmente, os quadrinhos e o espor-
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te voltam a estreitar laços. Em época de Copa do Mundo, o quadrinista Fabrizio Andriani lança em Curitiba, em colaboração com um time de trinta outros cartunistas, o livro Entre Quatro Linhas, e afirma: “A HQ, como arte, deve muito ao futebol”.
Centro-avantes Nessa relação entre os quadrinhos e a redonda, a primeira personagem que vem à cabeça é Zé Carioca (Joe Carioca, no original), a única figura brasileira de Walt Disney, criada em 1940, durante a política da Boa Vizinhança dos Estados Unidos. O papagaio verde de chapéu panamá e terno amarelo era o típico estereótipo do malandro carioca. Portanto, amava loucamente futebol, chegando até a integrar a delegação nacional nas Copas de 1982, 1986 e 1998. Os gibis da Turma da Mônica fazem parte das raras publicações em que o esporte não é
abordado de maneira isolada. Em geral, ele aparece como paixão das crianças do bairro do Limoeiro ou nas conversas entre torcedores: Cascão é fanático pelo Corinthians, a torcida de Cebolinha é declaradamente pelo Palmeiras, e o Anjinho é santista. Outra marcante criação de Mauricio de Sousa é o Pelezinho, personagem elaborado no final da década de 1970 para homenagear o “Rei” Pelé. Ronaldinho Gaúcho também foi reverenciado pelo cartunista, tornando-se, em 2006, uma de suas figuras icônicas. Voltando ao lado “malandro” do futebol, o cartunista Paulo Paiva – conhecido como P. Paiva – criou, na década de 1970, a personagem Maciota: um jogador folgado, descabelado e alcoólatra. Suas tirinhas foram inicialmente publicadas na revista Placar, no começo da década de 1980, e ganharam um gibi próprio em 1987. Adepto do “sistema 4-3-4” de jogo – quatro pingas antes, três du-
rante o intervalo e quatro depois –, Maciota destoava dos outros jogadores dentro de sua categoria e surpreendia por seu jeito irreverente e sua sinceridade. No livro Entre Quatro Linhas, Fabrizio e seus colaboradores, em parceria com as editoras Quadrinhópole e ZnorT!, publicaram algumas tirinhas da criação de Paulo Paiva. Também procuraram trazer de volta o arquétipo do jogador de várzea: “Quisemos resgatar a tradição do boteco, da cerveja e do futebol no rádio. Tanto é que um dos nossos patrocinadores é o bar O Torto, que homenageia o Garrincha”, explica o cartunista. O livro, idealizado em janeiro, foi lançado no final de maio, em Curitiba, com vários relatos sobre a modalidade, todos em quadrinhos. “Fizemos uma série de leituras sobre o esporte para que as duas coisas combinassem”, revela Fabrizio, que já pensa em elaborar um segundo volume da obra.
Fora do campo nacional O futebol invade as HQs também internacionalmente. Dico, o Artilheiro foi criado nos Estados Unidos, no início da década de 1970, pelo argentino José Luis Salinas. A distribuidora de quadrinhos King Feature encomendou o cartum ao artista para tentar popularizar o gosto pelo futebol no país. Publicado em revistas na Argentina e no Reino Unido, Dick – ou Dico, na versão em português, lançada em 1975 –, era um jogador de futebol que também combatia o crime, misturando assim reportagens do mundo do futebol e aventuras policiais. O gênero não é exclusivo da porção ocidental do mundo. Cassius Medauar, diretor de conteúdo da editora de mangás JBC, explica que o futebol também é um tema muito popular nas HQs japonesas. Prova disso é o Super Onze, mangá escrito por Tenya Yabuno e trazido para o Brasil pela JBC. “Acha-
mos engraçado que, no país do futebol, não houvesse nenhum mangá com este tema”, lembra Medauar. Super Onze (Inazuma Eleven, no original) é uma série em 34 volumes que acompanha a trajetória do goleiro Satoru Endo e de seu time de meninos dotados de super-poderes. Popular como o esporte que retrata, o quadrinho já chegou a ser adaptado para anime (desenho animado), e foi veiculado inclusive no Brasil, pela Rede TV!, entre 2010 e 2012. Seja no passado, com Gepp e Maia ilustrando a arte de se fazer um gol e o Zé Carioca representando o brasileiro fanático, ou no presente, com o diversificado Entre Quatro Linhas, a “gorduchinha” tem um espaço tímido nas páginas frágeis de gibis. Nem por isso, o jornalista Sergio Miranda deixou de sentir na pele a emoção produzida pelos cartuns com o futebol e recorda: “Aprendi a ler com revistas em quadrinhos”.
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ALI NA ESQUINA (1° ano de Jornalismo), Sarah Mota Resende (2º ano de Jornalismo), Débora Fiorini, Juliana Bechelli (3º ano de Jornalismo)
Alma do
FUTEBOL No coração de um estádio paulistano, o Museu do Futebol convida a olhar, sentir e viver o esporte nacional
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ANA LAURA PRADO
TEXTO Ana Laura Prado Stachewski, Heloísa Barrense
Debaixo das arquibancadas do Estádio Municipal Paulo Machado de Carvalho, também conhecido como Estádio do Pacaembu, existe um berço da história do futebol. Localizado na Praça Charles Miller – nome do pai do esporte no Brasil –, o Museu do Futebol respira e inspira paixão pela modalidade. Com um misto de antiguidade e inovação, é uma alternativa para os que procuram um passeio diferente e querem descobrir mais sobre o esporte que nasceu com o nome de ludopédio. Desde que foi inaugurada, em 2008, a atração é sucesso de público: cerca de dois milhões de pessoas já passaram pelos alicerces de concreto do Estádio. A construção, entretanto, não foi fácil. Além de ser tombada pelo Conselho de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental de São Paulo (Conpresp), a estrutura arquitetônica do estádio não permitia grandes intervenções. Porém, com a coordenação da Fundação Roberto Marinho e a participação do arquiteto Mauro Munhoz e Felipe Tassara, além da cenógrafa Daniela Thomas, o projeto pôde ser concluído com sucesso e receber amantes e curiosos do futebol. Para todos? Inovador e completo, o acervo do Museu conta com o Centro de Referência do Futebol Brasileiro, um espaço que disponibiliza mais de 1.500 artigos, dentre eles livros e DVDs. O visitante também pode consultar o acervo digital nos computadores da instalação. Para aqueles que, como Lucas Silva, de 14 anos, procuram descontração, o Museu também surpreende: “Sempre que venho encontro coisas novas”. Ivana Macedo, de 41 anos, diz não ser muito chegada à modalidade, mas admite que se sentiu atraída: “É incrível como conseguiram fazer um Museu falando apenas de futebol”. Acompanhada pela família, ela aprovou a estrutura do local, “nem precisava ter trazido o carrinho de bebê, pois eles já têm aqui”. Acessibilidade é um dos pontos fortes do Museu, o que faz a diferença. No começo do ano, o espaço ficou com o 3º lugar no IV Prêmio IberoAmericano de Educação e Museus, pelo amplo projeto de acesso que oferece para visitantes com deficiência visual, auditiva, física e intelectual. Informações em braile nas salas, audioguias, elevadores e educadores com metodologia especializada são as principais adaptações feitas para receber este público. Porém, quem visita pode enfrentar dificuldades para achar a entrada do museu. Segundo Elizeu Martins Nascimento, a falta de sinalização dificulta o aproveitamento da experiência. Ele não conhecia o
Onde? Praça Charles Miller, s/n Estádio do Pacaembu (São Paulo-SP) Quando? De terça a domingo, das 9h às 17h (Horários alterados em dias de jogos) Quanto? $ 6,00 (R$ 3 para estudantes e pessoas acima de 60 anos) Menores de sete anos, pessoas com deficiência (+1 acompanhante) e professores da rede pública não pagam. Entrada gratuita para todos os visitantes às quintas e aos sábados. Contato? (11) 3664-3848
Os visitantes saem do Museu com uma visão mais ampla sobre o esporte
local e ficou decepcionado: “Saí de casa com uma grande expectativa e me deparei com esse problema. Contornamos quase todo o estádio e não tinha nenhuma placa”. Sentidos do futebol O passeio possui um trajeto pré-determinado e de sentido único que mexe com os sentimentos dos visitantes. A exposição é dividida em três partes: emoção, história e diversão. Para Luiz Bloch, diretor executivo do Museu, tratase do “depósito mais vivo do futebol”, cuja vocação é mostrar como o esporte se insere na história brasileira. Emotivo, o Museu lembra na Sala da Exaltação a comoção de se estar no meio da arquibancada. São projetados no concreto da estrutura do estádio vídeos de torcidas em comemoração. Segundo Rafael Vasconcelos, um dos orientadores do espaço, a atração é uma das mais populares. Já a Grande Área homenageia os fanáticos com cartazes e acessórios ligados à paixão de ser torcedor. Enquanto os visitantes caminham, imagens de jogadores os driblam. Voltados para o histórico, fotos, vídeos e um amplo acervo contam como o esporte viveu e evoluiu ao longo dos anos, tornando-se símbolo de paixão e identidade nacional. A vasta cultura brasileira tem seu espaço: entre tantos aspectos, o futebol aparece ao lado da MPB e dos grandes expoentes da literatura. Triste, o Museu lembra da derrota do Maracanaço, na Copa de 1950, e se alegra ao homenagear dois craques: Pelé e Garrincha. Divertido, ele apresenta a modalidade em tudo que tem de mais curioso. Um grande almanaque com dados inusitados surpreende ao revelar segredos do que parece tão familiar. Jogadores amadores ainda podem avaliar seu potencial na atração Chute a Gol, que calcula a velocidade do chute, ou simular um jogo em um gramado projetado no chão. Unindo o antiquado ao futurístico, o Museu procura despertar emoção ao evidenciar as diversas facetas do esporte. As exposições temporárias enriquecem essa percepção: a última exibição, “Futebol de Papel”, reverenciou as figurinhas e seus colecionadores. Lá o futebol não é visto apenas como esporte, ele é cultura, história e identidade.
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QUADRINHOS POR heloísa d’angelo (2º ano de Jornalismo)
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QUADRINHOS POR GABRIEL ESCALEIRA (2º ano de Publicidade e Propaganda)
O povo foi às ruas...
para completar esse álbum!
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Pisa na linha de fundo
Começa a partida, ele avança pela direita
Toca pro Cidão
Matou no peito--
--BATEU...!
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CRÔNICA TEXTO Juliana arreguy (3º ano de Jornalismo) ILUSTRAÇÃO HELOÍSA D’ANGELO (2º ano de Jornalismo)
A
peneira
A chuteira era meio frouxa. Foi do primo. E do outro primo antes desse. Era gasta e velha, mas era boa. Foi uma dona lá da cidade quem deu. A estrada era fria. Olhou pra mãe adormecida, preocupada até em sonho. E respirava o frio que vinha de fora. Como seria a capital? Grande. Disso tinha certeza. Com prédios enormes e gente ruim. Não sabia o tempo passado desde o início da viagem. Às vezes se via no gramado vazio. Mas já acabou? Acabou. Acabou e você perdeu, menino. Mas aí acordava. Sonhara ou seria um devaneio de estrada? Era só ansiedade. E anseios também. O anseio de correr o mundo dentro de um gramado. De ser jogador bom, que garante o próprio sustento. Que aparece na tevê e ganha carro zero. E suspirava frio, quantas namoradas teria quando jogador. Se fosse jogador. Se conseguisse jogar na manhã seguinte. Se conseguisse passar na manhã seguinte. E puxava o boné, suando medo. Queria mesmo ser herói por uma noite. Ou pela eternidade. O herói do gol. Que o herói do dia é quem faz o gol. Ele ia era fazer gols. E apontar pra mãe, no meio do estádio. E pro vô, lá do alto, que apresentou a bola. E Didi, Zico, Pelé, Rivellino e Tostão. E teve aquele que perdeu um pênalti importante na história. Mas ficou na história, não nas lembranças do garoto. Foi o vô quem viu que ele era bom de bola. O vô jogou bola quando novo, mas não falava sobre isso. Foi com a bola que comprou a casa e conheceu a vó. E perdeu tudo. Mas o vô criou os filhos no interior, com a vizinhança a ajudar. E ali ensinou o menino a jogar. A lama tinha até buraco. E ele sabia se livrar bem dos buracos. O vô
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falava que o Garrincha era assim. Mas o Garrincha não era o da perna torta, vô? Era sim, o anjo das pernas tortas. Nunca houve um homem feito Garrincha. Ou seria Heleno? Quem mais fazia gol, vô? Queria era ser o fazedor de gols. De repente chegou na capital. Mas estava com o vô falando dos ídolos do passado. Seria sonho? Desceu tremendo. A mãe o segurava pela mão. Entraram num ônibus cheio de gente. Ninguém dizia bom dia. A paisagem era de vidros das janelas, escura e fumacenta. No gramado de verdade a ânsia e o anseio se degladiavam no estômago. Colocou o colete, as chuteiras e mal teve tempo de ganhar um beijo da mãe. Estava no campo frio com outros tantos garotos para descobrir o futuro herói. E viu a bola limpinha. Não era de meia, mas era bola. E bola é bola. Olhava para a velha amiga e sabia o que fazer. E ia ouvindo longe o zumbido de apitos e gritos juvenis. Driblava e corria. Cruzava para o vô, sabe-se onde, que tocaria de volta para o Djalma. O Julinho faria a assistência, e ele seguiria pelo meio. Evair, Deco, Bellini... passavam todos aos seus olhos, na singular maestria do contato com a bola e do espetáculo que orquestrava com os pés. E ouvia o vô dizer pra tomar cuidado. Caiu sob os pés do marcador. Pênalti. E a amiga bola, posicionada, sorrindo a esperar. Dois passos pra trás e o sinal da cruz. E avançou. Não teve aquele jogador importante que perdeu um pênalti, vô? Mas o jogador ficou no passado. O garoto não. O garoto marcou.
“Em futebol, o pior cego é o que só vê a bola. A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana. Às vezes, num córner mal ou bem batido, há um toque evidentíssimo do sobrenatural” Nelson Rodrigues