Vértices v23n3 - Dossiê "Questões contemporâneas da educação no Brasil e em Portugal"

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Editorial (v23n3) O terceiro número da revista Vértices em 2021 é um dossiê intitulado “Questões contemporâneas da educação no Brasil e em Portugal”, que traz onze artigos, originados da proposta selecionada pelo Edital de dossiês temáticos de 2020. Os organizadores (as), José Manoel Vieira Soares de Resende, da Universidade de Évora, em Portugal, Nívea Silva Vieira, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Eduardo da Costa Pinto D’Ávila, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Janeiro e Marco Vinícius Moreira Lamarão, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense se reuniram, em uma parceria de pesquisadores(as) portugueses(as) e brasileiros(as), integrando temáticas relacionadas à educação que visam fortalecer os muitos desafios sobre essas questões nesses países. O dossiê trata de temas importantíssimos no contexto da educação, incluindo a desigualdade educacional, a precarização da carreira docente, o racismo estrutural, a violência sistêmica e a ameaça ao caráter público da educação. Os aportes teórico-metodológicos apresentados pelos autores circulam pelo campo da educação na sociologia, antropologia, história e pedagogia. Assim, os artigos, elaborados a partir de pesquisa de seus autores, abrem inúmeras possibilidades de reflexões, de uma pluralidade de regiões, potencializando parcerias e “inspirando uma agenda de lutas”. A riqueza das pesquisas pode ser verificada nas contribuições dos autores, nos onze artigos, reunidos pelos organizadores do dossiê em três partes: “Diversidade”, “Formação (Discente e Docente)” e “Financiamento e financeirização da educação”. A Parte 1: Diversidade contém três artigos: Os filhos de um deus menor: de arisco à chegada à acolhida pela philia; Como acolher os estudantes Ciganos na escola pública? Do reconhecimento da alteridade a uma pluralidade de arranjos discriminatórios e O arco-da-velha na escola: no reconhecimento público das diversidades culturais em escola inclusa. Na Parte 2: Formação (Discente e Docente), há quatro artigos: É pra falar de gênero sim: considerações teóricas e práticas sobre a importância de uma educação antissexista nos institutos federais; Técnico ou graduado? A formação do jovem no ensino médio técnico profissionalizante; As Competências Socioemocionais na Formação da Juventude: Mecanismos de Coerção e Consenso frente às Transformações no Mundo do Trabalho e os Conflitos Sociais no Brasil e O interesse individual como justificação: a gramática liberal na construção da colegialidade dos professores do ensino Básico e Secundário. A Parte 3: Financiamento e Financeirização da educação é composta pelos quatro últimos artigos: A agenda do capital financeiro para a educação da América Latina em tempos de pandemia; A Parceiros da Educação e o processo de colonização da educação pública; Os novos e velhos problemas do “Novo Fundeb”: análise da Emenda Constitucional 108/2020 e Aspectos históricos do financiamento da educação básica pública brasileira: a “democratização autocrática”. Dando continuidade a um trabalho que os Editores da revista Vértices vêm apresentando no Editorial, de pequenos textos sobre temas relacionados à redação científica, neste terceiro número, do ano de 2021, será abordado sobre a seção Resultados do artigo científico. No primeiro número de 2021 trouxemos contribuições sobre a Introdução do artigo científico e no segundo, a seção Material e Método, Método ou Metodologia. A seção Resultados do artigo científico tem como propósito, como o próprio nome indica, mostrar o que foi encontrado na pesquisa. São os dados originais obtidos e sintetizados pelo autor, com intuito de fornecer resposta à questão que motivou a investigação (MEDEIROS, 2016). Assim, os principais achados são apresentados acompanhados do respectivo tratamento estatístico, se dele houver necessidade (VOLPATO, 2015). Medeiros (2016) sugere que a seção Resultados seja o mais objetiva e direta possível, de tal modo que:

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Inclua apenas os resultados necessários para sustentar as conclusões. O objetivo do estudo determine as variáveis principais e/ou relacionadas que deverão ser destacadas/apresentadas. O texto deve ser condensado, objetivo e claro, o verbo é usado no tempo passado.

A forma de apresentação dos dados na seção Resultados poderá ser em forma de texto, tabelas/quadros ou figuras (gráficos, fotos, diagramas, fluxogramas, etc.) e a interpretação deve ser mínima, apenas sumarizante, com destaque para os dados significativos. No entanto, a decisão sobre a forma de apresentação dos resultados depende do entendimento da participação de cada um na construção das conclusões do estudo. É essa importância que direcionará para expressá-los como figura, tabela ou texto (MEDEIROS, 2016). A apresentação dos elementos na seção Resultados deve considerar dados relevantes obtidos e sintetizados pelo autor tais como: i) as características dos sujeitos do estudo: demográficas, socioeconômicas, clínicas ou de outra natureza que descrevem o grupo ou os grupos estudados, a descrição da amostra; ii) à variável ou às variáveis principais da pesquisa – o achado principal que responde ao(s) objetivo(s) do trabalho e; iii) às demais variáveis, as secundárias ou as que têm de ser consideradas na análise dos dados, ou seja, achados secundários relevantes ou inesperados que mereçam destaque (VOLPATO, 2010). Como recomendações aos autores seguem ainda algumas regras básicas que devem ser observadas: i) mesclar com sabedoria texto, tabelas e figuras, atendendo a três princípios básicos; ii) apresentar os resultados em sequência lógica no texto e nas ilustrações; iii) enfatizar ou resumir apenas observações importantes e não repetir, no texto, todas informações das tabelas ou das ilustrações e; iv) indicar, sempre que apropriado, a significância estatística dos resultados (PEREIRA, 2012). A publicação deste terceiro número do ano, antes do início do interstício, em agosto, em vez de dezembro como ocorreu em anos anteriores, é motivo de comemoração e uma grande conquista para todos nós, da equipe da Essentia Editora e editores da revista Vértices que vimos planejando e almejando esse objetivo de modo a oferecer aos nossos leitores o acesso aos artigos pontual e periodicamente, primando sempre pela qualidade. Como de costume, não podemos deixar de agradecer aos organizadores do dossiê, aos autores, avaliadores e leitores da revista Vértices. Desejamos a todos e todas, votos de saúde, coragem, energias renovadas e muita esperança nesses tempos difíceis. Vamos em frente!!! Uma ótima leitura a todos e todas!! Inez Barcellos de Andrade Editora Assistente

Edson Carlos Nascimento Editor Associado

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Referências ABNT. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 6022:2018. Informação e documentação: Artigo de periódico em publicação técnica e/ou científica. 2018. FERRAZ, E. C.; NAVAS, A. L. N. G. Publicação de artigos científicos: recomendações práticas para jovens pesquisadores. São Paulo, 2016. Ebook. Disponível em: https://www.abecbrasil.org.br/arquivos/recomendacoes_publicacao_jovens_pesquisadores.pdf. Acesso em: 11 ago. 2021. MEDEIROS, J. B. Redação de artigos científicos. Rio de Janeiro: Atlas, 2016. PEREIRA, M. G. Artigos científicos: como redigir, publicar e avaliar. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, c2012. THEREZO, G. P. Redação e leitura para universitários. 2. ed. Campinas, SP: Alínea, 2008. 173, [2] p. VOLPATO, G. L. Método lógico para redação científica. São Paulo: Best Writing, 2010. VOLPATO, G. L. Guia prático para redação científica. São Paulo: Best Writing, 2015.

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Editorial do Dossiê Temático (v23n3) Apresentação A ideia motivadora deste dossiê foi reforçar os laços entre pesquisadoras (res) portugueses (as) e brasileiros (as) do campo educacional de forma a integrar os grupos de pesquisas, além de fortalecer a pesquisa empírica sobres os desafios contemporâneos na educação no Brasil e em Portugal. Entendemos esta aproximação como uma reoxigenação da tarefa de unir a classe trabalhadora mundial no campo educacional. Essas pesquisas reuniram anos de trabalhos coletivos feitos por dezenas de laboratórios em regiões diversas lusitanas e brasileiras e este dossiê traz o acúmulo dessas investigações que podem e devem ter um duplo caráter: um acadêmico e um programático. Neste sentido, o objetivo foi preencher lacunas, abrir flancos de estudo, potencializar as parcerias entre autoras e autores que escrevem não apenas em língua portuguesa, gerar novas necessidades congressuais, valorizar a pluralidade teórico-conceitual e inspirar uma agenda de lutas. A presente coletânea de artigos se inscreve em uma conjuntura de desafios educacionais tanto no Brasil quanto em Portugal, países que possuem temas que atravessam a escola, como desigualdade educacional, precarização da carreira docente, racismo estrutural, violência sistêmica e ameaça ao caráter público da educação. Para além de uma mera coleção de artigos, a função social deste dossiê é estimular a pesquisa no campo educacional que precisa alinhar universidade e escola com políticas públicas de pesquisa escolar. A dimensão programática da atividade científica se caracteriza pela atuação desses cientistas em processos de disputa na formulação de políticas públicas, como parte de uma relação histórica entre a produção de conhecimento e suas mediações e/ou participações através de grupos e entidades em conselhos, fóruns, parlamentos, sindicatos e órgãos estatais. No âmbito acadêmico, o dossiê reuniu aportes teórico-metodológicos sobre educação da sociologia, da antropologia, da história e da pedagogia. O processo de construção deste trabalho envolveu uma reflexão sobre a relevância de estimular os debates educacionais no Brasil e em Portugal através de pesquisas, em um contexto de lutas em defesa da universalização da escola pública, gratuita, laica e de qualidade. O presente dossiê está dividido em três partes: diversidade, formação e financiamento e financeirização da educação. As onze publicações deste dossiê configuram um amálgama que conseguimos organizar em torno desses grandes temas nos programas de pós-graduações em educação no Brasil e em Portugal. A possibilidade de iniciar a obra com o debate sobre a diversidade fortaleceu uma das linhas norteadoras dessa organização que é o reforço da educação em uma perspectiva transformadora. As questões étnico-raciais e de gênero assumem uma dimensão maior na atualidade no contexto de lutas contra o epistemicídio e contra o feminicídio (fenômenos crescentes mundialmente). Isto se soma à atuação de setores reacionários que se organizam em torno de uma agenda ultraconservadora que visa à militarização e à neopentecostalização das escolas. Contra esses setores, frações privatistas “republicanas” que atuam no campo da educação vêm tentando ser uma força protagonista na condução da crise orgânica do capital no âmbito educacional. De outro lado, a fração de trabalhadoras e trabalhadores da educação diversificam e renovam suas estratégias e/ou mudam suas táticas na disputa e construção de outra hegemonia. O conjunto de artigos do eixo diversidade que abrem a coletânea fortalecem o debate, a luta contra a “ditadura do pensamento único” e ampliam os horizontes congressuais em suas interfaces com os movimentos sociais, partidos e sindicatos. O primeiro artigo “Os filhos de um deus menor: de arisco à chegada à acolhida pela philia” de José Manuel Resende e José Maria Carvalho é emblemático da ampliação teórico-conceitual e da

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diversificação temática localizada na resistência a uma concepção única de educação. O trabalho é resultado de uma pesquisa em “sociologia pragmática” e tem como tema os fluxos migratórios e a sociabilidade dos alunos estrangeiros nas escolas. Metodologicamente foram usadas observação etnográfica, entrevistas semidiretivas com secundaristas em duas escolas, com objetivo de refletir essa hospitalidade da escola do aluno estrangeiro. O segundo artigo “Como acolher os estudantes Ciganos na escola pública? Do reconhecimento da alteridade a uma pluralidade de arranjos discriminatórios” de Pedro Jorge Caetano, Maria Manuela Mendes e Olga Magano, reforçou e especificou esta problemática do acolhimento pela escola no papel de conter a discriminação. Através de entrevistas com setecentos alunos não ciganos e três ciganos, o trabalho teve como objetivo entender a melhor forma da escola pública da Grande Lisboa acolher estudantes ciganos discriminados em outra escola. O trabalho está amparado pela “sociologia compreensiva” e no aporte teóricoconceitual da “semântica da ação” e a metodologia foi marcada por um questionário “baseado em cenários”. O terceiro artigo “O arco-da-velha na escola: no reconhecimento público das diversidades culturais em escola inclusa”, de José Manuel Resende, Guilherme Paiva de Carvalho e Aline Raiany Fernandes Soares, encerra seção da diversidade. O trabalho teve como objetivo apresentar “como os conceitos de multiculturalismo, interculturalidade e diversidade cultural são ressignificados nas linhas mestres das políticas e ações públicas no Brasil e em Portugal”. Destaca-se a dimensão programática do trabalho no tema da inclusão escolar, pois há uma interface com os processos de formulação de políticas públicas educacionais desses países. Destacamos nestes três primeiros artigos o aprofundamento progressivo em torno desses temas e também o predomínio teórico-conceitual da antropologia e da sociologia da educação. A ordem e a organização desses artigos na primeira parte têm o intuito de abordar a totalidade da problemática suscitada pelo tema da diversidade, pois foram relevantes as perspectivas macrossociológicas (política e educação) e as abordagens microssociológicas (entrevistas semidiretivas, observação etnográfica, entrevista baseada em cenários) nesta parte I do dossiê. O artigo “É pra falar de gênero sim: considerações teóricas e práticas sobre a importância de uma educação antissexista nos institutos federais”, de Alice de Araújo Nascimento Pereira, Camila França Barros e Olivia de Melo Fonseca, inaugura a segunda seção com o tema da formação docente e discente. Trata-se de um artigo que possui um duplo caráter: primeiro o de investigar possiblidades de combate à homofobia e à transfobia na sociedade; e segundo de problematizar como educadores e estudantes estão lidando com a educação antissexista. O trabalho tem como objetivo refletir sobre o que de fato foi feito (“ações concretas”) nos Institutos Federais no que se refere a uma “educação feminista, libertária e afirmativa”. No âmbito teórico-metodológico o artigo está ancorado na pedagogia histórico-crítica, entendendo que a escola é um espaço em disputa e os conceitos de classe, gênero e questões étnico-raciais se sobrepõem. Na metodologia recorrem a uma análise bibliográfica e aos relatos de experiências, o que reforça a diversificação de técnicas e métodos de pesquisa como uma das contribuições deste dossiê. Entendemos que esse artigo sobre gênero na escola traz reflexões curriculares exigidas na produção e reprodução de outra hegemonia. O artigo “Técnico ou graduado? A formação do jovem no ensino médio técnico profissionalizante” de Emerson Allevato Furtado, Izabella de Aquino Leandro, Marcelo Cardoso da Costa é um aprofundamento sobre a formação discente. O trabalho reforçou o aspecto plural no que se refere ao campo da sociologia da educação destacando a relação entre identidade profissional e mobilidade social na Baixada Fluminense, uma das regiões mais pobres do estado do Rio de Janeiro. O trabalho é resultado da constituição de um grupo de pesquisa no âmbito do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia,

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na unidade Duque de Caxias. O trabalho sublinhou a relação entre a educação profissional e as trajetórias da juventude periférica, com o objetivo de refletir sobre a relação entre educação e trabalho e as possiblidades de mobilidade social. Destaca-se no aspecto teórico-metodológico o uso de conceitos da sociologia educacional de Max Weber (“racionalização”) e, dentro da corrente weberiana, das contribuições de Karl Mannheim. A pesquisa usou análise bibliográfica e entrevistas com estudantes do último período do curso técnico de Química, sobre suas percepções acerca da sua identidade profissional. O terceiro artigo da parte II “As Competências Socioemocionais na Formação da Juventude: Mecanismos de Coerção e Consenso frente às Transformações no Mundo do Trabalho e os Conflitos Sociais no Brasil”, de Inny Accioly e Rodrigo de Azevedo Cruz Lamosa, tem como tema o estudo de documentos internacionais voltados para a educação. Referenciado no materialismo histórico-dialético, o estudo parte da implementação nos Estados Unidos das orientações para formação da juventude e analisa a sua influência no processo de formulação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) no Brasil e a tendência do projeto de escola “cívico-militar”. O tema preenche lacunas no campo educacional sobre processo de militarização e neopentecostalização da escola pública. O artigo conclui que “o fomento das competências socioemocionais apresenta tendência de caráter repressivo/coercitivo”. O artigo “O interesse individual como justificação: a gramática liberal na construção da colegialidade entre professores do ensino Básico e Secundário” de Luís Gouveia encerra a parte I. O trabalho tem como objetivo estudar como a “gramática liberal” está sujeita a uma organização escolar que impacta (usando o conceito de “regimes de envolvimento”) o trabalho docente. Na metodologia, a pesquisa foi marcada pela aplicação de questionário de cenário em uma escola em Portugal, a partir de conceitos da sociologia pragmática e das organizações escolares. O autor enfatiza a relação entre as políticas e as reformas educacionais contemporâneas aos impactos na formação docente no contexto de fomento à “eficácia” na educação pelos documentos internacionais. Ao tratar de forma tangencial de documentos internacionais, consideramos que o artigo que fecha a parte II também cumpre a função de preparar para a terceira e última parte do dossiê. Ao relacionar o conceito de “eficácia” amplamente propalado pelo Banco Mundial, é uma oportuna transição para a agenda do capital para a educação, tema do artigo inaugural da terceira parte sobre financiamento e financeirização da educação. O artigo “A agenda do capital financeiro para a educação da América Latina em tempos de pandemia” de Renata Spadetti Tuão e Rodrigo de Azevedo Cruz Lamosa, trata da atuação de fundos de investimentos estrangeiros na educação pública. O trabalho tem como objetivo apresentar os “elementos constitutivos dessa agenda no período pandêmico em sua correlação com as estratégias do capital financeiro em curso, desde a década de 1990”. Foram analisados documentos de dois organismos internacionais, um deles o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e outro ligado ao capital financeiro. O referencial teórico-metodológico foi o materialismo histórico e dialético e o resultado é uma estreita relação entre as formulações sobre “responsabilização” dessa agenda e a precarização da profissão docente. O artigo “A Parceiros da Educação e o processo de colonização da educação pública” de Regis Eduardo Coelho Argüelles da Costa investigou uma Organização Social de Interesse Público (OSCIP), a “Parceiros da Educação” (PdE), através da análise da composição de seu Conselho Executivo entre 2009 e 2013. Ancorado no materialismo histórico dialético, usou conceitos de Antônio Gramsci e Nicos Poulantzas para investigar a Parceiros da Educação (PdE) como uma “associação dirigida por representantes bastante significativos da burguesia que atua no Brasil, especialmente do capital financeiro” (…) “cujos tentáculos envolvem instituições como o Todos pela Educação, partidos políticos e postos chave no aparato de Estado”.

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O artigo “Os novos e velhos problemas do “Novo Fundeb”: análise da Emenda Constitucional 108/2020” de Fábio Araújo de Souza, analisa a proposta do Novo Fundeb, promulgada no Congresso Nacional brasileiro (Emenda Constitucional N.º 108/20). Com base no materialismo histórico dialético, investiga o que chama de “novo mecanismo permanente de financiamento” que amplia a capitalização da educação básica. A metodologia envolveu análise documental e revisão bibliográfica, questionando “a centralidade na elevação dos índices de aprendizagem – que pode gerar disputa injusta entre as redes com maior disponibilidade de recursos e as com menor; a consolidação da meritocracia e de possíveis fraudes nos indicadores; a inviabilização do Custo Aluno-Qualidade (CAQ) diante da nada generosa complementação do ente que mais arrecada tributos no país”. E, por fim, encerrando o dossiê, o artigo “Aspectos históricos do financiamento da educação básica pública brasileira: a democratização autocrática” de Marco Vinícius Moreira Lamarão, tem como objetivo analisar historicamente o financiamento da educação básica, do Brasil- Colônia até a Constituição de 1988. Através de análise documental da legislação, o trabalho é resultado de um esforço para articular conceitos da sociologia, da história e da educação, de Florestan Fernandes (“capitalismo dependente”), Jacob Gorender (“escravismo colonial) e Eveline Algebaile (“ampliação para menos”). O autor analisou a legislação sobre financiamento da educação desde o período colonial brasileiro para construir sua hipótese: a de que a categoria de “democratização autocrática” é uma “chave analítica da educação pública brasileira”. A tentativa de organizar em torno de três eixos não deixou de lado a existência de um sólido fio condutor, que foi o rigor do método e da pesquisa sobre os desafios contemporâneos da educação no Brasil e em Portugal, em uma perspectiva crítico-transformadora. O esforço foi no sentido de sublinhar a espinha dorsal que perpassa os temas diversidade, formação e financiamento, que é a necessidade de pesquisa empírica no campo educacional. Destacamos a relevância dos objetos que tornou tão oportuna e tão necessária a coletânea, pois existem nexos entre financiamento, formação e como estes mecanismos influenciam no debate sobre diversidade. Apresentamos também uma variedade de conceitos, teorias, métodos, técnicas de pesquisa que valoriza a já sólida base de trabalhos de pesquisadores portugueses e brasileiros. Entendemos ser um indicativo da relevância da (re) construção do campo da educação e destacamos aqui as interfaces com a antropologia, filosofia, sociologia, história para superar os desafios contemporâneos escolares e forjar no agora um projeto mais justo e igualitário de futuro. Boa leitura!

José Manoel Vieira Soares de Resende (UÉvora) Nívea Silva Vieira (UERJ) Eduardo da Costa Pinto D’Ávila (IFRJ) Marco Vinícius Moreira Lamarão (IFF)

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Submetido em: 2 fev. 2021 Aceito em: 16 jun. 2021

DOI: 10.19180/1809-2667.v23n32021p615-634

Os filhos de um deus menor: de arisco à chegada à acolhida pela philia José Manuel Resende https://orcid.org/0000-0002-7233-2237 Doutor em Sociologia pela Universidade Nova de Lisboa (2001). Professor Catedrático no Departamento de Sociologia da Universidade de Évora - Portugal. E-mail: josemenator@gmail.com. José Maria Carvalho https://orcid.org/0000-0002-1479-2155 Professor Assistente Convidado (Sociologia) na Universidade Nova de Lisboa. Doutorando em Sociologia na Universidade de Évora – Portugal. E-mail: carvalhoze10@hotmail.com.

Resumo O alargamento da escolarização obrigatória e a tendência dos fluxos migratórios registada em Portugal neste século confrontamnos com a questão do acolhimento dos alunos estrangeiros na escola. A partir de uma pesquisa empírica em duas escolas do ensino Secundário situadas na área metropolitana de Lisboa, e com recurso a dados provenientes da observação etnográfica e da aplicação de entrevistas semidiretivas, propõe-se uma reflexão em torno das artes de fazer e refazer o comum no plural a partir da figura do estrangeiro. As sociabilidades escolares entre pares e o estabelecimento de relacionamentos de amizade e filiais afigurou-se um ponto de entrada profícuo para compreender os processos de acolhimento daqueles que, porque pouco familiarizados com a escola portuguesa, enfrentam situações de inevitável ansiedade e incerteza num período crítico das suas vidas, a adolescência. Palavras-chave: Estrangeiro. Escola. Hospitalidade. Sociologia Pragmática.

The children of a minor god: from shy on arrival to the reception by philia Abstract The enlargement of compulsory schooling and the trend of migratory flows in Portugal in this century confront us with the question of welcoming foreign students to school. From an empirical research in two high schools located in the Lisbon metropolitan area, and using data from ethnographic observation and the application of semi-directional interviews, we propose a reflection around the arts of making and remaking the common in the plural based on the figure of the foreigner. The school sociability among peers and the establishment of friendly and filial relationships seemed to be a useful entry point to understand the reception processes of those who, because unfamiliar with the Portuguese school, face situations of inevitable anxiety and uncertainty in a critical period of their lives, adolescence. Keywords: Foreign. School. Hospitality. Pragmatic Sociology.

Los hijos de un dios menor: de la distancia a la llegada a la acogida por philia Resumen La expansión de la escolaridad obligatoria y la tendencia de los flujos migratorios en Portugal en este siglo nos afrontan a la cuestión de la acogida de los estudiantes extranjeros en la escuela. A partir de la investigación empírica en dos escuelas secundarias situadas en el área metropolitana de Lisboa, y utilizando los datos de la observación etnográfica y la aplicación de entrevistas semidirectivas, proponemos una reflexión sobre las artes de hacer y rehacer lo común en plural a partir de la figura del extranjero. La sociabilidad escolar entre pares y el establecimiento de relaciones amistosas y filiales pareció ser un punto de entrada útil para comprender los procesos de acogida de quienes, por no estar familiarizados con la escuela portuguesa, se enfrentan a situaciones de ansiedad e incertidumbre inevitables en un período crítico de su vida, la adolescencia. Palabras clave: Extranjero. Escuela. Hospitalidad. Sociología Pragmática.

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Os filhos de um deus menor: de arisco à chegada à acolhida pela philia José Manuel Resende, José Maria Carvalho

1 As incertezas trazidas à entrada em uma escola que lhe é estranha: o caso dos alunos estrangeiros Não sendo propósito desta reflexão dar informes sobre que infraestruturas formais a escola dispõe para apoiar à chegada os alunos estrangeiros (FELDER et al., 2020), que ali fazem a sua primeira matrícula, a nossa interrogação fixa-se num outro ponto que, distinto do anterior, não deixa de aparentar certas semelhanças. Na verdade, estas infraestruturas que existem para auxiliar o novo que chega e quer permanecer em muitas cidades e países tradicionalmente procurados por pessoas vindas de fora, a capacitação proporcionada por aqueles dispositivos a quem os procura, é aqui deslocado para as sociabilidades escolares (PASQUIER, 2005; RAYOU, 1998; RESENDE, 2019a, 2019b; VIEIRA, 2015) entre pares, que são concebidas como um dos suportes mais disponíveis para esse acolhimento junto dos alunos estrangeiros. Cogita-se sobre a pessoa que na figura do aluno (KARSENTI, 2006) chega a uma escola onde nunca esteve matriculado. Imagina-se um aluno estrangeiro que se regista num estabelecimento do Ensino Secundário1 . Está na idade da adolescência, num arco temporal de vida em que busca a maturidade (BREVIGLIERI, 2007a, 2007b). Estando ainda na idade de explorar o presente, talvez não tenha pela frente um tempo infinito para se aventurar nessas explorações. Provavelmente, o céu não é naquele momento o limite do tempo que tem pela frente. Está a traçar a sua biografia escolar (VIEIRA, 2015) num momento crucial de aquisições para o seu crescimento humano. É de experiências de acolhimento de estudantes estrangeiros (RESENDE, 2019a; RESENDE; GOUVEIA, BEIRANTE, 2020) que este texto vai tratar analiticamente. Não atalhamos sobre as suas histórias de vida. O nosso foco diz respeito ao seu acolhimento na escola, dando maior ênfase ao trabalho que ele fez junto dos colegas da turma, ou que tenha respondido a gestos de aproximação que foram dados pelos colegas portugueses. Procuramos, por isso, conhecer, junto de alunos estrangeiros matriculados em duas escolas do Ensino Secundário da área metropolitana de Lisboa, como estes têm sido aceites tal como são2 pelos seus colegas da classe. Salientar a importância da chegada a um novo território escolar, onde nunca se esteve antes, e conhecer como foram aferindo as temperaturas da receção da parte dos seus pares (RESENDE; BEIRANTE, 2018), é uma hipótese forte para se examinar a hospitalidade fornecida por quem já lá está matriculado, ou por quem está a fazer uma transição de outra escola pública similar. Insistir na importância da chegada tem um outro pormenor de igual importância. Não conhecer o estabelecimento de ensino para onde vai estudar é não se sentir familiarizado com o espaço. Sem esse ar de família, a busca daquilo que mais importa em cada momento requer um trabalho acrescido de procura de informações que não são dispensáveis para quem pretende estender a sua permanência na escola. Por exemplo, saber as horas de funcionamento da biblioteca, da cantina ou do bar/lanchonete; estar a par do funcionamento dos serviços de secretaria ou conhecer o local da direção da escola; localizar as casas de banho/banheiros ou pavilhão para a educação física: são dados convencionais de algum relevo para quem tem o estabelecimento como seu local de trabalho. Sem esquecer, obviamente, onde se localiza a sua turma (RESENDE; GOUVEIA, 2014). Na verdade, no começo não se sente cabalmente habilitado 1 2

Ensino Secundário em Portugal corresponde ao Ensino Médio no Brasil. Procurou-se nas entrevistas e nas observações etnográficas que os alunos estrangeiros expressassem as suas experiências pela sua voz, apresentando-se ao observador sem mediações, mesmo linguageiras. Adotaram o sotaque e registaram-se as hesitações, os momentos pensativos, porque o falar português de Portugal soa estranho aos ouvintes estrangeiros que dominam a língua. Entre quem fala a mesma língua os léxicos não se reconvertem de forma mimética, quer nas colocações, quer nos sentidos que algumas palavras transportam no diálogo havido.

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Os filhos de um deus menor: de arisco à chegada à acolhida pela philia José Manuel Resende, José Maria Carvalho

a usar convenientemente aquele espaço, até porque as nomenclaturas convencionadas podem ter na base palavras que no seu linguajar natal apresentam outros significados. Por todas estas razões, sente-se a tatear e, por isso, os embaraços podem ser frequentes. Não obstante a natureza geral da forma escolar moderna, há particularismos3 que podem existir nos códigos protocolares locais que quem está a entrar pela primeira vez ainda não domina convenientemente. Daí a importância de se dar atenção aos momentos do acolhimento. A horizontalidade relacional é talvez um instrumento que favoreça a aproximação (RESENDE, 2011). E a proximidade corporal pode porventura proporcionar relações que deem a quem chega uma certa garantia de encontrar ali quem lhe possa atenuar as ansiedades, a insegurança, alcançando o desejo de um dia sentir-se em casa.

2 Ninguém deve ser deixado para trás: o lema da escola inclusiva É essa tranquilidade que é procurada quando o Estado determinou que a escola deve ser inclusiva. Não deixar ninguém à porta da escola é o resultado ambicionado pela medida da ação pública que visa a criação de uma escola para todos. Mais do que integrar, a inclusão escolar apresenta outras vocações mais ambiciosas (RESENDE, 2019a). Intende fazer do ser que é notoriamente diferente um ser que possa ser implicado no comum, assumindo no comprometimento possível um sentido de envolvência com todos os que coabitem os espaços da escola e ali se envolvam nas suas atividades matriciais. Não importa agora conhecer quais foram as balizas e os critérios da sua notificação formal enquanto diverso, como distinto. O que é decisivo é que todos sejam incluídos nas aprendizagens cognitivas, emocionais, comportamentais que a escolarização fornece e que a todos diz respeito. Os meios para as alcançar é aquilo que importa os professores fazerem de modo o mais coordenadamente possível4. No Decreto-lei nº 54/2018, publicado a 6 de julho do mesmo ano, a Presidência do Conselho de Ministros determina como uma das prioridades da ação governativa a aposta numa escola inclusiva onde todos e cada um dos alunos, independentemente da sua situação pessoal e social, encontram respostas que lhes possibilitam a aquisição de um nível de educação e formação facilitadoras da sua plena inclusão social. (PORTUGAL, 2018, p. 2918).

No Brasil o recinto para se fazer desporto é uma quadra. Esta palavra não é usada em Portugal com esse sentido. Chama-se pavilhão ou campo de jogos, ou ainda pavilhão desportivo. O quadrilátero que forma um conjunto de casas ou de prédios rodeados por ruas no Brasil denomina-se por quadra, em Portugal por quarteirão. O bar da escola é conhecido no Brasil pela lanchonete. Falar-se em bandejão como é habitualmente usado no Brasil, em Portugal soa sem sentido. Não é uma bandeja grande, mas o recinto onde se consomem refeições mais baratas. Em Portugal esse local é conhecido como a cantina. Tirar uma fotocópia significa xerocar, no Brasil. Chamar uma jovem ou moça de nacionalidade brasileira como “rapariga” pode causar sérios embaraços uma vez que essa denominação é interpretada como estando a classificá-la como pessoa indecente, indecorosa, uma vez que é moça, menina ou senhora as palavras habitualmente usadas para se chamar alguém do género feminino. 4 Contudo, os desígnios da escola inclusiva foram outros na sua génese. Aquele que se diferenciava por ser portador de uma qualquer diferença foi o primeiro alvo a ser votado pela noção de inclusão escolar. E, nesse sentido, era necessário encontrar meios profissionais e recursos para suprir aquelas necessidades denotadas como especiais. O que de exclusivo traziam estes seres para a escola? A natureza típica destes seres diferentes era não alcançarem os conhecimentos transmitidos pelos professores aos outros alunos, colegas da mesma labuta. As aprendizagens eram aquisições mais demoradas a surtir efeito, e em resultado dessa morosidade, os habituais métodos pedagógicos e didáticos não serviam os propósitos desta outra população escolar. Foi por estas razões que inicialmente a preocupação do Estado incidiu fortemente em alunos portadores de necessidades educativas especiais. Estas orientações do Estado português foram seguidas a partir do Policy Guidelines on Inclusion on Education publicado pela Unesco em 2009. 3

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Indo nesse sentido, o Estado firma “o compromisso com a educação inclusiva, de acordo com a definição da UNESCO (2009)5”. A reviravolta política produzida por este decreto é estender a noção de necessidades educativas especiais a todos os alunos, independentemente da sua origem social, das suas condições físicas e intelectuais, dos défices de linguagem ou outros. O propósito é alargar a qualificação das dificuldades e dos problemas de aprendizagem à generalidade dos alunos, evitando-se deste modo a conotação singularizada a um determinado grupo particular identificado a priori como estando mais em risco de ser excluído da escolarização. Incluir todos, semelhantes ou diferentes, mais iguais ou mais desiguais, significa sempre que a semelhança e a diferença expressa por cada um no todo em que se envolve na escolarização são apostas em escalas, ora contínuas, ora descontínuas. Tal asserção faz sentido porque a chegada à escola de um ser novo, seja qual for a porta de entrada, não é só a certeza previamente confirmada do seu devir, mas é também o lado de algum modo incerto daquilo que se espera que venha a acontecer. Os lances projetados no caminhar pela escolarização fazem prova justamente de um certo grau de incerteza quanto aos efeitos a esperar de cada lançamento a ser efetuado em cada um dos momentos do trajeto que se está a percorrer até ao final. Este é sempre linear? Que acontecimentos imprevistos podem acontecer no arco temporal que abarca a linha do percurso a realizar? O que é que as caminhadas experimentadas pelos caminheiros escolares trazem aos seus futuros na escolarização? Esses destinos, que não deixam de ser projetados em cada momento da duração de um tempo no presente, são tidos em conta na temporalidade em que se exprime a atualidade das suas ações?

3 No centro as sociabilidades escolares: o que comportam os amigos na escola? Em outra pesquisa (VIEIRA, 2015) foi possível traçar alguns desafios que os futuros em aberto e entendidos na sua pluralidade têm trazido à escolarização portuguesa. Um dos pontos das incitações que o futuro traz aos alunos, na figura de adolescentes, no Ensino Secundário prende-se com as suas escolhas quanto às áreas vocacionais a prosseguir após a conclusão do Ensino Básico6. Pontuar as suas preferências nas áreas do conhecimento ou nos cursos em que pretendem investir os três últimos anos do seu percurso na escolaridade obrigatória comporta níveis não despiciendos de ansiedade, incerteza e até receio sobre as opções tomadas. São temores num tempo presente, mas que se projetam em aspirações arrojadas num futuro não muito distante. Na verdade, estando no último ciclo de aprendizagem na escolaridade obrigatória, cada um tem de decidir se acede ao Ensino Superior ou se, ao invés, tenta entrar mais cedo no mercado de trabalho, ou ainda, em alternativa, se sonda procurar outras formações que complementem as anteriores. Cada uma destas hipóteses sugere apostas distintas, mas em cada uma delas não é possível rejeitar o incerto. Pelo que se averigua nos agenciamentos que os alunos nacionais fazem na construção das suas biografias nos seus contextos escolares e familiares não é de descartar o apoio que sentem dos seus amigos nas escolhas que fazem, quer com os seus eletivos na escola, quer com os outros que, fora da escola, não deixam de ser seus eleitos para os escutar em face das suas dúvidas e angústias (PASQUIER, 2005; RAYOU, 1998; RESENDE 2019a, 2019b; VIEIRA, 2015). Para dar cabimento às exigências estabelecidas por este organismo das Nações Unidas o Estado português assume com clareza que “no centro da atividade da escola estão o currículo e as aprendizagens dos alunos. Neste pressuposto, o presente decreto-lei tem como eixo central de orientação a necessidade de cada escola reconhecer a mais-valia da diversidade dos seus alunos, encontrando formas de lidar com essa diferença” (…) (PORTUGAL, 2018, p. 2918). 6 No Brasil a este grau de ensino denomina-se Ensino Fundamental. Aqui está outra nomenclatura diferente. 5

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Se nas decisões em assumir aquelas escolhas os alunos adolescentes não deixam de procurar alguma autenticidade de si (TAYLOR, 1991), isto é, examinam a sua projeção vocacional de maneira a que esta opção não traia, ou pelo menos não fira, o seu compromisso em relação às “suas preferências, gostos, sonhos e/ou talentos” (VIEIRA; PAPPÁMIKAIL; RESENDE, 2013, p. 22), sendo a realização de si ideada com uma exploração que cada um faz sobre si mesmo, esta busca não é feita sem outros apoios. Por outras palavras, se a modernidade tem sido atravessada, desde as revoltas juvenis nos anos sessenta do século XX, por ondas de ir e vir em que adolescentes e jovens de diversas gerações buscam os azimutes da sua individuação (RESENDE; VIEIRA, 1992), atualmente, mais do que outrora, essa individuação aparece assente na ideia de projeto (DIONÍSIO, 2011, 2015), que cada um tem de fabricar, indo ao encontro das suas legítimas vocações. Abraçado desta maneira, o projeto é uma espécie de dispositivo-suporte onde cada um entende investir para alcançar o melhor possível as metas, cujo fim último é alcançar a realização de si. Acontece que hoje o tempo disponível para estes exercícios são feitos durante a escolaridade obrigatória. Com o seu alargamento até aos 18 anos de idade, o projeto vai sendo confecionado em simultâneo com as experiências escolares que são vividas por cada um nas escolas, mas com maior incidência no estabelecimento de conclusão do seu trajeto obrigatório. Do manancial de experiências que vão sendo tecidas neste longo processo de escolarização, não menosprezando aquelas que rodeiam os seus professores, a mãe, os media, outros membros da família, as mais matizadas são aquelas que envolvem acontecimentos com os seus pares, uns mais distantes, outros bem próximos. Estes últimos são de proximidade tão vital porque justamente são denominados amigos, o que os diferencia de outros designados como colegas. E a amizade abre espaço à proximidade confidente, isto é, oferece espaços e momentos depositários daquilo que mais importa para a construção dos projetos de realização de si em planos de reciprocidade mútua (RAYOU, 1998; RESENDE, 2010). Sem essa reciprocidade expectável, a amizade é, em certo sentido, esvaziada do seu significado mais profundo. Tal é a importância decisiva desta figura na escola, que 54,8% de adolescentes e jovens à entrada do último ciclo do ensino obrigatório nomeiam os amigos como a sua fonte de informação para se decidirem sobre o trajeto de formação escolar a seguir neste último itinerário (VIEIRA, 2015, p. 202). Entre os apoios confessos, 28,8% dos alunos inquiridos “reconhecem como recurso de informação importante ou muito importante” (VIEIRA, 2015, p. 206) os seus amigos. Assim, é bem plausível discernir que o alongamento das experiências juvenis testadas em espaços escolares estejam efetivamente a contribuir para a criação de momentos, e seus acontecimentos indispensáveis, para uns e outros firmarem projetos amicais. Ora, tanto na amizade ensaiada em cada instante e na duração do tempo, como nas relações mantidas entre pares sem que isso requeira qualquer compromisso mais cúmplice, a sociabilidade escolar tem sido “uma faceta inequívoca de emancipação, pois amplia o escopo das relações e consagra a autonomia relacional face ao grupo familiar. Autonomia que se estende, de resto, também ao universo escolar” (VIEIRA, 2015, p. 207). A ser assim, entende-se agora melhor porque o nosso olhar sobre a acolhida do aluno novo que chega à escola foi trabalhado a partir do modo como ele vai experimentando os primeiros contactos com os seus pares que há mais tempo povoam aquele estabelecimento de ensino. Elevar as sociabilidades escolares, sob o signo de serem espaços com alguma virtualidade para potenciarem a boa inclusão7 a quem chega pela primeira vez à escola, é um ângulo que nos merece a maior distinção para ali descobrir como

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A boa inclusão é aqui referida no sentido de ser a inclusão mais justa tendo em conta os momentos e circunstâncias que envolvem aquele trabalho recíproco entre quem de novo chega a uma escola e quem já lá está matriculado.

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se tecem as relações entre uns e outros e se a partir destas os seus efeitos esperados vão se conjugar gradativamente nas artes de ali fazer o comum no plural.

4 Sob o manto da pesquisa: dados e metodologia De acordo com os dados trabalhados pelo Conselho Nacional de Educação, o número de inscritos nos três anos do Ensino Secundário8 tem crescido continuamente entre 2009 e 2014. Neste período, ainda não se faz sentir neste ciclo da escolaridade obrigatória o decréscimo de alunos, como já se notava no Ensino Básico. A partir de 2014 há uma relativa diminuição de alunos no Secundário em resultado das transformações da pirâmide demográfica. A redução das taxas de fecundidade e de natalidade têm sido constantes, e com o tempo esta transformação faz-se sentir na componente morfológica do número de alunos matriculados em todo o sistema escolar português. Ainda de acordo com a mesma fonte, entre 2009 e 2018 a taxa de escolarização no ciclo terminal da escolaridade obrigatória assenta em uma evolução positiva, isto é, assinala uma subida de quase 12%. Em 2017/18 quase 73% dos alunos apresentam uma idade escolar adequada a este grau de aprendizagem. Isto significa que o número de reprovações em anos anteriores tem estado a baixar. Inversamente, nos percursos dos cursos profissionais a população escolar apresenta uma estrutura etária mais elevada, uma vez que só cerca de 28% têm a idade escolar esperada para este ciclo de ensino. Entre os anos letivos de 2011/12 e 2018/19 o número absoluto de alunos estrangeiros matriculados no Ensino Secundário9 regista uma relativa oscilação. Se em 2011/12 se matricularam neste grau de ensino 18.359 alunos, em 2013/14 esse número desce para 14.712. O período da crise da dívida externa, com o aumento do desemprego, talvez tenha conduzido a esse decréscimo. Não é de descartar a hipótese de um retorno de algumas famílias, ou para o país de origem, ou ensaiando a procura de um outro país da Europa que lhes garantisse uma outra estabilidade de vida. Se o decréscimo continua a registar-se em anos posteriores, já em 2017/18 e 2018/19 registam-se subidas de algum modo acentuadas. Em 2013/14 o número de adolescentes e jovens inscritos era de 14.712, em 2017/18 o número sobe para 15.079, e no ano letivo seguinte para 16.829. Em termos percentuais, a proporção de alunos estrangeiros varia entre 4% e 6% do número total de alunos matriculados no Ensino Secundário para este período de tempo. Serve este quadro sumário sobre a evolução do Ensino Secundário na última década para dar conta que a permanência em idade escolar neste ciclo de ensino já é notória entre os alunos cujas famílias têm residência em Portugal. E, nesse sentido, é bem provável que a mesma fotografia possa ser transferida para as famílias mais recentes ou mais antigas de imigrantes que se fixam em Portugal. (MACHADO, 1997, 2003; MACHADO; AZEVEDO, 2009; MACHADO; MATIAS; LEAL, 2005; SEABRA, 2010; SEABRA et al., 2011). Num caso como no outro, os agregados domésticos têm no seu seio adolescentes e jovens que em Portugal ou fora do país completaram o anterior ciclo de aprendizagem, o Ensino Básico. Sem essa prova não se podem matricular no último ciclo da escolaridade obrigatória.

Mais outra designação nuclear do sistema de ensino que não coincide com a nomenclatura definida no Brasil. Do outro lado do Atlântico este grau de ensino é chamado de Ensino Médio. Para mais informações cf. o documento do Conselho Nacional de Educação, Estado da Educação 2018, edição de 2019. Estes dados estão contidos na secção Indicadores para Portugal da p. 30-42. Disponível em: www.cnedu.pt. 9 Os dados que apresentamos sobre o número de alunos estrangeiros matriculados no Ensino Secundário têm três fontes distintas: a DGEEC do ME (Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência do Ministério da Educação), o Observatório da Migrações e o Observatório das Desigualdades. 8

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Por coincidência, a pesquisa Entre a Escola e o Bairro – estranheza, estranhamento e hospitalidade teve o seu início em 2017/1810. Se em 2017/18 o número total de estudantes estrangeiros inscritos no Ensino Básico e Secundário ascendia a 44.438, a área metropolitana de Lisboa abarcava mais de metade destes alunos – cerca de 25.117 alunos em idade escolar. Entre a zona norte e o Algarve, a zona mais a sul de Portugal continental (excluindo-se os arquipélagos dos Açores e da Madeira), o número de alunos estrangeiros em todos os níveis da escolaridade obrigatória não ultrapassa os 6.000. Sendo este o panorama, fez todo o sentido concentrar na área metropolitana de Lisboa esta primeira incursão em uma pesquisa preliminar sobre a presença do aluno estrangeiro em escolas do Ensino Secundário. Pese embora a desigual distribuição do número de alunos estrangeiros em todas as regiões do país, só no dealbar do século XXI é que Portugal, para além de ser um país de emigrantes, passa também a ser um país de imigrantes (PEIXOTO, 2007). Se num primeiro momento o país acolhia famílias de imigrantes sobretudo dos países africanos de língua oficial portuguesa, a partir da queda do muro de Berlim em 1989, começam a chegar famílias oriundas de países do leste europeu, em particular da Ucrânia e da Moldávia, mas também do Brasil (PEIXOTO et al., 2015), e só mais tarde chegam famílias vindas de países asiáticos, nomeadamente da China e da Índia. A estas proveniências é preciso acrescentar as famílias que vindas de países da União Europeia fixam a sua residência em Portugal. Ter em mente o quadro da imigração com esta diversidade de proveniências é importante para se compreender o multilinguismo que prevalece nas escolas. Sendo um cenário que dá mostras de algum cosmopolitismo, nos processos de aprendizagem não se deixa de parte outra questão bem mais complexa e desafiante para os professores. Na verdade, nos primeiros ciclos de aprendizagem o caleidoscópio linguístico traz problemas no tocante à aquisição e domínio da língua nacional, meio indispensável para se ser bem-sucedido na escolarização. Iniciar esta pesquisa no Ensino Secundário foi uma opção relativa para ultrapassar o obstáculo anteriormente mencionado. A medida atribuída é relativa porque apesar de ser expectável um melhor domínio da língua no Secundário, a sua transparência não é completamente assegurada na troca 10

Uma das linhas de investigação que se pretende desenvolver, agora com mais intensidade e aprofundamento, centra-se nos processos de envolvimento dos atores na escola - alunos e professores – com seres humanos e não humanos, estranhos, que provocam estranheza e estranhamento nos estabelecimentos de ensino. Assim, e para dar andamento a este desejo, o projeto vai tentar dar conta das relações complexas integradas nesta temática: “Entre a Escola e o Bairro: estranheza, estranhamento e hospitalidade”. Sendo o propósito central o de compreender os juízos críticos de diferentes atores em torno da temática da relação entre a escola e o bairro, a presente pesquisa tem como terreno privilegiado os estabelecimentos de ensino do Ensino Secundário e os seus entornos, nomeadamente os locais que habitualmente os estudantes usam quando não estão no estabelecimento de ensino: cafés, centros comerciais, os passeios, as ruas, jardins, etc. Estes espaços fora dos muros dos estabelecimentos de ensino localizam-se ao seu redor ou em perímetros que deles não distam muito. São habitualmente territórios reconhecidos por estes atores, com um ar de família e que lhes possibilita romper com o formato e conteúdo das sociabilidades alimentadas dentro das escolas ou são composições recompostas entre continuidades e ruturas das sociabilidades dentro e fora das escolas. O que interessa observar são as funcionalidades destes espaços intercalares que são usados e resgatados, entre outros, pelos adolescentes e jovens que pretendemos observar. Que laços fabricam nestes espaços? Estes são coabitados por quem? As inter-relações são sustentadas só entre os seus pares, amigos e colegas, ou nestas intervêm outros atores, provenientes de outros espaços, amigos, namorados/as, companheiros/as, pais, irmãos, professores, encarregados de educação, etc.? O formato e conteúdo destes encontros são semelhantes ou distintos das formas e conteúdos das sociabilidades trabalhadas nas escolas? Esta pesquisa preliminar que vai ter desenvolvimentos futuros foi desenvolvida em duas escolas do Ensino Secundário. As escolas escolhidas apresentavam na sua morfologia escolar alunos com nacionalidades estrangeiras. Os dados coletados foram recolhidos em entrevistas semidiretivas e em observações no interior das escolas e em outros espaços no entorno das duas escolas. Em cada uma das escolas trabalharam três estudantes da graduação se Sociologia sob orientação do professor e pesquisador responsável por este projeto. Para além destes estudantes a pesquisa contou com a colaboração de dois colegas doutorados, um dos quais estrangeiro que estava a realizar em Portugal o seu projeto de pós doutorado. Como nota adjacente este projeto é uma singela homenagem a Georg Simmel. Este sociólogo alemão morre em setembro de 1918. Ora em vida este autor teceu considerações sobre a figura de estrangeiro num pequeno ensaio e este projeto de pesquisa pretende aprofundar algumas questões deixadas em aberto no referido ensaio. Uma dessas questões prende-se com a hospitalidade (STAVO-DEBAUGE, 2017).

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de mensagens. Por vezes, nas conversas informais, mas igualmente nas entrevistas semidiretivas realizadas, foi necessário intervir para esclarecer o sentido de alguns termos e para se evitarem equívocos e malentendidos. A importância destes reparos foi crucial porque se garantiram graus efetivos de confiança no acompanhamento das situações e experiências da pesquisa realizada nas duas escolas durante 10 meses11. Procurar alunos estrangeiros no Secundário teve outra razão. Esta prendeu-se com a idade da adolescência. Indo na direção dos adolescentes de nacionalidade estrangeira a estudar em Portugal foi possível ir ao encontro da importância que as sociabilidades apresentam nos quotidianos escolares, como atrás foi assinalado. Esta primeira aproximação, ainda preliminar, possibilitou observações ricas sobre o que pensavam estes alunos dos seus colegas portugueses e como estes os recebiam na escola. Como havíamos mostrado antes, no percurso da escolaridade abrangido por alunos do arco da adolescência, era significativo observar a autonomia a manifestar-se com o uso de diversos suportes. Agora buscava-se saber se a operacionalidade da autonomia aparecia novamente alicerçada nas sociabilidades entre pares, “suportada numa lógica de philia (ou seja, da amizade virtuosa)” (VIEIRA, 2015, p. 207). A haver esta continuidade, os adolescentes inquiridos, agora de nacionalidade estrangeira, buscavam na amizade que se ia forjando naqueles espaços, incluindo os espaços intercalares (BREVIGLIERI, 2007a), um assentamento para a gestão das ansiedades, temores e receio de serem bem recebidos pelos colegas portugueses com quem conviviam nas escolas. As observações e o trabalho de campo foram desenvolvidos em duas escolas do Ensino Secundário, uma sediada no município de Lisboa e outra localizada no município de Oeiras 12 . Neste trabalho participou uma equipa composta por 8 membros. Desses, 6 eram, na altura, estudantes da licenciatura/graduação em Sociologia. O trabalho de campo realizou-se entre 2017 e 2018 e constou da observação de aulas e em outros espaços, dentro e fora da escola, da realização de 16 entrevistas em cada uma das escolas (32 no total) e do lançamento de um questionário por cenários a todos os alunos matriculados no 12º ano e a professores que lecionam neste ano letivo.13 Cada um dos pesquisadores realizou durante 10 meses, em dias não consecutivos, diversos mergulhos etnográficos de modo a captar as movimentações destes alunos, quer no âmbito do espaço contido entre muros, quer nos espaços intercalares. Foi um tempo importante para se ir ganhando confiança com o/a interlocutor/a. Pese embora houvesse em cada uma das escolas um docente mediador dos contatos, o trabalho e a persistência foram qualidades manifestadas pelos jovens pesquisadores que trabalharam na equipa. Terem uma idade próxima dos adolescentes e estarem ainda sujeitos à condição estudantil, mesmo que na Universidade, foi um ingrediente de importância notória para que os entrevistados se sentissem mais à vontade nas respostas que iam dando às entrevistadoras/es.

Foi por esta razão que nas entrevistas, as entrevistadoras, a Anastácia Kasprova e a Margarida Lima, tiveram o cuidado de assinalar os momentos de hesitação, ou mesmo de paragem para que os alunos entrevistados pensassem na resposta ou tirassem dúvidas, o que dá nota das complexas reconversões de uma mesma língua falada, mas cujos falantes estão nos dois lados do Oceano Atlântico. 12 A pesquisa de campo, e suas respetivas operações, desenvolvida nos dois estabelecimentos de ensino resultou de autorizações prévias firmadas por ambas as direções e onde os pesquisadores se comprometeram a respeitar os preceitos éticos atendíveis à prática científica. Para além da autorização, as direções dos estabelecimentos de ensino nomearam um docente para ser responsável pela mediação entre os membros da equipa de pesquisa e as comunidades escolares. 13 Dos resultados das entrevistas realizadas aos 32 alunos estrangeiros recolheram-se informações importantes que foram usadas na definição dos cenários incluídos no questionário. Os alunos entrevistados não responderam ao questionário porque não estavam matriculados no 12º ano de escolaridade. Eram alunos que frequentavam o 10º e 11º de escolaridade. 11

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5 Ensaiar o terreno para ser acolhido: experiências (in) acabadas de inclusão 5.1 À chegada: momentos e ações titubeantes nas tentativas de inclusão A grandeza da figura do amigo na escola é tão relevante que na questão inicial colocada a cada uma ou a cada um dos nossos colocutores sobre o que era para si estar a estudar no estabelecimento, para além de convocarem as aprendizagens, no seguimento desta primeira nota outra lhe seguia de imediato. Surpreendentemente ou não, aparecia a possibilidade de se fazerem amizades com colegas. Em conversa inicial com Anna14, uma estudante brasileira, a entrevistadora da escola A – sediada no concelho de Lisboa – dá-se conta que a aluna acabou de chegar à escola, uma vez que ela prontamente informa: “eu cheguei recentemente, né? Eu cheguei dia 10 de Janeiro, (…) [HESITAÇÃO] é pouco tempo”. Mesmo estando há pouco tempo, avisa que “experiência em si está sendo boa. Mesmo que a gente sinta saudade do Brasil, tipo por deixar familiares e amigos, a experiência está sendo [PENSATIVA] boa, de ver novas culturas, novas pessoas [ENTUSIASMO]”. No outro estabelecimento, a entrevistadora da escola B – localizada no concelho de Oeiras – encontra Vítor que tinha entrado há três meses na escola. Também é natural do Brasil. Respondendo à pergunta de como ele descrevia estar numa escola, o adolescente reage de imediato dizendo que o “primeiro foco é o estudo” [RISOS]. O riso insinua o óbvio, não vá a pesquisadora pensar que ele cogita a escola como local para fazer outras coisas. Mas adianta que além do estudo, a escola é um espaço que proporciona criar amizades tem as amizades que você leva para a vida toda, enfim é a mais a questão de [PENSATIVO E HESITANTE] é [RISOS]. Bom é assim a questão de você de saber como se relacionar com as pessoas, como viver, como respeitar o Aqui na questão dos estudos é você se dedicar, de estudar para ter um objetivo na vida… (…). (Lima, entrevista nº1).

Não obstante a primeira impressão ser boa, Anna de imediato solta uma inquietação quando compara a sua aprendizagem das matérias no Brasil e na escola portuguesa. Refere “sim, eu acho que na escola é um ambiente que você pode socializar, mas se você não tá vindo para a escola … [HESITAÇÃO]. Eu vejo como um lugar bom, assim para socializar e tal”. E sobre os estudos, como é, indaga a entrevistadora? Sim, sim, eu sinto, mas no momento, no exato momento, eu sinto muita dificuldade. Nas matérias, eu fico ‘parece que eu sou de outro mundo’, que eu acho que estou num mundo muito inteligente. Eu fico me sentindo tipo [PENSATIVA] ‘como assim’ [SORRISO]? Sim, (…), penso que todo mundo é muito inteligente, sabe falar mais de duas línguas. E eu fico me sentindo tipo diferente, porque lá no Brasil não tem [HESITAÇÃO]. (Kasprova, entrevista nº2).

A entrevistadora acompanha as referências que a jovem vem colocando na sua fala. E esta aprofunda as comparações entre as duas escolas em que esteve matriculada, no Rio e em Lisboa. Adianta, qualificando uma e outra:

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O anonimato dos sujeitos de pesquisa é salvaguardado pela atribuição de nomes fictícios. Do mesmo modo e pelas mesmas razões, as escolas mencionadas são identificadas com letras do alfabeto.

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Os filhos de um deus menor: de arisco à chegada à acolhida pela philia José Manuel Resende, José Maria Carvalho eu acho uma escola boa. É muito diferente do Brasil, então acho incrível. Porque na escola que eu estava no Brasil era particular, e não tinha a estrutura que essa aqui tem. E essa aqui é pública. Então eu acho super interessante nesse âmbito, nessas coisas. (Kasprova, entrevista nº2).

É de reparar a nota dada à estrutura, isto é, à arquitetura e aos equipamentos que pontuam no desenho da escola. Parece-lhe uma estrutura que convida a estar, a permanecer na escola (RESENDE, 2019b), e que à chegada não lhe levantou estranheza a apontar. As infraestruturas parecem ser adequadas a quem ali chega pela primeira vez. Com o Vítor a comparação é similar. Avisa: que eu cheguei cá em Portugal, setembro do ano passado, então é bem pouco tempo. Então essa é a primeira escola que eu estive aqui. E a diferença dessa escola para as escolas que eu estive no Brasil é, acho que é praticamente tudo. Tanto a questão do ensino que aqui é bem mais puxado, bem mais focado no assunto. No Brasil as coisas são muito superficiais, porque são bem mais matérias [REPETIÇÃO]. (…) E na questão das pessoas, dos amigos, acho que [REFORMULAÇÃO] isso é bem igual, assim. (Kasprova, entrevista nº2).

Terminado este seu juízo, fruto da comparação entre as experiências nas escolas de dois países, pára e reformula: “no início os portugueses são um pouco mais difíceis, eu confesso, pra mim foi um pouco difícil de adaptar no primeiro mês, mas depois de um tempo é tudo uma questão de convívio, de adaptação. Agora ‘tá bem tranquilo”. O tempo que nunca se deixa interromper no seu próprio percurso é para Vítor o dispositivo de apaziguamento, comparando com “a questão do início, que é um pouco mais complicado, mas lá também é. Acho que é com todo o mundo (…) Tanto lá como aqui, é mesmo a questão do convívio”. Para Anna, a escola é para socializar. Vítor vai ao encontro desta alusão através do convívio. No entanto, até chegar à convivência ou à sociabilidade é o tempo que dita o resto aos recém-chegados à escola. Falando da habituação ao novo contexto, Vítor assinala com vigor: primeiro foi na questão um pouco do, o idioma é o mesmo, português, mas tem algumas palavras bem diferentes, algumas. (…) Foi na questão do idioma e na questão também de ser outro país, uma outra cultura, de você não conhecer praticamente ninguém aqui. (…) O comportamento e o idioma que são algumas mudanças. (Lima, entrevista nº1).

Para Anna, quando a conversa se estabelece com os seus colegas, esta sente-se mais embaraçada: “em relação [HESITAÇÃO], eu ainda estou em, tipo [HESITAÇÃO]”. As hesitações são notórias em qualificar os colegas da turma. Mas avança: “exato. E, às vezes, eu acho [HESITAÇÃO] se eu tipo, tem um grupinho, eu tenho [HESITAÇÃO] acho que não é bem vergonha, mas medo de [PENSATIVA] intervir e chegar, do nada. Então, eu fico meio apreensiva”. Em face das hesitações e dúvidas apontadas a si, a entrevistadora pergunta se os colegas não a estão a ajudar a resolver estas apreensões. “Sim, sim”, responde a aluna, acho que fui muito bem acolhida. Porque, eu até brinco [RISO], falo, no Brasil não tem essa [HESITAÇÃO]. Por exemplo, se chega um aluno novo na sala, é depois de um certo tempo que vai [HESITAÇÃO]. Aqui, eu achei que eles já foram, tipo, falar comigo e tal. Mesmo tendo uns ou outros que são mais na deles, não falaram ainda, eu acho que é (…) uma coisa nova que está na turma. Então, demora um pouco mesmo para [HESITAÇÃO]. (Kasprova, entrevista nº2).

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Interessa ressalvar a forma como a interlocutora vai fazendo reparos sobre as experiências. Ainda está tateando o ambiente e a sua ligação aos colegas. Alguns amparam-na, mas outros mostram alguma desatenção, mais do que indiferença. Contactam com ela, mas permanecem inacessíveis. E por outro lado, como ainda não se reconhece a si mesma naquele espaço, teme a exposição de si perante os outros. Fazer face às provas que tem de dar de si própria perante os outros não é fácil. É, em certo sentido, uma provação. Continua: “sim, sim. Eu acho que eles chegam. Por exemplo, eu [REFORMULA] houve um dia em que fiquei aí no meu canto. Aí, as duas meninas que tavam, me chamaram. ‘Não, não tem medo, a gente pode chegar e ficar, e ficar com a gente’”. Essas meninas eram portuguesas, notifica a aluna.

5.2 Acomodações tateantes em função das impressões colhidas Para Vítor, tudo “seria adaptação. Acho que seria a palavra certa, pra definir tudo, (…) tanto no início, como ao longo do decorrer do tempo”. E continua a explicar o sentido dessa acomodação ao espaço e às pessoas no seu ambiente. Na escola por ser todos os dias um convívio, todas as manhãs. Você vai aprendendo mais, vai conseguindo se adaptar mais rápido. Aí também acabei levando pra questão fora [REFORMULAÇÃO] em outros lugares, mercado sozinho, a questão de sair na rua e pedir informação prás pessoas. No começo eu não tinha assim coragem (…). Agora é bem mais tranquilo, com a questão da convivência com as pessoas daqui, os portugueses (…). (Lima, entrevista nº1).

No começo, nada é fácil, estranha-se porque não se conhecem os protocolos que os outros usam no dia-a-dia. Expor-se, mas sobretudo mostrar a sua falta de conhecimento sobre o ambiente, e a obrigação de fazer perguntas num linguajar próprio, causa estranheza, dúvidas e receio de não ser capaz de ultrapassar estas provas (BREVIGLIERI, 2007a, 2007b). Mas “conhecendo melhor as pessoas, fui vendo que praticamente é a mesma coisa. (…) Então, por agora me sinto bem melhor. No começo estava “Nossa, já quero voltar, meus amigos!” [RISOS], mas agora não”. Com o tempo vai-se habituando e ambientando. O curioso é que na ambiência em geral, e, particularmente, na atmosfera da escola, as temperaturas de estarem todas e todos a fim de apoiar quem chega de novo são compostas de sinais nem sempre equivalentes (RESENDE; BEIRANTE, 2018). E de vez em quando a nova pessoa tem uma experiência mal-sucedida; é como se tivesse levado um murro no estômago (STAVO-DEBAUGE, 2012). É o que Anna refere quando um dia teve de tratar de uma questão administrativa. Eu achei, por exemplo, quando eu vim aqui pela primeira vez, na secretaria, [REFORMULA] a minha mãe perguntou por uma informação, e uma menina tipo nem respondeu, [REFORMULA] foi um pouco antipática. E [REFORMULA] a primeira impressão que eu tive, falei ‘caramba, como é que eu vou chegar aqui? Porque se a menina já é assim, como é que vai ser?’ [RISO]. Aí, eu fiquei bem nervosa, porque eu lembrei tipo das pessoas que eu tinha lá no Brasil, que eram super minhas amigas’. (Kasprova, entrevista nº2).

Em face deste choque ficou cismática, nervosa. E não era para menos, porque no futuro próximo o cenário mostrava-se incerto. E remata: “aí, eu fiquei, sim, nervosa. Foi a primeira impressão. Mas quando eu cheguei na sala, em si, que eu vi que as pessoas eram acolhedoras, simpáticas, eu fiquei mais relaxada. Mas, a primeira impressão em si, (…) [APREENSIVA]”. Para Vítor, as primeiras impressões da escola e dos colegas foram mediadas pelas experiências de um colega brasileiro chamado Davi. Ele estava em outra turma

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Os filhos de um deus menor: de arisco à chegada à acolhida pela philia José Manuel Resende, José Maria Carvalho e ele falou que era bem diferente dessa. Ele (…) ele trocou de turma. Ele falou que a turma dele era bem assim [GESTO DE UM GANCHO COM O DEDO]. Era feita de grupos. Tinha um grupo de amigos ali, outro ali [APONTA PARA VÁRIOS SÍTIOS DA SALA, COM O DEDO]. Aí ele ficava sozinho, ele não conseguia, mesmo ele tentando socializar. (Lima, entrevista nº1).

O ambiente era hostil ao convívio e Davi sentia-se isolado. Encontra em Vítor o amparo para mudar a agulha do seu azimute, isto é, dos ângulos que mediam a distância para com os colegas que se fechavam em grupos inacessíveis. A turma não era sua. E remata Vítor: o brasileiro tem mais facilidade em fazer amizades, é um povo assim mais, mais solto, mais extrovertido. Então, no primeiro dia de aulas você já saiu com todo o mundo, sendo amigos de todo o mundo. A diferença eu acho que é mais essa, mesmo. Aqui não, você tem de ir conquistando a pessoa, tem que, né, conversando todos os dias pra chegar a um nível de amizade, lá não. (…) Então essa foi a diferença. (…) Então no fim, é praticamente a mesma coisa. (Lima, entrevista nº1).

Veja-se, igualmente, se bem que de passagem, o caso de Marília, brasileira, aluna na escola B, que tendo chegado a Portugal com 8 anos de idade, não deixa de assinalar diferenças entre os colegas dos dois países. E na entrevista conta que só se dá com duas amigas na escola, uma portuguesa e outra brasileira. Se a amiga portuguesa só faz com ela programas culturais eruditos, consegue com a amiga brasileira desbundar extravasar em programas mais soltos, mais ajustados ao horizonte adolescente. Com ela experimenta “dançar em discotecas, entra em bares para beber uma cerveja e tal”. Está com a parceira para a folia, e em certo sentido, concilia duas vias, quiçá fintando uma e outra com simulações. Importa é o fim dos acontecimentos e das experiências, porque no fim é sempre possível projetar a possibilidade de se encontrar afinidades (THÉVENOT, 2017), de haver abertura e disponibilidades para com os outros significativos. Neste caso, para os alunos estrangeiros, que antes tiveram de se empenhar para conquistar amigos nativos, de investir no conhecimento do outro, não é tarefa fácil. Só com o tempo, e num final que é sempre diferido, é que se podem colher provas de que tudo possa vir a dar certo. Mas antes é preciso exercitar o conhecimento mútuo. Importa sublinhar a particular relevância para os recém-chegados das primeiras impressões que uns e outros recolhem dos ambientes povoados de nativos que ali circulam com frequência, que manipulam corpos e linguagens que no início soam a estranheza. Não se está a falar de entradas e saídas, uma vez que ir à escola pressupõe um prosseguimento contínuo, a não ser que uma hostilidade permanente o obrigue a procurar outro estabelecimento alternativo. Se episódios funestos como aqueles que foram contados se repetem, a dor repercute-se repetidamente e o espaço deixa de ser confortável. A pessoa maltratada sente um desconforto, e a dor e o nervosismo abatem-se pelo corpo. Felizmente, estes efeitos não se reproduzem e, como foi descrito pelos dois estudantes, os corpos envolvem-se em outras situações de maior proximidade com colegas e amigos com quem podem contar, comprovando que nos espaços das turmas o ambiente termina por ser bem mais amistoso que inicialmente.

6 Algumas pistas para uma conclusão ainda não encerrada Ser-se recém-chegado parece não ser complicado em uma era marcada pela globalização. Esta “maravilha” suscitada pela interdependência que a circulação de objetos, dinheiro e pessoas possa idear, dá-nos uma ideia de ser fácil a chegada e a permanência em qualquer lugar do nosso planeta. Ainda por cima concebe-se essa maior 627 | VÉRTICES, Campos dos Goytacazes/RJ, v.23, n.3, p. 615-634, set./dez. 2021


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destreza em resultado de um aumento das viagens de turismo e de negócio, pela aceleração das migrações, (GÓIS; MARQUES, 2018; MONSMA; TRUZZI, 2018; PATARRA, 2005, 2006) e pela difusão massiva das redes sociais, no seu uso irradiando as experiências com fotos, pequenos vídeos e narrativas várias. Com todas estas experimentações, o mundo afigurar-se-nos-ia bem mais pequeno e sob o nosso controlo. Ao chegar-se aos novos territórios, o que parece ocorrer nos seus diversos relances não é um amor à primeira vista (BREVIGLIERI; STAVO-DEBAUGE, 2007). O idealizado no início da ida, as promessas acalentadas à partida para um ir sem regresso imediato, ficam em suspenso até certas provas serem dissipadas pelas primeiras impressões. O advento dos primeiros contactos pela fisicalidade dos corpos torna possível a gradativa monitorização cognitiva da entrada num jogo, cujos lances próximos podem não advir de imediato ao convocar-se os significados colhidos das experiências anteriores. Não se põe de lado a hipótese da instigação inicial que o novo convoca habitualmente quando lidamos com adolescentes. As experiências de se estar em trânsito fazem parte do arco temporal da adolescência (BREVIGLIERI, 2007a, 2007b). Ora, em alguns destes primeiros ensaios não é desdenhável pensar-se que os adolescentes busquem o aconchego do ninho familiar, ou ainda aqueles amigos do peito que não desgrudam da sua vida íntima. Uns e outros comungam de cumplicidades armazenadas na memória; num pedir socorro de quem não se está a aguentar nestes ambientes tão diferentes. Porém, em outras experimentações inclinamse mais para o seu lado aventureiro, vagueando pelo incerto, procurando outras hipóteses para ver se vale a pena segurar a sua veia temerária. Uma vez que transitar pressupõe uma certa disponibilidade para se estar em jogo (AURAY, 2007), exercitando-o sem o controlo imediato das suas peças, a agitação que é promovida pelas partidas cria a imersão em ambiências díspares, como podem fazer salientar experiências de exaltação esfuziantes, ou não, pelas conquistas conseguidas, ou ao invés alguma exasperação, irritação ou raiva, porque aquilo pensado como promessa não trouxe o prometimento como garantia. Pelas emoções trazidas pelo exaspero, os comprometimentos sonhados com alguns dos outros que se procura conhecer nos novos espaços por onde circulam ou ficam adiados, ou nem se tentam outra vez (RESENDE, 2019a). Isto significa que experimentar entrar em ambientes ainda desconhecidos não resulta num assentimento imediato de quem acaba de ali chegar. O consentimento que faz a si próprio leva um tempo, pese embora a percolação desse tempo possa variar, quer consoante as idades, quer consoante as experiências empáticas e simpáticas a que estiveram sujeitos nos primeiros momentos da sua chegada. Para se ser mais exato, usando o princípio da prudência, para quem de novo chega a um novo local, a estranheza é vista como um sinal de quem indaga pela hospitalidade do outro, particular ou geral, um outro que ensaie acolhê-lo junto de pessoas da sua confiança (RESENDE 2019a; STAVO-DEBAUGE, 2017). No que toca aos adolescentes, estes não descartam a empatia e/ou simpatia do outro, mas merece a pena aventar a hipótese que a exploram junto de seres com idades próximas com quem seja mais fácil enturmar, isto é, fazer parte de um pequeno coletivo a partir do qual este ou esta possa alargar as suas redes de contato (BREVIGLIERI 2007a, 2007b; RESENDE et al., 2020; VIEIRA, 2015). O que lhes é prazeroso é a possibilidade de continuar a caminhar, mesmo ainda sentindo-se inseguros, desejando encontrar-se consigo próprios nas relações que tecem com os outros. É o que aconteceu com Vítor, quando dá conta da existência do Davi, que se sente meio perdido na sua turma. E ao reconhecer o seu estado de alma, puxa-o para a sua turma, mais recetiva a recebê-lo. Todas estas experiências sugerem instigações que em alguns casos, como se observa com Vítor, dá azo à curiosidade, ao contrário de Anna, que parece ser mais cautelosa, parecendo que a sua ligação com o ambiente é feita quando a ação conveniente aparece à ilharga, a seu lado e como amparo. Importa contrastar para mostrar as possíveis composições de regimes de ação que se desenham nas sociabilidades

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escolares que se estão a constituir em tempos diferenciados. Num caso, o regime de ação em proximidade (THÉVENOT, 2006) parece traçar-se de início com mais nitidez. O futebol ajuda à esquematização dos traços. As alianças com o Davi e outros colegas brasileiros que estão na escola também não deixam de ser uma mediação a ter em conta. No outro caso, as circunstâncias foram outras, agravadas pelo facto de a aluna ter entrado só no início do 2º período de aulas15. As dificuldades em se ligar foram maiores porque a turma já trazia um balanço não alcançado por Anna, que chegou mais tarde. Sendo um obstáculo, a sua ultrapassagem não foi imediata, uma vez que Anna teve também de se confrontar consigo própria, com as dúvidas se estava armada de capacitações para se pôr à prova perante os outros. As persistentes dúvidas e ansiedades foram sendo vencidas quando, em ocasiões em que estava a um acantonada e isolada, foi sendo chamada por colegas da turma (BREVIGLIERI, 2007a, 2007b; RESENDE et al., 2020). Também é certo que as primeiras impressões (STAVO-DEBAUGE, 2017), em um caso como no outro, conduziram a ligações e a compromissos distintos. Na verdade, o episódio da colega que não correspondeu quando Anna pediu uma informação deixou marca de alguma mágoa. A indiferença foi uma adversidade sentida, talvez por ter sido inesperada, talvez porque a sua figura só suscitou desinteresse. Viu-se na iminência de pensar que sociabilidade estava envolta em uma ambiência em que o desapego dos outros para consigo fosse a regra, e não a exceção. Assumiu o revés olhando-se ao espelho (AURAY, 2007) e solicitando o apoio dos amigos que deixara no Rio. Confrontou-se consigo própria dando-se conta que o regime de ação pautado pelas afinidades pessoais concedidas a partir de lugares comuns (THÉVENOT, 2017), antes habituais, ainda não ganharam eco nesta nova escola, como imaginara plausível. Em face do desapontamento que esfriou as suas expectativas, o revés só foi desaguando em águas serenas quando sentiu na turma uma boa ambiência. E, finalmente, o seu corpo sossegou. De Vítor as primeiras impressões acarretaram sustos, mas o alarme foi perdendo vigor com o tempo, deixando de ser audível e, por isso, tão inquietante. Talvez o facto de o bairro onde seu tio reside16 ser um espaço onde circula gente de sua terra o tenha ajudado a se ligar com o ambiente, e nesse sentido estas primeiras atmosferas humanas e seus objetos fora dos muros da escola tenham proporcionado os desafios que contam quando, por exemplo, foi ao mercado (o supermercado em Portugal) ou quando teve de se abeirar de gente nativa para buscar informações do seu interesse. O sotaque foi talvez a dificuldade mais notória. Acertar o seu canal auditivo a um sotaque estranho, pouco familiar, foi um embaraço no início. Ainda por cima deu-se conta rapidamente que os léxicos dos dois países falantes de uma mesma língua não encaixam automaticamente um no outro. Para que o ajuste se faça, só o uso o pode ajudar, e isso leva também a uma disponibilidade auditiva para que surta o efeito desejado. Neste sentido, estar à escuta requer recetividade do ouvido daquele que chega, e ao mesmo tempo uma certa maleabilidade de quem fala a língua comum, mas com um outro acento. Ainda por cima os alunos estrangeiros, nesta matéria, têm outra pressão de que não se podem descartar. Com a imersão na escolarização, os discentes estrangeiros estão sujeitos às determinações dos professores que exigem que falem e escrevam com base no léxico do português de Portugal.

Cada ano letivo em Portugal é constituído por três períodos de aula. O primeiro vai até ao Natal; o segundo até Páscoa e o terceiro até inícios de junho, mês de exames nacionais. Contrariamente ao que acontece no Brasil os alunos ao entrarem no Ensino Secundário têm de escolher, no ensino regular, uma das áreas de conhecimento que a escola oferece: curso de ciências e tecnologias; curso de ciências socioeconómicas; curso de línguas e humanidades e curso de artes visuais. A escolha de uma destas 4 áreas já tem de estabelecer alguma ligação com aquilo que quer fazer no futuro. Mas o ES tem outras ofertas como os cursos profissionais. E há ainda o ensino recorrente. Disponível em: www.dges.gov.pt. 16 Na entrevista dada, o jovem aluno refere que veio para Portugal para residir em casa de um tio. O apartamento fica num outro bairro um pouco distante da escola, mas onde moram também famílias imigrantes vindas do Brasil. 15

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Fazer permanentemente a reconversão de uma língua com raiz comum, mas com uma história diferente nos seus usos costumeiros, impõe um trabalho de afinação constante. Como diz Marília, outra aluna da escola B, “eu aprendi que, pra não gozarem comigo17, eu tinha que ser igual aos outros, tinha que falar pra passar mais despercebida, (…)”. Mas adianta um pormenor a tomar em consideração. De maneira a exercitar o português de Portugal, então, “eu às vezes [RISOS] até enrolo a minha língua por causa dos “r” e dos “s”, é um bocadinho complicado ainda. Mas às vezes já, já me confundiram com portugueses (…). Então eu acho que é melhor pra mim, falar” tal e qual o português de Portugal. A exposição de si com base em uma prova como esta transporta a sua sentença para a figura da pessoa falante (AURAY, 2007). E isso acresce ainda mais a dureza de quem tem de se apresentar aos outros nativos que os estão a receber. Ser bem-sucedido no teste do falar ajustadamente obriga a um solilóquio incessante de maneira a tentar “domar” ou “domesticar” o acento dominante. Seja como for, Anna e Vítor reforçam o lugar decisivo da sociabilidade decorrente das suas experiências e ligações com os ambientes escolares. Fazer a escolarização não faz com que percam de vista nem os atos de convívio, nem os atos de socializar. Não obstante as suas diferenças em termos das intensidades aproximativas dos corpos, mais sensível na convivialidade do que no socializar, as aprendizagens escolares em sentido amplo emanam estas propriedades que são intrínsecas aos ambientes onde os aprendizados se desenrolam com o tempo. O trato requer proximidade de quem intende ser bem tratado por todos na escola. Mas esperam que esse bom tratamento lhe seja concedido pelos colegas portugueses, e que a partir da conivência proporcionada pelo bom trato consigam que este redunde numa convivialidade mais cerrada, mais cúmplice. E se os benefícios a serem retirados da philia (RAYOU, 1998; RESENDE, 2010), da amizade, se podem conjugar pelas virtualidades da virtude, também permitem outras cumplicidades não tão virtuosas, mas que fazem parte das experimentações na adolescência (BREVIGLIERI, 2007a, 2007b). Por exemplo as dificuldades sentidas na apreensão das matérias incluídas em cada uma das disciplinas do curso é um dos exemplos em que a camaradagem da philia se faz sentir (RAYOU, 1998). A organização do Ensino Secundário é diferente da organização do Ensino Médio no Brasil. Em Portugal o estudo neste grau de ensino é mais focado em matérias não tão generalistas e superficiais. E há maior domínio de pelo menos duas línguas estrangeiras. Esse é um dos confrontos mais complicados, porque não é fácil corresponder às exigências docentes e à disciplina dos colegas nativos. Como remata Vítor a propósito da sua turma esta é bem focada nos estudos, dá para perceber que nos trabalhos, sempre quando os professores marcam algum trabalho, eles já organizam pra fazer o quanto antes. Mas também não é aquela turma chata de ficar sempre focado só em estudos (…). É uma turma bem legal, a gente costuma sair às vezes, para uns lugares, costuma conversar bastante nos intervalos (…). (Lima, entrevista nº1).

Em virtude das virtudes examinadas por este aluno, as experiências recolhidas da turma transitam entre a retidão e a prudência da virtude e a diversão em que o descomedimento não pode ser ignorado. E assim também se tecem as artes de fazer o comum na escola na sua pluralidade (RESENDE et al., 2020; RESENDE, GOUVEIA, 2013).

17

O verbo gozar no sentido usado por esta falante significa não ser a moça objeto de gozação pela galera, isto é, pelos grupos que estão a xingar com ofensas de desigual intensidade.

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Os filhos de um deus menor: de arisco à chegada à acolhida pela philia José Manuel Resende, José Maria Carvalho

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Os filhos de um deus menor: de arisco à chegada à acolhida pela philia José Manuel Resende, José Maria Carvalho

COMO CITAR (ABNT): RESENDE, J. M.; CARVALHO, J. M. Os filhos de um deus menor: de arisco à chegada à acolhida pela philia. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 23, n. 3, p. 615-634, 2021. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v23n32021p615-634. Disponível em: https://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/15957. COMO CITAR (APA): Resende, J. M. & Carvalho, J. M. (2021). Os filhos de um deus menor: de arisco à chegada à acolhida pela philia. Vértices (Campos dos Goitacazes), 23(3), 615-634. https://doi.org/10.19180/18092667.v23n32021p615-634.

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Submetido em: 13 mar. 2021 Aceito em: 7 jun. 2021

DOI: 10.19180/1809-2667.v23n32021p635-651

Como acolher os estudantes Ciganos na escola pública? Do reconhecimento da alteridade a uma pluralidade de arranjos discriminatórios Pedro Jorge Caetano http://orcid.org/0000-0002-8624-6401 Doutor em Sociologia da Cultura, do Conhecimento e da Educação pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH/NOVA). Investigador na Universidade Nova de Lisboa, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais – Lisboa – Portugal. E-mail: caepedro@gmail.com. Maria Manuela Mendes https://orcid.org/0000-0002-5269-8004 Doutora em Ciências Sociais pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa − ICS-UL (2007). Professora Associada na Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa (FAUL) e investigadora no Iscte - Instituto Universitário de Lisboa, Centro de Investigação e Estudos de Sociologia − Lisboa − Portugal. E-mail: mamendesster@gmail.com. Olga Magano http://orcid.org/0000-0001-9661-6261 Doutorada em Sociologia pela Universidade Aberta (2011). Investigadora integrada no Iscte - Instituto Universitário de Lisboa, Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (Cies_Iscte) − Lisboa − Portugal. E-mail: olga.magano@uab.pt.

Resumo No quadro europeu de uma aposta estratégica em sociedades cada vez mais escolarizadas e inclusivas, o desafio da presença de diferentes culturas nas escolas requer a implementação de políticas que promovam a não discriminação. No entanto, os ciganos Portugueses constituem-se ainda como um grupo cultural e étnico aparentemente imune aos objetivos destas políticas, em virtude do enorme preconceito social e histórico que impende sobre os seus membros. Neste sentido, foi realizada uma investigação visando colocar à prova um conjunto de possibilidades relativas à melhor forma de acolher estudantes ciganos na escola pública. Foram inquiridos 700 alunos não ciganos de 3 escolas do ensino médio da Grande Lisboa. Seguindo a perspetiva de uma sociologia eminentemente compreensiva, foi mobilizado um questionário baseado em cenários com o objetivo de captar junto dos estudantes não ciganos a forma mais conveniente da escola acolher estudantes ciganos discriminados numa outra escola. Os resultados mostram que, para a maioria dos inquiridos, os ciganos devem ser socializados através de procedimentos táticos, ou individualizados por meio de dispositivos morais ou funcionais de modo a serem convenientemente assimilados. Palavras-chave: Questionário por cenários. Semântica da ação. Ciganos Portugueses. Estudantes do ensino médio. Grande Lisboa.

How to integrate Gypsy students in Public School? From recognition of alterity to plurality of discriminatory arrangements Abstract Within the European framework of strategic orientation towards increasingly schooled and inclusive societies, the challenge of the presence of different cultures in schools requires the implementation of policies that promote non-discrimination and provide effective means of coordinating diversity. However, the Portuguese Gypsy are still a cultural and ethnic group apparently immune to the aims of these policies, due to the enormous social and historical prejudices which fall upon their members. In this sense, a survey was conducted to test a set of possibilities on how best to integrate Gypsy students in public schools. In this context, 700 non-Gypsy students from three secondary schools in Greater Lisbon were surveyed. In the perspective of an eminently interpretative sociology, closely linked to a theory of semantic action, a scenario-based questionnaire was used to find out among non-gypsy students the most practical way for schools to accommodate discriminated gypsy students in another school. The results show that, for the respondents, the Gypsy population must be socialized through tactical procedures or individualized through moral or functional devices in order to be assimilated. Keywords: Scenarios-based questionnaire. Action semantics. Portuguese Gypsies. High school students. Greater Lisbon.

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¿Cómo acoger a los estudiantes gitanos en la escuela pública? Del reconocimiento de la alteridad a una pluralidad de acuerdos discriminatorios Resumen En el marco europeo de una apuesta estratégica en sociedades cada vez más escolares e inclusivas, el desafío de la presencia de diferentes culturas en las escuelas requiere la implementación de políticas que promuevan la no discriminación. Sin embargo, los gitanos portugueses siguen siendo un grupo cultural y étnico aparentemente inmune a los objetivos de estas políticas, debido a los enormes prejuicios sociales e históricos que caen sobre sus miembros. En este sentido, se llevó a cabo una investigación para poner un conjunto de posibilidades para la mejor manera de acoger a los estudiantes gitanos en la escuela pública. Se encuestó a 700 estudiantes no gitanos de 3 escuelas secundarias de la Gran Lisboa. En la perspectiva de una sociología interpretativa se utilizó un cuestionario basado en escenarios para descubrir entre los estudiantes no gitanos, la forma más práctica para que la escuela acoja a los estudiantes gitanos discriminados en otra escuela. Los resultados muestran que, para la mayoría de los encuestados, los gitanos deben ser socializados a través de procedimientos tácticos o individualizados por intermedio de dispositivos morales o funcionales con el fin de estar debidamente asimilados. Palabras clave: Cuestionario de escenarios. Semántica de acción. Gitanos portugueses. Estudiantes de secundaria. Gran Lisboa.

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Como acolher os estudantes Ciganos na escola pública? Do reconhecimento da alteridade a uma pluralidade de arranjos discriminatórios Pedro Jorge Caetano, Maria Manuela Mendes, Olga Magano

1 Introdução O modo como os indivíduos se coordenam na constituição de grupos e estes, por sua vez, se organizam na formação de coletivos mais vastos, está no cerne do estudo do social e do político. Tanto a sua estrutura como a maior ou menor valorização das diferenças específicas e singulares existentes no seu seio representam um teste à diversidade e à natureza dos laços que se formam entre os grupos e os indivíduos nestes coletivos. Deste ponto de vista, as retóricas conflituantes, ora da celebração da unidade, ora da diversidade, podem ser vistas como dois polos contrastantes na politização dos laços sociais, tendo como consequência a formação de comunidades mais restritas e fechadas ou, em alternativa, mais flexíveis e abertas. Nos Estados modernos das economias avançadas, e no âmbito de uma gestão da segurança das suas populações, as políticas públicas de abertura ou de fechamento concorrem em alternância consoante as conjunturas políticas e económicas nacionais e internacionais. Com efeito, em momentos de prosperidade e de expansão, o acolhimento da diversidade pode tornar-se mais fácil de ser advogado; ao passo que, em momentos de forte contração económica e de elevada tensão internacional, como aquele que vivemos atualmente, os apelos à unidade e coesão nacional parecem multiplicar-se, e pode muito bem acontecer que o estrangeiro seja hostilizado. Se concebermos o estrangeiro numa significação mais alargada, mediante a conotação da expressão inglesa strange (estranho, singular, insólito), podemos ainda reconhecer a existência de grupos persistentemente discriminados ao longo de séculos de coexistência, pese embora os esforços e evocações veiculadas pelas políticas da diversidade. Na verdade, os ciganos, apesar de estarem radicados em Portugal há mais de 5 séculos, continuam a não serem reconhecidos nem como minoria nacional, nem como minoria étnica (MAGANO; MENDES, 2014; MENDES; MAGANO, 2013). São uns eternos "estranhos internos" ou "estrangeiros internos" no seu país (MISSAOUI, 1997; ROBERT, 2006), subsistindo relações de estranheza, profundamente marcadas pela alteridade. De fato, nem as figurações do estrangeiro mobilizadas pelo cosmopolitismo ou pelos defensores da promoção da interculturalidade têm contribuído eficazmente para alterar significativamente a marginalização social dos ciganos. As diferenças reconhecidas nos ciganos enquanto signo de etnicidade são fortemente estigmatizadas pelos não ciganos em quase todos os países europeus, como é o caso de Portugal (FRA, 2016, 2017). Estas diferenças, fortemente marcadas por processos de socialização étnica, bem como por mecanismos socializadores de subordinação funcional no âmbito da estrutura social, revelam-se como que anacrónicas aos olhos de sociedades apostadas no prolongamento da escolaridade, na crescente individualização dos seus membros e na legitimação de uma ordem social meritocrática. Numa perspetiva funcionalista, a socialização, pode ser entendida, no plano do confronto cultural, enquanto processo de integração dos ciganos num coletivo mais alargado por meio da educação compulsória das crianças ciganas, na visão de que estas adotem as normas e atitudes prevalecentes na sociedade mais alargada e partilhadas pela cultura escolar. Segundo esta perspetiva, a transmissão intergeracional de normas, atitudes e comportamentos, faz-se preferencialmente pela moral solidária, à maneira durkheimiana (DURKHEIM, 2012 [1925]), ou por efeitos do enquadramento institucional organizativo que serve de quadro de referência à ação (PARSONS, 1949). Por seu turno e, contrastando com esta perspetiva, as teorias interacionistas tendem a privilegiar a socialização da vida quotidiana por meio das classificações espontâneas produzidas pelos atores no decurso das interações sociais. Deste ponto de vista, a ordem social é produto dos juízos valorativos dos atores, os

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quais polarizam os atos comunicacionais e se incorporam nos feixes das atividades humanas, emergindo em função disto significações partilhadas e lugares comuns (JOAS, 2000). Enquanto a socialização moral e funcional contém um ideal normativo a atingir, consubstanciado no indivíduo perfeitamente socializado por contraponto ao sujeito insuficientemente socializado, a socialização da vida quotidiana tende a fazer emergir uma pluralidade de pontos de vista e, por esta via, de socializações concorrentes em interação. Acresce ainda que, ao passo que o modelo funcionalista faz uso recorrente dos métodos quantitativos com vista a medir, através de uma bateria de variáveis, o grau de socialização dos indivíduos, o modelo interacionista privilegia as modalidades de inquérito que captem o discurso e os juízos qualificativos dos atores. Tendo em conta os pressupostos contrastivos destes dois modelos interpretativos, bem como as diferentes finalidades que cada um deles se propõe alcançar, recorremos a um terceiro modelo que, até certo ponto, possibilita compatibilizar alguns dos pressupostos e finalidades contidos nos dois modelos referidos para a investigação que efetuámos sobre os modos mais convenientes de acolhimento da alteridade, aqui representada na figura dos estudantes ciganos. Este modelo assenta fundamentalmente na utilização dos cenários como metodologia de inquirição, os quais, a exemplo do que referem Ramirez et al. (2015, p. 70), constituem atualmente uma “metodologia académica para produzir ‘pesquisa interessante’.” O inquérito por cenários visou combinar a abordagem qualitativa hermenêutica com uma abordagem estatística exploratória, obtendo por este meio juízos situados. O inquérito foi aplicado em 3 escolas secundárias públicas portuguesas, socialmente contrastantes, a 725 estudantes não ciganos. Os resultados, embora revelem que os ciganos devam ser socializados ou individualizados em ordem a serem membros de pleno direito da sociedade alargada, contradizem os pressupostos funcionalistas acerca dos processos de socialização. O propósito deste artigo é precisamente a fundamentação e descrição da metodologia usada, com particular enfoque no conjunto de todas as operações analíticas efetuadas, procurando evidenciar os grandes trunfos associados à mobilização desta metodologia.1

2 A praxis como locus da investigação As limitações da abordagem funcionalista ou sistémica são de amplo conhecimento na teoria social (MALEŠEVIC, 2004). As normas são encaradas como conteúdos a transmitir e a organização como neutra e justa, uma vez atingida a estabilidade do sistema (JOAS; KNÖBL, 1999). A justiça do sistema assimila-se à justeza do fair play, o qual é animado pelo estímulo (mérito) da competição. O entendimento que os atores têm do jogo é pouco relevante, apesar de jogar o ‘jogo’ do fair play requerer um envolvimento dos atores no mesmo (CORCUFF, 2001). O que conta como relevante advém quase exclusivamente dos efeitos da socialização (HOLMWOOD, 2005). Por conseguinte, é pela medição do envolvimento dos atores, que estes são diferenciados e qualificados em muito ou pouco socializados (GARNIER, 2000). Deste ponto de vista, os ciganos serão previsivelmente considerados pouco socializados pela sociedade alargada. Mas os próprios respondentes não ciganos, quando inquiridos acerca da relação dos ciganos com

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O presente artigo baseia-se na metodologia aplicada na pesquisa realizada por Pedro Jorge da Costa Caetano, na sua Tese de Doutorado em Sociologia, em 2014, intitulada Individuação e Reconhecimento: Processos de Socialização Política na Incerteza dos Itinerários Escolares. A metodologia seguida, o tratamento dos dados, bem como os resultados, têm origem na referida pesquisa. A mesma teve financiamento público por parte da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), com a referência SFRH/BD/44303/2008. Disponível em: https://run.unl.pt/handle/10362/11827.

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as normas prevalecentes, são eles próprios testados quanto ao seu conhecimento do ‘jogo’ inerente à manutenção da ordem social. Também eles podem ser qualificados de pouco ou muito socializados. Na verdade, o paradigma da integração é atualmente colocado em causa, em favor do paradigma da inclusão. Neste, “o objectivo da inclusão não é apagar as diferenças, mas sim permitir que todos os alunos pertençam a uma comunidade educacional que valida e valoriza a sua individualidade” (FREIRE, 2008, p. 10 apud STAINBACK et al., 1994, p. 489). A perspetiva interacionista, por seu turno, não obstante levar a sério os juízos e as justificações dos atores, por contraponto à abordagem anterior, apresenta igualmente limitações no que se refere à pouca relevância dada aos constrangimentos estruturais e organizacionais – os quadros de reconhecimento – que impendem sobre os juízos dos atores. Ou seja, ao dar todo o crédito às perspetivas dos atores, corre-se o sério risco de ignorar as obrigações e os recursos disponíveis que podem contribuir para esclarecer estas mesmas perspetivas. Ao rejeitar de uma assentada o sobredeterminismo implícito no funcionalismo, o interacionismo arrisca cair no subjetivismo dos atores. Na articulação teórica que adoptámos, não poderíamos deixar de estabelecer “uma solidariedade conceitual entre as competências dos atores e os quadros de reconhecimento que as qualificam e as valoram, centrando-nos intimamente nos juízos mobilizados pelos atores e nas especificidades das interações” (CAETANO, 2014) consideradas mais convenientes entre ciganos e não ciganos – arranjos convenientes. Neste sentido, foi nosso propósito não negligenciar a abertura e potencialidades de todas as formas de coexistência com os não ciganos, não nos subsumindo a uma direção normativa previamente fixada. Ao mesmo tempo que partilhámos da proposição wittgensteiniana (WITTGENSTEIN, 1995), segundo a qual, a partilha em comum das significações (“senso comum”) veiculadas pelos atores é julgada suficiente, não exigindo dos mesmos, competências específicas de ajuizamento. Por outro lado, e com o objetivo de evitar cair no subjetivismo, considerámos os juízos morais dos atores como expressões de ações e de envolvimentos. Subsequentemente, na análise destes juízos, seguimos as orientações teórico-metodológicas de Ogien e Quéré (2005, p. 77), para os quais “a tarefa da análise é então de situar os tipos particulares de ação nos quadros típicos de ação normativa e nos encadeamentos socialmente situados de motivos, em vez de interpretar as ações como manifestações externas de elementos subjetivos que residem no indivíduo”. Tomando em linha de conta tanto os motivos dos atores, de acordo com a perspetiva interacionista, bem como o contexto de ação, de acordo com a perspetiva sistémica, a perspetiva que aqui perfilhamos, visando superar as principais limitações das duas perspetivas referidas e que se relacionam com os seus próprios modelos de conceptualização «ator-sistema», tem a finalidade de dar conta do modo como os atores procuram significar o contexto das ações em que estão envolvidos. Desta forma, o que nos propusemos solicitar aos nossos inquiridos foi o seu juízo prático. Um juízo que nos dê acesso à sua forma de pensar e aos seus envolvimentos e que pode ser visto como um sucedâneo do conceito aristotélico de phronesis. Como referem Carr & Kemmis (1986, p. 93), o juízo prático “é necessário quando se consideram possíveis cursos de ação alternativos numa dada situação, e se deseja conhecer qual desses cursos de ação expressa melhor as intenções e os comprometimentos do ator, dadas as circunstâncias e os constrangimentos”. E é neste sentido que este juízo prático - um juízo comprometido com uma dada forma de relação com o mundo e informado pelos constrangimentos percecionados - é expressão de uma práxis (MACINTYRE, 1984), de uma experiência vivida.

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3 A semântica da ação No plano de uma semântica da ação, o carácter normativo dos seus contextos pode ser aferido pelas regras e normas que governam as atividades que os estruturam. De resto, a regulação destes mesmos contextos pode ser concebida à semelhança da regulação da língua pela gramática. A introdução nesta gramática não exige competências especiais dos indivíduos, pois, e na esteira de Wittgenstein (1995), para o uso correto da língua basta praticá-la e viver numa comunidade de praticantes da mesma. É a partilha das significações linguísticas, de onde emerge o que é considerado aceitável e o que o não é, que nos dá a gramaticalidade da língua. Uma primeira exploração de uma semântica ou de uma racionalidade da ação pode ser encontrada em Aristóteles, na sua Ética a Nicómaco, quando o mesmo, observando que as diversas atividades são orientadas para uma finalidade ou um bem específico, aplica um critério teleológico para as descrever e classificar. No âmbito desta perspetiva teleológica da ação, baseamo-nos no modelo explicativo de ação proposto por Paul Ricœur (1990), na sua obra Soi-même comme un autre. A conceção subjacente a este modelo pode ser simplificada na lógica «quê-porquê?». Segundo o modelo, «o quê da ação?» refere-se à pragmática ou à teleologia da ação: a finalidade orientada para um bem - bem gramatical -; enquanto “o porquê da ação? introduz-nos na explicação da ação para a descrever melhor” (RICŒUR, 1990, p. 81), desvelando-nos o motivo da ação (razão da ação). A distinção entre finalidade da ação e motivo da ação recupera deste modo a lógica da teoria ator-sistema, correspondendo a finalidade da ação à componente objetiva da ação social e os motivos da ação aos seus elementos subjetivos. Com efeito, ao selecionar a mesma opção na resposta a uma pergunta envolvendo um cenário, os estudantes poderão justificar esta mesma opção utilizando argumentos ou razões muito diferentes. Deste modo, numa análise semântica, o vocabulário dos motivos permite complementar a observação dos dados objetivos da situação («o quê da ação?»), permitindo-nos aceder à ‘imagem’ que os atores possuem da mesma, bem como aos seus estilos de argumentação. Os motivos dos juízos informam-nos sobre o porquê das ações, na esteira de uma sociologia compreensiva weberiana (WEBER; LEVINE, 1972).

4 Estratégia metodológica O método adoptado visou a análise normativa da ação, combinando várias técnicas usualmente aplicadas com finalidades diferentes. No cerne da metodologia implementada encontra-se o questionário por cenários. Para a análise dos resultados fizemos apelo tanto a técnicas hermenêuticas como a técnicas estatísticas por meio do programa SPSS (Statistical Package for Social Sciences). A operacionalização do método pode ser resumida em 5 etapas. Na primeira, foi realizada uma investigação exploratória em 3 escolas socialmente contrastantes da Grande Lisboa, tendo sido feitas a observação dos contextos educativos e o acompanhamento das atividades envolvendo os atores. Foram feitas entrevistas exploratórias, desenvolvidos contatos com informantes privilegiados e especialistas, bem como uma análise documental. Esta primeira etapa visou fundamentalmente identificar diversos cenários de ação (situações) para a construção de cenários. Após a mesma, numa segunda fase, procedemos à elaboração de uma narrativa destinada a colocar os envolvimentos dos atores à prova, com a introdução de tensões entre os bens gramaticais em presença. Para a construção da narrativa, especial atenção foi concedida à estrutura lógica (sintática) da situação, 640 | VÉRTICES, Campos dos Goytacazes/RJ, v.23, n.3, p. 635-651, set./dez. 2021


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bem como à gestão da informação pertinente na narrativa, de modo a não sugerir ou a conduzir os estudantes nas respostas. Houve igualmente o cuidado de colocar hipóteses realistas, próximas da experiência quotidiana dos estudantes. A terceira etapa consistiu na elaboração do questionário, escolhendo as variáveis de contextualização, e no pré-teste. Procedeu-se ao processo de amostragem, que consistiu na seleção de todas as turmas do 10º ano (à entrada do ensino secundário) e do 12º ano (à saída do ensino secundário). Posteriormente, e já depois de os encarregados de educação dos alunos estudantes menores de idade terem preenchido uma declaração de consentimento informado, foi feita a implementação dos questionários em sede de sala de aula. A amostra foi de 726 inquiridos nas três escolas, no ano de 2011. A taxa de resposta foi variável consoante as escolas: 60,6% na escola B, de 55,1% na C e de 26,9% na escola A. A quarta etapa, pós implementação do instrumento, recobriu a categorização e codificação das justificações das opções escolhidas. Realizou-se uma categorização por "milha” - "o sistema de categorias não é formado, antes resultando de classificação analógica e progressiva dos elementos" (BARDIN, 2003, p. 119). Esta etapa consistiu na análise gramatical, da qual resultou uma matriz de significados e de motivos das ações. Na quinta e última etapa, através de uma técnica estatística exploratória, foi realizada uma análise múltipla de correspondências com o propósito de mapear as relações semânticas (de proximidade e de distanciação) entre as modalidades de ação (hipóteses do cenário), os bens gramaticais e os motivos.

4.1 O instrumento: questionário por cenários O questionário por cenários constituiu o instrumento-chave para a recriação de uma espécie de «laboratório político-moral» dos juízos práticos dos estudantes. As vantagens do recurso a este questionário são consideráveis. Nomeadamente, as de procurar envolver os inquiridos em contextos-problema, próximos da sua experiência concreta e situada, convidando-os a participar no dinamismo de uma situação e a mostrar como mobilizam as regras da sua experiência (abordagem realista e situacionista). O questionário por cenários permite assim “captar aspetos mais situacionais e comportamentais que os itens do tipo Likert, que consistem em afirmações gerais e abstratas padronizadas em escalas de resposta" (KÖNIG et al., 2007, p. 213). Por outro lado, a possibilidade de os inquiridos poderem justificar a sua opção permite aceder aos significados da ação que foi considerada como a mais conveniente. Acedendo conjuntamente à opção e à sua justificação podemos focar-nos simultaneamente nos encadeamentos e nos significados da ação, no propósito de descortinar possíveis arranjos contextualizados. As descrições contidas nas justificações informam-nos sobre os procedimentos de objetivação e de conceptualização que os estudantes mobilizam a partir da sua experiência. E ainda que a formulação descritiva de uma ação ou de uma situação seja de uma ordem diferente da do raciocínio prático de uma ação em realização, captada, por exemplo, pela observação direta, aquela mostra-nos a antecipação das expetativas normativas que os atores percecionam. Temos acesso deste modo a uma partilha de significações, mas também de constrangimentos. Em suma, não se trata aqui de ser fiel à ação, mas, na esteira de Ogien e Quéré (2005), de uma sociologia inerente à ação.

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4.2 O cenário O cenário escolhido reporta-se a uma situação, cujos resultados preliminares foram já objeto de um artigo (CAETANO; MENDES, 2014) e replica situações de segregação reais que aconteceram em Portugal. Estas relacionam-se, sobretudo, com a prática de concentração de alunos ciganos em turmas específicas nas escolas. A sua justificação pelas estruturas regionais do Ministério da Educação prendia-se, ainda há bem pouco tempo, como uma medida de discriminação positiva2, no sentido de tratar de forma diferente o que se entendia como pessoas diferentes. Já as autoridades municipais justificavam a existência destas turmas especiais, a posteriori, com a aparente eficácia obtida na sua implementação.3 E, embora esta prática discriminativa tenha deixado de ser considerada legítima pelas autoridades educativas, permanecem, de outro modo, outras formas de segregação, como, por exemplo, o white flight, caracterizado pela evasão dos não ciganos de certos territórios educativos com uma elevada concentração de pessoas ciganas (ABRANTES et al., 2016). O caso recente de uma escola em Famalicão é um claro exemplo deste fenómeno.4 Com o objetivo de inquirir os alunos não ciganos sobre as possíveis significações decorrentes desta prática, foi construída uma pequena narrativa, cujo conteúdo reportava uma hipotética escola ter sido obrigada a aceitar alunos de etnia cigana, alvo de discriminação numa outra escola. No texto, a direção da escola e a maioria dos pais dos alunos não concordavam com esta medida. Os estudantes são assim convidados a posicionar-se face às seguintes questões: como deve a direção da escola proceder? Hipótese A. Criar uma turma especial para receber estes alunos num pavilhão à parte? Hipótese B. Espalhar os alunos por diversas turmas da escola? Hipótese C. Concentrar os alunos numa turma já existente? Hipótese D. Não desistir do protesto e, entretanto, criar uma turma especial para estes alunos, restringindo-lhes o acesso à maioria dos espaços da escola? − Hipótese E. Concentrar os alunos numa turma já existente e promover iniciativas de sensibilização para a integração destes alunos? Posteriormente foi pedida a justificação da escolha efetuada.

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5 Procedimentos analíticos Os procedimentos analíticos compreendem uma análise semântica e uma análise estatística multivariada. Contudo, ainda antes de estes procedimentos terem sido realizados, efetuou-se uma análise estatística univariada.

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FARIA, N. Escola de Tomar cria turma só de crianças de etnia cigana. Público, Porto, 18 set. 2014. Disponível em: https://www.publico.pt/sociedade/noticia/pais-indignados-com-turma-so-de-criancas-de-etnia-cigana-em-tomar-1669992. Acesso em: 24 dez. 2020. 3 SANCHES, A. Turma de Ciganos ainda é polémica e não vai continuar. Público, Porto, 2 fev. 2015. Disponível em: https://www.publico.pt/2015/02/02/sociedade/noticia/nenhum-aluno-desistiu-da-turma-de-ciganos-mas-projecto-nao-e-para-manter1684693. Acesso em: 24 dez. 2020. 4 VALENTE, C. Uma escola que só tem alunos de etnia cigana. "É assim que se cria uma revolta". Diário de Notícias, Lisboa, 17 fev. 2018.

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Considerando os resultados relativamente às opções escolhidas, verifica-se que duas opções mobilizam as expectativas de conduta dos estudantes: a opção B - espalhar os alunos ciganos (31,7%) -, e a opção E - concentrar os alunos ciganos numa turma já existente e promover ações de sensibilização (29,9%). Se se somar as percentagens efetivas das atitudes potencialmente discriminatórias - opções A, C e D, constata-se que 10,9% dos estudantes mobilizam expectativas claramente hostis para com os alunos ciganos. Cruzando com os dados sociodemográficos, a atitude discriminatória é revelada pelo dobro dos estudantes do sexo masculino relativamente aos estudantes do sexo feminino. Ela também está significativamente presente nos estudantes mais jovens relativamente aos seus congéneres mais velhos. Em geral, os estudantes cujo encarregado de educação tem uma habilitação literária equivalente à licenciatura consideram que a gestão mais conveniente dos alunos ciganos corresponde a espalhá-los pelas turmas da escola, sem necessariamente realizar ações suplementares para a integração destes alunos. Os alunos ciganos são tratados como os outros; na prática, são normalizados. Já os estudantes com pais empregados executantes, com 15 anos e do sexo feminino consideram que o arranjo mais conveniente passa por integrar os alunos numa turma já existente ao mesmo tempo que se promovem ações de sensibilização junto dos outros alunos da turma.

5.1 Análise semântica Seguindo o modelo teórico-metodológico da semântica da ação explicitado anteriormente, procuraremos responder às duas questões que orientam a nossa análise: o quê? e o porquê? Assim, para responder à primeira pergunta, identificámos, a partir da categorização das justificações dos estudantes em classes, segundo um critério de significação política relativo às diferentes formas de conceptualizar a gestão da diversidade, quatro bens gramaticais, isto é, quatro orientações de possível coexistência entre ciganos e não ciganos: a «separação», a «socialização», o «universalismo» e a «cooperação». O peso percentual de cada bem gramatical no total das justificações foi o seguinte: «socialização» (40,7%), «universalização» (31,6%), «separação» (11,6%) e «cooperação» (6,1%). De uma forma muito sintética, no bem gramatical da «separação», as pessoas ciganas são vistas como parasitas da sociedade, não dignas e como selvagens que só trazem e arranjam problemas (SILVA, 2014). Por conseguinte, os ciganos deverão estar profilaticamente isolados dos restantes alunos. Na «socialização», os ciganos são tidos como pessoas diferentes, sendo-lhes atribuída uma condição de “estranheza”, focalizada nas diferenças étnicas e culturais (etnicização), tendo as mesmas de passar por um processo preparatório de integração, no sentido de uma aculturação, modificando os seus comportamentos e alterando os seus hábitos. No «universalismo», os ciganos são vistos como iguais aos outros: ou porque são pessoas pertencentes a uma humanidade comum, sendo moralmente dignas do respeito devido a qualquer pessoa, ou porque formalmente são portadores dos mesmos direitos e deveres que os outros. Por fim, na «cooperação», as pessoas ciganas são qualificadas simultaneamente como iguais e como diferentes, sendo a diferença positivamente discriminada, pois a mesma não é reportada somente à singularidade da pessoa, mas também ao fato de pertencer a um coletivo cultural diferente. Neste sentido, a mobilização desta gramática é a que mais se aproxima de uma educação intercultural.

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Para poder responder à segunda questão procedemos do mesmo modo, agrupando e classificando os motivos por analogia semântica. Foram identificados os seguintes motivos: a «coação», o motivo «moral», o «pragmático-conciliatório», o «económico» e o «funcional». O motivo «pragmáticoconciliatório» foi o mais frequente nas justificações (47,7%), seguido pelo motivo «moral» (20,7%), o motivo «funcional» (16,5%), o motivo «económico» (3,4%) e, por fim, o motivo da «coação» (1,7%). Não responderam 8,4% dos inquiridos. O motivo da «coação» agrupa todos os casos que apontam para e fazem referência a ações de controlo, sancionamento, repressão e cerceamento da circulação nos espaços escolares dos alunos ciganos; o motivo «moral» repercute o comportamento incorreto dos ciganos através de provérbios e sentenças morais ou detém-se na singularização da pessoa, enquanto substrato da humanidade; o motivo «pragmático-conciliatório» coloca a tónica na resolução do problema e na importância de se influenciarem hábitos por meio da convivência; o motivo «económico» ou utilitário relaciona-se com os argumentos baseados no prejuízo, no estímulo ou na otimização de soluções; e, finalmente, o motivo «funcional» direciona-nos para os aspetos institucionais ou funcionais das ações ou da situação. O entrecruzamento dos motivos com as gramáticas, resultante da categorização efetuada, é, na verdade, uma sinopse que nos mostra um jogo variegado de possibilidades de coexistência na diversidade. Pelo que estas diferentes possibilidades estão sujeitas a diferentes regras gramaticais. Na realidade, esta abordagem incide sobre o modo de composição das situações. Em lugar da explicação causal visa-se a obtenção de modalidades (possibilidades de estados de coisas), a partir da análise comparativa das relações de similaridade entre diversos casos, assemelhando-se a um jogo variado de possibilidades de emprego sob o eixo horizontal de comparação de casos entre eles (SOULEZ, 2004, p. 62). Da sinopse, observou-se que a modalidade classificada como mais frequente no cenário foi aquela que se prende com "influenciar hábitos" dos alunos ciganos, no bem da socialização, com cerca de 28,8% do total das respostas válidas. Seguiu-se a "igual dignidade" das pessoas (19,9%) e a responsabilidade social da escola (14,6%), as duas últimas alinhadas pelo bem do universalismo.

5.2 Análise multivariada Posteriormente à operação de categorização processou-se a codificação, pela qual a informação resultante das categorias é transformada (normalizada) em variáveis. No seguimento desta sequência será finalmente possível avançar com as operações estatísticas de verificação da existência de correlações entre categorias, motivos, cursos de ação (hipóteses) e dados de caracterização dos estudantes. Estas últimas operações colocam em interação, quase exclusivamente, variáveis qualitativas. Ao realizar-se uma análise de correspondências múltiplas, obteve-se para o efeito um valor de consistência interna de 0,702. A visualização gráfica da associação está presente na Figura 1.

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Figura 1. Representação gráfica dos arranjos da diversidade

Fonte: Caetano (2014)

Na Figura 1, para além dos motivos, dos bens gramaticais e das hipóteses, surgem também as modalidades de pertença de associação (variável âmbito da associação). Trata-se de uma classificação relativa ao campo de atuação associativo no qual os estudantes se encontram ou já se encontraram envolvidos: científico, cultural, estudantil, humanitário, político e religioso. As hipóteses surgem no gráfico sob a forma de acrónimo: TE (criação de uma turma especial para os alunos ciganos); EA (espalhar os alunos); CAT (concentrar alunos numa turma já existente); ND (não desistir do protesto e coartar os espaços de circulação dos alunos ciganos); CS (concentrar os alunos numa turma já existente e promover ações de sensibilização junto dos outros alunos. Como se pode observar existem três perfis claramente distintos. Em primeiro lugar, claramente destacado no gráfico, o perfil da separação (Sep), próximo da não desistência do protesto e da criação da turma especial, e, em certa medida associado também à concentração dos alunos numa turma já existente e do motivo económico (bem como dos inquiridos pertencentes a uma associação político-partidária). No fundo, estamos perante uma situação de marginalização, na medida em que se denota uma evidente exclusão e discriminação dos alunos ciganos. Mais próximo do topo do gráfico, reconhece-se o perfil da universalização (Univ), próximo do motivo funcional e, em certa medida, também da coação e do motivo moral, bem como da hipótese de concentrar os alunos e sensibilizá-los. E, finalmente, o perfil que aproxima a socialização (Soc) da cooperação (Coop), bem como a opção de espalhar os alunos e o motivo pragmático-conciliatório.

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Em resumo, enquanto a dimensão 1 nos mostra a distância relacional do perfil da separação para os outros dois, numa lógica exclusão-inclusão; a dimensão 2 mostra-nos a distância entre o perfil do universalismo e o perfil composto pela socialização e a cooperação, numa lógica de proximidade-distância.

6 Aspetos táticos e coercivos na integração dos alunos ciganos Contrariamente ao esquema da socialização proposto pelo funcionalismo, que nos poderia conduzir a associar o universalismo com o individualismo ou a socialização com os motivos moral ou funcional, observamos, a partir da Figura 1, que o universalismo está associado com estes últimos, bem como com os esforços de sensibilização da escola no sentido de integrar os alunos ciganos. Não obstante, o respeito pela integralidade da pessoa (motivo moral) ou a responsabilidade social da escola (motivo funcional) implicam, porém, o despojamento de todos os resíduos de pertença cultural destes alunos: o aluno é uma pessoa; o aluno é um aluno. A proximidade do motivo moral e da pertença a uma associação religiosa ao universalismo, a par da opção de sensibilização dos alunos não ciganos, atesta este perfil de um universalismo moral personalista. O motivo da coação, próximo do universalismo e funcionalismo, evidencia o aspeto institucional dos direitos e deveres individuais, característico de um certo universalismo republicano, o qual enfatiza as obrigações e a necessidade de cumprir escrupulosamente com as responsabilidades. Já na socialização, verifica-se uma estreita associação com o motivo pragmático-conciliatório e com a hipótese de espalhar os alunos. Na verdade, há aqui um aspeto tático. Tático no sentido prático, e não estratégico (DE CERTEAU, 1988), em ordem a influenciar os hábitos dos alunos ciganos pela convivência, tarefa facilitada pela individualização dos mesmos. Estes estarão assim melhor preparados para se adaptar aos costumes da maioria e poderão também ter oportunidade de fazer novos amigos. Notese ainda que, nesta configuração, há uma distanciação significativa relativamente ao uso da coação nesta intervenção tática de influência dos hábitos dos alunos ciganos. Adjacente à socialização e da opção de espalhar os alunos ciganos, mas também das associações de cariz estudantil, encontra-se o bem da cooperação. Na verdade, a cooperação é o bem mais afastado do bem da separação, o que nos induz a inferir que a dimensão 1 representa um eixo de acolhimento versus rejeição dos alunos ciganos. De modo similar, se nos reportarmos à dimensão 2, onde as categorias dos motivos registam uma maior contribuição, podemos inferir que esta dimensão representa um eixo de familiaridade-distância, no qual o polo da familiaridade coincide com o motivo pragmático-conciliatório e o motivo da coação coincide com o polo da distância. Neste sentido, podemos inferir que aqui o bem da cooperação, associado ao polo da familiaridade, está muito longe do ideal de um cosmopolitismo universalista de direitos e deveres. O bem da cooperação, ao invés, mostra-se conectado a uma partilha de experiências em comum, a um enriquecimento significativo da práxis. Na realidade, a cooperação enraíza-se num desejo espontâneo de interação, assim como na promessa da criatividade da ação. Neste ponto, e contrariamente ao bem da socialização, não existe na cooperação um resultado normativo a atingir – a integração-assimilação dos estudantes ciganos –, mas sim o pressuposto da participação e da valorização das diferentes culturas em interação. A racionalidade substantiva quantitativa presente no bem da socialização contrasta com a lógica substantivamente qualitativa do bem da cooperação.

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Por fim, o bem da separação é, no segundo quadrante, contíguo das opções claramente discriminatórias e xenofóbicas, especialmente as opções de não desistir do protesto e de criação de uma turma especial, mas também de concentrar todos os alunos ciganos numa turma. O motivo económico do prejuízo dos não ciganos, bem como a pertença a uma associação político-partidária estão igualmente adjacentes à perspetiva xenofóbica. Sendo este último aspeto importante fonte de inquietação, talvez pelo fato das motivações de pertencer a uma juventude partidária estarem ligadas a uma expressão convicta de um chauvinismo embuçado.

7 Considerações finais A estratégia metodológica adoptada possui a virtude de dar conta de uma pluralidade de perspetivas de conduta mobilizadas pelos atores, a partir de um contexto específico. De resto, uma virtude pouco habitual nas investigações de cunho mais quantitativo. Com efeito, o desenho metodológico aqui seguido privilegiou o acesso aos quadros de conduta dos atores, procurando superar as principais limitações quer das teorias funcionalistas, isto é, o seu determinismo, quer das teorias interacionistas, a saber, o seu subjetivismo. Tendo em vista o sentido das interações e as possibilidades de arranjos sociais situados, resultado das expetativas recíprocas dos atores, foi possível conhecer os juízos práticos mobilizados pelos estudantes não ciganos e identificar, mapear e caracterizar uma pluralidade de arranjos de coexistência entre alunos ciganos e não ciganos. Neste sentido, foi necessário fundamentar uma articulação teórico-metodológica que pudesse fazer emergir a práxis como objeto de pesquisa. Esta articulação compreendeu duas fases de procedimentos analíticos: a análise semântica e a análise multivariada. Para além das implicações ao nível metodológico, esta pesquisa poderá igualmente contribuir para um maior esclarecimento acerca dos processos de socialização. Na verdade, ela pode constituir-se como um desafio aos principais pressupostos funcionalistas sobre os mesmos, colocando a nu os aspetos táticos mobilizados pelos estudantes nas suas justificações. Este aspeto tático, presente nas justificações que mobilizam o bem da socialização, opõe-se claramente à dimensão coercitiva dos arranjos da diversidade, os quais, em nosso entender, poderão estar associados a uma radicalização da trajetória de um universalismo de cariz republicano. As gramáticas tornadas visíveis através da análise semântica fazem parte de um repertório político comum existente no espaço público. Elas informam-nos sobre as várias formas de perspetivar a coexistência de diferentes culturas. Com efeito, elas constituem o produto histórico de diferentes tradições sociopolíticas que chegaram até nós: o preconceito xenofóbico próprio de uma comunidade fechada e excludente, que classifica o não familiar como «estrangeiro», hostilizando-o; o universalismo personalista, indutor da ideia de uma Humanidade comum e precursor do cosmopolitismo (KANT, 1996); o universalismo cívico republicano, defensor do primado da lei e da ordem (SAVIDAN, 2007); o pragmatismo solidário visando uma harmonia orgânica através do trabalho socializador do Estado (DURKHEIM, 1908); e ainda o interculturalismo pós-moderno, que se destaca pela sua abertura e pela exigência de uma permanente negociação relacional entre culturas (RODAT, 2020). A referência a estas gramáticas presentes nas justificações dos estudantes mostra a pluralidade e a riqueza de ferramentas conceptuais disponíveis que os mesmos mobilizaram para a resolução da situação. Porém, a análise estatística univariada permite sublinhar que as gramáticas mais mobilizadas são as da socialização e do universalismo. Na verdade, estas gramáticas revelam justamente que, resistindo ao crivo da espessura do tempo, as mesmas são as que se encontram mais estabilizadas na tradição do espaço sociopolítico português. 647 | VÉRTICES, Campos dos Goytacazes/RJ, v.23, n.3, p. 635-651, set./dez. 2021


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Não obstante, nem a conceção orientada para a assimilação dos ciganos, nem a conceção direcionada para o respeito dos estudantes ciganos enquanto pessoas, verdadeiros sustentáculos da socialização e do universalismo, respetivamente, parecem dar resposta ao problema da discriminação sofrido pelos ciganos, particularmente no que se refere ao respeito pela sua identidade cultural. A não valorização da cultura cigana nestas duas gramáticas contribui, com efeito, para a sua continuada subordinação e marginalização. Com efeito, o bem gramatical da cooperação, ou seja, o interculturalismo, é, de entre todos os disponíveis, o mais propício à valorização da cultura cigana. Neste sentido, e dada ter sido reduzida a mobilização desta gramática pelos estudantes, torna-se crucial apostar mais firmemente na implementação de uma educação intercultural nas escolas. Sabendo que o interculturalismo, se bem que receptivo à criatividade de ação (JOAS, 2008) e à inovação social, não deve ser subsumido apenas ao bem da cooperação, pois encontra-se igualmente aberto ao conflito e à negociação entre culturas, na medida em que estes se processem sob uma ótica produtiva e inclusiva.

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COMO CITAR (ABNT): CAETANO, P. J.; MENDES, M. M.; MAGANO, O. Como acolher os estudantes Ciganos na escola pública? Do reconhecimento da alteridade a uma pluralidade de arranjos discriminatórios. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 23, n. 3, p. 635-651, 2021. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v23n32021p635-651. Disponível em: https://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/15971. COMO CITAR (APA): Caetano, P. J., Mendes, M. M. & Magano, O. (2021). Como acolher os estudantes Ciganos na escola pública? Do reconhecimento da alteridade a uma pluralidade de arranjos discriminatórios. Vértices (Campos dos Goitacazes), 23(3), 635-651. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v23n32021p635-651. 651 | VÉRTICES, Campos dos Goytacazes/RJ, v.23, n.3, p. 635-651, set./dez. 2021


Submetido em: 2 fev. 2021 Aceito em: 5 jul. 2021

DOI: 10.19180/1809-2667.v23n32021p652-670

O Arco-da-Velha na Escola: no reconhecimento público das diversidades culturais em escola inclusa José Manuel Resende https://orcid.org/0000-0002-7233-2237 Doutor em Sociologia pela Universidade Nova de Lisboa (2001). Professor Catedrático no Departamento de Sociologia da Universidade de Évora - Portugal. E-mail: josemenator@gmail.com. Guilherme Paiva de Carvalho https://orcid.org/0000-0002-1165-5761 Pós-Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Évora (UÉvora). Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Ensino (UERN/UFERSA/IFRN) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas (PPGCISH/UERN) – Mossoró/RN – Brasil. E-mail: guimepaivacarvalho@gmail.com. Aline Raiany Fernandes Soares https://orcid.org/0000-0002-0502-2001 Técnica Administrativa em Educação na Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA). Mestre em Ensino (UERN/UFERSA/IFRN) – Mossoró/RN – Brasil. E-mail: alineraiany722@gmail.com.

Resumo Profissionais de duas escolas, uma portuguesa e outra brasileira, foram postos à prova da inclusão escolar a propósito das suas considerações sobre a maneira como se expressam índices culturais múltiplos nas suas escolas. Como é que essas manifestações culturais coabitam no decurso da escolarização levada a cabo na escola? Que indícios apresentam quando confrontados/as com públicos diversos matriculados na sua escola? Como examinam as convivências entre uns e outros nas atividades proporcionadas pela escola? Como incluem nas aprendizagens os lados tangíveis das expressões culturais no plural? Dando conta dos questionamentos levantados por estes/as profissionais, o artigo mostra como os conceitos de multiculturalismo, interculturalidade e diversidade cultural são ressignificados nas linhas mestres das políticas e ações públicas no Brasil e em Portugal. E a partir desta exploração analítica observar como estas linhas são interpretadas nestas escolas pelos/as profissionais. Para finalmente alargar o questionamento destes conceitos às controvérsias levantadas por cientistas da área da educação que as suscitam a propósito dos intentos públicos manifestados por múltiplas equipas que têm governado a educação nestes países. Palavras-chave: Multiculturalidade. Interculturalidade. Diversidade cultural. Políticas públicas. Práticas educativas.

The Rainbow in the School: in the public recognition of the cultural diversities in inclusive school Abstract Professionals of two schools, one in Portugal and the other in Brazil, were investigated regarding school inclusion and their considerations on multiple cultural indexes in their institutions. How do these cultural manifestations coexist in the schooling process? How are they manifested when confronted by the diverse public enrolled in their school, and how do they analyze this coexistence in school activities? How do they include the tangible sides of the plural cultural expressions in their in the learning? Based on the issues raised by those professionals, the article shows how concepts of multiculturalism, interculturality, and cultural diversity are reframed in the main policies and public actions both in Brazil and Portugal. From this analytical perspective, it proposes the observation of these policies and actions are interpreted by the two groups. The study expands the discussion those concepts to controversies raised by scientists in the education field regarding public intentions manifested by those that have ruled education in these two countries. Keywords: Multiculturalism. Interculturality. Cultural diversity. Public policies. Educative practices.

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El Arcoíris de la Escuela: en el reconocimiento público de la diversidad cultural en la escuela inclusiva Resumen Profesionales de dos escuelas, una portuguesa y otra brasileña, fueron puestos a prueba de la inclusión escolar en relación con sus consideraciones sobre la forma en que se expresan múltiples índices culturales en sus escuelas. ¿Cómo estas manifestaciones culturales cohabitan en el curso de la escolarización realizada en la escuela? ¿Qué evidencia presentan cuando enfrentados/as con públicos diversos matriculados en tu escuela? ¿Cómo examinan las convivencias entre algunos y otros en las actividades proporcionadas por la escuela? ¿Cómo incluyen en los aprendizajes los lados tangibles de las expresiones culturales en el plural? Mirando los cuestionamientos planteados por estos/as profesionales, el artículo muestra cómo los conceptos de multiculturalismo, interculturalidad y diversidad cultural son replanteados en las líneas maestras de políticas y acciones públicas en Brasil y Portugal. A partir de esta exploración analítica, el estudio propone observar cómo estas líneas son interpretadas en estas escuelas por los/las profesionales. Para finalmente extender el cuestionamiento de estos conceptos a las controversias levantadas por científicos de la educación que las suscitan a propósito de las intenciones públicas manifestadas por múltiples equipos que han gobernado la educación en estos dos países. Palabras clave: Multiculturalismo. Interculturalidad. Diversidad cultural. Políticas públicas. Prácticas educativas.

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1 Fazer-se diferente em escolas sob o signo da inclusão: pontos de partida Tratar da diversidade escolar impõe à partida problemas de índole conceptual (RESENDE; VIEIRA, 2002). De que estamos a falar quando a diversidade aparece como objeto sociológico? Na verdade, versar sobre a qualidade daquilo que é diverso num dado contexto, tanto toca aquilo que é diferente, quanto toca aquilo que é desigual. Ora, em termos sociológicos aquilo que é desigual não se encaixa em igual medida naquilo que é diferente. Em outros termos, naquilo que a diferença qualifica o diferente na maneira de o medir, incluindo a aferição das suas consequências numa determinada temporalidade e num dado contexto, tal medição pode não ser possível justapor-se no mesmo padrão de medida naquilo que a desigualdade qualifica o desigual, tendo em atenção os mesmos contornos mencionados à avaliação que se faz sobre o diferente. Se atender a estas cautelas de não se misturar aquilo que é diferente daquilo que é desigual, as mesmas atenções são reforçadas se associarmos o ser diferente ou desigual à pessoa, ou ao ator que corporiza essa diferença ou essa desigualdade. Neste sentido, ao alertar para não se confundir o diferente do desigual, previne-se igualmente que se desloque o olhar da pessoa diferente ou desigual, para as ações produzidas por quem é denotado como diferente ou como desigual. Isto é, num dado momento, mas também na sua sucessão ao longo de itinerários com tempos variáveis, a percepção de alguém encarado como diferente ou como desigual é efeito das atribuições assacadas por um outro, ou outros, com quem mantém relações em que a reciprocidade pode apresentar-se em uma geometria variável. Alguém se mostra diferente ou desigual a outra pessoa porque à luz dos olhares expressivos desse outro com o qual se encontra, este confere-lhe indicações significativas pela sua corporalidade, que esse outro com quem este lida frequentemente age de uma determinada maneira face a um acontecimento ou a um problema (RESENDE, 2005, 2018, 2019). Puxados os termos do diferente e do desigual tal como atrás esboçadamente são mencionados, a reflexão que aqui se ensaia eleva a diversidade para a qualificação do fazer diferente em contexto escolar, em uma tentativa de a pensarmos, quer naquilo que toca a experiência escolar brasileira, quer naquilo que diz respeito à experiência escolar portuguesa. Singulariza-se a relação entre a referência ao diferente na sua acepção atuante a uma determinada experiência particular porque a análise recai em dois contextos escolares particulares que mais adiante são definidos com mais precisão. Na verdade, não é possível uma maior generalização. A esta incisura acontece outra. A diversidade sob o óculo do diferente é acompanhada por um dissecador que reduz a diferença para o ângulo das disparidades culturais que se expressam nas experiências escolares (CAETANO; MENDES, 2014; SEABRA et al., 2018). Não obstante a porosidade como a questão cultural é concernida pelos/as docentes inquiridos/as, a marca temporal merece ser destacada relativamente à visibilidade que a diversidade é assumida como problema escolar. A desocultação da diversidade cultural como problema que acompanha a escolarização parece ser questão que se apresenta extensivamente com a qualidade de novidade quando esta confronta os/as docentes através de suas práticas pedagógicas e educativas ao longo da escolarização (RESENDE; VIEIRA, 2002; RESENDE, 2010). Tanto no caso brasileiro como no caso português as expressões da diversidade cultural nas escolas são concebidas na sua qualidade noviciária pelos/as profissionais da educação (CANDAU, 2008; ALMEIDA, 2006; PEREIRA; ARAÚJO, 2017). Assim assegurada parece estranho uma vez que a composição social das populações brasileiras e portuguesas contém em si a diversidade cultural, quer se assinale o seu lado regional, quer se anote o seu lado étnico. A história que perpassa os dois estados-nação localizados entre trópicos com um oceano a separá-los dá nota abundante da tangibilidade da diversidade cultural exposta sob este brasão, não obstante a singeleza da linhagem como a diversidade cultural é aqui exibida.

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No entanto, se arrogarmos à escolarização a natureza decursiva que esta pressupõe avocar, e desse modo, a pensarmos nas suas vertentes históricas, então talvez fique mais fácil compreender a qualidade noviciária da diversidade cultural encarada pelos/as profissionais de ensino como um problema relativamente novo. A novidade não decorre da presença do outro generalizado na escola, como sujeito ou como ser com uma dada corporalidade. Esse outro até pode ter lá estado há muito tempo atrás. O que acontecia habitualmente é que tais seres não anuíam com a mesma facilidade e naturalidade às aprendizagens, tanto nas suas componentes educacionais, quanto nas suas componentes instrutivas. O confronto da sua presença não era incomodativo a ponto de desorientar em absoluto as práticas docentes, ou porque rapidamente se ausentavam e reprovavam por faltas, ou porque não sendo sucessivamente aprovados acabavam por desistir precocemente das aprendizagens escolares. Ou ainda em casos singulares, naquilo que pode ser entendido como casos “excêntricos”, uma ou outra, um ou outro, lá se mostravam com alguma notoriedade nos resultados das suas aprendizagens. Mas sendo casos pouco ou nada expressivos do ponto de vista estatístico, a sua cor da pele, ou algum elemento que indiciasse a sua localização em coletivos culturalmente distintos, em nada afetava o bom decurso das aulas (MUNANGA, 2013). Em outros termos, as suas presenças não geravam problemas uma vez que as experiências escolares in situ não acareavam os docentes, levando-os, por exemplo, a questionarem os propósitos das suas práticas profissionais. Na sua generalidade a maioria destes seres talvez nem fossem identificados cabalmente na sua diferença cultural. Mais facilmente eram conotados como seres de somenos, isto é, pouco ou nada vocacionados a aprender tal como acontecia com outros meninos e meninas que mostravam interesse pelas aprendizagens. À época, a diversidade cultural trazida pelo aprendiz para as experiências escolares era amortecida pelo lado da desigualdade que era a questão primordial para o ofício do professor. A generalidade dos docentes praticava a docência com a mira das aprendizagens sem se interrogarem sobre os efeitos diferenciais da aquisição dos saberes transmitidos por aqueles/as que se apresentavam como diferentes, incluindo, nestas diferenças quem era portador de uma doença limitadora. Ainda não se tinha afirmado o princípio da atenção pedagógica a partir da regra que ao centro estava a figura do/a aluno/a na sua singularidade (CARVALHO; SILVA, 2020; MOREIRA; CANDAU, 2008; RESENDE, 2003). Mesmo se as práticas pedagógicas devessem atender os interesses manifestados por alunos e alunas, por iniciativa própria ou em resposta dada ao questionamento do/a docente, o proveito não se deslocava para um dado ser em particular, mas para o corpo da classe. A inclusão da singularidade no todo da classe ainda não tinha sido objeto de doutrina pelas outras ciências que coadjuvavam a pedagogia. O compromisso como expressão do envolvimento dos/as professores/as nas aprendizagens dos seus alunos e alunas era menos estendido, e sobretudo, não exigia dos/as docentes questionamentos frequentes sobre os efeitos das suas práticas nas experiências escolares. As famílias dos/as alunos/as pouco ou nada participavam nas atividades escolares, e quando eram chamadas às escolas era para resolver problemas de indisciplina ou de violência. O mesmo acontecia com outros atores individuais e coletivos que residiam ou trabalhavam no concelho onde a escola se localizava. Agora o panorama é distinto, uma vez que no dealbar do novo milénio as políticas públicas têm acentuado cada vez que todos contam na escola. Ao trazer a inclusão para dentro das escolas, as ações públicas insistem com mais veemência que não se pode abandonar ninguém no decurso de uma escolarização que se torna cada vez mais longa. Todos contam, e cada um no todo tem uma centralidade própria. E o docente tem de manifestar atenção e cuidado por quem fique para trás nas aprendizagens. Tem de o apoiar com planos de recuperação se for caso disso. Reprovar ou reter deixam de ser verbalizações

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recorrentes nas experiências profissionais dos docentes. Só em última instância tal ocorrência pode acontecer e mesmo assim tal ato tem de ser devidamente justificado (RESENDE, 2016a; RESENDE; GOUVEIA; BEIRANTE, 2020). Além disso, a lonjura da escolarização, medida em número de anos, requer agora dos/as docentes uma atenção acrescida a todas e a todos que se matriculam na escola em cada um dos doze anos da escolarização obrigatória. Daí que a presença daqueles que são identificados com a matriz da diferença, seja qual a composição assumida por essa marca, o alheamento dos/as professores/as em fazer face às dificuldades apresentadas pelos/as alunos/as qualificados/as na sua diferença já não é satisfatório mesmo quando estes/as manifestam o seu sofrimento em silêncio. O arco-da-velha da diversidade cultural na escola não é coisa de somenos, uma vez que a crescente heterogeneidade de públicos, que os movimentos migratórios ainda acentuam mais, tem estado a trazer para as experiências escolares outros problemas que vão requerer dos/as docentes envolvimentos para dar resposta a controvérsias com selagem educacional e instrutiva (SEABRA, 2017; CARVALHO; SILVA, 2015).

2 Caminhos metodológicos das investigações O estudo sobre o arco-da-velha da diversidade cultural na escola se baseia em duas pesquisas de campo realizadas no Brasil1 e em Portugal2. Como metodologia foi adotada uma abordagem qualitativa com o uso de entrevista semiestruturada nas duas investigações. A abordagem qualitativa é apropriada para pesquisas que tratam de aspectos subjetivos. Em estudos qualitativos destacam-se “significados subjetivos que” as pessoas “atribuem a suas atividades […]” (FLICK, 2004, p. 34). Assim, as investigações buscaram os significados atribuídos à diversidade cultural, considerando o tema das diferenças a partir de experiências de profissionais da educação. A pesquisa no Brasil foi realizada em duas escolas da rede pública de educação do município de Caraúbas/RN, região do Oeste potiguar, no período de fevereiro a junho de 2019. Contamos com a contribuição de 9 (nove) professoras. As entrevistas ocorreram com um grupo de professoras bastante diverso tanto no que diz respeito à faixa etária como ao tempo de serviço na docência, bem como com experiências anteriores ao atual vínculo e instituição de trabalho. Assim, o processo de análise das vozes desses sujeitos foi feito por meio da definição de categorias, estas definidas por meio do diálogo estabelecido com os sujeitos, buscando atender os objetivos propostos para a pesquisa: conhecer a compreensão dos/as docentes sobre diversidade cultural. Assim, as falas dos sujeitos colaboradores serão identificadas da seguinte maneira E1 para a 1ª entrevistada, E2 para a segunda e sucessivamente até a E9. A pesquisa em Portugal ocorreu em março de 2020. Foram entrevistados/as 9 (nove) profissionais, incluindo professores, professoras, a pessoa que dirige a escola, a assistente social e a psicóloga da instituição, além do mediador cultural e de um representante da comunidade cigana que trabalham na portaria de uma das escolas do Agrupamento. Para fazer referência aos sujeitos dessa pesquisa utilizaramse as seguintes siglas: profissional da educação (E); mediador cultural (MC); representante cigano (RC). Foram utilizadas as letras “M” e “F” para diferenciar homens e mulheres. 1

A pesquisa realizada no Brasil foi aprovada pelo Parecer nº 08227019.2.0000.5294 do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). 2 Em Portugal, a autorização para a realização da pesquisa foi dada pela Direção do Agrupamento nº 1 de Elvas, em 14 de fevereiro de 2020, por meio de convite feito por e-mail. Durante a pesquisa no espaço escolar, os/as entrevistados/as foram informados sobre o sigilo quanto à identidade na divulgação dos resultados.

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Na pesquisa de campo em Portugal foram realizadas entrevistas com profissionais do Agrupamento de Escolas de Elvas nº1, localizada no distrito de Portalegre, região do Alentejo. A escola integra o Programa Territórios Educativos de Intervenção Prioritária (TEIP). Elvas é uma pequena cidade próxima da fronteira com a Espanha, a 15 km de Badajoz. A escola atende 703 discentes, sendo 97,12% de nacionalidade portuguesa e 2,88% de imigrantes. Com relação ao corpo discente, a escola possui 10,5% de estudantes da etnia cigana. No tocante à estrutura física, a escola possui salas específicas para as disciplinas de matemática, informática, música e ciências, biblioteca, refeitório, casas de banho, espaço externo com quadra de esporte, pátio, secretaria, sala da direção, gabinete de Psicologia, cozinha e refeitório. A escola integra o programa Territórios Educativos de Intervenção Prioritária (TEIP), implantado em 1996 em Portugal, por meio do Despacho nº147-B. No referido programa é enfatizada a importância do respeito às diferenças étnico-culturais na escola.

3 O tema da diversidade cultural no Oeste potiguar A discussão aqui diz respeito à compreensão que as professoras investigadas têm sobre a diversidade cultural, pois esse entendimento interfere na prática docente, na forma como as questões relacionadas a essa temática são abordadas no contexto escolar. É a partir da forma como esse processo é produzido que se reafirmam situações de preconceito, discriminação e hierarquização de culturas. Pensar a diversidade cultural a partir da premissa da diferença é então crer que há incontáveis elementos que tornam diferentes os seres, porém supõe que se tenha a capacidade de reconhecer o outro. Uma das questões norteadoras usadas na entrevista refere-se a qual compreensão se tinha sobre o que é diversidade cultural ou, ainda, o que pensam essas professoras quando se deparam com essa discussão ou com esse termo. Assim, uma das entrevistadas atribui como definição: A questão da multiplicidade de cultura que existe, que é realidade nossa e como tal tem que ser trabalhada com os alunos para que conheçam e aceitem seja uma coisa diferente. Eu vejo muito assim, que quando a gente acha que algo é diferente, estranho, a gente tende a excluir, quando é algo comum, que é visto, é falado no dia a dia, a gente tende a incorporar como normal (E5).

Embora não se aprofunde na discussão, pode-se trazer para o debate que o termo remete a esta professora a variação, a pluralidade cultural presente na nossa realidade, a qual deve ser trabalhada, pois só a partir do “conhecimento” poderiam os/as discentes a encarar de forma natural e “normal” no seu cotidiano. Outro elemento interessante diz respeito ao sentimento de estranheza citado pela professora quando se está diante do diferente, podendo-se acrescentar a indiferença, a invisibilidade ou até mesmo o preconceito que é lançado quando se apresentam situações que fogem totalmente dos padrões e modelos adotados para se estabelecer as comparações. A construção da “categoria ‘humano’ retém em si mesma a elaboração de poder diferencial da raça como parte de sua própria historicidade” (BUTLER, 2006, p. 30). Percebe-se, dentro do discurso de algumas das professoras, que a diversidade está relacionada ao processo de miscigenação e mistura de “raças”, cujas articulações têm ressalvas entre pesquisadores/as (CANDAU, 2008; CARVALHO, 2018; HANASHIRO; CARVALHO, 2005; MUNANGA, 1999) que debatem sobre essas questões e sobre a importância de desenvolver reflexões acerca da complexidade de tais processos, mas que são relatados por elas como lados de uma mesma moeda. Vejamos a definição dessa entrevistada:

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O Arco-da-Velha na Escola: no reconhecimento público das diversidades culturais em escola inclusa José Manuel Resende, Guilherme Paiva de Carvalho, Aline Raiany Fernandes Soares É essa gama de informações, de heranças, de várias culturas que nós recebemos. O Brasil é um país miscigenado que recebeu ricamente essa cultura de outros países, porque a gente foi colonizado pelos portugueses e recebemos de Portugal e da África, já tínhamos aqui a nossa herança genética e cultural dos índios e que só veio a somar, e aumentar ainda mais essa diversidade. Você veja que a gente está no Rio Grande do Norte, a gente tem uma cultura diferente não só regional, de cidades, mas o país inteiro. Se a gente comparar a nossa realidade com a cultura do Sul, Sudoeste é gritante, é marcante o quanto é diferente. A diversidade cultural é essa mistura étnica, de cultura, de costumes populares, tudo isso (E6).

De acordo com a perspectiva apresentada pela entrevistada 06 (E6), a diversidade é resultado do processo de miscigenação, tendo em vista que o Brasil foi colonizado por Portugal. Essa visão remete a uma compreensão da mestiçagem como um processo harmônico de mistura racial. Munanga (1999, p. 18) ressalta que “a mestiçagem não pode ser concebida apenas como um fenômeno estritamente biológico […]”, incluindo fatores associados à apropriação das teorias raciais e ao mito da democracia racial no Brasil. Na voz da entrevistada 01, percebe-se que a discussão em torno da diferença de raça também se apresenta: Diversidade cultural envolve tudo que diz respeito à cultura, entra o respeito às diferenças, questões de raça, diferenças regionais, diferentes povos, questões. Cita o exemplo das alterações, ao longo do tempo, da organização de família (E1).

Essa ideia em torno da existência de raças é uma construção histórica e, embora inconscientemente, ainda habita em nosso pensamento quando o assunto é diversidade cultural. Além da ênfase dada pelas entrevistadas a essa amplitude presente no termo, também é enfatizada, nas vozes de algumas das docentes, a importância do respeito para com essa variedade e diferenças que marcam os sujeitos. Vivemos em uma sociedade que é composta pela mistura de várias raças, culturas diferentes. Diversidade é compreender e respeitar para conviver com essa variedade (E3). Dentro dos discursos das professoras percebe-se que a entrevistada 03 (E3) aponta para um elemento importante e que faltou durante boa parte da história, o respeito a essa diversidade, pois se esta tivesse sido a atitude para com os que aqui estavam e os que vieram, não se viveria em uma sociedade extremamente preconceituosa, racista, indiferente com as causas de negros e indígenas. Considerando a cultura como uma produção social que se consolida por meio das relações que se estabelecem socialmente, entende-se que conviver com essa variedade posta na fala da professora implica o não estabelecimento de relações hierárquicas, de subalternidade, de superioridade. Diversidade cultural a meu ver é acima de tudo… é você compreender a realidade do outro, a cultura de cada pessoa, cada grupo social tem seu método de viver, história, vive a sua realidade e enquanto professora cabe acima de tudo você respeitar e procurar entender cada etnia, cada grupo, cada realidade, cada costume eu vejo por esse lado acima de tudo (E7).

Para a E7, o processo de definição da diversidade cultural passa pela compreensão da realidade do outro, talvez seja essa uma característica relevante a ser desenvolvida pelo ser humano, sua capacidade de colocar-se no lugar do outro, a empatia, a fim de que se possa identificar que, ao longo da história, essa diferenciação entre os sujeitos foi produzida por meio dos parâmetros de inclusão e exclusão. Nesse contexto, o trabalho com a conceituação da diversidade cultural, a partir da categoria diferenças, não é realizado na perspectiva de que essa traga distanciamento entre questões, pessoas, grupos e sujeitos, mantendo-os afastados um do outro, mas que essa diferenciação, tão marcada e acentuada

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socialmente, não seja reflexo de processos desiguais e preconceituosos. Pensar sobre a diversidade cultural para as entrevistadas 4 e 8 pressupõe respeito: A minha visão de diversidade é de respeito, que as pessoas vivem em lugares diferentes, cada povo tem seu costume, que a diversidade é importante para o convívio dos indivíduos em sociedade pelo fato de que as pessoas possam ter contato com outras pessoas que são de costumes e cultura diferentes” (E4). Pra mim é compreender as diversas culturas existentes no mundo, cada qual com suas características próprias, respeitando suas tradições, religiões e costumes (E8).

O convívio com as diferenças é apresentado pela E4 como relevante para a vivência em sociedade, sendo enriquecedoras para essa convivência e requerendo do ser humano respeito, tanto para E4 como para E8, para com essas alteridades. Além disso, faz-se necessário o entendimento de que não existe cultura superior à outra, que esse processo de inferiorização, superioridade, inclusão e exclusão são construções históricas oriundas dos processos de dominação e das relações de poder que as envolvem. Chama a atenção, ainda, na fala da professora, a expressão “cada povo tem seu costume”, como se o processo de construção cultural fosse estático e não dinâmico, carregado de complexidade proveniente das relações que são tecidas entre os sujeitos e, sobretudo, mediadas pelo processo de transformação e significação ao longo dos anos. A diversidade cultural é resultado de um processo cultural dinâmico que sofre transformações, adaptações e assimilações ao longo do tempo. O próprio sistema neoliberal em que a sociedade está inserida tem dado sustentação a políticas, tanto no que diz respeito à educação, como à cultura, fundadas dentro da ideia de tolerância e igualdade, desconsiderando a diversidade presente no país. Dentro das respostas apresentadas ao questionamento que diz respeito ao entendimento sobre a diversidade cultural, percebe-se que os sujeitos caminham dentro de um mesmo fluxo das ideias, no que se refere à suas visões, embora, em algum momento de suas falas, abranjam ou restrinjam a algum aspecto em particular. A entrevistada 02 caminha muito similar ao já apresentado, ao evidenciar a sua compreensão de diversidade cultural como: “De aceitação e respeito aos diferentes modos de viver, às várias culturas, crenças, rituais e conhecimentos. Variedade, as diversas culturas e modos de viver” (E2). Ela traz o elemento do respeito a essas diferenças produzidas pelo ser humano nos mais diferentes aspectos, mas a sua fala permite fazer o seguinte questionamento: qual a compreensão dessa professora sobre cultura, já que esta, ao expor sua visão, apresenta cultura como algo à parte dos diferentes modos de viver, crenças, rituais, até mesmo ao conhecimento que é produzido, não os elencando como se fossem parte daquela, mas sim exteriores, muito embora tais elementos estejam fortemente ligados a ela? Sem sombra de dúvidas, para todas as entrevistadas, para além da produção de diferenças que existe por trás da construção e denominação da diversidade cultural, cabe, no processo, a premissa do respeito tão importante para que, no contexto em que persiste a desigualdade social, o preconceito e o racismo, haja a esperança de um futuro onde esses elementos já não estejam tão presentes.

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4 Diversidade cultural e dificuldades de inclusão no Alentejo A escola de Elvas, em Portugal, atende um público caracterizado pela diversidade cultural. Além de famílias formadas por pessoas que regressaram das antigas colônias portuguesas na década de 1970, na instituição encontram-se estudantes oriundos de diversos países da Europa, África e Brasil3. Nas entrevistas foram mencionadas situações de discriminação por causa de questões relacionadas com as diferenças culturais existentes na escola, tanto com estudantes imigrantes quanto com afrodescendentes (ARAÚJO, 2007). Em vários discursos houve a citação do caso de duas alunas gêmeas que vieram do Brasil e sofreram situações de discriminação na Escola. Eu to a me lembrar dessas irmãs… quando vieram pra cá… estou a lembrar que quando vieram do Brasil pra cá houve situações em que havia essa discriminação… pelo menos a mãe referia isso e as meninas também referiam que existia… penso que ela tinha que… ler um texto… a pronúncia é diferente e ela dizia que por vezes gozavam com ela… Pronto, de momento acho que isso já não acontece… acho que foi ultrapassada… em relação aos meninos de cor por vezes ainda há esse estigma, não é… ou essas alcunhas de chamarem preto… agora que são meninos que tão integrados… que têm amigos… que não estão sozinhos nos intervalos… pronto, é aquilo que nós constatamos…(EF3).

Uma das falas destacou a proposta de inclusão como uma das metas incorporadas pela Escola. O relato ressalta que os problemas de comportamento independem do grupo étnico de cada estudante, motivado pelo questionamento acerca de problemas com estudantes da etnia cigana que já haviam sido mencionados em outras entrevistas. Tanto há problemas comportamentais a nível da etnia, como há do aluno que não é da etnia. Nós aqui não… há um espírito de inclusão. Tem que ser como uma viagem podia ser em todo o país e acho que é… temos alunos tal como estava a dizer da etnia… de outros países… que vêm de outros países… que vêm de outras cidades constantemente… que estão a entrar, e portanto, a inclusão é feita… a diversidade é sempre encarada como uma maneira a incluirmos e a fazermos como todos… uns com os outros de forma a que todos se sintam bem dentro do ambiente escolar (EF4).

De acordo com os discursos de profissionais da Escola, as situações de discriminação por conta de diferenças são mais observadas principalmente no primeiro ciclo. Se calhar quando se chama… de gordão… também chama preto ao outro… pega-se naquilo que é diferente… porque és gordo… porque tu és um caixa de óculos… ou porque és preto… rotula-se um bocadinho assim… mas se calhar também são alunos… e depois também são alunos que nós vemos depois que também não estão sozinhos… que têm amigos… que tão integrados digamos assim e se calhar a nível de primeiro ciclo é quando é mais notório… (EF5).

Apesar de falas que ressaltaram a proposta de integração e a construção de um espírito de solidariedade entre alunos e alunas, outros discursos se referiram às dificuldades da efetivação das políticas de inclusão, relacionadas com o princípio da igualdade de oportunidades e uma concepção de justiça escolar. Os discursos apontaram as dificuldades para a inclusão de estudantes com níveis diferenciados de aprendizagem. Segundo 3

Amilcar Pereira e Marta Araújo (2017) realizaram um estudo comparativo sobre “raça”, identidade e história no Brasil e em Portugal. Fatores como o mito da democracia racial no Brasil e a ideia de vocação para a interculturalidade em Portugal são importantes para análises acerca de ambas as sociedades, considerando as especificidades de cada país. Nos estudos sobre diversidade cultural, relações étnico-raciais e racismo no Brasil, realizados por autores e autoras como Candau (2008), Munanga (2013), Carvalho e Silva (2018), o mito da democracia racial é mencionado como um fator importante para a compreensão de práticas sutis e implícitas de discriminação racial no espaço escolar.

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o relato, a inclusão de estudantes que apresentam dificuldades de aprendizagem se reflete em situações de indisciplina na sala de aula e desinteresse no ensino, prejudicando a turma como um todo. Pensando sempre na integração, que mais tarde se chamava de inclusão, mas que eu considero que a inclusão a de ser sempre uma meta, mas a inclusão é quase uma ilusão. Podemos fazer inclusão física, mas isso não é a verdadeira inclusão. E por vezes nós… considero que nós temos que excluir para preparar o aluno para depois conseguirmos incluir… porque depois tá na sala de aula sem compreender, sem capacidade para compreender, isso gera indisciplina, desinteressa-se, começa a conversar ao lado, depois o professor chama a atenção e depois ele não gosta de ser chamado a atenção e pronto… e depois acaba por prejudicar também a aprendizagem dos que querem mesmo estar interessados. Por isso que eu digo que a inclusão com calma, devidamente pensada. Porque senão estamos a fazer aquilo que eu costumo chamar de inclusão selvagem. Estamos a maltratar o aluno (EM1).

Alguns discursos enfatizaram a proposta de integração e reconhecimento da diversidade cultural na escola. Prezamos cada vez mais essa diversidade e eles têm que respeitar essa diversidade porque é nessa diversidade que vivemos, não é? O mundo é mesmo assim. Estimulamos tudo o que tenha a ver com a aumentar as práticas educativas em torno da diversidade, promovendo também ações de sensibilização… às vezes até jogos e pronto, não há também quase nenhuma turma em que não haja diversidade cultural. Portanto, a diversidade tá espalhada por todas as turmas, não é? E eles vão se sentindo integrados assim, vão aprendendo a lidar com… Tem que aprender a lidar com a diferença, uma pessoa de etnia, como tem que aprender a lidar com outra pessoa que não é de cor e vice-versa. Isto nós aqui temos de ser todos por igual e não costumamos ver atitudes como se diz racistas… não se costuma ver… (EF6).

Apesar de o relato sustentar a inexistência de atitudes racistas no ambiente escolar, a partir de outras entrevistas percebeu-se que as dificuldades no tocante à integração ocorrem mais com estudantes da etnia cigana do que com imigrantes e afrodescendentes (MARQUES, 2007). Várias falas fizeram referência aos subsídios oferecidos pelo governo português para famílias de etnia cigana. A presença de estudantes da comunidade cigana na escola justifica-se, de acordo com os relatos de profissionais da instituição, pela obrigatoriedade em manter as crianças matriculadas. Neste sentido, os relatos mencionaram as dificuldades para efetivação das políticas de inclusão social e reconhecimento da diversidade cultural devido ao choque entre a cultura escolar e a cultura cigana. Porque os alunos que nós temos aqui na nossa escola de etnia cigana e os outros dos outros agrupamentos normalmente são filhos de pais que têm rendimento social de inserção… o apoio da segurança social e para poderem ter esse apoio… os filhos… é uma das obrigatoriedades… o filho tem que vir à escola até os 18 anos… então, como são obrigados pela segurança social a vir, eles vêm, mas depois faltam uma semana, depois vem uma manhã, depois faltam um mês… pronto, vão vindo, mas assim muito espaçado (EF6).

No tocante a estudantes de etnia cigana, uma das falas destaca o choque entre a cultura cigana e a cultura escolar. O discurso sustenta que a população cigana não tem o hábito de cumprir regras, o que dificulta a sua inserção no sistema educacional e na sociedade. O relato evidenciou que há “períodos em que não vêm, da assiduidade nula. Porque eles não têm a cultura da escola” (EF7). Um dos problemas mencionado em várias falas diz respeito às tradições relacionadas com o matrimônio na etnia cigana.

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O Arco-da-Velha na Escola: no reconhecimento público das diversidades culturais em escola inclusa José Manuel Resende, Guilherme Paiva de Carvalho, Aline Raiany Fernandes Soares As meninas aos 12 anos devem abandonar o estudo… quando se tem a menstruação já não vêm à escola… quando arranja um namorado já não é para virem à escola e aí com essa etnia ainda tá um bocadinho complicado… porque eles ainda se regem muito pelas tradições deles… há alguns que já não, que já gostam de ser modernos, como eles dizem… meus pais já são modernos… mas a maioria ainda se rege muito pelas tradições deles e é uma batalha que às vezes nós temos aqui… é controlar esse absentismo (EF6). Eu, por exemplo, tenho umas alunas que já estão prometidas à casamento, né? E que têm e se calhar 14 ou 15 anos e aos 15 anos vão se casar e depois saem da escola, pronto… então, não vê utilidade nenhuma em estar na escola e isso se complica, por exemplo, falando de educação inclusiva em que a escola deve dar oportunidade de ensino a todos os miúdos (EM2).

Assim, em decorrência do absentismo, na escola, estudantes de etnia cigana acabam abandonando os estudos. Neste caso, a tradição cultural cigana associada ao matrimónio constitui-se como um desafio para integração de estudantes desse grupo étnico no sistema educacional formal. Uma das falas se referiu a dificuldades no tocante ao comportamento de estudantes da etnia cigana na sala de aula. Há vinte anos, se calhar ainda havia ciganos que viviam em acampamentos e só há pouco tempo é que começaram a viver em casas oferecidas pela Câmara Municipal, pela prefeitura… e aos poucos estão a habituar-se a conviver com o resto da população e adquirirem… só que isso vai demorar algumas gerações, pronto… e eu digo que essa tarefa é complicada para os professores. Por que? Porque é importante que os pais acompanhem os miúdos e que vejam o interesse na escola… só que muitos pais ciganos ainda não veem a importância da escola, porque os filhos são a primeira geração a estudar… e então torna-se muito complicado para um professor, ou obrigar uma criança dessa etnia sentar-se, porque não estão habituados a sentar-se. E então é muito complicado, trazem o celular pra aula, o professor manda desligar, eles não estão habituados a desligar o celular… falando dos ciganos propriamente ditos (EM2).

O termo “absentismo” apareceu em várias falas quando o assunto era a aprendizagem de estudantes da etnia cigana. Foi recorrente a referência às tradições de matrimónio das comunidades ciganas como um dos motivos para a ausência nas aulas e o abandono escolar. No entanto, outros relatos mencionaram avanços no sentido da inserção e permanência de estudantes da etnia cigana no primeiro ciclo. Por causa da própria tradição. Principalmente nas meninas, não é? Que a tradição ah… quer que elas casem-se cedo e depois não… não querem que elas venham à escola e portanto temos uma grande taxa de abandono por parte… e de absentismo por parte… principalmente da etnia. Isso se vê com as tradições… do próprio grupo. É uma coisa que temos tentando lutar ao longo dos anos com tudo isso. Já conseguimos ter meninos, várias meninos, e já tem sido um sucesso ter meninos de etnia no préescolar… no pré-escolar não sendo obrigatório… Era um nível que não havia meninos de etnia… já conseguimos ter a nível do primeiro ciclo… depois aí conseguimos ter hoje… depois começamos a perdêlos aqui a nível do segundo e terceiro ciclo… começamos a perdê-los porque eles começam a ter aquela idade já está a se casarem… a fazer a vida deles familiar e de sair da escola. Eu acho que estes casos acima de tudo o que é que o que é que se tinha que fazer e que ainda não se fez neste país, nós temos que atender a certas… diferenças que existem, não é? Portanto… aquilo que um menino de etnia… ao pai do menino de etnia procura no ensino é completamente diferente daquilo que um pai do menino de outra raça procura (EF6).

Um dos relatos apontou a indisciplina por parte de estudantes da etnia cigana como um fator que dificulta a aprendizagem da turma como um todo. Assim, as políticas de inclusão são consideradas contraproducentes já que não haveria uma sensibilização por parte da comunidade cigana acerca da importância da escola, bem como devido a situações de indisciplina na sala de aula. 662 | VÉRTICES, Campos dos Goytacazes/RJ, v.23, n.3, p. 652-670, set./dez. 2021


O Arco-da-Velha na Escola: no reconhecimento público das diversidades culturais em escola inclusa José Manuel Resende, Guilherme Paiva de Carvalho, Aline Raiany Fernandes Soares Quer dizer os miúdos que não são da etnia cigana tentam aprender, mas não conseguem porque os outros boicotam o bom ambiente na sala de aula e então em vez de conseguirem, por exemplo, vamos supor, eu quando estudei, quando era jovem e estudei, os ciganos viviam em acampamentos, não vinham na escola. Então, eu estudei numa turma em que consegui aprender e os meus pais que eram pobres, eu consegui ser o primeiro membro da família a ir para universidade… Agora as pessoas pobres, os jovens pobres, como estão na escola pública com este tipo de colegas que não querem aprender, faz com que eles aprendam pouco e não consigam depois superar a classe social dos pais… não consigam subir. Esse é o problema da educação inclusiva, porque depois as famílias que querem que os filhos aprendam muitas vezes os colocam em colégios privados… e nos colégios privados há uma seleção do público… só está lá quem quer aprender e então aprende-se… ou seja, a educação inclusiva acaba por ser contraproducente no objetivo de dar oportunidade aos jovens, ou seja, quem é de famílias pobres, mas que quer aprender não consegue porque os miúdos de outras etnias não estão sensibilizados para aprender ou cumprir regras (EM2).

Para crianças, adolescentes e jovens de etnia cigana são sugeridos, em um dos relatos, outras alternativas de formação educacional, tendo em vista a dificuldade de adaptação à cultura escolar. Havia que se haver ofertas formativas que dessem resposta aquilo que essas crianças e que esses pais querem… Porque depois inseri-los num mesmo e dizer que é inclusão e se eles no mesmo processo formativo e dizer é assim que estamos a incluir não é… Eles não se sentem bem… não é aquilo que eles querem… aquilo não dá resposta às ambições deles e depois daí gera-se indisciplina, desinteresse, desmotivação… com qualquer um quando é obrigado a fazer aquilo que não quer… portanto, isto passava muito a nível do primeiro… logo do primeiro ciclo que é um percurso formativo tal como já temos percursos, ofertas, outras ofertas alternativas (EF6).

A falta de reconhecimento por parte da sociedade como um todo, ou seja, o não reconhecimento na escola é apontado como um dos fatores que leva à ausência nas aulas e ao abandono escolar. Há referências ao conflito entre os valores das etnias ciganas e à cultura escolar como um dos motivos do fracasso, do abandono e da exclusão escolar (ROSÁRIO; SANTOS; LIMA, 2011). No tocante às relações de gênero, pesquisas apontam que as meninas tendem a abandonar mais a escola no início da puberdade, quando há um receio de relações afetivas com rapazes não ciganos. A discriminação em relação às comunidades ciganas constitui um dos fatores que causam o fracasso e o abandono escolar, além da dificuldade em acompanhar os conteúdos abordados na escola e as expectativas fracas de inserção no mercado de trabalho (FAÍSCA; JESUÍNO, 2006; MAGANO, 2015; NICOLAU, 2016). Um dos relatos evidenciou as dificuldades para implementação de políticas de inclusão social na escola. A crítica às políticas de diversidade cultural era direcionada à inclusão de estudantes das comunidades ciganas na escola. Segundo o relato, os/as estudantes ciganos/as eram os principais responsáveis pela desordem nas aulas, atrapalhando o rendimento escolar dos/as colegas de turma. Outra fala se refere a dificuldades para inclusão de estudantes de etnia cigana devido ao absentismo nas aulas. No relato é mencionada a experiência com uma aluna que se aproveitaria em afirmar sua diferença para se ausentar da aula. Eu acho que ela é que é um bocadinho… aproveita-se de ser… do facto de ser cigana e de ter aquelas aulinhas da educação especial para… tentar ser diferente… ela pede que não podem ir à rua, ela pede para ir à casa de banho… deixo-a ir e depois volta e diz-me: — professora, posso sair… posso ir embora? Não… e ela outro dia… porque eu disse que ela arranja… ela disse: deixe sair as ciganitas… ela que tava a discriminar… porque as ciganitas podiam sair, não é? (EF1).

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Em outros relatos foram levantadas críticas às políticas de inclusão por estas desconsiderarem os interesses e expectativas das famílias, das crianças e jovens da comunidade cigana com a educação. A inclusão parece uma forma de inserir a criança na instituição escolar em um ambiente em que ela não se sente bem, não sendo tocada pelo afeto, pela motivação de estar na escola. Tem que haver de facto esse percurso alternativo para esse tipo de alunos onde estão também enquadrados outros tipos de alunos que não têm essas ambições a nível de ensino e, portanto, o ensino tem que se transformar de acordo com as ambições de cada miúdo, de cada criança. E essa transformação passa… não digo que acho que aquilo que chamam de inclusão no Artigo 54 e no 55, no Decreto seja o mais adequado… não é… não acho que seja pegar uma criança e colocá-la e dizer está incluído… não está incluído… a criança sente-se perdida. Não… não é por aí. No meu ponto de vista não é por aí. A criança não se sente… não se faz sentir bem. A criança… a inclusão tem que levar as mesmas oportunidades que ela consiga sentir-se motivada da mesma forma que dava oportunidades aos outros miúdos… os outros miúdos podem sentir-se motivados com o percurso normal, mas há outras crianças que não se sentem motivados… então, calma a criar um percurso alternativo. Porque senão estamos a fingir que estamos a incluir… e este 54 e este 55 estão a ser um bocadinho nessa situação… mas pronto é assim a política do nosso país e temos que seguir em frente… tentamos ver como é que as coisas vão decorrer melhor ao longo dos tempos (EF6).

Outro aspecto que chamou a atenção nos discursos foi a descrença e a falta de expectativas por parte de estudantes em geral com relação ao ensino. Por um lado, foi citada a busca por cursos profissionalizantes para uma inserção mais imediata no mercado de trabalho. Isso ocorre também com estudantes imigrantes, de acordo com um dos relatos e a partir de conversas informais com profissionais da Escola. Têm alunos brasileiros aqui a frequentar a escola… e penso que vão continuar, vão até ao ensino médio, onde fazer vestibular, pronto, mas nós em Portugal a partir do ensino médio, quando a criança entra no ensino médio, que é o ensino secundário aqui em Portugal, há opção de escolher os cursos profissionais, cursos profissionais são cursos vocacionadas para um estágio, ou seja, no final do ano começam a fazer estágio, a trabalharem nas empresas para se habituarem ao mercado de trabalho, pra cumprir horários, a cumprir tarefas e tudo mais… Enquanto que no ensino regular não há estágios o objetivo é ir para a universidade. Pronto…e a maior parte dos miúdos hoje em dia escolhem o ensino profissional que é um ensino mais fácil, menos exigente, mas que no 12º ano, ou seja, quando terminam o ensino médio já têm a oportunidade de conseguir um trabalho… Observo… infelizmente, observo que a maior parte dos miúdos de famílias pobres querem ir para o ensino profissional… percebo porque é mais fácil e dá-lhes trabalho logo em seguida, enquanto que eu era também de famílias pobres, mas fiz o ensino regular e consegui ir para a universidade. Porque no meu tempo, ou seja, terminei o ensino médio em 1999, as famílias mais pobres ainda viam no ensino, na educação, uma forma de subir socialmente. Hoje em dia não, hoje em dia em Portugal o ensino está completamente descredibilizado, ou seja, já não se acredita que se consiga subir na vida através de educação (EM2).

A noção de justiça escolar e social norteia a proposta de massificação da educação, baseada na igualdade de oportunidades em todos os níveis educacionais. Quando os diplomas deixaram de propiciar o acesso ao mercado de trabalho, as famílias reduziram as suas expectativas em relação à escola. Segundo o relato de um dos entrevistados, antigamente colegas pertencentes à etnia cigana achavam desaconselhável o convívio com pessoas que não fossem do grupo. Contudo, essa visão já teria mudado, havendo uma aceitação das diferenças culturais.

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O Arco-da-Velha na Escola: no reconhecimento público das diversidades culturais em escola inclusa José Manuel Resende, Guilherme Paiva de Carvalho, Aline Raiany Fernandes Soares Já tiveram cá companheiros meus, da minha raça… e pronto, houve aquele primeiro são ciganos, então, havia alguns com opinião de não se juntarem aos ciganos, mas agora, graças a Deus, está mais… hoje não há mais diferença, já brincam uns com os outros, fora uns que não querem integração, mas em geral já não há aquela visão… ah, não quero brincar com ele… (MC).

De acordo com a fala do entrevistado, crianças e adolescentes da comunidade cigana apresentam expectativas com relação à escola. Contudo, no decorrer do percurso escolar, por volta da adolescência, há uma percepção acerca de práticas de discriminação e de mecanismos de estigmatização aos quais os grupos étnicos ciganos são sujeitados no cotidiano da sociedade e na instituição escolar (NICOLAU, 2016; ROSÁRIO; SANTOS; LIMA, 2011). A criança em si… qualquer criança quando vai para a escola quer ser bombeiro, quer ser polícia, ou seja, tem um sonho, independentemente da etnia, mas acredito que quando ele chega à escola e depois de uma certa idade 9, 10, 11 aninhos, 12 aninhos… consegue perceber que há uma divisão e uma forma de tratamento diferente sobre eles, desinteressam-se. Eu falo nas novas gerações, desinteressam-se muito e então, é que levam mais para dizer assim: ah, acho que preciso só mais é de estudos pra tirar a minha carta e fazer a minha vida de cigano, ou seja, não há uma aposta individualizada no contexto geral, mas principalmente não há uma aposta individualizada naquela pessoa, ou não tem na forma de tentar perceber que aquela pessoa tem outro prisma, uma outra cultura, porque o ensino… o ensino é muito tecnicista, baseado no professor e acabou em mais nada e tem que ser tudo ligado naquela linha, ou seja, e eles conseguem perceber que o mais importante da vida é a escola. Contudo, nem todos temos que ser estudantes… mas apesar de incutirmos aos pais ciganos que a escola é importante e que necessitamos urgentemente da escola… e eles têm consciência disso e optam e enveredam por levá-los à escola… e agora tem aumentado, não é?… e tem havido um esforço maior da parte dos pais, porque também já não levam aquela tal vida de Nómada… começa-se agora a interiorizar e fazer parte da cultura cigana a escola… onde há ciganos dos vários estratos sociais inclusive no governo… (RC).

Assim, observa-se uma crítica ao modelo tecnicista da escola e à falta de diálogo entre a instituição escolar e a comunidade cigana. A fala destaca uma conscientização por parte da população cigana sobre a importância da escola para a formação das crianças da comunidade.

5 De pequenino ainda se consegue torcer o destino pela inclusão? Notas finais sobre a diversidade cultural como problema Mais do que extrair semelhanças e diferenças entre as duas pesquisas aqui sinalizadas convém assinalar que a diversidade cultural nas escolas brasileiras e portuguesas aparece expressivamente como um problema político e moral com diversas matizes. As suas colorações resultam da própria história da escolarização em cada um destes dois países, e as suas nuances mais vincadas nos resultados preliminares das pesquisas resultam dos contextos geográficos e sociais onde as escolas se encontram localizadas. Por outro lado, o pronunciamento produzido pelos profissionais de ensino inquiridos realça particularidades que resultam do modo como a diversidade foi examinada a partir de interrogações prévias que não autorizam uma comparação cotejada, quer no seu todo, quer em cada uma das suas parcelas. No caso do estudo realizado na região do Oeste potiguar o equacionamento da diversidade assentou no modo como as docentes qualificam aquilo que entendem e definem como diversidade cultural, ajustando cada juízo às práticas e experiências profissionais de quem as proferiu em contexto de entrevista (CARVALHO; SILVA, 2020; MOREIRA; CANDAU, 2008). Na análise efetuada em uma cidade do norte alentejano ensaiou-se 665 | VÉRTICES, Campos dos Goytacazes/RJ, v.23, n.3, p. 652-670, set./dez. 2021


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observar se a diversidade constituía ou não um problema para os profissionais de ensino que exerciam a sua profissão em um estabelecimento de ensino identificado oficialmente como sendo uma escola inserida num território de intervenção prioritária da parte do Estado português (VIEIRA; DIONÍSIO, 2012). Nas referências analíticas extraídas da examinação das falas das professoras brasileiras, o questionamento da diversidade baseia-se sempre a partir da premissa cultural. E neste sentido a diversidade cultural assume uma pegada histórica, isto é, aparece confinada à história do país herdada desde o longo período da colonização até à época contemporânea. E no âmbito do domínio histórico salientam-se as repercussões, isto é, os seus impactos em cada uma das regiões ou dos estados que compõem o Estado federado. Do estranhamento inicial que a diversidade cultural traz a partir do confronto com o outro diferente, uma problemática mais vasta é anunciada como pertinente para retirar desta diversidade as suas principais consequências que entroncam não só na aceitação, mas sobretudo no reconhecimento e respeito desse outro que corporiza matizes culturais distintas (CARVALHO; SILVA, 2015; MUNANGA, 2013). Assim, a diversidade cultural é pontuada como questão moral e política, apesar da ausência de um aprofundamento sobre as suas consequências no domínio das artes de fazer o comum na escolarização nestas escolas (RESENDE; GOUVEIA, 2013). Na verdade, as reflexões práticas não entraram em consideração com as suas expressões nas aprendizagens escolares, nem tão pouco fica claro se tem havido ou não dilemas e conflitos neste domínio, quer entre profissionais, quer entre outros protagonistas. No que toca às ilações analíticas a retirar da pesquisa realizada em um agrupamento de escolas da cidade de Elvas no norte alentejano, e com maior acuidade em uma escola TEIP ali incluída, a questão da diversidade não só aparece como um problema visceral como atravessa um sem número de experiências arroladas às sociabilidades e convivialidades escolares, mas também em outros espaços mais ligados às aprendizagens cognitivas. Por outro lado, a natureza profunda dos dilemas apresentados assenta em problemas e questões identificadas como discriminantes e com efeitos excludentes, quer quando as diferenças de sotaques são notadas e versadas como objeto de chacota, quer quando a questão étnica é ressignificada pelos professores como problema cultural associado à tradição da comunidade cigana (RESENDE, 2019). Neste último domínio os costumes comunitários em que se alicerça a denominada cultura cigana alcunhada enquanto qualidade homogénea, é identificada como a força matriz mais conservadora que se confronta de modo desigual com a denominada cultura escolar (MENDES; MAGANO; CANDEIAS, 2019). Neste sentido, e seguindo as experiências escolares de alguns docentes inquiridos, a cunhagem dos laços matrimoniais precoces e obrigatórios como ingrediente intrínseco da cultura desta comunidade, não só contribui para afastar os/as alunos/as ciganos/as das aprendizagens, mas também mostra à saciedade que estes/as estão na escola para que os pais possam usufruir de subsídios do Estado que visam a redução da pobreza extrema. Ora o profundo desdém manifestado por pais e filhos relativamente às aquisições cognitivas pela escolarização são fruto da natureza cultural que alimenta esta comunidade, e a naturalização do problema não só tolhe as possibilidades dos docentes de o analisar de outro modo, como incentiva ainda mais à sua reificação (ABRANTES et al., 2016). O ato de substancializar a cultura, alimenta a sua coisificação. Esta operação atuante produzida por alguns docentes faz acentuar ainda mais o distanciamento entre as famílias destes alunos e estes profissionais. Tais distanciamentos acirram a frieza, nutre as reservas mútuas, dificultando as ações recíprocas entre uns e outros. Neste domínio como em outros as questões levantadas precisam também de ser aprofundadas em outras incursões investigativas. Contudo, as linhas esboçadas já dão mostras visíveis das clivagens existentes nas experiências escolares observadas na escola pública alentejana. É uma escola intervencionada pelo Estado para fazer face aos múltiplos problemas fraturantes. No entanto, as ofensas morais ali

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experimentadas pelos alunos oriundos de famílias imigrantes, e as desconformidades abruptas entre os profissionais de ensino e as famílias de origem cigana são questões ainda em aberto e que merecem atenções acrescidas. E majorar estes cuidados exigem do pesquisador mergulhos etnográficos na escola que, estamos certos, contribuirão para afinar o olhar e a perscrutar ainda melhor os diversos protagonistas escolares. Só desta forma é possível captar as artes de fazer o comum no plural, mesmo quando o lado plural tece novos desafios políticos e morais às ações públicas que visam a inclusão na escola (CARVALHO; SILVA, 2020; RESENDE, 2019; RESENDE; GOUVEIA, 2013).

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O Arco-da-Velha na Escola: no reconhecimento público das diversidades culturais em escola inclusa José Manuel Resende, Guilherme Paiva de Carvalho, Aline Raiany Fernandes Soares

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O Arco-da-Velha na Escola: no reconhecimento público das diversidades culturais em escola inclusa José Manuel Resende, Guilherme Paiva de Carvalho, Aline Raiany Fernandes Soares

COMO CITAR (ABNT): RESENDE, J. M.; CARVALHO, G. P.; SOARES, A. R. F. O Arco-da-Velha na Escola: no reconhecimento público das diversidades culturais em escola inclusa. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 23, n. 3, p. 652-670, 2021. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v23n32021p652-670. Disponível em: https://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/15972. COMO CITAR (APA): Resende, J. M., Carvalho, G. P. & Soares, A. R. F. (2021). O Arco-da-Velha na Escola: no reconhecimento público das diversidades culturais em escola inclusa. Vértices (Campos dos Goitacazes), 23(3), 652-670. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v23n32021p652-670.

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Submetido em: 30 nov. 2020 Aceito em: 18 mar. 2021

DOI: 10.19180/1809-2667.v23n32021p671-683

É pra falar de gênero sim: considerações teóricas e práticas sobre a importância de uma educação antissexista nos institutos federais Alice de Araújo Nascimento Pereira https://orcid.org/0000-0002-9761-4089 Mestre em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professora do Ensino Básico e Técnico no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense (IFFluminense) Campus Macaé/RJ - Brasil. E-mail: aliceanp6@gmail.com. Camila França Barros https://orcid.org/0000-0003-1260-2976 Especialista em Linguística aplicada ao ensino da língua inglesa pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professora do Ensino Básico e Técnico no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense (IFFluminense) Campus Macaé/RJ - Brasil. E-mail: camila.fbarros@gmail.com. Olivia de Melo Fonseca https://orcid.org/0000-0001-5317-3683 Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professora do Ensino Básico e Técnico no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense (IFFluminense) Campus Macaé/RJ - Brasil. E-mail: oliviamelo@gmail.com.

Resumo A escola não é um espaço neutro, ela é povoada por sujeitos que possuem marcas de identidade de gênero, raça, classe e orientação sexual, entre outras. A negação de que vivemos numa sociedade que explora e exclui mulheres, negros, a população LGBTQIA+, os pobres, mostra como a escola pode ser o local onde essas opressões são perpetuadas. A educação sexista cria e dissemina as opressões ao mesmo tempo que é calcada nelas; por conseguinte, não pode ser uma educação libertadora, como defendida por Paulo Freire. Porém, a educação pode e deve ter um papel importante a desempenhar no combate às desigualdades e na construção de uma sociedade mais justa. Por isso, é fundamental discutirmos as teorias e práticas de uma educação antissexista. Através de uma análise bibliográfica sobre o tema e relato de experiências no âmbito do Instituto Federal Fluminense, pautaremos a metodologia desse artigo. O objetivo principal deste trabalho é se debruçar sobre ações concretas de uma educação feminista, libertária e afirmativa, que traz à tona as angústias subjetivas e os conflitos coletivos que, desde muito antes da pandemia, afligem-nos e que deixarão marcas profundas em nossa geração. Palavras-chave: Antissexista. Educação. Escola Pública. Gênero. Diversidade.

We ought to talk about gender: theoretical and practical considerations about the importance of an anti-sexist education in the Federal Institutes Abstract School is not a neutral space - it is populated by subjects who have marks of gender identity, race, class and sexual orientation, among others. The denial that we live in a society that exploits and excludes women, people of color, LGBTQIA+ population, the poor, shows how school system can be the place where these oppressions are perpetuated. Sexist education creates and disseminates oppressions while being grounded upon them; therefore, it cannot be a liberating education, as defended by Paulo Freire. However, education can and must play an important role in combating inequality and building a more just society. That is why it is essential to discuss the theories and practices of an anti-sexist education. The methodology is based on a review of the literature and report of experiences within the Federal Fluminense Institute. The main goal of this article is to focus on concrete actions of a feminist, libertarian and affirmative education, which reveals the subjective anxieties and collective conflicts that, since long before the pandemic, has afflicted us and that will leave profound marks on our generation. Keywords: Anti-sexist. Education. Public School. Gender. Diversity.

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Se trata de hablar de género: consideraciones teóricas y prácticas sobre la importancia de la educación no sexista en los institutos federales Resumen La escuela no es un espacio neutral, está poblado por sujetos que tienen señas de identidad de género, raza, clase y orientación sexual, entre otros. La negación de que vivimos en una sociedad que explota y excluye a las mujeres, los negros, la población LGBTQIA+, los pobres, muestra cómo la escuela puede ser el lugar donde se perpetúan estas opresiones. La educación sexista crea y difunde opresiones mientras en ellas se funda y, por lo tanto, no puede ser una educación liberadora, como defiende Paulo Freire. Sin embargo, la educación puede y debe desempeñar un papel importante en la lucha contra la desigualdad y la construcción de una sociedad más justa. Por eso es fundamental discutir las teorías y prácticas de la educación no sexista. Mediante un análisis bibliográfico sobre el tema y relato de experiencias en el ámbito del Instituto Federal Fluminense, orientamos la metodología de este artículo. El objetivo principal de este trabajo es enfocar acciones concretas de una educación feminista, libertaria y afirmativa, que desvele las ansiedades subjetivas y los conflictos colectivos que, desde mucho antes de la pandemia, nos afligieron y que dejarán profundas huellas en nuestra generación. Palabras clave: No sexista. Educación. Escuela Pública. Género. Diversidad.

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1 Introdução O Rei está nu! E não está seguindo a recomendação do uso de máscara para proteger-se contra o novo coronavírus, ainda por cima. A pandemia de Covid-19 desnudou a realidade sombria e injusta em que vivemos, permitindo-nos enxergar com mais precisão e acuidade as diversas formas perversas que as desigualdades sociais e econômicas tomam. Encontramo-nos em uma sociedade capitalista e patriarcal em que as mulheres sofrem discriminação, exclusão e várias formas de violência. Elas são a maioria das trabalhadoras na linha de frente do combate à pandemia; ocupam mais posições em empregos informais e mal remunerados; são a maior parte das vítimas de abuso sexual e violência doméstica; ademais, acumulam funções de cuidado no ambiente familiar. Como sobreviver em meio a esta crise de saúde global, onde a sociedade patriarcal se mantém estrutural e estruturante? Se nos foi negado expressar o luto pelas vidas perdidas, criaremos nossos próprios espaços de luto contra uma sociedade que escamoteia nossas dores. Não obstante, devemos olhar estas feridas do período da pandemia como uma continuidade das anteriores e entendê-las como urgências, que exigem teorias mais arrojadas, posturas mais corajosas e práticas mais robustas de forjamento de consciência crítica. Tornou-se ainda mais importante vivenciar as feridas e os lutos da pandemia para que seja possível sobreviver, olhar para o futuro e imaginar um mundo possível melhor, conforme pontuou Judith Butler (BUTLER, 2020). Construir e demandar uma educação antissexista são tarefas das quais não podemos nos furtar. Olhando para o passado, observamos a longa trajetória que percorremos até aqui e devemos respeitar esses antecedentes históricos. Demoramos a chegar ao ponto em que é garantido acesso a todos os níveis de educação para todas as mulheres, pelo menos juridicamente, mas não podemos ignorar que temos ainda um longo caminho pela frente. A generalização de escolas mistas permitiu educar meninos e meninas juntos, baseado na igualdade de oportunidades para os sexos. No entanto, continuamos vivendo em uma sociedade profundamente desigual, que vai se adaptando e encontrando novas formas de perpetuar e renovar suas opressões. Como recorda Gerda Lerner, em diversos campos, a produção do saber foi negada às mulheres e mesmo os saberes que produziram foram ignorados ou considerados inferiores, com a justificativa de que “as mulheres não produziram avanços no campo do pensamento devido à preocupação determinada biologicamente com a criação dos filhos e as emoções” (LERNER, 2019, p. 50). Embora essa linha argumentativa careça de legitimidade hoje, não podemos negar que ainda existam não só diferenças no tratamento dispensado às mulheres na educação em suas diversas dimensões e níveis, como o fato de que essas diferenças refletem a própria sociedade patriarcal na qual vivemos.

2 Metodologia e valores norteadores Como se constitui o grupo ‘mulheres’ dentro da nossa sociedade? Simone de Beauvoir, embora não tenha se aprofundado nos temas circunscritos à educação, fez contribuições filosóficas valiosas sobre a relação entre homens e mulheres nas sociedades contemporâneas e, para ela, as mulheres estão em um mundo em que os homens as definem como Outro e seus conflitos advêm das exigências de uma situação que as constitui como objeto (BEAUVOIR, 2019a, p. 26). Portanto, uma luta por educação antissexista deve visar que as mulheres sejam vistas como sujeitos agenciados, que produzem conhecimento em todos os campos do saber e que são capazes de analisar e interferir na realidade. O movimento feminista entra no cenário político justamente para apontar o processo de inferiorização e subjugação em que as mulheres 673 | VÉRTICES, Campos dos Goytacazes/RJ, v.23, n.3, p. 671-683, set./dez. 2021


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eram/são submetidas e demandar transformações sociais, culturais, econômicas, políticas e educacionais para que elas alcancem autonomia e liberdade nas esferas individual e coletiva. Neste sentido, quando o movimento feminista exigiu respeito pelo trabalho acadêmico de mulheres, reconhecimento pelas suas contribuições no passado e no presente e o fim dos preconceitos de gênero no currículo e na pedagogia, possibilitou rupturas importantes (HOOKS, 2019, p. 43). Apesar dessa contribuição fundamental, o movimento feminista já amadureceu o suficiente para avançar em suas práticas e teorias. Primeiramente, não devemos imaginar que uma educação antissexista se limita ao interesse de um grupo homogêneo de “mulheres”. A maioria das sociedades ocidentais pensa na divisão entre os sexos como uma divisão ontológica irredutível em que sexo e gênero coincidem e cada um deles é exclusivo em relação ao outro (HIRATA et al., 2009, p. 223). Porém, como afirmado por Beauvoir, essa concepção engessada e demasiado simplista não corresponde à realidade. Segundo ela: “ninguém nasce mulher; torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado” (BEAUVOIR, 2019b, p. 11). Em discussões mais recentes, Judith Butler vai além das conclusões de Beauvoir ao argumentar que gênero é construção social e que as premissas que arquitetam tais conceitos também o são. Butler afirma que o gênero não deve ser meramente concebido como inscrição cultural de significado, mas ainda o aparato de produção mediante o qual os sexos são estabelecidos (2016, p. 27). Esse mecanismo histórico e discursivo é socialmente contingente e está sempre em transformação. O conceito de gênero se afirmou como categoria de análise e contribuiu para a “compreensão dos mecanismos de criação, manutenção e naturalização das desigualdades, sob uma perspectiva relacional entre homens e mulheres” (CARREIRA, 2016, p. 28). Ao pensarmos os sujeitos envolvidos na comunidade escolar por esta perspectiva, estamos pensando em relações entre sujeitos cujas identidades são – permanentemente – construídas culturalmente (BORTOLINI, 2011, p. 31). A escola, muitas vezes, produz e reproduz as mesmas dinâmicas de poder assimétricas da estrutura em que se insere, engendrando e reforçando, deste modo, os estereótipos de gênero, o binarismo determinístico hierarquicamente organizado e a dominação do masculino sobre o feminino. A manutenção dos privilégios dos homens e a subordinação das mulheres são baseadas em uma ideologia androcêntrica que permeia o processo de descrição, análise e geração de conhecimento (RUBIO, 2020, p. 62), ideologia que os espaços de educação formal frequentemente refletem e perpetuam. Embora a educação não esteja limitada a esse espaço, iremos, neste artigo, debruçar-nos sobre a escola pública no Brasil, o Instituto Federal Fluminense, mais especificamente, relatando a experiência de um projeto de extensão com intuito de debater questões de gênero, como elas se manifestam em nossa comunidade escolar, e as ações desenvolvidas em seu âmbito ao longo do ano de 2020. No entanto, apresentaremos, primeiramente, os valores que norteiam o projeto e as circunstâncias que nos provocaram ao desenvolvimento do mesmo. A escola é o lugar não só de práticas de ensino/aprendizagem, mas também de disputas ideológicas, de disciplina dos corpos e sujeitos, de jogos de poder, de construção dialógica do conhecimento, de tessitura de afetos e de produção de significados. Ela tem marcas históricas, políticas, econômicas e culturais. Justamente por isso, a escola não é um espaço neutro e, portanto, não pode produzir sujeitos neutros. Entretanto, a negação da diferença é uma perspectiva comum na escola, fomentando uma ideia de universalismo que minimiza a importância da diversidade sexual (BORTOLINI, 2011, p. 33). Esse local de produção de saber e de sentido, frequentemente, investe na categorização sexista ou racista, afetando de modo complexo as relações entre adultos e crianças e entre as

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próprias crianças, por meio de comportamentos cotidianos na instituição ou nos conflitos entre indivíduos (HIRATA et al., 2009, p. 82). Essas relações são metonímias do que acontece na sociedade como um todo. Para discutir uma educação antissexista, podemos abordar diversos aspectos da vida escolar: relações entre os membros da comunidade, currículo formal e oculto, políticas educacionais, aspectos sóciohistóricos da educação, teorias e práticas pedagógicas e toda gama de discursos acerca do processo ensino/aprendizagem. No entanto, por uma perspectiva filosófica e pedagógica mais ampla, poderíamos resumir que uma educação antissexista não seria questão de adicionar certos tópicos ou abordagens ao currículo, porém de construir um novo currículo e uma nova prática educativa, partindo do diálogo e do encontro entre diferentes sujeitos, “sem ignorar a tensão trazida pelo conflito e, mais que isso, percebendo o próprio conflito, a própria diferença em seu potencial pedagógico” (BORTOLINI, 2011, p. 37). Nesse sentido, temos como ponto de partida um valor muito caro a nós, que é o do reconhecimento dos educandos como sujeitos detentores de conhecimentos e experiências anteriores, levando em consideração que: A maioria dos estudantes aprende através de práticas educacionais conservadoras e tradicionais e se preocupam somente com a presença do professor, qualquer pedagogia radical deve insistir que a presença de todas seja reconhecida. Essa insistência não deve ser só afirmada, deve ser demonstrada através de práticas pedagógicas (HOOKS, 1994, p. 8, tradução nossa).

Esse reconhecimento pressupõe liberdade de todos os envolvidos nas práticas de ensino e aprendizagem. Como colocado por Paulo Freire, a visão da liberdade “é a matriz que atribui sentido a uma prática educativa que só pode alcançar efetividade e eficácia na medida da participação livre e crítica dos educandos” (FREIRE, 1967, p. 4). Uma participação livre que valorize a autonomia e os conhecimentos prévios só se dá a partir do reconhecimento. Nesse sentido, Freire observa, “ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão” (FREIRE, 2017b, p. 96). Assim, deve-se reconhecer que todos os envolvidos no processo ensino/aprendizagem são pessoas com história, experiências e saberes legítimos, ainda que o professor tenha o papel fundamental de organizar, coordenar, avaliar e mediar o processo de construção de conhecimento. Outro valor que norteia teoria e prática educacionais antissexistas é o do diálogo aberto. Diálogo não necessariamente significa convencer, mas estar pronto para falar e ouvir. Vale lembrar que conviver com o outro não significa concordar com o outro, porém, democraticamente, entender que as pessoas podem, legitimamente, ter pontos de vista diferentes. O indivíduo de uma sociedade – a escola como metonímia dela – que se permite conhecê-los tem a possibilidade de ampliar a sua forma de ver o mundo e de agregar vivências e culturas diversificadas a sua. Além disso, a escola deve educar para diversidade – seja social, linguística, racial, étnica, sexual, religiosa ou de qualquer outra natureza. Este olhar para a diferença é imperativo dentro da perspectiva de uma prática antissexista, não apenas por um viés da tolerância ou do respeito, porém do acolhimento e da solidariedade política. Levando em conta o pânico moral que vem interditando os debates sobre educação sexual na escola e discussões a respeito das diversas identidades de gênero e orientações sexuais, uma educação antissexista que traga essas discussões à tona é central para combater preconceitos e violências. Devemos ter em mente que situações mais abertas de discriminação simbólica e de agressão verbal têm um grande potencial e, muitas vezes, precedem situações de violência física, inclusive as vivenciadas dentro do ambiente escolar. Portanto, o que parece inicialmente irrelevante ou ocasional pode ser o prenúncio e, pior, o fundamento para uma cultura de violência, que exclui, agride, humilha e mata (BORTOLINI, 2011, p. 33). 675 | VÉRTICES, Campos dos Goytacazes/RJ, v.23, n.3, p. 671-683, set./dez. 2021


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Sabemos que, historicamente, as sociedades capitalistas tentaram alistar o trabalho de reprodução social das mulheres a serviço do binarismo de gênero e da heteronormatividade; encorajaram mães e professoras, entre outras, a garantir que as crianças fossem rigidamente conformadas como meninas-cis e meninos-cis e como heterossexuais (ARRUZZA; BHATTACHARYA; FRASER, 2019, p. 441). Muitos consideram que a sexualidade é algo que todos nós possuímos "naturalmente"; não obstante, tal concepção, usualmente, ancora-se no corpo e na suposição de que todos nós vivemos nossos corpos, universalmente, da mesma forma. Porém, devemos entender que “a sexualidade envolve rituais, linguagens, fantasias, representações, símbolos, convenções bastante plurais” (LOURO, 2000, p. 9). Prezamos, desta forma, por uma abordagem queer nos processos educacionais, considerando que: Queer significa colocar-se contra a normalização – venha ela de onde vier. Seu alvo mais imediato de oposição é, certamente, a heteronormatividade compulsória da sociedade; mas não escaparia de sua crítica a normalização e a estabilidade propostas pela política de identidade do movimento homossexual dominante. Queer representa claramente a diferença que não quer ser assimilada ou tolerada e, portanto, sua forma de ação é muito mais transgressiva e perturbadora (LOURO, 2001, p. 546).

A abordagem interseccional faz-se imperativa dentro desta perspectiva de educação antissexista, abarcando dimensões das relações sociais para além do gênero e da sexualidade. Devemos reconhecer tanto as possibilidades de agenciamento quanto o “fenômeno das multidiscriminações por razões de raça/etnia, renda, deficiência, origem regional, etc. vividas pelos sujeitos concretos” (CARREIRA, 2016, p. 26). Neste sentido, não é possível eximir-se da tarefa de combater o racismo estrutural em nosso país e compreender como ele está presente nas relações escolares. Um país que, por mais de 300 anos, escravizou a população negra e passou por um processo de emancipação incompleta, além de posteriormente ter mascarado as profundas marcas dessa violência sob o mito da democracia racial, ainda tem que compreender mais seriamente seu próprio presente. Sendo assim, uma educação que parta do reconhecimento e da postura que Vilma Piedade nomeou dororidade, isso é, de que as mulheres podem se unir com base na dor provocada em todas as mulheres pelo machismo, mas que é agravada para as mulheres pretas, que há muito vêm sendo desprezadas, silenciadas e invisibilizadas, relegadas às margens (PIEDADE, 2017, p. 130). Se, como a autora ressalta, o racismo é imobilizador, a escola pode ser o espaço onde o antídoto contra ele deve ser ministrado. É fundamental levarmos em consideração os diferentes contextos locais e sociais em que cada escola se insere para podermos mapear as tarefas que ela tem à frente e as condições em que a luta será travada. Por fazermos parte de uma instituição que promove a educação profissional e tecnológica, que tem por finalidade “ofertar educação profissional e tecnológica, em todos os seus níveis e modalidades, formando e qualificando cidadãos com vistas na atuação profissional nos diversos setores da economia” (BRASIL, 2008), lidamos diretamente com questões voltadas para o mundo do trabalho. Fala-se muito na educação para o trabalho, uma vez que esteja voltada para capacitação. No entanto, é preciso ter em mente como o sistema hegemônico explora esse trabalho para acumular lucros exorbitantes, ainda que uma grande parte da humanidade ainda viva na pobreza, e que essa exploração está aliada aos paradigmas do patriarcado. Primeiramente, é preciso atentar para o fato de que “a escola permanece um elo de divisão sexual do trabalho” (HIRATA et al., 2009, p. 81) e, neste sentido, “o movimento das mulheres deve perceber que trabalho não é libertação. Trabalhar num sistema capitalista é exploração” (FEDERICI, 2019, p. 123). Dentro desse modelo de sociedade que precisava formar trabalhadores especializados, dotados de conhecimento técnico, mas sem motivá-los à criatividade, ao pensamento crítico e à emancipação da sua própria classe, a educação que é amplamente defendida muitas vezes resulta em 676 | VÉRTICES, Campos dos Goytacazes/RJ, v.23, n.3, p. 671-683, set./dez. 2021


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uma educação bancária, baseada na concepção de que memorizar informações e depois regurgitá-las, representava ganhar conhecimento que poderia ser depositado e armazenado para uso posterior (HOOKS, 1994, p. 5). Fica patente que o poder produz saber, não simplesmente favorecendo-o ou aplicando-o; mas percebendo que poder e saber estão diretamente implicados; “que não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder” (FOUCAULT, 1999, p. 27). Não se trata de defender um posicionamento liberal, que se restrinja a demandar igualdade de oportunidade e representatividade, encampando um discurso meritocrático (ARRUZZA; BHATTACHARYA; FRASER, 2019, p. 304); porém, implica contestar e desmantelar um sistema complexo de dominação. Portanto, buscamos uma pedagogia dialógica em que “os indivíduos aprendem a questionar a sua própria alienação não porque lhes é dito, mas porque eles se tornam conscientes de sua existência dentro das circunstâncias da alienação” (FERNANDES, 2016, p. 493). Embora hoje já tenhamos dados que comprovem que as mulheres são mais escolarizadas do que os homens, isso ainda não está refletido no mercado de trabalho. Um estudo feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostrou que as mulheres ganham menos do que os homens em todas as ocupações selecionadas na pesquisa. As trabalhadoras ganham, em média, 20,5% menos que os homens no país, mesmo havendo uma queda na desigualdade salarial entre 2012 e 2018 (OLIVEIRA, 2019 apud NICODEMO, 2020, p. 193). Segundo a diretora executiva da ONU Mulheres, os impactos econômicos são ainda mais aterradores e profundos para as mulheres, já que muitas indústrias, diretamente afetadas por quarentenas e bloqueios, têm uma participação muito alta da força de trabalho feminina. Além disso, as mulheres constituem grande porcentagem da economia informal e na agricultura em todo o mundo. (BHATIA, 2020). As mulheres geralmente carregam uma carga maior de cuidados, fazendo, em média, três vezes mais trabalhos não remunerados do que os homens em casa, mesmo antes da Covid-19 (BHATIA, 2020).

3 Resultados A partir dessa explanação de valores, fica claro que ainda estamos distantes de uma sociedade na qual homens e mulheres, bem como pessoas não binárias ou intersexuais, possam levar vidas dignas e plenas, desenvolvendo todas as suas potências. Considerando a escola um espaço em que não se aprende somente conteúdos programáticos, mas também valores democráticos para convivência social, nela deve se discutir as questões de gênero e combater todas as formas de discriminação relacionadas às questões de gênero e sexualidade. Neste intuito, os institutos federais vêm criando os núcleos de estudos de gênero em seus campi. O Núcleo de Estudos de Gênero, Diversidade e Sexualidade (NUGEDIS), formando uma importante rede de articulação entre ensino, pesquisa e extensão dentro dos campi do Instituto Federal Fluminense. Os coordenadores, colaboradores e bolsistas dos projetos desenvolvem trabalhos transdisciplinares, organizando e promovendo eventos, rodas de conversa, palestras, projetos, debates, oficinas, intervenções artísticas e diversas outras atividades, que buscam construir diálogo e pautar discussões sobre questões envolvendo gênero e sexualidade, tais como assédio sexual, violência contra as mulheres, discriminação, pressão estética, masculinidade tóxica, interseccionalidade entre gênero, raça e classe, dentre outros.

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Uma importante ação que reuniu diversos campi em 2020 foi a organização de um seminário online como parte das atividades que visa à divulgação científica dentro do instituto. Durante a suspensão do calendário acadêmico, devido à necessidade do isolamento social por conta da pandemia de Covid-19, a Pró-Reitoria de Arte e Cultura propôs o Seminário Virtual da Mulher, que aconteceu entre junho e agosto. Parceria entre os núcleos presentes nos diversos campi do IFFluminense, este evento promoveu palestras, lives e apresentações de trabalhos acadêmicos, posteriormente reunidos em um e-book1, que possibilitaram discussões sobre questões sociais urgentes para a comunidade escolar a partir de trabalhos realizados dentro e fora do instituto e para além dos muros da escola. Participamos, como NUGEDIS, do evento na sua organização, como avaliadoras dos resumos de trabalhos enviados e como mediadoras de algumas das mesas em que estes foram apresentados. Além disso, ministramos a palestra de abertura do Seminário, disponível no canal do IFFluminense no Youtube2, com o trabalho intitulado: “Produções culturais realizadas durante a pandemia de Covid-19: uma análise a partir da temática de gênero e de suas relações interseccionais de classe e etnia/raça”, em que analisamos música, poesia, ilustrações, memes, postagens e outras formas de produções artísticas e culturais nascidas no contexto da pandemia e do isolamento social, pontuando as diversas desigualdades e vulnerabilidades relacionadas ao gênero, raça e classe que essas manifestações revelavam, além das dimensões subjetivas expressas nessas produções, como solidão, medos e luto. Esse vídeo conta com mais de mil visualizações, mostrando o alcance da ação. O NUGEDIS do Campus Macaé, que já vinha desenvolvendo um projeto intitulado “(Trans)gênero e (Pós)identidade: por uma educação inclusiva” desde 2017, durante o período de pandemia, encampou um projeto de pesquisa e extensão, com o intuito de manter os laços afetivos entre os membros da comunidade e dar voz às angústias e preocupações das mulheres da comunidade escolar, tanto estudantes quanto servidores. Assim, foram estabelecidas parcerias com a equipe de nutrição, projeto IFFanzine e equipe de Linguagens para debates transversais; também foi criada uma conta na rede social Instagram; como também participação dos envolvidos em diversos eventos acadêmicos. Nosso objetivo é, através da produção coletiva e colaborativa de textos verbais e não verbais, acadêmicos e artísticos, problematizar questões pertinentes à mulher, principalmente na quarentena, tais quais: trabalho doméstico e de reprodução social; carga emocional; violência doméstica; diferenças salariais e de trabalho realizado por homens e mulheres; mulheres na linha de frente no combate à Covid-19; pressão estética; produção cultural misógina; além da produção cultural feminista. Vale ressaltar ainda que o objetivo principal deste trabalho tem sido criar um ambiente para que todas, todos e todes pudessem/possam falar e elaborar as angústias em linguagem performativa ou artística neste momento em que muitas situações parecem infindáveis, sem ou de difícil solução, onde o cenário é propício para que as pessoas se sintam mais sozinhas e vulneráveis. A partir desta abertura de diálogo dentro do campus e, em meio ao confinamento, nas redes sociais, já é possível observar o transbordamento das ações propostas para além da comunidade escolar, dando efetividade à ação extensionista. Podemos citar algumas das iniciativas e postagens no perfil do Instagram do NUGEDIS. O perfil do projeto (@nugedisiff ), que possui mais de 550 seguidores e cerca de 240 publicações, tem sido um instrumento de interação e partilha entre estudantes, ex-alunos, servidores e público em geral. Foi publicado, por exemplo, um vídeo idealizado e produzido por várias/os servidoras/es do IFFluminense Campus Macaé, parceiras/os do projeto, com intuito de auxiliar mulheres e pessoas em situação de perigo de sofrer violência doméstica, divulgando o telefone 180, Central de atendimento à mulher, e o telefone 1 2

Disponível em: https://eventos.iff.edu.br/svmulher. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ak4QjBKltpU&feature=emb_title. Acesso em: 4 mar. 2021.

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da Patrulha Maria da Penha na cidade de Macaé. O vídeo sem som e em preto e branco foi produzido para ser divulgado para a comunidade interna e externa, considerando que o isolamento social fez com que muitas mulheres passassem a conviver ainda mais tempo com agressores, correndo risco de vida3. Outro exemplo foi a série intitulada Acervo Thina Curtis, uma parceria entre a Fanzinoteca, outro projeto de Arte e Cultura do IFFluminense, Campus Macaé, e o NUGEDIS, com postagens semanais de vídeos em que tanto zineiras feministas quanto mulheres da comunidade escolar interpretaram trechos ou resenhas de zines produzidos por mulheres. A web-série recebeu esse título porque, ao longo de sua carreira, esta artista independente de Santo André produziu e produz zines interessantes, incluindo alguns que já foram premiados. Acreditamos que é com artistas assim que aprendemos sobre a história da contracultura contemporânea brasileira, sobre (re)construir um mundo diverso onde mulheres têm destaque. Outra parceria estabelecida foi com a equipe de Nutrição da escola, que fez uma postagem sobre alimentação saudável durante esse período, focando na variedade e nas comidas in natura, assunto importante em um momento em que a ansiedade pode fazer com que pessoas se alimentem de maneira inadequada4. Ademais, os bolsistas do projeto organizaram uma série intitulada NUGEEK, em que divulgam dicas de jogos, quadrinhos e animes, destacando as questões de gênero e sexualidade, já que o período de quarentena fez com que as pessoas buscassem mais entretenimento que pudesse ser desfrutado em suas próprias residências. Além disso, foram publicados também diversos poemas e textos originais de servidoras e alunas, tratando de temas como saudade, pressão estética, racismo, sobrecarga das mães e as vivências da condição feminina de maneira mais ampla. Esse material forma um palimpsesto de obras originais e performances que possibilitaram aos membros da comunidade escolar escoar suas produções artísticas e reelaborar suas experiências. Destacamos ainda a nossa participação como convidadas de um episódio do podcast Senhor Cidadão5, projeto pessoal dos professores de História do IFFluminense (Campus Macaé), onde refletimos e debatemos acerca da ideia que circulou bastante no início da pandemia de coronavírus de que estaríamos todos no mesmo barco, devido às circunstâncias do momento de confinamento. No entanto, como já apontamos aqui, as assimetrias entre mulheres e homens somadas a todas as marcas subjetivas de raça, classe, idade, orientação sexual e territorialidade nos levaram a contestar a afirmação de que o vírus afetaria todos de maneira indiscriminada. A nosso ver, a pandemia intensificou e aprofundou múltiplas desigualdades.

4 Discussão Essas ações e atividades do NUGEDIS, bem como a boa recepção entre estudantes, servidores e público externo, levaram-nos a refletir sobre como é fundamental que a escola seja um espaço não somente de disciplinas, conteúdos programáticos e avaliações, mas de acolhimento, escuta e diálogo sobre questões que perpassam nossas vidas; e ainda, não apenas um local geográfico, mas um espaço social, um lugar de construção de sentidos e afetos. As inquietações compartilhadas nos trouxeram uma sensação de maior proximidade, mesmo distantes. Além disso, exercemos nossa humanidade através dessa produção e extrapolamos os limites arbitrários de nossos papéis na escola: alunos e servidores são também poetas, desenhistas, designers, produtoras/es de conteúdo, cinegrafistas, fotógrafas/os… Essas múltiplas facetas Disponível em: https://www.instagram.com/p/CAKz4-eHyaN/?utm_source=ig_web_copy_link. Acesso em: 4 mar. 2021. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CFSC6R0h0-0/?utm_source=ig_web_copy_link. Acesso em: 4 mar. 2021. 5 Disponível em: https://open.spotify.com/episode/0KsO09iL1QcuFIhBGxB0hj?si=L8nILshaSp-zhLFt4AE0iw. Acesso em: 4 mar. 2021. 3 4

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foram o meio e a forma de nos debruçarmos sobre a condição das mulheres durante a pandemia e para além dela. O NUGEDIS e as ações semelhantes são exemplos concretos e relevantes de como a educação antissexista tem ganhado espaço institucionalmente, passo importante dentro da rede federal de educação e que pode abrir um precedente para que núcleos e projetos semelhantes sejam criados em outras redes de ensino básico e técnico. No entanto, devemos reconhecer que ainda é de forma tímida. Uma educação antissexista em todo o ensino público, especialmente em um país como o nosso, é fundamental para superarmos as injustiças sociais acachapantes do Brasil e a violência econômica, física e simbólica baseadas no gênero. A educação antissexista deve verter em uma construção de outra cidadania. A educação sexista que temos vivenciado até hoje cria, dissemina e reforça as opressões ao mesmo tempo em que é calcada nelas. Defendemos que a neutralidade diante de valores e discursos sexistas “significa licença moral para a lei do mais forte, o refúgio covarde dos privilégios vigentes” (RUBIO, 2020, p. 17). Apesar dos avanços alcançados no combate à discriminação de gênero e à misoginia, não só na educação, mas em todos os campos da sociedade, temos testemunhado tentativas de grupos conservadores de barrar e reverter estes avanços. Esses ataques frontais podem ser exemplificados pelas propostas de projetos de leis, em diversos municípios e estados, visando proibir discussões sobre gênero nas escolas. Em resposta, o Conselho Nacional de Educação publicou uma nota repudiando tais iniciativas, apontando que tais projetos buscam cercear os princípios e fins, ferindo a liberdade de ensinar e aprender (CNE, 2016). Ademais, o próprio Superior Tribunal Federal tem sido categórico em atestar a inconstitucionalidade dessas leis até o momento. No entanto, a multiplicação de projetos nessa mesma linha, reitera a necessidade não só de discutir gênero na escola, mas de defender a necessidade de uma educação antissexista, em consonância com a própria LDB, que tem como princípios a tolerância, a liberdade e a pluralidade de ideias. Essas investidas e retrocessos demonstram como a questão de equidade de gênero na educação está longe de estar ‘resolvida’, como Denise Carreira (2016, p. 27) já havia analisado. Neste sentido, discordamos da afirmação de Pilar Pardo Rubio, para quem “não se ensina feminismo nas escolas porque não se cumpre a lei” (RUBIO, 2020, p. 65). Primeiramente, porque as leis são transitórias e, em muitos momentos, podem ir de encontro aos interesses das mulheres e da luta contra as desigualdades de gênero. Em segundo, porque uma vivência escolar antissexista está para além das diretrizes, currículos e programas; ela possui relação com princípios, posturas, discursos e toda a experiência vivida na escola. Estamos, assim, de acordo com o que foi colocado por Denise Carreira: Em meio a um contexto político do país marcado por vários retrocessos no campo das políticas públicas, ameaças a direitos conquistados, incertezas e atuação agressiva de grupos contrários aos direitos humanos na sociedade e junto às escolas públicas e ao Estado em geral, constata-se um grande interesse de diversos segmentos em conhecer, debater e se apropriar das questões de gênero, raça e sexualidade, tendo como base suas vivências, seus corpos e cotidianos, suas realidades (CARREIRA, 2016, p. 53).

Esse período, no entanto, está ainda repleto de desafios: desde manter contato com os estudantes estando fora do ambiente escolar até o volume novo de trabalho que o ensino remoto nos tem demandado, além da insegurança e do medo que a pandemia tem gerado e as consequências socioeconômicas nas vidas dos estudantes e suas famílias. Ainda assim, seguimos utilizando as ferramentas que estão disponíveis para acumular novos conhecimentos que nos auxiliem na construção de uma educação antissexista.

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5 Considerações finais É crucial defendermos uma educação antissexista sem medo de se afirmar como tal, que não se contente com projetos isolados, eventos pontuais ou mudanças curriculares bem-intencionadas. Adentrar com o pensamento antissexista nas escolas não com o objetivo de despolitizá-lo ou torná-lo apenas uma disciplina ou parte de uma, mas sim legitimá-lo como proposta radical (HOOKS, 2019, p. 45). Uma sociedade livre das opressões e de exploração só poderá ser construída através de uma educação antimachista e antirracista. Ao mesmo tempo, uma sociedade como a nossa, ainda calcada na dominação, sempre tentará tolher, deslegitimar e impedir práticas educacionais que se contraponham aos valores hegemônicos. É importante ressaltar que a educação não é uma panaceia, mas um espaço de disputa e uma ferramenta necessária na construção de outro mundo. Sublinhamos que a relação dialética entre oprimido e opressor é o que constitui as suas posições e as coloca em contradição. Sendo assim, a libertação consiste em superar a relação de opressão, a fim de eliminar esta contradição (FERNANDES, 2016, p. 483). Busquemos, então, uma aprendizagem crítica, coletiva e solidária, que permita a contestação e a problematização, que veja a escola não como espaço fechado e castrador, mas sim como ponto de articulação entre o individual e o político.

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BUTLER, J. O luto é um ato político em meio à pandemia e suas disparidades. Entrevista publicada originalmente em Truthout. Tradução de César Locatelli. Carta Maior, 4 maio 2020. Disponível em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Pelo-Mundo/Judith-Butler-O-luto-e-um-ato-politico-emmeio-a-pandemia-e-suas-disparidades/6/47390. Acesso em: 28 maio 2020. BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. CARREIRA, D. Gênero e educação: fortalecendo uma agenda para as políticas educacionais. São Paulo: Ação Educativa, Cladem, Ecos, Gelédes, Fundação Carlos Chagas, 2016. DAVIS, A. Mulheres, raça e classe. Tradução de Heci Regina Candiane. São Paulo: Boitempo, 2016. FEDERICI, S. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução de Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017. FEDERICI, S. O Ponto Zero da Revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. Tradução de Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2019. FERNANDES, S. Pedagogia crítica como práxis marxista humanista: perspectivas sobre solidariedade, opressão e revolução. Revista Educação & Sociedade, Campinas, v. 37, n. 135, p. 481-496, 2016. DOI: https://doi.org/10.1590/ES0101-73302016140795. Disponível em: https://www.cedes.unicamp.br/publicacoes/edicao/587. Acesso em: 1 out. 2020. FOUCAULT. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1999. FREIRE, P. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1967. HIRATA, H. et al. (org.). Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: UNESP, 2009. HOOKS, B. Teaching to transgress: education as the practice of freedom. New York; London: Routledge, 1994. HOOKS, B. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Tradução de Ana Luiza Libânio. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019. LERNER, G. A criação do patriarcado: história da opressão das mulheres pelos homens. Tradução de Luísa Sellera. São Paulo: Editora Cultrix, 2019. LOURO, G. L. Teoria queer: uma política pós-identitária para a educação. Estudos feministas, [online], v. 9, n. 2, p. 541-553, 2001. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-026X2001000200012. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/ref/v9n2/8639.pdf. Acesso em: 1 out. 2020. 682 | VÉRTICES, Campos dos Goytacazes/RJ, v.23, n.3, p. 671-683, set./dez. 2021


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NICODEMO, D. A luta das mulheres por direitos e o desrespeito a igualdade no século XXI. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E POLÍTICAS DE MEMÓRIA, CIDADANIA, VIOLÊNCIA E DIREITOS HUMANOS, 1., 2019. Anais […]. Maringá: edições Diálogos. 2019, p. 190-198. E-book disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/62384/ebook_coloquio_2019.pdf?sequence=1&isAllowed =y. Acesso em: 19 jan. 2021. PIEDADE, V. Dororidade. São Paulo: Editora Nós, 2017.

Agradecimentos Agradecemos ao Instituto Federal Fluminense por ser uma instituição aberta aos nossos anseios e questionamentos, aos nossos colegas servidores, que nos incentivam e apoiam sempre, e aos bolsistas e colaboradores do NUGEDIS, que trabalham com afinco nesse projeto e nos fazem crescer cada vez mais.

COMO CITAR (ABNT): PEREIRA, A. de A. N.; BARROS, C. F.; FONSECA, O. de M. É pra falar de gênero sim: considerações teóricas e práticas sobre a importância de uma educação antissexista nos institutos federais. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 23, n. 3, p. 671-683, 2021. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v23n32021p671683. Disponível em: https://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/15928. COMO CITAR (APA): Pereira, A. de A. N., Barros, C. F. & Fonseca, O. de M. (2021). É pra falar de gênero sim: considerações teóricas e práticas sobre a importância de uma educação antissexista nos institutos federais. Vértices (Campos dos Goitacazes), 23(3), 671-683. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v23n32021p671-683. 683 | VÉRTICES, Campos dos Goytacazes/RJ, v.23, n.3, p. 671-683, set./dez. 2021


Submetido em: 30 mar. 2021 Aceito em: 2 jul. 2021

DOI: 10.19180/1809-2667.v23n32021p684-705

Técnico ou graduado? A formação do jovem no ensino médio técnico profissionalizante Emerson Allevato Furtado https://orcid.org/000-001-5107-4171 Doutor em Físico-Química (2005) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro – Brasil. E-mail: emerson.furtado@ifrj.edu.br. Izabella de Aquino Leandro https://orcid.org/0000-0003-2400-4287 Discente da Licenciatura em Química no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro Campus Duque de Caxias/RJ – Brasil. E-mail: aquinoizabella@outlook.com. Marcelo Cardoso da Costa https://orcid.org/0000-0002-5833-7488 Mestre em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ) e Doutorando em Memória Social (PPGMS/UNIRIO). Professor de Sociologia e Coordenador das Disciplinas Básicas do IFRJ Campus Duque de Caxias/RJ − Brasil. E-mail: marcelosociologo@yahoo.com.br.

Resumo A leitura da chamada sociologia clássica (Émile Durkheim, Max Weber e Karl Marx) pode ser reveladora da função do ensino na sociedade capitalista, em especial em termos das reflexões teóricas e práticas sobre a relação educação e trabalho. Este trabalho faz um convite à releitura desses teóricos, principalmente a da corrente de pensamento weberiana: visão educacional de Max Weber e Karl Mannheim. O objetivo é o debate e a pesquisa sobre a educação e trabalho e a possibilidade de mobilidade social de classes sociais periféricas e a construção de sua identidade profissional. Essas reflexões foram o ponto de partida para a elaboração de um projeto de pesquisa no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ – Campus Duque de Caxias), que originou um trabalho de campo com os alunos de química do curso médio técnico profissionalizante. Os dados obtidos, através da aplicação de questionário, lançam luz sobre a percepção do corpo discente em relação à identidade profissional e sua mobilidade social dentro da estrutura do trabalho na sociedade capitalista de classe. Palavras-chave: Sociologia da educação. Trabalho. Educação.

Technicians or undergraduates? The formation of young people in vocational technical high schools Abstract The reading of the so-called classical sociology (Émile Durkheim, Max Weber and Karl Marx) may reveal the role of teaching in a capitalist society, especially in terms of theoretical and practical reflections on the relationship between education and work. This study invites the review of these theorists, especially the Weberian current of thought: educational vision of Max Weber and Karl Mannheim. The objective is the debate and investigation on education and work, as well as the possibility of social mobility for peripheral social classes and the construction of their professional identity. These reflections were the starting point for the elaboration of a research project at the Federal Institute of Education, Science and Technology of Rio de Janeiro (IFRJ – Duque de Caxias Campus), which led to fieldwork with students of Chemistry at this vocational school. The data obtained, through the application of a questionnaire, sheds light on the perception of the student body in relation to their professional identity and social mobility within the structure of work in the capitalist class society. Keywords: Sociology of education. Work. Education.

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¿Técnico o licenciado? La formación de los jóvenes en la educación secundaria técnica profesional Resumen La lectura de la llamada sociología clásica (Émile Durkheim, Max Weber y Karl Marx) puede revelar el papel de la docencia en la sociedad capitalista, especialmente en términos de reflexiones teóricas y prácticas sobre la relación entre educación y trabajo. Este trabajo invita a la relectura de estos teóricos, principalmente de la corriente de pensamiento weberiana: la visión educativa de Max Weber y Karl Mannheim. El objetivo es el debate y la investigación sobre la educación y el trabajo y la posibilidad de movilidad social de las clases sociales periféricas y la construcción de su identidad profesional. Estas reflexiones fueron el punto de partida para la elaboración de un proyecto de investigación en el Instituto Federal de Educación, Ciencia y Tecnología de Río de Janeiro (IFRJ - Campus Duque de Caxias), que dio lugar al trabajo de campo con los estudiantes de química del curso medio. Los datos obtenidos mediante la aplicación de un cuestionario arrojan luz sobre la percepción del alumnado en relación a su identidad profesional y su movilidad social dentro de la estructura del trabajo en la sociedad de clases capitalista. Palabras clave: Sociología de la educación. Trabajo. Educación.

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1 Introdução Esta pesquisa surgiu como fruto das aulas e dos debates sobre a sociologia da educação com os alunos do curso de licenciatura em química do Instituto Federal do Rio de Janeiro, Campus Duque de Caxias (IFRJ/CDuC)1. O objeto deste trabalho são os alunos de química do ensino médio técnico profissionalizante (EMTP) de uma escola federal localizada no município de Duque de Caxias, território da Baixada Fluminense2 e da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. O objetivo geral é o de refletir sobre a função e os propósitos do processo educacional do EMTP em termos da mobilidade social e da identidade profissional. Já os objetivos específicos são: (i) contribuir para o debate sobre a relação entre educação, sociedade e trabalho – questão da identidade profissional; (ii) avaliar os dados da pesquisa a partir das respostas dos jovens da EMTP em relação as suas percepções quanto à mobilidade social e a sua identidade profissional3 ; (iii) conhecer o perfil socioeconômico e educacional dos discentes dos últimos períodos de formação educacional; (iv) analisar a educação como possibilidade de ascensão social. Ao caracterizar o que é, como surgiu e qual a finalidade da escola moderna pode-se indagar qual tem sido, de fato, sua aplicação na formação dos jovens diante de uma realidade baseada nas desigualdades, fruto de uma sociedade dividida em classes sociais. A reflexão acerca dessa questão propiciou que se fizessem dois movimentos metodológicos. O primeiro teórico-reflexivo, através da releitura dos clássicos da sociologia sobre a educação4. O segundo empírico, através da aplicação de um trabalho de campo com os alunos do curso médio técnico de química. A pesquisa surgiu das reflexões sobre a sociologia da educação, disciplina ministrada no curso de licenciatura do IFRJ-CDuC. A formulação de um projeto de estudo e a inscrição no edital de pesquisa foi o passo seguinte. O projeto, aprovado, contou com a presença de uma bolsista e construiu o seguinte processo metodológico: (i) leitura e debate bibliográfico da sociologia da educação e do EMTP; (ii) elaboração, aplicação e análise de dados quantitativo e qualitativo – obtido através da aplicação de questionário, com questões fechadas e abertas, aos discentes do EMTP de química dos dois últimos períodos. O anonimato e a confidencialidade dos dados foram observados, de forma que: a aplicação dos questionários foi facultativa e sem identificação de nomes no seu preenchimento e uso dos dados. A análise dos dados seguiu a identificação de questionário um (Q1), dois (Q2) e assim por diante. A análise da corrente weberiana sobre a pedagogia do treinamento também em uma perspectiva oriunda de Karl Mannheim, a marxista da educação como importante elemento de emancipação social, junto com a positivista durkheimiana, foi a base da leitura e da prática de pesquisa, com destaque para a abordagem weberiana.

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Aulas no curso de Licenciatura em Química, disciplina Sociedade, Cultura e Educação – Período 2012-2017. A Baixada Fluminense compõe um conjunto de municípios que faz parte da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Esses municípios possuem uma origem em comum. Esta região comporta boa parte da mão de obra de trabalhadores do município carioca, também composta de classes menos favorecidas e de acesso ao serviço público, deficitária ou ausente. Fazem parte dessa denominação de Baixada Fluminense os seguintes municípios: Nova Iguaçu, São João de Meriti, Belford Roxo, Duque de Caxias, Nilópolis, Queimados, Mesquita, Japeri e Magé. 3 Dados do projeto de pesquisa “Técnico ou graduado? Para onde vai e o que representa a formação do jovem no ensino médio técnico” (Projeto PIBICT / PROCIÊNCIA 2018-2019). 4 Os clássicos da sociologia aqui trabalhados se referem ao francês Émile Durkheim (1858-1917) e aos alemães Karl Marx (1918-19883) e Max Weber (19864-1920). A escolha desses autores para pensar a função da educação na sociedade capitalista se deu em razão das reflexões feitas em sala de aula. 2

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Podem-se destacar como as questões motivadoras dessa pesquisa: qual a função da escola e do ensino na sociedade capitalista? O que pensam os jovens a este respeito? A escolarização garante oportunidade de melhoria da vida social, possibilitando mobilidade de classes e acesso a novas oportunidades ou, ao contrário, perpetua as relações desiguais de classes sociais ao reproduzir a estrutura da sociedade? Essas questões vêm sendo objeto de estudo da educação, com muitos teóricos e pesquisadores contribuindo na produção de conhecimentos sobre o caráter social e ideológico da escola e da educação5. Este trabalho está dividido em duas partes. A primeira busca pensar a educação na sociedade moderna pelo olhar dos pensadores da sociologia da educação. Na segunda parte, empírica, se pesquisou a percepção dos discentes sobre o ensino e seu perfil socioeconômico. Essas duas abordagens nos levam a perceber os efeitos ou não da educação como processo de ascensão social de classes populares e, por outro lado, qual a identidade profissional dos formandos: técnico com atuação no mercado de trabalho, ou busca pelo ensino superior. Essas informações, obtidas com a aplicação de questionários, passam a fazer parte de uma base de dados na qual existe a expectativa de contribuir para o aprofundamento da pesquisa, o entendimento do perfil educacional dos discentes e o surgimento de novas investigações.

2 Educação e sociedade: a visão clássica sociológica da função da escola moderna A questão a ser investigada neste trabalho de pesquisa está relacionada com a função a ser exercida pela educação na sociedade capitalista, que seria a de reprodução das suas necessidades e, por outro lado, a possibilidade que ela poderia oferecer de ascensão social de classes menos privilegiadas socialmente por meio de uma função especializada. Esta última tem sido potencializada pela implementação de políticas públicas de inclusão ao ensino superior6. Mas de que sociedade se está falando? E por que a educação é pensada desta forma? Aqui é preciso uma contextualização antes de seguir com a explicação sobre o desenvolvimento de como esta pesquisa está sendo estruturada na teoria e na prática. A teoria sociológica clássica, Émile Durkheim, Karl Marx e Max Weber, e o próprio desenvolvimento da sociologia como campo de pesquisa, teve na emergência e no desenvolvimento da sociedade capitalista sua gênese (QUINTANEIRO, 2002, p. 3). Segundo o conhecimento revelado por esses pensadores da sociologia, a sociedade capitalista surge baseada numa divisão de classes sociais, na preservação da propriedade privada, no desenvolvimento da divisão social do trabalho e na obtenção de lucro. Além disso, a sociedade capitalista desenvolveu uma racionalização da vida, em que o planejamento, a finalidade das ações e os valores capitalistas passam a ser a sua prioridade. Esta lógica racional seria interiorizada nos indivíduos através do processo de socialização feito pela escola, alienando os indivíduos em relação ao processo de ensino como um todo e racionalizando a educação, fazendo com que esta se voltasse somente ao ensino de uma profissão a ser exercida no mercado de trabalho e ao acesso à renda. Trabalho e renda passaram a ser os valores que organizam a sociedade capitalista e os indivíduos. Desse modo, a educação e a pedagogia, como nos ensina Rodrigues (2007), não é neutra. É dessa análise e constatação que este trabalho surgiu e será a partir dele que nos propomos a pensar qual tem sido o papel da educação nesta realidade. 5

Destacamos aqui: Pablo Gentile e a sua “Pedagogia da exclusão: crítica ao neoliberalismo em educação”; Gaudêncio Frigotto em “Escola sem partido” e a coletânea “História e memórias da educação no Brasil”. 6 A opção por turmas dos últimos períodos se deu pela opção dos alunos de fazerem a prova do ENEM. Por outro lado, vivencia o período de estágio, contato com o mercado de trabalho para os técnicos.

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As visões do processo educacional dos principais teóricos da sociologia, Karl Marx, Émile Durkheim e Max Weber, apresentam-se como ponto de partida necessário para o desenvolvimento de qualquer análise dos mecanismos envolvidos na elaboração, realização e função da educação em qualquer sociedade moderna, seja essa educação de formação geral ou de nível técnico profissionalizante. Essas abordagens problematizam, conceituam e, em alguns casos, propõem alternativas relacionadas aos problemas sociais, nos quais a educação está inserida, frequentemente como componente de fundamental importância, articulando elementos relacionados a questões econômicas, comportamentais, políticoorganizacionais, etc. A matéria que constitui e fundamenta esses estudos surgiu da necessidade de compreensão de uma sociedade ocidental totalmente reestruturada por conta da revolução industrial e a partir de uma matriz de pensamento racionalista herdada do iluminismo. A abordagem de Durkheim para a questão da educação parece demonstrar uma perspectiva mais conformista quanto ao papel da educação bem como dos demais entes sociais. A educação é a acção exercida pelas gerações adultas sobre aquelas que ainda não estão maduras para a vida social. Tem por objecto suscitar e desenvolver na criança um certo número de estados físicos, intelectuais e morais que lhe exigem a sociedade política no seu conjunto e o meio ao qual se destina particularmente. (DURKHEIM, 2007, p. 14).

Para esse autor a sociedade em estudo está dada e o papel de quem a estuda é apenas apresentar sua estrutura e suas inter-relações, esses entes devem cumprir suas funções da forma mais adequada em função do que se espera deles. Contudo, seu foco na educação como uma das mais poderosas ferramentas de preparação para a adequação ao comportamento social esperado pode também ser avaliado como uma premissa do próprio objeto de estudo, nesse caso a sociedade, pois essa já está pronta quando surgimos no mundo e, desta forma, impõem aos seus novos integrantes suas estruturas já conformadas e estabelecidas, os que não se adaptam as opções oferecidas ficam a margem da mesma. A educação, na visão de Durkheim, se apresenta como um esforço contínuo de imposição, às crianças e aos jovens, de maneiras de ver o mundo e de agir que sejam as mais adequadas às funções que se espera que esses indivíduos cumpram no seio social. Assim, “[…] a educação para Émile Durkheim, é essencialmente o processo pelo qual aprendemos a ser membros da sociedade. Educação é socialização”. (RODRIGUES, 2007, p. 27). Esses comportamentos são impostos e exigidos de cada indivíduo, pois, nessa concepção, cada indivíduo deve possuir comportamentos, reações, sensações adequadas aos grupos sociais aos quais pertençam. Isso deve ocorrer para que cada estrutura interdependente que compõe a sociedade possa cumprir a função que se espera da mesma da melhor maneira possível e dessa forma o tecido social apresente perfeito funcionamento. Toda inadequação será considerada um problema. Para esse autor, a educação, muito mais do que preparar o indivíduo para uma atividade profissional futura, também o habilita a conhecer e apresentar comportamentos adequados e harmoniosos com relação ao seu papel como profissional e participante das atividades sociais de uma determinada comunidade cumprindo suas funções. Esse pensamento se fundamenta, como dito acima, na preexistência, em relação aos elementos da sociedade, de estruturas sociais que se impõem ao indivíduo, prevalecendo em relação a este e exigindo do mesmo, conhecimentos e comportamentos adequados ao seu papel nessa sociedade sendo esse papel marcado pela sua origem. Segundo Rodrigues (2007, p. 29), “É isso que nos permite viver em sociedade, é isso que permite que a sociedade viva em nós e é isso que permite à sociedade continuar viva: sermos iguais e diferentes ao mesmo tempo. Só a educação pela qual passamos é capaz de nos fazer assim. E é por isso que a educação é um processo social.”

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As formas de agir, pensar e sentir estão determinadas pelo que é transmitido pela sociedade, e nessa transmissão ou adestramento a escola tem um papel fundamental. O enfoque de Marx para a educação é mais combativo e reativo que o de Durkheim, sendo apresentado a partir de uma profunda análise do capitalismo industrial nascente destacando problemas, principalmente: a separação entre o trabalho (processo de produção) e o trabalhador (processo de alienação do trabalhador) e a apropriação pelo capitalista (detentor dos meios de produção) do valor do trabalho através do lucro, também chamado de mais-valia. Para Marx, o capitalismo era entendido como uma etapa fundamental e necessária para a construção de uma sociedade baseada no comunismo, pois o sistema capitalista havia gerado uma enorme quantidade de riquezas que certamente poderiam ser partilhadas em uma sociedade comunista. Para ele a história das sociedades é estruturada através da luta entre a classe que detém o poder e a(s) classe(s) dominada(s): A transformação de uma forma a outra, de um modo de produção a outro, se dá pelos conflitos abertos por causa da luta entre a classe dominada e classe dominante em cada época. Marx diz que as relações sociais de produção, isto é, as formas de propriedade, quando se estabelecem, funcionam como uma forma de desenvolvimento das forças produtivas, mas chega um momento em que as forças produtivas não mais conseguem se desenvolver sob a vigência daquelas relações de propriedade. Abre-se então um período de convulsão social, no qual as relações de propriedade vigentes são contestadas. A classe oprimida, política e/ou economicamente dominada, se insurge contra o predomínio da classe dominante. (RODRIGUES, 2007, p. 36).

Assim sendo, o acirramento do conflito acirraria a condição de luta de classes que levaria necessariamente a um processo revolucionário e ao estabelecimento de bases comunistas nos processos sociais. Com essas premissas a educação pode ser concebida pelo marxismo como algo a ser elaborado e construído no contexto de um processo revolucionário, partindo da sociedade capitalista em direção a uma sociedade comunista. Assim, “[…] para Marx e Engels, não existe educação em geral, mas sim: Conforme o conteúdo de classe ao qual estiver exposta, ela pode ser uma educação para a alienação ou uma educação para a emancipação.” (RODRIGUES, 2007, p. 42). Para esse autor, o estado capitalista defende os interesses da classe dominante (o capital) e desta forma, as escolas como um todo, mas em especial, as escolas públicas, articulavam o saber transmitido com o intuito velado de transmitir a sua ideologia capitalista, reforçando sempre que um grupo trabalha e outro lucra com esse trabalho e que essa forma de pensar não é só correta, mas é também natural. Para Marx, a educação deveria ser planejada com a intenção de estimular nas crianças e jovens uma mentalidade crítica e também o aspecto físico do corpo e que preparasse os mesmos para lidar com as novas tecnologias. Tal concepção vem alicerçada na visão de que em uma sociedade comunista, as riquezas desenvolvidas durante o capitalismo seriam partilhadas por toda a sociedade, com os meios de produção pertencendo a todos e em que, as classes sociais e o estado seriam eliminados e, desta forma, todas as pessoas praticariam tanto o trabalho manual quanto o trabalho intelectual, sendo essa abordagem já desenvolvida desde os tempos da escola. Assim, “[…] romper com essa separação é uma decorrência fundamental das análises de Marx e Engels, porque é dela que brotam a alienação e a ideologia”. (RODRIGUES, 2007, p. 43, grifo nosso). Uma forma de conceber a educação, baseada em uma abordagem marxista, deve levar em conta o conceito de politecnia, que se baseia no fundamento do trabalho como princípio educativo, que busca na transformação radical da sociedade sua última finalidade e que articula os três eixos fundamentais: (i) educação intelectual; (ii) educação corporal; (iii) educação tecnológica que faz a síntese dos fundamentos gerais e científicos de todo o processo de produção e introduz as ferramentas elementares das várias formas 689 | VÉRTICES, Campos dos Goytacazes/RJ, v.23, n.3, p. 684-705, set./dez. 2021


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de atividade industrial. A formação estruturada na omnilateralidade reforçando a integração entre o ambiente educacional e a sociedade também parece estar no foco da concepção marxista de educação. Apesar de essa abordagem da educação parecer-nos de extrema relevância, por não estar no escopo da abordagem desenvolvida neste trabalho não aprofundaremos essa concepção. Desta forma, é possível pensar numa visão educacional de cunho marxista que considere que o trabalho infantil seria aceito, e até mais, seria desejável. Essa concepção parece estranha, haja vista que essa prática era realizada pelo capitalismo e condenada por Marx, contudo esse autor considerava extremamente educativo e formador da personalidade de jovens e crianças, alternar estudo e trabalho. Porém, o trabalho realizado precisava auxiliar no processo educacional, ser regulamentado, com jornada variando conforme a idade. Assim sendo, Marx parece ser um defensor do ensino técnico, mas sem abandonar a formação intelectual do aluno sempre buscando um caráter emancipador para o ensino ministrado. Para ele, “[…] os conteúdos educacionais devem contemplar três dimensões: uma educação mental, uma educação física e uma educação tecnológica”. (RODRIGUES, 2007, p. 45). Como já mencionado nesse texto, para Marx a escola poderia oprimir ou emancipar e para a educação auxiliar nesse processo de emancipação seria importante conciliar teoria e prática por meio de atividades manuais e intelectuais. Os avanços na tecnologia também deveriam ser trabalhados no ambiente escolar sempre restabelecendo a relação que o processo de alienação do proletariado destruiu. Desta forma, a conciliação entre trabalho e escola seria importante nesse processo de reconstrução do processo laboral, sendo esse processo fundamental na formação de uma sociedade comunitária em que não haveria divisão do trabalho ou uma única classe dominante que detivesse os meios de produção e controlasse as demais classes através da sua ideologia. Podemos claramente concluir, pelo exposto até o momento que: se para Durkheim a escola busca regular toda a vida social adequando os indivíduos aos seus cânones, para Marx a escola deveria, por obrigação de ofício, modificar radicalmente a vida social, subvertendo valores capitalistas em benefício de um novo ideário de natureza comunista. O essencial era transformar (não regular para adequar) a sociedade através de um sistema que preparasse as crianças e os jovens para a luta contra a dominância do capital e, desta forma, eliminar as injustiças sociais. Outro autor que merece destaque em nossa descrição introdutória e que, pela natureza desse trabalho receberá o maior destaque, é o sociólogo Max Weber. Para esse autor, ao contrário de Durkheim, a sociologia é uma ciência que não analisa os eventos de maneira isenta, faz-se necessário compreender os fenômenos sociológicos também a partir da subjetividade do investigador, das pessoas relacionadas com os fenômenos estudados. Max Weber, expressa seu pensamento sociológico a partir das relações do indivíduo com o meio social, destacando que para ele a sociedade não se constitui em apenas “coisa”, ou um mecanismo, mas que fundamenta-se na concepção de “ação social”, e ainda, na crença de que a sociologia é uma “ciência compreensiva”. (SILVA; AMORIM, 2012, p. 1).

Assim sendo, a conduta e a visão do pesquisador influenciam na análise dos entes estudados, ou seja, a sociologia, para esse autor, é uma ciência compreensiva, cada pesquisador pode analisar um determinado ente social de um modo particular, levando em conta suas próprias experiências, ainda que sejam possíveis que esses pesquisadores compartilhem os mesmos valores, eles apresentam raízes e interrelações em suas mentes de formas distintas o que, por consequência, deve produzir interpretações igualmente diversas de um mesmo ente social analisado.

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Sabemos que as alterações sociais ocasionadas pelos novos processos desenvolvidos na origem das sociedades capitalistas geraram uma enorme demanda por uma força de trabalho altamente qualificada para realizar atividades burocráticas, nos setores do poder público, e também em grandes empresas privadas. Pode-se concluir também que essa grande demanda por profissionais qualificados tenha gerado algum nível de interferência no sistema educacional, nas atividades e práticas das escolas bem como, na imagem desejada para o ambiente estudantil. Para Weber a questão educacional, bem como a escola e seu ambiente, foram estruturados pelo sistema capitalista para atender as demandas das sociedades baseadas no capital promovendo o treinamento específico e direcionado dos alunos (transmissão de um conjunto de conhecimentos práticos e teóricos com o objetivo de preparar os indivíduos para a execução de um conjunto de tarefas), tudo isso em detrimento de uma visão educacional que estimulasse as capacidades críticas dos indivíduos, que introduzisse aos mesmos uma cosmovisão ampla e humanística da sociedade. Mais que profissionais da empresa ou da administração pública, o capitalismo e o Estado capitalista forjaram um novo homem: um homem racional, tendencialmente livre de concepções mágicas, para o qual não existe mais lugar reservado à obediência que não seja a obediência ao direito racional. Para este homem, o mundo perdeu o encantamento. Não é mais o mundo do sobrenatural e dos desígnios de Deus ou dos imperadores. É o mundo do império da lei e da razão. Educar num mundo assim, certamente não é o mesmo que educar antes dessa grande transformação, provocada pelo advento do capitalismo moderno. (RODRIGUES, 2007, 65-66).

Para Weber a opção da sociedade capitalista de promover a substituição de uma educação com bases humanísticas pela educação com finalidade de treinamento não era uma boa opção, todavia ele acreditava que essa situação era inevitável, tal como Durkheim. Ainda relacionado com a questão educacional, Weber reflete sobre os três tipos ideais de educação (SILVA; AMORIM, 2012). O primeiro é o despertar para o carisma, essa mais relacionada com características intrínsecas do indivíduo, mas que poderia ser ampliada e mais bem desenvolvida no ambiente escolar. O segundo é a pedagogia do cultivo, esse tipo de desenvolvimento de habilidades visa adequar plenamente o indivíduo com as condutas esperadas para sua classe social, esses devem ter uma visão de mundo que caiba (que seja esperada) na sua classe social, tal prática leva ao desenvolvimento de conhecimentos necessários a cada estrato social para que as pessoas pudessem ser consideradas cultas de acordo com o esperado para sua classe (nesse aspecto uma visão bem similar à de Durkheim) tornando assim a escola um elemento desenvolvedor e estimulador da segregação social e fomentadora das diferenças sociais. O terceiro seria a pedagogia do treinamento, mais voltada à educação profissionalizante formando indivíduos como profissionais especializados, peritos em funções específicas (para Marx, tal prática estimula a alienação do trabalhador e o sistema de divisão do trabalho, ações consideradas negativas por esse autor), contudo é bom lembrar que Weber não faz aí nenhuma menção de concordância com tal sistema educacional, a apresentação acima é apenas o desenvolvimento da interpretação do autor da sociedade de sua época. Como já mencionado, Weber não concordava com este modelo de sociedade e, por conseguinte de suas práticas educacionais, esse autor considerava que apenas a pedagogia poderia libertar o homem desse tipo de escravidão (modelos de educação diferentes para classes sociais diferentes, desenvolvimento de habilidades técnicas profissionalizantes em detrimento de uma abordagem educacional abrangente e humanística, indutora de capacidade intelectiva e espírito crítico, etc.) determinada pelo sistema capitalista estabelecido na maioria das sociedades ocidentais da época. O referido autor reforça que a pedagogia do treinamento recebe tratamento prioritário nas sociedades capitalistas, já que nas mesmas 691 | VÉRTICES, Campos dos Goytacazes/RJ, v.23, n.3, p. 684-705, set./dez. 2021


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existe uma intensa demanda de preparação das pessoas para que essas ocupem cargos e funções especializadas nas empresas de capital privado ou em funções burocráticas de governo. Tal iniciativa reforça o que veremos no texto mais abaixo, uma visão bastante funcionalista para a educação, ou seja, a sociedade capitalista desenvolve uma pedagogia de treinamento castradora dos demais conhecimentos humanísticos apenas para formar quadros para suas organizações, sejam elas públicas ou privadas. Assim a educação, para Weber, “[…] na medida em que a sociedade se racionaliza historicamente, não é mais, a preparação para que o indivíduo compreenda seu papel no conjunto harmônico do contexto social. E nem é vista como meio de libertação.” (SILVA; AMORIM, 2012, p. 4). Dois conceitos desenvolvidos por Weber e que serão importantes na compreensão da sua visão do sistema educacional capitalista são: ação social e racionalização. No caso da ação social pode-se dizer que é a ação individual no ambiente social em concordância com o que a sociedade capitalista espera (ou exige) do mesmo. Tal conceito explica por que a pedagogia do treinamento aliada à pedagogia do cultivo é estabelecida pelas sociedades capitalistas para que seja possível gerar uma formação de indivíduos preparados para agir de acordo com os cânones dessa sociedade e perpetuar suas estruturas básicas. Já o conceito da racionalização no contexto de uma sociedade capitalista está associado a programação, planejamento e execução de suas ações em total concordância e harmonia com as demandas da sociedade capitalista, esse conceito é extremamente utilitarista e centrado exclusivamente nas necessidades do sistema capitalista e mais especificamente do grande capital. Um bom exemplo da racionalização aplicada no contexto da teoria weberiana é uma lógica comum de se encontrar ainda nos dias de hoje que é a de: estudar em boas instituições de ensino superior com o principal intuito de obter o diploma (documento formal de conclusão dos requisitos para ser considerado preparado, treinado, para futuras funções exercidas em empresas privadas ou em instituições burocráticas do estado) e arrumar um bom emprego. Esse tipo de pensamento racional se encaixa “Nas burocracias onde os títulos educacionais representam “prestígio social” e são usados quase sempre como proveito econômico”. (SILVA; AMORIM, 2012, p. 7, grifo do autor). Essa visão não poderia ser mais utilitarista, o indivíduo abandona, e antes dele, o processo educacional oferecido pela sociedade capitalista como um todo abandona toda e qualquer forma de conhecimento de natureza humanística que possa melhorar sua visão crítica da sociedade e assim fazê-lo buscar individualmente ou em grupo alternativas a forma desenvolvida e imposta pelo sistema capitalista. Essa forma de compreender a sociedade capitalista ainda fica hoje evidente ao verificarmos que mais indivíduos buscam o ensino (processo educacional oferecido pela sociedade capitalista) menos pela formação humanística que esse pode proporcionar e mais pela possibilidade de conseguir um bom emprego do ponto de vista salarial (influência do mercado). A sociedade racionalizada capitalista pode ser apresentada como aquela que dá uma importância precípua a pedagogia de treinamento (e logo as demandas do capital) em detrimento de um sistema de ensino mais abrangente e humanístico e, portanto, indutor de espírito crítico e da capacidade intelectiva. Neste sentido a interpretação é de um Weber realista e, ao mesmo tempo, pessimista em relação à educação: Max via no capitalismo a escravização do ser humano por meio da alienação do trabalho, e na educação a possibilidade de romper com ela. Weber via na pedagogia do treinamento, imposta pela racionalização da vida, o fim da possibilidade de desenvolver o talento do ser humano, em nome da preparação para a obtenção de poder e dinheiro. A racionalização é inexorável, invencível, e a educação especializada, a lógica do treinamento, para Weber, também é. Para ele, não há nada que se possa fazer a respeito (RODRIGUES, 2007, p. 69).

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Ainda há um outro elemento na teoria de Weber que merece destaque em nosso enfoque no processo educacional que é a ampliação que Weber propõe em termos de existência de classes na sociedade capitalista. Enquanto para Marx as classes podem ser expressas basicamente como burguesia e proletariado, para Max Weber as estratificações por classes na sociedade capitalista iriam além dessa polarização, pois, para ele, essas separações se colocavam para além das relações econômicas pura e simplesmente. Ele formulou três tipos de classes: política, social e econômica. Ser bem posicionado em uma delas não garante obter boa posição nas demais, contudo uma posição privilegiada em uma delas pode facilitar o acesso às boas posições nas demais, o que reputa a ação social ter como seu principal objetivo a adequação dos indivíduos a sua função na sociedade e o que se espera dele na sociedade (transmitido a ele durante todo o processo educacional) e, a depender de qual classe esse indivíduo ocupa, por ser competente nas ações sociais, tais indivíduos podem tentar alçar posições sociais melhores na sua classe e até obter uma boa posição em outras classes. Desse modo, “Nos dias atuais, o diploma teria o valor equivalente a ascensão familiar no passado. A Educação se constitui exatamente um dos meios usados pelos indivíduos que exercem cargos hierarquicamente de maior posição para propiciar crescimento e manutenção de seu status.” (SILVA; AMORIM, 2012, p. 7). Logo, a racionalização e a ação social são ferramentas nessa busca por melhores posições sociais de um indivíduo e isso parece ser o que de melhor pode-se esperar no cenário descrito por Weber, sua visão é bastante pessimista em termos de superação dos problemas e crises apresentados pelo sistema capitalista, inclusive em relação à educação. Segundo ele em típicas sociedades capitalistas racionalizadas uma educação adequada e formal é fundamental para alcançar boas posições sociais e econômicas e pode ser considerado um forte elemento de diferenciação social. Portanto, pode-se dizer que em termos de educação, Max Weber apresenta pontos comuns tanto com Durkheim no que se refere ao papel impositor da sociedade no processo educacional, treinando cada indivíduo para cumprir o papel esperado pelas demandas do capital, quanto com Marx na identificação da alienação da classe trabalhadora nas sociedades capitalistas através de uma educação de treinamento exclusivamente voltada para o trabalho especializado.

3 Educação e mobilidade social Dialogando com a corrente de pensamento weberiana sobre a racionalização da educação na sociedade, o sociólogo e filósofo Karl Mannheim (1893-1947) lança um olhar um pouco mais otimista acerca do sistema educacional na sociedade capitalista. Mannheim foca seu estudo do processo educacional de tais sociedades a partir do ponto de vista da democratização dos acessos e, dessa forma, criando novas oportunidades para indivíduos de classes sociais inferiores. Ele concordava com Weber que a pedagogia do cultivo foi substituída pela pedagogia do treino na educação oferecida à grande maioria da sociedade. Isso ocorreu em virtude de um processo de racionalização do capital que concentrava fomento nessa pedagogia. No entanto, Mannheim percebe nesse processo oportunidades para indivíduos oriundos de estratos sociais mais baixos poderem ascender socialmente, devido à seguinte necessidade do sistema capitalista: formação de força de trabalho para cargos especializados, tanto em empresas privadas quanto nos setores do poder público (MARQUES, 2012; RODRIGUES, 2007). Mannheim assume que existem perdas sérias na formação educacional e intelectual do indivíduo, no sentido da concentração de esforços na pedagogia de treinamento em detrimento da pedagogia de cultivo. Entretanto, existe também uma possibilidade da ascensão social dos indivíduos dos estratos sociais inferiores

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por meio da educação, o que promove a mobilidade social e auxiliar a construir a identidade profissional. Essa possibilidade ocorre justamente pela forte demanda por mão de obra técnica especializada. Essa análise de Mannheim detecta nesse processo uma forma possível, ainda que parcial, de diminuição das enormes desigualdades sociais geradas nas sociedades capitalistas e, na educação, um papel social importante. Assim, […] para ele, se é verdade que a racionalização da vida levou a um declínio da educação voltada para a formação do homem integral, também é verdade que o arejamento promovido pela democratização das relações sociais permitiu o surgimento de novas esperanças. Embora o capitalismo tenha gerado desigualdades sociais, o interesse dos jovens das classes inferiores em ascender socialmente à elite, em sua visão, traz ao processo educacional as contribuições culturais das diferentes camadas socais e a intercomunicação entre elas (RODRIGUES, 2007, p. 81).

Essa análise de Mannheim abre discussões sobre o papel da educação escolar e da formação dos alunos. Uma delas é sobre a identidade profissional desse aluno que ascende socialmente em termos profissionais. Eles se convertem totalmente em indivíduos da nova classe, para onde se deslocaram, ou tendo consciência da sua origem, podem auxiliar em futuras transformações da sociedade capitalista, buscando resolver as principais crises e contradições desse sistema? Ainda que Mannheim não fosse um especialista no campo da sociologia educacional, de acordo com Foracchi (1982), ele discutiu este tema de forma vigorosa e objetivou algumas questões centrais. Ainda segundo Foracchi, “De forma específica, foram abordados em suas análises: a) a integração da escola no sistema social global da moderna sociedade de classes e b) as funções socializadoras por ela realizadas no presente em conjunção com aquelas que deverá desempenhar na ordem social planificada.” (1982, p. 28). Dessa análise de Mannheim surge a necessidade de pensar o papel do Estado no dever e na oferta da educação. Por um lado, essa educação atua na socialização dos alunos na sociedade moderna estratificada, com função de organizar, disciplinar e controlar (IWAYA, 2006). Por outro lado, a educação também abre a possibilidade de democratização do seu acesso e a mobilidade social. Assim, com o surgimento do Estado Moderno desenvolveu-se, concomitantemente, a escola como instituição. A educação, desde então, foi alvo de interesses do Estado Moderno e apesar de seu caráter disciplinador, tanto do indivíduo como da sociedade, o ofício era descrito da seguinte forma: […] além de sua tarefa tradicional de reproduzir os conteúdos culturais acumulados durante a experiência histórica da humanidade, a escola também se viu com o objetivo de preparar o cidadão para a sociedade moderna; como alguém consciente de seus direitos e deveres, cumpridor das leis em função da autonomia moral adquirida pelo exercício da virtude durante o processo de socialização desenvolvido na escola. (MARQUES, 2012, p. 48).

Surge então a questão: qual seria a função esperada pela educação ofertada pelo Estado? Garantir a manutenção da sociedade de classes, via socialização de seus indivíduos numa perspectiva durkheimiana, ou teria brechas de ascensão e modificação de suas estruturas? A pedagogia do treinamento de Weber parece ser a ordem predominante na organização da educação numa lógica racional. Dessa forma, a gestão e a burocracia do Estado se orientam por essa perspectiva. No entanto, Mannheim vê brechas nessa estrutura que tem potencial de mobilidade social e de mudanças na estrutura educacional. Essa visão de Mannheim parece ter sido potencializada com o processo de redemocratização no Brasil, principalmente nos seus marcos relacionados à Constituição Federal de 1988, A lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), Lei n.o 9.394 de 1996, e a criação dos Institutos Federais de Ensino (Ifs), Lei n.o 11.892 de 2008 – que amplia a rede federal de ensino no Brasil. 694 | VÉRTICES, Campos dos Goytacazes/RJ, v.23, n.3, p. 684-705, set./dez. 2021


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Apesar da distância temporal, atualmente percebem-se semelhanças no modelo educacional ainda tradicional, inclusive no Brasil. O objetivo de tornar a escola um local de desenvolvimento tecnológico e preparação de mão de obra especializada, ainda no âmbito da educação básica, resultou no desenvolvimento do ensino técnico, no qual produziu (produz) possíveis efeitos na sociedade estratificada, como pensava Mannheim. A educação profissional está explicitada nas discussões sobre a revogação do Decreto n.o 2.208/1997, bem como na construção do Decreto n.o 5.154/20047. O primeiro proibia a oferta da formação técnica no nível médio; o segundo propõe o restabelecimento dessa garantia, com a intenção de reinstaurar um novo ponto de partida para essa travessia, trazendo a reflexão e diretrizes para as complexas relações de educação e trabalho. O EMTP é impulsionado em 2008, no Brasil, pela ação do governo federal, na figura do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Atendendo a demandas da sociedade, o governo, via Ministério da Educação (MEC), sancionou a Lei n.° 11.892, de 29 de dezembro de 2008, que institui a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, criando os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. Em seu 6° artigo, o documento retrata as finalidades e características dos Institutos Federais: I - ofertar educação profissional e tecnológica, em todos os seus níveis e modalidades, formando e qualificando cidadãos com vistas na atuação profissional nos diversos setores da economia, com ênfase no desenvolvimento socioeconômico II - desenvolver a educação profissional e tecnológica como processo educativo e investigativo de geração e adaptação de soluções técnicas e tecnológicas às demandas sociais e peculiaridades regionais; III - promover a integração e a verticalização da educação básica à educação profissional e educação superior, otimizando a infraestrutura física, os quadros de pessoal e os recursos de gestão; IV - orientar sua oferta formativa em benefício da consolidação e fortalecimento dos arranjos produtivos, sociais e culturais locais, identificados com base no mapeamento das potencialidades de desenvolvimento socioeconômico e cultural no âmbito de atuação do Instituto Federal; V - constituir-se em centro de excelência na oferta do ensino de ciências, em geral, e de ciências aplicadas, em particular, estimulando o desenvolvimento de espírito crítico, voltado à investigação empírica; VI - qualificar-se como centro de referência no apoio à oferta do ensino de ciências nas instituições públicas de ensino, oferecendo capacitação técnica e atualização pedagógica aos docentes das redes públicas de ensino; VII - desenvolver programas de extensão e de divulgação científica e tecnológica; VIII - realizar e estimular a pesquisa aplicada, a produção cultural, o empreendedorismo, o cooperativismo e o desenvolvimento científico e tecnológico; IX - promover a produção, o desenvolvimento e a transferência de tecnologias sociais, notadamente as voltadas à preservação do meio ambiente. (BRASIL, 2008).

A trajetória da educação profissional e as finalidades e características dos IFs remonta aos debates e reflexões sobre a politecnia, provavelmente proporcionado pelo debate em torno da ‘re-reforma’ da educação profissional promovida pelo governo Lula da Silva (GEISLER, 2006). Assim, para Geisler (2006), essa re-reforma da educação profissional leva ao debate sobre que significado e conceito de cidadania e de politecnia se insere no campo das práticas educativas e suas interfaces com a atual configuração do mundo do trabalho – questão reforçada por Rodrigues (2006) em que discute no seu texto qual cidadania, democracia e educação cabe nesse projeto. É nesse contexto e, a partir dos objetivos apresentados pelo documento dos IFs, que se pensou em verificar a formação e trajetória dos alunos 7

Ver Decreto n.o 2.208, de 17 de abril de 1997 e o Decreto n.o 5.154, de 23 de julho de 2004.

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matriculados no EMTP. O que os dados obtidos revelam e o que dizem sobre a função do ensino (em especial o técnico) na sociedade contemporânea? Tem servido este ensino para perpetuar as desigualdades sociais ou para abrir a possibilidade de ascensão social? Ressalta-se que o objetivo do ensino técnico oferecido pelos IFs engloba o desenvolvimento socioeconômico local, bem como a oferta de ensino médio integrado ao ensino técnico como meio de preparação para o mercado de trabalho. Isso pode evidenciar a possibilidade de ascensão social de classes menos favorecidas a partir desta política, principalmente em conjunto com políticas de ações afirmativas. Essa possibilidade de ascensão social traz a reflexão sobre seus efeitos com a identidade profissional dos formandos, o que faz com que o debate sobre a função educacional dos IFs possa emergir. A partir daí surge a seguinte questão: o ensino técnico oferecido tem contribuído para a formação e atuação no mercado de trabalho como técnico ou, por outro lado, tem possibilitado o acesso dos estudantes ao ensino superior?

4 Técnico ou graduação: a educação que reproduz e que transforma. Resultados preliminares Em agosto de 2018, o projeto de pesquisa: “Técnico ou graduado? Para onde vai e o que representa a formação do jovem no ensino médio e técnico” (PIBICT/IFRJ 2018-2019) iniciou sua exploração acerca da realidade apresentada pelos alunos formados e formandos do curso de EMTP em Química ofertado pelo IFRJ – Campus Duque de Caxias. A equipe da pesquisa foi formada por dois professores (Química e Sociologia) e uma bolsista/pesquisadora do projeto citado. Refletir sobre a função e os resultados do atual modelo de ensino executado pelo IFRJ foi um dos principais objetivos. A pesquisa foi realizada através da produção de dados que viabilizou a construção do perfil dos formandos. Para traçar esse perfil foi elaborado um questionário semiestruturado com questões referentes a tópicos socioeconômicos da vida dos estudantes e da sua perspectiva em relação ao ensino oferecido, à relevância das disciplinas básicas e técnicas no currículo do EMTP ensino médio técnico e como esses alunos planejam o que fazer após formados. Os resultados obtidos são preliminares e fruto de um primeiro olhar, mas já revelam algumas tendências. Foram aplicados 38 questionários, com perguntas fechadas e abertas, para as turmas do EMTP em química em seus últimos anos de formação, correspondentes ao 7º e ao 8º período. A coleta de dados primários8 desses questionários possibilitou a construção de um conjunto de três perfis de análise dos discentes: social, econômico e perceptivo em relação a educação e ao trabalho. Esses três perfis de análise se relacionam com a mobilidade social e a identidade profissional.

4.1 Análise da composição do perfil socioeconômico Historicamente sabe-se, de acordo com Pereira et al. (2009), que o ensino profissionalizante no Brasil foi originalmente pensado de forma germinal como uma alternativa para população de baixa renda e que estavam à margem da sociedade (até por motivo de alguma deficiência física) para ensinar o “fazer” de algum trabalho com foco na manufatura no contexto da dicotomia trabalho físico x trabalho intelectual. 8

Dados preliminares, pois a pesquisa avaliou um quantitativo semiestruturado de dados abaixo de 100. O intuito é o de continuar a aplicação junto aos alunos para legitimar um universo representativo de dados.

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Logo, podemos destacar que essa história da relação dual da educação no Brasil com o mundo trabalho é uma relação originária da própria sociedade brasileira colocada pelo modo de produção tipicamente capitalista. (SANTOS et al., 2020) Pode-se identificar também em nossa sociedade que nem sempre as empresas capitalistas enxergam valor na educação formal focando em uma visão utilitarista da formação para o trabalho. Nesse contexto verifica-se que muitas organizações não compreendem uma relação direta entre a educação disponibilizada na sociedade e a formação para o trabalho, investindo em centros de treinamento para o adestramento total do trabalhador aos moldes desejados pela empresa. (PEREIRA et al., 2009). Nesse contexto, um dos principais pontos desta pesquisa é entender quem é esse aluno que frequenta a escola? Qual sua realidade socioeconômica? Que identidade social representa? Essas informações fazem parte de muitas práticas de ensino, nas quais se pede que os professores, em processo formativo, conheçam o perfil da sua turma e de seus alunos. No ambiente escolar não é diferente. Conhecer o perfil dos alunos é passo fundamental para a melhor gestão escolar, para entender os impactos da escola na localidade e para avaliar que público está sendo atendido. No perfil social destacamos três pontos de possíveis identidades dos discentes: origem periférica, de gênero feminino e não brancos. No primeiro ponto, percebemos que a maioria dos alunos tem como origem residencial os municípios da Baixada Fluminense (55%) e do Rio de Janeiro (45%). Desse, a maior parte é de localidades periféricas, seja da Baixada Fluminense ou do município carioca. Essa informação chama a atenção para o possível impacto da educação nessas regiões e nas classes sociais que as compõem. Um ensino técnico, público e de qualidade pode ter grande potencial transformador, tanto em termos espacial, quanto na mobilidade social de classes. Outro dado interessante é a representação feminina dos discentes. Os dados apontam que a maioria dos alunos são representados por mulheres, sendo essas 59% do total, contra 41% dos homens. Esse dado aponta para o impacto da mobilidade em relação a gênero, haja vista a busca por mulheres pela formação educacional e profissional, o que reforça a transformação do perfil das mulheres que, ao longo do tempo, vem se desvinculando da identidade relacionada apenas a casa e criação dos filhos, para uma identidade profissional. Uma possível pesquisa a ser desenvolvida no futuro se refere ao que se chama de empoderamento das mulheres. Esse fato é algo que se tem percebido no ambiente escolar, mas que carece de dados e pesquisas para perceber sua verdadeira existência e seus possíveis efeitos. Por último, destacamos a presença de alunos autodeclarados não brancos. Os dados pesquisados apontam que a maioria dos alunos se autodeclaram como não brancos, percentual de 66%. Desse total, 37% se autodeclaram pretos e 29% pardos. Os que se declararam brancos representam 34% do universo. Esse dado demonstra que o público atendido é o de uma minoria social que, historicamente, foi excluída do ensino, sofre discriminação racial e vulnerabilidade social. Vale lembrar que a região da Baixada Fluminense, segundo dados do IBGE9, é a localidade de maioria não branca. O município de Duque de Caxias, onde se localiza a escola pesquisada, tem uma população não branca estimada para 2020, ainda de acordo com o IBGE, de 63,5% (49,1% pardo e 14,4% negros). Diante disso, podemos inferir que o impacto da escola nessa população representa possibilidades concretas de mobilidade social e de formação profissional. Esses dados são importantes porque já podem apontar que esse público, em sua maioria periférico, de mulheres e de não brancos, busca no ensino federal e técnico uma educação de qualidade, que possa lhe proporcionar direitos de acesso à igualdade de oportunidades. 9

Dados do IBGE População Estimada 2020. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/rj/. Acesso em: 27 fev. 2021.

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No perfil econômico dos discentes, percebemos que a maioria do universo pesquisado é composta de jovens sem estágio remunerado (63%), não possuem experiência de trabalho (97%) e não fazem parte do mercado produtivo (97%). Esse perfil aponta para a importância da família na formação educacional desses jovens. Tanto pela questão do seu sustento financeiro, quanto no apoio educacional e motivacional. Chama à atenção a informação referente ao estágio remunerado. Embora represente mais da metade, por outro lado, expressa algo que já percebemos no cotidiano escolar desses jovens: a dificuldade no acesso a estágio. Esse fato provoca angústia nos jovens, haja vista a obrigatoriedade do estágio para o término de seus estudos e, também, uma vez que conseguem, a conciliação entre estudos e trabalho. Como vimos acima, a questão familiar tem impacto na vida educacional e financeira dos alunos. Os dados apontam que pouco mais da metade dos alunos tem renda per capita familiar de um a três salários mínimos, representando 54% do total. Do universo pesquisado, 32% moram em casas não próprias (21% alugada e 11% cedida). A formação profissional dos pais é relacionada às seguintes funções de trabalho: doméstico e do lar (19% cada um); setor de serviços (19%) e indústria (12%). Do total, 10% estão na condição de aposentados. A escolaridade dos pais dos alunos é, na maioria, de formação no ensino médio, que representa 49%, enquanto que 30% possuem o ensino fundamental e 17% o ensino superior. Como podemos perceber, a situação econômica e profissional dos pais dos alunos está relacionada às classes sociais baixas ou médias, com suas variáveis. Sendo assim, a formação escolar desses jovens representa possibilidades de melhoria da situação social e econômica dessas famílias e, em principalmente, dos jovens.

4.2 Perfil perceptivo em relação a educação e ao trabalho A construção deste perfil perceptivo do aluno foi elaborada em cima de questões abertas, nas quais eles expressaram livremente suas opiniões. Quando questionados sobre qual seria a função social do ensino técnico integrado ao ensino médio, a maioria dos alunos, 48%, citaram a preparação para o mercado de trabalho. Em seguida apareceu a qualidade da educação, representando 26%, e, por fim, 12% responderam que a função seria a possibilidade de ascensão social através da escola. Esses dados apontam que a função da escola, especialmente a escola técnica, estaria ligada ao trabalho, já que a qualidade da educação pode propiciar a mobilidade social dos alunos. É o que mostram os dados no Gráfico 1.

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Gráfico 1. A percepção dos alunos em relação a função da escola

Fonte: IFRJ/CDuC (Pesquisa PIBICT 2017/2018)

Uma das questões investigadas foi sobre a importância da escola na vida dos alunos. As respostas confirmaram em parte a tese weberiana da racionalização do ensino. A maioria dos alunos (24%) apontaram que a importância da escola está ligada à possibilidade de ela lhe proporcionar acesso ao mercado de trabalho. Em seguida, 17% apontaram para a melhora como pessoa, em termos de agregação de valores sociais e amadurecimento pessoal. Outros 17% afirmaram que a importância está na formação cidadã e, por fim, 15% assinalaram o acesso ao conhecimento. A resposta majoritária a essa questão sobre a importância da escola na vida dos alunos, parece realmente reforçar o conceito de racionalização dos processos educacionais pela sociedade capitalista (visão weberiana) e, de forma complementar, a adequação da formação ao nicho social, nesse caso de periferia, ao papel esperado deles como força de trabalho (visão durkheimiana). Tais perspectivas não chocam ou surpreendem, pois a sociedade capitalista desenvolveu ao longo de toda a vida desses estudantes fora e, principalmente, dentro das escolas essa visão utilitarista subalterna com muito pouco, por vezes sem nenhum, alcance humanístico. Tal compreensão de mundo (inclusive o formado pelo ambiente escolar) vem sendo reforçado nesses indivíduos através da cultura formal injetada nessas comunidades através das instituições que alcançam esses indivíduos, e de todas, a principal é a escola. Mas essa pergunta também teve outras respostas, e aí sim cabe destacar alguns pontos. Essa questão chama a atenção menos pela resposta da maioria e sim pelas demais respostas. Nelas é possível observar que, mesmo se tratando de um grupo social de estrato socioeconômico de baixa renda e, portanto, possivelmente influenciado por essa cultura utilitarista, inclusive por uma questão de necessidade, observam-se respostas com conteúdo bem diferentes dessa ótica utilitarista da racionalização promovida pelo sistema capitalista. 699 | VÉRTICES, Campos dos Goytacazes/RJ, v.23, n.3, p. 684-705, set./dez. 2021


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Cabe aqui uma ressalva metodológica importante, não se tem o aprofundamento das respostas (majoritária ou não) a essa questão. Logo, não é possível a certeza de qual interpretação esses indivíduos envolvidos na pesquisa têm das próprias respostas. Assim, cabe aqui conjecturar acerca dos temas levantados por essas respostas, contudo sempre dentro de um discurso consistente com os conceitos universalmente aceitos para essas proposições. O perfil das demais respostas não majoritárias mostra que, ao destacar a importância da escola em suas vidas através dessas respostas, esses alunos demonstram que tais questões são caras a eles também. O que denota que mesmo sob forte influência da racionalização capitalista do ensino nas escolas existe algo nas vidas desses indivíduos que os desperta para a importância de valores sociais, da formação cidadã e da aquisição de conhecimento formal proporcionado pela escola (além do conhecimento técnico ou tecnicista). A natureza das respostas dadas, não majoritariamente, pelos participantes da pesquisa se caracteriza por uma dimensão que envolve claramente uma forte percepção do todo social, de um intenso senso de pertencimento à sociedade (ainda que essa, em diversas ocasiões, não lhe confira grande importância), da valorização do papel da escola como elemento semeador da formação que credencia os indivíduos a se relacionar de forma plena com consciência de direitos e deveres e principalmente com respeito a esses direitos e deveres (formação cidadã). Parece que existe, por parte desses alunos, apesar da influência utilitarista oriunda dos interesses do capital, a insurgência de uma mentalidade centrada no interesse comum em valores tipicamente humanistas. E por último, mas nunca negligenciável, destacou-se nesse conjunto de respostas a importância da aquisição do conhecimento formal e qualificado pela chancela da escola. Como não foi desenvolvido nenhum tipo de destaque nessa resposta pode-se entender que há um senso da importância do conhecimento formal escolar de maneira geral, não apenas o conhecimento técnico com ligação direta e unívoca com o mercado de trabalho, mas todo e qualquer conhecimento articulado no ambiente escolar, logo conhecimento estruturado no estatuto do método científico. Isso mostra o foco desses indivíduos na necessidade de compreensão dos fenômenos e aqui, pode-se extrapolar, de qualquer natureza, através de um discurso estruturado na tradição racional-científica que é o alicerce do conhecimento escolar formal. Mesmo sem o caráter intencional do planejamento político do estado em conferir essa consciência, ela parece ter se instalado em uma parcela grande dos indivíduos ouvidos na pesquisa. E a questão que fica é como isso aconteceu? Uma das possibilidades, pelo menos a que será defendida nesse texto, e que parece ter lógica em seu nexo causal, é a mudança curricular no nível médio ocorrida no Brasil com a inclusão de disciplinas de intenso caráter reflexivo e crítico das relações sociais, o que as influenciam e como essas se articulam mutuamente. Falo da inclusão de filosofia e sociologia nos currículos de todos os anos do nível médio10. É possível a inferência em que a influência dessas disciplinas na formação dos alunos do curso técnico que participaram da pesquisa gerou uma contribuição latente na concepção da importância da escola na vida desses indivíduos. Para desenvolver essa tese seria necessário um aprofundamento das respostas desses alunos e do papel que o currículo escolar teve no desenvolvimento da cosmovisão dos mesmos e assim como essas experiências impactaram a visão da importância e do papel da escola na vida dos indivíduos. Assim, levanta-se a tese, mas não se encerra a questão. Existe a premência de um aprofundamento dessas questões para um melhor entendimento da percepção do impacto e do papel que a escola, como ambiente formador, tem sobre os indivíduos, em especial nos cursos técnicos. Neste último, a 10

Lei n.º 11.684, de 02 de junho de 2008. Lei que: “Altera o art. 36 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias nos currículos do ensino médio” (BRASIL, 2008).

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apresentação de certos conhecimentos apresenta protagonismo em relação a outros, sendo justamente os mais importantes no desenvolvimento de um espírito crítico desenvolvido em bases teóricas sólidas e de uma visão, como a demonstrada pelas respostas não majoritárias desta pesquisa11. Em seguida, questionou-se sobre “qual a relevância das disciplinas regulares em sua formação? Por quê?” A totalidade dos alunos respondeu que elas são importantes em sua formação. A justificativa para 53% dos alunos está relacionada à formação de um pensamento crítico. Já 12% responderam que é importante para a sua vida social, enquanto 9% para a formação de identidade e como preparação para o vestibular e 6% para a formação política. Esses dados revelam que as disciplinas regulares não estão associadas à formação para o mercado de trabalho, ou seja, para a pedagogia do treinamento, mas sim para a pedagogia do cultivo, tal qual descrito na teoria weberiana. Em relação à qual atividade pretendem exercer após a conclusão do EMTP em química, as respostas se encontram no Gráfico 2.

Gráfico 2. Percepção dos alunos para o término do EMTP O que Fazer pós Ensino Médio Outros 10%

Graduação 42%

Mercado de trabalho 18%

Mercado trabalho/graduaçã o 30%

Fonte: IFRJ/CDuC (Pesquisa PIBICT 2017/2018)

11

Para uma discussão mais aprofundada sobre a importância e o impacto da Filosofia e Sociologia no ensino básico formador veja o trabalho “Efeitos da inserção das disciplinas de filosofia e sociologia no ensino médio sobre o desempenho escolar”. Disponível em https://anped.org.br/sites/default/files/images/nota_repu_final.pdf. Acesso em: 26 fev. 2021. Veja também a reportagem da revista “Carta Capital, de 8 ago. 2018. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/opiniao/a-importancia-da-sociologia-no-ensino-medio/. Acesso em: 26 fev. 2021.

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Esses dados revelam que a maioria dos alunos, 42,5%, pretendem entrar para o ensino superior, buscando status e melhor qualificação que lhes dê possibilidade de ascensão social e melhores condições de remuneração. Já 30% apontaram que pretendem ir para o mercado de trabalho e/ou para graduação após terminar o EMTP. Por fim, 17,5% apontaram a preferência por ir para o mercado de trabalho. Esse maior anseio de entrar no ensino superior, após concluir o curso técnico, está em boa parte relacionado a identidade profissional, a saber, busca-se uma maior qualificação para supostamente se inserir no setor produtivo em melhores condições de função e salário. Isso se reflete quando os alunos apontam que o maior grau de importância do EMTP é para a formação para o trabalho (23%). Já para 21,5%, a importância estaria na aquisição de conhecimento, enquanto 20,5% apontaram para formação para cidadania. Outros ainda, 19%, responderam que é para obtenção do diploma e 16% para melhorar a sua condição econômica. Neste sentido, como bem destacou Prado (2017), há uma tensão entre a expectativa da instituição em relação a formar técnicos para o trabalho e os anseios dos alunos quanto à não terminalidade do estudo e assim almejar o ensino superior: Quanto à noção de terminalidade, verificamos que os estudantes identificam essa tensão entre o que seria o objetivo da instituição e as suas próprias expectativas. Eles conseguem reconhecer em seu dia a dia dentro da escola que há uma expectativa da instituição, na maioria das vezes declarada pelos professores, quanto às suas trajetórias. O dilema entre “formar técnicos” e “preparar para o ENEM” se mantém e os alunos parecem estar inclinados para a segunda opção. (PRADO, 2017, p. 107).

Isso pode ser interpretado e avaliado através das grandes discrepâncias na remuneração de profissionais de nível médio técnico e de nível superior no Brasil12. Por último, perguntou-se aos alunos sua avaliação em termos dos aspectos positivos e negativos do curso. Para 27% dos alunos o ponto positivo da escola é a possibilidade que ela propicia de inserção no mercado de trabalho, que é conseguido, segundo eles, com a qualidade do ensino (20,5%). Mais uma vez reafirma a ideia da escola como acesso ao trabalho e à ascensão social através da educação. Dos aspectos negativos destacam-se: a carga exaustiva do curso para 42%; a infraestrutura (21%); e a dificuldade na aprovação (10,5%). Olhando os resultados preliminares, percebe-se que o público deste EMTP é em sua maioria composto de jovens de classes menos privilegiadas na sociedade e que planejam melhorar sua condição financeira, educacional e cultural almejando o ensino superior. Neste sentido, pode-se dizer que o IFRJ se apresenta a esses alunos como uma oportunidade de mobilidade social, apesar de essa estrutura escolar, na visão weberiana, estar dentro da racionalidade educacional, oferecendo uma formação voltada à pedagogia do treinamento. Percebe-se, portanto, que a escola, apesar dessa lógica do ensino especializada, abre a possibilidade de melhora de vida das classes populares de ascender socialmente, como apontava a teoria de Karl Mannheim. O que não se conseguiu inferir é: (i) se esse indivíduo que busca a ascensão social conseguirá ser absorvido plenamente no estrato social para onde almeja ir; (ii) se carregará consigo a consciência da sua origem e da necessidade de mudanças na estrutura social - para facilitar essa mobilidade social experimentada por ele com todas as dificuldades que lhe foram impostas.

12

Para uma melhor discussão sobre esse tema ver as seguintes referências: a reportagem do Jornal O Globo de 5 dez. 2018. Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/no-brasil-quem-tem-diploma-ganha-mais-que-dobro-do-trabalhador-com-ensino-medio-23279970 e; Relatório da OCDE “Um olhar sobre a educação” (2018) e artigo de Marcelo Neri “A nova classe média” (2008).

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5 Considerações finais A leitura de parte dos clássicos da sociologia denota algumas características muito importantes em relação ao sistema educacional de forma geral: a visão funcionalista do pensamento durkheimiano aponta para a impossibilidade da emancipação dos alunos frente à instituição educacional. Na corrente marxista de pensamento é possível destacar a diferenciação de classes sociais e a dualidade do ensino com a possibilidade de oprimir ou libertar. Já a perspectiva weberiana do ensino fica muito clara na visão determinista da escola, em formar especialistas para o mercado de trabalho, imposta pelo sistema racional capitalista. Embora a realidade educacional esteja presente nesta visão weberiana, percebe-se que os jovens estudantes, na construção de sua identidade profissional, vêm fazendo escolhas que negam a terminalidade dos estudos no pós ensino médio e, ao contrário, buscam a continuidade desses estudos no ensino superior. Para isso reconhecem o ensino como de qualidade e apropriado para alcançar seus objetivos: de ter uma formação profissional mais qualificada que pode lhe abrir perspectivas de melhores funções e remuneração, superando, desta forma, sua origem de classes menos favorecidas. Neste sentido a pesquisa confirma a visão de Karl Mannheim sobre o papel social da educação, mesmo numa lógica da pedagogia do treinamento de que fala Weber, que tem sido a de propiciar a ascensão social de classes baixas e médias. Através das reflexões teóricas, e concordando com a análise weberiana, percebemos que o papel da educação na sociedade capitalista é racionalizado na pedagogia do treinamento, servindo de mão de obra especializada para o mercado de trabalho. Por outro lado, de acordo com as reflexões da sociologia da educação de Mannheim, essa pedagogia do treinamento também “permite que jovens de classes menos privilegiadas socialmente ascendam por meio de uma função especializada” (MARQUES, 2012, p. 48). Diante dessa ambiguidade demonstrada pela sociedade capitalista, apontada pelo próprio Mannheim, percebemos, através da pesquisa, que o impacto da formação escolar vem indicando uma possível ascensão social dos alunos, seja na qualificação para o mercado de trabalho ou na continuidade dos estudos no ensino superior. O que não se sabe é se, ao alcançar a desejada ascensão social, esse indivíduo se torna um elemento crítico do sistema social ou se é incorporado à nova classe social sem manifestar nenhum tipo de reação crítica às dificuldades enfrentadas para concretizar essa ascensão social. Os dados coletados demonstraram que os alunos depositam na educação uma grande expectativa de transformação social e econômica: sua e de sua família. Para além da dualidade entre formação geral e formação técnica e terminalidade dos estudos, estes transparecem uma continuidade dos estudos, almejando o ensino superior. O que nos leva a concluir que a função do EMTP no IFRJ vem cumprindo um duplo papel: o de formar técnicos e, ao mesmo tempo, possibilitar a ascensão social de alunos de classes menos privilegiadas ao ensino superior e as melhores funções ocupacionais e de renda. Por fim, a intenção desse trabalho é o de promover o debate sobre o papel da educação e do EMTP, contribuindo para a produção de conhecimento, reflexão teórica e produção de dados de pesquisa. Nesse sentido, incentivar a pesquisa e promover o debate científico é criar possibilidades de realização da função social de uma instituição pública educacional, envolvendo ensino, pesquisa e extensão. Reflexões necessárias de serem feitas, “[…] pois só assim podemos ter indícios sobre as complexas relações de educação e trabalho na formação que visa à emancipação na Educação Profissional no nível médio”. (SAUER; SILVA, 2014, p. 77).

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Técnico ou graduado? A formação do jovem no ensino médio técnico profissionalizante Emerson Allevato Furtado, Izabella de Aquino Leandro, Marcelo Cardoso da Costa

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Técnico ou graduado? A formação do jovem no ensino médio técnico profissionalizante Emerson Allevato Furtado, Izabella de Aquino Leandro, Marcelo Cardoso da Costa

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COMO CITAR (ABNT): FURTADO, E. A.; LEANDRO, I. A.; COSTA, M. C. Técnico ou graduado? A formação do jovem no ensino médio técnico profissionalizante. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 23, n. 3, p. 684705, 2021. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v23n32021p684-705. Disponível em: https://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/15982. COMO CITAR (APA): Furtado, E. A., Leandro, I. A. & Costa, M. C. (2021). Técnico ou graduado? A formação do jovem no ensino médio técnico profissionalizante. Vértices (Campos dos Goitacazes), 23(3), 684-705. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v23n32021p684-705.

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Submetido em: 19 mar. 2021 Aceito em: 14 jul. 2021

DOI: 10.19180/1809-2667.v23n32021p706-733

As Competências Socioemocionais na Formação da Juventude: Mecanismos de Coerção e Consenso frente às Transformações no Mundo do Trabalho e os Conflitos Sociais no Brasil Inny Accioly https://orcid.org/0000-0002-7726-4536 Pós-Doutorado em Educação pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Professora Adjunta da Universidade Federal Fluminense (IEAR/UFF) – Angra dos Reis/RJ – Brasil. E-mail: innyaccioly@hotmail.com. Rodrigo de Azevedo Cruz Lamosa https://orcid.org/0000-0002-7183-9589 Doutor em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor Adjunto do Departamento Educação e Sociedade (DES) e do Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEduc) na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) – Seropédica/RJ – Brasil. E-mail: rodrigo1281@yahoo.com.br.

Resumo A investigação buscou compreender as competências socioemocionais nas políticas para a formação da juventude frente às transformações no mundo do trabalho e os conflitos sociais no Brasil. A partir do método do materialismo histórico-dialético, busca compreender as múltiplas determinações desta problemática no âmbito da estrutura e superestrutura. Apresenta o debate sobre a influência dos organismos internacionais nas reformas educacionais e sua relação com o mundo do trabalho. Problematiza os fundamentos das competências socioemocionais a partir da análise do histórico da sua implementação nos Estados Unidos. Analisa as competências na reforma do ensino médio e BNCC e sua implementação no projeto das escolas cívico-militares. Por fim, situa as competências socioemocionais frente aos conflitos sociais no Brasil e as perspectivas futuras. Conclui que o fomento das competências socioemocionais apresenta tendência de caráter repressivo/coercitivo que não deve ser ignorada, especialmente no cenário de aprofundamento da crise e acirramento dos conflitos sociais. Palavras-chave: Competências Socioemocionais. Mundo do Trabalho. Conflitos Sociais. Reformas Educacionais. Organismos Internacionais.

Socioemotional Skills in Youth Education: Mechanisms of Coercion and Consent Facing the Transformations in the World of Work and the Social Conflicts in Brazil Abstract The investigation aimed at understanding the socio-emotional competencies in policies for youth education in facing the transformations in the world of work and the social conflicts in Brazil. It is based on the method of historical-dialectical materialism and seeks to understand the multiple determinations of the problem in terms of structure and superstructure. The article presents the debate on the influence of international organizations on educational reforms and the connections to the world of work. It confronts the fundamentals of socio-emotional competencies through the analysis of the history of policy implementation in the United States. It analyzes the competencies in the high school reform, the BNCC, and its implementation in civic-military schools. Finally, it situates socio-emotional competencies in the context of social conflicts in Brazil and the future perspectives. It concludes that the promotion of socio-emotional competencies presents a tendency of repressive/coercive character that should not be ignored, especially in the scenario of deepening the crisis and intensifying social conflicts. Keywords: Socio-emotional Competencies. World of Work. Social Conflicts. Educational Reforms. International Organizations.

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Habilidades Socioemocionales en la Educación de Jóvenes: Mecanismos de Coerción y Consentimiento frente a las Transformaciones en el Mundo del Trabajo y los Conflictos Sociales en Brasil Resumen La investigación tuvo como objetivo comprender las competencias socioemocionales en las políticas de educación de los jóvenes frente a las transformaciones en el mundo del trabajo y los conflictos sociales en Brasil. Se basa en el método del materialismo histórico-dialéctico y busca comprender las múltiples determinaciones del problema en términos de estructura y superestructura. El artículo presenta el debate sobre la influencia de los organismos internacionales en las reformas educativas y las conexiones con el mundo del trabajo. Enfrenta los fundamentos de las competencias socioemocionales a través del análisis de la historia de la implementación de políticas en los Estados Unidos. Analiza las competencias en la reforma del bachillerato, el BNCC, y su implementación en las escuelas cívico-militares. Finalmente, sitúa las competencias socioemocionales en el contexto de los conflictos sociales en Brasil y las perspectivas de futuro. Concluye que la promoción de competencias socioemocionales presenta una tendencia de carácter represivo / coercitivo que no debe ser ignorada, especialmente en el escenario de profundización de la crisis e intensificación de los conflictos sociales. Palabras clave: Competencias Socioemocionales. Mundo del Trabajo. Conflictos Sociales. Reformas Educativas. Organismos Internacionales.

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As Competências Socioemocionais na Formação da Juventude: Mecanismos de Coerção e Consenso frente às Transformações no Mundo do Trabalho e os Conflitos Sociais no Brasil Inny Accioly, Rodrigo de Azevedo Cruz Lamosa

1 Introdução A partir de 2016, por meio da Medida Provisória no 746, foi empreendida uma ampla reforma na educação dos jovens no Brasil que se consolidou com a promulgação da Lei n.o 13.415/2017, conhecida como “reforma do ensino médio”. Esta legislação incide diretamente sobre a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei n.o 9.394/96, a LDB), revogando e acrescentando novos artigos, e promove profundas alterações na escolarização da juventude no Brasil. Podemos elencar algumas dimensões nas quais a reforma incide: a) o currículo, ao instituir uma Base Nacional Curricular Comum (BNCC), homologada em 2017. b) a organização do ensino, ao estabelecer itinerários formativos no ensino médio, possibilitar a certificação de experiências práticas em ambientes não escolares (junto ao setor produtivo), a concessão de certificados intermediários de qualificação, a escolarização em regime de créditos e a ampliação da oferta na modalidade a distância. c) o tempo de escolarização, aumentando a carga-horária do ensino médio de 800 horais anuais para 1.000 – a ser obrigatoriamente cumprida a partir de 02 de março de 2022 – e estabelecer progressiva expansão para 1.400 horas anuais. d) o espaço escolar, pois o aumento da carga-horária exige readequação da infraestrutura física das escolas e maior aporte de insumos (materiais didáticos, alimentação etc.). e) a gestão escolar, por meio da ênfase na gestão por resultados. f) o trabalho docente, com a instituição do currículo por competências e a dissolução das disciplinas curriculares em grandes áreas. Compreendemos que a Reforma do Ensino Médio está inserida no contexto de reformas educacionais globais impulsionadas pelos organismos internacionais, a partir dos anos 1990, e aprofundadas nas primeiras décadas do século XXI com o objetivo de atender às mudanças no mundo do trabalho. Nos contextos em que são implementadas, essas reformas buscam instituir um currículo mínimo definido por competências, como é o caso da BNCC, em que essas são definidas como “a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho”. Observamos que o currículo mínimo brasileiro concede particular ênfase aos aspectos comportamentais dos estudantes: “Os currículos do ensino médio deverão considerar a formação integral do aluno, de maneira a adotar um trabalho voltado para a construção de seu projeto de vida e para sua formação nos aspectos físicos, cognitivos e socioemocionais.” (BRASIL. Lei no 13.415/17, Art. 35-A. parágrafo 7o) Assim, nossa investigação teve o objetivo geral de analisar os referenciais que definem as competências socioemocionais nas atuais políticas para a formação da juventude brasileira. Investigaramse duas ordens de fatores que, em nossa compreensão, condicionam a definição do currículo mínimo: a) o mundo do trabalho; b) os conflitos sociais. Ressaltamos que estes fatores estão interligados, sem preponderância de um sobre o outro, e apontam para as múltiplas determinações desta problemática no âmbito da estrutura e superestrutura. Ao apontarmos que o mercado de trabalho e os conflitos sociais condicionam a definição do currículo mínimo, ressaltamos o porquê do seu caráter necessariamente flexível. Este é o sentido da proposição da

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“educação ao longo da vida”, que passou a ser defendida pelos organismos internacionais a partir do Relatório encomendado, em 1996, pela UNESCO para a Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, conhecido como Relatório Delors. Ao romper com as disciplinas curriculares e estabelecer a aprendizagem em áreas do conhecimento a serem complementadas pelos itinerários formativos, a reforma do ensino médio adequa a legislação brasileira ao movimento global das reformas educacionais do século XXI que tem como característica central conceder aos sistemas educacionais a flexibilidade necessária para consolidar a influência do capital em todas as dimensões da escolarização e formação humana, de forma a atender as demandas flutuantes por força de trabalho e educar o comportamento dos trabalhadores visando prevenir revoltas sociais frente às intensificadas crises do capital. Neste sentido, estabelecemos entre os objetivos específicos da pesquisa: analisar as competências socioemocionais na BNCC do Ensino Médio, nos documentos recentes da OCDE e do Banco Mundial sobre as reconfigurações do mundo do trabalho; analisar políticas para fomento das competências socioemocionais nos Estados Unidos e no Brasil; compreender as competências socioemocionais frente ao mercado de trabalho e aos conflitos sociais no Brasil a partir da segunda década dos anos 2000. O texto está estruturado em uma primeira seção que apresenta o debate sobre a influência dos organismos internacionais nas reformas educacionais e suas relações com o mundo do trabalho; uma seção que apresenta os fundamentos do debate sobre competências socioemocionais e a sua materialização nas reformas educacionais brasileiras recentes; uma seção que debate o histórico das políticas de disciplinamento do comportamento a partir do final dos anos 1980 no contexto estadunidense; uma seção que problematiza a implementação das competências socioemocionais no Brasil, a partir da análise do projeto das escolas cívico-militares; e uma seção que analisa os sentidos das competências socioemocionais frente ao histórico dos conflitos sociais no Brasil e as perspectivas futuras. Nossa investigação conclui que o fomento das competências socioemocionais apresenta uma tendência de caráter repressivo/coercitivo que não deve ser ignorada, especialmente no cenário de aprofundamento da crise e acirramento dos conflitos sociais a partir da pandemia do coronavírus. Neste sentido, é urgente desconstruir o consenso forjado pelos aparelhos do capital em torno de comportamentos, modos de ser e se relacionar em sociedade que, em sua essência, visam fragmentar a classe trabalhadora e intensificar a exploração. Resiliência, empatia, amabilidade, engajamento, responsabilidade, organização, autogestão, pensamento crítico, determinação, iniciativa social, tolerância ao estresse, imaginação criativa, dentre outros, compõem o novo léxico do capital que, regulamentado nas políticas educacionais, visa “vacinar” os trabalhadores contra atitudes rebeldes e anticapitalistas.

2 Metodologia A investigação segue o método do materialismo histórico-dialético e tem por fundamento a perspectiva marxista da totalidade. Desta forma, efetua recortes na tentativa de compreender as múltiplas determinações (nos planos da estrutura e superestrutura) que incidem sobre a problemática da educação do comportamento dos jovens a partir das políticas educacionais recentes. O referencial marxista acerca da divisão internacional do trabalho e os aportes teóricos de Antonio Gramsci com os conceitos de bloco histórico e estado educador foram centrais para as análises.

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A pesquisa envolveu levantamento bibliográfico sobre competências socioemocionais em revistas acadêmicas brasileiras e na literatura internacional; análise de documentos da OCDE e do Banco Mundial; análise documental do manual das escolas cívico-militares; levantamento bibliográfico e de dados sobre conflitos sociais a partir da segunda década dos anos 2000.

3 Organismos Internacionais, Reformas Educacionais e o Mundo do Trabalho Consideramos que o conceito gramsciano de bloco histórico traz importante contribuição para a compreensão dos sentidos que as competências socioemocionais assumem no panorama do capitalismo contemporâneo. Defendemos que a análise sobre o bloco histórico é uma chave, um importante ponto de partida para a investigação sobre as maneiras como um sistema de valores culturais (o que Gramsci chama de ideologia) penetra, impregna, socializa e consolida um determinado sistema social, dirigido por uma classe fundamental, numa relação de unidade-distinção em relação aos movimentos produzidos no interior das relações de produção. Em termos concretos, considerando uma situação histórica global (um bloco histórico), podemos distinguir, por um lado, uma estrutura social – as classes que dependem diretamente da relação com as forças produtivas – e, por outro lado, uma superestrutura ideológica e política. Para a manutenção de um bloco histórico e a supremacia da classe dirigente, faz-se essencial o estabelecimento de uma unidade – sem a primazia de um elemento sobre o outro – entre estrutura (o conteúdo econômico-social ou o conjunto das forças sociais e do mundo da produção) e superestruturas (a forma ético-política). O vínculo orgânico entre estrutura e superestruturas é realizado pelos intelectuais (PORTELLI, 1977), que tem sua atividade compreendida intimamente relacionada ao sistema de relações sociais no qual está inserida. Para a compreensão dos intelectuais, trata-se de observar as suas funções organizativas e conectivas nos processos de produção da hegemonia. Isto significa que o intelectual orgânico (a uma classe específica) não é simplesmente o intelectual do consenso, “mas toma corpo e adquire significado em uma peculiar função conectivo-organizativa: o consenso não é um efeito que se acresce, mas está incorporado, em formas sempre diferentes e que se renovam, naquela função de fundo” (VOZA, 2017, p. 426-427) de produção da hegemonia. Em sentido gramsciano, consideramos o Banco Mundial (BM) enquanto um intelectual coletivo que desempenha importante papel na consolidação e manutenção do vínculo orgânico que resulta na hegemonia do “capital-imperialismo” (ACCIOLY, 2018). O conceito de capital-imperialismo, defendido por Virgínia Fontes (2010), procura apreender o processo histórico por meio das contradições da disseminação do capitalismo em nível mundial, tanto resultando das vontades e projetos dos seus protagonistas, quanto expressando embates e lutas entre projetos radicalmente diversos no interior de cada país (FONTES, 2014). Enquanto intelectual, o BM disputa a condução das reformas educacionais em nível global investindo na fabricação de dados para legitimarem as políticas difundidas nos seus inúmeros relatórios. Como exemplo, está o banco de dados global sobre a produtividade do futuro trabalhador, o Human Capital Index1, lançado em outubro de 2018, com o objetivo de mensurar a futura disponibilidade quantitativa e qualitativa da força de trabalho em cada país, supondo que estes tenham ajustado seus sistemas educacionais conforme recomendado pelo BM. O banco mensura a produtividade do futuro trabalhador a partir de dados como taxa de mortalidade, acesso à saúde e escolarização ajustada. De acordo com este índex, a 1

Disponível em: https://www.worldbank.org/en/publication/human-capital. Acesso em: mar. 2020.

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produtividade do capital humano no Brasil2 seria 56%. O Human Capital Index é um dos pilares do Human Capital Project, que tem o objetivo declarado de pressionar os governos a adotarem prescrições de políticas para educação, saúde, mercado de trabalho e seguridade social. É importante ressaltar que as recomendações e prescrições do BM se constituem em condicionalidades para concessão de empréstimos. Algumas destas prescrições são apresentadas no relatório de 2019, The Changing Nature of Work (WORLD BANK, 2019), que traça um cenário no qual o mundo do trabalho estaria passando por transformações incontornáveis devido ao avanço das tecnologias que, invariavelmente, fariam desaparecer diversos postos de trabalho, o que exigiria urgente resposta por parte dos governos. O relatório afirma que na segunda década dos anos 2000 houve um rompimento do contrato social que levou a processos de revoltas contra governos em diferentes países. Diante dos riscos da quebra geral do contrato social, o BM recomenda que os governos se empenhem em oferecer um mínimo de serviços de educação, saúde e seguridade para os mais pobres, de forma a adaptá-los às mudanças provocadas pela globalização e pelas novas tecnologias. Contudo, o BM ressalta que na maioria dos casos não seria necessário destinar mais recursos à educação e sim otimizar a sua aplicação. Segundo o banco, os anos de escolarização não estariam se traduzindo em aprendizagem efetiva, o que estaria gerando uma crise de aprendizagem em diversos países. A diferenciação entre escolarização e aprendizagem é feita de forma a esvaziar os sentidos da escola enquanto local da formação humana, onde se realizaria o direito de acessar os conhecimentos historicamente acumulados e sistematizados e onde os professores teriam papel central. Na perspectiva defendida pelo BM, o professor e a escola têm sua relevância esvaziada e esta passa a ser mais um dos lugares onde a aprendizagem é possível, juntamente com o espaço on-line, o local de trabalho, o espaço das fábricas e outros. Por trás destas formulações está a teoria do capital humano, desenvolvida a partir da década de 1960, que defende que investimentos feitos diretamente no indivíduo (nas áreas de educação, saúde, treinamento e mobilidade) trariam o benefício de aumentar a produtividade da economia (SCHULTZ, 1961), que supostamente faria aumentar a renda individual do trabalhador (BECKER, 1962). O germe destas ideias já se encontrava na obra de Adam Smith “A riqueza das Nações” que, no final do século XVIII, defendia que a divisão do processo de trabalho levaria a ganhos de produtividade, mas teria como efeito tornar as pessoas “obtusas” (SMITH, 2008). Para minimizar este efeito, Smith defendeu que um mínimo de instrução era necessário para que os trabalhadores se afastassem da embriaguez, das rixas e da devassidão, que resultariam em redução da produtividade. Enquanto uma elaboração teórica a favor da acumulação capitalista, a teoria do capital humano emergiu da constatação de que difundir uma especialização mínima (rudimentar) entre os trabalhadores, além de contribuir para difundir o ethos do mercado, faria aumentar a oferta de trabalhadores disponíveis para realizar uma maior quantidade de ofícios e possibilitaria a redução dos salários. Contudo, o investimento público realizado em capital humano deveria ser ajustado até um “nível ótimo”, acima do qual seria considerado um desperdício. Compreendemos que os cálculos deste “nível ótimo”, especificamente na escolarização (nos seus aspectos quantitativos e qualitativos), são norteados visando o barateamento da força de trabalho, a sua exploração em patamares cada vez mais elevados, o que acarreta a intensificação dos conflitos sociais, aumentam os índices de violência e número de protestos contra governos e corporações, colocando em risco a segurança dos negócios. No propósito de maximizar a exploração, se faz necessário um fino ajuste na educação da classe trabalhadora de forma a também prevenir as ebulições sociais. 2

Disponível em: https://www.worldbank.org/en/data/interactive/2018/10/18/human-capital-index-and-components-2018. Acesso em: mar. 2020.

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É neste sentido que a produção teórica do BM e seus colaboradores passam a dar centralidade à quantidade e qualidade dos anos de escolarização, disputando, em nível global, a definição do currículo, a organização do ensino e a destinação dos recursos financeiros. O currículo por competências concede o grau de controle e flexibilidade necessários para realizar o fino ajuste na formação do trabalhador, de forma a não conceder mais escolarização do que é demandado em cada momento e em cada contexto socioeconômico. De acordo com a OCDE, a discrepância entre a oferta de competências por parte do conjunto da força de trabalho em um país e o que é demandado pelo mercado naquele país geraria efeitos econômicos e sociais negativos, mais especificamente quando há excesso de qualificação da força de trabalho. Este seria o caso do Brasil, que despontaria como segundo colocado (apenas atrás do México) no ranking dos países membros da OCDE com maior índice de excesso de competências da força de trabalho em relação ao que é demandado pelos empregadores (OECD, 2018b). Por suposto, este “excesso de competências” geraria reivindicações por melhores salários, o que aumentaria as possibilidades de irrupções sociais. Na mesma medida, poderia significar a formação de uma massa crítica disposta a exigir transformações mais radicais. Em relação à demanda dos empregadores (OECD, 2018b), a força de trabalho no Brasil apresenta excesso de competências nas áreas de negócios e gestão, engenharia elétrica e tecnologia. Estariam em excesso as competências em matemática, escrita, leitura e compreensão; pensamento analítico e liderança; memória e raciocínio. Por outro lado, na visão dos empregadores, a força de trabalho no Brasil apresenta escassez de competências nas áreas de cuidado de idosos e crianças e na área de controle de qualidade. As seguintes competências também estariam em escassez: relações interpessoais de cooperação; conscienciosidade (confiabilidade, atenção aos detalhes, integridade moral); persistência; capacidade de adaptação (flexibilidade, autocontrole, tolerância ao stress); habilidades psicomotoras com força física. Desta forma, fica explícito que a maior demanda do capital para a classe trabalhadora no Brasil é por competências socioemocionais, não por competências cognitivas mais complexas. Uma das explicações para a baixa necessidade de competências cognitivas mais complexas seria a queda da participação da indústria no PIB, o que teria reduzido as demandas por competências ligadas à produção industrial (OECD, 2018b). No entanto, no Brasil, a qualificação dos trabalhadores do setor da indústria é baseada em baixas competências: 50% dos trabalhadores possuem certificação em cursos vocacionais (FIC) com carga horária menor que 200 horas, sendo seguidos por trabalhadores com certificação em cursos FIC com mais de 200 horas, e, em seguida, trabalhadores com diploma de nível técnico. Os trabalhadores com diploma em nível superior seriam a minoria. Isso aponta que o setor da indústria no Brasil emprega trabalhadores com formação de baixa complexidade. Este dado reafirma a posição de dependência do país em relação à produção tecnológica estrangeira, o baixo investimento em produção de tecnologia em solo nacional e a falta de investimento em educação de nível superior. Para minimizar os efeitos negativos da discrepância entre oferta e demanda por competências, a OCDE recomenda (OECD, 2018b): maior cooperação dos sistemas de educação com os empregadores para avaliar e antecipar as demandas por competências (quais são as atuais e futuras demandas por competências); • criar mecanismos de certificação de competências adquiridas pelo trabalhador em espaços outros (especialmente trabalhadores com baixas competências);

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• tornar as instituições de formação mais flexíveis para se adaptarem mais rapidamente às demandas do mercado (por exemplo, ofertar guia de carreiras para os estudantes com informações sobre as demandas do mercado). Observa-se que estes elementos são as bases da reforma do ensino médio no Brasil: difundir um mínimo de competências de baixa complexidade em fino ajuste com as demandas do empresariado. Neste sentido, a reforma do ensino médio e a institucionalização da BNCC se apresentam como mais uma expressão do que Fontes (2010) denominou de “política de conta-gotas”, que visam assegurar a intensificação extraordinária da exploração do trabalho por meio do gotejamento de minúsculas migalhas destinadas às famílias mais carentes. Conforme a autora, “o calibre de tais gotas é minuciosamente dosado e o gotejamento sequer constitui algum direito, mas reitera o apassivamento do conjunto dos trabalhadores sob as novas condições da extração de sobretrabalho” (FONTES, 2010, p. 297). O mecanismo de gotejamento das minúsculas migalhas de conhecimentos fragmentados e orientados à lógica do mercado – que passa a ser considerado como uma reafirmação do direito à educação – é tornado explícito na medida em que a reforma do ensino médio estipula um teto para a carga horária do currículo mínimo (a BNCC), a ser complementada pelos itinerários formativos: “A carga horária destinada ao cumprimento da Base Nacional Comum Curricular não poderá ser superior a mil e oitocentas horas do total da carga horária do ensino médio” (BRASIL, 1996, LDB, art. 35-A, §5o). Concretamente, do total de 3.000 horas (ou 4.200 horas, no caso de expansão para 1.400 horas anuais) do ensino médio, apenas 1.800 horas poderão ser dedicadas ao ensino do currículo mínimo. As 1.200 horas restantes (ou 2.400, no caso de currículo com 1.400 horas anuais), deverão compor itinerários educativos que sigam quatro eixos estruturantes: “investigação científica; processos criativos; mediação e intervenção sociocultural; e empreendedorismo” (BRASIL, 2019). A legislação concede liberdade e flexibilidade às redes de ensino e escolas para definirem: “a sequência em que os eixos serão percorridos e as conexão entre eles; o tipo de organização curricular (por disciplinas, por oficinas, por unidades/campos temáticos, por projetos, entre outras possibilidades); se os Itinerários Formativos terão como foco uma ou mais Áreas de Conhecimento” (BRASIL, 2019). Assim, os itinerários formativos consomem uma parte expressiva da carga horária da escolarização da juventude em nível médio e se apresentam como meio de viabilizar a efetiva orientação da oferta de competências de acordo com a demanda do empresariado. Este mecanismo não é implementado apenas em solo brasileiro e tampouco se constitui como uma novidade na agenda do capital para a educação. Em 1996, o relatório Delors (UNESCO, 1996) apontava a necessidade de estabelecer mecanismos de “certificados pessoais de competências que façam com que cada indivíduo possa ver reconhecidos os seus conhecimentos e aptidões à medida que os for adquirindo” (UNESCO, 1996, p. 149), que constituíssem um sistema de certificados que pudessem ser somados ao diploma de ensino fundamental. A UNESCO apontava que no século XXI os sistemas educacionais teriam que lidar com o problema da “obsessão de acesso ao ensino superior, como uma questão vital” (UNESCO, 1996, p. 23) que os jovens concluintes do ensino secundário desenvolvem. As reformas educacionais financiadas pelo BM em contextos de economias periféricas a partir do início dos anos 2000 já incorporavam este mecanismo de flexibilização da formação dos trabalhadores (ACCIOLY, 2018). Um exemplo é a reforma do ensino profissional em Moçambique, empreendida a partir de 2004. Entre as condicionalidades para concessão de financiamento estão a transformação da

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estrutura de organização do ensino para que o setor produtivo passe a ser incorporado diretamente e a implementação de currículo modularizado, focado em resultados a serem monitorados por sistema de avaliação externa (WORLD BANK, 2006). É neste sentido que afirmamos que o Banco Mundial (BM), enquanto um intelectual coletivo, desempenha importante papel na consolidação e manutenção do vínculo orgânico entre estrutura (o conteúdo econômico-social ou o conjunto das forças sociais e do mundo da produção) e superestruturas (a forma ético-política) que resulta na hegemonia do “capital-imperialismo”. Enquanto que o consenso “não é um efeito que se acresce, mas está incorporado, em formas sempre diferentes e que se renovam” (VOZA, 2017, p. 426-427), a manutenção da hegemonia não pode dispensar os mecanismos coercitivos. Neste sentido, o BM atua nas duas frentes, produzindo e renovando o consenso em torno das ideias prócapital de forma articulada com a coerção econômica, que se materializa por meio da imposição de um pacote de condicionalidades (um conjunto de reformas) para os empréstimos aos países. O nível de cumprimento das condicionalidades é permanentemente avaliado pelos organismos internacionais, bancos e agências de mercado e servem como balizamento para investidores estrangeiros. O fato de um governo não demonstrar empenho em efetivar as reformas é compreendido como uma má sinalização para a banca privada, o que produz consequências diversas, como, por exemplo, maior taxa de juros nos empréstimos (ACCIOLY, 2018). Ao analisar as competências socioemocionais, buscamos também desvelar os seus aspectos coercitivos. Uma vez que as reformas educacionais exigem a institucionalização no currículo formal de uma série de comportamentos, modos de ser e de estar em sociedade, a não adequação dos professores e estudantes a tais padrões, por suposto, tenderiam a gerar consequências como perda do emprego, punições, expulsão da escola. Em síntese, tenderiam a limitar ainda mais o acesso dos trabalhadores às escassas oportunidades de acesso à escolarização, ao conhecimento, a empregos e a uma renda mínima que possibilite uma vida com dignidade.

4 As competências socioemocionais e a BNCC Por incentivo dos organismos internacionais e seus colaboradores, psicólogos e economistas têm se dedicado a pesquisar as inter-relações entre os dois campos e os possíveis benefícios para a geração de capital humano. Tais pesquisas têm afirmado ser possível conceituar e medir os traços de personalidade humana (BORGHANS et al., 2008). Ao monitorar tanto as capacidades cognitivas quanto os traços de personalidade, seria possível antever resultados sociais e econômicos, como escolaridade, salários, envolvimento no crime, gravidez na adolescência e longevidade. Desta forma, formou-se um consenso de que, assim como realizam-se investimentos nas capacidades cognitivas buscando alcançar determinados resultados (o que é sustentado pela teoria do capital humano), também os traços de personalidade poderiam ser alvo de investimento e intervenção no sentido de buscar determinados resultados econômicos e sociais. Desta forma, desde inícios do século XX, diversos autores buscaram elencar uma taxonomia dos traços de personalidade (BORGHANS et al., 2008). Ganhou proeminência o modelo conhecido como Big 5 (GOLDBERG, 1971), que elenca cinco grandes dimensões da personalidade. Estas dimensões seriam: Abertura à Experiência; Consciência; Extroversão; Concordância; e Neuroticismo (também chamado de estabilidade emocional). Esses fatores representam a personalidade no nível mais amplo de abstração. Cada uma destas dimensões resumiria um grande número de características distintas e específicas da personalidade e tornaria possível mensurar:

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1) Abertura à Experiência: o grau em que uma pessoa necessita de estímulo intelectual, mudanças e variedade. Relaciona-se às dimensões da estética, sentimentos, ações, fantasia/imaginação, ideias, valores. 2) Consciência: o grau em que a pessoa é propensa a seguir regras convencionais, normas e padrões. Relaciona-se à competência, organização, obediência, esforço, disciplina, ponderação. 3) Extroversão: o grau em que a pessoa necessita de atenção e interação social. Relaciona-se à cordialidade, capacidade de agregar, assertividade, emoções positivas, busca por emoções. 4) Concordância: o grau em que a pessoa necessita de relações harmoniosas e agradáveis com os outros. Relaciona-se à confiança, franqueza, altruísmo, submissão, modéstia, ternura. 5) Neuroticismo: o grau em que a pessoa experiencia o mundo como uma ameaça e estando fora do seu controle. Relaciona-se à ansiedade, hostilidade, depressão, autoconsciência, impulsividade, vulnerabilidade. Desta forma, as dimensões Big 5 dariam fundamentação para o estímulo de determinadas competências socioemocionais passíveis de serem verificadas e mensuradas. O relatório The Changing Nature of Work (WORLD BANK, 2019) aponta como sendo fundamentais para a formação dos trabalhadores as competências: perseverança, colaboração, empatia, trabalhar em equipe, adaptabilidade, gerenciamento de emoções, capacidade de resolução de conflitos, força de vontade, coragem para correr riscos, comprometimento com o trabalho. No Brasil, as pesquisas e debates sobre as competências socioemocionais são lideradas pelo Instituto Ayrton Senna (IAS) 3 , que reafirma o modelo Big 5 e especifica algumas competências 4 : autogestão, resiliência, engajamento, amabilidade, curiosidade, organização, pensamento crítico, determinação, iniciativa social, empatia, tolerância ao estresse e imaginação criativa. Além das Big 5, o IAS informa utilizar uma “matriz de competências para o século 21” que combinaria aspectos socioemocionais e cognitivos “de modo a explicitar qual a visão de estudante que se pretende desenvolver”5 . A matriz contempla oito competências e atua como elemento integrador do currículo. A partir da matriz, os componentes curriculares estariam a serviço da promoção das seguintes competências: Pensamento Crítico; Comunicação; Criatividade; Responsabilidade; Autoconhecimento; Abertura para o Novo; Colaboração; Resolução de Problemas. O IAS ressalta que não busca padronizar comportamentos, apenas auxiliar na concretização de “projetos de vida”. É importante ressaltar aqui que as competências socioemocionais não são instrumentos para padronizar comportamentos, adequar os estudantes a um modelo ideal de pessoa, ou embasar argumentos para a cultura que culpa alunos e professores pelo fracasso escolar. Longe disso, o desenvolvimento socioemocional tem relação direta com a concretização de projetos de vida respeitando a diversidade, a singularidade e a heterogeneidade entre as pessoas.6 3

https://institutoayrtonsenna.org.br/pt-br/meu-educador-meu-idolo/materialdeeducacao/descubra-como-competencias-socioemocionaispodem-melhorar-a-educacao-brasileira.html. Acesso em: 2020. 4 INSTITUTO AYRTON SENNA. As competências socioemocionais no cotidiano das escolas. Disponível em: https://institutoayrtonsenna.org.br/pt-br/meu-educador-meu-idolo/materialdeeducacao/descubra-como-competencias-socioemocionaispodem-melhorar-a-educacao-brasileira.html. Acesso em: 2020. 5 Disponível em: https://institutoayrtonsenna.org.br/pt-br/meu-educador-meu-idolo/materialdeeducacao/descubra-como-competenciassocioemocionais-podem-melhorar-a-educacao-brasileira.html. Acesso em: 2020. 6 Disponível em: https://institutoayrtonsenna.org.br/pt-br.html. Acesso em 2020.

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De acordo com Porvir, parceiro do IAS: “As competências socioemocionais são habilidades que você pode aprender; são habilidades que você pode praticar; e são habilidades que você pode ensinar”7 Na Tabela 1, sistematizamos as competências socioemocionais da forma em que se apresentam na BNCC. Apontamos a quantidade de vezes em que cada competência é mencionada no texto e com quais outras competências ela é colocada em relação. Tabela 1. Competências socioemocionais no texto da BNCC do ensino médio QUANTIDADE DE VEZES QUE É MENCIONADA 3

COMPETÊNCIA Pensamento crítico Criatividade

6

Responsabilidade

9

Autoconhecimento

2

Abertura

2

Colaboração Resolução de problemas Resiliência

2 10 1

Engajamento

5

Curiosidade Determinação

4 1

Empatia

5

RELAÇÕES Autonomia Imaginação, invenção, autocrítica Autonomia, consciência crítica, flexibilidade, discernimento, ética da responsabilidade Identidade, emoções Experiências estéticas, solução de problemas Autonomia, protagonismo flexibilidade Em práticas autorais e coletivas Intelectual, investigativa Resiliência Diálogo, solidariedade, emoção

Fonte: Elaboração própria

Observamos que as competências que aparecem na BNCC também estão em consonância com o que o relatório da OECD (2018b) aponta como sendo demanda do empresariado no Brasil: habilidades de relações interpessoais (cooperação); consciência (confiabilidade, atenção aos detalhes, integridade moral); persistência; capacidade de adaptação (flexibilidade, autocontrole, tolerância ao stress). Competências como resolução de problemas e responsabilidade, por exemplo, reforçam a ideia de que um indivíduo responsável é aquele que encontra soluções e não aquele que exige soluções do poder público. O recorte classista do direcionamento das competências socioemocionais fica explícito quando a OCDE afirma que “para as pessoas de renda mais baixa, as competências socioemocionais são de 2,5 a 4 vezes mais importantes que as competências cognitivas” e que “as competências socioemocionais são particularmente importantes para indivíduos com mais baixas competências cognitivas” (OECD, 2018a, p. 7, tradução nossa).

7

Disponível em: https://socioemocionais.porvir.org/. Acesso em: 2020.

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Assim, estaria em curso um aprofundamento da dualidade educacional, com a negação do acesso ao conhecimento científico, artístico e filosófico para grande parte da classe trabalhadora. A imbricação dos interesses privados do empresariado nas políticas educacionais, a orientação da oferta (de escolarização) pela demanda (do capital), é a expressão do que Gramsci denomina de estado ampliado (GRAMSCI, 2011). Gramsci considera o Estado como sendo composto pela conjunção da sociedade política (conformada pelo conjunto de aparelhos de coerção e repressão) com a sociedade civil (que seria o espaço onde se confrontam os diversos projetos de sociedade, incorporando a luta de classes na esfera estatal). O conceito de sociedade civil, para Gramsci, implica os aparelhos ideológico-culturais da hegemonia (como exemplo, o IAS), o aspecto educador do Estado (BUCI-GLUCKSMANN, 1980). Para este autor, o Estado é concebido como educador na medida em que uma das suas funções mais importantes é elevar a grande massa da população a um determinado nível cultural e moral, nível que corresponde às necessidades de desenvolvimento das forças produtivas e, portanto, aos interesses da classe que está no domínio (GRAMSCI, 2011). A escola é apontada como uma das atividades estatais mais importantes no seu papel educador (na função educativa “positiva”), junto com os tribunais (na função educativa “negativa”) e a “uma multiplicidade de outras iniciativas e atividades chamadas privadas, que formam o aparelho da hegemonia política e cultural das classes dominantes” (GRAMSCI, 2011). No atual estágio do capitalismo, torna-se cada vez mais latente a conjugação da função positiva e negativa do Estado educador, com uso articulado de coerção e consenso também por meio da escola (ACCIOLY, 2018). Esta assume a função de prover o mínimo de educação necessário para que a massa dos trabalhadores se adeque às condições instáveis e flexíveis do mercado, especialmente pela difusão da cultura do empreendedorismo (que envolve o reforço de atitudes consideradas pelo senso comum como positivas). Na mesma medida, aumenta-se o controle sobre os conteúdos e métodos da educação escolar, que são rigidamente monitorados pelas avaliações em larga escala. Estas, por sua vez, consolidam a cultura da competição, fazendo com que mecanismos de bonificação e punição permeiem o ambiente escolar.

5 Competências Socioemocionais nas Políticas Educacionais nos Estados Unidos No Brasil, as competências socioemocionais foram inseridas de forma mais explícita e sistemática a partir de 2017, com a reforma do ensino médio e instituição da BNCC. Consideramos que a escola de massas exerceu, desde os seus primórdios, a função de educar o comportamento e os hábitos dos estudantes como forma de propulsionar a transformação cultural necessária para a expansão do capitalismo. Os métodos pedagógicos coercitivos empregados pela escola tradicional em sua tarefa de educar os corpos e os costumes das crianças e jovens foram largamente criticados por educadores do início do século XX, fazendo com que os castigos físicos deixassem de fazer parte do cotidiano escolar. Contudo, diversas estratégias de disciplinamento (tanto de repressão quanto de estímulo) seguiram sendo adotadas por professores e administradores escolares, com certo grau de autonomia e discricionariedade. A partir do advento do currículo por competências e da proeminência das competências socioemocionais nas reformas educacionais do século XXI, observamos que a confluência dos campos da psicologia e da economia sobre os debates educacionais alçaram a questão do disciplinamento comportamental a um novo patamar.

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Observa-se que segue em curso uma tentativa de normatizar pela via legislativa e executar como política pública estratégias de direcionamento e controle da subjetividade das crianças e dos jovens a partir das escolas, de forma organizada e sistemática. Assim, políticas educacionais passam a regulamentar o relacionamento entre professores e alunos, normatizando os comportamentos e imprimindo modos de ser e estar em sociedade. Ademais, retira dos professores a autonomia para tomar decisões relativas ao manejo do clima escolar. Com o intuito de compreender este movimento que ganha proeminência no Brasil a partir da reforma do ensino médio e da aprovação da BNCC, realizamos uma análise do histórico das políticas de disciplinamento do comportamento nos Estados Unidos. Nosso objetivo foi buscar possíveis elementos em comum. A escolha por analisar o contexto estadunidense se deu por este ser um país que tem avançado nas pesquisas acerca de medição e avaliação de comportamentos. Nos Estado Unidos, as bases que propulsionaram as reformas educacionais do início do século XXI – como a No Child Left Behind (NCLB) implementada em 2001 – encontraram-se presentes no relatório educacional A Nation at Risk, que foi encomendado pelo governo Reagan e apresentado à sociedade em 1983. O relatório (UNITED STATES DEPARTMENT OF EDUCATION, 1983) argumenta que outros países estariam ultrapassando os EUA nos resultados educacionais e que as escolas estadunidenses estariam mergulhadas na mediocridade. Conforme afirma: “Se outra nação nos tivesse imposto estes medíocres resultados educacionais, nós veríamos isso como um crime de guerra”. O relatório afirmou que o risco a ser enfrentado era a perda de competitividade da indústria estadunidense frente às japonesas e coreanas devido à má qualificação ofertada pelas escolas. Desta forma, conclama a todos para investirem na educação: “A excelência custa. Mas, no longo prazo, a mediocridade custa mais”. Para combater a mediocridade das escolas e aumentar a eficiência da força de trabalho, o relatório recomendou que o ensino fosse padronizado e constantemente avaliado, com foco em melhorar o desempenho dos estudantes. Os professores também deveriam ser constantemente avaliados e a remuneração baseada nos resultados, de acordo com o mérito. Estavam postas as bases para o controle do trabalho docente a partir de metas muitas vezes inalcançáveis. A partir do final dos anos 80, com a justificativa de combater a violência nas escolas e garantir que estas atingissem os resultados educacionais esperados, foram implementadas políticas de tolerância zero (zero tolerance) em diversos distritos escolares. Estas políticas foram planejadas fundamentalmente como uma forma de instituir no ambiente escolar punições severas e invariáveis, de forma a deixar explícito para os estudantes que determinados comportamentos não seriam tolerados (SKIBA; LOSEN, 2016). Definiu-se pena de expulsão para os estudantes que portassem armas, se envolvessem em gangues ou usassem drogas. Também receberiam punições severas (suspensão e expulsão) estudantes que apresentassem comportamentos menos graves como violações do código de vestuário, perturbações à ordem, brigas, insubmissão, não conclusão das tarefas de casa, tabagismo e até comportamentos fora do espaço escolar (ibid.). Esse movimento resultou em expressivo aumento do uso de tecnologias de segurança nas escolas. Noguera (1995) argumenta que políticas disciplinares rigorosas são adotadas menos por sua eficácia e mais pelo valor simbólico, no intuito de demonstrar para a sociedade que ações fortes estão sendo tomadas em resposta a um “colapso da ordem”. A afirmação do autor se baseia na verificação da elevação no número de suspensões e expulsões e pelo recorte racial e de classe dos alunos que são alvo das medidas disciplinares (SKIBA; LOSEN, 2016). No contexto estadunidense, a intensificação do uso do aparato repressivo nas escolas desembocou no que os pesquisadores vêm chamando de “via direta da escola para a prisão” (school to prison pipeline) (SKIBA et al., 2003).

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A partir da década de 1980, também se intensificaram as pesquisas que buscaram aprimorar a seleção, implementação e documentação de intervenções comportamentais que fossem mais efetivas com estudantes que apresentassem “distúrbios de comportamento” (SUGAI; SIMONSEN, 2012). Desde a década de 1950, o campo da análise comportamental aplicada enfatizava que o castigo por si só não seria eficaz para provocar mudanças de comportamentos (SKINNER, 1953). Conforme notado por pesquisadores da área, as abordagens baseadas apenas em punições provocavam efeitos como fugas, contra-agressões, habituação a consequências progressivamente mais duras e reforço do agente punidor (SKIBA; LOSEN, 2016). A partir da década de 1990, foram estimuladas pesquisas que gerassem dados para fomentar práticas de prevenção a comportamentos considerados inadequados. As abordagens passaram a contemplar novas estratégias para o disciplinamento dos estudantes: ao invés de suspensão e expulsão, ações para fortalecer relacionamentos; aprendizagem socioemocional para ensinar estudantes a regular emoções; intervenções estruturais no ambiente escolar, como a metodologia “Intervenções e Suporte para Comportamentos Positivos” (Positive Behavior Interventions and Support – PBIS); e a alteração dos códigos de conduta escolares para que sejam menos punitivos (SKIBA; LOSEN, 2016). Pesquisadores passaram a reforçar que a prevenção de comportamentos antissociais deveria ser uma estratégia ampla, baseada em evidências empíricas, com medidas a largo prazo e que fossem sistematicamente introduzidas no cotidiano escolar, por meio de práticas diárias que ensinassem e reforçassem comportamentos positivos (SUGAI; HORNER; LEWIS, 2016). Conforme o artigo publicado no site do Departamento Nacional de Educação dos Estados Unidos, seria como “vacinar” as crianças contra a aprendizagem e a adoção de determinados comportamentos. “Essa vacinação requer doses diárias de instrução, prática e reforço de habilidades sociais nas rotinas diárias, incorporadas em todas as interações educacionais e sociais” (SUGAI; HORNER; LEWIS, 2016, tradução nossa). Os comportamentos a serem reforçados incluem, dentre outros, respeito a si mesmo, aos outros e à propriedade; responsabilidade; e respeito às normas e segurança. Estes comportamentos deveriam ser reforçados diariamente em todos os momentos do ensino e nas interações sociais fora da escola. O ensino dos comportamentos considerados “positivos” deveria seguir estratégias baseadas em evidências empíricas a serem adotadas por todo o corpo docente. Como exemplo, estão (SUGAI; HORNER; LEWIS, 2016): Definição de metas acadêmicas e comportamentais desafiadoras e alcançáveis; Modelagem de exemplos positivos das habilidades e comportamentos sociais esperados; Reconhecimento e valorização do comportamento social desejado ao invés da ênfase nos comportamentos negativos; Maximização do tempo de aula para obtenção de resultados acadêmicos e comportamentais; Supervisão contínua e ativa de todos os alunos em todas as configurações, o tempo todo. Apesar das pressões sociais para que os distritos escolares enfocassem abordagens preventivas ao invés de punitivas, as políticas de tolerância zero seguem sendo largamente utilizadas, o que reforça a ideia de que a manutenção da hegemonia não pode abrir mão de mecanismos de coerção. Desta maneira, os sistemas escolares cumprem uma expressiva participação no encarceramento em massa da juventude negra nos EUA, país que possui a maior população carcerária do mundo e onde as penitenciárias privadas prosperam às custas dos detentos. É preciso ressaltar que tanto as políticas de tolerância zero quanto as de abordagem comportamental preventiva tomam como premissa a responsabilidade de gestores e professores em assegurar o direito de todas as crianças à educação de qualidade, que é mensurada por meio de avaliações padronizadas. A metáfora utilizada para tratar os estudantes que apresentam comportamentos inadequados é a de que se existe uma maçã podre, é preciso retirá-la do meio das demais. 719 | VÉRTICES, Campos dos Goytacazes/RJ, v.23, n.3, p. 706-733, set./dez. 2021


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A mesma lógica é usada em relação aos professores. Conforme apontam Carter e Lochte (2017), desde a publicação do relatório A Nation at Risk nos anos 1980, sucessivas reformas educacionais tiveram como alvo “mitigar os impactos negativos que os professores têm sobre os alunos” (CARTER; LOCHTE, 2017, p. 13). Goldstein (2014) recorda a matéria de capa de uma edição da revista Newsweek que, em 2010, trouxe a imagem de um quadro-negro com uma única frase escrita: “devemos despedir professores ruins”, assim como o discurso do presidente Obama que, em 2011, prometeu “parar de inventar desculpas para professores ruins” (GOLDSTEIN, 2014, p. 12). Assim, percebe-se que a “tolerância zero” também se aplica em relação aos professores. Com efeito, para que o capital tenha controle sobre a escolarização da classe trabalhadora – de forma a prevenir comportamentos que subvertam a sua lógica – se faz necessário minar a organização sindical dos professores (COMPTON; WEINER, 2008), o seu plano de carreira – implementando remuneração de acordo com a performance e mérito – e a própria formação docente (CARTER; LOCHTE, 2017).

6 Escolas Cívico-Militares: Política de Tolerância Zero no Brasil? Ao buscar compreender como as competências socioemocionais estão sendo implementadas no Brasil após a promulgação da reforma do ensino médio em 2017 e a instituição da BNCC, nos deparamos com o programa de promoção das escolas cívico-militares, principal política educacional do governo que assumiu a presidência em 2019. Analisamos o regulamento das escolas cívico-militares (BRASIL, 2020) com o objetivo de identificar de que forma o programa regulamenta o relacionamento entre professores e alunos, normatiza comportamentos e imprime modos de ser e estar em sociedade. Também buscamos verificar se existem semelhanças com as políticas estadunidenses de punição (tolerância zero) e de prevenção de comportamentos. A organização das escolas cívico-militares (Ecim) possui a seguinte composição: Direção Escolar; Secretaria Escolar; Divisão de Ensino; Divisão Administrativa; e Corpo de Monitores. Os princípios das escolas cívico-militares (Ecim) são inspirados nos princípios do ensino expressos na LDB/96. Contudo, importantes alterações e omissões são feitas. No Quadro 1, apresentamos um comparativo.

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Quadro 1. Princípios da educação ESCOLAS CÍVICO-MILITARES I

III IV V

igualdade de condições para o acesso e a permanência na escola; liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; respeito às diferenças individuais; valorização dos profissionais da escola; gestão democrática;

VI

valorização da experiência extraescolar;

VII VIII

busca permanente pela melhoria da qualidade; educação integral

IX X XI

participação ativa da família na escola.

II

XII XIII

LDB igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas; respeito à liberdade e apreço à tolerância; coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; valorização do profissional da educação escolar; gestão democrática do ensino público, na forma desta Lei e da legislação dos sistemas de ensino; garantia de padrão de qualidade; valorização da experiência extra-escolar; vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais. consideração com a diversidade étnico-racial. garantia do direito à educação e à aprendizagem ao longo da vida.

Fonte: Adaptado de BRASIL (1996, 2020)

Observa-se que os princípios das Ecim omitem a pluralidade de ideias e concepções pedagógicas; o respeito à liberdade e apreço à tolerância; a vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais; a consideração com a diversidade étnico-racial; e a garantia do direito à educação. Por outro lado, incluem a participação ativa da família na escola e o respeito às diferenças individuais. Apesar de excluir dos seus princípios o respeito à liberdade e apreço à tolerância, as Ecim mantêm o princípio da gestão democrática. O regulamento das Ecim omite o pluralismo de ideias e concepções pedagógicas como sendo um dos seus princípios, contudo reconhece que está submetida à Constituição Federal e à legislação educacional. Entretanto, faz-se a ressalva: Essas assertivas autorizam os sistemas de ensino à escolha e à prática de diferentes correntes pedagógicas. Cumpre observar que, tendo o sistema ou o estabelecimento de ensino feito a escolha, os diversos componentes do processo educacional devem guardar coerência entre si, ou seja, o currículo, a didática e a avaliação – por exemplo – devem seguir a mesma orientação (BRASIL, 2020, p. 104).

A suposta coerência se apresenta como uma medida para limitar a autonomia pedagógica do professor, assim como o pluralismo de ideias entre o corpo docente e os demais profissionais da educação. Os valores que baseiam as escolas cívico-militares são: civismo; dedicação; excelência; honestidade; e respeito (às instituições, às autoridades e às normas estabelecidas). No Quadro 2, traçamos um comparativo entre as competências socioemocionais demandadas pelo empresariado brasileiro (OECD, 2018b) e os valores norteadores das Ecim. 721 | VÉRTICES, Campos dos Goytacazes/RJ, v.23, n.3, p. 706-733, set./dez. 2021


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Quadro 2. Comparativo: Valores das Ecim e Demandas do Empresariado VALORES DAS ECIM Civismo Dedicação Excelência Honestidade Respeito

DEMANDAS DO EMPRESARIADO (OECD, 2018b) Cooperação, Integridade Moral Persistência Atenção aos detalhes Confiabilidade, Integridade Moral Consciência

Fonte: Adaptado de BRASIL (2020) e OECD (2018b)

Para trabalhar estes valores de forma sistemática, as Ecim devem destinar uma hora/aula para desenvolver o “Projeto Valores”, conduzido pela seção psicopedagógica e pelos monitores. Observamos que o trabalho de educação e normatização do comportamento é realizado pelos monitores, que são militares vinculados administrativamente ao Ministério da Defesa ou aos órgãos de segurança estaduais e municipais. Eles são responsáveis pela Gestão Educacional e atuam na promoção sistemática de atividades de difusão dos valores da escola e de garantia do bom comportamento do aluno. Dentre as suas atribuições estão (BRASIL, 2020): melhorar o ambiente educativo; colaborar no desenvolvimento dos alunos, nos aspectos afetivo, ético, moral, social e simbólico; estimular a solidariedade, a satisfação e a alegria de estar na escola; desenvolver sentimento de pertencimento entre os alunos; assegurar o cumprimento das Normas de Conduta e Atitudes e desenvolver o espírito cívico, estimulando a prática dos valores e o culto aos símbolos nacionais; providenciar, junto aos responsáveis dos alunos, um termo de autorização de direito de imagem para fins de divulgação de atividades pedagógicas pela escola e pelo MEC; elaborar, para os responsáveis, informativos que reforcem atitudes positivas dos alunos; aplicar medidas educativas; promover a sensação de segurança no ambiente escolar; contribuir para a diminuição dos índices de violência na escola, física, verbal ou contra o patrimônio; coibir os casos de bullying e outras formas de discriminação; planejar e conduzir as formaturas e outros eventos cívicos na escola; valorizar junto aos alunos a apresentação pessoal e o uso correto dos uniformes, estimulando o orgulho de pertencerem a uma Escola Cívico-Militar. A lista de atribuições dos professores inclui, além das atribuições pedagógicas expressas na LDB (BRASIL, 2020): pontualidade e assiduidade; participação em inúmeros estágios, seminários e encontros de atualização pedagógica e aperfeiçoamento profissional; cumprir diretrizes, normas e ordens contidas nos documentos e nas diretrizes da secretaria de educação; participar do Projeto Valores (sem, no entanto, ter função condutora); e dialogar com os monitores. Além disso, os professores devem primar por: pontualidade e assiduidade; capacitação profissional; apresentação pessoal; dedicação; equilíbrio emocional; responsabilidade; e respeito às diferenças. Percebe-se, pois, a tentativa de normatização e controle do comportamento dos professores. É aos monitores que são delegadas as responsabilidades relativas ao desenvolvimento afetivo, ético, moral, social e simbólico dos estudantes, por meio de um sistema de recompensas e punições, que agregam ou subtraem valor ao histórico do aluno. Em uma verdadeira matemática do comportamento, o aluno recebe ou perde pontos de acordo com sua atuação no ambiente escolar e extraescolar. O comportamento é classificado por um grau numérico, que se estende por todo o curso, e a sua avaliação é atualizada em cada ano. O aluno transferido de uma Ecim para outra carrega consigo a avaliação que obteve na escola anterior.

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O sistema de recompensas engloba: elogio perante a turma, em aula ou em formaturas; elogio no histórico do aluno; e prêmios. A concessão do elogio é prerrogativa do gestor competente, e aquele que não possui tal competência deverá reduzir a termo sua solicitação constando os motivos e as circunstâncias que determinam a proposta. Depois de analisada pelo gestor competente, a concessão de elogio poderá́ ser ou não concedida. No caso de deferimento, o elogio constará do histórico do discente com consequente acréscimo dos valores (BRASIL, 2020, p.280).

A tabela de pontos das recompensas determina: a) Elogio coletivo........................................................................................0,10 b) Elogio individual ..................................................................................0,30 c) Aluno aprovado.....................................................................................0,50 d) Aluno aprovado com recuperação final.......................................0,20 e) Transcurso de tempo sem receber medida educativa: Será́ acrescido 0,01 (um centésimo) ponto por dia no grau de comportamento do aluno que não tenha sofrido medida educativa no período de 30 (trinta) dias a contar da última medida educativa aplicada, até que alcance o grau numérico 10, exceto nos períodos de férias/recesso escolar (BRASIL, 2020, p. 279).

Conforme é possível apreender, são recompensados: os alunos que não sofrerem punições; os alunos aprovados; e os alunos elogiados. Ao contrário dos comportamentos que devem ser punidos, o manual do aluno não apresenta com clareza quais comportamentos devem ser elogiados. Apenas afirma que “sua finalidade é estimular o exercício da cidadania, o bom desempenho nas atividades escolares, o respeito ao próximo e a retidão de conduta necessária à construção de um ambiente social de convivência saudável” (BRASIL, 2020, p. 279). O sistema de punições engloba, em ordem crescente de atenção (BRASIL, 2020, p. 282): a) Advertência; b) Repreensão; c) Atividade de Orientação Educacional; d) Suspensão; e) Transferência compulsória. Em alguns casos, o estudante pode apresentar justificativa e não sofrer punição: na prática de ação meritória; em legítima defesa, própria ou de outrem; por motivo de força maior, plenamente comprovado; e por ignorância, plenamente comprovada, desde que não atente contra os sentimentos de civismo e humanidade. Como a ação meritória não é claramente designada no documento, abrem-se brechas para interpretações diversas. Por exemplo, seria possível um estudante que agredir outro estudante deixar de sofrer punição se for considerado que ele estava praticando ação meritória? O sistema de punições apresenta uma lista de circunstâncias atenuantes e circunstâncias agravantes. O documento apresenta uma relação de 30 atitudes e comportamentos a serem punidos, dentre eles: utilizar-se do anonimato; comportar-se de maneira inadequada; deixar de comparecer ou chegar atrasado nas atividades; deixar de comunicar ao superior a execução de tarefa dele recebida; retardar a execução de qualquer tarefa; ter em seu poder, introduzir, ler ou distribuir, dentro da escola, cartazes, jornais ou

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publicações que atentem contra a moral; apresentar-se com uniforme diferente do que foi previamente estabelecido; ter pouco cuidado com o asseio próprio ou coletivo e com sua apresentação individual; deixar de usar ou utilizar de maneira irregular peças de uniforme; publicar ou contribuir para que sejam publicadas mensagens, fotos ou qualquer outro documento, na internet, que possam concorrer para denegrir a imagem de integrantes da escola; utilizar, sem devida autorização, telefones celulares e/ou aparelhos eletrônicos nas atividades escolares. Observa-se que o sistema de punições, apesar de ser bastante detalhado, carrega um elevado grau de subjetividade, no qual pesará a visão de mundo, a perspectiva política e os valores do agente encarregado de punir. Por exemplo, receberá punição o estudante que utilizar o anonimato para denunciar situações de abuso por parte dos oficiais da escola? Serão consideradas inadequadas as demonstrações de afeto entre os estudantes ou serão punidos estudantes que rompem com a heteronormatividade? A proibição de jornais, cartazes ou publicações que “atentem contra a moral”, incluiria jornais sindicais, publicações de partidos políticos ou organizações estudantis? A partir desta análise preliminar sobre a implementação das competências socioemocionais nas políticas educacionais brasileiras – tomando como foco a análise do programa das escolas cívico-militares, que se configura como principal política do governo federal para a educação – foi possível observar aproximações ao modelo estadunidense das políticas punitivas de tolerância zero, inclusive em relação ao trabalho docente8. Observamos que são impostas sérias restrições à autonomia dos professores para intervir pedagogicamente nos conflitos em sala de aula e para fomentar o desenvolvimento dos estudantes, em sua ampla acepção. Não foi possível concluir em que medida as Ecim se assemelham aos programas estadunidenses que atuam na via da prevenção de comportamentos considerados problemáticos. Em primeira análise, notamos que a ênfase das Ecim recai em apontar sistematicamente como o aluno não deve se comportar, punindo aqueles que cometem faltas. As recompensas, por sua vez, não acarretam reais benefícios aos estudantes, a não ser o alívio de que não serão punidos. O sistema de punições/recompensas cumpre, em última análise, as funções de estimular a competição entre os estudantes, fomentar divisões entre os “bons” e os “medíocres”, incentivar o denuncismo e eliminar comportamentos de questionamento, reivindicação e indignação. Enfim, a formação de um “bom liberal” (COLOMBO; LAMOSA, 2020). Enquanto política pública, as Escolas Cívico-Militares estão alinhadas ao currículo por competências e às demandas do empresariado por competências socioemocionais, que, neste modelo de escola, é colocado a cargo de militares. A análise da implementação das competências socioemocionais nas Ecim auxilia a complexificar as investigações que se limitam a desvelar apenas o seu caráter de construção do consenso ativo entre os trabalhadores diante da precarização das relações de trabalho, um consenso construído em torno do reforço positivo da cultura do empreendedorismo. Defendemos que é necessário ampliar a compreensão acerca do caráter coercitivo do ensino das competências socioemocionais, especialmente diante do acirramento dos conflitos sociais.

8

Em reportagem de 13 de outubro de 2019, a revista Carta Capital apontou que até o momento haviam sido registradas 120 denúncias de violência física, abusos morais e sexuais praticados por militares contra professores e estudantes em escolas cívico-militares no Amazonas. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/educacao/doi-codi-vai-as-salas-de-aula-na-era-das-escolas-militarizadas. Acesso em: 2020.

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7 As Competências Socioemocionais frente aos Conflitos Sociais no Brasil Recente Ao buscar analisar as competências socioemocionais frente à dimensão dos conflitos sociais no Brasil, algumas perguntas ganham proeminência: Na perspectiva do capital, qual a função objetiva de se investir em estratégias de longo prazo para a educação do comportamento dos trabalhadores, intervindo desde a infância por meio das escolas? Diante do atual momento de mundialização do capital e financeirização da economia, as preocupações da classe dominante em torno dos impactos econômicos da mobilização dos trabalhadores fazem-se mais acentuadas e ganham novas dimensões. A maior integração do mercado global possibilitou que as corporações transnacionais ganhassem liberdade para selecionar em quais países realizariam investimentos, onde construiriam fábricas, parques tecnológicos e onde intensificariam a exploração do trabalho e dos recursos naturais. Esta reconfiguração das cadeias produtivas gerou maior demanda por pesquisas acerca do estado da força de trabalho em cada país (conduzidas em larga escala pela OCDE e o Banco Mundial), assim como pesquisas que pudessem subsidiar políticas de educação da força de trabalho (nos aspectos cognitivos e socioemocionais). As pesquisas sobre o estado da força de trabalho em cada país, em geral, analisam taxas de desemprego, subemprego, informalidade, desalento, escolarização, acesso a serviços básicos, longevidade – elementos introduzidos no Human Capital Index –, assim como as proteções trabalhistas e o grau de organização da classe trabalhadora. Como exemplo, o nível do impacto do poder de barganha dos trabalhadores na organização das empresas globais (Tabela 2) foi calculado por Carluccio e Bas (2015) a partir dos seguintes fatores: proteção de funcionários envolvidos em disputas coletivas; aspectos do direito trabalhista que determinam o equilíbrio de poder entre empregadores e empregados durante conflitos; se o direito à ação coletiva é permitido por lei; se as greves são legais e com qual frequência ocorrem; se os empregadores podem substituir trabalhadores em greve; a amplitude da cobertura sindical, definida como o número de trabalhadores cobertos por acordos coletivos. O índice varia entre 0 e 1, com valores mais altos representando maior poder de barganha dos trabalhadores.

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Tabela 2. Índice do Poder de barganha dos trabalhadores, por país

Fonte: Carlucio e Bas (2015, p.10)

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A Itália desponta como o país em que os trabalhadores detêm maior poder de barganha frente ao empresariado (0,83), enquanto a Dinamarca aparece como sendo o país em que os trabalhadores teriam menor poder de barganha (0.13). O Brasil aparece com índice de 0,38, o que faz concluir que o poder de barganha do trabalhador brasileiro não é um elemento a ser desprezado pela classe dominante. No Gráfico 1 (DIEESE, 2019) é apontada uma série histórica do número de greves realizadas no Brasil, entre 1983 e 2018. Nota-se que, após a recuada do regime militar no final da década de 1980, surge um movimento crescente de greves, especialmente na esfera privada. No início dos 1990, o número de greves atingiu um pico que apenas será retomado a partir de 2013. Entre 2013 e 2016, o número de greves se manteve relativamente constante e passou a decair em 2017. Nota-se que ao longo dos governos Lula (2003 – 2011), o número de greves permaneceu baixo.

Gráfico 1. Número de greves no Brasil, 1983-2018

Fonte: DIEESE, 2019

No Gráfico 2 se aponta que, apesar de os trabalhadores da esfera privada despontarem com maior número de greves, o funcionalismo público desponta com o maior número de horas paradas, o que indica que a estabilidade do funcionalismo produz efeitos no seu poder de mobilização. É preciso ressaltar que a categoria docente teve importante protagonismo nas greves: em 2013, todos os estados tiveram paralisações de professores das redes estaduais, assim como professores das redes de 118 municípios9. Em 2014, ano de realização da Copa do Mundo no Brasil, docentes em vários municípios também paralisaram. Em 2015, as instituições federais de ensino superior estiveram em greve por cerca de 5 meses10. Este dado reforça a percepção acerca da necessidade do capital em desenvolver estratégias de controle sobre o trabalho docente, pois, além de ser uma categoria profissional bastante numerosa, tem grande potencial mobilizador nas greves, paralisações e protestos de rua. 9

Rede Brasil Atual, 24 nov. 2013. Disponível em: https://www.redebrasilatual.com.br/educacao/2013/11/em-2013-professores-de-todosos-estados-entraram-em-greve-545/. Acesso em: 3 jul. 2021. 10 Portal G1, 13 out. 2015. Disponível em http://g1.globo.com/educacao/noticia/2015/10/apos-5-meses-universidades-federais-encerramgreve-partir-desta-terca.html. Acesso em: 2020.

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Gráfico 2. Número de horas paradas no Brasil, 1983-2018

Fonte: DIEESE, 2019

No Gráfico 3 é apontado o caráter das greves realizadas entre 1983 e 2018, se possuem caráter propositivo ou defensivo. Observa-se que a partir de 2013 as greves se tornaram eminentemente defensivas frente aos ataques aos direitos dos trabalhadores, o que culminou na reforma trabalhista (2017) e na reforma da previdência (2019). Gráfico 3. Caráter das Greves, Brasil, 1983 a 2018

Fonte: DIEESE, 2019

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Ao analisar dados do IPEA sobre o mundo do trabalho no período 2014-2019, Barbosa (2019) aponta que, em 2014, os 50% mais pobres tinham acesso a apenas 5,7% da renda total do trabalho no Brasil. Em 2019, aquela fração caiu para 3,5%. Por outro lado, o grupo dos 10% mais ricos se apropriava, em 2014, de cerca de 49% da renda total do trabalho. Em 2019, esta fração cresceu para 52%, apontando para um quadro de desigualdade extrema. A avanço da destruição de postos formais de trabalho, a partir de 2016, teve impacto direto sobre o aumento da desigualdade (ibid.). Como efeito, o setor informal passou a se expandir, provocando uma leve equalização – uma vez que o trabalhador ter renda instável ainda é situação preferível à ausência de quaisquer rendimentos. No entanto, na medida em que um número maior de trabalhadores desempregados migra para o setor informal, esta leve equalização deixa de surtir efeito (BARBOSA, 2019), pois o desemprego faz reduzir o consumo e o setor informal se torna incapaz de assegurar rendimentos mínimos para a sobrevivência. Em 2017 e 2018 (anos em que o número total de greves de trabalhadores decaiu drasticamente), o desemprego e o desalento se estabilizavam em níveis extremamente altos (BARBOSA, 2019), apontando que um contingente expressivo passou a não ter qualquer rendimento do trabalho. O levantamento realizado pela CPT (2019) sobre o número de manifestações realizadas em 2018 (marchas, atos, jornadas etc.) e o número de pessoas envolvidas aponta que, em todo o Brasil, cerca de 170 mil pessoas participaram de manifestações em 2018, sendo a região nordeste a que liderou o número de ocorrências e de pessoas. A CPT também aponta que houve um aumento expressivo de pessoas envolvidas em conflitos no campo a partir de 2014 e um pico em 2018, o que demonstra uma tendência de crescimento do número de pessoas no campo lutando por direitos. Constatamos que em um cenário de avanço das expropriações, aumento da desigualdade, aumento do número de desocupados e desalentados, destruição de postos formais de trabalho, expansão do setor informal (cada vez mais instável) e destruição de direitos trabalhistas, o Brasil tem apresentado um quantitativo significativo de trabalhadores dispostos a se manifestarem e a lutarem por direitos. A impossibilidade de o setor informal absorver a massa crescente de trabalhadores desempregados – que passam a não lograr o mínimo para a subsistência – aponta que a difusão da cultura do empreendedorismo enquanto política educacional para angariar o consenso dos trabalhadores não se sustentará por muito tempo, principalmente em face da crise econômica de 2020/2021. A análise aponta para a perspectiva de aumento significativo do descontentamento e protestos de rua nos próximos anos. Na perspectiva do capital, os distúrbios sociais são altamente indesejáveis, pois provocam sensação de insegurança que afasta investidores estrangeiros. Em um país como o Brasil – com histórico de largas manifestações sociais – as soluções puramente repressivas das revoltas dos trabalhadores não surtem efeitos que se sustentem no tempo. Desta forma, para o capital, se faz necessário investir em estratégias organizadas, sistemáticas e de longo prazo para educar o comportamento dos trabalhadores desde a infância, de forma a “vaciná-los” contra atitudes que possam ameaçar a ordem e a segurança dos negócios. Neste pacote, também se inserem o controle sobre o trabalho docente e o desmantelamento desta categoria profissional que agrega grande potencial mobilizador. Enfim, estes parecem ser os sentidos da implementação das competências socioemocionais nas políticas educacionais brasileiras.

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8 Considerações finais A implementação do currículo por competências no Brasil vem no sentido de possibilitar o fino ajuste da formação dos trabalhadores de acordo com as atuais demandas do capital. Este ajuste ocorre nos âmbitos quantitativo e qualitativo. No âmbito quantitativo, a reforma cumpre a função de conter o excesso de escolarização e limitar o acesso dos filhos dos trabalhadores aos conteúdos científicos, artísticos e filosóficos por meio da escola. Conforme apontamos, o excesso de qualificação da força de trabalho gera demandas por empregos e maiores salários, o que pode contribuir para irrupções sociais. No âmbito qualitativo, a reforma possibilita: o controle do conteúdo da formação, reduzindo as possibilidades de que o estudante desenvolva um pensamento crítico-questionador; o controle da relação professor/aluno, retirando a autonomia do professor de atuar pedagogicamente no desenvolvimento integral das capacidades dos seus estudantes; a imposição de padrões de comportamento, visões de mundo, modos de ser e estar na sociedade. Em síntese, a reforma organiza e intensifica o controle da subjetividade do trabalhador desde a mais tenra idade. A capacidade de barganha dos trabalhadores brasileiros, o seu histórico de greves e manifestações coloca aos detentores do capital o desafio de transformar a longo prazo a tendência dos brasileiros de apresentarem comportamentos subversivos. Neste ponto, os trabalhadores da educação têm importante protagonismo. Em um contexto de acentuada desigualdade, o capital necessita conduzir o longo processo de transformação das mentalidades dos trabalhadores brasileiros com “rédeas curtas”, ou seja, não abrindo mão das punições. Competências socioemocionais como perseverança, determinação, comprometimento com o trabalho, responsabilidade, adaptabilidade, gerenciamento de emoções, autoconhecimento, criatividade, engajamento, entre outras, são incorporadas na construção do “projeto de vida” do estudante. Sem uma formação crítica, o estudante é conduzido a acreditar que com esforço e determinação é possível alcançar melhores condições de vida. Por outro lado, é ensinado a ser resiliente para se conformar à instabilidade e precariedade das condições de trabalho. Como a ênfase é no indivíduo, esta abordagem contribui para a fragmentação e dissolução da noção de classe social, assim como estimula a competição por meio de mecanismos de bonificação e punição, que permeiem o ambiente escolar. Nossa investigação conclui que o fomento das competências socioemocionais apresenta um caráter repressivo/coercitivo que não deve ser ignorado, especialmente no cenário de aprofundamento da crise e acirramento dos conflitos sociais. A difusão da cultura do empreendedorismo enquanto política para educar o consenso mostra seus limites frente ao cenário dramático da crise de 2020/2021. Neste sentido, é urgente desconstruir o consenso forjado pelos aparelhos do capital em torno de comportamentos, modos de ser e se relacionar em sociedade que, em sua essência, visam fragmentar a classe trabalhadora e intensificar a exploração. Resiliência, empatia, amabilidade, engajamento, responsabilidade, organização, autogestão, pensamento crítico, determinação, iniciativa social, tolerância ao estresse, imaginação criativa, dentre outros, compõem o novo léxico do capital para o controle tanto do trabalho docente, quanto da força de trabalho em geral. Portanto, deve ser alvo de permanente questionamento por parte dos trabalhadores da educação.

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COMO CITAR (ABNT): ACCIOLY, I.; LAMOSA, R. A. C. As Competências Socioemocionais na Formação da Juventude: Mecanismos de Coerção e Consenso frente às Transformações no Mundo do Trabalho e os Conflitos Sociais no Brasil. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 23, n. 3, p. 706-733, 2021. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v23n32021p706-733. Disponível em: https://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/15976. COMO CITAR (APA): Accioly, I. & Lamosa, R. A. C. (2021). As Competências Socioemocionais na Formação da Juventude: Mecanismos de Coerção e Consenso frente às Transformações no Mundo do Trabalho e os Conflitos Sociais no Brasil. Vértices (Campos dos Goitacazes), 23(3), 706-733. https://doi.org/10.19180/18092667.v23n32021p706-733.

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Submetido em: 15 mar. 2021 Aceito em: 24 jun. 2021

DOI: 10.19180/1809-2667.v23n32021p734-755

O interesse individual como justificação: a gramática liberal na construção da colegialidade dos professores do ensino Básico e Secundário Luís Gouveia https://orcid.org/0000-0002-6518-2330 Doutor em Sociologia pela Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (2017). Investigador na Universidade Nova de Lisboa, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais – Lisboa – Portugal. E-mail: lcgouveia86@gmail.com.

Resumo A reconfiguração nas orientações em matéria de política educativa nas últimas décadas à escala transnacional, tendo na eficácia o bem visado, acarreta consequências profundas para o trabalho docente do ponto de vista das formas de organização do trabalho escolar nos estabelecimentos de ensino – em particular, o reforço das formas colegiais de trabalho, enquadradas em hierarquias que exercem um maior escrutínio sobre as práticas. Estas injunções não significam, contudo, uma reprodução direta por parte daqueles profissionais no exercício na sua atividade. Com particular incidência sobre resultados recolhidos de um questionário por cenários aplicado no quadro de uma investigação realizada em Portugal centrada na problemática da pluralidade de conceções e formatos de envolvimento na profissão docente, o presente artigo pretende explorar, no quadro de uma sociologia dos envolvimentos e comunalidades, a forma como a gramática dos indivíduos num público liberal, caracterizada pelo enfoque nos interesses individuais generalizáveis enquanto quadro normativo, é suscetível de ser operacionalizada pelos professores como dispositivo de crítica e resistência à evolução nas formas de organização das práticas no sentido de reforço da colegialidade e institucionalização do trabalho concertado. Palavras-chave: Regimes de envolvimento. Gramáticas de comunialidade. Profissionalidade docente. Colegialidade docente. Organização do trabalho escolar.

The individual interest as justification: the liberal grammar in the construction of collegiality between teachers of Basic and Secondary education Abstract The reconfiguration of educational policy guidelines in the last decades, having effectiveness as the main target, aimed good, brings profound consequences for the teachers’ work in terms of the forms of organizing school work in schools – particularly, concerning the increase of collegial forms of work and framed by hierarchies that exercise greater scrutiny of individual practices. These injunctions do not mean, however, a direct reproduction by professionals in their activity. With particular focus on the results collected from a scenario survey applied within an investigation carried out in Portugal around the problematic of the plurality of conceptions and formats of involvement in the teaching profession, this article intends to explore, through a Sociology of engagements and commonality, how the grammar of individuals within the liberal public, characterized by the focus on generalisable individual interests as a normative framework, is susceptible to be operationalized by teachers as a device of criticism and resistance towards the evolution in the forms of organization of practices aimed to reinforce collegiality and institutionalization of concerted work. Keywords: Regimes of engagement. Grammars of commonality. Teachers’ professionality. Teachers’ Collegiality. School work organization.

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El interés individual como justificación: la gramática liberal en la construcción de la colegialidad entre profesores de Educación Básica y Secundaria Resumen La reconfiguración de los lineamientos de la política educativa en las últimas décadas a escala transnacional, con la efectividad como bien apuntado, tiene profundas consecuencias para el trabajo docente del punto de vista de las formas en que se organiza el trabajo escolar en los establecimientos educativos – en particular, el refuerzo de las formas de trabajo colegiado y enmarcadas por jerarquías que ejercen un mayor escrutinio de las prácticas. Estas pautas no suponen, sin embargo, una reproducción directa por parte de aquellos profesionales en el ejercicio de su actividad. Con especial atención a los resultados recogidos de un cuestionario de escenarios aplicado en el marco de una investigación realizada en Portugal centrada en el problema de la pluralidad de concepciones y formatos de envolvimiento en la profesión docente, este artículo pretende explorar, a través de una Sociología de los envolvimientos y comunalidades, como la gramática de los individuos en un público liberal, caracterizada por el enfoque en intereses individuales generalizables como marco normativo, es susceptible de ser operacionalizada por los profesores como un dispositivo de crítica y resistencia a la evolución en las formas de organización de las prácticas en el sentido de reforzar la colegialidad e institucionalización del trabajo concertado. Palabras clave: Regímenes de envolvimiento. Gramáticas de comunalidad. Profesionalidad de los docentes. Colegialidad de profesores. Organización del trabajo escolar.

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1 Os novos modos de governação escolar e a recomposição do contexto profissional docente As últimas décadas no setor da educação caracterizam-se por profundas mudanças nas formas de governação dos sistemas escolares à escala europeia e global. Uma componente incontornável reside na mudança na relação entre centro político e a periferia, numa dinâmica de descentralização que tem no conceito de Estado-avaliador um elemento central na interpretação destas evoluções (DUMAY, 2010). Em contraste com modelos regulação administrativo-burocrática, assente na avaliação de procedimentos (OGIEN, 2013), ao Estado compete avaliar e monitorizar os resultados do sistema educativo e das unidades territoriais que o compõem – cabendo aos atores locais, dotados de maior autonomia para desenvolver estratégicas educativas, a definição dos meios para atingir os objetivos que são estabelecidos segundo indicadores que medem o trabalho realizado nessas unidades descentralizadas (DEROUET; DEROUET-BESSON, 2009). Nesta nova configuração do ponto de vista da distribuição das funções entre centro e periferia, os estabelecimentos de ensino Básico e Secundário ocupam, assim, uma posição-charneira de decisão e orientação da ação educativa. Enquanto coletivos locais, às escolas e ao respetivo corpo docente cabe desenvolver um projeto educativo e pedagógico, mobilizar o conjunto de recursos (humanos e materiais) em função das características do contexto social e económico onde o estabelecimento se insere e dos objetivos definidos centralmente pelo Estado do ponto de vista das metas de aprendizagem (MAROY; VOISIN, 2013). É, deste modo, a regulação pelos resultados que adquire crescente influência nos modelos de governação ao nível das políticas europeias e globais – servindo os instrumentos estatísticos de base fundamental para exercícios comparativos entre políticas nacionais (segundo formatos de benchmarking e monitorização dos desempenhos de acordo com critérios de eficácia e qualidade) levadas a cabo por instituições do espaço europeu (como o EUROSTAT ou o Eurydice) ou de mais amplo âmbito, como é o caso da OCDE (NORMAND; VINCENT-DALUD, 2012). Esta evolução na arquitetura dos sistemas educativos, e nas formas de regulação e coordenação, é necessariamente acompanhada de uma maior complexidade organizacional dentro dos estabelecimentos de ensino enquanto unidades territoriais. Estas novas injunções políticas pressupõem um conjunto de mudanças do ponto de vista da organização do trabalho escolar no seio dos estabelecimentos de ensino e das práticas dos docentes. Estes passam a exercer o trabalho num contexto de rede mais complexa de relações e enquadrado por hierarquias que exercem um maior escrutínio das práticas (RAYOU; VAN ZANTEN, 2004), procurando sobrepor-se paulatinamente a lógicas celulares (TARDIF; LESSARD, 2009) no exercício da atividade. Com efeito, a autonomização do funcionamento dos estabelecimentos de ensino é acompanhada do reforço da integração dos professores nos respetivos estabelecimentos de ensino e o seu maior envolvimento no respetivo projeto educativo enquanto documento central nesta dinâmica de transferência de autonomia. É o caso também do desenvolvimento dos órgãos de gestão intermédia enquanto estruturas de coordenação (LIMA, 2004), passando o trabalho desenvolvido nestas instâncias a representar uma parte importante do trabalho coletivo realizado nas escolas (BARRÈRE, 2005). Esta nova orgânica e evolução nas condições de exercício da atividade implica um alargamento da missão educativa do profissional de ensino, no sentido em que esta deixa de estar circunscrita à função tradicional, sedimentada no imaginário deste grupo ocupacional (MALET; BRISARD, 2005b), de instrução em contexto de sala de aula. É o pressuposto de que o professor não deve mais ser apenas um especialista da sua disciplina que está na base das medidas nas últimas décadas em torno da profissionalidade

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docente (MAROY, 2004), entendida como conjunto de competências atitudes e valores que compõem a atividade (NÓVOA, 1992). Contudo, estas mudanças com impacto nas formas de habitar o espaço escolar (BREVIGLIERI, 2004) não significam uma homologia entre as injunções na profissionalidade docente e aquelas que são as lógicas e discursos atuantes destes profissionais de ensino. Efetivamente, as reconfigurações do ponto de vista da profissionalidade docente que a modernização do sistema educativo pressupõe – no sentido de recomposição nos referenciais normativos orientadores do funcionamento desta instituição em prol do progressivo alojamento do paradigma da eficácia escolar quer no plano dos resultados escolares quantitativamente avaliados quer no plano da aquisição de competências necessárias para a integração no setor produtivo (THÉVENOT, 2011) – corresponde igualmente a uma modernização da profissão docente (BRISARD, 2005). Contudo, essa recomposição nos referenciais de justiça em que assenta o mandato docente não deixa de ser suscetível de gerar resistências ou lógicas e discursos atuantes plurais e potencialmente divergentes entre estes profissionais (RESENDE, 2010). Neste sentido, uma pluralidade de regimes de envolvimento e gramáticas de comunalidade (THÉVENOT, 2014) pode coexistir do ponto de vista das formas atuantes e conceções dos profissionais de ensino relativamente àquilo que deve ser o funcionamento do sistema educativo e dos estabelecimentos de ensino nas suas diversas dimensões, incluindo as formas de coordenação do trabalho entre os vários atores – potenciando situações de tensão, controvérsia e de conflito que podem emergir no espaço escolar enquanto arena pública (RESENDE; DIONÍSIO, 2005) – espaço atravessado por diferentes princípios de justiça e gramáticas publicamente disponíveis e suscetíveis de serem mobilizados pelos atores em operações de crítica e justificação.

2 O fazer o comum nos estabelecimentos de ensino: a organização do trabalho coletivo segundo diferentes gramáticas de comunalidade As políticas educativas dos últimos decénios nos países industrializados acarretam alterações na ótica da organização do trabalho nos estabelecimentos de ensino. No caso específico português, várias reformas visam justamente uma alteração aprofundada na governação escolar e enquadram-se nas transformações mais abrangentes relativamente à modernização do funcionamento dos sistemas educativos e dos estabelecimentos de ensino (BRISARD, 2005)1. Estas reformas têm também como pano de fundo a massificação da escolarização e consequente diversificação dos públicos escolares (fruto de orientações em matéria de política educativa). Nomeadamente, este novo quadro político e social demanda das escolas e do respetivo corpo docente uma reestruturação das formas de agir tendo em vista o cumprimento do desiderato de uma escola para todos (RESENDE, 2010) – numa perspetiva de inclusão enquanto horizonte normativo articulado igualmente com o propósito da eficácia no trabalho escolar (THÉVENOT, 2011).

1

No caso português, um importante marco é o regime jurídico da autonomia, administração e gestão das escolas de 2008 (PORTUGAL. DecretoLei nº 75/2008). Entre várias medidas, destaca-se nesta reforma a criação da figura do Diretor enquanto órgão unipessoal e que substitui o órgão colegial denominado de Conselho Executivo na gestão administrativa, financeira e pedagógica dos estabelecimentos de ensino. A sua criação visa “reforçar a liderança da escola e conferir maior eficácia” (Ibid., p. 2342) ao seu funcionamento, no desenvolvimento do projeto educativo, além também de maior responsabilização pelas decisões de gestão tomadas. Também se procede ao reforço da capacidade de autoorganização das escolas com a criação de novas estruturas de coordenação e supervisão pedagógica (os departamentos curriculares).

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Este conjunto de alterações acarreta consigo reconfigurações do ponto de vista da profissionalidade dos docentes e acomodamentos nos formatos de atuação nos estabelecimentos de ensino. Os hábitos profissionais (DUTERCQ, 2007), formas atuantes assentes em práticas arraigadas enquanto formas convencionais e na familiarização e acumulação de experiências no exercício da atividade (BREVIGLIERI, 2004; THÉVENOT, 2006), são agitados por estas alterações. A organização celular (TARDIF; LESSARD, 2009) no exercício da atividade – centrada na relação autónoma com os alunos em contexto de sala de aula, enquanto forma prevalecente e sedimentada na relação dos professores com a atividade – é posta à prova, contrariada, neste novo contexto organizacional. Efetivamente, estes novos modos de agir no espaço escolar – centradas no propósito de maior coordenação e reflexão sobre as práticas educativas e os resultados escolares obtidos – são suscetíveis de gerar diferentes entendimentos entre os profissionais de ensino relativamente às lógicas atuantes no exercício da atividade e, neste caso particular, nas formas de fazer o comum, de construir a comunalidade (THÉVENOT, 2014) relativamente à organização do trabalho no seio do estabelecimento de ensino. A Sociologia Pragmática, colocando o enfoque no modo como os indivíduos coordenam as suas ações e como as discussões, disputas e confrontações são resolvidas de forma pacífica (BOLTANSKI; THÉVENOT, 2006; RESENDE; MARTINS, 2017), constitui uma ferramenta analítica particularmente incisiva para perscrutar esta pluralidade de entendimentos. Uma abordagem de cariz praxeológico acarreta um conjunto de consequências do ponto de vista da mobilização das técnicas de recolha e análise de dados. Nomeadamente, o enfoque é colocado sobre as diferentes referenciais normativos (DODIER, 2005) que são evocados pelos atores sociais, em situação – sendo estes referenciais particularmente explícitos em situações de disputa e tensão, em que o status quo, a composição de regimes de envolvimento que rege uma determinada situação, surge colocado à prova a partir de modos de normatividade distintos (BOLTANSKI; THÉVENOT, 2006). A Sociologia dos envolvimentos e comunalidades (BOLTANSKI; THÉVENOT, 2006 [1991]; THÉVENOT, 2006; THÉVENOT, 2014) parte de conceção do ator social enquanto dotado de capacidade crítica e capacidade de acomodar os seus formatos atuantes a partir da forma como as diferentes situações estão configuradas – mediante investimentos em formas, que sustentam uma determinada arquitetura normativa que rege uma dada situação – e formar juízos sobre as mesmas, divergindo da conceção de ação marcada pela pertença a grupos sociais e disposições de ação associadas (THÉVENOT, 2007). Nomeadamente, identificam-se diferentes modos de envolvimento com o mundo, enquanto formatos cognitivos e avaliativos, e como os mesmos são operacionalizados em público enquanto gramáticas de comunalidade para argumentar e resolver conflitos. Cada regime de envolvimento conceptualizado difere entre si pelo tipo de bem que visa no envolvimento com o ambiente (determinando como ele é apropriado), bem como pelo seu potencial e alcance distinto na coordenação com outros atores. No regime de ação familiar, o bem visado é o à-vontade, numa relação intuitiva com os indivíduos e objetos que compõem esse ambiente por intermédio de uma familiarização gradual e dinâmica – sendo que, mais do que uma ação cristalizada em rotinas e ações habituais, a familiarização com o ambiente envolve uma acomodação contínua de forma a garantir o conforto nos movimentos e gestos (THÉVENOT, 2006). Se este tipo de envolvimento assenta em referenciais locais, pessoais, customizados na forma como o ambiente envolvente é apropriado, não favorece, pois, uma coordenação abrangente com atores não familiarizados com esses referenciais localizados.

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Caso distinto é o regime de envolvimento em plano. Este assenta na intencionalidade e capacidade de projeção no futuro, correspondendo o bem visado à satisfação gerada por uma ação realizada (THÉVENOT, 2006) – a satisfação do exercício (concretização) da vontade por um indivíduo dotado de autonomia e capaz de se projetar com sucesso no futuro (de concretização de um projeto autónomo e individual). O ambiente envolvimento é apropriado em função da execução do plano gizado, funcionalmente preparado em conformidade com esse plano de ação. Os elementos que compõem o ambiente apropriado segundo este regime constituem objetos, recursos estandardizados (ao invés de personalizados), publicamente disponíveis, mobilizáveis ao serviço dessa mesma ação-plano (THÉVENOT, 2007). Por fim, no caso do regime de justificação para o bem comum, são concebidos diferentes tipos de justificação enquanto reportórios de avaliação e ordenação de indivíduos (BOLTANSKI; THÉVENOT, 2006). Estas convenções de grande alcance socialmente sedimentadas são suscetíveis de serem mobilizadas nas operações de crítica e justificação dos atores para avaliar a sua grandeza e a dos outros. Cada ordem de grandeza constitui uma forma de generalização cognitiva e avaliativa mediante as quais indivíduos e coisas são apropriados – categorizados e ordenados – segundo a forma do bem comum (conceção do justo) que cada ordem de grandeza exprime. As diferentes ordens de grandeza encerram, pois, uma escala mediante a qual os indivíduos e objetos são avaliados em função de uma mesma conceção do bem comum que permite essa ordenação2 (BOLTANSKI; THÉVENOT, 2006). Estes regimes de envolvimento, enquanto formatos cognitivos e avaliativos, mediante a sua comunicação em disputas públicas, constituem por sua vez em gramáticas da comunalidade no plural – recursos, reportórios de avaliação (LAMONT; THÉVENOT, 2000) publicamente disponíveis para avaliação de argumentos e composição de comunidades políticas. São elas a gramática da justificação pública, gramática das afinidades próximas e gramática do indivíduo liberal em público (THÉVENOT, 2014). Na gramática das afinidades próximas, com base no regime de proximidade, a argumentação assenta na expressão de afinidades pessoais com lugares-comuns e investimento pessoal e emocional em objetos. Esta gramática assenta num entendimento partilhado que parte de experiências comuns na sua forma mais localizada – uma vivência intersubjetiva partilhada resultante de uma familiarização íntima, logo, circunscrita à prática dos indivíduos que participam desses lugares-comuns (THÉVENOT, 2014) No caso da gramática liberal, a argumentação assenta na expressão de interesses individuais. Estes são tidos como preferências, escolhas individuais publicamente disponíveis, sendo a resolução de disputas feita através de negociação entre as diferentes partes interessadas (THÉVENOT, 2014). No quadro desta gramática, os argumentos não são, pois, construídos sobre uma ideia expressa ou explícita de bem comum. Antes assentam na preservação do interesse ou preferência individual ou na valorização de uma pluralidade de opiniões e formas de agir como forma de abarcar as divergências e fazer o comum. Caso tal acordo não seja possível, a disputa é então suscetível de evoluir para a gramática da justificação pública. Justamente, no caso desta última gramática de comunalidade, a legitimidade dos argumentos assenta na referência a diferentes (e conflituantes) ordens de grandeza enquanto convenções de grande alcance que exprimem conceções do bem comum.

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Constituindo as ordens de grandeza construções históricas e sociais de especificação de formas do bem comum, são identificadas seis enquanto formas de apropriação (categorização e ordenação) de indivíduos e objetos: grandeza doméstica (avaliação a partir da tradição), de renome (visibilidade na opinião pública), mercantil (determinada por competição e valor monetário), industrial (entendida como eficácia e eficiência técnica), cívica (associada ao interesse geral e igualitarismo cívico) e inspirada (aferida pela criatividade ou diferença) (BOLTANSKI; THÉVENOT, 2006 [1991]).

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Ora, uma técnica desenvolvida em pesquisas anteriores (GOUVEIA, 2017; RESENDE, 2010), designada por questionário por cenários, constitui uma via particularmente frutífera de acesso aos juízos produzidos pelos atores sociais, juízos esses que assentam em diferentes regimes de envolvimento na ação e gramáticas de comunalidade (THÉVENOT, 2006, 2014). Numa breve descrição dos seus pressupostos metodológicos, perante uma narrativa dilemática, colocando em tensão diferentes formatos cognitivos e avaliativos suscetíveis de serem mobilizados, o inquirido é convidado a pronunciar-se sobre essa situação – hipotética, mas com sentido do real, em termos de plausibilidade e, neste caso, proximidade com o quotidiano profissional do respondente. Juntamente com a narrativa, é ainda apresentado um conjunto de 5 a 6 proposições enquanto hipóteses de saída do dilema apresentado. Ao inquirido é solicitado que identifique qual das proposições considera ser a mais justa e a mais injusta e, por fim, que redija uma justificação para a escolha de hipótese de resposta considerada mais injusta. Ora, um cenário em particular foi delineado para perscrutar diferentes gramáticas em confronto na forma como os docentes ajuízam a problemática das formas de fazer o comum no espaço escolar3. Neste caso em particular, o problema é colocado no plano de como os diferentes cargos de gestão intermédia (cargos de gestão e supervisão pedagógica) devem ser atribuídos e os moldes em que o processo decisório envolvendo a figura do Diretor da escola e o corpo docente que dirige4 se deve desenvolver. A narrativa em concreto apresentada situa-se temporalmente no início do ano letivo numa escola. O Diretor, procedendo à atribuição das direções de turma, comunica a uma docente, professora do quadro deste estabelecimento de ensino e com largos anos de experiência profissional, que pretende atribuir-lhe o cargo de coordenação de uma turma em particular – caracterizada por problemas disciplinares e de aproveitamento escolar. Na comunicação da sua intenção à docente em causa, o Diretor explicita os fundamentos da sua decisão (Quadro 1).

Os dados apresentados são referentes aos resultados do questionário aplicado no âmbito da pesquisa de doutoramento (GOUVEIA, 2017). O inquérito, composto ao todo por 8 cenários, foi aplicado a docentes do Ensino Básico e Secundário de 5 estabelecimentos do sistema de ensino público português. Como critério metodológico fundamental, foram selecionadas escolas com públicos escolares social e geograficamente contrastantes. Três escolas da amostra situam-se no distrito de Lisboa (duas na cidade capital e outra num município contíguo); uma situa-se a Norte do país, no distrito de Aveiro; e uma última situada no Interior, na região do Alto Alentejo. Ao todo, 112 questionários foram validados. 4 De forma a enquadrar a questão em torno das dinâmicas relacionais na atribuição de cargos de gestão intermédia em análise, procede-se a uma descrição sucinta da orgânica basilar dos estabelecimentos de ensino em Portugal, tal como definida pelo regime de autonomia, administração e gestão escolar (PORTUGAL. Decreto-Lei nº 75/2008). Ao Director, enquanto órgão unipessoal, cabe a gestão administrativa, financeira e pedagógica, assumindo também por inerência, para o efeito, a presidência do Conselho Pedagógico, órgão máximo de coordenação e supervisão pedagógica e orientação educativa em cada escola. No quadro dessas funções, ao diretor é conferido o poder de designar os responsáveis das principais estruturas de coordenação e supervisão pedagógica – o que inclui os Conselhos de Turma, que visam a coordenação pedagógica de cada turma de alunos. Para coordenar o trabalho em cada conselho de turma, o director designa, todos os anos letivos, um Director de turma de entre os membros docentes que integram esse órgão. Esta escolha, por determinação do mesmo decreto-lei, deve privilegiar os docentes pertencentes ao quadro do estabelecimento de ensino. Os quadros de pessoal docente são constituídos pela categoria relativa aos quadros de escola (pessoal docente permanentemente afetado ao estabelecimentos de ensino onde está colocado) e os quadros de zona pedagógica (pessoal docente que se destina a assegurar a satisfação de necessidades não permanentes dos estabelecimentos de ensino, ocorrendo a dotação anual de lugares segundo um determinado âmbito geográfico – zona pedagógica de pertença de cada docente –, de forma a conferir flexibilidade à gestão dos recursos humanos pelos membros do Governo responsáveis pela área da educação). 3

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Quadro 1. Questionário por Cenário O Diretor de uma escola reúne-se com uma das professoras com mais anos de experiência daquele estabelecimento dizendo que lhe vai atribuir a direção de uma turma em particular. Colega sua de longa data, esta professora encontra-se quase no final da carreira e com carga letiva reduzida. O diretor explicalhe que, tratando-se de uma turma em que os alunos apresentam problemas de comportamento e aproveitamento, é importante uma diretora de turma experiente, conhecedora da realidade da escola, capaz de realizar um trabalho de comunicação com os encarregados de educação e com autoridade entre os restantes professores da turma para um trabalho de coordenação no sentido de serem delineadas estratégias pedagógicas adequadas às necessidades daqueles alunos. Perante esta proposta, a professora mostra-se logo à partida desinteressada. “Desculpa, mas nesta fase da minha carreira já não estou para isso. Dá isso a um dos professores mais novos que têm mais paciência do que eu. Eu agora só quero dar aulas.” Das soluções expostas em baixo, indique a mais injusta e a mais justa. A. O diretor da escola deve atribuir à professora a direção da turma por ter mais anos de experiência, mesmo contra a vontade da professora uma vez que os seus argumentos são legítimos. B. A professora deve ter a prerrogativa negocial de poder escolher ter ou não a direção de turma, com o consentimento do Diretor da escola C. A responsabilidade de nomeação do diretor de turma deve pertencer ao grupo de professores da turma em questão, sem a intervenção do Diretor da escola. D. A direção de turma deve ser atribuída ao professor que se voluntariar para o efeito, com ou sem o assentimento do Diretor da escola E. A experiência profissional da professora é mais bem aproveitada pela escola se se cingir à prática letiva Justifique a razão para a escolha da opção mais injusta: Fonte: Gouveia (2017)

A escolha do diretor do estabelecimento de ensino, na justificação que elabora, assenta na referência ao bem comum (BOLTANSKI; THÉVENOT, 2006). Neste caso, a grandeza doméstica da docente, decorrente dos seus anos de experiência profissional, deve ser colocada ao serviço daquilo que é o interesse geral da escola – favorecendo concretamente uma resolução mais eficaz dos problemas de disciplina e aproveitamento da turma em causa pela sua capacidade de coordenação dos vários docentes (capacidade essa que decorre justamente do estatuto da docente no estabelecimento de ensino). Por seu turno, a docente evoca circunstâncias particulares para rechaçar a pretensão do diretor. Na argumentação que desenvolve, faz referência, não ao bem comum, mas aquilo que são os seus interesses individuais – apontando em concreto aquilo que é a atual “fase da carreira” em que se encontra, com os seus interesses focados exclusivamente na atividade letiva (em detrimento do desempenho de cargos de gestão intermédia).

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Ora, o objetivo é então o de analisar de que forma os inquiridos se posicionam perante a presente situação hipotética, aventando para tal diferentes possíveis gramáticas para resolver o diferendo – isto é, de que forma o diretor da escola deve lidar com a questão da atribuição do cargo de direção de turma e as objeções apresentadas pela docente. A elencagem das justificações dos inquiridos organizadas em categorias permite-nos um primeiro vislumbre do mosaico de perspetivas em confronto e respetivas gramáticas que as norteiam relativamente ao modo como a comunalidade deve ser construída nos estabelecimentos de ensino quanto à questão da distribuição dos cargos de direção de turma em particular. Os resultados apontam, nomeadamente, para uma tendência de polarização nos entendimentos apresentados5. Por um lado, do total de respondentes, 23,4% consideraram que O Diretor deve atribuir/impor a direção de turma à professora. Num juízo convergente, 19,8% dos inquiridos considera que A decisão não deve ser entregue aos professores de cada turma/a decisão final deve caber ao diretor. Com um ponto de vista distinto surgem os inquiridos que consideram que A professora deve ter a prerrogativa na escolha/Diretor deve aceitar a opção (18,9%). Paralelamente, 15,3% consideram que O Diretor deve procurar chegar a um acordo com a professora. Ora, uma análise de justificações enquadradas em cada uma destas categorias permite uma aferição mais pormenorizada das gramáticas subjacentes às perspetivas veiculadas.

2.1 A gramática do bem comum: o interesse geral como bem visado No caso da primeira categoria, O Diretor deve atribuir/impor a direção de turma à professora, as respostas dos inquiridos relevam o predomínio da gramática da justificação pública (BOLTANSKI; THÉVENOT, 2006). Nomeadamente, nas argumentações desenvolvidas pelos inquiridos, predomina a referência àquilo que é o interesse geral – neste caso, do estabelecimento de ensino – manifestado sob diferentes conceções do bem comum, numa elevação na generalidade mediante princípios gerais de avaliação, por contraposição àquilo que são interesses individuais em jogo. É o que ilustram as seguintes justificações. “Os motivos advogados pelo diretor justificam a sua opção de nomear o docente em causa, tendo em conta o interesse coletivo (os alunos, encarregados de educação e restantes docentes) e os objetivos da instituição escolar, bem como os supostos benefícios pedagógicos, de caráter prioritário, que daí adviriam. Cingir-se à prática letiva seria desaproveitar a vasta experiência profissional da docente.” (Q10: Professor de Filosofia; 28 anos de atividade; Quadro de Nomeação Definitiva) “Esta situação é comum nas escolas, sendo que os Diretores raramente obrigam o colega a ficar com a turma. Uma DT de uma turma problemática deve ser atribuída à pessoa com mais experiência em DT problemáticas, ou seja, não é por ter mais anos de serviço que a professores estará habilitada a ser DT. Mas a experiência no ensino não pode ser razão para estar isento de ter responsabilidades na escola menos agradáveis. Os colegas mais velhos não são especiais, devem fazer as mesmas tarefas que os menos experientes.” (Q47: Professor de Informática; 12 anos de atividade; Quadro de Nomeação Definitiva) 5

Devido às restrições de espaço, privilegia-se neste texto as categorias mais representativas do ponto de vista da percentagem de inquiridos cujas justificações nelas se inserem. Assim, cinco categorias ficam fora da análise: “Os docentes não devem limitar-se à prática letiva/devem estar disponíveis para cargo de DT” (12,6%); “A atribuição da direção de turma não deve depender de voluntarismos” (6,3%); “A direção de turma deve ser atribuída aos professores que se voluntariarem” (1,8%); “O Diretor não deve impor + Os professores da turma devem poder eleger entre si” (0,9%); “Deve ser cumprido o que está previsto no regulamento” (0,9%).

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Na valoração da situação desenvolvida pelo docente de Filosofia, a partir do mundo cívico, é engrandecido o “interesse coletivo”, consubstanciado neste caso no conjunto dos stakeholders do estabelecimento de ensino (os alunos e pais enquanto utentes do serviço prestado, além dos restantes pares); por outro, materializado naquilo que são os “objetivos da instituição escolar” e os “benefícios pedagógicos”, e que devem ter um peso “prioritário” na decisão a tomar pelo diretor em prejuízo de quaisquer interesses particulares. É deste modo que a experiência profissional da docente em questão é colocada por parte do Diretor ao serviço daquilo que é a vontade geral. O mesmo interesse coletivo como bem cívico é também aludido pelo docente de Informática, mas com enfoque particular nas responsabilidades da docente perante aquilo que são as obrigações constituintes do seu mandato enquanto profissional de ensino (HUGHES, 1993). A justificação da inquirida inicia-se com a denúncia daquilo que considera ser a situação que frequentemente presencia, referindo que amiúde os diretores não fazem uso da prerrogativa de decisão soberana (“raramente obrigam o colega a ficar com a turma”). Contrariando este padrão de atuação observado, e numa perspetiva cívica, é sublinhada a questão da igualdade entre os docentes enquanto princípio de justiça prevalecente, sem a interferência de elementos do mundo doméstico (como é o caso particular da idade/experiência profissional enquanto fator conferidor de privilégios, vantagens, no exercício de cargos de supervisão ou coordenação). É a igualdade de responsabilidades e tarefas que tem centralidade no juízo construído – num plano, pois, de igualdade cívica entre mais velhos e mais novos. Por outro lado, e como decorrência desse juízo assente no bem comum, fundamentações como aquela que é apresentada pela docente no cenário – solicitando à figura do diretor a ponderação de subjetividades dos docentes, como a apreciação de tarefas que avalia como “menos agradáveis” – é expressamente tida pela inquirida como improcedente. É este enfoque naquilo que são as obrigações que integram o mandato dos professores enquanto profissionais de ensino, alicerçando igualmente a sua perspetiva na gramática do bem comum, que surge vincado por outros inquiridos. As próximas justificações transcritas ilustram este entendimento. “Deverá caber ao Diretor da escola a delegação deste cargo, não interessando o tempo de serviço do docente, a manifestação de interesse ou não do professor, o seu jeito para exercer o mesmo. O cargo do Diretor de Turma é uma obrigação de cada pessoa que escolheu lecionar. O jeito adquirese, trabalhando.” (Q88: Professora de Português; 19 anos de atividade; professora contratada) Um profissional no ativo não pode ser visto como diminuindo ou reduzido nos seus deveres esteja no início ou no final da sua carreira. A argumentação do Diretor tem sentido desde que enquadrada num plano pedagógico da escola e aí a “negociação” da professora não tem sentido. Se a professora está num processo de alheamento e cansaço, também estaria em processo de degradação da sua prática letiva (opção E). (Q86: Professor de Filosofia; 39 anos de atividade; Quadro de Nomeação Definitiva)

Na avaliação que entende que deve ser feita por parte do diretor do estabelecimento de ensino, a docente de Português arreda o “tempo de serviço” enquanto fator oriundo do mundo doméstico, depurando a prova que deve reger a situação (BOLTANSKI; THÉVENOT, 2006). Por outro lado, no juízo crítico que elabora, afasta igualmente aquilo que são os circunstancialismos de cada docente – como é o caso particular do “interesse” manifestado pelo cargo, enquanto plano (THÉVENOT, 2006) para se envolver ou apreciações subjetivas relativamente ao “jeito” para o exercício do cargo. É, nomeadamente, a “obrigação profissional”, numa perspetiva cívica, que deve sobrepor-se no juízo que é feito da situação, sendo, dessa forma, o exercício do cargo de direção de turma uma incumbência extensível por igual a todos os docentes. 743 | VÉRTICES, Campos dos Goytacazes/RJ, v.23, n.3, p. 734-755, set./dez. 2021


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Num entendimento convergente, a docente de Filosofia releva o enfoque do seu juízo naquilo que são os “deveres” que integram o mandato profissional – e independentemente, numa ótica de igualdade cívica, da posição na carreira de cada professor. É justamente este entendimento que torna o pressuposto de “negociação”, enquanto forma de resolução de diferendos próprio do regime liberal (ERANTI, 2018), algo expressamente descartado por parte da inquirida, encarando como um dispositivo relacional que “não tem sentido” nesta situação – isto é, um elemento espúrio no quadro da gramática que deve regular a questão da distribuição dos cargos de gestão intermédia e que, assentando no interesse coletivo como forma do bem comum, é alheia a interesses individuais. É justamente este elemento da negociação como forma atuante na abordagem a adotar por parte do diretor que surge descartado por outros inquiridos. “A escola deve ser diretiva e nomear para cargos (DT) os docentes que a direção pensar que poderão desempenhar melhor o cargo (tenham mais perfil), independentemente dos anos de serviço.” (Q95: Professora de História; 27 anos de atividade; Quadro de Nomeação Definitiva) “Porque, há certas tarefas, funções e cargos, que devem ser atribuídos por nomeação, de acordo com o perfil mais adequado, sem negociações. Tudo isto, de forma a garantir que esse cargo é bem desempenhado e é a melhor forma de a escola prestar o melhor serviço à comunidade.” (Q99: Professor de Física e Química; 22 anos de atividade; Quadro de Nomeação Definitiva)

Em prol daquilo que é o interesse coletivo, as decisões devem ser tomadas de forma “diretiva” por parte da direção, tendo como referência o bem comum – logo, alheia a vontades ou preferências pessoais – e em função de um “perfil” delineado para a execução do cargo em questão. Na prossecução daquilo que é o objetivo cívico do estabelecimento de ensino de prestar “o melhor serviço à comunidade”, a decisão na atribuição dos cargos de gestão intermédia deve, pois, ser feita à parte de quaisquer processos negociais (“sem negociações”). Numa perspetiva convergente surgem igualmente as justificações aventadas pelos inquiridos que exprimem a ideia de que A decisão não deve ser entregue aos professores /a decisão final deve caber ao diretor. Neste caso, o enfoque na avaliação que é feita do cenário recai particularmente na questão da importância da centralização da decisão na figura do diretor. É o caso das seguintes justificações. “A atribuição do cargo de D.T. cabe ao diretor da escola uma vez que este terá uma visão holística do estabelecimento que dirige. Poderá, no entanto, ouvir os colegas que já conhecem as características dos alunos e possam acrescentar mais informação sobre a turma para, em conjunto, encontrarem uma solução mais adequada.” (Q44: Professora de Inglês; 20 anos de atividade; Quadro de Nomeação definitiva destacada) “A direção deve ser responsável pela nomeação dos diretores de turma, acatando o perfil delineado pelo Conselho Pedagógico para essa função.” (Q68: Professora de Artes Visuais; 30 anos de atividade; Quadro de Nomeação Definitiva)

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É patente na primeira inquirida o entendimento de que na conduta do diretor é uma “visão holística” – considerando aquilo que são os interesses do conjunto da escola enquanto comunidade, e não interesses privados de atores – que deve presidir aos seus processos decisórios. Contudo, nessa mesma lógica cívica, a docente abre a possibilidade de auscultação dos docentes, num processo de que deve ser feito “em conjunto” com o corpo docente (recolhendo “informação” para tomar uma decisão avisada), mas sempre em função daquilo que é a “solução mais adequada” do ponto de vista do interesse coletivo como bem visado. Num sentido convergente, a docente de Artes Visuais salienta a responsabilidade do Diretor de respeitar as orientações e dar cumprimento àquilo que é a vontade coletiva (BOLTANSKI; THÉVENOT, 2006), expressa no perfil delineado para o exercício do cargo de direção de turma por aquele que é o órgão coletivo de gestão pedagógica (logo, um respaldo que reforça a legitimidade cívica das decisões tomadas) do estabelecimento de ensino – o Conselho Pedagógico. Outro grupo de docentes, focando-se também na centralização da decisão do diretor enquanto elemento soberano, fundamentam particularmente as suas justificações na ordem de grandeza cívica numa perspetiva de equidade entre os vários professores que compõem o corpo docente de uma escola. “Qualquer atribuir de cargo deve ter o conhecimento do diretor da escola para não haver abuso de poder por parte de certos professores ou grupos disciplinares.” (Q62: Professora de Matemática; 16 anos de atividade; Quadro de Nomeação definitiva destacado) “Julgo que a Direção da escola tem um papel importante na distribuição dos cargos de gestão intermédios, sobretudo para garantir o equilíbrio e a eficácia dessa distribuição.” (Q81: Professor de Filosofia; 38 anos de atividade; Quadro de Nomeação Definitiva)

Comum aos dois inquiridos está o entendimento de relevar a importância de centrar as decisões na figura do diretor de escola de forma a impedir o “abuso de poder” por parte de professores que possam fazer uso de elementos do mundo doméstico (como relações pessoais e de amizade para influenciar os processos decisórios), assegurando dessa forma uma distribuição igualitária e isenta das diferentes tarefas pelo conjunto do corpo docente. Esta figura deve ser, assim, o garante último da equidade cívica (naquilo que é designado como “equilíbrio” na distribuição dos cargos de gestão intermédios), mas também em prol da “eficácia” do ponto de vista de uma eficiência industrial no processo de tomada de decisão – numa articulação compósita de princípios do bem comum a estruturar o juízo construído (BOLTANSKI; THÉVENOT, 2006). Por fim, identificam-se ainda inquiridos que manifestam entendimentos em que a importância da lógica conexionista (BOLTANSKI, 2001) no exercício dos poderes decisórios do diretor de escola surge particularmente evidenciada. É o que as duas próximas respostas ilustram. “A opinião dos restantes professores do conselho de turma poderá ser ouvida e até preponderante na opção do diretor, mas deverá ser sempre este a fazer a escolha final, tendo em conta o melhor para a turma.” (Q77: Professor de Educação Física; 14 anos de atividade; Quadro de Nomeação definitiva destacado) “A escolha do papel de diretor de turma deverá ser da responsabilidade da direção ou do grupo de coordenadores de turma, mas que deverão ser diretores de turma aqueles professores que gostam de ser ou que tem perfil para o serem. (Q105: Professora de Matemática; 14 anos de atividade; professora contratada)

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No caso do docente de Educação Física, é colocada a hipótese de o Diretor consultar o conselho de turma, podendo mesmo este órgão ser “preponderante” na opção tomada pelo diretor. Contudo, a ele deve estar entregue o privilégio de “fazer a escolha final”, tendo como referência o interesse coletivo – materializado neste caso naquilo que é o interesse da turma (“o melhor para a turma”) em questão. Numa lógica igualmente conexionista, o diretor não deve dirigir os docentes mediante lógicas atuantes mecânicas ou autoritárias próprias de um chefe hierárquico, procurando antes “ouvir” e considerar as diferentes visões e opiniões – pondo essas qualidades comunicacionais nas relações face a face ao serviço do bem comum (BOLTANSKI, 2001). Por outro lado, no caso da segunda inquirida, docente de Matemática, não deixando igualmente de relevar a centralização das decisões segundo a hierarquia (numa lógica doméstica) na forma como avalia a situação, aventa igualmente que devem exercer a responsabilidade do diretor de turma os professores que manifestem “perfil” para exercer o cargo em causa enquanto projeto individual – sendo nessa capacidade do diretor de atentar às diferenças entre colaboradores do ponto de vista das formas distintas de envolvimento na profissão (mais do que apenas atender a preferências e interesses individuais) e construir e dinamizar redes relacionais em prol de um projeto que o bem comum é igualmente servido (BOLTANSKI, 2001).

2.2 A gramática dos indivíduos num público liberal: a legitimidade do interesse individual Se é transversal o predomínio da gramática da justificação pública na estruturação de todo o conjunto de perspetivas anteriormente apresentadas, num entendimento distinto surgem os inquiridos que consideram que A professora deve ter a prerrogativa na escolha/Diretor deve aceitar a opção. Neste caso, ressalta o contraste com as justificações anteriores aventadas do ponto de vista do bem que é visado (THÉVENOT, 2006). Nomeadamente, nas justificações não surge identificado um princípio superior comum (como o interesse coletivo, hierarquia, a eficácia ou a dinamização de redes/projetos) relativamente à questão em torno da atribuição dos cargos de gestão intermédia. Se nas justificações públicas o juízo sobre uma determinada situação alude a uma conceção do bem comum – que parte daquilo que é o interesse da comunidade (a vontade geral), sobrepondo-se ao interesse individual (BOLTANSKI; THÉVENOT, 2006) – outras justificações recorrem a um vocabulário de motivos (TROM, 2001) isento de uma mesma conceção. Esta ideia pode ser primeiramente ilustrada pela seguinte justificação de uma docente de Matemática. “Não deverá ser atribuída a direção de turma à professora, apesar dos seus anos de experiência. Convidar a professora a exercer o cargo e saber ouvir os seus argumentos, sim. A Diretora da Escola deveria saber ouvir e compreender a razão.” (Q15: Professora de Matemática; 25 anos de atividade; Quadro de nomeação definitiva)

Na sua exposição, a inquirida começa por rejeitar a hipótese de imposição do cargo em causa à docente, devendo também fatores de avaliação como os “anos de experiência” (enquanto critério de justiça doméstico para resolução do problema) ser alheios ao processo decisório do diretor. Ao invés, cabe ao diretor “saber ouvir e compreender a razão” da docente (aceitando aquilo que é a sua vontade), não obstante os fundamentos não se apoiarem de forma expressa ou explícita em nenhuma noção do bem comum que deve sobrepor-se à situação. De resto, a proposta para assumir o cargo deve, no entender da

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inquirida, ser apresentada na forma de convite, logo, passível de ser recusado pela docente em função daquilo que forem os seus interesses e vontade individuais. Ora, esta perspetiva ancorada na gramática de indivíduos num público liberal (THÉVENOT, 2014) – não construída sobre uma ideia expressa do bem comum, mas na expressão de interesses próprios ou na pluralidade de opiniões/preferências dos indivíduos –, materializa-se naquilo que é correntemente expresso pelos inquiridos como o respeito ou acatamento por parte do Diretor do estabelecimento de ensino por aquilo que é a vontade individual do docente, e que é transversal a várias justificações aventadas. É o caso do próximo conjunto de inquiridos. “Professor contrariado, trabalho dobrado” (Q24: Professora de Português; anos de atividade não especificados; Quadro de Nomeação Definitiva) “Trabalhar contrariado, mesmo havendo capacidade, mas que no momento não é o mais importante, é contraproducente.” (Q87: Professor de Educação Física; 21 anos de atividade; Quadro de Nomeação Definitiva) “Se o diretor atribuir à prof. a DT esta pq está “contrariada” provável/ não desempenhará as fçs pretendidas pelo Dt. A professora estar contrariada significa que apesar de ter + anos de experiência poderá não se sentir à vontade para desempenhar a função de DT, por outro lado, não poderá criticar mas contribuir para o melhor desempenho do DT eleito em conselho de turma.” (Q82: Professora de Matemática; 18 anos de atividade; Quadro de Nomeação Definitiva)

Sob a máxima “Professor contrariado, trabalho dobrado”, mais do que uma noção de bem comum (ou uma articulação entre diferentes expressões do bem comum) que deve presidir à nomeação dos docentes para o exercício de cargos como o de direção de turma, o que sobressai em todos estes excertos é a ideia central de contrariar a vontade do docente como elemento objetado e enquanto fundamentação legítima na resolução da situação. A consequência da não conceção de prerrogativa ao professor reside igualmente, não numa perspetiva daquilo que é o interesse geral, do estabelecimento de ensino enquanto comunidade, mas daquilo que são os efeitos sobre a figura individual do docente em causa – que irá concretamente exercer o cargo “contrariado” ou não exercendo com o necessário “à vontade”. Nota ainda para, no caso da segunda inquirida, o facto de a “capacidade” da docente para o exercício do cargo ser relegada para segundo plano no juízo que é feito da situação (“não é o mais importante”). A preparação, decorrente dos anos de experiência, enquanto critério de avaliação da situação a partir de uma noção do bem comum é secundarizado em favor da subjetividade da docente do cenário. Esta mesma perspetiva daquilo que são os efeitos da atribuição dos cargos de gestão intermédia no envolvimento individual de um professor (a sua motivação) é patente nas justificações de outros inquiridos. “Não me parece correto obrigar a professora a aceitar um cargo que ela considera desinteressante com imensas diligências burocráticas e que transformou o Diretor de Turma num assistente social. Devem envolver-se na coordenação pedagógica auxiliando o diretor turma, sem assumir esse papel.” (Q28: Professora de Biologia e Geologia; 30 anos de atividade; Quadro de Nomeação Definitiva)

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O interesse individual como justificação: a gramática liberal na construção da colegialidade dos professores do ensino Básico e Secundário Luís Gouveia “Muito embora haja muita experiência profissional, o ser contra vontade pode pôr em causa o sucesso do seu desempenho profissional. A professora irá desempenhar o seu papel, mas com um empenho mais reduzido podendo haver outro profissional mais ajustado para o caso, nessa situação deveria ter havido ponderação.” (Q40: Professora de Economia e Contabilidade; 29 anos de atividade; Quadro de Nomeação Definitiva) “Atribuir tarefas a um professor em fim de carreira contra a vontade deste apenas o fará desmotivar-se em relação à escola e prejudicará o seu rendimento.” (Q41: Professora de História; anos de atividade não especificado; professora contratada)

No centro da avaliação que é feito do cenário por este conjunto de inquiridos, o que é relevado é a apreciação individual que a docente pode fazer do cargo (o seu carácter “desinteressante”, que decorre das “diligências burocráticas” e que, pejorativamente, o aproxima da função de “assistente social”) e que surge apresentado como fundamento que deve ser atendível por parte do Diretor na tomada de decisão. Neste sentido, agir “contra a vontade” da docente é contestado, não do ponto de vista daquilo que é o bem da comunidade escolar, mas dos seus efeitos na ótica da individualidade da docente – em particular, a redução no seu empenho ou desmotivação relativamente ao trabalho escolar e consequente decréscimo de rendimento. No caso dos inquiridos que preconizam que O Diretor deve procurar chegar a um acordo com a professora, o que predomina na argumentação é a resolução do dilema apresentado mediante a figura da negociação entre as partes envolvidas, procurando dessa forma acomodar as diferentes perspetivas e interesses em jogo. É o que ressalta dos próximos excertos apresentados. “Considero que o fator negocial é sempre favorável ao bom entendimento entre profissionais, apesar de ser uma das competências do diretor o fator de decisão final.” (Q2: Professor de Artes Visuais; 25 anos de atividade; Quadro de Nomeação Definitiva) “Deve existir uma conversa para chegar a um acordo, ouvindo e discutindo os pontos de vista das partes envolvidas.” (Q3: Professora de Inglês; 21 anos de atividade; Quadro de Nomeação Definitiva)

O predomínio da gramática liberal na forma de ajuizar a situação é patente na sugestão manifestada para a resolução do conflito. Isto é, cabe às diversas partes negociar, discutir as diferentes opiniões enquanto “pontos de vista” igualmente válidos (ERANTI, 2018; THÉVENOT, 2014). Assim, na tomada de decisão do diretor (e não obstante caber a este “o fator de decisão final”), devem ser tidas em conta as circunstâncias particulares dos docentes, visando uma articulação entre os diferentes interesses particulares, tendo em vista a acomodação daquilo que são as situações individuais e as diferentes subjetividades. Nesta discussão não está, pois, em causa a deliberação em torno dos méritos relativos de diferentes princípios abstratos que devem reger a situação, mas a apreciação das diferentes circunstâncias individuais – e como determinada decisão afeta os atores no plano particular (ERANTI, 2018). Outra docente manifesta de forma mais desenvolvida aquela que entende dever ser a gramática dominante na forma como a questão é abordada por este conjunto de inquiridos.

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O interesse individual como justificação: a gramática liberal na construção da colegialidade dos professores do ensino Básico e Secundário Luís Gouveia “Não podemos generalizar, sem conhecer a professora e a turma em causa, pois não é apenas o tempo de serviço que lhe aumenta as competências nesta área. É importante possuir um perfil adequado a esta função extremamente exigente, sendo essencial a correta interligação entre EE e professores da turma, assim como o bom relacionamento do grupo-turma. Assim, trata-se de uma função que não deve ser imposta, mas negociada entre o professor e a direção.” (Q5: Professora de Física e Química; 19 anos de atividade; Quadro de Nomeação Definitiva)

A docente refere exatamente a importância de uma não generalização, no sentido de a avaliação da situação se apoiar na gramática de justificação pública, sem pretensão a validade geral mediante o acordo em torno de um princípio superior comum, ou compromisso entre princípios (BOLTANSKI; THÉVENOT, 2006). Ao invés, é a gramática liberal que preside ao juízo que tece, entendendo que a atribuição da direção de turma, tratando-se esta “função extremamente exigente”, deve ser feita em função de um “perfil adequado”, mas no pressuposto fundamental de uma decisão que “não deve ser imposta, mas negociada entre o professor e a direção”, enquanto regime de envolvimento. E é justamente através desta lógica negocial, articulando as diferentes vontades individuais, que a inquirida eleva a sua perspetiva na generalidade enquanto forma de construção da comunalidade (ERANTI, 2018). Do ponto de vista dos fundamentos apresentados para o forjamento de um acordo ad hoc, surge igualmente de forma explícita nas justificações os circunstancialismos de carácter individual que devem pesar na decisão do diretor de escola. É o caso do último conjunto de justificações. “O Diretor da Escola é o responsável pela atribuição das DTs. Há que ter em conta que a docência é uma atividade muito desgastante e uma D.T, com as características apontadas, irá agravar o bom desempenho de um professor que já não é novo.” (Q56: Professora de Português; anos de atividade não especificado; Quadro de Nomeação Definitiva) A direção de turma é um cargo de caráter obrigatório. Porém é aconselhável que o diretor entenda as razões, o cansaço, a desmotivação que uma docente apresenta à beira da aposentação. (Q107: Professor de Português; 21 anos de atividade; Quadro de Nomeação Definitiva)

Reconhecendo a primeira inquirida a competência do Diretor na atribuição dos cargos de gestão intermédia, o enfoque, no entanto, é colocado na condição individual do docente em questão. A circunstância de ser um profissional que “já não é novo”, a que acresce o carácter “desgastante” da atividade docente, é aventada como elemento que deve ser preponderante na decisão. Também no caso do segundo inquirido, reconhecendo que a direção de turma integra aquilo que é o conjunto de competências que compõe a atividade docente, elenca, contudo, todo o conjunto de particularismos que devem pesar na decisão do diretor (nomeadamente, “o cansaço”, a “desmotivação” e a proximidade da “aposentação”). É patente, neste sentido, o predomínio da gramática liberal em ambos os juízos construídos, sendo que a decisão do diretor deve ser tomada valorando como ela vai afetar as circunstâncias individuais do docente – não apesar da subjetividade dessas circunstâncias, mas sim por causa dela mesma (ERANTI, 2018). É a articulação dos diversos interesses privados, e não a discussão em torno de princípios a um nível geral, que se assume preponderante na avaliação feita da situação tendo em vista da resolução do diferendo.

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3 Entre a articulação dos interesses individuais e o bem comum na construção da comunalidade: a pluralidade de formas identitárias profissionais em questão As dinâmicas reformativas que ocorrem nos últimos decénios nos sistemas educativos assentam no predomínio da gramática industrial em articulação com a gramática mercantil – orientadas pelo horizonte da eficácia do ponto de vista dos resultados escolares (quantificáveis e mensuráveis) obtidos dos alunos, a que acresce a introdução lógicas concorrenciais na relação entre estabelecimentos de ensino e uma estruturação dos currículos mais próxima daquelas que são as necessidades do mercado de trabalho (RESENDE, 2010; THÉVENOT, 2011). Esta mudança no programa de justiça escolar (DEROUET; DEROUET-BESSON, 2009) tem um conjunto de implicações do ponto de vista da reorganização dos sistemas educativos à escala nacional e na profissionalidade docente, embora pesando as diferenças e os fenómenos de hibridização em função das tradições políticas de cada país (DUMAY, 2010). Este contexto fundamenta diretivas políticas que preconizam uma reestruturação nas formas de organização do trabalho nas escolas, procurando reforçar particularmente os mecanismos de colegialidade. Essa reestruturação serve ao propósito último de uma maior coordenação entre os docentes e reflexão conjunta em prol da eficácia do ponto de vista dos resultados escolares obtidos dos alunos e o combate cívico às desigualdades escolares (com consequências ao nível das desigualdades sociais) (MALET; BRISARD, 2005a; RESENDE, 2010). Importa, no entanto, ter em conta que as mudanças que ocorrem não são apropriadas de forma semelhante entre os docentes, como é o caso particular dos entendimentos relativamente à organização do trabalho nos estabelecimentos de ensino (BARRÈRE, 2005). Verifica-se, nomeadamente, a coexistência de lógicas e discursos atuantes distintos do ponto de vista das formas de envolvimento no respetivo estabelecimento de ensino e nas conceções relativamente à atividade (RAYOU; VAN ZANTEN, 2004). No quadro desta pluralidade de formas de habitar o espaço escolar e de envolvimento na atividade docente, e tendo como pano de fundo o atual contexto de ensino e a gramática industrial que predomina ao nível das políticas, diferentes regimes de envolvimento e gramáticas de comunalidade são igualmente suscetíveis de serem operacionalizadas por estes profissionais e constituem uma base de crítica e resistência às evoluções que ocorrem nos sistemas educativos. Ora, além do regime de justificação pública (BOLTANSKI; THÉVENOT, 2006), as argumentações desenvolvidas pelos docentes em torno destas evoluções podem também não ser apenas orientadas expressamente para o bem comum (ERANTI, 2018). Nomeadamente, a gramática liberal afigura-se um dispositivo crítico suscetível igualmente de ser mobilizado pelos docentes na apreciação quanto aos modos de fazer o comum nos estabelecimentos de ensino. Nas alegações produzidas por estes profissionais, verifica-se como a gramática dos interesses individuais pode ser tão pública como a gramática das ordens de grandeza plurais e suscetível de adquirir relevância a nível societal e no seio das organizações (ERANTI, 2018), como é o caso particular da instituição escolar. E se, no caso desta gramática de comunalidade, as formas específicas de conceber a atividade docente são entendidas como opções individuais igualmente válidas, ela pode, neste caso em particular, servir de base crítica ou justificação para a preservação de lógicas celulares no exercício da atividade (TARDIF; LESSARD, 2009).

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Ilustrativo desta ideia é o discurso de uma docente de Português entrevistada quando discorre relativamente à forma como concebe a sua atividade do ponto de vista da relação com os pares e com o conjunto dos membros do espaço escolar enquanto organização6: Hoje em dia, pouco se trabalha em pares. O trabalho de pares praticamente não existe, ou existe muito pouco. O que temos que fazer é mais o trabalho burocrático; temos que ir às reuniões de grupo, tomar as informações, etc. Agora, a nível de trabalho de pares, eu não sinto nada. E porquê, na minha perspetiva há uma explicação: só preciso de saber o que é para dar, qual é o manual, qual é a planificação. […] O que me preocupa na escola são os alunos; apenas os alunos, mais nada. É para isso que me pagam, para ensinar. O resto, tenho que cumprir obviamente com as minhas obrigações, mas o professor é assim, faz o seu trabalho e vai para casa. […] eu própria sou muito individualista no meu trabalho. E a maioria dos professores é, é assim. (Professora de Português; 20 anos de atividade; docente contratada)

No exercício descritivo que faz da forma de atuar a sua relação com os pares, sobressai em primeiro lugar no discurso da docente o predomínio de um envolvimento no trabalho coletivo que surge eminentemente ligado àquilo que intitula de “trabalho burocrático”, e implicitamente perspetivado como uma sobrecarga (MALET; BRISARD, 2005b) – ligado à obtenção daquilo que são as informações indispensáveis para a “planificação”, de definição de metas de aprendizagem, no quadro de um regime de envolvimento em plano (THÉVENOT, 2006), do trabalho para o ano letivo e alinhamento dos conteúdos programáticos entre os docentes. À parte desta componente do trabalho colegial, o cenário é de um estabelecimento de ensino em que “pouco se trabalha em pares” – ao arrepio, pois, daquilo que é o espírito das orientações em matéria de política educativa e que incide sobre os modos de coordenação entre docentes nos estabelecimentos de ensino. Na fundamentação que a inquirida apresenta para este status quo, mais do que uma noção do bem comum relativamente à forma como a comunialidade deve ser construída, predomina no seu discurso aquilo que são os seus interesses e a sua visão individual do ponto de vista da forma de entender o exercício da atividade e que assenta numa ideia fundamental: “O que me preocupa na escola são os alunos”. Subjacente a este postulado está eminentemente a perspetiva da sala de aula como santuário (DUBET, 2002) – concebendo-a como espaço de exercício isolado da atividade. E é com base nesse entendimento e nessa preferência “individualista”, como caracteriza, na forma de envolvimento da profissão, na relação com os pares e com o estabelecimento de ensino enquanto organização, que reside a base da sua fundamentação. De resto, estas lógicas atuantes, pela sua experiência, revelam-se ainda predominantes entre este grupo ocupacional (“a maioria dos professores é assim”). Ora, a análise empírica empreendida neste texto pretende ilustrar o modo como as argumentações assentes nos interesses individuais podem igualmente ser mobilizadas nas discussões no espaço público, a par com as argumentações assentes na expressão da vontade geral (ERANTI, 2018). Enquanto modalidade de fabricação do comum, a gramática liberal surge mobilizada, neste sentido, como reportório cultural de avaliação (LAMONT; THÉVENOT, 2000) tendo em vista de acomodação de diferenças no seio do corpo docente de um estabelecimento de ensino enquanto comunidade. A comensurabilidade de bens visados que pressupõe entre aqueles que coabitam o espaço de trabalho consubstancia uma valorização da 6

O excerto é recolhido do acervo de material empírico pertencendo à mesma pesquisa de doutoramento (GOUVEIA, 2017). Um total de 40 docentes foram entrevistados – 8 em cada um dos 5 estabelecimentos de ensino do sistema educativo público português que integram a amostra da referida pesquisa.

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pluralidade de entendimentos, um aglomerado de preferências publicamente disponíveis que podem ser adotadas, negociadas ou objeto de acordo entre os docentes, no contexto de uma profissão marcada pela coexistência de formas identitárias profissionais (DUBAR, 1991) plurais e compósitas enquanto matriz de uma pluralidade de lógicas e discursos atuantes (GOUVEIA, 2017; RESENDE, 2010). Esta gramática favorece, assim, a neutralização dos conflitos que podem emergir da sobreposição de um bem superior comum (STAVO-DEBAUGE, 2014) nas formas de conceber o exercício da atividade docente – e reduzindo os diferentes bens a preferências individuais publicamente disponíveis.

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O interesse individual como justificação: a gramática liberal na construção da colegialidade dos professores do ensino Básico e Secundário Luís Gouveia

COMO CITAR (ABNT): GOUVEIA, L. O interesse individual como justificação: a gramática liberal na construção da colegialidade dos professores do ensino Básico e Secundário. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 23, n. 3, p. 734-755, 2021. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v23n32021p734-755. Disponível em: http://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/15974. COMO CITAR (APA): Gouveia, L. (2021). O interesse individual como justificação: a gramática liberal na construção da colegialidade dos professores do ensino Básico e Secundário. Vértices (Campos dos Goitacazes), 23(3), 734-755. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v23n32021p734-755.

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Submetido em: 26 fev. 2021 Aceito em: 19 jul. 2021

DOI: 10.19180/1809-2667.v23n32021p756-772

A agenda do capital financeiro para a educação da América Latina em tempos de pandemia Renata Spadetti Tuão https://orcid.org/0000-0002-4662-4164 Mestre em Educação pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Doutoranda pelo Programa de Pósgraduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFFRJ) - Seropédica/RJ - Brasil. E-mail: spatuao@hotmail.com. Rodrigo de Azevedo Cruz Lamosa https://orcid.org/0000-0002-7183-9589 Doutor em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor Adjunto do Departamento Educação e Sociedade (DES) e do Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEduc) na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Seropédica/RJ - Brasil. E-mail: rodrigo1281@yahoo.com.br.

Resumo O ano de 2020 foi marcado pela pandemia do Covid-19 que desencadeou políticas de contenção social. Na educação, tais políticas tiveram sua expressão no fechamento das instituições escolares. A organização do capital financeiro em torno da agenda da educação, no decorrer da pandemia, propôs um ajuste com importantes impactos sobre o trabalho realizado nas instituições escolares e, destacadamente, sobre o trabalho docente. Neste artigo, analisamos alguns elementos constitutivos dessa agenda, no período pandêmico, em sua correlação com as estratégias do capital financeiro em curso, desde a década de 1990. Convém compreender as faces da precarização do trabalho docente (SILVA; MOTTA, 2019), a partir da dimensão da responsabilização (EVANGELISTA, 2017) como estratégia de controle do capital financeiro. Direciona-se o trabalho para a análise dos documentos produzidos por duas agências do capital financeiro e as respectivas coalizões operadas pelas mesmas. Como traço de continuidade, percebeu-se que a agenda formulada pelo capital financeiro, no período da pandemia, tem estreita relação com a agenda da Educação para Todos e com os elementos produtores da precarização do trabalho docente. Palavras-chave: Banco Interamericano de Desenvolvimento. Capital Financeiro. Pandemia de Covid-19. Agenda para Educação.

The financial capital agenda for education in Latin America in pandemic times Abstract The year 2020 was marked by the Covid-19 pandemic which triggered policies of social containment. In education, such policies resulted in the closure of school institutions. During the pandemic, the organization of financial capital around the Education agenda proposed an adjustment with important impacts on the work carried out in schools, especially, on the teaching work. In this article, we analyze some elements of this agenda in the pandemic period and regarding its correlation with the financial capital strategies since the 1990s. It is important to understand the faces of the precariousness of the teaching work (SILVA; MOTTA, 2019) from the accountability dimension (EVANGELISTA, 2017) as a strategy to control financial capital. The work is directed towards the analysis of documents produced by two financial capital agencies and the respective coalitions operated by them. As a continuity trait, the study showed that, during the pandemic period, the agenda formulated by financial capital has a close relationship with the Education for All agenda and with the elements that produce precarious teaching. Keywords: Inter-American Development Bank. Financial Capital. Covid-19 pandemic. Education Agenda.

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La agenda de capital financiero para la educación en América Latina en tiempos de pandemia Resumen El año 2020 estuvo marcado por la pandemia de Covid-19 que desencadenó políticas de contención social. En educación, estas políticas tuvieron su expresión en el cierre de instituciones escolares. La organización del capital financiero en torno a la agenda educativa, durante la pandemia, propuso un ajuste con importantes impactos en la labor que se realiza en las instituciones escolares y, especialmente, en la labor docente. En este artículo, analizamos algunos elementos que constituyen esta agenda en el período pandémico en su correlación con las estrategias de capital financiero en curso, desde la década de 1990. Es importante comprender los rostros de la precariedad del trabajo docente (SILVA; MOTTA, 2019), desde la dimensión de la rendición de cuentas (EVANGELISTA, 2017) como estrategia para controlar el capital financiero. El trabajo está dirigido al análisis de documentos elaborados por dos agencias de capital financiero y las respectivas coaliciones operadas por ellas. Como rasgo de continuidad, se notó que la agenda formulada por el capital financiero, durante el período pandémico, tiene una estrecha relación con la agenda de Educación para Todos y con los elementos que producen una enseñanza precaria. Palabras clave: Banco Interamericano de Desarrollo. Capital Financiero. Pandemia de Covid-19. Agenda Educativa.

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A agenda do capital financeiro para a educação da América Latina em tempos de pandemia Renata Spadetti Tuão, Rodrigo de Azevedo Cruz Lamosa

1 Introdução O ano de 2020 foi marcado pelo início de uma crise sanitária provocada pela disseminação do vírus SARS-CoV-2 que se materializou em uma pandemia. A facilidade de dispersão e a letalidade do vírus levaram governos do mundo a adotar medidas protetivas que incluíram procedimentos de higiene e políticas de contenção social. Essas últimas, no entanto, foram flexibilizadas de acordo com a realidade econômica e social dos países. Na América Latina, as medidas de confinamento social foram atendidas em totalidade, apenas, em 50% dos países1, sendo Trinidad e Tobago o país no qual o confinamento social total permaneceu por maior tempo contabilizando dezesseis dias, seguido pela Colômbia com doze dias e pelo Paraguai com onze dias. Os demais países que anunciaram adesão total às políticas de confinamento social contabilizaram entre um e dez dias, sendo Haiti e Peru com um dia; Bolívia e El Salvador com dez dias. Barbados, Belize, Brasil, Chile, Costa Rica, Guatemala, Guiana, Jamaica, México, República Dominicana, Suriname e Uruguai tiveram adesão parcial às políticas de confinamento social. A Nicarágua foi o único país que não aderiu ao confinamento social. Após quase um ano, os números são superlativos: 107.423.526 doentes e 2.360.280 mortos, no mundo, contabilizando a região das Américas, quase a metade dos casos, com 47.814.602 doentes e 1.120.144 mortes2. No decorrer da pandemia, o fechamento das escolas foi um dos instrumentos de contenção da transmissão viral utilizado por governos de todo o mundo. A Coalizão Global da Educação (CGE), organizada pelo Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) em parceria com Banco Mundial (BM), Microsoft, Google, Facebook e Telefônica Foundation, entre outras organizações, avalia que cerca de 1,5 bilhão de estudantes, em 165 países, foram afetados por essa medida. De acordo com a CGE, mediada pelas orientações do capital financeiro3, o fechamento das escolas e a interrupção do ensino produziram um enorme prejuízo ao aprendizado, sobretudo dos estudantes considerados “mais vulneráveis”. Diante deste diagnóstico, o capital financeiro no campo internacional passou a recomendar aos governos nacionais e locais a retomada das atividades de ensino, através do formato remoto, pautando toda a dinâmica pedagógica, incluindo formação e apoio psicológico aos professores e às famílias. O capital financeiro, ao mesmo tempo, compreendia que tais recomendações somente poderiam se efetivar na medida em que os países ampliassem o acesso de professores e alunos à internet, orientaram, portanto, que os países apresentassem soluções para a questão da desigualdade do acesso à internet. As referências do plano de retomada das atividades de ensino proposto pela CGE estão numa série de documentos publicados pelo BM e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). As agências do capital financeiro vêm demarcando, nestes documentos, a existência de uma profunda “crise de aprendizagem” nos países periféricos, como o Brasil, a qual se expressa num hiato entre aquilo que deveria ser apreendido e aquilo que, de fato, se apreende nas escolas. Neste sentido, o capital financeiro vem propondo um ajuste com importantes impactos sobre o trabalho realizado nas instituições escolares e, destacadamente, sobre o trabalho docente. 1

BANCO INTERAMERICANO DE DESENVOLVIMENTO. Del confinamiento a la reapertura: Consideraciones estratégicas para el reinicio de las actividades en América Latina y el Caribe en el marco de la Covid-19. Washington: BID, 2020. 2 Dados informados pela Organização Panamericana da Saúde (OPAS) em conjunto com a Organização Mundial da Saúde (OMS), Disponível em: https://www.paho.org/pt/covid19. Acesso em: 23 fev. 2021. 3 No que tange ao conceito de capital financeiro, utilizamos a definição desenvolvida por Lênin, a partir da obra de Hilferding, no qual discorre sobre as diferentes formas de capitais integrados, em escala mundial, evidenciando a fusão entre capital bancário e capital industrial e seus impactos na dinâmica da acumulação capitalista (LENIN, 2012).

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Neste artigo, apresentamos a problemática, a partir de um breve histórico das estratégias de controle do trabalho docente que vêm sendo utilizadas pelo capital financeiro, em âmbito internacional, muito antes da pandemia do Covid-19. Em seguida, nosso esforço se concentra na compreensão da agenda do capital financeiro para a educação, em tempos de pandemia, destacando a atuação da CGE como expressão das orientações organizadas pelo capital financeiro internacional.

2 O capital financeiro e as estratégias de controle sobre a educação A educação pública na América Latina, nas últimas três décadas, tem sido reformada por um complexo movimento entre condicionamentos externos e estruturas econômicas, políticas e sociais internas dos Estados Nacionais. As políticas de empréstimo, desenvolvidas por organizações internacionais e direcionadas aos países no capitalismo dependente4, têm difundido condicionalidades pautadas em uma quantidade ampliada de pesquisas sobre a educação na América Latina que procuram justificar a necessidade de tais reformas, evidenciando o suposto “fracasso” dos sistemas de educação e direcionando as políticas necessárias à reorganização do Estado, da administração pública e das relações sociais. (KRAWCZYK; VIEIRA, 2012; MELO; SOUZA; MELO, 2015; SANTOS, 2012). Esses estudos cumprem, ainda, algumas funções relevantes: legitimam as ideias-forças defendidas pela agenda reformista, propõem a naturalização das reformas políticas num sentido de desenvolvimento modernizador, invertem as responsabilidades pela produção das desigualdades e ocultam a essência das suas proposições (KRAWCZYK; VIEIRA, 2012; MELO; SOUZA; MELO, 2015; SANTOS, 2012). Sob a ótica das reformas, coube aos países latino-americanos o investimento na formação de “recursos humanos”. De forma ampliada, as reformas compreenderam o redimensionamento da relação entre o Estado e a sociedade civil e a adequação da educação às demandas do mercado, reorganizando os sistemas educacionais. Compreendemos que as reformas educacionais operacionalizadas nos países da América Latina, partiram de diretrizes globais orientadas, sobretudo, pelo BM, BID e agências vinculadas à Organização das Nações Unidas (ONU). No limiar do século XXI, as organizações internacionais aprofundaram sua inserção na construção da agenda política para a educação da classe trabalhadora. Criadas no período histórico do pós-guerra com o objetivo principal de contribuir para a atualização da democracia burguesa exigida pelo avanço imperialista, o BM e a ONU tiveram suas abordagens no campo educacional modificadas, no decorrer dos anos, de acordo com cada período histórico. Nas décadas de 1950 e 1960, possuíam uma abordagem explicitamente voltada para o crescimento econômico, a partir da difusão da Teoria do Capital Humano (TCH); nas décadas de 1960 e 1970, adotaram uma abordagem que interligava a promoção da educação em conjunto com a “equidade social”; sendo seguida, a partir dos anos 1990, pelo uso instrumental da educação como promotora do “alívio à pobreza” (KRAWCZYK; VIEIRA, 2012; MELO; SOUZA; MELO, 2015; SANTOS, 2012).

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Partimos do conceito de dependência como categoria analítico-explicativa acerca das formas e dos sentidos do desenvolvimento do capitalismo, na contemporaneidade, nas regiões periféricas. Não se trata, portanto, do uso do conceito como um fenômeno externo e coercitivo, assim como a ciência burguesa buscou encontrar na categoria da dependência, a fim de justificar sua dominação. Pelo contrário, nos interessa o movimento condicionante das relações de dependência entre países de capitalismo central e países de capitalismo periférico que conformam estruturas econômicas, políticas e sociais dependentes (BAMBIRRA, 2019).

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Cumprindo a função de organizadoras da democracia mundial e difusoras de uma determinada sociabilidade, o BM e a ONU, nos seus setenta e cinco anos de trabalho, estiveram à frente de inúmeras conferências internacionais, que reuniram representantes governamentais dos Estados nacionais, “ONGs” internacionais e representantes empresariais, produzindo declarações, convenções e planos de ação com diretrizes para a educação dos países no capitalismo dependente. O grande marco dessa confluência de interesses foi a Conferência Mundial sobre Educação Para Todos, que aconteceu em Jomtien, em 1990, onde foi apresentado o projeto de Educação para Todos, destinado aos países com alto índice de analfabetismo. Entramos no século XXI com a concretização de mais duas Conferências Mundiais sobre Educação para Todos: uma ocorrida no ano de 2000, em Dakar; e outra no ano de 2015, em Incheon. Da primeira, saiu o documento Educação para Todos: o compromisso de Dakar, com seis objetivos para concretização do projeto de Educação para Todos (1990) que deveriam ser alcançados até o ano de 2015. A segunda se apoiou nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) proposto pela UNESCO, no início do século XXI, que deverão ser materializados até o ano de 2030. Desse fórum, saiu o documento Declaração de Incheon com estratégias para a resolução dos “problemas” educacionais que, segundo seus organizadores, podem ser atenuados por políticas gerencialistas embasadas nas orientações do capital financeiro. Os documentos produzidos pelo conjunto dos organismos internacionais passaram a reafirmar as diretrizes da Carta de Jomtien, que tinham como recomendação central a reorganização dos sistemas educacionais, com foco na formação de trabalhadores adaptados aos requisitos exigidos pela reestruturação produtiva5 em curso. As reformas educacionais iniciadas, a partir de 1990, foram o caminho escolhido para efetivação da governabilidade exigida pelo capital financeiro. Elas instituíram um novo modelo de organização e de gestão da educação pública na América Latina, sob o fetiche da modernidade e da democratização; instauraram um caráter homogeneizante no que tange à leitura das realidades dos “Estados nacionais”, assim como a proposição de estratégias que tentaram conferir uma padronização para a América Latina e Caribe; questionaram a educação formal como sistema, difundindo a ideia de rede e de fluxo de informações; trabalharam sob a retórica da descentralização e da redistribuição do poder, ampliando a participação das instituições financeiras na definição das políticas educacionais; e neutralizaram o contexto histórico, tornando obscura as condições objetivas de cada país para a materialização das reformas “planejadas”. É possível observar uma inflexão na agenda para a educação dos países no capitalismo dependente, a partir da entrada no século XXI: as orientações que, de forma explícita traziam o caráter economicista em primeira ordem, passaram a conter conceitos voltados para um viés humanitário, delegando a segundo plano a face economicista das orientações. Passou a ser comum encontrar nos documentos conceitos como justiça social, equidade, coesão social, inclusão, empoderamento e oportunidade, denotando um ajuste nas proposições anteriores que trabalhavam, de forma mais aparente, conceitos do mundo empresarial como produtividade, qualidade, eficiência, eficácia e competitividade. A educação, além de ser usada como parte de um modelo de desenvolvimento, passou a ser usada como espaço de resolução dos problemas sociais da sociedade contemporânea, sobretudo no que tange às questões relativas à sobrevivência do indivíduo frente às desigualdades econômicas e sociais cada vez mais patentes.

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De acordo com Hobsbawm (1995), a restruturação produtiva consiste na reorganização dos processos de produção, ocorrida pós-segunda guerra mundial, a partir do desenvolvimento das tecnologias e modos de organização do trabalho, que determinaram novas conformações na divisão internacional do trabalho incidindo, diretamente, sobre as relações entre capital e trabalho (HOBSBAWM, 1995).

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Destacamos neste artigo, no campo internacional, a atuação de dois representantes do capital financeiro, por oferecerem a base material e intelectual para a implementação de projetos sobre a educação pública da América Latina e Caribe: em nível global, o Banco Mundial (BM); e em nível regional, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Assim como a CGE, criada pelo BM em conjunto com a UNESCO e plataformas digitais durante a pandemia de Covid-19. As duas primeiras organizações tiveram sua gerência sobre os países estabelecida no imediato pós-guerra, com a criação do BM, em 1944; e alguns anos depois, em 1959, com a criação do BID. O BM foi criado, com o objetivo maior de organizar uma espécie de economia mundial única em conjunto com o Fundo Monetário Internacional (FMI), sob a liderança majoritária da potência econômica mundial: os Estados Unidos da América (EUA) (HOBSBAWM, 1995). Segundo Ayerbe (2002), o crescente poderio econômico dos EUA não se traduziu de forma imediata como uma presença política marcante no cenário mundial. Além do que, o líder do “mundo novo” precisava de uma aparência democrática para se consolidar politicamente, diante da ascensão da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) como potência socialista. A criação do BM se consolidou como uma estratégia, pelas vias da democracia burguesa, de controle sobre os países de capitalismo dependente, que se materializou, sobretudo, no movimento de coação entre empréstimos concedidos e exigência de condicionalidades. De acordo com Pereira (2018), o Banco Mundial atua, pelo menos, em seis dimensões: na integração à infraestrutura de poder global organizada pela política externa dos EUA; na relação com os Estados-clientes a partir da coerção e da persuasão; na construção do consenso, a partir das suas recomendações e condicionalidades; na combinação entre a concessão de empréstimos e a assistência técnica para a definição das políticas públicas; na construção da sua legitimidade enquanto referência intelectual; e no trato com às questões referentes ao “alívio” da pobreza. O BID é considerado o maior banco de desenvolvimento regional do globo. O ano de criação do BID também foi o ano em que o grupo liderado por Fidel Castro tomou o poder em Cuba, materializando o processo de revolução iniciado nos anos anteriores. Como determinantes sócio-históricos que vão demarcar a criação do BID, destacamos: a preocupação com o avanço do comunismo na região, como desdobramento da Revolução Russa (1917) e da Revolução Cubana (1959); a contenção da insatisfação da população latino-americana deflagrada pela profunda desigualdade econômica e social; os desencadeamentos impostos pela crise capitalista de 1929; a criação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e a implementação do Pacto de Varsóvia; e a suplementação de capital aos países em processo de industrialização, com estreita ligação com a Operação Pan-americana e a Aliança para o Progresso. Tanto o BM, quanto o BID, possuem na sua estrutura organizacional setores específicos que atuam na proposição de políticas para a educação. Essa constatação, no entanto, não pode ser considerada natural, o que teria um banco a contribuir para a educação de um país? Que concepção de educação poderia formular um representante do capital financeiro? Qual o sentido de um banco formular políticas para a educação dos países no capitalismo dependente? Para este artigo, nos concentramos na responsabilização docente como uma dimensão fundamental do controle do capital financeiro sobre a educação pública. Nossa hipótese é de que essa dimensão está presente nas formulações desenvolvidas por essas organizações, para a educação dos países no capitalismo dependente, e compõe os princípios basilares das políticas neoliberais para a educação.

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O conceito de responsabilização se relaciona com o termo empresarial accountability6 e tem sido utilizado com maior ênfase nos últimos anos como expressão das políticas gerencialistas propostas no conjunto das reformas neoliberais. Seu uso na educação tem sido aprofundado, nos últimos trinta anos, no bojo da reforma educacional, que passa a ser acrescido da palavra docente, indicando claramente o trabalhador sobre o qual o controle será direcionado. De acordo com Souza (2017), os desdobramentos para o trabalho docente se materializam em um estado de alienação/estranhamento, intensificação e sofrimento. Essa dimensão encontra-se expressa no interior dos países em diversas políticas públicas para a educação. No Brasil, destacamos o Plano de Desenvolvimento da Educação7 (PDE) (BRASIL, 2007) que marcou a articulação entre o movimento empresarial Todos Pela Educação (TPE) e o governo Lula da Silva. O PDE (BRASIL, 2007) implementou políticas de gestão no interior das escolas públicas, pautadas na racionalidade técnica e financeira nos moldes empresariais. Como parte da reforma do Estado em curso, o gerencialismo na educação vem sendo implementado com vistas à dimensão da responsabilização no processo de implementação das políticas de resultados na educação. Compreendemos que essa dimensão faz parte do movimento de atualização das estratégias de dominação do capital sobre a educação pública em tempos de neoliberalismo e está atrelada ao processo de desresponsabilização do Estado pela educação promovido pelo capital. A dimensão da responsabilização incide sobre o trabalho docente, a partir de políticas de gestão, financiamento e avaliação. O professor é responsabilizado pelo “fracasso” do aluno, da sua formação e da escola pública. Santos (2012) pondera que esse “fracasso” foi produzido pelo capital quando instaurou na educação o “novo tecnicismo de mercado”, reduzindo a ação pedagógica à produção da força de trabalho enquanto mercadoria. Segundo Santos (2012), “produziu-se uma escola ‘fracassada’ para, em seguida, apresentar-se a solução: sua mercantilização” (SANTOS, 2012, p. 9). A autora (2012) elenca como condicionantes desse processo o ataque às práticas “conteudistas” e as políticas populistas que produziram uma escola que não ensina. Acrescemos a estes condicionantes, a desvalorização da ciência e a quase inexistência de políticas de financiamento capazes de suprir as necessidades da escolarização. Os mesmos setores que produziram o fracasso da escola propõem a salvação dessa escola. A esse fenômeno, Santos (2012) nomeou de sequestro da escola: […] foi o “crime perfeito”: inicialmente, os setores hegemônicos, capitalizando o anseio de democratização, canalizam-no para uma escola que não ensina nada a ninguém, onde ninguém aprende nada. Logo em seguida, exatamente esses setores, os mesmos que instilaram o “veneno”, propõem a salvação dessa escola que destruíram. E sequestram a escola. Conexo a este sequestro, sequestra-se também a função política emancipatória e crítica da escola, sequestra-se o trabalho docente de suas margens de autonomia, sequestra-se o processo pedagógico de sua contextualização. (SANTOS, 2012, p. 16).

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O conceito de accountability vem sendo utilizado na literatura nacional para a identificação das diretrizes adotadas pelos Estados na gestão pública, em especial, no âmbito da educação. No entanto, não há consenso em relação a sua definição. De acordo com Pinho e Sacramento (2009), a palavra accountability traz, implicitamente, a ideia de responsabilização pessoal pelos atos praticados e, explicitamente, a exigência da prestação de contas, seja no âmbito público ou no privado. O conceito de accountability vem sendo adotado no Brasil com o sentido de responsabilidade, responsabilização e prestação de contas, embora esses termos não sejam traduções literais da palavra em inglês. Schedler (1999 apud SOUZA, 2017) destaca que o termo accountability conta com três dimensões estruturantes identificadas como informação, justificação e imposição ou sanção. O termo também implica uma dimensão impositiva, coercitiva ou sancionatória. 7 O Plano de Desenvolvimento da Educação foi promulgado pelo Decreto nº 6.094, de 2007, que dispõe sobre o Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação e delineou a política educacional no país no governo Lula da Silva.

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A dimensão da responsabilização docente encontra-se atrelada à pedagogia dos resultados, produzindo alguns desdobramentos para o exercício da docência que se configuram no controle do trabalho docente, na fragmentação entre execução e concepção da ação pedagógica, na subordinação da carreira docente aos critérios de “mérito” produzidos pelo mercado, na redução da autonomia do professor, no aumento de mecanismos burocráticos de trabalho e na fragmentação dos espaços de organização docente. Segundo Evangelista (2017), “no meio das inúmeras responsabilizações atribuídas ao professor uma é central para os interesses capitalistas: o desemprego futuro do aluno se deverá ao não investimento do professor em seu trabalho presente” (EVANGELISTA, 2017, p. 9). Essa justificativa utilizada pelo capital escamoteia as relações de exploração demandadas pelas transformações no mundo do trabalho para dar conta da flexibilização da acumulação. Ao responsabilizar o professor, retira-se a responsabilidade do modo de produção, do Estado, em seu sentido estrito, e a inverte concentrando-a no próprio indivíduo. Essa construção, segundo Evangelista (2017), encontra-se atrelada à difusão da ideologia do “empoderamento” docente que: imputa as condições de existência da população brasileira ao professor; os problemas sociais e econômicos não derivam das negociações da burguesia interna, ao sabor dos interesses de suas várias frações, com o Capital internacional; não derivam de suas opções econômicas e políticas. Derivam do fato de que o professor não é responsabilizado por sua formação, pelo investimento em sala de aula, pelo empenho na aprendizagem do aluno, pelo interesse na mudança de conteúdos e métodos pedagógicos, pelo respeito às tecnologias. Se os problemas socioeconômicos nascem no campo da educação, se nele devem encontrar a solução, se o professor – embora responsabilizado – não tem competência para tal solução, temos aqui um falso dilema, consequência do movimento ideológico burguês dominante. (EVANGELISTA, 2017, p. 10).

Consideramos a ideologia do “empoderamento” docente uma justificativa que possui relação direta com a estratégia da responsabilização docente utilizada nos projetos políticos operados pela classe dominante. As ideias que dominam uma certa época histórica são as ideias da classe dominante, estruturadas a partir das relações sociais de produção (MARX, 2007), e que, portanto, as relações sociais dominantes são expressas nas ideias difundidas por aqueles que dominam com o objetivo claro de manter a dominação. Operar a dimensão da responsabilização docente pelo “fracasso” da educação, significa operar na esfera da competência, da individualização e do mérito, o que contribui diretamente para o aumento do adoecimento docente como consequência de uma educação que tem o mercado como seu regulador (SANTOS, 2012). A dimensão da responsabilização docente encontra-se presente nas orientações produzidas pelas organizações internacionais e nas políticas encaminhadas nos países da América Latina durante a pandemia de Covid-19. Na próxima seção, trazemos alguns elementos constitutivos da agenda para a educação formulada pelo capital financeiro, em âmbito internacional, no período inicial da política de fechamento das instituições escolares na América Latina e Caribe, na qual a dimensão da responsabilização docente aparece como uma questão central para o seu desenvolvimento.

3 A agenda do capital financeiro internacional para a educação na pandemia Poucos dias depois que a política de fechamento das escolas teve início, o BM e o BID publicaram documentos propondo orientações sobre como os países dependentes deveriam tratar as questões relativas à educação em tempos de pandemia. Neste artigo optamos por trabalhar com o documento: “Políticas Educacionais na Pandemia do Covid-19: o que o Brasil pode aprender com o resto mundo?” (BANCO

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MUNDIAL, 2020), publicado pelo Banco Mundial, em 25 de março de 2020 e difundido no Brasil pelo Instituto Ayrton Senna. E com três produções do BID publicadas no Blog “Focus on Education”, são elas: “Escola e o Coronavírus: três desafios urgentes e uma transformação necessária” (CABROL, 2020), de 19 de março de 2020; “Fechamento de Escolas: o desafio que o Covid-19 impôs aos sistemas de ensino da América Latina e Caribe” (VÁSQUEZ, M. et al, 2020), de 09 de abril de 2020; e “Ensinar em casa: a oportunidade oferecida pela tecnologia” (LENIS, 2020), de 30 de abril de 2020. A escolha por essas produções foi motivada pela temporalidade, uma vez que nos interessava, num primeiro momento, captar o movimento inicial dessas instituições em relação à política de fechamento das escolas. Uma orientação comum às duas organizações, no período da pandemia, foi a introdução da Educação à Distância nos Sistemas de Ensino em substituição ao ensino na modalidade presencial. No documento produzido pelo Banco Mundial (BANCO MUNDIAL, 2020), já se apontava a permanência dessa modalidade como política para o período pós-pandemia. O BID (CABROL, 2020) propôs, inclusive, uma nova pedagogia, a “Pedagogia à Distância” afirmando que a educação não tirava proveito do “potencial transformador da tecnologia” e que a pandemia era o momento oportuno para que a tecnologia fosse introduzida na educação de forma definitiva (CABROL, 2020). Como desdobramento dessa formulação, o BID desenvolveu, no ano de 2020, alguns projetos que tiveram como fundamento central a inserção das tecnologias da informação e comunicação na educação de forma permanente, por meio do formato híbrido. Destacamos o projeto “Enfrentando al COVID.19: Continuidad en el Proceso de Enseñanza y Aprendizaje y Transformación Digital” (BID, 2020b), iniciado em maio de 2020, no qual o BID investiu, em torno de duzentos e cinquenta mil dólares, na construção de um Sistema de Informação e Gestão Educativa para os países da América Latina, que, segundo o BID (2020b), possuem um atraso na inserção das tecnologias da informação e comunicação no setor educacional. A proposta tem como justificativa a quantidade mínima de países que contam com plataformas de conteúdos e com sistemas de gestão da aprendizagem. Atualmente, somente o Uruguai conta com plataformas digitais com conteúdo escolar e monitoramento da aprendizagem dos estudantes. A orientação expressa nesse projeto se voltou para o desenho de uma estratégia nacional de educação digital para o período posterior à pandemia, adequando o desenho do ensino presencial ao formato híbrido. O BID (CABROL, 2020) trouxe como exemplo de “Boas Práticas” o caso da China que com o fechamento das suas escolas iniciou o ano letivo, de forma imediata, por meio de aulas on-line. Em seguida, o BID (CABROL, 2020) descreveu de que maneira a China conseguiu iniciar, imediatamente, o ano letivo: “a indústria reagiu de forma surpreendentemente rápida: em 2 de fevereiro, 22 plataformas digitais começaram a oferecer mais de 24.000 cursos on-line, incluindo 401 cursos experimentais de simulação virtual” (CABROL, 2020). A educação passou a ser organizada a partir das “indústrias”, ou seja, das empresas de serviços digitais. Otto Peters, primeiro reitor da Universidade à Distância da Alemanha, considerado referência nos estudos sobre EAD no mundo (NUNES, 1992) conceituou a EAD, de forma dialógica com o sentido conferido pelo capital financeiro: Educação/Ensino à Distância é um método racional de partilhar conhecimento, habilidades e atitudes, através da aplicação da divisão do trabalho e de princípios organizacionais, tanto quanto pelo uso extensivo de meios de comunicação, especialmente para o propósito de reproduzir materiais técnicos de alta qualidade, os quais tornam possível instruir um grande número de estudantes ao mesmo tempo, enquanto esses materiais durarem. É uma forma industrializada de ensinar e aprender. (PETERS, 1973 apud NUNES, 1992, p. 12, grifos nossos).

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Entendemos, portanto, que a entrada das tecnologias de comunicação e informação como conteúdo e forma de pensar a educação é uma maneira de industrializar a forma de ensinar e aprender, promovendo o que estamos chamando de “industrialização” da estrutura pedagógico-organizacional. Historicamente, a introdução da industrialização das técnicas de trabalho trouxe muitas alterações nos modos de trabalho e vida do trabalhador: a escassez de emprego; o adoecimento da população por conta das condições de trabalho; a sujeição à superexploração do trabalho; a retirada de direitos em nome do aprofundamento da acumulação; e o aprofundamento, cada vez maior, das desigualdades sociais. Os efeitos sobre a educação que o processo de “industrialização” da estrutura pedagógico-organizacional da educação pode apresentar vêm se aprofundando no decorrer da pandemia na América Latina. No ano de 2020, a “industrialização” da estrutura pedagógico-organizacional da educação se deu a partir da introdução de diferentes formatos para a modalidade da Educação à Distância. Assumimos, neste estudo, o entendimento de que essas variantes representam a generalização da imposição de formas ainda mais precarizadas e problemáticas da modalidade de EaD. Compreendemos que o chamado “Ensino Remoto” tem se configurado como a introdução racionalizada das tecnologias de informação e comunicação na estrutura pedagógico-organizacional da educação como uma forma industrializada de repassar conteúdo escolar. Na América Latina, o Ensino Remoto tem sido organizado de modos diferentes, de acordo com o estágio em que a inserção das tecnologias na Educação se apresenta em cada país. Identificamos que os principais meios de adequação do ensino presencial à modalidade à Distância têm se estruturado a partir da compra de serviços de plataformas digitais e aplicativos; da imposição ao docente e à escola do uso de suas redes sociais privadas para o trabalho; da realização de aulas por meio do uso da televisão e do rádio, com concessões públicas ou com a compra de tempo em redes de televisão privadas; e da entrega de atividades impressas. Essas últimas direcionadas, sobretudo, aos sistemas de ensino com dificuldade ou privados do acesso à internet. A difusão desta agenda de adequação da educação frente ao fechamento das escolas na pandemia teve na organização CGE, a expressão da centralização de sujeitos coletivos, representantes do capital financeiro internacional, em prol da inserção das tecnologias de informação e comunicação na educação. A CGE, organizada pela UNESCO em parceria com o BM, Microsoft, Google, Facebook e Telefônica Foundation, entre outras organizações, difundiu em todo o período da pandemia uma agenda de orientações para a normalização do ensino nos sistemas de educação alinhada às orientações do capital financeiro internacional. A CGE apresentou em seus materiais um amplo conjunto de “tecnologias educacionais”, produzido pelas corporações que são membros da coalizão (Microsoft, Google, Facebook, entre outros). Essas “tecnologias educacionais” são apresentadas como “soluções” diante da “crise de aprendizagem”, catalisada na pandemia. A estratégia da CGE neste período foi organizar comitês locais nos países, tendo em vista a necessidade de articulação em diferentes níveis (governo, conselhos e sociedade civil empresarial) com o objetivo de dirigir as políticas educacionais. No Brasil, o comitê local foi organizado por uma coalizão liderada pelo TPE em parceria com a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME), o Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED) e o Conselho Nacional de Educação (CNE). O comitê brasileiro da CGE realizou dois Webinários com a participação do Fórum Nacional dos Conselhos Estaduais e Distrital de Educação (FNCE), secretários e ex-secretários de educação de diversas regiões do Brasil, como Cláudia Costin que hoje representa a Fundação Getúlio Vargas (FGV), além de representantes do BM e da UNESCO. Nesse fórum foram elaboradas duas notas técnicas que serviram de referência para as decisões do CNE e do próprio Ministério da Educação e Cultura (MEC). A primeira nota técnica identifica a preocupação com a queda nos índices de

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aprendizagem e encaminhou uma agenda de ações para minimizar as consequências do fechamento das escolas, tendo como eixo a normalização do ensino pela via do “Ensino Remoto Emergencial”. As mesmas diretrizes foram repetidas, dias após a realização dos Webinários do comitê local da CGE, no parecer do CNE que desobrigou o cumprimento dos 200 dias letivos, manteve as 800 horas de ensino para a Educação Básica com o expediente do “ensino remoto”. A CGE, como expressão das proposições do capital financeiro, reconheceu que as desigualdades sociais presentes nos países da América Latina e, particularmente, no Brasil foram fatores importantes na diferenciação ao acesso à educação. Seguindo as propostas do BM e do BID, a CGE propôs algumas possibilidades de ação que poderiam “aliviar” a falta de estrutura e construir um modelo rápido de educação: a manutenção do vínculo aluno-professor e da família-escola; a entrega de conteúdo alinhado ao currículo escolar; e o acompanhamento e monitoramento, pelo docente, do processo de aprendizagem (VÁSQUEZ et al., 2020). Essas três estratégias possuem como elemento comum a responsabilização docente. Cabe ao professor, segundo esses documentos, a materialização do “Ensino Remoto” na educação pública. As três estratégias pressupõem que esses alunos e esses professores possuem os meios para realizar tais tarefas. Também, pressupõem que professores provejam os meios para a realização do seu próprio trabalho. No entanto, a realidade concreta aponta que nem todos os professores, tampouco os alunos em sua totalidade possuem os meios para a realização dessas tarefas. Mostra inclusive, que assim que o isolamento social foi decretado, os docentes que não foram demitidos, tiveram reduções salariais inversamente relacionadas ao aumento do tempo de trabalho e de alunos por turma. Mas, afinal, no contexto da pandemia, qual o significado da manutenção do vínculo aluno-professor? O que significa “entregar conteúdo alinhado ao currículo escolar”? Como pode ser realizada uma educação, no sentido do desenvolvimento integral do educando, sem a participação efetiva e presencial do professor? Entendemos que a manutenção do “vínculo entre aluno-professor” vem sendo utilizada com o objetivo de colocar nas mãos do professor a responsabilidade pela não evasão escolar e pela transição da educação presencial para a educação on-line. A agenda do capital financeiro, difundida pela CGE, colocou a responsabilidade na escola/docente, usando como justificativa ora o desinteresse do aluno diante do conteúdo escolar na difusão dos saberes historicamente construídos; ora a metodologia “arcaica” adotada pelo docente que não introduz as tecnologias da informação e comunicação na sua prática pedagógica. Compreendemos, no entanto, que a evasão escolar é reflexo das condições degradantes a que estão submetidos os filhos da classe trabalhadora que precisam trabalhar para ajudar as famílias e que sentem na pele a relação inexistente entre formação e possibilidade de trabalho. A CGE indicou aos professores, a utilização das redes sociais como forma de oferecer apoio pedagógico e psicológico aos pais e responsáveis. O professor deveria, além de garantir o ensino do aluno, realizar mais duas funções: treinamento pedagógico e análise psicológica, para estar “apto” a operacionalizar a transição do ensino presencial para a modalidade EAD, “engajando” os alunos nas plataformas. No Peru, por exemplo, foi criada a plataforma Aprendo en casa (PERU, 2020) que ofereceu formação para os professores prenderem a atenção dos alunos nos momentos da videoaula. Cabe ressaltar aqui a invasão do tempo do trabalho na vida privada, uma vez que esse aumento de função se pauta num estado permanente de disponibilidade do docente, aprofundando ainda mais a superexploração do capital. A questão se aprofunda um pouco mais quando os documentos apontam que cabe ao docente a “entrega” dos conteúdos escolares ao aluno. Que tipo de relação de ensino-aprendizagem se pauta na mera “entrega de conteúdo”? É possível, dessa forma, que se materialize a relação de ensino-aprendizagem? Quem vai produzir esses materiais de ensino? O primeiro elemento que levantamos é a forma pragmática

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como o capital define o processo de aprendizagem para os filhos da classe trabalhadora: redução de todo o conhecimento pedagógico do trabalho docente à função prática. Isso denuncia a separação entre teoria e prática presente desde a formação do professor e o consequente esvaziamento do trabalho de “pensar a educação”. Se o professor não puder refletir sobre a sua prática, seja pela ausência da práxis nos cursos de formação, seja pela coerção financeira que o obriga a trabalhar em diversas escolas, mais facilmente será a introdução de pacotes educacionais com o conteúdo “pronta entrega”. A concepção do “professor-entregador” descortina uma profunda radicalização da precariedade das condições de trabalho docente na atualidade. No Brasil esse processo, denominado por Silva e Motta (2019) como “uberização do trabalho docente”, tem se agravado com a expansão do precariado professoral8. No país, cerca de 50% das redes públicas estaduais, segundo levantamento realizado por Thayse Gomes (2017), tiveram um número maior de professores contratados em regime temporário do que professores concursados para cargos efetivos. Isto ocorreu em diversos Estados, como Espírito Santo (73%), Minas Gerais (57%), Alagoas (82%), Mato Grosso (64%), Acre (64%), Piauí (64%), Ceará (58%), Pernambuco (50%), Santa Catarina (55%), Mato Grosso do Sul (64%), tendo ainda duas redes estaduais com números superiores a 40% de professores contratados: Roraima (47%) e Tocantins (45%). Segundo ambas as pesquisadoras, esses professores são a parte da categoria dos docentes exposta aos processos de subsunção do trabalho intelectual a uma espécie de tecnicismo que reduz, quando não retira, o potencial criativo e autoral de sua atividade. Outro elemento articulado a esse processo volta-se para o crescimento das Edetchs. Segundo o Centro de Inovação da Educação Brasileira (CIEB), mais de mil redes públicas de ensino realizaram o ensino remoto por alguma estratégia: transmissão de videoaula, plataformas on-line, tutoria/chat, orientações genéricas via redes sociais, na maioria das vezes, por meio de recursos tecnológicos privados. De acordo com o CIEB e a Associação Brasileira de Startups (AbStartups), por meio do relatório Mapeamento Edtech 2019 – investigação sobre as startups de tecnologia educacional no Brasil, o mercado de Edtechs, em 2019, era formado por 449 Startups Edtechs ativas no Brasil – sendo 70,6% produtoras de serviços para o ensino básico. Em 2020, a perspectiva é que tenha existido um crescimento exponencial da participação dessas empresas na educação brasileira. As Startups Edtechs estão divididas em dois grandes grupos, organizados a partir dos “Recursos Educacionais Digitais” (REDs): as Edtechs que ofertam software e as Edtechs que ofertam hardware. Ainda existem as Edtechs que, além de recursos educacionais, ofertam serviços relacionados à tecnologia educacional. As Edtechs que oferecem software se dividem em unidades que produzem conteúdo, referindo-se àquelas que desenvolvem mídias interativas (ou não) utilizadas com propósito pedagógico; ferramentas, quando criam tecnologias que instrumentalizam a escola ou a rede de ensino em um processo específico; e plataformas, ao desenvolverem sistemas que articulam ferramentas de forma coordenada e transversal. Estas Edtechs se subdividem em dezessete grupos de “Recursos Educacionais Digitais”. As Edtechs que oferecem hardware possuem um propósito educacional bem definido e têm seus serviços organizados em ferramenta maker e hardware educacional. A expansão das Edtechs na educação vem ocorrendo no mesmo processo histórico da formação daquilo que Shoshana Zuboff (2015) denominou como capitalismo de vigilância. Esse processo se caracteriza, por um lado, no poder que as corporações que dominam a tecnologia da “big data” desenvolveram e, por outro, na capacidade de mensuração de dados de usuários que passa a ser vendida 8

O conceito de precariado professoral, cunhado por Silva e Motta (2019), se refere ao conjunto de professores submetidos a relações de trabalho definidas pelo tempo indeterminado e intermitente.

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no mercado para outras grandes corporações, possibilitando a decodificação de comportamentos que passam a ser monetizados numa ordem de valores gigantesca. Em reportagem realizada em junho de 2020 (AUDI; ZAMBARDA, 2020), com a chamada “Escola com Partido: aulas online obrigam milhões de alunos a usar app de empresa obscura que criou TV Bolsonaro”, o site The Intercept Brasil (AUDI; ZAMBARDA, 2020) denunciou a estratégia de captação de dados9 de aproximadamente 7,1 milhões de alunos e professores nos Estados de São Paulo, Paraná, Amazonas e Pará, utilizada pela empresa IP.TV, com sede na Região dos Lagos, no Rio de Janeiro. A empresa IP.TV não desenvolvia nenhum trabalho voltado para a educação em meios digitais até o início da pandemia e a ela foi atribuída participação na produção de fake news durante a campanha eleitoral de Jair Bolsonaro. Aos estudantes do Amazonas e Pará, entre quatro e dezessete anos de idade, além das videoaulas, é oferecido conteúdo da TV Bolsonaro. Já para os alunos de São Paulo e Paraná a empresa IP.TV desenvolveu aplicativos específicos voltados para conteúdos didáticos, sem a oferta da TV Bolsonaro. Os governos desses Estados não conseguiram explicar o motivo pelo qual uma empresa com essas características tornou-se parte dos sistemas de ensino. A adesão de redes de ensino às plataformas digitais ofertadas pelas Edtechs, sejam elas grandes corporações ou Startups, tem inserido milhões de estudantes e trabalhadores da educação nessa economia comportamental, em “parcerias” entre as corporações e a administração pública envolvendo a contratação de serviços pagos ou Recursos Educacionais Abertos (REAs). De acordo com a UNESCO, os REAs referem-se a “qualquer recurso educacional […] disponível abertamente para uso por educadores e alunos, sem a necessidade de pagar direitos autorais ou taxas de licença” (BUTCHER, 2011, p. 5). Butcher (2011) define os REAs considerando os seguintes elementos: − a oportunidade de aprendizado deve ser para a vida toda e deve englobar educação e treinamento; − o processo de aprendizado deve ser centrado nos alunos, partindo da sua experiência e estimulando o pensamento crítico e independente; − o ensino deve ser ministrado de forma flexível para que os alunos possam escolher cada vez mais onde, quando, o que e como aprendem, bem como o seu ritmo de aprendizado; − o conhecimento, experiências prévias e habilidades demonstradas devem ser − reconhecidos de modo que os alunos não sejam desnecessariamente excluídos de oportunidades de aprendizado por não terem as devidas qualificações; − alunos devem poder reunir créditos de diferentes contextos de aprendizado; − provedores devem criar condições para garantir uma probabilidade justa de sucesso do aluno. (BUTCHER, 2011, p. 6).

Nota-se com isso, o comprometimento dos REAs com as diretrizes da Educação para Todos (EPT), desde 1990. Os fundamentos dos REAs encontram-se ligados às teorias educacionais neoprodutivistas expressas em vários documentos, mas sobretudo no Relatório “Educação: um tesouro a descobrir”, produzido por Jacques Delors (1996). Pautado nas transformações impostas pela reestruturação produtiva, impõe para educação dos países periféricos um movimento de adaptação constante do indivíduo ao mundo do trabalho, estimulando o mercado das certificações e a contínua responsabilização do docente pela sua condição de excluído. Os REAS também permitem que o conhecimento produzido pelo docente seja utilizado por outras pessoas sem a necessidade de solicitação de licença para uso. 9

A reportagem do site The Intercept informou que para que estudantes consigam ter acesso às aulas é preciso realizar cadastro e instalar os aplicativos, onde se autoriza o acesso a dados tão pessoais como o álbum de fotos do celular e de conexão de rede wi-fi. Disponível em: https://theintercept.com/2020/06/15/app-empresa-tv-bolsonaro-aulas-online-pandemia. Acesso em: 24 fev. 2021.

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Compreendemos que, durante a pandemia, a dimensão da responsabilização docente esteve presente nos documentos analisados e nas políticas de Ensino Remoto propostas pela agenda de reformas. Representando a continuidade de uma dimensão presente nas políticas gerencialistas que se pautam na pedagogia dos resultados, realizada na região desde os anos 1990. A responsabilização do professor tem como componentes ideológicos a inversão entre a função do professor e a função do Estado na condução, manutenção e “salvamento” da educação pública; o ocultamento das condições objetivas e materiais produzidas pelas políticas gerencialistas para a educação; a naturalização do docente como o único responsável pela concretização da educação pública; a justificativa para a degradação das condições reais de emprego aos estudantes, a partir da escolarização; e a consolidação dos interesses particulares da burguesia, representados pela mercantilização da educação, como se fossem interesses universais.

4 Considerações finais A reforma da educação proposta pelo capital financeiro, em plena pandemia, teve na adequação do ensino presencial, pela via da educação on-line, sua principal estratégia. Na agenda proposta por esses sujeitos coletivos a educação é entendida como mais um investimento, ou seja, uma mercadoria capaz de produzir mais capital, por um lado, e assegurar políticas focalizadas na pobreza, por outro. Diante dessa construção, as políticas para a educação têm como dimensão a responsabilização docente que nos documentos e estratégias encontra-se invertida ou oculta, de modo que o leitor mais inexperiente não consiga identificá-la sem uma análise aprofundada do documento. Identificamos nos documentos analisados a presença da responsabilização docente como propostas produzidas pelo BM e pelo BID. Concluímos que a dominação sobre a educação pública, em contínua expansão mesmo antes da pandemia, vem sendo desenvolvida de forma organizada e sistematizada, perpassando o controle da formação, da profissão docente e da luta dos profissionais da educação. Compreendemos que ambos, BM e BID, têm tentado justificar as dimensões da privatização, sob o comovente disfarce da defesa do direito à educação das crianças “vulneráveis”. A Educação como mercado está sujeita às suas próprias leis de concorrência. O aluno, ao ser transformado em “cliente”, é cobrado a se adequar aos diferentes padrões de qualidade que o mercado educacional pode oferecer. Prepara-se o fim de qualquer perspectiva universalista, pública e democrática. As formulações do BM e do BID não são propostas desinteressadas. Elas beneficiam as corporações privadas a partir do que eles vêm chamando de política de inovação. Essas propostas se traduzem na alienação do trabalho docente, na transformação de professores em entregadores e na entrega de um conhecimento produzido fora do ambiente escolar, além da imputação de responsabilidade pelo fracasso numa falta de preparação dos docentes para a “inovação”. Essas propostas ratificam a responsabilização docente, uma vez que, reafirmam que se o “direito à educação” não está acontecendo, é responsabilidade do professor fazê-lo acontecer, mesmo com o salário reduzido, mesmo sem horário de planejamento, mesmo com o aumento de alunos por turma. A pandemia tem sido vista como uma janela de oportunidades para os negócios corporativos, seja dos bancos, “big datas” ou Edtechs. A partir da venda de plataformas e produtos, os novos sujeitos da educação transformam o caráter social e educacional da escola e do trabalho docente em um serviço. As graves consequências para a perda de direitos trabalhistas e de postos de trabalho com a diminuição de salários e o aumento da concorrência entre trabalhadores – estratégia antiga de desorganização da classe –

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ainda serão sentidas nos próximos anos. Para o movimento dos trabalhadores da educação, o tempo e o espaço do Ensino Remoto alimentam a fragmentação e o individualismo. Essas políticas são a materialização da superexploração do trabalho docente que acarretam, além de todo o exposto, o aumento das doenças físicas e psicológicas derivadas do trabalho intermitente, irregular, provisório e outras categorias que afetam essa nova fração do “precariado”.

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COMO CITAR (ABNT): TUÃO, RENATA S.; LAMOSA, R. A. C. A agenda do capital financeiro para a educação da América Latina em tempos de pandemia. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 23, n. 3, p. 756-772, 2021. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v23n32021p756-772. Disponível em: https://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/15963. COMO CITAR (APA): Tuão, Renata S. & Lamosa, R. A. C. (2021). A agenda do capital financeiro para a educação da América Latina em tempos de pandemia. Vértices (Campos dos Goitacazes), 23(3), 756-772. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v23n32021p756-772.

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Submetido em: 27 fev. 2021 Aceito em: 6 jul. 2021

DOI: 10.19180/1809-2667.v23n32021p773-787

A Parceiros da Educação e o processo de colonização da educação pública Regis Eduardo Coelho Argüelles da Costa http://orcid.org/0000-0001-6103-4659 Doutor em Educação (2016) pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Políticas Públicas). Professor Adjunto de Ciência Política e Educação e Política da Educação no Brasil do Departamento de Fundamentos Pedagógicos da FEUFF (campus Gragoatá) – Niterói/RJ – Brasil. E-mail: rarguelles@gmail.com.

Resumo O presente trabalho buscou analisar criticamente a Parceiros da Educação (PdE), uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) sediada em São Paulo. Trata-se de uma instituição que busca mediar parcerias celebradas entre empresários ou empresas e escolas públicas com o objetivo de implementar um programa de intervenção em diversas dimensões da escola elaborado pela PdE. A investigação aqui apresentada buscou categorizar a estrutura organizativa da OSCIP, através da análise da composição de seu Conselho Executivo, de 2009 a 2013. Baseando-se na teoria de Estado marxista, especialmente nos trabalhos de Antonio Gramsci e Nicos Poulantzas, o estudo buscou analisar criticamente as conexões internas e externas da OSCIP no Estado ampliado. Os resultados demonstraram que a PdE é uma associação dirigida por representantes bastante significativos da burguesia que atua no Brasil, especialmente do capital financeiro. Suas conexões no Estado ampliado sugerem uma ampla rede de poder envolvida na colonização da educação pública, cujos tentáculos envolvem instituições como o Todos pela Educação, partidos políticos e postos-chave no aparato de Estado. Palavras-chave: Empresariamento da educação. Parceiros da Educação. Políticas educacionais. Estado.

Parceiros da Educação and the colonization process of public education Abstract The study presents a critical analysis of Parceiros da Educação (PdE), a Civil Society Organization of Public Interest (OSCIP) based in São Paulo, Brazil. It is an institution that aims at mediating partnerships between entrepreneurs or companies and public schools. Their objective is to implement an intervention program, prepared by PdE, in several dimensions of the school. The investigation presented here sought to categorize the organizational structure of OSCIP, through the analysis of the composition of its Executive Council, from 2009 to 2013. Based on the Marxist State theory, especially on the work of Antonio Gramsci and Nicos Poulantzas, the study sought to analyze critically the internal and external connections of OSCIP in the expanded State. The results show that PdE is an association run by very significant representatives of the bourgeoisie that operates in Brazil, especially financial capital. Its connections in the expanded State suggest a wide network of power involved in the colonization of public education, whose tentacles involve institutions like Todos pela Educação, political parties and key posts in the state apparatus. Keywords: Entrepreneurship of education. Parceiros da Educação. Educational policies. State.

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La Parceiros da Educação y el proceso de colonización de la educación pública Resumen El presente trabajo buscó analizar críticamente la Parceiros da Educação (PdE), una Organización de la Sociedad Civil de Interés Público (OSCIP) con sede en São Paulo, Brasil. Es una institución que busca mediar alianzas entre emprendedores o empresas y escuelas públicas, con el objetivo de implementar un programa, elaborado por PdE, de intervención en varias dimensiones de la escuela. La investigación aquí presentada buscó categorizar la estructura organizacional de la OSCIP, a través del análisis de la composición de su Consejo Ejecutivo, de 2009 a 2013. Con base en la teoría del Estado marxista, especialmente en el trabajo de Antonio Gramsci y Nicos Poulantzas, el estudio buscó analizar críticamente las conexiones internas y externas de la OSCIP en el Estado ampliado. Los resultados mostraron que la PdE es una asociación dirigida por representantes muy importantes de la burguesía que opera en Brasil, especialmente el capital financiero. Sus conexiones en el Estado ampliado sugieren una amplia red de poder involucrada en la colonización de la educación pública, cuyos tentáculos involucran instituciones como Todos pela Educação, partidos políticos y puestos clave en el aparato estatal. Palabras clave: Emprendimiento de la educación. Parceiros da Educação. Políticas educativas. Estado.

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A Parceiros da Educação e o processo de colonização da educação pública Regis Eduardo Coelho Argüelles da Costa

1 Introdução Parece haver um consenso no campo das políticas educacionais que os últimos 30 anos foram palco, em escala mundial, de mudanças significativas na organização e nos objetivos da educação pública. As mudanças em questão – comumente denominadas de “reformas educacionais” – foram, segundo seus partidários, uma adequação necessária às transformações estruturais já então em curso, denominadas vulgarmente de globalização. A educação formal, prosseguiam, deveria adequar-se o quanto antes ao processo de globalização, a fim de preparar as novas gerações para um mercado de trabalho e uma sociedade em mutação acelerada. As linhas gerais das reformas educacionais foram sistematizadas na Conferência de Jomtien, realizada em 1990. Financiada pelo Fundo das Nações Unidas pela Infância (Unicef), a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e o Banco Mundial, e reunindo 155 estados-nações, diversas organizações não governamentais (ONGs), agências supranacionais e intelectuais, a Conferência teve por produto final a “Declaração Mundial sobre Educação para Todos”. Nela, os signatários se comprometiam a assegurar uma educação básica de qualidade às crianças, jovens e adultos. Entre as estratégias recomendadas pela Declaração de Jomtien, sublinha-se a reestruturação administrativa do Estado. Essa reestruturação se daria através da utilização de sistemas de avaliação de resultados para a avaliação da aprendizagem e da necessidade de construção de uma relação orgânica entre o Estado e outros setores da sociedade, tais como organizações não governamentais, setor privado, comunidades locais, grupos religiosos e famílias (SHIROMA; MORAES; EVANGELISTA, 2011). Os pastores das contrarreformas dos anos de 1980 e 1990 caracterizavam o Estado como um entrave à gestão das políticas sociais, muito por conta da grandiosidade do aparelho burocrático construído ao longo do século XX. O caráter burocrático do Estado seria o responsável pelo desperdício de recursos públicos, estimularia a corrupção, dificultaria possíveis inovações de gestão e favoreceria o estabelecimento de estamentos. O modelo escolhido pelos reformadores para substituir o burocratismo de Estado foi aquele utilizado pelas empresas na gestão de seus negócios. Dessa maneira, o “Estado gerencial” tem por princípio, na condução das políticas sociais, a ideia de que tais políticas são algo como uma concessão de serviços à população, ou clientela. A manutenção e incremento da qualidade desses serviços só pode ser atingida com o estabelecimento de um regime de competição, que estimule a livre escolha dos clientes pelos melhores serviços. A “política de competitividade” (LAVAL et al., 2012) exige que sejam estabelecidas regras claras de competição e responsabilização, que podem ser definidas por métodos de avaliação padronizados, baseados em dados quantitativos. Um dos eixos das propostas de desburocratização das políticas sociais, especialmente na educação, repousa no estímulo às “parcerias” com a sociedade civil. De um lado, as parcerias contribuiriam na agilização e inovação das políticas, dada a maior capacidade de adaptação do setor privado. Além disso, o setor privado já traria consigo as “práticas eficazes” da gestão empresarial. Por outro lado, a possibilidade de estabelecer parcerias estimularia as empresas a desenvolverem ações de responsabilidade social, ampliando sua capacidade de interferência nas políticas sociais e de disputar o fundo público.

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A categorização positiva das “parcerias” entre Estado e sociedade civil organizada foi estrategicamente divulgada por aparelhos privados de hegemonia (APHs)1 empresariais, que são um polo aglutinador de intelectuais orgânicos e de outros APHs (GRAMSCI, 2000). De acordo com Fontes (2020), houve um aumento exponencial de APHs empresariais no Brasil a partir de 1988, voltados para atuar em áreas como cultura, educação e ambiente, os quais ganharam maior solidez durante os anos de 1990. Fontes (2020, p. 26) prossegue indicando a necessidade de análise dos diferentes APHs empresariais, à medida que existem alguns que “são constituídos por grupos de proprietários, outros por grupos de empresas, outros ainda reúnem proprietários, empresas e até mesmo outros APHs”. Em verdade, podemos inferir, pensando com Gramsci (2000, 2012), que os APHs empresariais e seus intelectuais orgânicos atuam em bloco em relação ao Estado, tanto em direção à sociedade civil quanto à sociedade política, no sentido de construir e reproduzir a hegemonia de classe. A respeito da educação, a literatura que investiga o empresariamento da escola pública e das políticas educacionais assinala que as interferências e transformações provocadas pela “parceria” com o setor privado são substantivas. Há impactos na formação, na autonomia, no salário e no regime de trabalho dos profissionais da educação; no financiamento e gestão da escola e dos sistemas educacionais; na oferta de matrículas; e no currículo (ADRIÃO; PERONI, 2005, 2008; FREITAS, 2012). Tudo isso, é claro, envolve uma ampla rede de poder que visa incrustar a lógica competitiva do mercado em todas as relações que compõem a educação formal. Parece-nos importante e relevante compreender, a partir de uma lente crítica, o funcionamento dessa rede empresarial no campo da educação. Uma investigação que dialogue com uma episteme crítica deve contribuir para a compreensão das estratégias políticas de construção de consensos em torno de uma agenda específica, a partir do entendimento das conexões que são formadas nos APHs, pelos diferentes APHs, e entre eles e os aparatos de Estado.2 Este trabalho integra um projeto mais amplo de pesquisa, cujo objetivo está na investigação das estruturas de poder da classe dominante que disseminam e implementam um conjunto de diretrizes para a educação pública a partir da análise dos APHs e seus intelectuais orgânicos. A fim de contribuir com essa tarefa, o presente trabalho apresenta uma pesquisa sobre a Organização da Sociedade Civil de 1

Em suas análises sobre os conteúdos e formas dos Estados capitalistas de seu tempo, Gramsci (2000) sublinhou que, nas formações sociais cujo desenvolvimento capitalista atingiu alto grau de complexidade, as tarefas e funções de dominação desempenhadas pelo Estado foram, de certa forma, ampliadas. Além do seu núcleo duro, composto em sua maioria por órgãos de poder coercitivo, Gramsci chamou atenção para organizações na sociedade civil que cumpriam o papel de “trincheiras e casamatas” em torno daquele núcleo duro ou sociedade política. Essas organizações foram denominadas aparelhos ‘privados’ de hegemonia (APHs) pelo marxista sardo e, em seu entendimento, eram elementos fundamentais para a compreensão do Estado capitalista, à medida que são eles que realizam a importante tarefa de construção do consenso e da adesão ao projeto de dominação política de classe. Os APHs são fundamentais no processo de organização dos intelectuais orgânicos, cujas funções conectivas e organizativas são responsáveis pela elaboração, sistematização e difusão do projeto de poder que responde às necessidades das classes fundamentais e suas frações. Em síntese, Gramsci (2000) está chamando atenção para as tarefas ampliadas de dominação exigidas em um Estado capitalista da fase monopolista e imperialista, no qual a produção de consenso é essencial, processo por ele denominado de hegemonia. 2 O método utilizado nesta pesquisa é o materialismo histórico-dialético, desenvolvido inicialmente por Karl Marx e Friedrich Engels, o qual pode ser sintetizado pela frase de Marx (2011, p.25): “Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles que escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram”. A análise deve, portanto, partir das ‘circunstâncias’, ou do concreto, que é a “concentração de múltiplas determinações, isto é, a unidade do diverso” (MARX, 2003, p. 410). O concreto é o ponto de partida para a intuição e a representação típicas do pensamento, cuja elaboração permite desvelar conceitualmente o todo caótico e, dessa forma, “as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto por meio do pensamento” (MARX, 2003, p. 410). Com isso, Marx e Engels invertem a dialética hegeliana para produzir um método de investigação da realidade concreta que dê conta das múltiplas determinações políticas, econômicas e culturais dos processos históricos, estabelecendo assim uma verdadeira teoria social.

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Interesse Público (OSCIP) paulista Parceiros da Educação (PdE). Fundada em 2004 pelo banqueiro Jair Ribeiro, essa OSCIP tem por objetivos melhorar a qualidade da educação oferecida pelas escolas públicas mediando parcerias entre empresas e empresários com essas escolas, e influenciar as políticas educacionais. Considerando, conforme discutimos até aqui, que a atuação política da PdE se dá em diversos planos, voltaremos nossa atenção para um desses aspectos. Buscar-se-á categorizar o APH a partir de sua posição de classe e de suas articulações com o Estado, movimento que entendemos estar no ponto de partida de qualquer análise que pretenda desvelar a política de hegemonia que marca o aparelho. Qual ou quais setores empresariais compõem a PdE? Quem são os intelectuais que dirigem o APH, e quais são suas conexões na sociedade civil e política? Na tentativa de esclarecer essas questões utilizou-se uma série de documentos que estão disponíveis no próprio site da OSCIP, tais como a composição do conselho durante o período estudado e a descrição do modelo e dos objetivos de parceria proposta pela PdE. A análise dos intelectuais orgânicos que dirigiam a PdE baseou-se amplamente em consultas de seus currículos disponibilizados à plataforma Lattes e à rede social LinkedIn. Os dados pesquisados serão referentes aos anos de 2009 a 2013, por se tratar de um período de grande atividade da PdE, no qual foram estabelecidas diversas parcerias com governos estaduais e prefeituras. Para ter acesso ao conteúdo dos anos de 2009 a 2013 no site da OSCIP fez-se uso da ferramenta web Wayback Machine, a qual possibilita o acesso do pesquisador às versões e aos documentos mais antigos de um site da internet. Afora a Introdução, o artigo está dividido em outras quatros seções. Na seguinte, desenvolver-se-á uma breve discussão teórico-metodológica sobre a questão do Estado capitalista de massas e o problema da dominação de classe, que funciona como um suporte à abordagem do APH empresarial em questão. Após essa seção, será feita uma breve descrição da PdE, seguida de uma seção onde analisar-se-á a composição da sua equipe dirigente, ou seja, de seus intelectuais orgânicos e de sua rede conexões e articulações do Estado. Por último, teceremos considerações sobre o tipo de circuito de poder estruturado pela classe dominante no sentido de intervir nas escolas e nas políticas educacionais.

2 A complexificação do Estado e a educação: aproximações teórico-metodológicas As transformações recentes na estrutura de exploração capitalista, impulsionadas pela crise econômica do início da década de 1970, produziram impactos diretos na divisão social do trabalho e na organização do Estado. Esses impactos foram sentidos, de diversas maneiras, no direito à educação pública e, portanto, nas políticas educacionais. Tratar do problema do Estado pela raiz é, em nosso entendimento, fundamental para entender as mudanças recentes nesse campo. Partindo de Poulantzas (1977), que entende que o Estado é a condensação das relações sociais em determinada formação política, com objetivos de assegurar a dominação de classe, é possível propor uma abordagem epistemológica das políticas educacionais que as considerem como elementos inseridos na totalidade do movimento histórico, o qual é sobredeterminado pelas relações hegemônicas de produção. A materialidade do Estado em cada formação social capitalista impõe, portanto, uma dinâmica própria às políticas educacionais. Desconsiderar essa relação implica no obscurecimento de um componente fundamental na análise das políticas.

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A teoria política marxista aponta que o Estado é, antes de tudo, um elemento de dominação de classe (MANDEL, 1971). Procura, assim, afastar-se de abordagens que caracterizam o Estado como um ator imparcial e desinteressado, que está acima dos conflitos sociais e, portanto, capacitado para arbitrálos. Ou, ainda, daquelas que consideram o Estado dotado de certa quantidade de poder político, que é usado pelos grupos que eventualmente o ocupam. Uma das contribuições mais decisivas para a questão do Estado encontra-se nos escritos carcerários do marxista Antonio Gramsci. Ao experimentar uma crescente e irresistível ampliação da esfera estatal e de associações civis nas primeiras décadas do século XX, Gramsci (2012, p. 24) questionou-se sobre a natureza dessas transformações. Segundo ele, a ampliação das funções organizativas e conectivas do Estado é o reflexo de importante modificação nos conflitos entre as classes sociais. Ocorre na arte política o que ocorre na arte militar: a guerra de movimento torna-se cada vez mais guerra de posição; e pode-se dizer que um Estado vence uma guerra quando a prepara de modo minucioso e técnico no tempo de paz. A estrutura maciça das democracias modernas, seja como organizações estatais, seja como conjunto de associações na vida civil, constitui para a arte política algo similar às “trincheiras” e às fortificações permanentes da frente de combate na guerra de posição: faz com que seja apenas “parcial” o elemento do movimento que antes constituía “toda” a guerra, etc.

Dessa maneira, a luta política passou a incorporar a problemática da hegemonia civil em uma formação social capitalista “maciça”, na qual o Estado e “associações da vida civil” – os APHs – desempenham importantes papéis, combinando coerção e consenso em caráter ampliado e complexo. A análise do movimento de hegemonia burguesa precisa considerar, portanto, a atuação do conjunto de seus APHs e de seus intelectuais orgânicos, através dos quais são estabelecidas relações de força que tensionam as classes fundamentais e suas frações. O modelo gramsciano privilegia, portanto, o caráter relacional presente na composição da estrutura de dominação política – o Estado ampliado – do capitalismo monopolista, relação esta que responde aos níveis políticos da luta de classes, nacionais e supranacionais. O processo de convencimento dirigente pressupõe, naturalmente, recuos e compromissos com os interesses das classes subordinadas. Portanto, a ampliação do Estado dá conta das estratégias lançadas pela fração de classe dominante (por exemplo, o capital financeiro), a fim de construir a unidade em relação à sua própria classe, bem como de estabelecer vínculos com os dominados, transformando-se, dessa maneira, em classe dirigente. Longe de ser um simples instrumento externo às relações sociais, o Estado articula-se a essas relações de consenso encouraçadas de coerção (BUCI-GLUCKSMANN, 2003; COUTINHO, 1999). A educação equivale, para Gramsci, às operações fundamentais de hegemonia (BUTTIGIEG, 2003). A tarefa de educar para determinado modelo de sociabilidade, apesar de não se restringir apenas à escolarização formal, faz da escola uma das instituições estratégicas para a construção de um projeto hegemônico de poder. O ensino formal deve ter por meta a preparação de intelectuais dos mais diversos níveis, de acordo com as determinadas necessidades econômico-políticas do Estado. O papel dos intelectuais no contexto da socialização da política se reveste aí de novas características, que também interferem no direito à educação e na função da escola, que é o espaço de sua formação. Cabe aos intelectuais orgânicos de novo tipo exercer funções de hegemonia social e do governo político, necessárias para a manutenção da ordem consentida e para a garantia da produção em moldes capitalistas.

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Dessa maneira, a ampliação do conceito de Estado corresponde à ampliação do conceito de intelectual nos Cadernos do Cárcere. Sua capacidade heurística está justamente na conexão que o intelectual estabelece entre o terreno da produção e o Estado ampliado; são os diversos níveis de intelectuais orgânicos, organizados em aparelhos privados de hegemonia, que assumem as funções de sistematização e divulgação, na sociedade civil e política, dos interesses das frações de classe que representam. Aqui esse conceito se reveste de grande importância à medida que instiga a análise da relação entre ONGs, Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs), Organizações Sociais (OS) e think tanks do empresariado, seus agentes sociais – os intelectuais orgânicos –, o aparelho de Estado e as políticas públicas para a educação. Essa abordagem nos convida a uma apreciação teórico-metodológica do Estado ampliado que está mais interessada no circuito que se estabelece entre sociedade política e sociedade civil do que em estabelecer as distinções entre os dois planos, tal como a que associa mecanicamente o Estado estrito à coerção e a sociedade civil ao consenso. A perspectiva relacional do par conceitual é, conforme Bianchi (2008, p. 177), a linha adotada pela reflexão gramsciana sobre o conceito de Estado ampliado, “na qual não existe uma rígida divisão de tarefas entre as duas esferas e, pelo contrário, tem-se em vista dar conta das novas tarefas hegemônicas próprias do Estado”. Outro desdobramento importante da perspectiva relacional está em evitar pensar os pares conceituais Estado estrito e sociedade civil, coerção e consenso, ditadura e hegemonia como elementos de uma operação algébrica de soma zero sugerindo, em seu lugar, uma dinâmica combinatória mais adequada ao movimento da história. Considerar a especificidade política das instituições em sua relação às classes sociais indica, em primeiro lugar, a possibilidade de abordagem das questões educacionais (O que ensinar? De que forma? Por quem?) como um espaço privilegiado de manifestações das lutas entre dominantes e dominados, que conserva uma historicidade própria. No que tange ao presente trabalho, tal consideração do movimento das lutas favorece, no nosso entender, a fluidez e o direcionamento de hipóteses ao objeto de estudo. Acreditamos que essa perspectiva revitaliza a utilização do conceito de lutas de classe, pois libera todo o potencial interpretativo contido na análise crítica das correlações de força, livrando-o do engessamento teórico-metodológico e de possíveis mecanicismos.

3 A Parceiros da Educação: empresários adotam escolas públicas Nessa seção do artigo nos voltamos para uma qualificação mais precisa da PdE para, a seguir, considerar sua estrutura organizacional e os intelectuais orgânicos que compõem essa estrutura. Trata-se de um movimento de análise que visa compreender o centro de poder3 formado através do APH, a partir das conexões estabelecidas no bloco histórico.4 Para isso, analisaremos a composição do Conselho da PdE 3

Conforme Poulantzas (1977), um centro de poder são instituições através das quais o poder de classe é efetivamente exercido. Por conseguinte, é através do PdE que a vontade da classe dominante para a educação se concretiza. Sua ação é fundamental para manter o fluxo discursivo das reformas educacionais direcionadas pela agenda empresarial da educação. 4 Bloco histórico é uma categoria gramsciana que busca dar conta da relação entre base econômica e superestrutura jurídico-política, evitando tendências economicistas e reformistas. Para tanto, a noção de bloco histórico valoriza a unidade dialética entre as condições materiais e a ideologia, chamando a atenção que tal distinção entre ambas é puramente didática, na medida em que o conteúdo das relações materiais não é concebível sem a produção ideológica correspondente, da mesma forma que ideologias sem nexo com o concreto são ideias soltas no ar. Trata-se, portanto, de uma categoria bastante operativa para dar sentido às ações da classe dominante no campo da educação, das quais o PdE se apresenta com um dos aparelhos mais proeminentes.

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do ano de 2009, estabelecendo 2 eixos principais de investigação: setor de atuação econômica e as associações na sociedade civil e política. A OSCIP Parceiros da Educação, com sede em São Paulo e Rio de Janeiro, foi fundada em 2004 pelo banqueiro Lair Ribeiro (Banco Indusval & Partners), e seus objetivos declarados são a melhoria da qualidade da escola pública e o de poder influenciar as políticas educacionais. A Parceiros da Educação mantém hoje parcerias com cento e cinquenta escolas do estado de São Paulo, distribuídas entre instituições estaduais e municipais. A OSCIP também já atuou em escolas públicas dos estados de Goiás, Rio Grande de Sul e Rio de Janeiro, locais onde os projetos já foram encerrados.5 O modelo de parceria estabelecido pela PdE busca identificar, de um lado, empresas e empresários com vontade de investir na educação pública e, de outro, escolas públicas que tenham interesse e potencial em estabelecer parcerias com a iniciativa privada. Atualmente existem diferentes modelos de parceria com os empresários ou empresas que pretendem se integrar ao projeto do APH, nos quais podem adotar uma ou mais escolas, de acordo com a capacidade de investimento de cada um. Todavia, no período analisado por esse estudo (2009-2013), existiam apenas diferenças do montante a ser investido pelo empresário ou empresa na parceria. Esses recursos são geridos pela PdE na execução das parcerias.6 Feita a mediação pela PdE e celebrada a parceria, o próximo passo é a construção de um Plano de Ação a partir de quatro eixos: pedagógico, gestão, comunitário e infraestrutura. Como pode-se perceber pelos eixos, a proposta da Parceiros almeja uma intervenção profunda na escola pública. Sublinha-se que eles são definidos pela própria OSCIP, que informa que os eixos fazem parte do Programa Parceiros da Educação. Dentre as ações prioritárias definidas, a OSCIP destaca a “Gestão escolar para resultados”, “Recuperação de Aprendizagem”, “Avaliação diagnóstica da aprendizagem de alunos”, “Formação continuada para coordenadores pedagógicos e professores”, “Uso de tecnologia educacional”, “Apoio à infraestrutura” e “Projetos de integração família-escola”. A documentação consultada também sublinha que 95% dos investimentos em parcerias são focados nos pilares pedagógico e de gestão. Em geral, a proposta de ação da PdE não difere muito das aplicadas em parcerias difundidas por outros APHs empresariais. Em um estudo sobre o projeto Rede Vencer, parceria do Instituto Ayrton Senna com municípios do Rio Grande do Sul iniciada em 2005, Peroni et al. (2009) destacaram que a iniciativa buscou melhorar a qualidade da aprendizagem dos alunos da escola pública. Esse objetivo seria alcançado através de medidas como correção do fluxo escolar, implementação de um novo modelo de gestão escolar e monitoramento dos resultados educacionais dos alunos. Já a parceria entre o governo do estado de Minas Gerais sob Aécio Neves (2003-2010) e a Fundação Brava, denominada “Alfabetização no Tempo Certo”, propôs uma intervenção no sentido de melhorar o desempenho do aluno em sua trajetória escolar, com ênfase em metas e monitoramento dos resultados, formação de pessoal para a execução da política, e valorização da “liderança gestora” do diretor escolar (CARDOSO, 2015). Como exemplo da densidade de sua rede de influência, assinalamos que, em 2009, a PdE, em conjunto com outras organizações da sociedade civil, firmou um plano de intervenção no sistema educacional do estado de São Paulo, com duas metas a serem cumpridas até o ano de 2030: qualificar a carreira docente, tornando-a mais atraente; posicionar a rede estadual paulista entre as vinte e cinco 5 6

As informações divulgadas nesse parágrafo e nos seguintes estão disponíveis em https://www.parceirosdaeducação.org.br. Acesso em: 20 fev. 2021. Além do aspecto ideológico, as doações de recursos para Organizações Sociais garantem ao doador pessoa física o direito a deduções fiscais no âmbito da Declaração de Imposto de Renda. No caso de pessoa jurídica, existe a previsão de dedução de impostos, como o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços.

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melhores do mundo. Esse plano ficou registrado no documento intitulado “A transformação da qualidade da educação básica pública no Brasil”, fruto de um seminário organizado pela própria Parceiros. O documento foi também assinado pelas seguintes organizações: Instituto Unibanco, Fundação Bradesco, Instituto Natura, Casa do Saber, Instituto Ecofuturo, Fundação Aprendiz e Fundação Educar.

4 Os circuitos da hegemonia da Parceiros da Educação A estrutura organizacional da PdE é constituída pelo “Conselho”, que reúne empresários “lideranças do setor privado (…) que traduzem como deve ser o compromisso da sociedade com o país”7, e o “Time”, que são os funcionários da empresa. No período estudado (2009-2013), além do Conselho, foi estabelecida uma coordenadoria geral. Dois dos onze conselheiros são “membros” executivos, ou seja, são aqueles que coordenam mais diretamente o APH. No Quadro 1, apresentamos o resultado da análise desses intelectuais orgânicos. Quadro 1. Rede de intelectuais da Parceiros da Educação

(continua)

Intelectual1

Parceiros da Educação

J.R.

Fundador

Capital financeiro

ANBIMA (Conselheiro)

Conselheiro

Comércio exterior

BRASSCOM (Conselheiro)

Coordenação Executiva

(Indusval,

Área de atuação

Banco

Intercap)

Conexões no Estado Ampliado2

Casa do Saber (Conselheiro) Conselho

Estadual

de

Educação-SP

(Conselheiro Ed. Básica) A.M.D.

Conselheira

Capital financeiro

Todos Pela Educação (fundadora)

Coordenação Executiva

Educação

Instituto Península (fundadora)

(Península Participações,

Instituto Pão de Açúcar (fundadora)

Instituto Singularidades)

Campanha presidencial de Geraldo Alckmin de 2018 (autora das propostas para a área de educação)

M.H.G.C

Coordenação Executiva

Professora universitária

INEP (Presidenta)

(UNICAMP)

Secretária de Educação do estado de SP Secretária de Assistência Social do estado de SP Secretária executiva do MEC ABAVE (Comitê científico) Todos pela Educação UNESCO (Comitê educacional) OCDE (Comitê educacional)

7

De acordo com o site: https://www.parceirosdaeducacao.org.br. Acesso em: 20 fev. 2021.

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Quadro 1. Rede de intelectuais da Parceiros da Educação Intelectual D.A.

F.B.

1

Parceiros da Educação Conselheira

Conselheiro

(conclusão) Conexões no Estado Ampliado2

Área de atuação Capital financeiro

Todos pela Educação

Educação

Fundação Roberto Marinho (diretora)

(BBD Participações,

Programa Alfabetização Solidária

Fundação Bradesco)

GIFE (conselheira)

Capital financeiro

Instituto Acaia (fundador)

(Itaú BBA)

Partido Novo (principais doadores) Todos Pela Educação

N.G.

Conselheiro

Comunicação

e

Marketing (Grupo

Assoc. Empreendedores Amigos da UNESCO (presidente)

ABC

de

Comunicação)

Clinton Global Initiative (membro) World Economic Forum (membro) Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (Governo Temer)

P.B.

Conselheiro

Capital financeiro (Rio

Fletcher School of Law and Diplomacy Tufts Verde

Investimentos)

University (Conselheiro) Instituto ABCD (Conselheiro) Incheon Center for International Cooperation and Exchange (Conselheiro)

R.S.

Conselheiro

Capital financeiro

Banco PAN (conselheiro)

(Banco BTG Pactual)

MercadoLivre.com (conselheiro) FEBRABAN (conselheiro)

Fontes: Currículos disponíveis na Plataforma Lattes (lattes.cnpq.br) e no LinkedIn (linkedin.com). Elaboração do autor. Notas do Quadro: 1 Os nomes dos intelectuais foram abreviados no Quadro 1 por questões de espaço. São eles: Jair Ribeiro (J.R.), Ana Maria Diniz (A.M.D.), Maria Helena Guimarães Castro (M.H.G.C.), Denise Abreu (D.A.), Fernão Bracher (F.B.), Nizan Guanaes (N.G.), Paulo Bilyk (P.B.) e Roberto Sallouti (R.S.). Vale lembrar que as áreas de atuação econômica dos dirigentes da PdE se referem ao período estudado (2009-2013). Nizan Guanaes, por exemplo, não está mais à frente do Grupo ABC de Comunicação. Foram excluídos 3 conselheiros do Quadro 1, à medida que seus currículos não apontaram nenhuma conexão importante no Estado ampliado no que se refere à educação. 2 Foi dada a preferência ao registro das siglas no Quadro 1, por questões de espaço. Seguem seus nomes por extenso: Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (ANBIMA), Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação (BRASSCOM), Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), Ministério da Educação (MEC), Associação Brasileira de Avaliação Educacional (ABAVE), Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (GIFE) e Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN). As associações selecionadas para o Quadro 1 não estavam necessariamente vigentes durante o período investigado. No caso, entende-se que a existência atual ou pregressa da associação do intelectual com um APH ou uma instituição do aparato de Estado já se configura como um índice considerável de sua atuação política. Ademais, as fontes pesquisadas são, muitas das vezes, omissas em relação a esse dado, especialmente quando se trata de uma instituição da sociedade civil.

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De um universo de 12 intelectuais que compunham o Conselho e a Coordenação Executiva da PdE, excluímos 3 do Quadro 1, à medida que suas conexões no Estado ampliado não apresentaram relevo para a problemática desenvolvida nesse estudo. O primeiro achado que nos chamou a atenção foi que a ampla maioria dos Conselheiros está ligada ao mercado financeiro – bancos, securitização, gestão de investimentos, etc. É evidente que o fato do fundador ser um banqueiro é um dos fatores explicativos, mas podemos ir além dessa causalidade simples. Se considerarmos o peso das instituições representadas no Conselho da PdE – Itaú BBA, Bradesco, Porto Seguro, BTG Pactual, Credit Suisse 8 , Península Participações – podemos inferir a relevância de um APH como o PdE, que congrega boa parte da burguesia financeira que atua no Brasil. Ademais, esse conjunto demonstra o interesse concreto desse setor em intervir diretamente nas políticas educacionais. A direção do aparelho está sob a responsabilidade dos três coordenadores executivos, cujas conexões no bloco histórico merecem uma análise mais detida. Dos três, o que tem menos experiência na área educacional é justamente o fundador da PdE. Em verdade, Jair Ribeiro conta que a inspiração para a fundação da PdE surgiu quando ficou sabendo da experiência de adoção de escola pública da periferia de São Paulo por um empresário. 9 A participação em APHs empresariais não é, contudo, estranha ao banqueiro, haja vista sua experiência nos conselhos da ANBIMA e da BRASSCOM. É importante assinalar o seu assento na Câmara de Educação Básica do Conselho Estadual de Educação de São Paulo (CEE-SP) desde 2009. Além de ressaltar suas relações com o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), que governa o estado de São Paulo por quase três décadas, sua participação no CEE-SP indica o grau de prestígio da atuação do PdE no campo educacional de um dos estados mais importantes da federação. As duas figuras que dirigem o PdE ao lado de Jair Ribeiro são exemplos stricto sensu de intelectuais orgânicas da burguesia para a educação. A empresária Ana Maria Diniz tem ligações com uma instituição privada de educação superior, o Instituto Singularidades, além de ser fundadora do Todos pela Educação, o APH que congrega os mais relevantes sujeitos coletivos e individuais do empresariado que visam interferir nas políticas educacionais. Além disso, Diniz fundou outros dois APHs voltados para a educação, o Instituto Pão de Açúcar e o Instituto Península, e foi a autora do programa de educação da candidatura de Geraldo Alckmin (PSDB) à presidência da república em 2017. Por último, a coordenadora executiva Maria Helena Guimarães de Castro, ex-professora da UNICAMP. Ela é uma destacada intelectual orgânica da burguesia que opera na articulação entre os dois planos estruturais do Estado. A professora já ocupou uma série de cargos de relevo no aparato de Estado, como a presidência do INEP durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e a secretaria executiva do MEC durante o mandato de Michel Temer (PMDB). Guimarães de Castro também possui relações com APHs supranacionais que figuram entre os grandes formuladores e divulgadores da agenda empresarial para a educação pública, tais como a OCDE e a UNESCO, e com diversos APHs nacionais que sistematizam e implementam essa agenda, como o já citado Todos pela Educação e a ABAVE. A análise da atuação dos três coordenadores da PdE aponta para uma característica fundamental do exercício da hegemonia, que são as articulações construídas pelos intelectuais orgânicos e sujeitos coletivos na sociedade civil e política. O conjunto das articulações apontam, no campo da práxis política, para as necessidades estratégicas de dominação de classe e para a indissociabilidade dos dois planos superestruturais do Estado, conforme ressaltou Gramsci (2000). A densidade das articulações 8 9

A conselheira ligada ao Credit Suisse foi uma das excluídas do Quadro 1 (ver a nota 1). De acordo com https://www.parceirosdaeducacao.org.br. Acesso em: 20 fev. 2021.

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encontradas confirma, portanto, o papel de relevo desse APH na sistematização e divulgação da agenda empresarial para a educação. Quanto aos outros conselheiros da PdE listados no Quadro 1, o padrão de conexões observado na análise dos coordenadores é bastante parecido. Sublinham-se as ligações com APHs hegemônicos, nacionais e internacionais, ligados à educação, como o já mencionado Todos pela Educação, a Fundação Roberto Marinho, a UNESCO e o Instituto ABCD. Os conselheiros também atuam ou atuaram em espaços como o World Economic Forum, o GIFE e a FEBRABAN, todos eles aparelhos burgueses de relevo. Por último, destacamos a relação orgânica de um conselheiro com o Partido Novo, partido cuja plataforma está intrinsicamente alinhada com a agenda empresarial para a educação. Além dos conselheiros acima, deve-se assinalar a função exercida pela diretora executiva, Lúcia Fávero, no arranjo de parcerias proposto pela PdE. Fávero coordenou por dezoito anos projetos sociais do governo do estado de São Paulo e trabalhou em APHs ligados à educação, como o Instituto Ayrton Senna e o Instituto Qualidade de Ensino. Ou seja, é uma intelectual que certamente cultiva relações com a burocracia paulista e tem experiência em outros APHs que buscam parcerias com sistemas públicos de educação. Tudo isso a credencia para o trabalho de definição das escolas parceiras, bem como para o acompanhamento das parcerias entre a PdE e o poder público. Conforme tentamos demonstrar ao longo dessa seção, a análise dos intelectuais que assumem tarefas centrais na PdE possibilitou o mapeamento de múltiplas conexões na sociedade civil e política. Foi possível compreender que o PdE é dirigido por uma fração relevante do capital financeiro, e por intelectuais associados a sujeitos coletivos e individuais com atuação na educação. Essas associações configuram uma densa rede organizada para a difusão de uma concepção de escola e de educação determinada pelos interesses da classe dirigente. Na seção a seguir, desenvolveremos considerações finais sobre os achados a as possibilidades de desdobramento apontadas por esta pesquisa.

5 Considerações finais É importante destacar, em primeiro lugar, as distintas camadas de investigação abertas pela análise de um centro de poder como o PdE através da teoria de Estado de inspiração marxista. Abordar o Estado como perspectiva relacional integrada à luta de classes permite captar as múltiplas e diversas conexões do PdE no tecido social e, dessa maneira, compreender a densidade e capilaridade de suas relações de poder no campo educacional. Tal operação reafirma, é importante ressaltar, o caráter estratégico da educação no processo de manutenção da hegemonia de classe. Os achados da pesquisa confirmaram o processo contemporâneo de ampliação do Estado no Brasil, cujo fator axial repousa no aumento quantitativo e qualitativo dos APHs da classe dominante. As associações dos intelectuais da PdE na sociedade civil e política, que envolvem outros APHs como o Todos pela Educação, o Instituto Ayrton Senna, a Fundação Roberto Marinho, partidos políticos como o PSDB, além da ocupação de postos-chave no aparato de educação do Estado, sugerem uma ação coordenada e ampla da burguesia – liderada pelo setor financeiro – e seus intelectuais orgânicos no sentido de aprofundar a colonização das políticas educacionais através da sua agenda. O PdE exerce uma função importante na estratégia de colonização burguesa das políticas educacionais através de suas “parcerias” com a escola pública. É um movimento que visa executar a agenda empresarial para a educação, algo como o braço executivo do Todos pela Educação. Sua ambição é a de

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interferir decisivamente na essência da educação formal, num processo que combina formação elementar para o trabalho simples e a conformação ideológica dos sujeitos da educação às exigências hegemônicas. Além disso, contribui para a coesão de classe ao retroalimentar a ideia de responsabilidade social do empresariado, à medida que conclama empresários e empresas a “adotarem” uma escola pública em nome da melhoria da qualidade do serviço educacional. É importante ressaltar esse ponto. A despeito de serem divulgadas sob a denominação de “parcerias”, essa categorização não se coaduna com a realidade. A ideia de parceria supõe a existência de uma horizontalidade de relações entre os parceiros, ou seja, uma disponibilidade de ação conjunta que se aproximaria de ideais democráticos de gestão da educação. Todavia, à medida que as ações de APHs como a PdE são portadoras de uma agenda elaborada fora da escola, a qual interfere profundamente no cotidiano da última, parece que se está diante de uma relação decisivamente hierarquizada entre os dois “parceiros”. É por isso que este trabalho defende que se trata, na verdade, de um processo de colonização da educação pública pela agenda empresarial, com objetivos claros de dominação do processo educativo e neutralização das resistências. À guisa de conclusão, entende-se que as possibilidades de pesquisa da PdE não se esgotam neste estudo. Uma outra relação importante a ser investigada se refere às escolas selecionadas pela PdE para a parceria. Afinal, trata-se de uma fase importantíssima do processo, que é a de escolher instituições que irão sofrer uma intervenção nada trivial. Para além do que é declarado pelo APH, quais são os critérios e as estratégias de aproximação às escolas? Quais foram os impactos da parceria no trabalho docente e na gestão escolar? São questões que estimulam o avanço da investigação e reafirmam as diversas possibilidades de investigação dos APHs empresariais voltados para a educação que, em suma, apontam mais para uma expansão do que para uma circunspecção do objeto de pesquisa.

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COMO CITAR (ABNT): COSTA, R. E. C. A. A Parceiros da Educação e o processo de colonização da educação pública. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 23, n. 3, p. 773-787, 2021. DOI: https://doi.org/10.19180/18092667.v23n32021p773-787. Disponível em: https://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/15965. COMO CITAR (APA): Costa, R. E. C. A. (2021). A Parceiros da Educação e o processo de colonização da educação pública. Vértices (Campos dos Goitacazes), 23(3), 773-787. https://doi.org/10.19180/18092667.v23n32021p773-787. 787 | VÉRTICES, Campos dos Goytacazes/RJ, v.23, n.3, p. 773-787, set./dez. 2021


Submetido em: 30 set. 2020 Aceito em: 6 jan. 2021

DOI: 10.19180/1809-2667.v23n32021p788-802

Os novos e velhos problemas do “Novo Fundeb”: análise da Emenda Constitucional 108/2020 Fábio Araújo de Souza http://orcid.org/0000-0001-5756-3654 Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio de Janeiro/RJ – Brasil. E-mail: f.asouza@yahoo.com.br.

Resumo Este artigo traz uma pesquisa cujo método se baseia no materialismo histórico e no dialético e objetiva esgotar as determinações do objeto de análise desvelando sua pseudoconcreticidade até chegar a sua essência. A proposta do Novo Fundeb, promulgada no Congresso Nacional (EC 108/20), apresenta-se como panaceia para os males do financiamento da educação básica no país. Contudo, os problemas do Fundeb criados pela EC 53/06 se acentuam com a nova EC 108/20. A capitalização da educação básica pública encontrou terreno fértil no novo mecanismo permanente de financiamento. Entre os elementos mais questionáveis, estão: a lógica mercantil na repartição do ICMS (quota-municipal) e da complementação do Fundeb (2,5%); a centralidade na elevação dos índices de aprendizagem – que pode gerar disputa injusta entre as redes com maior disponibilidade de recursos e as com menor; a consolidação da meritocracia e de possíveis fraudes nos indicadores; a inviabilização do Custo Aluno-Qualidade (CAQ) diante da nada generosa complementação do ente que mais arrecada tributos no país. Embora recheado de termos progressistas, do ponto de vista prático, o Novo Fundeb, provavelmente, não universalizará com qualidade a educação básica brasileira, assim como ocorreu com seu antecessor. Palavras-chave: Fundeb. Emenda Constitucional 108/2020. Novo Fundeb. CAQ.

The new and old problems of the “New Fundeb”: analyzing the Constitutional Amendment 108/2020 Abstract This article brings a research whose method is based on historical materialism and dialectic and aims to exhaust the determinations of the object of analysis revealing its pseudo-concreticity until reaching its essence. The proposal of the New Fundeb, promulgated in the National Congress (EC 108/20), presents itself as a panacea for the ills of financing basic education in the country. However, the problems of Fundeb created by EC 53/06 are accentuated with the new EC 108/20. The capitalization of public basic education has found fertile ground in the new permanent funding mechanism. Among the most questionable elements are: the mercantile logic in the distribution of the ICMS (municipal tax) and the complementation of Fundeb (2.5%); the centrality in the elevation of the learning indexes – that can generate unfair dispute between networks with greater availability of resources and those with less; the consolidation of the meritocracy and of possible frauds in the indicators; the impracticability of the CAQ in face of the not generous complementation of the entity that collects more taxes in the country. Although filled with progressive terms, from a practical point of view, the New Fundeb will probably not universalize with quality the Brazilian basic education, as it happened with its predecessor. Keywords: Fundeb. Constitutional Amendment 108/2020. New Fundeb. CAQ.

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Los nuevos y viejos problemas del “Nuevo Fundeb”: análisis de la Enmienda Constitucional 108/2020 Resumen Este artículo presenta una investigación cuyo método se basa en el materialismo histórico y en el dialéctico y tiene como objetivo agotar las determinaciones del objeto de análisis desvelando su pseudoconcreticidad hasta alcanzar su esencia. La propuesta del Nuevo Fundeb, promulgada en el Congreso Nacional (EC 108/20), se presenta como una panacea para los males de la financiación de la educación básica en el país. Sin embargo, los problemas de Fundeb creados por la EC 53/06 se acentúan con la nueva EC 108/20. La capitalización de la educación básica pública ha encontrado un terreno fértil en el nuevo mecanismo de financiación permanente. Entre los elementos más cuestionables se encuentran: la lógica mercantil en la distribución del ICMS (cuota municipal) y la complementación de Fundeb (2,5%); la centralidad en la elevación de los índices de aprendizaje - que puede generar una disputa injusta entre las redes con mayor disponibilidad de recursos y las que tienen menos; la consolidación de la meritocracia y de posibles fraudes en los indicadores; la impracticabilidad del Costo de Calidad Estudiantil (CAQ) ante la complementación poco generosa de la entidad que recauda más impuestos en el país. Aunque lleno de términos progresivos, desde un punto de vista práctico, el Nuevo Fundeb probablemente no universalizará con calidad la educación básica brasileña, como ocurrió con su predecesor. Palabras clave: Fundeb. Enmienda constitucional 108/2020. Nuevo Fundeb. CAQ.

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Os novos e velhos problemas do “Novo Fundeb”: análise da Emenda Constitucional 108/2020 Fábio Araújo de Souza

1 Introdução Este artigo tem como objetivo apresentar uma pesquisa que analisa criticamente a Emenda Constitucional 108, de 2020 (EC 108/20), que, entre outras propostas, pretende tornar o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) uma política permanente de financiamento da educação básica. Em 2015, deputados federais apresentaram uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) – instrumento que altera ou adiciona dispositivos à Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988 (BRASIL. CRFB, 1988). Trata-se da PEC 15/2015. Com o fim da legislatura (1/2/2015 a 31/1/2019), a PEC 15/15 foi arquivada, mas, em 2019, uma de suas signatárias, a deputada federal Dorinha Seabra, do Partido Democratas (Tocantins), requereu o desarquivamento, e a PEC voltou a tramitar como PEC 15-A. Muitas alterações foram feitas a partir de debates realizados no Congresso Nacional e, poucos dias antes da votação do relatório final, o governo federal apresentou sugestões de alterações na redação do texto a ser aprovado na Câmara dos Deputados. Contudo, a maioria das propostas foi rechaçada pelos deputados federais, que aprovaram a PEC 15-A em julho de 2020 (499 votos a favor e 7 votos contra) e enviaram ao Senado Federal tramitando como PEC 26/2020. Em agosto de 2020, foi aprovada integralmente no Senado Federal e promulgada no Congresso Nacional (Câmara dos Deputados e Senado Federal), em sessão solene, sem alterações no texto que veio da Câmara dos Deputados. O texto da EC 108/20 apresenta avanços e recuos em relação à proposta de criação de um mecanismo permanente de financiamento da educação básica cujo objetivo é a universalização do ensino e a garantia de um padrão de qualidade que permita, por exemplo, alcançar plenamente as metas e estratégias para a educação básica traçadas na Lei 13.005/2014 (BRASIL, 2014), que institui o Plano Nacional de Educação (PNE 2014-2024).

2 Abordagem ontológica da pesquisa Este artigo traz uma pesquisa que analisa os possíveis efeitos da EC 108/2020 no financiamento dos sistemas de ensino da educação básica brasileira. A ontologia marxiana concebe a realidade como uma articulação entre particularidade, singularidade e universalidade. Nesse sentido os elementos do objeto estão articulados a uma totalidade maior (TONET, 2013). Entendendo a orientação concreta do pensamento em direção à conexão total dos fenômenos, é possível compreender que o financiamento da educação no Brasil está diretamente ligado aos interesses hegemônicos das classes dominantes. Dito isso, é importante compreender como as políticas públicas ao serem desenhadas são “envernizadas” com tons progressistas, sobretudo para dar impressão de que estão atendendo às demandas da classe trabalhadora. Impossível acreditar que o governo brasileiro poderá estruturar uma política de financiamento público da educação pública que a universalize com um alto padrão de qualidade já que essa medida vai de encontro ao processo de alienação da força de trabalho promovido pelas classes dominantes. Nesse sentido, se a aparência do objeto ou do fenômeno social não é revelada a priori, é necessário desvelar sua pseudoconcreticidade, saturando suas determinações para alcançar sua essência (KOSIK, 1976). Para Marx (1975, p. 16):

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Os novos e velhos problemas do “Novo Fundeb”: análise da Emenda Constitucional 108/2020 Fábio Araújo de Souza

A investigação tem de apoderar-se da matéria, em seus pormenores, de analisar suas diferentes formas de desenvolvimento, e de perquirir a conexão íntima que há entre elas. Só depois de concluído esse trabalho, é que se pode descrever, adequadamente, o movimento real. Se isto se consegue, ficará espelhada, no plano ideal, a vida da realidade pesquisada […].

Desse modo, é fundamental analisar criticamente a EC 108/2020 para dissolver o que é imediatamente aparente e compreender a essência que lhe confere o seu verdadeiro sentido. O movimento, para isso, é de capturar a lógica que já existe na própria realidade. É necessário lançar mão das mais diversas técnicas de pesquisa (quantitativa e qualitativa) à luz do materialismo histórico e do materialismo dialético para conseguir esgotar as determinações do objeto. Ainda, segundo Marx (1982, p. 158): “As verdades científicas serão sempre paradoxais se julgadas pela experiência de todos os dias, a qual somente capta a aparência enganadora das coisas”. A visão salvacionista acerca do Novo Fundeb em relação à educação básica, pelas instituições e pessoas tanto do campo da esquerda quanto da direita indicam que suas análises se sustentam apenas na aparência do Novo Fundo. Diante disso, faz-se necessária uma análise que busque revelar a essência da EC 108/20 que cria o Novo Fundeb para que, assim, possam ser revelados os reais interesses dessa política. Esta pesquisa, contudo, nem de longe pretende esgotar todas as determinações desse objeto, haja vista que o processo de sua implementação será longo, o que demandará novas análises críticas para revelar as determinações dessa que é a mais importante e abrangente política de financiamento da educação básica no país.

3 Análise Crítica da EC 108/2020 O primeiro aspecto analisado da EC 108/2020 se refere aos critérios de distribuição da cota municipal do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS). Cabe ressaltar que, antes da promulgação da EC 108/20, o ICMS deveria ser distribuído da seguinte maneira, segundo a CRFB/88 (BRASIL, 1988): 75% ficariam com os estados e 25% com os municípios; do percentual que vai para os municípios, 75%, no mínimo, na proporção do valor adicionado nas operações relativas à circulação de mercadorias e nas prestações de serviços, ou seja, ligada diretamente à dinâmica da economia municipal, e 25% de acordo com o que dispusesse a lei de cada estado. A EC 108/20 determina uma alteração na distribuição da cota municipal do ICMS: 65%, no mínimo, na proporção do valor adicionado nas operações relativas à circulação de mercadorias e nas prestações de serviços e 35% de acordo com o que dispuser a lei estadual, sendo que, obrigatoriamente, no mínimo 10% serão distribuídos com base em indicadores de melhoria nos resultados de aprendizagem e de aumento da equidade, considerado o nível socioeconômico dos educandos. Reservar parte dos recursos do principal imposto nacional, em nível de arrecadação, para distribuí-lo a partir de aspectos meritocráticos é uma decisão que deve ser analisada com muita cautela, sobretudo porque pode acentuar a desigualdade em vez de diminuí-la (FREITAS, 2015). No Brasil, em 2019, segundo o Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), do Ministério da Economia (BRASIL, 2019), R$ 603 bilhões foram arrecadados pelos estados e Distrito Federal (DF) com ICMS. Isso significa que em torno de R$ 452 bilhões ficaram com os estados e R$ 151 bilhões com os municípios. De acordo com a EC 108/20, levando em consideração os valores de 2019, cerca de R$ 21 bilhões, no mínimo, obrigatoriamente deverão ser distribuídos com base na melhoria nos resultados de aprendizagem e de aumento da equidade.

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A distribuição do ICMS, através da dinâmica econômica, prioriza os municípios economicamente fortes, ou seja, capitais e grandes cidades (BRANDÃO, 2014). A distribuição do ICMS é a favor dos locais que concentram os empreendimentos econômicos e contra aqueles que concentram os consumidores, que normalmente demandam mais presença dos serviços públicos (ORAIR; GOBETTI, 2019). A EC 108/20 poderia atenuar essa desigualdade ao retirar 10% dos 75% e condicioná-los a uma distribuição que privilegiasse os municípios mais pobres e com necessidades de expansão de sua rede de ensino. Contudo, lançou mão de uma lógica redistributiva que poderá ir ao encontro da mesma lógica praticada atualmente, pois são os municípios com maior disponibilidade de recursos que, via de regra, poderão aumentar seus índices de resultado de aprendizagem aumentando, desse modo, suas receitas através dos 10% reservados aos indicadores de aprendizagem. É importante considerar que redes públicas da educação básica com significativo número de estudantes com pais analfabetos, com escolas sem infraestrutura adequada, com docentes recebendo remuneração pífia, entre outros limitadores, provavelmente não conseguirão aumentar seus índices. Além disso, o dispositivo da EC 108/20 estimula a busca por soluções para o alcance do aumento do índice de aprendizagem por parte dos governantes municipais, o que poderá gerar a busca pelo setor privado com seus “mirabolantes” serviços (projetos, consultorias, palestras…) para aumentar esses índices, o que resultará em recursos públicos aplicados no setor privado – ou simplesmente os governos podem recorrer às fraudes nas estatísticas, o que não tem sido incomum no cenário educacional brasileiro. Segundo a EC 108/20, os estados terão dois anos a partir da promulgação da emenda para aprovar lei estadual que discipline a distribuição dos recursos do ICMS para os municípios. Cabe salientar que esse mecanismo meritocrático afeta somente as redes municipais e não as estaduais, já que o percentual e a forma de distribuição do ICMS não se modificam para governos estaduais, o que significa uma injustiça já que muitas redes estaduais têm níveis de aprendizagem inferiores à de muitos municípios. A EC 108/20 propõe um dispositivo aditivo (163-A) com a finalidade de publicização de informações e dados contábeis, orçamentários e fiscais divulgados em meio eletrônico por parte de todos os entes federados. Indubitavelmente a divulgação ampla de dados contábeis, orçamentários e fiscais é importante, sobretudo referente às políticas sociais – dispositivo que pode permitir o controle e o acompanhamento social dos recursos da educação; contudo, cabe destacar que esta deve ser acompanhada de outros instrumentos que permitam que os cidadãos entendam e interpretem os dados, pois sem isso se torna uma medida inócua revestida de uma pseudodemocratização. Outro dispositivo que a proposta prevê é mudar o parágrafo 4º e incluir os § 6º e § 7º do artigo 211, que dispõe sobre a organização do regime de colaboração entre os sistemas de ensino. A proposta do § 4º é inserir os termos “a qualidade e a equidade do ensino obrigatório”. Contudo, o termo qualidade é polissêmico e não há regulamentação clara do que seria uma educação de qualidade. O Ministério da Educação (MEC), baseado em normas internacionais, superdimensiona a avaliação da aprendizagem dos estudantes dando ênfase aos testes padronizados e com isso estimula os governantes a avançarem nesse único indicador, reduzindo a qualidade a esse critério. Já o termo equidade (que admite desigualdades no desenvolvimento), desde 1980, tem substituído o conceito de igualdade. É importante ressaltar que a desigualdade é inexorável ao sistema econômico capitalista, que, para se expandir, tem como princípio a acumulação do capital não permitindo a sustentabilidade econômica, sobretudo de países subdesenvolvidos (MÉSZÁROS, 2002). O dispositivo usa “mantras” do Banco Mundial, mas em termos práticos pouco ou em nada colabora para a melhoria da educação pública através do financiamento.

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A ideia de associar custo/aluno/qualidade olhando para a questão federativa se intensificou com as discussões de Ediruald Mello (MELLO, 1989). Anos depois se tornou consenso para a maioria dos pesquisadores de financiamento da educação que esse seria o caminho para se desenhar uma política de financiamento da educação básica no país. No entanto, nem a Lei federal 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) nem as leis que instituíram os Planos Nacionais de Educação (PNE) (Leis 10.172/2001 e 13.005/2014) conseguiram que fosse implementada, para além do plano legal, uma política de melhoria da qualidade da educação através de condições de infraestrutura e funcionamento, valorização dos profissionais, acesso e permanência, da gestão democrática, entre outros. Além disso, o atual PNE (2014-2024) determinou que a definição do Custo Aluno-Qualidade (CAQ) deveria ser feita até junho de 2017 para se tornar parâmetro para o financiamento da educação de todas as etapas e modalidades da educação básica; porém, até a presente data, isso não ocorreu. Embora o § 7º do art. 211 da EC 108/20 determine que o CAQ será a referência para um padrão mínimo de qualidade para a educação básica, regulamentada através de Lei Complementar, é importante destacar que, segundo estudos da Campanha Nacional pelo Direito à Educação (CNDE), seria necessária uma complementação federal de 50% do total do Fundeb para alcançar um valor aluno capaz de melhorar as condições das escolas públicas no país. A EC 108/20 determina uma complementação de 23% que não se dará plenamente nos primeiros anos de vigência do Fundo, mas sim progressivamente, sendo totalizada após 6 anos da sua implementação. Segundo o documento Education at a Glance da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), desconsiderando a taxa cambial, a média do gasto por aluno/ano do ensino fundamental no Brasil é de US$ 3.750. A média dos países da OCDE é de US$ 9.400 (OECD, 2019). Isso significa que o país deveria convergir seus esforços para aumentar o valor investido por aluno/ano. Contudo, com a complementação ao Novo Fundeb aquém da necessidade das demandas educacionais do país, provavelmente o custo aluno/ano do país continuará figurando entre os mais baixos do mundo. Três dispositivos serão adicionados ao artigo 212, que trata da vinculação de percentual mínimo de impostos na manutenção e desenvolvimento do ensino (MDE). O primeiro é o § 7º, que proíbe o uso dos recursos da MDE e do salário-educação para o pagamento de aposentadorias e pensões – um inegável avanço, pois bilhões de reais do ensino anualmente são gastos com essa despesa. Segundo Souza (2019), em 2016, o governo estadual do Rio Grande do Sul aplicou ilegalmente em torno de R$ 1,4 bilhão do Fundeb com pagamento de aposentadorias e pensões. Cabe destacar que o novo dispositivo poderia ser mais abrangente e proibir o uso dos recursos da MDE e da educação com a despesa citada, pois, além do percentual mínimo de impostos e o salárioeducação, há outras fontes de recursos que devem ser aplicadas no ensino como, por exemplo, as compensações financeiras com a exploração e produção do petróleo e do gás natural do Pré-sal e os recursos do Fundo Social previstos na Lei 12.858/2013. O segundo dispositivo é o § 8º, que prevê a redefinição de percentuais para a MDE e para o Fundeb caso ocorra a extinção ou substituição de impostos. Nesse caso não haverá perda de receitas caso seja promulgada uma reforma tributária que acabe ou unifique algum(uns) imposto(s). Importante ressaltar que há duas PECs (45/2019 e 110/2019) no Congresso Nacional que propõem a reforma tributária. Ambas admitem que a mudança tributária poderá gerar perdas de arrecadação e de autonomia para alguns entes e como solução adotam propostas para compensar tais perdas através de medidas compensatórias.

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Cabe destacar que a Lei Complementar 87, de 13 de setembro de 1996, denominada Lei Kandir, que deveria compensar as perdas dos estados e municípios (por partilha) por ausência de regulamentação, impõe ano a ano vultosos prejuízos financeiros a esses entes federativos. Além disso, há 15 anos os estados lutam para que a União compense os prejuízos culminados pela eliminação do ICMS-Exportação promovida pela EC 42/03. Essas mudanças, em consequência, trouxeram prejuízos para o financiamento da educação. Isso significa que o dispositivo poderá ser inócuo caso seja implementada uma reforma tributária que mude as regras do sistema tributário. O terceiro é o § 9º, que trata da criação de lei que posteriormente regulamentará a fiscalização, a avaliação e o controle das despesas com educação nas esferas estadual, distrital e municipal. O dispositivo deixa de fora a União, o que é um equívoco, visto seu papel fundamental na coordenação da política nacional de educação e no financiamento da educação no país (BRASIL, 1988, 1996). O próximo dispositivo da emenda é o artigo 212-A – que será acrescido ao texto constitucional e, por isso, recebe a letra maiúscula no final, pois não se pode renumerar artigos (BRASIL, 1998), que constitucionaliza o Fundeb e mantém basicamente as mesmas regras do Fundo vigente. Não houve alteração na alíquota que estados, DF e municípios devem aportar para a composição do Fundo, ou seja, continuam os 20% de alguns impostos e transferências, e também não foi adicionado nenhum imposto novo, pelo contrário, foi retirado o recurso da Lei Kandir. Um problema não enfrentado pela emenda, mas que poderá estar na lei regulamentadora, refere-se à fiscalização dos entes que não contribuírem com a totalidade dos recursos obrigatórios para compor o Fundeb, ou seja, os 20% de impostos e transferências, seus juros e multas, e da Dívida Ativa de Impostos, seus juros e multas, determinados pela lei 11.494/07. Em 2018, o governo estadual do Rio de Janeiro, ilegalmente, não contabilizou os 20%, fato que resultou na não contribuição de quase R$ 1 bilhão ao Fundeb (RIO DE JANEIRO. TCE-RJ, 2018) – provavelmente, essa manobra não acontece somente no governo estadual do Rio de Janeiro. Uma das críticas ao Fundeb é justamente o fato de não ser composto por todos os impostos e transferências aplicados na MDE e por não ser composto pelo percentual de 25%, no mínimo, obrigatórios na MDE. Caso fossem aplicados, forçariam o aumento da complementação federal, que tem como limite mínimo a somatória de todos os fundos estaduais e distrital. Isso culminaria em receitas novas para os estados, DF e municípios (BASSI, 2018). Além de não prever a inclusão de mais impostos, a compensação da União pela desoneração das exportações prevista na Lei Kandir não entrará no cômputo do Fundeb permanente. Isso culminará na redução dos valores recolhidos e consequentemente em um valor menor da complementação da União. Atualmente há uma discussão no Congresso Nacional acerca do ressarcimento da União aos estados, ao DF e aos municípios da Lei Kandir. Criada no início da gestão Fernando Henrique Cardoso, em setembro de 1996, foi instituída pela Lei Complementar 87 com o objetivo de estimular a competitividade dos produtos brasileiros no exterior por meio da isenção do ICMS de produtos primários e semielaborados. Contudo, segundo o Comitê Nacional dos Secretários de Fazenda dos Estados e do DF (Comsefaz), as perdas líquidas dos entes subnacionais oriundas da não compensação da União chegam a mais de R$ 700 bilhões em valores reais. O governo federal propôs, através da PEC 188/19, que os entes perdoem a dívida, inclusive judicialmente, e em contrapartida irá compensá-los com R$ 65 bilhões. Como essa transferência não está incluída no rol que compõe o “Novo Fundeb”, logo o Fundo não contará com esses recursos. Um dos argumentos para a exclusão é de que há uma portaria da Secretaria do Tesouro Nacional (STN) que

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determina que a Lei Kandir componha o Fundeb. O argumento é frágil, pois a portaria se refere ao Fundeb criado pela EC 53/06 e não ao novo (EC 108/20) – o que pode trazer insegurança jurídica e culminar na não contabilização desses recursos ao novo Fundo. A EC 108/20 também não enfrentou outro sério problema do Fundeb que é a sua distribuição para os entes federados. Ela mantém a distribuição entre os estados e seus municípios, o que reduz o poder redistributivo, pois poderia ser entre os estados, aumentando assim seu efeito equalizador e fortalecendo o regime de colaboração previsto na CRFB/88. Em que pese a presença do Valor Aluno/Ano Total (VAAT) na distribuição da complementação federal, ele por si só não conseguirá atender a todas as redes carentes de arrecadação tributária capaz de consolidar um financiamento da educação que contemple um padrão de qualidade que permita a universalização e os insumos necessários das escolas brasileiras, bem como a remuneração condigna dos profissionais da educação. Outro aspecto importante se refere aos fatores de ponderação. Atualmente são 19 segmentos da educação básica com ponderações que variam de 0,80 a 1,30. Isso significa que as matrículas que valem 0,80 (80% da matrícula referência – anos iniciais do ensino fundamental urbano) expressam um valor 20% abaixo do valor mínimo aluno/ano referência. O ensino de jovens e adultos (EJA) com avaliação no processo é um dos segmentos que têm o valor citado, o que traduz uma injustiça para essa modalidade que tem desafios importantes para superar. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, dos 50 milhões de jovens de 14 a 29 anos no país, 10,1 milhões (20,2%) não completaram a educação básica (BRASIL, 2020). O aspecto importante é que os fatores de ponderação serão definidos pela lei que regulamentar o Fundo e deverão levar em consideração os custos dos tipos de segmentos e não uma disputa política entre redes estaduais, municipais e setor privado (instituições comunitárias, confessionais e filantrópicas) para ver quem “abocanha” mais recursos através da valorização do valor das matrículas que estão sob sua responsabilidade (BASSI, 2018). Além disso, a lei regulamentadora do “Novo Fundeb” deveria compor a Comissão Intergovernamental de Financiamento para a Educação Básica de Qualidade (instância que, entre outras funções, define os fatores de ponderação) com representantes de sindicatos, universidades, grêmios estudantis, união dos estudantes e demais instituições de defesa da educação básica pública para que dessa maneira fosse permitida uma democratização desse espaço de decisões, já que a gestão democrática na educação é um princípio constitucional. Hoje, segundo a Lei do Fundeb, a comissão é composta apenas por representantes do Conselho Nacional de Secretários de Estado da Educação (Consed), da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e do MEC, o que a torna exclusivamente estatal, ou seja, constituída apenas por secretários estaduais, municipais (um de cada região) e pelo ministro da educação. O principal aspecto que norteou as discussões do “Novo Fundeb” é a complementação da União ao Fundo. A EC 108/20 determina aumento de 13% além do percentual já praticado, ou seja, mais que o dobro do atual. Entretanto, essa complementação só será aplicada integralmente depois de meia década! A emenda prevê que, dos 23% de complementação, 10% seguirão a regra do atual Fundeb, ou seja, distribuídos para os Fundos que não alcançarem o valor mínimo aluno/ano definido nacionalmente. É importante lembrar que o governo federal calcula o valor mínimo nacional aluno/ano (o segmento de referência é o do ensino fundamental anos iniciais urbano, pois é onde se concentra o maior volume de matrículas dos 19 segmentos) com base na estimativa da receita dos 27 entes dividida pelo total de matrículas (do ano anterior) dos 19 segmentos da educação básica multiplicados pelo seu fator de ponderação. Já o valor aluno/ano de cada um dos 27 Fundos leva em consideração a estimativa de

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receita total dos estados e de seus municípios dividida pelo total de matrículas (do ano anterior) dos 19 segmentos da educação básica multiplicadas pelo seu fator de ponderação. Essa conta resultará no valor aluno/ano dos Fundos que não pode ser menor que o valor mínimo nacional aluno/ano. Sendo assim os Fundos que ficam com valor abaixo no valor nacional recebem a complementação federal. Observa-se que, ao contrário do que é propalado, o repasse dos recursos do Fundeb é determinado por outras variantes além das matrículas, tais como os fatores de ponderação e a estimativa de receitas. Isso significa que, mesmo não aumentando o número de matrículas, os entes podem ter aumento de receita com o Fundo. Esse fato aliado à política de avaliação da aprendizagem estimula a redução das matrículas e, portanto, isso se torna um impedimento para a universalização da educação básica. Por exemplo, em 2007, a rede estadual do Rio de Janeiro contava com 1.189.781 matrículas (que contabilizam para o Fundeb). Em 2020, conta com 670.950; por outro lado, as receitas com o Fundeb passaram de R$ 1 bilhão, em 2007, para R$ 2,9 bilhões, em 2020. A rede estadual saltou da penúltima posição do ranking nacional do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) do ensino médio, em 2009, para a 5ª posição em 2015. São necessários estudos mais aprofundados para analisar essa correlação entre matrículas, receitas e indicadores de avaliação da aprendizagem. Contudo, as políticas gerencialistas adotadas pelo governo estadual dão fortes indícios de que a redução da rede de ensino da educação básica está diretamente ligada à melhora dos resultados de aprendizagem medidos pelo Ideb nacional. A EC 108/20 não supera essa questão e até a aprofunda quando reserva parte da cota municipal do ICMS e da complementação (2,5%) para as redes de ensino da educação básica que aumentarem seus indicadores de aprendizagem. A segunda parte da complementação se refere ao percentual de 10,5% que, segundo a emenda, será distribuída com base no VAAT, cujo cálculo levará em consideração, pelo menos, os recursos do Fundeb, os 5% dos demais recursos da MDE que não entram no cálculo do Fundeb, as quotas estaduais e municipais do salário-educação, e a complementação federal ao Fundeb (10%), além de outras receitas e de transferências vinculadas à educação. É importante notar que, segundo a EC 108/20, demais receitas vinculadas à educação, e não somente à MDE, podem compor o cálculo do VAAT. Sendo assim, é importante que a lei regulamentadora abranja os demais recursos como, por exemplo, as compensações financeiras da produção e exploração de recursos naturais. No estado do Rio de Janeiro, somente a receita oriunda das compensações do Pré-sal gerou, em 2018, um montante de recursos de aproximadamente R$ 1,9 bilhão distribuído entre os governos estadual e municipais, do qual R$ 1,4 bilhão deveria ter sido aplicado na MDE, segundo a Lei federal 12.858/2013 (RIO DE JANEIRO. TCE-RJ, 2019). Outra dificuldade que a lei regulamentadora do Fundeb enfrentará, em relação ao VAAT, referese às variantes do fator de ponderação para seu cálculo: nível socioeconômico dos educandos, indicadores de disponibilidade de recursos vinculados à educação e potencial de arrecadação tributária. Atualmente, no país, o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), a Prova Brasil e o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) utilizam questionários contextuais que são preenchidos pelos educandos para auferir informações acerca de seu nível socioeconômico. O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) criou, a partir de dados acerca da renda familiar, da posse de bens e contratação de serviços de empregados domésticos pela família dos estudantes e do nível de escolaridade de seus pais ou responsáveis, o Indicador de Nível Socioeconômico (Inse), mas a discussão e a implementação do índice não avançaram. Embora esse possa ser um caminho para calcular o nível socioeconômico dos estudantes, é necessário lembrar que os questionários não são uniformes e apenas alguns alunos das etapas finais (5º,

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9º e 3º ano do ensino médio) respondem. O fato de serem respondidos pelos alunos também é um problema, pois eles podem marcar questões sem retratar a realidade, responder parcialmente ou mesmo não nos responderem. É importante ressaltar que os questionários não são aplicados em escolas com número baixo de estudantes. Além disso, esse instrumento não foi planejado com a finalidade de se criar um indicador, o que dificulta elaborar uma fórmula de cálculo (ALVES; SOARES; XAVIER, 2014). Por fim, mas não menos importante, fraudar e maquiar dados é uma prática utilizada por muitos governantes (haja vista o que ocorre com o Ideb), o que pode ser ainda mais intenso com os dados do VAAT, por se tratar de recursos que entrarão nos cofres dos governos, caso alcancem metas dos índices supracitados. O segundo índice trata da disponibilidade de recursos vinculados à educação que poderá ser um instrumento útil caso sejam contabilizados todos os recursos para a educação e não somente alguns, pois muitos entes federados dispõem de recursos a mais para a educação em seus orçamentos. Um deles é o da compensação por produção e exploração de recursos naturais, como foi destacado acima. O terceiro índice do potencial de arrecadação tributária é um aspecto muito importante, sobretudo por permitir que cada ente se esforce para aumentar suas receitas tributárias, porém isso não melhora um dos maiores entraves tributários que é a evasão fiscal. Além disso, os governos poderão aumentar a arrecadação tributária através do aumento de alíquotas, o que poderá prejudicar a classe trabalhadora, haja vista que 65% dos tributos no país incidem sobre bens e consumo e que essa é a classe que mais consome, embora, proporcionalmente, seja a que tem uma menor renda. Segundo o § 3º, do art. 212-A, 5,25% da complementação de 10,5% deverão ser destinados à educação infantil. Contudo, a EC 108/202 não determinou que tal percentual seja apenas para a educação infantil pública. Consequentemente, esses recursos vão, provavelmente, parar no bolso dos empresários do setor privado declarado sem fins lucrativos (confessionais, filantrópicos e comunitários) e/ou do terceiro setor (organizações não governamentais, organizações sociais de educação, fundações, institutos…). Em 2020, só na creche há mais de 560 mil matrículas conveniadas que recebem recursos através do Fundeb. Por fim, a complementação federal reserva 2,5% para as redes públicas que, cumpridas condicionalidades de melhoria de gestão previstas em lei, alcançarem evolução de indicadores a serem definidos, de atendimento e melhoria da aprendizagem com redução das desigualdades, nos termos do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Sinaeb). Contudo, a distribuição desses recursos só ocorrerá três anos após o início do “Novo Fundeb”. Esse percentual exclusivo para redes que aumentarem os índices de aprendizagem vai gerar uma disputa injusta, pois os sistemas com mais possibilidade de arrecadação terão mais recursos para investir em suas redes. Além disso, as medidas mirabolantes de setor privado para aumentar índices podem gerar uma contratação desse setor e com isso recursos públicos irão direto para o bolso dos empresários. Outro efeito é que tal medida poderá intensificar as fraudes e desestimular a universalização do ensino, pois menos matrículas representarão uma rede menor e mais fácil de melhorar os indicadores. Outra medida controversa da EC 108/20 se refere à reserva de 70%, no mínimo, da receita do Fundeb para o pagamento dos profissionais da educação básica em efetivo exercício, sendo que da parte da complementação de 10,5%, um mínimo de 15% deverá ser aplicado em despesas de capital (investimentos destinados ao planejamento e à execução de obras públicas, aquisição de instalações, equipamentos e material permanente, inversões financeiras, transferências de capital e amortizações da dívida pública) e que a complementação de 2,5% não poderá ser utilizada para pagamento dos profissionais da educação. Assim, para aqueles entes que receberão a complementação, somente 19% (23% [total da complementação] – 2,5% [complementação federal com distribuição baseada em melhoria de indicadores de aprendizagem] – 1,5%

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[15% de 10,5% reservados à despesa de capital]) poderão ser utilizados com o pagamento dos profissionais da educação. Cabe destacar que muitos entes subnacionais utilizam algo próximo de 100% dos recursos do Fundeb para pagamento dos profissionais do magistério e dos demais profissionais da educação. Além disso, a EC 53/06, que criou o Fundeb no seu art. 60, VI (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT), reservava 10% do valor da complementação federal para o Piso Salarial Profissional Nacional (PSPN), já a EC 108/2020 não tem essa reserva. O inciso XII do art. 212A determina que lei específica disporá sobre o PSPN para os profissionais do magistério da educação básica pública. Contudo, a atual lei 11.738/2008 dispõe do PSPN que determina o reajuste anual do piso através do percentual de crescimento do valor mínimo anual por aluno (VAA) estendido para os aposentados e pensionistas e de que um terço da carga horária dos profissionais sejam em atividades não diretas com educandos (BRASIL, 2008). A nova lei regulamentadora poderá não contemplar esses mecanismos de valorização que representam conquistas históricas dos profissionais do magistério.

4 Aspectos conclusivos É bem verdade que o Fundeb não universalizou a educação básica e tampouco elevou o padrão de qualidade a um alto nível. As matrículas diminuíram na maioria das redes de educação básica e, segundo o Censo da Educação Básica de 2018, das mais de 141 mil escolas, aproximadamente 10% não têm banheiro, 30% não têm água potável, 60% não têm esgotamento sanitário e 70% não têm quadra poliesportiva e biblioteca. Além disso, somos um dos países que pior pagam seus professores. Dessa maneira, o que se deve esperar do “Novo Fundeb”? A EC 108/20 apresenta muitos aspectos que devem ser analisados de forma crítica para que se possa entender quais os reais interesses que se ocultam nesse novo mecanismo de financiamento permanente da educação. A alteração dos critérios de distribuição da cota municipal do ICMS com base em aspectos meritocráticos terá efeitos para além dos desejados pelos defensores de tal medida, destacando o TPE e políticos do partido NOVO que defenderam tal mudança. A medida beneficiará municípios que tem recursos disponíveis para melhorar seus indicadores – o que não significa necessariamente a melhoria da qualidade do ensino –, além de intensificar as fraudes para o aumento desses indicadores, bem como a aquisição de medidas mirabolantes – nem sempre adequadas – de organizações privadas para o aumento dos índices supramencionados. O CAQ, tão propagandeado pela CNDE e por muitos políticos progressistas, está fadado ao mesmo destino que está tendo na Lei do PNE (2014-2024), ou seja, sua limitação apenas ao plano legal. Sua viabilização só seria possível com um aporte de recursos do governo federal que vai além do determinado pela EC 108/20 – 23% depois de quase uma década. Embora seja um avanço a medida de proibir o uso dos recursos da MDE e do salário-educação com aposentadorias e pensões, o texto da EC 108/20 poderia ser mais abrangente e proibir quaisquer recursos da educação com essa despesa. Outro aspecto controverso da emenda é de deixar de fora os recursos da Lei Kandir para a composição do Fundeb, pois dessa forma os 27 Fundos contarão com menos recursos tanto para sua composição quanto da complementação federal. A EC 108/20 não enfrentou problemas relevantes do desenho institucional do atual Fundeb, tais como: a contribuição dos entes com um percentual acima dos 20% dos impostos e transferências; a inclusão de novos impostos ou até mesmo de outros tributos; sua distribuição entre os entes federados estaduais e

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distrital; e a composição da Comissão Intergovernamental do Fundeb. Além dos velhos problemas (desenho institucional do Fundo), o “Novo Fundeb” aprofunda a capitalização do ensino e permite maior entrega de recursos públicos ao setor privado (organizações não governamentais, organizações sociais, fundações, instituições filantrópicas, confessionais e comunitárias…), além de acentuar a meritocracia através do condicionamento de repasse de recursos para aumento de índices de aprendizagem. A complementação federal passa de no mínimo 10% para 23% com a EC 108/20. Desse novo percentual, 10% será distribuído conforme as atuais regras do Fundeb. Para a implantação do VAAT é reservado um percentual de 10,5% da complementação federal. O VAAT aparece no discurso dos defensores da EC 108/20 como a panaceia para os entraves, sobretudo dos municípios com baixa arrecadação tributária. Contudo, somente a lei regulamentadora poderá especificar os detalhes da distribuição da cota de 10,5% da complementação federal para os entes. Como citado nesta pesquisa, o potencial de arrecadação tributária poderá ter um contra efeito ao estimular o aumento de alíquota de impostos. Além disso, metade desse percentual deverá ser destinado à educação infantil. A EC 108/20 não especifica qual o percentual disponibilizado para financiar apenas as vagas ofertadas pelo poder público, o que pode fazer com que parte desse recurso seja encaminhado para o setor privado. Os 2,5% restantes da complementação endossam a prática meritocrática de beneficiar entes através do aumento de indicadores de aprendizagem, como ocorrerá com o percentual reservado do ICMS municipal. Com relação à aplicação dos recursos, há uma mudança questionável na EC 108/20, pois ela reserva 70% dos recursos para pagamento dos profissionais da educação básica em efetivo exercício. Contudo, nem todo o percentual da complementação federal (dinheiro novo) deverá ir para pagamento dos profissionais da educação. Além disso, o atual Fundo reserva 10% da complementação para programas direcionados para a melhoria da qualidade da educação básica, que, no caso do atual Fundo, é distribuído para contribuir com o PSPN, não havendo a EC 108/20 mantido essa importante reserva, o que poderá dificultar o cumprimento da Lei n. 11.738/08. Por fim, apesar de o país não ter atingido mais de 80% das metas e estratégias do PNE (20142024) após seis anos de sua implementação, o “‘Velho’ Novo Fundeb’’ em pouco contribuirá para que nestes últimos quatro anos de plano se consiga avançar no cumprimento pleno das metas e das estratégias tão fundamentais para o avanço na qualidade da educação brasileira.

Referências ALVES, M. T. G.; SOARES, J. F.; XAVIER, F. P. Índice socioeconômico das escolas de educação básica brasileiras. Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação, Brasília-DF, v. 22, n. 84, p. 671-703, 2014. BASSI, C. M. Potencial Redistributivo dos Fatores de Ponderação: O Fundeb diante da Demanda dos Municípios. Brasília, DF: IPEA Diretoria de Estudos e Políticas Sociais, jul. 2018. (Nota técnica, n. 50). BRANDÃO, J. B. O rateio de ICMS por desempenho de municípios no Ceará e seu impacto em indicadores do sistema de avaliação da educação. 2014. Dissertação (Mestrado em Administração) – Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas, Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2014.

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COMO CITAR (ABNT): SOUZA, F. A. Os novos e velhos problemas do “Novo Fundeb”: análise da Emenda Constitucional 108/2020. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 23, n. 3, p. 788-802, 2021. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v23n32021p788-802. Disponível em: https://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/15888. COMO CITAR (APA): Souza, F. A. (2021). Os novos e velhos problemas do “Novo Fundeb”: análise da Emenda Constitucional 108/2020. Vértices (Campos dos Goitacazes), 23(3), 788-802. https://doi.org/10.19180/18092667.v23n32021p788-802.

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Submetido em: 1 abr. 2021 Aceito em: 22 jun. 2021

DOI: 10.19180/1809-2667.v23n32021p803-820

Aspectos históricos do financiamento da educação básica pública brasileira: a “democratização autocrática” Marco Vinícius Moreira Lamarão https://orcid.org/0000-0002-5561-9439 Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2013). Professor de História no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense Campus Macaé/RJ - Brasil. E-mail: marcolamarao@gmail.com.

Resumo O presente artigo analisa historicamente o financiamento da educação básica no Brasil, desde o período colonial até pós CF 1988. Para tanto faz uso, como fonte primária, das principais leis a tratarem do tema. Além da análise documental, a presente reflexão se apoia na teoria crítica educacional, buscando aproximar a temática do financiamento a categorias chaves de entendimento da realidade social brasileira, dentre elas: o modo de produção escravista colonial (GORENDER, 1980), capitalismo dependente (FERNANDES, 2005) e ampliação para menos (ALGEBAILE, 2009). À guisa de conclusão o artigo sugere a categoria de “democratização autocrática” como uma possibilidade analítica da educação pública brasileira. Palavras-chave: Democratização autocrática. História da educação. Financiamento da educação. Capitalismo Dependente.

Historical aspects of the financing of Brazilian public education: the “autocratic democratization” Abstract This article presents an historical analysis of the financing of basic education in Brazil, from the colonial period until after the 1988 federal constitution. For that purpose, the main laws that deal with the issue are used as primary source. In addition to the documentary analysis, this study is based on the critical educational theory, seeking to bring the issue of financing closer to key categories of understanding Brazilian social reality, among them: the colonial slave production mode (GORENDER, 1980), dependent capitalism (FERNANDES, 2005) and expansion to less (ALGEBAILE, 2009). In addition, the article suggests the category of “autocratic democratization” as an analytical possibility for Brazilian public education. Keywords: Autocratic democratization. History of education. Financing of education. Dependent Capitalism.

Aspectos históricos del financiamiento de la educación pública brasileña: la “democratización autocrática” Resumen Este artículo ha analizado históricamente el financiamiento de la educación básica en Brasil, desde el período colonial hasta después de la Constitución Federal de 1988. Para ello, se utilizan como fuente primaria, las principales leyes para tratar el tema. Además del análisis documental, la presente reflexión se basa en la teoría crítica de la educación, buscando acercar el tema del financiamiento a categorías clave de comprensión de la realidad social brasileña, entre ellas: el modo colonial de producción esclavista (GORENDER, 1980), el capitalismo dependiente (FERNANDES, 2005) y la expansión a menos (ALGEBAILE, 2009). En conclusión, el artículo sugiere la categoría de “democratización autocrática” como posibilidad analítica para la educación pública brasileña. Palabras clave: Democratización autocrática. Historia de la educación. Financiamiento de la educación. Capitalismo dependiente.

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1 Apresentação O presente artigo analisa a temática do financiamento da educação pública no Brasil percorrendo desde o período colonial brasileiro até o marco da aprovação do novo “FUNDEB1” (BRASIL, 2020), tendo como escopo de análise o corpus de documentos legais. Ante a tamanha pretensão frente a este recorte cronológico, esta será uma análise panorâmica do tema, sem com isso esgotá-lo, bem como não se atendo a minúcias. Entrementes, não se deterá a uma análise meramente descritiva. Interessa-nos, sobremaneira, perceber os interesses que se conflitam e se conflitaram na conformação dessas políticas públicas (bem como das propostas que foram derrotadas) buscando relacioná-las às contextualizações históricas da nossa sociedade em seus respectivos períodos históricos e constitucionais. Nesses termos, o conjunto de leis - que ora avança e ora recua na temática do financiamento da educação pública brasileira ao longo do tempo - deve ser entendido como reflexo das disputas das distintas classes sociais e grupos políticos e econômicos, etc. bem como suas correlações de força. Esta análise se apoia na vasta produção de pesquisadores do campo do financiamento da educação no Brasil, apropriando-se de parte da produção e reflexão de alguns destes pesquisadores ora de forma concordante, ora de forma crítica. Como fonte primária, procedeu-se à análise da legislação federal que apresente alterações no financiamento da educação, onde destacamos: a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988); a Lei que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB), Lei nº 9.394/1996 (BRASIL, 1996a); a lei que dispõe sobre o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF), Lei nº 9.424/1996 (BRASIL, 1996b; a lei que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), Lei nº 11.494/2007 (BRASIL, 2007); a lei que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), Lei nº 14.113/2020 (BRASIL, 2020). Como perspectiva de análise, a presente pesquisa parte da contribuição do pensamento gramsciano acerca da concepção de Estado (ampliado ou Integral). Isto nos leva a ver a sociedade política (Estado stricto sensu) não apenas por ele mesmo, mas em relação dialética com a sociedade civil. Além disso, a presente análise apoia-se em categorias oriundas das ciências históricas como modo de produção colonial escravagista (GORENDER, 1980); das ciências sociais como capitalismo dependente, desenvolvimento desigual e combinado, heteronomia, autocracia (FERNANDES, 2005), entre outras e do campo das políticas públicas educacionais como dualidade educacional, público vs. privado, ampliação para menos. Isso posto, a presente análise se posiciona do campo da Teoria Crítica da Educação sendo parte do esforço de se pensar as políticas educacionais, a escola, a educação e os processos educacionais através da categoria da totalidade, sem deixar de ressaltar as suas autonomias e particularidades. Por outro lado, no entanto, sem abstrair esta escolaeducação e processos educacionais - das relações sociais de uma determinada sociedade, suas classes em suas tensões dialética de um determinado espaço-tempo. Aqui, a categoria analítica da totalidade, como bem debate Kosik (1976), nos auxilia para que o processo de abstração científica das políticas educacionais, escola, educação e processos educacionais não se aparte da realidade concreta. Evitando torná-la tão somente uma ideação/idealização e que, para além da aparência fenomenológica do processo social - aquilo que o autor 1

Lei nº 14.113/2021 que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), de que trata o Art. 212-A da Constituição Federal; revoga dispositivos da Lei nº 11.494, de 20 de junho de 2007; e dá outras providências. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.113-de-25-de-dezembro-de-2020296390151. Acesso em: 1 maio 2021.

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denomina de pseudoconcreticidade - se perceba e se reflita a sua essência e seus aspectos determinantes permitam uma mais precisa relação na dialética aparência/essência. Isso posto, o presente texto aponta que a produção de narrativas sobre as políticas públicas educacionais está diretamente relacionada aos interesses das distintas classes em torno da concepção de escola pública. Afasta-se a narrativa sobre o fenômeno de mera casualidade como produtora de políticas públicas e direitos sociais e, colocada neste escopo, eivando estas políticas públicas de interesses e objetivos dos distintos grupos sociais em disputas, ao longo do processo histórico. No debate corriqueiro acerca da educação, a importância de se dispor de verbas suficientes é argumento perene nos distintos discursos e ideologias que abordam o tema. Todavia, a história do financiamento da educação pública no Brasil, bem como a análise das propostas oriundas da sociedade política sobre o tema- salvo raros momentos- não deixa termo ao contraditório: da “unanimidade” aparente do discurso desvelam-se tensões e inúmeras disputas. De um lado, os defensores do financiamento público à escola pública exclusivamente e, de outro lado, os “privatistas” ou aqueles que ora propõe a necessidade do financiamento público às iniciativas educacionais particulares e confessionais ou defendem ser desnecessária a vinculação de recursos do orçamento dos entes federados destinados à educação. Para o fim desta análise, utilizar-se-ão os recortes cronológicos já consagrados na historiografia brasileira, em particular em sua dimensão política, e as mudanças constitucionais tão frequentes na nossa breve república. Ao longo da exposição histórica, pretendemos ressaltar os aspectos da nossa formação social que, da perspectiva aqui assumida, permitem analisar a sociedade brasileira através da categoria do capitalismo dependente (FERNANDES, 2005) e, mais precisamente, o papel da (negação/expansão) da educação na reafirmação do modus operandi autocrático de nossas elites, tendo o financiamento da educação papel central neste processo. Sugere-se que, portanto, as políticas de financiamento (ou não) da educação cumprem papel central na produção daquilo que denominaremos de “democratização-autocrática” da escola pública brasileira.

2 Breves apontamentos acerca do financiamento da educação na Colônia e no Império Por todo o longo período colonial é factível afirmar que a educação das populações locais- em especial os jovens filhos das classes mais abastadas- permaneceu a cargo da Igreja Católica, com destaque para a Companhia de Jesus. Os jesuítas passam a contar, a partir de 1564, com a redízima, tendo dez por cento da dízima destinada à manutenção dos colégios dos jesuítas, incrementando, com isso, a iniciativa educacional jesuítica (MONLEVADE, 2012). Embora não houvesse separação entre o Estado e a Igreja sendo a Igreja católica parte integrante da estrutura estatal portuguesa- bem como colonial -, não se concorda com a ideia de que a Igreja católica utilizava-se de recursos públicos naquela época, como salienta Luziriaga (apud SAVIANI, 2013). Ora, o fundamento jurídico do estado monárquico é distinto do da república, não podendo se imputar à monarquia- sob o risco de grave anacronismo - princípios oriundos de outras formações estatais ao longo da história. Crê-se mais preciso afirmar que os jesuítas, através da redízima, faziam uso de recursos do Estado Colonial. Decerto que parcela substancial da riqueza produzida no Brasil colonial tenha sido sob a forma do trabalho escravo negro e que sabidamente os jesuítas eram proprietários escravagistas: não só de corpos pretos, como de nativos2. Isto torna evidente a assertiva de que o trabalho escravo negro e nativo será um dos aportes 2

Monlevade (2012, p. 4) estima que a imensa riqueza das fazendas jesuíticas “tenha atingido 25% do Produto Interno Bruto- PIB- colonial, por volta de 1750”.

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de recursos para os colégios jesuítas destinados à formação dos filhos da classe dominante colonial. Por outro lado, estes mesmos jesuítas desempenhavam importante papel no ensino de ofícios às classes subalternas: a experiência obtida no ensino de ofícios aos nativos fazia dos jesuítas personalidades disputadas pelos senhores de engenho a fim de repetir em suas propriedades aquela modalidade de ensino (CUNHA, 2005). Com a ascensão do Marquês de Pombal, dá-se a expulsão dos jesuítas de todo o território luso, inclusa a colônia brasileira. Outrossim, desarticula-se a anterior iniciativa educacional que tinha os jesuítas como seus próceres. Visando substituir a iniciativa anterior, Pombal institui as “Aulas Régias” que serão mantidas mediante a cobrança de um novo imposto denominado “subsídio literário”. Imposto que incidia sobre açougueiros, produtores de vinhos e de cachaça (MONLEVADE, 2012). Todavia, o imposto não conseguiu cobrir as expensas de uma política educacional mais robusta, sendo muito comum o ‘professor régio’ ter outra ocupação como fonte auxiliar (ou principal) de renda (CUNHA, 2005; MONLEVADE, 2012). Cunha (2005) destaca outras medidas tomadas pós expulsão dos jesuítas pelo Marquês de Pombal: As principais medidas foram as seguintes: (i) Criação da Diretoria-Geral de Estudos, diretamente subordinada ao rei, encarregada de gerir todos os assuntos ligados ao ensino, com ramificação em todo o reino, por meio de diretores locais e comissários; (ii) controle da educação escolar mediante a proibição do ensino, mesmo a título de aulas particulares, por pessoas que não tivessem sido aprovadas em exames de habilitação e idoneidade comprovada pela Diretoria-Geral de Estudos ou por seus delegados; (iii) controle do conteúdo dos livros, submetendo-os à Real Mesa Censória, atividade até então a cargo do Santo Ofício; (iv) criação das "aulas régias", compreendendo tanto o ensino de ler e escrever quanto o das humanidades, mantidas pelo Estado com os recursos provenientes do "subsídio literário", imposto cobrado sobre o consumo de carne e a produção de aguardente. Outras medidas também foram tomadas pelo governo pombalino, como a criação de uma aula de comércio e do Colégio dos Nobres, assim como a reforma da Universidade de Coimbra. (CUNHA, 2005, s.p).

Com a vinda da Família Real em 1808, a Coroa portuguesa sente a necessidade de instalar no Brasil cursos superiores como forma de nutrir a sociedade civil e o Estado (sociedade política) de quadros dirigentes e técnicos especialistas. Com isso, foram […] criados a Academia de Marinha e as cadeiras de anatomia e de cirurgia (em 1808); a Academia Real Militar (em 1810); o curso de agricultura (em 1814); o curso de desenho técnico (em 1818); a Academia de Artes (em 1820). Na Bahia, foram criadas as cadeiras de cirurgia e de economia política (em 1808); o curso de agricultura (em 1812); o curso de química (em 1817). Outras cidades abrigaram, também, instituições de ensino superior, como a cadeira de matemática superior, criada em Recife ou Olinda, em 1809; a cadeira de desenho e história, em Vila Rica, em 1817. (CUNHA, 2005, s.p.).

Com a emancipação brasileira da sua condição de colônia stricto sensu, dá-se a promulgação da Constituição de 1824. Ela, todavia, não traz grandes elaborações acerca das políticas educacionais, a não ser a vaga determinação de que a Instrução Primária seria gratuita a todos os cidadãos. Na categoria cidadão não estavam incluídos os escravos3. Em 1827, fora aprovada a lei que ficaria conhecida como ‘lei das escolas das primeiras letras’ (SAVIANI, 2013). Nela, se estabelecia que em cidades, vilas e lugares mais populosos haver-se-ia de instalar escolas de primeiras letras onde fossem necessárias. Não obstante, não se determinava quais os recursos ou fontes do orçamento imperial seriam destinados à consecução desta política. 3

Importa notar que não eram considerados cidadãos, também: as mulheres, os nativos, os sem posses e os analfabetos.

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Com a abdicação de D. Pedro I ao trono brasileiro em favor do trono português, em 1831, inaugurou-se no Brasil o denominado período regencial, marcado pela disputa entre “liberais” e conservadores, ambos os grupos expressando, com pequenas distinções, as perspectivas das classes dominantes que eram, efetivamente, quem detinha o pleno usufruto dos denominados direitos políticos. Além de, obviamente, os escravos não terem acesso aos direitos políticos, estes eram vedados também às classes populares, haja vista a participação política só ser possível mediante comprovação de renda. Se a participação política censitária e a manutenção da escravidão, bem como do regime monárquico de governo, gozavam de certo consenso entre a maior parte dos “liberais” e conservadores, o mesmo não se podia dizer acerca da centralização do poder na figura do rei. O principal debate que cindia liberais e conservadores do período do Império dava-se em torno das propostas federalistas defendidas pelos liberais e obstadas pelos conservadores. Aqui, faz-se importante levantar alguns aspectos da formação do Estado Nacional brasileiro, bem como da nossa sociedade, antes de prosseguirmos a perquirição sobre as políticas de financiamento da educação. De antemão, registra-se a escusa pelo extenso (mas necessário) détour. O processo de ocupação colonial do território que viria a ser chamado Brasil dá-se mediante a tensa imposição das perspectivas lusitanas nesse território. Todavia, os lusos não lograriam êxito se não tivessem promovido: a) a diáspora africana; tornando o Brasil o principal destino do tráfico internacional de escravos africanos; b) a submissão e o genocídio aos povos originários ora mantendo esses povos sob o controle intenso das missões e reduções jesuíticas, ora, legitimados pela “guerra justa”, promovendo verdadeiro genocídio- intencional ou mesmo via transmissão de doenças- a estes povos. Nestes termos, aqui se assume a categoria formulada por Gorender (1980) e Cardoso (2016) de modo de produção escravista colonial. Essa categoria é pensada como chave de análise das relações sociais de produção no Brasil colonial que, embora tivesse a relação de trabalho escravo como fulcro desta sociedade, não menospreza nem elimina outras formas de trabalho na colônia brasileira, em especial as formas de trabalho compulsório. Isto posto, o modo de produção escravista colonial permite-nos visualizar o trabalho escravo com outras formas de trabalhos existentes na colônia, desde o trabalho “livre” até outras formas de trabalho compulsório, afirmando a possibilidade de coexistência não antagônica entre estes tipos específicos de trabalho numa formação social particular, e distinta, portanto, dos processos históricos dos países centrais. A proclamação da independência do Brasil, se significou uma ruptura da dependência política a Portugal; não significou, sobremaneira, a ruptura da dependência econômica brasileira. O Brasil fora inserido na divisão internacional do trabalho sob a forma de colônia- exportadora de matérias-primas. Sua produção se baseava na plantation4 e o processo de ruptura da colônia à metrópole se deu sob a égide das elites coloniais, inclusa a família real. Com isso, não ocorrerá- na emancipação política do Brasildeterminantes alterações nestes aspectos ‘estruturantes’ da sua formação econômica, a salvo pelo fim do exclusivo comercial (FAUSTO, 2008). Além disso, conforme dito, esta formação se consubstanciou sob os auspícios de uma elite escravagista e segregacionista e sob a forma monárquica de governo, conformando caso único das independências da América Latina. Enquanto os demais países latino-americanos consolidavam sua independência sob a forma republicana de governo, o Brasil se destacava dos demais ao assumir o regime monárquico. Como se não bastasse a monarquia censitária, a manutenção da escravidão, do latifúndio, da monocultura e da exportação de artigos primários para o exterior, o Estado imperial brasileiro se 4

A plantation é a forma típica de produção das denominadas colônias de exploração e se caracterizam pela reunião de fundamentais aspectos na produção das mercadorias exportadas: baseava-se no exclusivo comercial, no trabalho escravo, na monocultura, no latifúndio, na produção para a exportação e no uso extensivo da terra.

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destacou pela existência de um quarto poder: o “poder moderador”. Este poder, a cargo exclusivo do Imperador, revelava a faceta autoritária da Constituição de 1824. Por intermédio deste, o Imperador detinha a prerrogativa de intervenção nos demais poderes constituídos (executivo, legislativo e judiciário), além do senado vitalício5 e do Conselho de Estado. Estes são, portanto, aspectos cruciais e fundantes tanto do Estado Nacional brasileiro quanto da nossa formação social6 (BASILE, 2016). Finalmente, retomando a temática das políticas educacionais e suas fontes legais de financiamento, a determinação prevista na Constituição de 1824 (de instituição de escolas de primeiras letras “onde fosse necessário”) - adendada pela legislação de 1827, que determinava a sua gratuidade - será rapidamente atravessada pelo Ato Adicional de 1834, antes mesmo de serem postas em prática (SAVIANI, 2013). Neste quesito, inspirado no federalismo, as escolas de primeiras letras tornam-se responsabilidade das províncias. Elas podem, para tanto, criar novos impostos que subsidiem as iniciativas educacionais, naquilo que Monlevade (2012) denominará de impostos subnacionais. O autor dá destaque à discrepância regional do financiamento da educação e do salário do magistério, dada a diferença na capacidade arrecadatória das províncias, uma vez que Rio de Janeiro (capital imperial) e São Paulo (ascensão do café) gozavam de melhores condições. Neste processo de descentralização educacional, muitas serão as províncias cujo acesso às escolas de primeiras letras será vedado, por ordenação legal, aos escravos, aos libertos ou mesmo aos negros em geral e, quiçá, aos nativos. Portanto, se é correto afirmar que havia uma interdição legal ao acesso dos negros à escola pública, o essencial desta interdição estará nas legislações provinciais e não na Constituição Imperial, conforme erroneamente costuma-se afirmar, de acordo com Barros (2016). Embora as iniciativas imperiais no campo educacional neste período sejam exíguas, destaca-se a criação do Colégio Pedro II, em 2 de dezembro de 1837. Saviani (2013, p. 748) destaca: Durante os 49 anos correspondentes ao Segundo Império, entre 1840 e 1888, a média anual dos recursos financeiros investidos em educação foi de 1,80% do orçamento do governo imperial, destinando-se, para a instrução primária e secundária, a média de 0,47%. O ano de menor investimento foi o de 1844, com 1,23% para o conjunto da educação e 0,11% para a instrução primária; e o ano de maior investimento foi o de 1888, com 2,55% para a educação e 0,73% para a instrução primária e secundária.

De forma sucinta, o período imperial brasileiro fora marcado por uma sociedade altamente ruralizada, na qual prevalecia o latifúndio e a concentração de terra e rendas, crivada pela presença do trabalho escravo negro, etc. que garantia, mesmo que esparsamente, o letramento inicial de parcela da população brasileira: em especial das parcelas mais abastadas. Na outra face, em muitas províncias, os negros, libertos e escravos eram proibidos de frequentar as escolas gratuitas. A abolição da escravatura, em 1888, não será acompanhada por políticas sociais que possibilitem a melhor integração do ex-escravo na sua condição de “livre”. Dentre estas ausências de políticas sociais, estará o direito ao acesso à educação. Por outro lado, o Estado brasileiro, cuja participação política era censitária e onde se tinha a presença de um poder moderador concentrado nas mãos do Imperador, não envidava grandes esforços no sentido da 5 6

O legislativo era bicameral formado, além do Senado, pelo Congresso. Não é objetivo desse texto adentrar no intenso debate historiográfico acerca do caráter principal da nossa sociedade, bem como menosprezar a profícua pesquisa historiográfica que salienta aspectos econômicos para além da economia agrário-exportadora ou aquilo que ficou conhecido, a partir de Caio Prado Jr., como o “sentido da colonização”. Autores como Fernando Novais, João Fragoso, Manolo Florentino, Ciro Flamarion Cardoso e Jacob Gorender produziram contribuições originais problematizando alguns aspectos destes determinantes centrais. Entrementes, para os intentos deste texto, não se fará essa digressão historiográfica, seja porque nos faltará espaço, seja porque este não é o escopo central. Todavia os autores acima elencados servem de referência àqueles que desejam ter um maior aprofundamento deste debate.

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escolarização da população brasileira naquele tempo. Estas características acima elencadas terão na negação/expansão da escola importante mecanismo de estratificação social desde então até os dias atuais.

3 O financiamento da educação nos textos legais no período republicano Brasileiro A primeira constituição republicana também não trará expressivas alterações aos dispositivos legais acerca da educação. De acordo com Gonçalves, A Constituição de 1891 não contemplou o direito à instrução primária gratuita e trouxe poucas disposições sobre a questão educacional, basicamente o artigo que dispunha: “Incumbe, outrossim, ao Congresso, mas não privativamente: (…) 3º Criar instituições de ensino superior e secundário nos Estados; 4º Prover a instrução secundaria no Distrito Federal”; e o artigo 72, 6º “Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos.” (GONÇALVES, 2013, p. 39).

Acerca do financiamento público da educação, suas fontes e receitas não há nela nenhuma referência. Mantém-se, portanto, a estrutura herdada do período anterior, quando boa parte da responsabilidade pela oferta educacional era incumbência das antigas províncias (agora estados) pertencentes ao regime republicano federalista dos- então nominados- Estados Unidos do Brasil. Consequentemente, ao longo da Primeira República o ensino permaneceu praticamente estagnado, o que pode ser ilustrado com o número de analfabetos em relação à população total, que se manteve no índice de 65% entre 1900 e 1920, sendo que o seu número absoluto aumentou de 6.348.869, em 1900, para 11.401.715, em 1920. (SAVIANI, 2013, p. 749).

Todavia, o deficit educacional brasileiro não passará despercebido nos primeiros anos de república, mesmo ela estando sob a hegemonia das oligarquias cafeicultoras e rurais. Em 1930, mediante um golpe de Estado, Getúlio Vargas e uma aliança oligárquico-industrial ascendem ao poder. Em 1932, fruto do debate acumulado de décadas anteriores por intelectuais como Fernando Azevedo, Roquette Pinto, Delgado de Carvalho, Hermes Lima e Anísio Teixeira, dá-se a publicação do Manifesto dos Pioneiros. Na primeira constituição varguista em 1934, após Vargas estar aproximadamente quatro anos no poder, tem-se o primeiro dispositivo vinculando receitas à educação. Vinculação orçamentária (Artigo 156: A União e Municípios aplicarão nunca menos de dez por cento, e os Estados e o Distrito Federal nunca menos de vinte por cento, da renda resultante dos impostos, na manutenção e no desenvolvimento dos sistemas educativos); • Provimento dos cargos do magistério oficial por concurso (Artigo 158); • Vitaliciedade dos cargos do magistério oficial (Artigo 158, § 2º); • Inamovibilidade dos cargos do magistério oficial (Artigo 158, § 2º). (SAVIANI, 2013, p. 750).

Mesmo com os dispositivos vinculatórios estabelecidos, não se dá como garantido o aumento de verbas educacionais dos distintos entes federados. Ainda de acordo com Saviani (2013, p.751), “os investimentos federais em ensino passam de 2,1%, em 1932, para 2,5 em 1936; os estaduais se reduzem de 15,0% para 13,4% e os municipais se ampliam de 8,1% para 8,3% no mesmo período”. Todavia, os recursos vinculados da educação, uma vez estabelecidos, não tinham garantia de longevidade nas distintas alterações constitucionais ao longo do século XX no Brasil: 810 | VÉRTICES, Campos dos Goytacazes/RJ, v.23, n.3, p. 803-820, set./dez. 2021


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Esta vinculação foi suprimida pela Constituição “estadonovista” (1937), retornando na redemocratização (Constituição de 1946). Nela há uma alteração com relação aos percentuais estabelecidos em 1934 que, para os Municípios, elevava-se para 20%, sendo mantidos os demais (União 10% e estado 20%). Contudo, determinava-se a isenção fiscal dos estabelecimentos privados de ensino. A primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1961 (4024/1961) alterou o percentual mínimo da União em 12%. Contudo, a Ditadura empresarial-militar instalada em 1964 suprimiu qualquer vinculação orçamentária na Constituição, ampliando os benefícios da iniciativa privada, determinando que os impostos de rendas dos [proprietários dos] estabelecimentos privados de ensino fossem incluídos na isenção fiscal. Assim, é possível estabelecer a relação entre os períodos mais autoritários da nossa história e a supressão da vinculação das receitas da educação. A Emenda Constitucional -1 (EC-1) de 1969 retornou com a vinculação de 20% para os Municípios, exclusivamente. A desvinculação destes recursos na ditadura empresarialmilitar é fator determinante para os baixíssimos patamares de investimento na educação pública neste período e o consequente favorecimento da iniciativa privada, reforçado pela criação do salário-educação […] (LAMARÃO; LEHER, 2020, p. 130, grifos nossos).

A garantia de recursos vinculados à educação também precisou coexistir com distintas brechas privatistas. Na Constituição de 1934, no Art. 154, determinava-se que as entidades de ensino particulares primárias e profissionais gozavam de isenção de impostos, sendo este considerado um dos principais mecanismos de transferência de recursos públicos para a iniciativa educacional privada (DAVIES, s.d.). Ainda de acordo com Nicholas Davies (idem) estas benesses foram estendidas às demais instituições de ensino de todos os níveis nas Constituições de 1946, 1967 e 1988. Na CF 1988, uma pequena limitação é aditada a esta benesse, interditando que as entidades particulares usufruidoras de tais benefícios tivessem fins lucrativos. Ainda segundo o autor, eram recorrentes a ocultação dos lucros das entidades sem fins lucrativos sob distintas formas. Nestes termos, estas isenções beneficiavam tanto as escolas religiosas quanto os empresários da educação que polarizaram e se opunham mormente teoricamente e, na práxis política, contra a exclusividade de recursos públicos à escola pública estatal. Na tensão entre o público e o privado, perene na história do financiamento da educação pública no Brasil, o enfraquecimento do caráter público da educação não tem efeito tão somente na educação pública. Este enfraquecimento tem uma imediata contrapartida: o fortalecimento do aspecto privado e de suas entidades. E este processo será percebido em ambos momentos históricos de fechamento do regime. Em meio à ditadura varguista conhecida como Estado Novo organizou-se todo um sistema patronal de serviços sociais, conhecido como “Sistema S”7. Dentre as iniciativas mais proeminentes neste conjunto de entidades dos “sindicatos patronais” está a oferta da educação profissionalizante. Ainda, as denominadas leis orgânicas de ensino tornaram formal aquilo que costumeiramente é informal na escola de classes: a dualidade escolar ou, em outras palavras, a existência de uma escola destinada à formação do trabalho manual e simples e, portanto, à classe trabalhadora; e outra escola destinada a uma formação mais erudita, clássica, científica atendendo aos interesses das elites. Assim, o aluno ingresso no primário nos cursos técnicos não conseguiria- ao final de seu ciclo escolar- ingressar no ensino superior. O acesso ao ensino superior só se dava mediante o diploma do científico, cujo ensino propedêutico atendia à formação de 7

De acordo com o site do Senado Federal: Sistema S - Termo que define o conjunto de organizações das entidades corporativas voltadas para o treinamento profissional, assistência social, consultoria, pesquisa e assistência técnica, que além de terem seu nome iniciado com a letra S, têm raízes comuns e características organizacionais similares. Fazem parte do sistema S: Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai); Serviço Social do Comércio (Sesc); Serviço Social da Indústria (Sesi); e Serviço Nacional de Aprendizagem do Comércio (Senac). Existem ainda os seguintes: Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar); Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (Sescoop); e Serviço Social de Transporte (Sest). Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/glossario-legislativo/sistema-s. Acesso em: 31 mar. 2021.

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quadros à classe dirigente. Embora esta dualidade escolar formal, legal, tenha persistido por pouco tempo, ela expressa uma realidade contumaz da educação pública no capitalismo dependente brasileiro. De forma semelhante, a ditadura empresarial-militar contou com distintos dispositivos que trataram de beneficiar os interesses particularistas de empresários e setores da Igreja. Dentre estes mecanismos, destacamos aquele conhecido como salário-educação (SE). Criado em 1964 para financiar o ensino primário, o salário-educação ao longo de sua existência, mormente, tratou de atender a outros objetivos. A Lei de sua criação (4.440/1964) instituía que as empresas de médio e grande porte deveriam recolher aos cofres públicos o equivalente a 1,4% da sua folha salarial. Todavia, a lei possibilitava que estas empresas pudessem diretamente comprar vagas em escolas particulares ou mesmo montassem a sua própria escola a fim de atender aos seus funcionários e dependentes. De acordo com Cunha (2009), em 1981 as bolsas e indenizações equivaliam a 70% das vagas das escolas particulares de 1º grau.

3.1 A democratização-autocrática da escola pública brasileira Eveline Algebaile (2009) chama a atenção para o papel que teve a ditadura empresarial-militar na ampliação da escola pública, entendendo este momento como crucial neste processo. No entanto, destaca a autora, esta é uma ampliação a qual não garante que a escola cumpra com aquilo que lhe é particular, a educação escolar. Esta ampliação dá-se, portanto, esvaziando o sentido educacional da escola. Esse processo passa a ser um elemento determinante na oferta da escola pública no Brasil, desde então, até -ao menos- o final dos anos 2000 quando a sua pesquisa fora publicada. Assume-se aqui que este processo observado por Algebaile ainda seja fulcral no momento da escrita do presente artigo, início de 2021. Outrossim, esta ampliação da escola pública (e, na ausência de outros aparatos do Estado) incorpora elementos estranhos ao ambiente escolar: é na escola que se tratará da saúde bucal das crianças e não no posto médico-odontológico. Também é a escola que serve para o cadastramento dos beneficiários do bolsa-família, destaca a autora. Ora, esta dupla ampliação acompanhada do esvaziamento da educação escolar é uma característica típica da escola brasileira e pode ser melhor categorizada como uma “ampliação para menos”. Já Florestan Fernandes (2005), em seu clássico livro “A revolução Burguesa no Brasil”, analisa as condições em que as burguesias locais promovem o aprofundamento das relações capitalistas de produção em um capitalismo dependente como o brasileiro, distinto, portanto, dos processos históricos que permitiram este mesmo aprofundamento nos chamados países capitalistas centrais. Destaca Florestan que a ditadura militar é a expressão brasileira desta revolução burguesa- uma revolução pelo alto- onde se sobressai o caráter autocrático destas mudanças. Por autocracia, Florestan entende a condição favorável das elites capitalistas locais de imporem ao conjunto da nação seus interesses particulares. Ora, esta autocracia se deve por inúmeros processos históricos dos quais destacamos dois: a intensa precarização da classe trabalhadora brasileira, cujo passado escravocrata tem impactos determinantes nas conformações das nossas relações hodiernas de trabalho. Segundamente, a histórica desarticulação da oposição e dos movimentos e lideranças populares no Brasil. A autocracia brasileira tem doses descomunais de autoritarismo. Há, neste âmbito, um valoroso debate a ser feito sobre a permanência da autocracia (ou não) conforme pensava Florestan Fernandes- em nossos tempos atuais. Indubitavelmente, este é um debate crucial. Todavia, no presente artigo, mais do que se posicionar favoravelmente a uma ou outra análise pretende-se destacar elementos dessa “cultura autocrática” ou, de outro modo, a autocracia como elemento estruturante do capitalismo dependente brasileiro. De toda sorte, destaca Florestan, a ‘democracia’ também pode ser uma das expressões da autocracia, em especial em sua forma de democracia restrita. 812 | VÉRTICES, Campos dos Goytacazes/RJ, v.23, n.3, p. 803-820, set./dez. 2021


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O presente artigo busca analisar historicamente o financiamento da educação pública no Brasil à luz do capitalismo dependente. Nesta perspectiva, é possível afirmar que o financiamento da educação brasileira (ou na mesma moeda, a sua ausência, insuficiência e brechas privatistas) é parte fundamental daquilo que denominaremos de “democratização-autocrática” da nossa escola pública. Pois que se ela tem se democratizado (fruto em grande parte da mobilização e demanda dos setores populares) esta “democratização” é marcada pela profunda ingerência dos setores dominantes brasileiros, pelo esvaziamento da educação escolar, pelo combate ao pensamento crítico e às possibilidades emancipatórias desta escola, por uma democratização esvaziada, típica da tutela às ‘democracias representativas’, etc. Estes setores, ao seu tempo, impõem ideologicamente à escola pública brasileira, seus educadores e estudantes uma perspectiva aparentemente universal de (sua) escola que é, contudo, essencialmente particularista: tendo como base a tecnocracia e a Teoria do Capital Humano. Em outro estudo realizado por mim (LAMARÃO, 2013), chamou-se a atenção para a presença de espaços na educação pública que conformam para uma democracia esvaziada, denominada naquele estudo de uma “democracia da terceira via”, onde só se debatem aspectos secundários: o essencial já vinha decidido e o comportamento conflitivo era minorado ante o comportamento propositivo, promovendo a despolitização da política. Estes aspectos foram percebidos mediante a análise da participação da representação sindical no CACS FUNDEB (Conselho de Acompanhamento e de Controle Social do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) do Município de Itaboraí/RJ. Aquela análise ora feita não se contrapõe a esta agora apresentada, percebe-se tratar-se de uma superação dialética.

4 O Financiamento da educação na “Nova Democracia” A retomada da vinculação de recursos educacionais não se deu de uma vez só. Ainda em 1969, a Emenda Constitucional 1 estabelece a vinculação de recursos educacionais para os municípios, fixando-o em 20% dos impostos. Em 1983, a Emenda Calmon (EC 24/1983) previa […] destinação de 13%, no caso da União; e 25%, no caso de Municípios, estados e Distrito Federal. A lei que regulamenta esta Emenda (7348/1985), promulgada dois anos depois, previa - Art. 3°, §4 - a correção e compensação no último trimestre dos valores devidos não aplicados nos primeiros nove meses, amenizando um problema à época: a inflação exorbitante e a burocracia na liberação dos recursos que corroía o valor real destes quando ficavam disponíveis. (LAMARÃO; LEHER, 2020, p. 130).

Já a Constituição Federal de 1988 reservará um Artigo (Art. 212) sobre o tema do financiamento que terá redação muito similar na LDB (Artigo 69 da Lei 9.394/96). Em ambos os artigos se afirma que estados e municípios devem destinar, no mínimo, 25% da receita arrecadada de impostos e a União deverá destinar, no mínimo, 18%. Estes índices foram obtidos, dentre outros fatores, pela ampla organização das entidades do movimento docente, associações de pesquisa, movimento estudantil, e outros movimentos sociais organizados em frentes como o Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública. No governo de Fernando Henrique Cardoso, ganha força a pauta social-liberal e sua sanha em cortar gastos sociais sob o argumento da necessidade do superavit primário. Promover-se-á uma importante política de focalização de recursos educacionais na educação fundamental, era o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF).

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O FUNDEF era formado pela contribuição de uma parcela dos principais impostos dos estados e municípios, os seus verdadeiros financiadores. Segundo Davies (2006), era um fundo de somatório zero, visto que o aumento de receita de um ente se acompanhava da perda de receita de outro(s) ente(s). Não havia expressivos recursos novos, a União (principal arrecadadora e menor contribuinte ao fundo) tinha papel apenas complementar. Aliado a isso, vigorou desde então -até o ano de 2015 na educação- a Desvinculação das Receitas da União (DRU). A DRU permitia a União utilizar livremente 20% do montante de recursos vinculados. Em realidade, a DRU limitou o orçamento vinculado da educação pela União ao montante de 14,4% em vez de 18% (18% subtraído de 3,6%). Aqui afirma-se que se limitou, pois, embora instituído como se fosse o mínimo, o percentual de impostos vinculados sempre fora tratado como o máximo (DAVIES, 2006). Tratado como uma possível solução dos problemas da educação fundamental brasileira, o FUNDEF fora responsável, na prática, pela intensa municipalização da educação fundamental no Brasil (REZENDE PINTO, 2007) e pela economia de recursos da União no desenvolvimento da educação fundamental. Davies (2006) estimou que a União “devia” ao fundo um total superior de 30 bilhões de reais. Esta diferença seria medida pela subtração do investimento previsto em lei e pelo que fora destinado na prática mediante decretos presidenciais à margem do estabelecido na lei do FUNDEF. O FUNDEF perdurou até 2007 quando fora substituído pelo FUNDEB. Esta nova proposta buscava corrigir algumas das principais críticas feitas ao fundo anterior, todavia, o FUNDEB, como parte central do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), incorporou a pauta proposta pelo organismo empresarial Todos Pela Educação (LAMARÃO; LEHER, 2020). O intento do Todos Pela Educação- de promover um intenso processo de empresariamento da educação- passa a concentrar suas atenções no FUNDEB, mediante a contínua introdução da pauta gerencialista, tecnocrática na escola e na aferição de resultados e eficiência, como também pela privatização dos recursos públicos, Com o FUNDEB, previsto para durar até o ano de 2020, ocorreu a ampliação da cobertura em direção a todas as etapas e modalidades da educação básica, o que significou mais recursos e responsabilidades para as redes municipais de ensino, especialmente em relação ao provimento da educação infantil. A ampliação da cobertura foi acompanhada de um aumento da alíquota de composição do fundo de 15% para 20%. À cesta de recursos incorporaram-se outros impostos e a complementação da União ficou determinada em pelo menos 10% do total recolhido por estados, municípios e o Distrito Federal. Como de praxe, no que diz respeito a recursos educacionais o mínimo foi entendido como máximo. Mais ainda, esta complementação não deve ultrapassar 30% do seu montante de vinculação obrigatória destinado à educação (18% dos impostos). No caso do FUNDEB podemos dizer que esse conjunto de regras ampliou concretamente a complementação da União, em comparação com o FUNDEF. Todavia, nunca é demais relembrar, não significou uma reversão do subfinanciamento da União (maior ente arrecadador) com a educação básica (agora responsável por no mínimo apenas 1/10 do montante). (COSTA; LAMARÃO, [2021]).

A forma como estes fundos se organizam trará impactos incomensuráveis a escolas com menor quantitativo de matrículas, levando ao fechamento de inúmeras escolas rurais e escolas noturnas ou turmas de Educação de Jovens e Adultos (EJA). Além disso, é um fundo de âmbito estadual. Não há transferência de recursos entre os estados da federação, mas tão somente entre municípios de um mesmo estado. Assim, o FUNDEF/FUNDEB não ajuda a minorar as diferenças regionais educacionais, produzindo a seu modo, um desenvolvimento desigual (e, por que não, combinado).

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O salário-educação não tem natureza tributária de imposto, sendo uma contribuição. Com isso, ele não deveria entrar no cálculo do mínimo vinculado disposto na constituição de 1988. Atualmente o salárioeducação corresponde a uma contribuição equivalente a 2,5% da folha de pagamento de empresas que assumam o risco de atividade econômica, com fins lucrativos ou não, urbana ou rural, bem como empresas de sociedades mistas e empresas públicas, de acordo com o Art. 2º do Decreto Presidencial 6.003 de 28 de dezembro de 2006. Nos incisos seguintes, perfilam-se aquelas instituições que gozam de isenção do recolhimento do salário-educação e, dentre elas, estão as escolas comunitárias, filantrópicas ou confessionais, devidamente reconhecidas. A Lei federal no 10.832/2003 modifica as regras de distribuição do salárioeducação. Determina o desconto de 1,0% do salário-educação que permanecerá na Secretaria de Receita Federal do Brasil, sob taxa de retorno administração segundo Lei no 11.457/2007. Além disso, desde 2004, por intermédio do Decreto no 4.950/2004, a União pode fazer livre uso do superavit financeiro do fundo bem como de suas aplicações no mercado. Por intermédio desses dois mecanismos, o salário-educação contribui explicitamente para a financeirização dos recursos públicos. Após realizado o desconto, 9% destinar-se-ão para o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Dos 90% que sobram, 2/3 são repassados em transferência automática para os estados e municípios, mensalmente. Os outros 30% ficam retidos na União que financia com este montante os seus programas educacionais. Apesar de parte substancial destes recursos da União poderem voltar aos estados e municípios sob a forma de programas diversos, a União é, novamente, a controladora de maior parcela do fundo: 40%. O salário-educação, por sua vez, retorna aos estados de origem de onde foram arrecadados e serão distribuídos aos entes também tendo como cálculo o número de matrículas. Também não há transferência de recursos dos entes mais ricos aos mais pobres e, devido ao critério de distribuição de recursos, os municípios maiores tendem a concentrar maior parcela do salário-educação. Ademais, o SE segue incidindo sobre a folha de pagamento e não sobre os lucros. Em virtude da intensificação do capital fixo, por meio de robótica e outras externalidades, o SE acaba penalizando os setores intensivos em trabalho, em favor daqueles intensivos em capital (LAMARÃO; LEHER, 2020, p. 137). O debate sobre o financiamento público da educação também se fez presente nos dois Planos Nacionais de Educação (PNE) promulgados desde 1988. No primeiro, de 2001, o artigo que previa como meta o investimento de 7% do Produto Interno Bruto brasileiro para a educação fora vetado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) sob o argumento de que não se descriminava a origem dos recursos e, com isso, colidia com a Lei de Responsabilidade Fiscal. Já no PNE sancionado em 2014, em sua meta 20, propunha como índice, o investimento de 7% do PIB na primeira metade da vigência do PNE, chegando a 10% do PIB no último ano. Para tanto, previa-se como recursos, de acordo com a meta 20.3, os oriundos do Fundo Social do Pré-sal, royalties e participações especiais. Todavia, uma importante “operação semântica” que já vinha sendo amadurecida aparece consubstanciada neste novo PNE (Art.5, § 4o) iii: o alargamento do sentido do público, que deixou de ser entendido como aquilo que é de responsabilidade do governo e passa a ter sentido como aquilo que é oferecido ao público, ou que se mantém gratuito, entre outros. O novo PNE consolida a presença das parcerias público-privadas na educação, ampliando os mecanismos de transferência de recursos públicos para a gestão privada em diversas modalidades de ensino, desde a Educação Infantil até o Ensino Superior (LAMARÃO, LEHER, 2020, p. 139).

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Aspectos históricos do financiamento da educação básica pública brasileira: a “democratização autocrática” Marco Vinícius Moreira Lamarão

No ano de 2016, após o afastamento extralegal da então presidente Dilma Rousseff (PT) foi publicada a Emenda Constitucional 95 (EC 95/2016), já no governo de Michel Temer (PMDB). Ela, em realidade, pôs fim à vinculação das receitas da educação. Mais uma vez na história do financiamento da educação pública no Brasil, após uma medida explicitamente autocrática tem-se o fim, de fato ou de direito, dos mecanismos vinculatórios das receitas educacionais. De acordo com a EC 95/2016, os limites de despesas primárias possíveis de serem gastas serão equivalentes àquelas gastas no ano fiscal anterior, corrigidos pela inflação do período- de acordo com o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA)- tendo como mês-base o mês de junho. Esta é, atualmente, uma peça-chave do processo de financeirização dos recursos públicos, sendo os recursos arrecadados com os impostos destinados, prioritariamente, ao pagamento dos juros e amortização da dívida pública brasileira em benefício aos setores com ligação com o capital financeiro. Ao final do período de vigência previsto pela lei do FUNDEB, foi aprovada a Lei nº 14.113/2020 que regulamenta o “novo” FUNDEB. Em outro estudo, pôde-se analisar com mais fôlego os limites do chamado “Novo FUNDEB” que melhor se denominaria de “velho novo FUNDEB” 8 (COSTA; LAMARÃO, [2021]). No entanto, destacamos Em linhas gerais, a EC 108/2020 do “velho novo” FUNDEB mantém as características principais de seu antecessor em relação a estrutura (27 fundos), a captação de receitas de impostos de estados e municípios (20% das receitas da cesta já existente excetuando a Lei Kandir), a distribuição por número de matrícula, e o modelo de “controle social”. A mudança principal em relação à composição de recursos está na complementação da União. São mantidos os 10% atuais de complementação para estados e municípios que não atingissem o valor mínimo nacional por aluno. Além dessa, uma outra complementação de até 10,5% (em 2026) para os municípios cujas receitas totais também não alcançassem esse mínimo nacional por aluno. Por último, foi inserido um terceiro critério de complementação, de 2,3%, que será distribuído para as redes de ensino que alcançarem metas de gestão e de aprendizagem, de acordo também com o nível socioeconômico dos alunos. A previsão é que, em 2026, a complementação total da União chegue a 23%. O projeto aprovado determinou também que ao menos 15% do repasse complementar fosse utilizado em despesas de capital, ou seja, em gasto com insumos escolares (infraestrutura). Ademais, metade da complementação de 10,5% deve ser obrigatoriamente destinada ao financiamento da Educação Infantil. Uma última mudança significativa em relação à utilização dos recursos foi a determinação que ao menos 70% do total dos repasses seja utilizado para o pagamento dos profissionais da educação da ativa (COSTA; LAMARÃO, no prelo, s.p).

Com isto, se percebe que a definição dos novos recursos que possam ingressar na educação pública será estabelecida mediante critérios meritocráticos e gerencialistas. Ora, para analisar o “velho novo” FUNDEB consistirá- a partir da perspectiva aqui assumida- um erro metodológico aquele que pretende observá-lo como um todo em si, isoladamente das demais políticas que incidem sobre a escola pública e seus trabalhadores. Visto separadamente, apenas comparando-o com suas versões passadas, não é difícil entender o motivo pelo qual muitos celebraram como favorável a adoção deste novo fundo, que passa a vigorar de forma permanente. Todavia, na análise aqui assumida, interessa entender o FUNDEB não apenas como uma política em si. Mas como uma política pública do financiamento da educação de um país capitalista dependente dentro dos marcos analíticos do materialismo histórico e dialético. 8

Sugestão feita pelo pesquisador da temática do financiamento da educação Prof. Dr. Fábio Araújo de Souza (UFRJ) e adotada pelo autor.

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Desta maneira, não é possível entender o FUNDEB descolado do sistema tributário brasileiro, origem de suas receitas. O nosso sistema tributário é extremamente regressivo, com os mais pobres pagando proporcionalmente mais do que os mais ricos, haja vista parcela substancial da incidência de impostos se dar sob o consumo. Pelo mesmo motivo- impostos sob o consumo- é que o orçamento público, em geral, e o da educação, em particular, permanece tão suscetível aos ciclos econômicos. Nesse mesmo sentido, não é possível entender o FUNDEB descolado da Emenda Constitucional 95 que obsta qualquer hipótese de se fornecer à escola pública os recursos de que verdadeiramente ela necessita e que são expressamente mais volumosos do que aqueles ora destinados. Outra política pública que precisa ser pensada dialeticamente ao FUNDEB é a lei da Terceirização que possibilita, inclusive para órgãos públicos, que as atividades-fim sejam regulamentadas por relações de trabalho terceirizado e, portanto, mais precárias. Aliado a isto, vimos ser aprovada também a contrarreforma sindical que buscava, mais uma vez, minar a força do sindicalismo combativo brasileiro, tão historicamente cerceado. No entanto, o que mais urge a atenção dos educadores, nesta totalidade dialética que o FUNDEB deve ser pensado, é a atual proposta da contrarreforma administrativa. A proposta ora apresentada se restringe à esfera federal. Entretanto, a proposta prevê que estas mesmas regras, se aprovadas, possam servir de base para as contrarreformas administrativas de estados e municípios. Em muitos deles, a secretaria que tem a maior folha de pagamento é, justamente, a da educação. Neste tenebroso cenário (o qual não fora esgotado, é possível elencar outros “vetores”) que se forma nesta tensão dialética, torna-se evidente que a “vitória” pela aprovação do Novo FUNDEB não passa de mera aparência, ou de acordo com o estabelecido na introdução, uma pseudoconcreticidade.

5 À guisa de conclusão O que nos resta sobremaneira claro e evidente é que o deficit educacional brasileiro, cavado ao longo de 500 anos e exposto no decorrer do texto, não será superado mediante as atuais políticas de financiamento da educação básica no Brasil. Ao contrário, o principal fundo de financiamento da educação básica, além de estrangular determinadas modalidades de ensino, foi pensado a partir da lógica do ajuste fiscal que tem no corte de investimentos das políticas sociais o seu certeiro alvo. Sob argumento de se evitar o crescimento da dívida pública, da necessidade do superavit primário, do ajuste e da responsabilidade fiscal é que estes fundos foram pensados e criados. A lógica determinante destes fundos só pode ser matizada em um único sentido: o de se fazer crer que é possível separar avanços e recuos e, num somatório aritmético, ter como propositiva a proposta que ora regerá o fundo de forma permanente. Todavia, a nosso ver, estes são aspectos da aparência do fenômeno que omitem uma grave ameaça. A queda orçamentária devido à crise econômica que se arrasta desde 2014 e agravada pela pandemia do novo coronavírus terá impactos nos próximos orçamentos educacionais. Nestes termos, a proposta do ensino híbrido (expressão do trabalho mais precarizado docente) e a da contrarreforma administrativa buscam atender aqueles princípios que nortearam os fundos desde sua criação: a de contenção de gastos sociais. Mesmo que ao pé da letra a aprovação do “novo fundeb” tenha aparentado ter sido um avanço. Esta aparência, no entanto, se esvai ainda mais em fumaça quando o financiamento da educação básica pública brasileira é posto sob a perspectiva histórica. E não sob qualquer perspectiva histórica, mas aquelas que se esforçam por apreender as particularidades da formação social brasileira. Fora exatamente neste sentido que se buscou aproximar a história do financiamento da educação com duas categorias importantes da sociologia e historiografia brasileira: em um tempo específico o modo de produção escravista colonial e, mais adiante, com a consolidação do capitalismo, a categoria de capitalismo dependente.

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Ao longo de todo o período escravocrata no Brasil, a inexistência de uma escola universal era a expressão de um país cuja pequena elite satisfazia privativamente seus anseios por escolarização, enquanto à parcela substancial da população só restava o aprendizado de artes e ofícios (CUNHA, 2005), muitas das vezes no próprio local de trabalho e sob a forma de trabalho compulsório. Ainda no império, quando a lei ensaia certo ‘liberalismo iluminista’ e a constituição arremeda algumas linhas sob a temática educacional, esta escola era formalmente vedada aos negros, libertos e índios, conforme muitas legislações provinciais (BARROS, 2016). Em seguida, nos primórdios da república a ausência de uma escola pública capaz de alfabetizar aquela população faz da interdição ao voto do analfabeto um importante mecanismo de controle das elites que arrogam tão somente para si o “direito natural” das decisões políticas. A partir do momento em que se assentam as bases do capitalismo dependente brasileiro, a escola passará a expressar estas novas determinações. Todavia, a consolidação dessa escola pública será atravessada pelos interesses particularistas de empresários e de setores de diversas igrejas, em especial a católica e, mais recentemente as evangélicas. Em seguida, quando se dá a sua expansão, ela ocorre de forma “ampliada para menos” não sem, por outro lado, atender a voracidade dos interesses privados por recursos públicos. Nesta aproximação- que aqui fora tratada tão panoramicamente e que se pretende aprofundar no futurofoi possível perceber a centralidade que cumpre o financiamento da educação básica pública naquilo que provocativamente denominou-se de “democratização-autocrática” da educação. Para além da necessária denúncia do subfinanciamento da educação básica, é fundamental termos em pauta a necessária radicalização da democracia social e, por que não, escolar. Todavia, não se trata aqui de uma democracia abstrata, “representativa”, ao contrário. À proposição de uma escola pública verdadeiramente democrática é imprescindível resgatarmos a democracia forjada pelos subalternos em seus espaços de organização: a democracia direta, participativa. Felizmente ou infelizmente, no entanto, esta é uma luta da escola pública; mas, fundamentalmente, para além dela.

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COMO CITAR (ABNT): LAMARÃO, M. V. M. Aspectos históricos do financiamento da educação básica pública brasileira: a “democratização autocrática”. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 23, n. 3, p. 803-820, 2021. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v23n32021p803-820. Disponível em: https://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/15985. COMO CITAR (APA): Lamarão, M. V. M. (2021). Aspectos históricos do financiamento da educação básica pública brasileira: a “democratização autocrática”. Vértices (Campos dos Goitacazes), 23(3), 803-820. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v23n32021p803-820. 820 | VÉRTICES, Campos dos Goytacazes/RJ, v.23, n.3, p. 803-820, set./dez. 2021


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