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Editorial Saudamos os leitores e leitoras da revista Vértices! O ano de 2020 foi muito difícil em meio a pandemia causada pelo Covid-19, trazendo à tona as enormes desigualdades estruturais do Brasil. Assim, mais do que nunca, precisamos refletir e discutir sobre as diferentes questões que nos desafiam em busca de novos e melhores arranjos sociais. Nesse sentido, o dossiê temático Violência de Estado e política social: entre o aparato assistencial e a criminalização da questão social no Brasil, selecionado pelo edital 29, de 14 de fevereiro de 2020, organizado pelas professoras Ana Paula Ornellas Mauriel, Fernanda Kilduff e Mossicleia Mendes da Silva e pelo professor Fabio do Nascimento Simas, vem nos brindar com dezessete trabalhos de alta qualidade de pesquisadores das áreas de Serviço Social, Sociologia, Antropologia, Economia, dentre outras, nos quais aprofundam e debatem a crise estrutural do capital e suas particularidades em nosso país, problematizando as principais respostas do Estado frente à radicalização da questão social. A importância do tema suscitou a premência da publicação ainda neste ano de 2020, levando a equipe a um intenso trabalho em parceria com os organizadores de modo a disponibilizar para os leitores e leitoras esses artigos que visam “fazer um diálogo sobre diferentes dimensões do Estado capitalista no trato e enfrentamento à questão social, demarcando o avanço da dimensão violenta, punitivista e coercitiva em vários âmbitos da ação estatal que são acentuados no contexto de aprofundamento da crise estrutural do capital”. Os organizadores fizeram um primoroso trabalho com artigos de pesquisadores renomados, mas não deixaram de inovar, já que apresentaram trabalhos de pesquisadores mais jovens e altamente qualificados, enunciados no editorial do dossiê temático que sucede este nosso texto. Lançamos assim, com júbilo, este número especial do volume 22, agradecendo às organizadoras, ao organizador, às avaliadoras e aos avaliadores convidados(as), às autoras e aos autores pela tarefa desempenhada com tanta qualidade e pela confiança em nossa publicação, bem como aos revisores e revisoras de idiomas (português, inglês e espanhol) que contribuíram para possibilitar a divulgação de artigos inéditos tão importantes para as pesquisas sobre violência de Estado e política social. Sigamos!!! Uma ótima leitura!!
Inez Barcellos de Andrade Editora Assistente
Edson Carlos Nascimento Editor Associado
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Editorial do Dossiê Temático É com imensa alegria que compartilhamos o Dossiê: Violência de Estado e política social: entre o aparato assistencial e a criminalização da questão social no Brasil. A presente publicação resulta de um esforço coletivo de organizadores e autores que, em conjuntura de crise econômica acirrada pela crise sanitária da pandemia de Covid-19, apresentam ao público um conjunto de reflexões sobre a crise estrutural do capital e suas particularidades no Brasil, problematizando as principais respostas do Estado frente à radicalização da questão social. Consideramos que as transformações do capitalismo contemporâneo e a correspondente refuncionalização do Estado, visando garantir a reprodução ampliada do capital, provocam profundas alterações no conjunto das políticas sociais e criminais. Neste sentido, nas últimas décadas, e como parte de um mesmo movimento, a crescente expansão da política de assistência social articulada à ampliação do sistema penal, ocupa no Brasil, um destacado lugar nas formas estatais de gestão e controle da pobreza, do desemprego e da desigualdade social. Diante dessas assertivas, cabe salientar que o modo de ser da política social no capitalismo maduro vem acompanhado de uma severa ofensiva sobre o trabalho na perspectiva de ampliar as taxas de lucro, o que consequentemente implica pressão para ampliação das condições de exploração do trabalho, por meio de flexibilizações, terceirização, informalização, dentre outras formas de precarização estrutural do trabalho e dos meios de vida das/os trabalhadoras/es. Como resultado desses processos, registra-se no Brasil, o aumento da superpopulação relativa e do pauperismo, impactando na forma das políticas sociais que tendem a orquestrar ações de gerenciamento da pobreza, contribuindo para mistificar material e ideologicamente o solapamento dos direitos sociais e a perda da proteção social. As respostas do Estado para gestão da crise no capitalismo dependente têm sofrido inflexões importantes com a corrosão e derrocada do pacto político-governamental petista de conciliação de classes, a escalada exponencial do conservadorismo e a intensificação do ajuste fiscal, merecendo atenção e empenho de pesquisadores no sentido de analisar as implicações de tais processos sobre a vida da classe trabalhadora. Isto por que tal contexto sedimenta e entroniza um novo ciclo regressivo no campo dos direitos sociais e concentra tendências ultraconservadoras e, por isso, ainda mais punitivistas e assistencialistas, para enfrentamento da questão social. Conectado ao violento processo de destruição de direitos e empobrecimento da classe trabalhadora, intensifica-se o processo de criminalização da questão social. Os sujeitos criminalizados são em sua maioria homens/mulheres jovens negros/as e pardos/as, pertencentes à classe trabalhadora mais empobrecida, e em geral os casos de detenção ocorrem por delitos não violentos vinculados ao mercado do varejo de tráfico de drogas, dada a política bélica proibicionista aqui adotada. A taxa de mulheres presas no país é superior ao crescimento geral da população carcerária, dado que corrobora a tendência histórica racista e patriarcal da formação social brasileira, cimentada na desigualdade e na opressão étnico-racial e de gênero. Em contexto de pandemia, as contradições do capitalismo se acentuam e fazem eclodir as implicações de sua lógica destrutiva sobre as políticas sociais, cuja expressão mais cabal é a condição alarmante do Sistema Único de Saúde (SUS), já quase colapsado em função das demandas da Covid-19, mas principalmente dos processos de destruição e desmonte de que vem sendo objeto há anos e
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impulsionada pela lógica privatista, que se acelerou desde o golpe parlamentar de 2016, e se mantém no governo atual. Mais do que nunca e na incerteza da crise do capital, agudizada em tempos de pandemia da Covid19, o Estado ocupa papel fundamental salvando os lucros e socializando o custo da crise com a classe trabalhadora, situação que se manifesta no campo de todas as políticas sociais e em todos os âmbitos da vida social. Os artigos que compõem o presente dossiê visam fazer um diálogo sobre diferentes dimensões do Estado capitalista no trato e enfrentamento à questão social, demarcando o avanço da dimensão violenta, punitivista e coercitiva em vários âmbitos da ação estatal que são acentuados no contexto de aprofundamento da crise estrutural do capital. Pandemia e Violência de Mauro Luís Iasi, analisa as dimensões da violência e da pandemia e demonstra como ambas se encontram num terreno histórico de pleno desenvolvimento de relações reificadoras, alterando nossa atitude perante a morte, produzindo um estranhamento e um anestesiamento das consciências diante de diferentes formas de manifestação da violência: subjetiva, simbólica e sistémica. O artigo do autor, apresenta também, uma problematização sobre a particularidade da formação social e histórica brasileira, com o esgotamento da Estratégia Democrática e popular e sua linha de conciliação de classes que se manifesta em uma inflexão conservadora marcada pelo irracionalismo e da agudização da polarização social que leva a um país fraturado. O ensaio finaliza afirmando que, as bases históricas do capitalismo dependente e da forma política autocrática, são os fundamentos para compreender nossa atitude diante da pandemia e a violência que nela se expressa. O artigo de Marcela Soares, intitulado Precariedade e mistificação da precarização: superexploração da força de trabalho, analisa a precariedade do trabalho, a superexploração da força de trabalho e a mistificação da precarização com a expropriação de direitos, destacando as particularidades do capitalismo dependente brasileiro e as marcas da escravidão colonial com a apreensão do sentido da expropriação do trabalho e da exportação de excedente econômico. O texto de Elídio Marques: Crise das democracias liberais: um futuro sem direitos? Elementos para uma perspectiva internacional acerca do projeto da extrema direita, traz à tona o complexo debate atual acerca da chamada crise da democracia liberal e ascensão da extrema direita no plano internacional. O intelectual faz uma instigante problematização acerca do significado e dos limites dos direitos no capitalismo ao tempo em que confere centralidade aos ataques aos direitos na cena hodierna. O artigo de Ana Paula Mauriel, Assistência e repressão: pilares no enfrentamento da “questão social” no capitalismo dependente brasileiro, traz como foco a relação entre a repressão à classe trabalhadora e as formas assistenciais conservadoras. Tomando alguns dos principais fundamentos da formação econômicosocial brasileira, a autora busca analisar como assistência e repressão interagem sob o neoliberalismo, particularmente a partir do agravamento da crise do capital após 2008. Conclui-se que estamos diante de um novo padrão de enfrentamento da “questão social” no Brasil, onde se acentua o avanço do conservadorismo no campo assistencial e ações mais punitivas e coercitivas via política penal. Em Pandemia, crise e expropriações: auxílio emergencial e contradições da focalização, Mossicleia Mendes da Silva traz elementos para pensar a crise sanitária a partir da crítica da crise capitalista, das expropriações como processo permanente no modo de produção capitalista e sua íntima relação com as contradições deflagradas com a pandemia da Covid-19. Nesta direção, intenta também trazer uma síntese do auxílio emergencial, problematizando os limites colocados pela focalização das políticas sociais, como tendência à desproteção social.
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Rodrigo Silva Lima, no artigo Infância, mito da feliz(cidade) e a dimensão coercitiva da assistência social, problematiza a concepção de infância e a dimensão coercitiva da assistência social diante da violência promovida pelo Estado à infância pauperizada a partir da gestão da cidade do Rio de Janeiro. O autor mostra uma agudização das contradições da política de assistência social a partir do período dos grandes eventos internacionais, quando a criminalização dos pobres por parte do Estado e as contradições inerentes às políticas sociais culminaram em violações dos direitos de crianças e adolescentes. O autor finaliza o texto mostrando como o Conselho Regional de Serviço Social, conselho profissional que orienta e fiscaliza o exercício profissional de assistentes sociais, tem contribuído para a mobilização da sociedade civil na garantia de direitos do público infantojuvenil e no enfrentamento à coerção estatal. Com A tortura no superencarceramento no Brasil contemporâneo, Fábio Simas aborda o aprofundamento punitivo do Estado capitalista como uma das respostas à atual crise estrutural, conferindo centralidade ao tema na conjuntura brasileira. Ademais, o autor aponta a relação simbiótica entre o fenômeno do superencarceramento e o agravamento da tortura nas prisões brasileiras tendo como plano de fundo a desigualdade social e o racismo estrutural. Fernanda Kilduff, com seu artigo Seletividade punitiva, racismo e superencarceramento no Brasil, analisa o racismo e a desigualdade social como fundamentos do superencarceramento no Brasil, debatendo a relação entre seletividade punitiva e racismo estrutural, em perspectiva histórica; a relação entre rebaixamento das condições de vida da população pelo processo de contrarreformas neoliberais; e o aumento do encarceramento e a naturalização de práticas desumanizadoras no âmbito prisional. Nesta direção, a autora realiza apontamentos sobre o aumento do encarceramento feminino no Brasil pelo delito de tráfico de drogas. Ionara Santos Fernandes, no artigo O recrudescimento penal em meio a pandemia do coronavírus no Rio de Janeiro, analisa a política penal no Estado do Rio de Janeiro, problematizando os novos contornos que ela assume no contexto da pandemia do novo coronavírus. Neste sentido, reflete sobre o direcionamento ultraconservador e punitivista do Estado para gerir a crise de saúde pública no precário sistema prisional, reduzindo direitos e expandindo a economia carcerária. A partir de uma análise histórica e crítica das contrarreformas subsidiadas por interesses privatizantes na política de saúde brasileira, Mariana Setúbal, no seu artigo Impactos da contrarreforma na política de saúde em tempos de pandemia no Brasil, analisa os impactos dessa ofensiva na produção de um cenário dramático na maior crise sanitária de nossa geração. Em O lugar da negritude nas políticas do Estado brasileiro: faces persistentes de uma presente ausência, Maria Helena Elpídio retoma apontamentos sobre a formação social brasileira no que se refere à relação entre o Estado e a população negra, considerando os traços da heteronomia, autoritarismo e violência sistemática conferidos a esse segmento no Brasil. Com isso, a autora evidencia a funcionalidade do mito da democracia racial que falseia a condição de cidadania dessa parcela da sociedade por meio do (não) acesso aos direitos e políticas públicas e considera as permanências e a busca de rupturas que possibilitem o tensionamento do Estado na direção da superação do racismo, seus desafios e limites na superação da sociedade de classes. O artigo de Áurea Cristina dos Santos Dias, Migração Internacional no Brasil: persistências históricas e tendências contemporâneas, contextualiza a migração internacional contemporânea no Brasil como um dos múltiplos fenômenos articulados ao fôlego de expansão capitalista, particularmente a partir dos anos 2000, quando se intensificaram a imigração fronteiriça de nacionalidades haitiana, congolesa, bengali e senegalesa. A autora infere que, a despeito de termos conquistado uma legislação reconhecidamente
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avançada em relação ao refúgio e uma recente lei de migração, no Brasil, a questão migratória se dá muito mais com controle e seletividade, conduzindo um processo de inclusão e exclusão de imigrantes, com crescente perspectiva securitária que delimita a imigração como questão de segurança nacional e criminalizante, especialmente a partir de 2016, com o afastamento dos governos brasileiros dos compromissos internacionais de proteção aos direitos humanos dos migrantes. A condição das mulheres inseridas nas atividades informais e ilícitas de tráfico de drogas na condição de mulas é o tema central abordado por Joana das Flores Duarte no seu artigo Mulas e mulheres no Brasil: uma questão de gênero, justiça e interseccionalidade. Ademais da centralidade do debate sobre gênero, a autora mostra que, além da condição da desigualdade de raça e classe expressas na seletividade do sistema penal; o mercado de drogas alimenta uma rede internacional de vultosos lucros econômicos. No artigo Pistas para análise da violência contra as mulheres em tempos de crise: aproximações e desafios no contexto de pandemia no Brasil, Milena Fernandes Barroso busca analisar a violência contra a mulher no contexto de pandemia do novo coronavírus. Entendendo a violência contra a mulher como produto e produtora desse sistema, que necessita de forma particular e exponencial do trabalho e do corpo-território das mulheres para a sua manutenção, a autora aponta conexões entre diversas expressões dessa violência e a sua centralidade para as novas formas de acumulação de capital em tempos de crise, que, no contexto da pandemia, se agudizam na exploração e opressão cada vez maiores das mulheres, em particular das mulheres racializadas. William Berger, no artigo Violência do Estado e expropriação das populações indígenas no Brasil contemporâneo: terra, território, trabalho e criminalização da Questão Social, apresenta a problemática indígena como expressão da questão social na formação econômica, social e espacial brasileira e suas expressões na contemporaneidade tomando as categorias terra e território, a partir da centralidade do trabalho como fundamento histórico do desenvolvimento desigual e combinado. Para isso, o autor aborda a formação do capitalismo dependente na América Latina, sob a exploração e opressão das raízes indígenas e negras e o sentido da colonização escravista, e chega ao contexto contemporâneo urbano, mostrando o contínuo processo de expulsão desses povos de suas terras, criminalização e furto de direitos, revelando a tônica da expropriação e da superexploração. O artigo de Renata Freitas, População em situação de rua e as respostas do Estado nas tramas da cidade capitalista, discute o tema da pessoa em situação de rua no Brasil como aspecto revelador da contradição do sistema capitalista como produtor de pobreza e desigualdade. O texto também traz recortes analíticos históricos e conceituais acerca de sua problemática no capitalismo contemporâneo brasileiro, ao que aponta, entre outros aspectos, a dimensão da gestão urbana voltada para o lucro em detrimento das necessidades humanas que se agrava no contexto de regressão de direitos. Ana Paula Cardoso da Silva, no artigo Em tempos de Covid-19: fique em casa! Mas, onde ficam os que “moram” nas ruas? reflete acerca da atuação do Poder Público no âmbito da política de Assistência Social no município do Rio de Janeiro com a população em situação de rua, em tempos de Covid-19, explicitando, em termos práticos, as ações que estão sendo desenvolvidas com essas pessoas e os seus impactos em suas vidas, dando ênfase no como se operacionaliza o “fique em casa”, para quem tem a rua como seu lugar de moradia e sustento. Desejamos uma leitura que adense as críticas e traga novas inspirações para as lutas!
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Niterói/Rio de Janeiro, dezembro de 2020.
Ana Paula Mauriel (UFF) Fabio Simas (UFF) Fernanda Kilduff (UFRJ) Mossicleia Mendes da Silva (UFRJ)
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Submetido em: 2 out. 2020 Aceito em: 10 out. 2020
DOI: 10.19180/1809-2667.v22nEspecial2020p655-666
Pandemia e violência Pandemic and violence Pandemia y violencia Mauro Luís Iasi https://orcid.org/0000-0002-5802-6866 Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (2004). Professor Associado I do Departamento de Política Social e Serviço Social Aplicado da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio de Janeiro/RJ – Brasil. E-mail: mauroiasi@gmail.com.
Resumo As dimensões da violência e da pandemia se encontram num terreno histórico de pleno desenvolvimento de relações reificadoras, alterando nossa atitude perante a morte, produzindo um estranhamento e um anestesiamento das consciências diante de diferentes formas de manifestação da violência: subjetiva, simbólica e sistêmica. A particularidade da formação social e histórica brasileira, com o esgotamento da Estratégia Democrática e popular e sua linha de conciliação de classes, se manifesta em uma inflexão conservadora marcada pelo irracionalismo e a agudização da polarização social que leva a um país fraturado. As bases históricas do capitalismo dependente e da forma política autocrática são os fundamentos para compreender nossa atitude diante da pandemia e a violência que nela se expressa. Palavras-chave: Violência. Pandemia. Ideologia. Manipulação/catarse. Reificação.
Abstract The dimensions of violence and the pandemic are in a historical terrain of full development of reifying relationships, changing our attitude towards death, producing a strangeness and anesthetizing consciences in the face of different forms of violence: subjective, symbolic, and systemic. The particularity of the Brazilian social and historical formation, with the exhaustion of the democratic and popular strategy, along with its course of class conciliation, manifests itself in a conservative tone marked by irrationalism and the worsening of the social polarization that leads to a fractured country. The historical bases of dependent capitalism and the autocratic political form are the foundations for the understanding of our attitude towards the pandemic and the violence that is expressed in it. Keywords: Violence. Pandemic. Ideology. Manipulation/catharsis. Reification.
Resumen Las dimensiones de la violencia y la pandemia se encuentran en un terreno histórico de pleno desarrollo de relaciones cosificantes, cambiando nuestra actitud ante la muerte, produciendo extrañeza y anestesiando las conciencias frente a diferentes formas de violencia: subjetiva, simbólica y sistémica. La particularidad de la formación social e histórica brasileña, con el agotamiento de la Estrategia Democrática y Popular y su línea de conciliación de clases, se manifiesta en una inflexión conservadora marcada por el irracionalismo y el agravamiento de la polarización social que conduce a un país fracturado. Las bases históricas del capitalismo dependiente y la forma política autocrática, son las bases para comprender nuestra actitud ante la pandemia y la violencia que en ella se expresa. Palabras clave: Violencia. Pandemia. Ideología. Manipulación/catarsis. Cosificación.
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Pandemia e violência Mauro Luís Iasi
“Os espanhóis, com seus cavalos, suas espadas e lanças começaram a praticar crueldades estranhas; entravam nas vilas, burgos e aldeias, não poupando nem as crianças e os homens velhos; nem mulheres grávidas e parturientes e lhes abriam o ventre e as faziam em pedaços como se estivessem golpeando cordeiros fechados em um redil. Faziam apostas sobre quem, de um só golpe de espada, fenderia e abriria um homem pela metade (...) arrancavam os filhos dos seios das mães e lhes esfregavam a cabeça contra os rochedos enquanto ouros lançavam à água dos córregos rindo e caçoando” 1 Frei Bartolomé de Las Casas (1474-1566)
1 Introdução Nascemos sob o signo da violência. O Novo Mundo, a Civilização, o Cristianismo aqui chegaram com a espada e purgaram estas terras com sangue, fogo e iniquidade. Se em uma Europa marcada pelo pesadelo fascista, Benjamin (1994) pode sentenciar que não há nenhum monumento da civilização que não seja simultaneamente um monumento à barbárie, podemos dizer que aqui tal diferença se dissipa, civilização e barbárie se irmanam num único e íntegro massacre. Os conquistadores riam e caçoavam, faziam apostas, erguiam forças próximas ao chão para que os pés desesperados prolongassem o sofrimento dos corpos pendurados. Tudo isso antes do exercício sistemático da violência institucionalizada pela escravidão dos povos originários e daqueles sequestrados na África para dar sequência ao empreendimento da colonização. Nosso continente é uma imensa cicatriz no corpo torturado do planeta, marca indelével em que se misturam a dor, o sofrimento, a raiva, mas, também o riso e o escárnio do opressor, o descaso e a insensibilidade. Por séculos cultivou-se o descaso, a arte de viver ao lado do sofrimento ignorando-o, atravessado pela morte negando-a. A radical negação da morte foi o caminho para sua glorificação, perpassando-a com novas significações, transmutando-a em purificação, salvação ou simplesmente um gozo fúnebre. Freud (2009, 2013) acreditava que nossa atitude diante da morte expressava uma tentativa de invisibilizá-la, seja pela sua casualidade natural incontornável, seja por sua negação diante da ameaça à existência. Uma atitude narcisista que gera uma crença de imortalidade. Por outro lado, o impacto da mortalidade leva à crença de uma possível superação pela separação entre corpo e alma, base de todo comportamento religioso. Quando somos, no entanto, assolados por uma pandemia como a que nos envolve no presente, nossa atitude perante a morte não se sustenta. Diante da matança sistemática da guerra, por exemplo, não conseguimos manter nossa antiga atitude perante a morte no momento em que ainda não desenvolvemos outra, levando, segundo pensa Freud, a uma desorientação e paralisia de nossa capacidade funcional (FREUD, 2009). Em situações normais, a morte de outras pessoas distantes nos atinge pouco, mas pessoas próximas produzem um efeito profundo em nosso psiquismo desencadeando o chamado “trabalho do luto”, isto é, o esforço para desinvestir a libido colocado no objeto amado que deixou de existir. 1
LAS CASAS, Frei Bartolomé de. O Paraíso Destruído: a sangrenta história da conquista da América. São Paulo: L&PM, 2001. p. 34.
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Pandemia e violência Mauro Luís Iasi
Em certas circunstâncias o luto assume uma forma patológica pela impossibilidade de realizar a perda, gerando o que o pai da psicanálise denomina de melancolia. Tal processo ocorre, segundo a hipótese psicanalítica, por uma profunda identificação na qual o objeto tomou o lugar do ego, de maneira que sua perda é seguida por uma crise da autoestima, sofrimento profundo e autoflagelação. O que nos interessa aqui é que tanto o luto como a melancolia implicam o estabelecimento de laços profundos que nos ligam ao outro, levando Freud a concluir que: “Se o objeto não tiver para o ego um significado tão grande, reforçado por milhares de laços, sua perda não se prestará a provocar um luto ou uma melancolia” (FREUD, 2013, p. 45). A nós parece que o anestesiamento da consciência diante da mortandade, da guerra ou da pandemia, traz à tona um elemento ainda mais perturbador. O fato que para nosso padrão civilizatório, os milhares de laços que nos ligam aos outros foram radicalmente rompidos, permitindo que a morte seja de um radicalmente outro que não nos atinge (IASI, 2020). Mesmo na cotidianidade, a morte de um número significativo de pessoas, em um acidente, numa catástrofe natural ou em qualquer outra forma, parece provocar nas consciências uma reação de solidariedade e desconforto, ainda que não desencadeie nada parecido com o luto ou a melancolia. Mas, não a indiferença, o que nos leva a pensar que nas circunstâncias da pandemia no Brasil e da guerra, algo distinto se produziu. Nossa hipótese é que se rompeu a identidade que nos liga aos outros e precisamos nos perguntar o porquê. Nós agimos e reagimos em uma circunstância determinada, isto é, nossa reação não é definida simplesmente pela natureza do fato com que nos defrontamos ou a base biológica de nossos impulsos. Somos seres sociais e históricos, o que significa dizer que agimos nos terrenos da história não como queremos, mas determinados por toda a história pregressa e as circunstâncias que dela derivaram (MARX, [1852], p. 203). O passado não é um fantasma que nos atormenta apenas como lembrança, mas como afirma Benjamin “um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo que veio antes e depois” (BENJAMIN, 1994).
2 Em que momento nos encontra a pandemia A pandemia nos atingiu como um país fraturado (IASI, 2018). Sempre fomos uma formação social dividida e profundamente desigual, mas há momentos em nossa história em que esta abismal desigualdade assume a forma de uma fratura, isto é, circunstâncias onde a cisão de nossa sociedade em interesses antagônicos e inconciliáveis emerge das determinações mais profundas até a consciência dos seres humanos que se mobilizam em blocos sociais antagônicos e em luta de maneira que o antagonismo inconciliável dos interesses de classe se apresentem como antagonismo e confronto dos indivíduos e grupos que conformam uma determinada sociedade em uma conjuntura dada. Aqui é necessário destacar que, por vezes, tal antagonismo estrutural se apresenta como uma unidade de contrários tensa que pode se apresentar como aparente harmonia e ordem sem que com isso não se elimine o antagonismo. A história recente de nossa formação social foi marcada pelo esgotamento de uma estratégia de conciliação de classes, consubstanciada no longo ciclo de governos petistas, o que abriu espaço para o golpe de 2016 e a ascensão da extrema direita como alternativa de governo. O ódio, o preconceito, o ressentimento foram transformados em arma política e para tanto o outro tem que assumir a forma de inimigo a ser aniquilado, um radicalmente outro tem que emergir para permitir a unidade do bloco conservador e reacionário.
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Neste ponto incide uma determinação mais profunda e essencial. Os milhares de laços que nos unem como seres sociais não se desfazem de uma hora para outra, é marca constitutiva de nossa sociabilidade, isto é, a ordem da mercadoria e do capital, ordem esta, em que as relações entre seres humanos assumem a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas, como afirma Marx (2013, p. 147). A fratura política encontra no terreno das relações mercantis sob a ordem do capital as condições para o pleno desenvolvimento da reificação, o outro é algo distante, coisificado, subsumido na mediação do mercado, o outro só existe para mim através da mediação da mercadoria. Reificadas as relações humanas, podemos compreender com espanto que a pandemia que atinge neste momento em que escrevo, mais de três milhões de pessoas e que já ceifou mais de cem mil vidas, pode preocupar menos do que a recuperação da economia, que crianças importem menos que a volta às aulas, que o limite de leitos de internação não preocupe tanto quanto a reabertura de shopping centers. No entanto, quando tratamos especificamente do Brasil, nos chama atenção um elemento que vai além destas determinações, ainda que, estou convencido, se funde nelas. A fratura política e o governo de extrema direita com seu comportamento negacionista e irracional diante da pandemia, faz emergir um elemento que, se é próprio da forma presente da luta de classes, encontra suas raízes na história de nossa formação social. A temperatura da luta de classes e o limite da política de conciliação, fez expressar-se como alternativa à extrema direita e o comportamento político reacionário. Sabemos que todo conservadorismo é, por definição, uma reação diante de processos de mudança, no entanto isto implica afirmar que não podemos compreender o conservadorismo como um processo único ou inequívoco, não existe “o” conservadorismo, pois ele é, neste sentido, histórico. Ele se apresenta na aurora do mundo burguês como reação aristocrática, como reação burguesa diante da sublevação proletária em 1848 ou 1871, como contrarrevolucionário diante da revolução russa de 1917, como ascensão do nazifascismo diante da crise do capital e a revolução proletária. No Brasil como reação metropolitana diante dos interesses de elites coloniais, ou como reação centralizadora diante das ambições descentralizadoras dos chamados liberais, ou reação liberal contra os planificadores de 1930 ou 1964, como golpismo de 1964 diante do reformismo e assim por diante. O que há de particular na manifestação conservadora atual é que ela é parte da reação à crise estrutural da ordem burguesa e capitalista e indica um profundo ressentimento pelos efeitos que causa. No entanto, o conservadorismo não pode apresentar-se como autenticamente antissistêmico uma vez que não pode ser anticapitalista, por isso se apresenta como defensor de um capitalismo puro, ultraliberal, guiado por um Estado forte e autoritário, aos moldes dos governos militares, capazes de garantir a ordem. Só pode apontar para um futuro que se vislumbra olhando para trás. Este amálgama aparentemente contraditório não deveria nos surpreender uma vez que é a reapresentação de uma expressão política conhecida. Sua base é a forma autocrática do Estado Burguês no Brasil e o capitalismo dependente. O desconcerto diante da emergência desta forma particular de conservadorismo é proporcional à ilusão segundo a qual o caráter autocrático do Estado brasileiro teria ficado preso a um passado superado e substituído por uma modernização que ao democratizar a sociedade brasileira imporia como necessidade a forma de um Estado Democrático de Direito e estabeleceria como terreno da luta de classes os termos de uma disputa política mediada por normatizações jurídicas impessoais e objetivas, portanto neutras no que tangem aos interesses de classe em disputa. Quando da emergência da primeira grande guerra, Freud apresentava seu incômodo com o fato de as nações civilizadas estarem metidas em uma matança sem limites para resolver seus interesses, quando,
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como civilizadas, haviam desenvolvidos marcos jurídicos e políticos que poderiam mediar seus conflitos sem o recurso à violência. Numa passagem significativa chega a afirmar que: Estava-se, pois, preparado para que a humanidade se visse ainda, por muito tempo, enredada em guerras entre os povos primitivos e os civilizados, entre raças humanas diferenciadas pela cor da pele e, inclusive, entre os povos menos evoluídos ou incultos da Europa. Mas das grandes nações da raça branca, dominadoras do mundo, às quais coube a direção da humanidade, que sabia estarem ocupadas com os interesses mundiais, e cujas criações são os progressos técnicos no domínio da natureza e os valores culturais, artísticos e científicos, destes povos esperava-se que saberiam resolver de outro modo as suas discórdias e seus conflitos de interesses. (FREUD, 2009, p. 5).
Guardadas as devidas proporções, a ingênua consciência cidadã de nossa época proclama seu desconcerto com o fato de cidadãos da ordem democrática e civilizada, da civilização que com seus progressos técnicos, valores culturais elevados, com sua refinada cultura e conhecimento científico, teria aprendido conviver em sociedade, tenha agora tornando-se palco para a plena irracionalidade, a negação da ciência, a burla da lei, o preconceito, a violência e a barbárie. Muitos estavam dispostos a aceitar o fato que tais comportamentos sobrevivessem entre os segmentos “incultos”, nas regiões periféricas e faveladas, entre negros e índios, mas não entre as “raças brancas”, entre os que estariam destinados a ser os dominadores do mundo. Mas, veem, atônitos, um jovem supremacista branco de dezessete anos com seu fuzil automático matar a tiros dois manifestantes em Kenosha, mas Kenosha não é um vilarejo na África e este mais um episódio de guerra tribal ou um genocídio como na República Democrática do Congo onde quatro milhões de pessoas foram assassinadas em 2006. Kenosha fica no estado de Winsconsin nos EUA e o ocorrido se deu em 2020. A civilização se apresenta como barbárie e para nós, como vimos, isto não é novidade. A política como mentira, manipulação, engodo e violência. No alvorecer do mundo moderno, Maquiavel preconizava que não poderíamos compreender o fenômeno político se purgássemos dele a violência aos moldes da filosofia política clássica. Muitos, de forma errônea, imaginam que desta maneira o pensador florentino estaria defendendo o uso puro e simples da violência, quando em verdade nos alertava para o fato de que a violência é um recurso sempre utilizado e quase sempre decisivo no jogo e luta de interesses que compõem um Estado. Interessantemente a consciência burguesa de um modo de produção especificamente capitalista apresenta a violência como excludente da política, como estava em Aristóteles e se reapresenta em Hannah Arendt e depois em Habermas. Zizek (2014) diferencia três momentos da violência, uma violência subjetiva, a expressão mais visível por ser aquela vivida na cotidianidade, a violência simbólica, encarnada, por exemplo na linguagem2, e a violência sistêmica, enraizada nos sistemas econômicos, políticos e culturais. As duas últimas, diferente da violência subjetiva, apresentam-se invisíveis, o que não significa dizer que são menos objetivas e efetivas. O filósofo esloveno procura compreender este fenômeno recorrendo à Hegel, quando afirma que em nossa sociedade existiria uma espécie de “identidade especulativa” de opostos de forma que certos aspectos da vida não aparecem como não marcados ideologicamente, parecendo neutras ao senso comum. Afirma Zizek: 2
Um bom exemplo de violência simbólica podemos encontrar na música Para matar preconceito eu renasci de Mariana Iris, na qual ouvimos a frase: “seu olhar para a porta de serviço, é um míssil invisível contra mim”.
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Pandemia e violência Mauro Luís Iasi Chamamos ideologia aquilo que não se inscreve nesse pano de fundo: o zelo religioso extremo ou a dedicação a uma orientação política particular. Em termos hegelianos, o importante aqui seria o fato de que é precisamente a neutralização de certos traços num pano de fundo espontaneamente admitido o que marca nossa ideologia em seu grau mais puro e eficaz. (…) Mutatis mutantis, o mesmo vale para a violência. A violência social na sua forma mais pura manifesta-se como seu contrário, como a espontaneidade do meio que habitamos, do ar que respiramos. (ZIZEK, 2014, p. 41).
Podemos compreender isto com um breve exemplo. Costumamos identificar a ideologia nas afirmações do tipo – bandido bom é bandido morto – que poderia se classificar como adesão a uma orientação política particular, neste caso de um extremismo de direita. Mas o lugar no qual a ideologia se manifesta de forma eficaz, porque orienta a ação dos seres humanos numa determinada direção e produz um efeito no real, é na violência policial que matou 5.804 pessoas em 2019, no entanto esta acaba por constituir o pano de fundo que se naturaliza e, em consequência disso, torna-se invisível. Algo semelhante ocorre na situação de pandemia. As expressões da ideologia nos comportamentos políticos negacionistas (“é só uma gripezinha”, “com certos medicamentos é possível prevenir e evitar o adoecimento”, “uma histeria”, etc.) é apenas um elemento do universo ideológico em operação e uma forma de violência simbólica. No âmbito sistêmico temos um longo e muitas vezes invisível processo no qual o padrão de acumulação exigiu o chamado saneamento financeiro do Estado que impõe cortes nos gastos públicos, privatizações e desmontes de serviços, entre eles os investimentos em ciência e tecnologia e atendimento à saúde. Quando nossos militantes protestam contra o desmonte do SUS, afirmando que saúde não pode ser mercadoria, seu comportamento é imediatamente identificado como “ideológico”, uma vez que expressaria adesão a uma posição política de esquerda. Ao mesmo tempo o brutal corte de gastos para beneficiar capital financeiro fica remetido ao pano de fundo como se fosse inquestionável como o fato que se você não tem dinheiro diante do caixa do supermercado deve devolver a mercadoria que havia tentado comprar. A pandemia, no entanto, apresenta-se incomodamente como caminho que eleva ao campo do visível a contradição sistêmica oculta por sua naturalização ideológica. Diante da escala das contaminações, das necessidades técnicas (testagens, equipamentos, desenvolvimento de vacinas, etc.) e propriamente médicas (tratamento ambulatorial, internações em UTIs, etc.), e, de forma mais enfática, os milhares de mortes; o edifício ideológico começa a apresentar rachaduras. Neste ponto é que a trajetória anterior de uma formação social incide de forma decisiva. As milhares de pessoas morrendo e o sofrimento de seus familiares têm que ser incorporados aos registros da violência simbólica e isso é realizado de várias maneiras. A forma mais burlesca que mal disfarça seu caráter altamente manipulatório encontramos no discurso oficial. No momento em que o país se encontrava com a macabra cifra de 113 mil mortos, o governo chamou uma atividade em Brasília cujo nome era significativamente “O Brasil vencendo a Covid-19”. No mesmo registro presenciamos durante toda a pandemia o argumento falacioso de que os números de casos e mortos encobriam a verdade, uma vez que se misturava nos contágios e mortos outras causas naturais (comorbidades, problemas respiratórios, idade avançada, etc.). Há, no entanto, uma outra forma mais sutil, mas não menos perniciosa que podemos presenciar diariamente nos meios de comunicação. Ao criticar o governo pelo negacionismo, pela incompetência explicita ao enfrentar a pandemia e pelas barbaridades evidentes, os meios de comunicação operam uma espécie de catarse coletiva que é acompanhada de uma matematização da doença (estatísticas de contágio
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e mortes, picos e patamares, cores laranja e vermelha, áreas de crescimento, recuo ou estabilidade em mapas coloridos, etc.) que serve ao propósito de rotinização da barbárie e simulacro de luto pela manipulação emotiva (homenagem aos trabalhadores da saúde, às famílias dos que faleceram, a opinião de especialistas, etc.). O que vem junto no pacote da catarse é a defesa do saneamento financeiro do Estado, a necessidade de flexibilizar (com responsabilidade) para salvar a economia e o mercado (inclusive o do ensino, expondo crianças ao contágio), a defesa da ordem institucional supostamente democrática que vigia e limita a irresponsabilidade do Poder Executivo. Ainda que politicamente contribua para o isolamento da extrema direita no poder, esta ação dos meios de comunicação, é, do ponto de vista ideológico, mais eficaz que o caráter burlesco do governo miliciano. Neste campo a ideologia opera de forma mais eficaz em sua missão de encobrir o caráter sistêmico da violência enquanto a forma tosca da turba que ocupa o planalto corre o risco de evidenciar as contradições tornando-as mais visíveis. Entretanto, seria um erro conceber estes dois momentos como polos excludentes, antes constituem mais uma manifestação da “identidade especulativa de opostos” a que se refere Zizek. Enquanto no plano do visível vemos o choque entre o governo de extrema direita negacionista e os meios de comunicação que se preocupam com as pessoas e ouvem a ciência, os opostos se irmanam na defesa do pano de fundo sistêmico que reproduz como naturalidade inquestionável, portanto permitindo que a ideologia opere de forma mais pura e eficaz. Um elemento, no entanto, permanece obscuro. Como esta operação se torna eficaz nas consciências das pessoas? Em outras palavras, por que as pessoas se submetem à manipulação ou à catarse, ou melhor seria dizer ao conjunto da operação manipulação/catarse? Temos que voltar por um instante ao desconforto de Freud diante da guerra. Além de se espantar que seres civilizados estavam se matando como bárbaros nos campos de batalha, Freud também se preocupava com o fato de que os governos haviam logrado adesão de seus povos no empreendimento da matança e isso só pode se realizar porque os governantes haviam subvertido um dos pontos do pacto civilizado no que tange à relação dos governos com seus cidadãos. Diz Freud: “estava sobretudo proibido servir-se das extraordinárias vantagens que o uso da mentira e do engano proporcionam na luta com os outros homens” (FREUD, 2009, p. 5). Era necessário transformar o “outro”, o “estrangeiro” em “inimigo” e para tanto era preciso mentir, dissimular, não apenas contra o inimigo, mas na própria relação com seus cidadãos. Segue Freud: Não só se utiliza contra o inimigo a astúcia permissível (ruses de guerre), mas também a mentira consciente e o engano intencional (…) O Estado exige dos seus cidadãos máximo de obediência e de abnegação, mas incapacita-os mediante um excesso de dissimulação e uma censura da comunicação e de expressão das opiniões, que deixa sem defesa o ânimo dos assim intelectualmente oprimidos frente a toda a situação desfavorável e a todo o boato desastroso (FREUD, 2009, p. 9).
Assim, o pai da psicanálise se vê diante de um fato constrangedor: os seres da mais alta expressão civilizatória e cultural, incluindo homens de ciência, se veem envolvidos na manipulação e se prestam a respaldar aventuras sanguinárias 3 . Diz o autor: “refiro-me à falta de discernimento que se revela nas 3
O pobre Freud sofre ainda pelo protagonismo germânico na matança e procura racionalizá-lo. Em outra passagem afirma: “Alimentamos a esperança de que uma historiografia imparcial fornecerá a prova de que precisamente esta nação, em cuja
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melhores cabeças, à sua obstinação e impermeabilidade aos mais vigorosos argumentos, à sua credulidade acrítica perante as afirmações mais discutíveis” (FREUD, 2009, p. 17). Todos nós, inclusive Freud, somos muito influenciados por um princípio do esclarecimento que, por vezes, nos prejudica a compreensão. No fundo temos uma fé inexplicável na razão, isto é, na premissa que o entendimento da verdade e suas determinações, em outras palavras, a ciência, uma vez estabelecida ilumina a questão e afasta a possibilidade de acreditar nas “afirmações mais discutíveis”. No entanto, não é o que ocorre, pois não se trata do diálogo entre argumentos ou, pior ainda, premissas e hipóteses de um enunciado científico. Como o próprio Freud argumenta na sequência de seu raciocínio, não podemos compreender nosso intelecto como uma força independente de nossa vida sentimental, em outras palavras, das paixões e impulsos básicos, ainda que o esforço científico exige que o intelecto tenha que trabalhar “subtraído a ação de intensos impulsos emocionais” (FREUD, 2009, p. 17). Mas, não somos todos filósofos. Logo que o intelecto se depara com a resistência emocional e afetiva, os seres mais inteligentes se comportam de súbito sem nenhum discernimento, produzindo o que o autor identificou como uma “cegueira lógica”. O que falta à precisa descrição do fenômeno em Freud e a categoria de ideologia. Ao nosso ver a tal “cegueira lógica” não se apresenta simplesmente pelo fato que egos enfraquecidos foram tomados pela força das paixões, deformando sua compreensão, ainda que isto ocorra. As ideias, valores, representações que constituem a consciência social de uma época são, na nossa compreensão, a expressão ideal das relações sociais nas quais os seres humanos produzem sua existência. Estas relações são interiorizadas na forma de representações, ideias, valores, e mesmo na formação de nosso psiquismo, no que concordamos com a aproximação psicanalista. O que distingue a aproximação marxista é que para nós é necessário considerar que o real que se interioriza se apresenta como uma cisão de interesses antagônicos e inconciliáveis de classe, ou nos termos de Wilhelm Reich (1977), o que escapa ao Freud é que o princípio da realidade nas condições atuais diz respeito a sociedade capitalista4. Isto implica que as representações que compõe nossa consciência social servem ao domínio de uma classe sobre outra e sua necessidade de reproduzir as condições sobre as quais este domínio se alicerça. Desta maneira a consciência social de nossa época assume a função de ocultar as determinações da sociabilidade capitalista (a propriedade privada, a forma mercadoria, a exploração do trabalho, a acumulação privada da riqueza socialmente produzida, etc.); naturalizar o existente e apresentá-lo como inevitabilidade, tornando-se uma justificativa e uma defesa laudatória do real; isto se dá pela inversão que não se produz no campo da ideologia, mas do real, inversão na qual os seres humanos se apresentam como mercadorias e suas relações como se fossem relações entre coisas, o Estado como possibilidade da vida genérica cindindo a dimensão política da existência e suas formas na sociedade civil burguesa, como cidadãos no Estado e indivíduos envoltos na concorrência do mercado; tudo isto como meio de apresentar os interesses particulares como se fosse gerais, a consciência do mundo burguês como se fosse a forma de expressão ideal do conjunto da sociedade. Em poucas palavras, a consciência social assume a forma de uma ideologia nos termos de Marx. Estas ideias e representações, juízos e valores, não se apresentam à consciência dos indivíduos como um discurso articulado ou como as premissas das diversas filosofias, doutrinas ou postulados
língua escrevemos e por cuja vitória combatem os nossos entes queridos, foi a que menos transgrediu as leis da civilização humana. Mas, em tempos como estes, quem poderá apresentar-se como juiz em causa própria?” (FREUD, 2009, p. 8) 4 “A definição do princípio da realidade como exigência da sociedade permanece formal se não acrescentar, sob a forma que reveste para nós atualmente, é o princípio da sociedade capitalista, baseada na economia privada” (REICH, 1977, p. 47)
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científicos que compõem o universo ideal do mundo burguês, o que nos levaria à disputa de argumentos e formulações. São antes a forma ideal interiorizada das relações sociais através das quais o indivíduo se socializa nos diferentes grupos intermediários que compõem sua socialização. O que se interioriza não é um valor em si, um juízo ou uma representação, mas a carga afetiva e emocional da aceitação ou rejeição que o indivíduo experimenta ao vivenciar o contato das pulsões internas com o real, suas formas de existência e padrões de comportamento de uma determinada sociedade existente e do grupo que representa a mediação em cada momento e circunstância a relação entre os indivíduos e a sociedade. Isto significa que um valor ou uma ideia se apresenta em primeiro como substância, assim como o valor das mercadorias se diferencia das formas possíveis de seus valores de troca. São interiorizadas como cargas afetivas e passam a compor nosso psiquismo, seja como exigência externa imposta em um primeiro momento, seja como normas interiorizadas no superego em um segundo momento. Estou convencido que a variedade da forma dos valores e representações ideológicos, dialogam com esta base psicológica e emocional de forma a produzir aquilo que Althusser (1996) denominou de reconhecimento ou interpelação, processo no qual o valor em uma forma determinada (A) pode fundamentar-se em uma base formada pela interiorização das relações sociais estabelecidas, da mesma forma que um outro valor (B), ainda que aparentemente assuma uma forma de expressão distinta, correspondam a mesma substância interiorizada.
3 Considerações finais O bárbaro que desconcerta Freud, com sua ferocidade e disposição para a matança na guerra, assim como o indivíduo que ignora as milhares de vítimas de uma pandemia e afirma seu direito e sua liberdade para romper o isolamento social e andar sem máscaras no shopping center; e o intelectual civilizado que assumiu as vantagens de uma vida cultural sofisticada e que desenvolveu a ciência, a tecnologia e as artes, assim como o liberal esclarecido com sua coleção de livros na estante ao fundo, que come com garfo e faca, não acredita na existência de uma mamadeira com bocal peniano para produzir homossexualismo em massa e está convicto da forma esférica do planeta; são partes constitutivas da hegeliana unidade e identidade dos contrários. São expressões da mesma substância, as formas históricas e objetivas da sociabilidade burguesa alicerçada nas relações sociais de produção do modo capitalista de produção em seu estágio atual. Ambos, assim como a manipulação e catarse, compõem em seu conjunto o esforço da ideologia, assim como se sustentam no mesmo terreno material. Interessante notar, que entre eles existe um desconforto, para os sofisticados ideólogos a extrema direita parece tosca e vulgar, para esta a intelectualidade burguesa com pendores liberais e raízes escravocratas, formula juízos que para a extrema direita soa como se fosse uma rendição ao esquerdismo. A unidade de contrários implica contradição e não aplainamento da diferença. O que os une é a defesa da ordem e o que os distingue é a ênfase no tipo de violência mais eficaz para garanti-la. A extrema direita aposta na violência explícita, objetiva e física, mas não descarta a eficiência da violência simbólica, o que alguns compreendem como o recurso à chamada guerra híbrida. Os chamados liberais, apostam na violência simbólica e na reprodutibilidade da violência sistêmica, ainda que não descartem a violência explícita da repressão quando necessária. O que importa é que, como afirmamos, estes aspectos se imbricam inseparavelmente e sua eficácia ideológica está na perfeita combinação destes momentos.
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Sérgio Buarque de Holanda (1994) achou prudente esclarecer que sua afirmação do suposto “homem cordial”, expressão que tomou de Ribeiro Couto, não deveria ser compreendida como exclusividade de atitudes positivas, uma vez que na substância sua afirmação é uma certa postura estranha às convenções e formalismos, que “não abrange, apenas obrigatoriamente, sentidos positivos e de concórdia”, uma vez que, segue o autor, “a inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade, nisto que uma e outra nascem do coração, procedem assim, da esfera do íntimo, do familiar, do privado” (HOLANDA, 1994, p. 107, nota 157). Da mesma forma, por analogia, as formas políticas da extrema direita e a suposta sofisticação da crítica “liberal”, nascem do mesmo solo, batem no mesmo coração pulsante do modo de produção capitalista. Nós, envoltos lá na dimensão do real, navegamos por entre estes momentos, vivenciando ora a ênfase na violência simbólica, ora os efeitos mais marcantes de uma violência sistêmica, mas sempre vivenciando como uma enorme violência subjetiva. A rotinização da violência, seu caráter histórico e constitutivo de nossa formação social nos educou por séculos a ignorar nossos mortos e a conviver com a violência em suas diferentes formas de manifestação. Como disse certa vez Lima Barreto, nos comportamos como náufragos jogados numa ilha à espera da volta de uma caravela que nos resgate. Olhamos a morte como uma velha amiga, inquietante e assustadora, mas conhecida e corriqueira. Aprendemos a viver com fantasmas e suas correntes, com senzalas e cortiços, com negros sendo atados no pelourinho ou crivados de bala nas quebradas, como crianças inglesas que brincavam e cantavam sob as gaiolas onde cadáveres apodreciam, seguimos fazendo compras mesmo com o defunto coberto por guardasóis no chão do mercado, jogando bola ao lado dos corpos que caíram da ciclovia, indo para a escola onde carteiras vazias esperam crianças que encontraram balas perdidas. Amarildo não aparecerá, as casas da Vila Autódromo estão no chão como o edifício construído pela milícia, Claudia segue sendo arrastada pela viatura, Marielle ainda não chegou em casa, mas nossa tragédia é ser goleado por sete gols pela potência futebolística germânica. Desenvolvemos uma curiosa adaptabilidade diante da barbárie, de maneira que os milhares de mortos de hoje encontrarão seu lugar nesta nau insana e seguiremos viagem. A pandemia não pode ser responsabilizada por nossa tragédia, ainda que seja dela um capítulo que terá destaque pela forma como foi enfrentada pelo governo mais ridículo de nossa história, pela insensibilidade diante da dor e do descaso. A violência da pandemia, um tanto envergonhada, se juntará à violência que aqui já habita e tomará seu lugar entre as cicatrizes cravadas na pele do país. “Bem antes de cairmos em batalhas sem sentido Ainda andando por cidades intactas Nossas mulheres Eram já viúvas E nossos filhos órfãos. Bem antes de nos lançarem em covas Aqueles também marcados Éramos sem alegria. Aquilo que a cal Nos corroeu Já não eram rostos.” Bertold Brecht
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Submetido em: 20 ago. 2020 Aceito em: 14 out. 2020
DOI: 10.19180/1809-2667.v22nEspecial2020p667-686
Precariedade e mistificação da precarização: superexploração da força de trabalho Precariousness and mystification of precariousness: overexploitation of the workforce Precariedad y mistificación de la precariedad: superexplotación de la fuerza de trabajo 0DUFHOD 6RDUHV KWWSV RUFLG RUJ 'RXWRUD HP 6HUYLoR 6RFLDO SHOD 8QLYHUVLGDGH )HGHUDO GR 5LR GH -DQHLUR 8)5- 3URIHVVRUD $GMXQWD ,9 GR 3URJUDPD GH 3yV *UDGXDomR HP 6HUYLoR 6RFLDO H 'HVHQYROYLPHQWR 5HJLRQDO GD 8QLYHUVLGDGH )HGHUDO )OXPLQHQVH 8)) ± 1LWHUyL 5- ± %UDVLO ( PDLO PDUFHODVRDUHV#LG XII EU
Resumo Este artigo, por meio da Teoria Social de Marx e do pensamento social brasileiro marxista, objetiva analisar a precariedade do trabalho, a superexploração da força de trabalho e a mistificação da precarização com a expropriação de direitos. Dessa forma, destaca as particularidades do capitalismo dependente brasileiro e as marcas da escravidão colonial com a apreensão do sentido da expropriação do trabalho e da exportação de excedente econômico. Ressalta, ao final, o atual período ultraneoliberal potencializado pelo governo de Jair Bolsonaro, com o reforço da cultura do “empreendedorismo” via “teologia da prosperidade”, aprofundando os retrocessos dos direitos do trabalho. Palavras-chave: Superexploração da força de trabalho. Precarização do trabalho. Capitalismo dependente. Contrarreforma do trabalho.
Abstract This article, based on Marx's Social Theory and on the Brazilian Marxist social thought, aims to analyze the precariousness, the overexploitation of the workforce and the mystification of precariousness with the expropriation of rights. Thus, it highlights the particularities of Brazilian dependent capitalism and the marks of colonial slavery with the apprehension of the meaning of the expropriation of labor and the export of economic surplus. It highlights the current ultraneoliberal period enhanced by the government of Jair Bolsonaro, with the reinforcement of the culture of “entrepreneurship” via the “prosperity theology”, increasing the setbacks of labor rights. Keywords: Overexploitation of the workforce. Precarious work. Dependent capitalism. Work counter-reform.
Resumen Este artículo, a través de la Teoría Social de Marx y el pensamiento social marxista brasileño, tiene como objetivo analizar la precariedad del trabajo, la superexplotación de la fuerza de trabajo y la mistificación de la precariedad con la expropiación de derechos. De esta forma, destaca las particularidades del capitalismo dependiente brasileño y las huellas de la esclavitud colonial con la aprehensión del significado de la expropiación del trabajo y la exportación del excedente económico. Al final, destaca el actual período ultraneoliberal potenciado por el gobierno de Jair Bolsonaro, con el fortalecimiento de la cultura del “emprendimiento” a través de la “teología de la prosperidad”, profundizando los retrocesos de los derechos laborales. Palabras clave: Superexplotación de la fuerza de trabajo. Trabajo precario. Capitalismo dependiente. Contrarreforma del trabajo.
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Precariedade e mistificação da precarização: superexploração da força de trabalho Marcela Soares
1 Introdução No Brasil, as marcas da escravidão colonial e o sentido da expropriação do trabalho e da exportação de excedente econômico foram ressignificados 1 no processo de inserção do nosso país na divisão internacional do trabalho, o configurando sob a relação da dependência no sistema mundial imperialista. Estas particularidades mediatizam a dinâmica da acumulação capitalista e, por sua vez, o modo e as estratégias político-ideológicas da política macroeconômica neoliberal, implementada ao largo de 25 anos, que mistificou sua agenda e seus efeitos deletérios. Sob o efeito do encantamento da “conciliação de classes”, as classes trabalhadoras foram atingidas com o aprofundamento dos retrocessos nas condições de vida e de trabalho no atual período ultraneoliberal.2 Com a pandemia do novo coronavírus3 a crítica situação das classes trabalhadoras brasileiras foi revelada e agravada. Diante disso, propõe-se para a apreensão do atual período histórico uma análise tanto do processo particular estruturante da precariedade do trabalho, como da expansão, naturalização e mistificação da precarização das condições de trabalho, com as políticas de geração de emprego e renda implementadas ao longo dos governos petistas. Somado ao desmonte da proteção do trabalho com a contrarreforma trabalhista de 2017 e a Emenda Constitucional 95/2016, no governo Temer, além das atuais expropriações de direitos no atual governo de Jair Bolsonaro, com o reforço da cultura do “empreendedorismo” pela “teologia da prosperidade”. Por meio de Marx e do pensamento social brasileiro marxista, este texto4 busca demonstrar a forma particular que a lei geral da acumulação capitalista se engendra na realidade brasileira e se desenvolve 1
A partir da contribuição de Florestan Fernandes (2009) e Ruy Mauro Marini (2011), analisamos sob a perspectiva de que não é uma falta de desenvolvimento capitalista ou uma anomalia, mas que formas histórico-concretas coexistem e/ou são ressignificadas sob as leis da acumulação capitalista em seu movimento desigual e combinado. 2 “Iniciou-se, então, uma nova fase da contrarrevolução preventiva, agora de tipo ultraneoliberal e em fase ainda mais agressiva. Sua principal finalidade: privatizar tudo que ainda restar da empresa estatal; preservar os grandes interesses dominantes e impor a demolição completa dos direitos do trabalho no Brasil” (ANTUNES, 2020a, p. 291, grifos do autor). 3 “A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou, em 30 de janeiro de 2020, que o surto da doença causada pelo novo coronavírus (COVID-19) constitui uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional – o mais alto nível de alerta da Organização, conforme previsto no Regulamento Sanitário Internacional. Em 11 de março de 2020, a COVID-19 foi caracterizada pela OMS como uma pandemia”. Ver em: https://www.paho.org/pt/covid19. Acesso em: 13 jul. 2020. 4 Este texto possui uma direção mais de reflexão teórica, apesar de embasar-se em pesquisas anteriores realizadas sobre a funcionalidade político-ideológica e econômica da “Responsabilidade Social Empresarial” no Brasil; sobre a mistificação da precarização por meio das Políticas de Geração de Emprego e Renda nos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) e sobre as condições de trabalho e escravidão contemporânea no Brasil antes e pós contrarreforma trabalhista de 2017, pesquisas realizadas entre 2008 e 2019, pela autora. Ver os trabalhos de Soares: SOARES, M As políticas de geração de emprego e renda no Brasil: o arcaico reatualizado. In: BOSCHETTI, I. et al. (org.) Capitalismo em crise. Política social e direitos. São Paulo: Cortez, 2010; SOARES, M. Trabalho escravo - uma realidade na cadeia produtiva de corporações com a chamada “responsabilidade social”. In: FIGUEIRA, R. R; PRADO, A. A. Olhares sobre a escravidão contemporânea. Novas contribuições críticas. Cuiabá: EdUFMT, 2011.p. 408-414; SOARES, M. Como erradicar o trabalho escravo no Brasil? Notas a propósito do relatório da ONU. Brasiliana: Journal for Brazilian Studies, v. 2, n. 2, p. 162-186. 2013; SOARES, M. O Trabalho Escravo e o Sistema Público de Emprego Brasileiro. In: FIGUEIRA, R. R. et al. (org.) Privação de liberdade ou atentado à dignidade: escravidão contemporânea. Rio de Janeiro: Mauad X, 2013. p. 329-353; SOARES, M. País dos megaeventos e da violação dos direitos trabalhistas e humanos. In: FIGUEIRA et al. (org.). Discussões contemporâneas sobre trabalho escravo: teoria e pesquisa. Rio de Janeiro: Mauad X, 2016. p. 211-23.; SOARES, M. “Trabalho escravo contemporâneo” e o avanço da superexploração da força de trabalho: as particularidades periférico-dependentes de Brasil e México. In: FIGUEIRA, R. R. et al. (org.) Escravidão: moinho de gentes no século XXI. Rio de Janeiro: Mauad X. 2019. p. 55-80.
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na dinâmica do presente período histórico, tendo a precariedade do trabalho, alicerçada pela escravidão colonial, e a superexploração da força de trabalho5 como mediações analíticas do capitalismo dependente para o debate acerca da mistificação da precarização do trabalho, com a expansão da expropriação de direitos.
2 Precariedade do trabalho e superexploração: mistificação contemporânea da precarização Para essa análise, recuperamos brevemente alguns aspectos históricos da mercantilização da força de trabalho brasileira6 e da dinâmica contemporânea do capitalismo por meio de três eixos de abstração para a apreensão de alguns elementos para o debate acerca da precariedade e da superexploração da força de trabalho e, por sua vez, da mistificação da precarização. 1º) A partir de Marx (2017a, 2017b), recuperamos, resumidamente, a apreensão acerca da dinâmica da acumulação capitalista, que em sua permanente expansão, expropriação e exploração, desencadeia constantes e diferenciadas formas de dominação e violência. Desse modo, temos claro que somente a luta de classes pode frear o agravamento da exploração capitalista e sua destrutibilidade. O seu caráter expansionista, em sua interconcorrência, implica a concentração e centralização de capitais capazes de aumentar a produtividade do trabalho e obter maiores taxas de mais-valor. Indica, em suas leis tendenciais e contratendenciais, tanto o aumento da composição orgânica do capital7 como a busca permanente por novos mercados, significando a expropriação e a busca pela capitalização8 de todas as esferas da vida, para responder às suas contradições intrínsecas. O objetivo crucial do/a capitalista “é a valorização de seu capital, a produção de mercadorias que contenham mais trabalho do que o que ele paga […]. A produção de mais-valor, ou criação de excedente, é a lei absoluta desse modo de produção.” (MARX, 2017a, p. 695). A busca por maiores taxas de lucro incide na busca permanente de maior produtividade e pelo mais-valor extraordinário. O aumento da intensidade da exploração da força de trabalho, por meio do incremento da produção de mais-valor absoluto e/ou relativo, é um dos principais objetivos e será uma das consequências das expropriações (de direitos e meios de subsistência de trabalhadores/as) e do avanço tecnológico. Porque, nessa “configuração técnica aperfeiçoada, [uma] massa menor de trabalho basta para pôr em movimento uma massa maior de maquinaria e matérias-primas.” (MARX, 2017a, p. 704). A acumulação capitalista gera, regularmente, “uma população trabalhadora adicional relativamente excedente, isto é, excessiva para as necessidades médias de valorização do capital 5
Análise a partir de Ruy Mauro Marini (2011). 6 Cabe esclarecer que não temos interesse em destacar ou fazer um apanhado cronológico da história do trabalho e sobre a construção do direito do trabalho em nosso país. 7 Em abstrato, o aumento da composição orgânica do capital é ilimitado. “Com a queda progressiva do capital variável em relação ao capital constante, a produção capitalista gera uma composição orgânica cada vez mais alta do capital total, que tem como consequência imediata o fato de que a taxa do mais-valor, mantendo-se constante e inclusive aumentando o grau de exploração do trabalho, se expressa numa taxa geral de lucro sempre decrescente. […] A tendência progressiva da taxa geral de lucro à queda é, portanto, apenas uma expressão, peculiar ao modo de produção capitalista, do desenvolvimento progressivo da força produtiva social do trabalho.” (MARX, 2017b, p. 250-251, grifos do autor). 8 “A formação do capital fictício tem o nome de capitalização. Para capitalizar cada receita que se repete com regularidade, o que se faz é calculá-la sobre a base da taxa média de juros, como o rendimento que um capital, emprestado a essa taxa de juros, proporcionaria; […] Desse modo, apaga-se até o último rastro toda a conexão com o processo real de valorização do capital e se reforça a concepção do capital como um autômato que se valoriza por si mesmo.” (MARX, 2017b, p. 524).
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e, portanto, supérflua.” (MARX, 2017a, p. 705). Há, dessa forma, a ampliação da superpopulação relativa promovendo o sobretrabalho9 da parte ocupada. Pontuamos, grosso modo, que na medida em que cada capitalista individual procura maximizar seus lucros, a taxa de lucro tende a cair, e, portanto, o modo de produção capitalista em sua própria dinâmica cria empecilhos à sua expansão. A necessidade dos capitais superacumulados retornarem ao ciclo do capital, escoa recursos para a inovação tecnológica e para novas frentes de investimento. Tal como identificamos nas contradições do capitalismo contemporâneo, em diversas formas de expropriação,10 desde o avanço da fronteira agrícola sobre áreas de preservação ambiental e/ou indígena, passando pela privatização da saúde, educação, previdência social, 11 como também encontrando possibilidades de reprodução nos serviços de venda de títulos da dívida pública até a criação de produtos financeiros, para garantir a antecipação da realização de mais-valor. Constituem, dessa maneira, formas para acelerar o ciclo do capital como também servem de mecanismos para que o ciclo não cesse. Apesar das crises serem constitutivas do capitalismo e cada vez mais cumulativas, hegemônicas e destrutivas.12 A ampliação da liberalização financeira e da monetização do capital fictício, somadas à desregulamentação e às privatizações, aprofundaram as contrarreformas. Uma vez que se trata de uma superacumulação de uma massa de capital, que se especializa apenas na apropriação de um mais-valor que ele não produz, uma primeira requisição para a retomada da acumulação é a expansão da massa de maisvalor produzido, de forma a garantir concretude ao montante de títulos de apropriação superproduzidos. Isso implica aumentar a taxa de exploração da força de trabalho, por meio dos retrocessos dos direitos das classes trabalhadoras como forma de reduzir o valor da força de trabalho, com o prolongamento da jornada e/ou da intensidade do trabalho, sem o correspondente aumento salarial. (CARCANHOLO, 2017). As contrarreformas articuladas ao “ajuste fiscal” vêm para garantir a existência de uma maior apropriação de mais-valor para dar concretude a títulos de direito de apropriação, porque o crescimento destes títulos tem sido mais veloz do que o do capital produtivo. Importante destacar que a primeira fase da crise de 2008 ocasionou a segunda em 2012, com o endividamento público,13 este promovido via emissão de títulos públicos para garantir a reprodução daquele capital fictício. (CARCANHOLO, 2017). Nesse sentido, a chamada financeirização, tornou-se a característica hegemônica do capitalismo contemporâneo, com a permanente função do capital fictício garantir a realização antecipada de maisvalor. Acentuando mecanismos de transformações nas relações de produção e de trabalho assim como desregulamentações constantes, para garantir o aumento da produtividade e da intensidade do trabalho. Por esse ângulo de análise, podemos identificar a essencialidade da reestruturação permanente e da “revolução digital”, com a chamada indústria 4.0, 14 além da duradoura estratégia de mistificação da precarização por meio das instituições internacionais, tal como o Banco Mundial e a ONU.15 9
Sobre o debate acerca do sobretrabalho, expropriação e superexploração no capitalismo dependente, a partir de Karl Marx e Ruy Mauro Marini, ver Ferreira (2018). 10 Ver Fontes (2020). 11 Ver Boschetti (2020) e Fontes (2020). 12 Mészáros (2009). 13 A dívida pública funciona como um mecanismo de transferência de valor, ampliando a superexploração da força de trabalho. Sobre a dívida pública e a “financeirização” das políticas sociais sugerimos Brettas (2017). 14 Sobre reestruturação permanente e a chamada indústria 4.0, ver Antunes (2020a). 15 Sobre as estratégias, da ONU e do Banco Mundial, para reconstruir a legitimidade das políticas de ajuste estrutural com a promessa de crescimento econômico com bem-estar social. Ver: Maranhão (2010, p. 80-81).
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As tecnologias de informação e comunicação (TIC) avançam e os grupos monopólicos as expandem de forma a englobar todas as esferas da vida, todos os setores econômicos possíveis. Desde aqueles mais precarizados/“autônomos” até aqueles profissionais liberais dos setores médios. Deparamonos com uma plataformização do trabalho que ao mesmo tempo que precariza, garante o controle do trabalho, por meio do Big data, da internet das coisas, dos algoritmos e, por sua vez, a quantidade de tarefas e o tempo de trabalho (jornada e produtividade) (ANTUNES, 2020b). O capitalismo, em sua configuração contemporânea, encontrou na desterritorialização da produção a possibilidade de ampliar e transformar o salário por peça em uma estratégia para mistificar/ocultar/burlar o vínculo trabalhista, como as vistas na “autonomia” no autoemprego do “microempreendimento”, no trabalho em domicílio, nas cooperativas e, hoje, no trabalho intermitente e na uberização/plataformização do trabalho. A desconcentração da produção garante às grandes corporações o não pagamento dos encargos sociais, uma vez que o salário por tempo é substituído pelo salário por peça como meio de individualizar as relações de produção. E, dessa forma, implica uma nova forma de contrato de trabalho e traz uma suposta “autonomia” produtiva do salário por peça (SOARES, 2016). No capitalismo, as formas de salário por peça e por tempo existem lado a lado. O salário por peça é uma forma “metamorfoseada” do salário por tempo, um meio de intensificar mais o trabalho, mediado inclusive pela autoexploração, e também dar vazão ao aumento da jornada de trabalho (MARX, 2017a, Seção VI). Portanto, se o/a trabalhador/a quer ganhar mais, terá que trabalhar mais. Nesse caminho, aumentam-se as subcontratações por meio de “renovadas” formas de trabalho precário, e a forma de pagamento por peça é retomada e metamorfoseada a partir de novos parâmetros produtivos, como pelo controle algorítmico. Assim vemos a autoexploração do/a trabalhador/a por meio da intensificação e extensão da jornada de trabalho. E a relação de exploração está velada porque o/a trabalhador/a ou é dono/a dos meios de produção ou os aluga, porém depende de sua força de trabalho, além da matéria-prima e da maior estrutura de alguma empresa para colocar “seu produto” no mercado ou entregá-lo. As estratégias político-ideológicas do capital, a exemplo do “empreendedorismo” ou do home-office/teletrabalho, incutem a ideia de que gerar o seu próprio emprego ou trabalhar para o/a patrão/oa fora dos limites da empresa significa ter “autonomia” (SOARES, 2016). 2º) A inserção do nosso país na divisão internacional do trabalho vem como segundo momento de nossa abstração, para destacarmos a particular e estrutural precariedade do “mercado” de trabalho brasileiro. Dessa forma, ressaltamos as linhas de continuidade e de ruptura no processo de hegemonização do trabalho livre no Brasil, onde as formas transitórias de exploração da força de trabalho compõem a passagem do Brasil colonial ao capitalismo dependente. Resquícios são reinventados das formas transitórias de exploração da força de trabalho, no entanto, ainda que se constatem elementos de permanência do sentido colonial no capitalismo dependente, não é uma simples continuidade e não podemos considerá-los como processos homogêneos. Para Ruy Mauro Marini, a América Latina se inseriu na divisão internacional do trabalho após 1840, onde se inicia “uma relação de subordinação entre nações formalmente independentes, em cujo marco as relações de produção das nações subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a reprodução ampliada da dependência” (MARINI, 2011, p. 135136). Sendo assim, a inserção no mercado mundial da América Latina se dá como provedora de produtos agropecuários e de matérias-primas industriais, via injeção de capitais acumulados das nações industriais, permitindo o aprofundamento da divisão internacional do trabalho e a especialização dos “países industriais como produtores mundiais de manufaturas” (MARINI, 2011, p. 137).
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Florestan Fernandes (2009) ressalta que as relações de trabalho de origem colonial foram cruciais para a eclosão do mercado capitalista moderno, e, por sua vez, na inserção no mercado mundial o esquema de produção-exportação-importação. Quando a “revolução comercial” acelerou a modernização interna, as típicas relações de trabalho de origem colonial tornaram-se um entrave à expansão interna do mercado, exigindo a mercantilização da força de trabalho. A mercantilização da força de trabalho brasileira originou-se de braços dados com o trabalho escravo de negras e negros, que foram fundamentais para o processo de consolidação da economia capitalista mundial. Até a metade dos anos 1850, a força de trabalho escrava estava na agricultura de exportação, compunha os portos, os transportes terrestres, o comércio e as fábricas. Como “nas mais diversas atividades, dos serviços domésticos aos ofícios mais especializados, passando pelo trabalho pesado do transporte de mercadorias e pelo variado comércio de rua” (MATTOS, 2009, p. 17). É fundamental destacar a ausência de políticas de integração, e, por sua vez, o abandono que negros e negras sofreram após os processos de alforrias e a abolição da escravidão. A mulher negra permaneceu na esfera privada da reprodução social, no serviço doméstico ou na satisfação do apetite sexual dos patrões ou, ainda, na prostituição. E as condições desiguais do negro em competir com os imigrantes europeus ou alcançar outras ocupações, o encaminhou para o trabalho degradante e mal remunerado (FERNANDES, 1989; GONZALEZ, 1984). Um histórico mediado pelo patriarcado e pelos determinantes étnico-raciais estruturantes da nossa formação socioeconômica e, portanto, da nossa divisão sociossexual e étnico-racial do trabalho, patentes nos dados das condições de trabalho e renda no Brasil contemporâneo.16 O século XIX foi emblemático da transição da escravidão e do convívio entre livres e escravizados/as até a generalização do trabalho livre, e chegando a este patamar torna-se notável a permanência da heterogeneidade das condições de trabalho e acesso a direitos. As formas transitórias de trabalho com traços da subalternidade escravocrata, somadas ao incentivo à imigração europeia - sob o pressuposto da conquista da “disciplina” da força de trabalho - e à política eugênica brasileira consolidaram a condição de semiescravidão aos/às negros/as. 17 A ocupação, quase permanente, nas fileiras da superpopulação relativa pelos/as negros/as e a “reforma ‘eugênica’ dos salários: maiores para os brancos, menores para os negros” (MOURA, 1994, p. 7), garantiu a predominância do pagamento da força de trabalho negra sem correspondência com suas necessidades de reprodução. Do final do século XIX ao início do XX, intensificou-se a industrialização de forma subordinada aos países centrais e, consequentemente, as classes trabalhadoras evidenciaram as péssimas condições de trabalho, com jornadas extenuantes e miserabilidade nos locais de moradia. Já, entre as décadas de 1930 e 40, Getúlio Vargas combinou o favor, a manipulação, estabeleceu as últimas políticas estatais imigratórias eugênicas,18 além de reprimir brutalmente as lutas sociais, para concretizar o desenvolvimento industrial a partir de uma perspectiva nacionalista de “conciliação”, principalmente por meio da 16
No caso da escravidão contemporânea no Brasil, 80% das vítimas resgatadas, entre 2016 a 2018, são pessoas negras e 90% são homens. No entanto, levantamos questionamentos sobre uma recente pesquisa da OIT (2018), no estado do Maranhão, que indica como resultado de suas entrevistas que o número de mulheres pode ser maior do que o resultante das operações de resgate. A amostragem da pesquisa revela que 36,5% das mulheres já podem ter sido submetidas a condições de escravidão contemporânea. Pensamos que talvez essa invisibilidade ocorra por causa da não fiscalização das condições de trabalho das trabalhadoras que atuam na reprodução social de diversas famílias e/ou no setor têxtil que, por meio da terceirização/quarteirização, ocorrem em trabalho em domicílio. (SOARES, 2020). 17 Sugerimos Abdias Nascimento (2016) para o histórico e análise sobre o extermínio de negros e negras. 18 Sobre as políticas de branqueamento e as condições de trabalho dos negros no Brasil, ver: Damasceno (2020).
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Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) (ANTUNES, 2011). A CLT fora apresentada como uma benevolência do Varguismo, movimento garantidor da gratidão e retribuição dos/as trabalhadores/as de forma ordeira e produtiva (MATTOS, 2009). Esse foi um processo concomitante ao crescimento dos sindicatos oficiais, tornando as organizações sindicais como espaços de favores e de recursos junto à burocracia estatal, configurando-os como espaços dos “pelegos” e das ações assistenciais (FONTES, 2010). E, estrategicamente,19 para viabilizar maior desmobilização das classes trabalhadoras, Vargas implementou a primeira legislação geral do trabalho direcionada apenas para os/as trabalhadores/as urbano/as, deixando de fora os/as trabalhadores/as do campo (OLIVEIRA, 2003). A partir desse brevíssimo resgate de alguns elementos históricos que traçam a heteronomia e o perfil autocrático e racista das burguesias nativas, assim como a heterogeneidade das classes trabalhadoras brasileiras e a degradação material e moral da exploração da força de trabalho (FERNANDES, 2009). É crucial para nossa análise, indicada no primeiro eixo, identificar como a expansão, a expropriação e a busca pela capitalização de todas as esferas da vida com a incessante reestruturação produtiva, se concretizam mediadas pelas particularidades sócio-históricas da dependência. Ademais, destacamos a precariedade e o racismo estrutural 20 compondo esses elementos constitutivos da dinâmica, que se restabelecem, permanentemente, se renovando mesmo com o constante avanço das forças produtivas. Notável, hoje, no controle algorítmico, que em um amplo solo histórico consolidado de precariedade e mistificação da precarização, facilita a burla do vínculo empregatício e o aprofundamento da superexploração. Dessa forma, ressaltamos que mesmo com mudanças substantivas nas relações de classe e nos processos produtivos internos e externos, que desencadearam possibilidades de acumulação de capital à custa da exploração de mais-valor relativo,21 os determinantes particulares do capitalismo dependente permanecem e são aprofundados pela política macroeconômica neoliberal. Ainda que ocorra a ampliação da produtividade do trabalho e do mais-valor relativo, se desenvolve e se reproduz a superexploração da força de trabalho, que significa a remuneração da força de trabalho abaixo do seu valor, por meio de mecanismos usados pelo Estado e/ou pelo capital, constituindo-se a base estrutural do ciclo do capital nas economias dependentes. 22 Para atender as demandas da circulação capitalista comandada pelos países centrais, “a produção latino-americana não depende da capacidade interna de consumo para sua realização.”23 Na realidade dos países de capitalismo dependente existe “a separação dos dois momentos fundamentais do ciclo do capital - a produção e a circulação de mercadorias -, cujo efeito é fazer com que apareça de maneira específica na economia latino-americana a contradição inerente à produção capitalista em geral […].” (MARINI, 2011, p. 155). Aqui temos a essência do padrão de acumulação de capital típico da relação desigual entre as burguesias externas hegemônicas e as internas dependentes, em que a produção das últimas se subordina às primeiras, e, nesse sentido, exige-se uma superexploração das classes trabalhadoras da periferia. O modo 19
E como parte do pacto entre as oligarquias agrárias e as burguesias urbanas, que garantiu o rebaixamento salarial dos/as trabalhadores/as no setor urbano, mediante o aumento da superpopulação relativa advindo dos fluxos migratórios. 20 Recomendamos Sílvio Almeida (2019) para o debate sobre o “racismo estrutural”. 21 Para mais esclarecimentos, veja: Osório (2012) e Luce (2018). 22 Sobre isto ver Marini (2012), Osório (2016), Ferreira (2018) e Luce (2018). 23 A partir de uma perspectiva diferente, Ianni (2005, p. 139), ressalta que “o trabalhador rural é o elo mais vulnerável, na cadeia do sistema produtivo que começa com sua força de trabalho e termina no mercado internacional. Ele parece ser o vértice de uma pirâmide invertida, no sentido em que o produto do seu trabalho é dividido entre muitos, porém, sobrandolhe pouco”.
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de produção capitalista, no ciclo do capital nas economias dependentes, 24 para garantir a máxima exploração da força de trabalho, busca viabilizar meios para aumentar as horas de trabalho, a intensidade e a produtividade do trabalho, mas também expropria parte do fundo de consumo dos/as trabalhadores/as, a fim de torná-lo uma fonte adicional de capital que é adicionado ao fundo de acumulação. Esses procedimentos constituem a prática constante por parte do capital e do Estado para remunerar a força de trabalho abaixo do seu valor e assumir a existência de todo um sistema institucional, social e legal que regula salários insuficientes para garantir a reprodução das classes trabalhadoras em condições normais (VALENCIA, 2013). Portanto, a superexploração da força de trabalho é “uma categoria necessária, embora não suficiente,25 para pensar as formações econômico-sociais do capitalismo dependente, cuja compreensão mais completa deve incorporar também as relações de poder e opressão” (FERREIRA, 2018, p. 228). O condicionamento das classes trabalhadoras sob o capitalismo dependente é o de expropriação tanto dos meios de subsistência como das condições de vida, sem direitos assegurados que os/as colocam na condição de vender a sua força de trabalho sob as piores condições, mediadas pelas opressões étnicoraciais e de gênero. Os rumos e efeitos nefastos da integração dependente se aprofundam de acordo com as particularidades sócio-históricas, articuladas à necessidade social do capital e às condições geopolíticas. A condução política brasileira expressa a história da nossa formação social, subordinada à condução imperialista dos países centrais, com uma cultura política de supressão do dissenso pela repressão, fascistizantes, ou pelo encantamento, por meio de uma falaciosa “conciliação de classes”26. 3º) Dando continuidade ao nosso raciocínio, no terceiro eixo de análise, indicamos os aspectos conjunturais que aprofundaram a precariedade do trabalho via expansão da precarização mistificada. Nos governos do Partido dos Trabalhadores, por meio de um pacto conciliatório, tivemos um período de composição de políticas de “alívio” da miséria e continuidade das contrarreformas (apresentadas como políticas “novo-desenvolvimentistas”), 27 e mesmo passando pela crise financeira de 2008, a alta das commodities atenuou os seus impactos. Porém, a massa salarial passou a diminuir, aumentou-se a inserção das classes trabalhadoras em ocupações mais precárias, ainda que seguisse crescendo o nível do emprego formal. Durante os governos petistas, Lula caracterizou-se, em seus mandatos, numa “espécie de semiBonaparte, recatado, cordial, célere diante da hegemonia financeira e hábil no manuseio de sua base social” (ANTUNES, 2020a, p. 229).
24
“[...]com a industrialização da América Latina e uma maior participação dos salários no consumo, ocorre uma segunda cisão. Agora entre esfera alta e esfera baixa da circulação. Se, nas economias centrais, existe uma tendência de conversão, mediante um certo tempo, dos bens suntuários em necessários (dinâmica que é consequência das transformações nas condições de produção), nas economias dependentes esse tempo de existência suntuária dos produtos é alargado ou alguns desses bens sequer chegam a transitar para compor a cesta de consumo da classe trabalhadora. A esse processo Marini (2005[1973]) denominou segunda cisão nas fases do ciclo do capital ou divórcio entre a estrutura produtiva e as necessidades das massas” (FERREIRA, 2018, p. 225). Apresentamos, brevemente, outros aspectos de análise das especificidades do ciclo do capital nas nações dependentes, a partir de Marini, mais adiante. 25 Adicionamos à superexploração da força de trabalho, enquanto lei tendencial particular do capitalismo dependente: a transferência de valor como intercâmbio desigual e a cisão nas fases do ciclo do capital. (LUCE, 2018). 26 Sobre a “conciliação de classes” nos governos do PT verifique Antunes (2020a). 27 Para a crítica do “novo-desenvolvimentismo” ver Castelo, org. (2010) e Prado (2020).
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O “reordenamento” dos países na divisão internacional do trabalho, alavancou um processo de transformações estruturais na economia, que possibilitaram notáveis lucros para o capital internacional, assegurando um apoio do setor majoritário das burguesias nativas e externas aos governos petistas. Articulado a isso, a renda dos/as trabalhadores/as que ganhavam menos, aumentou com pequenos reajustes do salário mínimo; retirou da extrema miséria milhares de pessoas com o Programa Bolsa Família; e reduziu o salário dos/as trabalhadores/as mais especializados/as, garantindo a estagnação do salário médio do conjunto dos/as trabalhadores/as. 28 O impacto da crise financeira de 2012 fez com que o conjunto das frações burguesas nativas e externas com maior poder sobre o governo exigisse um “ajuste fiscal” mais duro, que inviabilizou a continuidade do pacto conciliatório pelo alto conduzido pelos governos do PT. Essa política macroeconômica acentuou os efeitos da crise estrutural do capital exacerbando o desemprego e afetando as condições de vida das classes trabalhadoras e dos setores médios (queda da taxa de lucro do empresariado pequeno e médio e até mesmo falências), provocando as Jornadas de junho de 201329 e o golpe parlamentar de 2016.30 O caminho adotado pelos governos do PT 31 com a mistificação da precarização criou o solo histórico (condições objetivas e subjetivas propícias) para o aprofundamento da precarização do trabalho com a contrarreforma trabalhista de 2017 e outros desmontes, como a Emenda Constitucional 95/2016, esta, podendo ser reconhecida como uma contrarreforma geral dos direitos sociais. A ampliação do autoemprego com o Programa Microempreendedor Individual, das cooperativas com a Economia Solidária32 e das terceirizações alicerçou a precarização sob a ideia de autonomia do “empreendedorismo”. Garantindo o cenário para mais expropriações de direitos como com o teletrabalho;33 o negociado sobre o legislado; o trabalho intermitente; a “prorrogação de jornada em ambientes insalubres, sem licença prévia das autoridades competentes” e a legalização ou ampliação de práticas pregressas ilegais devido à dificuldade atual do acesso à Justiça do Trabalho pelos/as trabalhadores/as provocada pela contrarreforma.34 “A [contrar]Reforma de 2017 alterou pelo menos 16 aspectos da regulamentação da jornada, na perspectiva de flexibilizar as condições de uso do tempo de trabalho em favor das empresas, de modo que a elas seja possível pagar somente as horas e minutos efetivamente trabalhados” (KREIN, 2019, p. 138). O aparato político-ideológico garantiu a transformação dos processos produtivos, assim como das relações de trabalho, com o aumento da informalidade, da precariedade e da terceirização, reduzindo as formas de contratação da força de trabalho com garantia de direitos trabalhistas. Um cenário desalentador, a partir das Jornadas de junho de 2013, em que as rebeliões aglutinaram forças para legitimar o movimento golpista em 2016. Fortalecidos, os setores hegemônicos das burguesias nativas heteronômicas direcionaram as forças políticas para a direita, com um aumento expressivo de posicionamentos ultraconservadores, assim como protofascistas e fascistas. Um novo momento da 28
Ver Soares (2013). 29 Neste momento ficou claro que o PT havia perdido o controle sobre as lutas das classes trabalhadoras e todo o encantamento foi convertido, por meio dos aparelhos privados do capital, contra tudo o que o partido representou. 30 Sobre o Golpe Parlamentar, que incidiu no impeachment de Dilma Rousseff em 2016, veja Demier (2019). 31 Estamos de acordo com a análise de Lima (2019, p.19), quando afirma, a partir de Florestan Fernandes, que durante os governos do PT, vivemos um período de contrarrevolução “a frio” com o estímulo ao “aburguesamento das suas burocracias sindicais e partidárias pela defesa da política de conciliação de classes”. 32 Sobre o debate crítico da Economia Solidária, ver Neves (2013). 33 Sobre teletrabalho, ver Carelli (2017). 34 Ver Krein (2019).
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contrarrevolução promove o recrudescimento do perfil plutocrático das burguesias brasileiras e faz com que a democracia de cooptação ceda paulatinamente lugar à democracia restrita,35 por meio de “louvores neopentecostais” saudosos da ditadura empresarial-militar. A mistificação da precarização das condições de trabalho e/ou a ausência de emprego impõe às classes trabalhadoras uma adesão por falta de opção e/ou por uma falsa convicção, tornando-as “empreendedoras de si” ou escravas ou voluntárias a serviço do capital. Essas estratégias pedagógicas, como a falaciosa ideia de autonomia do “empreendedorismo”, atendem tanto a agenda dos organismos internacionais como da ação teológico-política da “teologia da prosperidade”. Porque as estruturas empresarial-religiosas neopentecostais têm influenciado significativa parcela das franjas mais depauperadas das classes trabalhadoras, com o incentivo ao “empreendedorismo” pelos/as pastores/as. Essas estruturas investem com eficácia em comunicação de massa, conseguindo criar por intermédio dos seus rituais religiosos e “da prestação de serviços e do espírito de pertencimento ao grupo - solidariedade comunitária em territórios marcados pela violência e pela ausência de perspectiva de futuro para maior parte de seus habitantes” (MATTOS, 2017, p. 147). As estratégias político-ideológicas consolidam-se mediante os aparelhos privados de hegemonia do capital, como pela intervenção estatal, pela grande mídia, pela igreja, via atuação das empresas 36 “cidadãs e verdes”, e, obviamente, nos próprios espaços de trabalho com uma política gerencial administrativa que captura a subjetividade dos/as “colaboradores/as”, além da sua materialidade. 37 Somado a isto, acirra-se um projeto de criminalização da pobreza e dos movimentos sociais, com o objetivo de maior apassivamento das classes trabalhadoras na perspectiva de um “novo consenso” com repressão. Nesse sentido, as contrarreformas são implementadas sob a ideia de “modernização” das leis para a flexibilizar o assalariamento, usar a força de trabalho por meio de voucher ou aplicativos (uberização), com a ilusão de autonomia e de liberdade aos/às trabalhadores/as38. Os retrocessos em curso39 têm por base a política macroeconômica ultraneoliberal, que privilegia uma política monetária, fiscal e cambial a favor da hegemonia do capital portador de juros e, consequentemente, do capital fictício, que aprofundam as contradições das leis tendenciais capitalistas e são ampliadas pelas particularidades da dependência. Um movimento contrarrevolucionário prolongado e permanente40, que, no presente período, busca expropriar mais direitos para succionar todo o mais-valor socialmente produzido, acumulado no fundo público. Indicando a característica antinacional e antissocial das burguesias brasileiras41 na direção de silenciamento do dissenso para aumentar as possibilidades de exploração do mais-valor, como impulsionar os processos de expropriação. 35
Sobre a democracia restrita e o caráter ultraconservador e reacionário das burguesias brasileiras, ver Florestan Fernandes (2006, p. 249-250). 36 Sobre o debate do capitalismo filantrópico, dos aparelhos privados de hegemonia e das expropriações, ver Fontes (2020). 37 Ver Antunes (2020a). 38 Sobre isto ver Tavares (2004, p. 40-43). 39 Originários de medidas político-econômicas para tentar superar uma longa trajetória de crise estrutural do capital, para mais esclarecimentos sobre a crise estrutural do capital ver Mészáros (2009). 40 Sobre a análise atual da contrarrevolução permanente e preventiva a partir de Florestan Fernandes, ver Kátia Lima (2017). 41 É imprescindível destacar que o termo antinacional, contribuição de Florestan Fernandes (2011), não pretende ser uma defesa do nacionalismo e, hoje, nossa do “novo-desenvolvimentismo”. Objetiva-se explicitar que a exacerbação do discurso nacionalista compõe o pressuposto ideológico de hegemonia na constituição e permanência de qualquer Estado-nação na sociabilidade burguesa. No caso brasileiro, dada a sua inserção na divisão internacional do trabalho, para atender ao padrão
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As consequências dessa política de “ajuste fiscal” para países de capitalismo dependente, pela via das expropriações de direitos, 42 são: o expressivo desemprego, a maior precarização das condições de exploração da força de trabalho e a miserabilidade. Como síntese da análise acima, elencando outros elementos, destacamos que: (A) o modo de ser do capitalismo pressupõe as expropriações, o aumento da produtividade e a intensificação da exploração do trabalho, condicionando as relações de produção e de trabalho a permanentes reestruturações, com perdas de direitos e rebaixamento43 da remuneração da força de trabalho. Cabendo às classes trabalhadoras a luta e a resistência, apesar das leis tendenciais da acumulação provocarem a fragmentação da classe e o enfraquecimento das possibilidades de enfrentamento. Um outro fator importante de se destacar, ainda que não tenhamos desenvolvido é que sempre quando pensamos e analisamos condições de trabalho temos como “parâmetro” a relação de “emprego padrão” do Welfare State na Europa Ocidental. E essas condições conquistadas pelos/as trabalhadores/as foram resultantes das lutas sociais em determinado período histórico e localização na divisão internacional do trabalho de alguns países industriais,44 podendo ser considerada como uma “anomalia histórica”45; (B) já o percurso de construção de direitos do trabalho e de patamares mínimos de dignidade, postos na Constituição Federal de 1988, tentaram buscar alicerces amparados a uma relação de “emprego padrão” que nunca conseguiu sua predominância na realidade brasileira, devido às especificidades da dependência. Uma dignidade que aqui pensamos como determinada pelas conquistas sociais e estabelecida, juridicamente, acompanhando os elementos históricos e morais do valor da força de trabalho das classes trabalhadoras no Brasil. Na letra da lei, as conquistas de ampliação de preceitos mínimos de dignidade do trabalho caminharam, concomitantemente, ao desmonte daqueles “parâmetros” alcançados no período da chamada “três décadas de ouro” do capitalismo na Europa Ocidental. Cabe destacar, como apontado em (A), que aqueles “parâmetros” foram resultantes das lutas sociais, com grande influência da pressão existente do bloco soviético. As classes trabalhadoras daqueles países conseguiram garantir patamares de direitos e acesso a um percentual da riqueza socialmente produzida, por meio de salários indiretos. Essas conquistas também só foram possíveis devido às próprias condições dos países de capitalismo central, por meio do barateamento do valor da força de trabalho nacional às custas da redução do valor de bens de consumo oriundos dos países de capitalismo dependente, conseguiram, portanto, garantir meios de exploração do mais-valor relativo e aumento do poder de compra para a força de trabalho nacional.46 Diferentemente é o ciclo do capital nas economias dependentes, porque além da cisão existente entre a produção e as necessidades das massas, está permeado pela interconcorrência de capitais
de acumulação de capital monopolista e à taxa de exploração de mais-valor, estrutura-se uma classe dominante que deteriora os frágeis dinamismos políticos, impedindo a consolidação de uma democracia de participação ampliada. Não viabilizando um projeto de nação nos “padrões eurocêntricos” e, que, portanto, garante meios e condições para que a riqueza do país seja expropriada na condição de uma burguesia associada ao imperialismo, tornando suas ações político-econômicas, culturais e sociais antinacionais e antissociais. 42 Para este debate sugerimos Boschetti (2020) e Fontes (2020). 43 Aqui pensamos no rebaixamento compulsório do preço da força de trabalho abaixo do seu valor, por meio da superexploração da força de trabalho. 44 Sugerimos ver Netto (2007). 45 Linden (2017). 46 Sobre o papel da força de trabalho migrante, ver: Basso (2010).
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monopólicos externos que possuem nível elevado de produtividade.47 E os capitais locais de médio e pequeno porte se não utilizarem nenhum mecanismo compensatório sucumbem ao processo de centralização dos capitais monopólicos, quando não alcançam o mesmo nível de produtividade. 48 Portanto, para tal propósito utilizam-se do aumento da intensificação do trabalho, “prolonga-se a jornada laboral e/ou simplesmente se rebaixa forçosamente o salário do trabalhador sem que essa redução salarial corresponda a um barateamento real da força de trabalho.” Assim, de acordo com Marini, origina-se a superexploração da força de trabalho, que significa a remuneração da força de trabalho abaixo do seu valor. (MARINI, 2012, p. 30). Para a superexploração da força de trabalho se estabelecer é imprescindível também que os/as trabalhadores/as estejam “em condições difíceis para reivindicar remunerações que compensem o desgaste de sua força de trabalho. Essas condições difíceis podem resultar, e resultam frequentemente, de fatores extraeconômicos, derivados da ação estatal”. (MARINI, 2012, p. 31). Além da existência de um exército de reserva permanente composto pelos/as negros/as, que auxilia no pagamento abaixo do valor da força de trabalho geral. A superpopulação relativa se eleva tanto com as constantes expropriações como com a introdução de novas técnicas de produção com o objetivo de elevar a produtividade. E “essa introdução de tecnologia corresponde a agilização de formas de superexploração que implicam também arrancar mais produção dos operários já em funções.” Marini ressalta que ainda que esse processo diminua a velocidade de crescimento do exército de reserva ativo, aumenta-se o crescimento do exército de reserva geral, que se consolida no desemprego ou no chamado subemprego, “mas, em qualquer caso, é um exército de reserva que faz minguar a capacidade reivindicativa da classe operária e propicia a superexploração dos trabalhadores.” (MARINI, 2012, p. 31). Nesse sentido, reiteramos que a condição da dependência mediada pelos elementos da escravidão colonial, tal como se configura o racismo estrutural, coloca a precariedade das condições de trabalho como constitutivas, vistas na reinvenção de formas transitórias de trabalho ausentes de direitos sociais; e (C) já possuíamos uma heterogeneidade e uma precariedade profunda das condições de trabalho, mesmo que tenha ocorrido uma formalização do trabalho nos governos do PT, houve uma estratégia pedagógica que garantiu uma “cortina de fumaça” para a precarização, sob o legado do “empreendedorismo” e de laços de solidariedade individuais com o voluntariado. Como o visto na intervenção das empresas nos aparelhos privados de hegemonia “com teor diretamente apassivador (que se apresentam como ‘democráticos’) contribuiu diretamente para o rebaixamento do valor da força de trabalho, pois, na prática, introduziu em grande escala o trabalho sem direitos (por tarefa ou ‘voluntariado’)” (FONTES, 2020, p. 32-33). No atual período histórico, deparamo-nos com a devastação dos direitos dos/as trabalhadores/as viabilizadas pelo ingresso “massivo de novos trabalhadores resultante de processos múltiplos de expropriação, prosseguindo a que incide sobre os povos do campo em escala mundial, acrescida da retirada de direitos que eram vividos como se fosse propriedade das classes trabalhadoras.” (FONTES, 2020, p. 22). 47
“Vemos operarem transferências de valor específicas, que não são acompanhadas no mesmo grau por contratendências como a lei do nivelamento da taxa de lucro. Isto leva à cristalização, como regularidade, da não-identidade entre magnitude do valor produzido e do valor apropriado, no âmbito da competição intercapitalista na economia mundial. Tal relação é consequência da existência de distintos níveis de produtividade na divisão internacional do trabalho e do movimento contraditório nas relações de apropriação entre os distintos capitais e formações econômico-sociais.” (LUCE, 2018, p. 230). 48 “A diversidade do grau de desenvolvimento das forças produtivas [que resulta em] diferenças significativas em suas respectivas composições orgânicas do capital, que apontam para distintas formas e graus de exploração do trabalho” (MARINI, 2011, p. 177).
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3 Superexploração da força de trabalho: algumas considerações Os governos de frente popular e democrática 49 e suas estratégias de encantamento, integradas ao projeto internacional de desenvolvimento, garantiram um cenário de “consenso” e de destruição da imagem do que os partidos de esquerda representam. Parece que o partido de “esquerda da ordem” foi necessário para reacender o terreno fértil para práticas políticas autocráticas, violentas, reacionárias, antinacionais e antissociais na implementação da atual política ultraneoliberal. Do século XIX aos dias de hoje, a construção do solo histórico da superexploração e da precariedade se renova a cada novo período do capitalismo. A fase contemporânea - iniciada nos anos 80 do século XX, na Europa Ocidental e EUA, e aqui nos anos 90 - trouxe elementos que, de imediato, evidenciaram a precarização e o sucateamento dos direitos e serviços sociais, mas a efervescência social de enfrentamento às políticas macroeconômicas neoliberais indicou a necessidade de estratégias de “consenso” para garantir a continuidade dessas políticas. Para, dessa forma, suprir os problemas da superacumulação e garantir concretude a uma realização antecipada de mais-valor. Nesse caminho, houve maiores e profundos processos de expropriação em diversas frentes sob o véu de uma suposta liberdade, com um nítido rebaixamento da remuneração da força de trabalho. Indicando uma estratégia que, a priori, surtiu efeito: uma suposta “liberdade” de vender a sua força de trabalho fora dos muros da empresa, não exige os mesmos direitos que daqueles/as que vendem sua força de trabalho nos limites da empresa. Até porque, enquanto “empreendedores/as”, supostamente donos/as dos seus próprios negócios, teriam que arcar com as despesas de sua proteção social. Hoje, o discurso ultraneoliberal é a “escolha entre mais direitos ou emprego”.50 A liberdade e a igualdade 51 , na construção e no desenvolvimento da sociabilidade burguesa, sempre versaram os propósitos da expropriação sob bandeiras “democráticas”, com mazelas para os/as expropriados/as e, posteriormente, explorados/as por terem apenas sua força de trabalho para sobreviver. No caso brasileiro, foi contundente a política de geração de emprego e renda nos governos do PT, que, através da mistificação da precarização, trouxe a bandeira da liberdade e da “igualdade de oportunidades” articuladas às políticas compensatórias de assistência social. Na verdade, a política de geração de emprego e renda tornou-se também uma política compensatória de garantias mínimas de proteção social, que muitas das vezes os/as trabalhadores/as não conseguem garanti-la.52 É importante ressaltar que, seguindo as cooperações técnicas com organismos internacionais e cartilhas do Banco Mundial, a política de geração de emprego e renda esteve perfeitamente articulada às estratégias de autorresponsabilização dos indivíduos pela sua “empregabilidade” e pelo seu “empreendedorismo”. Essas estratégias de autorresponsabilização também trazem a objetividade de revelar que o “Sol não brilha para todos/as”, e aclaram toda a degradância e jornadas exaustivas 53 exigidas dos/as trabalhadores/as para conseguirem sua subsistência. Portanto, a degradação de toda a vida social indicou a insatisfação com os rumos frente àqueles governos que haviam se elegido em nome do conjunto das classes trabalhadoras. 49
Ver Iasi (2019). 50 No primeiro ano de mandato, Bolsonaro disse esta frase. Ver: Araújo; Murakawa (2018). 51 Ver Marx (2017, cap. 24; 2013) e Engels (2015). 52 Ver Peruzzo; Valentim (2017). 53 Aqui analisamos a partir das tipificações da escravidão contemporânea de trabalho degradante e jornada exaustiva, adicionadas pela Lei 10.803/2003 no Art.149 do Código Penal Brasileiro. Ver Soares (2019).
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A direção para uma renovação de caminhos reacionários e fascistizantes se apresentaram neste cenário de aprofundamento da crise. Com a evidência de pensamentos reacionários e irracionais, constitutivos da nossa formação sócio-histórica, - desde o racismo científico54 e suas políticas eugênicas, passando pelos períodos ditatoriais chegando ao fundamentalismo religioso neopentecostal - podem ser interpretados como particulares formas de expressão da própria decadência ideológica e irracionalidade burguesa,55 que perpassa a história da reação burguesa às lutas de classes e às crises capitalistas. Construiu-se, dessa maneira, um solo histórico de trabalhadores/as maciçamente precarizados/as, sem direitos e aceitando patamares rebaixados de direitos, a posteriori massacrados por uma brutal contrarreforma trabalhista, em 2017, pela contrarreforma da previdência e pela “Lei da liberdade econômica” em 2019. Essa lei (13.874/19) aprofunda alguns retrocessos, porque altera o âmbito da Inspeção do Trabalho, tal como a dispensa de inspeção prévia, para verificação de segurança e saúde dos/as trabalhadores/as, para o início das atividades de uma empresa. Destaca-se que, em sua redação inicial de projeto de lei, pretendia restringir a apreensão do trabalho escravo contemporâneo, como apenas cerceamento da liberdade.56 O governo de Jair Bolsonaro57 para expropriar mais direitos, repetidamente, discursa: “com menos direitos obtém-se mais vagas de emprego”. Essa era a defesa da MP 905 “carteira verde e amarela”,58 a MP previa a restrição ou eliminação de vários direitos, como: a redução do recolhimento do Fundo de Garantia e a multa em caso de demissão; a cobrança de tarifa do/a trabalhador/a desempregado/a; eliminação do pagamento por jornadas em dias e horários extraordinários, inclusive fins de semana, entre outros. A MP criava a possibilidade de substituição de até 20% dos atuais empregados, com direitos regulamentados, por novos funcionários, com direitos reduzidos. O histórico hiato existente entre os ganhos obtidos pelas classes trabalhadoras brasileiras e os elementos históricos e morais que compõem o seu valor, hoje, são aprofundados pela própria condição do capitalismo dependente, no cenário contemporâneo de hegemonia da chamada financeirização. As atuais políticas macroeconômicas direcionam-se para a permanente expansão e reestruturação produtiva, que amplificam a dependência técnico-científica por meio de expropriações das mais variadas formas. Desde o Golpe parlamentar ao governo Bolsonaro, engendra-se uma política ultraneoliberal de “ajuste fiscal” com mais privatizações, contrarreformas e manutenção do “teto dos gastos” (EC 95/2016). No entanto, o discurso governamental, que era de ojeriza às políticas compensatórias de “alívio” da miséria, transformou-se neste período de crise do novo coronavírus. Porque agora faz a defesa do programa “Renda Brasil”, como uma forma de reorganizar programas sociais, como o Bolsa Família, o abono-salarial, o 54
Sobre o racismo científico e as políticas de branqueamento, ver respectivamente Almeida (2019) e Nascimento (2016). 55 Conforme Lukács (1976) abordou em sua obra “El asalto a la razón”, a reação burguesa e, por sua vez, as respostas reacionárias aos problemas, ocasionados pelas lutas de classes, consolidam um processo de decadência na filosofia burguesa com uma precariedade dos fundamentos e das argumentações sofísticas cada vez mais agudos, engendrando diferenciadas etapas do irracionalismo. 56 Foram retirados os artigos polêmicos da MP e foram redirecionados para uma nova comissão, estabelecida pelo Ministério da Economia, o Grupo de Altos Estudos do Trabalho para propor uma nova rodada de alterações na legislação trabalhista. Ver também a Nota técnica conjunta sobre a nova reforma trabalhista (Projeto de Lei de conversão nº17/2019, originário da Medida Provisória 881/2019). Disponível em: https://sinait.org.br/site/noticiaview?id=17005/mp%20881sinait,%20anamatra,%20anpt%20e%20abrat%20divulgam%20nota%20tecnica%20sobre%20a %20nova%20reforma%20trabalhista. Acesso em: 30 jul. 2019. 57 Sobre as eleições de 2018 e a reorganização da extrema direita, ver: Antunes (2020a, p.287-299). 58 Ver: https://www.brasildefato.com.br/2020/04/18/senado-fecha-acordo-para-deixar-caducar-a-mp-905-da-carteira-verde-eamarela Após acordo, não foi votada no Senado e perdeu sua validade. Acesso em: 30 abr. 2020.
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seguro-defeso e o salário-família. Esse giro deu-se por constatarem a possibilidade de aumento da base política de apoio ao governo devido à sua diminuição, consequente da retórica e práticas negacionistas diante da pandemia.59 Os retrocessos promovidos pelas contrarreformas trabalhistas e previdenciária transformaram o sistema de proteção aos/às trabalhadores/as. Com a pandemia do novo coronavírus aqueles/as minimamente assegurados/as por direitos trabalhistas, quando não simplesmente demitidos/as, tiveram seus contratos suspensos, suas jornadas e salários reduzidos. As franjas mais depauperadas das classes trabalhadoras sem vínculo empregatício reconhecido, sem qualquer direito assegurado, se evidenciaram nas filas intermináveis para tentar receber o auxílio emergencial e alargaram o exército disponível do setor de entregas por aplicativos, como uma das poucas ocupações possíveis no cenário das políticas de isolamento durante a crise sanitária e econômica. O panorama da contrarrevolução preventiva e prolongada das frações burguesas imperialistas e brasileiras, direciona-se para o aniquilamento dos direitos sociais, inviabilizando uma ínfima repartição da riqueza socialmente produzida via fundo público. Com a evidência da característica racista, antinacional e antissocial das burguesias brasileiras, preocupada apenas com os “mais iguais entre os iguais”, neste cenário de crise aprofundada pela pandemia. O fascismo do atual governo expõe as particularidades da nossa formação social e das construções contemporâneas de políticas de extermínio de negros/as, indígenas, como também dos segmentos mais empobrecidos das classes trabalhadoras. O genocídio e a indiferença com as milhares de mortes dos “de baixo” foram emblemáticos do sentido antinacional burguês nesta pandemia do novo coronavírus. Assim como o sentido antissocial da expropriação do excedente econômico com a explosão da precarização do trabalho mediante o aumento da inserção laboral nas plataformas digitais, como vimos no caso dos/as entregadores/as de aplicativos e de profissionais da saúde sem equipamento de proteção individual e condições mínimas de dignidade. A atual depauperação dos/as trabalhadores/as e as milhares de vidas ceifadas são insignificantes para as burguesias antissociais e antinacionais, que se transmutam do autoritarismo presidencialista ao fascismo.60 Interessa-lhes apenas o controle da nossa fala, dos nossos corpos e a abolição dos nossos direitos na atual mescla fundamentalista religiosa autocrática. Em um cenário de incertezas dos rumos da condução contrarrevolucionária e da imprevisibilidade das lutas sociais de exasperação ou de arrefecimento, via novas estratégias de “consenso”, resta-nos a clareza da apreensão da destrutibilidade do capitalismo e, ao mesmo tempo, da capacidade civilizatória das lutas das classes trabalhadoras para a reversão das expropriações e para uma verdadeira emancipação. Florestan Fernandes (2011, p. 90-91) nos alertou da necessária “relação íntima, permanente e recíproca” da universidade com os/as trabalhadores/as, para aprendermos que a “pressão radical de baixo para cima” exige nossa reeducação e transformação da nossa própria natureza humana para tornarmo-nos, conjuntamente, uma força social revolucionária. Portanto, não apenas pesquisadores/as sobre o mundo do trabalho, mas que operemos pela “revolução do mundo pelo trabalho”.
59
Sugiro ver Boschetti; Behring (2020). 60 Fernandes (2009).
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Submetido em: 20 ago. 2020 Aceito em: 18 dez. 2020
DOI: 10.19180/1809-2667.v22nEspecial2020p687-705
Crise das democracias liberais: um futuro sem direitos? Elementos para uma perspectiva internacional acerca do projeto da extrema direita Crisis of liberal democracies: a future without rights? Elements for an international perspective on the far right project Crisis de las democracias liberales: ¿un futuro sin derechos? Elementos para una perspectiva internacional del proyecto de la extrema derecha Elidio Alexandre Borges Marques https://orcid.org/0000-0001-9337-8034 Doutor em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas – Rio de Janeiro/RJ – Brasil. E-mail: elidioalexandre@yahoo.com.br.
Resumo Este artigo tem por objetivo apontar elementos para a compreensão da presente crise das democracias liberais, em especial dos direitos como seu componente fundamental. Busca-se recuperar a história em seu sentido político de construção do modelo predominante no Ocidente e destacar algumas explicações da crise como sendo a crise do componente “liberal”, ou seja, o de garantia dos direitos. Este “modelo” nunca se apresentou como materialidade completa para vastas parcelas da população mundial e mesmo dos estados centrais. A violação de direitos por parte dos Estados foi sempre uma permanência na modernidade capitalista. Diversos estados no “centro” e na “periferia” passaram por períodos nos quais tais violações são especificamente reconhecidas, a exemplo dos fascismos europeus e das ditaduras latino-americanas. No momento em que ascendem forças políticas antiliberais, descomprometidas com os direitos formalmente assegurados nas ordens estatais e internacional, cabe refletir acerca da relação que estabelecem com esse passado de violações massivas de direitos, apontando-se que a fragilidade das promessas consubstanciadas em direitos, inclusive pela incompletude dos processos de superação das graves violações do passado, está na base da crise da democracia liberal contemporânea. Palavras-chave: Extrema direita. Democracia liberal. Fascismo.
Abstract This article aims to point out elements for the understanding of the present crisis of liberal democracies, especially of rights as its fundamental component. It seeks to recover history in its political sense of building the predominant model in the West and to highlight some explanations of the crisis as being the crisis of the “liberal” component, that is, the guarantee of rights. This “model” was never presented as complete materiality for vast portions of the world population and even of the central states. The violation of rights by the States has always been a permanence in capitalist modernity. Several states in the "center" and "periphery" have gone through periods in which such violations are specifically recognized, such as European fascisms and Latin American dictatorships. At the moment when anti-liberal political forces ascend, uncommitted to the rights formally guaranteed in state and international orders, it is worth reflecting on the relationship they establish with this past of massive rights violations, pointing out that the fragility of the promises embodied in rights, including due to the incompleteness of the processes of overcoming the serious violations of the past, it is at the basis of the crisis of contemporary liberal democracy. Keywords: Far right. Liberal democracy. Fascism.
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Resumen
Este artículo tiene como objetivo señalar elementos para la comprensión de la actual crisis de las democracias liberales, especialmente de los derechos como componente fundamental. Busca recuperar la historia en su sentido político de construir un modelo predominante en Occidente y resaltar algunas explicaciones de la crisis como la crisis del componente “liberal”, es decir, la garantía de derechos. Este “modelo” nunca fue presentado como materialidad completa para grandes porciones de la población mundial e incluso de los estados centrales. La violación de derechos por parte de los Estados siempre ha sido una permanencia en la modernidad capitalista. Varios estados del "centro" y la "periferia" han pasado por períodos en los que tales violaciones son específicamente reconocidas, como los fascismos europeos y las dictaduras latinoamericanas. En el momento en que ascienden fuerzas políticas antiliberales, no comprometidas con los derechos formalmente garantizados en los órdenes estatales e internacionales, vale la pena reflexionar sobre la relación que establecen con este pasado de masivas violaciones de derechos, señalando que la fragilidad de las promesas plasmadas en derechos, incluyendo por lo incompleto de los procesos de superación de las graves violaciones del pasado, está en la base de la crisis de la democracia liberal contemporánea. Palabras clave: Extrema derecha. Democracia liberal. Fascismo.
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Crise das democracias liberais: um futuro sem direitos? Elementos para uma perspectiva internacional acerca do projeto da extrema direita Elidio Alexandre Borges Marques
1 Introdução Parece haver uma correspondência entre aquilo a que se tem chamado de “crise das democracias liberais” e a ascensão de forças descomprometidas com aquilo que foi pactuado como suas bases constitucionais: uma certa combinação entre a existência de estruturas e canais institucionais de participação na formação de governos e normas e a preservação de um conjunto de direitos e regras de funcionamento do sistema político, ambos tratados como fora do alcance das vontades eventuais dos grupos que podem se alternar no poder; como uma espécie de acordo prévio e “perene” na tradição liberalcontratualista. Essas forças serão tratadas aqui como “extrema direita” ou “direita radical” ou mesmo “direita antiliberal”, na medida em que afastadas do liberalismo político tal qual se apresenta. Apesar da diversidade do fenômeno, estão assim agrupadas por guardarem entre si o elemento comum de não partilharem – o que pode ir desde uma hostilidade aberta a tensões reacionárias – o compromisso com algumas das bases fundantes e legitimadoras dos modelos liberal-democráticos: o funcionamento de instituições supostamente garantidoras da prevalência da soberania popular e a persecução da preservação de um conjunto de direitos supostamente suficientes para delinear uma esfera de autonomia e dignidade para os indivíduos e grupos. A contribuição que este artigo pretende fazer é para a compreensão da centralidade dos ataques aos direitos – seja a uma certa ideia geral que deles se faz e que é componente dos regimes políticos, seja a algumas de suas manifestações mais específicas – no que tem sido chamado de crise das “liberal democracias” – muitas vezes designadas simplesmente e imprecisamente de democracias – e que se expressa pela ascensão de forças que designaremos como de extrema direita ou antiliberais. O que se buscará mostrar é que essa crise coloca em xeque certa concepção e apreensão dos direitos tal qual se apresentaram na configuração dos regimes constitucionais liberal-democratas modelares do mundo ocidental. Buscar-se-á apontar elementos para o trabalho de compreensão sobre as relações entre o projeto político dessas forças e o “pilar” desse “modelo de regime” (a democracia liberal) correspondente à sua suposta capacidade de incorporar as demandas e aspirações sociais como direitos, ou seja, como parâmetros normativos abstratamente garantidores dessas proposições como supostamente alcançáveis e realizáveis a prazo – ainda que indefinido – no interior e vigência daquela estrutura jurídica e daquela ordem política nela expressa. Com o objetivo de apontar a tensão e os possíveis choques entre as forças da extrema direita e os direitos como pilares das democracias liberais e a relevância política e social dessa incompatibilidade, este trabalho procederá, primeiro, a uma recuperação do conceito de democracia liberal e da história de sua constituição como “modelo” de regime político. Em seguida, se fará um breve painel factual – baseado em informações correntes e amplamente divulgadas e conhecidas pelos grandes meios de comunicação de circulação internacional – acerca dos fenômenos políticos em tela, quais sejam: a ascensão da extrema direita e suas propostas e medidas que entram em contradição direta com os já referidos direitos ou parte deles. Esse painel terá por objetivo apenas demonstrar a amplitude, relevância e potencial de impacto do fenômeno. Por fim, será realizada uma breve revisão bibliográfica centrada em alguns autores que tem tido significativa repercussão internacional no campo crítico sobre o fenômeno visado e que buscam explicá-lo: nomeadamente serão abordas as contribuições para essa compreensão de Enzo Traverso, Jacques Rancière e de Manuel Castells. Dessas contribuições se destacarão chaves teóricas que buscam explicar os processos e – do ponto de vista deste artigo – validar a compreensão de que é o “pilar” dos
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Crise das democracias liberais: um futuro sem direitos? Elementos para uma perspectiva internacional acerca do projeto da extrema direita Elidio Alexandre Borges Marques
direitos o mais diretamente tensionado e ameaçado nos regimes políticos contemporâneos por essas forças políticas. Será destacado em sua dimensão de fato político, sem a possibilidade de sua recuperação em suas diversas dimensões, que uma das formas e bases do ataque da extrema direita aos direitos passa pela “revisão” e relativização do compromisso de não repetição das graves violações de direitos do passado (fascismos e ditaduras); compromisso este que é uma das formas dos regimes liberal-democráticos atuais.
2 A construção das democracias liberais como modelos: a centralidade dos direitos 2.1 A modernidade política e sua forma prevalecente A ideia de “direito” no sentido subjetivo – como direito “de cada um” – é um pilar estruturante da modernidade política e jurídica. Chamamos de “Modernidade política” aqui ao conjunto de parâmetros, modelos e valores formalmente assumidos pela atividade política – busca, disputa e exercício do poder – que tem como ente central o Estado Moderno. Se do ponto de vista econômico tal configuração é caracterizada pela dominância das relações capitalistas, expressa-se no campo das instituições – políticas e jurídicas – pela centralidade desta entidade dotada de soberania – característica dos que não encontram nenhum poder que lhe seja formalmente superior e com total liberdade de organização e ação interna, ou, em termos usuais e consagrados, “detentora do uso legítimo da força”. O processo histórico concreto e contraditório – absolutamente imbricado com a ascensão e consolidação da burguesia – erigiu o Estado o “ente político” por excelência, o centro mais importante de poder e nele se moldou um modo de organização marcado por características modelares. Assim, essas características – que poderiam ser resumidas como sendo a de Estados-nação constitucionalizados, fortemente marcados pelo projeto liberal – erigem-se não só em realidades organizativas e políticas, mas também em “modelos” a serem supostamente alcançados, projetos regulatórios e legitimadores das realidades políticas que não os realizam completamente, não podem realizá-los completamente e mesmo quando apresentam desenvolvimentos que deles se afastam tendencialmente. O “modelo” do estado constitucional liberal torna-se uma norma, um dever ser, um horizonte, com capacidade aglutinadora e legitimadora mesmo onde suas promessas estão ainda mais distantes de serem cumpridas que nos “centros” em que foram geradas. A “força” a e “importância” desse projeto – primeiro liberal e depois liberal-democrático, com a relativa, paulatina incorporação de um número maior de indivíduos à cidadania – não está, portanto, no fato de ser uma realidade em certos territórios – e sobretudo para certas camadas – mas por ser um parâmetro organizador da dinâmica política e das disputas ideológicas em crescentes regiões do mundo ao longo da afirmação da referida modernidade política. Uma abordagem exemplar desse processo é oferecida por Eric Hobsbawn no seu já clássico “A Era dos Impérios”:
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Crise das democracias liberais: um futuro sem direitos? Elementos para uma perspectiva internacional acerca do projeto da extrema direita Elidio Alexandre Borges Marques Existia claramente um modelo geral referencial das instituições e estrutura adequadas a um país “avançado”, com algumas variações locais. Esse país deveria ser um Estado territorial mais ou menos homogêneo, internacionalmente soberano, com extensão suficiente para proporcionar a base de um desenvolvimento econômico nacional; deveria dispor de um corpo único de instituições políticas e jurídicas de tipo amplamente liberal e representativo (isto é, deveria contar com uma constituição única e ser um Estado de direito), mas também, a um nível mais baixo, garantir autonomia e iniciativa locais. Deveria ser composto de “cidadãos”, isto é, da totalidade dos habitantes individuais de seus territórios que desfrutavam de certos direitos jurídicos e políticos básicos, antes que, digamos de associações ou outros tipos de grupos e comunidades. As relações dos cidadãos com o governo nacional seriam diretas e não mediadas por tais grupos. E assim por diante. Essas eram as aspirações não só dos países “desenvolvidos” (todos os quais estavam, até certo ponto, ajustados a esse modelo ao redor de 1880), mas de todos os outros que não queriam se alienar do progresso moderno. Nesse sentido, o modelo da nação-Estado liberalconstitucional não estava confinado ao mundo “desenvolvido”. De fato, o maior contingente de Estados operando teoricamente segundo esse modelo, em geral o modelo federalista americano mais que a variante centralista francesa, seria encontrado na América Latina (2006, p. 41-42).
Esse mesmo processo histórico – marcado, como sabemos, pelos conflitos de interesses de classe e suas frações e demais disputas a elas ligadas – coloca no centro da configuração do modelo de Estado Moderno os direitos como fenômeno jurídico – parte fundamental das constituições e leis – mas também como fenômeno político-ideológico – parte fundamental do esforço de legitimação desses Estados e seus regimes, como forma das “promessas” de garantia de vida melhor e livre; uma refração institucionalizada das promessas emancipatórias componentes dos processos sócio-políticos que estiveram na base da construção. Assim, temos uma consolidação da modernidade capitalista tendo como modelo uma forma de organização da vida institucional e política - do poder - que tem no seu centro um Estado soberano “garantidor” (utilizar-se-á a expressão “promitente garantidor” como mais precisa aqui) de direitos. Ao contrário do que havia acontecido até então nas formas de poder vigentes os indivíduos estavam mais uma vez subordinados a uma forma superior hierárquica com mais força que eles próprios, mas, desta vez, esta força seria em tese limitada por seus direitos e até mesmo asseguradora deles. O Estado na sua forma liberal configurar-se-ia, em tese, como sendo ao mesmo tempo aquela condensação do máximo poder político – único ente soberano – e limitado (autolimitado, no caso) por sua própria organização e pelo compromisso com os direitos dos indivíduos. A “obediência” passava a estar vinculada, mais que nunca, a uma “garantia”, uma “contraprestação” - como nos contratos da vida civil privada - nesta formulação e não mais a um beneplácito, a uma vontade caridosa ou protetora. Sabemos nós que esta visão continha alguma verdade apenas para homens burgueses – esse estado não assegurava nada a escravos, a mulheres, a colonizados em geral, a despossuídos e a trabalhadores – mas foi tratada e ficou como uma referência, um marco da organização política a ser seguida idealmente. Estava configurado o liberalismo político em sentido amplo, com suas promessas formalizadas em leis e sua cegueira seletiva para a materialidade da vida social: liberdade e igualdade no papel para todos, desigualdade na distribuição de propriedade, escravidão, colonialismo, diferentes formas de domínio, exploração e opressão na vida concreta. Ainda assim, formava-se uma diferença qualitativa em relação aos regimes anteriores, marcada inclusive pelo oferecimento de um horizonte de possibilidades em bom grau traduzido na noção de direitos.
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Crise das democracias liberais: um futuro sem direitos? Elementos para uma perspectiva internacional acerca do projeto da extrema direita Elidio Alexandre Borges Marques
2.2 Os direitos como promessas fundamentais do modelo Os direitos consagrados pelas revoluções burguesas foram, sobretudo, os direitos civis, almejados por uma nova classe dominante desejosa de se livrar de obstáculos que a ameaçaram e atrapalharam antes. Assim, o fim do arbítrio – com julgamentos e decisões tendo que ser tomadas segundo leis, sendo as leis feitas pelos próprios representantes (“naturalmente” burgueses, em especial num primeiro momento) – era uma necessidade e uma vontade. Consagram-se os direitos que traçam em torno do indivíduo homem branco proprietário (tratado como modelo universal de “homem”) um círculo de proteção frente ao poder do Estado: a liberdade religiosa, o direito de ir e vir, a igualdade perante a lei, o direito ao devido processo legal, o direito de não ser morto arbitrariamente e – o que teve significativo papel histórico – o de não ser privado de sua propriedade pela mera vontade de qualquer governante. Na tradição do pensamento crítico, notadamente na tradição marxista, essa garantia do direito de propriedade ganhou forte centralidade no debate, o que se justifica pelo caráter decisivo que a propriedade privada – nomeadamente de certo tipo de bem – tem na configuração da dinâmica socioeconômica e na configuração de uma sociedade de classes. No entanto, parece importante, como faz, entre nós Carlos Nelson Coutinho, a exemplo de outros do campo crítico ao pensamento liberal, situar nitidamente e ao mesmo tempo tanto as limitações e contradições contidas na concepção dos “primeiros direitos”, como compreender a diferença entre a identificação da origem – em processos históricos liderados pela burguesia – com uma eventual natureza intrínseca burguesa e, portanto, dispensável ou desimportante para quem não pertence à classe dominante.
Foi precisamente a natureza privada desses direitos civis modernos que induziu Marx, em sua obra juvenil sobre A Questão Judaica, a caracterizá-los como meios de consolidação da sociedade burguesa, da sociedade capitalista. Não hesito em dizer que, em determinado e decisivo sentido, Marx estava certo. Tomemos como exemplo o modo pelo qual Locke (e as várias constituições que nele se inspiraram) tratou a questão da propriedade, apresentada como o direito natural fundamental, cuja garantia seria a razão essencial pela e para a qual o Estado existe. Locke começa definindo o direito de propriedade como o direito aos frutos de nosso trabalho, o que se choca claramente com a concepção feudal da propriedade segundo a qual essa resultaria de uma concessão do monarca; mas, logo em seguida diz que – com a invenção do dinheiro, que permite acumular o trabalho passado – tornou-se legítimo comprar a força de trabalho de outros, sobre cujos frutos teríamos também o direito de propriedade. Vemos aqui um claro exemplo de como um direito universal (…) torna-se um direito burguês, particularista e excludente, restrito aos proprietários do dinheiro e, consequentemente, dos meios de produção. Foi nesse sentido que Marx criticou os chamados “direitos do homem”, no sentido de que, entendidos como direitos únicos e exclusivos – eles se transformam na prática em prerrogativas apenas de um tipo de homem, precisamente do homem proprietário da classe burguesa. Penso que Claude Lefort, o filósofo liberal francês, não tem razão quando diz que para Marx, neste seu texto juvenil, os direitos civis seriam em si direitos burgueses e, como tal, dispensáveis no socialismo. (…) Portanto, a cidadania plena – que, como mostrarei adiante, parece-me incompatível com o capitalismo – certamente incorpora os direitos civis (e não só os afirmados por Locke, mas também os gerados mais recentemente), mas não se limita a eles (COUTINHO, 2000, p. 5658).
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Dificilmente deixaríamos de reconhecer que nos dias e mundo de hoje os chamados “direitos civis” são violados mais frequentemente quando seus detentores são os mais vulnerabilizados pela estrutura social: trabalhadores, negros, integrantes de minorias, mulheres, moradores de periferias, politicamente minoritários, somando-se este fato como elemento a distinguir “origem” de significado concreto de tais direitos. A compreensão deste último só pode ser realizada na inserção do “direito”, em suas múltiplas dimensões, no contexto da realidade atravessada por conflitos e forças na qual toma parte. Ao longo dos séc. XIX e XX, por força dos movimentos de trabalhadores, sobretudo, mais direitos foram sendo incorporados aos regimes dos estados que ocupavam o centro do capitalismo. Funcionava uma espécie de dialética que envolvia a insatisfação, a reivindicação – nem sempre tranquilamente bem aceita, quase sempre reprimida – e, por fim, a incorporação nos termos da ordem vigente no formato de “direito ao” bem ou possibilidade reivindicada. Eram transformações substantivas, mas, ao mesmo tempo, controladas. Causavam grande esperança nos de baixo, temores nos de cima, mas, quando se estabilizavam vinham novas acomodações fechando o sinal aos primeiros e tranquilizando os segundos. De certa forma, as massas haviam trocado a perspectiva da revolução pela da conquista de “direitos”, uma vez que a burguesia já estava no poder. Esses novos processos políticos, cada vez mais pressionados a se desenvolverem em termos preestabelecidos, foram substituindo as expectativas revolucionárias e configurando o que chamamos de “democracia representativa” ou democracias liberais, regimes com características que combinariam, em tese, um tanto de socialização das decisões, em especial através de eleições periódicas de representantes, com o esqueleto fundamental dos regimes burgueses: a estabilidade jurídica, a garantia da propriedade, mas também um conjunto de direitos estabelecido para “todos” - um círculo que foi lentamente através das lutas se alargando ainda que muito mais formal do que materialmente. As Constituições viram o instrumento precípuo dessa garantia: estabilização da ordem em troca de direitos para “todos”: a ideia de uma dinâmica política regulada e dos direitos como salvaguardados dela se espraiou geograficamente, mas também em diferentes camadas sociais e com a incorporação de novas dimensões conforme velhos e novos atores políticos foram impondo pontos aos pactos constitucionais.
2.3 Contradições e conflitos na história dos direitos É claro que isso que está sendo descrito como uma aparente “marcha” de estabilização política (do regime burguês), mas também de possíveis progressos para os “de baixo” é apenas uma espécie de descrição ideal de um caminho cheio de contramarchas e de realização em profundidade e ao longo do tempo questionáveis, ao menos no interior da ordem do capital. A própria Revolução Francesa é muito acidentada e poucos anos depois tem parte da sua energia transformadora absorvida e sucedida por momentos reacionários. Mais contraditório ainda se torna o cenário aparentemente “evolutivo” - e não por acaso frequentemente assim descrito pela literatura dominante de cariz liberal - se abrirmos o nosso foco do “centro” de poder mundial para vastas áreas que seriam ainda marcadas por séculos de colonização, espoliação, escravização e genocídio, para não falar dos poucos direitos até então consagrados à metade feminina da humanidade. Mas essas questões raramente ocuparam o centro das preocupações dos pensadores mais influentes daqueles estados dominantes.
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Ainda assim, quando o séc. XX se iniciava, havia no “Ocidente” um forte otimismo e difusão da visão segundo a qual aquele modelo político-econômico, com forte esteio ainda na garantia dos direitos individuais e alguma capacidade de absorção das demandas da forte classe trabalhadora e manutenção do sistema de enriquecimento da classe dominante haveria de se manter e aprofundar. Mesmo as organizações e movimentos da classe trabalhadora, numerosos e fortes sindical e politicamente, eram bastante influenciados pelas “ilusões” do progresso prometidas pelo liberalismo, como é bem conhecido pelos debates cruciais no interior dos movimentos de trabalhadores na Europa da virada entre os séculos XIX e XX. Naquele momento, segmentos influentes daqueles movimentos, alguns dos quais haviam ainda tido contato direto com os fundadores do marxismo, aderiram ou foram fortemente influenciados pela compreensão de que pela progressiva conquista de direitos o objetivo de uma sociedade emancipada das amarras capitalistas poderia ser alcançado sem a ruptura com os regimes políticos vigentes.
2.4 A força do modelo liberal-democrata e da ideia de direitos nele O ponto fundamental aqui não é o de fazer uma avaliação acerca da bondade ou insuficiência, do caráter progressivo, enganador, viável ou insustentável, das possibilidades e limitações, da inevitabilidade ou contingência do modelo liberal de regime político. O que se quer sublinhar é a enorme e crescente força desse modelo como referência político-ideológica – em especial no “Ocidente” e em sua periferia mais imediata, a América Latina, mas também como horizonte posto e organizador de boa parte do restante do globo (afinal, os territórios colonizados o foram em muito por estados liberais) – nos séculos XIX e XX, para além dos juízos que disso se possam fazer. Essa força do modelo se revela – mais do que é negada – pela convivência com as inúmeras exceções que comportou: o “não direito” foi muito mais comum na humanidade que o “direito” ao longo destes últimos dois séculos em que o respeito formal aos direitos foi se tornando “obrigatório” para os Estados. Sintomático deste ponto são os esforços de “restauração” de regimes minimamente condizentes com os referidos parâmetros na sequência da derrota dos fascismos, mas também a manutenção de estruturas, discursos e aparências legais em regimes ditatoriais e autoritários internacionalmente sustentados durante a Guerra Fria (veja-se o exemplo das diversas ditaduras latino-americanas). A própria ordem internacional é reconfigurada no imediato pós-guerra colocando como pilar o compromisso com a preservação dos núcleos de direitos consagrados pelas revoluções burguesas e pelos processos sócio-históricos subsequentes. Após a falência da modernidade política expressa pelos fascismos e pela Segunda Guerra, procurou-se reencetar a dinâmica política internacional num enquadramento institucional e político cujo objetivo declarado e ponto de partida foi o respeito aos direitos (agora mais propriamente chamados de “direitos humanos” na medida em que em tese assegurados a todas as pessoas humanas de forma incondicionada). A deslegitimação prévia e abstrata de quaisquer opções soberanas que violem tais direitos corresponde a um reforço da norma de que o estado deve ser um assegurador destes e, portanto, induz, sem determinar explicitamente, que ao menos essa aproximação com o modelo de regime político liberal é a norma: os regimes políticos menos explicitamente próximos aos das democracias liberais ocidentais são colocados sob uma espécie de exame e suspeição por parte dessa nova ordem institucionalizada. Evidentemente, que a avaliação sobre se os Estados respeitam ou não respeitam e em
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que medida “os direitos” é uma arena de disputa política, mas sobre um virtual e abstrato consenso de que devem ser respeitados. O “consenso” relativo sobre a democracia liberal como forma por excelência de organização política do Estado foi reforçado a partir da descolonização, do fim de inúmeras ditaduras explícitas e do desmantelamento do bloco soviético. Nos anos 90 do séc. XX parecia ter sido consolidada a fórmula capaz de conter e organizar os conflitos sociopolíticos contemporâneos, abrangendo desde as expressões mais conservadoras e até mesmo o que restava das forças anticapitalistas e contestadoras. A necessidade de existência e realização dos direitos formavam um dos núcleos fundamentais da convergência discursiva sobre a qual as disputas e os debates políticos se desenrolariam necessariamente.
3 A ascensão da extrema direita e a crise das democracias liberais: o horizonte de futuro sem direitos? 3.1 Extrema direita A expressão “ascensão da extrema direita” tornou-se corrente desde os anos 90 e, portanto, seu uso não corresponde a uma novidade muito recente. O que mudou foi a extensão e profundidade de seu significado e a relativa “normalização” do fenômeno em diversos países. A classificação de uma força como de “extrema direita” tem uma conotação negativa e, portanto, costuma ser rejeitada pelos próprios sujeitos por ela abarcados e, além disso, o estabelecimento de uma fronteira rígida com o que seria uma “direita” dentro do “arco democrático” nem sempre é fácil. Há todo um debate acerca da utilização da “escala” entre direita e esquerda, que não se desconhece, mas é possível reconhecer que, mesmo sendo esta uma “escala” intrinsecamente relativa a diferentes âmbitos e situações, se tomarmos como referência os regimes partidários dos Estados centrais – e mesmo de alguns importantes representantes da periferia – referimonos aqui a forças e movimentos à direita – mais conservadores, mais descomprometidos com a igualdade, com as liberdades e com a proteção das “minorias” no sentido político, como os grupos historicamente discriminados – do que os partidos e forças relevantes na dinâmica política desses estados. O critério é, portanto, objetivo: trata-se de forças à direita do que foi “a direita” sobretudo na segunda metade do séc. XX (a democracia cristã europeia, a direita liberal, os conservadores britânicos ou os republicanos estadunidenses, para dar exemplos marcantes). Importante dizer que o enfoque aqui se dá nas forças com peso significativo – o que implica em geral sustentação por setores de massa; capazes de tensionar ou ameaçar as bases do regime político. O fenômeno da miríade de pequenos grupos extremistas não necessariamente públicos não é desimportante, inclusive porque abastecem as correntes visíveis e mais influentes com uma série de elementos, mas não são o mais importante para o objetivo aqui presente. Deve-se reconhecer ainda tratar-se de um conjunto bastante diverso de situações, como não poderia deixar de ser num fenômeno de tão ampla escala global, embora se possam identificar elementos comuns importantes. Dentre os maiores cuidados exigidos aos analistas, deve estar o de transplantação não mediada dos parâmetros utilizados no “Ocidente” para realidades que dele se afastam, inclusive algumas nas quais a liberal-democracia da qual tais forças se afastam sequer chegou a ser tão consolidada quanto naquele: pense-se em situações como as da Índia e da Rússia (e, no caso desta, do papel de
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contrapeso à dominação estadunidense que exerce em algumas situações e no significado contraditório deste resultado com a constatação da existência de muitos pontos em comum com a referida direita extremada). No entanto, constatada a presença do modelo “Ocidental” como tal nestas realidades e como referência no plano mundial não parece uma impropriedade que esses casos sejam, com as devidas ressalvas, estudados sob preocupações semelhantes às adotadas para os Estados centrais, com os devidos cuidados que se exigem nesses casos para que se evitem transposições mecânicas de parâmetros.
3.2 A oposição ao liberalismo político pela direita não é equiparável à oposição pela esquerda O que diferencia esse conjunto de forças daquelas que criticam, se opõem e até lutam revolucionariamente contra os regimes das democracias liberais de uma perspectiva emancipatória é que este último grupo, genericamente identificado aqui como de forças não liberais “de esquerda” – por mais oponente que seja à institucionalidade constituída – não apenas não nega como propõe o aprofundamento do sentido material daquelas bases: a socialização do poder político e das possibilidades de fruição e realização que a tradição liberal denominou e circunscreveu como “direitos”. Aqui não se tratará como equivalentes os dois fenômenos políticos – que simplificadamente poderiam ser chamados de críticas “pela direita” e “pela esquerda” aos regimes políticos dominantes – e, sem menosprezar o interesse no segundo, reflete-se basicamente sobre o primeiro, porque a ele estão ligados os principais casos – tanto no “centro” como na “periferia” – de tensionamentos, questionamentos e ameaças ao modelo liberal-democrático. O comum epíteto de “populista”, muito comum na literatura dominante sobre o tema, não será aqui privilegiado, bem como o “iliberal”, uma vez que ambos os termos que tem servido à tentativa de equiparação que aqui se rejeita. Um debate mais aprofundado sobre esses termos e seu uso foge ao escopo deste trabalho, apesar de sua importância.
3.3 Extensão do fenômeno É bastante difícil e fugiria ao escopo deste texto fazer um inventário acerca de todas as situações nas quais forças deste tipo ascenderam a governos, à condição de alternativas de governo ou foram capazes de influenciar decisivamente a agenda política. Ilustrativamente, podemos citar não apenas os mais célebres Hungria e Polônia ou Índia e Filipinas, Brasil e Colômbia, mas também Itália, Espanha, França, Reino Unido, Alemanha e Estados Unidos, além de merecerem muita atenção Japão e Rússia. Para grande parte dos países que concentram a maior parte do poder econômico e político mundial não é possível mais explicar a dinâmica política interna dos últimos anos sem apontar uma ou mais forças significativas – partidos, lideranças ou movimentos – “à direita” do feixe que a protagonizou desde a ascensão dos regimes constitucionais – com a exceção chave para dos períodos fascistas e ditatoriais em diversos casos. Para ficarmos em alguns exemplos é importante lembrar que a Liga Norte de Salvini tornou-se um partido de governo na Itália, o mesmo tendo ocorrido com a extrema direita austríaca. No Leste da Europa há duas situações bastante emblemáticas: a da Polônia e aquele que talvez seja o “laboratório” mais avançado: o já longo governo Orbán na Hungria, na qual já há sinais de alteração no próprio regime. Na Ucrânia a
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extrema direita apresenta traços violentos e tem peso no tabuleiro político. Houve pelo menos momentos de crescimento e relevância de forças conotadas com este campo em diversos países nórdicos e do Norte europeu e é bem conhecido o caso francês, no qual a RN de Marine Le Pen foi ao 2o turno e é tratada como a principal adversária do atual presidente. A Espanha, até pouco tempo considerado um estado sem uma extrema direita explícita passou a contar com o partido Vox como um dos mais votados e abertamente cogitado nas prospecções de coalizão eleitoral e já integrando um governo regional. A Alemanha é um dos casos mais importantes: ainda que o AfD não tenha chegado a um quinto do eleitorado, é a principal força de oposição ao governo de ampla coalizão liderado por Merkel. No Reino Unido forças à direita dos conservadores chegaram a vencer eleições europeias e tiveram um significativo protagonismo no processo do Brexit, com expressão de massas mais importante que na disputa pelo governo propriamente. Na América do Sul a força do “uribismo” na Colômbia e a ascensão de Bolsonaro no Brasil impactaram a dinâmica política regional, cujo principal determinante parece mesmo ser a ocupação da Casa Branca por Trump, um “outsider” que se afasta de muitos parâmetros comportamentais, mas também de conteúdo decisório de seus conservadores companheiros de Partido Republicano, “flertando” com aspectos misóginos, racistas e anticientíficos num grau de abertura não imaginado há várias décadas. Em um dos países mais populosos do mundo - “a maior democracia” em termos numéricos – a Índia, a evolução das medidas tomadas pelo governo do BjP de Narendra Modi frente a minorias (que chegam a reunir várias centenas de milhões de pessoas) são no mínimo inquietantes. O violento governo Duterte nas Filipinas e a afirmação após seguidos anos de governo da predominância de partidos belicistas no estado de Israel, ou aumento de um nacionalismo mais beligerante no Japão por dentro do partido tradicional de governo, além da evolução deslaicizante contrária à minoria curda por parte do governo Erdogan na Turquia e das posições hostis a minorias, em especial LGBTs, de Putin, completam um quadro básico para provocar o leitor que eventualmente não esteja convencido da relevância do fenômeno. Embora essas forças sejam mais ou menos abertamente hostis às bases constitucionais modelares a que vimos nos referindo é importante assinalar que não há por enquanto algo que se possa chamar de um desmantelamento de regimes constitucionais e menos ainda destes como parâmetros. Isso não pode ser descartado como evolução futura – apenas uma fé mística e pouco fundada historicamente poderia levar a crer que instituições políticas seriam perenes somente por assim se declararem – mas seria uma exacerbação dizer que já ocorre de forma importante. Trata-se de um programa de pesquisa altamente relevante o da observação e compreensão da evolução dos citados regimes nos quais pontos de tensão e alterações até aqui mais pontuais não podem ser descartadas como catalisadoras de dinâmicas mais importantes no próximo período. Em geral, essas alterações já realizadas ou propostas tem um único sentido no que se refere a direitos: um enfraquecimento que se manifesta por retirada, diminuição de alcance, condicionalidades, fortalecimento do vínculo com a condição nacional ou até mesmo um início de transmutação do direito em uma forma de “proteção” não incondicionada, não universal, não prevista em abstrato.
3.4 Razões da Crise: dois tipos de “explicação” Diante de um fenômeno com tal extensão, se concordarmos que as diferentes situações apontadas podem ser inseridas como parte de um mesmo fenômeno, coloca-se o problema fundamental de sua
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explicação. O que estaria levando setores de massas de tantos e diferentes países do mundo a aderirem a discursos políticos com tais características? Não caberia aqui uma revisão bibliográfica da já extensa oferta de possibilidades explicativas, mas parece-nos possível identificar, de maneira ainda que muito simplificada, dois grandes grupos de trabalhos. O primeiro grupo seria o que teve forte presença nos meios de comunicação e ocupou os balcões das livrarias nos últimos anos é composto por uma série de autores e títulos que podem ser colocados mais ou menos próximos às análises políticas tradicionais – focadas em partidos, comunicação, instituições, regras – e ao campo liberal no sentido amplo. Títulos alarmantes referindo-se aos perigos sofridos pela democracia ou mesmo ao seu iminente fim encabeçam um leque de abordagens que atribuem a uma falha em algum ponto específico da “linha de produção” de boas soluções políticas a emergência destas forças antiliberais. Não é raro, inclusive, nem surpreendente, que tais leituras agrupem sob o mesmo chapéu do “iliberal” ou do “populismo” expressões “à esquerda” do mainstream – como governos progressistas da América Latina – com forças xenófobas e ultranacionalistas ou lgbtfóbicas. Nestas explicações, “as elites”, “os partidos”, “a produção da oferta de alternativas”, “a comunicação” ou até mesmo “o povo” (os traços demofóbicos não são estranhos a este debate) estariam falhando e impedindo a produção de resultados esperados: processos de escolha vistos como legítimos e resultados dentro do “arco liberal” com a produção de governos estáveis, capazes de gerir os Estados com alguma “eficiência e responsabilidade”. Um autor de muita repercussão como Yasha Mounk (“O Povo Contra a Democracia”) chega a afirmar, entre outras razões, que a educação estadunidense dá um espaço demasiado às mazelas do regime e da sociedade – “o foco exclusivo nas injustiças” – e que professores e o sistema educacional deveriam defendê-los mais arduamente enfatizando “que as alternativas ideológicas à democracia liberal (…) continuam a ser tão repugnantes hoje quanto eram no passado” (2019, p. 297). Uma espécie de excesso de crítica estaria na raiz da crise e um regime com muitos direitos (de grupos, por exemplo) teria aberto espaço para que um setor de massas quisesse “de volta” um poder democrático que creem lhes teria sido retirado por estes. “Mais recentemente, novatos na política tiveram grande sucesso ao prometer que devolveriam poder ao povo. (…) O rival mais sério do sistema de direitos sem democracia acabou sendo um sistema de democracia sem direitos” (MOUNK, 2019, p. 303). Não se concorda aqui com o que parece ser a tônica analítica do autor – a democracia liberal como forma final da história política humana insuperável a prazo razoável – e menos ainda com o que nos parece ser sua proposição: moderação e recuo no discurso sobre direitos para evitar abrir espaço para esses grupos. No entanto, parece ter tocado num ponto fundamental das preocupações deste texto: a centralidade da discussão sobre direitos neste processo em tela. Um segundo grupo de autores, de menos repercussão midiática e ocupando espaços mais reduzidos nas livrarias e sítios de vendas, busca relacionar a atual ascensão da direita radical ao relativo esgotamento da capacidade dos regimes liberal democráticos de convencer sobre a realização efetiva de suas “promessas” de “progresso” e realização de aspirações para todos. Esses trabalhos – a exemplo de Traverso (2019), Rancière (2014) e Castells (2018) – vinculam mais o processo à evolução da correlação de forças entre classes sociais no plano internacional, aos limites e contradições intrínsecos aos regimes liberais, aos ônus que se impõem à esquerda por ser tida como parte do “sistema”, às crises do capitalismo, ao fim do bloco soviético e a uma certa “releitura” do que era o passado de graves violações a não repetir. Para exemplificar essas abordagens menos liberais e mais críticas podemos citar
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A crise da democracia liberal resulta da conjugação de vários processos que se reforçam mutuamente. A globalização da economia e da comunicação solapou e desestruturou as economias nacionais e limitou a capacidade do Estado-nação de responder em seu âmbito a problemas que são globais na origem, tais como as crises financeiras, a violação aos direitos humanos, a mudança climática, a economia criminosa ou o terrorismo. (…) A desigualdade social resultante entre valorizadores e desvalorizados é a mais alta da história recente. E mais, a lógica irrestrita dos mercados acentua as diferenças entre capacidades segundo o que é útil ou não às redes globais de capital, de produção e de consumo, de tal modo que, além de desigualdade, há polarização; ou seja, os ricos estão cada vez mais ricos, sobretudo no vértice da pirâmide, e os pobres cada vez mais pobres. (CASTELLS, 2018, p. 18-19).
Nesta direção, afirma-se que a frustração de amplos segmentos de massas, com os regimes políticos não decorrem de meras falhas pontuais de sua institucionalidade, senão da incapacidade de prover as aspirações de vida melhor e mais digna para todos e não pode ser separada da própria dinâmica econômica a escalas global e nacionais. Essa frustração tem vindo a ser canalizada por forças que se apresentam como “antissistema” majoritariamente ligadas à direita extremada, mesmo que isso possa ser contraditório com o que entendemos com o seu projeto de fundo e de futuro como se desdobrará adiante.
4 Fascismo histórico e fascismo como possibilidade permanente Chama a atenção o crescimento do debate acerca do tema do fascismo nos últimos anos. Na esteira do historiador italiano Enzo Traverso (2019) vamos fazer dele uma abordagem dupla: nem pode ser suficiente para compreender os processos atuais, na medida em que não se reduzem a uma reedição (e os excessos de aproximação ou mesmo a assimilação de um fenômeno a outro poderiam fazer perder muito de sua complexidade), nem pode ser descartado, dado o peso ineliminável que possui na história contemporânea e os importantes elementos em comum. Nem todo fenômeno de extrema direita é próximo ao fascismo, mas é importante compreender este para compreender boa parte das expressões daquela. O fascismo, uma corrente política gerada por dentro dos regimes liberais e pouco a pouco abraçada por setores das elites econômicas, manifestou-se em inúmeros países, embora os casos italiano e alemão sejam os mais conhecidos. Em quase toda a Europa ocupada pela Alemanha nazista houve forças políticas locais significativas que a apoiaram e facilitaram o estabelecimento de regimes por convicção políticoideológica. Correspondia a uma negação de todos os principais valores que a Modernidade professava e que tomara emprestado do Iluminismo. Sob o pretexto do anticomunismo, o fascismo professou e impôs posições antidemocráticas, contrárias às liberdades e aos direitos, à igualdade, mesmo formal, bem como ao racionalismo e ao humanismo, além de ter quebrado a vinculação de que o progresso científico decorreria sempre em benefício da humanidade, uma vez que colocou a técnica a serviço da destruição, do esmagamento e da morte. A tentativa de “desumanização” de amplos contingentes de supostos “inimigos” e a construção da compreensão de que os indesejáveis deveriam ser eliminados ou escravizados foram outros dos traços do nazifascismo incompatíveis com as promessas que a modernidade política, os Estados, seus setores dominantes, o pensamento liberal, o próprio capitalismo, do qual o fascismo foi uma
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expressão, tinham apresentado até então. O nazifascismo é uma demonstração gigantesca, trágica e eloquente de que a modernidade capitalista – com todo o seu desenho institucional aparentemente perfeito – poderia levar a humanidade para um abismo muito profundo e difícil de reverter. Setores das elites intelectuais, políticas, mas também burgueses tinham colaborado ativamente com ele e o viabilizado. Um ponto que parece fundamental no debate é o do reconhecimento de que o fascismo significou uma saída, uma resposta, para a crise do capitalismo tendo por objetivo fortalecer a posição de sua classe dominante naquele cenário. Este elemento diferencia, grosso modo, abordagens liberais de abordagens marxistas e, sobretudo, tende a diferenciar a compreensão do fascismo como um erro ou desvio mais excepcional de algo que deve ser reconhecido como uma alternativa – e, portanto, risco – no capitalismo. Nos termos postos por Ernest Mandel, para exemplificar a posição de seu campo teórico: O ascenso do fascismo é a expressão da grave crise social do capitalismo decadente, uma crise estrutural que pode coincidir (…) com uma crise económica clássica de sobreprodução, mas que é muito mais ampla do que uma simples flutuação de conjuntura. Fundamentalmente é uma crise da reprodução do capital. (…) A função histórica da tomada do poder pelo fascismo é alteração pela força e violência a favor dos grupos decisivos do capital monopolista, das condições de reprodução do capital (MANDEL, 1976, p. 29).
4.1 Derrota do fascismo e reorganização da modernidade política Manifestara-se, na vitória sobre o fascismo, uma muito significativa força política de um campo vinculado à classe trabalhadora. A União Soviética, com todas as contradições ao largo do processo, havia tido um papel decisivo na liberação suportando perdas gigantescas e a maior parte da agressão nazista. Internamente aos Estados europeus, a importantíssima resistência tinha amplos setores dirigidos ou vinculados a organizações de trabalhadores (comunistas, sindicais). O cenário do final da guerra no que havia sido até então o centro do sistema internacional, a Europa, era ao mesmo tempo de devastação da promessa liberal capitalista, de desmoralização de parte da burguesia que apoiara o fascismo e de enorme prestígio da União Soviética. É verdade que naquela reta final as potências ocidentais – EUA e Inglaterra à frente – haviam feito um gigantesco esforço para recuperar terreno, mas não chegavam a se equilibrar em força política e moral aos soviéticos. Foi preciso que os norte-americanos testassem a bomba atômica, já com a guerra encerrada na Europa, para que encontrassem melhor localização nas negociações. Pouco depois, cometeriam um dos maiores crimes contra a humanidade da história lançando-a contra as populações civis de duas grandes cidades japonesas, no que para muitos foi muito mais um “recado” aos seus novos inimigos soviéticos do que de fato uma necessidade para vencer a guerra no Pacífico. Em meio a este cenário – o desastre a que a Europa liberal capitalista tinha chegado e o prestígio do comunismo e do socialismo – que “o mundo”, o sistema internacional, foi reconfigurado. A “reconstrução” da modernidade política e seu fundamento nos direitos não podem ser entendidos fora deste contexto e desta correlação (o gigantesco salto do peso dos direitos sociais em território europeu não pode ser compreendido fora do quadro da expansão do bloco soviético e sua influência, por exemplo, como é bastante estudado). A política se mostrou muito intensa naqueles dias de 45 com a correlação de
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forças reais no terreno, as movimentações, negociações e as velocidades dos diferentes atores se combinando fortemente. Não interessava aos EUA, deixar a poeira baixar. Das grandes potências envolvidas era, de longe, a mais intacta e fortalecida economicamente. Entre os últimos tempos da guerra e o imediato depois uma série de conferências consagrou o viria a ser o novo desenho do mundo, com grande reforço da posição norte-americana. Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial, Gatt, o padrão dólar-ouro para transações internacionais, a reconstrução econômica e militar da Europa Ocidental atrelada aos EUA, a multiplicação das alianças e bases militares norte-americanas são alguns exemplos desse reforço de posição. Dos pontos de vista militar e econômico o novo mundo era muito mais norte-americano que antes. No que se refere ao terreno político é que a situação parecia um pouco mais dividida, dado os já referidos prestígios soviético e dos anti-imperialistas mesmo na Europa Ocidental, o mais cobiçado terreno em disputa de então.
4.2 Contradições imediatas e Limitações da desfascistização A guerra encerra-se com os primeiros atos configuradores do período seguinte: as bombas sobre Hiroshima e Nagasaki – abrindo a Guerra Fria – lançadas dias depois das conferências de reorganização da institucionalidade das novas configurações do poder, inclusive da formação da ONU e seu compromisso basilar com os direitos humanos. É interessante observar que não apenas o modelo político foi alçado como já referido ao plano da legitimação internacional, como que as duas maiores potências derrotadas, que seriam protagonistas no campo capitalista a partir dali – a Alemanha Ocidental e o Japão – tiveram suas constitucionalizações liberais impostas pelas potências vencedoras. Ao longo da Guerra Fria, como se sabe, ambos os blocos se relacionarão com violações dos direitos com os quais pactuaram, às vezes massivamente como no caso das ditaduras apoiadas pelo Ocidente a pretexto da ameaça comunista, inclusive as que se instalaram ou mantiveram no sul da Europa (Portugal, Espanha, Grécia), com características que as aproximavam visivelmente do fascismo histórico. Naquele cenário as novas superpotências e em especial a Ocidental estavam diante de uma contradição fundamental: derrotado o fascismo era preciso negá-lo e manter sobre ele uma memória negativa, que justificasse o enorme esforço, era necessário reorganizar os territórios e sanear as estruturas públicas de alguns de seus protagonistas, mas o objetivo principal já não era sua eliminação e sim o fortalecimento contra o novo adversário e perigo prioritário. A desfascistização – da qual a desnazificação é a parte mais conhecida e estudada – é um processo longo, não linear, marcado por avanços e recuos, que não se poderá retomar aqui – embora guarde chaves importantes – mas que tem como um de seus traços marcantes a incompletude. Quadros administrativos, políticos, técnicos “precisavam” ser aproveitados na reestruturação dos Estados após a liberação. Em casos mais extremos, há criminosos de guerra como Klaus Barbie provavelmente servindo na violência política reacionária na Bolívia até o início dos anos 80, mas, em muitos outros, elementos menos visíveis desempenharam papéis públicos e privados relevantes. A relação dessa reconstrução da modernidade política verificada no pós-Segunda Guerra com o passado fascista é marcada por um elemento contraditório: ao mesmo tempo em que é fundamentada e
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legitimada pelo compromisso e pela promessa de não repetição, limita este compromisso pela opção de incorporar elementos – pessoas, práticas, empresas – na luta contra “o outro lado”. Assim, ao mesmo tempo em que os fascismos viram “modelos de não repetição”, predominam sobre eles abordagens que esvaziam sua relação com a dinâmica capitalista, que os circunscrevem historicamente, que abordam de forma “moralizante” sua violência, que desumanizam seus protagonistas, tornando sua repetição improvável e evitável pela mera decisão subjetiva. Negado, muito mencionado, mas mal conhecido de fato para além de seus marcos mais extremos e explícitos de violência, não é reconhecido facilmente quando reaparece em formas minimamente mediadas ou atualizadas (novos “inimigos”, novas formas de aniquilação, novo ultranacionalismo).
4.3 Pós-fascismo como chave de compreensão Traverso (2019) faz uma distinção, na abordagem da relação entre os fenômenos atuais e o fascismo, entre “neo” e “pós” fascismo. O “neo” fascismo seria daqueles grupos, de forma geral marginais na cena política, que reivindicam de forma mais ou menos explícita sua relação com correntes ou com o passado fascista. O “Aurora Dourada” da Grécia e o já desaparecido MSI da Itália, que chegou a ser liderado por uma neta de Mussolini, são exemplos não irrelevantes. Mas, de forma geral, essas forças da extrema direita não reivindicam abertamente esse passado e deveriam ser, segundo o autor, chamadas de “pós fascistas”, uma vez que guardam com o fascismo afinidades importantes, sem uma vinculação explícita. O autor ressalta que muitas vezes negam veementemente qualquer relação com o fascismo e, inclusive, podem utilizar “fascismo” como acusação política a seus alvos. Na França, por exemplo, acusam boa parte das comunidades imigrantes de “fascismo islâmico”, partilhando a compreensão comum da negatividade do termo como expressão de uma ameaça a ser batida.
4.4 O discurso da extrema direita como um discurso antidireitos A análise mais completa e acurada dos discursos destas forças políticas aqui em tela é objeto já de alguns estudos que não se poderão reproduzir aqui. Tomando-se em conta os autores críticos já mencionados e a avaliação direta das manifestações públicas dessas forças e de seus líderes alguns elementos aparecem recorrentemente, dos quais destacam-se, como importantes para a presente reflexão: - a denúncia do “sistema”, apresentando-se como antissistema, como candidatos a revolucioná-lo e a apresentação de forças de esquerda, mesmo as que nunca foram governo, como parte dele; - a deslegitimação e desconfiança em relação aos movimentos “de minorias”: feministas, antirracistas, LGBTs, de defesa de imigrantes, de direitos humanos, ambientalistas, pró-cultura; todos apresentados como algo entre ameaçadores de degeneração social, nacional e buscadores de privilégios; - a retórica “antiesquerda”, que combina o antagonismo aos movimentos citados com eventuais resgates, por mais que pareçam anacrônicos, do anticomunismo e antimarxismo;
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- a desconfiança ou hostilidade aberta aos lugares e estruturas associados – na representação projetada por estas forças e suas bases, independentemente da realidade objetiva – à defesa de direitos: tribunais, meios de comunicação, universidades, organizações não-governamentais, intelectuais, institutos de pesquisa; - a oposição entre os interesses das “pessoas comuns”, que representariam, a um ou a um conjunto de “inimigos” usurpadores, que podem ser algum ou alguns dos grupos já referidos, numa formulação que é frequentemente apresentada como “antielitista”; mesmo quando apoiado, liderado ou vinculado a muito ricos; - a utilização de um ou um conjunto combinado de mecanismos de identidade, em geral vinculados ao nacionalismo e a passados idealizados, muitas vezes atravessados por identidades religiosas ou hostilidades a um “outro” ameaçador e a uma “retomada” de tradições e de uma certa noção de “segurança”; - uma retórica que não é necessariamente hostil à proteção social (o tema da relação entre extrema direita e políticas econômicas daria outros longos trabalhos), mas que a vincula ao pertencimento, ao merecimento e enfraquece seus traços como “direito”. O que todos esses elementos têm em comum é o enfraquecimento do papel dos direitos no projeto societário que apresentam. Estes são apresentados entre a desconfiança, o caráter de geração de privilégios, a ameaça à segurança – da posição do homem, do branco, do proprietário – sua “injustiça” (do “estrangeiro que rouba o que deveria ser do nacional”), sua corrupção de valores fundamentais, como o reconhecimento da família tradicional.
4.5 O passado de violações e o papel do revisionismo Nisso que poderíamos chamar de nova versão da modernidade política, as democracias liberais do pós-guerra a existência de um “modelo negativo” ou “modelo de não repetição” teve um papel organizador e legitimador fundamental. Sendo estabelecido que o fascismo – com especial enfoque na sua versão nazista alemã – era “o horror”, “o inaceitável”, ressuscitava-se o consenso discurso que dera base aos Estados liberais constitucionais, como já afirmados, com o oferecimento da perspectiva de compromisso de sua não repetição. O fascismo passava a funcionar como um avesso do espelho, uma referência de não fazer, de não repetir, útil na organização de uma sociedade de diferentes interesses e perspectivas. As maiores frustrações eventualmente vividas e sentidas sob a modelagem liberal estariam sempre um tanto absolvidas por não ser o horror do nazifascismo. Essa memória do episódio a não repetir sempre foi marcada pelas fragilidades inerentes ao predomínio liberal de sua formulação, desvinculada da própria dinâmica econômica capitalista e demasiadamente presa a poucas personagens e suas supostas personalidades perversas e atos cruéis. Mesmo assim, continuou a existir como um parâmetro a noção do fascismo em abstrato como indesculpável, de repetição inaceitável. Entretanto, desenvolveu-se, especialmente no caso europeu, uma corrente historiográfica de caráter revisionista que, como destaca Traverso (2019), tem tido um importante papel de relativizar a gravidade ou mesmo o caráter desumanizante do fascismo histórico e dos episódios a ele
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vinculados. São utilizados para tanto inúmeros mecanismos: contextualizações justificadoras, uma abordagem equiparadora do “perigo comunista”, a valorização dos episódios de violência por parte dos que o combateram, entre outros. Esta “normalização” ou amenização produz um efeito de perda do parâmetro negativo, reabilitando senão o próprio fascismo, mas alguns de seus conteúdos, como alternativas aceitáveis. Esse tipo de abordagem tem correlatos nas redes de informação e produção de “narrativas” da extrema direita. Pode-se estabelecer paralelos entre o lugar do fascismo como parâmetro de não repetição e ditaduras, o colonialismo ou mesmo episódios específicos da história de determinados países (a escravização, o massacre dos indígenas, a colaboração com os ocupantes nazistas, uma das formas mais comuns de fascismo). Esses parâmetros de não repetição figuram como alicerces do “discurso de direitos” das sociedades liberais democráticas (ou do que há numa sociedade de aspiração a isso) e a negação ou revisão de seus significados abre caminho para um enfraquecimento, o descarte, a permanência ou uma nova etapa especialmente importante na violação dos direitos.
5 À guisa de conclusão: a extrema direita e um horizonte de futuro (quase) sem direitos No debate contemporâneo frequentemente fala-se em ameaças “à democracia”. Em verdade, seria necessário qualificar que concepção ou aspecto da democracia estariam ameaçados. Numa tentativa de síntese importante sobre o pensamento à direita sobre o tema, Jacques Rancière (2014) aponta que O governo democrático, diz, é mau quando se deixa corromper pela sociedade democrática que quer que todos sejam iguais e que todas as diferenças sejam respeitadas. Em compensação, é bom quando mobiliza os indivíduos apáticos da sociedade democrática para a energia da guerra em defesa dos valores da civilização, aqueles da luta das civilizações. O novo ódio à democracia pode ser resumido então a uma tese simples: só existe uma democracia boa, a que reprime a catástrofe da civilização democrática (p. 10-11).
Destaca-se assim que nos atuais movimentos “antissistema” de extrema direita o que é atacado não são as insuficiências, as limitações, as promessas não cumpridas (ou não realizáveis nos seus limites), as permanências de assimetrias, as contradições com a vida material dos regimes democráticos, mas, ao contrário, o que estes abrem, acenam ou parecem abrir, consoante a leitura, de possibilidades emancipatórias. O regime é combatido por assegurar de menos a conservação das hierarquias sociais. Houve e há todo um pensamento crítico voltado para o desvelamento das limitações e armadilhas eventuais no uso por parte de movimentos que se querem emancipatórios das categorias concernentes ao “discurso de direitos”. Aqui, ele quase não foi abordado. O que não se deve perder de vista é que a formatação política de uma ordem social hierárquica, desigual, produtora e reprodutora de desigualdades não é estática. Se é verdade que assumiu crescentemente nestes últimos dois séculos uma forma típica, predominante, é verdade também que com ela conviveu como alternativa permanente (a exceção como possibilidade permanente) formas (no fascismo, nas ditaduras, no colonialismo) nas quais o direito como promessa é substituído pela obediência como resposta ao medo e à insegurança.
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O que as forças da extrema direita parecem oferecer como horizonte de futuro é um em que as possibilidades de ação e fruição do mundo e da vida sejam muito mais concessões a “merecedores” e “escolhidos” e em que o único grande direito restante seja o à grande propriedade privada (e mesmo esse condicionado a um comportamento político condizente com seus defensores) e ao recurso aos meios para defendê-la e à conservação da ordem que o garante.
Referências CASTELLS, M. Ruptura: A crise da democracia liberal. Rio de Janeiro: Zahar, 2018. COUTINHO, C N. Notas sobre Cidadania e Modernidade. In: Contra a Corrente. São Paulo: Cortez, 2000. p. 49-69. HOBSBAWN, E. J. A Era dos Impérios. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001, MANDEL, E. Sobre o Fascismo. Lisboa: Antídoto, 1976. MOUNK, Y. O Povo Contra a Democracia. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. RANCIÈRE, J. O Ódio à Democracia. São Paulo: Boitempo, 2014. TRAVERSO, E. The New Faces of Fascism: Populism and the Far Right. Londres: Verso, 2019.
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Submetido em: 20 ago. 2020 Aceito em: 3 nov. 2020
DOI: 10.19180/1809-2667.v22nEspecial2020p706-726
Assistência e repressão: pilares no enfrentamento da “questão social” no capitalismo dependente brasileiro Assistance and repression: pillars in facing “social issues” in Brazilian dependent capitalism Asistencia y represión: pilares para enfrentar la “cuestión social” en el capitalismo dependiente brasileño Ana Paula Ornellas Mauriel http://orcid.org/0000-0002-7348-7898 Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (2008). Professora Associada do Programa de PósGraduação em Serviço Social e Desenvolvimento Regional da Universidade Federal Fluminense, Coordenadora do Grupo de Pesquisa sobre Política Social e Desenvolvimento (GPODE) – Niterói, RJ – Brasil. E-mail: apmauriel@gmail.com.
Resumo O texto traz como foco a relação entre a repressão à classe trabalhadora e as formas assistenciais conservadoras. Parte-se da hipótese que tal articulação constitui um dos eixos estruturantes das políticas sociais no capitalismo dependente brasileiro. O artigo é um ensaio com revisão bibliográfica que parte da crítica marxista da política social, utilizando a categoria capitalismo dependente como guia de análise. Tomando alguns dos principais fundamentos da formação econômico-social brasileira, busca-se problematizar como os padrões dependentes, embora mudem de forma, se apresentam em elementos estruturantes do Estado e das políticas sociais. A partir disso, busca-se analisar como assistência e repressão interagem sob o neoliberalismo, particularmente a partir do agravamento da crise do capital após 2008. Conclui-se que estamos diante de um novo padrão de enfrentamento da “questão social” no Brasil, onde se acentua o avanço do conservadorismo no campo assistencial e ações mais punitivas e coercitivas via política penal. Palavras-chave: Capitalismo Dependente. Estado. Assistência Social. Repressão.
Abstract The text focuses on the relationship between the repression of the working class and conservative forms of assistance. It proposes the hypothesis that such articulation constitutes one of the structuring axes of social policies in Brazilian dependent capitalism. This is an essay with a literature review starting from the Marxist criticism of social policy and using dependent capitalism as the category guide for analysis. Considering some of the main foundations of the Brazilian economic-social formation, we examine how dependent patterns, although they change in shape, are structural elements of the State and social policies. Based on this, we analyze how assistance and repression interact under neoliberalism, particularly from the worsening of the capital crisis after 2008. We conclude that we are facing a new pattern of coping with “social issues” in Brazil, where the advance of conservatism in the assistance field and more punitive as well as coercive actions via criminal policy are accentuated. Keywords: Dependent Capitalism. State. Social Assistance. Repression.
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Resumen El texto se centra en la relación entre la represión a la clase trabajadora y las formas conservadoras de asistencia. Parte de la hipótesis de que dicha articulación constituye uno de los ejes estructurantes de las políticas sociales en el capitalismo dependiente brasileño. El artículo es un ensayo con revisión bibliográfica que parte de la crítica marxista a la política social, utilizando la categoría capitalismo dependiente como guía para el análisis. A partir de algunos de los principales fundamentos de la formación económico-social brasileña, intentamos problematizar cómo los patrones dependientes, aunque cambian de forma, se presentan en elementos estructurales del Estado y de las políticas sociales. A partir de esto, buscamos analizar cómo la asistencia y la represión interactúan bajo el neoliberalismo, particularmente desde el agravamiento de la crisis del capital a partir de 2008. Se concluye que estamos frente a un nuevo patrón de enfrentamiento de la “cuestión social” en Brasil donde se acentúa el avance del conservadurismo en el campo asistencial y acciones más punitivas y coercitivas vía política criminal. Palabras clave: Capitalismo Dependiente. Estado. Asistencia Social. Represión.
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Assistência e repressão: pilares no enfrentamento da “questão social” no capitalismo dependente brasileiro Ana Paula Ornellas Mauriel
1 Introdução O texto tem como foco a relação entre a política de assistência social e ações penais e repressivas no contexto pós-crise 2008. Parte da hipótese de que a relação entre repressão e assistência constitui um eixo estruturante das políticas sociais dirigidas ao enfrentamento da “questão social” no capitalismo dependente brasileiro, mas que no contexto recente de gestão da crise sinaliza um incremento da repressão ao lado de ações assistenciais de caráter mais individualizadas, moralistas e ultrafocalizadas. A implementação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), criado em 2005, trouxe uma nova etapa para a estruturação da Política de Assistência Social (PNAS) no Brasil. Novas orientações legais, normatizações, vários aspectos institucionais e conceitos novos estão presentes na PNAS. Contudo, embora sua consubstanciação no Sistema Único de Assistência Social (SUAS) possua muitos méritos, as tendências que se apresentaram na assistência social mostram um processo contraditório que, ao mesmo tempo em que apontam a garantia de direitos a toda população pela noção de seguridade social, apresentam tendências neoconservadoras que limitam sua própria estruturação como política de proteção – centralidade da transferência de renda, foco do alívio da pobreza extrema, focalização, paralelismos, sem deixar de vivenciar os velhos dilemas assistencialistas e clientelistas que ainda se fazem presentes, mas reconfigurados e, por vezes, potencializados. Com relação às ações repressivas, percebe-se uma ampliação do uso da política penal pelo encarceramento (com aumento absoluto do número de pessoas privadas de liberdade ao longo dos últimos anos), mas também o uso da violência generalizada e do genocídio dos segmentos mais pauperizados e oprimidos, como estratégia de regulação social e manutenção da ordem. Tal como afirmam Kilduff e Silva (2019, p. 624), “[…] apesar da violência do Estado contra os trabalhadores ser estrutural, a hipertrofia do sistema penal, [se faz] para responder às crescentes manifestações da questão social […]” diante da crise. O artigo é um ensaio com revisão de bibliografia que parte da crítica marxista da política social, e que utiliza a categoria capitalismo dependente como guia de análise. A perspectiva crítica marxista para pensar as políticas sociais permite localizar seu papel na complexidade da reprodução capitalista, situando as mediações no circuito de valor, seu papel para as condições de reprodução da classe trabalhadora, reconhecendo as relações de poder e forças políticas das classes sociais, frações de classe e grupos em confronto. O capitalismo dependente aparece como categoria para entendermos a constituição das particularidades histórico-concretas do capitalismo brasileiro e como as políticas sociais ganham especificidades sob essa formação econômico-social. Para isso, o texto busca aportes em elementos da formação econômico-social brasileira, particularmente nas obras de Ruy Mauro Marini e Florestan Fernandes, para buscar uma correlação entre os fundamentos do Estado e do capitalismo dependente brasileiro, para pensar sua correlação com as políticas sociais, procurando mostrar como a dependência e os traços autocráticos estruturantes do Estado tendem a forjar, historicamente, patamares mínimos de acesso para a classe trabalhadora. E, embora com as lutas sociais (de classe e dos oprimidos/as) o acesso a serviços e programas tenham se ampliado em diferentes momentos históricos, em contexto de crise e ofensiva das classes dominantes como o atual, o retorno a patamares aviltantes de condições de vida tende a ser predominante. Para isso, o Estado coloca em marcha elementos de coerção e consenso, porém lançando mão de recursos policialescos e militarizados para regulação da vida.
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Longe de afirmar que as tendências que se apresentam na relação entre assistência e repressão hoje são uma simples atualização do passado, trata-se de situá-las como parte complexa de um conjunto de contradições que compõe um novo padrão de intervenção sobre a “questão social”1 por parte do Estado na fase imperialista atual diante da financeirização e do neoliberalismo, em que as ações assistenciais, encapsuladas sob a lógica do alívio da pobreza, aparecem cada vez mais conjugadas com elementos repressores, punitivos, de controle e vigilância.
2 Estado, capitalismo dependente e políticas sociais no Brasil: tendências históricas e contradições atuais Ao pensar o capitalismo dependente no Brasil e o Estado brasileiro, Iasi (2014) parte do entendimento de que não há resquícios a serem superados ou elementos que possam ser enfrentados sendo deixados para trás, mas “[…] permanências no sentido de que tais aspectos seguem funcionais à ordem a qual se associam” (IASI, 2014, p. 81). Ou seja, nós não temos um capitalismo incompleto, cujas particularidades estariam calcadas em restos do passado colonial, pois o Brasil desenvolveu um “[…] capitalismo completo nos marcos de uma inserção subordinada e dependente à ordem imperialista e monopolista” (IASI, 2019, p. 423). Elementos da formação econômico-social brasileira fornecem fundamentos para mostrar que existe um tipo de Estado que necessariamente precisa de um modo de ser autoritário e violento para poder legitimar a manutenção dessa dependência, desse padrão de desenvolvimento capitalista dependente e heteronômico, pactuado também por meio da perpetuação de condições materiais aviltantes para trabalhadoras e trabalhadoras, em que o assistencialismo conservador não sai de moda. Para Marini ([1973] 2011), a dependência se conforma a partir da forma contraditória que marca a integração historicamente constituída das economias latino-americanas no mercado mundial, a qual tem como fundamento a transferência de valor porque as relações de produção são desiguais, baseadas no controle do mercado por parte das nações imperialistas, com a transferência de excedente gerada nos países dependentes, na forma de lucros, juros, patentes, royalties, dentre outros, ocasionando a perda de seus próprios recursos por parte de quem transfere valor2. Essa apropriação de valor por parte dos países centrais não pode ser compensada por uma produção de mais-valia interna baseada na inovação tecnológica, ou pelo desenvolvimento da capacidade produtiva das economias dependentes para competir no mesmo patamar das economias centrais. Essa é a razão pela qual as economias dependentes buscam compensar as perdas resultantes dessas transferências
1
Entende-se por “questão social” como resultado das contradições entre capital e trabalho no modo de produção capitalista, cujos diferentes estágios do desenvolvimento capitalista produzem diferentes manifestações da “questão social”; bem como deve ser entendida a partir do ingresso da classe trabalhadora como sujeito político nas lutas por emancipação política e humana (NETTO, 2001). 2 Para mais detalhes acerca da questão da transferência de valor na Teoria Marxista da Dependência ver o capítulo 1, intitulado Transferência de valor como intercâmbio desigual, In: LUCE, Mathias Seibel. Teoria Marxista da Dependência: problemas e categorias: uma visão histórica. São Paulo: Expressão Popular, 2018.
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Assistência e repressão: pilares no enfrentamento da “questão social” no capitalismo dependente brasileiro Ana Paula Ornellas Mauriel
recorrendo à superexploração da força de trabalho3, no âmbito da produção interna, o que se reflete em uma forma particular do ciclo de capital das economias dependentes (MARINI, [1979] 2012)4, que perpetua e reproduz esses mecanismos, mantendo assim a reprodução da própria dependência. Seguindo Marini ([1979] 2012), Luce (2018) assevera que as várias formas de cisão que se manifestam no ciclo do capital das economias dependentes – cisão entre mercado interno e externo; cisão entre esferas alta e baixa de consumo; não generalização da mais-relativa para todos os ramos e setores da produção; fixação da mais-valia extraordinária no setor produtor de bens suntuários; integração subordinada dos sistemas de produção e industrialização não orgânica5 – provocam um divórcio entre a estrutura produtiva e as necessidades das massas, pois tais particularidades das formações econômicosociais dependentes agudizam as contradições nas relações entre distribuição e apropriação já imanentes do próprio capitalismo. Tal divórcio tem sua contraparte na produção, com o estabelecimento do regime de superexploração, pois se nossa classe trabalhadora não tem papel de consumidora, para que ganhos salariais acima do mínimo de subsistência? Nesse sentido, o estabelecimento do trabalho assalariado ocorre sobre essa base. Isso vai estimular uma relação entre Estado e empresariado que vai afiançar o regime de superexploração. Segundo Marini ([1973] 2011), para aumentar a massa de valor produzida internamente, a superexploração da força de trabalho corresponde a uma situação em que o trabalhador é remunerado abaixo de seu valor sistematicamente, mesmo fora de situações de crise 6 . Marini considera que, nas economias dependentes, a despeito da classe trabalhadora ser submetida cotidianamente ao prolongamento da jornada e ao aumento da intensidade de seu trabalho, não recebe reajuste de salário que compense esse desgaste. Essa é uma situação estrutural nas economias dependentes, haja vista que a dialética externointerno exige que a burguesia local programe políticas que criem condições para a manutenção do imperialismo, cujas condições são reproduzidas pelo Estado, o que requer processos extremamente violentos, para manter os trabalhadores dentro de padrões de vida estruturalmente no limite da 3
Para aprofundar o debate acerca da superexploração da força de trabalho ver: CARCANHOLO, M.; CORRÊA, H. F. Uma teoria da superexploração da força de trabalho em Marx? Um Marx que nem mesmo ele tinha percebido. Revista da sociedade brasileira de Economia política, n. 44, p. 10-30, jun./set. 2016; LUCE, Mathias Seibel. Teoria Marxista da Dependência: problemas e categorias: uma visão histórica. São Paulo: Expressão Popular, 2018. cap. 3; BUENO, Fábio Marvulle. A superexploração do trabalho: polêmicas em torno do conceito na obra de Ruy Mauro Marini e a vigência na década de 2000. 2016. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de Brasília, 2016. 4 Originalmente publicado em 1979 no México, foi traduzido e publicado em MARINI, Ruy Mauro. O ciclo do capital na economia dependente. In: FERREIRA, Carla et al. (org.). Padrão de reprodução do capital: contribuições da teoria marxista da dependência. São Paulo: Boitempo, 2012. “Marini discute o problema da cisão entre as fases do ciclo do capital, demonstrando como a dependência nas esferas tecnológica e financeira, assim como a persistência da superexploração da força de trabalho, fazem com que se perpetue a subordinação dos países dependentes à divisão internacional do trabalho” (p.18). 5 Para ver mais sobre as diferentes cisões e fases do ciclo do capital das economias dependentes ver LUCE, Mathias Seibel. Teoria Marxista da Dependência: problemas e categorias: uma visão histórica. São Paulo: Expressão Popular, 2018.Cap. 2. 6 Vale notar que o recurso à superexploração aparece em regiões dos países centrais em momentos de crise e nos setores mais precarizados dessas economias, normalmente preenchidos com segmentos da classe trabalhadora compostos por segmentos populacionais negros, negras e imigrantes, confirmando que o valor da força de trabalho dessa população é pago abaixo mesmo fora de seus respectivos países. Ver estudos de VALENCIA, Adrian Sotelo. A estruturação do mundo do trabalho: Superexploração e novos paradigmas de organização do trabalho. Uberlândia: EDUFU, 2009.
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sobrevivência ou mesmo abaixo dela, o que não ocorre sem resistências e lutas. Isso conforma o caráter autoritário como um traço particular e estrutural dos Estados nos países dependentes. Os Estados latino-americanos precisam reproduzir essas condições no campo político e no campo econômico, de modo a atender aos interesses das classes dominantes nos países imperialistas, ao mesmo tempo em que acolhe os interesses das burguesias internas. Uma vez que as relações de poder de diferentes Estados no sistema mundial são desiguais, fazendo com que tenham uma soberania frágil no plano internacional, as burguesias locais operam sempre com base em associação aos capitais imperialistas em diversos momentos históricos (BICHIR, 2018). Contudo, apesar de uma soberania frágil no plano externo, os Estados dependentes possuem forte poder político local e o utilizam em seus respectivos territórios nacionais a partir dos aparatos do Estado (poderes executivo, legislativo e judiciário, burocracia estatal, poder militar e de polícia), para garantir a dependência, particularmente a partir do controle e da regulação da vida da classe trabalhadora, construindo e gerindo condições políticas, ideológicas e sociais que permitam a perpetuação da superexploração (OSORIO, 2014). O predomínio da superexploração agudiza a “questão social” e os conflitos, lutas sociais e resistências, o que explicaria para Osorio (2017) a tendência às formas mais autoritárias dos Estados latinoamericanos, assim como a dificuldade de manterem de forma mais duradoura padrões políticos mais democráticos. Para o autor, “[…] não é falta de desenvolvimento político a explicação para isso, mas a expressão das formas particulares de reprodução do capitalismo dependente” (OSORIO, 2017, p. 48). Nos aportes de Florestan Fernandes (1981, 2005) também vemos que o caráter dependente e subordinado do capitalismo brasileiro é base de exclusão da maioria da população, o que leva à persistência dos traços autocráticos do Estado. Na obra Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina, Fernandes (1981) aponta que a transição para o capitalismo dependente na América Latina se caracteriza por um movimento de continuidade e inovações devido a três fatores fundamentais: o controle externo, a debilidade da revolução burguesa e o padrão dual de expropriação do excedente econômico. Para o autor, a sobre-apropriação e a dependência constituem a substância de uma lógica econômica própria do capitalismo dependente. Nas palavras de Florestan, “[…] os dinamismos econômicos externos e internos não teriam razão de ser […] se não existisse a perspectiva da sobreapropriação capitalista.” (FERNANDES, 1981, p. 54). Logo, a dependência não é um acidente de percurso, mas uma articulação estrutural de dinamismos econômicos externos e internos, onde a estratégia do lado hegemônico é aceita pelo lado subordinado, garantindo condições desejadas para ambos os parceiros externos e internos. (FERNANDES, 1981, p. 54) Ou seja, temos uma burguesia parceira do imperialismo como elemento estruturante. Isso quer dizer que a apropriação repartida do excedente econômico não significa que o capitalismo dependente “falhou”, ao contrário, está respondendo muito bem ao padrão de acumulação de capital imperialista. Daí que a burguesia resultante é compósita, pois com a desintegração das oligarquias dá lugar a uma plutocracia, na qual os parceiros externos estão diretamente representados na burguesia interna. Ou seja, nossa burguesia já nasce conservadora (FERNANDES, 1981, p. 57-58). O capitalismo dependente se organiza e se expande reforçando a concentração de renda, o prestígio social e o poder, mas impondo limites para a classe trabalhadora no que se refere à participação econômica (ao restringir a universalização da própria condição operária), a participação sócio-cultural e política.
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Como as classes privilegiadas dominantes têm sua condição burguesa afetada diante das condições externas, são condicionadas a usar aquilo que conhecem historicamente como autoproteção, ou seja, as formas estamentais de cooperação e solidariedade, construindo critérios classificadores de mercado com base em elementos arcaicos de estratificação (FERNANDES, 1981, p. 69-70). Para as classes consideradas “baixas”, as frações que compõem a classe dominante também buscarão referenciais históricos, com base nos elementos étnico-raciais (aqui incluo também os patriarcais) e sócio-econômicos como limitadores de acesso ou como fatores de integração subordinada no mercado. Grandes segmentos de trabalhadores e trabalhadoras encontrarão limitações nas condições de venda da sua força de trabalho, o que gera impedimentos na mobilidade social na ordem capitalista, mantendo-se em condições estruturais restringidas de consumo e acesso a bens públicos. O padrão de mercantilização do trabalho que se forja a partir desses elementos estruturantes gera massas de trabalhadores que sofrem a apropriação capitalista pelo mercado e a expropriação capitalista quando ficam fora dele (correspondendo àquilo que Marx classificou como superpopulação relativa). Portanto, a apropriação externa permanente de parte substancial do excedente econômico, associada à ordem capitalista, com a revitalização de relações anacrônicas (incluindo aí o próprio padrão de mercantilização do trabalho e de reprodução de trabalhadores/as em padrões mínimos) cria condições para garantir a reprodução do capitalismo dependente, configurando uma condição de heteronomia permanente. (FERNANDES, 1981, p. 72) Florestan Fernandes em seu ensaio “A quem serve o Estado” (1977) já destacava que as funções assumidas pelo Estado no capitalismo monopolista são instrumentais para a iniciativa privada, a proteção dos lucros capitalistas e a consolidação de um sistema mundial desigual de poder do capital. Ou seja, a intervenção estatal na economia visa não só garantir a acumulação ampliada, mas intensificá-la e criar vários modos de proteger e manter a segurança do capital. Ora, se o capitalismo dependente, para Fernandes ([1975], 2005) se organiza e se expande reforçando a concentração de renda, do prestígio social e do poder, impondo limites para a classe trabalhadora no que se refere à participação econômica (ao restringir a universalização da própria condição operária), à participação sócio-cultural e política, o caráter dependente e subordinado do capitalismo brasileiro se faz a partir da pauperização permanente da maioria da população e da manutenção de padrões mínimos, o que leva à persistência dos traços autocráticos do Estado para manutenção da ordem e contenção das lutas que possam surgir para conquistar mais direitos. Nesse sentido, Fernandes ([1975] 2005) assume que os requisitos do padrão de desenvolvimento inerente ao capitalismo monopolista dependente não são só econômicos, necessitam também de estabilidade política e controle efetivo do poder do Estado por parte da burguesia nativa, haja vista a dupla expropriação do excedente econômico (pela burguesia externa e interna) e a sobre expropriação da classe trabalhadora, que requerem constantes ações de legitimação da ordem com a implementação de políticas públicas, porém dentro de padrões mínimos. Segundo Paiva, Rocha e Carraro (2010), as políticas sociais nas economias dependentes latinoamericanas sempre estiveram na disputa pelo excedente econômico historicamente expropriado das massas trabalhadoras superexploradas, por isso, tradicionalmente desenhadas com o objetivo de minimizar os efeitos da pobreza, funcionando na maioria das vezes com ações fragmentadas, emergenciais, pulverizadas e vinculadas a esquemas meritocráticos e particularistas de acesso ao direito social. Ainda assim, qualquer tipo de política social ou intervenção estatal regulatória que significasse melhoria nas condições de vida foram resultado de conquistas de árduas lutas de classe.
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Brettas (2017) sinaliza a superexploração e a herança colonial escravista, ao lado da modernização conservadora, que consolida o capitalismo monopolista no país, como bases estruturantes da política social brasileira, as quais plasmam o enfrentamento das expressões da “questão social” no Brasil, o qual ocorre “[…] permeado de contradições, de modo que a luta pela garantia de direitos se afirma no bojo da cultura do favor e do coronelismo […]” (BRETAS, 2017, p.58). Segundo a autora, “[…] o Estado (dependente) brasileiro combinou políticas sociais fragmentadas e corporativas – assentadas na tutela e no favor – com uma atuação por meio de grandes empresas estatais na produção de bens de capital e infraestrutura” (BRETTAS, 2017, p. 61). Tais especificidades históricas de nossa política social fizeram com que, distinta de outras formações sociais centrais, não tivéssemos uma rede estruturada de proteção social para ser desmontada quando o neoliberalismo se consolidou no Brasil como estratégia de reconfiguração do poder burguês imperialista e da burguesia interna para responder à crise que se arrolava desde os anos de 1980. Nesse sentido, o neoliberalismo inicia ajustes estruturais na economia e contrarreformas nas políticas sociais em meio a um processo muito inicial e limitado de implementação das conquistas legais inscritas na Carta de 1988 (BRETTAS, 2017). Diante da crise contemporânea do capital, as contrarreformas implementadas pelo Estado capitalista na transição do século XX para o XXI tiveram um ponto em comum: um acelerado processo de transferência dos custos da crise para os trabalhadores na forma de expropriação de direitos7, os quais nas economias dependentes se combinam com a superexploração da força de trabalho. Consideramos que as políticas neoliberais vêm sendo implementadas como parte da ofensiva das classes dominantes para restabelecimento das condições de acumulação de capital e de restauração do poder burguês (HARVEY, 2008). Particularmente nas economias dependentes, o movimento de integração recente à economia mundial compõe parte desse projeto de restauração neoliberal. Considerando ainda que houve reconfiguração das classes dominantes e recomposição intraburguesa – com o predomínio de frações rentistas financeirizadas com novas estruturas nas relações comerciais transnacionais, que passam a tensionar os Estados no sentido do aumento de sua dimensão coercitiva (violenta) em seus territórios nacionais, ao mesmo tempo em que ocorre o aumento correspondente da exigência da formação de consensos para levar adiante as contrarreformas necessárias à socialização dos custos da crise (HARVEY, 2008). Essas políticas neoliberais implicaram em expropriações de bens públicos e comuns, com a venda de empresas rentáveis a preços baixos com condições benéficas ao capital privado e, em muitos casos, estrangeiro, além do desmonte de prestações sociais de várias naturezas, o que para Osorio (2015) significa uma “[…] brutal desapropriação do salário real para milhões de trabalhadores” (OSORIO, 2015, p. 38). Nesse sentido, concordamos com Gouvêa (2020) para quem o neoliberalismo não é um fenômeno circunstancial, mas se constitui como modo de ser da acumulação capitalista imperialista que teve início como resposta à crise dos anos 1970, e se estende até os dias de hoje. Um sistema que se constitui a partir de três eixos, a saber: a flexibilização das relações e organização da produção; a utilização do capital fictício como elemento central da acumulação; e o aprofundamento das expropriações e da mercantilização em todas as dimensões de reprodução da vida (GOUVEA, 2020, p. 24). 7
“A expropriação de direitos sociais aqui é compreendida como processo de subtração de condições históricas de reprodução da força de trabalho, mediada pelo Estado Social, por meio da reapropriação, pelo capital, de parte do fundo público antes destinado aos direitos conquistados pela classe trabalhadora” (BOSCHETTI; TEIXEIRA, 2019, p. 81).
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Diante disso, é possível observar que, desde os anos 1990, o neoliberalismo aprofundou a condição de dependência, uma vez que incrementou a transferência de valor produzido nessas economias, ainda que apropriado e acumulado nas economias centrais. Entre essas formas de transferência estão os pagamentos de serviços da dívida (CARCANHOLO, 2018). Daí que, no centro do sistema imperialista se encontra a disputa por mecanismos de drenagem de riquezas das economias dependentes sob a forma financeira, tendo como um dos principais mecanismos a dívida pública. Nisso se encontra o sentido da disputa pelo fundo público. Uma disputa, diga-se logo, desigual e, muitas vezes, covarde entre capital e o conjunto da classe trabalhadora, haja vista que as instâncias parlamentares e de governo dos Estados nacionais determinam de antemão a supremacia dos interesses do capital pela política econômica e por mecanismos de ajuste fiscal sistemáticos, o que constrange a distribuição do fundo público para políticas e serviços sociais para satisfazer o capital financeiro e os demais segmentos do capital monopolista imperialista. Ademais, os recursos disponibilizados para atender as demandas mais essenciais das maiorias trabalhadoras acabam sendo capturados pela lógica da financeirização das políticas sociais, o que significa algo para além da privatização, que ocorre quando serviços e estruturas que interessam ao conjunto da sociedade transformam-se em capital a procura das melhores oportunidades de aplicação, das maiores taxas de lucro, das mais profundas medidas para extrair trabalho não pago (GRANEMANN, 2007). Tais processos mais recentes respondem à ordem monopólica contemporânea, a qual exige um novo papel do Estado diante das necessidades do capital financeiro e do caráter parasitário do capital imperialista em crise, que implicam numa apropriação singular de riqueza socialmente produzida: onde todo o esforço produtivo da força de trabalho é dilapidado para garantir as condições de lucratividade predatória do capital monopolizado, a saúde do capital financeiro e o bem-estar do fluxo de capitais. Diante disso, “[…] a forma política para cumprir tal papel não é a ordem democrática […]”, reatualizando assim “[…] as bases da autocracia burguesa naquilo que lhe é fundamental” (IASI, 2019, p.424). Os desdobramentos para a política social têm sido deletérios, não só no sentido da regressividade na garantia dos direitos e do princípio da universalidade, ou seja, cada vez menos expansão e qualificação dos serviços coletivos protetivos públicos em políticas estruturantes como saúde, educação, habitação, etc., transfigurando-se cada vez mais em um conjunto de ações focalizadas, imediatas e reduzidas de alívio da pobreza sob o mote da transferência de renda, conjugados com esquemas de ativação para o trabalho precário ou por meio de ações que gerem algum tipo de renda pela via da capacitação ou a partir do (micro)crédito (MAURIEL, 2018). Mas, e principalmente, a política social tem se tornado miríade de instrumentos úteis, senão necessários e estratégicos, ao padrão de reprodução das relações sociais de produção capitalista, por meio da regulação do valor da força de trabalho a baixo custo (BOSCHETTI, 2012), funcionando diretamente como espaço de garantia da rentabilidade do grande capital ao facilitar a estratégia da dívida pública (BRETTAS, 2013), transferindo recursos para Bancos para gestão de programas de transferência de renda (SILVA, 2012), participando do incremento da rotação do capital como aplicação do fundo público (BEHRING, 2012) sob variadas formas, a exemplo dos fundos de pensão (GRANEMANN, 2012). É sobre essa base que se ergue uma nova relação entre assistencialização das políticas sociais e ações punitivas de criminalização dos segmentos mais pauperizados da classe trabalhadora, configurando um novo momento do enfrentamento da “questão social” no país.
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3 Assistencialização conservadora e criminalização da pobreza: o enfrentamento da “questão social” sob a radicalização neoliberal Com a manifestação da crise da economia mundial que se abre a partir 2007/2008, o ambiente internacional favorável com taxas de juros baixas que se apresentou entre 2001 e 2007, o qual permitia aumento das reservas e da arrecadação estatais se findou (CARCANHOLO, 2018), levando consigo as poucas margens de manobra que admitiam a implementação de política sociais - ainda que pontuais e focalizadas que minimizassem os efeitos mais agudos da superexploração do trabalho e da miséria absoluta e promovessem melhoras na redistribuição de renda pela base. Nesse contexto de agravamento da crise na economia mundial, o governo brasileiro vem adotando, para socorrer o capital, o aprofundamento das expropriações de direitos, via medidas de endurecimento do ajuste fiscal, associado a novas contrarreformas nas políticas sociais. Isso ocorre porque as medidas anteriores se tornaram insuficientes para assegurar os recursos (seja pelos superávits primários, seja pela tributação historicamente regressiva) nos patamares necessários para remunerar o capital financeiro e transferir valor para as economias centrais. Concordamos com Castelo, Ribeiro e Rocamora (2020) que a “questão social”, para além da dimensão mais geral que se situa nas contradições existentes entre capital e trabalho na sociedade capitalista e nas lutas da classe trabalhadora como sujeito histórico, envolve um conjunto de particularidades históricas do desenvolvimento do capitalismo em cada formação social e região. No capitalismo dependente, as expressões da “questão social” assumem características mais agudas e dramáticas devido às particularidades das formações sociais dependentes, com desdobramentos para as vidas das famílias trabalhadoras que, quando administradas pelo Estado por meio de políticas assistenciais, as quais muitas vezes, pelo seu caráter focalizado, nem sequer possibilitam saídas da pobreza, e acabam por deflagrar medidas de encarceramento, tortura ou extermínio (KILDUFF; SILVA, 2019). Tal como Kilduff e Silva (2019), assume-se aqui que o crescimento organicamente articulado das ações assistenciais focalizadas e do aparato penal, ambos de forma mais punitiva, compõe parte da ofensiva das classes dominantes para “[…] responder à radicalização das manifestações contemporâneas da questão social, diretamente vinculadas ao aumento do desemprego estrutural e à perda de diretos sociais por parte da classe trabalhadora” (KILDUFF; SILVA, 2019, p.620). No que se refere à política de Assistência Social, desde o SUAS, esta veio adquirindo uma curiosa centralidade perante as demais políticas sociais (MOTA, 2013), focando sua intervenção na pauperização relativa e no controle de segmentos da classe trabalhadora, em especial aqueles considerados parte da superpopulação relativa estagnada (ou seja, que compõem segmentos com relações de trabalho informais e vínculos precários e instáveis) e os que compõem o pauperismo (BOSCHETTI, 2016). Por um lado, a ampliação da ponta assistencial significou um obscurecimento da diminuição das outras políticas que compõem a Seguridade (BOSCHETTI; TEIXEIRA; SALVADOR, 2013), ou mesmo a captura de sua lógica pela monetarização por parte da transferência de renda, pela financeirização por parte do acesso ao microcrédito para ações de microempreendedorismo associadas a novas formas de inserção produtiva e capacitação dos segmentos mais pobres para consumo. De outro lado, essas ações mostraram a importância da base material das ações assistenciais para reprodução psicofísica dos estratos mais pauperizados e desprotegidos da classe trabalhadora, justamente os grupos que mais crescem diante da reconfiguração das condições e relações de trabalho como resposta à crise capitalista.
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Daí que a Assistência Social na crise não aparece mais como política subsidiária ao trabalho ou às outras políticas sociais, mas vem ganhado a cena como importante política na garantia de rendimento para assegurar o consumo e a reprodução da força de trabalho e recursos para aqueles que não podem trabalhar. Na periferia do capitalismo, a tendência ao crescimento da ponta assistencial foi maior em função do eixo da transferência de renda, que ganha centralidade como uma das únicas saídas para a questão da precarização do trabalho, sendo convocada para ajudar a promover a expropriação e a reprodução ampliada do capital no momento em que se constitui como política pública (BOSCHETTI, 2016a). Tal tendência tem a ver com o contraditório processo de implementação da Assistência Social como política pública de Seguridade, que neste texto cabem apenas três ponderações consideradas essenciais. Primeiro, a Seguridade nunca foi implementada como projetada, nem do ponto de vista da articulação intersetorial, nem legal – leis orgânicas separadas, nem do ponto de vista da base orçamentária. Um segundo ponto é a implementação tardia da Assistência Social que, apesar da LOAS, veio mantendo a mesma base institucional (rede socioassistencial) após a Constituição de 1988 até a aprovação da PNAS em 2004. A inovação veio com o SUAS, mas com alterações importantes na concepção da política, já incorporando elementos que fogem do padrão da LOAS e hibridizam a noção de proteção presente no projeto Constitucional, aproximando a PNAS de uma política mais voltada para o enfrentamento da pobreza de forma mais direta e menos integrada ao projeto de Seguridade inicial8. E, um terceiro ponto, mas que não finda o conjunto de contradições que se apresentam com a política de Assistência tem a ver com a herança histórica conservadora que nunca foi totalmente superada. O passado, caracterizado pelo clientelismo, pelo patrimonialismo, pelo engessamento burocrático, pela cultura do favor, aparece reatualizado, potencializado. Ou seja, novas contradições se interpõem sob velhos dilemas históricos. Cabe ressaltar, contudo, que os arranjos assistenciais de alívio da pobreza não se expandem historicamente apenas mediante o aumento da pauperização, mas, sobretudo pelas várias formas de resistência popular que vão se configurando mediante os processos de espoliação da vida (MAURIEL, 2011). Nesse sentido, a expansão da política de assistência social, nesse momento histórico, respondeu a uma determinada estratégia para absorver e disciplinar trabalhadores/as precários/as e informais mediante a expansão do SUAS, por meio de sua estrutura institucional, programas, cadastros de dados, entre outros aspectos. Daí que a institucionalidade correspondente precisa ter eficiência e eficácia na gestão e regulação do trabalho, que se configura contraditoriamente como acesso a bens que reproduzem a vida material imediata dos/as trabalhadores/as e, ao mesmo tempo, exercem o controle e a vigilância sobre a vida de seus usuários - material e simbolicamente, pois não podemos esquecer a forte dimensão ideológica, moral e ética que a concessão de uma assistência vital pode ter sobre aqueles que têm a precariedade da vida diariamente sob ameaça. Porém, como o valor da força de trabalho e o seu preço, os salários, além da média social de produtividade nos ramos das provisões que compõem a cesta de bens socialmente reconhecidos como 8
A Lei no12.435, de 06 de junho de 2011 é um claro exemplo disso. Altera a LOAS em vários aspectos para adaptá-la ao novo padrão do SUAS, mas muda o objetivo da política. Ela deixa de ser um meio para alavancar vários direitos sociais ao lado de outras políticas (Conforme Art. 6º da Constituição de 1988) – caráter fundamental que a liga ao conceito de Seguridade Social - e o enfrentamento da pobreza era um deles, para, na nova Lei, passar a ter como objetivo principal, por meio do enfrentamento da pobreza, realizar a garantia de direitos. Isso dá uma outra conotação à natureza da política (MAURIEL, 2012).
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necessários à reprodução das/os trabalhadoras/es, também dependem das lutas de classes (MARX [1867], 2017)9, o Estado não utiliza apenas a expropriação de direitos e a reorganização de esquemas assistenciais para dirigir e controlar contingentes de trabalhadores/as a um novo patamar de organização mais precária de vida e de trabalho, mas tende a aumentar a coerção sobre as lutas e resistências à agudização da exploração, reivindicando a repressão por diversos mecanismos mais (ou menos) violentos. Se, durante a estratégia de conciliação de classe dos governos PT, sob o intitulado neodesenvolvimentismo, a assistência social compunha um rol de ações que buscavam reconduzir as políticas sociais em direção ao alívio da pobreza, naturalizando e individualizando a pobreza, ampliando a transferência de renda para responder aos processos mais urgentes de precarização da vida daqueles que vendem de forma precária sua força de trabalho, a partir do aprofundamento da crise de 2008, cujos impactos se viram mais visíveis com os movimentos de junho de 2013, novas medidas se tornaram necessárias para garantir patamares ainda “mais mínimos” para esses segmentos. Alguns dados sobre os recursos para a política de Assistência Social no âmbito nacional são ilustrativos. No que se refere ao corte de benefícios sociais, Salvador (2018) mostra que entre 2016 e 2018 houve cancelamento de benefícios sociais que somam o montante de 10 bilhões de reais (entre eles estão o Bolsa Família, o auxílio doença e auxílio por invalidez). Com isso, 5,7 milhões de pessoas perderam benefícios (dentre esses 5,2 milhões de pessoas perderam o Bolsa Família). Isso se soma aos mais de 1,1 milhão de famílias que foram desligadas do PBF entre maio de 2019 e janeiro de 2020 (NERI, 2020). Já dados de Boschetti e Teixeira (2019) indicam que, no âmbito do Ministério de Desenvolvimento Social e Agrário (MDSA), desde 2015, ocorre redução de recursos voltados para o Programa “Bolsa Família”. Entre 2014 e 2017, a redução alcançou 14,4%10. Já quanto aos serviços socioassistenciais, ocorreu uma nova e negativa tendência de subtração de recursos, o que coloca em xeque um dos eixos estruturantes do SUAS, a rede de atendimento. Os valores transferidos para os serviços tiveram uma diminuição de 38,6%, com queda de R$ 2,6 bilhões em 2012 para R$ 1,6 bilhão em 2018. Mesmo se incluirmos o valor da ação “Apoio Financeiro pela União aos Entes Federativos que recebem o Fundo de Participação dos Municípios (FPM)” na categoria serviços socioassistenciais, este saltaria de R$ 1,6 bilhão para R$ 2,0 bilhões. Ainda assim, o montante de gastos com serviços seria inferior ao do ano de 2012. Por outro lado, no ano de 2017, o programa Criança Feliz instituído pelo Governo Temer, consumiu R$ 186,4 milhões, valor superior ao montante destinado a todos os programas, projetos e ações de gestão da Assistência no âmbito do Fundo Nacional de Assistência Social, que equivaleu a R$ 156,4 milhões. E, em 2018, o Programa Criança Feliz teve aumento de 21,8%, apesar do movimento de congelamento de gastos (SILVA, 2020). 9
Ver especialmente Livro I, o capítulo IV item 3, que trata da compra e venda da força de trabalho e capítulo VIII, sobre a jornada de trabalho. 10 Não é tarefa desse texto discutir o papel da transferência de renda diante das expropriações de direitos, seja na regulação desses segmentos de trabalhadores precários ou no rebaixamento do valor da força de trabalho. Contudo, cabe alertar para o redirecionamento da transferência de renda em direção à remuneração de setores ativos informais e precários da classe trabalhadora e do reforço da tendência ao uso da renda mínima como estratégia política de “gestão da pobreza” por parte dos governos autoritários no contexto de pandemia do Novo Coronavírus. Ver texto BEHRING, Elaine; BOSCHETTI, Ivanete. Transferência de renda, o teto dos gastos e oportunismo: para uma crítica de esquerda. Disponível em: https://esquerdaonline.com.br/2020/08/18/transferencia-de-renda-teto-de-gastos-e-oportunismo-para-uma-critica-deesquerda/ . Acesso em: 20 ago. 2020.
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O primeiro ano de gestão do governo Bolsonaro também mostrou sérios retrocessos. Além de instituir um programa conservador fora da institucionalidade do SUAS – o Programa Pátria Voluntária, conduzido pela primeira-dama – trouxe uma medida regressiva em direção ao aprofundamento do desfinanciamento: a Portaria nº 2.362/ de 20/12/2019 do Ministério da Cidadania, que, ao limitar o repasse de recursos fundo a fundo ao exercício financeiro vigente - conforme a disponibilidade financeira - torna praticamente inviável a manutenção dos serviços do SUAS em muitos municípios, principalmente os de menor porte (SILVA, 2020). Nesse sentido, a assistência passa a ser reorganizada para se inserir em uma nova e complexa estratégia de recomposição de poder dominante para reordenar a oferta dos benefícios e hierarquizar o patamar dos seus valores, os quais já historicamente sempre foram mantidos abaixo dos salários mais ínfimos do mercado. Isso não foi realizado apenas com a mudança nos valores dos benefícios ou no corte dos serviços ofertados, mas se deu associado a um amplo conjunto de contrarreformas e expropriação de direitos, cujos critérios utilizados recuperaram fatores estamentais de estratificação (cf. FERNANDES, 1981) em que determinados grupos como mulheres, negros, negras, populações originárias, imigrantes são cooptados para servir de mão de obra mais barata, reiterando padrões racistas, patriarcais e conservadores de normatividade social incluindo as ações e os programas assistenciais. Segundo Almeida (2020), isso “[…] cria uma estratificação social que se reverte em inúmeras desvantagens políticas e econômicas […], vivenciadas na forma de pobreza, salários mais baixos, menor acesso aos sistemas de saúde e educação, maiores chances de encarceramento e morte.” (ALMEIDA, 2020, p. 3). Quando amplos segmentos de trabalhadores/as mal pagos/as são necessários, como na fase atual de reconfiguração das relações de trabalho diante da crise contemporânea do capital, os esquemas assistenciais não só se retraem, mas seguem associados a reformas trabalhistas extremamente regressivas, necessárias para a diminuição dos custos de contratação e demissão e a flexibilidade da jornada de trabalho, criando uma tendência crescente das horas extras trabalhadas não serem socialmente reconhecidas, e, por isso, não serem remuneradas. A isso se soma um mercado de trabalho historicamente precário, informal, em que prevalece uma inserção laboral intermitente, instável e descontínua, e, em todos os casos, os trabalhadores possuem quase nenhuma ou não possuem proteção social. Cabe inferir que o fundamento do ultraneoliberalismo é a ultraprecarização das condições de vida e trabalho de trabalhadoras e trabalhadores. Silveira Junior (2019) nos ajuda a ilustrar essas questões ao situar que recentemente houve uma importante recomposição da superpopulação relativa, com vistas a alavancar as taxas de mais valia, tanto a partir de uma escalada exponencial do desemprego como da informalidade. Segundo o autor, a taxa média de desemprego anual dobrou no Brasil em 2017 (12,7%), em relação a 2014 (6,8%) - segundo Pnad Contínua -, o que indica concretamente que existem 13,2 milhões de pessoas sem emprego, um salto de 96,2% desde 2014. Para Proni e Gomes (2015), como desdobramento da crise, já em 2015, à medida que a recessão econômica passou a afetar diretamente o mercado de trabalho nacional, aumentaram a taxa de desemprego e a porcentagem de ocupações informais, e ao mesmo tempo caiu o rendimento médio dos trabalhadores. Porém, isso não afetou de forma homogênea o conjunto de trabalhadores/as: o desemprego aberto aumentou mais para as mulheres do que para os homens - a taxa de desocupação masculina passou de 4,1% para 6,6%, enquanto a taxa feminina passou de 5,8% para 8,6% entre julho de 2014 e julho de
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2015. E, em 2010, a taxa de desemprego total dos trabalhadores negros mantinha-se superior à dos não negros (13,8% contra 10,2%), mas a taxa para mulheres negras era o dobro da taxa para homens não negros (16,8% contra 8,1%). Outro elemento revelador é a proporção de ocupados em “situações de trabalho vulneráveis” 11 , que é bem maior entre os negros do que entre os não negros, sendo particularmente elevada entre as mulheres negras (PRONI; GOMES, 2015, p. 137). O principal resultado tem sido a reatualização de velhas formas de relações de trabalho enraizadas nos sistemas de produção tradicionais ou pré-capitalistas – múltiplos empregos dentro da mesma família, sem falarmos na persistência do trabalho infantil, em situações análogas ao escravismo em diversos setores da economia, a crescente expansão do endividamento por crédito, tendência ao prolongamento das jornadas de trabalho e condicionando a um aumento da mais-valia absoluta (VALENCIA, 2010). Diante disso, infere-se que a política de assistência social participa de um novo padrão de enfrentamento da “questão social” no Brasil, o qual, segundo Castelo (2014), tem início com a chegada dos efeitos da crise de 2008 no país, assumindo como marco as manifestações de junho de 2013, que mostram sinal do esgotamento da estratégia de conciliação de classe12. Esse novo padrão de intervenção na questão social se faz valer de elementos consensuais e coercitivos simultaneamente, com o crescente aumento do uso dos aparatos policiais e, mais recentemente, militares. Nas palavras de Castelo: “Mantidas as velhas estruturas coercitivas, o Estado pode retomá-las no atual momento como uma das formas de manter a ordem diante da crise conjuntural […] reatualizando antigos métodos e erigindo novas estruturas” (CASTELO, 2014, p. 49). Ora, o ciclo de expropriações de direitos que se apresenta a partir do fim dos governos PT, por ser muito mais agressivo simbólica e materialmente, tende a ser levado por uma expansão do caráter autoritário, seja por meios econômicos diretos (aumento da exploração via reformas trabalhistas), seja por meios extraeconômicos (mediante a criação de legislações, medidas e políticas que ampliam os mecanismos repressivos, punitivos e de controle do Estado) (GONÇALVES, 2019). Kilduff e Silva (2019, p. 624) alertam para o crescimento ininterrupto do encarceramento no Brasil que desde o início do neoliberalismo, com aumentos vertiginosos: em 1995 o número de pessoas privadas de liberdade somavam cerca de 148 mil, chegando a aproximadamente 726 mil em 2016, alcançando o patamar de 812 mil em 2019. É fundamental alertar para o perfil da população carcerária, majoritariamente composta de jovens, com baixa escolaridade, desempregados/as e moradores/as das periferias das grandes cidades. (KILDUFF; SILVA, 2019). Outro fator interessante de observar no período recente é o crescimento da população carcerária feminina. Segundo estudos de Kilduff (2020) – com base no relatório INFOPEN/Mulheres (2018), o número de mulheres privadas de liberdade aumentou de 5.601 para 42 mil entre 2000 e 2016, ano em que o Brasil passou a ocupar o quarto lugar em quantidade de mulheres presas no mundo. A pesquisa da autora chama atenção para o perfil das mulheres encarceradas: 80% são mães, jovens (50%), solteiras (57%), negras (68%), com baixa escolaridade (50% com ensino fundamental incompleto), 11
Trabalhador assalariado sem a carteira assinada, autônomo que trabalha para o público, trabalhador familiar não remunerado e trabalhador doméstico, segundo definição do DIEESE. 12 Para o autor o novo padrão de intervenção sobre a questão social no qual se intensificam a criminalização da pobreza e dos movimentos sociais, levando ao que o autor chama de “militarização da questão social”, veio se forjando desde o final dos anos 1990 diante do enfraquecimento do neoliberalismo na América Latina e do avanço das forças populares na região. Com o apoio do governo dos EUA, várias iniciativas contrarrevolucionárias militarizadas começaram a se formar na Venezuela, Bolívia, Colômbia, entre outras iniciativas, mas sempre com apoio dos EUA. Além do aumento de gastos com investimentos militares a partir dos anos 2000 em vários países da região, sendo liderado pelo Brasil. (CASTELO, 2009)
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desempregadas ou inseridas em empregos precarizados, em prisão preventiva (32%) ou condenadas principalmente a penas entre 4 e 8 anos (35%), em regime fechado (45%) (KILDUFF, 2020). Além do aumento do encarceramento, o extermínio também é parte estratégica do enfrentamento histórico da “questão social” no capitalismo dependente brasileiro. Entre 1980 e 2010, o Brasil registrou 1.091.125 mortos por homicídio, uma média de 4 vidas retiradas por hora, sinalizando um aumento de 124% nesse período (BRITO; VILLAR; BLANK, 2013, p. 215). Só em 2017 ocorreram 65.602 homicídios, um número recorde por ano, segundo o Atlas de Violência (IPEA, 2019), revelando um aumento de 6,7% com relação a 2016 e de 37,5% em relação a 2007. Dentre esses casos ocorridos em 2017, 75,5% das vítimas eram pessoas negras. Em 2017, 4.936 mulheres foram assassinadas, o maior número em dez anos, o que significa 13 mulheres mortas por dia. De acordo com o Atlas de Violência do IPEA (2019), entre 2012 e 2017, o número de homicídios fora da residência caiu em 3,3%, enquanto os homicídios dentro de casa cresceram em 17,1%. Desses homicídios, observa-se que o número de mulheres mortas por arma de fogo dentro de sua residência cresceu 28,7%, enquanto o número de mulheres mortas por arma de fogo fora de casa foi de 6,2%, podendo significar um aumento dos casos de feminicídio. O documento também revela que entre 2007 e 2017 a taxa de homicídio entre mulheres negras cresceu muito mais (29,9%) do que entre mulheres não negras (4,5%). Em 2017, 445 lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBTQIA+s) foram mortos em crimes motivados por homofobia. Os dados de 2017 representam um aumento de 30% em relação a 2016, quando foram registrados 343 casos. Em 2015 foram 319 LGBTs assassinados, contra 320 em 2014 e 314 em 2013. O saldo de crimes violentos contra essa população em 2017 é três vezes maior do que o observado há 10 anos, quando foram identificados 142 casos (VALENTE, 2018). Essa série histórica mostra que os homicídios não são distribuídos igualmente pelo país, mas possuem critérios de seletividade econômicos, étnico-raciais e territoriais. Ou seja, o racismo, o machismo e a LGBTfobia matam diariamente pela violência do Estado, por meio de seus instrumentos policiais, prisionais, mas também pelo aumento da violência nas relações cotidianas. Tais estratégias políticas por parte do Estado que declaram guerra aos segmentos mais pauperizados, precarizados e oprimidos da classe trabalhadora pretendem impor padrões morais conservadores por meio de medidas repressivas e de regulação armada, com fortes doses de militarismo, que enaltecem o uso da violência, mostrando que o fim da ditadura militar não foi suficiente para assegurar o fim da influência de perspectivas militares em várias dimensões da vida social.
4 Considerações finais A intervenção repressiva do Estado em nome da segurança, mas que, na verdade, serve como carapaça ideológica para conter as resistências sociais diante do esgarçamento provocado pela gestão ultraneoliberal do capitalismo, precisa de uma forma de governo autocrática, que suprima cada vez mais os canais democráticos, pois a captura do fundo público pelo capital financeiro, via expropriações, precisa estar ilesa de participação popular (ALMEIDA, 2020). Diante disso, o “[…] minimalismo assistencialista dá o braço à repressão extraeconômica às camadas pauperizadas […]” (NETTO, 2010, p. 30), encontrando uma nova articulação orgânica entre a repressão à classe trabalhadora e as formas assistenciais conservadoras, as quais parecem constituir um eixo
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estruturante das políticas sociais dirigidas ao enfrentamento da “questão social” no capitalismo dependente brasileiro, medidas reeditadas e aprofundadas diante da crise que atravessamos desde 2008. Sob essa perspectiva, conclui-se que as principais ações conduzidas pela ofensiva reacionária da burguesia que se encontra em curso apontam uma nova fase de assistencialização conservadora, mediante o aprofundamento de recursos aos padrões de primeiro-damismo, cultura do favor, meritocracia, aliados à ultrafocalização, à redução dos recursos e reforço de princípios gerencialistas, privatistas e individualistas na gestão e organização da política, para fazer reduzir ainda mais os patamares de proteção, porém sem deixar de fazer a regulação, o controle e a vigilância da força de trabalho com ações cada vez mais violentas e genocidas, materializadas no aumento do encarceramento da população negra e mais pauperizada. Tais medidas assistencialistas e conservadoras, associadas a tendências repressoras, encontram espaço favorável para seu cultivo e fortalecimento a partir das respostas dadas à crise de 2008, especialmente nas medidas editadas no contexto brasileiro com o golpe de 2016, em que se intensificam discursos de eugenia social, exacerbação do racismo, machismo, xenofobia, homofobia e LGBTfobia, desprezo pela ciência, culto ao obscurantismo e reforço do fundamentalismo religioso.
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Submetido em: 31 ago. 2020 Aceito em: 24 out. 2020
DOI: 10.19180/1809-2667.v22nEspecial2020p727-747
Pandemia, crise e expropriações: auxílio emergencial e contradições da focalização Pandemic, crisis and expropriations: emergency aid and contradictions in targeting Pandemia, crisis y expropiaciones: subsidio de emergencia y contradicciones en la focalización Mossicleia Mendes Silva http://orcid.org/0000-0002-1943-4795 Doutora em Serviço Social pelo Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2018). Professora Adjunta na Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, lotada no Departamento de Política Social e Serviço Social aplicado – Rio de Janeiro/RJ - Brasil. E-mail: mossi_c@yahoo.com.br.
Resumo O presente artigo tem como objetivo trazer elementos para pensar a crise sanitária a partir da crítica da crise capitalista, das expropriações como processo permanente no modo de produção capitalista e sua íntima relação com as contradições deflagradas com a pandemia da Covid-19. Nesta direção, intenta também trazer uma síntese do auxílio emergencial, problematizando os limites colocados pela focalização das políticas sociais, como tendência à desproteção social. Trata-se de ensaio com revisão de bibliografia, cujo método de análise se assenta no materialismo histórico e dialético. Assim, adotamos a crítica marxista para análise da crise capitalista e compreensão dos desdobramentos da crise sanitária, problematizando os processos recentes de expropriação de direitos sociais. A discussão também está assentada numa compreensão da política social como componente contraditório da ação do Estado para reprodução da classe trabalhadora, procurando trazer para o texto uma breve retomada sobre a incidência da via focalista na política social brasileira e os paradoxos que ela repõe em um cenário de destruição do já frágil sistema de proteção social brasileiro. Palavras-chave: Pandemia. Crise. Expropriações. Auxílio Emergencial.
Abstract This article aims to bring elements to the discussion of the health crisis based on the criticism of the capitalist crisis, of expropriations as a permanent process in the capitalist production mode, and its intimate relationship with the contradictions unleashed by the Covid-19 Pandemic. It also presents a synthesis of emergency aid and discusses the limitation placed by the focus of social policies as a tendency to the lack of social protection. This is an essay with a literature review based on historical and dialectical materialism. Thus, we adopted Marxist criticism to analyze the crisis and understand the consequences of the health crisis, investigating recent processes of expropriation of social rights. The discussion is also based on an understanding of social policy as a contradictory component of the State action for the reproduction of the working class, aiming at presenting a brief review of the incidence of the focalist path in the Brazilian social policy, as well as the paradoxes that it restores in a scenario of destruction of the fragile Brazilian social protection system. Keywords: Pandemic. Crisis. Expropriations. Emergency aid.
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Resumen Este artículo tiene como objetivo aportar elementos para pensar la crisis de salud desde la crítica a la crisis capitalista, a las expropiaciones como un proceso permanente en el modo de producción capitalista y su íntima relación con las contradicciones desatadas con la pandemia de Covid-19. En esta dirección, también se pretende traer una síntesis de los subsidios de emergencia, cuestionando los límites que pone el enfoque de las políticas sociales, como tendencia a la desprotección social. Se trata de un ensayo con revisión bibliográfica, cuyo método de análisis se basa en el materialismo histórico y dialéctico. Así, adoptamos la crítica marxista para analizar la crisis capitalista y comprender las consecuencias de la crisis de salud, problematizando los recientes procesos de expropiación de derechos sociales. La discusión también se fundamenta en la comprensión de la política social como componente contradictorio de la acción del Estado para la reproducción de la clase obrera, buscando traer al texto una breve reanudación de la incidencia del camino focalista en la política social brasileña y las paradojas que restituye en un escenario de destrucción del ya frágil sistema de protección social brasileño. Palabras clave: Pandemia. Crisis. Expropiaciones. Subsidio de Emergencia.
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Pandemia, crise e expropriações: auxílio emergencial e contradições da focalização Mossicleia Mendes Silva
1 Introdução O presente artigo procura trazer elementos para pensar a crise sanitária a partir da crítica da crise capitalista, das expropriações como processo permanente no modo de produção capitalista e sua íntima relação com as contradições deflagradas com a pandemia da Covid-19. E, neste sentido, trazer uma síntese do auxílio emergencial, problematizando os limites colocados pela focalização das políticas sociais, como tendência à desproteção social. Na primeira seção, trazemos aspectos gerais da Pandemia e algumas reflexões, assentadas na crítica marxista da economia política, para explicitar a dinâmica da crise do capital como crise estrutural, assumindo como argumento central que a crise sanitária, ainda que a intensifique, não é sua causa precípua. Em um segundo momento, optamos por uma discussão mais teórica acerca das expropriações como opção de método para fundamentar a abordagem sobre a necessidade de ampliação da focalização para segmentos de trabalhadores, cujos direitos vêm sendo expropriados recentemente ou que nunca foram alcançados pela proteção social trabalhista. Por fim, uma última parte traz a explanação acerca do auxílio emergencial como principal medida do governo Bolsonaro para intervenção sobre as necessidades dos trabalhadores que, em função das medidas de contingenciamento, ficaram impossibilitados de trabalhar e auferir algum rendimento, refletindo sobre os limites e contradições da focalização. O método que orientou este ensaio foi o materialismo histórico-dialético, recorrendo a categorias de análise da obra marxiana e de autores da tradição marxista, das quais destacamos: capital, classe trabalhadora, desenvolvimento capitalista, crise, expropriação. Também recorremos a conceitos fundamentais para os objetivos aqui delimitados como Estado, política social e proteção social. A abordagem deste trabalho tem caráter ensaísta, com revisão bibliográfica e documental (fonte secundária).
2 Pandemia da Covid-19: crise do capital e crise sanitária Ainda que notícias da grande mídia apontem para melhorias nos chamados “indicadores de confiabilidade” na economia brasileira, parece estar suficientemente claro que o mundo enfrentará uma grande recessão. A narrativa de intelectuais orgânicos, agências multilaterais e da mídia de massas é que “o mercado” entrou em colapso em função da Pandemia do novo coronavírus e sua doença, a Covid-19. Embora seja verdade que a paralização das atividades econômicas produtivas, em função das medidas de contingenciamento, tenha jogado água no moinho de contradições do capital, contribuindo com a irrupção da crise, não é a pandemia a causa precípua dela. O primeiro caso do novo coronavírus identificado na China, de acordo com a Organização Mundial da Saúde, teria ocorrido em 08 de dezembro. Mesmo com as drásticas medidas de contenção da doença – inclusive com controle e rastreamento das pessoas – em pouco tempo a doença se disseminou e não tardou para ser classificada como uma pandemia e para que a OMS decretasse Situação de Emergência em Saúde Pública de Importância Internacional, em 30 de janeiro de 2020. A confirmação do primeiro caso da doença no Brasil se deu em fevereiro. Considerando o potencial de contaminação, os efeitos deletérios sobre os sistemas de saúde, produção de bens e serviços e na vida das pessoas de um modo geral, instituições sanitárias, universidades, grupos de pesquisas e
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pesquisadores renomados apontavam a gravidade da situação e a necessidade da adoção de medidas de enfrentamento à pandemia. No dia 20 de março o Congresso Nacional aprovou, por unanimidade, “estado de calamidade pública” e, sequencialmente, vários estados passaram a adotar medidas de isolamento social. O governo federal, sobretudo na pessoa do presidente da República, adotou uma postura negacionista, explicitando em vários momentos uma opinião anticientífica e irracional, procurando disseminar a ideia de que a doença não era grave. É de conhecimento generalizado sua afirmação irresponsável de que se tratava apenas de “uma gripezinha”. Sob essa postura, calcada no obscurantismo, o governo Federal se mostrou extremamente negligente e ineficiente no enfrentamento à pandemia, passando longe do que se esperava de um governo minimamente sério. Além de não conseguir elaborar e implementar um plano nacional, liderando e articulando as ações dos estados para essa empreitada, o governo Federal se emaranhou entre troca de ministros, escândalos políticos e inoperância para reorganizar o sistema de saúde e medidas de proteção social aos brasileiros; Rodrigues e Stampa (2020, p. 89) chamam atenção para o fato de que o governo Bolsonaro – em forte consonância com sua postura subserviente aos EUA – não só convergiu com os argumentos chulos de Donald Trump, como revelou “indícios adicionais do alinhamento automático do Brasil à tomada de decisões estratégicas nos EUA”. Na esteira da conduta negacionista do governo e da sua obsessiva defesa da cloroquina como panaceia para enfrentar a Covid-19, os grupos que compõem a base de apoio político bolsonarista, colocam em planos de falsa concorrência a garantia da saúde das pessoas ou a “saúde” da economia. Além disso, estes grupos também passaram a empregar a mesma estratégia de minimizar a gravidade da doença e seus efeitos sobre a vida e salubridade das pessoas, com feitos de notória irresponsabilidade coletiva e delírios irracionalistas, que incluíam e incluem: organização de passeatas, manifestações antidemocráticas e contra STF, aglomerações em frente ao Planalto e em vários espaços do país, agressões à impressa, banalização do uso das máscaras e das mortes, defesa ferrenha da cloroquina e as já conhecidas disseminações de fake news. Caponi (2020) chama atenção para o fato de que a crescente aceitação social do negacionismo científico em conjunto com a desconsideração de argumentos racionais em diversos âmbitos, que vão desde o terraplanismo até a condenação da suposta “ideologia de gênero”, passando pelo criacionismo e pela rejeição às ciências humanas e sociais, já eram adotados e propagado por Bolsonaro desde sua campanha, assumindo cada vez mais presença em seu governo e no modo como ele mobiliza suas bases de apoio. Particularmente, no que se refere à pandemia, esse negacionismo se traduz na aceitação de intervenções sem validação científica, como a divulgação e exaltação de uma terapêutica de eficácia não comprovada e com efeitos colaterais extremamente sérios como a cloroquina, ou a defesa de uma estratégia de intervenção que contraria a posição da Organização Mundial de Saúde (OMS), denominada por Bolsonaro como “isolamento vertical”. Trata-se de fato de duas estratégias solidárias. Pois, existindo uma “bala mágica” que permita um suposto tratamento eficaz, não haveria motivos para continuar mantendo a quarentena (CAPONI, 2020, p. 211).
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O cenário que vivenciamos nestes cinco meses é de terra arrasada. A conjugação da crise sanitária com o desastre social, já promovido pelo neoliberalismo dos últimos anos e sua radicalização sob o atual governo de extrema direita, que envolve o país em crises políticas e institucionais, adensa as desigualdades sociais e aprofunda o hiato entre as diferentes classes sociais, uma vez que a pandemia não é vivenciada da mesma forma por todos os sujeitos. Ela é determinada – em primeira instância – pela localização dos sujeitos no âmbito das relações produtivas. Em 24 de agosto já são mais de 3 milhões e 600 mil contaminados e mais de 100 mil mortes.1 Enquanto isso, o governo flexibiliza as medidas de isolamento social – que nunca foram realmente efetivas – e procura catalisar “um novo normal”, para que a engrenagem da “economia” não pare. Sob o argumento de que a manutenção das medidas de isolamento e a paralização das atividades consideradas essenciais atravancam a produção econômica e podem levar o país à quebra. O governo Bolsonaro, principalmente através do ministro da economia ultraliberal Paulo Guedes, ainda que adotando a cartilha neoliberal mais radical, não alçou alavancar a economia como pretendiam, mas a pandemia veio como que “a calhar” com a necessidade de apontar um vilão para culpar pela recessão econômica enfrentada pelo país. Aliás, essa é a tônica do discurso oficial mundo a fora, conforme indicamos no início. Mas de fato, pode-se dizer que o novo Coronavírus tem a responsabilidade sobre o atual cenário de crise? Não é novidade que as crises do capitalismo sejam explicadas, pela economia política burguesa, como resultantes de causas externas ao capitalismo, seja por conta do intervencionismo demasiado do Estado na economia, pela falta de moralidade de alguns investidores despudorados, pelo excesso de endividamento das famílias, pela fala de liberdade ou pelas barreiras criadas por legislações restritivas que impediriam o fluxo “normal” de capitais. Enfim, sempre é amplo o leque de fatores que podem ser identificados como culpados, exceto o próprio capital. São sempre abalos externos que desestruturam os automatismos de mercado – que levariam irremediavelmente ao equilíbrio constante. No entanto, desde uma perspectiva da crítica da economia política, assentada no marxismo, podemos evidenciar que as crises são componentes inerentes ao modo e funcionamento do capitalismo. Superando uma visão estanque da crise, essa compreensão demonstra que a forma social do capital é viabilizadora de crises. No capitalismo contemporâneo, é na década de 1970 que localizamos eclosão da crise estrutural do capital que se arrasta até os dias atuais, com momentos curtos de recuperação tímida das taxas de acumulação. A ofensiva neoliberal desencadeada a partir de então não pode deixar de ser pensada como resposta do capitalismo mundializado – através de suas personificações – aos movimentos que abalaram a estrutura de organização da produção que sedimentava o regime de acumulação dos 30 anos pós-Segunda Guerra Mundial. A financeirização da economia, com a consequente transformação de países dependentes, como o Brasil, em plataforma de valorização financeira (PAULANI, 2008), foi o mecanismo central para retomada do crescimento das taxas de lucros. O rápido suspiro do capitalismo global no início dos anos 2000 esteve assentado nas estratégias de produção do regime de acumulação flexível, tendo como base a expansão do capital financeiro e aumento estrondoso do capital fictício. Operando mediante fusões cada vez mais orgânicas entre capital industrial e capital portador de juros, o mainstream do grande capital mundial financeirizado busca extrair mais valor de produções futuras e, através de vários mecanismos de investimentos e artimanhas, quer realizar a façanha de fazer dinheiro sem passar pela mediação do trabalho produtivo. 1
Disponível em: https://bigdata-covid19.icict.fiocruz.br/. Acesso em: 24 ago. 2020.
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A eclosão da crise do sistema financeiro internacional, em 2008, tinha como epicentro os Estados Unidos, começando pelo mercado imobiliário, atingindo bancos e as movimentações das Bolsas de Valores de todo o mundo. Colocou o mundo capitalista no cerne de uma “profunda turbulência” políticoeconômica, jogando o regime de acumulação flexível no labirinto que ele mesmo criou. Naquele contexto, a “culpa da crise” era localizada na falta de regulamentação das transações financeiras e na falha de caráter e moral dos operadores deste ramo. Como se percebe, o regime de acumulação com dominância da valorização financeira tem a formação de crises, ocasionadas pela recorrente geração de bolhas de ativos, como sua característica mais marcante. Ele é por isso estruturalmente frágil. Ao longo dos últimos trinta anos, o poder detido pela riqueza financeira foi moldando as instituições de modo a criar um modo de regulação compatível com um processo de reprodução capitalista sob seu comando. Completado esse processo, o sistema encontra-se no auge de sua fragilidade (PAULANI, 2010, p. 8).
Compreendemos, no entanto, que não se trata disso, ainda que fraudes, manipulações, enriquecimento ilícito, entre outros mecanismos também componham as artimanhas dos operadores desses mercados (HARVEY, 2004a). Tratava-se, na verdade, de uma manifestação parcial da crise estrutural do capital, que conforme Mészáros (2011) tem como características centrais: seu caráter global e não setorial, seu alcance mundial, sua extensão temporal. A crise que ora vivenciamos não é outra coisa senão mais uma manifestação acirrada da crise estrutural do capitalismo, que em função das medidas de isolamento e contingenciamento da Pandemia foi possivelmente precipitada e, com certeza, aprofundada. A fragilidade do capitalismo financeirizado fica patente também no contexto de eclosão da pandemia, que coloca óbices ao circuito de valorização do capital. Os circuit breaker nas principais Bolsas de Valores no mundo, sobretudo em março, são uma amostra da tênue rede de negociatas que sustenta o capitalismo na cena contemporânea. Quando a “imprensa especializada” fala em “mercados nervosos” eles procuram camuflar o que de fato abala o sistema nervoso central do capital: a imprescindibilidade da produção de valores e mais valor, que somente pode vir da exploração do trabalho vivo. Na medida em que os trabalhadores são impossibilitados de acessar espaços de trabalho e produzir, a espinha dorsal do modo de produção capitalista sofre abalos. Conforme atestava Marx (1985), na seção I do Livro II de O Capital, a reprodução ampliada do capital ou acumulação acontece somente se o processo de rotação do capital resultar em valor-capital acrescido. O giro global que o capital realiza – circulação-produção-circulação – exige mudanças de formas – de capital monetário para capital produtivo e para capital-mercadoria – que ocorrem sucessiva e simultaneamente durante todo o processo. Quanto menor o tempo de rotação do capital, maior probabilidade de auferir taxas mais ampliadas de acumulação. Obstáculos de naturezas variadas em quaisquer dos momentos do giro global do capital vai criar sérios problemas para os capitalistas. A paralisação da produção de mercadorias e serviços em função das medidas de isolamento social provoca quebras nas cadeias produtivas e embargos à movimentação e mudança de forma do capital. Nunca é demais lembrar que o valor produzido precisa ser realizado no consumo, no âmbito da circulação. Os abalos nas Bolsas de Valores quando a Europa chegava no pico da pandemia não estão desvinculados da compreensão de que o sistema financeiro somente resiste parasitando o capital produtivo e o mais valor, presente e futuro, e este somente se realiza sob exploração do trabalho vivo.
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De acordo com Lapavitsas (2020), desde a eclosão da crise de 2007-2009 – que pôs fim a era de ouro das finanças – a economia mundial vem sendo marcada por baixo crescimento, lucratividade insuficiente, o crescimento da produtividade baixo e os investimentos não mostram nenhum dinamismo. Por outro lado, as finanças também estavam com problemas, expressos na menor rentabilidade e na inexistência do dinamismo extraordinário do período anterior (parte dos anos 1990 e início dos anos 2000). Nessa direção, “se a crise historicamente sem precedentes de 2007–2009 marcou o auge da financeirização, a nova crise do coronavírus cristaliza sua deterioração” (LAPAVITSAS, 2020, p. 153).
3 Expropriação de direitos e intensificação da tragédia sanitária Conforme sinalizamos no item anterior, a irrupção da crise sanitária no Brasil aprofundou a crise capitalista que se mostrava resistente mesmo às duras investidas da ortodoxia neoliberal do governo Bolsonaro. Acoplada ao avanço do conservadorismo, a nova onda neoliberalizante hiperautoritária deste governo avança na esteira das expropriações radicais contemporâneas, abocanhando parte dos ganhos da força de trabalho para garantia da reprodução ampliada do capital. Essa perigosa fase que nós atravessamos está marcada por um novo neoliberalismo que canaliza e explora os ressentimentos, as frustrações, o ódio, o medo de diferentes frações da população, dos pobres e dos ricos, para direcioná-los contra bodes expiatórios. Esses últimos podem ser imigrantes, pessoas consideradas preguiçosas, vagabundas, parasitárias, as minorias sexuais ou étnicas, partidos ou líderes políticos de esquerda, pouco importa (LAVAL, 2018).
De acordo com Laval (2018), vive-se uma crise global das democracias liberais em todo o mundo e é nesse contexto que países como o Brasil – de redemocratização recente – tornam-se mais expostos às mudanças hiperautoritárias neoliberais. Embora o conservadorismo não seja algo distante da nossa história, ao contrário compõe a nossa formação social, assim como a cultura antidemocrática, sua exponenciação, no período recente reflete a radicalização da luta de classes no capitalismo dependente. Com a erosão das bases do projeto político de conciliação de classes petista, ganhou espaço uma acomodação medonha em torno das nossas piores marcas estruturais: a superexploração do trabalho, os vetores antidemocráticos, os preconceitos e a discriminação, além de aprofundar processos de desigualdade social, pobreza e reprodução dos processos de expropriação. Além disso, o nacionalismo defendido pelo bolsonarismo congrega subserviência ao capital estrangeiro, sobretudo ao norte-americano. A intensificação da crise em conjunção com o ultraconservadorismo bolsonarista repõe em bases ainda mais dramáticas nossa condição de dependência, além de colocar em patamar ainda mais aviltante o processo de expropriação. Estas, não apenas relativas às condições materiais de reprodução da existência dos trabalhadores, mas expandidas a direitos históricos individuais e coletivos. Conforme apontado por vários estudiosos marxistas (BOSCHETTI, 2018; FONTES, 2010, 2018; LUPATINI, 2018), as expropriações não são processos que apenas constituíram as bases da acumulação de capital na transição do feudalismo para o capitalismo. Apesar de terem sido estas expropriações originais imprescindíveis, o ato de expropriar – seja através da mediação do Estado ou não – não se resumem a formas pretéritas de liberação da força de trabalho para o assalariamento capitalista.
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São, portanto, pressuposto e resultado reproduzidos em qualquer etapa da história do capital. Fontes (2018) assinala que “a expansão dos processos de acumulação, concentração e centralização produzem, incessantemente, levas de trabalhadores disponíveis para o capital, mesmo entre aqueles já expropriados” (FONTES, 2018, p. 24). Os processos de expropriação, portanto, são imprescindíveis para reproduzir uma superpopulação relativa, que pressiona a massa de trabalhadores para sujeição à exploração, compõe força de trabalho facilmente acessível para o capital e pressiona para baixo os salários. Seja do ponto de vista do trabalhador individual, seja do ponto de vista da humanidade de uma forma geral, as expropriações tendem a mercantilizar e tornar capital dimensões, elementos e esferas da vida que ainda não haviam sido mercadorizadas. A relação entre financeirização e expropriação se torna cristalina, na medida em que somente pela produção/realização da forma valor-mercadoria em valor-capital, numa escala cada vez mais exponencial, pode alimentar o parasitismo do capitalismo contemporâneo. Todo o conjunto da vida social torna-se subordinado à lógica da produtividade que é, na verdade, o que gera o valor que deve cobrir a rentabilidade financeira dos diferentes detentores do capital portador de juros. A imensa escala da concentração não resulta apenas na condensação da propriedade sob a forma da empresa, ou mesmo do conglomerado multinacional: transborda para todas as atividades da vida social e, onde não existem, precisa criá-las, como, por exemplo, através da expropriação de formas coletivas de existência para convertê-las em produção de valor (saúde, educação); da expropriação da própria condição biológica humana para convertê-la em mercadoria, já dominantes nos transgênicos e nas patentes de vida, mas apenas iniciando-se sobre a própria genética humana (FONTES, 2010, p. 203).
As expropriações incidem continuamente sobre todos os aspectos da produção e reprodução da existência para tornar homens e mulheres cada vez mais vulneráveis e suscetíveis ao trabalho assalariado, não importando as condições mais aviltantes e degradantes que esse trabalho imponha. Nesse ínterim, cabe pensar os processos de destruição de direitos como expropriação de bens coletivos e individuais. Os direitos – mesmo considerando seus limites no âmbito do significado da emancipação política compatível com a sociabilidade burguesa – são dispositivos que viabilizam condições, acessos e proteções que contribuem para reprodução material da existência da classe trabalhadora. Entendendo a expropriação “como exigência da autoexpansão do capital” (LUPATINI, 2018), temos um fundamento teórico-metodológico para compreender que os direitos (sociais e trabalhistas), ao passo que impõem certos limites à exploração do capital sobre o trabalho e que, minimamente, compõem formas de distribuição do valor socialmente produzidos, são e serão objeto de “desejo do capital”. Na medida em que se expropriam direitos que garantiam maior margem de manobra e viabilizavam condições para os trabalhadores pleitearem melhores condições de trabalho e vida, o capital e o Estado – forma política da dominação burguesa2 – criam condições para que os trabalhadores tenham que se sujeitar a qualquer tipo de trabalho e em quaisquer condições. A expropriação é correlata da pilhagem do trabalho e impele o conjunto da classe trabalhadora ao escrutínio cada vez mais barbarizado da exploração capitalista. 2
“O fenômeno político, no capitalismo, não se limita ao Estado, mas nele se condensa. O Estado é o núcleo material da forma política capitalista” (MASCARO, 2013, p. 38).
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[…] o capital tem lançado mão de uma estratégia deliberada e sistemática composta por um conjunto de táticas que, observadas à luz do materialismo dialético, revelam a combinação entre distintas formas de acumulação (primitiva, por espoliação e ampliada), dando corpo ao que chamamos de pilhagem territorial. Além da escassa geração de empregos mal remunerados e instáveis, para os trabalhadores o resultado não poderiam ser outro senão um trabalho visceralmente precário e degradante, contraditoriamente e até certa medida adequado às exigências de mercado (certificações internacionais) conformadoras das políticas internas de saúde e segurança do trabalho das grandes corporações do segmento […] (PERPETUA, 2016, p. 9).
O projeto político-governamental bolsonarista vem promovendo uma miríade de contrarreformas, que expropriam direitos numa vertiginosa ofensiva contra as políticas sociais e a quaisquer dispositivos progressistas. Se a agenda neoliberal é empregada no Brasil desde os anos 1990, essa nova onda neoliberalizante, por seu caráter fascista e ultraconservador, coloca o Brasil na dianteira dos processos antidemocráticos, antirrepublicanos e de radicalização dos ataques à classe trabalhadora, partidos de esquerda, setores progressistas, movimentos sociais e todo grupo que se insere nas chamadas “minorias” (feministas, mulheres, LGBTQI+, indígenas, negros, imigrantes, entre outros). O que está colocado como grande contradição – que é inerente ao próprio capitalismo e os regimes de acumulação que ele engendra – é que essa nova ofensiva neoliberal procura reverter os efeitos da crise estrutural do capital e da própria agenda neoliberal que se configura como “a nova razão do mundo” (DARDOT; LAVAL, 2016) desde fins de anos 1970. Esses processos não são exclusivos do Brasil, ao contrário, são tendências que vêm desde as estratégias das economias centrais. Os defensores do neoliberalismo criam uma espécie de tautologia, quando tentam resolver os problemas que ele mesmo engendra, com doses mais fortes do seu programa que, ao invés de combater as causas, potencializam seus efeitos. Nos dizeres de Mascaro (2013, p. 10), “diante da mais recente crise econômica e política do capitalismo contemporâneo, a neoliberal, os teóricos manejam, como ferramentas de análise e até como meios de solução, as mesmas medidas quantificadas e forjadas no seio das próprias instituições neoliberais”. Já no governo Dilma tivemos uma inflexão importante para uma política econômica mais ortodoxa, com endurecimento de metas de superávit primário e retração da ala política do governo mais afeta ao chamado “neodesenvolvimentismo”. Com o impeachment de Dilma e a sua substituição pelo vice Michel Temer, o Brasil envereda num movimento brusco para garantir as contrarreformas impostas pelo grande capital nacional e internacional, chegando a garantir a aprovação da Emenda Constitucional Nº 95, que institui o “novo regime fiscal”, da Lei de Terceirização e da reforma trabalhista. A Reforma da Previdência – núcleo duro da agenda ofensiva sobre os direitos sociais e trabalhistas – ficaria a cargo do governo seguinte, feito realizado com extrema agilidade pelo governo Bolsonaro, com perdas de largo espectro para os trabalhadores, aumentando tempo e valor de contribuição, ampliação da idade mínima e diminuição do teto para cálculo da aposentadoria, entre outras. Afeta o eixo estruturante da constituição da Previdência social pública no Brasil quando desmantela a forma de contribuição tripartite e o princípio da solidariedade intergeracional. Em todos os sentidos, a contrarreforma previdenciária abre nichos de valorização há tempos ambicionados pelo capital financeiro, pois empurra os trabalhadores para o mercado de fundos de pensões e aposentadorias complementares.
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Pandemia, crise e expropriações: auxílio emergencial e contradições da focalização Mossicleia Mendes Silva Os processos que suprimem as condições de subsistência asseguradas pelos direitos conquistados e ampliados no capitalismo tardio pelo Estado Social, e que subtraem as condições materiais que possibilitam à classe trabalhadora deixar de vender sua força de trabalho em situações determinadas (como é o caso das aposentadorias, seguro-desemprego, seguro-saúde ), ou que a obrigam a vendê-la por meio de contratos diretos com o capitalista, sem a mediação de Estado (a exemplo do trabalho sem regulação), constituem processos contemporâneos de expropriação social (BOSCHETTI, 2018, p. 154).
A Pandemia atinge um Brasil atolado na estagnação econômica, embutido de feições fascistas, cuja sociedade encontra-se cada vez mais conservadora e em que a classe trabalhadora é retalhada entre aqueles que ainda têm emprego formal – mesmo com todas as perdas viabilizadas pelas contrarreformas atuais – e uma massa de trabalhadores informais, desprotegidos e emaranhados na trama da “uberização total” (ANTUNES, 2020). Isso, porque processos recentes de expropriação social “agem nessa intersecção entre trabalho e direitos sociais, de forma a instituir ‘novos’ e ‘modernos’ processos de disponibilização da força de trabalho para acumulação do capital” (BOSCHETTI, 2018, p. 152). O desastre social que fica explicitado em função das medidas de contingenciamento à pandemia é apenas em parte determinado por ela, uma vez que sua determinação principal é a própria configuração do capitalismo dependente brasileiro face à reconfiguração neoliberal em andamento, assentada na radicalização das expropriações e da superexploração da força de trabalho.
4 Contradições da focalização As medidas do governo federal para enfrentamento à pandemia da Covid-19 e os impactos sobre a renda e condições de vida da sociedade brasileira – sobretudo a classe trabalhadora mais empobrecida e desprovida de direitos trabalhistas – vêm sendo marcadas pela falta de compromisso político mínimo com o bem-estar coletivo, com a má vontade pessoal do presidente, a incapacidade administrativa de seu staff técnico em planejar e executar ações coordenadas e unificadas com os estados e municípios, sua subserviência completa às demandas do capital, enfim: pela continuidade e adensamento do neoliberalismo com tempero fascista e super dosagens de conservadorismo. O governo não tardou em oferecer subsídios às empresas capitalistas, socializando, com o conjunto da sociedade, os custos da crise. A PEC 10/2020 (transformada na Emenda Constitucional Nº 106/2020), denominada de “PEC do Orçamento de Guerra” demonstra como o círculo de ferro do ajuste fiscal é facilmente maleável quando se trata dos interesses do capital. Sob a narrativa de facilitar os gastos do governo no combate ao Novo Corona Vírus e os efeitos da pandemia, a EC 106/2020 institui Regime Extraordinário Fiscal, Financeiro e de Contratações. Permite, por exemplo, que o banco Central atue diretamente nos mercados secundários de títulos privados, além de tirar os limites impostos pelas rígidas regras fiscais financeiras do Brasil. Na prática, isso viabiliza a compra de derivativos sem lastros e compra de títulos podres sem identificar beneficiários e sem nenhuma transparência. Por outro lado, a Medida Provisória no 936/2020cria o Programa Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda, que concretamente é uma medida que atende as emergências dos empregadores e onera os trabalhadores. Prevê a possibilidade de redução proporcional de jornada de trabalho e de salários; Pagamento do Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e Renda; e a suspensão temporária do
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contrato de trabalho. De acordo com juristas e pesquisadores do campo trabalhista (GONÇALVES et al., 2020,) a MP não traz benefícios aos trabalhadores do mercado formal e impacta negativamente na renda e massa salarial. A medida alivia a folha de pagamentos das empresas, “possibilitando a redução de custos salariais que podem variar entre 25% e 100% da folha de pagamentos para empresas pequenas e médias, e entre 25% e 70% para empresas grandes” (GONÇALVES et al., 2020, p. 9). Para os trabalhadores, no entanto, a queda na renda pode variar entre 10,5% e 42,2%, dependendo do cenário de redução da jornada e dos salários. De acordo com projeção feita pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE, 2020), todo trabalhador que ganhasse mais de um salário mínimo teria perdas salariais. Além disso, a MP permite negociações individuais entre trabalhadores e patrões, com exclusão dos sindicatos, fragilizando sobremaneira as possibilidades de negociação em favor dos primeiros. Em relação às medidas adotadas pelo governo federal em relação aos trabalhadores que estão fora do emprego formal o que observamos foi a resistência do governo quanto à instituição do auxílio emergencial – pensado pelo ministro da economia, a princípio, com o valor irrisório de R$ 200,00 – e que somente foi aprovado no valor de R$ 600,00 em função da pressão da oposição e articulação de setores progressistas. Mesmo assim, o que se deu na sequência foi uma demora, sem explicação plausível, para sanção presidencial do auxílio. O auxílio emergencial foi regulamentado pela Lei nº 13.982/2020, alterando a Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS/ Lei nº 8.742/1993) para adoção de parâmetros adicionais para fins de elegibilidade ao benefício de prestação continuada (BPC), e instituiu medidas excepcionais a serem adotadas durante o período de enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (Covid-19). A Lei previa o pagamento de um auxílio no valor de R$ 600,00 durante o período de três meses ao trabalhador que cumprisse de modo cumulativo os seguintes requisitos: ser maior de 18 (dezoito) anos de idade, salvo no caso de mães adolescentes; não ter emprego formal ativo; não ser titular de benefício previdenciário ou assistencial ou beneficiário do seguro-desemprego ou de programa de transferência de renda federal, ressalvado o Bolsa Família; ter renda familiar mensal per capita seja de até 1/2 (meio) saláriomínimo ou a renda familiar mensal total seja de até 3 (três) salários mínimos; no ano de 2018, não ter recebido rendimentos tributáveis acima de R$ 28.559,70; exercer atividade na condição de: a) microempreendedor individual (MEI); b) contribuinte individual do Regime Geral de Previdência Social que contribua na forma do caput ou do inciso I do § 2º do art. 21 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991; ou c) trabalhador informal, seja empregado, autônomo ou desempregado, de qualquer natureza, inclusive o intermitente inativo, inscrito no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico) até 20 de março de 2020, nos termos de autodeclaração. Além disso, o auxílio emergencial foi limitado a dois membros da mesma família, sendo que a mulher provedora de família monoparental poderia receber duas cotas do auxílio (BRASIL, 2020). O auxílio emergencial apresenta algumas variações em relação aos programas de transferência de renda operacionalizados no Brasil até o presente momento, sendo três as principais, em nossa compreensão: a renda per capta, o valor do benefício, e o público-alvo. O principal programa de transferência de renda no Brasil, o Programa Bolsa Família, sempre operou com benefícios cujos valores sempre foram mínimos (valor médio por família R$189,00) e a renda per capta muito baixa, justamente em função do público a ser atingido: famílias pobres ou extremamente pobres.
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Conforme demonstrado por Silva (2018), programas de transferência de renda se inserem dentro do escopo de uma dada modalidade de política social – focalista e seletiva – que visa garantir condições mínimas para reprodução da fração mais empobrecida da classe trabalhadora e desprovida de direitos. Essa direção social, está em consonância com as tendências dos programas de alívio à pobreza, recomendados pelas instituições multilaterais desde os anos 1980. Tais programas se inserem no âmbito da política de assistência social que, durante os governos petistas, assumiu centralidade no campo da proteção social, numa espécie de unidade contraditória com as demais políticas que compõem a seguridade social: Previdência Social e Saúde (MOTA, 2008). Sem minimizar os avanços indiscutíveis da política de assistência social no contexto referido, sobretudo em relação ao processo de regulamentação, normatização e institucionalização, a assistência social tornou-se um mecanismo fundamental de gestão das expressões da questão social, mormente aquelas manifestações mais potencialmente disruptivas, como a pobreza absoluta. A forma como a referida política foi carreada em função das demandas de alívio à pobreza confluiu para particularizar uma modalidade de política social compensatória, residual e focalista. O debate sobre a focalização e a universalização das políticas sociais tem sido objeto de disputas ideoteóricas, político-econômicas e culturais e estão no cerne das disputas em torno da direção a ser adotada pelos Estados no que tange à constituição de sistemas ou mecanismos de proteção social, principalmente a partir da ofensiva neoliberal, que tem como um pilar fundamental, na sua agenda para as políticas sociais, o desmonte, a privatização, precarização e focalização. Sob a ótica neoliberal, a proteção social deve ser garantida via mercado para aqueles que podem pagar, enquanto que o Estado deve centrar suas ações sobre o segmento mais empobrecido. Nesse prisma, ganha densidade a opção por uma política de assistência social compensatória e focalizada, que despreza moldes universais para a política social e é executada a partir de um formato específico de “enfrentamento à pobreza”. Na visão universalista das políticas sociais, o mercado é o objeto do embate distributivo, o que supõe um papel decisivo e regulador do Estado. A perspectiva focalizada abandona a dimensão da universalidade inclusiva e faz a opção pela “gestão estratégica da pobreza”, num ambiente adverso à mudança. Este novo paradigma, entretanto, supõe o fortalecimento da capacidade dos pobres para lutarem contra pobreza, como sujeitos deste processo (IVO, 2004, p.60).
Boschetti (2003, p. 43-44), ao pensar sobre as diferenças entre direções sociais universalistas ou focalistas para as políticas sociais, assinala que: “a seletividade rege-se pela intenção de eleger, selecionar, optar, definir quem deve passar pela peneira ou pelo crivo, […] esgota-se em si mesma, em seus critérios de “menor elegibilidade” e conforma-se com a redução e a residualidade nos atendimentos. “[…] A focalização passa a ser negativa quando, associada à seletividade, restringe e reduz as ações a poucos e pequenos grupos, desconsiderando o direito de todos”. Desde a década de 1990, ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso, a adoção da via focalista para os programas e políticas sociais compõe as estratégias de proteção social para a fração mais empobrecida entre os trabalhadores. Nos governos Lula, ganhou densidade e tornou-se, em função das condicionalidades e critérios rígidos de acesso e seletividade do PBF, o carro chefe da política social. E é com o governo Dilma Rousseff que a focalização ganha um patamar mais sofisticado, com um arsenal técnico-operativo moderno para acentuar a focalização.
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O paradigma da focalização ganha ainda mais centralidade com a implantação do Plano Brasil sem Miséria em junho de 2011, sob o mote da garantia do acesso da população mais pobre aos serviços públicos. Não seria demais ressaltar que por meio disso expandiu-se a focalização da extrema pobreza também para outras ações de governo, que, então, deveriam redirecionar o foco das atividades institucionais nesse segmento. Isso foi algo inédito nas práticas de governo engendradas até aquele momento. Segundo Campello e Mello (2014)3, o Plano implanta uma reforma na lógica de atuação do Estado, “que pode ser definida como uma hiperfocalização”. “Baseando-se na hiperfocalização foi possível garantir, simultaneamente, o direcionamento da ação para os que mais precisavam e também a criação de mecanismos de verificação de que aquelas famílias foram realmente beneficiadas pelos diferentes programas do Brasil sem Miséria”. (CAMPELLO; MELLO, 2014, p. 48) Em nossa compreensão a focalização encerra um modo específico de gerenciamento da pobreza, em um contexto de acirramento da crise e agudização das expressões da questão social, sobretudo, aquelas que expressam a extrema pobreza. Além disso, ao centralizar a transferência de renda condicionada, aciona mecanismos específicos de elegibilidade, atuando sobre a população miserável, sendo importante mecanismo de reprodução da força de trabalho excedente às necessidades do capital e impactando, ainda, na melhoria do consumo interno, como visto antes. A focalização empreende um modo particular de gerenciar a pobreza na medida em que determina critérios rigorosos de elegibilidade, tal como sinalizamos, encetando a estratégia factual de atuar sobre os “bolsões de pobreza”, cujas expressões oferecem maiores riscos de desestabilização da ordem. Ou seja, desvia a atenção da coletividade quanto às possibilidades de serviços públicos universais e balizam as ações por soluções técnicas, tidas como neutras e mais eficazes, na medida em que consigam focalizar os grupos mais pobres, e, portanto, utilizar os parcos recursos que são direcionados para atendimento das necessidades sociais de modo “eficiente”. Aprofunda a estratificação da classe trabalhadora pobre, ao estabelecer estratégias de subfocalização, definindo não pobres, pobres, extremamente pobres, miseráveis. Essas dinâmicas vêm aprofundando o hiato e a fragmentação da classe trabalhadora, que já se processa desde os primórdios da recente reestruturação produtiva da década de 1990, e acarretam implicações importantes no que diz respeito à dimensão político-ideológica e organizativa da classe trabalhadora, e transforma necessidades sociais coletivas em penúrias individuais (SILVA, 2020). Ao transformar questões coletivas em carecimentos individuais, tais mecanismos contribuem para desmobilizar quaisquer possibilidades mais concretas de organização política dos trabalhadores, contribuindo para um crescente processo de individualismo e desconstrução do ideário das possíveis pautas do trabalho. Ao fim e ao cabo, há um denso processo de subjetivação em curso que aponta para a naturalização da pobreza e do desemprego, com profundas implicações para a experiência de classe. A estratégia de focalização dos governos petistas visava – além das questões já elencadas – fazer com que a transferência de renda chegasse exatamente naquele estrato de trabalhadores sem nenhum rendimento, com trabalhos extremamente precarizados e cuja inserção no mercado formal de trabalho seria inviável, por se tratar de uma parcela da classe trabalhadora dispensável para as necessidades imediatas da produção capitalista. Nos termos marxianos, estamos nos referindo ao que seria a fração da superpopulação relativa considerada estagnada (MARX, 2013). A ideia era exatamente chegar nos recônditos mais profundos da pobreza e garantir que esse segmento – historicamente alijado do acesso a 3
Tereza Campello foi ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome nos governos Dilma Rousseff. Janine Mello Atuou como assessora no monitoramento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e na coordenação do Programa Territórios da Cidadania (PTC) pela Casa Civil da Presidência da República.
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bens e serviços públicos – fosse alcançado pelas políticas sociais brasileiras. Estratégias como “Busca Ativa”, Centros de Referência da Assistência Social (CRAS itinerante), Centro de Referência para População em Situação de Rua (Centro Pop), alterações no Cadastro Único para viabilizar cadastramento de pessoas em situação de rua no Programa Bolsa Família e mais uma miríade de dispositivos foram implantados durante o ciclo petista para garantir as ferramentas técnicas de intensificação da focalização. Sem desvelar a essência do fenômeno pareceria absurdo discordar de uma estratégia desse tipo, mas o que há no seu núcleo são as contradições da política social e da forma social capitalista de gestão da força de trabalho e das expressões da questão social. Isso, porque ao passo que a narrativa da focalização aponta para garantia do acesso às políticas, bens e serviços públicos pela via das condicionalidades dos programas de transferência de renda, o Estado imputa aos usuários obrigações que desconfiguram a própria noção de proteção social. Por outro lado, esse mesmo Estado – mediante sua configuração neoliberal –avança nos processos de expropriação de direitos sociais e trabalhistas, enquanto promove desmonte e precarização das políticas sociais. Se o projeto de conciliação de classes petistas viabilizou ganhos – ainda que muito frágeis – para o campo do trabalho, a direção neoliberal compunha o cerne das estratégias de gestão da crise do capital no Brasil, sob tais governos. O que vem depois disso, no entanto, é uma radicalização que promoveu uma “nova desertificação neoliberal no país”4. Essa breve digressão para tratar da focalização, que assenta os fundamentos dos Programas de Transferência de Renda (PTR) no Brasil, era necessária para dar inteligibilidade ao mote analítico que viemos traçando: ao produzir formas sociais políticas e historicamente determinadas (MASCARO,2013) para garantia da reprodução da forma valor como mediação central das relações de produção capitalistas, o capitalismo produz também os paradoxos que a luta de classes insiste em repor na engrenagem não paralisável da história. A enorme demanda pelo benefício emergencial para os segmentos de trabalhadores mais afetados pelas medidas de isolamento e contingenciamento da Pandemia do Novo Corona Vírus fez cair por terra postulados férreos da focalização, mostrando os flagelos da superexploração da força de trabalho e da radicalização dos processos expropriativos. Somente no primeiro dia de cadastramento mais de 26 milhões de pessoas haviam se inscrito para receber o benefício. 5 Este número teria sido muito maior já nos primeiros dias não fosse o limite burocrático imposto às pessoas com situação irregular no CPF, o que demonstra como a burocracia continua a ser mecanismo fundamental para emperrar, dificultar ou inviabilizar o acesso aos direitos. As filas imensas em diversas agências da Caixa Econômica Federal – banco público responsável pela operacionalização do auxílio – de pessoas desesperadas e a forte comoção provocada fez com que o governo recuasse e criasse um mecanismo digital de regularização do CPF, sem que as pessoas precisam ir à Receita Federal. Até o dia 01 de maio haviam 96,9 milhões de cadastros processados pelo Dataprev, dos quais 50,5 milhões foram aprovados. Entre os pedidos reprovados, 32,77 milhões estavam inelegíveis e não puderam receber o auxílio (33,8%), e 13,67 milhões (14,1%) foram classificados como inconclusivos. Entre o Grupo 1 (MEIs, CIs e informais) os cadastros recebidos contabilizavam 46,0 milhões, dos quais foram processados 44,96 milhões (97,7%). 20, 52 milhões foram considerados elegíveis (45,6% dos processados) 4
Parafraseando o livro de Ricardo Antunes no título do seu livro “A desertificação neoliberal no Brasil: Collor, FHC e Lula. 2 ed. São Paulo: Autores Associados, 2005. 5 https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/04/08/266-milhoes-ja-se-cadastraram-para-receber-o-auxilio-emergencial-de-r600.ghtml
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e 10, 77 milhões inelegíveis (24% dos processados). Inconclusos: 13,67 milhões (30,4% dos processados). Por outro lado, entre os beneficiários do PBF, foram processados 100% dos cadastros (19,9 milhões), sendo elegíveis 19,2 milhões (95, 5 do total) e 0,7 milhões inelegíveis (3,5% do total).6 Ao final do processo de requisição, havia mais de 150 milhões de cadastros, dos quais foram considerados elegíveis 66,9 milhões. A exposição de dados parece exaustiva, mas eles trazem elementos importantes que precisam ser explicitados. Primeiro, chama atenção a quantidade de cadastros considerados inconclusivos. Isso não é aleatório, mas sim expressão da limitação de um sistema de operacionalização que se assentou na estratégia de uso de aplicativo de celular para requisição dos benefícios. O governo negligenciou o fato notório da gravíssima desigualdade de acesso à internet e mesmo à telefonia móvel que existe no país e as dificuldades que o segmento mais empobrecido tem de manusear tais mecanismos. O preenchimento dos dados no aplicativo demandava uma significativa habilidade no usufruto dessas tecnologias, podendo, e é o que os dados mostram, gerar confusões na forma de requisitar o auxílio, com informações incompletas ou equívocas, que resultou no montante significativo de cadastros com resultados inconclusivos. Isso apenas para requisição do auxílio, a viabilização dos pagamentos mostrouse ainda mais inócua, com um aplicativo (Caixa Tem) de péssimo funcionamento, no qual era preciso esperar horas para entrara na “sala de atendimento virtual, e que exigia ainda mais habilidade no manuseio para efetuar cadastro – com e-mail – para que usuário pudesse fazer pagamentos, transferência ou gerar código de saque. Este, por sua vez, com duração de poucas horas, desconsiderando as filas quilométricas formadas nas agências de lotéricas e da Caixa pelo Brasil a fora. Além disso, sequer foi disponibilizado um canal de atendimento direto. Se pensarmos na condição das pessoas em situação de rua, teremos um quadro que remete tanto a ineficiência operacional, quanto inobservância do governo ante o aparato institucional do Sistema Único de Assistência Social que poderia ter sido acionado para auxiliar estes processos. Mesmo com todo comprometimento das equipes de referência de Centros de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) e Centros Pop7 no sentido de oferecer suporte a esta população, a restrição de 01 cadastramento por número de celular colocava óbices até mesmo para requisição do auxílio por intermédio de profissionais para as pessoas em situação de rua. Além disso, a falta de documentos, documentação incompleta e, de início, as irregularidades nos CPFs de parcela importante dessas pessoas também comparecem como entraves para garantia de acesso ao auxílio. Conforme apontamos, esta “ponta” da classe trabalhadora teve o alcance potencialmente fragilizado pela via focalista em tela. Os impasses e negligência do governo federal em garantir que o auxílio chegasse a quem precisava com a urgência que lhe seria óbvia é também uma demonstração da chantagem em torno das condições de sobrevivência da classe trabalhadora. Condições alarmantes que vão da impossibilidade de garantir a higiene, para evitar contaminação, à fome. Não por acaso, Relatório da ONG OXFAM (2020) aponte o Brasil como epicentro emergente de fome extrema na pandemia, juntamente com Índia e África do Sul. É ilustrativo o fato de o governo ter anunciado a antecipação da segunda parcela depois de ter pago a primeira – ainda que muitos foram os problemas para acesso desse primeiro valor – e logo depois o recuo 6
Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/05/01/auxilio-emergencial-de-969-milhoes-de-cadastrosprocessados-pela-dataprev-505-milhoes-foram-aprovados.ghtml 7 Cf: CFESS entrevista – Coronavírus e quem trabalha com a população em situação de rua. Disponível em: http://www.cfess.org.br/visualizar/noticia/cod/1696.
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do governo, alegando falta de recursos. Ademais, indefinições no calendário de pagamentos, falta de celeridade na revisão de cadastros considerados inconclusivos. Outro ponto central que os dados ajudam a desvelar é a diferença importante entre os cadastros aprovados no grupo dos MEIs, CI e informais de um modo geral e o os beneficiários do PBF. Enquanto que estes últimos tiveram dados processados de modo automático pela base do CadÚnico – instrumento informacional e tecnológico fundamental da focalização dos PTR existentes anteriormente ao auxílio emergencial – os primeiros tiveram que fazer a requisição do auxílio pelo aplicativo específico e é justamente este segmento que estava na berlinda da seletividade e da focalização do PBF. Este grupo de trabalhadores que, na maioria das vezes, precisa trabalhar em jornadas extenuantes, envolver outros familiares em pequenos negócios, intensificar o próprio processo de trabalho “autônomo”, não tem a proteção trabalhista vinculada ao emprego formal – está também já muito fragilizada em função da reforma trabalhista – mas também não está dentro dos rígidos limites impostos pela renda per capita que abaliza aqueles que precisam e os que não precisam da transferência de renda estatal. Conforme Silva (2020), o enorme contingente de trabalhadores em trabalho informal e sem garantias trabalhistas, a pobreza absoluta de pessoas que sobrevivem através das atividades mais precárias, instáveis e espoliativas, a fragilidade de rendimentos de indivíduos que sobrevivem da autoexploração intensiva e de seus familiares, glamourizados sob o mantra do empreendedorismo, terceirizados, artistas, pequenos comerciantes, vendedores ambulantes, trabalhadoras domésticas, trabalhadores de aplicativos de toda sorte e uma miríade de tantos outros que compõem o fenômeno da uberização do trabalho, demonstrou que a focalização – que viabilizou o apassivamento da parte mais pobre da classe trabalhadora e que suportava o peso da pobreza absoluta, não responde mais às contradições resultantes da destruição dos direitos sociais e trabalhistas. Se até então ela funcionava como uma barreira que contribuía para conter uma parcela da população que historicamente já era alijada da proteção social trabalhista, ela hoje precisa suprir as necessidades de contenção de um segmento amplo de trabalhadores ou tornados órfãos de suporte protetivo das expropriações recentes – reforma trabalhista e previdenciária –ou aqueles que historicamente situados no vasto e amorfo “setor informal”, e atualmente engolidos pelas medidas de isolamento social, explodem as estatísticas de pobreza e da ausência rendimentos Em 2019, a PNAD Contínua demonstrava que no Brasil havia 11,6 milhões de trabalhadores desocupados e cerca de 38 milhões de pessoas trabalhando sem registro. Entre os informais, 24,5 milhões de pessoas situavam-se no chamado trabalho por conta própria. Tais dados demonstram os efeitos deletérios da reforma trabalhista, que à despeito do argumento de gerar mais emprego, operou a flexibilização completa das relações de trabalho, jogando trabalhadores e trabalhadoras ao domínio inescrupuloso do trabalho intermitente, num contexto em que a justiça do trabalho foi praticamente anulada. Com as medidas de isolamento social, contingenciamento e paralização de todas as atividades econômicas ou não a condição do conjunto da classe trabalhadora foi duramente afetada, mas, certamente o segmento localizado dentro do amplo espectro que envolve MEIs, CI e informais e/ou que trabalham por conta própria, de um modo geral, foi ainda mais duramente atingido, uma vez que ficaram impossibilitados de trabalhar (ou trabalhando em condições extremamente insalubres e precárias, como os entregadores de aplicativos) não cobertos por nenhum mecanismo de proteção trabalhista. Dados da PNAD Contínua/COVID demonstram que a taxa de desocupação chegou a 13,3% em início de agosto e mais de 18, 3 milhões de pessoas não procuraram trabalho por conta da pandemia. Estudo do IPEA (2020) demonstra que os trabalhadores não formalizados foram os mais duramente
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impactados pela pandemia. Em maio receberam efetivamente 60% do que habitualmente recebiam e em junho, 63,4%. Os que se encontram nos setores de serviços, que apresentam um alto grau de informalidade e dependem fortemente da maior medida da circulação das pessoas, estão entre os mais prejudicados. “Os cabelereiros, trabalhadores de tratamento de beleza e serviços pessoais receberam efetivamente apenas 46,8% da renda habitual, auferindo uma renda média de somente R$ 721” (IPEA, 2020). Em termos reais os trabalhadores por conta própria receberam efetivamente R$ 28,2bilhões, em oposição aos habituais R$ 445 bilhões (uma diferença de R$ 16,3 bilhões). Ademais, 32% dos domicílios não apresentaram nenhuma renda do trabalho (IPEA, 2020). No que tange ao impacto do auxílio emergencial sobre a renda domiciliar no mesmo período, o estudo aponta que 6,6% dos domicílios (cerca de 4,5 milhões) sobreviveram apenas com os rendimentos oriundos do auxílio emergencial, quase 1 milhão de domicílios a mais que no mês anterior. Os rendimentos provenientes do auxílio emergencial no mês de junho alcançaram R$ 27,2 bilhões, representando 84%da diferença entre massa salarial habitualmente recebida e a massa efetivamente recebida, sendo que em maio a diferença era de 67% (IPEA, 2020). Os dados apresentados corroboram a abordagem que demonstra como a renda proveniente da informalidade é fluida e incerta, sendo duramente afetada em momentos de crise e a importância do auxílio emergencial na composição dos rendimentos familiares no contexto da pandemia. Por outro lado, as diferenças entre o mês de maio e junho são apenas uma parcial que ratifica as críticas feitas à falta de celeridade para garantir que o auxílio chegasse aos demandantes. As expropriações operadas mediante as contrarreformas da previdência social e trabalhista, mais as perdas em termos de desfinanciamento possibilitadas pela EC95 demonstram que a nova onda neoliberalizante radicaliza em níveis antes impensáveis8 as condições de exploração da classe trabalhadora e a configuração do Estado, nesse contexto, é incompatível com sistemas de proteção social, mesmo que híbridos e frágeis, como o que se consolidou com Consolidação das Leis Trabalhistas e a Constituição Federal de 1988. Por outro lado, desprotegidos pelo Estado e tornados ainda mais vulneráveis à exploração e subsunção a qualquer forma de trabalho, as contradições e potencial de intensificação da luta de classes com irrupções do campo do trabalho são uma possibilidade iminente. Ainda no campo das contradições que o Estado precisará intervir para garantir a continuidade das condições da acumulação na periferia do capital, há que se colocar em evidência que as expropriações além de reporem as circunstâncias que empurram o trabalhador para o assalariamento – cada vez menos intermediado por legislações protetivas – incidem também na própria composição dos rendimentos do trabalho, tensionando o valor de sua reprodução para níveis ínfimos. Mas ainda que seja uma necessidade imanente do capital rebaixar o valor da força de trabalho, ele não pode prescindir que esta mesma força de trabalho tenha condições de sobrevivência material e reprodução. Para tanto, vai intensificar suas investidas sobre o Estado para que este socialize, de alguma forma, os custos da reprodução da força de trabalho. Isso não é uma novidade histórica, pois essa sempre foi uma das funções do Estado capitalista. A novidade reside na forma historicamente concreta em que essa socialização vai se dar, não mais mediante políticas sociais com tendências universalizantes e/ou legislações e direitos trabalhistas sólidos, mas ampliando o escopo de sua ação focalizada. O auxílio emergencial é uma demonstração da necessidade de ampliação da transferência de renda para segmentos 8
A não ser nos processos de consolidação da Revolução Industrial quando o capital operava sem intermediação de legislações trabalhistas, as quais foram sendo conquistadas ao longo de anos em função da constituição da classe trabalhadora como classe para si e suas lutas por direitos protetivos.
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dos trabalhadores que antes não se enquadravam nos restritos critérios de acesso do PBF, por exemplo, indicando uma tendência que parece despontar – ainda em acerto para caber dentro dos limites do ajuste fiscal ultraneoliberal – para intervenção do Estado sobre a necessidade de compor o valor da força de trabalho sob o molde da focalização massificada. O aumento no índice de aprovação do governo Bolsonaro, certamente em função do auxílio, emergencial dá conta de que os programas de transferência de renda são, ainda, um importante mecanismo de legitimação política e conformam importante estratégia para acomodação dos conflitos de classe. O oportunismo despudorado do governo para surfar na onda da tragédia pandêmica já se evidencia com o anúncio do Renda Brasil que pode substituir o PBF, com ampliação da cobertura, mas expropriando direitos como seguro-defeso, salário família e abono salarial (BEHRING; BOSCHETTI, 2020). Se tal proposta se consolidar, teremos um novo espectro da focalização que expandirá a assistencialização não só da pobreza, mas do campo do trabalho precário e uberizado.
5 Considerações finais A operacionalização do benefício emergencial mostrou que a focalização não resolve os dilemas da reprodução da força de trabalho no segmento mais espoliados – população em situação de rua – e também não respondia por uma gama de trabalhadores que não eram extremamente empobrecidos, mas inseridos em relações de trabalho que compõem um espectro de novas e antigas formas garantia de reprodução da existência e com traço estrutural do mercado de trabalho brasileiro: os informais. O conjunto heterogêneo de trabalhadores agrupados na abstração criada pela novilíngua neoliberal do empreendedorismo comporta, na realidade, um amplo segmento de indivíduos que, impossibilitados de vender sua força de trabalho mediante o estatuto do emprego formal e seduzidos pelo mantra de se tornar “empreendedor”/“patrão de si mesmo” – como os chamados Microempreendores Individuais (MEI) e trabalhadores por conta própria – , se viram e foram vistos despencando em um dos muitos vácuos produzidos pela neoliberalismo e suas contrarreformas, e atropelados pelas expropriações que, ao surrupiar direitos no campo da proteção trabalhista, tornam-se ainda mais vulneráveis para à exploração capitalista, ao tempo em que não são alcançáveis pelas políticas focalistas. A crise sanitária desvelou no Brasil o poço sem fundo para o qual estamos caminhando com um Estado que expropria direitos, uma legislação trabalhista golpeada no seu núcleo, e programas sociais que, por não serem universais, criam segmentos não cobertos por nenhuma proteção: são dispensáveis para o mercado ainda formalizado e não comportados no escopo de uma configuração de Estado de neoliberalização radicalizada.
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Submetido em: 23 ago. 2020 Aceito em: 17 out. 2020
DOI: 10.19180/1809-2667.v22nEspecial2020p748-771
Infância, mito da feliz(cidade) e a dimensão coercitiva da assistência social Childhood, the myth of happiness and the coercive dimension of social assistance La infancia, el mito de la felicidad y la dimensión coercitiva de la asistencia social Rodrigo Silva Lima https://orcid.org/0000-0002-5036-7471 Doutor em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor Adjunto da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (ESS/UFF) – Niterói – Brasil. E-mail: rodrigorrod@hotmail.com.
Resumo O artigo resulta de levantamento bibliográfico e de pesquisa-ação junto ao Conselho Regional de Serviço Social do Rio de Janeiro (CRESS 7ª Região). Objetiva problematizar a concepção de infância e a dimensão coercitiva da assistência social. Diante da violência promovida pelo Estado, a infância pauperizada, longe de uma ilusória felicidade, tem recebido duros golpes. A proteção social, que tem na política de assistência social um dos seus principais pilares, tem revelado inúmeras contradições. Estas ficaram mais evidentes no período dos grandes eventos internacionais, quando a criminalização dos pobres por parte do Estado e as contradições inerentes às políticas sociais culminaram em violações dos direitos de crianças e adolescentes. Chegase à conclusão de que o Estado atende aos interesses econômicos das classes dominantes ao reprimir a população, independente da faixa etária. E o CRESS, como conselho profissional que orienta e fiscaliza o exercício profissional de assistentes sociais, mesmo sem ser um movimento social ou um sindicato, tem desempenhado um papel legítimo na organização política e contribuído para a mobilização da sociedade civil na garantia de direitos do público infantojuvenil e no enfrentamento à coerção estatal. Palavras-chave: Infância. Cidade. Direitos. Assistência Social. CRESS.
Abstract The article is the result of a bibliographic survey and action research at the Regional Council of Social Work of Rio de Janeiro (CRESS 7th Region). It aims to discuss the concept of childhood and the coercive dimension of social assistance. Faced with the violence promoted by the State, the impoverished childhood, far from an illusory happiness, has suffered severe setbacks. Social protection, which has one of its main pillars in social assistance policy, has revealed numerous contradictions. These became more evident in the period of major international events, when the criminalization of the poor by the State and the contradictions inherent in social policies culminated in violations of the rights of children and adolescents. The conclusion is that the State serves the economic interests of the dominant classes by repressing the population, regardless of age. CRESS, as a professional council that guides and supervises the professional practice of social workers, though not being a social movement or a union, has played a legitimate role in political organization and contributed to the mobilization of civil society in guaranteeing public rights of children and youth, as well as facing state coercion. Keywords: Childhood. City. Rights. Social assistance. CRESS.
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Resumen El artículo es el resultado de un estudio bibliográfico y una investigación-acción con el Consejo Regional de Trabajo Social de Río de Janeiro (CRESS VII Región). Tiene como objetivo problematizar el concepto de infancia y la dimensión coercitiva de la asistencia social. Frente a la violencia promovida por el Estado, la infancia empobrecida, lejos de una felicidad ilusoria, ha sido duramente golpeada. La protección social, que tiene uno de sus principales pilares en la política asistencial, ha revelado numerosas contradicciones. Estas se hicieron más evidentes en el período de grandes acontecimientos internacionales, cuando la criminalización de los pobres por parte del Estado y las contradicciones inherentes a las políticas sociales culminaron en violaciones de los derechos de la niñez y la adolescencia. Se llega a la conclusión de que el Estado sirve a los intereses económicos de las clases dominantes reprimiendo a la población, independientemente de su edad. El CRESS, como consejo profesional que orienta y supervisa el ejercicio profesional de los trabajadores sociales, incluso sin ser un movimiento social o un sindicato, ha jugado un papel legítimo en la organización política y ha contribuido a la movilización de la sociedad civil en la garantía de los derechos de niños y jóvenes y frente a la coerción estatal. Palabras clave: Infancia. Ciudad. Derechos. Asistencia social. CRESS.
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1 Introdução Nos últimos 20 anos, com as iniciativas do governo federal e os grandes eventos esportivos – Jogos Pan-Americanos (2007), Copa das Confederações (2013), Copa Mundo de Futebol (2014), Jogos Olímpicos e Paraolímpicos (2016) e a Copa América (2019) – as atenções do mundo estiveram voltadas para o Brasil e, mais especificamente, para o estado do Rio de Janeiro e sua capital. Na capital, conhecida mundialmente como “cidade maravilhosa”, a consecução dos projetos de grande porte exigiu, além da revitalização dos pontos turísticos, um montante robusto de investimentos em obras de infraestrutura, que contrastaram com os parcos recursos destinados à política de assistência social no mesmo período. As ações do Poder Executivo, estadual e municipal favoreceram às parcerias com a iniciativa privada e cumpriram um papel de controle, vigilância e punição. Planos, programas e projetos executados na capital carioca expressaram contradições sociais ao proteger interesses privados, com a valorização do mercado imobiliário, do comércio e do turismo, e ao reprimir a população em situação de rua e os moradores de determinadas regiões com o emprego de violência nas ações estatais de desocupação habitacional e territorial, reiterando as raízes do conservadorismo brasileiro, radicalizando a ideologia neoliberal e evocando um constrangedor “mito da felicidade”, principalmente, dos segmentos infantis e adolescentes. A dimensão coercitiva da assistência social, evidenciada quando interesses das classes dominantes são ameaçados, não se expressa num descompasso momentâneo para afugentar a população em situação de rua, mas revela uma contradição imanente à sua própria condição de existência. Enfim, diante da incidência na contratação de assistentes sociais no Rio de Janeiro, fruto da implantação do Sistema Único de Assistência Social no início do século XXI, ampliou-se a capacidade de questionamento dos profissionais em relação às práticas sociais adotadas, em virtude de maior qualificação e da estabilidade no serviço público, bem como se evidenciou maior compromisso com a população usuária. O Conselho Regional de Serviço Social, entidade que tem por função precípua orientar e fiscalizar o exercício profissional de assistentes sociais, prevenindo violações éticas, ao atender uma demanda trazida pela categoria e por entidades da sociedade civil, foi provocado a interferir numa das ações coercitivas promovidas pela Prefeitura, demonstrando que os conselhos profissionais, quando articulados coletivamente e atuando numa direção contra a corrente, podem ser espaços privilegiados de organização política.
2 Infância feliz? Pistas do método e da metodologia No método marxiano, o ponto de partida é a realidade, “parece que o correto é começar pelo real e pelo concreto”. (MARX, 2000), mas um longo percurso precisa ser percorrido na aquisição e na produção de determinado saber. Nos caminhos tortuosos do conhecimento científico, o movimento de ida e vinda expressa a necessidade de se retornar ao momento inicial ou ao ponto de partida, não como algo caótico e enviesado, mas como “uma rica totalidade de determinações e relações diversas”. (MARX, 2000, p. 39). Por mais conhecido, do ponto de vista empírico, que seja o objeto de estudo – a infância com direitos violados pelo Estado – urge a necessidade de um momento de abstração teórica para desvelar a realidade em sua aparência e as condições para transformá-la.
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De acordo com Martins (1991), o tempo da infância vem sendo suprimido pelo tempo do adulto, pela exploração de força de trabalho e pela violência. Sendo assim, para além da faixa etária prescrita pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA - BRASIL, 1990) (criança: entre 0 e 12 anos incompletos e adolescente: entre 12 e 18 anos), a infância1, como categoria de análise, revela determinada aparência e apresenta particularidades na construção geracional. De acordo com autores da tradição marxista, para os quais o método de pesquisa propicia ir da aparência à essência do objeto (NETTO, 2011), é possível situar a infância, no modo de produção capitalista, como expressão de um processo peculiar do desenvolvimento da força de trabalho. Portanto, como expressão de um processo peculiar do desenvolvimento da força de trabalho, é possível situar contradições e a existência de infâncias diferentes e desiguais. Os primeiros registros de como se retratou a infância datam da Idade Média, no século XIII europeu, quando era retratada como alegoria de “homens de tamanho reduzido” (ARIÈS, 1981, p. 51) e concebida, nos marcos da colonização brasileira, no século XVI e XVII como sinônimo de “incapacidade”, alvo da Igreja Católica nas práticas da catequese, e como mão de obra para o trabalho escravo, a partir dos sete anos de idade (ARANTES, 1995). A compreensão sobre o segmento infantil na história tem revelado, para além das idealizações no campo afetivo, preconceitos e debilidades subjacentes ao racismo na formação social brasileira e injustiças nas relações sociais, ora “identificadas na estrutura da organização social forjada a partir da constituição da escravidão” (GÓES, 2018, p. 68), ora na manutenção do acesso à propriedade junto aos latifundiários e às classes dominantes, principalmente pela Lei de Terras, de 1850 (CAMPOS, 2007, p. 87). Essas interpretações fomentaram as bases das construções teórico-ideológicas recentes e contribuíram com a crítica aos elementos presentes na sociabilidade infantil, “exposta à brutalização das relações sociais em decorrência da forma assumida pela expansão capitalista na periferia do mundo” (MARTINS, 1991, p. 11), cristalizada na exposição do “bloco hegemônico adultocêntrico (cumulativamente, machista, racista, homofóbico, elitista-burguês)” (NOGUEIRA NETO, 2005, p. 6) e na expropriação de direitos numa “cidadania de papel” (DIMENSTEIN, 2005). Parte-se do entendimento da infância como um processo mediado historicamente pelas lutas de classes. Porém, as dimensões epistemológicas da literatura mencionada nesse texto, longe de reiterarem uma abordagem eclética, respeitam às diferentes contribuições, nem sempre respaldadas no campo marxista, ampliam a interlocução com diversas áreas do conhecimento, e conjugam princípios democráticos e plurais, ou seja, expressam “uma síntese entre o predomínio (…) de um interesse público, e, ao mesmo tempo, a conservação e o respeito ao pluralismo, à diversidade, à diferença”. (COUTINHO, 1995, p. 10). Tanto as correntes funcionalistas, que subestimaram o valor da infância, dirigindo sua investigação apenas para dimensões da socialização e da relação familiar, como aquelas pesquisas inspiradas na perspectiva crítico-dialética, que estudaram as contradições e a estrutura das classes sociais, não atribuíram tanta relevância ao papel desempenhado por crianças e adolescentes no modo de produção capitalista (PILOTTI, 1995). Contudo, se, por um lado, as constatações de Pilotti, realizadas há mais de duas décadas, não foram totalmente alteradas, verifica-se, por outro lado, uma maior preocupação entre pesquisadores, 1
A inspiração vem de “crianças sem infância”. (MARTINS, 1991, p. 10). Ao longo do texto, a expressão infância será utilizada abrangendo a situação de vida tanto de crianças quanto de adolescentes, pois, embora seja um conceito envolto numa transitoriedade, “se localiza na dinâmica do desenvolvimento social e corresponde a uma estrutura social permanente”. (PILOTTI, 1995, p. 25).
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trabalhadores e militantes em produzir e disseminar informações e conhecimento crítico, numa perspectiva marxista2, tentando analisar os antagonismos entre as classes sociais, denunciar a estrutura das desigualdades, as contradições na relação entre Estado e políticas sociais, e os impasses na garantia de direitos de crianças e adolescentes. De acordo com a abordagem marxiana, é pela exploração da força de trabalho, em A Lei Geral da Acumulação, que se dá o entendimento da origem da questão social e de suas implicações no desenvolvimento de toda a vida humana, incluindo aí, portanto, a fase da infância. Assim, tal consideração marxiana refere-se também a infâncias diferentes e desiguais, ou as implicações da exploração da força de trabalho naquilo que constitui o universo de crianças e adolescentes. As expressões da questão social na infância estão intimamente vinculadas ao processo de acumulação capitalista e abarcam múltiplos fenômenos sociais, tais como a mortalidade infantil, a violência física, a exploração sexual, o trabalho precoce, o uso e abuso de álcool e outras substâncias psicoativas, a institucionalização, a miséria, e etc. (LIMA, 2013). Parafraseando um revolucionário russo numa passagem de sua biografia, pode-se dizer que poucas infâncias são felizes. Essa construção tem sido romantizada em torno de uma idealização acerca das condições materiais que permitem a elas, além de refeições regulares, o direito de brincar, vestir, habitar e ser feliz. Ele relata que: Diz-se que a infância é o tempo mais feliz da existência. Creio que não é sempre o caso. Poucos são aqueles cuja infância é feliz. A idealização da infância tem seus foros na velha literatura dos privilegiados. Uma infância provida de tudo, e abundantemente, a infância sem nuvens, nas famílias hereditariamente ricas e instruídas, todo carinho e brinquedos, fica na memória como uma clareira inundada de sol, à beira do caminho da vida. Os grandes senhores da literatura ou os plebeus que os cantaram, exageraram esta ideia da infância toda penetrada de espírito aristocrático. A imensa maioria, se olhar para trás, se aperceberá, ao contrário, somente uma infância sombria, mal alimentada, escravizada. A vida dá seus golpes nos fracos, e quem será mais fraco do que as crianças?”. (TROTSKY, 1978, p. 16).
Grande parte das construções teóricas, a partir do surgimento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei 8.069 de 13 de julho de 1990, ao mesmo tempo em que sinalizam conquistas sociais, ao materializar os pressupostos da proteção integral (com ênfase na educação, saúde e assistência social), também expressam uma realidade de exploração, de múltiplas violências e de experiências de vida permeadas por sofrimentos e traumas que precisam ser transformados. O relatório do Fundo das Nações Unidas para Infância (UNICEF), “30 anos da Convenção sobre os Direitos da Criança: avanços e desafios para meninas e meninos no Brasil” (REIS, 2019), sinaliza a relevância das políticas de alívio da pobreza e de transferência de renda dos governos dos presidentes Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010). Se, por um lado, as 2
No Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social (ENPESS) – 2018 (Vitória – ES), na sessão de apresentação de trabalhos coordenada pelo Grupo Temático de Pesquisa (GTP) “Serviço Social, Geração e Classes Sociais”, observou-se que, quando comparado aos trabalhos apresentados nos Encontros de 2014 e 2016, foi esse o que reuniu o maior número de referências em Marx e em autores da tradição marxista internacional: Gramsci, Engels, Mészáros, Mandel, Lukács, Chesnais, Trotsky (ABEPSS, 2018).
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ações desses governantes (que tiveram impactos distintos e inúmeras diferenças entre si) propiciaram a redução das privações na infância e da mortalidade por desnutrição, por outro lado, mantiveram a coerção sobre as pessoas negras e pobres, alvos preferenciais da eliminação física por armas de fogo, principalmente as crianças e os adolescentes. Com a abertura política e a transição ao regime democrático, a dramática situação da infância não foi alterada e o extermínio de crianças e adolescentes, que teve na Chacina da Candelária, em julho de 1993, o momento de maior repercussão internacional, foi denunciado com preocupação por várias entidades antes mesmo da criação do ECA (VIDAS..., 1992; ALVIM, 1992). Dados distintos demonstram a necessidade de se privilegiar a formulação e a execução de políticas públicas de prevenção e enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes. A história não se repete, mas as tragédias, sim e, nesse sentido, cabe ressaltar que, no passado recente, mesmo com ameaças de morte aos militantes e toda repressão aos movimentos organizados, foram identificados grupos de justiceiros armados, conhecidos também como “polícia mineira”, com atuação no Rio de Janeiro e Baixada Fluminense. Em levantamento realizado entre janeiro de 1987 e junho de 1988, somente nos municípios da Baixada Fluminense e Volta Redonda, foram comprovados 306 assassinatos de crianças e adolescentes. A onda de assassinatos de adolescentes entre 1985 e 1989, somente no estado do Rio de Janeiro, ultrapassou mais de mil ocorrências (VIDAS..., 1992, p. 15-16). No presente, apesar de relativos avanços observados no campo das políticas públicas e dos direitos humanos e da intenção dos movimentos e entidades em superar a ideologia menorista, a violência institucional, os conflitos urbanos e as desigualdades sociais e raciais persistem. Estima-se que, de 57 milhões de crianças e adolescentes no Brasil, cerca de 27 milhões, ou mais de 47%, ainda sofrem privação de, pelo menos, um de seus direitos fundamentais, e quase 2 milhões estão fora da escola. Os atuais indicadores de homicídio comprovam também o recrudescimento da violência letal contra crianças e adolescentes. Mais de 80% dos assassinatos no Brasil são direcionados às pessoas negras (pretas e pardas) entre 10 e19 anos de idade. Os dados demonstram que esses homicídios, nas últimas três décadas, mais que duplicaram e são estimativas típicas de cenários de guerra. Reis (2019) afirma que: Entre 1990 e 2017, o número de homicídios na faixa etária de 10 a 19 anos mais que dobrou, passando de 5 mil para 11,8 mil casos ao ano, segundo dados do DATASUS. Em 2015, o número de meninos vítimas de homicídio no Brasil já era maior do que o número do total de meninos mortos na Síria (7,6 mil), a maioria em decorrência da guerra naquele ano (REIS, 2019, p. 29).
Embora o ECA aspire condições de igualdade e de democracia e seja uma lei destinada a todas as crianças e adolescentes, as principais violações dos direitos humanos se manifestam na vida dos segmentos negros e pauperizados da classe trabalhadora, salientando as diferenças e as desigualdades na infância. Algumas das expressões da “questão social” mais tematizadas, ao longo das três últimas décadas, foram as determinações que produzem crianças e adolescentes vivendo em situação de rua3, depois, os
3
Para saber mais sobre os estudos de crianças e adolescentes em situação de rua, ver: Rizzini e Wiik (1990); Leite (2001); Graciani (2001); Lemos e Giuliani (2006); Gatto (2017); Rizzini (2019).
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processos de institucionalização 4 , as perversas violações da sexualidade em cultura patriarcal 5 e a exploração do trabalho infantil no modo de produção capitalista6. Na produção do conhecimento sobre a infância e a adolescência, para além das denúncias de tortura e as violações de direitos humanos, são recentes as sistematizações sobre as disputas do fundo público e o Orçamento Criança e Adolescente (OCA)7. São essas algumas das dimensões investigativas8 fundamentais nas interpretações sobre o sentido de proteção social e que reafirmam a absoluta prioridade na efetivação dos direitos fundamentais e no delineamento das políticas públicas para crianças e adolescentes, mesmo sob determinações da crise do capital, da ideologia neoliberal e da necessidade de superação do racismo na infância (EURICO, 2020).
3 O mito da feliz(cidade) e a abordagem à infância Quando Lefebvre (2001), em suas noções preliminares, tece críticas aos elementos do processo de industrialização e de urbanização, demonstra as contradições da cidade nas experiências da sociedade moderna e revela um quadro de diferentes concepções políticas sobre desenvolvimento urbano. Na cidade há um sistema de valores, permeado por lazeres urbanos, como a música e a dança 9 , que exprimem costumes e modas assimilados por grupos etários e que também incorporam preocupações com a segurança e as perspectivas de futuro (LEFEBVRE, 2001, p. 19). No famoso funk brasileiro, de autoria de Cidinho e Doca, “eu só quero ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci”, duas situações podem ser destacadas: a denúncia de violência, racismo e desigualdades nas relações sociais da favela, e a evidência de que a possibilidade de andar tranquilamente na cidade do Rio de Janeiro expressa um motivo de felicidade nunca atendido pelos governos10. Por outro lado, há uma “felicidade ilusória”, inerente ao “urbanismo” ou a um determinado modo de vida nas cidades. Essa ideia difundida com entusiasmo pelo marketing do mercado imobiliário e seus comerciantes, tende a encobrir as contradições e apregoar um universo de harmonia plena, onde o consumo de um sonho (a casa própria, por exemplo) torna-se mais um ingrediente do processo de valorização do capital, dado que “com ou sem ideologia, o urbanismo torna-se valor de troca. O projeto dos promotores de vendas se apresenta como ocasião e local privilegiados: lugar de felicidade numa vida 4
Esse vasto material contém contribuições históricas sobre processo de institucionalização em abrigos e em unidades privativas de liberdade: Altoé (1990); Carvalho (1993), Silva (1997); Constantino (2000); Volpi (2001), Cecif (2004); Rizzini e Rizzini (2004); Sales (2007); Batista e Guará (2010); Silva (2011); Figueiró (2012). 5 Nesses estudos são tecidas as críticas à socialização de crianças e adolescentes e a necessidade de enfrentar o abuso e a exploração sexual: Azevedo e Guerra (1993); Santos (2010); Faleiros e Moraes (2016); Garcia e Pacheco (2016). 6 Esta literatura denuncia não somente a devastação da humanidade e as violências impostas na exploração do trabalho infantil: Gnaccarini (1991); Neves (1999); Batista (2003). 7 Por último, mais recentemente, um conjunto de obras aponta para relações de poder na esfera econômica, com as disputas em torno do fundo público: Cunha (1998); Sadeck Filho (2010); Suguihiro, Telles e Barros (2011); Salvador e Alves (2012); Lima (2015). 8 De acordo com a literatura, a pesquisa-ação sempre começa a partir de algum tipo de problema, pois “o conhecimento obtido na prática rotineira tende a permanecer com o prático individual e o obtido na pesquisa ação destina-se, o mais das vezes, a ser compartilhado com outros na mesma organização ou profissão”. (TRIPP, 2005, p. 449). 9 A Capoeira, o samba e o funk, em diferentes momentos históricos, foram objeto da criminalização pelo Estado, e são culturas apropriadas pelo mercado para favorecer o lucro e um ilusório processo de integração dos negros na sociedade de classes. 10 Numa crítica ao Programa Criança Feliz, do governo Michel Temer (2016-2018), evidencia-se que “muito embora a filosofia não tenha apresentado uma solução definitiva para a questão humana da felicidade, o governo brasileiro pretende fazê-lo ‘por decreto’ instituindo a felicidade”. (SPOSATI, 2017, p. 543).
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cotidiana miraculosa e maravilhosamente transformada”. (LEFEBVRE, 2001, p. 32). O mito da feliz(cidade) se expressa, não apenas na seletividade11 da liberdade de acesso e de circulação pela cidade, mas também demarca uma dimensão classista e racial da felicidade. Uma trágica e cristalizada concepção de proteção social, que remonta o conservadorismo e a ideologia eugênica (GÓES, 2018), incorpora elementos inerentes ao racismo e ao escravismo no Brasil. O estigma de sujeito perigoso, presente nas reclamações históricas dos comerciantes e no discurso da imprensa junto às camadas urbanas, ofuscou a humanidade e os traços infantis da face desses meninos e meninas descendentes de africanos escravizados. Amparados por um discurso radicalmente liberalem que o Estado não exercia efetivamente o papel de regulação social, a principal insatisfação social dos últimos anos do século XIX tinha um alvo: “os moleques negrinhos que perambulam pelas ruas, prejudicando a freguesia e as vendas” (NEDER, 2004, p. 43). Essa livre circulação de crianças e adolescentes pelas ruas das cidades, tão questionada pelas classes dominantes, exigiu, por parte das autoridades, ações de contenção com vistas a garantir a proteção à propriedade privada e ao patrimônio dos comerciantes e segmentos mais abastados e culminou na construção do “mito da periculosidade” (COIMBRA; NASCIMENTO, 2003). O atendimento coercitivo a esse segmento justificou a necessidade da criação de aparatos específicos de controle e tutela, como o Juizado de Menores e o Código de Menores, que não garantiram igualmente direitos, proteção ou cidadania, mas, ao contrário, favoreceram políticas para “conter e regrar a infância pobre, e não em atacar as reais causas produtoras da desigualdade existente”. (PEREIRA JÚNIOR, 1992, p. 15). O capitalismo brasileiro, sob novas determinações históricas, tem demonstrado uma reprodução de tendências políticas dos governos passados, ou seja, o viés cíclico de um conjunto de ações adotadas no trato do social e no uso corrente de práticas policialescas de limpeza urbana que vigoraram no início do século XX e perduram até os dias atuais. Com Pereira Passos, a reforma urbana de expurgo da população empobrecida popularmente conhecida como “Bota-abaixo” teve como contraponto a criação do Juizado de Menores e do primeiro Código de Menores para o enfrentamento seletivo dos “pivetes” e do medo social, decorrente da livre circulação destes pelas ruas da cidade. Isso justificou a necessidade de aparatos coercitivos para “conter e regrar a infância pobre, e não em atacar as reais causas produtoras da desigualdade existente”. (PEREIRA JÚNIOR, 1992, p.15). Na gestão de Carlos Lacerda, governador do estado da Guanabara na década de 1960, foi implementada a operação “Mata-mendigos” para ordenar a cidade para eventos internacionais, como a visita da Rainha Elizabeth. Esses formatos repressivos e emblemáticos12redundaram na institucionalização de longa permanência de crianças e adolescentes dos segmentos da classe trabalhadora na Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor (FUNABEM). Faleiros (1995), em seus estudos, já alertava sobre a 11
No livro “Até o último homem”, os autores tratam dos registros crescentes de mortos por homicídios no Brasil ao longo da história recente, e identificam que a seletividade tem um perfil classista, racial e geográfico: “a distribuição espacial dos homicídios no Brasil é assimétrica: algumas localidades apresentam taxas equivalentes às menores do mundo, ao passo que outras, às maiores. O peso da seletividade, por conseguinte, é econômico, ético e espacial (grifos nossos)”. (BRITO; VILLAR; BLANK, 2013, p. 216). 12 Lima (2013, p. 300) menciona que, na obra cinematográfica Topografia de um desnudo (AGUIAR, 2009), são esclarecidas possíveis dúvidas sobre a Secretária de Serviços Sociais do Governo de Carlos Lacerda ter ou não jogado pessoas no Rio Guandu. Isso está tão forte no imaginário popular que, num depoimento a favor do recolhimento, colhido numa dissertação de mestrado, há a seguinte passagem: “tem que ser igual no tempo do Lacerda que botava todo mundo num caminhão, matavam e jogavam no mar”. (GATTO, 2011, p. 125).
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tendência histórica em mesclar “assistência e repressão” no trato de crianças e adolescentes. A instituição era enquadrada numa dimensão autoritária do governo, onde tanto a política da infância como o conjunto de mecanismos de repressão, deveriam estar presentes em todas as partes, controlando, vigiando, educando, para que a integração se processasse de acordo com o plano racional elaborado pelos tecnocratas. No fim da década de 1980 e nos primeiros anos de 1990, os governos incorporaram o discurso da participação social e os compromissos com a ampliação da cidadania. O respeito à população mais pobre nas ruas e nas favelas e a criação dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), foram um esboço da tentativa de priorizar a educação pública e a lógica de proteção à infância, principalmente nos governos de Leonel Brizola, no estado, e de Saturnino Braga, no município, porém, com a sucessão desses governos, esta direção política e administrativa não foi continuada. O prefeito César Maia, em sua primeira gestão13 (1993-1996), criou a Guarda Municipal para assegurar uma a política de ordenamento urbano e, no que tange à assistência social à população em situação de rua (em especial ao público infantojuvenil), instituiu o Programa “Vem Pra Casa”, no âmbito da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS), firmando parcerias entre governo e entidades da sociedade civil. Em sua segunda gestão (2001-2004), César Maia reconfigurou a assistência social no âmbito Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS), e as mudanças político-administrativas, introduzidas com o Sistema Matricial de Assistência Social (SIMAS), conjugaram certos elementos daquilo que Rodrigues (2007) identificou como processo de assistencialização da seguridade social e da profissão de Serviço Social14. Diante da consolidação da rede de atendimento para crianças e adolescentes, a Prefeitura participou junto com o Governo do Estado do “Projeto Resgate” (2002). Esse Projeto, elaborado no âmbito do Juizado da Infância e da Juventude, objetivava o “recolhimento sistemático de garotos em situação de rua”. Esse governante também apoiou outro projeto bastante impopular, conhecido como “Cata-tralha”, que recolhia os “bens” dos moradores de rua na cidade, dificultando sua permanência nesses espaços. Além da focalização da ação política, observou-se um processo de precarização das condições de atendimento, superlotação dos abrigos municipais e mudanças substantivas na metodologia de atendimento em virtude de um contingente profissional de assistentes sociais recémconcursado. A perspectiva humanista preconizada na lei 15 sempre foi tensionada por políticas regressivas introduzidas pelo neoliberalismo. Todavia, o ECA encontrou adesão, pelo menos no plano do discurso e nas iniciativas políticas de cunho assistencial, em governos de orientação liberal social. Na gestão do Partido dos Trabalhadores (PT), na esfera federal, e do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), na esfera do estado e da cidade do Rio de Janeiro, foram combinados formatos políticos que 13
César Maia foi do Partido Comunista Brasileiro (PCB), do Partido Democrático Trabalhista (PDT) e chegou ao poder filiado ao PMDB. Depois, migrou para o Partido da Frente Liberal (PFL), atualmente, Democratas (DEM). Mesmo diante das expectativas sociais em relação ao Programa Favela-Bairro e ao conjunto de obras de infraestrutura na cidade, o político polemizou ao anunciar ser a “creolina” (produto de limpeza) a solução eficaz para acabar com a população nas calçadas do Rio de Janeiro. 14 A reflexão não desconsidera os investimentos realizados na área da assistência social e os concursos públicos para assistentes sociais, algo que propiciou maior visibilidade e reconhecimento político do direito social ao invés da ajuda e caridade, além de favorecer maior profissionalismo em “uma política social tratada historicamente como uma política menor, sem a expressão e a importância diante das demais políticas públicas” (RODRIGUES, 2007, p. 110). 15 É dever da família, do poder público e de toda a sociedade assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à convivência familiar e comunitária (BRASIL, 1990) e a comunidade é uma expressão do direito à cidade.
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reiteraram dialeticamente a prevalência da iniciativa público-privada e os aspectos assistenciais e coercitivos. Ao se fazer uma rápida digressão das políticas voltadas para a população infantojuvenil no Brasil, verifica-se que a assistência e a repressão são componentes indissociáveis tanto da face “humanista” da assistência social, vinculada mais recentemente pelas políticas de alívio da pobreza (MAURIEL, 2006), como pela face coercitiva do Estado, com seus mecanismos de cerceamento, controle e criminalização (BRITO; VILLAR; BLANK, 2013; WACQUANT, 2001). Nesse sentido, diante da preparação da cidade do Rio de Janeiro para receber grandes eventos nas primeiras décadas do século XXI, uma infeliz contradição na abordagem à infância ainda persiste.
4 Dimensão coercitiva da assistência social: grandes eventos e recolhimento compulsório Com o projeto de poder do Partido dos Trabalhadores (PT) no governo federal16 e a aproximação com as gestões dos governos do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), tanto no estado do Rio de Janeiro17 como na capital carioca18, se presenciou um arco de alianças políticas jamais visto na história recente. Cabe ressaltar que o Brasil, na nova ordem de “federalismo mundial”, despontou por três processos fundamentais e intimamente relacionados na organização geopolítica: a) por figurar como país dinamizador da abertura de mercados; b) por incentivar empreendimentos governamentais, predominantemente privados; c) por se traduzir como o carro abre-alas do desenvolvimento econômico e social que, em suas contradições, fazem prevalecer os interesses hegemônicos em detrimento de classes e grupos subalternos (IANNI, 2004). O Rio de Janeiro, cidade com maior visibilidade no país por conta do turismo e dos eventos internacionais19, esteve no centro de uma operação política e econômica muito complexa. Para dar conta dos megaeventos, o planejamento dos governos envolvia um conjunto de obras de grande vulto, o aquecimento da economia com parecerias público-privadas, e o cumprimento de exigências com investimentos em tecnologia e reforço do aparato de segurança. A eleição de Eduardo Paes 20 para a prefeitura do Rio de Janeiro foi uma maneira de selar a articulação governamental em três níveis. Em sua primeira gestão, a política oficial atrelou as dimensões assistenciais à “fúria normativa” da repressão e apostou no “choque de ordem” como ação mais emblemática da política de ordenamento urbano. Imputou um tratamento hostil não apenas à população em situação de rua, mas também aos trabalhadores ambulantes e informais (camelôs e flanelinhas). O governo demoliu o Elevado da Perimetral, implementou o projeto Porto Maravilha e polemizou ao lançar mão de expedientes truculentos de remoção forçada dos moradores de “áreas de risco” em favelas e em regiões marcadas por obras e intervenções urbanísticas (muitos sem indenização ou assistência do governo). Temos concordância com a afirmação de Ignácio Cano quando o autor menciona que: 16
Mandatos de Lula I e II (2003-2006 e 2007-2010) e Dilma I e II (2011-2014 e 2014-2016). 17 Mandatos de Sérgio Cabral I e II (2007-2010 e 2011-2014) e Luiz Fernando Pezão (2015-2018). 18 Mandatos de Eduardo Paes I e II (2009-2012 e 2013-2016). 19 A Rio + 20 (realizada em 2012), a Copa das Confederações (junho de 2013); a Jornada Mundial da Juventude (julho de 2013) e o Rock in Rio (setembro de 2013 e 2015), a Copa do Mundo (2014) e as Olimpíadas e Paraolimpíadas (2016). 20 Eduardo Paes foi considerado, pela Revista Época, uma das cem personalidades mais influentes do Brasil em 2009, provavelmente pela assertividade na repressão aos segmentos pauperizados e no “novo desenvolvimentismo” que, segundo Gonçalves (2012, p. 664), parece ser “a versão brasileira de formulações conhecidas como Pós-Consenso de Washington”.
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Infância, mito da feliz(cidade) e a dimensão coercitiva da assistência social Rodrigo Silva Lima Uma coisa é perseguir quem lucra vendendo produtos sem condições sanitárias ou construindo prédios em solo público com um fim comercial, medidas a serem aplaudidas, outra muito diferente é enxotar os pobres das áreas nobres, tratando-os como se fossem, eles próprios, o problema (…) A prefeitura do Rio parece continuar uma longa tradição de hostilidade a grupos marginalizados, desde os capoeiras no século XIX a prostitutas e mendigos em tempos mais recentes. Se as administrações do anterior prefeito encararam sua fúria normativa contra camelôs, a população de rua parece ter se tornado o alvo da vez (…); basta ligar para a prefeitura para que os moradores de rua sejam retirados de um local, como se fossem entulho. (CANO, 2009, p. 7).
Uma medida que acirrou a lógica do ordenamento urbano foi o Programa “Crack, é Possível Vencer”21, lançado pelo governo federal em 2011. O governo municipal contou com o apoio do Sistema de Justiça ao metamorfosear a ação da assistência social por um viés policialesco e encobrir o autoritarismo das incursões de repressão sob um falso manto de proteção social. Se, por um lado, a Embaixada da Liberdade, uma unidade de atendimento humanizado pensada como mediação entre a internação e o acompanhamento no Centro de Atendimento Psicossocial (CAP) e que incorporava a perspectiva da Redução de Danos (SILVA, 2017, p. 139), foi uma grande novidade, por outro lado, as velhas práticas do poder público, com perseguições implacáveis às pessoas em situação de rua, em especial crianças e adolescentes dependentes de substâncias psicoativas, foram intensificadas. Como parte do processo político, a Prefeitura aprovou, em 27 de maio de 2011, a Resolução n. º 20 da Secretaria Municipal de Assistência Social (RIO DE JANEIRO, 2011), “que cria e regulamenta o Protocolo do Serviço Especializado em Abordagem Social”. No art. 5º dessa resolução são indicados os procedimentos desse Serviço e regulamentada a ação de equipes do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) – Equipe Técnica e Educadores. A polêmica em relação à Resolução ficou ainda mais acirrada com o trecho que previa o recolhimento compulsório: A criança e o adolescente que esteja nitidamente sob a influência do uso de drogas, afetando o seu desenvolvimento integral, será avaliado por uma equipe multidisciplinar e, diagnosticada a necessidade de tratamento para recuperação, o mesmo deverá ser mantido abrigado em serviço especializado de forma compulsória (RIO DE JANEIRO, 2011).
O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) declarou que a Resolução era ilegal e sugeriu a sua imediata suspensão. Nas argumentações do órgão, evidenciou-se o descompasso entre a Resolução e as normativas nacionais e internacionais, como a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (CDC, 1989), bem como com a Política Nacional de Atendimento à Saúde Mental, pois se considerou que “a resolução (…) que propôs o Protocolo de Abordagem da Pessoa em Situação de Rua não pode deliberar sobre temas que afetam as crianças e adolescentes por não ter atribuição legal para tanto”(DIETRICH, 2011 apud LIMA, 2013, p. 312). A questão do uso das drogas e de substâncias psicoativas mobiliza a atenção de toda a sociedade e, geralmente, as soluções para o seu enfrentamento são carregadas de discursos moralizantes que criminalizam a população usuária. Segundo Garcia (2003, p. 199) “há uma tendência à simplificação de problemas complexos quando atribuímos à droga a responsabilidade pela dissolução das famílias, pela entrada dos jovens na criminalidade, pela violência urbana”. A justificativa apresentada pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS) era, em linhas gerais, a de “prender para proteger”, 21
A dissertação de Silva (2017) faz uma análise crítica dessa expressão da “questão social”.
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reciclando as práticas do período autoritário. A metodologia de parcela dos profissionais da linha de frente da intervenção, muitos deles contratados com o fito de utilizar a força física, destoava completamente de toda construção que foi feita nas gestões anteriores, desde o Programa “Vem Pra Casa”. O recolhimento compulsório, justificado por parte dos técnicos do Poder Executivo e do Judiciário como um “mal necessário” para combater essas expressões da “questão social”, foi realizado diante da insuficiência de instituições apropriadas para o atendimento do público alvo e sem a articulação intersetorial entre as políticas de saúde, de educação e de assistência social. Como bem afirmou Brites (2013), essa repressão atende aos interesses econômicos e políticos ligados à especulação imobiliária, à mercantilização da cidade e ao lobby de clínicas particulares. As tendências truculentas de limpeza das ruas e a “pacificação” vigente nas favelas cariocas inviabilizaram todas as tentativas de retomada do diálogo entre os movimentos de defesa dos direitos de crianças e adolescentes e a Prefeitura do Rio22. Com a pressão política de inúmeras instituições comprometidas com a consolidação da esfera pública e a garantia dos direitos humanos – que defendiam a política de redução de danos, os Consultórios na Rua e a ampliação do atendimento em Centros de Atendimento Psicossocial para infância e juventude, dentre outros (OLIVEIRA; DISTLER, 2013) – a credibilidade do governo foi abalada não apenas com a constatação de uma refuncionalização conservadora da política de assistência social, que se materializou com aumento da presença coercitiva das equipes de abordagem nas ruas23, mas, fundamentalmente, pelas denúncias sobre o desvio de recursos públicos24.
5 O CRESS contra a corrente: Operação e Plano Verão O Conselho Regional de Serviço Social (CRESS 7ª Região) é uma entidade com personalidade jurídica e com o objetivo básico de disciplinar e defender o exercício da profissão de assistente social no âmbito do estado do Rio de Janeiro25. Como patrimônio político de assistentes sociais, o CRESS tem sido um espaço relevante de construção de estratégias profissionais e de organização política da categoria. O referido órgão, acionado por assistentes sociais da SMDS e pelo Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (MECPT), iniciou, em outubro de 2015, o acompanhamento da Operação Verão, por meio da Comissão de Assistência Social, da Comissão de Orientação e Fiscalização (COFI) e de ações sistemáticas de toda a diretoria. 22
Observa-se que um conjunto de ações como a gestão policial militar dos espaços urbanos, a guerra às drogas, a privatização da segurança e das intervenções urbanas, contribuíram para naturalização da experiência cultural da violência (BRITO; VILLAR; BLANK, 2013, p. 218). 23 Também foram evidenciadas as dificuldades no estabelecimento de laços, por causa de uma ruptura nas relações de confiança e da inexistência de uma intervenção pautada pelo respeito e pela cumplicidade com a população em situação de rua. 24 Segundo reportagens, cerca de R$ 1 milhão foram pagos à Organização Não Governamental Tesloo (em convênio com a Secretaria de Desenvolvimento Social), por serviços não executados. O Ministério Público suspeita de desvio de dinheiro e enriquecimento ilícito. Disponível em http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/07/mp-rj-investiga-se-socio-debethlem-usava-empresas-para-desviar-dinheiro.html. Acesso em: 20 ago. 2020. 25 O Serviço Social é uma profissão que surge no Brasil em 1936 e, atualmente, seu o aparato legal se encontra, respectivamente, na Lei de Regulamentação da Profissão e no Código de Ética Profissional, por meio da Lei n.º 8.862, de 07 de junho de 1993 e com adendo da Lei n.º 12.317, de 26 de agosto de 2010, e também pelas resoluções administrativas aprovadas em 13 de março de 1993, com as alterações introduzidas pelas Resoluções CFESS nº290/1994, 293/1994, 333/1996 e 594/2011. Disponível em http://www.cfess.org.br/visualizar/menu/local/regulamentacao-da-profissao Acesso em: 5 out. 2020.
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O que foi a “Operação Verão”? Essa ação ostensiva vinha sendo planejada, aproximadamente, desde 2013, pelo setor de inteligência da Secretaria de Estado de Segurança Pública. O monitoramento das ruas e das praias da zona sul da cidade do Rio de Janeiro, por causa dos megaeventos internacionais, juntamente com a criação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), fazia parte de um conjunto de medidas para garantir a “segurança” da população, fato que reforça a semelhança da cidade com regiões sitiadas por conflitos urbanos. Nas palavras de estudiosos da violência e segurança pública, “o Rio de Janeiro apresenta várias semelhanças com outras áreas urbanas saturadas de conflitos armados, e algumas oficialmente em ‘estado de guerra’ e outras em ‘estado de paz’ (ou, pelo menos, de ausência oficial de guerra)”. (BRITO; VILLAR; BLANK, 2013, p. 217). Em reunião realizada no Quartel Geral da Polícia Militar em setembro de 2014 com várias entidades do governo e da sociedade civil, o Coronel responsável mencionou que “a pressão da sociedade e da mídia, em cima da Polícia Militar, é muito grande e alguma resposta deve ser dada”, dando a entender que, mesmo com todo o planejamento da Polícia, são os veículos de comunicação que pautam ações de repressão, frequentemente. Um ano depois, em agosto de 2015, após a divulgação de cenas de “arrastões” nas praias e correrias na região mais abastada da cidade, foi deflagrada a Operação Verão, pois “o clima de insegurança reinante aumenta a sensação de urgência e reduz o espaço para intervenções de longo prazo. Todavia, as ações de segurança pública no país são, muitas vezes, pautadas pela imprensa”. (CANO, 2009). Essa operação consistiu, diante de um quadro bastante complexo, numa “ação preventiva”, que impedia às pessoas, na maioria jovens e pobres de regiões periféricas (sem documentos, descalços e sem camisa), de circularem nos ônibus em direção à zona sul. Nessa lógica que ultrageneraliza o comportamento de determinados jovens, como se todos fossem criminosos (até que se prove o contrário), são delineadas as características do “pensamento conservador” (IASI, 2015, “não paginado”). As contradições das políticas públicas, as lacunas deixadas pelo Estado nas áreas de educação, saúde, assistência e segurança pública, bem como a disseminação de uma cultura de repressão, encarceramento e eliminação física, são reforçadas por uma realidade social adversa para amplos contingentes populacionais e por pautas sensacionalistas dos veículos de comunicação que induzem à construção de um modelo de proteção amparado pela “justiça com as próprias mãos” ou pela incorporação e naturalização da prestação de serviços de segurança privada (LIMA, 2016). Uma espécie de “procedimento operacional padrão” orientou, não somente as práticas coercitivas do poder público, mas também as análises mais conservadoras da mídia. Aliás, o imediatismo e as soluções pragmáticas, pautadas pelo uso da força e recheadas de superficialidade na análise concreta dos fenômenos, constituíram, mais uma, vez a base do enfrentamento aos sujeitos considerados “indesejáveis” (GATTO, 2017). O conservadorismo, em suas múltiplas faces, simplifica as saídas para questões extremamente complexas, porém, esse pensamento não estava adormecido no passado, “sempre esteve ali nas relações que constituem o cotidiano e na consciência imediata”. (IASI, 2015, “não paginado”). No bojo dessa Operação, gravitava o sentimento de medo, o discurso de ódio26, a necessidade de limpeza urbana e até mesmo o incentivo à eliminação física. O armamento de moradores e de grupos de justiceiros da zona sul, que proclamavam a necessidade de autoproteção individual no enfrentamento direto às crianças, aos adolescentes e aos jovens que frequentavam as praias da região, foi o estopim do conflito. A violência e as perseguições nas ruas de Copacabana justificaram a introdução da força policial e da guarda municipal para manutenção da ordem urbana, 26
Na dissertação de Oliveira (2020), há uma importante reflexão sobre o discurso de ódio no Parlamento.
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(…) podemos destacar a posse (legal e ilegal) de armas, o aprendizado de técnicas de defesa pessoal, a blindagem de casas e automóveis, a utilização de câmeras de vigilância, o isolamento em condomínios fechados, a contratação de seguranças privados, a formação de milícias e gangues para eliminação dos ‘indesejáveis’. (BRITO; VILAR; BLANK, 2013, p. 228).
E o “Plano Verão”, em que consistiu? Arquitetado no âmbito da Prefeitura do Rio de Janeiro, foi uma ação secundária e complementar à Operação Verão, mas que mobilizou politicamente o CRESS RJ e mais de uma dezena de entidades governamentais e da sociedade civil. Assistentes sociais da SMDS (juntamente a educadores sociais, psicólogos, pedagogos) foram obrigados a trabalhar numa perspectiva de cerceamento da liberdade e impedimento da convivência comunitária. Prestavam atendimento social em área aberta, sem a garantia do sigilo, em tendas montadas nas praias, ao lado da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro e da Guarda Municipal, com intuito de atender, muitas vezes a contragosto, crianças e adolescentes recolhidas nas ações coercitivas nas ruas e nos ônibus. O CRESS, antes mesmo de ser acionado formalmente por uma parcela da categoria indignada com tais ações, manifestou-se publicamente, numa nota de grande repercussão, com alguns dos deveres previstos no Código de Ética das/dos Assistentes Sociais (Art. 3, c; Art. 5, b): Abster-se, no exercício da Profissão, de práticas que caracterizem a censura, o cerceamento da liberdade, o policiamento dos comportamentos, denunciando sua ocorrência aos órgãos competentes; Garantir a plena informação e discussão sobre as possibilidades e consequências das situações apresentadas, respeitando democraticamente as decisões dos/as usuários/as, mesmo que sejam contrárias aos valores e às crenças individuais dos/as profissionais, resguardados os princípios deste Código. (CFESS, 1993, p. 4-5).
Esse documento foi importante, pois reafirmou o posicionamento de muitos profissionais, contrários à Operação e ao “Plano Verão”, e serviu para dissipar a confusão decorrente de sua implementação, que atrelava o papel político da “assistência social” e, consequentemente, o trabalho de assistentes sociais, ao que Donzelot (1986) chamou de “polícia das famílias”. Questionamentos por parte das equipes da SMDS, em especial, assistentes sociais, eram de que seu trabalho deveria apontar para a garantia de direitos, para a “liberdade protegida”, destinada para os usuários da política, e não para uma falsa liberdade contida num processo de vigilância perverso ou “focalizado somente nas classes subalternizadas”. (DONZELOT, 1986, p. 48). Para fazer valerem os princípios do Código de Ética, bem como as deliberações políticas27, as estratégias para que o CRESS não estivesse sozinho nessa luta envolveram: visitas de fiscalização 28 , 27
Parte do planejamento do Encontro Nacional CFESS-CRESS, realizado em Brasília (2014), indicava: “participar e acompanhar criticamente o processo de implementação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), conforme princípios inscritos na agenda permanente do Conjunto CFESS/CRESS”. 28 As visitas ocorreram em 25 de outubro e 20 de novembro de 2015 e em 07 de janeiro de 2016 (na primeira visita, as responsáveis pelos dois abrigos impediram a entrada das entidades alegando que tinham ordens superiores proibindo a entrada aos finais de semana). Participaram das visitas CRESS 7ª Região, CRP 5ª Região, OAB - Rio, Mecanismo Estadual para Prevenção e Combate à Tortura (MEPCT), Centro Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDCA), e a Comissão Estadual de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. Outras
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articulação com uma rede de entidades de defesa dos direitos humanos, reuniões frequentes para discutir as ações da Operação e Plano Verão no auditório do CRESS 29 , e manifestações por meio de notas, reportagens e atos públicos de repúdio à segregação social baseada em quaisquer critérios, sejam eles raciais, econômicos ou territoriais. Algumas dessas ações podem ser enumeradas abaixo: 1) visitas conjuntas de fiscalização às tendas e aos equipamentos sociais da SMDS;2) marcação de audiências conjuntas entre CRESS, Conselho Regional de Psicologia - CRP e Ordem dos Advogados do Brasil - OAB com o subsecretário de Proteção Especial (quase todas desmarcadas pelo gestor na última hora); 3) reuniões ampliadas para discutir a Operação e o Plano Verão; 4) realização de notas públicas pera sites, redes sociais e veículos de comunicação; 5) produção de matérias para a Revista Práxis, 6) envio de e-mails para parlamentares, Chefe do Poder Executivo, nas três esferas de governo, assim como para partidos políticos e ouvidorias públicas; 7) participação em audiências em que representantes da Secretaria de Segurança Pública e SMDS estivessem presentes;8) reuniões com gestoras da SMDS junto com a Comissão de Orientação e Fiscalização (COFI); 9) realização de análise de conjuntura com 15 (quinze) instituições e mais de 50 (cinquenta) pessoas diferentes;10) assinatura de documento conjunto a ser enviado para as organizações internacionais – Organização das Nações Unidas; 11) denúncia de tais situações no Conselho Estadual de Assistência Social, 12) Mobilização dos trabalhadores do Sistema Único de Assistência Social e do Fórum dos Trabalhadores do SUAS inconformados com o posicionamento coercitivo dos altos escalões da assistência social da Prefeitura do Rio, dentre outras. (GILABERTE et al., 2016, p. 8).
Tentou-se afinar um discurso coletivo, amparado na legislação, de que não há restrição ao direito de ir e vir nem na Constituição Federal e nem no ECA. Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), o direito à liberdade (Art. 16) compreende: a) brincar, b) praticar esportes e c) divertirse; d) participar da vida familiar e comunitária, sem discriminação; d) buscar refúgio, auxílio e orientação; e) ir vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários, com ressalva às restrições legais. (LIMA, 2016). Diante das violências e violações de direitos, compreende-se que às infâncias são impostos os maiores obstáculos de circulação pela cidade. A diretoria do CRESS, por meio da COFI, no acompanhamento das ações da Prefeitura, convocou formalmente as gestoras da Proteção Especial da SMDS para esclarecimentos sobre o exercício profissional de assistentes sociais no contexto da Operação e Plano Verão e, consequentemente, exigiu o cumprimento das diretrizes da Política Nacional de Assistência Social – PNAS (BRASIL, 2005). Foram identificados avanços quanto à orientação da SMDS na redefinição de algumas funções e a redução da participação de assistentes sociais nas abordagens. Contudo, dois aspectos preocupantes foram constatados. O primeiro é que, a partir do rodízio entre as equipes dos CREAS, aos fins de semana, as assistentes sociais se deslocavam para plantões nas tendas montadas nas praias e, pela compensação com
entidades foram convidadas e não participaram, como o Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA) que não esteve presente formalmente nessas ações através de representantes do governo municipal, somente através de representantes da sociedade civil. 29 Participaram, além das entidades citadas na fiscalização: Rede Rio Criança (RRC), Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (CEDECA-Rio); Justiça Global (JG), Projeto Legal (PL), Movimento Moleque (MM), Redes da Maré (RM), Associação dos Conselheiros Tutelares do Estado do Rio de Janeiro (ACTERJ), Fórum Estadual de Direitos de Crianças e Adolescentes (FDCA), Fórum Estadual de Trabalhadores do SUAS (FETSUAS), Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (MEPCT); Conselho Estadual de Assistência Social (CEAS), Defensoria Pública (DPERJ), Ministério Público (MPERJ), Educadores Sociais, Assistentes Sociais – SMDS. CEBRASPO e Associação de moradores de Padre Miguel, dentre outras.
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as folgas no horário comercial, os atendimentos junto à população usuária precisaram ser remanejados, evidenciando a defasagem de profissionais30. O segundo é que foram observadas práticas que extrapolavam à lógica dos serviços assistenciais. A aproximação das equipes com as famílias de crianças e adolescentes abordadas na Operação e Plano Verão se deu por meio da “busca ativa” 31 , porém, os instrumentais elaborados, nessas visitas domiciliares, além de conterem perguntas impertinentes e constrangedoras, poderiam contribuir para a produção de provas contra os usuários, reiterar estigmas conservadores e velhos preconceitos de classe, típicos de um cenário crescente de criminalização da pobreza. Podem ser destacados, dentre outros resultados: (1) a interferência direta das mencionadas ações governamentais na garantia dos direitos humanos de crianças e adolescentes; (2) a ampliação da visibilidade na mídia e a defesa do Serviço Social como profissão; (3) a realização de orientações para assistentes sociais, em especial, com atuação em cargos de gestão e de confiança, bem como a produção de um termo de orientação sobre a utilização do instrumento de visita domiciliar; (4) a canalização de esforços para rearticular militantes com atuação histórica e organizações da sociedade civil que atuam em defesa dos direitos de crianças e adolescentes e; (5) apresentação de demandas concretas na sensibilização de docentes em universidades públicas para a realização de atividades de extensão e formação continuada nestas temáticas.
6 Considerações finais O ECA completou 30 anos num momento histórico marcado por alterações nas formas de sociabilidade32. Embora existam motivos para comemorar, pelo fato de esse ordenamento romper com estigma do termo “menor” e reafirmar a condição humana de um segmento em condição peculiar de desenvolvimento, os índices de violência letal aumentaram, a repressão nas ruas e favelas ganharam novos contornos, os agentes de segurança do regime socioeducativo foram autorizados a ter porte de armas e a brutal realidade tem insistido em contrariar a felicidade dessa celebração. As bandeiras de luta que defendem “nenhum direito a menos” são fundamentais no horizonte político de expropriação dos direitos, porém é muito frustrante constatar que, mesmo com toda organização política e todos os esforços de militantes espalhados pelo país, uma infância feliz, que goze de acesso aos direitos fundamentais e disponha em seu cotidiano de uma ampla rede de proteção social, com sorrisos, brinquedos e afetos, ainda não passe de uma idealização para a maioria das famílias brasileiras. A cidade, sendo um espaço de disputa e contradições, atende aos interesses de classes antagônicas e a convivência comunitária de crianças e adolescentes, tangenciada pelo processo de acumulação do capital, tem sido atravessada por desigualdades sociais e pela reprodução do racismo, do machismo e do adultocentrismo. Nas áreas metropolitanas, palco dos chamados megaeventos, foi destinado um grande volume de investimentos em obras, empreendimentos imobiliários e nos aparatos de segurança e repressão – algo que contrasta com os recursos orçamentários enxutos destinados à assistência social. 30
Há necessidade de concurso para mais de 500 assistentes sociais nos quadros da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. 31 Estratégia prevista no Plano Brasil Sem Miséria, de Dilma Rousseff, que pretendia ir ao encontro de famílias ainda não amparadas pelas políticas de transferência de renda com condicionalidades. 32 Com a crise agravada pela pandemia da Covid-19, que ultrapassou 145 mil mortos no Brasil no mês de setembro de 2020, o acesso à escola e à socialização nos espaços públicos, fundamentais para o desenvolvimento infantil, foram dificultados por causa das estratégias de distanciamento social. A alteração na rotina da população, bem como a instabilidade na vida de amplos segmentos, tem repercutido em aumento dos casos de violência doméstica e em diversos problemas de saúde.
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A população pauperizada, com a interferência da política de assistência social, foi duramente sufocada, como se estivesse com o pescoço num “cabo de guerra”. De um lado da corda, o enrijecimento estatal se expressou com as ações de despejo e remoção sem indenização, com a destituição do poder familiar de mulheres pobres e a sua separação de seus filhos recém-nascidos, com o cerceamento da liberdade de crianças e adolescentes. E, do outro lado da corda, a coerção do Poder Judiciário, somada ao papel desempenhado pela polícia militar e pela guarda municipal, ganhou mais uma aliada: a Federação do Comércio do Estado do Rio de Janeiro, responsável pelo financiamento da Operação Segurança Presente. Por fim, a anuência de determinados profissionais às requisições coercitivas da assistência social é expressão das armadilhas ideológicas que desconsideram o estatuto teórico da questão social e que encontram eco, geralmente, na simplificação das propostas de confinamento como única saída, e terminam por reproduzir, muitas vezes, a tônica do “prender para proteger”. Muitos não enxergaram saídas para enfrentar a trágica situação que envolve os transtornos pelo uso de substâncias psicoativas, porém, nessa mesma dinâmica, foi pela crítica coletiva ao recolhimento e à internação compulsória, bem como pela consciência de classe e pela reciprocidade do olhar profissional que, diante das rupturas com o universo infantil, escolar e familiar, foi possível atribuir, principalmente, às/aos assistentes sociais um relevante papel de resistência política e de denúncia diante das violações dos direitos humanos. Os Conselhos profissionais, mesmo diante de limites legais, pois não são movimentos sociais ou sindicatos, figuram como espaços legítimos de organização política da categoria. A ação do CRESS, pautada pela defesa do Projeto Ético-Político do Serviço Social e grande articulação coletiva, permitiu pressionar e redefinir, mesmo que provisoriamente, as ações da política de assistência social na cidade do Rio de Janeiro. A crítica à dimensão coercitiva da política de assistência social não se transpõe mecanicamente para o Serviço Social. Contudo, a ação do CRESS, em sua função precípua de orientação e fiscalização do exercício profissional de assistentes sociais, contribuiu com a reflexão crítica sobre a dimensão coercitiva da assistência social e a avaliação moralista em relação à população usuária. Também permitiu a retomada das discussões sobre projetos de trabalho, atribuições e competências profissionais, bem como preveniu possíveis violações do Código de Ética. Por fim, para além do fatalismo e do messianismo presente no trabalho de alguns assistentes sociais, se as práticas mecanicistas e acríticas ou o engajamento em atividades de cunho policialesco, que revelam uma face do conservadorismo profissional na política de assistência social, podem repercutir em denúncias, infrações éticas e penalidades, por outro lado, feliz é a cidade que, cercada por tantas contradições, pode contar com a intervenção do CRESS (e de outras entidades como MEPCT, CRP, OAB etc.) e com o compromisso ético de assistentes sociais e de demais profissionais na adoção de estratégias criativas para cumprir o ECA, enfrentar o conservadorismo, e driblar requisições institucionais repressivas no atendimento cotidiano à infância.
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Infância, mito da feliz(cidade) e a dimensão coercitiva da assistência social Rodrigo Silva Lima
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Submetido em: 31 ago. 2020 Aceito em: 11 dez. 2020
DOI: 10.19180/1809-2667.v22nEspecial2020p772-786
A tortura no superencarceramento: Estado brasileiro e questão criminal Torture in over-incarceration: Brazilian State and the criminal matters Tortura en el superencarcelamiento: Estado brasileño y la cuestión penal Fábio do Nascimento Simas https://orcid.org/0000-0001-6079-9887 Doutor em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor Adjunto da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (ESS/UFF) – Niterói/RJ – Brasil. E-mail: fabiosimas@yahoo.com.br.
Resumo O presente ensaio busca problematizar a relação entre o superencarceramento no Brasil e o incremento das práticas de tortura pelos aparelhos de repressão do Estado brasileiro, cuja base material são as formas utilizadas de gestão da pobreza a partir da crise do capital. Entende-se aí que tais formas consagradas de gestão da pobreza possuem particularidades que não podem ser desprezadas na sociedade brasileira, dada a sua formação social de capitalismo dependente, marcada pela autocracia burguesa e pelo racismo estrutural. Para tanto, problematiza-se o reposicionamento da luta de classes nas últimas décadas, a função desempenhada pelo sistema criminal no capitalismo e suas formas no Brasil contemporâneo. Neste sentido, foram utilizadas pesquisas e dados estatísticos que indicam a relação do superencarceramento com o agravamento da tortura. Palavras-chave: Prisão. Tortura. Violência de Estado. Questão criminal.
Abstract The present essay seeks to problematize the relationship between over-incarceration in Brazil and the increase in torture practices by the repression apparatus of the Brazilian State. Its material basis is the forms of poverty management used since the capital crisis. It is understood that such consecrated forms of poverty management have particularities that cannot be neglected in Brazilian society, given its social formation of dependent capitalism marked by bourgeois autocracy and structural racism. To this end, we problematize the repositioning of the class struggle in recent decades, the role played by the criminal system in capitalism and its forms in contemporary Brazil. In this sense, we used research and statistical data that indicate the relationship between over-incarceration and worsening torture. Keywords: Prison. Torture. State violence. Criminal matters.
Resumen El presente ensayo busca problematizar la relación entre superencarcelamiento en Brasil y el aumento de prácticas de tortura perpetradas por el aparato represivo del Estado brasileño, cuya base material son las formas de manejo de la pobreza utilizadas a partir de la crisis del capital. Se entiende que tales formas consagradas de manejo de la pobreza tienen particularidades que no pueden ser desatendidas en la sociedad brasileña, dada su formación social de capitalismo dependiente marcado por la autocracia burguesa y el racismo estructural. Para ello, se problematiza el reposicionamiento de la lucha de clases en las últimas décadas y el papel que juega el sistema criminal en el capitalismo y sus formas en el Brasil contemporáneo. Así, se utilizaron investigaciones y datos estadísticos que indican la relación entre superencarcelamiento y agravamiento de la tortura. Palabras clave: Prisión. Tortura. Violencia estatal. Cuestión criminal.
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A tortura no superencarceramento: Estado brasileiro e questão criminal Fábio do Nascimento Simas
1 Introdução O Brasil é, acima de tudo, uma forma de violência Vladimir Safatle
O presente artigo visa fazer um debate acerca do crescimento exponencial do encarceramento no Brasil e da sua vinculação com a tortura, tendo como parâmetro uma análise sobre Estado brasileiro no capitalismo dependente. Neste sentido, pretendemos realizar uma análise histórica e conceitual dessas formas de violência do Estado. Assim sendo, será brevemente problematizado o caráter de classe do Estado na sociedade burguesa e quais formas foram assumidas historicamente no Brasil, país cuja inserção dependente no capitalismo se deu a partir da via autocrática, sendo o racismo um de seus elementos estruturais. Em seguida, a questão criminal e seus efeitos da criminalização enquanto instrumento de dominação de classe serão brevemente debatidos. Partimos do entendimento de que a tortura é uma particularidade da violência de Estado, sendo então uma de suas formas mais agudas. A segunda metade do século XX caracterizou-se no âmbito mundial por uma série de documentos de proteção de direitos humanos, dentre os quais a tortura se colocava como proibida. Nas últimas décadas, e no contexto da crise do capital, assistiu-se a um acirramento das medidas repressivas como contenção de tais contradições. A esse fenômeno no Brasil damos destaque ao crescimento exponencial da população prisional, a partir dos anos de 1990, e ao aparente paradoxo que se constituiu entre a aprovação da lei da tortura e a sua perpetuação pelo Estado no contexto da democratização.
2 Capitalismo dependente, Estado e questão criminal O modo de produção capitalista é uma contradição dinâmica, isto é, por mais que ele preserve suas leis gerais, suas formas, estas variam de acordo com o caráter de inserção no mercado mundial. Neste sentido, privilegiamos também, para análise da realidade brasileira, a sua condição de capitalismo dependente, isto é, uma forma particular de capitalismo integrada ao sistema mundial. Capitalismo dependente1 compreende, grosso modo, a particularidade da periferia do capitalismo com sua inserção associada e subordinada ao imperialismo. Osorio (2017), com base no pensamento de Ruy Mauro Marini, destaca as suas duas principais características: a ruptura do ciclo do capital entre a esfera da produção para a sua realização e a condição de superexploração. Deste modo, podemos sinalizar que há uma priorização da produção em atender o mercado externo, ao passo que, internamente, constitui-se uma estreita e poderosa esfera de consumo. Por seu turno, a generalização da superexploração2 1
O debate em torno da teoria da dependência no âmbito do marxismo é deveras profícuo, complexo e multifacetado cujas problematizações mais aprofundadas extrapolariam os limites deste trabalho. Sobre uma síntese teórica das principais categorias da teoria marxista da dependência ver Luce (2018). 2 É importante situar que a dinâmica da superexploração não é exclusiva do capitalismo dependente, expressando-se também nos países centrais. Ocorre que nestes países, a superexploração se dá em situações de crise e/ou em segmentos pauperizados da classe trabalhadora como imigrantes e certos grupos étnico-raciais enquanto nos países de capitalismo dependente a superexploração é generalizada.
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envolve uma apropriação pelo capital de parte do valor de consumo do trabalhador, que se dá através de um salário abaixo do valor dessa força, implicando assim um prolongamento da jornada de trabalho e um prematuro desgaste da força de trabalho, que também se favorece pela abundância do exército de reserva. Em linhas gerais, nos países de capitalismo dependente como os da América Latina, o Estado tem uma função protagonista. De um lado, ele conjuga os interesses de uma classe dominante, esta que assume um processo de concentração e centralização aguda de capitais, associado subalternamente ao capital imperialista e, por outro lado, esse mesmo Estado necessita, para manter o patamar de superexploração de forma contínua, do farto uso de seus aparelhos de repressão. Desta forma, as estratégias históricas de manutenção da elevada desigualdade social nesses países tendem ao agravamento da violência coercitiva do Estado. Não por acaso, a democracia liberal estável se tornou um acidente histórico nessas formas de sociedades capitalistas. É importante situar no processo histórico que a condição de dependência é estruturante na América Latina, mas também dinâmica. Vale dizer que países como Brasil, Chile, México e Argentina, por exemplo, possuem um vasto parque industrial e se consolidam como economias de grande porte no capitalismo internacional. Ocorre que sua base socioeconômica ainda é predominantemente de fornecimento de matérias-primas e ela estabelece tal relação estando subordinada ao grande capitalimperialista. Ao analisarmos a realidade sócio-histórica brasileira, priorizamos os conceitos de autocracia burguesa e do racismo estrutural. Sendo uma forma particular de capitalismo dependente, a formação social brasileira expressa sua condição heteronômica; isto é, os processos sociais internos se vinculam, historicamente submetidos ao mercado mundial, articulando dialeticamente subdesenvolvimento e desenvolvimento, dependência e império. A autocracia burguesa exprime a via de desenvolvimento capitalista predominante no Brasil, esta que se estrutura para atender o interesse de uma pequena parcela da classe dominante e que alija a participação popular dos processos decisórios (FERNANDES, 2006). Por seu turno, a inserção do Brasil nas relações capitalistas se deu pela articulação da oligarquia latifundiária com a emergente burguesia a partir do caráter colonial, dependente e antidemocrático. Tal condição histórica define o papel desenvolvido pelo Estado na república brasileira pois ao demarcar a dificuldade da burguesia brasileira de exercer sua hegemonia, este mesmo Estado faz uso constante da força sempre associado subalternamente ao capital monopolista. Trata-se assim de uma autocracia de base política arrefecida de valores democráticos que se justifica a si mesma e a seu poder que corrobora a predominância de uma classe dominante violenta, patriarcal e racista em sua essência. Além disto, a inserção no mercado mundial foi proporcionada por três séculos e meio de trabalho escravo oficial da população sequestrada do continente africano, pela expropriação dos povos originários indígenas e devastação das riquezas naturais. É importante situar que as opressões empreendidas no capitalismo se articulam dialeticamente à exploração, na qual a alienação operada é essencial para o processo de supremacia da classe dominante. Neste ínterim, o racismo, enquanto mecanismo complexo exprime um processo histórico, político, estrutural e estruturante das relações sociais no Brasil. Além de ser o país na história da humanidade que mais se utilizou de população escravizada, a ideologia e repressão racista promoveram uma das mais profundas desigualdades sociais e raciais do planeta. O racismo estrutural (ALMEIDA, 2018) funciona, assim, para fomentar a superexploração e legitimar o mecanismo da violência estatal, de modo a aprofundar a racialização da questão criminal, em especial contra a população negra na sociedade brasileira.
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Por conseguinte, Almeida (2018) pontua que a conotação histórica atribuída a raça se fundamenta a partir de duas características: a biológica atribuída à identidade racial como cor de pele e traços físicos; e a étnico-cultural que se relaciona à origem geográfica, à língua, religião ou outras formas de expressão cultural. Há assim três concepções de racismo que se complementam na prática: a individualista pautada na relação entre racismo e subjetividade; a institucional na articulação entre racismo e Estado que atua no funcionamento das instituições e o racismo estrutural na relação estabelecida entre racismo e economia, ou seja, no conjunto da produção e reprodução da vida social. Os estudos de Goés (2018)3 demonstram a importância histórica da ideologia eugênica para legitimação do racismo no Brasil, bem como sua reatualização na cena contemporânea. Ao analisar os processos de dominação na sociedade capitalista, é importante frisar o essencial papel que o Estado exerce na unidade dialética da coerção e consenso. O Estado, ainda que se configure em importante esfera de luta social, tem em seus fundamentos uma nítida dimensão de classe. Ou seja, por mais que a forma política do ente estatal apresente uma relativa autonomia em sua burocracia, o Estado que conhecemos é efetivamente o Estado burguês; e justamente por operar institucionalmente em aparentemente independência das classes sociais é que se faz a dominação da sociedade capitalista também com mais eficácia. O Estado é expressão da relação das classes sociais, e não o seu contrário. Mandel (1982) destaca três principais funções do Estado no capitalismo tardio: i) garantir as condições gerais da acumulação capitalista; ii) gerir os aparelhos privados de hegemonia e iii) operar os instrumentos de repressão. A forma política estatal deve ser buscada no seu interior e em suas instituições próprias, para o reconhecimento de sua manifestação imediata, mas só pode ser identificada estruturalmente mediante a sua posição no conjunto da reprodução das relações sociais capitalistas. É justamente tal elemento externo a si que lhe dá identidade. Sociedades do passado houve com algum grau de separação do poder político do poder econômico. No entanto, somente as relações sociais capitalistas constituem formas sociais como a forma-valor, a forma-mercadoria, a forma-sujeito de direito. É apenas entrelaçada estruturalmente nesse conjunto que a forma política estatal se revela. Seus atributos internos podem lhe dar a dimensão de suas variantes, mas sua posição no contexto geral das relações sociais dá-lhe causa, identidade e existência. (MASCARO, 2013, p. 27).
Com efeito, é importante situar que a questão criminal desempenha, assim, um relevante papel de violência coercitiva e ideológica na luta de classes. A questão criminal pode ser entendida como um conjunto de ideias, políticas e instrumentos que se relacionam com o crime, criminalização e poder punitivo. Batista (2017) de forma sintética situa o direito penal como o conjunto de normas e sanções que preveem crimes, a estrutura geral dos crimes bem como aplicação e sanções definidas pelo Estado além de ser uma área de estudo. Por seu turno, sistema criminal são instâncias de realização do direito penal como judiciário, policial e penitenciária ou até algumas extrajudiciais enquanto a política criminal compreende um arcabouço de princípios e recomendações para mudanças no sistema penal. Tais agências repousam historicamente sob uma dinâmica onde o Estado representa um papel central. 3
A ideia geral do pensamento eugênico é o estudo para melhoramento da “raça”. Segundo essa visão, as características dos seres humanos inclusive as mentais, emocionais e criativas são transmitidas de forma progênita propondo uma hierarquização fechada entre as raças humanas com supremacia da raça branca de origem europeia principalmente com descendência nórdica.
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Senão vejamos, na sociedade burguesa se construiu uma lógica em torno da qual os conflitos devem ser administrados e mediados através da esfera penal do Estado, sendo este o detentor legítimo do monopólio do uso da força (WEBER, 1999). Deste modo, o Estado, em sua função de regular os conflitos, estaria, assim, através de seus instrumentos, prevenindo a ocorrência da generalização da violência, que inclusive dialoga com a acepção hobbesiana de homem como lobo do próprio homem. Ocorre que a história do direito penal tem demonstrado que sua existência provocou mais mortes e violência coercitiva do que propriamente a tenha evitado. O sistema penal enquanto uma das instâncias do Estado se apresenta como igualitário e justo, mas que na prática funciona como seletivo e repressivo. Portanto, o sistema criminal vinculado ao Estado é, senão, a expressão da luta de classes. Trata-se de uma das materializações mais eficazes da incorporação universal de interesses particulares de classe. Quando se analisa o fenômeno de ocorrência de crimes, nos quais determinadas classes, ou segmentos de classe, são, efetivamente, punidos pela pretensa universalização das leis penais, deve-se observar que a designação de determinadas condutas como sendo ou não criminosas variam de acordo com as formas de organização social e no interior delas. Ademais, determinadas condutas consideradas crimes variam no tempo e espaço. Anitua (2008) situa o século XIII como marco do surgimento do direito penal, tendo como referência a instituição do inquérito com a qual se construiu um corpo de técnicos para gerir e executar profissionalmente a punição, cuja pena de inquisição é o seu exemplo mais notório. Podemos observar, assim, que a forma generalizada mais gravosa de punição do Estado absolutista foram as penas corporais de execução pública na qual a tortura figurou como método instituído e adotado oficialmente por esse Estado, sobretudo sob a justificativa de obtenção de prova. Por seu turno, na sociedade burguesa, a pena de prisão se constituiu como uma forma predominante de punição, estando paralela à generalização da proibição oficial da tortura, ao mesmo tempo em que essa prática se dissemina de modo extrajudicial. Neste prisma, podemos entender, de acordo com a discussão de Oliveira (2016), que comunidades de produção social de apropriação e dependência mútua não precisavam de instituições, ou estas eram muito incipientes, e podiam aprovar e reprovar determinados indivíduos na divisão social do trabalho. As penas eram extremas, como execução e banimento; e mesmo assim, em momentos de estabilidade era feito o possível para evitar a diminuição de contingentes da força de trabalho. Nesta modernidade, a partir de um maior grau de especialização da força de trabalho e da apropriação privada de excedentes econômicos, os sujeitos alvos do sistema criminal são aqueles de baixa produtividade. Senão vejamos que, por exemplo, no capitalismo historicamente a população carcerária é composta majoritariamente, por indivíduos de baixa escolaridade. Deste modo, a gestão da pobreza e as suas formas mais elementares como o pauperismo são administradas pelo Estado burguês através de um binômio assistencial e penal, tendo ambos funções coercitivas e consensuais. Com efeito, os crimes e as penas cumprem um papel indispensável na reprodução social na sociedade capitalista; tanto para neutralizar determinados segmentos indesejáveis da classe que vive de seu próprio trabalho, como para a movimentação de atividades econômicas relacionadas a tais práticas. A naturalização ideológica dos conflitos como sendo parciais, tendo o sistema de justiça, que é dotado de racionalidade e imparcialidade, corresponde a uma das formais mais eficazes que o direito burguês realiza e controla a luta de classes. De acordo com Baratta (2016, p. 213),
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A tortura no superencarceramento: Estado brasileiro e questão criminal Fábio do Nascimento Simas O elemento ideológico não é contingente, mas inerente à estrutura e à forma de funcionamento do sistema penal, assim, como este, em geral, é inerente à estrutura e ao funcionamento do direito abstrato moderno. A forma da mediação jurídica das relações de produção e das relações sociais na sociedade capitalista moderna (o direito igual) é ideológica: o funcionamento do direito não serve, com efeito, para produzir a igualdade, mas para reproduzir a desigualdade. O direito contribui para assegurar, reproduzir e mesmo legitimar (esta última é uma função essencial para o mecanismo de reprodução da realidade social) as relações de desigualdade que caracterizam a nossa sociedade, em particular a escala social vertical, isto é, a distribuição diferente dos recursos e do poder, a consequência visível do modo de produção capitalista.
Ressalta-se que a criminalização dos pobres não é generalizada no capitalismo, já que a pobreza é estruturante e funcional a esse modo de produção. Deste modo, a seletividade criminalizatória que é operada no Estado burguês diz respeito àqueles segmentos da classe trabalhadora que manifestam as contradições mais elementares dessa sociabilidade, como o pauperismo, por exemplo; ou que proporcionam latentes obstáculos ao processo de acumulação capitalista e sua reprodução também ancorada em uma lógica racializada. Outrossim, em determinadas conjunturas alguns segmentos médios tidos como opositores do sistema também são criminalizáveis.
3 Tortura e superencarceramento no Brasil A prisão é a forma por excelência de punição institucionalizada do Estado capitalista. Embora a mesma exista desde os remotos tempos, a sua generalização como execução penal só se estabeleceu a partir das revoluções burguesas. É mister estabelecer que na etapa histórica conhecida como acumulação primitiva (MARX, 1982), as protoformas do sistema prisional foram as Casas de Correção, estas formadas pela assistência aos pobres e oficinais de trabalhos forçados, cuja lógica se baseava através de uma imposição, muitas das vezes violenta, para que se pudesse adquirir compromisso e disciplina para a manufatura. Podemos situar que é no século XIX, a partir dos pressupostos dos direitos liberais, que se consolidou a individualização da pena de prisão; o isolamento como meta; e a progressividade do regime. A pena de prisão atende a três dimensões fundamentais do Estado burguês: i) do ponto de vista da economia política, a proporcionalidade entre delito/pena e seu cálculo, em tempo, bem afeita à lógica de valorização da mercadoria; ii) no aspecto da violência de Estado diz respeito ao uso da violência legítima, já que o crime seria uma ofensa à sociedade e iii) responde à ideologia preventiva liberal, segundo a qual a existência de penas e seus cumprimento inibiria a prática de crimes (SIMAS, 2020). Importante ressaltar que embora em muitas das sociedades capitalistas, as penas corporais, como a tortura, fossem proibidas na prática, elas são disseminadas extrajudicialmente, especialmente por esse mesmo Estado. Neste ínterim, cabe registrar que, historicamente, em sociedades de classes anteriores ao capitalismo, a tortura fora adotada como um método oficial de punição, tanto como um instrumento investigatório quanto para punição. No Estado absolutista, por exemplo, as penas, como mutilação de órgãos, e execuções públicas objetivaram a manifestação da autoridade monárquica, bem como o descarte de corpos não era tão significativo para aquela sociabilidade que não havia criado um sistema de produção de excedentes tão expressivo. Deste modo, podemos identificar que somente após as revoluções capitalistas que se dissemina a proibição das penas públicas corporais, pois, além da necessária emergência dos direitos individuais liberais, foi preciso preservar uma população viva para ter a disponibilidade de venda de força
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de trabalho, e também de se constituir um exército industrial de reserva. A proibição da tortura pelo Estado se faz, então, necessária para que ela seja praticada nos subterrâneos por esse mesmo Estado numa lógica da dominação de classe. Em síntese, tortura e prisão estabelecem uma simbiótica relação sob a sociedade do capital. As práticas de tortura fazem parte das fissuras da formação social brasileira, sendo larga e historicamente perpetrada contra grupos socialmente discriminados e sujeitos insurgentes em períodos ditatoriais e de instabilidade política. Essa forma extrema de violência foi introduzida nesta latitude a partir da invasão portuguesa e carrega o fardo indelével de séculos de escravidão oficial das populações indígenas e africanas. O enfrentamento a esse legado sociocultural nunca foi uma prioridade na agenda do Estado brasileiro. A legislação colonial obedeceu às Ordenações Filipinas que tinham em seu núcleo castigos corporais como pena para os mais diversos delitos. O uso comum da força contra escravos, indígenas e grupos insurgentes era praticado majoritariamente por milícias privadas e sob a supervisão da Coroa Portuguesa, numa relação patrimonialista e de estreita distinção do público/privado. O escravo africano sofria duplamente os processos de dessocialização – destituído de seu lugar de origem – e despersonalização, vendido como mercadoria. Além disto, a partir de análise de Maia (2001) há registros que após sua chegada à fazenda, a população escrava já era torturada a partir de açoites e espancamentos como forma de intimidação. A primeira Constituição Federal, a de 1824, garantia em seu artigo 179 a abolição dos açoutes, tortura, marca de ferro quente e todas as mais penas cruéis. Contudo, o Código Criminal do Império de 1830 previa que se o réu fosse escravo nos casos diversos de pena de morte ou galés, o mesmo receberia açoites; e seu senhor seria obrigado a levá-lo com ferro da maneira que o juiz designasse. Ressalta-se que foi no período imperial quando mais se traficou a população africana conferindo a fase de maior prosperidade dessa trágica atividade econômica. Já nas primeiras décadas da primeira república é que se incrementou a criação de tipos penais como forma de contenção e controle, via uso da força punitiva das expressões da questão social, sendo a tortura um dos seus componentes, tendo na população negra, recém liberta do escravismo oficial, seu maior alvo. Pode-se constatar ainda que foram nas ditaduras republicanas do século XX que as técnicas da tortura atingiram novos estágios. A ditadura do Estado Novo inaugurou torturas e prisões arbitrárias das camadas médias brasileiras, mesmo que em graus bem menores que os opositores, que eram de origem operária, e as chamadas “classes perigosas” (OLIVEIRA, 1994). Tem-se, na formação da polícia política, cuja unidade mais expressiva foi a Delegacia Especial de Segurança Política e Social (DESPS), o usufruto das técnicas de intimidação e tortura aos opositores do regime que reforçou a criminalização de qualquer dissidência política ao poder varguista (FREIRE, 2011). Destaca-se, ainda, que foi a partir do golpe militar de abril de 1964 e dos 21 anos de ditadura que a prática da tortura se institucionalizou com novas determinações pelo Estado brasileiro, inclusive aperfeiçoamento e sofisticando as mais variadas técnicas de engenharia de causa dor e sofrimento. O golpe representou um acordo unilateral entre os latifundiários, burguesia, militares e setores médios associados subalternamente ao capital-imperialista. É importante destacar que as ditaduras na América Latina no período atenderam aos ditames da geopolítica do capital-imperialismo realizando, ao mesmo tempo, o ciclo de industrialização desses países dependentes; e agindo na contrarrevolução preventiva no contexto da Guerra Fria. A ditadura militar brasileira representou a principal fase de instituição generalizada da tortura e maus-tratos no Brasil, tanto que boa parte de seu aparato de repressão e cultura política autocrática
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apresenta consequências nos dias atuais. Vale dizer que as práticas de tortura no período se desenvolveram a partir de técnicas importadas nas escolas militares do imperialismo, com destaque para a França e os Estados Unidos sob a égide da Doutrina de Segurança Nacional. Os 21 anos de ditadura militar marcaram o desaparecimento e morte de centenas de vidas. A política via intimidação e medo tinha na tortura um de seus instrumentos prediletos. O terrorismo de estado, que se intensificou a partir de 1968, especialmente a partir do Ato Institucional Nº 5, que impôs o fechamento do Congresso Nacional por tempo indeterminado; cassação de mandatos parlamentares; suspensão da garantia do habeas corpus; e autorização para sequestro de bens. A partir desse momento e dos primeiros anos da década de 1970 se intensificaram as perseguições e tortura aos opositores do sistema, os “subversivos”, segundo a linguagem do terrorismo de Estado. Nesse grupo estavam desde indivíduos pertencentes a grupos, movimentos opositores organicamente instalados até qualquer cidadão que tivesse ou se manifestasse descontentamento com o regime militar. A democracia brasileira convive com a herança institucional de instrumentos da ditadura, que permaneceram após a transição lenta e gradual. Podemos destacar a persistência da Lei de Segurança Nacional e o protagonismo das policiais militares na segurança pública subordinadas no limite ao Exército. A lógica da militarização, que pressupõe a guerra e o combate bélico do inimigo, vai muito além das forças militares se espraiando na cultura política das instituições de controle social; como as polícias, o judiciário e o próprio sistema prisional. Com efeito, a repressão policial e suas técnicas de tortura praticadas pelas policiais em periferias e favelas sobretudo contra a população negra se constituem também como herança do período ditatorial. No âmbito internacional de enfrentamento à tortura, foi a partir do fim da 2ª Guerra Mundial e da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 que se consolidou no mundo ocidental um arcabouço jurídico-normativo de proibição da tortura. Antes expressamente proibida nas cartas mundiais e regionais de direitos humanos, foi somente em 1984 que se estabeleceu no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU) a Convenção contra a Tortura, que especifica a definição mundial de tortura e pressupõe instrumentos para seu enfrentamento. O termo tortura designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castiga-las por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza, quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de suas funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento e aquiescência (BRASIL, 1991).
A Convenção, até hoje considerada o mais importante instrumento político-normativo sobre a matéria no mundo, apresenta três objetivos em seu conceito: obtenção de informações ou confissões; castigo e intimidação; e coação. Comparato (2010) alerta, porém, para a incompletude de tal definição, já que deveria constar como tortura os crimes de terror praticados pelos Estados aos movimentos políticos considerados subversivos. Além disto, a Convenção abriu possibilidades para o alargamento desse conceito, e um aspecto relevante a ser observado é que o crime de tortura só pode ser praticado pelo Estado através de funcionários públicos ou agentes no exercício de funções públicas; considerando tanto a ação quanto a omissão.
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A Anistia Internacional (2003) destaca ainda seis elementos nessa definição: inflição de dor e sofrimento físico e mental; dor e sofrimentos severos; inflição intencional; utilizada como discriminação de qualquer tipo e com consentimento ou aquiescência de funcionário público. A Convenção ainda estabelece que não considerará tortura atos decorrentes de sanções legítimas, o que pode ser problemático tendo em vista os diferentes marcos legais nas diversas regiões do planeta. Por outro lado, o Relator Especial contra Tortura à época entendia que sejam sanções amplamente aceitas e legitimadas pela comunidade internacional, tais como a privação de liberdade; e excluindo desta excepcionalidade a pena de morte, por exemplo (ibid.). Se levarmos em conta as definições e a própria natureza do ato, filosoficamente a prisão é uma forma de tortura. Vale destacar que, embora houvesse a multiplicação de instrumentos internacionais e ratificação dos países de proibição da tortura, a partir da virada deste século há uma inflexão no já restrito campo dos Direitos Humanos, em especial após o episódio de derrubada das Torres Gêmeas nos Estados Unidos em 2001. No tocante à tortura, observa-se o fenômeno da novilíngua da tortura (MARQUES, 2006), já que ocorre uma ofensiva liderada pelos países imperialistas de flexibilizar o conceito de tortura e de desenvolvimento de novas técnicas a partir de aparatos tecnológicos, tudo em nome do léxico da Guerra ao Terror, inclusive violando “consagrados” direitos civis no interior desses mesmos países. Outro aspecto de relevo que se destaca neste contexto é a chamada “onda punitiva” (WACQUANT, 2007) que corresponde ao agravamento das medidas repressoras adotadas pelos países ocidentais nas últimas décadas em respostas às contradições geradas pela crise. O superencarceramento é uma particularidade da onda punitiva que merece nosso destaque. Neste sentido, superencarceramento designa o fenômeno de crescimento exponencial da população carcerária mundial que se inicia em meados da década de 1980 e se intensifica nas seguintes (SIMAS, 2020). Tem como pano de fundo as estratégias de política criminal adotadas pelos Estados nacionais em responder ao agravamento das contradições do capitalismo em função de sua crise atual liderada pelos Estados Unidos, que é primeiro lugar em termos de população carcerária mundial. O levantamento de Walmsley (2016) constata que a partir de 2000 a população prisional mundial cresceu 20% e na América do Sul 145%. Por se tratar de um evento de dimensões internacionais, o superencarceramento apresenta uma miríade de variáveis nas diversas formações sociais e regionais, correspondendo a três variáveis que se relacionam: a implementação particular das agendas impostas pelo capital-imperialista; o padrão das políticas de repressão implementadas pelos Estados; e o reposicionamento da luta de classes. Inequivocamente, há também três fatores que incidem em todos os países que adotaram o superencarceramento: a redução da proteção social por parte dos Estados, agravando a desigualdade; o desenvolvimento do ramo privado, que lucra com as políticas de repressão, com destaque para os complexos industrial-militar/prisional; e a política proibicionista de drogas, ambas ancoradas em uma perspectiva de controle social criminalizatório e racializado de pobres (SIMAS, 2020). O saldo dessa ofensiva na particularidade brasileira foi um crescimento de 707% da população prisional entre 1990 e 2016 (BRASIL, 2017, p. 9), com o alcance ao terceiro contingente carcerário do mundo, com uma taxa de ocupação das unidades em quase 200% (Figura 1). Vale dizer que dos quatro países com a maior população prisional, o Brasil é o único que mantém crescimento nos índices de encarceramento e, se analisarmos por taxa de aprisionamento, por 100 mil habitantes nos países com população igual ou acima de 20 milhões, o país ocupa a terceira posição com uma taxa de 357.
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Figura 1. Evolução das pessoas privadas de liberdade entre 1990-2016
Fonte: BRASIL (2017)
As estatísticas do sistema prisional brasileiro mostram que 51% é semianalfabeta ou possui no máximo o Ensino Fundamental incompleto, e apenas 0,4% possuem ensino superior completo. Fato que evidencia um baixíssimo nível de escolaridade. No que se refere à faixa etária 53,49% possuem entre 18 e 29 anos, evidenciando o perfil majoritariamente jovem da população prisional brasileira (BRASIL, 2017). Com relação ao tipo penal praticado, os dados demonstram que ao todo 72% (374.588 presos) praticaram crimes contra o patrimônio (sendo 40,98% presos por roubo e furto) ou tráfico de entorpecentes (31%), o que contraria a percepção do senso comum de que o cárcere é composto majoritariamente por condenados por crimes violentos. Acerca de raça/etnia, com base no critério de autodeclaração, as informações de DEPEN (BRASIL, 2017) apontam que 58,2% dos presos são pretos ou pardos. Desta forma, o perfil do preso brasileiro é, em sua ampla maioria, constituído por jovens, negros ou pardos, pertencentes às camadas populacionais mais empobrecidas dos centros urbanos, em sua maioria autores de delitos contra o patrimônio e tráfico de drogas, sendo presos provisórios (aqueles que ainda não foram julgados) quase metade. É importante, também, observar, no contexto punitivo da democracia brasileira, que cerca de 1 milhão de pessoas foram assassinadas em 30 anos no país, e que o aumento da cobertura da política social na primeira década deste século não significou uma redução significativa do número de homicídios, tampouco de encarceramento. Outrossim, foi a partir da carta constitucional de 1988 que se estabeleceu, no âmbito legislativo, a expressa proibição da tortura e a gradativa adesão brasileira aos documentos internacionais de promoção e proteção dos direitos humanos. A Lei no 9455/1997 que tipifica o crime de tortura foi assinada em um contexto de mobilização nacional acerca do caso da Favela Naval, em São Paulo, onde um grupo de policiais sistematicamente torturou, extorquiu e assassinou moradores daquela localidade. A referida lei estabelece que a tortura envolve emprego de violência ou grave ameaça para prática de intenso sofrimento físico e mental como método de aplicação de castigo ou medida preventiva, que pode ter motivações de três naturezas: obtenção de informação ou confissão; provocação de ação ou omissão de ato de natureza criminosa; ou por discriminação racial ou religiosa. Embora o texto seja semelhante ao adotado na Convenção da ONU, a maior controvérsia desta lei se refere à ampliação da qualificação do agressor a qualquer pessoa, visto que o sistema internacional considera tortura apenas aqueles atos praticados por agentes do Estado.
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Tal diferenciação no texto legal tem demonstrado uma maior tendência do sistema de justiça brasileiro a punir entes privados em detrimento de agentes públicos. Os estudos de Jesus (2014) e Nev et al. (2015) sobre julgamentos baseados na Lei no 9455/97, realizados respectivamente a partir de um Fórum Criminal de São Paulo e casos na segunda instância dos tribunais brasileiros confirmam tal assertiva. Nos casos analisados, há uma lógica do judiciário em apresentar descrédito nas supostas vítimas de agente do Estado, em especial se a mesma for pobre e negra. Ao analisar os processos qualitativamente, percebemos que existe uma nítida diferença entre os julgamentos dos casos em que figuram como réus pessoas comuns daqueles em que os acusados são agentes do Estado. Nos primeiros casos, o centro do julgamento é o agressor, sua fala é colocada em questionamento a todo momento. Em contrapartida, nos casos envolvendo agentes do Estado, o enfoque do julgamento não é no agressor, mas na vítima. O que está em avaliação é se a vítima está realmente falando a verdade em contraposição à fala do agressor. A condição de vítima, geralmente pessoa presa, detida ou suspeita criminosa, a coloca no centro do julgamento. Não é mais o crime de tortura que é julgado, mas a própria vítima. Ao agressor é conferida toda credibilidade (…) um agente que visa “proteger a lei e a ordem” e cujos atos são considerados partes de sua atividade profissional. Essa fala não difere dos argumentos utilizados pelos torturadores do período da ditadura militar, que insistem em alegar que atuavam em nome da “segurança nacional” (JESUS, 2014, p. 429).
Já nos casos onde o agressor é o agente do Estado, sua chance é três vezes maior de absolvição que o sujeito privado, mesmo que a maioria dos casos denunciados digam respeito à violência praticada por policiais ou agentes penitenciários, cujas maiores motivações são o castigo para o agente privado e a obtenção de confissão para o funcionário público (Figura 2).
Figura 2. Perfil do Réu na 2a Instância dos crimes de tortura no Brasil (%)
Fonte: Nev et al. (2015, p. 48)
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As práticas de tortura operadas pelo Estado são mais disseminadas em espaços de privação de liberdade, ou seja, a natureza dessas unidades e a própria forma como são organizadas favorecem a ocorrência das práticas de tortura, em especial pelo traço violento e racista do Estado brasileiro. O levantamento de PCN (2016) acerca da tortura no sistema prisional brasileiro detectou que tais práticas se constituem em elementos estruturais na gestão dessas instituições de visíveis seletividades penais. Deste modo, a perspectiva de tortura aponta para um fenômeno amplo e complexo, que vai além da violência típica interpessoal. Assim sendo, o fenômeno do superencarceramento brasileiro confirmou o agravamento de diversas formas de tortura institucional como a superlotação das unidades prisionais; o fornecimento de comidas estragadas; a falta de distribuição de itens mínimos de higiene; o não fornecimento, ou abastecimento irregular, de água em ambiente fechado; a sujeição em celas úmidas e escuras; o não atendimento médico em locais que promovem doenças e, ainda; a humilhação à qual os familiares são expostos, como no caso da revista vexatória. Em relação à tortura em sua forma mais típica, o estudo de Simas (2020) apontou a prevalência de agressões físicas, dentre as quais se destacam os espancamentos, como no concurso de barra de ferro, e outros instrumentos, espancamentos coletivos, eletrochoque, imposição de isolamento prolongado, queimaduras por exposição prolongada ao sol, longos períodos em determinadas posições constrangedoras e também o uso de gás lacrimogênio, ameaças constantes e a violência sexual particularmente predominante na violência contra mulheres. Outro fator que merece atenção no âmbito prisional tem sido as situações de massacres e rebeliões, motivados, em geral, por disputas entre facções de comercialização de drogas. Três das dez rebeliões que resultaram em maiores números de mortos ocorreram no ano de 2017 tendo em vista também a tendência à monopolização de algumas dessas facções nas diversas regiões do país4. A política proibicionista e a famigerada “guerra as drogas” têm contribuído significativamente com o cenário de barbárie no sistema prisional. Vale destacar que, ao longo do período democrático em vigência, foi consolidado todo um aparato pelo Estado brasileiro em seus diversos poderes, no sentido formal de combate ao crime de tortura, inclusive na adesão do Brasil aos diversos tratados de direitos humanos e mecanismos de combate à tortura. Deste modo, podemos compreender que o agravamento da violência do Estado não é um fenômeno que na prática não apresenta incompatibilidade com a democracia liberal; pelo contrário, essa democracia não implica que se abdique da repressão pois ela a pressupõe. Dado o conteúdo autocrático e dependente do Estado brasileiro, essa violência se manifesta de forma mais aguda, sobretudo contra os pobres e negros. Superencarceramento e tortura estabelecem assim uma relação simbiótica. A perpetuação das práticas de tortura atende a interesses econômicos e políticos que são operados pelo Estado de classe. A tortura é, assim, proibida no direito do Estado burguês para ser praticada de forma extrajudicial de modo a fazer funcionar a lógica desse mesmo Estado. Com efeito, a tortura que se perpetua com o superencarceramento assenta suas bases no desenvolvimento do capitalismo mundial, reificadas pelo Estado burguês com especificidades no Brasil.
4
FACÇÕES: um raio X dos grupos que transformaram o crime em uma indústria no Brasil. Revista Superinteressante, Dossiê Superinteressante, São Paulo: Editora Abril, v. 10, Edição 37A, maio 2017.
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A tortura no superencarceramento: Estado brasileiro e questão criminal Fábio do Nascimento Simas
4 Considerações finais O ingresso do Brasil na agenda da onda punitiva está inserido nas estratégias do capital internacional de neutralização de suas contradições, vide o contexto de crise e adoção da cartilha neoliberal. Dentre essas estratégias, destacamos o aumento exponencial da população prisional brasileira a partir da década de 1990 que legou ao Brasil o alcance de constar como terceiro lugar mundial no que tange ao contingente carcerário. Neste sentido, a análise dos determinantes no contexto do superencarceramento brasileiro deve, necessariamente, considerar o caráter dependente do capitalismo brasileiro de forma autocrática, forte e violenta no âmbito interno e de associação subalterna ao imperialismo. Registra-se que o Estado é uma relação de classe social, sendo uma expressão da luta entre elas; e em sua lógica dialética de coerção e consenso, o sistema criminal ocupa um papel de relevo. A tortura enquanto um método acentuado e particular da violência ao longo da história se estabeleceu como um instrumento secular de dominação legal que foi instituído pelo Estado. Ocorre que, sob o direito liberal, a tortura passa a ser proibida na legislação do mundo ocidental, mas largamente utilizada, especialmente nos subterrâneos deste Estado em qual, na atual conjuntura, se observa um movimento de flexibilizar seu conceito. Podemos afirmar que o contexto de superencarceramento brasileiro contribuiu para uma maior disseminação da tortura em locais de privação de liberdade. Para além da violência direta operada pelos agentes, a própria organização do sistema prisional brasileiro, com sua máquina de gerar privações provoca tortura, vide o tratamento penitenciário. Com efeito, o debate em torno da erradicação da tortura e das prisões deve partir de uma concepção de superação da ordem do capital, ainda que algumas reformas sejam urgentes e necessárias.
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A tortura no superencarceramento: Estado brasileiro e questão criminal Fábio do Nascimento Simas
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Submetido em: 23 ago. 2020 Aceito em: 16 nov. 2020
DOI: 10.19180/1809-2667.v22nEspecial2020p787-804
Seletividade punitiva, racismo e superencarceramento no Brasil Punitive selectivity, racism and over-incarceration in Brazil Selectividad punitiva, racismo y gran encarcelamiento en Brasil Fernanda Kilduff https://orcid.org/0000-0001-7090-7052 Doutora em Serviço Social pelo Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSS/UFRJ). Professora Adjunta do Departamento de Política Social e Serviço Social Aplicado (DPS/ESS) da Universidade Federal de Rio de Janeiro (UFRJ) - Rio de Janeiro/RJ - Brasil. E-mail: ferkilduff@yahoo.com.ar.
Resumo O objetivo deste artigo é analisar o racismo e a desigualdade social como fundamentos do superencarceramento no Brasil. Na primeira seção, debate-se a relação entre seletividade punitiva e racismo estrutural, em perspectiva histórica. Na segunda, analisa-se a relação entre rebaixamento das condições de vida da população pelo processo de contrarreformas neoliberais; o aumento do encarceramento e a naturalização de práticas desumanizadoras no âmbito prisional. Na terceira seção, realizam-se apontamentos sobre o aumento do encarceramento feminino no Brasil pelo delito de tráfico de drogas. Nas considerações finais, destaca-se que, na fase neoliberal do capitalismo, o racismo estrutural que perpassa o sistema de justiça criminal encontra renovados argumentos na “guerra às drogas”, para legitimar o superencarceramento de mulheres, principalmente, pobres e negras. Os resultados indicam que a lógica seletiva penal reitera as condições de opressão pela perspectiva de gênero. As mulheres são duplamente punidas: pelo sistema de justiça criminal e pela moral conservadora que sustenta a opressão patriarcal. O método utilizado é o materialista-dialético. A partir da perspectiva da totalidade social, busca-se capturar as complexas e múltiplas determinações que constituem o objeto. A metodologia de pesquisa fundamenta-se na revisão de tipo bibliográfica e documental. Palavras-chave: Racismo. Seletividade punitiva. Contrarreformas. Superencarceramento.
Abstract The purpose of this article is to analyze racism and social inequality as foundations of over-incarceration in Brazil. The first section discusses the relationship between punitive selectivity and structural racism from a historical perspective. This is followed by an analysis of the relationship between the downgrading of the population's living conditions through the process of neoliberal counter-reforms and the increase in incarceration and naturalization of dehumanizing practices in the prison environment. The third section presents notes on the increase in female incarceration in Brazil for the crime of drug trafficking. The final remarks highlight that, in the neoliberal phase of capitalism, the structural racism that permeates the criminal justice system finds renewed arguments in the “war on drugs”, to legitimize the over-imprisonment of women, poor and black women in particular. The results indicate that the selective criminal logic reiterates the conditions of oppression from the perspective of gender. Women are doubly punished: by the criminal justice system and by the conservative morality that underpin patriarchal oppression. The method used in the analysis is the materialist-dialectic. From the perspective of social totality, we aim to capture the complex and multiple determinations that constitute the object of study. The research methodology is based on literature and document reviews. Keywords: Racism. Punitive selectivity. Counter-reforms. Over-incarceration.
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Resumen El objetivo de este artículo es analizar el racismo y la desigualdad social como fundamentos del gran encarcelamiento en Brasil. En la primera sección, se debate la relación entre selectividad punitiva y racismo estructural, en perspectiva histórica. En la segunda, se analiza la relación entre precarización de las condiciones de vida de la población por el proceso de contrarreformas neoliberales; el aumento del encarcelamiento y la naturalización de prácticas deshumanizadoras en el ámbito carcelario. En la tercera parte, se realizan apuntamientos sobre el aumento del encarcelamiento femenino en Brasil por el delito de tráfico de drogas. En las consideraciones finales, se destaca que, en la fase neoliberal del capitalismo, el racismo estructural que atraviesa el sistema de justicia criminal encuentra renovados argumentos en la “guerra a las drogas”, para legitimar el gran encarcelamiento de mujeres, principalmente, pobres y negras. Los resultados indican que la lógica selectiva penal, reitera las condiciones de opresión por la perspectiva de género. Las mujeres son duplamente punidas: por el sistema de justicia criminal y por la moral conservadora que sustenta la opresión patriarcal. El método utilizado es el materialista-dialéctico. A partir de la perspectiva de la totalidad social, se busca capturar las complejas y múltiples determinaciones que constituyen y explican el objeto. La metodología de investigación se fundamenta en la revisión de tipo bibliográfica y documental. Palabras clave: Racismo. Selectividad punitiva. Contrarreformas. Gran encarcelamiento.
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Seletividade punitiva, racismo e superencarceramento no Brasil Fernanda Kilduff
1 Introdução Este artigo analisa o racismo e a desigualdade social como fundamentos do superencarceramento no Brasil e apresenta reflexões sobre o acirramento das funções punitivas do Estado, legitimadas (política e ideologicamente) em contexto de contrarreformas neoliberais. Parte-se da consideração que as orientações dadas por governos de corte neoliberal à política social e à política criminal no Brasil, não constituem dois processos autônomos e independentes, pois respondem ao mesmo conjunto de determinações presentes na sociedade. Com isso, a resposta do capital a sua própria crise estrutural em curso altera de forma significativa a relação entre instituições sociais e penais na administração da desigualdade social. Na primeira parte, apresentam-se reflexões sobre a relação entre seletividade punitiva (ou seja, a aplicação de penas mais duras e/ou privativas de liberdade a partir da construção da figura do “delinquente”, sustentada em estereótipos atribuídos às categorias populacionais mais empobrecidas) e o racismo (vale dizer, a forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento e decorre da própria organização da própria estrutura social1) com o objetivo de embasar o problema de as prisões brasileiras estarem constituídas maioritariamente de mulheres e homens pardas/os e negras/os. Problematiza-se a ação do Estado, alicerçada na ideologia racista, historicamente utilizada para organizar o sistema escravista. Sustenta-se que, após abolição formal da escravidão, o sistema penal, continuou a possibilitar às elites brancas a expropriação de mais-valia por mecanismos de superexploração da força de trabalho, justificar a desumanização, inferiorização e exclusão da população negra do acesso a direitos sociais e bens socialmente produzidos. Do mesmo modo, permitiu criar os consensos necessários para controlar/castigar/exterminar, através do sistema de justiça criminal, a setores da classe trabalhadora considerados sobrantes e perigosos para as necessidades de reprodução ampliada do capital. Na segunda parte, o artigo debate os fundamentos das crises capitalistas a partir da crítica da economia política e as estratégias acionadas pelo próprio Estado como contratendências à queda da taxa de lucro. Analisa-se as principais contrarreformas no Brasil como mecanismos de transferência de recursos públicos do trabalho para o capital, que visam responder à crise contemporânea e ocasionam o rebaixamento da qualidade de vida da classe trabalhadora, sobretudo a partir do golpe jurídicoparlamentar de 2016. Apresentam-se ainda nesta seção informações que corroboram o aumento da população prisional na fase neoliberal, como também se trazem dados sobre o perfil dos encarcerados com o objetivo de demonstrar o racismo estrutural vigente no âmbito da justiça criminal e particularmente do sistema carcerário. Na terceira seção, realizam-se apontamentos sobre o aumento do encarceramento feminino no Brasil pelo delito de tráfico de drogas e se problematizam os alcances e desdobramentos dessa forma de punição: quando privadas de liberdade, elas sofrem uma dupla condenação. São condenadas pelo Estado, pelo delito ou suposto delito que cometeram e, ao mesmo tempo, são duplamente punidas, pelo fato de elas serem, prioritariamente, mulheres negras e pobres. Por sua vez, trajetórias de vida marcadas por diversas formas de violência (física, sexual, psicológica), em situação de restrição de liberdade, se 1
Para Almeida (2018, p. 32): “o racismo se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial a qual pertence. (…) Racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo “normal” com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares.”
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intensificam. Com isso, a seção apresenta dados e informações que corroboram que, ao interior das unidades carcerárias femininas no Brasil, essas violências são reproduzidas e incentivadas, silenciadas e naturalizadas. Nas considerações finais, e como principais resultados, destaca-se que, na fase neoliberal do capitalismo, o racismo estrutural que perpassa o sistema de justiça criminal encontra renovados argumentos na “guerra às drogas”, narrativa central que justifica o superencarceramento e a criminalização de territórios e populações em situação de pobreza. O método utilizado é o materialista-dialético. A pesquisa está estruturada em planos de análises diferentes, porém articulados entre si, no intuito de realizar a reconstrução pelo pensamento do movimento do real: apreender as contradições, tendências, relações e determinações principais do tema em questão. Em um movimento de aproximações sucessivas ao real busca-se apanhar as complexas e múltiplas determinações que constituem e explicam o objeto de estudo, situando-o na perspectiva de totalidade social 2 . A metodologia de pesquisa é de tipo bibliográfica e documental e os conceitos norteadores são: racismo, seletividade punitiva, contrarreformas e superencarceramento.
2 Seletividade punitiva e racismo no Brasil De acordo com Flauzina (2017, p. 135), “o sistema penal brasileiro e toda sorte de episódios violentos que dele decorrem têm servido como instrumentos estratégicos na materialização de uma política genocida no Brasil, ancorada em grande medida pelas intervenções policiais,” que provocam, sistematicamente, homicídios perpetrados por agentes públicos3, dentro e fora do âmbito prisional. Com isso, torna-se necessário refletir sobre as raízes da violência do Estado brasileiro, buscar o que se encontra sob a pele da ideologia de política de “combate às drogas” e reexaminar o racismo e genocídio da população negra e pobre no Brasil, já que, afinal, esses mortos têm cor e classe social muito específica4. (VASQUES, 2020). “Ao considerar o racismo como uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial a qual pertence”. (ALMEIDA, 2018, p. 32). Destaca-se que, tanto na colônia como no período atual, essa ideologia é central para permitir criar aceitabilidade e naturalização da morte. Trata-se da morte física e também simbólica de populações racialmente identificadas como moradoras de favelas e periferias, foco principal da atuação militarizada do Estado. As práticas de morte cercam-se de estratégias desumanizadoras e pela negação racial da existência do outro (MBEMBE, 2019). 2
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Para Kosik (1976, p. 74), “a totalidade concreta, como concepção dialético materialista do conhecimento do real, significa um processo indivisível cujos elementos são a destruição da pseudo-concreticidade (…) em segundo lugar, o conhecimento do carácter histórico do fenômeno (…) e por último o conhecimento do fenômeno, de sua função objetiva que ocupa no seio do todo social”. Segundo relatório do Atlas da Violência (IPEA, 2018), em 2017, 71,5% das pessoas assassinadas no Brasil, no período de 2007-2017, são negras ou pardas. Outro dado significativo e com cifras que podem ser comparadas com a taxa de mortalidade de países expressamente em guerra, é que no ano de 2016 foram assassinados 33.590 jovens entre 15 e 29 anos. Ao considerar homens jovens e negros, o resultado é de 280,6 assassinatos a cada 100 mil habitantes. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=30411. Acesso em: 20 ago. 2020. Disponível em: https://pcb.org.br/portal2/25661/o-genocidio-como-atividade-essencial-do-estado/. Acesso em: 27 ago. 2020.
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Catoia (2018) analisa a imbricação do direito penal na estrutura política e econômica do Brasil colônia, destacando duas funções principais. A primeira, para legalizar e permitir a apropriação do corpo negro enquanto objeto mercantil e imposição de toda forma de práticas de barbárie e tortura e, a segunda, para disciplinar os corpos de mulheres e homens negras/os para o trabalho hiperexplorado e evitar qualquer tipo de fugas, com o objetivo de neutralizar as formas de luta e resistência protagonizadas pelo povo negro contra o escravismo. No interior do sistema colonial, que formulou sua arquitetura punitiva a partir de discursos racistas da inferioridade dos povos não brancos, o manejo do sistema penal, especialmente pela difusão do medo e seu poder desarticulador, cumpriu um lugar fundamental nos processos de naturalização da subalternidade (CATOIA, 2018, p. 263).
Apesar de o direito penal do Império ter adotado os princípios da liberdade e a Igualdade do Iluminismo liberal europeu, e, ao mesmo tempo, ter suprimido do Código Criminal de 1830 a pena de suplícios; esse ordenamento jurídico continuou a possibilitar a desumanização e a perpetuação das relações sociais de base escravocrata, recorrendo à ampliação do uso da pena de prisão para as/os escravizadas/os que “ousavam se rebelar” contra a ordem escravocrata. Para a normativa da época, os sujeitos escravizados, considerados “inferiores”, “ociosos” e “desordeiros”, eram “incapazes” de discernimento das leis, e com isso, continuaram a serem castigados sem o mínimo reconhecimento de direitos, em outras palavras, o direito penal liberal sustentado por princípios humanizadores, lhes foi interditado. Com o processo de abolição formal da escravidão, em 1888, e de acordo com Munanga (1999, p. 51), “toda a preocupação da elite, apoiada nas teorias racistas da época, diz respeito à influência negativa que poderia resultar da herança inferior do negro nesse processo de formação de identidade étnica brasileira”. Neste sentido, a estrutura jurídico-penal do Estado sofreu alterações e passou a ter papel decisivo na criminalização da cultura e das formas de vida dos recentes libertos, como também buscou legalizar e legitimar a exclusão a direitos do povo negro, neste sentido, por exemplo, a lei penal proibia a circulação de sujeitos negros nos espaços públicos e, da mesma forma, reprimia qualquer tipo de associação coletiva. A arquitetura jurídica, esteve ao serviço de um objetivo fundamental: o de excluir o povo negro (e também indígena) da formação da identidade nacional e do projeto de República. A pretensão da elite brasileira era criar um país “branco” e “civilizado” nos moldes europeus. Neste sentido, as legislações de 1890, da mesma forma que observavam incentivos para a imigração europeia, estipulavam restrições para a imigração asiática e africana. O Código Penal de 1890, em termos jurídico-penais, representou, sobretudo, uma ruptura com as práticas penais que vigoravam no sistema escravista ao instituir a generalidade e a imparcialidade dos critérios penais. Dessa forma, o novo código aboliu as penas que atingiam especificamente os (as) escravizados (as), instaurando, ao menos formalmente, a universalidade da lei penal. No entanto, como instrumento de controle do crime e de repressão social, influenciado pela criminologia positivista, fomentava concepções restritivas ao exercício dos direitos de cidadania, em especial, da população negra. A capoeira, considerada crime no Código Penal, era tida como uma prática que representava ameaça à segurança física dos cidadãos, bem como uma atividade que remetia à subversão e rebeldia. O aumento da repressão sobre a capoeira e a deportação de seus praticantes constituiu uma das primeiras medidas tomadas pelo novo regime republicano. (CATOIA, 2018, p. 273).
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Segundo Pedroso (1997), no fim do século XIX e início do século XX, as unidades de reclusão em cárceres ou asilos não passavam de simples depósitos de indivíduos (…) negros e mulatos5. “Os criminosos sociais, os vadios, vagabundos e capoeiras, tinham, assim, legislação e espaço específico muito bem elaborado para a punição nas chamadas colônias correcionais, criadas especialmente com a finalidade de circunscrever a marginalidade das cidades” (PEDROSO, 1997, p.126). Essas reflexões sobre a estruturação histórica do direito penal, sob o prisma do racismo e orientada para a preservação do direito de propriedade privada, são fundamentais para a compreensão da centralidade da política criminal no capitalismo que, de acordo com Melossi e Pavarini (2006), tem uma função de primeira ordem: a de “ensinar” ou “adaptar” os não proprietários à sua condição de expropriados. Chama-se a atenção dos interesses da burguesia pelo permanente exercício do poder disciplinar sobre setores da classe trabalhadora que se constituem em ameaça – real ou potencial – para o regime de propriedade privada. Para ambos autores, na Modernidade, a prisão ganha centralidade para as formas de controle punitivo estatal. O cárcere – em sua dimensão de instrumento coercitivo – tem um objetivo muito preciso: a reafirmação da ordem burguesa (a distinção nítida entre o universo dos proprietários e o universo dos não-proprietários) deve educar (ou reeducar) o criminoso não proprietário a ser proletário socialmente não perigoso, isto é, ser não-proprietário sem ameaçar a propriedade. (MELOSSI; PAVARINI, 2006, p. 216).
Com isso, afirma-se que as elites brancas do país – historicamente fundamentadas e munidas pela ideologia racista – fizeram e fazem uso do sistema criminal para subjugar as classes consideras “inferiores” e “perigosas” e garantir a permanência de seu projeto de classe. Leite (2018), a partir de uma leitura marxista do direito, destaca a contradição entre os princípios jurídicos liberais, formais da igualdade e a liberdade de contrato supostamente entre iguais, propostos no direito burguês e a desigualdade existente no real, que permite historicamente a extração de mais-valia através de mecanismos violentos de exploração da força de trabalho; as expropriações de direitos e a separação dos trabalhadores de seus meios de trabalho necessários para reproduzir sua vida. Na particularidade das expropriações contemporâneas, a forma jurídica do direito continua a permitir por mecanismos legais o aprofundamento dos processos de exploração da força de trabalho. Neste sentido, o uso violento do direito por parte do Estado, entre outras funções, possibilita a abertura de novos mercados lucrativos para o capital privado. “O desenvolvimento do capitalismo é um processo permanente de superação dos obstáculos e limites à acumulação por meio da mercantilização de espaços ainda não mercantilizados”. (DÖRRE, 2012 apud LEITE, 2018, p. 111).
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Para maior aprofundamento sobre a relação entre sistema penal no Brasil e racismo: SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. A prisão dos ébrios, capoeiras e vagabundos no início da Era Republicana. Topoi, Rio de Janeiro, 2004, v.5, n. 8, p. 138-169, jan./jun. 2004. SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Os porões da República: a colônia correcional de Dois Rios entre 1908 e 1930. Topoi, Rio de Janeiro, 2006, v.7, n. 13, p. 445-476, jul./dez. 2006.
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3 Destruição de direitos na fase neoliberal do capital e superencarceramento no Brasil Para a emersão e reprodução do modo de produção capitalista é indispensável a acumulação de capital, processo que deve ser incessante e ininterrupto para permitir a ampliação do valor (KILDUFF, 2015, p. 39-40), neste sentido, podemos afirmar que as crises são períodos nos quais os ciclos de crescimento do capital sofrem algum tipo de perturbação ou interrupção. Na análise marxiana, a explicação das crises deve ser buscada no próprio movimento da reprodução ampliada do capital. Para Marx, o aumento da produtividade do trabalho leva, tendencialmente, à queda da taxa de lucros pelo aumento proporcional de capital constante em relação ao capital variável6: A tendência progressiva da taxa de lucro a cair é, portanto apenas uma expressão peculiar ao modo de produção capitalista para o desenvolvimento progressivo da força produtiva social do trabalho (…) está provado que a partir da essa tendência do modo de produção capitalista que em seu progresso a taxa média geral de mais-valia tem de expressar-se numa taxa geral de lucro em queda (MARX, 1984, p. 164).
No desenvolvimento capitalista, a forma política de Estado (indissociável das relações econômicas, ideoculturais, políticas e jurídicas da sociedade) aciona diversas e complexas estratégias contracíclicas cujo objetivo principal é recompor as taxas de lucros esperadas pelos capitalistas. O próprio Marx, no Livro III de O Capital (1984), observa as causas contrariantes para restaurar os ciclos de crescimento capitalista e oferece chaves heurísticas imprescindíveis para caracterizar e compreender a crise contemporânea. Para o autor, o capital responde a suas próprias crises estruturais com a elevação do grau de exploração do trabalho; reduções de salário; barateamento dos elementos que constituem o capital constante (matérias-primas, máquinas, etc.); aumento do desemprego e subemprego; ampliação do comércio exterior no mercado mundial e, por último, o aumento do capital por ações ou capital portador de juros7 (MARX, 1984 apud KILDUFF, 2015, p. 46). O Estado tem uma função de primeira ordem no capitalismo: salvaguardar a propriedade privada. Neste sentido, Mandel (1982) afirma que o capital é incapaz de produzir por si mesmo a natureza social de sua existência. O Estado capitalista, na sua função de garantir a propriedade privada, assegura por este movimento a reprodução da divisão da sociedade em classes e, desta forma, do domínio dos proprietários sobre os não proprietários. Com isso, nesse processo, historicamente, o Estado adensa e complexifica suas estratégias políticas e econômicas para atingir esse fim. Como resposta à queda tendencial dos lucros que caracteriza a crise mundial que se abre a partir das décadas de 1970/1980, “o sistema capitalista reforça a valorização financeira, com o capital fictício passando a ocupar a liderança na dinâmica do capitalismo, nesse período, apropriando-se cada vez mais dos fundos públicos”. (CHESNAIS, 2016 apud MENDES; CARNUT, 2020, p. 13). 6
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Marx (1984) denomina composição orgânica do capital à relação necessária e interdependente entre capital constante (o destinado à compra de meios de produção) e o capital variável (parte utilizada para a compra da mercadoria força de trabalho). “Uma parte do capital, com o progresso da produção capitalista, que anda lado a lado com a acumulação acelerada, só se calcula e emprega como capital que proporciona juros.” (MARX, 1984, apud KILDUFF, 2015, p. 46).
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Apesar da crise capitalista mundial caracterizada por processos hiperinflacionários, recessão, ciranda financeira e crise da dívida externa (SALVADOR, 2010), o Brasil, na mesma década de 1980, – pela mobilização coletiva e democrática – conquista direitos sociais consagrados na Constituição Federal de 1988, alvos de permanentes ataques neoliberais. Como destacado na primeira seção do artigo, a violência e o racismo de Estado contra a maioria de sua população, são estruturais. Todavia, a implementação da programática neoliberal como resposta do capital a sua própria crise estrutural em curso, significou um novo fortalecimento do aparelho repressivo do Estado. Neste sentido, o aumento da repressão garante ao Estado a execução das contrarreformas exigidas pelo capital internacional, cujas principais consequências estão vinculadas com o avanço da destruição de direitos e a consequente radicalização das expressões da questão social8. A partir do imposto pelo Banco Mundial (BM) e o Fundo Monetário Internacional (FMI), foi promulgada, em 2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) com o objetivo de reduzir os “gastos” da administração pública. Umas das principais consequências dessa lei foi a restrição em contratação de trabalhadores (responsabilizados pela crise), que significou a redução de concursos públicos e a consequente falta de força de trabalho para a formulação, gestão e implementação de políticas públicas de saúde, educação e demais serviços públicos (BOSCHETTI, 2018). O outro mecanismo para “equilibrar as contas públicas” foi a denominada Desvinculação de Receitas da União (DRU). Essa medida, aprovada também em 2000, possibilitou legalmente a desvinculação de 20% dos recursos destinados às políticas sociais. Ainda no Governo de Dilma, a DRU não somente foi mantida como também prorrogada até 2023 e o percentual de retirada de recursos orçamentários aumentou de 20% para 30%. Dentre as medidas aprovadas após o golpe institucional-jurídico-parlamentar que destituiu a presidente Dilma Rousseff, destaca-se a Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016, que instituiu o chamado “Novo Regime Fiscal”, e estabeleceu, por vinte anos, limitações orçamentárias para as políticas públicas. Cabe observar que esses mecanismos legais continuam vigentes até hoje, possibilitando a transferência de bilhões de reais das políticas sociais para a esfera financeira, para o pagamento de juros e encargos da dívida pública que remuneram principalmente a forma de capital fictício9.
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Para ilustrar o rebaixamento das condições de vida da classe trabalhadora, verifica-se que, no decorrer de 2020, Brasil voltou a integrar a lista do “Mapa da Fome”. Segundo pesquisador do Instituto Brasileiro de Análise Sociais e Econômicas (Ibase), o quadro brasileiro vem piorando, sobretudo desde 2016 em diante, no que se refere tanto à relação do enfrentamento da fome quanto à questão da pobreza e da extrema pobreza associada à fome. Nesta direção, o Banco Mundial estima que Brasil (até fim de 2020) atinja 14,7 milhões de pessoas em condição de extrema pobreza, ou seja, 7% de sua população. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/06/23/o-brasil-ja-esta-dentro-do-mapa-da-fome-denuncia-expresidente-do-consea Acesso em: 28 ago. 2020. 9 “Sob essa perspectiva, nota-se que, entre 1995 a 2018, o gasto do Ministério da Saúde não foi alterado, mantendo-se 1,7% do PIB, enquanto que o gasto com juros da dívida representou, em média, 6,6%” (FUNCIA; SANTOS, 2019 apud MENDES; CARNUT, 2020, p. 25).
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Ainda no governo Temer, em 2017, aprovou-se a Lei da Reforma Trabalhista, sob argumento de “criar novos empregos”. Essa lei, além de não ter promovido novos postos de trabalho10, atacou as fontes de financiamento das entidades sindicais e abriu espaços para a ampliação da precarização dos empregos com novas modalidades de contratação sem direitos trabalhistas e com salários menores11. O governo de extrema direita de Bolsonaro, em vigência desde 2018, segue intensificando o desmonte das políticas públicas, concomitante ao aprofundamento dos traços neofascistas do seu governo, caracterizado por práticas antidemocráticas e de ódio contra grupos contrários à sua agenda ultraneoliberal e conservadora. A reforma da previdência, aprovada em 2019, foi um dos pontos-chaves do programa neoliberal do Ministro de Economia, Paulo Guedes. Ela foi escolhida como prioridade dos grandes grupos econômicos e especialmente dos bancos, apesar das manifestações de resistência ocorridas em todo Brasil. O governo Temer e, posteriormente, o de Bolsonaro, construíram uma imagem dessa reforma ser “necessária para combater privilégios”, mas sabe-se que o objetivo é ampliar os lucros dos fundos de pensões desfinanciando a previdência pública, atacando a lógica da solidariedade entre gerações e substituindo-a por um regime de capitalização individual nos moldes chilenos12. Assim, na fase neoliberal do capitalismo, na particularidade do Brasil, concomitante ao corte ou redução de políticas sociais, aumenta a repressão de Estado à classe trabalhadora. Não significa que a pobreza gere o delito, pois o aumento da criminalização está relacionado ao endurecimento penal que os governos neoliberais dão às suas políticas criminais, todavia sustenta-se neste artigo que o rebaixamento permanente das condições de vida e a expropriações dos diretos básicos para reproduzir a vida material, cria as condições para o aumento de estratégias de sobrevivência ilegais. Com isso, o racismo, que estrutura historicamente o sistema criminal, encontra renovados argumentos na chamada “guerra às drogas”13, que constitui a narrativa central que justifica e naturaliza o superencarceramento e as intervenções militares em favelas. “Em uma verdadeira ditadura contra os pobres, nas cidades brasileiras, a Polícia Militar entra diariamente em favelas com tanques e tropas que jogam abaixo portas e janelas, saqueiam casas e intimidam a seus ocupantes, disparam e assassinam indiscriminadamente.” (WACQUANT, 2007, p. 212). O grande encarceramento guarda relação com a criminalização crescente do Estado a partir da legislação antidrogas. Em 1990, o Brasil contava com aproximadamente 90 mil pessoas privadas de liberdade. Em 2016, durante o governo ilegítimo de Temer, o país torna-se o terceiro do mundo com maior população penitenciária, acompanhando uma tendência de crescimento sem precedentes desde a década de 1990, com mais de 700 mil pessoas privadas de liberdade (Figura 1). 10
Dados do IBGE demonstram que, em abril de 2020, a taxa de desemprego chegou a 12, 6%, e os jovens são os mais atingidos. 11 Guimarães, Juca. “Reforma laboral en Brasil redujo ingresos, no generó empleo y precarizó el trabajo”. Brasil de Fato, São Paulo, 12 de nov. 2018. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2018/11/12/reforma-laboral-en-brasil-redujoingresos-no-genero-empleo-y-precarizo-el-trabajo. Acesso em: 30 ago. 2020. 12 O regime de capitalização no Chile foi imposto pela ditadura de Augusto Pinochet e ainda permanece. Existe movimento social organizado “Não mais Administradoras de Fundos de Pensão (AFP)”, que exige ao governo o fim desse modelo que tem provocado que idosos continuem trabalhando com mais de 80 anos e também onda de suicídios na terceira idade. Disponível em: https://revistaforum.com.br/global/chile-capitalizacao-da-previdencia-faz-idosos-morrerem-trabalhandoe-suicidio-bater-recorde/. Acesso em: 22 ago. 2020. 13 Para aprofundar o tema, recomenda-se: Eugenio Raul Zaffaroni, “Guerra às Drogas e Letalidade do Sistema Penal”: Disponível em https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista63/revista63_115.pdf e o livro: “O direito penal da Guerra às Drogas”, de Luís Carlos Valois.
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Figura 1. Número de pessoas privadas de liberdade no Brasil, entre 1990 e 2016 (em mil)
Fonte: Levantamento de Informações Penitenciárias-INFOPEN (jun. 2016) e Brasil (2016)
Ainda, destaca-se que, em 2019, o número ascende a mais de 755 mil indicando a continuidade do acelerado processo de encarceramento no país. Ao caracterizar a população presa, observa-se que 40% está em prisão preventiva (ou seja, permanecem sem sentença firme), aproximadamente a metade cumpre em regime fechado (362.547) e apenas existem 442.342 vagas para o total de presos, dado que indica a superlotação do sistema (BRASIL, 2019). Aproximadamente 30% respondem por crimes vinculados ao tráfico de drogas e 21% por roubo14. Esse dado revela que mais metade dos delitos que levam à pena de prisão, relacionam-se a estratégias ilegais de sobrevivência. De acordo com Borges (2018, p. 14), “esta população prisional tem sistematicamente seus direitos violados e os resquícios de tortura, como pena, permanecem. 64% da população é negra enquanto esse grupo compõe 53% da população brasileira, ou seja: dois de cada três presos é negro no Brasil e 55% das pessoas presas, são jovens”. Como destacado, os sujeitos criminalizados são em sua maioria jovens negros/as e pardos/as, pertencentes à classe trabalhadora mais empobrecida, cuja prevalência dos casos de detenção ocorre por delitos não violentos vinculados ao varejo do mercado de drogas. A taxa de mulheres presas no país é superior ao crescimento geral da população carcerária, dado que reafirma o caráter racista e patriarcal da formação social brasileira e, particularmente, do sistema de justiça criminal.
4 Mulheres em prisão e os alcances do castigo Em nível mundial, as mulheres em reclusão representam aproximadamente 5,5% da população penitenciária total. Embora seja uma minoria, esse número cresce de forma acelerada e os delitos relacionados a drogas desempenham um papel destacado nessa tendência. 14
BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Portal do governo brasileiro. Governo Federal, jun. 2016. Disponível em: https://www.justica.gov.br/news/ha-726-712-pessoaspresas-no-brasil Acesso em: 30 ago. 2020.
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Chernicharo (2014) chama a atenção para a desigualdade e as condições socioeconômicas, que caracterizam a região de América Latina, explicarem “a escolha” por uma atividade passível de punição. Dados apontam que as detentas, em geral, são as que sustentam economicamente suas famílias e as responsáveis pelo cuidado de seus filhos (e outros familiares), com duplas e até triplas jornadas de trabalho. El peso de los cuidados de niños, niñas y a veces personas de la tercera edad recae enteramente sobre ellas, empujándolas a veces a buscar en la venta de drogas una manera de combinar sus múltiples obligaciones. Esta situación se refleja en el perfil de las mujeres encarceladas por delitos de drogas en América Latina: muchas de ellas son madres solteras que entran al negocio de las drogas solamente para poder alimentar a sus hijas e hijos. (GIACOMELLO, 2013, p. 2).
Do mesmo modo que no resto de América Latina, o superencarceramento no Brasil revela formas de opressão cujas principais determinações são as de raça e gênero. A criminalização das mulheres pelo sistema de justiça brasileiro, aumentou sistematicamente acompanhando o processo de contrarreformas, desestruturação e supressão de direitos implementados pelo Estado brasileiro. De acordo com dados do relatório INFOPEN/Mulheres (2014), no início da década de 2000, existiam 5.601 mulheres em situação de restrição de liberdade e em 2016, eram 37.380. Em 2016, mais de 42 mil mulheres presas (Figura 2), posiciona o país como o quinto no mundo com maior população prisional feminina, apenas atrás de Estados Unidos, China, Rússia e Tailândia. Figura 2. Número de mulheres privadas de liberdade no Brasil, entre 2000 e 2016 (em mil)
Fonte: INFOPEN (jun.2016) e Brasil (2016)
A maioria das mulheres privadas de liberdade respondem por delitos não violentos vinculados ao transporte e pequeno comércio de drogas, motivo de 68% das prisões. Ao analisar o perfil, Boiteux (2016) observa que em sua maioria são jovens (50%), negras (68%) com escassas trajetórias escolares, com ensino fundamental incompleto (50%), e únicas responsáveis pelo sustento afetivo e financeiro de suas/seus filhas/os; desempregadas ou inseridas em atividades precarizadas.
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Seletividade punitiva, racismo e superencarceramento no Brasil Fernanda Kilduff
Além do mais, as mulheres negras são condenadas socialmente por não responderem aos padrões de “mulher universal15”, e com isso, quando privadas de liberdade, sofrem dupla condenação: judicial e de gênero. Ainda buscando entender como racismo estrutural e opressão de gênero se expressam na realidade concreta, é possível ver que as mulheres negras são condenadas por serem mães de sujeitos estigmatizados como delinquentes. Nas narrativas da casa grande, as mulheres negras são originárias de famílias desorganizadas, anômicas, desintegradas, estando todas essas definições numa referência das famílias brancas e por consequência, as famílias negras são discursivamente apresentadas como produtoras de futuras gerações de delinquentes. (REIS, 2005 apud BORGES, 2018, p. 15).
O relatório “Mulheres, Meninas e Privação de Liberdade” (RIO DE JANEIRO, 2017) traz depoimentos de mulheres negras que têm seus filhos privados de liberdade e a condena social que elas vivem ao serem responsabilizadas pelos delitos de seus filhos. O fenômeno do encarceramento de jovens das periferias é acompanhado pelo discurso de que o jovem é perigoso e sua família desestruturada. Esse discurso, veiculado nas mídias e ratificado por “especialistas”, muitas vezes é utilizado como justificativa para práticas de higiene social e criminalização das famílias pobres. (RIO DE JANEIRO, 2017, p. 74).
Essa condenação moral adquire novos contornos quando elas são as mulheres presas. Os direitos de visita e comunicação com o mundo exterior, como também o direito de trabalho e estudo não lhes é garantido pelo Estado. Quando privadas de liberdade, frequentemente experimentam o abandono familiar, além de conviver com rotinas de ociosidade forçada. Ademais, segundo o mesmo relatório, é recorrente, nas visitas às unidades femininas, a reclamação sobre a falta de atendimento médico e a negligência com cuidados da saúde. “A experiência do Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura (MEPCT/RJ) a partir das visitas às unidades femininas é de que às mulheres presas não lhe é garantido acesso à saúde e higiene16” (RIO DE JANEIRO, 2017, p. 68). Além da falta de elementos de higiene para transitar pelos ciclos menstruais, a punição da sexualidade feminina, se expressa, por exemplo, pelo reconhecimento tardio ao direito da visita íntima – apenas em 2001 – e nas dificuldades que as mulheres encontram para acessar a métodos contraceptivos e atendimento médico ginecológico. 15
Na metade do século XIX, foi desenvolvida a noção de “mulher universal” que coincide com a ideia de mulher “dona de casa” que “tem um marido” e que cuida incondicionalmente dos filhos, e é: “suave” e “doce”. Essas características foram atribuídas à ordem da natureza, sendo a ideia de “instinto feminino e materno” o pivô dessa construção. Todavia, as mulheres negras escravizadas não participaram do processo de construção deste estereótipo de “mulher universal”, como também não fizeram parte do processo de construção da família nuclear burguesa. Nesse sentido, enquanto na Europa industrializada se configurava a família nuclear, no Brasil, as mulheres escravas continuavam a serem estupradas pelos seus senhores com o intuito de reproduzir a força de trabalho escravizada. “Durante o processo de escravização as mulheres negras foram transformadas em objetos de satisfação sexual dos homens brancos e os frutos dos crimes sexuais contribuíam perversamente para reproduzir a força de trabalho superexplorada. As mulheres negras brasileiras receberam uma herança cruel: ser objeto de prazer dos colonizadores (…).” (NASCIMENTO, 1978, p. 61). 16 É conhecida a precariedade de fornecimento por parte da Secretaria de Estado e Administração Penitenciária (SEAP) de itens básicos de higiene como absorventes e papel higiênico, implicando grandes esforços entre elas para dividir esses recursos, toda vez que recebem visitas de familiares, que são praticamente inexistentes.
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O exercício do direito à saúde foi um dos problemas mais graves na unidade, assim como nas demais unidades prisionais do estado. Só há um médico que atende à unidade que apesar de ser de um presídio feminino, não há ginecologista. Dentre as principais questões que afetam esse direito podemos indicar a ausência de exame de mamografia e doenças infectocontagiosas e ainda reclamações quanto ao acompanhamento DST/AIDS. (RIO DE JANEIRO, 2017, p. 42).
O mesmo relatório constata que não são construídos estabelecimentos prisionais específicos para mulheres. A população crescente é recluída em construções precárias, improvisadas, ou em unidades preexistentes designadas para alojamento masculino, sem adequação para as mulheres que estão com seus filhos. Desta forma, constata-se que a própria arquitetura é violadora de direitos e expressa a absoluta carência de resposta do Estado a um tipo de tratamento de gênero. O péssimo estado de infraestrutura (má ventilação e iluminação; falta de água e luz elétrica, péssimo estado dos colchões, calamitoso estado de higiene e conservação com fedores, ratos, baratas, etc.) possibilita a proliferação de doenças infectocontagiosas, que se agrava com a superlotação. A superlotação das celas das unidades tem mantido as mulheres presas em permanente situação degradante, sendo obrigadas ao convívio em um espaço apertado, sujo, com baratas e sem água suficiente, além de uma rotina ociosa e de risco. (…) A superlotação por si só já se constitui em um tratamento cruel e desumano (…), comprometendo o atendimento técnico, além de todo maior quadro de tensão que se gesta nesta situação. (RIO DE JANEIRO, 2017, p.58-61).
A atual Lei Nacional de Drogas (11.343/2006) considera o tráfico crime hediondo e inafiançável. Segundo o estudo de INFOPEN Mulheres (BRASIL, 2018), 68% dos casos de detenção se correspondem a esse delito. Chamou a atenção à quantidade de presas por crime de tráfico de drogas e associação para o tráfico de drogas, muitas vezes com a apreensão de uma quantidade muito pequena de drogas, como, por exemplo, uma pedra de crack, uma trouxa de maconha e casos em que a polícia prende o marido e “leva” a mulher. (RIO DE JANEIRO, 2017, p. 34).
A aplicação recorrente de penas privativas de liberdade sem considerar a realidade social 17 , contextual e familiar das mulheres – reproduzindo práticas patriarcais e racistas – tem sido uma constante no acionar dos Tribunais de Justiça. “As detentas são vistas como piores que os homens que cometem crimes, uma vez que a sociedade patriarcal (…) lhes impõe condutas que não contrastem à ideia de ‘natureza feminina’”. (SANTORO; PEREIRA, 2018, p. 92). 17
Os operadores do sistema de justiça criminal ignoram, no momento das sentenças, a realidade de exclusão estrutural da população negra de acesso a políticas sociais. “Em 2018, somente 11,9% das pessoas ocupadas em cargos gerenciais eram pretas ou pardas, ao passo que entre as brancas tal proporção atingiu 85,9%. Por outro lado, a população preta representa 64,2% da classe trabalhadora desocupada e 66,1% da força de trabalho empregada em processos laborais precarizados”. (IBGE, 2019). De acordo com Carneiro (2011, p.130), “As mulheres negras brasileiras tiveram sua experiência histórica marcada pela exclusão, pela discriminação e pela rejeição social (…)”. No que tange ao mercado de trabalho, segundo o IBGE (2019), mais de 70% das mulheres negras ocupam trabalhos domésticos e de cuidados, com baixa remuneração e desvalorizados socialmente.
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Seletividade punitiva, racismo e superencarceramento no Brasil Fernanda Kilduff
A pena carcerária implica uma brutal ruptura dos vínculos familiares e afetivos e, em muitos casos, na dissolução do núcleo familiar. A pena privativa de liberdade produz impactos diferenciados em homens e mulheres. Pelo lugar de cuidado que elas desempenham na sociedade, a punição se estende a filhas/os que são separados de suas mães e, muitas vezes, por falta de alguém que se responsabilize pelo cuidado, são institucionalizados. Como destacado, é frequente a perda de comunicação com familiares, companheiros/as, o que ocasiona, muitas vezes, desconhecer o destino de seus filhos/as, situação que provoca muito sofrimento. São múltiplas as violências vivenciadas pelas mulheres. Os maus-tratos, castigos físicos e psicológicos, perpetrados por agentes penitenciários conformam uma metodologia naturalizada de violência institucional presente na gestão das rotinas carcerárias. O uso da violência contra as presas se configura como uma prática rotineira por parte dos agentes do Estado. Foram muitos os relatos de tapas na cara, que seriam infligidos por agentes de segurança do sexo masculino presentes na unidade. Ademais, as presas relatam o uso frequente de algemas e agressões verbais durante o transporte do Serviço de Operações Especiais (SOE) até a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Gericinó, quando estão doentes. (RIO DE JANEIRO, 2017, p. 59).
No interior das unidades prisionais, essas formas de violência, além de produzidas e incentivadas, são silenciadas e naturalizadas, tornando mais complexo qualquer estratégia para sua modificação. Todavia, apesar dessa constatação, atividades profissionais coletivas e interdisciplinares podem ser orientadas à denúncia dessas violações de direitos junto aos organismos de Direitos Humanos, projetando possibilidades interventivas que considerem as formas concretas de opressão de raça, classe e gênero, assumidas no encarceramento de mulheres no Brasil.
5 Considerações finais O sistema de justiça criminal brasileiro tem a raça como seu princípio organizador no processo de encarceramento e na história de dominação colonial que perdura até os dias atuais (ALVES, 2017). Historicamente, o sistema penal foi e continua arquitetado para a punição e o disciplinamento daqueles corpos considerados uma ameaça à ordem da propriedade privada instituída pelo capital. Na fase neoliberal do capitalismo, o racismo institucional, presente no sistema de justiça criminal, encontra renovados argumentos na chamada “guerra às drogas”, que, na atualidade, se constitui no discurso central que justifica o superencarceramento. O Estado capitalista no Brasil é responsável pela militarização da vida social e pelos assassinatos e tortura de jovens (em locais ou não de privação de liberdade) em sua maioria negros oriundos das periferias de grandes cidades. Esse fato reforça a permanência de um racismo estrutural que caracteriza sua formação social e permeia, até hoje, todas as suas instituições, sendo uma delas o sistema penitenciário, que concentra mais de 60% de pessoas negras, enquanto, no Brasil, 53% da população se autodefine negra. Ao considerar a opressão de gênero ao racismo estrutural, mulheres negras são judicialmente estigmatizadas, culpadas e responsabilizadas.
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De acordo com Borges (2018, p. 87), “acreditar que o elemento de classe não está informado (…) pelo elemento racializado e colonial da sociedade brasileira é invalidar que negros são 76% entre os mais pobres no país”. É essa população a que vem sendo encarcerada e/ou executada por agentes públicos do Estado, em face do projeto do capital que avança com a destruição de direitos e o acirramento da repressão preventiva à classe que vive do trabalho. Como destacado, a maioria das mulheres são privadas de liberdade por delitos cometidos sem violência, fato que possibilitaria responderem a seus processos em liberdade. Todavia, elas são selecionadas pelo sistema penal que ancora e reproduz práticas patriarcais e racistas, sobretudo por essas mulheres estarem em condições de pobreza e terem menos “permissão moral” que os homens para cometerem ações ilícitas. Registra-se ainda que, considerando que as mulheres mães representam um significativo percentual e pelo caráter do crime cometido, poderiam cumprir a pena em liberdade para permanecerem com seus filhos.
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Submetido em: 23 ago. 2020 Aceito em: 16 nov. 2020
DOI: 10.19180/1809-2667.v22nEspecial2020p805-819
O recrudescimento penal em meio a pandemia do coronavírus no Rio de Janeiro Criminal resurgence amid the coronavirus pandemic in Rio de Janeiro Aumento criminal en medio de la pandemia de coronavirus en Río de Janeiro Ionara Santos Fernandes https://orcid.org/0000-0001-6060-7697 Assistente Social. Mestre em Sociologia e Direito (2017) pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói/RJ – Brasil. E-mail: inr_fernandes@hotmail.com.
Resumo A política penal ganha novos contornos no Rio de Janeiro durante a pandemia do novo coronavírus. O Estado manifesta seu direcionamento ultraconservador e punitivista para gerir a crise de saúde pública no precário sistema prisional, reduzindo direitos e expandindo a economia carcerária. O objetivo desse texto é refletir sobre alguns elementos introduzidos e/ou reafirmados durante a pandemia no sistema prisional, como o aumento dos gastos de familiares, que com as visitas suspensas, entregam mais alimentos e dinheiro; o trabalho voluntário exercido pelas presas na produção em massa de máscaras e a cogitação do uso de contêineres e alteração das normas de arquitetura prisional. Como metodologia, o estudo é bibliográfico e documental, esses últimos produzidos pelo MEPCT/RJ, órgão que monitora e fiscaliza espaços de privação de liberdade no estado, e apresenta indícios para pensar as novas dinâmicas no cárcere, de forma qualitativa. Ao fim, identifica-se a instrumentalização da crise de saúde mundial para a agenda de recrudescimento penal no Brasil, garantindo lucratividade e reprodução do capital. Palavras-chave: Sistema prisional. Política penal. Coronavírus.
Abstract Criminal policy takes on new shapes in Rio de Janeiro during the new coronavirus pandemic. The State expresses its ultraconservative and punitive approach to manage the public health crisis in the precarious prison system, reducing the law and expanding the prison economy. The purpose of this text is to reflect on some elements introduced and / or reaffirmed during the pandemic in the prison system, such as the increase in family expenses, which with suspended visits, deliver more food and money, the voluntary work carried out by prisoners in the mass production of masks. and the consideration of the use of containers and alteration of prison architecture rules. As a methodology, the study used documents produced by MEPCT / RJ (institution that monitors and inspects places of deprivation of liberty in the state), and presents evidence to think of new dynamics in prison, along with a relevant review of literature to reflect on the issue. The paper also identifies the instrumentalization of the world health crisis for the agenda of criminal recrudescence in Brazil, guaranteeing profitability and capital reproduction. Keywords: Prison system. Penal policy. Coronavirus.
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Resumen La política criminal toma nuevas formas en Río de Janeiro durante la nueva pandemia de coronavirus. El Estado expresa su enfoque ultraconservador y punitivo para manejar la crisis de salud pública en el precario sistema penitenciario, reduciendo la ley y expandiendo la economía carcelaria. El propósito de este texto es reflexionar sobre algunos elementos introducidos y / o reafirmados durante la pandemia en el sistema penitenciario, como el aumento de los gastos familiares, que con visitas suspendidas, entregan más alimentos y dinero; el trabajo voluntario que realizan los presos en la producción masiva de máscaras y la consideración del uso de contenedores y alteración de las normas de arquitectura carcelaria. Como metodología se utilizaron documentos producidos por MEPCT / RJ, órgano que monitorea e inspecciona los lugares de privación de libertad en el estado, y presenta evidencias para reflexionar sobre las nuevas dinámicas carcelarias, junto con la literatura relevante para reflexionar sobre el tema. Al final, identifica la instrumentalización de la crisis sanitaria mundial a la agenda del recrudecimiento delictivo en Brasil, asegurando la rentabilidad y la reproducción del capital. Palabras clave: Sistema penitenciario. Política penal. Coronavirus.
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O recrudescimento penal em meio a pandemia do coronavírus no Rio de Janeiro Ionara Santos Fernandes
1 Introdução A pandemia do novo coronavírus no Brasil traz impactos diretos na gestão da política prisional e nas relações sociais em torno da população carcerária no país. É possível identificar o acirramento das perspectivas econômicas em torno da política penal justificado no controle da disseminação da doença nos espaços prisionais. O objetivo deste trabalho é trazer reflexões sobre o cenário encontrado até o momento no sistema prisional do estado do Rio de Janeiro. Como metodologia, a pesquisa é de natureza bibliográfica e documental (MARCONI; LAKATOS, 2003; MINAYO, 1994). As fontes documentais são os relatórios produzidos e disponíveis publicamente pelo Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro (MEPCT/RJ), órgão responsável pela fiscalização e monitoramento dos espaços de privação de liberdade no estado. Os documentos apresentados evidenciam diversas situações de alteração das dinâmicas institucionais no meio prisional em virtude da pandemia, permitindo uma análise qualitativa de um caso específico: o sistema prisional fluminense. Com isso, selecionamos situações específicas que apontam para as alterações que poderiam impactar diretamente no orçamento dos atores desse contexto. Nesse sentido, o artigo abordará inicialmente a ascensão da política criminal e penal em meio ao neoliberalismo, compreendendo os elementos históricos, políticos e sociais. Em um segundo momento, apresentaremos um panorama dos momentos da Covid-19 no sistema prisional brasileiro. Por fim, refletiremos sobre os dados encontrados nos documentos do MEPCT/RJ sobre o cenário do sistema prisional no estado do Rio de Janeiro, salientando o impacto com as suspensões das visitas e a consequente oneração das famílias, o emprego de trabalho voluntário das presas e as propostas de transformações na arquitetura prisional, todos esses elementos justificados pela pandemia do novo coronavírus.
2 O recrudescimento penal no neoliberalismo O endurecimento da política criminal e penal não é uma novidade no Brasil. O país já executa esse projeto há algumas décadas e com o passar dos anos são desenvolvidas novas tecnologias de encarceramento em massa, consolidando o aparato político, jurídico e social de aprisionamento dos pobres. A política estatal de criminalização da pobreza, ou a gestão da miséria, se dá em duas modalidades organicamente articuladas e que conformam o que Wacquant classifica como Estado penal. O primeiro componente do Estado penal, menos visível, é a transformação da Assistência (e dos próprios serviços sociais) em instrumentos de controle e vigilância das chamadas “novas classes perigosas”, com o objetivo de fazer com que esse público aceite qualquer emprego, não importa quais as condições de trabalho e a remuneração que sejam oferecidas (comporiam medidas do workfare). […] O segundo componente do Estado penal é o encarceramento ou a “contenção repressiva” dos pobres. Essa ação atinge prioritariamente negros e jovens de bairros pobres e a justificativa ideológica subjacente é a “guerra contra as drogas” […] (MAURIEL, 2016, p. 2021).
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O recrudescimento penal em meio a pandemia do coronavírus no Rio de Janeiro Ionara Santos Fernandes
Gerir a pobreza no neoliberalismo, administrando políticas de assistência social e criminal, é a principal estratégia utilizada para garantir a reprodução do capital. A relação entre as políticas penal e social redimensiona os resultados das crises capitalistas, a partir dos anos de 1970, e as relações capitalistas começam a se reproduzir com base na expansão de medidas de punição intensiva para classe trabalhadora, nesse momento, exposta ao cenário de desemprego e subemprego. As transformações do capitalismo contemporâneo e neste sentido, a refuncionalização do Estado, visando garantir a reprodução ampliada do capital, provocam profundas alterações no conjunto das políticas sociais. Nas últimas décadas e como parte de um mesmo movimento, a crescente expansão da política de assistência social articulada à ampliação da política penal, ocupa no Brasil, um destacado lugar nas formas estatais de gestão e controle da pobreza, do desemprego e da desigualdade social. (KILDUFF; SILVA, 2019, p. 620).
Essa relação de expansão, com a queda das políticas sociais e o aumento das políticas criminais, também entendida como declínio do Estado de Direitos e ascensão do Estado Penal, permite o reequilíbrio das taxas de lucro do capital, impactando diretamente no mundo do trabalho e na extração de novas rendas, como é possível apreender no percurso histórico e social das últimas décadas, proposto por Behring e Boschetti (2009). As autoras analisam os fatos e efeitos das grandes crises do capital, a ascensão do Welfare State e o seu declínio e os impactos desse percurso na construção do neoliberalismo no Brasil. A agenda neoliberal apresentou diretrizes que previam o reestabelecimento do mercado, a elevação das taxas de juros, o enfraquecimento dos movimentos sindicais, a baixa dos impostos sobre altos rendimentos e greves, o aumento do desemprego e o corte nos gastos sociais e a consequente redução nas políticas sociais, por conseguinte, o aumento no processo de privatização e o crescimento do Estado Penal. E é com base no cenário mundial que Wacquant (2015) assegura que […] a nova organização punitiva do programa de bem-estar opera à maneira de um programa de trabalho para aqueles em liberdade condicional, projetado para empurrar seus “beneficiários” para os empregos da subpobreza que proliferam após o descarte do compromisso fordistakeynesiano. A difusão da insegurança social e a escalada das desordens na vida cotidiana, causadas pela dessocialização do trabalho assalariado e pela redução correlata da proteção social, por sua vez, foram detidos pela espantosa expansão do aparato penal. (WACQUANT, 2015, p. 89).
Entretanto, as especificidades do contexto sócio histórico brasileiro inscrevem o país em um percurso de imersão da escravização de pessoas negras e indígenas, afasta a perspectiva de um estado de bem-estar social propriamente dito, e possui uma longa trajetória de ditadura civil-militar, pautada na violência autoritária e cruel. Por isso, é necessário assumir que o Brasil, dentro de suas trajetórias, está fundamentado em uma relação de capitalismo dependente, cujo nosso status de país colonizado nos apresentou consequências políticas, econômicas e sociais, onde as forças produtivas não foram plenamente desenvolvidas, e a industrialização tardia tornou o país depende economicamente dos capitais externos e de suas tecnologias. Essa relação entre o esgarçamento do mundo do trabalho e a dependência de capital externo orienta as políticas internas, aprofundando a desregulamentação financeira e a mercantilização dos direitos. Esses fatores são centrais para pensar a realidade social e punitiva na qual estamos submetidos,
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com o estabelecimento dos ideários neoliberais, que precarizam as políticas sociais, regulamentam as atividades do terceiro setor e iniciam o processo de privatização no país, adaptando o Brasil à lógica passiva do novo capital. Esse cenário nos insere na lógica de redução dos direitos sociais, pautado em uma política cada vez mais frágil, compensatória e pontual, justificada pela constante situação de crise fiscal do Estado, que aliada à despolitização de classe e à redução da capacidade organizativa da classe trabalhadora, experienciamos um processo de individualização árdua da questão social e, consequentemente, a judicialização das políticas sociais.
Neste contexto, se desenvolve um processo de contínua destruição de possível patamar de proteção social universal – ao proceder em intensas contrarreformas na previdência e na saúde – enquanto hiperdimensiona programas assistenciais de alívio à pobreza. De um lado, abre-se a possibilidade de investir capital excedente em nichos de mercados altamente potentes como a área de saúde e previdência – o que corresponde a responder ao processo de supercapitalização pela canalização de capital aos serviços sociais –, com sua patente privatização. Do outro, como medida de equilíbrio, recomenda-se aos Estados nacionais o desenvolvimento de programas assistenciais de alívio à pobreza. Estes programas, além de intervirem diretamente numa questão evidente e perigosa, passam a dar conta mais a miúde de uma camada expressiva da superpopulação relativa. (KILDUFF; SILVA, 2019, p. 621).
Essa superpopulação relativa ao mesmo tempo que pode ser assistida pelos programas da política de assistência social, que está altamente fragilizada, também pode ser alvo de uma outra política. A aliança entre a crise e desassistência resultam na edificação de uma estratégia de contenção da população desempregada e desassistida: a política de aprisionamento em massa. Wacquant (2015) argumenta que o estado opera de formas na política de criminalização da pobreza, a primeira “consiste em reorganizar os serviços sociais em instrumentos de vigilância e controle das categorias indóceis à nova ordem econômica e moral” (p. 111) e a segunda, pautada em uma “política de contenção repressiva dos pobres é o recurso maciço e sistemático à prisão” (p. 113). Essa articulação tende a ser denominada como Estado Penal. Quando estrutura disciplinar em um determinado espaço visa conter e punir grupos populares, desapropriando seus direitos sociais básicos e submetendo à precarização do trabalho, em consonância com a ideologia da classe dominante sob a égide do ideário neoliberal. Sua expressão no Brasil, foi organizada pelos processos de ampliações das legislações repressivas e punitivas e o papel da mídia, que reforça diariamente a necessidade de controle da violência, fundamenta no possível aumento e o direcionamento dos gastos estatais para a política de segurança pública, após o corte na área social. Esses fatores resultam no que Malaguti Batista (2012, p. 308) denomina de adesão subjetiva à barbárie que é a “tarefa conjunta de forçar as classes pobres para fora da assistência social e empurrá-la para o trabalho precário flexibilizado que passará por políticas de desqualificação e criminalização”. A autora defende que “A assistência social do estado Previdenciário transforma-se numa simbiose entre a regulamentação do trabalho esfacelado e a manutenção da ordem, dirigindo o poder punitivo aos pobres, olhados cada vez mais como inimigos, jogados para fora dos afetos e gastos do Leviatã patriarcal”. (MALAGUTIBATISTA, 2012, p. 310).
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O Brasil dos anos 2000 vivenciou um cenário alterado, tanto das políticas sociais, como das políticas penal e criminal. Há um fortalecimento dos programas sociais, no entanto diversas estratégias no âmbito da segurança pública e da política penal são fomentadas, (re)produzindo a política de encarceramento em massa. Sob justificativa de uma “crise da insegurança”, com o aumento quantitativo da criminalidade, aliado a propulsão midiática exponencial das ações, a produção da era do superencarceramento é atenuada no Brasil, ainda que sob a ótica governamental de expansão dos direitos sociais. Em que pese a implementação de políticas distributivas, a elevação dos índices de desenvolvimento humano em todo o país e a redução das desigualdades sociais, bem como a reorientação, ao menos no plano do discurso oficial do governo federal, das políticas de segurança para o foco da prevenção ao delito, chama a atenção o fato de que a população carcerária brasileira cresce de forma ininterrupta durante todo o período analisado. (AZEVEDO; CIFALI, 2015, p. 113).
O governo do Partido dos Trabalhadores (2003-2016) propôs uma reformulação da segurança pública, pautada no combate ao crime organizado e controle de armas, com vistas a denominada “segurança pública cidadã”. Na era Lula, a reformulação institucional da política foi implementada, no entanto, com a ascensão de Dilma Rousself, o tema foi secundarizado no processo eleitoral e nos anos seguintes, dado o baixo índice de aproveitamento dos objetivos da política. Ao mesmo tempo, nesse período, identifica-se a elevação das taxas de encarceramento, endurecimento das legislações penais e da atuação ainda mais punitiva do sistema de justiça criminal voltado para o aumento do aprisionamento (AZEVEDO; CIFALI, 2015). No entanto, nos governos posteriores até o plano atual, o cenário é de total esgotamento dos programas assistenciais e a permanência e recrudescimento das políticas de segurança, criminais e penais. O controle dos pobres, dado o contexto de enxugamento dos gastos públicos sociais, se estabelece e se fortalece nas ações de encarceramento e enrijecimento das estratégias penais, como o que se concretiza com a aprovação do chamado pacote anticrime, que alterou no final de 2019, um conjunto de legislações penais, prevendo por exemplo, o aumento da pena máxima de prisão e mudanças para progressão de regime e liberdade condicional mais gravosa aos presos e presas. Nesse sentido, Wacquant (2015) traz elementos que colaboram para o debate de reafirmação da política de encarceramento e sua lucratividade. O autor afirma que o encarceramento da miséria impõe gastos inimagináveis à gestão, que vão desde de investimentos em alimentação e serviços médicos aos presos, passa pela construção da infraestrutura, reverbera nas despesas coletivas suplementares e ainda impacta nos efeitos financeiros da pena no espaço exterior, incidindo na interrupção das trajetórias escolares e profissionais e no ônus familiar, que com a prisão, precisa girar a renda, agora ainda mais fragmentada, também para a subsistência do preso. Ademais, as empresas de construção e de gestão de prisões não são as únicas a lucrar com a hiperinflação carcerária estadunidense. Todos os setores de atividades suscetíveis de fornecer bens e serviços às instituições de encarceramento estão envolvidos, do seguro à alimentação, passando pela arquitetura, os transportes, a telefonia e as tecnologias de identificação e vigilância. (WACQUANT, 2015, p. 288).
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Logo, a prisão é altamente lucrativa e quanto maior a sua população, maior são os lucros que ela oferece. No Brasil, mercantilizam-se os serviços e a execução prisional. A alimentação, a limpeza, os sistemas tecnológicos de monitoramento e informação são serviços exercidos por empresas privadas, isso sem falar na completa privatização de unidades prisionais em alguns estados da federação. A afinação entre as estratégias sociais e penais reproduzem a lógica do projeto neoliberal. Desmonta a política de assistência social, mantém o desemprego, precariza as relações de trabalho e, por fim, criminaliza a miséria. Nesse sentido, com a vasta população prisional que o Brasil já detém, grande parte composta por presos provisórios, que não tiveram condenação e, portanto, podem ser inocentados dos crimes que lhes foram atribuídos, as unidades prisionais são superlotadas. Não suficiente, as condições estruturais são precárias e o acesso aos direitos sociais limitados. Essa realidade foi fortemente impactada com o advento da pandemia do novo coronavírus no país, como veremos a seguir.
3 Pandemia do novo coronavírus e a prisão Um novo vírus e uma nova doença impactam o cenário mundial no final de 2019 e redobram suas dimensões, quando em março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declara que estamos vivendo uma pandemia. Medidas emergenciais começam a ser elaboradas e implementadas em vários países. Como a Covid-19 carece de estudo e vacina, as melhores estratégias para a contenção do vírus são: o distanciamento social, a higienização constante das mãos, a adoção de etiquetas respiratórias e o uso permanente de máscaras. Essa realidade instaurou uma grave crise de saúde pública no Brasil. O Sistema Único de Saúde embora seja universal, nunca atuou em sua plenitude no país, e o desmonte já implementado na política ficou ainda mais aparente na pandemia. Enfim, a pandemia Covid-19 chega ao Brasil, que com sua histórica desigualdade social e com anos de destruição do SUS (mas que não podemos ignorar a existência de resistências, como trataremos adiante), coloca no horizonte imensas dificuldades de se pensar um futuro tranquilo para esse quadro desolador que a pandemia tem gerado nos países onde, antecipadamente, já passou. (MATOS, 2020, p. 2).
Medidas emergenciais, nesse âmbito, foram elaboradas e adotadas como forma de conter a disseminação e evitar as possíveis mortes em virtude da doença. Construções de hospitais de campanha, compras de respiradores, contratação de profissionais da saúde, aquisição de outros materiais hospitalares e equipamentos de proteção individual foram algumas ações executadas pelo poder público e iniciativa privada, com o objetivo de diminuir o impacto na rede pública de saúde. É evidente que essas ações não foram implementadas de forma linear e a contento em todos os espaços. A pandemia do novo coronavírus e a crise da saúde pública, potencializaram a visibilidade do cenário de desigualdades sociais em todos os âmbitos da vida pública e privada. Trouxeram desafios, questionamentos e vivências que a maioria da população jamais experienciou. Em algumas situações, a quarentena criada pela pandemia nos aproximou dos nossos familiares, os de perto e os de longe, nos colocou em casa e possibilitou conhecer com mais profundidade nosso espaço, explorou nossa capacidade culinária, nos submeteu à possibilidade de aprofundamento dos saberes escolares/científicos, reelaborou as formas trabalho e emprego, utilizou diversas formas de interação com a cultura, tornando nossa maior fonte de diversão e lazer, possibilitou o conhecimento do nosso corpo
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físico incluindo atividades e exercícios físicos em casa e, principalmente, fez com que nos aprimorássemos no uso das tecnologias e das redes sociais. Todas essas medidas foram tentativas de cuidar da saúde física e mental em tempos de confinamento. Contudo, a quarentena não possibilitou o mesmo efeito a todos. Essa relação é tão desigual que o termo “confinamento” nunca foi submetido a tantas narrativas distintas. Disputam sua apropriação como direito, dever e até privilégio. Direito em estar confinado, seria a garantia do seu bem-estar e gozo de sua saúde física permanecendo em sua residência, diminuindo assim as chances de contaminação. Por outro lado, o dever do confinamento revela a obrigatoriedade do sujeito em permanecer em casa, com o objetivo de diminuir o convívio social, com vistas a reduzir a circulação do vírus e consequentemente a propagação da doença. Já o confinamento como privilégio destaca as necessidades que diversos grupos populacionais têm de permanecer em circulação, como os profissionais de saúde, os trabalhadores de serviços essenciais, como mercados, farmácias, transportes públicos, trabalhadores informais e o aumento do trabalho precarizado de entregas por aplicativo. Para todos esses grupos, o confinamento inexiste e, por isso, é entendido como privilégio. Todavia, as disputas pelo termo, em prol da saúde, não consideraram um tipo de confinamento exercido por muitos anos no mundo: a prisão. O aprisionamento é um tipo de confinamento que foge de todas as ideações positivas construída na pandemia sobre essa expressão. A prisão brasileira não garante o distanciamento social, o cuidado permanente com a higienização das mãos e tampouco, oferece possibilidades de reconfiguração do exercício dos direitos sociais básicos. Ademais, as prisões brasileiras, historicamente, são conhecidas pelos seus ambientes insalubres, suas celas superlotadas, seus baixos contingentes de servidores, combo este reconhecido como um “estado de coisas inconstitucional”. Nesta situação extravagante, pessoas presas estão expostas a maiores riscos e nesse contexto, deixar de proteger as pessoas privadas de liberdade de uma doença grave por falta de precaução ou diligência pode culminar na institucionalização de maus tratos ou mesmo tortura. (CORDEIRO et al., 2020, p. 9).
As prisões no Brasil oferecem um ambiente contrário a todas as medidas de contenção do novo coronavírus recomendadas pelas comunidades científicas mundiais. As unidades prisionais no país são identificadas como locais superlotados, com condições estruturais precárias e insalubres, com restrição ou limitação de acesso a direitos básicos como água, alimentação, higiene e saúde. O país possui a terceira maior população prisional do mundo, contudo o número de vagas não corresponde ao quantitativo populacional aprisionado. Segundo os dados do INFOPEN 20191, o Brasil conta com 442 mil vagas, enquanto a população privada de liberdade chega a 755 mil, um grande deficit que promove a superlotação das unidades. Os ambientes prisionais não possuem ventilação, aeração e iluminação adequada, a falta de conservação das estruturas potencializa a umidade e o mofo. A escassez de água e a ausência de saneamento básico apropriado contribuem para a dificuldade de higiene local e pessoal, bem como a fragilidade na distribuição de materiais que auxiliam na limpeza. “As prisões e carceragens são ambientes fechados onde 1
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as pessoas (incluindo funcionários) vivenciam espaços altamente adensados, inviabilizando uma das orientações mais básicas para enfrentamento da nova Covid-19: o distanciamento social.” (CORDEIRO et al., 2020, p. 24) Não suficiente, o acesso aos direitos básicos é restrito. A distribuição constante de água potável é quase inexistente, as refeições têm baixa qualidade nutricional, os alimentos apresentam condições de ingestão duvidosas, os acessos a materiais pessoais, em geral, são ofertados majoritariamente pelos familiares de presos e presas. O acesso ao atendimento, acompanhamento e tratamento de saúde também é desafiador. Em 2014, foi criada a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP) com o objetivo de estabelecer um fluxo de acesso à atenção básica de saúde aos presos e presas, com referência na rede pública de saúde extramuros. Todavia, diversos estados e municípios ainda não fizeram adesão à política, o que faz com que o atendimento à saúde ainda permaneça restrito ao aparato interno do sistema prisional, quando há. O acesso à saúde intramuros é identificado por uma escassez de insumos, medicamentos, ambientes adequados e profissionais da área da saúde. Além disso, a saúde da população carcerária já está acometida, historicamente, por doenças infectocontagiosas e crônicas, como a tuberculose, infecções cutâneas, HIV e demais doenças sexualmente transmissíveis, bem como também, diabetes e hipertensão. Todos esses fatores durante a pandemia do novo coronavírus potencializam as chances de disseminação do vírus, adoecimento sem o cuidado devido e a consequente produção de mortes em decorrência das complicações da Covid-19. Como se não fossem suficientes todos esses elementos, no Brasil o período de pandemia tem sido utilizado como justificativa para elaboração de novas leis e implementação de práticas, novas e antigas, que contribuem para a reafirmação de um estado punitivo, mantendo o projeto de fragilização da política de assistência social e aposta em práticas que reafirmam o recrudescimento penal.
4 O gerenciamento da crise de saúde pública no sistema prisional e seus impactos no Rio de Janeiro O sistema prisional do Rio de Janeiro possui 54 unidades alocadas em diferentes municípios, majoritariamente na capital, mas com espaços na região metropolitana, sul, norte e noroeste fluminense. Com capacidade de cerca de 28.000 presos, abrigava antes da pandemia quase 52.000 internos, ou seja, unidades superlotadas e em condições estruturais precárias. O Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro é um órgão estadual criado pela Lei nº 5.778/2010, fruto do Protocolo Facultativo à Convenção contra Tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes das Nações Unidas (OPCAT/ONU), no qual o Brasil é signatário desde 2007. O órgão tem a função de fiscalizar os espaços de privação de liberdade no estado, elaborando relatórios e documentos a partir da realidade identificada, construindo recomendações cabíveis aos órgãos competentes que versem sobre uma política de prevenção e combate à tortura. Durante a pandemia, o Mecanismo interrompeu as fiscalizações in loco e implementou estratégias de monitoramento remoto, a partir de articulações e reuniões sistemáticas com os órgãos estatais, instituições da sociedade civil, movimentos sociais e rede de familiares. Embora a principal ferramenta de
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atuação do órgão estivesse suspensa, o MEPCT/RJ permaneceu acompanhando e elaborando relatórios parciais sobre o impacto da Covid-19 no sistema prisional do Rio de Janeiro, com atualização semanal. Com base no acompanhamento do MEPCT/RJ, no qual faço parte da equipe, e a partir dos documentos elaborados pelo órgão durante a pandemia, consideramos relevante trazer alguns elementos sobre essa dinâmica atual que impacta não só na vida dos presos e presas, mas também de seus amigos e familiares. O primeiro grande impacto foram as suspensões das visitas através do Decreto Estadual nº 46.970, de 13 de março de 2020. O texto informava a suspensão pelo prazo de 15 dias, sob justificativa de interesse da coletividade na prevenção do contágio e no combate a propagação do coronavírus. O decreto é atualizado periodicamente, o que resulta em cerca de cinco meses com visitas suspensas, incluindo a visita íntima, até agosto de 2020. É evidente que a suspensão das visitas é uma medida sanitária importante dentro desse contexto, entretanto, com ela vieram práticas que impactam a rotina do sistema de outras formas, por exemplo, a incomunicabilidade. Podendo ser entendida como prática de tortura, a ausência completa de comunicação tem sido a realidade de presos e presas com o meio externo. Ainda que as cartas sejam um meio de comunicação legal, a prática foi estabelecendo dificuldades tanto para o recebimento quanto para o envio das cartas entre internos e familiares. E a ausência de informação sobre a realidade intra e extramuros causa sofrimento imensurável, sobretudo durante a pandemia com o grau de óbitos que acontece no Brasil. Ressalta ainda a vedação à prática de corte completo com mundo externo e incomunicabilidade, sendo necessária a manutenção de contato com seus familiares, especialmente pelos potenciais danos agravados que a pandemia pode gerar nos presos e presas. É necessário sedimentar que a OMS deixa marcado: a pandemia de Covid-19 não pode servir como justificativa para violação de direitos humanos daqueles que se encontram em privação de liberdade ou desrespeito às normas nacionais e internacionais que os protegem. (RIO DE JANEIRO, 2020, p. 5-6)
Outro fator que aumentou com a pandemia são os gastos orçamentários da economia doméstica dos familiares com os presos. Houve o aumento de demanda por “custódia”, sacolas com os pertences alimentares e higiênicos entregues aos presos pelas famílias. Não suficiente em abril de 2020, foi expedida uma comunicação interna da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro (SEAP/RJ) autorizando o recebimento de 80% do salário mínimo para os presos, entregue pelos familiares, para utilização exclusiva nas cantinas das unidades prisionais. Esse ato ocorreu na sequência da homologação do resultado da contratação emergencial para exploração comercial das cantinas. As cantinas são conhecidas no sistema por seus valores abusivos, antes da pandemia, ensejando inclusive no fechamento de diversas unidades em virtude dessa prática. Além disso, essa ação poderá reafirmar a desigualdade no interior do sistema prisional, quanto o acesso a bens materiais e alimentação de presos e presas, se pautando na realidade socioeconômica de cada família. Uma vez que, no estado do Rio de Janeiro, os bens materiais e a alimentação adequada vem sendo fornecida por familiares historicamente, já que o fornecimento pela administração carcerária sempre foi precário. Essa decisão da SEAP/RJ, fortalece a estrutura altamente lucrativa desses comércios e fragiliza ainda mais o orçamento doméstico dos familiares. Inclusive, é importante considerar que em maio de 2020 a mídia explicitou que familiares de presos, em todo o Brasil, tiveram o direito ao auxílio emergencial, política de transferência de renda emergencial oferecida pelo governo federal durante a
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pandemia, negado. A limitação não tinha amparo legal algum, e ainda assim, alguns cidadãos que requeriam o auxílio e tinham familiar preso ficaram com a demanda suspensa. Todos esses elementos, entrega de um número maior de pertences durante a pandemia, em virtude da falta de recursos da SEAP/RJ em prover os materiais básicos para subsistência dos presos e presas durante a pandemia, incentivo à utilização dos produtos das cantinas altamente taxadas e a suspensão do acesso ao benefício de auxílio emergencial aos familiares de presos, denotam o projeto econômico em ascensão que oneram as famílias pobres e lucra com a permanência do encarceramento em massa durante a pandemia. Outro fator que impacta na economia girada pelo sistema prisional durante a pandemia foi a absorção da mão de obra de presas para a produção de máscaras. Elas foram submetidas ao trabalho precarizado durante a pandemia, encarregadas, no mês março, de produzir cerca de 30 mil máscaras de proteção que seriam direcionadas para profissionais da segurança pública. Com a natureza de trabalho voluntário, ainda não se sabe se os dias trabalhados contariam em suas penas e quais as condições de trabalho a que estavam submetidas. Rusche e Kirchheimer (2015) trouxeram no livro “Punição e Estrutura Social”, considerações importantes sobre o trabalho compulsório como método de punição lucrativo desde o século XV. Os autores chamam atenção para o objetivo desse tipo de trabalho, que deve ser entendido como “método de punição é o fato de ser uma iniciativa calcada em interesses somente econômicos e não penais”. (RUSCHE & KIRCHHEIMER, 2015, p. 85). Ainda que o lapso temporal seja outro, a essência financeira da utilização da mão de obra de presos e presas permanece, até porque não nos parece que a utilização da força de trabalho das presas para produção de máscaras, nesse contexto, teve como o objetivo o direito ao trabalho inerente à execução da pena. O trabalho não seria temporário e num período pandêmico, mas permanente e anterior a essa realidade. Além disso, Melossi e Pavarini (2006) identificam que o trabalhador encarcerado é mais barato e muitas das vezes sua remuneração equivale a meandros de sua própria pena. Não obstante, o trabalho na prisão aparece como um privilégio para determinados presos e presas, e qualquer possibilidade de associação para luta de melhores condições de trabalho, torna-se limitada ou impossível nesse espaço, já que estão submetidos à disciplina severa. E do ponto de vista econômico, o trabalho na prisão é altamente lucrativo, as instalações, os custos com água e luz e a própria disciplina estão garantidas pela própria estrutura penitenciária. Por fim, mas não menos importante, dentro da seleção que fizemos para demonstrar o impacto da pandemia, para além da saúde física, no sistema prisional, é importante considerar a proposta do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) que modificava a arquitetura prisional no país. Em maio de 2020, o órgão propôs a criação de estruturas alternativas com a justificativa de garantir o isolamento em tempos de pandemia, ofertando a possibilidade do uso de contêineres. Alterar as normas de arquitetura prisional do Brasil durante a pandemia, é uma tática com consequências inestimáveis e incapaz de garantir a qualidade da saúde dos presos, pelo contrário, pode agravar sobretudo pelas condições disponíveis em um contêiner. A solicitação é um debate antigo e já foi entendida como inconstitucional, mas a situação adversa de saúde pública retoma a proposta. A estrutura de um contêiner, pequeno e com condições mínimas de ventilação, aeração, iluminação e acesso à água, já é um elemento suficiente para a proliferação do vírus e o agravamento da contaminação, em virtude do seu tamanho reduzido e pouca aeração e ventilação. Essas
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condições, por si só já vão na direção contrária às orientações dos organismos sanitários e de saúde internacionais e nacionais. Nesse sentido, grupos de pesquisadores de Universidades Públicas do Brasil especialistas em arquitetura prisional se reuniram e elaboraram uma nota técnica extensa analisando os impactos da Resolução nº 5, de 15 de maio de 2020, do CNPCP que propõe as diretrizes extraordinárias e específicas para a arquitetura penal durante a Covid-19. No documento, há ainda um parecer técnico detalhado sobre as condições impróprias do uso de contêineres com finalidades prisionais. […] todas as propostas apresentadas pelo DEPEN se configuram inadequadas para o fim a que se propõem, qual seja de estruturas provisórias para controle de contaminação por COVID19 do sistema prisional ou de qualquer outra enfermidade. Diante do exposto, espera-se que quaisquer propostas para provimento de celas temporárias, bem como de módulos de saúde, excluam o uso de contêineres como alternativa para arquitetura penal, tendo em vista os riscos que este tipo de estrutura representa para a saúde coletiva. Considerando-se ainda as incertezas sobre a duração do estado de pandemia da Covid-19 e a possibilidade de recorrência de situações semelhantes no futuro, enfatiza-se a necessidade de desenvolver o projeto de arquitetura penal pautado no extremo rigor técnico, constituindo-se como principal meio para garantir o uso eficiente dos recursos públicos, tanto na construção como na manutenção dos edifícios, em benefício da segurança e da saúde da sociedade como um todo. (CORDEIRO et al., 2020, p. 73-74).
Cabe ressaltar que a redação do texto da resolução vedou a possibilidade de uso dos contêineres para a finalidade proposta, por conta da grande pressão exercida por organismo e instituições da sociedade civil contrárias à ação. Porém, permitiu alterações nas estruturas, que as pesquisadoras revelam preocupação em virtude de sua inadequação, e afirmam que as alterações propostas colidem com as diretrizes da OMS para ambientes prisionais durante a pandemia. A Resolução nº 5, de 15 de maio de 2020 dá orientações difusas, indo na contramão da demanda gerada pela pandemia que exige parâmetros precisos para controle da transmissão de doenças infectocontagiosas em unidades prisionais. Ao contrário de flexibilizar critérios, seria necessário especificá-los. Constata-se que a observância dos parâmetros da Resolução n° 9/2011, na sua integralidade, são requisitos básicos de ventilação e iluminação, assim como o dimensionamento mínimo, o que implica em taxa de densidade/m² dos espaços prisionais. No caso da pandemia da Covid-19, esses aspectos deveriam ser complementados levando em conta a alta capacidade de contaminação do vírus, com base nas estruturas e fluxos propostos pela OMS/WHO apresentados nesta Nota, cujas áreas devem ser projetadas proporcionalmente ao perfil e à quantidade de usuários, fluxos de ingresso e permanência, finalidade do estabelecimento e do espaço específico. (CORDEIRO et al., 2020, p. 47).
A tragédia está anunciada, as propostas, na verdade, garantem as alterações políticas necessárias para a continuidade de um projeto encarcerador e homicida, uma vez que, não há preocupação objetiva com as medidas de controle do vírus. As pesquisadoras recomendam que a Resolução nº 5/2020 do CNPCP seja revogada e haja um investimento em “estudos minuciosos sobre os impactos sanitários, financeiros e de gestão da política pública”. Empreender recursos estatais em uma estratégia que beneficiaria empresas privadas e de construção civil em detrimento do prejuízo ao bem-estar e das garantias mínimas a população carcerária, reafirma a perspectiva repressora e punitiva do capital.
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Todas as modulações apresentadas até aqui, não cogitaram a implementação da Recomendação nº 62/20202 do Conselho Nacional de Justiça. O documento recomendou aos Tribunais e magistrados a adoção de medidas para prevenir a propagação da Covid-19, no sistema penal e socioeducativo, com o objetivo de proteger a vida e a saúde das pessoas privadas de liberdade. Lista assim, medidas que podem contribuir para a redução dos riscos, como a reavaliação de prisões provisórias, com prioridade a gestantes, pessoas com deficiência, idosos e pessoas que se enquadrem no grupo de risco, diz ainda que pessoas presas em unidades com ocupação superior a sua capacidade e presos preventivos com prazo de 90 dias excedido e com acusação de crimes praticados sem violência ou grave ameaça também deveriam ter sua condição de aprisionamento reavaliada, optando-se por penas em meio aberto. Todas são estratégias direcionadas para redução da população carcerária durante a pandemia. Entretanto, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro foi palco de diversas estratégias que impediram as saídas de presos e presas em risco durante a pandemia. Não somente as decisões coletivas e individuais reforçaram a permanência da população prisional no interior das unidades, como também dificultaram o devido processo legal, com suspensões completas de atividades por longo período, dificuldades na implementação de software para processos virtuais, solicitação e adesão a audiências por videoconferência. O Poder Judiciário implementou ações que pouco convergiram para a proteção da população prisional durante a pandemia. O desencarceramento era a única medida possível no contexto pandêmico prisional no Brasil. Todavia, os anseios econômicos e políticos são maiores e conseguem admitir apenas estratégias de massificação dos corpos aprisionados, utilizam a pandemia para justificar suas ações, enquanto promovem a política de morte não garantindo estratégias de contenção eficazes do vírus.
5 Considerações finais Rusche e Kirchheimer (2015, p. 103) afirmam que o lucro é a estratégia mais importante no método punitivo de encarceramento atualmente para o capital. No Brasil, a pandemia do novo coronavírus é altamente rentável e lucrativa, inclusive, no sistema prisional. Os procedimentos apelidados de excepcionais, justificados pelo estado como emergência pública sanitária, sintetizam o aprofundamento da ideologia neoliberal que fortalece a política de encarceramento, ignorando os efeitos da Covid-19 nas pessoas em privação de liberdade. Nesse texto, apresentamos alguns desses elementos extraordinários que disputam as diversas narrativas sobre a Covid-19 nas prisões. A incomunicabilidade, entendida aqui como uma prática de tortura, foi implementada e garantida por longos meses, sem um instrumento legal alternativo capaz de garantir o contato com as pessoas do meio externo. Ainda assim, objetivamente, familiares e amigos foram diretamente impactados com essa medida de impedimento do contato, ampliando a oneração na economia doméstica, que inclusive fortaleceu o comércio intramuros. Não suficiente, ainda foram utilizados a força de trabalho das presas para atividade voluntária de confecção de máscaras. E o DEPEN fez uma proposta de flexibilização das normativas de arquitetura prisional na pandemia, que era insuficiente para garantir o direito à vida e o acesso à saúde da população prisional.
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Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/original160026202003305e82179a4943a.pdf. Acesso em: 17 jun. 2020.
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A articulação de todas essas estratégias promove a agilidade da política de extermínio dos corpos jovens, pobres e negros e consolidam a política criminal em plena ascensão, tudo parte do recrudescimento penal que consegue se utilizar de todas as dinâmicas postas na sociedade, como forma de garantir a produção e reprodução do capitalismo.
Referências AZEVEDO, R. G.; CIFALI, A. C. Política criminal e encarceramento no Brasil nos governos Lula e Dilma: elementos para um balanço de uma experiência de governo pós-neoliberal. Civitas, Porto Alegre, v. 15, n. 1, p. 105-127, jan./mar. 2015. Disponível em https://www.scielo.br/pdf/civitas/v15n1/19847289-civit-15-01-0105.pdf Acesso em: 18 set. 2020. BEHRING, E. R.; BOSCHETTI, I. Política social: fundamentos e história. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2009. CORDEIRO, S. et al. Nota Técnica Arquitetura Penal e Covid-19. Brasília: LabGEPEN da Universidade de Brasília; NuPPES; Alagoas: GECA; da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Alagoas, 2020. KILDUFF, F.; SILVA, M. M. Tensões da política social brasileira: entre o aparato assistencial e a criminalização da questão social no Brasil. Revista Katalysis, v. 22, p. 619-630, 2019. Disponível em:https://www.scielo.br/pdf/rk/v22n3/1982-0259-rk-22-03-619.pdf. Acesso em: 14 ago. 2020. MALAGUTI BATISTA, V. Adesão subjetiva à barbárie. In: BATISTA, V.M. (org.). Löic Wacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal. Rio de Janeiro: Revan, 2012. MATOS, M. C. A pandemia do novo coronavírus (Covid-19) e o trabalho de assistentes sociais na saúde. CRESS-ES, 2020. Disponível em: http://www.cress-es.org.br/wpcontent/uploads/2020/04/Artigo-A-pandemia-do-coronav%C3%Adrus-Covid-19-e-o-trabalho-deassistentes-sociais-na-sa%C3%Bade-2.pdf. Acesso em: 14 ago. 2020. MAURIEL, A. P. O. Estado Penal e Neoliberalismo na Obra de Loic Wacquant. Sociedade em Debate (UPel), v. 22, p. 15-31, 2016. MELOSSI, D.; PAVARINI, M. Cárcere e fábrica. Rio de Janeiro: Revan, 2006. RIO DE JANEIRO (Estado). Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro. Relatório Parcial sobre os Impactos da Covid-19 no sistema prisional do Rio de Janeiro atualizado em 09 de agosto de 2020. Rio de Janeiro: ALERJ, 2020. Disponível em: http://mecanismorj.com.br/wp-content/uploads/Relat%C3%B3rio-parcial-do-MEPCTRJ-sobre-oCOVID19-no-sistema-prisional-atualizado-21.06-final.pdf Acesso em: 11 ago. 2020.
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O recrudescimento penal em meio a pandemia do coronavírus no Rio de Janeiro Ionara Santos Fernandes
RUSCHE, G.; KIRCHHEIMER, O. Punição e Estrutura Social. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2015. (Coleção Pensamento Criminológico). WACQUANT, L. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [a onda punitiva]. Tradução de Sergio Lamarão. 3. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Revan, 2015. (Coleção Pensamento Criminológico).
Agradecimentos Aos diálogos e debates diretos e constantes com os membros e membras do MEPCT/RJ.
Informação adicional: Este documento é protegido por Copyright © 2020 pelos Autores Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons. Os usuários têm permissão para copiar e redistribuir os trabalhos por qualquer meio ou formato, e também para, tendo como base o seu conteúdo, reutilizar, transformar ou criar, com propósitos legais, até comerciais, desde que citada a fonte. COMO CITAR (ABNT): FERNANDES, I. S. O recrudescimento penal em meio a pandemia do coronavírus no Rio de Janeiro. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 22, n. Especial, p. 805-819, 2020. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v22nEspecial2020p805-819. Disponível em: http://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/15799. COMO CITAR (APA): FERNANDES, I. S. (2020). O recrudescimento penal em meio a pandemia do coronavírus no Rio de Janeiro. Vértices (Campos dos Goitacazes), 22(Especial), 805-819. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v22nEspecial2020p805-819.
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Submetido em: 18 ago. 2020 Aceito em: 23 out. 2020
DOI: 10.19180/1809-2667.v22nEspecial2020p820-833
Impactos da contrarreforma na política de saúde em tempos de pandemia no Brasil Impacts of the counter-reform on health policy in times of pandemic in Brazil Impactos de la contrarreforma en la política de salud en tiempos de pandemia en Brasil Mariana Setúbal Nassar de Carvalho https://orcid.org/0000-0002-0076-6589 Doutora em Serviço Social pela UFRJ (2011). Assistente Social da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) – Rio de Janeiro/RJ – Brasil. E-mail: mariana.setubal@iff.fiocruz.br.
Resumo Trata-se de ensaio teórico com a finalidade de analisar a política de saúde nos dias atuais no Brasil. Para isso, são apresentadas as bases do movimento de Reforma Sanitária, em especial no que foi materializado na legislação do Sistema Único de Saúde (SUS). Em seguida, são abordados os efeitos da contrarreforma do Estado, traduzidos especialmente na implementação de modelos de gestão privatizantes e no desfinanciamento público, a exemplo da Emenda Constitucional nº 95/2016. Como resultados, é apontado um cenário particularmente dramático no contexto atual de pandemia da Covid-19, que desvela o efeito devastador do sucateamento dos serviços de saúde, atravessados ainda pela histórica desigualdade social brasileira, que possui impactos particularmente nefastos para a população mais pauperizada de pretos e pardos. Palavras-chave: Contrarreforma. Política de saúde. Desigualdade social.
Abstract This is a theoretical essay with the purpose of analyzing health policy in Brazil today. For this, the foundations of the Sanitary Reform movement are presented, the legislation of the Unified Health System (SUS) in particular. Then, the effects of the Brazilian State counter-reformartion are dealt with, translated especially in the implementation of privatizing management models and in public funding, such as Constitutional Amendment No. 95/2016. As a result, a particularly dramatic scenario is pointed out in the current pandemic context of Covid-19, which unveils the devastating effect of the scrapping of health services, still permeated by the historical Brazilian social inequality, which has particularly harmful impacts for the most impoverished population of black and “pardo” citizens. Keywords: Counter-reformation. Health policy. Social inequality.
Resumen Este es un ensayo teórico con el propósito de analizar la política de salud en Brasil hoy. Para ello, se presentan las bases del movimiento de Reforma Sanitaria, especialmente en lo que se materializó en la legislación del Sistema Único de Salud (SUS). Luego, se abordan los efectos de la contrarreforma del Estado, que se traduce especialmente en la implementación de modelos de gestión privatizadores y en financiamiento público, como la Enmienda Constitucional No. 95/2016. Como resultado, se señala un escenario particularmente dramático en el actual contexto de pandemia del Covid-19, que revela el efecto devastador del desguace de los servicios de salud, aún atravesado por la histórica desigualdad social brasileña, que tiene impactos particularmente dañinos para la población más empobrecida de negros y pardos. Palabras clave: Contrarreforma. Política sanitaria. Desigualdad social.
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1 Introdução
El Tiempo tiene color de noche. De una noche quieta. […] Y el Tiempo se ha dormido para siempre en su torre. Nos engañan todos los relojes. El Tiempo tiene ya horizontes. (“Meditación primera y última”. Federico García Lorca, 1923)
O mundo passou por sucessivas mudanças nas últimas décadas do século passado que tiveram, como uma das consequências, a passagem à época neoliberal do capitalismo mundial. Nos últimos quarenta anos, o neoliberalismo transformou-se em movimento político hegemônico na compreensão do funcionamento econômico e na proposição de uma forma específica de relação entre o mercado e o Estado, com transformações históricas vivenciadas nos países centrais, mas de forma mais particular na América Latina (ANDERSON, 1995). O ocaso do campo socialista cimentou as bases da ideologia do Consenso de Washington e do pensamento único, propiciando a ideia do fim do socialismo, da divisão entre direita e esquerda, voltada para a predominância de uma economia de mercado alicerçada no modelo de democracia liberal. De um mundo marcado pela presença de dois blocos que se dividiam em esferas de influências, passamos a um mundo pautado na hegemonia do imperialismo norte-americano. Por outro lado, do longo e maior ciclo de caráter expansivo da história do capitalismo vivenciado do final da segunda guerra mundial (19391945) até os anos 1970, se passou a um ciclo longo de caráter recessivo, em que o capitalismo ainda está, sem horizontes de superação (TAVARES et al., 1993). Os tempos neoliberais são de turbulências: a hegemonia dos grandes conglomerados monopolistas industriais passou a ser do capital financeiro de caráter especulativo, promovendo a incerteza porque as economias agem conforme as oscilações das bolsas de valores, das transferências rápidas de capital, das chamadas “operações de manada” que desestabilizam economias. A era da produção e da geração de empregos foi substituída pela era da taxa de juros, da especulação financeira, da precarização do trabalho e da concentração de renda. A predominância dos governos que possuíam políticas de bem-estar social foi superada por governos que promovem a concorrência entre todos no mercado. Portanto, vivemos em um tempo de retrocesso de direitos e de conquistas da classe trabalhadora e de muitas expressões da pobreza. No caso do Brasil, acentuando as desigualdades sociais da base da estrutura de nossa sociedade. A assunção avassaladora desta lógica foi possível por uma conjunção singular de eventos calcados na ideia de que, por um lado, o mercado financeiro seria a “pedra de toque” para o desenvolvimento e a harmonia social, e por outro, que o Estado e os direitos sociais universais de cidadania seriam a raiz da
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crise fiscal do Estado1. Com isso, uma importante estratégia foi a concentração do excedente de riquezas no mercado, sobretudo o financeiro, preconizando o desmonte das políticas sociais públicas. Não se trata do fim da história, como vaticinou Francis Fukuyama (1989), mas de fato estamos sob um novo patamar histórico. A este respeito, Forrester (1997, p. 27) aponta “Uma quantidade importante de seres humanos já não é mais necessária ao pequeno número que molda a economia e detém o poder. Segundo a lógica reinante, uma multidão de seres humanos encontra-se assim sem razão razoável para viver neste mundo, onde, entretanto, eles encontraram a vida”. Essa breve introdução alicerça o que discorreremos mais à frente: as condições necessárias criadas pelo capital como forma de generalizar sua lógica mercantil nas relações sociais, ou seja, na economia, na política, na cultura e desta forma, os impactos vivenciados nas últimas décadas na política de saúde brasileira não estão descoladas de seu caráter conservador expressado na naturalização das desigualdades sociais, tidas como inevitáveis e o discurso de que cabe aos indivíduos e às famílias garantir seu bem-estar social, transferindo a responsabilidade estatal dos direitos sociais para o mercado e para em alguns casos, para ações filantrópicas, gerando, nos termos de Yasbek (2001), uma “refilantropização do social”. Em síntese, consideramos que Laura Tavares Soares baliza de forma precisa: A filantropia substitui o direito social. Os pobres substituem os cidadãos. A ajuda individual substitui a solidariedade coletiva. O emergencial e o provisório substituem o permanente. As microssituações substituem as políticas públicas. O local substitui o regional e o nacional. É o reinado do minimalismo do social para enfrentar a globalização da economia. Globalização só para o grande capital. Do trabalho e da pobreza cada um cuide do seu como puder. De preferência, um Estado forte para sustentar o sistema financeiro e falido para cuidar do social (SOARES, 2003, p. 12).
Mas importa destacar que, a despeito do conservadorismo presente neste projeto que naturaliza a ordem do capital e as desigualdades sociais, não se deve desconsiderar a presença e a força das lutas e dos movimentos de resistência na construção da história, destacando ainda o projeto de Reforma Sanitária, fruto de intensa mobilização dos profissionais e movimentos sociais da saúde. Tampouco desconsiderar a importância do horizonte das lutas para a classe trabalhadora, e neste sentido Federico Garcia Lorca nos brinda com o poema da epígrafe. Sem a pretensão de esgotar todos os elementos deste debate, a exposição a seguir considera: 1. Contexto histórico da Reforma Sanitária e do que o SUS representou; 2. Neoliberalismo e impactos nas políticas sociais, mais especificamente na saúde; 3. Desigualdades sociais evidenciadas pela pandemia do Covid-19.
2 A esperança equilibrista: Reforma Sanitária, SUS e história Nenhuma análise sobre a historiografia da saúde no Brasil pode deixar de reconhecer a importância do que representou, tanto o movimento de Reforma Sanitária, quanto a implementação do Sistema Único de Saúde (SUS), e não por acaso, estes são os temas mais referidos nos textos sobre saúde 1
Uma análise teórica e histórica do modo de produção capitalista denota que a chamada crise é constitutiva do capitalismo, e, portanto, não é aleatória ou excepcional. Uma abordagem minuciosa a este respeito encontra-se em: NETTO, J.P.N.; BRAZ, M. Economia política: uma introdução crítica. São Paulo: Cortez, 2006 (Biblioteca básica. Serviço Social).
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pública brasileira (PAIVA, 2014). No âmbito da saúde, o interesse até então restrito aos técnicos, passa a assumir uma dimensão política, assumida enquanto um aspecto central, com estreita vinculação com a democracia, através de quatro protagonistas, segundo Bravo (2009, p. 95): as entidades que representavam os profissionais de saúde e que naquele momento ultrapassavam o caráter corporativo para adensar as lutas mais gerais e a favor do setor público; o movimento sanitarista difundido pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) criado em 1976; os partidos políticos de oposição, que começaram a pautar na agenda do Congresso este debate; e os movimentos sociais urbanos. A referida politização foi uma das primeiras metas desse movimento com escopo de dar visibilidade às suas principais demandas, tendo a 8ª Conferência Nacional de Saúde como fato mais marcante nesta direção, ocorrida em 1986 em Brasília-DF. Com quantidade superior a mil delegados e mais de quatro mil participantes, a questão da saúde sobejou a análise setorial, representando com isso um marco, pois articulou saúde e sociedade. Segundo Sérgio Arouca (1988), a concepção da Reforma Sanitária brasileira entendia que o significado de suas propostas fazia parte de um movimento mais amplo de mudanças na sociedade, para além da saúde. Neste campo, as agendas da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) e do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) para a saúde pública se confundiam também com as lutas pela redemocratização da sociedade (SOPHIA, 2012). Esse momento histórico, porém, possui leituras distintas a respeito das forças em presença: a de que o movimento sanitário teria logrado a formulação de projeto contra-hegemônico que visava à reconstrução da sociedade em novas bases, conforme assevera Oliveira (1988), ou em sentido oposto, como um movimento oriundo de setores intelectualmente mais esclarecidos e progressistas, que iriam se caracterizar como a continuidade sobre novas bases, mas sem alterar a estrutura vigente (CAMPOS, 1988). Para Sônia Fleury (2009a), a acentuada modificação político-institucional que tinha como devir um novo patamar civilizatório ensejada pela Reforma Sanitária, na qual transformaria a saúde de fato em bem público, reforçaria a ideia, em suas palavras, de que a reforma seria um processo ainda inconcluso. Na análise de Escorel (2005), os movimentos das universidades (incluindo o movimento estudantil), instituições como o CEBES, movimentos de médicos e demais atores e instituições foram os principais suportes da Reforma Sanitária. Concordamos com Paim, quando afirma: Portanto, a Reforma Sanitária, enquanto proposta foi resultante de um longo movimento da sociedade civil brasileira em defesa da democracia, dos direitos sociais e de um novo sistema de saúde. Transformou-se em projeto a partir da 8ª CNS e desenvolveu-se como processo desde então, especialmente com a instalação da Comissão Nacional da Reforma Sanitária. Pode-se afirmar que a Reforma Sanitária é, simultaneamente, uma proposta, um projeto, um movimento e um processo (PAIM, 2008, p. 173).
Embora parte importante das reivindicações do movimento de Reforma Sanitária tenha sido contemplada pela Constituição de 1988, é importante que se sublinhe que esta obteve influência também de representantes interesses privados de indústrias farmacêuticas. O dever do Estado em prover universalmente a saúde através de um sistema único que atuasse através de uma rede integrada e regionalizada, garantindo mecanismos de participação da comunidade foram aspectos relevantes aprovados pelo texto constitucional. Outrossim, foram incorporadas formas de a sociedade poder interferir nas políticas de forma legítima, como por exemplo, as conferências e os
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conselhos de saúde ou ainda através de instâncias como comissões intergestores e todos os níveis de governo. Para Sônia Fleury, o movimento que propulsou a Reforma Sanitária brasileira requestava o horizonte de um novo patamar civilizatório (FLEURY, 2009b). Mas na década de 1980, a sociedade brasileira também experienciou uma profunda crise econômica, sendo considerada por muitos estudiosos como a “década perdida”, e as medidas criadas não contaram com o impacto esperado no avanço das condições de saúde. Bravo realiza síntese precisa, quando afirma (2009, p. 99): No final da década de 80, já havia algumas dúvidas e incertezas com relação à implementação do Projeto de Reforma Sanitária, cabendo destacar: a fragilidade das medidas reformadoras em curso, a ineficácia do setor público, as tensões com os profissionais de saúde, a redução do apoio popular face à ausência de resultados concretos na melhoria da atenção à saúde da população brasileira e a reorganização dos setores conservadores contrários à reforma, que passam a dar a direção no setor a partir de 1988.
Ou seja, as lutas travadas neste período também seguiram nos anos seguintes, não apenas na saúde, mas por projetos de sociedade. Não podemos esquecer que em 1989, com a eleição de Fernando Collor de Mello, a doutrina liberal 2 começa a ser implementada no país, se ratificando após com Fernando Henrique Cardoso e tendo continuidade nos governos seguintes, ainda que com diferenças. Segundo Paim (2008), no final do governo Sarney, o processo da Reforma Sanitária contabilizou notáveis retrocessos. Estes foram marcados primordialmente pela recentralização do Instituto de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS) e a prorrogação do envio do projeto de Lei Orgânica da Saúde para o Congresso Nacional e as leis nº 8.080/90 (Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências) e 8.142/90 (Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do SUS e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências) por Collor de Mello, malgrado a falta de compromissos de seu governo com os preceitos do SUS (BRASIL, 1990a, 1990b). Algumas outras modificações ocorreram no governo de Itamar Franco, fazendo expandir o processo de descentralização do SUS através da promulgação da NOB-93 (BRASIL, 1993. Portaria nº 545, de 20 de maio de 1993. Estabelece normas e procedimentos reguladores do processo de descentralização da gestão das ações e serviços de saúde, através da Norma Operacional Básica – SUS 01/93). Com Fernando Henrique Cardoso teve início a reforma do Estado que pautava a estabilização monetária, as políticas de ajuste macroeconômico e a privatização das empresas estatais. Esse projeto estava na contramão dos postulados democráticos da Reforma Sanitária, que neste momento histórico buscava no limite, preservar o SUS. Nos governos Lula, apesar de se colocar o desafio de incorporar a agenda da reforma, manteve-se a contraposição entre os dois projetos (BRAVO, 2009). O governo Bolsonaro aprofundou o projeto de desmonte institucional com a aprovação da Reforma da Previdência, dentre 2
O modelo no qual se baseava o governo Collor residia na suposição de que a redução do tamanho do Estado e das massivas privatizações reduziriam o deficit público e a inflação, além da pauta que dizia respeito à liberalização do comércio exterior como forma de tornar mais “moderna e internacionalizada” nossa economia. Para análise aprofundada, sugerimos: SOARES (1999).
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outras medidas. A agenda vai além do ajuste fiscal permanente imposto pela Emenda Constitucional Nº 95/2016. Contudo, a agenda política de propostas e projetos da Reforma Sanitária Brasileira em seu formato pleno ainda está inconclusa, pois como disse o poeta: A esperança dança na corda bamba de sombrinha. É necessário que se reafirme seus princípios e diretrizes, que se construa pactos incursos na radicalidade da proposta de democratização da saúde (ABRASCO, 2002, p. 327).
3 É preciso estar atento e forte: projetos em confronto e os desafios atuais pelo direito à saúde no Brasil A década de 1990 foi marcada pelo redimensionamento do Estado no âmago das políticas de ajuste neoliberal e levantou novos desafios na viabilização da premissa da saúde como um direito de todos e dever do Estado, baseada nos princípios de universalidade, equidade e integralidade. Esta é uma pauta que se coloca para a sociedade como um todo, mas particularmente para as forças políticas em torno do projeto da Reforma Sanitária. É fato que o reconhecimento constitucional do direito à saúde fornece o esteio para um conjunto de políticas, programas e ações que vão decorrer disso e em menor ou maior grau, afetar a vida da população usuária. Sem embargo, sabemos que a garantia efetiva do direito à saúde ainda não foi alcançada no cotidiano da vida da classe trabalhadora. Decorridas quase três décadas da implantação do SUS, em alguns aspectos e/ou regiões, apontamos a manutenção e ampliação das desigualdades no acesso aos serviços e na distribuição dos recursos e programas. Em síntese, o arranjo atual dos serviços de saúde no Brasil não advém de fatores políticos conjunturais, mas sobretudo de determinantes estruturais ainda não superados. Esse cenário traduz as disputas de distintos projetos de sociedade que no âmbito da saúde estão divididos por dois blocos: projeto democrático-popular do Movimento da Reforma Sanitária Brasileira e projeto voltado para o setor privado na saúde/mercado (BRAVO, 2009). A chegada dos anos 1990 marcou ainda um declínio acentuado do financiamento público no setor saúde. Para Soares (1999), o processo de desmantelamento geral da máquina pública atingiu severamente as políticas de saúde. Após o governo Collor (março de 1990 a dezembro de 1992), as aprovações das Leis Orgânicas da Saúde (nº 8.080/1990 e nº 8.142/1990) só foram possíveis porque o Congresso Nacional tinha a mesma composição da Assembleia Nacional Constituinte (RODRIGUEZ NETO, 2003). O debate sobre o desfinanciamento do SUS está vinculado à desconstrução do conceito de seguridade social, que começou a se operar naquele momento e que se implantou de maneira definitiva com o governo Fernando Henrique Cardoso. Coincidentemente ao processo de desfinanciamento do SUS e de degeneração dos serviços públicos, observou-se a reconfiguração da relação público-privada. Com base na Constituição Federal e da Lei Orgânica da Saúde, as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos passam a ser privilegiadas em detrimento dos hospitais contratados, uma tendência que já vinha sendo preparada desde os anos 1980 e se sobreleva ao longo da década de 1990. A assistência médica suplementar também se reestruturou através de políticas baseadas em deduções e subsídios fiscais.
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O Plano Diretor da Reforma do Estado (1995) apontou os fundamentos dessa proposta ao indicar reformas econômicas orientadas para o mercado através um ajuste fiscal duradouro com dois pressupostos: uma política de superavit primário pari passu à drástica diminuição dos gastos sociais para formar receita para o pagamento dos juros e da dívida externa ao Fundo Monetário Internacional (FMI), levando ao aumento da pobreza e da desigualdade social (BEHRING; BOSCHETTI, 2006). A lógica implícita era do custo alto devido à tendência de aumento continuado dos gastos do sistema, em razão da complexidade e da sofisticação tecnológica do tratamento médico-hospitalar (LIMA, 2010). Essa clivagem era, não por acaso, uma das ideias-força do receituário do Banco Mundial para a reforma do setor saúde no país e assim, na segunda metade dos anos 1990, assistiu-se a um intenso processo de terceirização dos serviços de saúde (RIZZOTTO, 2012). No governo de Lula da Silva (2003-2011), observou-se políticas de apoio e trato fiscal distinto para produtores privados de saúde, contrário às expectativas de estancamento do processo de privatização e mudanças do modelo assistencial. Em outras palavras, o governo Lula reatualizou as medidas de apoio, de proteção fiscal, principalmente às instituições privado-filantrópicas, e de subsídio às empresas de planos e seguros de saúde, e incorporou a concepção de um Estado eficiente para transferir dos serviços públicos para o mercado, tal como no governo anterior. Entendendo a saúde enquanto um direito humano, um novo projeto de desenvolvimento reclama investimentos em políticas de pleno emprego, combate às desigualdades de renda; políticas de habitação, saneamento e transporte público; acesso universal na educação, em condições dignas de trabalho a todos os profissionais e trabalhadores do SUS. Do mesmo modo, sem a democracia e os direitos sociais, civis e políticos não é possível promover o direito à saúde. A última questão se refere à necessidade de superação do subfinanciamento, que reside na consolidação do orçamento da Seguridade Social como fator fundamental (SOUZA et al., 2019). É necessário que se supere o modelo ainda hegemônico no SUS, biomédico e mercantilista, e que se fortaleça a promoção da saúde, a intersetorialidade, as práticas voltadas para os determinantes sociais da saúde e a ampliação da cobertura. Outro importante aspecto a ser considerado remete ao fortalecimento do chamado complexo produtivo da saúde, através da ampliação de investimento em produção de bens de saúde e capacidade de inovação (GADELHA et al., 2012). Por conseguinte, as estratégias devem permanecer na agenda daqueles que apostam na democratização da saúde que vá além de uma reforma setorial, mas sim do Estado e da sociedade, assim como a defendida no projeto de Reforma Sanitária no Brasil.
4 Quanto vale uma vida humana, me diz? Covid-19 em contexto de profunda desigualdade social O mito grego de Pandora, que em seu sentido etimológico significa “presente para todos”, fala da possibilidade de algo que pode trazer à tona todos os males do mundo. Segundo este mito, ao ser aberta, a caixa de pandora teria libertado todas as doenças e outros males que afligem a espécie humana. De certa forma, a pandemia da Covid-19 explicitou de forma candente e sem precedentes as feridas de uma sociedade que como se sabe, é pautada por profunda desigualdade global. Denominado “Severe acute respiratory syndrome coronavirus-2” (SARS-CoV-2), a doença Covid-19 tornou-se o mais grave problema de saúde pública mundial desta geração. Há uma frase comumente repetida por parte da mídia e reproduzida pelo senso comum de que o vírus é democrático. Na verdade,
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o que se sabe é que em dezembro de 2019 o vírus começou a circular de maneira mais evidente numa área circunscrita da província de Wuhan na China e através da grande circulação global que caracteriza o mundo contemporâneo chegou aos demais países e continentes, sendo formalmente caracterizada como uma pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 11 de março de 2020. A pandemia conceitualmente atinge o mundo como um todo, mas em países como o Brasil possui repercussões significativas, sobretudo para a população mais empobrecida, como provocou de forma precisa o músico Emicida em sua música (“Dedo na Ferida”), que dá o título da seção. Não por acaso, em final de fevereiro foi noticiado o primeiro caso confirmado de Covid-19 no Brasil de um indivíduo vindo de viagem à Europa e tendo sido tratado em uma unidade privada de saúde (Ministério da Saúde, 26/02/2020, amplamente divulgado pela mídia). Menos de 20 dias após, tivemos a primeira morte decorrente do novo coronavírus, de uma mulher de 63 anos, residente do município de Miguel Pereira, trabalhadora doméstica, tendo sido infectada pela patroa, que havia acabado de também chegar da Itália. Como é sabido, a saúde de uma população não pode ser de exclusiva responsabilidade do setor saúde, visto que dela dependem condições sociais, econômicas, políticas, culturais e ambientais. Segundo a Organização Mundial da Saúde desde 1946 (WHO, 2006) ela é “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade”. Desta forma, advogamos que a pandemia de Covid-19 causada pelo coronavírus não é um processo meramente biomédico, visto que as condições sociais, articuladas aos aspectos territoriais, são determinantes nas consequências causadas na população contaminada, sendo assimétricas nos efeitos e na capacidade de se proteção, de acordo com os grupos populacionais. As influências de classe social, renda, características étnico-raciais, de gênero e cultura fornecem uma chave para o entendimento do que está por trás da desigualdade na saúde. Também não se trata de novidade na história mundial que epidemias ocorridas por infecções respiratórias, como gripe espanhola, H1N1 e SARS, evidenciaram que as desigualdades sociais são medulares para transmissão e prognóstico das doenças (MAMELUND, 2017). Um recente estudo na Inglaterra realizado com quase 17 mil pacientes internados com Covid-19 demonstrou que condições preexistentes de saúde possuem associação importante com o acréscimo de mortalidade hospitalar (DOCHERTY et al., 2020). No Brasil, 45% da população adulta referiu ter, pelo menos, uma Doença Crônica Não Transmissível (DCNT), com fator de risco que aumenta o risco de complicações causadas pelo coronavírus – como diabetes, hipertensão, obesidade – segundo pesquisa realizada na UNIFESP com base de dados na Pesquisa Nacional de Saúde (PNS/IBGE) de 2013 (REZENDE et al., 2020). Os números se tornam ainda mais alarmantes na comparação do grau de escolaridade: enquanto entre as pessoas de nível superior essa proporção é de 46%, nos adultos de baixa escolaridade (apenas primeira etapa do ensino fundamental) cerca de 80% atende aos critérios de grupo de risco. Parte destas condições ocorrem por fatores ligados a estilo de vida e saúde – sedentarismo, alimentação, tabagismo, stress, ou seja, são socialmente determinadas. Sendo o Brasil um país com marcas históricas de profunda desigualdade social e sendo o racismo elemento estrutural e estruturante das relações sociais (ALMEIDA, 2018), estas marcas se reatualizam com efeitos perversos neste período de pandemia, e é a população de pretos e pardos que sofrem as maiores consequências da pobreza e pouco acesso, sendo o racismo um dos determinantes sociais que mais impactam a saúde e a vida das populações negras. O fator étnico-racial é, pois, um elemento fundamental nas análises acerca da equidade na saúde. A categoria raça/cor, a despeito de não impactar de maneira significativa os índices de infectados, demonstra, contudo, ser um importante indicador para a análise do
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maior número de óbitos de negros, o que evidencia que o custo pela desmesurada desigualdade social não é devido da mesma forma, demonstrado de maneira inequívoca. O indicador internacional de Coeficiente de Gini, que mensura a concentração de renda dos países, coloca o Brasil no patamar de 10º país mais desigual do mundo com índices mais elevados que países africanos como Angola. No Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), indicador que prevê o desenvolvimento humano dos países com base em aspectos como educação, renda e saúde da Organização das Nações Unidas (ONU), a nota brasileira em 2018 foi 0,539 – com medidas de 0 a 1, sendo 1 o mais igualitário possível. Mesmo a situação de extrema pobreza vem crescendo desde 2015, invertendo a curva descendente que vinha desde 2000 (atribuído principalmente a políticas públicas como o Bolsa Família), e segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) já soma 13,5 milhões de pessoas que sobrevivem com até 145 reais mensais (parâmetro utilizado pelo Banco Mundial), atingindo em especial estados do Norte e Nordeste. Mas não somente dados da pobreza no Brasil dão concretude à desigualdade social tão latente: o IBGE também aponta que 10% da população brasileira possui 40,5% dos rendimentos do país. Tomando como referência o município do Rio de Janeiro, que figura entre as 10 capitais mais desiguais do mundo, estima-se que em média 22% dos seus habitantes moram em favelas, chegando em algumas regiões de planejamento urbano como Ramos, por exemplo, a um índice de 43,6% da população. Em relação ao quesito raça/cor (pretos e pardos autodeclarados), em nenhuma das regiões de planejamento o percentual de negros nas favelas era menor do que 50%. A renda média nos bairros formais é três vezes maior que dos moradores de favelas (IPP, 2013). Além dos desafios históricos relacionados a intermitência ou falta de água, moradias de baixa ventilação, iluminação e espaço e acesso aos serviços públicos, a situação desta parcela da população é agravada pelo contexto de violência estrutural. Ou seja, o padrão segregacionista da urbanização brasileiras e mostra mais danoso à saúde humana. Desde a declaração oficial de que estávamos sob a égide de uma pandemia, em março deste ano, medidas de isolamento social foram tomadas em todo mundo (ainda que em graus diferentes) como forma de conter o aumento exponencial de casos. Entendendo que essas medidas que enfatizam a responsabilidade individual são necessárias, mas o fato é que elas são insuficientes se não estiverem articuladas com intervenções coletivas na prestação de serviços de saúde. Essa desigualdade que alicerça a sociedade brasileira se evidencia entre os que dispõem de recursos econômicos, sociais e de valores sanitários que possam possibilitar este tipo de proteção. Sendo o espaço urbano desigual, nos territórios onde a pobreza urbana é mais acentuada as estratégias individuais de prevenção e orientações de controle como o distanciamento social são extremamente dificultadas, seja pela alta densidade demográfica, limitações de espaço, infraestrutura das moradias, deficiências no saneamento, arruamentos e autoconstruções além de dificuldades no acesso aos serviços de saúde e demais equipamentos urbanos. Outro aspecto relevante diz respeito à mobilidade urbana, pois a distância entre moradia e trabalho e a precariedade do sistema de transporte coletivo geram situações de risco para aqueles que circulam nestes espaços (SANTOS, 2020). Sendo assim, é essencial que sejam garantidas condições básicas de higiene e infraestrutura pelo Estado, através da articulação das políticas de saúde e assistência social. Incluem-se no enfrentamento desta pandemia a construção de um pensamento sobre os seus significados e como é possível defrontá-las e mitigar seus danos, considerando a perspectiva de pandora: a caixa, ao ser aberta, expõe todos os males, mas, com eles, traz também possibilidades de sua confrontação.
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5 Tecendo considerações finais: como implementar essa agenda? Longe de ser um texto final e conclusivo, este texto é um convite à reflexão sobre os principais desafios que se apresentam na contemporaneidade, em especial no que se refere a uma agenda da saúde pautada nas premissas da Reforma Sanitária, sendo necessária para isso a análise crítica das forças em presença no momento histórico presente e do que se avizinha. No contexto de crise política, social e econômica em que nos encontramos, não há dúvidas de que ingressamos na segunda década do século com enormes desafios da luta pelo direito à saúde, agravada pelos marcos da política neoliberal que estabelece prioridades contrárias aos desígnios da Constituição Federal e do SUS pautados nos princípios da universalidade e do dever do Estado. Não é de menor relevância tudo o que foi conseguido até agora com o SUS, com destaque para a cobertura assistencial em todo território brasileiro, e ainda fazer com que isto abrangesse todos os níveis de atenção, mesmo os mais complexos. Mas ainda persistem a grande desigualdade regional no país, sobretudo entre o que se traduz em oferta de serviços nas áreas urbanas e áreas rurais. Apontamos a 16.ª Conferência Nacional de Saúde realizada em 2019, ocorrida trinta e um anos após da criação do Sistema Único de Saúde (SUS) como um importante momento ao lançar um documento norteador retomando o tema central (“Democracia e Saúde”) da histórica 8ª Conferência Nacional de Saúde realizada em 1986. Com as necessárias atualizações e a pauta do congelamento dos recursos para as políticas sociais por 20 anos contidos na Emenda Constitucional nº 95 (EC-95) de 2016. Estamos certos de que este foi um espaço para o necessário debate de proposição de estratégias que visam o fortalecimento do SUS. Há de se sublinhar que é necessário reatualizar e ampliar o debate público sobre a radicalidade da democracia no cotidiano das instituições, em todos os espaços, em favor dos direitos de cidadania. Igualmente deve ser retomado o debate em torno das premissas da seguridade social brasileira, em seu caráter integrado das políticas de previdência, saúde e assistência social. O SUS não deve perder sua dimensão nacional e de um sistema integrado. Como já mencionado, a era neoliberal é uma era de turbulências, marcada pelo capital financeiro especulativo hegemônico. Desde sua construção, os desafios do SUS também foram se modificando: demograficamente, epidemiologicamente, sem superar suas desigualdades sociais, econômicas e políticas. Para Maria Inês Bravo (2009, p. 107), o projeto de reforma sanitária está perdendo para o projeto que prioriza o mercado e os valores basilares da noção de seguridade social foram sucedidos por valores individualistas, que sustentam a fragmentação e a um SUS voltados para os mais pobres, análise na qual concordamos. Mas é necessário afirmar que ainda há brechas e possibilidades de defender e apostar na reconstrução do SUS. Do ponto de vista histórico, a jovem Reforma Sanitária brasileira ainda pode e deve encontrar formas de enfrentar a política neoliberal e avançar. Pois como Martinelli nos ensinou (2011, p. 505): “tenhamos sempre coragem de fazer de nossa prática uma expressão plenamente ética e desejante, que pulse com a própria vida”.
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Submetido em: 2 set. 2020 Aceito em: 2 dez. 2020
DOI: 10.19180/1809-2667.v22nEspecial2020p834-850
O lugar da negritude nas políticas do Estado brasileiro: faces persistentes de uma presente ausência The place of blackness in the policies of the Brazilian State: persistent faces of a present absence El lugar de la negritud en las políticas del Estado brasileño: rostros persistentes de una ausencia presente Maria Helena Elpidio https://orcid.org/0000-0001-8243-5427 Doutora em Serviço Social pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (2015). Professora adjunta do departamento de Serviço Social da Universidade Federal do Espírito Santo e do Programa de Pós-graduação em Política Social da Universidade Federal do Espírito Santo – Vitória/ES – Brasil. E-mail: lenaeabreu@gmail.com.
Resumo O presente artigo retoma apontamentos sobre a formação social brasileira no que se refere à relação entre o Estado e a população negra, considerando os traços da heteronomia, autoritarismo e violência sistemática conferidos a esse segmento no Brasil. Apresenta como tal face e se reedita na particularidade do país como condição sine qua non para a relação de dependência e subordinação ao grande capital mundial. Evidencia a funcionalidade do mito da democracia racial que falseia a condição de cidadania dessa parcela da sociedade por meio do (não) acesso aos direitos e políticas públicas. Considera as permanências e a busca de rupturas que possibilitem o tensionamento do Estado na direção da superação do racismo, seus desafios e limites na superação da sociedade de classes. Palavras-chave: Negritude. Racismo estrutural e institucional. Mito da democracia racial. Estado brasileiro.
Abstract This article reviews notes on the Brazilian social formation with regard to the relationship between the State and black people, taking into consideration the aspects of heteronomy, authoritarianism and systematic violence imputed / conferred to this segment in Brazil. It shows how this is reissued in the country as a sine qua non condition for the dependence and subordination relationship to the big world capital. It highlights the functionality of the myth of racial democracy that distorts the condition of citizenship of this part of society through non-access to public rights and policies. It discusses the permanencies and the search for ruptures that allow tensioning of the State towards overcoming racism, its challenges and limits in the overcoming of class society. Keywords: Blackness. Structural and institutional racism. Myth of racial democracy. Brazilian State.
Resumen Este artículo retoma notas sobre la formación social brasileña en cuanto a la relación entre el Estado y la población negra, considerando los rasgos de heteronomía, autoritarismo y violencia sistemática conferidos a ese segmento en Brasil. Presenta como tal rostro se reedita en la particularidad del país como condición sine qua non de la relación de dependencia y subordinación al gran capital mundial. Destaca la funcionalidad del mito de la democracia racial que distorsiona la condición de ciudadanía de esa parte de la sociedad a través del (no) acceso a los derechos y políticas públicas. Considera las permanencias y la búsqueda de rupturas que permitan la tensión del Estado en la dirección de superar el racismo, sus desafíos y límites en la superación de la sociedad de clases. Palabras clave: Negritud. Racismo estructural e institucional. Mito de la democracia racial. Estado brasileño.
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O lugar da negritude nas políticas do Estado brasileiro: faces persistentes de uma presente ausência Maria Helena Elpidio
1 Uma introdução nada original Negro drama, eu sei quem trama e quem tá comigo O trauma que eu carrego pra não ser mais um preto fudido O drama da cadeia e favela Túmulo, sangue, sirene, choros e velas […] Desde o início por ouro e prata Olha quem morre, então veja você quem mata Recebe o mérito, a farda que pratica o mal Me ver pobre, preso ou morto já é cultural (NEGRO drama. Racionais’MC, 2002)1
Na esteira do drama que acomete cotidianamente a população negra no maior território diaspórico fora da África, remontar os elementos teóricos e históricos da formação social do Brasil se constitui uma tarefa ainda necessária, uma vez que não irrompemos com as amarras e mordaças que tornam essa guerra surda e que segue seu curso com os rastros da desumanização, violência e banalização da vida da população preta e parda deste país. Realidade que remonta desde a escravização violenta do período da colonização, até os dias atuais, em que a subordinação dependente ao capital-imperialismo2 fazem do racismo a pedra de toque das conformações para a manutenção do capitalismo, em especial, em países de economia dependente. O texto em mãos parte de um estudo exploratório, que considera os aspectos qualitativos para análise da realidade social (MINAYO, 2012) no que se refere ao racismo como um processo estruturante da sociabilidade capitalista. Baseado em referências do método em Marx, considera algumas categorias como totalidade histórica, particularidade, historicidade e dialética para possibilitar a apreensão crítica do fenômeno do racismo que ressalta suas faces na estrutura social em tempos de capital em crise, ultraliberalismo e neofascismo (MATTOS, 2020). Nesta direção, a pesquisa em sua dimensão metodológica, levou em conta o desafio apontado por Netto (2009), ao afirmar que: O método implica, pois, para Marx, uma determinada posição (perspectiva) do sujeito que pesquisa: aquela em que se põe o pesquisador para, na sua relação com o objeto, extrair dele suas múltiplas determinações. […] Porque procede pela descoberta das determinações, e porque, quanto mais avançada na pesquisa, mais descobre determinações – conhecer teoricamente é (para usar uma expressão cara ao Professor Florestan Fernandes) saturar o objeto pensado com suas determinações concretas […]. (NETTO, 2009, p. 689) [grifo do autor].
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Rap que compõe o álbum “Nada como um dia após o outro dia”, fundamental para impulsionar a carreira do quarteto, formado por Mano Brown, Edy Rock, Ice Blue e Kl Jay. Fonte acessada: NEGRO drama. Intérprete: Mano Brown, Edy Rock, Ice Blue e Kl Jay. Compositor: Racionais’MC: Mano Brown, Edy Rock, Ice Blue e Kl Jay. In: Nada como um dia após o outro dia. São Paulo: Unimar Music,2002. 1 disco vinil, lado A, faixa 5. Termo cunhado por Fontes (2010).
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O estudo foi desenvolvido como parte dos resultados qualitativos do estágio pós-doutoral no programa de Pós-Graduação em Serviço Social, na Faculdade de Serviço Social da UFJF. Teve como um de seus objetivos aprofundar os aspectos teóricos sobre a questão racial e a questão social na particularidade da formação social do Brasil (que tem na discussão de Estado uma de suas mediações imprescindíveis), de modo a contribuir para o fortalecimento de uma formação profissional crítica em serviço social na perspectiva antirracista. Neste escrito específico, destaca o debate teórico por meio de pesquisa bibliográfica e análise conjuntural do papel do Estado na produção e reprodução do racismo estrutural e institucional nesta quadra histórica. Esta revisão bibliográfica parte de autores fundamentais na tradição marxista, considerando suas referências constantes nas principais produções na área, e, cujas categorias de análise contribuem nas mediações com o debate dos fundamentos do serviço social, e vida social, para compreender o racismo como elemento estruturante das relações sociais do modo de produção capitalista. Uma vez estrutural na formação social brasileira, está enraizado na estrutura do Estado e na forma como este vem operando sistematicamente, ora sob a lógica de um mito da democracia racial, ora como Estado autoritário, em que prevalece nesta relação de presente por meio da heteronomia. Contraditoriamente, se faz ausente naquilo que representaria o status de cidadania e direitos sociais. A farsa da democracia no Brasil garante sua constante presença na forma da reprodução ampliada do racismo institucional, que se revela em dados empíricos sobre a situação da população negra e seu cotidiano, marcada pela violência sistemática do Estado em relação aos corpos negros. Lembrando que cada perda para a classe trabalhadora neste país, pretos e pretas seguem na linha de frente do genocídio que compromete o presente e o futuro. Recuperar essa discussão não evoca nada original, apesar das exigências de ineditismo que as produções indexadas reivindicam como parâmetros de qualidade e referendo nas comunidades acadêmicas. Esse reconhecimento não vem para desqualificar o próprio texto, mas para demarcar como o racismo estrutural e institucional se vale de hegemonias concretas, traduzidas também em marcos epistemológicos, nos traiçoeiros silenciamentos, branqueamento e aculturação da discussão sobre a questão racial no Brasil, como adverte Nascimento (2016). Tais processos exigem em tempos áridos e desoladores como o que estamos vivendo, que se acentue a urgência da superação do que Clóvis Moura (2019) define como “[…] pensamento social subordinado […]” (MOURA, 2019, p. 39), com atenção voltada nestas páginas para a análise das relações entre Estado e sociedade. Partindo desse pressuposto, o artigo apresenta uma breve discussão sobre o racismo estrutural e como ele se organiza como elemento estruturante na sociedade capitalista. Considerando a particularidade brasileira, Ianni (1972) aponta para a necessidade de transformar o trabalhador escravo em trabalhador livre, e representa uma das mais importantes inflexões na história, ao fazer com que esse sujeito escravizado deixe de se constituir como meio de produção, passando à condição de vendedor da sua força de trabalho, dando-lhe o caráter de mercadoria, permitindo assim ampliar as escalas de lucro por meio da exploração da mais-valia. Essa transformação foi ocasionada por um conjunto de tensionamentos internos e externos ao modelo escravocrata que rompe com o regime no final do século XIX, sem alterar estruturas sociais que aprisionavam o país em suas bases coloniais, patrimonialistas e arcaicas (FERNANDES, 2007; IANNI, 1972; MOURA, 2014). Para Fernandes (2007), o Brasil vive simultaneamente “[…] em várias idades histórico-sociais […]” (FERNANDES, 2007, p. 104) nos diferentes territórios marcados por imensas desigualdades regionais que se desenvolvem ao prazer das corporações dominantes. O autor afirma que: “Presente, passado e
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futuro entrecruzam-se e confundem-se de tal maneira, que se pode passar de um estágio histórico para outro, pelo expediente mais simples: o deslocamento do espaço” (FERNANDES, 2007, p. 104). Neste caso, em se tratando do sistema escravocrata da monarquia para o modelo liberal da república, advoga-se ao sujeito livre uma transposição de status formal, desvinculado de uma profunda mudança na estrutura patrimonialista, patriarcalista e fundiária do país. Daí, temos os traços de uma abolição inconclusa que impede a verdadeira transformação do escravizado em cidadão neste país (IANNI, 1972). Neste processo, o Estado age como indutor de um simulacro republicano com crescimento de uma política eugenista de migração, branqueamento e reforço da lógica discriminatória, em que negros permanecem como subumanos mediante teorias racialistas, que ainda hoje buscam justificar a supremacia da raça branca/caucasiana sobre as demais (GOES, 2018). Tal processo evoca uma trajetória tenebrosa de violência, expropriações e explorações sucessivas, na qual o Estado possui uma função primordial para o desenvolvimento e a manutenção do sistema capitalista. Moura (2014) destacou que mesmo com o processo de abolição, não houve mudança qualitativa na estrutura da sociedade brasileira, o sociólogo afirmou que “O Brasil arcaico preservou os seus instrumentos de dominação, prestígio e exploração e o moderno foi absorvido pelas forças dinâmicas do imperialismo que também antecederam à Abolição na sua estratégia de dominação” (MOURA, 2014, p. 152). Neste sentido, as relações intrínsecas entre o racismo estrutural e o Estado capitalista dependente perpetram à população negra condições de vida em permanentes e persistentes desigualdades, que violam os princípios das estruturas que se reivindicam democráticas no mundo moderno. Assim, o mito da democracia racial segue causando uma cortina de fumaça, cercado de confusões e desorientações que limitam a compreensão dos fundamentos da dependência e dos profundos processos de exploração e ruptura com o arcaico projeto de nação, onde não cabem as aspirações e demandas de todos os segmentos que a compõe (FERNANDES, 2007). Sobre este choque de imposição de um poder político autoritário e heterônomo, o autor assevera que: Esse padrão rígido e monolítico de dominação autocrática responde às exigências da situação histórico-social. A persistência, sob várias formas, da dominação externa e a expansão interna do capitalismo impõem a continuidade de modelos verdadeiramente coloniais de apropriação e de expropriação econômica, aos quais deve corresponder, necessariamente, uma extrema concentração permanente de riqueza, no tope, o uso pacífico ou violento de técnicas autocráticas de opressão e de repressão. […] Nessas condições, o uso ‘legítimo’ do conflito faz parte do privilégio e, com o poder político institucionalizado, os setores dirigentes das classes dominantes detêm o monopólio da violência (FERNANDES, 2007, p. 292-293).
Dessa forma, mediante a impossibilidade de superação das formas arcaicas de organização na formação social brasileira por meio da superação de conflitos entre as formas de submissão/exploração x dominação/privilégios entre brancos e negros, processos cotidianos de violações, violências, negligências e silêncio – presentes nas organizações sociais, reproduzem o racismo na sua forma institucional como uma das formas de monopólio do poder (ALMEIDA, 2019), que será discutido na segunda parte do artigo. Para isso, será levado em consideração a conjuntura atual de neoconservadorismo fascista e ultraliberalismo do governo e como tal direcionamento do Estado brasileiro impõe e ameaça a população negra, pobre e periférica, como apontam os dados estarrecedores do agravamento das expressões da
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questão social, caracterizando esta população como alvo de um genocídio em curso, já que “Me ver pobre, preso ou morto já é cultural” (RACIONAIS M’C, 2002, s/p).
2 As faces persistentes de uma presente ausência: o mito da democracia racial Refletir a ação do Estado nas relações sociais no Brasil exige tratar com rigor as tramas que permitem que o racismo estrutural seja arraigado nas diferentes organizações como ideologia dominante, tão naturalizado ao ponto de ser incorporado no senso comum como verdade estabelecida. Ianni (2005) problematiza como a questão racial no Brasil reside como chave para a questão nacional. Para ele, a escala e a radicalidade da questão racial devem ser consideradas como elementos fundamentais, não só para a eliminação do preconceito e injúria racial, e sim, para uma profunda transformação da sociedade brasileira. O autor destaca que: A questão racial sempre foi, tem sido e continuará a ser um dilema fundamental da formação, conformação e transformação da sociedade brasileira. Está na base das diversas formas de organização social do trabalho e dos jogos das forças sociais, bem como das criações culturais. Praticamente tudo que constitui a economia e a sociedade, a política e a cultura, compreende sempre algo ou muito da questão racial. Os longos períodos de tirania realizam-se com ampla ou total exclusão do negro e outras etnias, assim como os episódicos períodos de democracia realizam-se com alguma participação do negro e de outras etnias (IANNI, 2005, p. 9).
Tais reflexões denotam que o escravismo se constituiu como base para uma sociedade autoritária, inauguradas nas relações entre senhores (representantes da casa-grande) e escravizados (relegados à senzala). Neste modelo social, o escravismo desenvolve-se como cultura política autocrática, de sujeitos trabalhadores destinados à tutela, corpos controlados, confinados, silenciados e violentados de forma sistemática no conjunto das relações de produção e reprodução da vida (IANNI, 2005). Esta é a realidade: o racismo tem raízes nos séculos de escravismo, reiterando-se e desenvolvendose, ou recriando-se, no curso dos diversos períodos em que se divide o regime republicano, permeando o agrarismo e o industrialismo, a ruralidade e urbanidade, os espaços públicos e privados, leigos e religiosos, governamentais e empresariais. Mesmo porque o regime de trabalho livre é também uma fábrica de desigualdades, hierarquias, tensões, antagonismos e lutas; assim como de intolerâncias, preconceitos e, inclusive, segregações. Note-se, pois, que o preconceito racial adquire todas as características de uma poderosa técnica de dominação, compreendendo desde o controle e a administração até a segregação ou o próprio confinamento (IANNI, 2005, p. 12).
Ainda sobre esse período que ocupou o maior curso da história deste país (1534-1988), foram mais de 400 anos de construção de uma sociedade que naturalizou a negritude como objeto, desprovidos de humanidade e subjugados por uma suposta inferioridade física, intelectual, moral e cultural, justificadas por teorias e práticas sociais racialistas, tendo como expoentes em diferentes tempos históricos, Oliveira Viana, Nina Rodrigues, Gilberto Freyre, dentre outros que contribuíram intelectualmente para formar o arcabouço para a criação do mito da democracia racial.
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Segundo Moura (2019), “[…] o aparelho ideológico de dominação da sociedade escravista gerou um pensamento racista que perdura até hoje” (MOURA, 2019, p. 46). Tal reconhecimento é fundamental para entender como o racismo estrutural se incorpora à lógica de como se estrutura e se organiza o poder e, consequentemente, para pensar a conformação do Estado considerando a particularidade brasileira. O autor aponta que há uma ligação indissolúvel entre racismo e autoritarismo como fórmulas constantes do pensamento social e político no país. Vale considerar que: Durante toda existência do Estado brasileiro, no regime escravista, ele se destinava, fundamentalmente, a manter e defender os interesses dos donos de escravos. Isso quer dizer que o negro que aqui chegava coercitivamente na qualidade de semovente tinha contra si todo o peso da ordenação jurídica e militar do sistema, e, com isso, todo o peso da estrutura de dominação e operatividade do Estado (MOURA, 2019, p. 44-45).
O sociólogo ao analisar as bases ideológicas do Estado e do racismo conclui que “[…] há um continuum nesse pensamento social da inteligência brasileira: o país seria tanto mais civilizado quanto mais branqueado” (MOURA, 2019, p. 49). Desde o início do século XX, a entrada de países retardatários na ordem capitalista implicou e impôs a esses países uma dominação interna e externa. O momento de pós-guerra (1945) determinou novos rumos do capitalismo, imprimindo aos países latino-americanos um caminho em direção à modernização conservadora e à industrialização retardatária, sem superar historicamente os traços coloniais do país. Tal processo foi denominado por Fernandes (2005) como ‘Revolução pelo alto’. É no seu enlace que se elevam ao primeiro plano tanto a ‘força selvagem’ quanto a ‘debilidade crônica’ da Revolução Burguesa sob o capitalismo dependente. Essas duas características não surgem tardiamente. Elas são primordiais e podem ser apanhadas antes de uma maior diferenciação do regime de produção capitalista e do regime de classes, quando proletariado e burguesia se defrontarão, como e enquanto forças antagônicas, no cenário histórico. […] As impossibilidades históricas formam uma cadeia, uma espécie de círculo vicioso, que tende a repetir-se em quadros estruturais subsequentes. Como não há ruptura definitiva com o passado, a cada passo este se reapresenta na cena histórica e cobra o seu preço, embora sejam muito variáveis os artifícios da ‘conciliação’ (em regra, uma autêntica negação ou neutralização da ‘reforma’) (FERNANDES, 2005, p. 238).
A inserção brasileira e a sua transformação do modelo agrário exportador para a produção capitalista industrial, como se sabe, ocorre tardiamente, desencadeando em seu bojo um conjunto de mudanças políticas e sociais. Na análise de Fernandes (2005), cada uma das três fases de desenvolvimento nacional representou momentos distintos e nenhuma delas aproximou-se do processo de desenvolvimento capitalista dos países centrais e hegemônicos. Pelo contrário, desde o início tomou feições dos traços típicos de nações periféricas e heteronômicas, de origem colonial ou não. Para o sociólogo, em nenhum momento o desenvolvimento capitalista propiciou as matrizes para a constituição de outra referência, que não a da dependência. Sustenta sua afirmação na medida em que não houve imposição para a ruptura com associação dependente em relação aos centros hegemônicos da dominação imperialista. A desagregação com o antigo regime pré-capitalista de produção, troca, circulação e superação de extrema concentração social e regional é resultante da riqueza produzida e acumulada, com nichos de subdesenvolvimento convivendo com o ‘relativo’ progresso. Conclui:
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Desse ângulo, dependência e subdesenvolvimento não foram somente ‘impostos de fora para dentro’. Ambos fazem parte de uma estratégia, repetida sob várias circunstâncias no decorrer da evolução externa e interna do capitalismo, pela qual os estamentos e as classes dominantes dimensionaram o desenvolvimento capitalista que pretendiam, construindo por suas mãos, por assim dizer, o capitalismo dependente como realidade econômica e humana (FERNANDES, 2005, p. 262).
Ao abordar o capitalismo dependente e as classes sociais na América Latina entre as décadas de 1960 e 1970, Fernandes (2009) lembra que historicamente as nações latino-americanas são produtos da expansão da civilização ocidental, um tipo de colonialismo sistemático e organizado para dar suporte à fase expansiva dos países tidos como conquistadores (Espanha e Portugal). Não assume, com isto, certo determinismo histórico, mas ressalta como tais características somadas ao modelo de desenvolvimento capitalista monopólico e imperialista reafirmam a posição de subordinação, já que os traços políticos da colônia não encontraram alavancas para a sua superação. Permanecem, portanto, na estrutura brasileira a concepção atrasada da aristocracia, ou classe dominante local. “Em consequência, a institucionalização política do poder era realizada com a exclusão permanente do povo e o sacrifício consciente de um estilo democrático” (FERNANDES, 2009, p. 21). Neste processo, a negação da questão racial e a sua desvinculação com a luta de classes teve e ainda tem um papel preponderante para consolidar as relações de capitalismo dependente no Brasil, conforme constatou Moura (2019): Por questões de formação histórica, os descendentes dos africanos, os negros de um modo geral, em decorrência de sua situação inicial de escravos, ocupam as últimas camadas da nossa sociedade. Em consequência, a sua cultura é também considerada inferior e somente entra no processo de contato como sendo cultura primitiva exótica, assimétrica e perturbadora daquela unidade cultural almejada e que é exatamente a branca, ocidental e cristã. […] Não é, portanto, um elemento de dinâmica social, mas um mecanismo usado pelas classes dominantes e seus seguidores ideológicos para neutralizar a radicalização da população negra, de um lado, e, de outro, mostrar-nos internacionalmente como a maior democracia racial do mundo (MOURA, 2019, p. 78).
No Brasil, como no restante da América Latina, a industrialização seguiu as exigências dos países centrais, demandando, sobretudo, uma produção baseada em produtos de baixo valor agregado, trabalho pouco especializado e consequente baixo custo de produção, com alta lucratividade para o capital, além da vileza no modo de produção pautado na superexploração do trabalho. O traço específico do imperialismo total consiste no fato de que ele organiza a dominação externa a partir de dentro em todos os níveis da ordem social desde o controle da natalidade, a comunicação de massa e o consumo de massa, até a educação, a transplantação maciça de tecnologia ou de instituições sociais à modernização da infra e da superestrutura, os expedientes financeiros ou do capital, o eixo vital da política nacional etc. Segundo esse tipo de imperialismo demonstra que mesmo os mais avançados países latino-americanos ressentem-se da falta dos requisitos básicos para o rápido crescimento econômico, cultural e social em bases autônomas (FERNANDES, 2009, p. 27).
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Esse é o elemento-chave para a compreensão do aprofundamento do capitalismo mundializado e seus traços na particularidade brasileira, marcado pela inserção dependente e subordinada do país à dinâmica do capital-imperialismo. Ao analisar a realidade brasileira, Fontes (2010) indica que: A ideia de capital-imperialismo procura recuperar os conceitos clássicos para explorar um presente forçosamente diverso do período no qual nasceram, mas que representa a continuidade e o aprofundamento da mesma dinâmica do capital. […] Novas determinações resultaram da própria disseminação do imperialismo, quando, para além de dominar o planeta, intensificaramse tanto as lutas sociais quanto a penetração difusa e desigual – porém estreitamente conectada – das relações sociais próprias do capitalismo, a ponto de o capitalismo tornar-se a forma da vida social de maneira generalizada e profundamente assimétrica (FONTES, 2010, p. 13).
Para a autora, o capital-imperialismo que caracteriza a inserção do Brasil no mercado mundial é marcado por três características básicas, a saber: 1) o predomínio do capital monetário, expressando a dominação da pura propriedade capitalista e seu impulso avassalador expropriador; 2) modificações profundas no conjunto da vida social, no mundo do trabalho e na organização política, cultural e científica e; 3) a necessidade imperativa de reprodução ampliada em plena expansão em todas as esferas da vida (FONTES, 2010). Outra importante contribuição acerca dessa fase da economia brasileira encontra-se em Oliveira (2006) que, com uma brilhante análise, aponta duas teses. A primeira tem por base o que denomina a crítica à razão dualista, que levou um conjunto de formulações no pós-1930 às proposições reformistas, dado o traço economicista das análises sobre o Brasil e América Latina e que, nas palavras do autor, “[…] isolam as condições econômicas das políticas como um vício metodológico que anda de par com a recusa em reconhecer-se como ideologia”. (OLIVEIRA, 2006, p. 30) Na dialética entre o arcaico e o moderno, Oliveira (2006) mostra como houve a manutenção, ampliação e combinação do padrão de acumulação primitiva com as novas relações de produção industrial, o que permitiu um extraordinário crescimento das taxas de industrialização e urbanização. A formação de um expressivo exército de reserva e o baixo custo da reprodução da força de trabalho só foram possíveis com a exploração do trabalhador no campo e a não incorporação dos custos de serviços e moradia na composição salarial dos trabalhadores urbanos (OLIVEIRA, 2006). Desse modo, ficam explícitos os desdobramentos do racismo estrutural e institucional diante de processos que demarcam as profundas desigualdades sociais existentes no país, evidentes na pauperização, favelização, encarceramento, extermínio e todas as formas de agravamento da questão social que ganham proporções gigantescas. O racismo se constitui dessa forma e se reitera como traço marcante na formação brasileira. O arcaico continua mais presente que nunca na era bolsonarista, de ultraliberalismo e conservadorismo com grandes traços do fascismo, que servem, em tempos de capital em crise e pandemia mundial, como estratégias convenientes à subordinação ampliada ao capital mundial. Segundo Oliveira (2006), desde os anos 2000 há um sucessivo rebaixamento do custo do trabalho assalariado. No Brasil, efetiva-se claramente a expropriação de recursos naturais e a posse da terra por meio da expropriação do excedente – o capital desta forma encontra o caminho para a sua realização na lógica do desenvolvimento desigual e combinado. Para Fontes (2010), como parte das respostas do capital à crise, constata-se que o capitalimperialismo é gestado também sob formas organizativas, educativas e pedagógicas para representação dos
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interesses do grande capital. O Banco Mundial, com sua influência nas orientações políticas para os países periféricos, assumiu uma liderança nos processos de cooperação financeira e política para questões tidas como entraves para o crescimento econômico desses países. Sabe-se que os organismos internacionais, nas últimas décadas, desempenham a função de criadouro de intelectuais orgânicos da classe dominante, com franca entrada e aceitação de seu ideário liberal e pós-moderno, reproduzindo o ciclo de dominação econômica e ideológica do bloco hegemônico de poder. Estratégias pautadas em falsas experiências democráticas e na crença no mercado e nos sujeitos individuais para a superação dos graves problemas da atualidade (FONTES, 2010; HARVEY, 2008). Além das influências observadas nos últimos anos, o Brasil é considerado uma nação que sofre os impactos deletérios das proposições da Terceira Via, com traços particulares, como afirma Chauí (2000): A política neoliberal recrudesce a estrutura histórica da sociedade brasileira, centrada no espaço privado e na divisão social sob a forma de carência popular e do privilégio dos dominantes, pois a nova forma do capitalismo favorece três aspectos de reforço dos privilégios: 1) a destinação preferencial e prioritária dos fundos para financiar os investimentos do capital; 2) a privatização como transferência aos próprios grupos oligopólicos dos antigos mecanismos estatais de proteção dos oligopólios, com a ajuda substantiva dos fundos públicos; 3) a transformação de direitos sociais (como educação, saúde e habitação) em serviços privados adquiridos no mercado e submetidos à sua lógica. No caso do Brasil, o neoliberalismo significa levar ao extremo nossa forma social, isto é, a polarização da sociedade entre a carência e o privilégio, a exclusão econômica e sociopolítica das camadas populares e, sob os efeitos do desemprego e desorganização e da despolitização da sociedade anteriormente organizada em movimentos sociais e populares, aumentando o bloqueio à construção da cidadania como criação e garantia de direitos (CHAUÍ, 2000, p. 94-95).
Essa constatação contribui para pensarmos os limites e rumos da democracia e do Estado capitalista. Ellen Wood defende que para definir a essência do imperialismo capitalista é fundamental entender seu funcionamento na atualidade. A ideologia do capital permite, inclusive, a criação de mecanismos supostamente democráticos por meio do sufrágio universal, sem colocar em risco a estrutura hegemônica de dominação. Wood (2010, 2014) sustenta em sua análise sobre o Estado uma lúcida crítica ao capitalismo na visão clássica, autodenominado por algumas abordagens como uma esfera essencialmente econômica. Em última análise, na concepção do liberalismo em sua ortodoxia conservadora, o poder econômico se separa do poder político, já que nesta concepção o mercado possui uma força própria que impõe a todos os sujeitos sociais uma dinâmica sistêmica impessoal, de concorrência, acumulação e maximização de lucros (WOOD, 2014). Com o advento do capitalismo, o Estado age sistematicamente para impulsionar o desenvolvimento das forças produtivas em todos os ciclos da produção, circulação e consumo na era das finanças. Essa estrutura se ergue por meio de ações estratégicas de controle do poder político de forma hegemônica, dos investimentos públicos voltados à criação de estruturas e organizações em torno dos interesses do mercado (forma direta e indireta de atuação). Além das formas de coerção e repressão da população por meio do aparato militar que se vale, inclusive, da prerrogativa do uso da força em caso de manifestações contrárias à ordem. Portanto, a construção social do negro como ameaça chancela práticas de uma presente ausência do Estado no que diz respeito à forma idealista que o mesmo deve alcançar a todos/as indistintamente, de
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acordo com suas prerrogativas jurídico-formais na lógica abstrata do direito liberal. A ausência do Estado é refletida na falta de moradia digna, trabalho protegido, infância integralmente resguarda, seguridade social, educação, saúde, mobilidade etc., que se choca frontalmente com a presença vigorosa e sistemática quando se fala do uso da violência e da força para conter as chamadas classes perigosas, conforme sustenta Almeida (2019): “É desse modo que o racismo passa da destruição das culturas e dos corpos com ela identificados para a domesticação de culturas e de corpos. Por constituir-se da incerteza e da indeterminação, é certo que o racismo pode, a qualquer momento, descambar para a violência explícita, a tortura e o extermínio” (ALMEIDA, 2019, p. 72). Sob a marca do cinismo liberal, negros, brancos e outras etnias são iguais perante a lei. No entanto, é carregando o ideário social de uma supremacia branca, heteronormativa e burguesa que o ethos social do privilégio acentua o irracionalismo fascista e ultraliberal, que legitima o mercado como centro universal de mediação das relações sociais, desconsiderando a violência e violação sistemática do Estado em relação à necessidade em manter um amplo e marcado exército social de reserva, que outorga que a carne mais barata continua sendo a carne negra.
3 Irracionalismo, desumanização e genocídio: velhas fórmulas em tempos nada novos de neoconservadorismo, ultraliberalismo e pandemia Adensa-se às páginas iniciais da história, um Estado capitalista capitaneado na quadra recente pelo neoliberalismo e ultraliberalismo tomado por tendências mundiais de uma forma usurpadora de recursos públicos para salvaguardar os interesses e o lucro privado. Análises recentes indicam que desde o golpe jurídico-democrático de 2016, tem-se instalado no Brasil uma busca incessante para resolver por meio de espoliações, expropriações, perdas drásticas de direitos, intensificação e ampliação da superexploração do trabalho, um conjunto de investidas contra a classe trabalhadora para oferecer fôlego ao capital em crise. As estatísticas não se esgotam quando falamos da questão racial, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2017 constatou que dentre as pessoas em situação de pobreza, os negros e negras são 33% em relação aos 15% de brancos. São também os que convivem com a falta de acesso ao saneamento básico e que podem representar 62% da população que não usufrui desse direito. O rendimento mensal de brancos é em média 82% maior que dos pretos e pardos. No caso das mulheres negras, a diferença nesses rendimentos pode chegar a 22% do que ganha um homem branco. No Brasil, em 2016, o número de desempregados chegou a12,3 milhões, e deste total cerca de 63% eram pardos e pretos (ABEPSS, 2018). Segundo o mapa da violência, os números mostram o verdadeiro genocídio da população negra e periférica. No atlas da Violência publicado em 2019 (CERQUEIRA et al., 2019), verificamos a continuidade do processo de aprofundamento da desigualdade racial nos indicadores de violência letal no Brasil, já apontado em outras edições. Em 2017, 75,5% das vítimas de homicídios foram indivíduos negros (definidos aqui como a soma de indivíduos pretos ou pardos, segundo a classificação do IBGE, utilizada também pelo SIM), sendo que a taxa de homicídios por 100 mil negros foi de 43,1, ao passo que a taxa de não negros (brancos, amarelos e indígenas) foi de 16,0. Ou seja, proporcionalmente às respectivas populações, para cada indivíduo não negro que sofreu homicídio em 2017, aproximadamente 2,7 negros foram mortos, revelando uma piora na desigualdade de letalidade racial no Brasil. No período de uma década (2007 a 2017), a taxa de negros cresceu 33,1%, já a de não negros apresentou um pequeno
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crescimento de 3,3%. Analisando apenas a variação no último ano, enquanto a taxa de mortes de não negros apresentou relativa estabilidade, com redução de 0,3%, a de negros cresceu 7,2% (CERQUEIRA et al., 2019). Mais que números, trata-se de vidas humanas banalizadas pela lógica ultraliberal que coloca o mercado e os lucros acima de tudo e de todos, balizados ainda por uma supremacia que procura recuperar um nacionalismo enviesado com slogan ‘Brasil acima de tudo, Deus acima de todos!’, e que embala um violento processo de dilapidação da coisa pública por parte do presidente Jair Bolsonaro desde o início de seu governo, em 2019. Assistimos a ultrajantes ataques à classe trabalhadora, com ajustes na reforma trabalhista; reforma da previdência; aprovação da emenda constitucional 95/2019, que limita os investimentos públicos por 20 anos; desmonte de políticas e serviços públicos; e a conhecida receita de recuperação da economia com aportes financeiros do Estado para o setor privado: seguem a velha e amarga solução para o capitalismo dependente (ELPIDIO, 2020). Para a autora, tais processos estão associados à proliferação do ódio à classe - com forte apelo das religiões ultraconservadoras de cariz neopentecostal que, contraditoriamente, apoiam a liberação da compra e do porte de armas -; ao preconceito e violência contra as minorias sociais (mulheres, LGBTQIA+, população de rua, seguidores de religiões de matriz africana, pobres etc.); ao negacionismo científico e investimentos exorbitantes e à ocupação de cargos civis pelo exército, bem como à desapropriação de áreas destinadas às comunidades tradicionais, dentre outras medidas ultrajantes aos processos democráticos. Essa onda fascista, neoconservadora e ultraliberal, chega como um tsunami para a população brasileira, cujas consequências ainda não podem ser totalmente previstas (ELPIDIO, 2020). O texto evidencia que os impactos para a população negra já se mostram devastadores, tendo em vista o passivo acumulado. Essa face perversa do Estado se reflete frente à maior crise sanitária da história recente, com a pandemia da SARS-CoV-2/Covid-19 que já matou no Brasil mais de 120 mil pessoas neste setembro de 2020. Nota-se que no Brasil, a pandemia tem servido para o aprofundamento dos abismos sociais, pois encontra um terreno já devastado por mais de 20 anos de políticas neoliberais que dilapidaram o sistema público de saúde, que encontra 60% da população sem saneamento básico – sendo 80% destes pretos e pretas que vivem em favelas, que acumulava antes da pandemia mais de 13 milhões de desempregados, 24 milhões de informais e 5 milhões de desalentados que tem cor e gênero. A autora constata que: Vida e morte são faces da mesma moeda! Por isso a disputa em torno do direito ao isolamento social, mais que uma medida sanitária, é uma questão que atinge a vida social e econômica nesta crise explicitada pela forma de conter o vírus. Esta medida voltada para enfrentar a Covid-19, por mais eficiente, não é tida como algo plausível para uma parcela expressiva da população, digo em especial, para os 55% dos trabalhadores pauperizados pelas condições mais precárias de trabalho no Brasil (informais, trabalhadores domésticos, pequenos empreendedores, trabalhadores avulsos e sazonais, etc.) e àqueles que engrossam as tristes estatísticas da pobreza e miséria (desalentados, sem rendimentos e que recebem menos de ¼ do salário mínimo). A orientação sanitária, desacompanhada de medidas econômicas e sociais efetivas, tem se mostrado como única resposta possível e se trata quase exclusivamente de uma ação que tem recorte de classe, renda, gênero, território e cor. Ela aponta como a Covid-19 não escolhe a quem acometer. Mas, é traiçoeira em sua proliferação e letalidade (ELPIDIO, 2020).
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O lugar da negritude nas políticas do Estado brasileiro: faces persistentes de uma presente ausência Maria Helena Elpidio
A reflexão feita pela autora é que para combater a doença provocada pelo Coronavírus, há um esforço mundial das grandes nações e corporações para encontrar a vacina, a cura! Uma cura que certamente virá em algum tempo plausível da ciência e das novas tecnologias, e que permitirá ao capital seguir seu fluxo destrutivo, sem fronteiras e isolamentos. E indaga ainda como promover uma sociedade na qual as pessoas poderão seguir circulando e usufruindo de tudo que é produzido: O racismo provoca mortes sem precedentes todos os dias, tira liberdades desde a escravidão africana e a dura vida em diásporas, asfixia com a máscara de ferro da Anastácia, mutila com o açoite que grita todas as noites em diversos pelourinhos, isola na senzala, rompe com o sonho do menino moleque que morre pelo menos 23 vezes por dia, estupra e amordaça as pretas por gerações e gerações, cerca na favela e no quilombo, enforca Chicos Pregos e Georges Floyds (ELPIDIO, 2020).
E ainda, O racismo aqui pode ser comparado aqui com um vírus, que pouco ou nada tem de biológico3 e por isso não é passível de uma vacina capaz de imunizar a humanidade deste mal, que representa muito mais do que uma doença social. Ele não é somente patológico, é socialmente construído e alimentado nas entranhas e na prática social que hegemonizou o pensamento eurocêntrico para a manutenção do sistema capitalista e atua nas diversas engrenagens de produção e reprodução da vida social – por isso é estrutural e institucional. Para combater o racismo, não há outra vacina eficaz, senão, derrubar outro grande mal, o capitalismo! (ELPIDIO, 2020).
Segue o raciocínio que aponta para uma das linhas de respostas, que se reflete na mais concreta das evidências: os inúmeros dados já analisados e debatidos sobre a forma desigual que o vírus encontra a ambiência para a sua proliferação e letalidade4. Mostra como outros elementos que articulam Covid-19 e o racismo são as respostas sanitaristas eugênicas centradas na naturalização da doença, que contribui para a banalização da morte. O racismo, por séculos, operou no sentido de desumanizar os corpos pretos e, assim, tornar invisível ou despercebido a dor ou a morte desta população, isso é parte de uma estratégia fascista. O argumento da naturalização das perdas vem a partir da aceitação das estatísticas que apontavam no início da pandemia para projeções de que cerca de 70% da população poderiam contrair a doença e até 8% desses poderiam morrer – “E daí?”5 (ELPIDIO, 2020): E daí, que em nome desta perspectiva destrutiva que tem empurrado muitos para a crença da dualidade morrer de fome ou da doença, traz a ideologia que condena a parcela mais pauperizada da classe trabalhadora, formada predominantemente por negros e pardos a máxima de que não deixem o trabalho, como se não houvessem outras alternativas políticas e econômicas. A eugenia se manifesta ainda com os bloqueios em áreas de maior contágio, que presumo daqui alguns dias, se efetivarão quando a doença acabar de migrar dos bairros mais ricos para as favelas e periferias. Tudo isso rouba as chamadas liberdades democráticas (ELPIDIO, 2020). 3
Considerando que as teses racialistas que tentam evidenciar a diferença entre as raças como pretexto e justificativa para a pretensa e falsa supremacia branca em relação aos negros e demais etnias, não devem ser elencadas como elemento plausível que sustente as desigualdades provocadas pelo racismo. 4 Um dos exemplos se encontra nos estudos realizados pelo Núcleo de Estudos Afro-brasileiros, da Universidade Federal do Espírito Santo, tendo os pesquisadores professor Gustavo Forde e o graduando Rasley de Paula Forde (2020). 5 Pronunciamento do presidente JB no dia 28 de abril, quando o Brasil ultrapassou 5 mil mortos pela Covid-19. (GARCIA; GOMES; VIANA, 2020).
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A autora relembra que quando se fala de desigualdades entre o atendimento e assistência à população negra e não negra, a Covid-19 já chegou ao Brasil mostrando a sua tez, pois foram trabalhadores domésticos que contraíram a doença de seus patrões vindos de viagens ao exterior. Alerta que o pedido de isolamento social, sem acompanhamento efetivo de outros direitos sociais, reproduz uma quimera quando se trata de barreiras sanitárias e isolamento vertical nas moradias insalubres e sem saneamento básico, ou ainda, pagamento de aluguéis sociais e moradias alternativas para os idosos que moram em famílias em coabitação. O recado dado pelo Estado que evidencia o isolamento vertical desconsidera as condições reais dos mais velhos pobres e negros. A estes, as medidas decretam que podem morrer. E isso é genocídio (ELPIDIO, 2020). Chama-nos a atenção que os ditos bons modos desse novo normal – que apregoam especialistas médicos – exigem uma forma melhor de comportamento social, que é eminentemente excludente e não se aplica a uma parcela significativa da classe trabalhadora, eminentemente negros e negras, como já vimos. A lógica de que os mais fortes sobreviverão é a base para o pensamento eugênico e darwinista social, que, para além do controle sistemático sobre a vida, em última instância, significará o controle justificado da violência do Estado. O tratamento individualizado e sem os devidos recortes sociais geram a moralização do comportamento como individual para um contexto que exige, sobretudo, mudanças estruturais e coletivas para o enfrentamento de uma pandemia passageira e de uma outra que permanece em pleno curso (ELPIDIO, 2020). O racismo mata todos os dias, mais do que qualquer outra doença e ou conflito social neste planeta. E talvez, a maior dificuldade em combatê-lo é que todos já foram contaminados e retirar este mal da sociedade, signifique reconhecer limites deste Estado que está presente para garantir uma ordem social genocida, que só poderá ser superada com o fim do capitalismo e todas as estruturas que o sustenta. (ELPIDIO, 2020).
4 Para terminar, um novo começo Abordar os aspectos da formação social brasileira, considerando as mediações com o Estado permitiram uma aproximação fundamental para compreender um dos elementos que definem a lógica orgânica da questão racial no Brasil, discussão cara ao Serviço Social brasileiro no que diz respeito ao trabalho e formação profissional. Enfrentar os aspectos evidenciados e situar a sua crítica fundada no mito da democracia racial, em tempos de ultraliberalismo, se constitui como um campo estratégico da superação de uma ordem que pressupõe exploração, expropriações e opressões que não são compatíveis para uma nova sociabilidade de fato, livre, como pressupõe o aquilombamento (lugar da produção e reprodução da vida coletiva e das resistências às formas de escravização e opressão). Este horizonte emancipatório requer o exercício próprio do método em Marx, arcabouço fundamental para o serviço social renovado, capaz de realizar profundas autocríticas sem perder de vista o horizonte revolucionário. Não se trata da aplicação imediata da teoria, mas do vigor e radicalidade necessários que agregam história, teoria e método como bússola, para a busca de estratégias de enfrentamento ao tecnicismo e aos retrocessos no trabalho e na formação profissional, que certamente têm no enfrentamento ao racismo, um instrumento profissional e político, a favor da luta de classes.
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Se na perspectiva crítica da história é mediante o esgotamento das velhas estruturas que se abrem os caminhos para o novo, o esgotamento da sociabilidade que criou o negreiro, o açoite e que alimenta a bala que encontra corpos negros a cada 23 minutos, mostram todas as suas contradições e seu esgotamento como projeto societário. Sabemos que esta sociedade destrutiva está prestes a ruir! Mauro Iasi (2017), ao tratar da consciência crítica e marxismo, recupera uma das passagens de Bertold Brecht do poema ‘Parada do velho novo’ e nos instiga: Imaginem um cortejo que se apresenta aos gritos: ‘Aí vem o novo, tudo é novo, saúdem o novo, sejam novos como nós’. Em tal cortejo triunfal, entretanto, vinha o ‘Velho travestido de Novo, mas o cortejo triunfal levava consigo o Novo e o exibia como se fosse o Velho’. Assim, são nossos tristes tempos o velho mundo moribundo tenta disfarçar-se de novo, redescobrindo-se de hipocrisia, cinismo e irracionalismo. Os primeiros raios do sol que anunciam a chegada do novo já despontam no horizonte, mas ele não chegará enquanto o velho mundo não morrer. Em volta de seu leito de morte, assomam os curandeiros, com seus chocalhos, incensos e cânticos ritmados, tentando manter seu último suspiro. Os coveiros aguardam impacientes (IASI, 2017, p. 46-47).
Por fim, só nos resta a fórmula nada original que nos acompanha desde que o povo preto foi sequestrado e arrastado para gerar riquezas: Irmos à luta! Lélia Gonzales nos ensinou, ‘nossa pátria é Palmares!’ Essa intelectual compreendia o quilombo como exemplo de uma sociedade alternativa, onde negros e brancos viviam com maior respeito. Proprietários da terra e senhores do produto de seu trabalho. Palmares é um exemplo livre e físico de um Estado que está por se constituir. Uma democracia na qual negros, brancos, indígenas e tantas outras etnias e povos que lutam para que não precisemos mais discutir o que é liberdade como produto abstrato (RATTS; RIOS, 2010). Desse ângulo, o negro vem a ser a pedra de toque da revolução democrática na sociedade brasileira. A democracia só será uma realidade quando houver, de fato, igualdade racial no Brasil e o negro não sofrer nenhuma espécie de discriminação, de preconceito, de estigmatização e de segregação, seja em termos de classe, seja em termos de raça. Por isso, a luta de classes, para o negro deve caminhar juntamente com a luta racial propriamente dita. (FERNANDES, 2017, p. 41).
O fim do racismo, passa, portanto, pela superação do Estado capitalista imperialista e ultraliberal (juntamente com outras formas de exploração e opressões como machismo, lgbtfobia, xenofobia etc.). Essa superação desponta como o maior desafio desta quadra histórica e nesta dobrada do tempo, ainda em disputa. Seguimos com a arma da crítica como instrumento da verdadeira libertação e emancipação humana.
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O lugar da negritude nas políticas do Estado brasileiro: faces persistentes de uma presente ausência Maria Helena Elpidio
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Submetido em: 31 ago. 2020 Aceito em: 4 dez. 2020
DOI: 10.19180/1809-2667.v22nEspecial2020p851-870
Migração Internacional no Brasil: persistências históricas e tendências contemporâneas International Migration in Brazil: historical continuities and new trends Migración Internacional en Brasil: persistencias históricas y tendencias contemporáneas Áurea Cristina Santos Dias https://orcid.org/0000-0002-8215-3179 Doutora em Serviço Social pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Professora Assistente na Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói/RJ – Brasil. E-mail: aureadias@id.uff.br.
Resumo O aumento dos deslocamentos forçados no mundo tem sido evidenciado por dados de organizações internacionais. O artigo contextualiza a migração internacional contemporânea no Brasil como um dos múltiplos fenômenos articulados ao fôlego de expansão capitalista, especialmente a partir dos anos 2000, quando se intensificaram a imigração fronteiriça de nacionalidades haitiana, congolesa, bengali e senegalesa. A partir de referências bibliográficas e análise documental, discutimos que, a despeito de termos conquistado uma legislação reconhecidamente avançada em relação ao refúgio e uma recente lei de migração, no Brasil, a administração estatal da questão migratória se dá muito mais com controle e seletividade, através de mecanismos jurídicos extraordinários, do que com garantias, conduzindo um processo de inclusão e exclusão de imigrantes que remonta aos antecedentes da política migratória brasileira e se alinha ao discurso e práticas internacionais, com crescente perspectiva securitária que delimita a imigração como questão de segurança nacional e criminalizante. Evidencia-se, especialmente a partir de 2016, o afastamento brasileiro dos compromissos internacionais de proteção aos direitos humanos dos migrantes, o que tem causado situações concretas no cotidiano desses sujeitos como ausência ou dificuldade de acesso a serviços de atendimento, perpetuação da situação de migração provisória ou indocumentada. Palavras-chave: Imigração. Novas situações migratórias. Política Migratória no Brasil.
Abstract The increase of enforced displacements in the world has been highlighted by data from international organizations. This article contextualizes contemporary international migration in Brazil as one of the multiple phenomena related to the impetus of capitalist expansion, especially since the early 2000s, when border immigration of nationalities such as Haitian, Congolese, Bengali and Senegalese have accelerated. Based on bibliographic references and document analysis, we discuss that, despite having achieved a recognized advanced legislation related to refuge and a recent migration law, in Brazil, the State management of the migratory issue is much more related to control and selectivity through extraordinary legal mechanisms, than through guarantees; This has led to a process of inclusion and exclusion of immigrants that goes back to the previous history of Brazilian migratory policy and aligned with international discourse and practices, with growing perspective of immigration being a security and criminalizing issue. As of 2016, the Brazilian departure from international commitments to protect the human rights of migrants has become evident, causing specific situations in the daily lives of these subjects, such as the absence or difficulty of access to health care services, as well as the perpetuation of the situation of provisional or undocumented migration. Keywords: Immigration. New migratory situations. Migration policy in Brazil.
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Resumen El aumento de los desplazamientos forzados en el mundo ha quedado en evidencia por datos de organizaciones internacionales. El artículo contextualiza la migración internacional contemporánea en Brasil como uno de los múltiples fenómenos que se articulan al aliento de la expansión capitalista, sobre todo a partir de los años 2000, cuando se ha intensificado la inmigración en la frontera de nacionalidades como haitiana, congoleña, bengalí, senegalesa. A partir de referencias bibliográficas y análisis documentales, discutimos que, aunque se ha logrado una legislación reconocidamente avanzada en lo que se refiere al refugio y una reciente ley de migración, en Brasil, la gestión estatal de la cuestión de migración se pasa mucho más con control y selectividad, a través de mecanismos jurídicos extraordinarios que con garantías, conduciendo un proceso de inclusión y exclusión de inmigrantes que se remonta a los antecedentes de la política migratoria brasileña y se alinea con el discurso y las prácticas internacionales, con una perspectiva creciente de seguridad y de criminalización. A partir de 2016, se ha evidenciado el desvío brasileño de los compromisos internacionales de protección de los derechos humanos de los migrantes, lo que ha provocado situaciones concretas en la vida cotidiana de eses sujetos, como la ausencia o dificultad de acceso a los servicios de atención, la perpetuación de la situación de migración provisoria o indocumentada. Palabras clave: Inmigración. Nuevas situaciones migratorias. Política Migratoria en Brasil.
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Migração Internacional no Brasil: persistências históricas e tendências contemporâneas Áurea Cristina Santos Dias
1 Introdução As migrações internacionais têm se intensificado em praticamente todas as regiões do mundo nas últimas décadas, o que tem sido evidenciado por dados de organizações internacionais e registros midiáticos de cenas em que trabalhadores se arriscam em perigosas tentativas de travessia de fronteiras por terra, céu e mar. No Brasil, especialmente a partir dos anos 2000, novos fluxos migratórios têm se constituído e expressam transformações econômicas, políticas, sociais, culturais e tecnológicas que desafiam a percepção social sobre a imigração e a produção de respostas por parte do Estado brasileiro. Internacionalmente cresce uma perspectiva de controle sobre a entrada de imigrantes nos países, principalmente os de economia central. O Brasil tem absorvido essa concepção, o que não é de todo estranho pois os antecedentes da política migratória no país continham essa direção no trato da questão migratória como um problema de segurança nacional, compreendendo o imigrante como um perigo em potencial. Buscamos neste artigo abordar, a partir de análise bibliográfica e documental, as principais tendências globais das migrações internacionais que compreendem os movimentos de saída (emigração) em várias partes do mundo e entrada (imigração) em países de destino ou de trânsito ou de circularidade, dinâmicas migratórias complexas existentes na contemporaneidade. Ao mesmo tempo procuramos explicar o entendimento de que embora seja um fenômeno histórico, as migrações não são naturais e suas causas se articulam às dinâmicas estruturais da sociedade e às formas de organização e resistências de homens e mulheres nesse contexto societário. Essas são as preocupações apresentadas na primeira sessão do trabalho. Em seguida, nos aproximamos da realidade contemporânea das migrações internacionais no Brasil, pretendendo apresentar um panorama da conjuntura imigratória e da política de reconhecimento e atendimento que o Estado brasileiro vem adotando em relação a essa questão. Por fim, apresentamos algumas considerações que apontam para os desafios colocados à implementação de uma política de migração com caráter humanitário numa conjuntura de ataque regressivo e conservador que determina contínuas adversidades cotidianas aos imigrantes, assim como ao conjunto dos trabalhadores.
2 Tendências da Migração Global O início do século XXI consolidou as previsões das agências internacionais e de pesquisadores que anunciavam a intensificação sem precedentes das migrações internacionais. Conforme aponta Wihtol de Wenden1, desde meados dos anos de 1970 as migrações internacionais tomaram dimensão crescente, 77 milhões em 1975, 120 milhões em 1999, 150 milhões no início dos anos 2000 e 244 milhões em 2016 (2016, p. 18). O mundo está em movimento em novas rotas e direções que se manifestam nos sentidos Sul-Norte, Norte-Sul, Sul-Sul e em novas situações migratórias que envolvem especialmente as condições de refugiado e de imigrante econômico. Em 2013, a Agência das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) registrou um número maior de deslocados forçados desde a 2ª Guerra Mundial, daquele ano em diante a instituição vem divulgando números cada vez mais alarmantes. Em 2019, segundo o Relatório Global Trends Forced Displacement foram 79,5 milhões de pessoas em deslocamentos forçados devido a conflitos, perseguições e desastres 1
A autora compilou em suas obras dados quantitativos de diferentes fontes.
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Migração Internacional no Brasil: persistências históricas e tendências contemporâneas Áurea Cristina Santos Dias
ambientais. Os números e causas são registrados de formas diferentes pelas agências da Organização das Nações Unidas, segundo a Organização Internacional para a Migração (OIM) em seu Informe sobre las Migraciones en el Mundo, em 2019 3,5% da população mundial era migrante interno ou internacional. Mais da metade do total dos migrantes internacionais estão em países da Europa e nos EUA. A OIM considera migrante a “pessoa que se muda de seu local de residência habitual, seja dentro de um país ou através de uma fronteira internacional, temporária ou permanentemente, e por uma variedade de razões” 2 , ressalva que adota uma definição bem abrangente que inclui trabalhadores migrantes, migrantes contrabandeados e estudantes internacionais. Em 2018, a Organização Internacional do Trabalho em sua publicação Women and men in the informal economy registrou 164 milhões de trabalhadores migrantes, os destinos principais desses trabalhadores são Europa, EUA e países árabes. Apesar de esses números serem frequentemente tomados como uma questão emergencial, a agenda internacional sobre migrações protagonizada pela Organização das Nações Unidas (ONU) é permeada de estatísticas e informações que nem sempre esclarecem as dinâmicas migratórias. Para Basso (2018), esse tipo de abordagem mais oculta do que desvela o caráter estrutural das migrações. O autor entende a emigração em busca de melhores de condições de vida como um fenômeno contínuo na sociedade capitalista, cujas origens estão ligadas ao colonialismo histórico que foi base para a criação do mercado mundial e da divisão internacional do trabalho com desigualdades importantes entre as regiões do mundo. As permanências dessas cisões mantiveram os países ex-colonizados em condição de dependência como “fornecedores naturais de força de trabalho a baixo custo” para os países centrais e os interesses do mercado neles representados (BASSO, 2018, p. 14). No contexto da mundialização do capital, em especial após o término da Guerra Fria, mudanças qualitativas e quantitativas nos movimentos migratórios significaram redefinição da política migratória dos países, sobretudo os de economia central. Tais mudanças sugerem não se tratar de uma questão residual e passageira e sim de um elemento sintomático e característico do capitalismo globalizado. Especialmente a partir da crise de 2008, as bases de acumulação de capital vêm sendo renovadas através de investimentos especulativos de capital financeiro, exigindo para sua expansão a reestruturação produtiva do trabalho e reconfiguração dos Estados-Nacionais, em escala mundial. A proliferação de conflitos armados e expulsão de trabalhadores do campo, seja pela mecanização dos processos produtivos ou pela degradação ambiental e eventos climáticos, se somam às drásticas transformações que afetam as condições de vida e trabalho, dinamizando o crescimento dos deslocamentos humanos no mundo, tanto na dimensão nacional com os deslocamentos internos3, quanto na travessia de fronteiras internacionais. Para Singer4 (1980), as migrações são um fenômeno social historicamente condicionado, sendo resultado de um processo global de mudança. Logo, a análise desse fenômeno não deve ser desconectada das alterações que o desenvolvimento da acumulação capitalista provoca, especialmente na divisão social do trabalho. Nesse sentido, podemos considerar que os fluxos migratórios internacionais são um processo 2
Disponível em: https://www.iom.int/who-is-a-migrant. Acesso em: 19 ago. 2020. 3 Pardo (2018) estuda os deslocamentos internos na Colômbia que configuram uma situação crítica migratória de caráter humanitário com uma das mais altas taxas de migração forçada do hemisfério ocidental e uma das mais elevadas do mundo, gerada pelo conflito político, social, econômico e armado interno. Mattos (2019), ao analisar as condições da classe trabalhadora nos dias de hoje, faz referência ao trabalho de Paula Nabuco, que demonstra a relação entre a industrialização em larga escala da China nas últimas décadas e o processo de migração interna em grandes dimensões. 4 As análises do autor tinham como objeto as migrações internas no Brasil, no entanto suas contribuições são valiosas para os estudos migratórios em geral.
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social com causas estruturais que se expressam de forma desigual e com particularidades nos diversos países do globo terrestre. Tais desigualdades podem configurar fatores determinantes para migração, além da consolidação e da permanência de relações hierarquizadas e dependentes entre regiões. Da mesma forma, as crises e mudanças no modo de acumulação de capitais interferem e promovem fluxos migratórios. O mesmo autor adverte que tais determinações estruturais são acompanhadas de determinações intermediárias que condicionam questões objetivas e subjetivas. Os fatores macrossociais que produziram e motivaram a migração incidem sobre as classes sociais e econômicas, mas não da mesma maneira sobre todos os membros de cada classe. Logo, questões como quem pode migrar e que mudanças são produzidas nas relações sociais a partir desse movimento são pertinentes. No período de 1945 a 1973, muitos fluxos migratórios se constituíram a partir de políticas de recrutamento por questões demográficas nos países mais afetados pela 2ª Guerra Mundial, para garantir força de trabalho com valor rebaixado na produção industrial, de fluxos por iniciativa dos próprios trabalhadores de países periféricos em busca de melhores condições de vida e de refugiados a procura de proteção. Se, naquele contexto de reconstrução dos países e suas economias, concessões de cidadania eram possíveis aos imigrantes que rumavam do Sul para o Norte global, sob a hegemonia do capital financeiro, ações de controle, seletividade e expulsão determinaram uma condição de não cidadão (BASSO, 2018; CASTLES; MILLER, 2004). O aparato repressivo é combinado a uma retórica de ordenamento e acolhida, potencializado a partir dos ataques em território norte-americano em 11 de setembro de 2001, que serviram de justificativa para flexibilização e rompimento com normativas internacionais de direitos humanos e para disseminação de uma percepção sobre as migrações internacionais na lógica militar e securitária. Não obstante, a disponibilidade de grandes contingentes esperançosos de melhores oportunidades possibilita o refinamento seletivo. A permeabilidade das fronteiras impõe a exigência de imigrantes mais qualificados ou altamente qualificados e de pessoas dispostas apenas ao trabalho sem expectativas de proteção social e laços de pertencimento, “protótipos da hiperflexibilidade, forçados a movimentos frequentes num ir e vir entre países de origem e o país de acolhimento provisório – mais do que isso: desejosos de fazê-lo” (BASSO, 2018, p. 16). Com isso, as políticas migratórias ao mesmo tempo em que tomam mais forma de antiimigração, conformam uma disciplina para o trabalho obediente e desprotegido do imigrante. Para os Estados de destino do norte global e seus empresários, a imigração ao mesmo tempo em que é justificativa para o rebaixamento da proteção social já tão derruída nesses chamados “países de acolhida”5, configura um mercado de incorporação de força de trabalho precarizada que contribui para o “saudável desequilíbrio do mercado de trabalho”6, ao mesmo tempo em que cria um potencial conflitivo (lucrativo) de restrição de vistos, militarização das fronteiras, surgimento de campo de refugiados e lotação de instituições de cárcere. Castles & Miller (2004) ressaltam o avanço de mecanismos mediadores entre imigrantes e as instituições políticas e econômicas que envolvem desde organizações de recrutamento, organizações não governamentais, empresas privadas, advogados, até contrabandistas, constituindo uma verdadeira indústria da migração que não necessariamente servem de apoio ao migrante e que aciona estratégicas econômicas, políticas e culturais. 5
Terminologia utilizada pelo ACNUR para designar os países que se comprometem a receber refugiados e pela OIM para mobilizar o Pacto Global das Migrações e acionar boas práticas da migração segura, ordenada e regular, que veremos no capítulo 2 e com o qual o Brasil deixou de se comprometer. 6 Conforme crítica irônica de Mattos (2019) sobre as desigualdades produzidas pela acumulação capitalista e tomadas pelos liberais como consequência do livre funcionamento do mercado.
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A crescente restrição nos países centrais associada aos fluxos de investimentos de capital em países periféricos criaram a possibilidade, nos anos 2000, de impulsos temporários de desenvolvimento nessas regiões, como o Brasil, por exemplo, que se tornou rota de trânsito e de destino para imigrantes oriundos também de economias periféricas, se inserindo com maior intensidade nos fluxos Sul-Sul7. São muitas as situações migratórias na atualidade e cada vez mais países se veem afetados pelas dinâmicas de emigração e imigração. Diferentes categorias migratórias se encontram nas mesmas rotas: refugiados, deslocados ambientais, apátridas, imigrantes econômicos, muitos indocumentados8 e sujeitos a nichos de trabalho chamados de 3D: difficult, dirty, dangerous (difíceis, sujos, perigosos). Outras expressões da migração contemporânea têm adquirido importância nos estudos e políticas como os migrantes que transitam entre diferentes países e vivem nessa circularidade, tendo a mobilidade como condição de vida e trabalho, são os transmigrantes. A emigração de pessoas altamente qualificadas de países da periferia para o centro, o chamado braindrain, tem sido caracterizado como exemplo da mobilidade a serviço do capital, força de trabalho com menor custo e já formada. Alfredo (2018) explica que o marco desse fenômeno foi o contexto pós Segunda Guerra, mas se intensificou a partir da reestruturação produtiva. Políticas migratórias diferenciadas para atração dessa força de trabalho específica têm sido organizadas concomitante ao endurecimento e criminalização dos trabalhadores pouco qualificados e pobres. Há forte presença feminina no contingente migrante, estima-se9 que elas sejam cerca de 50% dos migrantes internacionais. Atendem à divisão sexual internacional do trabalho que atribui a mulheres migrantes, pobres, não brancas e, em muitos casos, indocumentadas, atividades domésticas ou relacionadas ao cuidado de idosos, crianças e de saúde, o que levou a estudos sobre global carechain, definido por Hochschild (2011) como uma série de ligações pessoais entre pessoas ao redor do mundo baseadas no trabalho pago ou não pago de cuidado (cuidadores que dependem de cuidadores para trabalhar), e caredrain, deslocamento de profissionais da área da saúde, especialmente da grande área da enfermagem (WIHTOL DE WENDEN, 2016). Importante mencionar a maior exposição das mulheres migrantes a violências, à prostituição e ao tráfico de pessoas. Entre o sonho e o pesadelo, a imigração representa uma expectativa de dignidade de trabalho e de condições de vida para homens e mulheres, trabalhadores superexplorados10 do sul global que enfrentam mares, muros, polícias em fronteiras terrestres, aeroportos e atravessadores, em busca desse objetivo. Aos
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Expressão usada em 2007 em relatório dos consultores do Banco Mundial, Dilip Ratha e William Shaw, sobre as remessas dos imigrantes entre países em desenvolvimento. O documento estimava que 74 milhões dos migrantes de países em desenvolvimento residem em outros países em desenvolvimento, que as situações indocumentadas são mais comuns nos países do sul global e que os custos das remessas são mais elevados nessa região, devido à fragilidade do sistema financeiro e taxas maiores. Segundo o ACNUR (2020), 85% dos refugiados do mundo estão em paises em desenvolvimento. 8 Migrantes não documentados ou indocumentados são pessoas que não possuem os documentos e as formalidades exigidas para sair do país de origem ou de residência, ingresso, trabalho e/ou permanência no país de destino (OIM, 2018, p. 10). A opção por esse termo reflete um posicionamento político ecoado por ativistas dos direitos humanos e por organizações de migrantes de que nenhum ser humano é irregular. 9 Disponível em: https://www.iom.int/global-migration-trends. Acesso em: 3 ago. 2020. 10 Consideramos aqui a categoria elaborada por de Rui Mauro Marini definida pelo aumento da intensidade do trabalho sem aumento de produtividade; aumento da mais valia absoluta, prolongando a jornada de trabalho; e redução do fundo de consumo do trabalhador além do seu limite. Esses elementos afetam a reposição do desgaste da força de trabalho do trabalhador nos países de economia dependente e rebaixam o valor da força de trabalho.
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que consumam a travessia 11 , o tratamento xenófobo e racista completa o circuito de expropriação, exploração e opressão. Medidas crescentemente agressivas frente a migrantes e refugiados são tomadas, dentre as quais se podem apontar o levantamento de barreiras físicas ao deslocamento através das fronteiras e mesmo no interior dos territórios nacionais. Tais barreiras serão (…) como dispositivos de política migratória, atuando tanto de forma a constranger deslocamentos quanto no reforço de imagens favorecedoras da xenofobia (PÓVOA NETO, 2008, p. 394).
São muitos os exemplos de retóricas racistas e xenófobas que se constituíram plataforma política de partidos de extrema direita em países do norte global. Como observa Lisboa (2020), alguns desses Estados investem na criminalização do imigrante e na atribuição a eles de toda responsabilidade pelas perdas sofridas pelos trabalhadores autóctones em relação as oportunidades e condições de trabalho. O imigrante como bode expiatório camufla a crescente desigualdade social e deterioração das relações trabalhistas em curso com a reestruturação produtiva. Itália, Reino Unido, Hungria, Austrália e EUA representam bem essa tendência que vem sendo absorvida com maior fôlego no Brasil desde 2016 e produziram as circunstâncias para a eleição em 2018 de um governo que se declara alinhado a dominação norte-americana e a interesses conservadores. Tais processos históricos devem ser compreendidos como culminância de processos tensos e contraditórios de construção de hegemonia que reformataram as democracias liberais na Europa e EUA numa perspectiva contrarreformista e de aprofundamento de medidas neoliberais, que se desenvolveram mundialmente com diferentes processualidades (DEMIER, 2017). No Brasil, constituiu um regime cada vez mais regressivo em relação a direitos sociais e impermeável à participação popular, o que forma o caldo político e social propício para criminalização, discriminação e militarização do atendimento aos novos fluxos de imigrantes no Brasil oriundos de países fronteiriços, África e Ásia.
3 Migração Internacional no Brasil Atualmente, segundo dados da Polícia Federal divulgados através do Portal de Imigração12, o Brasil tem cerca de 750 mil imigrantes, incluindo todas as condições migratórias previstas em lei, incluindo ainda os imigrantes vindos em períodos anteriores aos anos 2000. Esse número representa menos de 1% da população do país, mesmo com estatísticas subestimadas devido aos que entram de forma indocumentada e com a intensa imigração recente de haitianos e venezuelanos13, que causa de fato novas demandas, especialmente para os municípios de fronteira. Portanto, “somos um país de imigração modesta” (PÓVOA NETO, 2018). Se tomarmos os dados de 2019 da Divisão de População do Departamento de Economia e Assuntos Sociais das Nações Unidas (DESA), América Latina e Caribe recebem o menor número de 11
Segundo estimativa da OIM, em 2017, pelo menos 6.163 pessoas desapareceram durante a migração e, de acordo com o ACNUR, mais de 1,5 mil migrantes morreram durante os primeiros sete meses de 2018 ao tentar atravessar o Mar Mediterrâneo em direção à Europa. 12 Disponível em: https://portaldeimigracao.mj.gov.br Acesso em: 10 mar. 2020. 13 Em 2018, o Brasil registrou 61.681 solicitações de refúgio de venezuelanos (BRASIL, 2019).
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imigrantes internacionais do mundo e, na América Latina, a Argentina é apontada como destino mais procurado. Porém, essa migração, ainda que modesta, do ponto de vista da análise percentual no Brasil, movimenta enorme contingente de trabalhadores fora de seus locais de origem e concentrados em pequenos municípios fronteiriços ou em grandes centros urbanos com estrutura incipiente para acolhimento e integração. Como bem apresenta Villareal (2018), a América do Sul e o Caribe são produtores de emigração, o grande contingente de migrantes de origem nesses territórios vivem em sua maior parte fora de sua região, indo para EUA e países da Europa. No entanto, a partir da década de 1970 os deslocamentos intrarregionais cresceram na América Latina devido às restrições nos principais países de destino e ao custo alto do projeto migratório para tais países. A constituição dos blocos regionais e dos acordos bilaterais entre os países da América do Sul que envolvem acordos de livre circulação e de residência representam um elemento importante nessa migração regional, somados à preferência pelos países com melhores índices econômicos e possibilidade de oportunidades de trabalho, qualificado ou não. São ainda aspectos relevantes as situações de deslocamento forçado, especialmente da Venezuela que sofre há anos uma crise econômica por conta da queda do preço do petróleo, principal commodity do país, o que comprometeu sua política interna. O país sofre embargos financeiros das potências econômicas por causa da permanência quase isolada na América Latina de um posicionamento anti-imperialista. Esses fatores vêm causando uma longa instabilidade política, interna e externa e o deterioramento dramático das condições de vida de sua população, tornando os emigrantes venezuelanos o segundo maior grupo de deslocados forçados do mundo. Quatro milhões de venezuelanos deixaram o país até meados de 2019 (ACNUR,2020; OIM, 2020). As principais tendências migratórias no Brasil no século XXI têm sido: a recepção de migrantes internacionais, solicitantes de refúgio e brasileiros retornados; emigração de brasileiros para outros países, movimento que vem crescendo desde 2010, segundo o Ministério das Relações Exteriores estima-se que 2,5 milhões de brasileiros vivam fora do Brasil; país de trânsito de pessoas que desejam chegar a um terceiro estado de destino (BRASIL; OIM, 2018). O relatório de 2019 divulgado pelo Ministério da Justiça, referente aos dados de 2010 a 2018, indica significativa a chegada de imigrantes no país, especialmente composta por novos fluxos migratórios, caracterizados por pessoas originárias do hemisfério sul. Diferentemente das imigrações do final do século XIX e princípios do XX, em que os fluxos migratórios para o Brasil eram protagonizados por pessoas do norte global, basicamente por europeus, na atualidade são imigrantes do sul global que ocupam o ranking das primeiras nacionalidades no país. Destacamse os haitianos, principal nacionalidade no mercado de trabalho, os venezuelanos, fluxo migratório que cresceu de forma significativa a partir de 2016, além de outras nacionalidades tais como os senegaleses, bolivianos, colombianos e bengalis (CAVALCANTI; OLIVEIRA; MACEDO, 2019, p. 5).
No Brasil, a chegada de imigrantes do Haiti, de países da África e vizinhos latinos na primeira década dos anos 2000 mobilizaram reações políticas de xenofobia, racismo e criminalização desses, retratados como invasores e perigosos quando, naquele período, a presença de imigrantes europeus era maior no país (ALVES, 2019). Hoje, essas nacionalidades compõem um grupo significativo no Brasil.
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Em 2017, num contexto sócio-político caracterizado por forte polarização e inflamado por conta da crise política e da retórica anticorrupção que dominou o país, um ato autodenominado “Anti-imigração” ocupou uma das principais avenidas da cidade de São Paulo bradando contra a então recém-aprovada “Nova Lei da Migração”, os participantes acusavam os imigrantes de serem estupradores e bandidos, especialmente os de religião islâmica. Na mesma cidade, em 2019, um estabelecimento comercial conhecido como um espaço de apoio e ativismo pela causa dos refugiados foi atacado com bombas e gás de pimenta. Em maio de 2020, um imigrante congolês de 47 anos foi assassinado a facadas na Zona Leste de São Paulo, dois outros congoleses ficaram feridos e relataram que o agressor, ao atacá-los, afirmou que “os estrangeiros só queriam receber dinheiro do governo, enquanto os brasileiros estão sofrendo”14. Lembremos ainda do ocorrido em agosto de 2018 na cidade fronteiriça de Pacaraima, em Roraima, em que um crime atribuído a imigrantes venezuelanos motivou agressões e incêndios em barracas e abrigos em que se encontravam famílias venezuelanas, com pertences e documentos queimados. Acuados, muitos retornaram ao país de origem. Esses fatos demonstram que: Apesar de ter uma legislação reconhecidamente avançada em relação ao refúgio e uma recente lei de migração que substituiu a perspectiva da segurança nacional que fundamentava a legislação anterior, no Brasil nos últimos anos emergiram expressões de autoritarismo e conservadorismo latentes em sua constituição político-cultural e que encontrou na conjuntura internacional e na crise política e econômica interna terreno fértil para seu fortalecimento nas relações sociais cotidianas e nas propostas de reformas nas políticas sociais (PAIVA; DIAS, 2019, p. 2).
O Brasil é signatário de convenções internacionais que situam a imigração no âmbito dos direitos humanos e a Lei do Refúgio (Lei no 9.474/97) está situada nesse compromisso. Ainda assim, o país deixou de se comprometer com a Convenção da OIT de Proteção aos Trabalhadores Migrantes e Suas Famílias, de 1990. Nenhum dos países centrais com grandes fluxos imigratórios ratificaram essa convenção. Em 2017, foi a aprovada a Lei de Migração (Lei no 134450), chamada de nova Lei de Migração, que substituiu o Estatuto do Estrangeiro, legislação promulgada em 1980 no período da ditadura civil-militar com conteúdo baseado na segurança nacional e na proteção do trabalhador nacional, consolidando a perspectiva inaugurada com a ascensão de Vargas ao poder em 1930, que definia oposição entre trabalhadores nacionais e estrangeiros e acionava diversos dispositivos de controle, ameaça, vigilância e deportação aos imigrantes, especialmente os vinculados a organizações políticas de trabalhadores. Uma observação importante se refere à Lei nº 6.964/81, que introduziu mudanças no Estatuto do Estrangeiro, dentre elas a possibilidade de concessão de anistia a indocumentados, ou seja, uma possibilidade de regularização migratória, ainda que provisória15, aos imigrantes que entraram no país sem documentação ou permissão oficial e aos que entraram regularmente, mas permaneceram após o prazo permitido. Sob a vigência do Estatuto do Estrangeiro, foram quatro anistias migratórias, em 1981, 1988, 1998 e 2009.
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Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/05/19/angolano-morre-esfaqueado-na-zona-leste-de-sp-e2-ficam-feridos-imigrantes-deixam-suas-casas-em-itaquera-por-medo-de-xenofobia.ghtml Acesso em: 24 maio 2020. 15 A autorização tem duração de 2 anos.
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As anistias se tornaram uma alternativa pontual ao perfil excludente e seletivo da política migratória que só era permeável a trabalhadores qualificados que atendessem os interesses do capital nacional e transnacional. A constituição histórica de um circuito legalizado para os profissionais altamente qualificados e explicitamente desejados pelas empresas e outro para indocumentado cujas condições legais atribuíam uma condição criminalizante e de exposição a trabalhos mal remunerados e degradantes não se excluem no mercado de trabalho, ambos respondem a demandas de setores econômicos específicos. Na primeira anistia migratória em 1981 foram contemplados 39 mil imigrantes, dentre eles um significativo contingente de coreanos e bolivianos trabalhadores do setor têxtil em São Paulo (BRASIL; OIM, 2018; VILLEN, 2018). A política migratória pode funcionar como “reguladora” da provisoriedade e da condição indocumentada que, por sua vez, pode contribuir para violações não só no trabalho. As anistias permaneceram como um dispositivo da política migratória mesmo após a mudança do paradigma legal para a nova Lei da Migração. Ainda assim, muitos imigrantes não conseguem se beneficiar, seja pela dificuldade de providenciar a documentação exigida ou por não ter dinheiro para pagar os procedimentos. Em 2017, mesmo ano de aprovação do novo marco legal, um Projeto de Lei16 propôs anistia que contemplasse os indocumentados até a data da aprovação da nova lei. No final de 2019, a portaria conjunta dos Ministérios da Justiça e Segurança Pública (MJSP) e das Relações Exteriores (MRE), de no 10, de 05/12, abriu possibilidade de senegaleses no Brasil que aguardam resposta de pedido de refúgio solicitarem autorização de residência por dois anos. Segundo dados do Comitê Nacional para Refugiados17, existiam aproximadamente 8.000 pedidos de nacionais oriundos do Senegal interessados em serem reconhecidos como refugiados, em 17 anos apenas 15 solicitações foram deferidas, os senegaleses são considerados imigrantes econômicos. A mobilização pela aprovação da nova Lei de Migração foi longa e contou com muitos sujeitos coletivos organizados em associações, movimentos sociais, acadêmicos e pesquisadores, organizações não governamentais, coletivos de imigrantes e refugiados e de emigrantes brasileiros que reivindicavam proteção legal por parte do Estado brasileiro. Desde os anos 90, a preocupação com os direitos humanos na política migratória ganhou vulto, a Lei do Refúgio é um dos desdobramentos dessa luta. O contexto dos anos 2000 com a eleição de governos progressistas que apontavam para tendências à esquerda na América Latina contribuiu para o envolvimento de setores governamentais na mudança da legislação migratória no Brasil para os imigrantes não contemplados no ordenamento jurídico do refúgio e para a construção de acordos regionais no âmbito do Mercado Comum do Sul, o Mercosul. Cabe aqui uma breve consideração sobre as categorias migratórias de refugiado e migrante. É recorrente as aproximações sobre o tema a partir da diferenciação entre migrações forçadas (ou involuntárias) e migrações voluntárias. A primeira se caracteriza pela fuga de guerras e perseguições de diferentes ordens, pelas graves violações dos direitos humanos e pelo fundado temor de perseguição, definindo as bases do refúgio. A segunda é comumente relacionada a busca por melhores condições de vida, o que para o grande contingente populacional do planeta significa busca por melhores oportunidades de trabalho, seriam os imigrantes econômicos. Batista e Parreira (2013) explicam que as duas categorias são protegidas por instrumentos jurídicos internacionais de Direitos Humanos, para os refugiados a proteção está expressa em documentos internacionais específicos que se desdobram em legislações diversas nos países, os imigrantes econômicos têm amparo em tratados e resoluções da ONU. 16
A anistia estava proposta no texto da Nova Lei, foi um dos vetos presidenciais. 17 Disponíveis em: www.justiça.gov.br. Acesso em: 19 dez. 2019.
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O processo dinâmico das migrações por vezes acaba ofuscado pelas categorias e status migratórios, especialmente o de refugiado e imigrante econômico. É importante não perdermos de vista que o ato de migrar não é necessariamente uma ação individual, quando um indivíduo migra coloca em movimento uma estratégia que representa uma coletividade, seja por questões de ameaça à sua vida ou por sua sobrevivência econômica. As consequências dessa mobilidade também reúnem um conjunto de interesses e instituições. Tendo as categorias migratórias uma relação direta com a necessidade de intervenção política sobre a migração, especialmente a internacional, os processos acionados de classificação dos migrantes que se desdobram em acesso a direitos para alguns e obstrução para outros, nem sempre revelam a complexidade envolvida nos deslocamentos. A situação dos venezuelanos é um bom exemplo disso, desde 2015 eles buscam o Brasil e desde então já foram considerados imigrantes econômicos e refugiados. Basso (2020), ao analisar o crescimento exponencial das migrações internacionais para a Europa, avalia que as causas para os deslocamentos são estruturais e de longo prazo. De imediato, são as guerras e conflitos que causam colapso na segurança dos civis, na estrutura urbana e nas atividades produtivas restando a fuga ou a morte. Porém, a intensificação das desigualdades regionais e alianças destrutivas entre países centrais e periféricos têm provocado, há longos anos, níveis de pobreza que afetam a sobrevivência das pessoas. O fluxo dos refugiados então se une ao fluxo histórico da imigração econômica. Para o autor, essa oposição, que na capilaridade das políticas sociais e ações de atendimento pode se transformar em disputa, em última instância, tem um elemento comum, a agressiva expansão do capital global. As emigrações sejam causadas por fatores econômicos, políticos, militares, culturais ou mesmo por uma mistura desses fatores, são sempre emigrações forçadas. Ninguém deixa "voluntariamente", alegremente, seu lugar de nascimento. Por isso, prefiro falar de emigrantes e não migrantes, para destacar, sobretudo, que se provém não de lado nenhum, mas de um preciso contexto sociocultural e nacional, e em segundo lugar que, se o deixei, é porque me vi forçado a deixá-lo. Ainda que tenha se tornado de uso corrente falar de migrantes, concordo com A. Sayad em dizer que os humanos não são jamais migrantes (como os pássaros), mas sim sempre emigrantes e imigrantes, posto que os emigrantes, qualquer que seja a consciência que tenham, depois de haverem sido desgarrados de sua própria terra de origem, buscam um novo lugar no qual radicarem-se (BASSO, 2020).
Tomar criticamente as categorias migratórias significa entendê-las como construção necessária em determinados períodos da nossa história. Refugiado e imigrante econômico são classificações que garantem inclusão ou exclusão a um conjunto de direitos e proteção social e são ao mesmo tempo condutos para o reconhecimento e interpretação da migração. A Lei do Refúgio no Brasil reconhece como refugiado: […] todo indivíduo que: I - devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país; II - não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior; III - devido à grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país (BRASIL, 1997).
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Em 2018, o Brasil recebeu 80.057 solicitações de refúgio de 84 países, 61.681 (77% do total) foram de venezuelanos. Foram deferidos, ou seja, reconhecidos como refugiados 777 pessoas, desses 476 eram sírios. No mesmo ano foram concedidas extensão da condição de refugiado para 309 pessoas, dessas 134 eram da República Democrática do Congo, ou seja, do total de reconhecimentos da condição de refugiado, sírios e congoleses foram as principais nacionalidades. Desse total 34% eram mulheres (BRASIL, 2019). Alguns fluxos pressionam e tensionam as respostas migratórias no Brasil, especialmente sobre a caracterização de refugiados e imigrantes econômicos. Foi assim com os haitianos, principal nacionalidade na recente migração no Brasil, segundo o Ministério da Justiça e Segurança Pública (BRASIL, 2019). Muitos elementos estão envolvidos na vinda de haitianos para o Brasil, o terremoto em 2010 aparece como motivação determinante principalmente na grande mídia, mas pesquisadores têm mostrado outros importantes elementos explicativos como a restrição e coerção nos destinos historicamente acessados por eles, como República Dominicana e EUA e a influência da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti – Minustah – coordenada pelo Brasil no território haitiano (FERNANDES, 2015; SEGUY, 2016). No caso dos haitianos foi usado um dispositivo legal de concessão de vistos de permanência humanitários e vistos de permanência. No caso dos venezuelanos, em 2018, foram concedidas autorizações de residência. Com o aumento do fluxo e as crescentes tensões, especialmente na fronteira em Roraima, com significativo aumento de demanda para os serviços sociais, conflitos envolvendo a população local, situações de deportação e pressão para fechamento da fronteira foram reconhecidos de uma só vez, em 2019, mais de 20.000 solicitações de refúgio de venezuelanos, segundo o Ministério da Justiça18, e até meados de 2020 foram 37 mil reconhecimentos da condição de refugiado. Sobre a nova Lei de Migração, o percurso desde o debate até sua promulgação e implementação tem sido permeado de contradições. No mesmo período em que se intensificam os fluxos migratórios para o Brasil, já com novas configurações, e que a articulação social em torno da mudança na legislação migratória na direção de alinhamento aos direitos humanos se fortalece, alteram-se as direções política e econômicas na América Latina e particularmente no Brasil. O impeachment de Dilma Rousseff e o impacto da crise mundial nas condições de vida dos trabalhadores marcaram a reemergência de discursos e práticas conservadoras e violentas que persistem na sociedade brasileira e que encontraram na conjuntura de aprofundamento neoliberal circunstâncias propícias para seu incremento. A nova Lei de Migração foi sancionada por Michel Temer e sofreu 20 vetos, mas ainda assim tem sido celebrada como um importante avanço. A regulamentação da Lei é longa e polêmica, pois recupera aspectos muito próximos da legislação anterior como, por exemplo, a possibilidade de criminalização devido à condição migratória (CINTRA, 2020; CINCO…, 2019). Os avanços mais destacados na nova Lei de Migração são: a adoção da perspectiva de direitos humanos e a adoção da nomenclatura imigrante em substituição a estrangeiro (termo com forte conteúdo excludente); garantia de acesso às políticas públicas; possibilidade de reunião organizativa; previsão de ajuda humanitária; contempla os migrantes internacionais residentes no Brasil, os visitantes, os residentes fronteiriços e os apátridas, e inclui brasileiros que vivem no exterior (BRASIL; OIM, 2018, CINCO…, 2019). 18
Disponível em: https://www.novo.justica.gov.br/news/conare-estende-condicao-de-refugiados-a-mais-de-700-criancas-eadolescentes-venezuelanos Acesso em: 22 maio 2020.
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Migração Internacional no Brasil: persistências históricas e tendências contemporâneas Áurea Cristina Santos Dias
A inflexão no trato da migração internacional no Brasil se consolida no governo de Jair Bolsonaro, iniciado em 2019, com movimentos similares em outros países latinos. Além do reconhecido alinhamento e admiração aos EUA e sua política migratória securitária e violenta, medidas do governo brasileiro têm explicitado o recurso à lógica da segurança nacional, são algumas delas: o ataque aos médicos cubanos que resultou na retirada desses profissionais por seu país por considerarem que os mesmos estavam em risco no Brasil e foram profundamente atingidos em sua dignidade; o incremento da ação militarizada nas fronteiras e expansão do Programa Operação Acolhida com atuação interiorizada em diversos estados do país; a retirada do Brasil do Pacto Global para uma Migração Segura, Ordenada e Regular das Nações Unidas sob alegação de defesa dos interesses e soberania nacional; a Portaria n. 666 defendida e editada (e posteriormente revogada) pelo então ministro da justiça Sérgio Moro que, além de reatualizar a categoria de pessoas perigosas, previa a deportação sumária de imigrantes. O Pacto Global para Migração Segura, Ordenada e Regular proposto pela ONU e assinado pelo governo Temer, representa um compromisso político internacional com a perspectiva de proteção aos migrantes, sem implicar qualquer obrigatoriedade de implementação de ações específicas. Ao se desvincular formalmente do Pacto, o governo brasileiro justificou-se com o zelo pela soberania e segurança nacional, argumentando cuidado com o perfil dos imigrantes que entram no país. Essa preocupação com o controle da entrada e saída está presente na organização pelo Governo Federal da recepção aos venezuelanos na fronteira norte do Brasil. A Operação Acolhida, criada em 2018 é coordenada pelo Ministério da Defesa19 em conjunto com outros órgãos públicos federais, estaduais e municipais e com organizações na sociedade civil local e internacional. Além da recepção na fronteira e abrigamento, o Programa tem investido na interiorização dos imigrantes, mediando a distribuição dos venezuelanos em diferentes estados do território nacional. Uma questão importante sobre a política migratória no Brasil, considerando tanto as normativas para os refugiados quanto para os demais imigrantes, é a capilaridade no território nacional, visto que são garantidos os princípios da igualdade e não discriminação e o acesso aos direitos fundamentais. As políticas de seguridade social têm como princípio desde a constituição de 1988 a descentralização e, portanto, devem se materializar e operacionalizar em ações conjuntas e organizadas entre União, Estado e Municípios. No caso de atendimento aos imigrantes, o mais comum é que os atendimentos sejam realizados em situações emergenciais nas localidades, como violências, situação de rua ou ações coercitivas em relação ao trabalho ambulante. Na pesquisa de informações básicas sobre os municípios de 2018, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE – identificou a presença de imigrantes em 69% dos municípios brasileiros, desses 5,5% ou 215 têm serviços especializados de atendimento a esse público.
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Recentemente foi noticiado a possibilidade de ampliação do orçamento para este ministério em 2021 em aproximadamente 50%. Mesmo que não ocorra essa expansão de recursos só a consideração dessa hipótese denota a importância estratégica crescente da área de segurança e defesa. Disponível em: https://www.poder360.com.br/economia/defesa-deve-ter-maisdinheiro-do-que-a-educacao-em-2021-diz-jornal/ Acesso em: 17 ago. 2020.
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Migração Internacional no Brasil: persistências históricas e tendências contemporâneas Áurea Cristina Santos Dias
Gráfico 1. Cidades brasileiras com mais registros de imigrantes
Fonte: Polícia Federal apud Delfim (2019)
Os serviços de abrigamento identificados se concentram nas cidades de fronteira ou próximas delas, mas os dados sobre o número de imigrantes nas cidades sugerem que há movimentação para diferentes regiões do país. A cidade de São Paulo é a que concentra maior número de imigrantes e é também o município que tem uma Política Municipal de Atendimento a Imigrantes com serviços governamentais e não governamentais (DELFIM, 2019). No geral, é a atuação das organizações não governamentais que tem tido fundamental relevância no atendimento aos imigrantes no Brasil. As conquistas na política migratória não nos devem causar distrações, como alerta Cintra (2020) que destaca as crescentes disputas e tensões que acompanham o avanço quantitativo das migrações internacionais nos últimos anos. Um exemplo disso é a Portaria n. 666, editada em 2019, que reatualizava questões como periculosidade do estrangeiro e interesse nacional para justificar a expulsão sumária do país com prazo de 48 h para recursos, que mesmo revogada deixou evidente o cenário de criminalização da migração internacional no Brasil (QUINTANILHA, 2019). O tratamento aos médicos cubanos no Brasil explicitou que embora os imigrantes qualificados acessem formas mais permeáveis de entrada, outros elementos20 definem a recepção no Brasil, um deles o racismo. Imigrantes haitianos, de países africanos e descendentes indígenas denunciam o que constitui uma das marcas históricas da formação social brasileira, a racialização e a hierarquização das relações sociais de modo a desumanizar e subalternizar os não brancos. 20
Embora o Programa Mais Médicos de que os cubanos faziam parte incluísse outras nacionalidades, os cubanos, muitos negros, foram alvo prioritário de ofensas raciais e descrédito quanto à competência profissional. Villen (2018a) chama atenção para um complexo ataque anticomunista, xenófobo, racista e sexista (visto que grande parte do grupo era composto por mulheres negras) a esses profissionais.
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Ao considerar os trabalhadores imigrantes como “discriminados, mas não resignados”, Antunes (2018) nos recorda que os caminhos trilhados são construídos conforme as circunstâncias objetivas colocadas para o trabalhador. À medida que as relações capitalistas de produção e reprodução se expandem e incorporam novas regiões e áreas da vida social, a complexidade da composição da classe trabalhadora se intensifica. A diversidade de gênero, orientação sexual, raça/etnia, geração, região, nacionalidade e/ou qualificação é capturada e estimulada como desigualdade, possibilitando ao capital maior exploração de determinados trabalhadores. Nesse sentido, a articulação dos coletivos de imigrantes com as lutas dos trabalhadores brasileiros pode fortalecer a articulação e a construção de perspectivas políticas menos excludentes, até porque, como alerta Basso (2018), as condições a que estão submetidos os trabalhadores imigrantes se misturam ou prenunciam a dos demais trabalhadores.
4 Considerações finais Nossa preocupação neste artigo foi apresentar uma síntese das principais tendências das migrações internacionais contemporâneas no mundo e as particularidades no Brasil, que se inseriu na rota dos novos fluxos imigratórios desde os anos 2000. Para a compreensão da migração internacional no Brasil, sua dinâmica e as ações políticas de atendimento, é importante considerarmos os processos mundiais de expansão do capital que se relacionam dialeticamente com as condições de vida e com as lutas e resistências travadas pelos trabalhadores e trabalhadoras do mundo. O agravamento das desigualdades internas e externas é uma das consequências desse novo momento da economia mundial que gera expulsões de grandes contingentes da força de trabalho, destituindo-os definitivamente de um modo de produção de vida. A complexidade e brutalidade desses mecanismos de expulsão atingem, para Sassen (2016), uma escala jamais vista antes na sociedade capitalista e se expressam na generalização da pobreza em todo mundo, na expulsão dos pequenos agricultores, especialmente nos países pobres, em decorrência da especulação e da ação ambiental degradante, no aumento do encarceramento e nos deslocamentos de grandes contingentes de homens e mulheres que tendem a jamais retornar a seu local de origem. A retração econômica e a expansão de ações xenófobas e racistas evidenciaram, principalmente por parte dos países centrais, a adoção de políticas cada vez mais baseadas na soberania e na segurança nacional e menos na proteção social, ou melhor dizendo, propondo outra forma de lidar com os mecanismos de proteção. A “guerra ao terror” dinamizada a partir dos eventos de setembro de 2001 e os diferentes conflitos armados pulverizados nos continentes se tornaram justificativa para a organização de medidas restritivas, desestimuladoras e punitivas aos migrantes. São expressões da dinâmica imigratória atual: o aumento de migrações para países do Sul Global, inclusive com solicitação de refúgio; colaboração entre os países no debate e organização das políticas para imigração com forte tendência repressiva aos imigrantes; surgimento de diferentes categorias migratórias; crescente número de mulheres imigrantes; organização de uma governança migratória transnacional com forte participação de agências da ONU. Ao mesmo tempo em que se acelera o volume das migrações e o aparato coercitivo, se constitui uma indústria da migração com diversos atores envolvidos. A migração tomada no âmbito das organizações transnacionais se constituiu alvo de normatização e de ações sob a retórica do consenso entre as nações. Essa atuação expressa as relações econômicas, políticas e jurídicas do sistema interestatal e, no contexto de crise do capital em que a intensificação das migrações, em todas as suas modalidades e status, se torna um fenômeno social dramático, uma rede de
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governança internacional migratória fomentada especialmente por agências da ONU, mas não só por elas, se destaca. As realidades regionais recebem tais orientações, mas não deixam de considerar elementos de sua própria história econômica e política na construção de suas respostas à questão migratória. A ação política de Estados se valendo do discurso de “interesses nacionais” ou “segurança do país” dinamiza os instrumentos de poder já existentes e mobilizam novos. No Brasil, o contexto político aponta para uma redução do espaço democrático e para reformas regressivas nos direitos sociais. É nesse contexto em que foi aprovada e regulamentada a nova Lei de Migração, um aparato político-jurídico inovador numa realidade nacional que reforça cada vez mais os aspectos seletivos da migração atrelados à restrição de direitos e à securitização que reforça a preocupação com a soberania nacional e a ação policial e militar na questão migratória. Se por um lado a imigração se apresenta hoje no Brasil com características inovadoras como as referências político-jurídicas e o perfil dos imigrantes, por outro, a presença dos imigrantes, especialmente os de origem periféricas, negros e indígenas, manifestam persistências histórias do passado. Os imigrantes, especialmente os fronteiriços e os não brancos advindos de países também periféricos em busca de proteção emergencial e trabalho, se deparam com a realidade de um mercado de trabalho restrito e uma ofensiva ininterrupta de contrarreforma neoliberal aos direitos de proteção social, além dos componentes históricos do racismo denunciados pelos próprios imigrantes, colocando em xeque o mito do país acolhedor. Assim como em outras regiões do mundo, no Brasil o aparato do Estado no trato das migrações internacionais tende para o distanciamento dos compromissos de proteção com base no sistema internacional de direitos humanos, ainda que tenhamos avançado nas referências legais. A persistência de mecanismos de controle, discriminação, manutenção de provisoriedade através da excepcionalidade das ações regulatórias e criminalização constrói práticas que contribuem para a violação dos direitos dos imigrantes e os coloca em oposição aos trabalhadores brasileiros.
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Submetido em: 24 ago. 2020 Aceito em: 19 out. 2020
DOI: 10.19180/1809-2667.v22nEspecial2020p871-888
Mulas e Mulheres no Brasil: uma questão de gênero, justiça e interseccionalidade* Mules and Women in Brazil: a question of gender, justice and intersectionality Mulas y mujeres en Brasil: una cuestión de género, justicia e interseccionalidad Joana das Flores Duarte https://orcid.org/0000-0001-7175-756X Doutora (2016-2019) pelo Programa de Pós-graduação em Serviço Social da PUC/RS. Professora do Curso de Serviço Social da Universidade Federal de São Paulo Campus Baixada Santista – Santos/SP – Brasil. E-mail: joana.fduarte@yahoo.com.br.
Resumo Mulas e mulheres na história do Brasil: uma questão de gênero, justiça e interseccionalidade têm por objetivo mostrar como a associação da mulher que atua como mula no mercado de drogas não é uma questão do acaso. Resultado de uma pesquisa bibliográfica com teses e dissertações produzidas na última década (2006-2016) sobre mulheres presas pelo crime de tráfico de drogas nas cinco regiões do país, obteve-se, enquanto um dos resultados, o aprisionamento de grande parte dessas mulheres como trabalhadoras do mercado informal e ilícito de drogas na condição laboral de mulas. Destaca-se a relação intrínseca entre modo de produção capitalista e sistema de justiça, em que esse último não só assegura o direito privado à propriedade, bem como cria mecanismos seletivos e criminalizatórios dirigidos aos segmentos mais pobres e destituídos de direitos na sociedade, esse também composto por mulheres. Tudo isso tem sido determinante para a manutenção do caráter seletivo do sistema de justiça e penal no Brasil, cujos fundamentos filosóficos manifestam-se numa ação permanente, determinando o aprisionamento de pessoas a partir de sua condição de classe, raça, gênero e perpetrada violação do direito à cidadania. Palavras-chave: Mulheres. Justiça. Mercado de Drogas. Mulas. Interseccionalidade.
Abstract The paper aims to show how the association of women who act as mules in the drug market is not a matter of chance. It follows a literature review of theses and dissertations produced in the last decade (2006-2016) on women arrested for the crime of drug trafficking in the five regions of the country. One of the results obtained in the study was the imprisonment of most of these women as workers in the informal and illicit drug market working as mules. The intrinsic relationship between the capitalist mode of production and the justice system is noteworthy, in which the latter not only ensures the private right to property, but also creates selective and criminalizing mechanisms aimed at the poorest and deprived of rights segments in society, also consisting of women. All of this has been decisive for maintaining the selective character of the justice and penal system in Brazil, where philosophical foundations are continuously manifested, determining the imprisonment of people based on their condition of class, race, gender and the maintenance of violations of the right to citizenship. Keywords: Women. Justice. Drug Market. Drug Mules. Intersectionality.
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Resumen
Mulas y mujeres en la historia de Brasil: una cuestión de género, justicia e interseccionalidad pretende mostrar cómo la asociación de mujeres que actúan como mulas en el mercado de la droga no es una opción, pero la falta de ella. Como resultado de una investigación bibliográfica con tesis y disertaciones producidas en la última década (2006-2016) sobre mujeres detenidas por el delito de narcotráfico en las cinco regiones del país, uno de los resultados obtenidos fue el encarcelamiento de la mayoría de estas mujeres como trabajadores del mercado informal e ilícito de drogas que trabajan como mulas. Se destaca la relación intrínseca entre el modo de producción capitalista y el sistema de justicia, en el cual este último no solo asegura el derecho privado a la propiedad, sino que también crea mecanismos selectivos y criminalizadores dirigidos a los más pobres y privados de derechos en la sociedad, este también compuesto por mujeres. Todo esto ha sido fundamental para mantener el carácter selectivo del sistema judicial y penal en Brasil, cuyos fundamentos filosóficos se manifiestan en la acción permanente, determinando el encarcelamiento de personas en función de su condición de clase, raza, género y violación perpetrada al derecho a la ciudadanía. Palabras clave: Mujer. Justicia. Mercado de drogas. Mulas. Interseccionalidad.
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Mulas e Mulheres no Brasil: uma questão de gênero, justiça e interseccionalidade Joana das Flores Duarte
1 Introdução A mula foi a principal forma de transporte no período colonial. No caso brasileiro, vários tipos de animais, destinados a variadas funções, eram trazidos das pradarias do Rio Grande do Sul. Principalmente as mulas foram a força motriz do sistema de transporte para o escoamento da produção interna de várias regiões e períodos no Brasil: o ouro das Minas Gerais, o açúcar e o café de São Paulo e do Rio de Janeiro (Luiz Adriano Borges). Quando saímos da prisão e não queremos mais nos envolver no tráfico somos chamadas de 'buceta'. Se você parar vai ter crítica, você favorece e enche o bolso deles, por isso eles não querem que você saia. Quando você sai, você não vale nada (L.) (Hanna Zuquim Aidar Prado)
Mulas e mulheres na história do Brasil: uma questão de gênero, justiça e interseccionalidade têm por objetivo mostrar como a associação da mulher que atua como mula no mercado de drogas não é uma questão do acaso. Resultado de uma pesquisa bibliográfica com teses e dissertações produzidas na última década (2006-2016) sobre mulheres presas na tipificação penal prevista na Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, nas cinco regiões do país, obteve-se, enquanto um dos resultados, o aprisionamento de grande parte dessas mulheres como trabalhadoras do mercado informal e ilícito de drogas na condição laboral de mulas. Mas, antes de abordarmos especificamente a situação das mulheres presas na condição de mulas, cabe, todavia, resgatar na formação social e histórica brasileira o papel central que teve a mula animal nas relações comerciais. A mula foi o animal indispensável durante o processo de colonização no Brasil, período sem estradas e ferrovias. O carregamento de ouro, por exemplo, foi em boa parte feito por esse animal. Luiz Adriano Borges, em artigo intitulado “Mulas em movimento: o mercado interno brasileiro e o negócio de tropas, primeira metade do século XIX”, aborda a importância da mula no desenvolvimento da colônia, bem como os lucros em torno do “negócio de muares brasileiro e como este se desenvolveu em ligação com as regiões da América Espanhola” (BORGES, 2016, p. 207). Entre as características atribuídas à mula, além da força física, expressa na capacidade de andar por horas e com baixo gasto de energia, os donos de mulas alegavam que se tratava de um bicho obediente, passivo, dócil e que aceitava o comando com maior facilidade. Alegavam que, por ser fêmea e oriunda do cruzamento do asno macho com a égua, era mais inferior que outros animais das espécies que provêm (equinos e asininos). A mula foi considerada, segundo Borges (2016), o animal visto como o mais adaptado ao transporte de cargas, tendo sido muito utilizado até meados do século 20, principalmente em locais de topografia acidentada. Outra questão era a resistência às enfermidades, as mulas adoeciam pouco e, de modo geral, eram longevas. O mercado de muares ultrapassou as fronteiras coloniais. A mula cumpria dupla função nesse negócio, pois era bicho de valor por ser o principal meio de transporte, sobretudo em áreas de extração mineral e, ao mesmo tempo, carregava matéria-prima para exportação. Com esses carregamentos, estradas e ligações inter-regionais foram sendo criadas no país, além das fronteiriças, em especial no Rio Grande do Sul com o Uruguai (BORGES, 2016). Podemos dizer que a
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mula durante e depois da colonização, até meados do século XX, teve papel central na abertura de rotas de comercialização, exportação e exploração de recursos naturais no país, gerando uma dinâmica de mercado interno e externo. Situando brevemente a importância das mulas no carregamento de mercadorias, podemos pensar na correlação com as mulas mulheres na contemporaneidade no mercado de drogas. Das 12 produções analisadas, em oito1 delas o termo mula apareceu. Na tese de Ludmila Carneiro (2015) e nas dissertações de Luciana de Souza Ramos (2012) e Carla Serqueira Lima (2016) foram dadas maior ênfase ao trabalho das mulheres na atividade de mula. As demais citaram de forma mais pontual o que seria uma mula do tráfico. Nessa esteira importa destacar a relação intrínseca entre modo de produção capitalista e sistema de justiça na formação social e espacial brasileira, em que o ordenamento jurídico não só assegurou o direito privado à propriedade, bem como criou mecanismos seletivos e criminalizatórios dirigidos aos segmentos mais pobres e destituídos de direitos e cidadania na sociedade, entre eles as mulheres. O artigo em tela busca mostrar o caráter seletivo do sistema de justiça e penal, cujos fundamentos filosóficos manifestam-se numa ação permanente, determinando o aprisionamento de pessoas a partir de sua condição de classe, raça e gênero. Tomando como ponto de referência as formulações marxianas e a criminologia crítica, afirma-se que uma mulher na ocupação laboral de mula não poder ser uma traficante, tampouco responder pelo crime de tráfico, visto que sua atuação não corresponde ao domínio dos meios de produção no mercado de drogas, mas sim de trabalhadora informal, logo, o seu aprisionamento responde somente à ação penal e criminalizatória pela condição ilícita de sua atividade.
2 Mulas, Mulheres e Mercados de Drogas: o corpo é capital global Sobre o favorecimento do crime na extração de lucros, Marx (2017) segue atualíssimo, pois, na sua avaliação, essa foi uma forma estratégica de acobertar os grandes crimes e ao mesmo tempo lucrar com os/as despossuídos/as, tanto no trabalho forçado com sanção penal, quanto no pagamento de multas aos proprietários de madeira via Estado. Essa relação é análoga ao caso dos grandes bancos que lavam dinheiro do tráfico, e diante do seu poder de lucros sobre esse mercado, detém o poder político de parar uma investigação pública e seguirem lucrando. Ao mesmo tempo, pelo crime de tráfico, são presas mulheres que carregam drogas em seus corpos, boa parte introduzida na região genital e outro tanto ingerida em forma de cápsulas, o que explica o lugar desumanizado em que estão atuando. Ser mula, segundo as oito produções analisadas que abordam esse conceito, é ser uma mulher que não chame a atenção da polícia, não tenha perfil de “traficante”, seja honesta e não crie problemas. Por isso ser mula, hoje, no mercado de drogas, segundo essas produções, é como ser a mula do passado colonial, carrega mercadorias e apenas faz a rota mandada. As mulheres atuantes como mulas, de modo geral, transportam drogas para seus companheiros, filhos, netos e maridos presos, tendo de ingressar com a droga no dia de visitas, ou fazem-na em condição de mochileiras, levando de um estado/país para outro. Tipificado como “trafico” de pequena escala: “já que só é possível manejar a quantidade de drogas que se invisibilize grudada ao corpo ou em seu interior, seja nas cavidades vaginais ou anais. A introdução por meio da ingestão, neste caso, não é possível porque não há horas suficientes para a droga ser expelida.” (CARNEIRO, 2015, p. 180). 1
(CARNEIRO, 2015); (HELPES, 2014); (MOREIRA, 2012); (SERQUEIRA LIMA, 2016); (RAMOS, 2012); (FEITOSA LIMA, 2016); (BIELLA, 2007); e (CHERNICHARO, 2014).
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O primeiro caso é o que mais aparece nessas produções, porque são presas em flagrante durante a revista íntima e, conforme apontam as autoras, em alguns casos são usadas para que um carregamento maior entre enquanto elas são detidas. Estamos falando de mulas-iscas que, por vezes, são contratadas justamente para serem presas, sem que as mesmas saibam. Em média, essas mulheres ganham entre 600 e 2 mil reais para atuarem como mulas. Os preços mais baixos são justamente os que implicam maior risco, no caso, o de tentar ingressar no sistema prisional. Outra questão importante é o número de mulheres mais velhas nessa atuação, tanto pelo fato de “chamarem menos a atenção”, bem como por estarem também em condições mais degradantes de acesso ao trabalho formal. Na investigação de Hannah Prado (2016, p. 117) fica evidente como essas mulheres são mal remuneradas, visto que o valor da droga intramuros prisional chega a valer quase 11,6% a mais que no mercado extramuros. M. ganhava R$ 600,00 para levar 50 gramas de droga (maconha) para seu namorado que vendia dentro da prisão por mais de 10 vezes o preço de compra da droga (R$ 7.000,00). Isto acontece, pois, o valor das drogas no interior do presídio é muito alta, por conta da dificuldade de entrar neste espaço. Ela explica que gostava do risco que corria e começou por vontade própria, mas relata que foi também por conta da pressão de amigos do namorado, que a coagiam dizendo que uma mulher deve ‘fortalecer seu homem’ que está preso, ou seja: levar drogas se arriscando do ponto de vista de sua saúde, segurança e recebendo pouco por isto. (PRADO, 2016, p. 117).
Quanto à motivação dessas pesquisas, todas atentaram como questão o aumento de mulheres presas nos últimos anos e os poucos estudos sobre o tema. Buscam, em parte, responder o porquê do ingresso, algumas delas alegando a questão afetiva, outras afirmando autonomia, outras colocando de forma dual a relação entre vitimização e punição, em que interrogam se as mulheres são vítimas ou protagonistas. Nesse aspecto, há uma falta de compreensão quanto às redes de afetos e sobrevivência que constituem a realidade de homens e mulheres pobres. No caso dos homens traficantes, tem-se a ideia concebida de que a mulher ora é cúmplice e passiva, ora é atuante. Se ela está situada no discurso de passiva, está mais propensa a ser vítima das estruturas machistas, se está mais ativa e exerce liderança, está em certa medida rompendo com esse “papel” tradicional de sexo/gênero. São análises limitadas do ponto de vista da materialidade social e reduzem a crítica feita à construção social de sexo/gênero, porque entendem que as opressões não estão organicamente vinculadas às estruturas sociais, mas sim a partir das relações que são ou não estabelecidas entre pessoas mais passíveis às ações de criminalização. Pensar por essa via é criar uma imagem fixada de que toda relação afetiva entre pessoas envolvidas no mercado de drogas, em especial no caso de mulheres que são “apenas mulheres” de traficantes é, por “natureza”, violenta e desigual, enquanto que as não casadas e atuantes no mercado de drogas estariam em processo de “empoderamento”. Como demonstração de que essa análise é equivocada, boa parte das mulheres que foram presas na condição de mulas entrevistadas nas 12 produções eram solteiras. Nota-se, portanto, que: A discriminação interseccional é particularmente difícil de ser identificada em contextos onde forças econômicas, culturais, e sociais silenciosamente moldam o pano de fundo, de forma a colocar as mulheres em uma posição onde acabam sendo afetadas por outros sistemas de subordinação. Por ser tão comum a ponto de parecer um fato da vida, natural ou pelos menos imutável, esse pano de fundo (estrutural) é, muitas vezes, invisível (CRENSHAW, 2002, p. 176).
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Nesse aspecto, os estudos parecem distantes da realidade social dessas mulheres, na medida em que situam o debate entre autonomia ou submissão. Além de dicotômico, implica um grau de engessamento da realidade que só pode ser feito por quem fora dela está. As mulheres – pobres – assumem desde muito cedo responsabilidades no âmbito do cuidado que lhes atribuem também desde muito cedo uma carga de experiência de vida e social que ultrapassa, por vezes, a possibilidade de análise de quem se aproxima de forma pontual e circunscrita à essa realidade em busca de respostas prontas e fechadas. Confutando essas associações, adotou-se no presente estudo a perspectiva interseccional, cujo um dos fundamentos é a visibilidade das diferenças de intragrupos marginalizados. Para a autora Kimberlé Crenshaw, analisar somente as desigualdades de gênero, por exemplo, não permite mostrar as especificidades da subordinação interseccional de raça, classe, casta e etnia. Ainda segundo a autora, a concepção contemporânea de Direitos Humanos declarada pela Organização das Nações Unidas apresenta lacunas quanto à garantia e exigibilidade desse conjunto de direitos às mulheres, na medida em que sua aplicabilidade ocorre sem a distinção de gênero, ao mesmo tempo, esse não reconhecimento da diferença entre os sexos/gêneros reforça as desigualdades, entre elas a de raça. E, afirma: A importância de desenvolver uma perspectiva que revele a analise a discriminação interseccional reside não apenas no valor das descrições mais precisas sobre as experiências vividas por mulheres racializadas, mas também no fato de que intervenções baseadas em compreensões parciais e, por vezes, distorcidas das condições das mulheres são, muito provavelmente, ineficientes e, talvez, até contraproducentes (CRENSHAW, 2002, p. 177).
Por isso, associar a mula apenas ao lugar da passividade, ou de menor valor, assume uma difusividade de negar que a precariedade de vida da mulher a retira de qualquer passividade em nome da sobrevivência. Há que se fazer a distinção desse cargo dentro da estrutura do mercado de drogas e também fora dele. A ideia de passividade pode guardar relação com o discurso atribuído à figura histórica da mula, em que esse passa a ser reafirmado pelo sistema patriarcal no tocante ao ingresso das mulheres no mercado de drogas. Porém a mulher na condição laboral de mula não está apenas como sujeita passiva, porque suas demandas concretas e materiais colocam-na em um lugar de não inércia. Todavia, os “atributos” que são levados em conta para o seu ingresso se estabelecem exclusivamente na relação desigual entre sexo/gênero. Visto que: […] a inserção da mulher no tráfico por meio desta atividade leva em conta a construção social de sua identidade. Atributos de ‘vulnerabilidade’, determinados pelo seu gênero, classe, idade, nacionalidade, etnia, etc., não só são necessários como fundamentais para que exerçam esta função. Isto significa que a mulher pelo fato de ser mulher (ou pela construção de gênero socialmente atribuído a ela) se encaixa no papel de mula, pois possui as características que possibilitam o exercício deste papel. (CHERNICHARO, 2014, p. 113).
O lugar laboral de mula ainda que seja em grande parte ocupado por mulheres, não é específico do sexo/gênero feminino. Os homens também atuam nessa atividade e, de modo geral, fazem as travessias de maior risco – logístico e de valor do carregamento. O que se tem hoje é uma apreensão grande de mulheres no exercício dessa atividade em locais específicos, tais como: prisões, portos, aeroportos e rodoviárias. É preciso entender que as mulas atuam também fora dessa rota e, nesse caso, não temos o mesmo índice de aprisionamento de mulheres. Não podemos afirmar que é uma atividade exercida
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exclusivamente por mulheres e que o sexo/gênero é definidor. Pois, em se tratando de grandes carregamentos “ou de longas distâncias, situações as quais envolvem volumosos montantes de dinheiro sendo a/o transportadora/r responsável pela operação, são utilizados aviões, navios, ônibus e carros. Aqui a presença predominante é dos homens, responsáveis pela transação (CARNEIRO, 2015, p. 97-98). Quanto à pesquisa de Luciana Ramos (2012, p. 87), ao adotar uma perspectiva criminológica crítica, feminista e antirracista, a autora não somente compreende o tráfico de drogas enquanto mercado, bem como mostra as contradições inerentes ao modo de produção capitalista, manifestas na compra e venda da força de trabalho e das relações desiguais entre sexo/gênero, raça e classe. Das críticas apresentadas pela autora, destacam-se as relativas à precariedade do trabalho formal, expresso no rebaixamento da remuneração real da força de trabalho, e ao racismo como estruturante no aprofundamento dessas desigualdades, na medida em que mulheres negras, além de todos esses fatores, ganham menos, são mais criminalizadas e mortas por serem negras. Ainda segundo Ramos (2012), no Brasil, perpetua um racismo assimilacionista, dentro e fora da prisão, em que sugere um branqueamento de todos/as. No âmbito prisional, isso foi destacado diante da falta de padronização, em que ora são as mulheres que se autodeclaram ou os/as agentes penitenciários/as na triagem que colocam. As mulas também são em maioria negras. A discussão sobre raça ainda não é vista como intrínseca à de classe e gênero enquanto fundante da formação social brasileira. No caso da pesquisa de Costa Lima (2016), a autora fez a seguinte observação: Cumpre destacar que três das entrevistadas eram negras e as demais (05) brancas. E isto dito pela observação da pesquisadora, e não pela autodeclaração dessas mulheres. Com efeito, o elemento raça não apareceu nas narrativas da pesquisa. Em nenhum momento elas se identificaram enquanto negras, brancas […] nem demostraram qualquer interesse em levantar discussão a respeito (COSTA LIMA, 2016, p. 52).
Vejamos que, do ponto de vista analítico, a não declaração em ser mulher negra e o fato de não ter sido um tema narrado, não quer dizer que essa questão não tenha importância, pelo contrário, mostra que, em se tratando de espaço prisional, as formas de operacionalização do racismo fazem-se estruturalmente, o que de fato torna a vida das mulheres negras mais supliciantes do que a de mulheres brancas. “Não demostrar interesse” diz mais sobre o racismo do que o fato de falar sobre ele. Quando se fala das estruturas opressivas e racistas, há um componente de reconhecimento das relações de opressão e dominação, o que difere radicalmente quando não se fala, reproduzindo assim o mito de uma “democracia racial”. Ao adotar essa premissa, negam o conteúdo racista no aprisionamento de mulheres em maioria negras, pobres, com baixa escolarização, solteiras e com filhos. O mesmo vale para o respaldo da suposta “criminalidade feminina”. Na produção de Marcilaine Oliveira, por exemplo, a “criminalidade feminina” e o aumento do aprisionamento estão associados ao poder de autonomia dessas mulheres em escolherem/optarem pelo tráfico de drogas. Sugere, assim, que esse aumento é resultante de uma maior participação da mulher no espaço e vida pública. A partir de aspectos subjetivos, a autora argumenta que as pessoas, no caso, as mulheres, partilham de um rótulo desviante. Por outro lado, essas mulheres narram para a autora que ingressam por uma questão material, e encaram o tráfico como um trabalho. A pesquisa de Oliveira (2014) busca saber quais são os gastos relativos ao dinheiro vindo do mercado de drogas. As mulheres dizem que compram ou melhoram suas casas, asseguram maior bem-estar econômico e material aos filhos e família,
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tornando improcedente a ideia de busca pelo mercado de drogas como maior participação na vida e espaço público, visto que suas demandas são ainda de ordem privada, ou seja, ligadas ao sustento da família. Já para Sintia Helpes (2014), o ingresso das mulheres no sistema prisional guarda relação com o endurecimento da legislação penal, por isso são mais aprisionadas porque estão em atividade de maior risco e expostas, como é no caso das mulas. Mas, ao dialogar com a perspectiva da carreira desviante, desconsidera a dinâmica de mercado impressa no tráfico de drogas. Situação similar na produção de Janete Biella (2007, p. 88-116), estudo esse que, das produções analisadas, foi o primeiro a ser produzido pós legislação antidrogas de 2006. Para a autora, o ingresso das mulheres está vinculado às relações afetivas com companheiros e familiares. Parte também da premissa do comportamento desviante, e situa o pensamento sexista e androcêntrico enquanto balizadores das desigualdades entre homens e mulheres, porque segundo a autora, e concordando com ela nesse aspecto, existe uma visão de mundo e de socialização impressa a partir do masculino. Nessa pesquisa, as mulheres entrevistadas narram que há uma discrepância entre o que elas têm de drogas na apreensão da polícia em suas casas, e o que é posto nos autos do processo. Segundo as entrevistadas, são quantidades sempre superiores as que elas possuíam. Quanto à atuação da polícia, consideram contraditória essa instituição desempenhar dupla função, de prender e fornecer provas para o sistema de justiça e penal. É também no estudo de Biella (2007) que aparece de forma inédita a dimensão privada da venda de drogas, em que boa parte das mulheres entrevistadas no ano da pesquisa (2007) tinham sido presas em suas casas, local em que realizavam o comércio varejista de venda e uso de drogas, o que lhe deu subsídios para entender o mercado de drogas e a inserção de mulheres situados em uma dinâmica doméstica. Situação que muda na última década (2006-2016), como bem esclarece Feitosa Lima (2016), ao mostrar o aumento de prisões realizadas fora do espaço doméstico, porém não totalmente desvinculado do privado, já que nessas pesquisas mencionadas há narrativas de mulheres que foram presas durante a revista íntima no sistema prisional. O Relatório World Drug Report 2018: Women and drugs Drug use, drug supply and their consequences 2 produzido pela United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC), apresenta um panorama da situação das mulheres no mercado de drogas no mundo, entre os anos de 2012-2016, com três questões centrais: (a) o papel das mulheres na colheita ilícita, cultivo e produção de drogas; b) o papel das mulheres no narcotráfico; e (c) contato das mulheres com o sistema de justiça criminal. Aponta-se no relatório que pouca consideração é dada mundialmente à participação das mulheres no mercado de drogas, que vai desde o cultivo ilícito de drogas, produção de drogas e tráfico de drogas até a venda no varejo. Além disso, salienta que há poucos estudos abordando o processo de criminalização de mulheres, porque segundo os/as a analistas, o sistema de justiça e penal sempre considerou que as organizações de tráfico de drogas são predominantemente operadas por homens, e que o papel desempenhado pelas mulheres no narcotráfico é relativamente insignificante em comparação com o sexo masculino (UNODC, 2018, p. 25). O relatório situa globalmente o papel das mulheres no narcotráfico de cultivo, produção e tráfico, a fim de fornecer uma visão dos aspectos específicos que motivam o ingresso das mulheres nesse mercado. Dos 98 países que forneceram dados separados por sexo/gênero durante o período de 2012-2016 ao UNODC, 90% das pessoas que tiveram contato com o sistema de justiça e penal eram homens. Todavia o relatório aponta que a taxa de mulheres presas por participarem do comércio de drogas ilícitas no sistema 2
Relatório Mundial sobre Drogas 2018: Mulheres e drogas uso de drogas, suprimento de drogas e suas consequências. A versão utilizada no presente artigo foi em inglês.
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global de delitos de tráfico de drogas está aumentando em todo o mundo, em particular, entre as mulheres com baixa escolarização, sem oportunidade de trabalho formal e em situação de violência de gênero (UNODC, 2018). Por outro lado, o relatório explica que não está claro o porquê do aumento no número de mulheres presas por tráfico de drogas. Sinalizam que há fatores como maior penalização por parte do Estado, maior atuação do sexo/gênero feminino, mas que as funções ainda não são claras, pois há uma grande maioria de mulheres atuando como mulas e pequenas varejistas. No entanto esses não são necessariamente os únicos papéis que desempenham; afirmam que as mulheres atuam em diversas áreas no mercado, exercendo também liderança. Um dado importante desse documento é o que mostra que boa parte das produções e dados sobre mulheres no mercado de drogas são produzidos na América Latina, ainda que a participação de mulheres nas redes de tráfico de drogas também ocorra em outras regiões. Na hierarquia entre os sexos/gêneros, o relatório demonstra que os homens ainda dominam as principais posições no mercado de drogas, mas que algumas mulheres lideram grupos de tráfico “e são percebidas pelos homens como colegas de trabalho ou agentes da lei como ‘profissionais’ traficantes de drogas ou membros de alto nível da organização ilícita” (UNODC, 2018, p. 25-29). No relatório do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen mulheres) de 2017, os dados sobre mulheres estrangeiras no sistema prisional foram divulgados. Segundo o documento, “89% das unidades prisionais que participaram do levantamento afirmaram possuir informações acerca da nacionalidade para todas ou parte das pessoas privadas de liberdade na unidade”, totalizando 529 cidadãs estrangeiras. Desse total, 63% delas estão custodiadas no Estado de São Paulo. Sobre o lugar de origem, os dados mostram a globalização do mercado de drogas, visto que 48 são da Europa, 37 da Ásia, 323 da América e 1 da Oceania (BRASIL, 2017, p. 48). Não há informação sobre a tipificação criminal, mas pela porcentagem de mulheres presas pelo crime de tráfico de drogas em aeroportos e rodoviárias, a possibilidade de que as estrangeiras estejam presas pelo crime de tráfico, via ocupação laboral de mula, é muito provável. Essas apreensões, contudo, não correspondem ao carregamento internacional de drogas. Todavia algumas pesquisas, sem situar a estrutura financeira e logística desse mercado, tendem a associar o tráfico internacional como uma atividade exclusiva das mulas, o que em parte serve para ocultar um sistema global e financeiro desse mercado e penalizar mulheres em carregamentos irrisórios se comparados aos levados em contêiner3. Segundo dados do Infopen de 2020, entre junho a dezembro de 2019, o Brasil tinha 34.365 mulheres presas. Desse total, 50,94% (17,506) respondiam por crimes relacionados ao mercado de drogas, tipificado na Lei nº11.343/2006. Nesse mesmo documento, há dados sobre aprisionamento de mulheres estrangeiras, sendo a maioria do continente americano (239), com maior incidência sobre bolivianas 37,24% (89); venezuelanas 17,15% (41); paraguaias 15,6% (36); colombianas 10,04% (24); e peruanas 5,02% (12).O documento ainda o aponta o continente africano em segundo lugar em população estrangeira feminina, com 52 mulheres em privação de liberdade no Brasil, e desse total 34,62% (18) são oriundas da África do Sul; 19,23% (10) de Angola; e 15,38% (8) tipificado como outros países do continente africano. Isso evidencia como o mercado de drogas se estrutura globalmente, sobretudo se beneficiando da força de trabalho feminina de países com histórico de colonização, escravização, expropriação, periferização e dependência econômica. Mostra, assim, a face mais predatória do modo de produção capitalista mundial, porque sua dominação e exploração sobre as mulheres ocorrem de forma 3
Segundos dados da Polícia Federal sobre apreensões de drogas no país, em 2018 foram: 79,2 toneladas de cocaína; 354,0 toneladas de maconha; 295,347 comprimidos de ecstasy e 13,622 selos de LSD.
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sistêmica. A contribuição de Silvia Federici (2019, p. 184-186) nessa esteira é muito válida, quando a autora afirma que a globalização é uma guerra contra as mulheres, e que a ação sobre isto é política. Os programas de ajuste estrutural apesar de serem promovidos como uma forma de recuperação econômica, destruíram a subsistência das mulheres, tornando impossível para elas reproduzir suas famílias e a si mesmas. Um dos principais objetivos dos programas de ajuste estrutural é a ‘modernização’ da agricultura, ou seja, sua reorganização em uma base comercial e de exportação. Isso significa que mais terra é direcionada para o cultivo comercial e mais mulheres – as principais agricultoras de subsistência do mundo – são deslocadas. As mulheres também foram desalojadas pelos cortes no setor público, que resultam na destruição de serviços sociais (FEDERICI, 2019, p. 184-186).
Somado a isto, as relações econômicas marcadamente periféricas e dependentes dos países latinoamericanos revelam que o declínio no acesso ao mercado formal e lícito de trabalho, tem oportunizado ao mercado de drogas uma logística global de captura de força de trabalho informal e precarizada, em especial de jovens e mulheres. Assim tem sido o cenário brasileiro, em razão da perda de capacidade produtiva e diversificada, estando a economia interna cada vez mais dependente da demanda externa. Logo, a possibilidade de criar e gerar empregos deflagra-se, pois, em primeira instância, o que se assegura diante de contextos de crise estrutural do capital é a soberania dos Estados centrais. Para fins de exemplo, citemos a retirada de empresas estrangeiras, e com ela a massa de desempregados/as, a pressão no barateamento de matéria-prima para exportação, o aumento no preço das importações e a crise generalizada nas pequenas empresas nacionais que, diante do cenário global, tornam-se inaptas à competividade. Na realidade dos países da América Latina produtores e exportadores de drogas, como México, Colômbia, Paraguai, Bolívia, Peru e Brasil, mulheres em situação de desemprego e informalidade atuam nesse nicho em diversas atividades, entre elas na condição de mulas. Nessa atividade laboral, informal e ilícita cumprem a tarefa de transporte corporal de drogas, em boa parte com destino aos presídios e pequenos comerciantes locais e/ou regionais. Todavia, independente da atividade laboral que desempenham, essas mulheres são as mais vulneráveis do ponto de vista econômico e jurídico, pois além da baixa remuneração para esse trabalho, estão em maior risco de aprisionamento e vigilância policial. Subsídios esses necessários para compor o crivo analítico do aumento exponencial de mulheres encarceradas entre 2006-2016 no Brasil. Para se ter uma ideia, entre 2000 e 2016, a taxa de aprisionamento de mulheres aumentou em 455% no Brasil conforme dados do levantamento Nacional de informações penitenciárias (Infopen mulheres) de 2018. Nesse período de 16 anos, o país aprovou a Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, em que uma das finalidades é a de intensificar a política de guerra às drogas nas espacialidades periféricas do país. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2019, o número de desempregados/as, no Brasil, foi de 12,6 milhões de pessoas. Quanto à população subutilizada, essa chegou ao número de 28,1 milhões. Segundo o Instituto, não houve variação significativa frente ao trimestre anterior, mas subiu 2,6%, o que representa mais 703 mil pessoas em relação ao mesmo período de 2018. Assim, 11,7 milhões foi o número de empregados/as do setor privado sem carteira assinada, e 24,2 milhões (recorde da série histórica iniciada em 2012) os/as trabalhadores/as autônomos/as; sem direitos e sem renda fixa, 4,8 milhões de pessoas desalentadas (BRASIL, 2019).
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No que se refere aos determinantes de classe, raça, sexo/gênero e geração, os dados do IBGE de 2019 não revelam novidade, visto que o desemprego segue maior entre mulheres pretas e não brancas, jovens e não jovens. A maior parcela de desempregados/as, 57,2% correspondem à faixa etária dos 25 a 59 anos, 31,8% dos 18 a 24 anos, 8,3% para os/as menores de idade e 2,6% para os/as idosos/as. As mulheres representam 52,6% da população desocupada e 64,6% da população fora do mercado de trabalho formal e remunerado. São elas as mais afetadas, se comparadas aos homens. Em relação ao desemprego, a taxa, para eles, ficou em 10,9%, no 1º trimestre e, para elas, 14,9%. Na questão racial, a média nacional de brancos/as desocupados/as foi de 12,7% no trimestre, enquanto que, para pretos/as e não brancos/as, ficou acima da média: 16% e 14,5%, respectivamente. A partir desses dados e do estudo bibliográfico, é possível afirmarmos que o aumento de mulheres presas pelo crime de tráfico de drogas no Brasil guarda relação direta com o desemprego estrutural vinculado a uma nova forma de acumulação nos países periféricos e dependentes, via desindustrialização e informalidade forçada no circuito global das drogas. Sobre isso é preciso que se analise a extensão do crack e a inserção da força de trabalho feminina numa economia periférica e dependente como a brasileira, pois são elas, as mulheres, que atuam no mercado que tem o maior número de consumidores/as dessa substância no mundo: os/as brasileiros/as. Por ser o crack uma droga barata e “inferior”, pela quantidade de alterações químicas comparadas às outras, a atuação de mulheres no mercado varejista, por vezes, é lida da seguinte forma: uma droga de baixo valor é vendida pelo sexo inferior. Essa afirmativa parte do último relatório publicado pela UNODC (2020), em que situa o Brasil como nação mais consumidora da substância em nível mundial, e que a crise provocada pela Covid-19 tende a não só aprofundar as desigualdades, mas a ampliar em virtude da mesma o aumento de jovens e mulheres no mercado de drogas. Todavia, a UNODC salienta, que não se pode obter um dado exato sobre esse impacto, mas as restrições impostas pelos Estados, como fechamento de fronteiras vias terrestres, áreas e circulação das pessoas implicaram na queda da demanda no varejo de drogas e nas exportações e importações. Com isso, os mercados de drogas já estão a sentir queda nos lucros e, também, na pureza das substâncias, sobretudo, da cocaína. Ainda segundo o relatório a redução na oferta de trabalho formal para mulheres e jovens pode contribuir no aumento desses segmentos na informalidade no mercado de drogas durante e pós-pandemia. Cabe destacar que a relação entre trabalho informal lícito e ilícito para mulheres pobres e com baixa formação profissional no Brasil não se faz sem contradições. Das 12 produções bibliográficas analisadas sobre mulheres presas pelo crime de tráfico de drogas entre 2006-2016, 04 (BIELLA, 2007; HELPES, 2014; LIMA, 2016; RAMOS, 2012) abordaram com maior ênfase o trabalho lícito e informal, em especial como empregadas domésticas remuneradas, anterior ao mercado de drogas. Mesmo com a Lei complementar nº 150, de 1º de junho de 2015, que dispõe sobre o contrato de trabalho doméstico, a falta de regularização e garantia de direitos está longe de ser superada, mais de 70% das que desempenham essa atividade laboral estão na informalidade, é o que apontam os dados do IBGE sobre o perfil das trabalhadoras domésticas divulgados em 2018. Ainda segundo o Instituto, desde outubro de 2015, quando passou a ser obrigatório o recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), as domésticas sem carteira assinada passaram de 4,2 milhões para 4,4 milhões (BRASIL, 2018). No que se refere a atuação das mulheres no mercado de drogas varejista, um dos fatores de ingresso diz respeito à possibilidade de seguirem exercendo os cuidados domésticos, mantendo, assim, o “papel social” atribuído ao sexo/gênero, bem como a manutenção do cuidado em todos os seus aspectos. Essas mulheres, diferente dos homens, mantêm uma relação protetiva na gestão do lar, ingressam no mercado
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de drogas, quase que exclusivamente por questões de ordem material, para prover aos filhos e a si própria, almejando melhor acesso à moradia, alimentação e poder de compra. Tanto é que o dinheiro que ganham do trabalho no tráfico é investido no âmbito da família. Isso explica também o porquê de mulheres no mercado de drogas não ascenderem socialmente como os homens, pois como no mundo do trabalho formal e lícito, são elas as responsáveis em colocar suas rendas à disposição da família. Para as mulheres presas pelo crime de tráfico de drogas, esse mercado apresenta-se como trabalho que dá maior remuneração e implica menor deslocamento, se comparado ao mercado de trabalho formal (com média de deslocamentos que variam de 2h a 4h diárias) e/ou informal lícito. O tráfico de drogas reforça a ideia do trabalho doméstico ao apropriar-se dele, mas o desloca para a esfera do ilícito. Basta observar que a atuação dessas mulheres está implexa na possibilidade de coadunar a atividade doméstica com a venda de drogas no âmbito privado. A questão territorial, por exemplo, é central nessa dinâmica de venda varejista. Nenhuma dessas mulheres vende crack na área socioespacial mais cara da cidade em que vivem, pelo contrário, vendem de modo geral em suas áreas, casas e arredores segregados espacialmente. Não por acaso, a criminalização dos sujeitos repercute diretamente no lugar em que vivem. É na territorialidade apartada que o aparato bélico do Estado, a representação do/a inimigo/a, o controle penal e vertebração neoliberal expressam-se conjuntamente. Sobre mulheres e venda de crack, Philippe Bourgois, em seu livro En Busca de Respeto: vendiendo crack en Harlem (2015), aborda a relação entre sexo/gênero, no que ele denomina de economia subterrânea. Analisa os efeitos desse mercado sobre as mulheres, pois essas estão em novo espaço público feminino, que é a venda de drogas, mas sob a dominação masculina. Nesse aspecto, aponta para as expressões de violência de gênero e os limites das pautas feministas na luta pela garantia dos direitos individuais, tendo em vista que, na realidade das mulheres pobres e periféricas, a distância no acesso e reconhecimento desses direitos são infinitamente maiores que na realidade de mulheres de classe média e alta. Com efeito, as mulheres que trabalham no mercado de drogas só passam a ter algum reconhecimento social via judicialização e criminalização de suas vidas, na condição de ré, e não anteriormente na de sujeita de direitos –, elemento suficiente para compreendermos os limites das pautas feministas hoje, no Brasil e na América Latina, e a urgência de incorporação e radicalidade com o debate interseccional. Ainda na esteira do autor, o crack é uma droga consumida em grande parte por pessoas desempregadas e em situação de rua, e vendida por pessoas que estão excluídas do mercado de trabalho formal. E, por ser uma droga com baixo custo e prover efeitos como perda do sono e fome, não tem seu uso associado apenas ao vício, mas contraditoriamente, é também usada por uma questão de sobrevivência precária, desumana e invisível nas ruas. No dizer de Bourgois (2015, p. 21) “el crack es la droga lumpen por excelencia. Es una sustancia que capta el sufrimiento social y la precariedad de nuestra época”. Assim, a informalidade não aparece como exceção, mas como regra nas relações de trabalho, e mais, como forma permanente de sobrevivência para essas mulheres. A ideia de acesso ao mercado de trabalho formal, assegurado e com direitos garantidos, torna-se cada vez mais remota. Objetivamente as mulheres presas por tráfico de drogas e suas famílias não ingressam no mercado de drogas como exclusiva alternativa, mas são compelidas diante das necessidades estruturais a ocuparem esses postos de trabalho. A criminalização de suas vidas e corpos se faz não só pela estrutura jurídica e penal seletiva do país, mas também pela violação permanente de acesso do direito humano ao trabalho assegurado. Isso explica em parte os estudos sobre “empoderamento” das mulheres nos mercados de drogas. Nessas pesquisas há afirmações de que as mulheres estão sendo presas pelo crime de tráfico de drogas por estarem ficando mais autônomas e ocupando o espaço público. Todavia, não atentam para o fato de que a maioria dessas
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mulheres antes de ingressarem no mercado informal, varejista e ilícito de drogas, eram trabalhadoras domésticas informais. Outro elemento dos estudos é o de serem solteiras, o que supostamente lhes atribuiria um lugar “emancipado” em relação à figura masculina. Essas considerações são postas em xeque quando situamos a participação da mulher nesse mercado na condição de mula. De fato, passa-se a trafegar no espaço público, rompendo em certa medida com a ideia de tráfico doméstico, mas a circulação dessas mulheres é tão cerceada quanto as que fazem dentro de suas casas. Além disso, mostram que trabalhar na condição de mula não é uma escolha, mas uma questão de sobrevivência. Vejamos a narrativa de Rubi, 39 anos, mãe de 8 filhos, solteira, presa pela terceira vez pelo crime de tráfico de drogas, entrevistada por Marcilaine Oliveira (2014, p. 129-131): [...] ele nos deixava passar muita necessidade. Eu comecei a traficar era menina, com 11 anos. Conheci um traficante. Ele era de Pernambuco. Eu conversando com ele falando que as coisas eram difíceis lá em casa, ele perguntou se eu não queria vender. Ele foi e perguntou se eu não queria aprender? Eu falei: se ganha dinheiro eu quero. Comecei a vender na rua. Vendia maconha e cocaína. Na época era só maconha e cocaína. Agora que a droga se expandiu e tem tudo e qualquer qualidade. Mas, no tempo era só maconha e cocaína [...] nunca vendi droga na minha casa. Minha casa era o meu sossego. Quem quer me encontrar me encontra na rua. Não levo ninguém na minha casa. Nunca fui presa dentro de casa (OLIVEIRA, 2014, p. 129-131).
Ao terem seus direitos retirados, essas mulheres ficam com o paradoxo do viver ou morrer. E entre viver e morrer para elas, há sempre o liame de que, em nome da vida, existe a eminência da morte. Longe de natural, a morte ocorre entre conflitos de grupos rivais em suas espacialidades, pela política de morte do Estado, pelo risco do transporte de drogas via ingestão, e por serem mulheres passíveis e visíveis de criminalização, mas não de direito à cidadania.
5 Considerações finais O propósito central deste artigo foi o de mostrar o mercado de drogas como meio de ingresso ao trabalho informal e ilícito de mulheres na condição laboral de mula, e como o sistema de justiça e penal opera via criminalização, ao tipificar como traficante mulheres despossuídas de direitos e cidadania. A condição de ingresso das mulheres nesse mercado se sustenta por critérios de discriminação e marginalização interseccional e de divisão internacional do trabalho, em que as mesmas ocupam posições inferiores, e por isso, são facilmente presas, segredas, punidas, exploradas e rapidamente substituídas enquanto força de trabalho. Assim, como as mulas do Brasil colonial, as mulheres que atuam nessa função estão mais expostas às políticas punitivas de guerra às drogas, de modo que essas além de afetarem desproporcionalmente suas vidas contribuem significativamente para o encarceramento massivo. Isso se dá pelo fato de essas mulheres ocuparem os piores postos de trabalho no mercado de drogas, viverem em espacialidades criminalizadas pelo Estado policial, terem baixa escolarização e formação profissional, serem solteiras, com filhos e sem acesso à renda e trabalho formal assegurado. Esse conjunto de fatores que a destitui da condição de sujeita de direitos, a coloca em condição permanente de invisibilidade e vulnerabilidade política, econômica, social e cultural. Isso explica o fato de o número de mulheres presas por crimes relacionados ao mercado de drogas ser maior proporcionalmente ao seu universo do que o de homens. Enquanto que para elas a tipificação penal de maior incidência é em relação à lei de drogas, com 50,94% (17.507), no sistema masculino essa tipificação fica em segundo lugar, com 19,17% (183.077), conforme dados nacionais do Infopen de 2020.
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Sobre espacialidade e tempo, a resposta do porquê o mercado prioriza a periferia, diz respeito à falta de acesso ao mercado formal, à possibilidade de exercer ampla e extensiva seletividade punitiva e racial sobre os mais pobres em uma espacialidade determinada, em que há também maior incidência de dependência e subordinação do sexo/gênero feminino ao masculino. As entrevistadas afirmam que o ingresso no tráfico não dependeu da relação afetiva com homens, mas todos os contatos com os postos de trabalho superiores aos delas com os quais trabalharam eram ocupados por homens. Por fim, cabe enquanto demanda societária a formulação de estratégias concretas de defesa de uma política responsabilizatória cuja prioridade do sistema de justiça e penal não seja o encarceramento, visto que essas mulheres são chefes de família, com baixa formação profissional e, sobretudo, porque não representam risco para a sociedade. A prisão nesse sentido é um indicador que marca a impossibilidade de ingresso no mercado formal de trabalho, formação profissional, bem como de manutenção dos vínculos com filhos e familiares, esses que em grande são seus dependentes também financeiramente. Há, portanto, o desafio contínuo no enfretamento desse sistema punitivo e seletivo de justiça penal, que assegura a perpetração de ciclos geracionais de famílias no mercado de drogas. O aumento de mulheres presas na condição laboral de mulas conforme analisado nas de teses e dissertações guarda relação direta com a negação ativa do não acesso à cidadania. Justamente por serem as despossuídas, precisam antes de tudo sobreviver – e como escreveu Flora Tristan: “sobreviver não é a mesma coisa que viver.”
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Este artigo é fruto da Tese “Despossuídas do Século XXI: Mulheres no Mercado de Drogas no Brasil na Última Década (2006-2016)” originalmente apresentada pela autora como requisito para a obtenção do grau de Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, em 2019.
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Submetido em: 31 ago. 2020 Aceito em: 23 out. 2020
DOI: 10.19180/1809-2667.v22nEspecial2020p889-906
Pistas para análise da violência contra as mulheres em tempos de crise: aproximações e desafios no contexto de pandemia no Brasil Clues for the analysis of violence against women in times of crisis: convergences and challenges in a pandemic setting in Brazil Pistas para el análisis de la violencia contra las mujeres en tiempo de crisis: aproximaciones y desafíos en el contexto de la pandemia en Brasil Milena Fernandes Barroso https://orcid.org/0000-0002-8349-1508 Doutora em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2018). Professora do curso de Serviço Social da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Instituto de Ciências, Educação e Zootecnia - ICSEZ – Parintins/AM – Brasil. E-mail: mibarroso@yahoo.com.br.
Resumo A pandemia do novo coronavírus atingiu o planeta colocando em evidência a crise estrutural do capital e, longe de se revelar como uma infecção democrática, provocou o colapso em diversos países, pondo em relevo as contradições, as desigualdades e os limites do capitalismo como modo de produção e reprodução da vida. Neste artigo, buscamos uma aproximação à análise da violência contra as mulheres nesse contexto, entendendo-a também como produto e produtora desse sistema, que necessita de forma particular e exponencial do trabalho e do corpo-território das mulheres para a sua manutenção. Assim, a partir de uma leitura ampliada da violência contra as mulheres, o texto aponta conexões entre diversas expressões dessa violência e a sua centralidade para as novas formas de acumulação de capital em tempos de crise, que, no contexto da pandemia, se agudizam na exploração e opressão cada vez maiores das mulheres, em particular das mulheres racializadas. Palavras-chave: Violência contra as mulheres. Crise capitalista. Pandemia.
Abstract The new coronavirus pandemic that hit the planet has demonstrated the structural crisis of capital and, far from proving itself a “democratic” infection, brought about breakdowns in many countries, revealing contradictions, inequalities and the limits of capitalism as a mode of production and reproduction of life. In this article, we seek an approach to analyze violence against women in this context, acknowledging it as both product and producer of a system that increasingly demands the bodyterritory of women in particular for its maintenance. Therefore, from an enlarged reading of violence against women, the text shows connections between many expressions of this violence and its centrality to new forms of capital accumulation in critical times, which, in a pandemic setting, become ever-increasingly exacerbated forms of exploitation and oppression of women, women of color in particular. Keywords: Violence against women. Capitalist crisis. Pandemic.
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Resumen
La pandemia del nuevo coronavirus se ha extendido por el planeta evidenciando una crisis estructural del capital y, lejos de revelarse como una infección democrática, causó colapsos en diversos países, exponiendo las contradicciones, desigualdades y los límites del capitalismo como modo de producción y reproducción de la vida. En este artículo, buscamos una aproximación al análisis de la violencia contra las mujeres en este contexto, entendiéndola también como producto y productora de ese sistema, que requiere de forma particular y exponencial del trabajo y del cuerpo-territorio de las mujeres para su manutención. De esta forma, a partir de una lectura ampliada de la violencia contra las mujeres, el texto señala conexiones entre diversas expresiones de esa violencia y su centralidad para las nuevas formas de acumulación del capital en tiempos de crisis que, en el contexto de la pandemia, se agudizan en la explotación y opresión cada vez mayor de las mujeres, especialmente, de las mujeres racializadas. Palabras clave: Violencia contra las mujeres. Crisis capitalista. Pandemia.
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Pistas para análise da violência contra as mulheres em tempos de crise: aproximações e desafios no contexto de pandemia no Brasil Milena Fernandes Barroso
1 Veias abertas e pandemia no Brasil Mães Yanomami imploram pelos corpos de seus bebês. Filho de empregada doméstica morre após cair de prédio de luxo no Recife enquanto mãe trabalhava. Primeira vítima no Rio de Janeiro era doméstica e pegou coronavírus da patroa no Leblon. Violência doméstica dispara na quarentena. Após STF determinar a soltura de grávidas e mães, devido à pandemia, juízes mantêm a prisão de 3 mil mulheres que sequer foram condenadas. Tentar impedir aborto legal foi crime e nova violação à criança vítima de estupro. Na pandemia, trabalho doméstico é classificado como atividade essencial. Casos de feminicídio aumentam 22,2% em pandemia. Queimadas e pandemia projetam cenário de desastre na Amazônia. Morrem 40% mais negros que brancos por coronavírus no Brasil. Qual a relação entre as situações expostas? O que indicam sobre o contexto de pandemia? O que nos revelam sobre o tempo presente? O que elas nos dizem sobre a violência contra as mulheres? No intuito de refletir sobre tais questões, buscamos neste artigo uma aproximação à violência contra as mulheres no contexto da pandemia de covid-19 no Brasil. Destacamos que, por se tratar de um “quadro” ainda em curso, pretendemos muito mais apontar chaves de análises a esgotar o tema em conclusões que podem limitar a apreensão em sua totalidade, dada a complexidade que o fenômeno e o contexto envolvem. Inicialmente, consideramos importante destacar algumas breves inquietações sobre a chamada “crise sanitária” (o contexto) e explicitar de qual ponto de vista sobre a violência contra as mulheres (perspectiva de análise) partimos. Além de pressupostos centrais, tais aspectos foram fundamentais para uma aproximação – não acidental – a algumas expressões da violência contra as mulheres citadas ao longo do texto. Em que pesem as inúmeras análises de que a pandemia do novo coronavírus é o motivo da crise em curso no Brasil e no mundo, pesquisadoras e pesquisadores do pensamento social crítico apontam, desde a década de 1970, para a emergência de uma crise estrutural e planetária (MÉSZAROS, 2009), não restrita a economia, mas de toda uma forma de organização social que está na base do capitalismo (ARRUZA; BHATTACHARYA; FRAER, 2019). Nesse sentido, fazemos coro com aqueles e aquelas que, primeiro, não tratam tal crise como oriunda da pandemia de covid-19 e, segundo, que questionam tanto as visões da pandemia como externalidade– que não guardaria relação com a sociedade, posto se referir a uma condição natural – ou como moralidade, consequência direta do comportamento da humanidade – quase como uma vingança ou punição divina. Junta-se a essas visões a falsa ideia de que a covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, denominado SARS-CoV-2, seria uma infecção democrática, que atingiria a todas e todos indiscriminadamente e que, nesse sentido, toda a população mundial estaria no “mesmo barco”. Em outra direção, localizamos a pandemia como um gatilho do colapso sanitário atual – expressão da crise do capital em curso –, que põe em relevo as contradições, as desigualdades e os limites do capitalismo como modo de produção e reprodução da vida, explicitando ainda mais a barbárie do projeto capitalista neoliberal, que, no Brasil, opera com o corte nos investimentos de serviços públicos essenciais – como é o caso da saúde –, o desmonte de políticas afirmativas e ambientais e o avanço de medidas ultraconservadoras.
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Isso nos leva a afirmar que as vítimas fatais por covid-19 elucidam desigualdades historicamente presentes no país, expondo o “apartheid não oficial” em toda a sua brutalidade, inclusive deixando explícito qual é a população que tem o direito a não ser contaminada e qual é aquela que aparentemente pode ser contaminada (BRUM, 2020), seja pelo descaso do Estado, pelas exigências do mercado, seja pelo modo de vida de uma elite que nega o direito de trabalhadoras e trabalhadores a permanecer em isolamento físico, como foi o emblemático caso da primeira morte por covid-19 no Rio de Janeiro – uma empregada doméstica, negra e idosa, infectada no local de trabalho pela patroa recém-chegada da Itália e residente de um dos bairros nobres do munícipio. Assim, no Brasil são as populações racializadas, povos negros e indígenas os que mais padecem com a covid-19, seja com as sequelas da doença, seja com os problemas que se agravam com ela, a saber: a precarização da saúde e educação, a falta de investimento em saneamento e moradia digna, a apropriação privada e a destruição da natureza, a desigualdade e miséria, as discriminações raciais, o machismo, a homofobia, entre outros. Não datam da pandemia os dados de concentração de renda no país: o Relatório de Desenvolvimento Humano da ONU (PNUD, 2019) aponta que o 1% mais rico concentra quase um terço da renda (28,3%), o que dá ao Brasil o título de vice-campeão mundial em desigualdade, perdendo apenas para o Catar – e apenas por 0,7%. Nessa mesma direção, estudo da organização não governamental britânica Oxfam (OXFAM BRASIL, 2018) registrou que cinco bilionários brasileiros concentram a mesma riqueza que a metade mais pobre do país, ou seja, cinco pessoas concentram o mesmo patrimônio que 100 milhões de brasileiros. Contudo, é fato que a pandemia tem sido lucrativa para os mais ricos, que, nesse período, conseguiram economizar e ampliar investimentos, em detrimento dos mais pobres, que tiveram maior endividamento. De forma apressada, poderíamos afirmar que a concentração de renda é o motor do risco da covid19 para a população mais pobre. Todavia, partimos do pressuposto de que “as veias abertas” brasileiras não dizem respeito unicamente à ordem do capital: estas são também uma questão étnico-racial e de gênero, historicamente constituídas e explicadas pelo sofisticado modo de produzir e reproduzir a vida, estruturado pela exploração-opressão capitalista, racial e sexista. Logo, não apenas as desigualdades de classe, mas as étnico-raciais e de gênero expõem de forma particular e exponencial sujeitos determinados a situações de desigualdade e desprestígio, verbi gratia, quando 75% dos mais pobres no país são negros e negras (IBGE, 2018). Esse dado é revelador dos índices de escolarização, da situação de moradia, do acesso a serviços públicos e privados, do trabalho e renda, e, mais que indicadores, são expressões das desigualdades estruturais e históricas presentes no Brasil. No caso dos povos indígenas, que estão localizados em todo o território nacional, em terras indígenas (TIs) ou em contextos urbanos, a pandemia, além de exponenciar o descaso com a proteção e a saúde desses povos, como ficou explícito no caso das mães Yanomami – que tiveram suas filhas e filhos contaminados, mortos e desaparecidos –, contribuiu para o aumento de invasões de garimpeiros, madeireiros e grileiros às suas terras, potencializando o risco de contaminação de aldeias e povos inteiros. Relatório do Instituto Socioambiental (ISA, 2020a) mostra o avanço dessas invasões: “garimpeiros, grileiros e desmatadores não paralisaram suas atividades durante a pandemia. Pelo contrário: elas foram intensificadas. A situação é crítica, pois os invasores estão em constante circulação entre as cidades e as TIs, e podem levar o coronavírus para esses territórios” (CIMI, 2020).
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Não menos importante é o crescimento do desmatamento na Amazônia desde o início da pandemia, tendo afetado diretamente povos indígenas e comunidades tradicionais da região. Um estudo do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM, 2020) indica que há uma área desmatada de pelo menos 4.500 quilômetros quadrados que pode ser queimada em 2020. Quatro estados concentram 88% dessa área: Pará (com 42%) dos 4,5 mil km2, Mato Grosso (23%), Rondônia (13%) e Amazonas (10%). Conforme a pesquisa, “se tudo virar fumaça, a região pode enfrentar estado de calamidade pública na saúde devido a sobreposição de queimadas com pandemia de covid-19, o que sobrecarregará ainda mais a rede de saúde já em colapso nos atendimentos à população”1. Em se tratando da população negra, além de as políticas governamentais desconsiderarem a anemia falciforme (doença que atinge principalmente pessoas negras) no conjunto das comorbidades dos grupos de risco de contaminação pela covid-19, é possível apreender as desigualdades raciais nos dados de contaminação, que, apesar de ter iniciado nos bairros de “classe média alta” e com predominância de pessoas brancas, o avanço da pandemia comprova que o aumento dos óbitos e a gravidade da situação nos territórios negros e periferias pobres é muito maior do que nos demais bairros, demonstrando o privilégio de brancos até mesmo no atendimento público de saúde (ISA, 2020b). O Amazonas, primeiro estado do país a ter lotação máxima de unidades de terapia intensiva na pandemia, registrou um aumento mais expressivo entre negras e negros em estado grave do que entre brancos. No final de abril, em menos de uma semana, a quantidade de pacientes negros em situação grave mais que dobrou. A maioria absoluta das mortes no Amazonas é de negros: mais de 13 negros morreram para cada falecimento de branco2. Nesse quadro assevera-se o peso do desemprego, da precarização e da informalidade nas relações de trabalho, sendo o trabalho doméstico, entre os trabalhos, aquele com maior nível de desvalorização e informalidade. O Brasil, país com o maior número de trabalhadoras domésticas do mundo, quase sete milhões, conforme dados da OIT (2020), assistiu na pandemia a defesa da essencialidade dessa atividade e o impedimento a mulheres pobres e periféricas – em sua maioria negras – de ficarem em isolamento físico remunerado, revelando a complexidade das relações e a combinação de hierarquias intra e interclasse e intra e intergênero, como pode ser ilustrado no caso da trabalhadora doméstica que teve seu filho morto no local de trabalho e da trabalhadora doméstica idosa já citada (primeira morte registrada no RJ): ambas não tiveram assegurado o direito ao isolamento físico durante a pandemia. Ao mesmo tempo, a pandemia escancarou a desigual “economia do cuidado”, em que a responsabilidade e o ônus do trabalho de casa (trabalho doméstico) e dos cuidados com doentes, crianças e idosos são prioritariamente das mulheres, ficando para os homens o trabalho em casa (home office). Para as mulheres em confinamento, a sobrecarga se intensifica junto ao aumento da violência doméstica, que traduz, muitas vezes, a desigualdade entre o trabalho produtivo e o reprodutivo. Trazer essas experiências aqui não é uma aleatoriedade, é sobre as “veias abertas” brasileiras e as violências que elas expressam, dizem e articulam, é sobre a morte, real e simbólica, pelo descaso, controle, exploração e apropriação dos corpos-territórios femininos e de mulheres. É a partir dessa conexão que buscamos refletir sobre a violência contra as mulheres no contexto de uma crise generalizada do 1
Em junho de 2020, foram registrados 1.034,4 km2 de área sob alerta de desmatamento, recorde para o período em toda a série histórica que começou em 2015. Julho e agosto seguiram a mesma tendência. A previsão é de um aumento de 25% em comparação ao primeiro semestre de 2019. 2 A secretaria de saúde já registrou cerca de 850 doentes negros em situação grave e mais de 340 mortes. Já entre brancos, foram 81 casos graves e 25 mortes. Os dados de raça e cor foram atualizados em 29 de abril (ISA, 2020b).
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capitalismo e da pandemia de covid-19 no Brasil, entendendo-a como produto e produtora dessa sociabilidade, que necessita de forma particular e exponencial do trabalho e do corpo das mulheres para a sua manutenção.
2 Contextos e experiências de violência contra as mulheres na pandemia de covid-19 no Brasil As situações explicitadas na introdução do item anterior elucidam a diversidade e a complexidade da violência contra as mulheres. Longe de se limitar à violência direta ou ao espaço doméstico, essa violência compõe o tecido social, sendo, pois, estruturante das relações sociais. A despeito de a luta feminista ao longo das últimas décadas tornar pública e denunciar em todo o mundo as suas consequências, e das legislações e políticas de proteção às mulheres criadas em vários países do mundo, os registros (em sua maioria restritos às tipologias criminais) – de antes e durante a pandemia – e a gravidade dessa violência são cada dia maiores. Conforme dados do relatório “Violência doméstica durante a pandemia de covid-19” elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2020), os casos de feminicídio cresceram 22,2% entre março e abril de 2020, em 12 estados do país, se comparado aos dados de 2019. O mesmo relatório aponta uma redução no número de casos de lesão corporal dolosa – quando há intenção de cometer a agressão – de 25,5%. Tal redução está diretamente relacionada à dificuldade de buscar as instituições policiais no período e, portanto, de gerar os registros de notificação. Desse modo, a subnotificação acaba por camuflar os índices de violência contra mulheres, por meio de lesões corporais dolosas, no período. Se, por um lado, os registros de casos diminuíram, pelas razões que apresentamos, torna-se revelador o processo de subnotificação ao identificarmos o aumento de 17,9% nas denúncias feitas por telefone, na comparação entre os meses de março de 2019 a 2020. No mês de abril, período de início da quarentena na maioria dos estados brasileiros, o aumento foi de 37,6% em relação ao ano anterior. O relatório trata de forma particular da violência doméstica e expõe o aumento da exposição das mulheres às situações de violência direta pela imposição do maior tempo de convivência com agressores e a dificuldade de se buscar apoio no período. Esse aumento também foi constatado em vários países, tais como França, China, Argentina, Singapura, Malásia, Alemanha e Estados Unidos. As análises, em geral, apontam que a necessidade do isolamento ou distanciamento físico e a fragilidade (e ausência, na maioria dos casos) dos serviços de proteção social às mulheres explicam esses dados. No primeiro caso, a convivência mais próxima e permanente com os agressores seria facilitadora tanto de situações mais recorrentes de tensões – acúmulo de atividades com novas exigências de limpeza e higiene, cuidado em tempo integral de filhos e idosos, entre outros – quanto de impedimento mais direito para a busca de uma delegacia ou de outras instituições de atendimento especializado. Além disso, apesar do aumento dos registros, o distanciamento entre os dados e a realidade vivenciada pelas mulheres precisa ser considerada, fato que se desdobra em um relevante quadro de subnotificação. Em paralelo à subnotificação e à brutalidade com que a violência contra as mulheres acontece, ocorre uma combinação sofisticada de antigas e novas expressões da violência contra as mulheres que não estão restritas ao contexto da pandemia de covid-19, mas são produto e produtoras da sociedade patriarcalracista-capitalista, que se aprofundam em sua versão neoliberal, contribuindo, muitas vezes, para a apreensão fragmentada do fenômeno e, consequentemente, a sua naturalização. Em grande medida, essa
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apreensão carece de uma análise em termos de suas determinações sociais, a saber, pela tendência nos estudos em apontar a violência como resultado biológico, psicológico ou moral, de uma natureza masculina, dissociados dos seus componentes raciais e de classe (DAVIS, 2017). Daí a importância da teoria feminista ao buscar analisar os contextos, identificar as contradições e, assim, alcançar a particularidade das experiências3, que aqui, em razão do recorte do objeto – mesmo diante dos limites impostos pelo cotidiano, pela complexidade do real, e das próprias escolhas e possibilidades acessadas por nós –, consistiu na tentativa de apreender a particularidade da violência vivenciada pelas mulheres no contexto da pandemia a partir de experiências, entendendo-as não como um fenômeno pessoal, mas social. Nesse ensejo, priorizamos a análise a partir de dois contextos nos quais as mulheres estão inseridas – o contexto indígena e o contexto do trabalho –, estratégia teóricometodológica coerente com o pressuposto assumido de situar a violência contra as mulheres no conjunto das relações sociais. Tais contextos são aqui entendidos como espaços que compreendem “tanto o território físico e geográfico, como o conjunto de sujeitos e objetos que ali se inserem e se relacionam” (CRUZ, 2008, p. 28). Almejamos assim, além de explicitar as violências mais comumente reconhecidas e infligidas às mulheres, visibilizar expressões da opressão e exploração não consideradas no bojo das discussões sobre violência contra as mulheres, como é o caso da expropriação de terras e meios de trabalho, do etnocídio, da desproteção e ausência de serviços públicos, da exploração-opressão do trabalho reprodutivo. É isto que buscamos aqui: apontar algumas pistas para analisar as particularidades de um contexto, sem perder de vista a relação da singularidade com as determinações estruturais da sociabilidade atual. Isso nos leva a reforçar que as violências que atingem diretamente as mulheres – como as citadas ao longo do presente texto – não são costumeiramente consideradas como tal, afinal, são expressões que, de tão naturalizadas, se confundem com o próprio modus operandi do capitalismo. Daí ser importante uma reconceituação – já em curso – da violência contra as mulheres em dois movimentos interdependentes: o primeiro, de pluralização de sua definição; o segundo, de partir das singularidades para a conexão da totalidade do fenômeno (GAGO, 2020).
2.1 Corpos-territórios No que se refere a pluralização, Gago (2020) destaca que se trata de deixar de falar da violência contra as mulheres stricto sensu para relacioná-la a um conjunto de violências sem as quais ela não se explica e sem as quais não se compreende seu crescimento histórico. Além disso, para a autora, essa ampliação produz inteligibilidade e permite um afastamento da figura totalizante da mulher-vítima. Nos termos da autora,
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É importante salientar que não se trata de experiências singulares, mas formas socialmente estruturadas e estruturantes, a partir de determinadas relações de exploração-opressão, ainda que guardem particulares modos de expressão, considerando disparidades regionais, diferentes apropriações sociopolíticas e culturais, distintas inserções nas relações de assalariamento, entre outros.
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Pistas para análise da violência contra as mulheres em tempos de crise: aproximações e desafios no contexto de pandemia no Brasil Milena Fernandes Barroso [p]luralizar não é apenas fazer uma quantificação, uma lista de violências. É algo muito mais denso: é um modo de cartografar sua simultaneidade e sua inter-relação, isto é, conectar os lares desestruturados às terras arrasadas pelo agronegócio, às diferenças salariais e ao trabalho doméstico invisibilizado; vincular a violência do ajuste neoliberal e a crise aos modos como esses são enfrentados a partir do protagonismo feminizado das economias populares, e relacionar tudo isso à exploração financeira pelo endividamento público e privado; vincular as formas de disciplinamento das desobediências nas mãos de repressão nua e crua do Estado e a perseguição aos movimentos de imigrantes à maneira como se encarcera as mulheres mais pobres, criminalizando economias de subsistência, e as mulheres que praticam o aborto à motivação racista de cada uma dessas violências (GAGO, 2020, p. 72).
Nessa direção, em acordo com a autora, reforçarmos a importância de ampliarmos a apreensão da violência de modo a conectarmos tanto aquelas violências mais visíveis como aquelas que, por não serem classificadas jurídica ou criminalmente como tal, passam ao largo das análises. Garantir a percepção dessas violências é visibilizar “a maquinaria de exploração e extração de valor que implica níveis de violência cada vez maiores, e que tem um impacto diferenciado – e, por isso, estratégico – sobre os corpos feminizados” (GAGO, 2020, p.72). Além disso, como já destacado, se desloca de uma única e restrita conceituação da violência (doméstica) para alçá-la às determinações estruturantes e às violências econômicas, institucionais, laborais, raciais, coloniais. Temos defendido que explicitar as situações vivenciadas pelas mulheres indígenas é necessário e é uma possibilidade de ampliar a definição de violência contra as mulheres. Na pandemia, podemos citar o descaso com a saúde indígena trazendo implicações diretas para a vida das mulheres que perderam seus filhos e filhas, parentes mais velhos, não pela covid-19, mas pela violência institucional. Conforme dados do Instituto de Estudos Socioeconômicos (SARAIVA; CARDOSO, 2020), o investimento da saúde indígena por parte do Governo Federal foi menor durante a pandemia em comparação a 2019: no primeiro semestre de 2019, foram gastos 725,9 milhões, e, no mesmo período de 2020, o valor de 708,8 milhões. O Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena registrou, até 23 de agosto de 2020, o falecimento de 717 indígenas e 27.034 indígenas com diagnóstico confirmado de Covid-19, em 155 etnias de todo o país. Destacamos também a invasão de Terras Indígenas por garimpeiros, madeireiros, empreiteiros que, além de expropriarem os meios de sustento e sobrevivência, disseminam a covid-19 nas comunidades. Cabe destacar: com a conivência do Estado, quando flexibilizou as legislações ambientais, e pela permissividade diante das denúncias de violência direta nesses territórios. Essa situação não é nova no Brasil: desde a colonização, processos violentos são assistidos contra os povos originários. Vale recordar o papel danoso que os projetos de desenvolvimento historicamente cumprem na região amazônica. Um caso emblemático é o da construção da Hidroelétrica de Belo Monte na região de Altamira e do Rio Xingu, onde os conflitos por terra já se faziam presentes antes do início da construção de Belo Monte, mas à proporção que eles passaram a ter e a soma desses a outros – provocados diretamente pela obra – demarcam como os povos indígenas são afetados historicamente no país. A fala de uma indígena atingida por Belo Monte é ilustrativa:
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Pistas para análise da violência contra as mulheres em tempos de crise: aproximações e desafios no contexto de pandemia no Brasil Milena Fernandes Barroso Primeiramente, eles chegaram no nosso território derrubando nossa casa com motosserra. Queimaram, enterraram com trator, entendeu? Eles desmataram nossas ilhas, queimaram, enterraram o restante. E deixaram muita ilha sem fazer… sem derrubar. E isso tá em pé. Tá morrendo tudo, essas árvores. Essas árvores, a gente sabe que tem muita coisa venenosa, tem árvore venenosa. Então elas estão morrendo tudo. Não suprimiram. Então, isso tudo foi o impacto que vai gerar mais veneno pro nosso lago que tá água parada. A água não tá correndo mais, como corria antigamente. Nós não tem mais cachoeira, nós não tem mais corredeira, nós não tem mais praia, nós não tem igapó mais, nós não tem mais nosso lagos, nós não tem nossas piracemas, nós não tem mais nosso pedral. A metade da margem também foi alagada. Então, pra nós, foi extremamente impactada (ANDIROBA, 2017 apud BARROSO, 2018).
O relato explana que “a violência é uma forma de coação das pessoas, mas também da natureza. Ela se insere na dinâmica de exclusão de direitos territoriais e de acesso aos bens naturais” (NOBRE, 2017, p. 10), que para os indígenas não existe de forma separada, relacionando-se diretamente ao seu modo de viver. Destruir a natureza significa destruir-se a si mesmo, o que tem culminado no etnocídio e genocídio por outros meios. Como nos diz Juruna (2014, p. 314-315), [e]nquanto se constrói as ensecadeiras, destroem vidas humanas. Destroem toda uma história, toda uma cultura tradicional de povos originários deste território. Destroem o rio Xingu, como se este rio não tivesse vida, como se as suas veias não estivessem eternamente ligadas à vida dos povos indígenas que dele sobrevivem.
A mudança na dinâmica de vida, nos costumes, na reprodução da vida a partir da expropriação de suas terras e meios de trabalho tem trazido grandes repercussões para o contexto indígena. São danos que afetam a vida material e subjetiva, tais como a saúde, o sossego, os valores culturais, históricos e paisagísticos (SCARAMUZZI, 2017) e afetam diretamente, e de forma particular, as mulheres. Além dessa espoliação, tem se facilitado o comércio e o uso de bebidas alcoólicas, contribuindo para potencializar casos de violência doméstica nas comunidades. Outro elemento importante tem sido o grande movimento de pessoas não indígenas nas aldeias, especialmente trabalhadores, homens do ramo da construção civil, mineração, agronegócio, de forma a aumentar a exposição das mulheres também à violência sexual, havendo, inclusive, suspeitas de exploração sexual de indígenas por trabalhadores. Isso evidencia o corpo das mulheres também como um território (corpo-território) a ser explorado. A apropriação do corpo-território pela violência sexual, a invisibilidade da discriminação intra e interétnica, a pobreza e desterritorialização e o sentimento de injustiça são resultados da negação da identidade de mulher indígena e do desrespeito a sua cultura que põem em relevo o racismo como estruturante das relações de classe e sexo/gênero (ALMEIDA, 2019). A perspectiva de corpo-território revela ainda como se estrutura hoje a “exploração dos territórios sob modalidades neoextrativistas e como eles reconfiguram a exploração do trabalho, mapeando as consequências geradas pela espoliação dos bens comuns na vida cotidiana” (GAGO, 2020, p. 106). São corpos experimentados como territórios e territórios vividos como corpos, e, nesse sentido, destaca a impossibilidade de separar o corpo individual do corpo coletivo, o corpo humano do seu território. O conceito também ressignifica, conforme aponta Gago (2020), a noção de posse em termos de uso e não
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de propriedade, porque evidencia a lógica do comum como o plano daquilo que é possuído e explorado, e ainda permite desenvolver uma cartografia política do conflito. A despeito disso, a violência nesse contexto, apesar de concreta nos corpos-territórios das mulheres indígenas, ainda é permeada por silêncios, e os casos só conseguem visibilidade quando culminam em situações extremas. Porém, paralelo a esse silêncio, a violência tem se mostrado como uma questão de extrema gravidade, a ponto de as mulheres engendrarem estratégias de mobilização para reivindicação do reconhecimento dos seus direitos – trata-se de um tema que carece de visibilidade tanto pelos institutos de pesquisa como pela ciência. “Os registros, em sua maioria, são pontuais e relacionam-se às denúncias realizadas pelas mulheres indígenas em eventos e encontros” (BARROSO, 2015, p. 20). Daí a necessária ampliação do alcance e da definição de violência contra as mulheres, de forma a abarcar espaços e contextos diversos, como é caso dos territórios indígenas, deslocando as perspectivas cristalizadas, pensadas apenas a partir do espaço urbano e da lógica colonial. Logo, ao considerarmos os contextos e as determinações decorrentes das relações econômicas, políticas e da cultura de cada realidade, aferimos que a experiência das mulheres é contraditória e permite, além da dominação, reciprocidades, uma consciência da opressão e exploração e, consequentemente, das violências experienciadas. Nessa direção, registra-se a resistência e o protagonismo das mulheres nas lutas de enfrentamento à Covid-19 e na defesa de seus povos e territórios.
2.2 Experiências e conexões Trazer a singularidade da questão indígena remete tanto ao esforço de ampliar a definição de violências contra as mulheres quanto analisar tais violências a partir de uma situação singular – o corpo de cada uma – para então, no dizer de Gago (2020, p. 73), “produzirem uma compreensão da violência como fenômeno total”. A autora nomeia de “modo enraizado” de compreensão das violências e destaca sua transversalidade a todos os espaços/contextos: da família ao sindicato, da escola aos centros comunitários, do que acontece nas fronteiras ao que ocorre nas praças, nos contextos rurais, indígenas, urbanos. Destaca também a potência em se ter essa ancoragem material próxima, corpórea e concreta, afinal, ao se apreender essa conexão orgânica da violência sem perder de vista a singularidade. É possível ir além da classificação das mulheres como vítimas. Além de possibilitar a conexão entre a multiplicidade de expressões da violência, apreender as experiências possibilita alcançar a dinâmica da violência no cotidiano das mulheres. Nesse sentido, partimos da compreensão da violência contra as mulheres como sendo o controle sobre os corpos das mulheres e feminino o qual articula experiências e práticas que se distinguem pela intensidade, extensão e manifestações. Acreditamos que tal conceito amplia as possibilidades de apreensão do fenômeno, pois supera as análises meramente tipológicas e/ou, como já destacado, enclausuradas à violência doméstica íntima. Nesse sentido, priorizamos também destacar o trabalho reprodutivo, que, apesar de se referir ao contexto doméstico, não é considerado habitualmente como uma expressão da violência contra as mulheres. Aqui vale uma ressalva, pois, conforme destacou Federici (2019), o problema não é o trabalho doméstico e de cuidado em si mesmos, mas o papel que eles ocupam pelo lugar da vida no capitalismo, a saber: dos casos citados no início deste artigo, pelo menos quatro fazem relação com o trabalho de cuidado
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realizado por mulheres dentro ou fora do espaço doméstico. No contexto da pandemia, por exemplo, são mulheres a maioria das profissionais que estão na linha de frente do enfrentamento à covid-19 (em diversas atividades) e as principais responsáveis pelo trabalho doméstico e de cuidado com idosos, crianças, entre outros. Para acessarmos essa expressão da violência contra as mulheres, é importante destacar que a violência se mostra tanto nas formas diretas, contingentes, como de um modo indireto e aparentemente “natural”, atrelado ao caráter alienante e explorador das relações sociais. Assim, a exploração do trabalho reprodutivo, de tão imprescindível e imiscuído na própria lógica capitalista, não é apreendido como violência. Dizemos incorporação imprescindível porque o trabalho doméstico não remunerado continuou a desempenhar um papel central na organização capitalista do trabalho e é “um dos principais pilares da produção capitalista, ao ser o trabalho que produz a força de trabalho” (FEDERICI, 2017a, p. 12). Apesar de a teoria social crítica considerar indissociáveis as esferas produtiva e reprodutiva4, a divisão sexual do trabalho e o trabalho doméstico –fundamentais na esfera reprodutiva –não foi reconhecida como central para o circuito ampliado do capital, o que Saffioti (1984, p. 45-46), ao referirse ao trabalho não pago exercido principalmente pelas mulheres, destaca: […] na articulação entre as formas capitalistas e não-capitalistas de produção, as primeiras beneficiam-se não apenas de exploração de que são objeto os agentes do trabalho subordinado diretamente ao capital, como também da exploração de que são alvo os agentes do trabalho não remunerados ou remunerados com renda. Dentre estes, embora haja homens, as mulheres constituem os contingentes quantitativamente mais significativos.
Para Federici (2017b, p. 10), “Marx deveria ter percebido que o trabalho doméstico, apesar de ter aparecido como uma atividade do passado, que satisfazia puramente ‘necessidades naturais’”, uma forma de trabalho historicamente específica, produto da separação entre produção e reprodução, trabalho remunerado e não remunerado, nunca existiram em sociedades pré-capitalistas ou sociedades não reguladas pela lei do valor. A autora também destaca que, após ter chamado a atenção contra a mistificação produzida pela relação salarial, deveria ter visto que, desde a sua criação, o capitalismo “subordina atividades reprodutivas – na forma de trabalho feminino não remunerado – à produção de força de trabalho e, consequentemente, o trabalho não remunerado que os capitalistas extraem dos trabalhadores é muito mais conspícuo do que o extraído durante a jornada de trabalho remunerado, pois inclui as tarefas domésticas não remuneradas das mulheres, até reduzidas ao mínimo”.5
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Conforme aponta Engels (1987), “o fato decisivo na história é, em última instância, a produção e a reprodução da vida imediata. Mas essa produção e essa reprodução são de dois tipos: de um lado, a produção de meios de existência, de produtos alimentícios, habitação e instrumentos necessários para tudo isso; de outro lado, a produção do homem mesmo, a continuação da espécie”. Embora em sua obra não tenha utilizado a categoria relações de sexo ou gênero, a ideia do caráter antagônico da relação homem-mulher está presente em sua obra. É certo que ele não se ocupou desse recorte, mas forneceu os elementos para se empreenderem esforços no intento de se fazerem avançar os debates sobre a temática (SILVA, 1992, p. 28). 5 Sobre esse debate, consultar Federici (2017b) e Saffioti (1984).
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Aqui, ocorre uma articulação entre velhas e novas formas de violência, em que permanece a intensificação da exploração do trabalho das mulheres ou a apropriação do corpo das mulheres, mas não a partir das mesmas condições. Conforme apontam Federici (2019) e Gago (2020), a dignidade masculina fundada no “patriarcado do salário” está sendo colocada em questão. Assim, o salário que operava para os homens de medida objetiva de seu status no mercado de trabalho e funcionava como ferramenta política para garantir o trabalho obrigatório e não remunerado das mulheres no lar, hoje, não está assegurando às maiorias como meio de reprodução. Nesse sentido, “devido ao colapso do salário como medida objetiva de autoridade masculina, a violência machista se torna desmedida no lar: as masculinidades já não estão contidas pelo valor que o salário ratifica e, por isso, necessitam afirmar sua autoridade de outros modos” (GAGO, 2020, p. 84). Aqui nos parece uma chave de explicação para o aumento dos casos de violência doméstica e feminicídio durante a pandemia. Afinal, esse período também foi marcado pelo crescimento do desemprego em razão da demissão de milhares de trabalhadores e do endividamento pela fragilidade das relações de trabalho, em sua maioria precarizadas e informais. Segundo dados da Pnad Covid-19,6 7,8 milhões de postos de trabalho foram fechados, contabilizando 12,7 milhões de desempregados no Brasil entre os meses de abril e maio de 2020. Nos termos de Gago (2020, p.84), “a crise de desemprego e de precarização e as condições cada vez mais duras de exploração fazem com que a violência doméstica estruture a dominação patriarcal que antes estava mediada e medida pelo salário – embora a violência fosse sempre uma latência legítima de disciplinamento interno”. A violência contra as mulheres também se expressa no trabalho doméstico remunerado, como ocorreu no caso da morte do filho da trabalhadora doméstica, negra, no seu local de trabalho no município de Recife. A violência nessa situação não se manifestou diretamente no corpo físico da mulher, mas, ao entendermos esse corpo como corpo-território em sua dimensão social e política, essa mulhermãe teve seu corpo, dignidade e vida diretamente afetados. Apesar de aparentemente não se apresentar como violência, a situação expõe um conjunto de violências pelo qual as mulheres domésticas vivenciam, a iniciar pela negação à proteção e ao descanso, quando à trabalhadora foi cerceado o direito ao isolamento físico com remuneração durante o período de pandemia. A saber, estudo do Instituto Locomotiva aponta que apenas 39% dos/as empregadores/as dispensaram serviços e seguiram remunerando as suas trabalhadoras domésticas nos tempos de exigência de quarentena. Soma-se a isso o fato do maior risco de contaminação para a trabalhadora doméstica e sua família ao se deslocar de casa para o trabalho, quando as orientações sanitárias indicavam o contrário. A experiência, apesar de singular, guarda relação com a totalidade das mulheres trabalhadoras domésticas no Brasil, que seguiram trabalhando fora (em lares de outras mulheres) e dentro de suas casas no contexto da pandemia. Conforme estudo do Ipea, além de precário, o trabalho doméstico remunerado é caracterizado como uma atividade de baixos rendimentos, pequena proteção social, discriminação e assédio. Do total de trabalhadoras domésticas com remuneração (mais de 6 milhões), 92% são mulheres – em sua maioria negras, de baixa escolaridade e oriundas de família de baixa renda. Almeida (2019, p. 172) assevera nessa direção que:
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Versão da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) realizada com o apoio do Ministério da Saúde para identificar os impactos da pandemia no mercado de trabalho.
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Pistas para análise da violência contra as mulheres em tempos de crise: aproximações e desafios no contexto de pandemia no Brasil Milena Fernandes Barroso […] o racismo normaliza a superexploração do trabalho, que consiste no pagamento de remuneração abaixo do valor necessário para a reposição da força de trabalho e maior exploração física do trabalhador, o que pode ser exemplificado com o trabalhador ou a trabalhadora que não consegue com o salário sustentar a própria família ou a faz com muita dificuldade, e isso independentemente do número de horas que trabalhe. A superexploração do trabalho ocorre especialmente na chamada periferia, onde em geral o capitalismo se instalou sob a lógica capitalista. O racismo, certamente, não é estranho à expansão colonial e à violência dos processos de acumulação primitiva de capital que liberam os elementos constitutivos da sociedade capitalista.
Em consonância com essa perspectiva, a dimensão racial é central para a exploração do trabalho. Assim, uma vez que o racismo opera como normalizador da precarização do trabalho de negros e negras, podemos aferir que também o é no trabalho doméstico de base escravista realizado, em sua maioria, pelas mulheres negras. Apesar de algumas trabalhadoras de outras áreas (amparadas por direitos trabalhistas) terem garantido a possibilidade do isolamento físico remunerado durante a pandemia, ficou nítida a essencialidade sem precedentes do trabalho de cuidado para a manutenção da vida e da própria economia capitalista, porém, sem implicar redução das desigualdades que permeiam o trabalho reprodutivo (quase sempre informal e desvalorizado), mas agravando-as. Nessa direção, Federici (2019) afirma que é com base no trabalho de cuidado doméstico que o sistema capitalista se sustenta: o trabalho reprodutivo não remunerado ou de baixa remuneração realizado dentro das casas é um trabalho conformado pelo e para o capital a fim de garantir a sua funcionalidade. E, apesar de o setor de cuidados ser estatisticamente o maior nicho de trabalho do mundo, segue não reconhecido, precarizado ou não remunerado. Ademais, para as mulheres em confinamento durante a pandemia, a combinação da violência conjugal com a sobrecarga de trabalho revela conexões entre violências que crescem e se retroalimentam, tais como a violência nas relações afetivo-sexuais com a violência da desigualdade entre trabalho produtivo e reprodutivo. Assim dizendo, como no interior mesmo do conjunto da classe trabalhadora, distintas formas de assujeitamento são vividas pelas mulheres (inclusive implicando desigualdades entre as próprias mulheres), mas resultando, de todo modo, em formas permanentes de reprodução da violência, que, por ser estrutural (BARROSO, 2018), torna-se um meio pelo qual o capitalismo se apropria, explora e oprime seus corpos.
3 A violência que permanece… Diálogo durante a pandemia no Brasil: - Você não fica com receio de receber a diarista por causa da pandemia? - Ficamos dois meses sem, mas a sujeira da casa já estava mais perigosa do que ela vir. Ela vem de máscara e, ao chegar, toma as medidas necessárias para evitar ao máximo contaminação. O apto é grande, então não ficamos no mesmo ambiente (QUEBRANDO..., 2020).
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O registro acima foi coletado em uma rede social de grande alcance, a partir de “quiz” envolvendo o trabalho doméstico remunerado durante o período de “confinamento obrigatório” no país. Trazê-lo aqui tem a intenção de desmitificar a ideia fantasiosa de que as relações não serão as mesmas, de que a vida será ressignificada e a pandemia mudará qualitativamente as pessoas, a sociedade, nos tornando pessoas melhores e mais humanas. A violência que o diálogo expressa diz respeito à opressão das e entre mulheres nas relações de trabalho. Daí que, longe de querermos caminhar na direção de uma culpabilização individual dos sujeitos, o diálogo e a reflexão desenvolvida ao longo do texto buscam explicitar que a violência é estrutural e, nesse sentido, não será alterada pela vontade isolada e individual dos sujeitos. Ao nos possibilitar uma das mais profundas e abrangentes reflexões sobre o contexto da pandemia, Krenak (2020), a partir da cosmologia indígena, nos questiona se somos de fato uma humanidade, ao referir a perda do sentido do que é ser humano e a naturalização de uma sub-humanidade expressa na miséria das condições de vida e da própria vida humana na relação da ideia de humanidade atrelada ao desenvolvimento e progresso. Partindo dessa provocação, do diálogo acima e das expressões destacadas ao longo do texto, que buscam explicitar a conexão de violências, ampliando a concepção de violência contra as mulheres a partir das determinações econômicas, políticas, institucionais e sociais, acreditamos que não é possível vislumbrar a pandemia como salvação ou redenção, ou considerar que, a partir dela, mudanças qualitativas e estruturais ocorram. Afinal, não como externalidade, mas como parte mesmo da contraditória humanidade, a exploração, dominação e opressão que, muitas vezes, aparece como “desumanização” e se expressa nas violências diversas contra as pessoas e a natureza em ritmo e brutalidade maiores é parte e condição para o capitalismo. Além disso, “há cada vez mais evidências de que as causas na raiz dessa atual onda de violência são as novas formas de acumulação de capital, que envolvem a desapropriação de terras, a destruição das relações comunitárias e uma intensificação na exploração do corpo e da mão de obra das mulheres” (FEDERICI, 2019, p. 91). Assim, a breve análise da violência contra as mulheres no contexto de pandemia aqui empreendida nos coloca como imprescindível a discussão do trabalho reprodutivo, não porque o consideramos uma violência em si mesmo, mas pelo lugar que esse trabalho ocupa de reprodução da vida no capitalismo e a possibilidade que ele tem de nos revelar o caráter estrutural da opressão ao corpo das mulheres. Nessa direção, a reflexão confirma que a economia capitalista se constrói e se sustenta pelo uso de um tipo de trabalho invisibilizado, precarizado e essencialmente realizado por mulheres: o trabalho de cuidado. Essa análise remete às distintas formas pelas quais as mulheres trabalhadoras são assujeitadas à violência nesse período da pandemia, também pelos distintos modos de inserção em relações de trabalho. No primeiro plano, o trabalho doméstico, que se refere aos estratos mais pauperizados da classe trabalhadora, quais sejam, as mulheres racializadas – destituídos de direitos e garantias trabalhistas. No segundo, são mulheres que, ainda que consigam não se submeter aos “riscos externos” da pandemia, acabam assujeitadas aos “riscos internos” pela violência doméstica, que também abrange o “trabalho de casa” não remunerado. Ademais, o período de crise capitalista nos permite questionar as estruturas produtivas e reprodutivas – que o feminismo propõe há tempos – e nos convoca a reinventar a análise e modos sociais pelos quais seriam possíveis de atribuir uma nova arquitetura às atividades que, em essência, sustentam a vida. Das violências que também permanecem e que nos limites do artigo não foi possível aprofundar, gostaríamos de chamar atenção para a invisibilidade das violências não apenas contra as mulheres indígenas, mas das mulheres em situação de prisão, as profissionais do sexo e as mulheres transexuais e
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travestis, que seguem em guerra afirmando seus corpos-territórios e o direito de existir. São violências que se sustentam umas às outras e, ao que parece, apreender essas conexões é umas das chaves centrais para a construção de resistências amplas e plurais. Por fim, chamamos atenção para o fato de que tais reflexões tornar-se-ão ainda mais imprescindíveis num contexto em que teremos: a) as veias mais abertas com o aprofundamento da crise capitalista; b) a ampliação da precarização das relações de trabalho e da crise social (em geral) e sua agudização sobre a vida das mulheres, em particular das mulheres negras e indígenas; c) o indicativo do caráter mais longevo do trabalho em casa para algumas atividades exercidas por mulheres, que continuarão ou passaram a ser sujeitas de maiores violências, inclusive o risco do feminicídio; d) também como produto da crise, a intensificação das atividades de expropriação de terras indígenas como forma de ampliação de territórios de acumulação para um capital em crise, impactando diretamente a vida das mulheres indígenas e populações tradicionais em geral. Ou seja, um cenário que, se por um lado, nos catapulta à necessidade de uma maior reflexão crítica e formas reinventadas de ação, por outro nos põe desafios de grandes proporções no pós-pandemia.
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Submetido em: 20 ago. 2020 Aceito em: 17 nov. 2020
DOI: 10.19180/1809-2667.v22nEspecial2020p907-927
Violência do Estado e expropriação das populações indígenas no Brasil contemporâneo: terra, território, trabalho e criminalização da Questão Social State violence and expropriation of indigenous populations in contemporary Brazil: land, territory, work and criminalization of Social Issue Violencia estatal y expropiación de poblaciones indígenas en el Brasil contemporáneo: tierra, territorio, trabajo y criminalización de la Cuestión Social William Berger https://orcid.org/0000-0002-3025-3813 Doutor em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2017). Professor adjunto do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) – Vitória/ES – Brasil. E-mail: williambergere@gmail.com.
Resumo Este artigo apresenta a problemática indígena como expressão da questão social na formação econômica, social e espacial brasileira e suas expressões na contemporaneidade. As categorias terra e território, a partir da centralidade do trabalho, são tomadas como fundamento histórico do desenvolvimento desigual e combinado. Desde a formação do capitalismo dependente na América Latina, sob a exploração e opressão das raízes indígenas e negras, perpetuou-se o sentido da colonização escravista. Processo marcado por uma profunda violência do Estado com expropriação e superexploração dos povos tradicionais da região. No contemporâneo contexto urbano com o contínuo processo de expulsão desses povos de suas terras, criminalização e furto de direitos, em uma sociedade supostamente democrática, dá-se a tônica da expropriação. Terra, território e trabalho são, assim, três categorias fundantes da questão social na América Latina, que só se compreende a partir da centralidade da questão agrária. Palavras-chave: Violência. Terra. Território. Trabalho. Questão Social.
Abstract This article presents the indigenous problem as representative of the social issue in the Brazilian economic, social and spatial formation, as well as its expressions in contemporary times. The categories of land and territory, based on the centrality of work, are used as historical foundation of uneven and combined development. Since the formation of dependent capitalism in Latin America, under the exploitation and oppression of indigenous and black roots, the sense of slavery colonization has been perpetuated, a process marked by deep State violence with expropriation and overexploitation of the traditional peoples of the region. Expropriation is emphasized in the current urban context, with the continuous process of expelling these people from their lands, criminalization and theft of rights, in a supposedly democratic society. Land, territory and work are, therefore, three founding categories of the social issue in Latin America, which can only be understood from the centrality of the agrarian question. Keywords: Violence. Land. Territory. Work. Social Issues.
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Resumen
Este artículo presenta el problema indígena como expresión de la cuestión social en la formación económica, social y espacial brasileña y sus expresiones en los tiempos contemporáneos. Las categorías de tierra y territorio, basadas en la centralidad del trabajo, se toman como base histórica del desarrollo desigual y combinado. Desde la formación del capitalismo dependiente en América Latina, bajo la explotación y la opresión de las raíces indígenas y negras, el sentido de colonización de la esclavitud se ha perpetuado. Proceso marcado por una profunda violencia de Estado con expropiación y sobreexplotación de los pueblos tradicionales de la región. En el contexto urbano contemporáneo, con el proceso continuo de expulsión de estos pueblos de sus tierras, la criminalización y el robo de derechos, en una sociedad supuestamente democrática, se enfatiza la expropiación. La tierra, el territorio y el trabajo son, por lo tanto, tres categorías fundacionales de la cuestión social en América Latina, que solo pueden entenderse desde la centralidad de la cuestión agraria. Palabras clave: Violencia. Tierra. Territorio. Trabajo. Cuestión Social.
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Violência do Estado e expropriação das populações indígenas no Brasil contemporâneo: terra, território, trabalho e criminalização da Questão Social William Berger
1 Introdução A temática que aqui se apresenta é parte impostergável do debate sobre as expressões da questão social na contemporaneidade, em especial no debate étnico-racial, que articule categorias fundantes para compreender a violência de Estado contra as populações indígenas no Brasil, entendendo este no contexto latino-americano. Para tanto, definir e articular terra, território e trabalho, compreende um movimento dialético de apreensão da atual criminalização da questão social que enfrentamos na América Latina, e que é a própria concreção de relações sociais de dependência e superexploração do trabalho, com a opressão às raízes negra e indígena em nossa formação econômica, social e espacial, base do histórico desenvolvimento desigual e combinado (TROTSKY, 1985) aqui imposto como projeto capitalista tardio de sociedade. Contemporaneamente, o contínuo processo de expulsão dos povos indígenas de suas terras, para o contexto urbano, se dá com criminalização e furto de direitos, em uma sociedade, supostamente democrática, que lhes impõe a expropriação e a violência. Faz-se mister entender que a história dessas populações é uma história de resistência, indignação e luta diária por sua sobrevivência material e cultural. A lógica do capital busca se instaurar por todos os poros da vida humana. Manter costumes e tradições e entender que sua defesa implica a garantia do território tradicional, nos convoca a uma pauta de defesa intransigente dos direitos humanos, como preconiza o Código de Ética dos/as assistentes sociais de 1993 e o projeto ético-político do Serviço Social, em busca de uma outra sociedade sem exploração e opressão de classe, etnia e gênero, bem como geração. Uma das únicas reuniões de estudos com a temática aqui estudada na área da Política Social/Serviço Social é a coletânea organizada por William Berger intitulada “No Olho do Furacão: populações, lutas sociais e Serviço Social em tempos de barbárie” (BERGER, 2019), com 7 artigos específicos sobre: a temática indígena na América Latina, indígenas em contexto urbano, a política de saúde indígena, a assistência social com/para povos indígenas, políticas de ações afirmativas indígenas, o/a estudante indígena brasileiro/a e o acesso ao ensino superior e a literatura produzida por autores/as indígenas como projeto de reconhecimento da questão indígena. Destacamos também o artigo recentemente publicado (2020) pela Revista Em Pauta, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), intitulado “A questão indígena no Serviço Social: um debate necessário na profissão”, de autoria de Wagner Roberto do Amaral e Jenifer Araújo Barroso Bilar1. Este artigo tem por objetivo desvelar as categorias terra, território e trabalho como fundantes da questão social na América Latina, que só se compreende a partir da centralidade da questão agrária, pela violência de Estado contra os povos indígenas, em outras palavras, estas terras e territórios usurpados destas populações e a escravização colonial, com a ininterrupta invasão nesses 520 anos, de indígenas e negros e sua posterior transformação em força de trabalho para o capital, é parte germinal do que se chamou de Brasil e que se caracteriza até os dias de hoje como modelo de Estado aqui imposto. Na sequência é realizada a explicitação da metodologia, apresentação dos resultados obtidos, desenvolvimento das categorias citadas e as considerações finais. A importância deste debate se mostra quando constatamos a relativa ausência de estudos aprofundados sobre este tema e para entender a amplitude da chamada questão social em sua expressão indígena, presentes no debate atual ante as formas de criminalização a grupos étnicos e sociais em um país 1
In: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaempauta/article/view/52013. Acesso: 16 nov. 2020.
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com forte herança conservadora, que mantém o sentido da colonização e a herança do escravismo, de que nos fala Caio Prado Júnior (1961), em tempos de barbárie (NETTO, 2012) e crise estrutural do capital (MÉSZÁROS, 2009). É preciso destacar ainda que o documento do CFESS (2013) nos chama atenção para o fato de que: A condição de existência das populações indígenas é o território, e este é objeto de disputas com as populações indígenas que resultam em mortes, expropriação, extermínio cultural e físico, sendo as suas terras o principal alvo em prol de um modelo econômico que depreda, devasta, aniquila povos, culturas e o meio ambiente.
Em 1500, segundo estudos da FUNAI, a população indígena nestas terras era de aproximadamente 3 milhões de habitantes. 2 milhões no litoral e 1 milhão no interior. Em 1650 este total caiu para 700 mil e em 1957 era de 70 mil. Nos dias atuais ainda temos 305 etnias falantes de 274 línguas diferentes. O censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010 constata um crescimento para 817,9 mil indígenas autodeclarados. No Censo 2010, podemos observar que 817,9 mil pessoas se autodeclararam indígenas, o que significou um crescimento no período 2000/2010 de 11,4% (84 mil pessoas), bem menos expressivo do que o do período 1991/2000, de aproximadamente 150% (440 mil pessoas), conforme podemos ver na Tabela 1.
Tabela 1. População residente, segundo a situação do domicílio e condição de indígena Brasil 1991/2010 1991 2000 2010 Total(1) 146.815.790 169.872.856 190.755.799 Não indígena 145.986.780 167.932.053 189.931.228 Indígena 294.131 734.127 817.963 Urbana(1) 110.996.829 137.925.238 160.925.792 Não indígena 110.494.732 136.620.255 160.605.299 Indígena 71.026 383.298 315.180 Rural(1) 35.818.961 31.947.618 29.830.007 Não indígena 35.492.049 31.311.798 29.325.929 Indígena 223.105 350.829 502.783 Fonte: IBGE (2012) Nota: Considerou-se como população residente não indígena as categorias de 1 a 4 do quesito da cor ou raça. Para comparação com os Censos Demográficos de 1991 e 2000, deve-se considerar a categoria 'indígena' do quesito da cor ou raça (1) Inclusive sem declaração de cor ou raça.
Inferimos que isto se deve, principalmente, à inclusão da categoria dos Indígenas do Nordeste e do Leste, populações antes tidas como caboclos (miscigenação de indígenas, negros e brancos), que passaram a se reconhecer e autonomear indígenas (Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho OIT), a retomar territórios e territorialidades tradicionais num processo de re-“invenção das tradições” (HOBSBAWN; RANGER, 1989) e à autodeclaração dos indígenas em contexto urbano. Estamos falando aqui de mais de 520 anos de violência de Estado que resultam no persistente genocídio indígena e no atual descaso perante a pandemia da Covid-19, que se expressa em 20.255 casos
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de infectados em terras indígenas, com 345 óbitos até 18 de agosto de 20202, sendo 78 povos atingidos, sem contar os indígenas mortos e infectados em contexto urbano subnotificados, onde, por exemplo, Manaus é a capital mais atingida por Covid-19 no Brasil. De 19 a 25 abril, quando a cidade se tornou o epicentro da pandemia no Amazonas, foram 915 mortes registradas, contra 215 na mesma semana de 2019. Um aumento de 350%. Violência feita pelo descaso. Muito antes da declarada invasão europeia nessas terras, em 1500, temos notícias de viajantes que aqui exploraram os territórios, e, após o momento de escrita deste texto, continuam diuturnamente as expropriações e violências contra esses povos. Falamos aqui de massacres planejados e executados para ocupação de seus territórios e implantação da lógica do valor de troca sobre o valor de uso (MARX, 1985), expropriação de suas terras e transformação de sua sociabilidade em um modo de pensar e agir capitalista, onde o ser humano se torna coisa, passível de ser escravizado, trocado, descartado, exterminado, matado e transformado em vendedor de sua força de trabalho para o capital, em troca da sobrevivência, pela mediação do salário. O trabalho escravo ainda é intenso no Brasil: “Entre 1995 e 2016, mais de 50 mil pessoas foram libertadas, segundo dados do MPT (Ministério Público do Trabalho). Ou seja, em 21 anos, seis pessoas foram resgatadas por dia no país” (CONECTAS, 2018)3. É preciso lembrar que o primeiro genocídio indígena é superior ao número total de vítimas do holocausto nazista; que 68% dos conflitos giram em torno da questão da posse da terra; que 67% dos massacres são feitos por fazendeiros latifundiários. Assim, a questão da expropriação e posse da terra, a questão fundiária, é fundamental para a permanência do conflito indígena. Estamos nos referindo a 57 extermínios de indígenas por ano no Brasil até 2017, onde os massacres na atualidade chegam a matar entre 108 a 126 indígenas anualmente (BERGER, 2018). Importante instrumento de pesquisa sobre a violência contra os povos indígenas, é a Plataforma CACI (Cartografia de Ataques Contra Indígenas), da Fundação Rosa Luxemburgo4, para dar visibilidade aos assassinatos de indígenas no Brasil e que mostra em dados a maneira como a questão social se expressa na violência e criminalização desses povos na atualidade. A palavra Caci na língua Guarani significa “dor” e expressa as consequências da lógica da sociedade do capital, como age sobre as terras indígenas (suas terras), no extermínio de seus povos e suas diferentes culturas, desde 1500, do processo de acumulação primitiva do capital (MARX, 1985), aos dias de hoje de crise estrutural do capital (MÉSZÁROS, 2009) e barbárie (NETTO, 2012). Conforme dados da Plataforma CACI (2020), temos 1.125 casos de assassinatos de indígenas em terras indígenas (TIs) em todo o Brasil até 2020. A recordista é a região Centro-Oeste e o estado Mato Grosso do Sul (MS), com 450 casos de assassinatos de indígenas ligados à questão da terra, até 2020. Só na cidade de Dourados, onde se concentram os Guarani Kaiowá, os Guarani Nhandeva e os Terena, apenas essas três etnias, somam 178 casos de assassinatos em toda a região até 2020. Na cidade de Amambaí no MS, segunda mais populosa do estado com 7.500 indígenas, são 124 casos de assassinatos de indígenas da etnia Guarani Kaiowá até 2020. No Nordeste chama a atenção o estado de Pernambuco 2
Dados que são atualizados diariamente no site da APIB. Disponível em: https://covid19.socioambiental.org/?gclid=CjwKCAjwm_P5BRAhEiwAwRzSO3yO7owrWLXEZmbm08aCU8pKXpD1IgdvhK5zW6O_mzwBK9mk-B5ehoCb_YQAvD_BwE. Acesso: 18 ago. 2020. 3 Disponível em: https://www.conectas.org/noticias/lista-suja-trabalho-escravo?gclid=CjwKCAjwm_P5BRAhEiwAwRzSOO_hqBII_7QTmIJ8DC5FrzD5ZSAz7Iy_aOeeKAz9zYM3HnWvc_nLBoCuh0QAvD_BwE. Acesso: 18 ago. 2020. 4 Disponível em: http://caci.rosaluxspba.org. Acesso: 1 ago. 2017.
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com 73 casos de assassinatos de indígenas e o sul da Bahia (BA), na região do território Pataxó, Pataxó Hã-hã-hãe Catarina Paraguaçu, que abrange os municípios de Camacan, Itaju da Colônia e Pau Brasil, Pataxó de Santa Cruz de Cabrália, Eunápolis, Porto Seguro (BA), Maxacali de Santa Helena de Minas (MG), somam, até 2020, 85 casos envolvendo assassinatos de indígenas ligados à questão da terra. Na região Norte, ainda, uma etnia que tem pouca visibilidade em seus conflitos, são os Amanayé, das cidades de Paragominas e Ipixuna do Pará (PA), com 106 casos de assassinatos de indígenas em TIs até 2020. Na região amazônica, destaca-se o número de 63 assassinatos só na TI Yanomami, cidades de Caracaraí, Alto Alegre, Boa Vista, Barcelos, São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro, no estado do Amazonas e Roraima (AM/RR), seguido dos territórios do Evaré I, Sururuá, Guanabara e Vale do Javari, com 43 assassinatos de indígenas Tikuna, Kokama, KulinaPáno, Matis, Matses, até o momento, onde são intensas as invasões por mineradoras. Também Raposa Serra do Sol, das etnias Wapichana, Ingariko, Makuxi e Taulipang, dos municípios de Normandia, Pacaraima e Uiramutã, estado de RR, com 43 assassinatos recentes de indígenas em TIs. Raposa Serra do Sol foi o caso mais polêmico no segundo governo Lula da Silva (2008), devido ao embate dos indígenas com o Estado pela demarcação de suas terras, o que evidenciou a continuidade neoliberal da expropriação e violência aos povos indígenas mesmo nos governos do Partido dos Trabalhadores (PT). No sul do Brasil, destacam-se 62 casos de assassinatos de indígenas Kaigang, Xokléng e Guarani em suas terras até 2020 nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná (RS/SC/PR) (CACI, 2020). No governo Dilma Roussef, tivemos ainda o emblemático caso da usina de Belo Monte construída no Rio Xingu e que atingiu seriamente as etnias da reserva do Xingu, estado do Pará (PA), além de 28 mil trabalhadores da terra e indígenas da bacia do Xingu que somam 28 etnias. Os impactos do empreendimento geraram o maior êxodo de migrantes dos últimos anos. O desastre ambiental da empresa Samarco Mineradora em Mariana (MG) atingiu 3 povos indígenas: os Tupiniquim e os Guarani no ES e os Krenak em MG (CIMI, 2015) e a Vale Mineradora em Brumadinho (2018) no território dos indígenas Pataxó Hã-hã-hãe, expressam a violência e o racismo ambiental5 contra esses povos, inviabilizando material e culturalmente seus modos de vida em atividades produtivas como a pesca e a caça (os animais que consumirem as águas contaminadas não podem ser consumidos, devido ao metal pesado dos rejeitos misturados à água dos rios), além de que as águas dos rios foram comprometidas sem mensuração em escala de tempo para o consumo humano. Além dos homicídios aqui referidos da plataforma CACI, o CIMI (2015) relata 87 casos de suicídios com registro, até o ano de 2015; 45 desses foram no MS, o caso dos Guarani Kaiowá; 24% dos casos, entre 10 e 14 anos; 37%, entre 15 e 19 anos e 22%, entre 20 e 29 anos. De 2000 a 2015 no MS somam um total de 752 suicídios que expressam a “barbárie invisível” com dizimação dos jovens Guarani Kaiowá. A violência contra os povos indígenas não para por aí. Acresce-se a esse cenário de horror, os espancamentos, sequestros, torturas e estupros e o que se vê, por parte da FUNAI, é a contradição de uma 5
“É um termo cunhado por uma pessoa negra, para que ninguém tenha dúvidas da importância de sua origem na luta racial, no caso pelo Dr. Benjamin Franklin Chavis Jr. Ele, que é um líder negro pelos direitos civis, chegando em sua juventude a ser assistente de Martin Luther King Jr., no ano de 1981 cunhou o termo a partir de suas investigações e pesquisas entre a relação de resíduos tóxicos e a população negra norte-americana.”. Disponível em: https://www.geledes.org.br/racismoambiental-o-que-e-importante-saber-sobre-oassunto/?gclid=CjwKCAjwm_P5BRAhEiwAwRzSO4rlgNrTKrh3NWORcltvj2uMkbMSXjxAaxpto_KvADmC6CgIuv mHABoCfHcQAvD_BwE. Acesso: 18 ago. 2020.
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instituição fundada para garantir seus direitos, mas que o faz mediante a tutela, em regiões hostis, onde fazendeiros têm treinado milícias para atacar comunidades indígenas (CIMI, 2020). Na semana do afastamento da então presidenta Dilma Roussef, em 2016, foi realizado o 13º Acampamento Terra Livre (ATL), espaço nacional de organização de luta dos povos indígenas, que foi atacado em Brasília com força armada, ocasionando dezenas de indígenas feridos. Os povos indígenas estão na prioridade dos ataques destes governos neoliberais e ultraliberais. A título de exemplo, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215/006 e outras proposições legislativas contra os indígenas espalharam, através de uma formação de consenso e coerção7, o ódio contra os povos indígenas. Como resultado, temos os extermínios de indígenas expostos anteriormente, a criminalização das resistências indígenas em seus territórios de origem e no contexto urbano. É esta a ação do capital em invasões com o intuito de expropriação, posse e exploração dos recursos naturais dessas populações, de forma predatória, o que expressa uma lógica contrária aos direitos dos povos indígenas no Brasil, previstos na Constituição Federal de 1988, pela criminalização das lutas territoriais, parte significativa da questão social na contemporaneidade e que toma por fundamento terra, território e trabalho, como objeto de expropriação, exploração e dominação das elites agrárias e da burguesia nacional sobre indígenas, quilombolas e negros pobres do campo e da cidade.
2 Metodologia Na metodologia partimos da relação teoria-método com base no materialismo histórico-dialético, por aproximações sucessivas ao objeto e entendendo o real como síntese de múltiplas determinações, unidade do diverso. A categoria totalidade no método em Karl Marx nos coloca na posição de observar o fenômeno a partir de determinado mirante (LÖWY, 1994), do qual desvelamos as três categorias centrais (terra, território e trabalho), na processualidade histórica da criminalização da questão social pela violência de Estado contra as populações indígenas. Partimos da singularidade à universalidade, para a compreensão da particularidade de nosso tema de estudo. Nos procedimentos metodológicos, realizamos pesquisa bibliográfica e documental, com análise de dados (GIL, 2008) em plataformas referenciadas nacional e internacionalmente como Plataforma Cartografia de Ataques contra Indígenas (CACI), Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e sites confiáveis com fontes seguras e socialmente referendadas. O marco inicial da coleta de dados se deu com buscas sobre publicações nos portais da Capes, Scielo e Google Acadêmico entre 2003 e 2017 e na plataforma CACI até o ano de 2020.
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“A PEC 215/00 propõe a transferência de responsabilidades sobre a demarcação de terras indígenas do Poder Executivo para o Legislativo, desrespeitando a Constituição de 1988, cujos direitos ali expressos representam uma conquista de todo povo brasileiro. Na prática, essa transferência significa que a definição sobre as terras onde os indígenas poderão exercer seu direito à permanência física e cultural está sujeita às maiorias políticas de ocasião. Sabemos que hoje esta maioria representa interesses pessoais e financeiros e atua para que não seja demarcada nenhuma terra indígena, como foi dito explicitamente por parlamentares membros da Comissão Especial, que ontem aprovou a PEC 215/00.”Disponível em: http://www.funai.gov.br/index.php/comunicacao/noticias/3494-nota-da-funai-sobre-a-pec-215-00. Acesso: 16 nov. 2020. Usamos aqui a acepção de que nos dá Antônio Gramsci a respeito da Hegemonia como a combinação de coerção e consenso (GRUPPI, 1991).
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3 Resultados Como resultados deste movimento dialético de análise da realidade obtivemos: 1. Compreensão histórico-crítica do fenômeno: violência do Estado e expropriação das populações indígenas no Brasil contemporâneo. 2. Apreensão das diferentes áreas do saber (Economia, Sociologia, Geografia Humana e Serviço Social/Política Social) no trato da temática estudada. 3. Aproximação aos principais elementos da formação econômica, social e espacial brasileira. 4. Desvelamento da relação de totalidade campo-aldeia-cidade na produção da questão social na contemporaneidade, desde a fundação colonial do tema e sua expressão na formação e desigualdade das classes sociais, na violência e expropriação das populações indígenas aldeadas e em contexto urbano no Brasil e América Latina, onde a questão agrária assume relevância central.
4 Discussão Buscamos aqui entender a problemática indígena como expressão da questão social na América Latina, a partir de sua constituição econômica, política e cultural com a criação do Estado Nação Colonial que impôs violentamente a formação de uma acumulação primitiva (MARX, 1985), para o modo de produção capitalista de forma dependente (MARINI, 2005), onde se fizeram pesar, nas palavras de Caio Prado Júnior (1961), dois fenômenos: o “sentido da colonização” e a “herança do escravismo”, passando pela relação de “dependência” da América Latina aos países centrais, tão bem caracterizada por Marini (2005), num modelo de desenvolvimento desigual e combinado (TROTSKY, 1985). Nos diz Marini (2005) que as categorias de Marx têm que ser aplicadas à realidade como instrumento de análise e antecipações de seu desenvolvimento, que vai à categoria mais simples (mercadoria), para entender as relações subordinadas do concreto. Isto solicita, assim, o rigor metodológico e a análise arguta sobre a realidade para compreendê-la e aqui daremos enfoque especial a esses dois aspectos, para lançar algumas questões e compreender os desafios que o tema apresenta para a área da Política Social/Serviço Social. Caio Prado Júnior (1961) nos fala a respeito do “sentido da colonização”, que é preciso entender a América Latina em seu processo de integração ao mercado mundial. Um processo desigual que tem sua origem na expansão comercial europeia do século XVI, onde a condição de Colônia, produtora de metais preciosos e gêneros exóticos, insufla o volume de mercadorias que sustentaram o nascimento do capital comercial e bancário na Europa, como base para o sistema manufatureiro e, posteriormente, a grande indústria. Com a Revolução Industrial, em sua primeira fase, em fins do século XVIII e no século XIX, na Europa, desencadeiam-se os processos de independência política na América Latina, no princípio do século XIX, que toma por base uma estrutura demográfica construída desde a Colônia em articulação direta com a Inglaterra para o fluxo de mercadorias e exportação de bens primários produzidos pelas grandes indústrias (MARINI, 2005). A partir daí tem início a inserção da América Latina na divisão internacional do trabalho e sua relação desigual com os centros capitalistas europeus. Eis o contexto de sua dependência, nas palavras de Marini (2005, p. 141),
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Violência do Estado e expropriação das populações indígenas no Brasil contemporâneo: terra, território, trabalho e criminalização da Questão Social William Berger […] uma relação de subordinação entre nações formalmente independentes, em cujo marco as relações de produção das nações subordinadas são modificadas para assegurar a reprodução ampliada do capital. A consequência da dependência, e sua superação, supõe necessariamente a supressão das relações de produção nela envolvida. [sic]
Porém, é preciso distinguir que a condição colonial e o contexto de dependência são momentos distintos. A riqueza produzida pela Colônia, no século XVI, serve de base para a formação da economia capitalista mundial dos países centrais, mas é somente com o surgimento da grande indústria que se têm estabelecidas as bases concretas da divisão internacional do trabalho (MARINI, 2005), e o surgimento da questão social como expressão das lutas de classes. É preciso salientar aqui também que o processo de exploração colonial da riqueza se sustenta, no Brasil, por exemplo, em ciclos que vão desde a extração do pau-brasil, que se valeu da mão de obra escrava do indígena e, posteriormente, nos ciclos açucareiro, cafeicultor e da mineração, do escravismo africano, com as especificidades do tráfico negreiro. Com a mão de obra imigrante, na República e na Independência, os trabalhadores pobres dos grandes centros europeus eram exportados (e deportados) para o Brasil e as matérias-primas beneficiadas daqui importadas para os países centrais. No México, Equador, Peru, Bolívia, Venezuela e toda a América Andina e Central, a questão social e a formação da classe trabalhadora estão estreitamente vinculadas com o elemento indígena, pois majoritariamente esse componente étnico prevalece em sua constituição nos grandes centros urbanos e no campo.8 Assim nos diz Marini (2005, p. 144): […] a participação da América Latina no mercado mundial contribuirá para que o eixo da acumulação na economia industrial se desloque da produção de mais-valia absoluta para a maisvalia relativa, ou seja, que a acumulação passe a depender mais do aumento da capacidade produtiva do trabalho do que simplesmente da exploração do trabalhador. No entanto, o desenvolvimento da produção latino-americana, que permite à região coadjuvar com essa mudança qualitativa nos países centrais, dar-se-á fundamentalmente com base em uma maior exploração do trabalhador. É esse caráter contraditório da dependência latino-americana, que determina as relações de produção no conjunto do sistema capitalista, o que deve reter nossa atenção.
Assim, o segredo dessa troca desigual que gera a situação de dependência latino-americana se reatualiza com a transferência da mais-valia para as nações centrais e toma por base o que Marini (2005) irá conceituar de “superexploração do trabalhador”9, que é, nos termos de Marx (1985), o aumento da intensidade do trabalho (mais-valia relativa) e a prolongação da jornada de trabalho (mais valia absoluta). Em suma, a dependência da América Latina é a sujeição do trabalhador às condições de vida mais aviltantes nos grandes centros urbanos, no campo e mesmo em aldeias indígenas, ainda nos dias de hoje, via trabalho escravo e importação dos gêneros produzidos, para sugar-lhes as forças ao máximo a serem 8
Para uma análise deste tema, na realidade do Peru, por exemplo, temos a magistral a obra de José Carlos Mariátegui. 9 Alguns autores, como José Paulo Netto, discordam dessa noção de “superexploração do trabalhado”. Optamos por manter esta categoria, por entendê-la importante ao abordar o processo histórico de dependência da América Latina e a totalidade do pensamento de Marini (2005).
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transferidas para as mercadorias, que sob a forma de lucro é repassada para os grandes centros do mundo no processo de circulação do capital, ou mesmo através das commodities das mercadorias. Isto se baseia ainda na remuneração do trabalho abaixo de seu valor. Faz-se necessário aqui observar mais detidamente o que Caio Prado Júnior e Florestan Fernandes caracterizam na Formação Social Brasileira como a “herança do escravismo”, uma das marcas indeléveis na gênese das relações sociais neste país, presente ainda hoje em diversos matizes. Para Florestan Fernandes (1976), é preciso entender o modo de produção escravista como base material da ordem social escravocrata e senhorial, o que implica compreender sociologicamente as relações da escravidão com o capitalismo desde dentro, como “fulcro para a transição neocolonial” (FERNANDES, 1976, p. 7). O autor propõe observar como o “senhor colonial” torna-se o “senhor” com a transferência da Corte, Abertura dos Portos, Elevação a Reino e Modernização acelerada pela presença transmetropolitana da Inglaterra. Nos diz Fernandes que: […] no Brasil a história moderna começa às avessas, como uma internalização do império colonial. Isso não impede que a história e a modernidade brasileira se desdobrem daí por diante, tendo como eixo as potencialidades do Brasil de incorporação ao espaço econômico, sociocultural e político da Europa da revolução industrial […] A “era da modernização do Brasil” não aparece como um fenômeno maduro da evolução interna do mercado capitalista moderno; ela se configura como uma crise política do antigo sistema colonial. (1976, p. 7).
“Para o senhor de engenho, o processo reduzia-se, pura e simplesmente, à forma assumida pela apropriação colonial onde as riquezas nativas precisavam ser complementadas ou substituídas pelo trabalho escravo” (FERNANDES, 1976, p. 16). Marx nomeou o processo de exploração que aqui se desenrolou como Acumulação Primitiva do Capitalismo (MARX, 1984), que se baseou sobretudo na mão de obra escrava, primeiro dos indígenas e depois dos africanos, para cá trazidos violentamente no maior espetáculo de horror que a história já presenciou. Para Florestan Fernandes, o padrão de civilização que se pretendeu desenvolver e expandir no Brasil é o do mundo ocidental moderno, como veremos adiante. Assim, como não tivemos “feudalismo”, também não tivemos “burgo”, tal como no mundo medieval. O burguês surge no Brasil como uma entidade especializada. Somente com a Independência é que se rompe com o estatuto colonial, com o estabelecimento das condições de expansão da burguesia e do alto comércio (FERNANDES, 1976). Nos diz Caio Prado Júnior (1961) que o que caracteriza a sociedade brasileira até princípios do século XIX é, sem dúvida, a escravidão que deixa até os dias de hoje a “herança do escravismo”. É preciso, assim, entender o papel que representa nos setores da vida social, seus padrões materiais e morais. A escravidão brasileira tem características peculiares, mas semelhantes em todas as colônias dos trópicos americanos, que modelaram a sociedade nacional. Não se filia a nenhum tipo de trabalho servil que, na civilização ocidental, adveio do mundo antigo. Seu marco está estabelecido em princípios do século XV com os “descobrimentos” (eu preferiria dizer invasões) ultramarinos. Com a invasão europeia dos vastos e diferentes territórios que estes chamaram de América, o trabalho servil renasce das cinzas com força histórica extraordinária.
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Aqui, há o restauro da escravidão, quando esta perdera sua razão de ser e já havia sido substituída por outras formas de trabalho mais evoluídas (PRADO JR., 1961). Aparece “[…] como corpo estranho que se insinua na estrutura da civilização ocidental, em que já não cabia” (PRADO JR., 1961, p. 270), contrário a todos os padrões morais e materiais estabelecidos. Assim, nos diz Prado Júnior (1961), não é num terreno de “moral absoluta” que se deve analisar a escravidão moderna, pois Já sem falar na devastação que provocará, tanto das populações indígenas da América, como das do continente negro, o que de mais grave determinará, entre os povos colonizadores e, sobretudo, em suas colônias do Novo Mundo, é o fato de vir a nova escravidão desacompanhada, ao contrário do que se passara no mundo antigo, de qualquer elemento construtivo a não ser num aspecto restrito, puramente material da realização de uma empresa de comércio: um negócio apenas, embora com bons proveitos para seus empreendedores […] E por isto, para objetivo tão unilateral, puseram os povos da Europa de lado todos os princípios e normas essenciais em que se fundava sua civilização e cultura. (PRADO JR.,1961, p. 271).
No correr do tempo, a escravidão significou para as nações ibéricas degradação e dissolução: seu naufrágio. O consequente mais grave, porém, foi para as colônias americanas que se formam nesse ambiente degradante e em degradação, o trabalho servil como mola mestra do empreendimento colonial: “triste espetáculo humano” (PRADO JR., 1961, p. 272). Conforme Clóvis Moura em sua obra “Dialética Radical do Negro no Brasil” (MOURA, 1994), o escravo foi classificado como animal e coisa que pertence ao senhor, desde o direito civil luzitano colonial. E afirma que o escravismo no Brasil teve duas fases distintas: 1. 1550 a 1850 – escravismo pleno: até a extinção do tráfico internacional de escravos; 2.1551 a 1888 – escravismo tardio: Lei Euzébio de Queiroz – estrangulamento da dinâmica demográfica via tráfico internacional. Conforme o autor, os dois movimentos se articulam e é preciso considerar o escravismo indígena no início da colonização na formação do modo de produção escravista, dinâmica que vai configurar o comportamento das classes fundamentais dessa sociedade: senhores e escravos. Trata-se de condições estruturais do processo de passagem do escravismo para o trabalho livre, marcados pela violência e horror. Para Clóvis Moura, a condição do ser escravo se expressa na célula da sociedade capitalista, a mercadoria, socialmente coisificado, castigado como propriedade privada do senhor, o Estado não podia intervir senão a favor dos senhores. Para o autor, “[…] o escravo não possui o corpo como livre instrumento de sua vontade. A subordinação absoluta a que está submetido advém-lhe da expropriação de qualquer propriedade (…) a propriedade de si mesmo é um atributo que impede aos expropriados, no modo de produção capitalista tornarem-se escravos” (MOURA, 1994, p. 27). A Inglaterra impôs uma modernidade dependente ao Brasil e à América Latina e aproveitou até onde pode o escravismo, bloqueou o desenvolvimento brasileiro em várias frentes. A implantação do telégrafo dinamizou a comunicação de forma radical, mas serviu para o controle de escravos e o contrabando de escravos após e Lei Euzébio de Queiroz. Impôs a modernização escravista com endividamento externo através de empréstimos no primeiro Império, remessas de capital para o exterior para gerar o desequilíbrio financeiro interno no Brasil: de 1850 a 1890 foram auferidas 60.345.000 libras como juros e amortização mais remuneração dos investimentos feitos aqui, pagamentos de fretes e seguros
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do nosso comércio exterior, dispensas diplomáticas, o que ultrapassava a entrada de divisas. O Brasil estava acorrentado à dívida com sangria monetária do desenvolvimento dependente mais suborno e corrupção administrativa, em suma, pagava os juros e continuava devendo (1994). Para a decomposição do escravismo no Brasil influíram 5 medidas: 1) A Tarifa Alves Branco de 1844: caráter protecionista a um setor industrial quase inexistente, idealizada para absorver a mão de obra estrangeira. Substitui a Tarifa Bernardo Vasconcelos, instrumento regulador de importações e exportações desde 1828. Estimulou a criação de indústrias nacionais, obrigava a Inglaterra a modificar suas tarifas sobre o açúcar brasileiro, criava novos mercados de trabalho, aumentava a receita do país, criava um setor de trabalhadores livres nas brechas da economia escravista. “Os escravos, porém, foram excluídos desse processo de mobilidade social, bloqueados por sua condição de cor e classe” (1994, p. 68). 2) A Lei de Terra de 1850: mecanismo regulador e controlador para manter os interesses dos senhores latifundiários. Até 1850 o Estado (rei) tinha a posse da terra e a distribuía via doação. O temor dos latifundiários, senhores de escravos, era que os negros obtivessem terra. Com a Lei de Terra de 1850 o Estado abria mão de doar e colocava as terras no mercado para quem pudesse comprar, a terra torna-se mercadoria nos moldes capitalistas e impossibilita os recém-libertos que não tinham condições de adquirilas e impedidos de solicitar terras do Estado como indenização e as que tinham direito por serviços prestados. O imigrante torna-se pequeno proprietário. Impedimento de um projeto abolicionista radical. A imensa parcela da população mestiça não teve acesso à terra (1994). 3) A Lei Euzébio de Queiroz de 1850: atingiu de forma definitiva o escravismo pleno com a proibição do tráfico internacional de escravos africanos, esvaziava, assim, a dinâmica demográfica da escravidão (1994). 4) A Guerra do Paraguai de 1865-1870: a escassez ocasionada pela guerra gerou a crise e o pânico com a quebra das economias internas e bancos. O Brasil havia rompido com a Inglaterra. Participação compulsória dos escravos no exército brasileiro. Crescimento do movimento abolicionista. A Abolição não mudou qualitativamente a estrutura da sociedade brasileira (1994). 5) A Política Imigrantista: ideologia do branqueamento, a concessão de terras imigrantes (italianos, alemães, pomeranos, japoneses, entre outros), como tentativa de branquear a sociedade brasileira e negar o acesso à terra aos recém-libertos da escravidão (MOURA, 1994). Na passagem do escravismo para o modo-de-produção capitalista, a política imigrantista no século XIX, com o processo de branqueamento na sociedade brasileira, assumiu o lugar mesmo de negação histórica do elemento negro e indígena no componente racial. A respeito deste debate, Lilia Moritz Schwarcz (SCHWARCZ, 1993), em sua obra “O Espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870 – 1930)”, mostra como até o século XIX impera no mundo uma ideia do Brasil como país singular de miscigenação racial: “festival de cores”, “sociedade de raças cruzadas”, “espetáculo brasileiro de miscigenação” (SCHWARCZ, 1993, p. 11). A ideia corrente ao século XIX de “branqueamento da raça” foi adotada como estratégia e solução, que faria do Brasil um país em transição, na expressão das elites, tido como “deficiente em energia física e mental” (SCHWARCZ, 1993, p. 13). A mestiçagem era descrita sempre de forma adjetivada. Conforme a autora, as teorias raciais chegam tardiamente ao Brasil, mas foram acolhidas com entusiasmo pela elite pensante nacional. O argumento racial, assim, justificaria a intensa desigualdade de classes, com base em uma perspectiva evolucionista (SCHWARCZ, 1993).
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Para Iamamoto (2014), enfrentar as expressões da questão social contemporaneamente implica decifrar as desigualdades sociais, de classes e suas expressões de gênero, raça, etnia, religião, nacionalidade, meio ambiente como formas de resistência e rebeldia vivenciadas pelos sujeitos sociais. Sobre o componente racial indígena, Caio Prado Júnior afirma: No caso do indígena, ainda houve a educação jesuítica e de outras Ordens, que com todos os seus defeitos, trouxe, todavia, um começo de preparação de certo alcance. Mesmo depois da expulsão dos jesuítas, o que desfalcou notavelmente a obra missionária, pois as demais Ordens não souberam ou não puderam suprir a falta, o estatuto dos índios, embora longe de corresponder ao que devia ter sido em face da legislação vigente, e cujas intenções eram justamente de amparar e educar este selvagem que se queria integrar na colonização. (PRADO JR., 1961, p. 275).
A noção de integração do indígena na colonização, e, posteriormente no Estado-nação brasileiro, será, como veremos mais à frente, a base das ações religiosas na Colônia e da política indigenista, que se faz sentir até os dias de hoje em diferentes influxos. Para avançarmos no debate da questão social na realidade brasileira em contexto latino-americano, é preciso ficarmos atentos ao que Martins (1980) nos diz a respeito da questão política (e cabe aqui situála no marco da questão social na contemporaneidade), que tem sua expressão no campo, principalmente, ligada à questão da propriedade da terra, com um grande quantitativo de lavradores contando exclusivamente com o trabalho familiar ou trabalhando a terra sem garantias e direitos em condições dignas. Essa situação está combinada com um histórico processo de concentração da propriedade da terra e a subjugação direta e indireta da produção agrícola pelo capital com a expulsão de trabalhadores do campo. O capital, de diferentes maneiras, nas distintas regiões e ramos de produção agropecuária, pressiona com força absurda para extrair dos trabalhadores do campo cada vez mais os seus excedentes agrícolas ou o seu trabalho excedente (MARTINS, 1980). Assim, a questão política como expressão da questão social no campo abarca os conflitos cada vez mais numerosos, determinados pelo processo de expropriação da terra (1980). Processo que se dá na expropriação das terras indígenas no Brasil e tem nos números de assassinatos que abrem este artigo sua expressão concreta. Em seu livro “Não há terra para plantar neste verão – o cerco das terras indígenas e das terras de trabalho no renascimento político do campo”, Martins (1988) nos apresenta o contraditório impacto da mercadoria sobre os povos e culturas indígenas no Brasil e como as frentes de expansão estiveram diretamente ligadas à expansão de mercados capitalistas. Do trabalho escravo indígena, ainda vigente nos tempos atuais ligados à dependência com os fazendeiros e à dívida por crédito, ao controle da circulação de mercadorias, o capital, de diferentes formas, submete o indígena e o fruto do seu trabalho aos comerciantes e intermediários. Dessa forma, a economia regional, quando os incorpora, o faz de forma extremamente desigual; acresce-se ainda, uma extração do excedente do trabalho maior do que se pode extrair do trabalhador não indígena. Acontece, nas palavras do autor, uma proletarização temporária e marginal. Também as empresas mineradoras e madeireiras fazem uso dessa superexploração (MARINI, 2005). A terra, de relação de pertença, torna-se equivalente de mercadoria, o que acarreta consequências nefastas para as gerações
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seguintes: a lógica capitalista da mercadoria vai devastando modos de vida, mas também a resistência semeia novas significações do indígena para os não indígenas (os negros – pretos e pardos, o branco, o trabalhador do campo) (MARTINS, 1988). Outro componente apontado por Martins (1988) são as migrações temporárias como forma de trabalho barato para o aumento da composição orgânica do capital, reduzindo os custos da reprodução da força de trabalho e o barateamento da mão de obra, o que gera pobreza absoluta em certas regiões em detrimento de outras, como expressão do “desenvolvimento geográfico desigual”. Para Martins (1988), tendo em vista os elementos históricos, a luta pela terra é, pois, uma luta pela democracia. Há, porém, no Brasil, um desencontro na formação social brasileira entre luta pela terra e luta pela reforma agrária. Para o autor, é preciso subverter a ordem de exclusão do trabalhador do campo e do indígena para resgatar o sentido do novo. A luta pela terra precisa alçar a luta pela democracia, através da reforma agrária. Eis o sentido da questão agrária como espinha dorsal da questão social neste país. Para Martins (1991), a questão política no campo é sobretudo a questão da propriedade da terra – uma imensa maioria que ocupa a terra sem garantias e direitos – posseiros e pequenos proprietários do Nordeste. Em 1970, havia 14 milhões de trabalhadores nessa condição e 220 mil indígenas e um terço dos trabalhadores do campo não recebiam qualquer pagamento por seu trabalho. Estamos falando aqui de um histórico processo de concentração e propriedade da terra com subjugação direta e indireta da produção no campo pelo capital e expulsão dos trabalhadores e indígenas da terra, a fim de extrair seus excedentes agrícolas e seu trabalho excedente, expropriar seu território. Assim nos diz Martins (1991): A unidade das lutas, reivindicações, propósitos, projetos e esperanças dos trabalhadores do campo e da cidade – dos colonos, boias-frias, clandestinos e fichados, posseiros, operários, dos brancos e dos índios – não pode ser, portanto, uma unidade simplesmente social, como se todos vivessem nas mesmas condições históricas e percebessem do mesmo modo os problemas da sociedade e sua solução. São oficialmente diferentes e veem de modos diferentes a sua libertação e a sua liberdade. Essa unidade somente existirá se for elaborada politicamente, se for unidade da diversidade. Por isso, a grande questão hoje é a questão da democracia, que reúna a força dos oprimidos do campo e da cidade sem submetê-los à violência terrorista da ditadura e da unanimidade de pontos de vista. Para os diferentes personagens de nossa história presente, ser amigo ou inimigo dependerá muito de como for recebida a forma política dessa democracia. Desde logo, é sério engano propor a exploração e não a expropriação como eixo principal da questão política no campo, como seria grave erro político colocar a expropriação e não a exploração como eixo da questão política na cidade. (MARTINS, 1991, p. 20).
O capital se apropria da terra para transformá-la em “terra de negócio”, de exploração do trabalho alheio, com o objetivo do lucro para explorar quem não tem terra ou para a venda por preços altos a quem dela precisa. Martins (1991), ao abordar a emancipação do índio e a emancipação da terra do índio afirma que
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Violência do Estado e expropriação das populações indígenas no Brasil contemporâneo: terra, território, trabalho e criminalização da Questão Social William Berger […] a identidade da pessoa na nossa sociedade é aquela que, como já disse Marx, resulta do fato de que as pessoas se relacionam umas com as outras como se fossem coisas, e as coisas – as mercadorias – se relacionam, se trocam entre si, como se fossem pessoas, dotadas de saber e de vontade. A mercadoria é a mediadora privilegiada nesse universo, é uma espécie de deus-coisa oculto que, entretanto, não podemos ignorar. É emancipado, ou seja, é pessoa quem se concebe a si mesmo na perspectiva da coisa, quem se descobre como objeto, não como sujeito. (…) Ora, quem se recusa ver-se como objeto, quem luta quer se impor como sujeito do processo social que vive. Quem luta questiona a dominação e, com ela, a expropriação e a exploração que ela garante. O Estado-bonzinho propõe a emancipação do índio brasileiro exatamente no momento em que esse índio começa a lutar, começa a insurgir-se contra o falso grande-chefe, começa a reelaborar em bases políticas a sua identidade tribal, começa a afirmar que é diferente e quer continuar a sê-lo, começa a escorraçar do seu mundo o invasor que representa a forma de ser, de ver, de dominar, configurada no Estado burguês, no fazendeiro, no grileiro, na mercadoria, no contrato. Os Kaigang, os Bororo, os Xavante, os Guajajara, os Gavião, os Xocó têm sido eloquentes na afirmação da sua identidade. (MARTINS, 1991, p. 130-131).
E nos apresenta a situação das terras indígenas, nos anos 1970: 1. Terras ameaçadas - de invasão pelos brancos (grandes fazendas e empresas); 2. Terras griladas – posse pelo não-índio ainda depende de regularização; 3. Terras expropriadas – posse e domínio legalmente nas mãos de brancos. Dessa maneira, a história do índio é a história da terra. Este é um dos aspectos da questão social que nos convoca a pensar o papel que o indígena tem na realidade da terra no Brasil, de forma que […] conseguimos perceber que a invasão e expropriação de terras indígenas é um dos fatores fundamentais da sua descaracterização tribal. À medida que se deteriora a forma de ocupação e utilização da terra pelo índio, como consequência da sua invasão e incorporação por fazendas e empresas, também se deteriora a sua identidade tribal. A destruição do espaço do índio destrói também as condições de reprodução de seu modo de ser. O índio está ameaçado progressivamente de ser remetido do seu universo de não-propriedade para o universo da propriedade, com a sua divisão clássica em proprietários e não-proprietários – em proprietários dos meios de produção, de um lado, e proprietários unicamente da força de trabalho, de outro. A deterioração da identidade do índio é condição para destruí-lo como etnia, como grupo tribal com história, cultura, língua e futuro até certo ponto particulares. (MARTINS, 1991, p. 135).
O fim último é a conversão das terras indígenas em terras devolutas e propriedade privada, o que evidencia a necessidade histórica do capital de reproduzir-se ampliadamente com o esgotamento rápido da fronteira agrícola. Isto evidencia a estrutura fundiária brasileira com alta concentração de terras nas mãos de poucos e uma imensa quantidade de trabalhadores sobrevivendo com pouca terra, sob a posse de outro. Henri Lefebvre, em sua obra “A Produção do Espaço” (LEFEBVRE, 2000), nos apresenta o espaço como produto social que intervém na própria produção e suporte de relações econômicas e sociais. De forma dialética, a reprodução do aparelho produtivo se apresenta como reprodução ampliada das relações sociais. Para o autor, o espaço conforma, assim, forças produtivas, divisão do trabalho, relações de
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propriedade, valor-de-troca e valor-de-uso. “Reúne o mental, o cultural, o social, o histórico” (LEFEBVRE, 2000, p. 6). “A organização do espaço centralizado serve ao mesmo tempo ao poder político e à produção material, otimizando os benefícios. Na hierarquia dos espaços ocupados as classes sociais se investem e se travestem” (LEFEBVRE, 2000, p. 9). Há, assim, “[…] uma multiplicidade indefinida de espaços: geográficos, econômicos, demográficos, sociológicos, ecológicos, políticos, comerciais, nacionais, continentais, mundiais. Sem esquecer o espaço da natureza (físico), o dos fluxos (energias) etc.” (LEFEBVRE, 2000, p. 26). Milton Santos (2004) define território a partir de seus usos e apropriação, leva em conta o movimento do conjunto e de suas partes enquanto complementaridades, de onde surge a divisão territorial do trabalho e os círculos de cooperação que passam a pensá-lo. Assim, os indígenas, cada etnia e aldeamento, cria o território a partir de sua relação com o espaço, sua vida social, seu modo de vida. Milton Santos define territorialidade, por “[…] pertencer àquilo que nos pertence” (SANTOS, 2004, p. 19). A territorialidade se estende aos próprios animais, quando criam uma área de vivência e reprodução. A territorialidade humana, porém, implica a preocupação com o destino. A construção do futuro (teleologia) entre os seres vivos é um privilégio do homem (2004). Em sua obra “Da Totalidade ao Lugar”, Santos (2008b) nos apresenta uma profícua articulação das categorias espaço, sociedade e formação social, a formação socioeconômica como formação espacial, o espaço como estrutura social, o uso da terra, a divisão e organização socioespacial do trabalho, o território e os espaços da globalização, a partir da noção de totalidade do método marxiano. Aborda, ainda, a categoria Formação Econômica e Social (FES) para uma teoria do espaço e o modo como as sociedades são formadas diferencialmente em relação às forças externas. Para o autor, a base está na produção, o trabalho como força transformadora do espaço, segundo leis historicamente determinadas, podendo mesmo falar em uma Formação Econômica, Social e Espacial. Natureza transformada, Segunda Natureza, conforme Marx, expressa para Milton Santos o Espaço (2008b, p. 22). Enquanto organização histórica, a Formação Econômica e Social expressa a totalidade da unidade da vida social (2008b, p. 32). Assim, “O espaço reproduz a totalidade na medida em que essas transformações são determinadas por necessidades sociais, econômicas e políticas. (…) Mas o espaço influencia também na evolução de outras estruturas e, por isso, torna-se um componente fundamental da totalidade social e de seus movimentos” (2008b, p. 32-33). E conclui que é preciso falar assim em formações socioespaciais. Entendemos o território também a partir de Maria Helena Elpídio Abreu (2016) 10 como totalidade concreta na dinâmica das contradições do modo de produção capitalista, a partir da centralidade da categoria trabalho. Este lugar nos exige a crítica da economia política na produção do espaço, onde o território expressa e é atravessado pelas transformações do tempo presente. A autora nos diz que David Harvey e Henri Lefebvre nos apresentam o território como importante categoria de análise e apreensão do real, na produção do espaço, a partir da dimensão geográfica na organização do capitalismo. O ponto de partida aqui é a reafirmação do trabalho11 como categoria central na vida social (tempo e espaço), no processo de produção e reprodução da vida social (2016). 10
Atualmente Maria Helena Elpídio. 11 Na obra “O Capital – Livro I” (MARX, 1985), especialmente no capítulo “Processo de Trabalho e Processo de Valorização”, e na obra “Manuscritos Econômico-Filosóficos”, capítulo “Trabalho estranhado e propriedade privada”, Karl Marx desenvolve a categoria trabalho. O trabalho faz referência ao próprio modo de ser dos homens e da sociedade. É uma
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Iamamoto (2014) nos diz que a forma de produtividade humana que se afirma na sociedade burguesa é tributária do caráter social assumido pelo trabalho como valor e da forma por ele assumida: a forma mercantil. Essa conexão é mediatizada pelo valor-de-troca. O processo de troca atribui à mercadoria não o seu valor de uso, mas sua forma de valor específica: o valor de troca, que, representado por uma mercadoria particular – o dinheiro – permite estabelecer as relações de equivalência de valor com todas as demais mercadorias. A fonte do mistério da mercadoria encontra-se na forma social do trabalho, pois, tão logo os homens trabalham para outros, o seu trabalho assume uma forma social: a forma mercantil. A alienação do trabalho está, assim, na raiz do desenvolvimento da divisão social e técnica do trabalho, que determina relações distintas entre os indivíduos no que se refere a matérias, instrumentos e produtos do trabalho. Nessa rede de relações, os indivíduos buscam apenas o interesse privado, particular, fazendo com que o interesse geral se afirme como estranho aos indivíduos, deles independente, como ilusório interesse geral. Para Marx, o capital pela circulação de mercadorias na sua forma mais simples, depende da ampliação de mercados. Isto implica novas centralidades e usos dos territórios pela apropriação da natureza para ostentação e luxo de uns poucos sobre a miséria de bilhões em todo o mundo e a destruição ambiental (2016). Trata-se da imposição da lógica do valor de troca sobre os territórios, onde o espaço se torna mercadoria. Seguindo o pensamento da Abreu (2016), podemos apreender que o território é produto e atravessado por mediações sociais, econômicas e políticas no movimento da história, e, na atualidade, tem sido usado para obtenção do lucro especulativo. É preciso entender que espaço, na perspectiva materialista dialética, implica a totalidade na produção e reprodução da vida social de forma contraditória. O uso do território na produção de valores-de-uso e valores-de-troca tem por base a renda fundiária para composição orgânica das mercadorias. O território como mercadoria passa, assim, pela especulação fundiária e formas avançadas como o capital fictício (ex.: Royalties, pré-sal do petróleo e créditos do carbono). Cabe lembrar que processo de trabalho e processo de valorização em Marx, para a produção da mercadoria, visam a produção da mais-valia no processo global do capital e sua rotação. Território aparece, pois, como resultado de relações sociais e históricas nos ciclos do processo produtivo, na dinâmica da reprodução ampliada do capital (2016). Avança nesse processo o capital financeiro parasitário, os processos de financeirização e mudanças no mundo do trabalho com impactos diretos nas condições de vida dos trabalhadores e no avanço sobre as terras e territórios indígenas, pela criminalização da questão social, pois ganhou uma forma global no imperialismo capitalista. No processo capitalista de constituição dos grandes centros urbanos, o processo de expulsão do campo se fez sentir também nas aldeias indígenas, com a migração dos indígenas para as cidades. Assim a chamada problemática indígenas e apresenta também como uma questão urbana, diferentemente da sua
categoria central para a compreensão do próprio fenômeno humano-social. A satisfação material das necessidades dos homens e mulheres que constituem a sociedade obtém-se numa interação com a natureza; a sociedade, através dos seus membros (homens e mulheres) transforma matérias naturais em produtos que atendem às suas necessidades. Essa transformação é realizada através da atividade a que denominamos trabalho. O processo de trabalho é a atividade orientada a um fim para produzir valores de uso. O fim (a finalidade) é como que antecipado nas representações do sujeito: idealmente (mentalmente, no seu cérebro), antes de efetivar a atividade do trabalho, o sujeito prefigura o resultado da sua ação. Mistificação do capital: a apropriação do trabalho excedente aparece como força inerente ao capital e o trabalhador como coisa alheia. É a personificação de coisas e a coisificação de pessoas (fetiche da mercadoria).
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Violência do Estado e expropriação das populações indígenas no Brasil contemporâneo: terra, território, trabalho e criminalização da Questão Social William Berger
expressão mais clássica na aldeia e no campo, ambas como expressões da totalidade da questão social na contemporaneidade, que, como vimos em Martins (1988) só se entende a partir da centralidade da questão agrária.
5 Considerações finais Ao problematizar terra, território e trabalho como categorias fundantes para compreender a violência de Estado contra as populações indígenas no Brasil, e este no contexto latino-americano, entendemos essa perspectiva de análise como a forma mais radical, no sentido etimológico de ir à raiz da questão, que se encontra na sociabilidade do capital, para apreender a forma como os povos e culturas indígenas têm se mostrado como potenciais sujeitos de resistência ante a lógica do valor-de-troca sobre o valor-de-uso, ainda que, nesses 520 anos de invasão, suas culturas, em grande parte, estejam impregnadas da mercadoria, célula básica da sociedade capitalista, como apresenta Marx (1985). Levados a níveis de miserabilidade, longe de seus territórios tradicionais ou sendo constantemente atacados em suas terras, os povos indígenas, antes acusados de “atrasados” para o desenvolvimento da sociedade do capital, agora são novamente acusados de não serem legítimos, por incorporarem, em 520 anos, a forma da mercadoria que os violentou e violenta, tanto com o extermínio em massa quanto com o descaso, como vimos nos dados alarmantes que abrem este artigo. Entendemos, que os indígenas assumem neste estágio do capitalismo tardio neoliberal e ultraliberal um papel significativo de sujeito de resistência, que compondo outras coletividades de resistências na unidade das lutas sociais no campo, no quilombo, na aldeia e na cidade, vocalizem suas lutas desde as aldeias, caminhem para a efetivação dos direitos na construção de um projeto que de fato os respeite e a todos os sujeitos e nos atenda em nossas necessidades humanas de saúde, educação, cultura, assistência social, trabalho, lazer, etc., que respeitem as tradições indígenas, suas culturas e seus modos de ser, e em uma escala maior, um país que realmente garanta direitos de cidadania a todos os trabalhadores e aos indígenas, de viver conforme suas tradições em seus territórios tradicionais nas aldeias, na cidade, no campo ou onde optarem por viver. Tal intuito tem se mostrado impossível no modo de produção capitalista. Somente em um outro modo de produção socialista e comunista, os povos indígenas poderão ter direitos plenamente respeitados e seus valores humanos devidamente difundidos.
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Submetido em: 21 ago. 2020 Aceito em: 25 nov. 2020
DOI: 10.19180/1809-2667.v22nEspecial2020p928-951
População em situação de rua e as respostas do Estado nas tramas da cidade capitalista Homeless population and the State responses to the plots of the capitalist city La población em situación de calle y las respuestas del Estado en las tramas de la ciudad capitalista Renata Martins de Freitas https://orcid.org/0000-0001-9601-2898 Assistente Social na Secretaria Municipal de Assistência Social de Itaguaí. Doutoranda em Serviço Social pelo Programa de Pós Graduação em Serviço Social (PPGSS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) - Rio de Janeiro/RJ - Brasil. E-mail: remarfre@gmail.com.
Resumo É visível no dia a dia das grandes cidades o crescimento do número de pessoas que vivem em situação de rua, reproduzindo suas vidas a céu a aberto, desnudando as grandes contradições do sistema capitalista gerador de desigualdades, pauperismo e barbárie. O presente artigo busca apreender este “fenômeno” como uma expressão da “questão social” no seio da sociedade capitalista contemporânea, suas características e as respostas do Estado nas tramas do urbano mediante análise crítica e histórica sobre pesquisas amplamente difundidas, censos desenvolvidos a partir de referencial teórico marxista. Detecta-se a permanência da filantropização desta expressão da “questão social”, assim como de respostas baseadas na repressão e criminalização em nome da “ordem”, do “progresso” e do desenvolvimento nas cidades, mas também a institucionalização de serviços e direitos voltados a este grupo populacional nos últimos anos. Palavras-chave: População em situação de rua. Estado. Cidade.
Abstract It is visible, in everyday life in big cities, the increasing number of people living on the streets, reproducing their lives in the open, and exposing the great contradictions of the capitalist system that generates inequality, pauperism and barbarism. This article aims at understanding “phenomenon” as an expression of the “social question” within contemporary capitalist society, its features and the responses of the State in the plots of urban settings. It is based on a historical and critical analysis of widespread research, on censuses based on the Marxist theoretical framework. The philanthropic aspect of this expression of the “social question” is identified, as well as responses based on repression and criminalization in the name of “order”, “progress” and development in cities, and the institutionalization of services and rights aimed at these people in recent years. Keywords: Homeless population. State. City.
Resumen Es visible en el día a día de las grandes ciudades el crecimiento en el número de personas que viven en las calles, reproduciendo su vida al aire libre, exponiendo las grandes contradicciones del sistema capitalista que genera desigualdad, pauperismo y barbarie. Este artículo busca aprehender este “fenómeno” como expresión de la “cuestión social” dentro de la sociedad capitalista contemporánea, sus características y las respuestas del Estado en las tramas de lo urbano a partir del análisis crítico de investigaciones generalizadas, censos desarrollados y análisis histórico desde un marco teórico marxista. Se detecta la filantropización de esta expresión de la “cuestión social”, así como respuestas basadas en la represión y criminalización en nombre del “orden”, el “progreso” y el desarrollo en las ciudades, pero también la institucionalización de servicios y derechos dirigidos a estas personas en los últimos años. Palabras clave: Población em situación de calle. Estado. Ciudad.
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1 Introdução Os centros urbanos brasileiros têm sido espaços e vivências das contradições e desigualdades produzidas pela sociedade burguesa, fundada na propriedade privada dos meios de produção, havendo a priorização do lucro acima de todas as necessidades humanas. Há neles circulação de mercadorias de toda natureza, há opulência, consumo, desperdício, muros e muitas das vezes imponência de grandes construções ou de pontos turísticos. Há transeuntes e movimento, como se sua vocação fosse para a “passagem”, para a “ordem” e para o lucro. A naturalização dos elementos mencionados turva o caráter histórico de construção das cidades e as diversas maneiras como foram e têm sido ocupadas. Contrastando com a opulência, observa-se em caminhadas por muitas das grandes cidades brasileiras a permanência de pessoas que vivenciam a céu aberto e no espaço público alguns aspectos de suas vidas que usualmente os sujeitos atribuem à esfera privada: dormem, se alimentam, guardam seus pertences, banham-se, muitas das vezes fazem suas necessidades fisiológicas, “fazem amor”. As ruas são espaços em que “vivem” e obtêm sustento, mantêm sua subsistência. Trata-se de um grupo heterogêneo cuja existência é uma vitrine das possibilidades mais aviltantes da barbárie gerada pela produção coletiva da riqueza, com a apropriação privada e sua desigual distribuição. E esses sujeitos tornam “nuas” essas contradições com sua existência nas ruas, praças, vielas, quebradas, sob marquises e viadutos. Nos últimos anos, temos acompanhado no Brasil a publicação de notícias jornalísticas que anunciam o aumento de pessoas vivendo em situação de rua em nosso país. Recentemente o Instituto Datafolha publicou pesquisa que traz à tona a percepção de brasileiros e brasileiras em relação a esse aumento, principalmente no caso das capitais dos estados1. Pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) comunica-nos uma estimativa de que, até março de 2020, existiam cerca de 222 mil pessoas em situação de rua no Brasil e que, de 2012 a 2020 houve um aumento de cerca de 140% deste grupo populacional2. O Instituto analisa que em virtude da dita “crise econômica”, há possibilidades de maiores contingentes populacionais serem lançados à situação de rua. Estes dados trazem desafios para o Estado. A análise, ainda que caiba problematizações, traz à tona a relação entre o fenômeno população em situação de rua e fatores conjunturais. Neste artigo propomos apresentar elementos sobre a constituição do fenômeno, problematizando dados apreendidos em pesquisas e censos realizados sobre a população em situação de rua, compreendendo algumas de suas múltiplas determinações. Ademais, nos limites deste texto, buscar-se-á empreender uma análise sobre permanências e rupturas no que tange às respostas do Estado ao fenômeno em tela nas tramas da cidade capitalista, considerando a perspectiva mandeliana (MANDEL, 1982), segundo a qual este Estado desempenha funções como a manutenção das condições de produção, além da coerção e do consenso visando à manutenção da dominação da classe capitalista sobre a classe trabalhadora. As análises serão realizadas com embasamento teórico e analítico marxista.
1
Vide SANT’ANNA, E. Para 43% dos brasileiros, número de moradores de rua aumentou. Folha de São Paulo, 4 jan. 2020. Disponível em:https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/01/para-43-dos-brasileiros-numero-de-moradores-de-ruaaumentou.shtml . Acesso em: 1ago.2020. Neste caso, destaca-se na notícia que a percepção de aumento do número de pessoas vivendo nas ruas foi maior no caso das capitais dos estados. 2 A pesquisa pode ser consultada em Natalino (2020).
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2 População em situação de rua e sociabilidade burguesa Neste estudo teremos como ponto de partida a importante pesquisa realizada por Maria Lúcia Lopes Silva (2009) sobre trabalho e população em situação de rua no Brasil. Ela, assim como outras autoras e pesquisadoras, identificou se tratar de um fenômeno com múltiplas determinações cujas características estão intrinsecamente relacionadas com a acumulação capitalista. Afirma-se em muitas dessas pesquisas que há envolvidos nessa construção aspectos estruturais e biográficos. Aqui refletimos e problematizamos de início que as biografias, as histórias de vida, as trajetórias dos sujeitos não se descolam dessa sociabilidade burguesa. Há particularidades e aspectos singulares, e isso não é negado. Mas é preciso compreender e aprofundar nossas reflexões acerca de alguns dos aspectos apresentados e problematizá-los, buscando desnaturalizar e conferir-lhes historicidade. Sobre a pesquisa de Silva (2009), ela conclui que as causas estruturais possuem relação intrínseca com as desigualdades sociais geradas pelo processo de acumulação capitalista. Trata-se de uma “grave expressão da questão social” e, além disto, afirma a autora, é fenômeno localizado nos grandes centros urbanos, marcado pelo preconceito, tem particularidades relacionadas a cada território, há uma “tendência” à sua naturalização e é acompanhada à quase ausência de dados produzidos. Ademais, na época em que sua pesquisa fora realizada, avaliou-se haver poucas políticas públicas para seu enfrentamento. Cabe-nos contextualizar a própria pesquisa, que a despeito de uma ampla contextualização e densas reflexões e estudos, tem enfoque datado, buscou compreender o fenômeno em tela em sua relação com o mundo do trabalho entre os anos de 1995 e 2005. Aqui problematizaremos as conclusões ali apresentadas, assim como algumas pesquisas e censos produzidos sobre o grupo populacional em situação de rua. Apontaremos lacunas que talvez mereçam maior atenção no sentido de adensarmos os saberes acerca do conjunto de relações sociais envolvidos na construção do fenômeno em tela.
2.1 A “selva capitalista” e a superpopulação relativa Cadu, homem que vivia nas ruas de Salvador, escreveu um poema intitulado “não somos lixo”3, em que conclui: “a selva capitalista joga seus chacais sobre nós”. Chacais4 são canídeos que se alimentam de “restos” de caças de outros animais, principalmente leões e no sentido figurado podem caracterizar quem fica à “espreita” para beneficiar-se da “desgraça alheia”. A história de constituição do modo de produção capitalista é uma história de expropriações e violências, transformação de aspectos da vida humana em mercadoria e, de acordo com Silva (2009), a história do fenômeno “população em situação de rua” tem intrínseca relação com a acumulação capitalista, desde o processo conhecido como “a assim chamada acumulação primitiva”, exposto no Capítulo XXIV do Livro I de “O Capital” de Marx (2013). Segundo Marx (2013), a história da expropriação ou separação entre trabalhador e a “propriedade das condições da realização do trabalho” (p.786) é “gravada nos anais da humanidade com traços de sangue e fogo” (p. 787). Segundo o autor, a estrutura do capitalismo emerge 3
O poema pode ser encontrado em:http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/documentos/Lucia_Poema.pdf. Acesso em: 28 set. 2018. 4 Vide o verbete “chacal” no dicionário “Michaelis”. Disponível em http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=chacal. Acesso em:1 ago. 2020.
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a partir da dissolução da estrutura econômica da sociedade feudal e sua constituição ocorre com base em métodos violentos: […] portanto, a expropriação que despoja grande massa da população de sua própria terra e de seus próprios meios de subsistência e instrumentos de trabalho, essa terrível e dificultosa expropriação das massas populares, tudo isso constitui a pré-história do capital. Esta compreende uma série de métodos violentos, dos quais passamos em revista somente aqueles que marcaram época como métodos da acumulação primitiva do capital. A expropriação dos produtores diretos é consumada com o mais implacável vandalismo e sob o impulso das paixões mais infames, abjetas e mesquinhamente execráveis. A propriedade privada constituída por meio do trabalho próprio, fundada, por assim dizer, na fusão do indivíduo trabalhador isolado, independente, com suas condições de trabalho, cede lugar à propriedade privada capitalista, que repousa na exploração de trabalho alheio, mas formalmente livre. (MARX, 2013, p. 831).
O modo de produção capitalista é fundado no afastamento ou separação de grande parte dos seres humanos dos meios de produção e reprodução da sua vida, fazendo do trabalho “livre” o trabalho vertido em mercadoria e do trabalhador aquele que deve vender sua força de trabalho no mercado para manter sua sobrevivência. A produção das riquezas é coletiva, mas sua apropriação passa a ser privada e acumulada nas mãos de poucos. Não se trata de um processo “idílico”, mas de uma história de expropriação e violência. Expropriação territorial, existencial e da construção da exploração de seres humanos por outros seres humanos. Neste processo gestam-se as duas classes sociais fundamentais do referido modo de produção: a daqueles e daquelas que precisam vender sua força de trabalho em troca da própria sobrevivência - a classe que vive do trabalho - e a classe que detém os meios de produção, ou classe burguesa. A compra da força de trabalho humana, segundo análises marxianas, se dá com “objetivo de valorização do capital, a produção de mercadorias que contenham mais trabalho do que o que ele paga […] a produção de mais valor ou criação do excedente é lei absoluta desse modo de produção” (MARX, 2013, p.695). O salário pago aos homens e mulheres pertencentes à classe trabalhadora é condicionado à extração de trabalho realizado e não pago de onde advém a riqueza capitalista. Portanto, a produção dessa riqueza é realizada pelas “mãos” da classe trabalhadora e pela exploração de seu trabalho pela classe capitalista. O modo de produção capitalista e as relações sociais sob seu jugo são reproduzidas a partir dessa produção coletiva com apropriação privada da riqueza. De acordo com Maranhão (2010), no período da “chamada acumulação primitiva”, em virtude de todo o exposto acerca do processo de expropriação que apartou a classe trabalhadora dos meios de produção e reprodução de sua própria sobrevivência e da busca pelo lucro mediante exploração do trabalho “livre”, muitos sujeitos migraram do campo para as cidades a fim de atuar nas manufaturas e “primeiras fábricas”. A oferta de força de trabalho era demandada em virtude da expansão das grandes indústrias e se ampliava nas cidades. O autor pondera que “Essa voracidade do capital por força de trabalho e lucro produz um quadro contraditório em que o comércio e a indústria avançam em detrimento da miséria e da degradação de grandes contingentes humanos” (p. 99). Neste contexto, com a ampla oferta de força de trabalho, parte dela não era “absorvida” pelo mercado, criando-se uma superpopulação relativa nos centros urbanos, como um “reservatório de força de trabalho” (MARANHÃO, 2010, p. 99). Tem-se, portanto, um cenário de aumento da capacidade humana de produção de bens e serviços para resposta às necessidades humanas como nunca antes na história. A escassez pela ausência de
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capacidade produtiva ou insuficiente desenvolvimento de forças produtivas deixa de ser a realidade humana. Temos, contudo, uma produção de miséria na mesma proporção em que se produz a riqueza, em virtude da apropriação privada destas riquezas produzidas socialmente. O trabalhador gozando de uma dita “liberdade” de venda de sua força de trabalho vê nesta venda a forma de manter a reprodução de sua vida. Não conseguindo realizá-la, é lançado à miséria. Neste contexto temos o surgimento do fenômeno “população em situação de rua”, conforme pesquisa de Silva (2009). À medida que se amplia a miséria nos centros urbanos e trabalhadores veem-se desprotegidos nas respostas às suas necessidades, alguns sujeitos pertencentes a essa classe que vive da venda de sua força de trabalho passam a não ter outra opção que não a de viver e reproduzir aspectos tidos como relativos à esfera privada nos espaços públicos. Trata-se inicialmente dessa superpopulação relativa que não consegue vender sua força de trabalho. Há trabalhadores e trabalhadoras, mas não há “trabalho” para todas e todos. Esses sujeitos passam a constituir uma “massa sobrante”, uma superpopulação relativa ou “exército industrial de reserva”. Há muitas destas pessoas sem trabalho, sem vínculo territorial ou rede de proteção social e sem acesso à moradia, restandolhes a permanência em situação de rua. Segundo Netto (2012), passou a existir uma situação de pobreza generalizada no século XIX denominada “pauperismo”. Para o autor, “[…] este pauperismo marca a emergência imediatamente visível da dimensão mais evidente da moderna barbárie, a barbárie capitalista” (NETTO, 2012, pp. 203-204). Pauperismo e barbárie baseados na exploração do trabalho pelo capital, estão na gênese e constituição do fenômeno população em situação de rua. É fundamental que possamos compreender que a produção da superpopulação relativa é inerente ao próprio sistema capitalista, na sanha por expandir os mecanismos de acumulação da riqueza: Quanto maiores forem a riqueza social, o capital em funcionamento, o volume e o vigor de seu crescimento e, portanto, também a grandeza absoluta do proletariado e a força produtiva de seu trabalho, tanto maior será o exército industrial de reserva. A força de trabalho disponível se desenvolve pelas mesmas causas que a força expansiva do capital. A grandeza proporcional do exército industrial de reserva acompanha, pois, o aumento das potências da riqueza. [...] Por fim, quanto maior forem as camadas lazarentas da classe trabalhadora e o exército industrial de reserva, tanto maior será o pauperismo oficial. Essa é a lei geral, absoluta, da acumulação capitalista. […] A lei segundo a qual uma massa cada vez maior de meios de produção, graças ao progresso da produtividade do trabalho social, pode ser posta em movimento com um dispêndio progressivamente decrescente de força humana, é expressa no terreno capitalista – onde não é o trabalhador quem emprega os meios de trabalho, mas estes o trabalhador – da seguinte maneira: quanto maior a força produtiva do trabalho, tanto maior a pressão dos trabalhadores sobre seus meios de ocupação, e tanto mais precária, portanto, a condição de existência do assalariado, que consiste na venda da própria força com vistas ao aumento da riqueza alheia ou à autovalorização do capital. […]. (MARX, 2013, p. 719-720).
Esta “massa sobrante” de sujeitos, ou superpopulação relativa, nos termos de Maranhão (2010) e do próprio Marx (2013), “alavanca a acumulação capitalista”, tendo efeitos “opostos” para a classe que vive do trabalho, porque produz um rebaixamento nos salários, dado o aumento “da oferta da mercadoria força de trabalho”; provoca um acirramento nas relações de exploração devido ao medo de perda de salários, condição para manutenção da subsistência. E essa mesma preocupação também termina por provocar redução de possibilidades de participação nas lutas políticas por parte de trabalhadores (MARANHÃO, 2010, p. 107).
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O autor elucida ainda que a lei tendencial do desenvolvimento capitalista traz consigo essa enorme contradição: a acumulação de riqueza ocorre na proporção da constituição da miséria de amplas massas de trabalhadores. Segundo ele, por mais que ao longo da história do capitalismo essa lei tenha adquirido peculiaridades de acordo com o momento histórico e conjuntural, ela não deixa de existir, sendo inerente a esse modo de produção (MARANHÃO, 2010). Ianni (1992) tece importantes considerações acerca das contradições do modo de produção capitalista, ponderando que o pauperismo e a propriedade privada produzem-se “reciprocamente”, que a superpopulação relativa e que os progressos econômicos têm suas raízes na pauperização na cidade e no campo, mencionando que “[…] A mesma fábrica do progresso fabrica a questão social” (IANNI, 1992, p. 111). Constituída no bojo desse conjunto de relações, sempre relacionadas à associação entre capitalismo e “urbanização”, entendemos que a população em situação de rua é uma das expressões da “questão social”, que possui contornos específicos de acordo com o contexto, tendo, contudo, determinações estruturais em virtude da maneira com que estão sendo vertidos os processos de acumulação capitalista em cada tempo. Essa “questão social” é fabricada na medida da expansão da acumulação capitalista que tem como uma de suas expressões a “população em situação de rua”. Netto (2007;2012) associa a “questão social” a essas contradições produzidas no seio da sociedade capitalista em virtude da produção coletiva e apropriação privada da riqueza e exploração da classe trabalhadora, sendo indissociável do modo de produção capitalista. Segundo ele, a análise marxiana permite situar essa “questão social” historicamente, compreendendo que “a exploração não é um traço distintivo do regime do capital”, mas que a exploração em um contexto de contradições a partir das quais as condições em que a riqueza é criada seriam suficientes para supressão da miséria, mas em virtude desse modelo de acumulação, o desenvolvimento de forças produtivas provoca, amplia e aprofunda as condições de pauperismo daqueles que de fato produzem a riqueza. A escassez de modos de produção anteriores era gerada pelo baixo desenvolvimento das forças produtivas, que não é ocaso do capitalismo. As relações sob seu jugo produzem a pobreza e as desigualdades e não as herdam de sistemas produtivos anteriormente predominantes. Nestes termos, Netto (2007, p. 158) afirma que “A ‘questão social’, nesta perspectiva teórico-analítica, não tem nada a ver com o desdobramento de problemas sociais que ordem burguesa herdou como traços invariáveis da humanidade […]”. Não se trata de “problemas sociais” naturais, mas historicamente construídos por meio de relações que tampouco são naturais, mas forjadas a partir da lei de acumulação capitalista, inerente a esse modo de produção e às relações sob seu jugo. Cabe salientar, que segundo Netto (2007; 2012), o pauperismo passa a ser designado como uma “questão social” em virtude de desdobramentos sociopolíticos, nos quais a classe trabalhadora traz à cena pública e reivindica respostas às situações aviltantes às quais vinha e vem sendo submetida. O inconformismo assim como as desigualdades geradas pelo modo de produção capitalista compõem a designação da “questão social”. O autor alerta, a partir de suas análises, que, além dessas dimensões, é preciso entender as manifestações da “questão social” e suas expressões compreendendo particularidades históricas e culturais e nacionais. A análise sobre a “questão social” e suas expressões não podem prescindir da compreensão de particularidades importantes, como aquelas dos países dependentes com industrialização tardia, e as relações de trabalho “superexplorado”, nos termos de Tomazine (2016). Por esses motivos, ao buscarmos elementos para compreensão do fenômeno população em situação de rua no Brasil contemporâneo, as características mencionadas acima não podem ser desconsideradas. Sobre o fenômeno em tela e sua relação com o mundo do trabalho no caso brasileiro,
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temos além da importante pesquisa de Silva (2009), informações fundamentais do único censo nacional realizado junto a esse grupo populacional. Como os dados obtidos foram similares no que tange à inserção no mundo do trabalho, expomos o que fora coletado em Brasil (2009): entre os sujeitos respondentes ao censo, quase 71% exerciam atividade remunerada, entre elas: catação de materiais recicláveis (27,5%), guarda de carros (14,1%), atuação na construção civil (6,3%), realização de serviços de limpeza (4,2%) e carregador/estivador (3,1%). Na época, apenas 15,7% relataram pedir dinheiro como principal forma de obtenção de renda para manutenção da subsistência. Apenas 1,9% afirmou trabalhar na condição de segurado da Política de Previdência Social. 47,7% afirmaram nunca terem tido assinatura na carteira de trabalho, ou seja, nunca terem atuado mediante proteção ao trabalho dito formal. Cabe ainda destacar que a maior parte daqueles que já trabalharam de carteira assinada afirma que isso ocorreu “há muito tempo”. Esses dados reforçam o que Silva (2009) havia apreendido em sua pesquisa: a população em situação de rua compõe a superpopulação relativa estagnada5, aquela formada por trabalhadores ativos, mas que não estão inseridos de maneira regular no mercado, possuindo condições de vida abaixo da média da classe trabalhadora em geral. Observamos também, por meio de dados da pesquisa de Brasil (2009), que entre as atividades elencadas como predominantemente realizadas por pessoas em situação de rua, figuram com maior frequência duas relacionadas diretamente ao espaço público ou à circulação pelas cidades: a de catação de materiais recicláveis e de guardadores de carros nas ruas, chamados vulgarmente de “flanelinhas”. Sobre a relação entre a população em situação de rua e o mundo do trabalho na cena contemporânea, Silva (2009) conclui que as mudanças no mundo do trabalho, tendo em vista a reestruturação produtiva, provocaram um agravamento da exploração, acirramento do desemprego e precarização, contribuindo para aumento da superpopulação relativa “propiciando elevação dos níveis de pobreza. Neste contexto, expandiu-se o fenômeno população em situação de rua. (SILVA, 2009, p. 267)”. De acordo com Behring (2018), a reestruturação produtiva está relacionada a uma reação burguesa “contrarreformista” a uma longa onda de estagnação da acumulação capitalista a partir da década de 1970, a fim de expandir a dominação pelo mundo, aprofundando as estratégias de exploração sobre a classe trabalhadora. A força de trabalho é “adequada” a esses
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Marx (2013) realiza uma análise dos diferentes “matizes” da superpopulação relativa: flutuante, latente e estagnada, além de um sedimento “mais baixo” que habita a esfera do pauperismo. Sobre a superpopulação relativa flutuante, o autor disserta “Nos centros da indústria moderna […] os trabalhadores são ora repelidos, ora atraídos novamente em maior volume, de modo que, em linhas gerais, o número de trabalhadores ocupados aumenta, ainda que sempre em proporção decrescente em relação à escala da produção. A superpopulação existe aqui sob uma forma flutuante” (MARX, 2013, p.716). Já sobre a superpopulação relativa latente, está relacionada aos fluxos entre o rural e o urbano, estando uma parte da população rural “continuamente em vias de se transferir para o proletariado urbano ou manufatureiro e à espreita de circunstâncias favoráveis a esta metamorfose.” (Ibid. p.717). Pressupõe-se, neste caso, “[…] a existência no próprio campo de uma contínua superpopulação latente, cujo volume só se torna visível a partir do momento em que os canais de escoamento se abrem, excepcionalmente, em toda a sua amplitude” (Ibid. p.718). Já a superpopulação relativa estagnada “forma uma parte do exército ativo de trabalhadores, mas com ocupação totalmente irregular. Desse modo, proporciona ao capital um depósito inesgotável de força de trabalho disponível. Sua condição de vida cai abaixo do nível médio normal da classe trabalhadora […] Suas características são o máximo tempo de trabalho e o mínimo de salário” (Ibid. p. 718).
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População em situação de rua e as respostas do Estado nas tramas da cidade capitalista Renata Martins de Freitas Novos padrões de exploração, num processo de disciplinamento fundado na ruptura das ‘seguranças’ do pacto fordista/keynesiano, o que inclui alterações no Estado Social, a recomposição do exército industrial de reserva ou superpopulação relativa em suas várias faces, e na periferia, a expansão da superexploração do trabalho, característica da heteronomia e da dependência desses países. (BEHRING, 2018, p. 47).
A superexploração da força de trabalho, que é uma marca dos países dependentes como o Brasil, é acirrada a partir de contrarreformas que usurpam os direitos da classe trabalhadora, não sendo diferente no caso brasileiro. Tudo isso aliado a um crescimento da população urbana no país, o que provocou também um crescimento do fenômeno da população em situação de rua conforme análise já mencionada. A contemporaneidade, portanto, traz acirramento da exploração do trabalho em um país em que a superexploração é a “regra”. Vivenciamos na atualidade, nos dizeres de Maranhão (2010), uma fase predatória do capitalismo, com ataques ferozes ao fundo público e rebaixamento ainda maior do valor da força de trabalho. A massa cada vez mais ampla de sujeitos que se encontram na condição de superpopulação relativa e a “mundialização” dessa superpopulação faz que o capital consiga aumentar seus superlucros, sacrificando existências e vidas. Tudo isso ocorre com a chancela de uma ideologia neoliberal, que aponta o Estado Social pela crise do sistema capitalista, buscando a legitimidade para as contrarreformas e para os ataques aos direitos da classe trabalhadora, conforme vemos em Silva (2009). Netto (2012) reflete que o capital hoje é uma ordem do “desemprego e da insegurança no trabalho”. Há um espraiamento da forma mercadoria para diversas dimensões da vida social, traduzindose em relações de consumo e de predomínio do individualismo sobre as redes de sociabilidade, além das tentativas de desqualificação do Estado. Segundo Netto (2012), esgotam-se quaisquer possibilidades civilizatórias do modo de produção capitalista, revelando sua faceta bárbara para a vida humana, incluindo aí a destruição da natureza. Tudo isso traz repercussões na vida de pessoas que estão nos centros urbanos, ainda mais para aquelas em situação de rua. Sobre a análise de Silva (2009) acerca de fatores que podem provocar o aumento do número de pessoas vivendo em situação de rua, temos importantes dados da pesquisa de Natalino (2020) pelo IPEA. O mencionado pesquisador aponta um aumento da população em situação de rua no Brasil em 140% de 2012 a 2020. Verifica que esse aumento ocorreu em cidades de todos os portes e em todas as regiões do país, sendo predominante, contudo, nas cidades com mais de 100 mil habitantes (grande porte e metrópoles), havendo ainda maior concentração de pessoas em situação de rua na região Sudeste. Sugere que esse dado está relacionado ao aumento do desemprego no país e à crise econômica. Estamos vivendo uma crise estrutural do sistema capitalista (que é traduzida por muitos como “crise econômica”), um aumento da exploração do trabalho com redução de sua proteção6. Vivemos tempos de regressão catastrófica de direitos. Compreendemos que todo esse cenário agrava as condições de vida da classe trabalhadora e, aliada a outros fatores, faz com que o fenômeno população em situação de rua se reproduza e se amplie. Fundamental que tragamos à tona que as pessoas não estão em situação de rua, em sua maioria, por fatores únicos. Trata-se de um fenômeno com muitas determinações, expressando questões estruturais, conjunturais e biográficas, agravadas pela barbarização da vida, e por isso prosseguiremos trazendo mais elementos para problematizações. 6
Vide no caso brasileiro a intensa retração de direitos da classe trabalhadora, havendo medidas entre as quais a aprovação da Lei 13467 de 2020 ou Reforma Trabalhista e da Emenda Constitucional 103 de 2019 ou Reforma da Previdência.
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2.2 Construindo problematizações: proibicionismo, “beatificação do trabalho” e alguns rebatimentos nas relações familiares O censo nacional explicitado em Brasil (2009) demonstrou que a maior parte da população em situação de rua é composta por homens adultos, predominantemente negra e tem parco acesso à escolaridade. Os três principais motivos mais recorrentemente elencados como aqueles que os levaram à situação de rua são o “alcoolismo”/uso de drogas, desemprego e “desavenças familiares”, havendo outros “motivos”. Esses “motivos” nos fazem remeter a relações envolvidas na ida dessas pessoas para a situação de rua. Quase metade estava há mais de dois anos dormindo nas ruas e 45,8% relatou que sempre viveu no município em que vivia naquela “atualidade”. Ainda assim detectou-se um número de trecheiros7 de 11,9%. Entre estes, 45,3% mudou de cidade a procura de trabalho. Pesquisas realizadas por municípios com grandes concentrações de pessoas vivendo em situação de rua também trazem importantes dados. Em São Paulo, FIPE (2015) detectou um aumento do número das pessoas em situação de rua entre 2000 e 2015: crescimento de 5,14% entre 2000 e 2009 e de 2,56% entre os anos de 2009 e 2015. Essa população é majoritariamente masculina e adulta. Entre eles, 36,6% têm idades entre 31 e 49 anos; 19,7% entre 50 e 64 anos e 15,3% entre 18 e 30 anos. No caso do Rio de Janeiro, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (RIO DE JANEIRO, 2013) apreendeu haver uma população em situação de rua masculina, formada por adultos (69,6%), tendo como escolaridade o ensino fundamental (75,11%) dos quais 64,8% delas estavam nas ruas há mais de um ano. Também se investigou sobre o local de moradia antes da situação de rua: 64,42% residiam na própria cidade do Rio de Janeiro, com destaque para residência em bairros da Zona Oeste como Bangu e Campo Grande. 22,51% viviam no Estado do Rio de Janeiro, mas não na capital antes da situação de rua. Isso demonstra que não houve um grande deslocamento dessas pessoas. Provavelmente o deslocamento ocorrera entre bairros na própria cidade do Rio de Janeiro, com migração para regiões centrais ou mais abastadas. É provável que isto tenha ocorrido na direção de locais onde há maior circulação de mercadoria, recursos e desperdícios e isto expressa as desigualdades sociais no interior da própria cidade. Algumas características detectadas na pesquisa foram: baixa escolaridade, uso de álcool e drogas, capacidade produtiva comprometida, transtornos mentais/psiquiátricos, relações familiares rompidas e histórico de violações de direitos. Sobre os motivos mais recorrentemente alegados para situação de rua, entendemos que podem constituir temas que nos levam a importantes “determinações” sobre o fenômeno, sendo relevante que problematizemos os próprios termos utilizados nas pesquisas. Compreende-se também a necessidade de a linguagem utilizada não ser codificada para a população que se quer entrevistar. Contudo, é preciso um esforço analítico para que avancemos no debate acerca do “uso de drogas”. Quando atribuímos a situação de rua ao “uso de drogas”, parece-nos que o uso de substâncias psicoativas em si leva estas pessoas ou contribui para sua ida para as ruas de maneira necessariamente direta. Não negamos que isto pode ocorrer em determinadas situações. Contudo, importa-nos contextualizar que as substâncias psicoativas e o seu uso fazem parte da história da humanidade e respondem, muitas das vezes, a necessidades sociais. Esse uso não necessariamente é considerado prejudicial, podendo ser esporádico, ocasional, recreativo, abusivo ou dependente. Alertamos aqui para o 7
A palavra “trecheiros”, nesta pesquisa, refere-se a pessoas em situação de rua migrantes, que geralmente transitam entre as cidades em busca de trabalho.
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conjunto de relações sociais envolvidas no uso desses psicoativos e na ideologia proibicionista construída a partir delas. Brites (2016) pondera que o caráter de licitude e ilicitude que adquirem as “drogas” é parte de uma construção social que oculta os interesses que existem por trás da proibição de algumas substâncias e outras não. Ademais, tratar a pessoa usuária de psicoativos a partir da alcunha pejorativa de “drogado” ou enfatizar o uso da droga, pode centralizar o olhar sobre esse uso e reduzir aspectos importantes da trajetória dos sujeitos. Segundo a autora, A chamada “guerra às drogas” (proibicionismo) introduziu no imaginário social a ideia de que a proibição é a “melhor alternativa” para responder aos danos sociais e de saúde decorrentes do uso de psicoativos ilícitos. No entanto, a história tem demonstrado exatamente o oposto, pois o saldo do proibicionismo – que está na base de tratados e convenções internacionais e leis nacionais – é desastroso. O proibicionismo não foi capaz de eliminar a oferta e a procura por psicoativos ilegais, contribuiu para a emergência e crescimento do mercado ilícito internacional (narcotráfico) e sua direta associação com redes de corrupção, criminalidade e violência, que aprofundam a questão social (BRITES, 2016, p.10).
O proibicionismo não permite que consigamos compreender as “drogas” como uma mercadoria no seio da sociedade capitalista contemporânea, além de ocultar sua própria função ideológica (BRITES, 2017) que atribui justificativas a intervenções violentas em territórios periféricos nas cidades, o controle sobre corpos e a naturalização dessas práticas em detrimento do cuidado em saúde de pessoas que consomem abusivamente substâncias psicoativas. Todos esses fatores aprofundam desigualdades. E aqui já se explicitam algumas respostas do Estado baseadas em repressão, demonstrando sua face “penal” ou “punitiva” no trato das expressões da “questão social”, tendo rebatimentos diretos na maneira de lidar com a “população em situação de rua”. Neves (2011a) alerta-nos para os “riscos moralizantes” e metodológicos em considerarmos em nossos questionários e pesquisas perguntas sobre o uso de “drogas”. É preciso compreender o conjunto de relações envolvidas na “guerra às drogas” e a construção da própria ideologia proibicionista. Tal ideologia está nas leis, nas ações de “atores” do Estado e mesmo nas concepções dos censos e pesquisas em que conseguimos obter conhecimento sobre a realidade de pessoas em situação de rua no Brasil. Censos subsidiam políticas públicas e a depender da concepção que trazem já retratam ou sugerem aspectos da violência de Estado, individualização e moralização da “questão social”. Essas relações baseadas na ideologia proibicionista têm impactos diretos sobre a vida de pessoas em situação de rua e isto poderemos tratar mais adiante. Cabe-nos aqui compreender que possivelmente o que contribui para lançar sujeitos pertencentes à classe trabalhadora para a situação de rua, são os rebatimentos dessa ideologia proibicionista por parte do Estado, quando criminaliza sujeitos ou responde com repressão o uso de “drogas” ou essa moralidade proibicionista “infiltrada” no cotidiano das famílias. Ela provoca reações preconceituosas em relação ao uso de substâncias psicoativas. Preconceito este que expressa desvalores advindos do individualismo característico e alimentador da sociabilidade burguesa. Iasi (2013) destaca sobre como as ideologias servem à ordem dominante, plasmando e conformando a naturalização da sociabilidade sob o capital como algo “natural” ou “inevitável”, dando um “sentido à subordinação”. As famílias da classe trabalhadora vivem nesta e não em outra sociabilidade. Pesquisas realizadas pela antropóloga Delma Peçanha Neves (2011b) descortinam algumas relações envolvidas com o uso de “drogas” por homens, sendo estas associadas pelas famílias ao ócio e ao vício, que, como bem reflete Brites (2017), é tido como oposto às virtudes. Todas essas concepções contribuem para a fragilização da proteção
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exercida pelas famílias aos sujeitos. A importância dessa proteção é percebida quando, numa pesquisa nacional, um dos motivos mais frequentemente mencionados como aqueles que contribuíram para a situação de rua foram “desavenças familiares”. Importante que consigamos também problematizar esse fator e compreender alguns elementos pelos quais podem estar relacionadas tais desavenças. Neves (2011b) trabalha com pesquisas realizadas sobre a população em situação de rua desde a década de 1970 e traz importantes elementos para compreensão da relação entre esse grupo populacional, gênero, trabalho e família. Há como cenário uma reflexão acerca do papel do trabalho em nossa sociedade e compreendemos que dialoga com aquilo que Ianni (1992) trata como “beatificação do trabalho” ou “louvação ao trabalho” em nosso país ao longo das repúblicas e vinculado à construção da nação. Resumo dessa louvação refletida pelo sociólogo é a famosa frase “o trabalho dignifica o homem”. A associação do trabalho à dignidade ou da dignidade atrelada ao fato de os sujeitos trabalharem traz à tona a necessidade do progresso, a fim de estimular a produção para o capital. Neste mesmo âmbito encontra-se o combate à ociosidade, o uso de termos como “mendigos” ou “vagabundos” para se referir a sujeitos que ocupavam e ocupam as ruas como espaços de sustento, de manutenção de sua sobrevivência e a publicação de legislações que criminalizavam a chamada “vadiagem” no final do século XIX e meados do século XX. A relação construída entre trabalho e dignidade também se perpetra no cotidiano das famílias da classe trabalhadora e, aliada à divisão sexual do trabalho que atribui ao homem o papel de provedor, traz elementos importantes que contribuem para compreendermos a constituição do fenômeno “população em situação de rua”. Segundo Neves (2011b, p. 118), O desemprego prolongado produz a desmoralização social e a perda de autoridade familiar, inviabilizando o papel de esposo. Alguns homens colocados em situação de constante desemprego reordenam sua vida familiar agregando-se como companheiro ou agregado; desistem de perseguir a posição de autoridade ou de esposo; e são comumente expulsos desse convívio. Sem apoio, tendem a se agregar aos desempregados que sobrevivem da prestação de pequenos serviços diários, trabalham e habitam na rua.
Apresenta também a condição dos sujeitos, principalmente os homens, que migram em busca de condições mais dignas de vida, para quem “retornar” em situação de rua ou em condições degradantes distintas daquelas para as quais lançou expectativas ao migrar torna-se uma possibilidade “insuportável”. O proibicionismo e a “beatificação do trabalho” são elementos orientadores de ações do Estado em resposta à existência de pessoas em situação de rua nas cidades, da sociedade em geral e das próprias famílias que, conforme insistimos, vivem sob esta e não sob outra sociabilidade. Importante mencionar que Escorel (2003) observa em sua pesquisa que a maioria das pessoas em situação de rua possuem uma família, mas que quanto mais tempo permanecem nas ruas, menor fica a frequência dos contatos com esta. Cabe observar a ruptura de vínculos familiares, que pode ser agravada na medida em que o tempo passa. A rua também produz vínculos dos mais diversos para muitos sujeitos. Observa-se que a população em situação de rua é constituída majoritariamente por homens adultos. Neves (2011b) problematiza que as mulheres costumam obter êxito ao acionarem redes de solidariedade e mesmo a rede caritativa, tendo esse papel no interior das famílias quando é o caso. Não é diferente nas ruas. Nas tramas do urbano, da cidade opulenta que produz desperdício, elas buscam alimentos e vestuário. Acerca dos recursos, Escorel (2003) menciona que eles são fator relevante para compreensão de onde estão concentradas as pessoas em situação de rua. Em geral, há maior concentração nos “centros”
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das cidades, uma vez que é onde circulam tais recursos, disponíveis para sobrevivência e para desenvolvimento de atividades que as pessoas em situação de rua costumam exercer para obter alguma renda. Ademais, costumam ser áreas que permanecem mais “vazias” à noite, garantindo-lhes “uma privacidade mais doméstica”. A relação entre população em situação de rua e os recursos das cidades, consumindo ou trabalhando com o “resultado” desse desperdício demarca a céu aberto as contradições do sistema capitalista. Os ditos “motivos” que levam amplos contingentes para a situação de rua não ocorrem “sozinhos” na vida dos sujeitos e possuem intrínseca relação com a sociabilidade sob o capital, incluindo aí a ruptura de vínculos e a desproteção social de indivíduos e suas famílias.
2.3 Cidade de contradições e a população em situação de rua A cidade se construiu como espaço das contradições sob o modo de produção capitalista, não sendo apenas uma espécie de organização despretensiosa dos espaços. Tem história e é constituída de relações tecidas por essas mesmas contradições. Tem vida, sonhos e pulsação. Segundo Iasi (2013), “a cidade é expressão das relações sociais de produção capitalistas, sua materialização política e espacial que está na base da produção e reprodução do capital”. (p. 41). Nessas cidades reproduz-se o fenômeno população em situação de rua. Dados de censos e pesquisa do IPEA revelam que há um aumento de pessoas vivendo nas ruas das cidades brasileiras em geral, sendo ainda predominante sua presença naquelas de grande porte e nas metrópoles (NATALINO, 2020). Fundamental que consigamos compreender as tramas da cidade capitalista e que esta é constituída ou vertida em mercadoria para aproximação de mais elementos para a problematização que buscamos neste artigo. Tomazine (2016) contribui com as nossas reflexões, na medida em que atribui o caráter de construção ao espaço urbano mercantilizado e ao espaço público vertido em lugar “de ócio e consumo”. A perspectiva é a da “maximização de lucros”, uma vez que a acumulação capitalista não pode deixar de ocorrer segundo os interesses do próprio capital. E há, neste bojo, uma disputa por bens e serviços públicos, que alija a classe trabalhadora de acessos importantes para sua reprodução. E para uma melhor compreensão do caso brasileiro, o autor propõe que ponderemos sobre o rápido processo de industrialização no país e sobre a “hegemonia neoliberal no governo do espaço urbano” (Ibid., p. 176). O autor supramencionado contextualiza que na Europa a população urbana “ultrapassou” a rural pós-industrialização após mais de um século e isto levou apenas algumas décadas nos países da periferia do sistema. Afirma que a miséria no campo e o “progresso industrializante” no século XX produziu “o maior êxodo migratório da história humana, inchando metrópoles desmesuradas como São Paulo e Rio de Janeiro” (Ibid., p. 176). Não houve, contudo, infraestrutura que acompanhasse este “movimento”, produzindo pauperismo e superexploração do trabalho e um imenso “exército industrial de reserva”. O crescimento das cidades brasileiras deu-se acompanhado da sanha pelo “progresso” e pela “modernização” urbanas, chanceladas pela pretensa construção de uma “nação” nos marcos da ordem. Isto ocorreu em um período pós “abolição”, em que as desigualdades sociais estavam agravadas, os sujeitos que haviam sido escravizados foram lançados sem proteção social nos grandes centros urbanos, além das marcas coloniais que persistiram e ainda deixam seus lastros em nosso país (IANNI, 1992; TOMAZINE, 2016). Cabe destacar que no início do século, os espaços públicos eram aqueles de encontros entre sujeitos e desenvolvimento de relações de sociabilidade importantes, principalmente para as pessoas negras outrora
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escravizadas. Todavia, a necessidade de ordenamento do espaço urbano como uma demanda da cidade mercantil, da cidade que deveria ser apta à circulação de mercadorias e que posteriormente tornar-se-ia a própria mercadoria, provocou um processo de transformações urbanas relevantes e significativas para compreensão da segregação urbana e da característica étnico-racial da população em situação de rua, debate que precisa ainda ser aprofundado, sobre os quais trazemos alguns elementos. O “sentimento nacionalista”, nos termos de Tomazine (2016), dá origem ao que o autor denomina “revanchismo colonialista”. Trata-se de processo em que as elites, a partir de interesses econômicos e sociais, tentaram retomar espaços urbanos acusados de “desordem”. No caso brasileiro, esse revanchismo contou com o embasamento em teorias “científicas” que atribuíam periculosidade à população pobre, chancelando intervenções violentas por parte do Estado: teorias racistas, eugênicas e o movimento higienista que contaram com adesão de médicos, arquitetos, pedagogos, juristas e urbanistas são exemplos importantes. Essas teorias contribuíram para chancelar intensas intervenções urbanas, como é o caso exemplar da Reforma Pereira Passos no Rio de Janeiro do início do Século XX. […] Sob o pretexto de modernizar a capital da nascente república, eliminar seus traços coloniais que tanto envergonhavam nossas elites perante o mundo e ajudar o país a sair da crise econômica, levaram-se a cabo intervenções que resultaram na expulsão dos negros e imigrantes pobres da área central da cidade […] uma série de posturas e leis que tiveram o efeito prático e interditar o direito ao espaço público àqueles elementos não ajustados à normalidade burguesa e branca. Estavam proibidos, por exemplo, andar descalço na nova Avenida Central (hoje Avenida Rio Branco), bem como o comércio ambulante. Práticas religiosas que não fossem as católicas eram consideradas crime, do mesmo modo que outras coisas aparentemente banais, a exemplo de carregar pela rua um violão, atitude enquadrada no crime da vadiagem (TOMAZINE, 2016, p. 186).
A urbanização higienista teve prosseguimento com governantes posteriores, como vemos em Coimbra (2006). As estratégias urbanas, pedagógicas, médicas, jurídicas buscavam uma espécie de limpeza ou “saneamento moral” da sociedade, separando a pobreza entre pobres virtuosos, os que eram “dignos”, mantinham “famílias coesas” e estavam “inseridos” no mundo do trabalho e pobres viciosos. Estes últimos, considerados um “perigo social”, não eram pertencentes ao mundo do trabalho e sofreram processo de criminalização ideológica e jurídica. O sujeito “vadio”, “mendigo”, que ocupava espaços públicos da maneira não desejável pela “elite branca” sofria sanções e respostas punitivas por parte do Estado. Os espaços públicos eram tidos pelo discurso médico como “a grande escola do mal”, de acordo com pesquisa de Coimbra (2006). A “louvação ao trabalho” mediante discurso nacionalista nos períodos republicanos e destacada por Ianni (1992) atingia em seus estigmas com maior ênfase a população negra outrora escravizada, desprotegida e ocupante de espaços públicos, de onde obtinha seu sustento. Essa população era componente da superpopulação relativa que, mediante múltiplas determinações, podia ser lançada para a situação de rua. A construção do “Brasil novo e moderno” deslocou as populações que antes ocupavam as ruas centrais para bairros suburbanos e encostas de morros, onde não chegavam serviços ou mesmo de maneira insuficiente. Esse apartheid social também contribuiu para a reprodução do fenômeno população em
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situação de rua de diversas maneiras. Uma delas é exemplar dessa correlação: o caso do Rio de Janeiro, em que há um contingente considerável de sujeitos que dormem nas ruas nas regiões centrais e Zona Sul (área conhecida por ser habitada pelas elites) durante a semana, ainda que tenham uma moradia para onde ir. O alto valor das passagens e as ofertas de “trabalhos” para obtenção de renda nessas regiões abastadas, fazem com que se pernoitem nas ruas da capital (ESCOREL, 2003). As intervenções urbanas são estratégias intrínsecas à acumulação capitalista. E devem ser analisadas de acordo com o movimento dessa acumulação. Importante destacar que a crise estrutural do capital impõe uma série de medidas de recuperação do sistema, saídas para valorização desse capital e o restabelecimento das taxas de lucro, acirrando as condições de vida da classe trabalhadora. Tomazine (2016) e Duriguetto (2017) dão conta de que, neste contexto, os governos passam a organizar as cidades por meio de instrumentos de planejamento estratégico a fim de atrair investimentos, precisando afastar quaisquer entraves a esse empreendimento, o que acirra as estratégias de “higienização do espaço urbano” e de saneamento moral. Os espaços públicos permanecem sendo aqueles que não devem ser ocupados, a não ser pelo consumo e pela passagem. Constroem-se neste escopo estratégias arquitetônicas para afastar pessoas em situação de rua. Afinal, as cidades são “negócios”, e uma ilustração disto foram as intervenções realizadas em épocas de grandes eventos, como Olimpíadas e Copa do Mundo: remoções, “recolhimentos” compulsórios de pessoas em situação de rua. Cabe salientar que em “grandes eventos” a população em situação de rua percebe recrudescida a violência do Estado. Isto se acirra no atual período, mas não se trata de estratégia “nova” ou que deixará de existir quando a “questão social” passa também a ser caso de “política” não somente de “polícia”. Podemos afirmar, tendo em vista pesquisa realizada por Freitas (2018), que a população que ocupa as ruas como espaços de sobrevivência e “moradia” nunca deixou de ser “caso de polícia”. Ao longo da história observamos situações que nos remetem a essa reflexão: a chacina de pessoas em situação de rua, conhecida como “massacre do Rio da Guarda” ou “Operação Mata Mendigos” na década de 1960, durante o governo de Carlos Lacerda, conhecido por suas intervenções urbanas chanceladas pelos argumentos do desenvolvimento, da ordem e do progresso. Tal episódio ocorrera dada a vinda da Rainha Elizabeth II da Inglaterra em visita ao país. Homens do Serviço de Repressão à Mendicância agiram acirrando a estratégia do “recolhimento compulsório” de pessoas em situação de rua, assassinando algumas delas, lançando-as nos rios Guandu e da Guarda na Baixada Fluminense. Já nas décadas de 1990 e 2000 observamos diversas operações com nomes sugestivos como “choques de ordem” e “tolerância zero”, com interferência direta sobre a ocupação do espaço público realizada por pessoas em situação de rua em nome da lei, da ordem, da “guerra às drogas” e da organização das cidades. É construído o discurso da desordem a fim de chancelar a proposta de trazer de volta à ordem e legitimar a violência de Estado, esta que tem sido acirrada como estratégia do capital, principalmente direcionado ao “excedente populacional” ou superpopulação relativa. Trazemos à tona reflexão de Tomazine (2016), segundo o qual essas tentativas de saneamento moral da pobreza, intervenções de cunho moralizante e individualista que, nos dizeres de Duriguetto (2017) descontextualizam as determinações estruturais da “questão social”, são imbuídas de um “sistema de valores conservadores”, que dão sustentáculo à sociabilidade burguesa. Estes valores são acirrados com o recrudescimento do conservadorismo e a regressão de direitos vivenciada na atualidade. Realizamos até aqui problematizações de dados e características comunicados em importantes pesquisas e censos sobre a população em situação de rua, e somos sempre lançados a compreender o quanto a sociabilidade burguesa e a lei geral de acumulação capitalista, em sua capacidade de atingir diversas dimensões da vida humana têm relação com a conformação do fenômeno aqui estudado.
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Além das problematizações, cabe-nos compreender uma afirmação e uma lacuna identificada por Silva (2009): aquela sobre a “inexistência” das políticas públicas destinadas à população em situação de rua, com a qual não concordamos inteiramente. Propomos, então, reflexões acerca de respostas do Estado a esse fenômeno, assim como sua análise no âmbito das “expressões da questão social”.
3 Considerações sobre Estado e população em situação de rua Conforme vimos em Maranhão (2010) e em Marx (2013), o capitalismo possui uma lei tendencial inerente ao seu desenvolvimento, em que “quanto mais se acumula riqueza em forma de capital de um lado, mais se aglutina a massa de trabalhadores despossuídos de outro” (MARANHÃO, 2010, p. 127). A manutenção da acumulação via exploração do trabalho é o grande objetivo do sistema. Neste escopo, não se pode deixar de considerar um processo fundamental para manutenção da ordem capitalista e de sua acumulação: o Estado. Destacamos sobre as funções do Estado as reflexões de Mandel (1982). Segundo o autor em tela o mencionado processo histórico possui como funções: Criar as condições de produção que não podem ser asseguradas pelos membros privados da classe dominante; Reprimir qualquer ameaça das classes dominadas ou de frações particulares das classes dominantes ao modo de produção corrente através do exército, da política, do sistema judiciário e penitenciário; Integrar as classes dominadas, garantir que a ideologia da sociedade continue sendo a da classe dominante e, em consequência, que as classes exploradas aceitem sua própria exploração, sem o exercício direito da repressão contra elas porque acreditam que isso é inevitável, ou que é “dos males o menor”, ou a “vontade suprema”, ou porque nem percebem a exploração. (MANDEL, 1982, p. 333-334).
É possível apreender a sua importância na manutenção da ordem capitalista burguesa, utilizando estratégias de repressão, integração e consenso. A repressão, segundo o autor, traz limites para manutenção da ordem se utilizada todo o tempo. A coerção e o consenso podem servir ao disciplinamento e controle das classes mais pauperizadas da sociedade. Faz parte desta construção de consensos o alargamento das possibilidades de intervenção via Estado a partir da incorporação de demandas das classes trabalhadoras. Apesar disto, cabe-nos ressaltar que as respostas do Estado via políticas e direitos sociais, conforme alerta Coutinho (2000), são vitórias importantes da economia política do trabalho sobre a economia política do capital, muito embora não possamos ser ingênuas a ponto de crer que o capital é capaz de qualquer “humanização”. As políticas sociais e intervenções do Estado na administração do fundo público formado como produto do trabalho excedente da classe trabalhadora possibilitaram intervenções e administração da “questão social”, mas também funcionam como uma espécie de socialização do ônus, formando-se por meio do trabalho, servindo também aos capitais, especialmente na contemporaneidade. Duriguetto (2017) pondera que em tempos de crise estrutural do capital e ofensiva neoliberal, avanço do conservadorismo e regressão de direitos, a face punitiva do Estado e estratégias como a que ela conceitua “assistencialização da questão social” são intensificadas, principalmente nas respostas à superpopulação relativa sobre a qual dissertamos neste texto. Observamos ainda as artimanhas da criminalização da “questão social”, por meio de estratégias direcionadas à população em situação de rua
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no âmbito da cidade capitalista. Por outro lado, entendemos que respostas baseadas em políticas sociais também devem ser analisadas neste contexto. Segundo estudos de Behring (2018), As políticas sociais vêm sendo pensadas para compensar a intensificação da exploração, que implica em processos de pauperização absoluta e relativa na maioria das vezes combinados, a depender da luta de classes nos estados nacionais, e considerando o desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo e a busca do diferencial de produtividade do trabalho. Neste sentido, no ambiente do neoliberalismo, crescem as dimensões assistenciais das políticas sociais e a própria assistência social como política pública […] Mas nunca podemos olvidar a natureza contraditória e de atendimento a necessidades concretas da classe trabalhadora que está presente nas políticas sociais […] (BEHRING, 2018, p. 49).
No caso do fenômeno “população em situação de rua”, observamos um predomínio de subterfúgios repressivos, da face punitiva do Estado ao longo do tempo, além da filantropia e da caridade. Neves (2011a) sinaliza que por estarem em espaços públicos e a degradação de sua vida situada a céu aberto, há uma íntima correlação entre a construção de estratégias filantrópicas e a antes dita “mendicância”. Tal relação demonstra-se histórica. Ademais, é possível observar a histórica “preocupação” do Estado brasileiro em fornecer respostas à “mendicância”, “vadiagem”, desde a sua criminalização não somente ideológica como legal. Podemos observar na existência de um setor de “mendicância” que funcionou no interior da instituição policial, e do Serviço de Repressão à Mendicância, a partir do qual houve a já mencionada “Operação Mata Mendigos” os aspectos de uma via “punitiva”. Palavras como “recolhimento” e “recuperação” são bastantes recorrentes quando analisamos as respostas do Estado à população em situação de rua. Em Freitas (2018) observamos que a “mendicância” era assunto recorrente na imprensa, pelo menos a partir das décadas de 1950 e 1960, quando a população urbana no Brasil começava a alcançar um vasto crescimento. Há alguns indicativos da existência de posicionamentos, ainda que instituintes e com volume muito diferente daquele olhar e das práticas instituídas, no sentido de problematizar as necessidades humanas das pessoas que viviam nas ruas. Ademais, é possível compreender que, dado o trabalho da imprensa em trazer à cena pública o “massacre do Rio da Guarda”, além de toda a repercussão internacional do caso, o Serviço de Repressão à Mendicância (SRM) do antigo Estado da Guanabara deixou de existir, passando a dar lugar a um setor no interior da Secretaria de Estado e Serviços Sociais, que ofertava o serviço num Centro de Recuperação de Mendigos. Uma observação que podemos realizar a partir da pesquisa realizada por Freitas (2018) com fontes jornalísticas e outros documentos, é que a repressão era realizada tanto pelo “SRM” quanto pelo Serviço dito de “recuperação”. E que no histórico do SRM, identifica-se a preocupação de sujeitos, em dados momentos, com a “recuperação” dos ditos “mendigos”. Há fontes que dão conta de entrevistas com um dos inspetores do SRM contabilizando o número de “mendigos” resgatados. Uma estratégia que visa à integração a despeito do título “repressão”, assim como observou-se “repressão” a despeito do título “recuperação”. A recuperação, segundo uma assistente social que atuava no “Centro”, seria necessária uma vez que, para ela, “os mendigos não participam do desenvolvimento do país”. Portanto, a “normalidade” era a participação no “mundo do trabalho” e consequentemente contribuição dos sujeitos para a ordem, progresso e desenvolvimento. A medida da “recuperação” era a inserção no mercado de trabalho. Na década de 1980 também observamos a existência de serviços de “recolhimento”, “recuperação”, abrigos e albergues. Recolher remete à estrutura asilar, de “trancar” para melhor controlar e disciplinar os sujeitos que não estão a contento em relação à ordem capitalista. Importa atentar para o
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fato de entre as décadas de 1960 e 1980 houve um volumoso crescimento urbano no país. Tomazine (2016) destaca que nos anos de vigência da ditadura militar no Brasil, houve crescimento econômico e da desigualdade social. Essas desigualdades são determinantes, entre outros fatores, para crescimento do fenômeno população em situação de rua. Na década de 1980, grupos da Igreja Católica, especialmente os vinculados à Teologia da Libertação e movimentos sociais travaram lutas no sentido da redemocratização do país e, nestas circunstâncias, observamos a crescente preocupação com a construção de serviços, direitos e da participação política da população em situação de rua. Observou-se aí também um aumento de pessoas vivendo nesta situação, escancarando as desigualdades sociais a céu aberto. Importa destacar que a redemocratização do país trouxe perspectivas de conquistas de direitos para diversos grupos e garantias no sentido da proteção social à classe trabalhadora. A Constituição Federal de 1988 foi importante conquista formal no escopo da emancipação política e abriu “caminho” para outras conquistas legais, apesar da ofensiva neoliberal que tem avançado sobre direitos conquistados. Alguns elementos são fundamentais para compreendermos um caminho de construção de direitos e políticas públicas para a população em situação de rua, mas não concordamos sobre a não existência ou “quase inexistência” dessas políticas apontada por Silva (2009). É possível detectar iniciativas municipais e talvez pontuais, mas elas são componentes de um processo de construção de propostas de trabalho e direitos. Concordamos, contudo, sobre o “protagonismo” da área da assistência social neste sentido. Há experiências importantes de construção nos municípios de Porto Alegre, Belo Horizonte e São Paulo, os que temos registros ainda nas décadas de 1980 e 1990. Há pesquisas que demonstram mobilizações incentivadas por profissionais da área de assistência social em unidades de acolhimento institucional, à época denominadas “albergues” no caso de Porto Alegre, construção de fóruns, de espaços importantes de controle social que passaram a contar com a participação de pessoas em situação de rua. Cabe destacar também a relevância desse incentivo à participação e da criação de espaços de debates e de participação social por parte de prefeituras governadas pelo Partido dos Trabalhadores, experiência, em algum momento das décadas mencionadas, vivenciada nos três municípios citados. Destacamos também tentativas de projetos de lei sobre a atenção à população em situação de rua e construção de serviços e projetos no sentido da garantia de direitos daqueles sujeitos. As demandas das pessoas em situação de rua estão cada vez mais presentes na cena pública. Nos anos 2000 temos a criação do Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis e em 2005 do Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR) que surgiu após uma chacina de sujeitos que dormiam na Praça da Sé em São Paulo. Esta organização, ao que pudemos depreender na pesquisa de Freitas (2018), tem relação íntima com a ascensão do Partido dos Trabalhadores ao Governo Federal. O diálogo do MNPR, fóruns e outros coletivos junto ao Governo Federal resultou em um Grupo de Trabalho Interministerial, a construção do único censo nacional sobre a população em situação de rua realizado pelo então Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), que administrou a Política de Assistência Social no âmbito nacional, e a publicação do Decreto 7.053 de 2009 que instituiu a Política Nacional Sobre População em Situação de Rua (PNPR). Cabe destacar aqui, numa análise sobre a PNPR, que se trata de um avanço relacionado à declaração de direitos das pessoas em situação de rua, mas que o governo não a enviou como projeto de lei a ser votado pelo Congresso Nacional, tendo permanecido como um decreto até o último mandato do Partido dos Trabalhadores. Ademais, traz em seu escopo a necessidade de adesão pelos municípios sem prever subsídios orçamentários para tal. Não há caráter compulsório para esta adesão. Observamos uma
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fragilidade que precisa ser destacada, qual seja, a abertura para convênios entre entidades públicas e privadas para execução de projetos destinados à população em situação de rua. No mesmo texto em que incentiva a responsabilidade do poder público, traz esta abertura para parcerias e atuação de entidades privadas e sem fins lucrativos. Na PNPR destacamos como avanços a apresentação de um serviço especializado voltado à população em situação de rua no âmbito da Política de Assistência Social, que é o caso dos Centros de Referência Especializados para População em Situação de Rua, os Centros POP. Também há o incentivo à atuação intersetorial para atenção à população em situação de rua e registro sobre a importância de reorganização dos serviços de acolhimento institucional voltados a este público. Sobre os Centros POP, cabe dizer que estes têm como objetivo ofertar o Serviço Especializado para População em Situação de Rua no âmbito da Política de Assistência Social. A proposta é constituir-se um serviço de característica não asilar, com funcionamento minimamente diurno, que oferte espaço para que pessoas em situação de rua guardem seus pertences, possam realizar sua higiene pessoal, participar de atividades de convivência, fortalecimento de vínculos e atendimentos individuais e coletivos. Um dos objetivos ratificados em Brasil (2011) é a necessidade de esse serviço possuir uma gestão democrática em diálogo com as pessoas em situação de rua e incentivar sua participação social. Objetiva também a realização de um trabalho articulado que possibilite o acesso de pessoas em situação de rua a outras políticas públicas e serviços. Importante destacar que no âmbito da Assistência Social já havia sido realizada uma alteração em sua Lei Orgânica (LOAS)8incluindo texto que indica criação de serviços para a população em situação de rua. Isso atesta a proximidade e certa centralidade da Assistência Social e não de outras políticas sociais junto à população em situação de rua, já mencionada por Silva (2009) em sua pesquisa. Sujeitos da Política de Assistência Social foram ativos na participação de todo o processo relativo à construção da PNPR e o único censo nacional fora realizado pelo ministério que geria esta mesma área. No caso da população em situação de rua, a Política de Assistência Social e a Política de Saúde são aquelas que por orientação federal criaram serviços específicos para este grupo populacional. Entendemos neste sentido que o mesmo governo que publicou um decreto com a PNPR e serviços específicos para a população em situação de rua, realiza um tipo de política voltada para orientações macroeconômicas de organismos internacionais, e que contribui para reprodução da superpopulação relativa, um dos fatores que contribui para a constituição do fenômeno população em situação de rua. Importa-nos analisar que além dos Centros POP e unidades para acolhimento institucional, observamos a implementação dos Serviços Especializados em Abordagem Social no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (SUAS)9. Realizando consultas sobre esse serviço específico, compreendemos o quanto ele tem sido executado tendo como parâmetro mais recorrente para seu planejamento 8
A Lei Orgânica da Assistência Social – Lei no8742, de 7 de dezembro de 1993 - prevê a organização da Assistência Social como Política de Seguridade Social não contributiva. Foi alterada em 30 de dezembro de 2005 pela Lei 11258, que tem como objetivo acrescentar na organização da Assistência Social o Serviço destinado a pessoas em situação de rua. A LOAS está disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11258.htm. Acesso em: 5 nov. 2020. 9 O Sistema Único de Assistência Social fora instituído legalmente por meio da Lei 12435 de 06 de julho de 2011 e tem como objetivo dispor sobre a organização da Assistência Social a partir de um sistema único. De acordo com Brasil (2011), “O desafio mais atual colocado ao SUAS para se assegurar a institucionalidade da Política de Assistência Social no Brasil se refere ao aprimoramento da gestão e à qualificação da oferta dos serviços”. A Lei do SUAS está Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20112014/2011/Lei/L12435.htm#:~:text=Altera%20a%20Lei%20n%C2%BA%208.742,a%20organiza%C3%A7%C3%A3 o%20da%20Assist%C3%AAncia%20Social. Acesso em: 5 nov. 2020.
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“denúncias” realizadas pela população local acerca da presença de pessoas em situação de rua. Essa informação obtivemos em Freitas (2019), que apresentou uma tabela a partir de dados obtidos nos Censos SUAS de 2014 a 2017. No próprio censo temos o uso da palavra “denúncia” para se referir ao ato da população domiciliada “comunicar” sobre a presença de pessoas em situação de rua nos espaços. Isto nos remete à criminalização da ocupação dos espaços públicos e como essa criminalização entra no planejamento e na própria letra de documentos públicos. Não negamos que de maneira contraditória as denúncias possam ser fontes de informação sobre a permanência de pessoas em situação de rua para as quais os serviços podem dirigir sua atenção. Contudo, o que chama a atenção é a sua predominância como fonte de informações que orientam o planejamento nos municípios, sendo em porcentagem bem maior que a vigilância socioassistencial, o conhecimento e análises das equipes sobre os territórios. Relatório do Centro Nacional de Defesa dos Direitos Humanos da População em Situação de Rua(CNDDH) e Catadores de Materiais Recicláveis (2014) acerca das violações de direitos pelas quais passaram pessoas em situação de rua durante a Copa do Mundo no Brasil, foi possível observar a realização de ações de “recolhimento compulsório” e outras violações de direitos às pessoas em situação de rua perpetradas por sujeitos vinculados ao Estado em mais diversos serviços: de abordagem social (Política de Assistência Social), limpeza urbana, segurança pública, entre outras políticas. Novamente e como uma permanência ao longo da história, reservadas as particularidades de cada tempo, observamos o “recolhimento” como estratégia de praticar a violência de Estado contra pessoas em situação de rua. Apesar de algumas rupturas no campo legal sobre os direitos de pessoas em situação de rua, a realidade ainda traz como desafio a superação da herança histórica e conservadora da relação entre Estado e este grupo populacional. Esse “recolhimento” ou requisições para esse “recolhimento” se acentuam quando aliado à “guerra às drogas” ou ideologia proibicionista. Cabe pontuar também que nos últimos anos temos observado um retrocesso no campo das políticas relacionadas à saúde mental e políticas sobre drogas10, em especial nos anos de governo ultraconservador e ultraliberal que se encontra no poder no âmbito federal atualmente. Há um retorno de perspectivas asilares e manicomiais para “tratamento” quanto ao consumo de psicoativos, com destinação do fundo público às chamadas Comunidades Terapêuticas, que possuem viés confessional e aplicam “tratamentos” não baseados em evidências científicas. Neste caso, percebemos um incentivo para encaminhamento de pessoas em situação de rua para “acolhimento” nesses espaços. Importa-nos observar que no site do Ministério da Cidadania11, atualmente responsável pela gestão da Política de Assistência Social há uma matéria em destaque anunciando a ampliação de vagas nessas mencionadas comunidades. Esse incentivo ocorre quando é indicado por especialistas, tanto no caso de pessoas em situação de rua em geral, quanto no caso de pessoas usuárias de substâncias psicoativas, o tratamento de base territorial e comunitário. Sobre as Comunidades Terapêuticas, Brites (2017) destaca que o incentivo a elas fere a laicidade do Estado e os princípios do Sistema Único de Saúde.
10
Para maiores informações, vide CFESS, Nota Técnica “mudança na Política de Drogas e as implicações para o trabalho de assistentes sociais”. Disponível em:http://www.cfess.org.br/arquivos/Nota-tecnicalei13840-2019-.pdf . Acesso em:1 ago. 2020. 11 Vide matéria “Ministério da Cidadania vai ampliar vagas em Comunidades Terapêuticas”. Disponível em: https://www.gov.br/cidadania/pt-br/noticias-e-conteudos/desenvolvimento-social/noticias-desenvolvimentosocial/ministerio-da-cidadania-vai-ampliar-vagas-em-comunidades-terapeuticas . Acesso em:1 ago. 2020.
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Junto a esse tema da laicidade do Estado, há relatos em diários de campo que requerem aprofundamento, mas que dão conta da existência de abordagens sociais sendo realizadas em conjunto entre a política de assistência social e a Guarda Municipal (GM-Rio) no Rio de Janeiro, em que a GM atua a partir de elementos confessionais, realizando “orações” e incentivando a realização de “caridade” e “filantropia” em vez de recolhimentos. São elementos sobre os quais é preciso estar atento, pois também podem estar atrelados à função repressiva do Estado. Sobre as respostas do Estado ao fenômeno população em situação de rua, analisamos que não são distintas daquelas realizadas à superpopulação relativa ou aquelas realizadas a partir da ideologia proibicionista ou de “guerra às drogas”: recolhimentos, violências, ações de cunho higienista e racista. Há, no entanto, desde a redemocratização, políticas baseadas na perspectiva dos direitos, que podem ser consideradas avanços. No campo das permanências, observamos uma relação próxima com a caridade, a filantropia e estratégias de viés confessional, que, no entanto, têm-se avolumado, bem como adensado a partir de um avanço do conservadorismo, também rebatendo nas estratégias de gestão das cidades capitalistas. Observamos que historicamente as respostas do Estado ao fenômeno população em situação de rua tem sido intensas em sua face punitiva aliada a estratégias assistencialistas e filantrópicas, as duas primeiras sendo imbricadas difusamente em muitos serviços públicos. Desde o Serviço de Repressão à Mendicância nas décadas de 1950 e 1960, aos Serviços Especializados em Abordagem Social. A face punitiva do Estado não está somente no exército, na política, poder judiciário e penitenciário. No caso da população em situação de rua, é possível observar que ela se mostra em espaços ditos de “recuperação”, nos serviços vinculados à assistência social, como o de abordagem social, ou o de limpeza urbana. As violências de Estado junto à população em situação de rua são difusamente perpetradas. O proibicionismo, a “beatificação do trabalho”, o higienismo moral demonstram-se também como repressão a partir dos mecanismos mencionados por Mandel (1982). Estão nas legislações, nos serviços e mesmo no cotidiano das famílias da classe trabalhadora, o que traz rebatimentos diretos para pessoas em situação de rua. As justificativas produtivistas, os argumentos da ordem, do progresso e em nome deles tentam-se justificar e legitimar essas violências de Estado no âmbito da cidade mercadoria. Pondera-se, contudo, que a partir das décadas de 1980 em alguns municípios governados por partidos de esquerda e principalmente após os anos 2000 observa-se uma crescente institucionalidade de constituição de políticas e serviços destinados a esse grupo populacional, como uma marca de “novidade” em relação ao que se tinha antes a título de respostas do Estado. Essa institucionalização, contudo, convive com as permanências sobre as quais se mencionou. Menciona-se e concorda-se, contudo, com Behring (2018), aqui citada: apesar do caráter contraditório das políticas sociais, elas respondem a necessidades concretas da classe trabalhadora. Não é diferente no caso da classe trabalhadora que se encontra em situação de rua. Cabe pontuar que o racismo estrutural em sua relação com a população em situação de rua, expressa-se em todos esses processos e respostas do Estado e é preciso que adensemos pesquisas a esse respeito, uma vez que aqui apontamos a lacuna em relação a pesquisas mais densas. Em tempos de intensa regressão de direitos e de avanço de um conservadorismo que não se foi, mas se intensifica, avaliamos que a feição punitiva do Estado se apresenta de maneira mais recrudescida, aliada à regressão de direitos, que não deixa de constituir em violência e violações a esse grupo populacional sobre o qual falamos.
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E este momento leva-nos novamente a refletir acerca dos direitos sob o capitalismo, que embora abranjam formalmente nas letras da lei a igualdade no acesso, traz desafios no sentido da centralidade da propriedade privada, inerente a esse modo de produção. A concretização de direitos que respondam integralmente as necessidades humanas é incompatível com a propriedade privada e com a acumulação capitalista produtora de desigualdades.
4 Considerações finais A população em situação de rua é um complexo fenômeno, grave expressão da “questão social”, manifestada pela ocupação de espaços públicos para reprodução da vida de sujeitos apartados de seus direitos. Trata-se de sujeitos que compõem a superpopulação relativa ou população excedente que provoca o rebaixamento dos salários e contribui para o aumento dos superlucros. Além do desemprego, da relação direta com o mundo do trabalho, com a inserção precarizada nesse mundo do trabalho e mesmo nas respostas residuais e assistenciais em detrimento da proteção social pelo trabalho e pela previdência social, podemos compreender que há outras determinações fundamentais para compreensão da conformação do fenômeno no Brasil, destacando-se a sociabilidade burguesa, que espraia seus mecanismos para todos os aspectos da vida humana, aprofundando inclusive individualismos e preconceitos. Conseguimos perceber, diante de todo o exposto que há permanências importantes, heranças históricas que estão “entre nós” nos serviços destinados à população em situação de rua, nas violências de Estado, nas legislações, posicionamentos e mesmo no cotidiano dos sujeitos: o higienismo, a criminalização e os discursos da ordem, do progresso, do desenvolvimento e da “beatificação do trabalho”. Elas estão nas repostas do Estado e mesmo nas requisições que a sociedade em geral realiza aos governos para responder à permanência de pessoas nas ruas. Isto demonstra a moralização e individualização, que contribuem para naturalização não somente do fenômeno, mas também da violência perpetrada contra pessoas em situação de rua, inclusive por meio do “recolhimento compulsório”, a estratégia do recolhimento em geral ou da noção da “recuperação”, tendo como parâmetro o “produtivismo”. A permanência das respostas filantrópicas assim como o recrudescimento e mesmo destinação de fundo público para entidades filantrópicas e de viés confessional demonstram retrocessos nas conquistas de direitos da população em situação de rua. Há uma regressão de direitos, desmanche de políticas sociais em geral, como saúde, assistência social e principalmente trabalho e previdência social, um avanço do conservadorismo que nunca se foi, mas que hoje torna mais nítida sua relevância para a acumulação capitalista no âmbito urbano. A gestão urbana que visa o lucro em detrimento das necessidades humanas escancara o limite dos direitos nesta ordem, embora defendamos a sua garantia. A realidade demonstra a incompatibilidade entre a propriedade privada que funda essa sociabilidade e a garantia de direitos humanos para todas as pessoas. A defesa da propriedade privada aprofunda as desigualdades sociais, o que contribui também para a conformação do fenômeno população em situação de rua.
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Submetido em: 19 ago. 2020 Aceito em: 7 out. 2020
DOI: 10.19180/1809-2667.v22nEspecial2020p952-964
Em tempos de Covid-19: fique em casa! Mas, onde ficam os que “moram” nas ruas? In Covid-19 times: stay home! But, where are those who “live” on the streets? En tiempos de Covid-19: ¡quédate en casa! Pero, ¿dónde están los que “viven” en la calle? Ana Paula Cardoso da Silva https://orcid.org/0000-0003-0634-5512 Assistente social da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e do Hospital Federal dos Servidores do Estado. Mestre em Serviço Social e Desenvolvimento Regional pela Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói/RJ – Brasil. E-mail: as.anapaula@gmail.com.
Resumo O presente artigo se propõe a realizar algumas reflexões críticas acerca da atuação do Poder Público no âmbito da política de Assistência Social no município do Rio de Janeiro com a população em situação de rua, em tempos de Covid-19, explicitando em termos práticos as ações que estão sendo desenvolvidas com estas pessoas e os seus impactos em suas vidas, dando ênfase no como se operacionaliza o “fique em casa” para quem tem a rua como seu lugar de moradia e sustento. Dessa forma, esse artigo almeja dialogar como o Estado capitalista, no caso, no município supracitado, está atuando frente a esta faceta da questão social, tomando por base o espraiamento da sua dimensão coercitiva acentuada no cenário de complexificação de crise estrutural do capital. O trabalho em questão se subdividirá em uma breve introdução sobre quem são estas pessoas e como estão sendo atendidas durante a pandemia do novo coronavírus pela Política de Assistência Social; discorrerá acerca das suas principais demandas neste contexto e sobre os pontos nevrálgicos a serem enfrentados para terem acesso a seus direitos, finalizando propondo algumas estratégias coletivas para um atendimento mais efetivo, qualificado e propiciador de direitos a esta população. Palavras-chave: Assistência Social. Covid-19. Direitos. Pessoas em situação de rua.
Abstract This article carries out critical reflections on the performance of the Public Power in the scope of the Social Assistance policy in the city of Rio de Janeiro regarding the homeless population in Covid-19 times. It aims to explain the actions that are being developed with this population and their impacts on their lives, with emphasis on how to make “stay at home” operational for those who have the street as their place of residence and sustenance. Thus, the paper aims at discussing how the capitalist state, in this case the aforementioned municipality, is acting towards this social issue, based on the spread of its accentuated coercive dimension in the scenario of complexity of the structural crisis of capital. This study presents a brief introduction of who these people are and how they are being cared for during the new coronavirus pandemic by the Social Assistance Policy. Secondly, it discusses their main demands in this context as well as the crucial aspects to be faced in order to have access to their rights. It concludes by proposing collective strategies for a more effective and qualified assistance that may provide rights to this population. Keywords: Social assistance. Covid-19. Rights. Homeless people.
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Resumen
Este artículo propone realizar algunas reflexiones críticas sobre el desempeño del Poder Público en el ámbito de la política de Asistencia Social en la ciudad de Río de Janeiro con la población sin hogar, en tiempos Covid-19, explicando en términos prácticos las acciones que se están desarrollando con estas personas y sus impactos en sus vidas, con énfasis en cómo hacer operativo el “quedarse en casa” para quienes tienen la calle como lugar de residencia y sustento. Así, este artículo pretende dialogar sobre cómo el Estado capitalista, en este caso, el referido municipio, está actuando en esta faceta de la cuestión social, a partir de la difusión de su acentuada dimensión coercitiva en el escenario de complejificación de la crisis estructural del capital. El trabajo en cuestión se subdividirá en una breve introducción sobre quiénes son estas personas y cómo están siendo atendidas durante la nueva pandemia de coronavirus por la Política de Asistencia Social; hablará sobre sus principales demandas en este contexto y sobre los puntos neurálgicos a enfrentar para tener acceso a sus derechos, concluyendo proponiendo algunas estrategias colectivas para una mayor efectividad, cualificación y otorgamiento de derechos a esta población. Palabras clave: Asistencia social. Covid-19. Derechos. Gente sin hogar.
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Em tempos de Covid-19: fique em casa! Mas, onde ficam os que “moram” nas ruas? Ana Paula Cardoso da Silva
1 Introdução Neste momento de pandemia, evidentemente, há uma atmosfera de tensão, angústia e preocupação, entre outros sentimentos, todavia, imaginem sobreviver a este cenário caótico, quem "mora" nas ruas. Nelas, não há água, não há sabão, muito menos álcool gel, e sobram estigmas e carências, mas tem muitos seres humanos que precisam ter acesso a tudo isso e muito mais, afinal, eles também são sujeitos de direitos, desejantes e de muitas potencialidades. Este artigo almeja realizar algumas reflexões críticas acerca da atuação do Poder Público no âmbito da política de Assistência Social no município do Rio de Janeiro com a população em situação de rua. A pandemia do novo coronavírus atinge bruscamente, sobretudo, as pessoas em situação de rua, que sobrevivem em precaríssimas condições de existência, contando bastante para tal, com o Poder Público, estando na linha de frente da atuação, através do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), com os Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS) e os Centros de Referência Especializados para População em Situação de Rua (Centros Pop); o Sistema Único de Saúde (SUS), com os Consultórios nas Ruas, e também há de considerar as ações caritativas de grupos religiosos e a atuação das organizações não governamentais (ONGs) em seu cotidiano. Por meio da experiência profissional num CREAS no município do Rio de Janeiro, através das fichas da Abordagem e dos relatos com os (as) usuários (as) em situação de rua: observa-se que: estas pessoas se referem a um grupo bastante heterogêneo e complexo, o qual expressa uma faceta da questão social multifatorial (desemprego, conflitos familiares, violência doméstica e/ou na comunidade, uso abusivo ou dependente de substâncias psicoativas, entre outros). Em sua maioria, são homens adultos negros com baixa escolaridade, porém com o advento da pandemia do novo coronavírus, vem se observando um novo perfil dessa população, e o desemprego, precipuamente, está ocasionando que mais pessoas fiquem em situação de rua. É importante pontuar que esta pandemia está servindo, dentre tantas coisas, para dar transparência para a sociedade em geral, das principais mazelas produzidas pelo sistema capitalista, especialmente, num país capitalista dependente como o Brasil, marcado por uma profunda e histórica desigualdade social. Além do mais, a pandemia em curso vem provando, a duros golpes, à sociedade civil e aos seus governantes de que as principais “armas” para vencer esta “guerra”, metaforicamente descrevendo, são aqueles (as) que vêm sendo tão atacados (as) e desvalorizados (as) pelo Poder Público na contemporaneidade brasileira: o SUS; a Ciência; a Educação (em especial, as Universidades Públicas); a Arte; a Cultura; o SUAS. Enfim, apesar dos aparelhos midiáticos (jornais televisivos e gráficos, programas de televisão e de rádios, e mídias sociais) tentarem repassar um ideário romântico e apaziguador de que “estamos todos no mesmo barco”, certamente não estamos, haja vista a realidade destas pessoas, que têm as ruas como seu locus de moradia e sustento.
2 Pessoas em situação de rua e a pandemia do novo coronavírus: pontos nevrálgicos na Política de Assistência Social no município do RJ Morar na rua é sentir a fome, mas o que incomoda mesmo é não ter nome. […] Morar na rua é ser livre para não ser. É ser livre para não ter. […] É andar sem destino, é ficar sem sentido. […] Sair da rua é uma cidade – sim uma cidade – com gente dentro. (COSTA, 2019, p. 149-150).
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Em tempos de Covid-19: fique em casa! Mas, onde ficam os que “moram” nas ruas? Ana Paula Cardoso da Silva
De acordo com a Política Nacional para a População em Situação de Rua, Decreto 7.053/2009, em seu Artigo 1º, Parágrafo Único: considera-se população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória. (BRASIL, 2009).
Cabe inicialmente elucidar que a pandemia do novo coronavírus/Covid-19 não é um fenômeno natural, isto é, ela é totalmente fruto da ação humana resultante do modo de produção capitalista destrutivo e acumulador, considerando o desmatamento, os impactos na agricultura e pecuária, por exemplo, a qual veio descortinar contradições inerentes ao referido modo (desigualdade social, fome, miséria, desemprego, violência, entre outras). Na contemporaneidade brasileira, vive-se os efeitos da crise sistêmica do capital acentuada pela crise sanitária, num contexto de um desgoverno ultraneoliberal genocida, racista, misógino e homofóbico, o qual prioriza lucros e não vidas, baseado no darwinismo social, de perda aviltante de direitos, de uberização do trabalho, de criminalização da questão social, de desmonte das já desmanteladas políticas sociais. Diante deste cenário caótico: a pessoa em situação de rua também foi atingida pela pandemia COVID-19 e sua condição para enfrentar esta crise é certamente piorada, pois a recomendação do estado é que o indivíduo recolha-se socialmente e resguarde-se em um ambiente que lhe garanta o mínimo de condições básicas de sobrevivência, atenção e proteção. (ROCHA FILHO; AZEVEDO; ROCHA, 2020, p. 203).
Cabe aqui a reflexão acerca do termo lumpemproletariado (do alemão Lumpenproletariat: “seção degradada e desprezível do proletariado”, de lump “pessoa desprezível” e lumpen “trapo, farrapo” + proletariat “proletariado”), ou ainda subproletariado, o qual designa, no conceito marxista, a população formada por parcelas miseráveis, não organizadas do proletariado, não apenas destituídas de recursos econômicos, como também desprovidas de consciência de classe, sendo assim, mais suscetíveis de serem cooptadas para atenderem aos interesses da burguesia, podendo com isso, interferir negativamente na consciência revolucionária do proletariado. O referido termo foi introduzido por Karl Marx e Friedrich Engels em A Ideologia alemã (1845), da seguinte forma: “os plebeus, colocados entre os homens livres e os escravos, nunca conseguiram ultrapassar a condição de Lumpenproletariat." (MARX; ENGELS, 2008). O lumpemproletariado seria constituído por trabalhadores em situação de miséria extrema ou por indivíduos desvinculados da produção. Em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, no capítulo V, o lumpemproletariado é descrito como: […] descendentes degenerados e aventureiros da burguesia, vagabundos, licenciados de tropa, ex-presidiários, fugitivos da prisão, escroques, saltimbancos, delinquentes, batedores de carteira e pequenos ladrões, jogadores, alcaguetes, donos de bordéis, carregadores, escrevinhadores, tocadores de realejo, trapeiros, afiadores, caldeireiros, mendigos. (MARX, 2011, p. 97).
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Isto é, refere-se a grupos fortemente estigmatizados e malquistos na sociedade da época como até hoje. No Manifesto Comunista (MARX; ENGELS, 2008, p. 26) o termo aparece da seguinte maneira: “o lumpemproletariado, essa parcela passiva, em decomposição, das camadas inferiores da velha sociedade pode, às vezes, ser arrastado para o interior do movimento pela revolução proletária; contudo fazem com que ele tenda mais a se deixar comprar pelas atividades reacionárias”. Assim, o lumpemproletariado refere-se às frações do proletariado que dificilmente irão configurar o exército industrial de reserva, sendo este imprescindível à acumulação capitalista. Tais frações vivenciam situações ainda mais complexas daquelas dos integrantes do exército industrial de reserva. Baseando-se na teoria marxista, no capitalismo contemporâneo, para além do percentual daquilo chamado de população excedente, no cenário atual de desregulamentação das leis trabalhistas e flexibilização do mercado, há a produção de um excedente e também a produção de uma população absolutamente desnecessária, isto é, esse estrato social não cabe nem mesmo no exército de reserva1, ele é descartado totalmente pelo sistema. Atualmente, compreende-se esse estrato como “desalentados”, ou seja, aquelas pessoas que “desistiram” de ingressar no mercado formal de trabalho. A população em situação de rua compreende um grupo de pessoas tidas como indesejáveis2 ou invisíveis para grande parcela do Poder Público e da sociedade no geral. Contudo, faz-se necessária a análise de que em Washington, capital do país mais próspero economicamente do mundo, há mais pessoas em situação de rua do que na cidade do Rio de Janeiro3, isto porque é inerente ao sistema capitalista a contradição da produção da abundância e da escassez, onde uma é condição sine qua non para o desenvolvimento da outra. Segundo a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais (2009), no que se concerne ao atendimento às pessoas em situação de rua, dentre os Serviços de Proteção Social Especial de Média Complexidade4, tem-se o Serviço Especializado em Abordagem Social e o Serviço Especializado para Pessoas em Situação de Rua para o atendimento a este público, sendo o primeiro executado pelos Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS) e os segundos, pelos Centros de Referência Especializados para População em Situação de Rua, os chamados Centros Pop. A saber, o município do Rio de Janeiro conta para atendimento às pessoas em situação de rua com 14 CREAS, distribuídos pelas 10 Coordenadorias de Assistência Social e Direitos Humanos (CASDH) na cidade, ou seja, do Centro à Santa Cruz; 2 Centros Pop, 4 Centrais de Recepção para pessoas em situação de rua, sendo uma para adultos e famílias, uma para idosos (as), uma para crianças de ambos os sexos e adolescentes meninas, e uma para adolescentes meninos, além de unidades de acolhimento 1
O exército industrial de reserva é um conceito marxiano desenvolvido em sua crítica da economia política e refere-se ao desemprego estrutural das economias capitalista. Ele corresponde à força de trabalho que excede as necessidades da produção, onde para o bom funcionamento do sistema de produção capitalista e garantia o processo de acumulação, é necessário que parte da população ativa esteja permanentemente desempregada. Dessa forma, esse contingente de desempregados atua como entrave das reivindicações dos trabalhadores e contribui para o rebaixamento dos salários. 2 Para maiores informações acerca desta temática, vide: GATTO, Márcia. Os indesejáveis: das práticas abusivas e ideologia dominante no enfrentamento aos sujeitos indesejáveis no Rio de Janeiro. 2017. Tese (Doutorado) - UERJ, Centro de Educação e Humanidades. Faculdade de Educação, 2017. 3 Dado trazido pelo Sociólogo, Pesquisador e Professor Doutor do Instituto de Ciências Sociais da UERJ Dario Souza e Silva durante a live “Direitos Humanos: o fenômeno da população de rua no capitalismo”, realizada em 17 ago. 2020 pelo Fórum Permanente sobre População Adulta em Situação de Rua do RJ. 4 Referem-se aos serviços que oferecem atendimentos às famílias e indivíduos com seus direitos violados, mas cujos vínculos familiares e comunitários não foram rompidos.
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institucional, intituladas de Unidades de Reinserção Social (URS) para estes diferentes perfis, constituindo uma rede que ainda não contempla efetivamente as necessidades quantitativas e qualitativas desta população. Com a decretação do distanciamento social, os CREAS e os Centros Pop no município do Rio de Janeiro, funcionaram de 30 de abril de 2020 até meados de agosto deste ano5, de acordo com a Resolução SMASDH 4/2020, das 10h às 14h, assim como os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), tendo os atendimentos aumentado significativamente pelos(as) usuários(as) em situação de rua, seja solicitando: isenção para requerimento de segundas vias de documentação; inclusão ou atualização cadastral referente ao Programa Bolsa Família; requerimento ou informações sobre o Benefício de Prestação Continuada (BPC); benefícios eventuais (gêneros alimentícios e Auxílio Emergencial 6 ) ou acolhimento institucional. Cabe sinalizar que, apesar das novas ofertas de vagas para acolhimento institucional, elas estão ainda muito aquém das reais necessidades quantitativas e qualitativas dessas pessoas, assim como quanto à distribuição de kits de higiene ofertados a elas, tendo no mês de julho deste ano acrescida a distribuição de kits com máscaras de pano com sabonete para esse público. Concernente à operacionalização do Auxílio Emergencial, esta merece atenção especial, haja vista o enfrentamento a diversos entraves, sobretudo, no que tange ao acesso da população em situação de rua, considerando que uma parcela significativa não possui documentos ou a documentação completa para tal, além de problemas acerca da regularização do CPF. Outro fator objetivo que vem impedindo o acesso da maioria dessas pessoas é o de não possuírem um aparelho de telefone celular, visto que, ao preencher o link para realizar a inscrição, é necessário que o usuário informe seu número de celular para que possa receber o código de confirmação por SMS, o qual possibilitará a validação do seu cadastro. Situação esta, que se agrava porque o mesmo número de telefone não pode ser utilizado para a realização de outro cadastro. Se não fossem esses empecilhos, os CREAS e os Centros Pop, desde que garantidos os Equipamentos de Proteção Individual (EPI) e Equipamentos de Proteção Coletiva (EPC) necessários também para assegurarem a saúde de seus (suas) trabalhadores (as), poderiam servir como porta de entrada destas inscrições para este público. Ressalta-se aqui, o artigo 5º, alínea g do Código de Ética Profissional de Assistentes Sociais (CFSS, 2012): contribuir para a criação de mecanismos que venham desburocratizar a relação com os/as usuários/as, no sentido de agilizar e melhorar os serviços prestados, sendo este um dos grandes desafios enfrentados no cotidiano profissional no atendimento a esta população. É imprescindível ressaltar uma das diretrizes da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS): “primazia da responsabilidade do Estado na condução da política de assistência social em cada esfera de governo” (BRASIL, 1993) e que o SUAS tem papel de destaque na atuação com a população em situação de rua. Assim, as ações estatais devem ser preponderantes a quaisquer outras. As pessoas em situação de rua estão inseridas em sua maioria no mercado informal de trabalho, como catadores de recicláveis, vendedores ambulantes, etc. No entanto, com o distanciamento e o isolamento social (extremamente necessários e vitais) recomendados pelos órgãos sanitários, aqueles que têm como sua “casa”, a rua, ficam à deriva neste período, onde estão os sentindo com extremas 5
No momento, estão funcionando de segunda à sexta-feira entre 10h e 16h. 6 Trata-se de um benefício financeiro destinado a trabalhadores(as) informais, microempreendedores (as) individuais (MEI), autônomos(as) e desempregados (as), o qual tem por objetivo fornecer proteção emergencial no período de enfrentamento à crise causada pela pandemia do coronavírus/Covid-19.
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dificuldades, com relatos alarmantes de fome, insegurança e incerteza ainda mais fortes, marcadas pelo “sofrimento da sobrevivência”. Merece destaque a economia invisível movida pela população em situação de rua (com destaque para a reciclagem) para o capital, a qual tem a rua como fonte de recursos e de sobrevivência. Interessante expor ainda a fala de um usuário em situação de rua, que disse: […] “os ricos existem por causa de pobres como eu, ficam cada vez mais ricos”. Vale salientar estudos incipientes7, inclusive em território nacional, da taxa de mortalidade maior na população negra e sabemos que essa é a raça/cor majoritária da população em situação de rua no país. Urge um debate mais profundo acerca da necropolítica, da qual: a expressão máxima da soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Por isso, matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais. Exercitar a soberania é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação de poder. (MBEMBE, 2016, p. 123).
A vida da população em situação de rua, conforme já sinalizado, está ainda mais dura e sem perspectivas de melhoras, levando em consideração, os relatos de fome, maiores dificuldades para realização de higiene pessoal e de carência de possibilidades de sustento nas ruas, escutados nos atendimentos sociais diários, sendo estas duas primeiras agravadas pelo fechamento de instituições religiosas que auxiliam bastante na oferta de banho e alimentação para a mesma nos territórios da cidade. Faz-se importante explicitar a diferença significativa entre o controle social8 de viés participativo e democrático, o qual contempla uma das bandeiras de luta de assistentes sociais e de outras categorias profissionais da área de saúde, por exemplo, e o controle do social por parte do Estado cada vez mais autoritário, por meio de ações policialescas e caritativas, onde a Política de Assistência Social, atravessada pelo avanço do conservadorismo reacionário, vem buscando realizar, sendo neste contexto, de extrema relevância para os enfrentamentos e resistências necessários. Assim, é necessário levar em conta a correlação de forças de cada espaço sócio-ocupacional, os vínculos de trabalho fragilizados existentes e uma análise territorial específica, visto que há espaços com maiores tensionamentos do que outros. Exemplificando o avanço do conservadorismo reacionário no SUAS, no município do Rio de Janeiro (Gestão Plena9) com relação ao trabalho com pessoas em situação de rua. Durante este cenário pandêmico, retornaram em alguns territórios da “cidade maravilhosa”, algo nada admirável na relação 7
Vide Observatório Covid-19 da Fiocruz, o qual tem como função produzir informações para ação e como objetivo geral: o desenvolvimento de análises integradas, tecnologias, propostas e soluções para enfrentamento desta pandemia pelo SUS e pela sociedade brasileira. 8 Sobre controle social, cabe diferenciar que este se refere a uma forma de monitoramento da população sobre as políticas públicas, acompanhando e fiscalizando as ações governamentais. O controle do social diz respeito ao controle do Estado em relação a grupos populacionais específicos, tais como as pessoas em situação de rua. Além disso, vale salientar que nem todas as ações denominadas por caritativas possuem o mesmo significado político, devendo o uso deste termo merecer bastante cautela, precipuamente, ao abordar as pessoas supracitadas, já que Pe. Júlio Lancellotti é exemplo de ação caritativa de caráter revolucionário exercida com esta população. 9 No caso da gestão municipal e do Distrito Federal, são possíveis três níveis de habilitação ao SUAS: inicial, básica e plena. A gestão inicial fica por conta dos municípios que atendam a requisitos mínimos, como a existência e funcionamento de conselho, fundo e planos municipais de assistência social, além da execução das ações da Proteção Social Básica com recursos próprios. No nível básico, o município assume, com autonomia, a gestão da proteção social básica. No nível pleno, ele passa à gestão total das ações socioassistenciais (Fonte: Ministério da Cidadania).
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com estes sujeitos, as ações chamadas de “abordagens intersetoriais” ou “ações conjuntas”, que dizem respeito a atividades de cunho de “limpeza urbana” e político-partidário, envolvendo a Polícia Militar, a Guarda Municipal, a Companhia Municipal de Limpeza Urbana (COMLURB), as Superintendências Regionais e profissionais do SUS e do SUAS, dentre eles, Assistentes Sociais, com o falso e sedutor discurso de que estes últimos estão presentes para garantir que não haja nenhuma violação de direito nessas ações. Na verdade, essas ações, no entanto, prejudicam bastante o trabalho da abordagem processual realizada pelas equipes dos CREAS, como também desgastam e fragilizam os vínculos estabelecidos entre as equipes e os (as) usuários (as) em situação de rua destes territórios, colocando em xeque o trabalho realizado nesses espaços e trazendo óbices na reconstrução do trabalho sistemático realizado pelas referidas equipes, tendo em vista que as relações de confiança, respeito e empatia estabelecidas processualmente com a população em situação de rua sofrem significativos abalos. Vale frisar aqui, que “no contexto corrente de crise capitalista estrutural e planetária, o Rio de Janeiro é um laboratório de agenciamentos estatais coercitivos […] A cidade expõe a militarização da vida sob a forma da hipertrofia da dimensão vigilante-repressiva-punitiva do Estado” (BRITO e OLIVEIRA, 2013, p. 65-66). Destaque aqui para outra fala de um usuário em situação de rua observando um Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) no município do Rio de Janeiro: “Isso não é para morador de rua!” Tal fala remete a uma reflexão necessária e de extrema importância sobre o direito à cidade desta população, o qual “só pode ser formulado como direito à vida urbana, transformada, renovada” (LEFEBVRE, 2001, p. 118119).
3 “Nossa casa é privacidade” – Considerações importantes para o atendimento com a população em situação de rua em tempos de Covid-19 “Uma classe social não se realiza no território de outra classe social.” Bernardo Mançano Fernandes
Atenção à seguinte fala de um usuário ao avistar a equipe do Serviço Especializado em Abordagem Social de um CREAS numa cena de uso do município do Rio de Janeiro: “Nossa casa é privacidade”. Nesta frase, este usuário provoca uma interessante reflexão do quanto seja a rua ou a cena de uso, significa para esta população, que as têm como seu “lar” e o como deve ser respeitada nestes locais públicos, que os percebem como privados. De acordo com Maricato (2015, p.22-23), “a cidade é o lugar por excelência de reprodução da força de trabalho […] a cidade é a mercadoria. É um produto resultante de determinadas relações de produção, sendo cada vez mais relevante o papel do Estado na produção do espaço urbano”. Contudo, é importante citar que “a cidade também não é apenas reprodução da força de trabalho. Ela é um produto ou, em outras palavras, também um grande negócio […] A cidade constitui um grande patrimônio construído histórica e socialmente, mas sua apropriação é desigual” (MARICATO, 2013, p. 20). Considerando o exposto, o trabalho de Assistentes Sociais com pessoas em situação de rua deve sempre se pautar na autonomia e/ou no fortalecimento ou resgate dos vínculos familiares e comunitários, através da aproximação e vinculação empática com as mesmas, baseando-se em práticas de cuidado singular e acolhimento às diferenças, e uma abordagem interdisciplinar e intersetorial, na perspectiva de acesso a direitos.
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Segundo a Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), os usuários da política de Assistência Social são “aqueles que dela necessitarem” e diante de uma conjuntura de crise estrutural do capital acentuada pela pandemia do novo coronavírus, marcada pelo desemprego estrutural e pela redução das proteções sociais decorrentes do trabalho, a tendência é a ampliação dos que demandam o acesso a serviços e benefícios desta política, onde “está em curso um processo complexo de redefinição do perfil dos usuários da assistência social” (COUTO; YASBEK; RAICHELIS, 2014, p. 69). Assim, essa análise crítica já vinha sendo feita conforme a referida citação. É crucial problematizar quatro aspectos desses (as) usuários (as): em primeiro lugar, a herança conservadora da identidade dos usuários das políticas assistenciais; […] em segundo lugar, a ausência do debate da classe social na política de Assistência Social; […] em terceiro lugar, o SUAS deve proporcionar condições objetivas para que a população usuária da Assistência Social rompa com o estigma de desorganizada, despolitizada e disponível para manobras eleitorais; […] e em quarto lugar, os conceitos de vulnerabilidade e risco social devem ser problematizados. (COUTO; YASBEK; RAICHELIS, 2014, p. 72-73).
No intuito de, respectivamente: superar os adjetivos de desvalorização e subalternização desses sujeitos; enfocar que pertencem a uma determinada classe social, a trabalhadora, destituída dos meios de produção; compreender esses usuários como cidadãos, sujeitos de direitos e contribuir na estimulação da organização coletiva pela manutenção e conquistas de mais direitos, sem perder de vista a busca por uma nova sociabilidade; e considerar que “vulnerabilidade” e “risco social” não são adjetivos da condição do usuário, mas que devem ser enfrentados como produtos da desigualdade inerente ao sistema capitalista, os quais requerem uma intervenção para além do âmbito das políticas sociais, almejando romper com a individualização das demandas e com a culpabilização desses usuários (por meio do desenvolvimento das suas potencialidades individuais ou familiares) e coletivizá-las, rompendo com a lógica de responsabilizálos pelas mazelas produzidas pelo próprio sistema (COUTO; YASBEK; RAICHELIS, 2014). Vale salientar também a necessidade de se problematizar a perspectiva territorial incorporada pelo SUAS, onde no território “se concretizam as manifestações da questão social e se criam os tensionamentos e as possibilidades para o seu enfrentamento” (COUTO; YASBEK; RAICHELIS, 2014, p. 74), assim como com os estigmas gerados com a denominação de “territórios vulneráveis”, os quais cerceiam a mobilidade dos sujeitos da cidade (COUTO; YASBEK; RAICHELIS, 2014, p. 77). Há que se destacar ainda, o quanto é necessário pensar coletivamente em estratégias de resistência, nesta conjuntura pautada no medo e na incerteza, na qual se tem de um lado, a contradição dos sentimentos de piedade x ódio que a população em situação de rua gera no senso comum e do outro, as ações assistencialistas, ora policialescas e repressivas, de “limpeza urbana” por parte dos aparatos estatais em determinados momentos, visto que se tem um contexto propício para disseminar o ideário do acolhimento (leia-se recolhimento) compulsório por causa do medo da contaminação e propagação do vírus por esta população. A luta deve ser sempre pela universalização das políticas públicas e por contribuir no exercício profissional em seus vários espaços de atuação para transformar este cenário pautado no medo, num campo fecundo para reflexão crítica e superação racional coletiva dos inúmeros problemas agudizados com esta pandemia. Considerando o exposto:
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Em tempos de Covid-19: fique em casa! Mas, onde ficam os que “moram” nas ruas? Ana Paula Cardoso da Silva o medo social é um medo construído socialmente, com o fim último de submeter pessoas e coletividades inteiras a interesses próprios e de grupos, e tem sua gênese na própria dinâmica da sociedade […] Esse medo leva determinadas coletividades, territorializadas em determinados espaços, a temer tal ameaça advinda desses grupos. (BAIERL, 2004, p. 48).
É fundamental citar a valorização da dimensão pedagógica do trabalho profissional, na qual o (a) Assistente Social pode contribuir com o trabalho de educação em saúde com esta população, explicitando através de uma linguagem simples e acessível acerca da pandemia e de medidas de prevenção contra o novo coronavírus, como também buscar propiciar um ambiente dialógico e crítico dentro dos seus espaços sócio-ocupacionais e com a sociedade civil no geral, com ênfase na contribuição para uma outra visibilidade a estes (as) usuários (as). Levando em conta todas as questões já abordadas no decorrer deste artigo, o contexto atual é bastante desafiador para o trabalho profissional, em especial, com as pessoas em situação de rua, mas como qualquer contexto histórico, permeado por enfrentamentos (leia-se resistência), contradições e possibilidades. É fundamental a capacitação continuada para a atuação profissional no período póspandemia, onde as facetas da questão social estarão ainda mais graves e complexas, o fortalecimento da dimensão coletiva do trabalho profissional e a necessidade de desmoralizar a questão social, isto é, politizando e retirando do âmbito individual o debate acerca da mesma. No intuito de uma atuação em prol de um “posicionamento em favor da equidade e justiça social, a qual assegure universalidade de acesso aos bens e serviços relativos aos programas e políticas sociais, bem como sua gestão democrática”, conforme explicitado no Princípio Fundamental V do Código de Ética Profissional de Assistentes Sociais (CFSS, 2012), uma estratégia viável para provocar e buscar o acesso a direitos das pessoas em situação de rua é a de realizar articulações coletivas, tais como: com o Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos (NUDEDH) da Defensoria Pública; com os Fóruns Permanentes sobre População Adulta em Situação de Rua; com os Fóruns de Trabalhadores do SUAS e do SUS; com o Movimento Nacional da População de Rua, entre outras organizações e movimentos sociais afins. Em suma, a eficiência, a efetividade e a eficácia das ações do Poder Público para com as pessoas em situação de rua estão vinculadas diretamente com a intersetorialidade das políticas públicas; a ênfase na política habitacional e na vontade/interesse político em aplicar recursos para o seu êxito, requisitos estes não muito familiarizados com a realidade política brasileira, assim como a sua trajetória de “enclausurar” inicialmente essa população para depois possibilitá-la o acesso aos outros serviços da rede pública, visto que há uma tendência de atualização dos manicômios10 na Assistência Social. Faz-se essencial pontuar que: “nenhum profissional tem que ter o perfil da política, mas o perfil que corresponda ao projeto da sua profissão” (GUERRA, 2019, p. 120), a fim de que não confunda os objetivos da política pública e institucionais com os objetivos profissionais, estes pautados ética e politicamente na defesa intransigente dos direitos humanos. Por fim, é fulcral a seguinte reflexão no cotidiano dos espaços sócio-ocupacionais: “o nosso fazer profissional está produzindo vida ou está produzindo morte? Somos hoje operadores da necropolítica?”11
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Para um aprofundamento da temática, vide produções recentes sobre saúde mental da Profª Rachel Gouveia. 11 Indagação realizada pela Professora Rachel Gouveia na live Violência de Estado e impacto na saúde, realizada em 31 jul. 2020 pelo CRESS/RJ.
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4 Considerações finais Diante do exposto, é de grande valia, para a categoria de Assistentes Sociais, a ênfase na defesa de bandeiras de lutas do Conjunto CFESS-CRESS, dentre as quais, permanecer lutando pela revogação da Emenda Constitucional (EC) 95/2016, referente ao teto dos gastos públicos por 20 anos e ressaltar a valorização do SUAS e do SUS, e de seus trabalhadores (as), com inspiração no Princípio Fundamental II do Código de Ética Profissional: “defesa intransigente dos direitos humanos e recusa do arbítrio e do autoritarismo.” Cabe destacar a relevância da articulação das dimensões teórico-metodológico, técnico-operativo e ético-político do fazer profissional. Assim, principalmente, neste contexto desafiador, é imprescindível a garantia em especial de um princípio fundamental do Código de Ética Profissional de Assistentes Sociais (CFSS, 2012): o X - compromisso com a qualidade dos serviços prestados à população e com o aprimoramento intelectual, na perspectiva da competência profissional. Em suma, estamos falando do “risco de não poder enfrentar os riscos” (parte do título da live realizada em 16/04/20 pela Associação Nacional de Ensino e Pesquisa do Campo de Públicas - ANEPCP). Se a “vacina” atual é o distanciamento/isolamento social, o chamamento ao “fica em casa”, imaginem como está ainda mais desprotegida a população em situação de rua nesta conjuntura. Ficar em casa e ter uma casa para cumprir a orientação crucial das autoridades e órgãos sanitários para diminuir a velocidade da propagação do vírus neste tempo de pandemia, de fato, são privilégios de classe, dos quais pessoas que utilizam as ruas como espaço de moradia e/ou sobrevivência não possuem, ficando ainda mais expostas aos riscos das ruas neste período. Dessa forma, medidas de distanciamento, isolamento social e quarentena não podem ser desassociadas de medidas de proteção social, senão as classes menos favorecidas sofrerão muito mais os impactos desta pandemia, principalmente, a população em situação de rua. Não podemos continuar naturalizando a tragédia social vivida, não podemos voltar “ao normal”, haja vista que esse discurso sobre o desejo do retorno à “normalidade” é a essência do problema. Em contrapartida, a luta cotidiana pelo horizonte de um “novo normal” é vital. Vale citar a reflexão feita acerca do “processo de desumanização da existência e o extermínio do não ser”12, onde é bastante relevante considerar para o debate acerca das pessoas em situação de rua: o recolhimento compulsório; as comunidades terapêuticas; as práticas de contenção de corpos e subjetividades, através dos seus enclausuramentos e medicalizações; o fato da política de saúde mental estar em disputa, a pluralidade dessas pessoas, indo de encontro ao equívoco da sua homogeneização. Enfim, “a luta de classes não vai acabar por causa do coronavírus, mas a gente pode mitigá-la.”13 Além do mais, faz-se necessário não perdermos o norte pela busca por uma nova sociabilidade, na qual não seja necessário nenhum ser humano ter a rua como seu local de moradia e sustento. “Viver não pode ser um privilégio”,14 ter uma casa digna também não! Afinal, “a rua é a casa de muitos, não deveria ser de ninguém!”15
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Fala da Professora Rachel Gouveia da ESS/UFRJ, na live “Atenção básica e saúde mental da população em situação de rua”, realizada em 18 ago. 2020 pelo Fórum Permanente sobre População Adulta em Situação de Rua do RJ. 13 Fala do Sociólogo, Pesquisador e Professor Doutor do Instituto de Ciências Sociais da UERJ Dario Souza e Silva durante a live “População de rua e COVID-19”, realizada em 15 abr. 2020. 14 Fala extraída da live Violência de Estado e impacto na saúde, realizada em 31 jul. 2020 pelo CRESS/RJ. 15 Fala do escritor e ex-pessoa em situação de rua Léo Motta.
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