Descrever o Visível

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lourdou (Orgs.)

• p. m . freire

Encenar a lembrança: a fotografia de casamento N athalie C onq-Pfersch

Em antropologia fílmica, não basta

Descrever o visível Cinema documentário e antropologia fílmica

Imagem em movimento e estudo dos aprendizados infantis no grupo indígena Wasusu José F rancisco S erafim marcius freire

Cinema documentário e antropologia fílmica

Primeiras aproximações fílmicas do espaço doméstico em Samoa S ilvia Paggi Cinema e ritual no “Vale do Amanhecer”: aspectos metodológicos da antropologia fílmica M arilda M. Batista Retrato fílmico de um artesão-camponês através da mise en scène de uma técnica material Jean-François M oris

Descrever o visível

Etienne Samain

Relações interétnicas e performance ritual: ensaio de antropologia fílmica sobre os Waiwai do norte da Amazônia Ruben Caixeta de Q ueiroz

Espaço e tempo na capoeira: estudo de uma técnica do corpo em antropologia fílmica Roberta K. Matsumoto O ritual andino Santiago: uma reinterpretação etnocinematográfica Carlos Pérez Reyna Estudo da antropologia através da imagem Yasuhiro O mori

9 788574 481777

Com Descrever o visível, os orga­ nizadores do livro (Marcius Freire e Philippe Lourdou) e seus parceiros convidam o leitor a uma imersão no campo do cinema documentário e da antropologia fílmica. Propõem‑nos um quadro metodológico sólido e um horizonte propício a futuros de­ bates.

Elementos de método em antropologia fílmica Annie Comolli

ISBN 978-85-7448-177-7

desenrolar da pesquisa. Trata-se, por­ tanto, de uma descrição filmíca que procura combinar o que o mesmo Rouch defendia: “o rigor científico e a arte cinematográfica”.

philippe lourdou

(Orgs.)

obser­var para imaginar que tudo foi visto. Do mesmo modo não é sufi­ ciente elaborar previamente mises en scène precisas de uma técnica ritual, material, corporal, ou ainda filmá-las exaustivamente para tornar esses pro­ dutos documentários de qualidade. É necessário, sim, “descrever o visí­ vel” — título deste livro, mas, sobre­ tudo, leque de dez empreendimentos concretos de pesquisadores, nacio­ nais e estrangei­ros, sobre a questão. Descrever o visível, ao evocar uma tradi­ção do cinema etnográfico em instituições de pesquisa em ciências humanas — a Escola de Nanterre em especial —, procura demonstrar que o antropólogo‑cineasta não pode dispensar o que Jean Rouch cha­mava de “antropologia partilhada”. Com efeito, concebido “como um segundo campo de pesquisa capaz de dar forma aos dados acumu­lados e pro­ duzir resultados”, o filme é também um instrumento inigualável que per­ mite às pessoas filmadas ter acesso à atividade do pesquisador-cineasta, dando-lhes, assim, a possibilidade de even­tualmente intervir na apresenta­ ção fílmica e, mais ainda, no próprio (cont.)



Marcius Freire Philippe Lourdou (organizadores)

Descrever o visível Cinema documentário e antropologia fílmica


© Editora Estação Liberdade, 2009 © Copyright dos autores para seus respectivos textos Tradução Preparação Revisão Editor adjunto Composição Imagem de capa Editores

Jefferson José Teixeira, José Francisco Serafim, Marcius Freire e Marilda M. Batista Jonathan Busato Estação Liberdade Leandro Rodrigues Johannes C. Bergmann/Estação Liberdade Malinês trajando máscara em dança ritual. © Charles & Josette Lenares/Corbis/Latinstock Angel Bojadsen e Edilberto F. Verza

este livro contou com subsídio da fapesp (fundação de amparo à pesquisa do estado de são paulo) e do faepex (fundo de apoio ao ensino, à pesquisa e à extensão) da universidade estadual de campinas – unicamp

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ D485 Descrever o visível : cinema documentário e antropologia fílmica/ organização Marcius Freire, Philippe Lourdou. - São Paulo : Estação Liberdade, 2009. il.

Inclui bibliografia ISBN 978-85-7448-177-7

1. Antropologia visual. 2. Cinema na etnologia. I. Freire, Marcius. II. Lourdou, Philippe. 09-6297.

CDD: 306.4 CDU: 316.7

Todos os direitos reservados à Editora Estação Liberdade Ltda. Rua Dona Elisa, 116 | 01155-030 | São Paulo-SP Tel.: (11) 3661 2881 | Fax: (11) 3825 4239 www.estacaoliberdade.com.br


SUMÁRIO

Introdução Marcius Freire e Philippe Lourdou

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1. Elementos de método em antropologia fílmica Annie Comolli

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2.

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Relações interétnicas e performance ritual: ensaio de antropologia fílmica sobre os Waiwai do norte da Amazônia Ruben Caixeta de Queiroz

3. Encenar a lembrança: a fotografia de casamento Nathalie Conq-Pfersch

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4. Imagem em movimento e estudo dos aprendizados infantis no grupo indígena Wasusu José Francisco Serafim

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5. Primeiras aproximações fílmicas do espaço doméstico em Samoa Silvia Paggi

135

6. Cinema e ritual no “Vale do Amanhecer”: aspectos metodológicos da antropologia fílmica Marilda M. Batista

163

7. Retrato fílmico de um artesão-camponês através da mise en scène de uma técnica material Jean-François Moris

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8. Espaço e tempo na capoeira: estudo de uma técnica do corpo em antropologia fílmica Roberta K. Matsumoto

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9. O ritual andino Santiago: uma reinterpretação etnocinematográfica Carlos Pérez Reyna

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10. Estudo da antropologia através da imagem Yasuhiro Omori

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Sobre os autores

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Introdução

Há efetivamente um momento em que é necessário passar da explicação à simples descrição. Ludwig Wittgenstein

“Toda obra técnica é um drama, um ‘jogo entre o homem e a matéria’ que só o cinema pode restituir”, dizia André Leroi-Gouhan em um artigo de 19481, considerado por Claudine de France como “a certidão de nascimento oficial do filme etnográfico”. Ora, já nos primórdios do cinematógrafo encontramos tentativas de restituição desse drama. Com efeito, sem a pretensão de reconstituir aqui as circunstâncias que envolveram aquilo que poderíamos considerar como as origens do filme etnográfico ou mesmo do documentário, nunca é demais lembrar que o primeiro a dirigir um instrumento de registro em imagem animada — no caso, uma câmera cronofotográfica — para uma atividade humana com uma intenção etnográfica foi Félix-Louis Régnault (um aluno de Etienne-Jules Marey, médico e fisiologista, cujas pesquisas para reproduzir e estudar o movimento humano e de alguns animais o levaram a inventar o “fuzil cronofotográfico” em 1882). Contando com a ajuda de Charles Comte, ele registra o “jogo” de uma mulher uólofe com a argila para fabricar objetos em terra, cena recolhida em Paris durante a Exposição Etnográfica da África Ocidental, instalada no Champ-de-Mars, ao pé da Torre Eiffel. Estávamos em 1895 e, a partir dessa experiência, levada a cabo no mesmo ano da projeção histórica dos irmãos Lumière, Régnault se dedica à observação fílmica de outros “jogos”, que não dizem respeito obrigatoriamente à transformação da matéria. Dentre eles, atenção especial é dedicada aos próprios corpos   1. André Leroi-Gourhan, 1948, p. 46.

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dos sujeitos, de que são testemunhos suas experiências sobre os gestos e posturas utilizados pelos povos Diola e Fulani para subir em árvores, agachar, andar, etc. Dessa forma, quarenta anos antes de Marcel Mauss criar a expressão “técnicas do corpo”2, o cinema já descrevia as relações do homem com aquilo que o próprio Mauss chamou de “o primeiro e mais natural objeto técnico, e ao mesmo tempo meio técnico do homem”. 3 Inclusive, é necessário acrescentar que o cinema teve um papel importante, poderíamos até dizer que como elemento desencadeador, na elaboração da noção de “técnicas do corpo”.4 Régnault era um fervoroso defensor do uso sistemático do filme em antropologia, uma vez que, como dizia, ele “preserva para sempre todos os comportamentos humanos necessários às nossas pesquisas”. 5 Lançou também, em 1900, a ideia de projetar filmes curtos naqueles estabelecimentos chamados então de “museus de etnografia” (o Musée de l’Homme, em Paris, ainda não existia). Imaginava que, ao lado dos objetos instalados nas galerias dos museus, deveria ser mostrado como os mesmos eram utilizados. Seu objetivo era estudar “a fisiologia própria a cada grupo étnico”. Estamos aqui em presença de uma perspectiva descritiva, aquela do movimento, levando em conta diferenças culturais. Mais tarde, Patrick O’Reilly e Marcel Griaule, na França, serão os primeiros a realizar filmes efetivamente etnográficos. O primeiro nas ilhas Salomão, na Melanésia, em 1934-1935; o segundo junto aos Dogon do Mali, em 1935.6 Esses filmes se demarcavam das realizações da época, no mais das vezes filmes de viagem em que os “papéis principais” eram atribuí­ dos aos próprios viajantes, enquanto os habitantes das regiões percorridas eram reduzidos a simples figurantes e tratados como elementos da paisagem.   2. Marcel Mauss, 1950, p. 365-386.   3. Ibidem, p. 372.   4. Marcel Mauss afirma que suas reflexões sobre as técnicas do corpo foram definitivamente beneficiadas por uma verdadeira revelação que lhe foi feita em um leito de hospital em Nova York. A maneira de andar das enfermeiras lhe pareceu familiar e ele se perguntou onde havia visto moças andarem como elas. Após alguma reflexão, descobriu que havia sido no cinema. De volta a Paris, observou que as jovens francesas começavam a andar da mesma maneira, influenciadas pelo cinema norte-americano. Ibidem, p. 368.   5. Félix-Louis Régnault, 1995, p. 23.   6. Patrick O’Reilly, Bougainville, 1934-1935, 35 mm, preto-e-branco, 35 min.; Marcel Griaule, Au Pays des Dogon, 1938, 35 mm, preto-e-branco, 13 min., e Sous les Masques noirs, 1938, 35 mm, preto-e-branco, 12 min. As primeiras imagens desses filmes foram realizadas em 1935.

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introdução

Assim como O’Reilly, Griaule estava profundamente convencido do interesse que as imagens em movimento poderiam ter na pesquisa etnográfica. Mas, para ele, a importância desse instrumento se encontrava sobretudo no seu potencial documental e pedagógico, e lhe atribuía as seguintes propriedades: 1) valor de arquivo com estatuto de ficha ou de objeto — ele fala também de “fotografia aperfeiçoada”; 2) meio eficaz de ensino e de demonstração para aqueles que vão se dedicar à pesquisa etnográfica; e, de maneira mais ampla, 3) veículo para o ensino público de grande difusão, sem esquecer que ele pode se constituir, “sob certas condições, em obra de arte”.7 As relações do cinema documentário de fatura etnográfica continuam a se desenvolver no meio acadêmico francês, e em 1953 recebem um novo impulso com a criação do Comité du Film Ethnographique. Dentre os seus membros fundadores podemos citar André Leroi-Gourhan, Claude Lévi-Strauss, Marcel Griaule, Georges-Henri Rivière (à época vice-diretor do Musée de l’Homme, criado em 1937), Henri Langlois, Germaine Dieterlen. Jean Rouch foi nomeado secretário geral, função que vai exercer até sua morte, em 2004. Outras personalidades não diretamente ligadas a esse meio também apoiaram vivamente a iniciativa: Alain Resnais, Georges Rouquier, Marc Allégret e Roger Caillois. Para todas essas personalidades, o interesse do cinema para as ciências humanas não deixava qualquer dúvida. Em 1964, Jean Rouch assumiu, juntamente com Gilbert Rouget (fundador do departamento de etnomusicologia do Museu do Homem 8) o ème Laboratoire Audiovisuel de l’École Pratique des Hautes Études, V Section — Sciences Religieuses, esta última criada sob a égide de Germaine Dieterlen e de Claude Lévi-Strauss. Foi inclusive ele quem emprestou o local para o seu funcionamento em um anexo do Musée Guimet, localizado na avenida de Iéna, em Paris. Vemos, assim, a partir de tudo que precede, que existia então algo como uma tradição subterrânea, se assim podemos chamá-la, do cinema etnográ­fico nas instituições de pesquisa em ciências humanas na França,   7. Marcel Griaule, 1957.   8. Etnomusicólogo de grande reputação, Gilbert Rouget foi correalizador, juntamente com Germaine Dieterlen e Jean Rouch, do filme Batteries Dogon. Eléments pour une étude des rythmes (1966). Participou também das filmagens do primeiro filme da série dedicada aos ritos sexagenários Dogon do Sigui, L’Enclume de Yougo (1967), cujo som ele gravou.

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e notadamen­te no campo da antropologia. No entanto, essa tradição, que até então permanecia mergulhada numa espécie de confidencialidade discreta, vai efetivamente emergir no meio universitário francês. Primeiramente, em 1969, Jean Rouch começa a ensinar cinema antropológico e documentário na Universidade Paris X – Nanterre.9 Os cursos são ministrados pelo próprio Rouch em colaboração com Enrico Fulchignoni.10 Em seguida, o mesmo Jean Rouch cria, em 1971, a Formation de Recherches Cinématographiques – FRC, na mesma Universidade Paris X – Nanterre, centro de pesquisa que ele dirige até 1980, quando Claudine de France vai sucedê-lo. Essa formação é certamente o primeiro centro de pesquisa inteiramente dedicado ao estudo das relações entre as imagens animadas e as ciências humanas criado na França, onde são desenvolvidas, desde a sua fundação, pesquisas que sob vários aspectos são das mais originais. Enfim, em 1976, nasce, na mesma universidade, um doutorado em cinematografia, por iniciativa e sob a responsabilidade de Jean Rouch e Georges-Albert Astre, professor universitário e historiador do cinema. 11 Doravante, os pesquisadores podem ensinar, transmitir conhecimentos e reflexões angariados em suas experiências de campo. Com essa iniciativa, o cinema antropológico, antes acantonado quase que exclusivamente no âmbito da pesquisa, faz agora sua entrada no ensino universitário pós‑graduado. Falar em doutorado significa falar na redação de uma tese; e é assim que tem início toda uma prática acadêmica em que o cinema e as ciências humanas, e sobretudo a antropologia, vão se associar para criar esta nova disciplina a que chamamos de “antropologia fílmica”. 12   9. Alguns anos mais tarde, esse ensino semanal será ministrado na Cinemateca Francesa do Palais de Chaillot sob o título de Séminaire Nanterre-Chaillot, com o apoio de Henri Langlois, fundador da Cinemateca. 10. Em 1970, juntamente com Georges-Henri Rivière, os dois amigos criam, em Veneza, o festival internacional dedicado ao documentário etnográfico, Venezia Genti. Fulchignoni foi também presidente do Comité International du Cinéma et de la Télévision (CICT). 11. É importante ressaltar que, logo no ano seguinte, esse novo curso será assegurado em associação com a Universidade Paris I – Sorbonne. 12. Diferentemente da antropologia visual, que, segundo entendimentos mais recentes, recobre todos os aspectos iconográficos da vida das sociedades (talvez a melhor definição para o campo tenha sido dada por Marcus Banks e Howard Morphy na introdução do livro que organizaram, Rethinking Visual Anthropology, p. 5: “Antropologia visual, tal como nós a definimos, tornou-se a antropologia dos sistemas visuais ou, mais amplamente, formas culturais visíveis”), a antropologia fílmica define aquilo que diz respeito às imagens animadas, ou seja, ao cinema, qualquer que seja o seu suporte.

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introdução

Como pudemos constatar, os grandes mestres compreenderam a importância da imagem animada e do cinema (mesmo alguns se decepcionando mais tarde, eles tinham o espírito aberto; em todo caso — é importante lembrar — André Leroi-Gourhan, Gilbert Rouget ou Germaine Dieterlen, para citar apenas alguns, jamais desanimaram). A criação desses órgãos, instituições e cursos é a melhor prova disso, uma vez que demonstra o desejo de ir além da simples declaração de intenção. No ambiente acadêmico assim criado, nasceu toda uma série de propostas teóricas e metodológicas. Algumas criaram raízes sólidas e se beneficiaram de certa perenidade; outras, que no início poderiam parecer promissoras, se revelariam menos fecundas, mas representaram o indispensável papel de permitir que fossem consideradas ou descobertas questões imprevistas que levaram à exploração de caminhos mais férteis. Situando-se como resultado mais tangível do percurso aqui rapidamente traçado, aquele que culmina com a criação da formação doutoral de Nanterre e da Formation de Recherches Cinématographiques–FRC da mesma universidade, os trabalhos aqui compilados são rastros deixados no caminho pelo engenheiro civil, construtor de pontes entre culturas e pelos inúmeros discípulos que o pavimentaram. Todos eles, de uma maneira ou de outra, são tributários das iniciativas acadêmico-institucionais levadas a cabo por Jean Rouch; sua grande maioria teve origem, de forma direta, nos projetos gerados no seio da FRC e na formação doutoral a que dava suporte. Os desdobramentos dessas iniciativas, os métodos e teorias que delas se originaram, podem ser facilmente identificados pela multiplicidade de campos disciplinares e instituições, no Brasil e no exterior, que acolheram os autores desta obra, e pela diversidade de temas e abordagens que a conformam.

Sobre a descrição Um dos aspectos mais evidentes dos filmes cujos princípios norteadores para sua realização encontram raízes na tradição acima exposta é a sua vocação descritiva. No entanto, o papel do filme etnográfico, fortemente marcado pela função essencialmente descritiva que lhe foi consignada desde as suas origens , vai sofrer uma mudança importante sob a influência de Jean Rouch. Com ele, as imagens animadas, de instrumento auxiliar 13


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com objetivos quase que exclusivamente descritivos, tornam-se agentes da investigação, situadas no centro mesmo da atividade de pesquisa. Pelo menos foi nesse sentido que o antropólogo-cineasta sempre procurou encaminhar suas iniciativas. Evidentemente, esse deslocamento se reveste de uma importância considerável, uma vez que ele chega mesmo a modificar, em parte, o estatuto da linguagem e, particularmente, o da escrita nos procedimentos de pesquisa.13 Ademais, sob outro aspecto, podemos reconhecer na noção de antropologia partilhada concebida por Jean Rouch uma das consequencias desse deslocamento. Com efeito, apesar de poder se prestar a múltiplas interpretações, tanto mais que o seu autor se absteve de lhe atribuir uma definição irrevogável — mas justamente aí reside talvez um de seus aspectos mais fecundos e uma das maiores forças de sua atração: essa noção, aqui compreendida como noção metodológica, que, evidentemente, podemos interpretar a partir de outras perspectivas, exprime a tentativa de abolir a distância entre o pesquisador e o pesquisado e de colocá-los em pé de igualdade. Mais do que sublinhar os laços de cooperação que unem o pesquisador-cineasta e as pessoas que são objeto da pesquisa ou dela participam, ela afirma o papel propriamente ativo desses últimos na investigação. O status tradicional de simples objeto de estudo é agora deslocado ao de coprodutores ou, antes, de coautores, assim influenciando e orientando diretamente, para não dizer dirigindo, a elaboração do trabalho do pesquisador.14 Poderíamos, também, estender esta noção de antropologia partilhada a outro tipo de colaboração. Nessa perspectiva, por exemplo, Germaine Dieterlen coassinou um trabalho, Le Renard pâle (1965), com Marcel Griaule, muito tempo depois do desaparecimento prematuro deste último em 1956. Essa obra é, de fato, o resultado de pesquisas conjuntas dos dois autores que Germaine Dieterlen prolongou e enriqueceu após Griaule ter falecido. 13. C. de France, 1998, p. 24-26. 14. “É esse ‘cine-diálogo’ permanente que me parece ser, hoje, um dos aspectos mais interessantes do procedimento antropológico: o conhecimento não é mais um segredo roubado, devorado em seguida pelos templos ocidentais do conhecimento, ele é o resultado de uma busca sem fim em que etnografados e etnógrafos se engajam em um caminho que alguns dentre nós já chamam de ‘antropologia partilhada’”. Jean Rouch, “Entretien avec le professeur Enrico Fulchignoni”, [août 1980], in: Jean Rouch. Une rétrospective, Paris, Ministère des relations extérieures – Cellule d’animation culturelle, SERDDAV-CNRS (orgs.), 1981, p. 29.

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introdução

Da mesma forma, podemos considerar que a série de filmes dedicados às cerimônias sexagenárias do Sigui, realizado por Jean Rouch junto aos Dogon entre 1967 e 1973, é fruto de uma colaboração póstuma com Griaule, concretizando seu sonho de poder assisti-las. Com efeito, tendo acontecido o último ciclo cerimonial entre 1907 e 1913, Marcel Griaule, que trabalhou junto aos Dogon de 1931 até o fim de sua vida, nunca pôde observar essas celebrações a respeito das quais efetuou pesquisas aprofundadas e às quais dedicou uma importante parte de sua obra seminal Masques dogons (1938). Enfim, podemos ainda nos apoiar na ideia inúmeras vezes defendida por Jean Rouch de que um trabalho de pesquisa etnográfica só pode se realizar plenamente ao cabo de quatro gerações, tanto de pesquisadores quanto de pessoas pesquisadas — cada geração passando, de alguma maneira, o bastão à outra — de tal forma que uma verdadeira cumplicidade se instaura e um verdadeiro diálogo entre gerações sucessivas possa conduzir a uma obra coletiva. Mas, quaisquer que possam ser as consequências metodológicas desse deslocamento — e elas estão longe de ser inócuas15 —, não é possível ignorar que o filme antropológico participa de duas exigências aparentemente contraditórias: a do pesquisador e a do cineasta. As aspirações do primeiro nem sempre correspondem àquelas do segundo. Um se interessa mais pelo conteúdo, sem compreender realmente que a forma que vai constituí-lo é um elemento determinante de sua apreensão ou mesmo de sua compreensão 16, enquanto o outro, nem sempre se dando conta das implicações daquilo que faz, acredita que ao filmar tudo será dito — ou quase —, sem se questionar quanto à maneira como filma. É importante ter em mente que essas desavenças, tradicionais até certo ponto, há muito fazem parte do debate que opõe os defensores de um cinema considerado apenas como uma forma artística e aqueles que sublinham suas capacidades cognitivas. Quanto a Jean Rouch, ele resolveu a contradição e deixou para trás esse tema de discórdia, que pode parecer obsoleto sob vários aspectos, sendo 15. A nosso ver, uma das mais importantes consiste em colocar a observação dita diferida no centro do aparelho de pesquisa. Ou seja, ter a possibilidade de rever, quantas vezes forem necessárias, os elementos registrados (C. de France, 1998, p. 23-24.). Essa segunda pesquisa de campo vai além dos métodos tradicionais. 16. Mas, enquanto permanece no domínio da escrita, curiosamente essa compreensão está sempre presente.

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Encenar a lembrança: a fotografia de casamento N athalie C onq-Pfersch

Em antropologia fílmica, não basta

Descrever o visível Cinema documentário e antropologia fílmica

Imagem em movimento e estudo dos aprendizados infantis no grupo indígena Wasusu José F rancisco S erafim marcius freire

Cinema documentário e antropologia fílmica

Primeiras aproximações fílmicas do espaço doméstico em Samoa S ilvia Paggi Cinema e ritual no “Vale do Amanhecer”: aspectos metodológicos da antropologia fílmica M arilda M. Batista Retrato fílmico de um artesão-camponês através da mise en scène de uma técnica material Jean-François M oris

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Etienne Samain

Relações interétnicas e performance ritual: ensaio de antropologia fílmica sobre os Waiwai do norte da Amazônia Ruben Caixeta de Q ueiroz

Espaço e tempo na capoeira: estudo de uma técnica do corpo em antropologia fílmica Roberta K. Matsumoto O ritual andino Santiago: uma reinterpretação etnocinematográfica Carlos Pérez Reyna Estudo da antropologia através da imagem Yasuhiro O mori

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Com Descrever o visível, os orga­ nizadores do livro (Marcius Freire e Philippe Lourdou) e seus parceiros convidam o leitor a uma imersão no campo do cinema documentário e da antropologia fílmica. Propõem‑nos um quadro metodológico sólido e um horizonte propício a futuros de­ bates.

Elementos de método em antropologia fílmica Annie Comolli

ISBN 978-85-7448-177-7

desenrolar da pesquisa. Trata-se, por­ tanto, de uma descrição filmíca que procura combinar o que o mesmo Rouch defendia: “o rigor científico e a arte cinematográfica”.

philippe lourdou

(Orgs.)

obser­var para imaginar que tudo foi visto. Do mesmo modo não é sufi­ ciente elaborar previamente mises en scène precisas de uma técnica ritual, material, corporal, ou ainda filmá-las exaustivamente para tornar esses pro­ dutos documentários de qualidade. É necessário, sim, “descrever o visí­ vel” — título deste livro, mas, sobre­ tudo, leque de dez empreendimentos concretos de pesquisadores, nacio­ nais e estrangei­ros, sobre a questão. Descrever o visível, ao evocar uma tradi­ção do cinema etnográfico em instituições de pesquisa em ciências humanas — a Escola de Nanterre em especial —, procura demonstrar que o antropólogo‑cineasta não pode dispensar o que Jean Rouch cha­mava de “antropologia partilhada”. Com efeito, concebido “como um segundo campo de pesquisa capaz de dar forma aos dados acumu­lados e pro­ duzir resultados”, o filme é também um instrumento inigualável que per­ mite às pessoas filmadas ter acesso à atividade do pesquisador-cineasta, dando-lhes, assim, a possibilidade de even­tualmente intervir na apresenta­ ção fílmica e, mais ainda, no próprio (cont.)


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